A publicidade tem que se lhe diga, até nas relações com a música. Hoje, avocando sofisticações massificantes, intercala apelos à compra de produtos que é de rigor todos terem, adquiridos em locais de venda indiferenciados, enquanto que na antiga venda ambulante cada transacção punha em confronto Pessoas verdadeiras e a mercadora variava conforme o exemplar. Também a música era, inicialmente, parte integrante do pregão, a forma de anúncio do tempo, que era impagável, porque mais digna.
Aconteceu com esses altissonantes estribilhos algo da decadência da forma que também atingiu a Missa, quando deixou de ser cantada, logo obrigando a revivalismos. Luís Chaves informa-nos que o pregão cantado deu lugar ao gritado, passando a berrado ser. Numa tentativa de não cortar totalmente, alguns ainda entoavam uma ondulação frásica que nem seria carne nem peixe, mas satisfaria qualquer das preferências.
Parece terem sido os ardinas e o cauteleiros os principais artífices da degradação, como as varinas que chegariam a alterar a fonética, de pescada do alto para pescadato, por exemplo...
Sendo que a personalidade indissociável de uma venda que não seja anónima obriga a procurar uma qualquer imitação de arte, com os resultados medíocres que costumam. Donde, alguns vendedores de Sorte Grande enveredaram pelo estilo da quadra popular, onde outrora imperava a melodia...
Mas sobressaía toda uma regularidade que se transformava em muleta ética. Não eram só os habitantes de Koenigsberg que acertavam os relógios pelo passeio de Kant, também muito Lisboeta remediado saía para mais um dia à passagem cronometricamente exacta da Mulher da Fava Rica. Simplesmente, quando um hábito se esvai, deixando de ser factor vital para passar a entretenimento, caímos na sede de pitoresco que marca a decadência nossa e deles, dos protagonistas do Típico.
O sossego afectuoso e tranquilizante da rotina viria a ver-se substituído pelo inquietante ferrão da saudade, no mesmo intento de preservar a enformação que nos individualiza, contra as normalizações cosmopolitas e metropolitanas. A memória é importante, à falta do genuíno que a encenação não reaviva. Também nesse sentido a frase de Maritain, segundo a qual ser anti-moderno é maneira das melhores de ser ultra-moderno, mantém verdade e actualidade. Breve, em vez de ser apreendida naturalmente, viria toda esta prática a ter de ser ensinada, como no livro de leitura da 3ª Classe de 1942:
Vendedores ambulantes
começam a aparecer.
Vamos lá ver, ó freguesas,
o que trazem para vender.
Oito horas. À nossa porta
passa agora a tia Chica.
Com sua voz compassada,
apregoa: «Fava Rica».
Lá vem também a peixeira
com seu trajo pitoresco,
dizendo: «Oh! viva da costa!»
ou então: «Carapau Fresco».
E agora, de toda a parte
se ouve gente que apregoa,
gritando: «Quem quer´laranja?
Quem compra laranja boa?...»
«Merca o cabaz de morangos...»
«Século. Notícias. Voz...»
«Oh! boa amora da horta!...»
«Quem quer ameijoas p´ra arroz?»