Recorte deixado pelo meu
pai dentro de O Capote, reportando um trabalho do mímico Marcel Marceau sobre a
novela de Nicolau Gogol.
O recorte é do jornal República
de 30 de Dezembro de 1965.
Recorte deixado pelo meu
pai dentro de O Capote, reportando um trabalho do mímico Marcel Marceau sobre a
novela de Nicolau Gogol.
O recorte é do jornal República
de 30 de Dezembro de 1965.
É este começo da novela na tradução de José Marinho:
Da importância
destes «Cadernos Inquérito», sublinha-se o que João Marques Lopes relata na
«Biografia» de José Saramago:
«Á data, vive ainda com os pais no pequeno andar independente do número 11 da Rua Carlos Ribeiro, à Penha de França. Entre a casa, o emprego e as bibliotecas, o serralheiro mecânico iniciava um tímido processo de mobilidade social. Transitava a amanuense. Estava prestes a comprar os seus primeiros livros – todos da colecção «Cadernos Inquérito», à época instrumento importante de divulgação cultural e generalista – graças ao empréstimo de trezentos escudos feito por um colega de trabalho.»
Legenda: capas de exemplares da «Colecção Inquérito» tiradas do site da OLX
Imperdíveis!
Uma
já Cristina Leonardo contara antes do aniversário
Abrilico de antes de Abril, e tem o seu pai como personagem:
Ana
Cristina Leonardo nasceu em Olhão e conta que o pai, sem simpatia alguma pelos
americanos, após o fim da guerra estava às voltas com discussões em que já se
discutia que um automóvel era coisa boa para os portugueses.
O
pai para a assembleia:
«Calma,
primeiro uma bicicleta a pedais para cada português. Depois os Cadillacs.»
O
que se segue é parte da «Abril, Memórias Mil (II)», publicada no dia 12 de
Abril:
«…anos antes e mais a
sul, um homem de meia-idade pedalava cautelosamente na noite. A tarefa de que
fora incumbido consistia em levar uma braçada de Avante(s) a local previamente definido. Montado na sua bicicleta
– meio de locomoção que alguém numa reunião local da Oposição, não havia muito,
reivindicara sensatamente para todos os cidadãos, contrariando os fantasistas
do american dream que não
faziam a coisa por menos de um Cadillac: “Os Cadillac logo se vê. Para já, uma
bicicleta a pedais para cada português!” – cruzava as vielas mouras combinando
a audição de um morcego com o equilíbrio de um gato.
Tudo dormia. As ruas estavam desertas. O homem olha na direcção das açoteias
com a mesma ansiedade com que se imagina um recruta tentando antecipar-se a um
franco-atirador. O silêncio apenas interrompido pelo chiar arrastado da
corrente gasta (algo semelhante acontece no Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, mas nem
Wilde nem o fantasma entram nesta crónica), e eis que o som cavo de passos é
detectado pelo homem-morcego. São passos apressados, como se alguém tentasse
correr, não correndo. Aproximam-se, calam-se ao abrandar da bicicleta. Se
pudéssemos suspender o movimento no tempo, obteríamos a imagem parada de um
pide, uma perna levantada no ar, o corpo inclinado para a frente sobre o único
pé que toca o empedrado do lancil. Usa chapéu.
O homem da bicicleta sabe que nada mais lhe resta senão desfazer-se da carga. A
poucos metros, o muro do cemitério. Pedala furiosamente. Transforma-se num
homem-gato, num funambulista que, sem afrouxar o ritmo, lança a braçada de Avante(s) sobre o muro alto e caiado que delimita o
território dos que descansam.
O pide que deixámos para trás, o movimento imobilizado no tempo, falha por um
desalinho da viela moura o gesto do homem-gato. Há-de persegui-lo inutilmente
até ao porto para onde ele se dirige agora, local que começa a animar-se com a
chegada dos primeiros barcos de pesca. Cheira a maresia em Olhão.
E sobre os Avante(s) jogados para o cemitério
que na manhã seguinte esvoaçavam sobre as campas como querubins brincalhões,
havia de comentar o coveiro, em voz baixa, naturalmente, na sua habitual
passagem pela barbearia: “Atã má que jête, mósse? Os desfalecides é que vão ler
os Avante? Aquilo foi obra do
demóine ou d’algum desinfeliz que ia bem encalitrado!”»
Legenda: imagem de Mihai Criste.
Poema a Vladimir Ilyitch Lenine
Tradução: Manuel
Seabra
Editorial A Comuna,
Maio de 1976
Eu conheci um operário analfabeto
que nunca mastigou o sal do abecedário,
mas um dia escutou Lénine a falar,
e ficou a saber tudo
… … … … … …
O partido e Lénine
são irmãos gémeos.
Quem é mais valioso
para a mãe-história?
Dizemos Lénine
entenda-se
Partido,
quando dizemos
Partido,
entenda-se Lénine.
… … … … … …
(Excertos)
Com a guerra na Ucrânia a tornar-se uma rotina, uma doença crónica, a transformar-se num estado permanente de depressão e de morte na Europa, tal como acontece na Palestina há um ror de anos...
Autor desconhecido
O Lobo do Mar
Jack London
Tradução: João
Guerreiro Boto
Publicações Europa-América, Lisboa, Setembro de 1973
Mal sei por onde começar, embora por vezes atribua jocosamente a causa de tudo a Charley Furuseth. Ele tinha uma casa de veraneio em Mill Valley, à sombra do monte Tamalpais, que só ocupava quando passava os meses de Inverno sem trabalhar, a ler Nietzshe e Schopenhauer para repousar o espírito.
Se sou artista, faço o que faço, quando quero e como me apetece. Porque gosto e porque sou assim. Não há outra maneira de ser Pedro Cabrita Reis.
Pedro Cabrita Reis
Legenda: Exposição de Pedro Cabrita Reis nos pavilhões da Mitra, Rua do Açúcar, 56, até 28 de Julho.
Martina Batic
substitui Michel Corboz, falecido em 2021 e que dirigiu o Coro durante 50 anos.
Martina deu uma
entrevista, conduzida pelo crítico Ricardo da Rocha, ao ípsilon do Público de 24 de Maio.
Sim, sou um leitor
atrasado de jornais, vício que transporto há longos anos.
«Dirigir um concerto
não é impor uma liderança, mas ser alguém de confiança.»
«Quando não está
ocupada a preparar novo repertório, Martina Batic gosta de passear a sua
“estrela prateada”, um Mercedes Benz, por Liubliana, Eslovénia. Nas colunas, a
vertigem da voz de Tina Turner ou uma qualquer banda rock dos anos 80. O sonho
de ser maestrina chegou-lhe na ressaca de um réveillon, ainda criança,
quando viu Riccardo Muti dirigir a Orquestra Filarmónica de Viena, nos
obrigatórios concertos de Ano Novo transmitidos pela televisão.»
A parte interessante que aqui trago, é quando diz que o nosso país a impressionou muito, nada de extraordinário, extraordinário é este acrescento:
«Aterrar no meio da cidade… a vista lá de cima. E devo dizer também que cheira
tão bem! Há qualquer coisa no ar, não sei se é o mar, o sol, as flores.»
Dizem os actuais
governantes que é possível, talvez em 30 anos, ter o novo Aeroporto Luís de Camões,
em Alcochete, construído.
Mas a propósito do que Martina diz, recorto do Público de 25 de Junho:
«Quem mora junto ao aeroporto tem maior risco de
diabetes, demência e hipertensão
Quem vive num raio de cinco quilómetros de distância do aeroporto de Lisboa, ou
seja, cerca de meio milhão de pessoas, tem um risco maior de sofrer de doenças
como hipertensão, diabetes ou demência, devido à exposição à poluição de
partículas ultrafinas emitida pelos aviões, segundo um estudo internacional
divulgado nesta terça-feira pela associação ambientalista Zero.
Quem mora junto ao aeroporto tem maior risco de diabetes, demência e
hipertensão
A queima do combustível das aeronaves liberta minúsculas partículas de
diferentes tamanhos, incluindo partículas ultrafinas, com menos de 100
micrómetros, que são cerca de mil vezes mais pequenas que um fio de cabelo.»
Ficamos assim entre a poesia de aterrar no meio duma cidade e o mal que isso traz à sua dos habitantes que vivem do aeroporto.
Legenda: o Coro da Gulbenkian.
O Macaco e a Essência
Aldous Huxley
Tradução: Figueiredo
Soares
Capa: Infante do
Carmo
Colecção Miniatura nº
164
Livros do Brasil, Lisboa s/d
Era o dia do assassínio de Gandhi; mas no Calvário os excursionistas
estavam mais interessados no conteúdo das suas cestas de piquenique do que na
significação do evento, afinal de contas banal, que lhes sucedera testemunhar.
Trabalha agora na importação
e exportação. Importa
metáforas, exporta alegorias.
Podia ser um trabalhador
por conta própria,
um desses que preenche
cadernos de folha azul com
números
de deve e haver. De facto, o que
deve são palavras; e o que tem
é esse vazio de frases que lhe
acontece quando se encosta
ao vidro, no inverno, e a chuva cai
do outro lado. Então, pensa
que poderia importar o sol
e exportar as nuvens.
Poderia ser
um trabalhador do tempo. Mas,
de certo modo, a sua
prática confunde-se com a de um
escultor do movimento. Fere,
com a pedra do instante, o que
passa a caminho
da eternidade;
suspende o gesto que sonha o céu;
e fixa, na dureza da noite,
o bater de asas, o azul, a sábia
interrupção da morte.
Nuno Júdice
Camões, Camilo, Eça, e Alguns Mais
Aquilino Ribeiro
Livraria Bertrans, Lisboa s/d
É louvada a longanimidade e tolerância de Fr. Bartolomeu Ferreira porque estando os Lusíadas à mercê do seu lápis de revedor não suprimiu a jóia erótica sem para da ilha voluptuosa e outras belezas desenvoltas do poema.
Os Estados Unidos consideraram o incidente chocante,
completamente inaceitável,e pedem uma investigação.
O Exército israelita disse que a conduta desses militares vai contra os procedimentos das
forças armadas israelitas e colocou o triste e lamentável episódio em
investigação.
O incidente está a ser investigado.
Os Estados Unidos não decidiram, de imediato, acabar com o auxílio a Israel.
Neste país onde ninguém sabe
como obram as musas,
já dizia o outro,
fazer versos realmente versos,
que sigam o espasmo do ânus provecto
dessas criaturas fúteis, decantadas,
ainda é e será muito difícil.
Existe sempre um braço etéreo
que puxa o autoclismo
no momento exacto da defecação.
Ouve-se um ruído,
alguém pergunta ao outro o que se passa:
«É o som das águas que bate na garganta.»
Aliviados então os corações repousam
na sala de visitas da casa devassada
a que chamam d'alma.
Armando Silva Carvalho de Sentimento de um Acidental em O Que Foi Passado a Limpo
Histórias de Mistério e Imaginação
Edgar Allan Poe
Tradução: Tomé Santos
Júnior
Colecção: Livros RTP
nº 15
Editorial Verbo, Lisboa s/d
Escuta-me – disse o Demónio, pondo-me a mão sobre a cabeça. – O país de
que te falo é uma região lúgubre, na Líbia, nas margens do rio Zaire. Aí não
existe paz nem silêncio.
Pergunta do exame de Filosofia. Quando o nível é este, mais vale não haver nível. Pobres professores, pobres alunos, pobre mundo que nos deste Aristóteles e Camões para isto.
Copiado da Antologia do Esquecimento
Agora talvez entendas porque não escrevo
entretida com a arquitectura volátil dos dias
com os afazeres esponsais e profissionais
a apanhar eléctricos em curto-circuitos
às voltas com este tumulto manso que abafo
porque, sejamos sinceros, só grandes tumultos
dão grandes poetas, de resto há a frieza
dos que se mentem a si próprios
e vão chamando a si os pássaros
quando o que deveriam era libertar os seus
numa torrente que não acompanham ortografias
nem radiografias sentimentais.
Desculpa se me tornei naquilo que queria ser
quando escrevia: amante e amada
de tal forma que se tocar em flores elas se multiplicam
se beber água nasce um caudal por entre milhares de minérios
se falar de estrelas um segundo demora anos-luz a passar.
À antiga pergunta se antes a vida que a escrita
melhor a primeira quando pior é a segunda
porque, mais uma vez a sinceridade,
só grandes vidas dão grandes escritas,
grandezas díspares, com certeza, mas grandezas, sem dúvida.
Assim chego eu a casa e faço o jantar
e lavo a loiça – quando não a acumulo em pilhas –
e leio livros – quando não me lembro da televisão –
e sou feliz quando enlaço as mãos na maresia
e vou ao cinema com amigos
e passeio de braço dado com a mamã.
Se isto dá uma grande poeta?
tenho-me perguntado, todos os dias,
e à noite uma cavalgada inquieta
dirige-se à região desamparada do cérebro
à côncava existência do corpo ainda insatisfeito
a essa solidão sublime que me levou em certos dias
aos Himalaias e noutros ao farol de Brest.
Nesses segundos que se dirigem a mim
Von Hofmannsthal volta ao esperma para não nascer
e tudo é possível desde amar mulheres até matar
e sobreviver ao crime limpidamente.
Nesses segundos os meus poemas poderiam ser grandes
e ser eu uma grande poeta
apascentando-me de folhinhas de louro
e para mim ter metros infindos de mundo por explorar.
Ana Salomé
Acabaram com a agricultura, com o tintol a martelo, com as morcelas caseiras, com o tabaco nos restaurantes, com o escudo, com a frota pesqueira, com o Aquilino nas escolas, com a tropa obrigatória. Agora espantam-se porque o povo só se sente patriota com a selecção? Pensassem nisso antes.
Filipe Vicente
Actas do colóquio
realizado no Padrão dos Descobrimentos em 8, 9 e 10 De outubro de 2001
Coordenação: Onésimo
Teotónio Almeida
e Manuela Rêgo
Intervenções: João
Medina, António Reis, Guilherme d’Oliveira Martins, Ernesto Rodrigues, Paula
Morão, Eugénio Lisboa, Maria de Sousa, Raúl Hestnes Ferreira, Luísa Ducla
Soares, Teresa Martins Marques, Eduardo Lourenço, entre outros.
Capa: Ernesto Matos
Edição: Câmara Municipal de Lisboa, 2001
A edição das obras completas de Miguéis (13 volumes) pelo Círculo de Leitores teve 5000 compradores, pese embora o facto de em não poucos casos se tratar de encadernações que estão simplesmente a adornar estantes em novas-ricas casas.
A última crónica de Ana Cristina Leonardo no Público de 21 de Junho de 2024, contrariamente ao que é habitual, teve diversos reparos. A crónica tinha o título «À espera de um milagre da Senhora dos Aflitos», referia levemente a guerra em Gaza mas, porque andamos em tempo de pontapé na bola, copio um desses comentários mas que não têm a ver com o genocídio perpetrado por Netanyahu:
«Os conflitos são muitos, mas nada nos
faz mudar as preferências que fazem arrostar os carolas do seu desporto
preferido: o futebol. Venha o que vier (nem o aviso de que o pai se está
enforcando desmotiva aquele “ataque final” de um qualquer que está marcando um
penalti) os desvia da imagem da TV naquele minuto crucial. Somos um país antigo
nascido de uma árvore de folha perene de fundas tradições que não desvia os
seus cidadãos de uma soneca à sombra dos nossos ilustres cidadãos. Não é do
vácuo que faço estas citações. É por não gostar delas que cito Almada Negreiro:
Se isto é ser Portugal, antes, queria ser espanhol.»
1.
A 17 de Junho foi formalizada a candidatura de
Arrábida ao reconhecimento de património mundial. Alguém disse:
«Só assim garantimos que o queijo de Azeitão ou a maçã
camoesa continuam no território».
Felizes, onde estiverem, encontraremos o poeta
Sebastião da Gama que amava a sua serra-mãe e o crítico e escritor João Bénard
da Costa, que todos os anos, por Setembro, arrabidava e, como ninguém conhecia
a Mata do Solitário.
«O murmúrio é a alma de um Poeta que se
finou
e anda agora à procura, pela Serra,
da verdade dos sonhos que na Terra
nunca alcançou.»
2.
O número de
mortos durante a peregrinação muçulmana a Meca, que decorreu sob forte calor,
ultrapassou os mil, segundo uma contagem efetuada pela agência noticiosa
France-Presse. 3. Em 2023 o número médio mensal de imigrantes
registados na Segurança Social e a trabalhar por conta de outrem superou os
495 mil, um acréscimo de 35,5% face ao ano anterior; em 10 anos, de 2014 a 2023,o número de
trabalhadores estrangeiros cresceu nove vezes e são já mais de 20% as
empresas que recorrem a imigrantes; os três sectores mais dependentes
de imigrantes são a agricultura, o turismo e a construção; os imigrantes em
Portugal são sobretudo jovens com a média de 33 anos, 63% são homens, 37% são
mulheres e estão sobretudo concentrados nas áreas metropolitanas de
Lisboa e Porto, Algarve e Litoral Alentejano; recebem salários 15% mais
baixos que os dos portugueses. |
4.
As pensões médias encolheram 15% nos últimos 15 anos; em Fevereiro foram registados mais 7,2 mil desempregados no país; mais de 65% dos jovens portugueses abaixo dos 30 anos recebem menos de mil euros líquidos mensais.
5.
«A mistificação parte do princípio de que em 2024 há unanimidade à volta do 25 de Abril, o que não é verdade. O modo como à direita, radical, se tem usado como contraponto ao 25 de Abril o 25 de Novembro é objectivamente contra o 25 de Abril, até porque o 25 de Novembro da direita é uma falsificação histórica. Não me parece que o objectivo de criar uma comissão oficial para celebrar o 25 de Novembro seja para homenagear o grande lutador pela democracia em 1975 no plano civil, Mário Soares, ou o partido mais relevante nessa luta, o PS, e os militares do Grupo dos Nove, como Vasco Lourenço ou Sousa e Castro ou Ramalho Eanes e o Presidente Costa Gomes, tudo gente que a direita detesta. E limitar essas comemorações a Jaime Neves, que actuou sob ordens, é um reducionismo absurdo, assim como esquecer o papel decisivo de Melo Antunes, que somou à derrota da esquerda militar no dia 25 a vitória sobre a contra-revolução, recusando no dia 26 ilegalizar o PCP.»
José Pacheco Pereira no Público
6.
Em Novembro será interessante ver como será a dimensão da
manifestação “popular” que as direitas arranjaram para comemorarem o 25 de
Novembro.
Virão, desde o Portugal profundo as «massas populares».
Chegarão, à capital, em camionetas?
Serão eles que pintarão os cartazes? As palavras de
ordem?
Voltar aos anos setenta
como se fosse possível
essa melodia lenta
transpor às cegas o nível
da realidade obtusa
do dia morno que passa
e escutar a semifusa
dessa década tão baça
que em ti se prolonga hoje
à medida de ninguém
febre que agora te foge
primavera que não vem
Ano de setenta e dois
o teu irmão a morrer
breve despiste e depois
cada dia outro dever
outra missão a cumprir
em secretos rituais
a vida inteira em devir
menos por menos dá mais
Ano de setenta e quatro
com revolução em abril
e todo um novo teatro
no teu drama juvenil
em anos adolescentes
soturnos introvertidos
Já não sabes o que sentes
fantasma de tempos idos
sombra a passar num só flash
filme que já não existe
por onde quer que hoje vás
tens razões para ser triste
Anos setenta talvez
à espera do infinito
silhuetas que mal vês
agitadas em conflito
Tudo era esquerda ou direita
em conspirações de bares
e na noite mais suspeita
movimentos militares
Copos fumos atmosferas
o Botequim o Procópio
e tu sem saber quem eras
coração-caleidoscópio
Socialistas comunistas
PPD e CDS
deputados nomes listas
e mais partidos que houvesse
Cunhal Soares Sá Carneiro
inesperada companhia
era teu aquele cheiro
de um país que ali nascia
Primeiros dias do mundo
a acontecerem em ti
e essa memória sem fundo
a iludir-te hoje aqui
Ano de setenta e sete
dizer adeus a teu pai
tudo o que a vida promete
mas de súbito se esvai
Fotografias cinzentas
golas altas bandas largas
entre as imagens que inventas
certas dívidas não pagas
Helmut Schmidt Giscard d’Éstaing
ou Kissinger e Brejnev
a preto e branco em écran
de harmonia semibreve
na exausta guerra fria
em que tudo se explicava
e o planeta se movia
numa corrente de lava
Anos setenta obscenos
primeiras pornografias
menos por mais dava menos
cassetes que descobrias
e alimentavam isso
a que chamavas o sexo
coisa mágica feitiço
espelho côncavo ou convexo
Anos setenta no fim
de uma infância que te amava
memória em forma de assim
cadência que nada trava
Cinquenta anos depois
tudo é tempo tudo é nada
sonho só do que não foi
longe dessa madrugada
como se o mar engolisse
os recados do destino
e fosse agora tolice
repassar a pente fino
os vãos sinais desses anos
entretidos à procura
dos sintomas mais insanos
humanos ou trans-humanos
ou a última loucura
que é ficares assim absorto
nessa miragem impura
a olhar para o vazio
talvez vivo talvez morto
com uma cidade a teus pés
Ainda saberás quem és?
E esse rio que vês no Porto
ainda é o mesmo rio
Nota do Editor: Este poema de Fernando Pinto do Amaral foi tirado do Público de 17 de Abril de 2004.
Poesia Pública é uma iniciativa do Museu e Bibliotecas do Porto comissariada por Jorge Sobrado e José A. Bragança de Miranda. Ao longo de 50 dias publicaremos 50 poemas de 50 autores sobre revolução.
“Não há amores
felizes”, canta com uma estóica e tão bela resignação Françoise Hardy. Mas será
que pode haver “desamores felizes”? Os amores de Françoise, cinco contadinhos
pelos dedos de uma mão, jura ela, foram todos infelizes, estradas acidentadas a
desaguar na solidão. Foi na nostalgia de um desamor que Françoise Hardy se
consolou, até há poucos dias, até ao dia da sua morte.
Bob Dylan foi esse
“desamor feliz”. Lembro que ninguém conhecia Françoise. Vivia, em Paris, não
longe do Pigalle, na rua du Aumale, a mesma onde, por menos de um ano, no
século XIX, vivera Richard Wagner. Deve ter ficado por ali um acorde da
“Cavalgada das Valquírias” à espera, um século depois, de entrar pelo ouvido da
pequena Françoise. Ela dormia no quarto com a irmã esquizofrénica, na sala do
mirrado apartamento, a mãe, solteira, contabilista pobre e tão infeliz, que
tirava prazer de fazer infeliz a filha, capaz de lhe dizer que tinha umas
pernas tão magras que lhe ficariam em Guimarães com elas para facas, soubesse
Françoise onde era Guimarães.
Interessa é que era
Hardy uma menina e começou a cantar. Em 1962, na noite em que a televisão
francesa se esgadanhava para analisar os resultados do referendo sobre a
eleição por sufrágio universal do presidente da república, sei lá se foi De
Gaulle que pediu, aparece num intervalo a menina Françoise e da boca dela
ouviu-se uma coisinha moderníssima, a canção que ela escreveu e chamou “Tous
les garçons et les filles”. Os ouvidos de França desabrocharam. Escusado será
dizer que no dia seguinte, todos os “garçons” e todas as “filles” entoavam,
dançavam e se derretiam em tristeza com a encantada jeremiada daquela canção. E
derreteu-se a Alemanha, a Inglaterra, a Espanha, e eu em Angola, “la main dans
la main”, também.
Do outro lado do
Atlântico, soprada pelo vento, chegou às mãos do ainda principiante Bob Dylan,
a fotografia de Hardy. Olhou para aqueles ossos a quererem furar as maçãs do
rosto, para os seios pequenos, para a cintilante mini-saia e apaixonou-se. E
eu, colonialíssimo, em Angola também.
Como eu, Dylan só vira
uma fotografia. Como eu, escreveu cartas a essa fotografia, chorou e suspirou
nesse tempo em que os tempos tanto mudavam. Mas eu não canto nem tenho
talentos. Bob Dylan, sim. Já Françoise filmava com Hollywood e veio Dylan cantar
a Paris, onde também Amália cantou, sala mítica, ao Olympia.
Françoise veio vê-lo. E
Dylan, a acústica uma boa merda, falhou. Ao intervalo, recusou voltar ao palco,
a não ser que a desconhecida Françoise viesse ao camarim consolar o seu
derrotado ego. Ela veio. E tiremos, com a ajuda de Einstein, esses 10 minutos
íntimos da fita newtoniana do tempo. No final do espectáculo, Dylan levou
Hardy, Johnny Hallyday e mais uma mão cheia de franceses para a soberba delícia
que era então o hotel Georges V. De olhos fixados em Hardy, deixou-os a todos
menos ela, e na sua suite de americano cantou “Just Like a Woman” e “I Want
You” à raptada miúda da rua du Aumale, ali perto do Pigalle.
Se isto não é uma
declaração de amor, o que é uma declaração de amor? E eis a minha inquietação:
um tipo do Chega, um tipo do Bloco de Esquerda poderão ainda compreender
a gentileza, a doçura, a angústia amorosa que está por trás de tudo isto?
Nada aconteceu,
confessa com ternura Françoise, a não ser terem ficado a olhar-se num puríssimo
sol, lá, si. Nunca mais se viram, mas Dylan escreveu esta dedicatória num LP:
“A Françoise na margem do Sena, sombra gigante de Notre Dame.”
Sim, já houve amor. E
que, lá do céu, Françoise continue a ser o “soleil” que tanta falta nos faz.
Manuel S. Fonseca na sua Página
Negra
A Mulher Na Sociedade Portuguesa
Ciclo de Colóquios na
Faculdade de Direito de Lisboa
Textos de:
Isabel da Nóbrega,
José Esteves, Natália Nunes. Sérgio Ribeiro, Sophia de Mello Breyner Andresen,
Urbano Tavares Rodrigues e outros
Capa: Miguel Flávio
Colecção Caderno de
Hoje nº 8
Prelo Editora,
Lisboa, Maio de 1969
Pois não existe o problema da mulher, mas sim o problema da humanidade.
E é por isso que o Feminismo é um caminho errado e já ultrapassado. Aliás
sempre à roda da mulher se criaram falsos problemas.
(Da intervenção de Sophia Mello Breyner Andresen).
Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado -- servo de um
deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo.
Mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.
Mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.
Daniel Filipe em A Invenção do Amor e Outros Poemas
Ferveu. Thermos. Copo.
Frasco. Colher de chá. Tudo na bandejinha. Permanente, esta interrogação. Não
me agarro a certezas. Estou sempre pronta a rever as minhas ideias. Mas não me
integro em nenhum meio. Não lhes pertenço. Porquê? A sensação, por vezes, de me
desintegrar… Oh, Henrique…»
- pronto. A bandejinha. Afasta o candeeiro.
– Lá fora, apagaste a
luz, amor?
– Apaguei.
– E fechaste o gás, meu
amor?
– Sim, fechei.
- Mas há uma porta que
range… Tinha de ser…
– Eu vou fechá-la,
amor, eu vou já ver. – Era a porta da varanda. Abri-a de par em par. A fresca
noite entrou. É noite. É Junho, amor, e estamos vivos. E não estamos sozinhos.
Oh, esta alegria de não estarmos sós.
Muitos livros da Biblioteca da Casa foram comprados em
alfarrabistas.
Nas tardes de sábado, ia com o meu pai à Barateira no
Chiado e ao Fausto na Rua Angelina Vidal e nunca saíamos de mãos a abanar.
Este livro de Alexandre Vieira foi oferecido pelo
autor à redacção do jornal A Voz.
O matutino A Voz
era um jornal católico, monárquico, conservador e ultra-salazarista.
Designava-se como «O jornal de maior
assinatura em Portugal»
O jornal «A Voz», juntamente com o «Diário da Manhã», deixou de se publicar nos inícios de 1971 e. ambos, deram lugar a um único título: «Época», que deixou de se publicar logo a seguir ao 25 de Abril e veio a ter duas tentativas de publicação, primeiro como «A Época», tendo como director José Manuel Pintasilgo, dias de pois como «A Época Livre» dirigida por tipógrafo e um grupo de jornalistas do jornal, mas todas as condições eram precárias e os ventos tinham mesmo mudado.
Um dia hei-de aqui trazer os livros comprados em alfarrabistas, com dedicatórias dos seus autores a camaradas seus, bem como outras gentes.
O trabalho não está organizado nesse sentido, tão pouco é tarefa fácil, mas irei tentar.
No Domínio das Artes Gráficas
Alexandre Vieira
Edição do Autor,
Lisboa, Setembro de 1967
No momento em que escrevo estas linhas agita-se a corporação profissional a que pertenço pela conquista de uma jorna mais alta, ao mesmo tempo que pretende restabelecer o regime de salário mínimo, que presentemente não é respeitado pelos industriais de tipografia, forcejando também por conseguir o pagamento dos dias feriados e dos domingos, à semelhança do que se verifica em relação aos colegas que trabalham nos estabelecimentos do Estado e nos jornais diários.
- Tenho cegueiras, Ntunzi. Sofro da
doença de Silvestre.
Fui à gaveta da cozinha e retirei a
pasta da escola que escancarei ante o olhar atónito de meu irmão.
- Veja estes papéis – disse, estendendo
um maço de páginas caligrafadas.
Tudo aquilo eu redigira nos momentos de
escurecimento. Atacado por cegueiras deixava de ver o mundo. Só via letras,
tudo o resto eram sombras.
- Você, agora, é uma sombra.
- Já tenho nome de sombra.
- Entende a caligrafia?
-Claro, esta é a sua caligrafia. Bem
desenhada, como sempre foi… Espere
Um pouco, está a dizer que escreveu tudo
isto sem ver?
- Deixo de ser cego apenas quando
escrevo.
Mia Couto em Jesusalém
Legenda: pormenor da capa da autoria de Rui Garrido
para o livro Jesusalém
«Um painel independente de especialistas
em direitos humanos, nomeado pelas Nações Unidas em 2021 para investigar
denúncias de violência nos territórios palestinianos e em Israel, acusa o
Exército israelita de ter cometido crimes contra a humanidade, incluindo o de
extermínio, nos primeiros meses após o lançamento da ofensiva em curso na Faixa
de Gaza.
Num relatório publicado nesta
quarta-feira, o painel de três especialistas acusou também o Hamas de ter
cometido crimes de violência sexual contra civis durante os ataques de 7 de
Outubro de 2023 em território de Israel, principalmente no festival de música
que estava a decorrer junto ao kibutz Re'im.
As investigações do painel centraram-se
nos primeiros três meses do conflito, entre 7 de Outubro e o final de 2023, e
detalharam vários crimes cometidos pelo Exército de Israel e pelo Hamas.
No entanto, as principais acusações são
dirigidas ao lado israelita, acusado de usar a fome como uma arma de guerra e
de punir colectivamente a população civil palestiniana, e de usar a violência
sexual "como parte dos seus procedimentos operacionais".»
Recortado do Público de 12 de Junho de 2024
Legenda: imagem do Expresso.
O que se passou ontem na Assembleia da República, numa Comissão Parlamentar de Inquérito durante a audição da mãe das duas crianças luso-brasileiras, foi uma vergonha, um «espectáculo» degradante e indecoroso para o qual faltam palavras que permitissem ir mais além na classificação.
Lembrar que o 25 de Abril
aconteceu há 50 anos e é tempo de se encontrarem caminhos para impedir aquela
coisa de extrema-direita, que nasceu e cresceu graças às atitudes de Augusto
Santos Silva enquanto presidente da Assembleia da República e também do apoio
que os órgãos de comunicação social, principalmente as televisões, lhe têm
vindo a emprestar e que, em não mais pensa do que na destruição da Liberdade e
da Democracia.
Também terá que se dizer aos
deputados das direitas que uma comissão de inquérito não pode redundar em
inquéritos pidescos.
Não vale tudo!
Toda a história do mundo não é mais que um livro de imagens reflectindo o mais violento e mais cego dos desejos humanos: o desejo de esquecer.
Herman Hesse
Manuel de Lima
Capa: Soares Rocha
Colecção Obras de Manuel de Lima nº 1
Editorial Estampa, Lisboa, Setembro de 1972
-Olhe, Sr. Alfa, já
sabe. Eu não posso esperar pelo valor daqueles mamarrachos. É melhor pedir a
esse Mecenas Nepomucenas o dinheiro para a renda da casa. Quando é que ele
disse que vinha?
- Está por aí a
rebentar!...
sabes, as aves aquáticas já não pernoitam junto ao mar nem por entre os nossos dedos de areia
sobem-nos vozes calcárias à garganta, estrangulo-me neste humilde canto, fico
atento ao eterno silêncio do teu castelo
às vezes escuto o teu cantar,
raramente, é certo...mas quando cantas saem-te nomes puros da boca e sorrisos
diáfanos de cristais
os lábios incendeiam-se com vinho, teu corpo adquire o sabor misterioso das
algas
no crepúsculo expande-se o perfume a moreia frita, teu olhar é o mosto dos
nossos desejos
dançamos à roda dum mastro, saia em
papel de seda bordada com búzios...uma quadra flutua pela noite de nossos
cabelos
rodopias, e os teus amores são
relembrados pela noite adiante
espalham-se estrelas cadentes, papoulas
breves, junco molhado
e o mar enche-se novamente de pássaros, embarcações semelhantes a beijos
que nos percorrem de alegria
Al Berto de Mar-de-Leva em O Medo
De noite, quando o frio
entra pela casa, e um resto de solidão gela o fundo da alma, aqueço-me com o
fogo que me deixaste.
De manhã recolho as
suas cinzas.
Nuno
Júdice em O
Fruto da Gramática
Legenda: imagem Shorpy
Rogério Fernandes
Portugália Editora,
Lisboa, Outubro de 1991
Trindade Coelho considerava que a instrução popular era um dos factores
mais importantes da reestruturação do «viver positivo dos homens». Para além do
bem fundado da ideia da indispensabilidade de uma radicação nítida, no povo, da
consciência dos seus direitos, não errava Trindade Coelho ao julgar a educação
factor de não pequeno peso na recuperação do atraso em que se encontrava o
País. De facto, a educação é um factor economicamente rendosos, e não pode
pensar-se na transformação eficaz do viver económico de um povo sem vastas
camadas humanas apetrechadas culturalmente para a realizarem.
A Casa dos Motas
Manuel Ferreira
Capa: José Araújo
Editorial Caminho, Lisboa, Maio de
1977
Tinha
de resolver a questão dos trabalhadores despedidos por causa dos tais papéis.
Que talvez se tivesse precipitado. Sempre fora a opinião da mulher. A culpa, em
grande parte, foi do primo, esse tal que andava lá por Lisboa na grande roda
política, e o mandou inscrever na União Nacional. Mas talvez o primo tivesse
razão. Os tais papéis agora apreciam com frequência, por toda a parte. Falavam
da fome, do desemprego, das greves, da necessidade de os operários se unirem e
reivindicarem junto dos patrões. Mota pensaca: onde é que isto vai parar?
Dois
dias depois alguma coisa mais aconteceria. Ali em Monte reala, na Marinha
Grande, em Leiria e pelos arredores. Tinham levado muitos. E entre eles o Rosa,
o Teixeira, o Manadas, o Caldo e até a Francisca Macha.
Naquele «pic-nic» de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E, que sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.
Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão de bico
Um ramalhete rubro de papoulas.
Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o Sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.
Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas!
Cesário Verde em O Livro de Cesário Verde
Volume 4
João César Monteiro
Coordenação: Vitor Silva Tavares
Capa: Luís Henriques
Livraria Letra Livre, Lisboa, Outubro de 2021
João de Deus e Joana passeiam à beira da falésia.
João de Deus: E a tua mãe?
Joana: A minha mãe morreu vai para três meses. Somos de Belmonte. Não sei
se conhece.
João De Deus: De passagem.
Joana: Não tínhamos mais ninguém. O meu pai vive em França, mas nunca
quis saber de nós. Não há terra como a nossa. Quando cheguei à gare de
Austerlitz não sabia uma palavra de francês. Queria ir direita ao serviço de
accueil a refugiados de Saint Joseph das
nações, mas ninguém se ralava. Encolhiam os ombros e gronhavam, gronhavam…
João de Deus: Resmungam muito esses parisienses. Parecem baratas tontas.
Joana: Por fim, fui ter onzième arrondissamento. Comi uma sopa e um naco
de pão e, ao fim de três dias lá dei com o paradeiro do meu pai.
João de Deus: O que é que o teu pai faz?
Joana: Trabalhava na Renault. Agora só bebe. Está no chômage. Vive com
outra mulher de quem tem mais três filhos pequeninos, mas também é uma
desgraçada. Só chora. Dormíamos todos a monte… Eu tinha que fazer de cega.
João de Deus: De ceguinha?
Joana: Sabe que quando estava a fazer de cega deixava mesmo de ver? Ficava
com dores horríveis nos olhos até me saltarem as lágrimas. Era de Olhar
fixamente.
João de Deus: Olha, para eu ver.
João de Deus: E não tens vergonha?
Joana: Tenho, mas o que é que hei-de fazer. O mau pai obrigava-me. A isso, e a pior.
João de Deus: A pior. Como?
Joana: Tenho que dizer’
João de Deus: Já tenho idade para
ouvir certas coisas…
Joana: A ir com os homens. Se me
recusasse, moía-me com pancada.
João de Deus: A moral dos cegos é
diferente da nossa.
Joana: O senhor é um santo mas já
lhe dei muita maçada. Coitadinho, até podia ter morrido enregelado por minha
causa.
João de Deus: Enregelado não direi,
mas meio da digestão de umas sardinhas de conserva podia dar-me uma congestão.
Íamos os dois.
Joana: Ainda por cima, não faço falta
a ninguém.
João de Deus: Já não estás só no
mundo. Vou-me ausentar por uns dias. É mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Sou um homem rico, isto é, privado do privado assento etéreo. Ando cá por baixo a refazer a minha
vidinha. Tenho uns Fazereres no Cambodja.
Joana: O senhor é a minha luz.
João de Deus: Sou fraca candeia.