Leitura de um esforçado ensaio de Fidelino de Figueiredo, «Memorialismo e Voluntarismo», em que tenta imputar os males pátrios à alegada incapacidade de formular uma ideia mobilizadora da acção, por o espírito nacional ser pretensamente atreito a atentar simplesmente no já acontecido:
Saber é lembrar-se, como recordar é viver, no provérbio mais aliteratado. O bom conversador - tipo muito nacional - é o homem que conta bem, que recorda, que descobre antecedentes e se deleita no anedótico e no episódico.E remetendo para texto de João Chagas, em nota reproduzido:
A inteligência dos portugueses, de resto, não se traduz em ideias. Quando pretendem exprimir uma ideia, contam um facto.
A tese parece ser uma alusão mais à deficitária especulação filosófica lusa. Mas será isto um mal? Nietzsche disse nalgum lugar que
as convicções serão mais nocivas para a Verdade do que as mentiras. E parece indiscutível que a deformação da preconcebida visão que procure na observação e no estudo a mera reiteração do pendor em que se mergulhou é bastante mais perigosa do que o vício apontado.
Se não me hipoteco, ponto por ponto, à visão agregadora que Oakeshott deu, a partir de uma leitura de Burke, de todo um Pensamento Conservador, com a aproximação de teorias difíceis de conciliar, estou, todavia, plenamente de acordo com o alerta que dele se extrai para os perigos das ideias gerais programáticas na informação das acções governativas, ao arrepio da Experiência e Adquirido dos Povos.
Mas o que poderia ser uma salvaguarda nacional contra essa ameaça, caso a presunção de Fidelino seja correcta, é completamente neutralizado pela sede de imitação que sempre tem marcado a nossa Vida Política e Intelectual. Em vez de formular os grandes quadros mentais sistemáticos que abalam as vidas noutras Nações, importamo-las inteirinhas, pelo prestígio de as crermos novas e, se calhar, pior ainda, pelo estigma de não nos supormos capazes de (melhores) ideias. É a abstenção de joeirar que prescinde da peneira que separe o que não presta, para se rodear das peneiras de fazer como nos locais civilizados. Ontem o que era chic, hoje o que está in, só mudou a língua dominante.
Por uma coincidência que reputo significativa, faz hoje anos que Jean-Jacques Rousseau abjurou o
Protestantismo, em 1728. Abandonou assim a intransigência do
Calvinismo da Sua Genebra, onde a Predestinação fazia de cada indivíduo um suspeito de perdição, teorizando em seu lugar a
bondade natural de um homem que nunca alguém viu. Do hiperjulgamento condenatório que torna a vida insuportável, na minha óptica, passou à absolvição apriorística que transforma a existência num regabofe ético que repugnará a qualquer mentalidade exigente. Mas por que caiu ele nisto? Por não apenas prescindir dos factos, como expressamente enuncia em «O Contrato Social», mas por ter igualmente afastado a consequência das ideias, porém as gerais, as duas grandes enformadoras que se ofereciam para o recolher, se não heterodoxamente entrado na nova Religião - as de
Bem e
Mal como possibilidades de cada indivíduo e a irresponsabilidade do juízo sobre a Humanidade como entidade colectiva, fora da acção de cada um dos seus membros.
E assim, percorridos os riscos que a abstracção e o concreto, isolados um do outro, representam para qualquer norteação afirmativa, podemos encontrar um sentido útil para a crítica do nosso Autor: um dos traços mais incontestáveis dos nossos patrícios é a cedência que essas grandes ideações morais protagonizam em muitos casos, perante a atenção aos acontecimentozinhos que os rodeiam:
vendo como os que fazem trinta por uma linha se safam muita bem, cada desiludido pensa que deve deixar de ser tanso, pôr de parte as lérias em que tinha acreditado e fazer outro tanto. E nesta capitulação ganha plena acuidade o título do livro de onde se colheu a reflexão que originou este postal.