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Mensagens

A mostrar mensagens de agosto, 2022

Rentrée

Sou e mereço ser esquecido. Há um limite para a indolência. Só tenho dois prazeres, não mais que dois interesses: ler e comer. Um animal-leitor, uma besta com livros. Emil Cioran, Cadernos 1957-1972

Avarias

Tenho sentido umas tonturas estranhas. No Centro de Saúde, a médica prescreveu-me uma TAC de Crânio para «despistar qualquer problema». Fui fazer o exame. A máquina da TAC avariou no exacto momento em que estava deitado e com a cabeça no interior daquele enorme círculo de metal e radiação. O técnico lamentou, disse que o exame tinha de ser adiado e que entretanto iam chamar o serviço de assistência para «despistar qualquer problema».

cette vie dont j’avais soif

Cioran escreve muitas vezes sobre Teresa de Ávila nos seus Cadernos . Começo a compreender o encanto; aliás, é melhor dizer feitiço .  Ela é uma mulher devota a Deus, mas com um misticismo fogoso — a imagem corporal que se insinua na nossa cabeça para dizer aquelas coisas intensas é de uma actriz de Hollywood dos anos 50. Je me voyais mourir du désir de voir Dieu et je ne savais où je devais chercher cette vie dont j’avais soif, si ce n’est dans la mort même . Nota: será que Bénard da Costa escreveu sobre isto? É um tema tão perversamente bénardiano (ou será buñueliano?).

Pensamentos de dupla face

L'homme n'est qu'un roseau, le plus faible de la nature, mais c'est un roseau pensant.  A frase de Pascal é tão boa que se pode ler nos dois sentidos; conforme o filósofo a escreveu, mas também na direção inversa, considerando a condição pensante do homem como axioma, e ser junco como vontade.  Podia ser um dos segredos da escrita — ou até mesmo da vida — de Walser.

Ficção Científica

Ontem, ao fim da tarde, uma nuvem cinzenta desceu fria e lentamente sobre o Porto como um avião colossal. Demos por nós atónitos, à janela, a olhar para o céu. Depois de várias semanas de sol e temperaturas tropicais, a nuvem assemelhou-se a um estranho episódio de ficção científica.

Outono no Porto

No fim-de-semana fui ver a paragem ao contrário na rua de São Dinis ; ri-me imenso. Hoje descobri que já tenho um desses equipamentos urbanos perto de casa (Barros Lima, sentido descendente) — que alegria!    Estas paragens são muito divertidas porque são uma aberração de gabinete; quer dizer, quem teve a ideia de as virar ao contrário (as justificações não colam) não anda na rua nem em transportes públicos, vive em ambiente condicionado.  Agora fico à espera que contratem os autocarros negativos de Boris Vian. Aliás, espero isso há tantos anos...

Sentir-se satisfeito

Em O Vestido Vermelho , de Stig Dagerman, um personagem descreve desta maneira o ramerrame de uma vida vazia, mole, pobre e mesquinha: Que é que julgas que significa viver, para ele? Nada mais que levantar-se de manhã, ler um jornal, tomar uma chávena de café, ir para a oficina, consertar uma mesa, voltar para casa, jantar, dormitar, escutar a telefonia, ir ao W.C., contar uma história das porcas, de preferência, sair, ir ao cinema, ir para a cama ou para o café, ver um filme, despir uma mulher ou beber uma cerveja, voltar para casa, despir-se, ressonar, acordar, tomar uma chávena de café, ler um jornal e ir para o trabalho. O pior ainda não é supor que viver seja isto, o pior numa vida destas é ele sentir-se satisfeito. O livro é de 1948. Hoje, parece a vida preenchida e sofisticada de um «intelectual» mais ou menos boémio, e que trabalha numa oficina para pagar as contas.

Noite de Talamanca

(...) O misticismo e o «desengano» constituem também o leitmotiv do Caderno de Talamanca , assim como a paixão pela música.  Este Caderno foi escrito durante o verão de 1966 em Talamanca, uma povoação situada na ilha de Ibiza. É o testemunho de uma crise, uma crise de tal intensidade, que nos  Cadernos posteriores será referida como Noite de Talamanca .  Verena von der Heyden‑Rynsch, prefácio a Caderno de Talamanca.

O vestido vermelho

Leio O Vestido Vermelho , do Dagerman, pela primeira vez. Há muito que tenho o livro na estante (tradução maravilhosa de Irene Lisboa, Estúdios Cor, 1958), mas por uma razão ou outra fui adiando a leitura. Não, não foi por uma razão ou outra. Sei muito bem porque adiei este encontro. É um livro perfeito, terrível. Metade papel, metade espelho. Mete medo.

Câmara de ecos

O mundo como uma gigantesca câmara de ecos ( whispering-gallery ). A imagem surge na página 390 de Middlemarch , de forma acidental — e é mais uma prova da efusiva modernidade de George Eliot. Até apetece transformá-la em conceito e desviar Eliot dos romances para áreas mais abstractas.

Energúmeno

(...) E num editorial do Trumpet , Keck qualificou o discurso de Ladislaw num comício sobre a Reforma como «um ultraje de energúmeno — uma miserável tentativa de ocultar com um fulgor de fogo-de-artifício a petulância de afirmações irresponsáveis e a pobreza de umas ideias tão novas quanto baratas».  — Aquilo é que foi uma tunda, Keck, o seu artigo de ontem — disse o Dr. Sprague, com intenções sarcásticas. — Mas o que é um energúmeno?  — Oh, é um termo que apareceu com a Revolução Francesa — disse Keck. Middlemarch, de George Eliot. Tradução de José Miguel Silva. Relógio d’Água, novembro de 2011.

Férias de agosto

Estou a passar férias em Middlemarch . Entre outras coisas instrutivas, aprendi a tratar os médicos por facultativos . (Os políticos deviam ler os clássicos; se ampliassem o vocabulário, talvez depois conseguissem ampliar as ideias?)

Travar navalhas com ideias

Leio no jornal as terríveis notícias sobre o esfaqueamento de Salman Rushdie, em Nova Iorque. No Irão, o jornal ultraconservador Kayhan congratulou-se com o ataque ao escritor: «Bravo a este homem valente e consciente do dever que atacou o apóstata e vicioso Salman Rushdie. (...) Beijemos a mão daquele que rasgou o pescoço do inimigo de Deus com uma faca.» O diário estatal Asr Iran escreveu: «O pescoço do diabo [foi] golpeado por uma navalha.» E o diário Khorasan titulou: «Diabo a caminho do inferno.» Na mesma edição do Público , um pouco mais à frente, leio um extenso artigo de Pedro Rios sobre o trabalho de Joe Mulhall, corajoso antifascista inglês e membro da organização Hope Not Hate . Joe Mulhall infiltrou-se várias vezes em movimentos radicais de extrema-direita para «expor o seu perigo ao grande público». Retenho estas palavras a propósito da visão «ingénua» de que o fascismo, o ódio, o racismo, a xenofobia e a extrema-direita se combatem com ideias, usando os mesmos palcos...

Alguns nomes de personagens das peças de Goldoni

Limoncino, Clorinda, Moracchio, Scavezzo, Lisetta, Crespino, Coronato, Hortênsia, Barão do Cedro, Conde da Rocha Marinha, Flamínia, Tognino (ocorre pelo menos em duas peças e em ambas é o nome de um criado), Fulgêncio, Succianespole, Cavaleiro de Ripafratta, Marquês de Forlipópoli, Conde de Albafiorita, Dejanira e, claro, Mirandolina. É um outro género de música de embalar.

Música de embalar

«Música ambiente» nos cafés, nos bares e nas esplanadas. «Música ambiente» nas frutarias, nas mercearias e nas lavandarias self-service . Nos parques de estacionamento e nas estações de metro. Nos auto-rádios, nas filas de trânsito e nas chamadas em espera. Estranha música para embalar sonâmbulos. Não se deve acordar os sonâmbulos.

Pesadelo perfumado

Diz-se que viajamos para ver o mundo. Que mundo vêem os turistas que viajam até ao Porto? Que pesadelo perfumado filmaria Kidlat Tahimik na nossa cidade?

Il fiore del partigiano

Todos os dias, ao fim da tarde, aparecem dois músicos de esplanada. Um toca banjo e o outro clarinete. O segundo também canta. O repertório é quase sempre o mesmo e termina com Bella Ciao : «Una mattina mi son svegliato/ E ho trovato l'invasor.» Espalhados pelas mesas, entre cocktails sofisticados, tábuas de queijos e tostas de abacate, os turistas acompanham a plenos pulmões: «E se io muoio da partigiano/ O bella, ciao, bella, ciao, bella, ciao, ciao, ciao!»

Chamada

No Largo de Mompilher, junto à esplanada do Candelabro, resta ainda uma cabina telefónica de estilo inglês. Os turistas que passam, sorriem como se reconhecessem um velho parente desaparecido, tiram fotografias com o telemóvel e seguem caminho. De vez em quando, um turista entra na cabina, tira o telefone do descanso e faz uma pose como se estivesse numa chamada. Do outro lado da linha, imagino um fantasma cansado, que repete, lenta e vagamente: — É engano. Ligou para o número errado.

Cadernos

Nas esplanadas, há sempre um ou outro turista a escrever em caderninhos. Na mesa ao lado, estão duas raparigas a escreverem nos respectivos caderninhos. O que escreverão elas? Também escrevo em caderninhos. Estou justamente a escrever isto num caderninho semelhante ao das raparigas que estão na mesa ao lado. E quando não estou no Porto, também escrevo. Nos lugares onde sou turista, farão a mesma pergunta a meu respeito? «O que estará aquele tipo a escrever no caderninho?» Talvez as raparigas estejam a escrever exactamente isto no caderninho delas.

O mar

Há uns anos, não era Abril, mas Agosto. Era o mais cruel dos meses. A cidade parecia uma longa e interminável tarde de domingo. As ruas desertas, os cafés fechados. Tudo fechado, excepto as farmácias e os supermercados. Não havia esplanadas. Não havia cinema, muito menos teatro. Os dias arrastavam-se sob o calor. Nas praias, a nortada varria toalhas, guarda-sóis, sacos de plástico — isso não mudou. Agora, a cidade está a rebentar de turistas. Ao fim da tarde, depois do trabalho, descemos até à Baixa no meio da corrente. Na esplanada do Candelabro, observamos distraídos o movimento das vagas. Maré alta e maré baixa, maré alta e maré baixa. Enquanto as gaivotas lançam os seus anzóis de cima dos telhados.

Um momento de expectativa

Segundo os meus parâmetros , os cartazes da exposição de Rui Chafes em Serralves convertem o escultor em filósofo — filósofo da matéria, digamos assim.

Prova incriminatória

Há apenas três referências ao tango nos Cadernos e mais uma no pequeno Caderno de Talamanca , mas que não restem dúvidas quanto à importância do tango para Emil Cioran — como experiência musical mas, principalmente, como estado de alma.  Se isto fosse um caso de polícia e quisesse provar a relação entre os dois, bastava contar as vezes que Ramón Gómez de la Serna usa a palavra “desengano” — crucial no pensamento e na vida de Cioran — na sua “Interpretação do Tango”.

Condições materiais da luta de classes

Foi ao ler o livro do Ramón Gómez de la Serna sobre o tango que me dei conta da importância transversal dos tacões nos comportamentos sociais. Por experiência própria já me tinha apercebido da necessidade de usar tacões (bastam sete centímetros) nos confrontos laborais — infelizmente nem os sindicatos nem os partidos de esquerda informam as trabalhadoras desta vantagem material que nos permite olhar de cima (e com algum desdém) o patronato. No fundo, trata-se de uma prática cultural — de fácil alcance, diga-se — de hostilidade ao capital e à sua acumulação.

Tango del desengaño

Gostava de ter vivido entre povos tristes, ou pelo menos cuja música é langorosa ou pungente: fado, tango, lamentos árabes, húngaros... ( Cadernos , junho de 1963 )  Ibiza, 1 de agosto. No ano passado, F. emprestou-me o seu gira-discos e ouvi um disco que me encantou. Era um tango espanhol, do mais dilacerante que há. De volta a Paris, tentei lembrar-me do ritmo e da melodia. Impossível. Um ano depois, encontro-me de novo na mesma casa. No dia seguinte à minha chegada, durante a sesta, tenho um sonho no qual escuto um tango. Ao despertar, tinha reencontrado o meu tango. ( Caderno de Talamanca , agosto de 1966 )  Borges escreveu um poema sobre o tango. Como eu o compreendo. Tenho vontade de exclamar: «Dêem-me um tango por dia!» Trago em mim uma Argentina secreta. ( Cadernos,  outubro de 1966 )  A tristeza impetuosa em todos os níveis, do tango ao Apocalipse. É esse o meu clima habitual. ( Cadernos,  fevereiro de 1969 )