Renato Amado Peixoto
Cartografias
imaginárias
3ª edição revista e ampliada
© Renato Amado Peixoto, 2023
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A reprodução não autorizada desta
publicação, no todo ou em parte, constitui
violação dos direitos autorais (Lei nº
9.610/1998).
O autor é integralmente responsável pela
veracidade dos dados, pelas opiniões e pelo
conteúdo do trabalho aqui publicado.
Editoração
Alex Antônio Vanin
Revisão
Elizete Amaral de Medeiros
Projeto Editorial
Acervus Editora
Imagem da Capa
Detalhe colorido da Carta Marina.
Detalhe ampliado do mapa do Báltico.
Fonte: MAGNUS (1539).
Acervus Editora
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Passo Fundo | Rio Grande do Sul | Brasil
Tel.: (54) 99676-9020
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Humberto da Rocha (UFFS – Erechim)
José Francisco Guelfi Campos (UFMG)
Roberto Georg Uebel (ESPM)
Vinícius Borges Fortes (ATITUS)
Renato Amado Peixoto
Cartografias
imaginárias:
Estudos sobre a construção da história do espaço
nacional brasileiro e a relação História & Espaço
Lista de Figuras
Figura 1. Detalhe da Carta Marina. Detalhe ampliado do mapa do
Báltico e do Mar do Norte. Fonte: MAGNUS (1539). (p. 9).
Figura 2. Detalhe colorido da Carta Marina. Detalhe ampliado do
mapa do Báltico e do Mar do Norte. Fonte: MAGNUS (1539). (p. 10).
Figura 3. Septentrionalium terrarum descriptio. Fonte: MERCATOR
(1595). (p. 12).
Figura 4. Mapa da América do Sul. Fonte: ARROWSMITH (1814).
(p. 24).
Figura 5. Mapa da Hibória. Mapa retirado dos quadrinhos Conan the
Barbarian. Fonte: EDWARDS (1970). (p. 26).
Figura 6. Carta Corográfica do Império do Brasil. Fonte: NIEMEYER
(1846). (p. 65).
Figura 7. Mapa do Rio Grande. Fonte: RIBEIRO (1840). (p. 129).
Figura 8. Detalhe do Mapa do Brasil. Detalhe ampliado do mapa do
Brasil. Fonte: ARROWSMITH (1844). (p. 130).
Figura 9. Mapa do Rio Grande. Fonte: PEIXOTO (s.d.). (p. 131).
Figura 10. Detalhe da Carta da Nova Lusitânia com as vigias do Rio
Javari. Detalhe ampliado da Carta da Nova Lusitânia. Fonte: LEME
(1798). (p. 144).
Figura 11. Carta da Nova Lusitânia. Fonte: LEME (1798). (p. 145).
Figura 12. Mapa Ogilby. Fonte: OGILBY (1675). (p. 193).
Figura 13. Mapa de Nova Harmonia. Fonte: WEINGARTNER
(1832). (p. 195).
Figura 14. Mapa Neu-York. Fonte: GOULD (1991). (p. 196).
Figura 15. Mapa A New Yorker Idea of United States. Fonte:
WALLINGFORD (1939). (p. 198).
Figura 16. Mapa do Oceano. Fonte: HOLIDAY (2007). (p. 199).
Sumário
Apresentação
Zona de confluxo:
a História dos Espaços no horizonte da aproximação da História
com a Geografia e a Cartografia
7
17
Enformando a Nação:
a construção da história do espaço nacional no projeto historiográfico
do IHGB e seu exame por meio do estudo cartográfico
37
A lógica do sentido do espaço da Nação:
a produção do espaço da Nação e das protorregiões no Terceiro
Conselho de Estado (1842-1848)
75
Impertinentes, desinteressados ou sem escolha:
a produção no IHGB de uma história dos demarcadores e das
demarcações Portuguesas no Norte do Brasil
95
O espelho do Jacobina:
uma discussão dos problemas de representação do
espaço da Nação por meio do estudo cartográfico
111
O mapa antes do território:
o território do Javari como exemplo da construção
concorrencial de espaços
137
Os dromedários e as borboletas:
uma análise da produção da espacialidade regional por meio da
‘Comissão Científica de Exploração’ do IHGB (1855-1862)
157
Por uma análise crítica das políticas de espaço:
isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’?
169
Espaços imaginários:
o historiador dos espaços como cartógrafo
185
Referências
203
Sobre o Autor
209
Apresentação à 3ª edição
Passados alguns anos da publicação da segunda edição deste livro,
faz-se agora necessária a publicação de uma terceira edição, por conta
de fazer pequenos reparos, acrescentar alguns textos e juntar outros
mapas e, sobretudo, apresentá-los em cores.
Acho que é por demais evidente a importância de se poder contar com o colorido no estudo dos mapas, mas quero acrescentar que
este é um livro sobre a imaginação cartográfica e a Cartografia imaginária. Nesse sentido, lembro que Matthew Edney, um dos grandes
estudiosos da História da Cartografia, disse numa conferência que o
seu interesse pelos mapas foi desencadeado justamente pelas pequenas vinhetas coloridas da “Carta marina et descriptio septentrionalium terrarum” (Figura 2), de Olaus Magnus (1539), e contou do seu
desapontamento ao descobrir que esse mapa fora colorido mais de
quatrocentos anos depois de publicado (Figura 1).
Por outro lado, Edney realçava que, se o fac-símile colorido havia se tornado famoso pelas vinhetas de serpentes e monstros marinhos, as que lhe despertaram a atenção eram de outro tipo: as que
mostravam trenós repletos de pessoas festivas e pacíficas cruzando da
Finlândia até a Suécia através do Mar Báltico, os grupos de guerreiros
7
Cartografias Imaginárias
suecos e russos se enfrentando no meio do Golfo da Finlândia e as
figuras de nativos finlandeses celebrando rituais no antigo sítio pagão
de Uppsala. E foram esses os sentidos que o levaram até Brian Harley: a possibilidade de buscar estudar informações culturais e sociais
nos mapas antigos (EDNEY, 2015).
O mapa “Septentrionalium terrarum descriptio” (Figura 3), de
Gerardus Mercator, guarda relação com a exposição feita por Edney.
Composto mais ou menos na mesma época que o de Olaus Magnus,
o mapa de Mercator foi a primeira tentativa de cartografar a região
do Ártico; seus limites estão exatamente onde o mapa de Magnus
termina.
Em “Septentrionalium terrarum descriptio” não foram desenhadas serpentes nem monstros marinhos, mas o mapa inclui descrições fascinantes de pigmeus e redemoinhos gigantes. Porém, do
mesmo modo que Edney, não foram os elementos em destaque que
me fascinaram, e sim a montanha que emerge de um lago no centro
do mapa, o “Polus Arcticus”.
Essa vinheta provavelmente visa explicar o magnetismo que
atrai o ponteiro das bússolas através da disposição de uma montanha de ferro no alto do globo terrestre, assim como a disposição de
pigmeus e redemoinhos gigantes visava explicar a presença do povo
esquimó e as violentas marés naquelas paragens. Nesse sentido, o que
me atraía no estudo dos mapas era a vontade de entender as racionalidades científicas, políticas e sociais, e as ideias por trás das disposições
dos cartógrafos, algo que acredito ter sido esboçado por Yi-Fu Tuan
no livro Space and Place (2003).
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Renato Amado Peixoto
Figura 1.
Figura 1. Carta Marina
Fonte: MAGNUS (1539).
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Cartografias Imaginárias
Figura 2.
Detalhe colorido da Carta Marina. Detalhe ampliado do
mapa do Báltico. Fonte: MAGNUS (1539)
10
Renato Amado Peixoto
Ora, nos mais de dez anos que separam esta Apresentação da escrita da primeira edição de Cartografias Imaginárias, muitas das minhas ideias mudaram (para melhor ou pior, dependendo da perspectiva), mas essa vontade permanece. Por conseguinte, o meu grande
desafio foi preservar nesta edição as questões e os posicionamentos
de 2009, procurando aclarar certas questões que não foram bem colocadas e acrescentando pequenas colocações que o estado da arte da
pesquisa não permite ignorar.
Contudo, quero dizer que não alterei as proposições teóricas
adotadas na primeira edição, deixando propositalmente de acrescentar as muitas colocações acerca do Pós-Estruturalismo e do legado
de Brian Harley e dos cursos de Jaime Cortesão no Ministério das
Relações Exteriores que interessam diretamente aos conteúdos trabalhados naquela edição. Na verdade, pretendo trabalhar essas questões noutro livro, mesmo porque não acredito em obras acabadas e
entendo que a transitoriedade é o estigma de nossa lembrança: estou
aqui porque fui assim, e minha confissão é contraditória – deixo que
o percebam.
Na feitura de Cartografias Imaginárias trabalhei uma das hipóteses de minha tese de doutoramento (A Máscara da Medusa): a de
que é possível reconhecer uma partilha de interesses e de tarefas entre
o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e o Ministério das Relações Exteriores (MRE) desde a década de 1830, capaz de
viabilizar uma produção continuada da História do Espaço da Nação
para consolidar a atuação do Estado e as posições dos diplomatas e
dos historiadores reunidos em seu entorno. A partir dessa hipótese,
procuro explorar a ideia de que essa tarefa e os seus conteúdos foram
reapresentados na fabricação de outras espacialidades (a região e os
estados) e noutros ambientes políticos e sociais, os do último quartel
do século XIX e da República.
11
Cartografias Imaginárias
Figura 3.
Septentrionalium terrarum descriptio.
Fonte: MERCATOR (1595).
12
Renato Amado Peixoto
Meu propósito era contribuir para o debate no Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), buscando aproximar o meu trabalho de
doutoramento de demandas e interesses de alunos e professores que
então se concentravam na aproximação entre a Literatura e a História
dos Espaços. Então, inaugurei um projeto para examinar as obras de
dois autores estadunidenses, H. P. Lovecraft e Robert E. Howard, nas
proximidades daquilo que hoje se denomina Geocrítica. Assim, as digressões desse projeto comparecem ao longo do livro; não se espantem
disso. Por sua vez, o trabalho docente na graduação exigia o contato
com os problemas referentes à produção da Região (o Nordeste) e da
identidade local (a norte-rio-grandense), por isso eles se fizeram presentes.
Além disso, o livro visava apresentar as transformações de minhas
posições acerca de certas tomadas pós-estruturalistas e apontar para
uma História dos Espaços gestada na autonomia do confluxo da História com a Geografia, no horizonte daquilo que Reinhart Koselleck,
Yi-Fu Tuan e J. K. Wright trabalharam. Com isso não pensava em me
afastar do “giro pós-estruturalista” de Brian Harley ou das colocações
de Gilles Deleuze e Michel Foucault, mas dialogar com questões resultantes de sua aplicação direta à História da Cartografia e à História dos
Espaços, as quais eu entendia serem relacionadas à “Lógica do Sentido”,
à “Heterotopia” e ao arsenal interpretativo de Brian Harley.
Em relação ao itinerário que percorremos no livro, devo apresentar cada um de seus capítulos:
A primeira versão de Zona de confluxo saiu em 2011 na Revista
Porto e não fez parte da primeira edição de Cartografias Imaginárias,
mas trabalha com conteúdos desenvolvidos no livro os quais acredito
serem necessários para aclarar nossas posições acerca da História dos
Espaços.
13
Cartografias Imaginárias
Enformando a Nação foi escrito em 2008 para o livro e visa
apresentar a hipótese da “produção continuada e partilhada do espaço da Nação” e o papel que a Cartografia desempenhava no IHGB e
no MRE, trazendo outro entendimento acerca da criação do IHGB
e explicitando a sua responsabilidade na reprodução do que chamo
de subalternidade continuada.
O texto A lógica do sentido do espaço da Nação foi reescrito para
esta edição e revisita um dos temas de A Máscara da Medusa, a produção do espaço no Conselho de Estado, para relacionar o problema
da Nação ao da Região. No caso, aponto que o discernimento das
protorregiões ‘Norte’ e ‘Sul’ estava imbricado na compreensão mesma
do processo de construção do espaço da Nação e do papel desempenhado pelos seus participantes.
A primeira versão de Impertinentes, desinteressados ou sem escolha foi publicada em 2008 nos Anais do II Encontro Internacional
de História Colonial, mas aqui se busca aproximar a produção da
história das demarcações no IHGB com a produção cartográfica no
MRE, procurando explicitar o papel nelas desempenhado por Duarte da Ponte Ribeiro.
O espelho do Jacobina é um texto produzido para o livro, porém
desenvolve certos argumentos do artigo “A Carta Niemeyer de 1846”,
publicado na revista Anos 90 em 2004. Nesse capítulo busco comparar o primeiro mapa do Brasil, produzido por Conrado Jacob de Niemeyer para o IHGB, com os mapas desenhados por Duarte da Ponte
Ribeiro para o MRE e para a Exposição Universal de Viena de 1873.
A primeira versão de O Mapa antes do Território foi publicada em 2002 na revista Trajetos e discorre sobre a transformações (ou
não) da espacialidade na República, tomando como fio narrativo a
Cartografia acerca do Rio Javari, centro das discussões na “Questão
do Acre” em 1903.
14
Renato Amado Peixoto
Os dromedários e as borboletas é um texto escrito para o livro
que discorre sobre os sucessos da Comissão de Exploração do IHGB
e relaciona os saberes nela produzidos com o surgimento da regionalidade nordestina nas duas primeiras décadas do século XX e com a
minha hipótese da produção continuada do Espaço da Nação.
Por uma análise crítica das políticas de espaço foi escrito para o
livro e coloca a ideia da Geopolítica de Koselleck no horizonte da
produção foucaultiana, derivando-a para o que hoje reconhecemos
como Geocrítica por meio de um caso de estudo no contexto da República.
Finalmente, a primeira versão de Espaços Imaginários foi publicada no livro Cartografias de Foucault em 2008 e revolve o conteúdo
referente à ideia de “Cartografia imaginária” ou “Cartografia da imaginação”, apresentando-o na forma do que conhecemos hoje enquanto “Cartografia literária”. Aqui questiono a apresentação do termo
“Cartografia” por Deleuze, através do exame daquilo que esse autor
retira da obra de Artaud para elaborar o seu AntiÉdipo, e remeto o
resultado a uma aproximação dos conteúdos de Foucault e Derrida.
Renato Amado Peixoto
Capim Macio, setembro de 2023.
15
Zona de confluxo:
a História dos Espaços no horizonte da aproximação
da História com a Geografia e a Cartografia
O objetivo deste capítulo é aclarar nossas posições acerca da investigação da historicidade do espaço por meio de dois textos fundamentais para a compreensão do afastamento da História em relação à
Geografia: “Espaço e História” de Reinhart Koselleck (2001)1 e “O
Tempo do Espaço e o Espaço do Tempo” de Immanuel Wallerstein
(1998)2.
Com esse intuito, percorrerei o raciocínio de cada autor e, sempre que se fizer necessário, acrescentarei exemplos a partir de conteO texto de Koselleck deve ser compreendido como parte de suas últimas investigações,
quando cuidava de pensar uma ‘antropologia das experiências do tempo histórico. Nesse âmbito, foi escrito para ser apresentado como conferência ao final do Congresso de História de
Trevéris, Alemanha, em 1986, permanecendo inédito até a publicação do livro Zeitschichten
- Studien zur Historik, lançado pela editora Suhrkamp Verlag no ano de 2000. Traduzido
para o espanhol com o título de “Espacio e historia”, foi incluído na coletânea Los estratos del
tempo: estúdios sobre la historia, publicada pela editora Paidós em 2001.
1
O texto de Wallerstein foi escrito a partir da repercussão dos tomos I e II de sua obra principal, O Sistema Mundial Moderno – respectivamente publicados em 1974 e 1980, por conta
da necessidade de aclarar certos problemas relativos à aplicação do conceito de TempoEspaço,
sobretudo o que se referia à proximidade com as colocações feitas por Fernand Braudel em
‘O Tempo do Mundo’, o tomo III de Civilização Material, Economia e Capitalismo. Neste
sentido, Wallerstein cuidou de desenvolver e divulgar o seu conceito em conferências pronunciadas entre os anos 1996 e 1998, na Inglaterra e Estados Unidos. Uma delas, ‘O Tempo
do Espaço’ foi apresentada à Tyneside Geographical Society da University of Newcastle upon
Tyne em 1996, cabe notar, sob o patrocínio da Royal Geographical Society e do Institute of
British Geographers, sendo publicada pela revista Political Geography em 1998.
2
17
Cartografias Imaginárias
údos que serão expandidos noutros capítulos deste livro. Vale notar
que esse exercício visa também defender uma maior aproximação
entre historiadores e geógrafos, proposta que não faz parte do raciocínio de Koselleck ou de Wallerstein, embora possa ser remetida à
lógica de argumentação desses autores.
Saliento que este é um trabalho de compreensão e interpretação
de textos de diferentes afiliações teóricas e metodológicas, condições
que podem fazer diferir os resultados da análise por conta mesmo da
formação ou da expectativa do examinador. Assim, assumo a responsabilidade pelos exageros e omissões e, notados estes, espero inclusive
que novas leituras dos textos sejam feitas, para que nosso debate se
desenvolva.
Koselleck e a contradição entre a História e a Geografia
Em “Espaço e História”, Koselleck (2001) aponta que a contradição
entre as categorias científicas e históricas do espaço e tempo é moderna. À velha História, como ciência geral da experiência humana,
pertencia tanto a cronologia quanto o saber acerca da natureza e a
Geografia em seu sentido estrito. Pelo menos até Kant e Herder, os
historiadores declaravam normalmente que seu trabalho tinha a ver
com o tempo e com o espaço, referindo-se a um tempo histórico e a
um espaço histórico no horizonte da própria historicização.
Essa apreciação só mudaria a partir do século XIX, quando a
Geografia começou a definir-se enquanto ciência e a instituir-se simultaneamente enquanto participante das Ciências Sociais e do Espírito, e das Ciências da Natureza, desencadeando o problema de só
poder ser definida adequadamente como uma ciência interdisciplinar.
Os historiadores, compreendendo essa situação precária e a so18
Renato Amado Peixoto
breavaliação da marca temporal nos efeitos da modernidade, passaram a considerar a Geografia como mera disciplina auxiliar e, diante
da alternativa formal entre espaço e tempo, optaram então por instruir a construção epistemológica da História por meio da reificação
do tempo e da subordinação do espaço. Esse raciocínio é encadeado
por Koselleck (2001, p. 97) a partir da premissa de que a busca pelas
novidades, pelas trocas, pelas modificações fazia parte dos interesses daqueles historiadores “na medida em que se pergunta como se
tem chegado à situação atual que se contrapõe à anterior”. Mas os
historiadores estariam afetados pela experimentação de uma nova dinâmica do tempo, explicitada na velocidade vertiginosa com que se
desenrolavam os eventos e as transformações sociais e tecnológicas.
Além de optar pela preponderância teoricamente pouco fundamentada do tempo sobre o espaço, os historiadores cuidaram de
fundar o seu método baseando-se apenas na sucessão temporal e
afastando a ideia de se preceder à separação sistemática do tempo.
Uma vez constituída a ideia da unicidade do tempo, esta permitiu a
seus defensores discernir uma “Filosofia da História” na qual se afirmaria que o exame da cronologia e das transformações no tempo era
central para o descortinamento do mundo e a explicação dos seus
habitantes.
De modo a salientar essa arrogância da História, Koselleck lembra que os primeiros geógrafos, Humboldt, Ritter e Ratzel, já não
apontavam o espaço e o tempo apenas enquanto registros da percepção cujos sistemas de signos descansavam no mundo exterior, mas salientavam que as intervenções dos indivíduos na História eram também capazes de produzir seus espaços e tempos próprios. Contudo,
mesmo diante de contribuições que recolocavam uma compreensão
comum aos dois campos, a maioria dos historiadores, desconcertantemente, trabalharia a partir da dedução de que uma sistemática
19
Cartografias Imaginárias
baseada no espaço seria pouco importante ou menos frutífera que a
sistemática centrada na sucessão do tempo.
Assim, o raciocínio de Koselleck não apenas explicita a premissa de que o espaço e o tempo pertencem igualmente às condições
de possibilidade da História, mas também endossa a ideia de que a
dificuldade manifestada por alguns historiadores em pensar ou mesmo considerar o espaço em suas reflexões deveria ser entendida como
resultante da permanência de um legado que necessariamente deve
ser repensado.
No Brasil, o desenvolvimento das atividades do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) exemplifica de modo admirável
as incertezas e possibilidades percorridas pelo concurso de racionalidades ainda indecisas ante a separação ou a convergência entre
a História e a Geografia. A fundação do IHGB em 1838 decorreu
exatamente da necessidade de se colocarem os problemas acerca da
constituição do território e da identidade da Nação diante das demandas do Estado e, conforme as preocupações salientadas no Parlamento, no Conselho de Estado e na Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros (SENE), predecessora do atual Ministério das
Relações Estrangeiras, não havia Nação porque não se havia definido
o seu território, e este não podia ser bem defendido pelos agentes do
Estado enquanto inexistisse uma narração coerente da ocupação e da
expansão no espaço, reconhecida e acordada pelas elites que então
reformulavam o Estado.
Quero salientar que essa impossibilidade fundamental, o nó
górdio da Nação brasileira, foi parcialmente resolvida pelos historiadores brasileiros ainda na primeira metade no século XIX, por meio
do recurso a uma sistemática predominantemente espacial na qual
a escritura de uma “História das Fronteiras” antecedeu a produção
da História da Nação, tarefa de Varnhagen durante pelo menos dez
20
Renato Amado Peixoto
anos. Refiro-me aqui à produção, sob a liderança de José Feliciano
Fernandes Pinheiro, da História do espaço nacional no âmbito do
IHGB, levada a cabo entre 1839 e 1841 a partir dos insumos recebidos da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, do Parlamento e do Conselho de Estado.
Essa sistemática se desenvolveria durante a segunda metade do
século XIX por meio da ampla disponibilização dos conteúdos da
Corografia e pela proliferação de suas obras, cuidando da descrição
dos espaços através de uma articulação cronológica que inscrevia o
espaço no território do Estado cujo exame não autoriza o discernimento de uma separação rigorosa entre a História e a Geografia no
Brasil até a segunda década do século XX. Enquanto gênero narrativo, a Corografia possui uma história que remonta ao século XVI
e, por conseguinte, várias das obras sobre o Brasil produzidas no
período colonial tangenciaram esse gênero. Contudo, a divulgação
dessas obras no século XIX e a subsequente disseminação dos seus
conteúdos nos textos históricos e geográficos devem ser investigadas
no âmbito da História das Fronteiras e da História da Nação, ligadas
ao esforço do IHGB. Foi a revista do Instituto que publicou muitas dessas obras, algumas delas pela primeira vez, e deve-se notar que
boa parte delas foi coletada por Francisco Adolfo de Varnhagen. Por
sua vez, as corografias escritas a partir da década de 1850 partilharam modelos e métodos consolidados paulatinamente nas sessões do
IHGB, sendo que a sua publicação muitas vezes foi subvencionada
pelo Estado e pelas Províncias, e a sua escrita se tornou mesmo um
capital simbólico no IHGB e nos institutos congêneres. Portanto,
o exercício corográfico exemplifica não apenas o confluxo entre o
pensamento histórico e geográfico no pensamento social e político
brasileiro, mas também a sua permanência e pertinência enquanto
material cognitivo dos seus campos no século XX.
21
Cartografias Imaginárias
A sobrevivência da Corografia, a influência de suas obras e autores e, sobretudo, a disseminação do seu conteúdo pela literatura e
pelas ciências serviriam para ajudar a explicar a importância do espaço enquanto categoria que embasou as análises feitas no âmbito
do pensamento social e político brasileiro do século XX. Essa observação nos permite mesmo justificar a necessidade de se constituir
no Brasil um cânone da Historiografia dos espaços mais dilatado, que
junte as obras históricas aos tratados estadísticos e às corografias.
Seguindo o argumento de Koselleck, a investigação da historicidade do espaço não implica apenas recolocar o espaço como categoria numa reorganização do método histórico que visa o exame
das modificações sociais, econômicas ou políticas; entende-se que
esse método também deve pressupor a importância meta-histórica
do espaço para a História. Assim, torna-se necessário aclarar uma dupla condição de investigação e um duplo uso da categoria “espaço”, de
modo que se possam eliminar numerosas ambiguidades e confusões
na abordagem histórica do espaço.
A primeira condição de investigação do espaço para Koselleck a
‘história das concepções dos espaços’
Segundo Koselleck, em relação à dupla condição de investigação da
historicidade do espaço deveríamos considerar, em primeiro lugar,
uma História das concepções do espaço, entendendo o espaço como
algo autônomo (ou próprio, se entendermos a possibilidade de incluir
aqui a ideia esposada pelos primeiros geógrafos). Sua lógica de investigação pressupõe a compreensão de uma História das representações
de cada espaço que, por conta de suas especificidades, poderia mesmo
ser “posta pelos historiadores na conta dos filósofos ou dos cientis22
Renato Amado Peixoto
tas naturais” ou, acrescentaria eu, remetida pelos historiadores às suas
condições próprias de investigação, determinadas pela materialidade
dos objetos ou pelas racionalidades que envolveram sua produção.
Para verificarmos essas condições podemos recorrer à composição do primeiro mapa do Estado brasileiro, a “Carta Corográfica
do Império do Brasil” (Figura 6), também conhecida como “Carta
Niemeyer” por conta de seu autor ter sido o coronel de engenheiros
Conrado Jacob de Niemeyer. Sabemos que a composição da Carta
Niemeyer se desenvolveu em três passos: no primeiro, retiraram-se
as suas linhas gerais da “Carta da América Meridional” (Figura 4)
publicada pela casa editorial Arrowsmith. No segundo passo, foram
acrescentados topônimos e acidentes naturais recolhidos dos trabalhos geográficos apresentados às reuniões do IHGB. No terceiro
passo, as fronteiras do Brasil e os limites provinciais foram riscados a
partir dos trabalhos editados na revista do Instituto e das memórias
da SENE. Finalmente, num quarto passo, procurou-se imprimir o
mapa no maior tamanho possível pelas condições técnicas disponíveis no Brasil.
Ora, no primeiro passo Niemeyer se baseou numa carta estrangeira reconhecida por seus padrões científicos, buscando credibilidade e reconhecimento internacional; no segundo passo, inscreveu os
elementos chancelados pelos consócios do IHGB e representantes de
órgãos governamentais neles representados; no terceiro passo, inscreveu os territórios da nação e das províncias acordados nas discussões
das elites letradas e políticas; no quarto passo, buscando imprimir o
seu mapa na maior dimensão física que a capacidade técnica da época
permitia, Niemeyer pretendia que ele pudesse ser facilmente visualizado nas paredes e murais das repartições públicas e dos estabelecimentos de ensino, alçando sua obra à posição de avatar do Estado
brasileiro. Finalmente, a Carta foi apresentada ao IHGB na sessão
23
Figura 4.
Mapa da América do Sul.
Fonte: ARROWSMITH (1814).
24
Renato Amado Peixoto
de 8 de maio de 1847, ocasião em que foi admirada e aclamada pelos
consócios, os quais decidiram premiar o esforço de Niemeyer. Por
conseguinte, podemos entender que o autor da Carta Corográfica
do Império do Brasil procurou, em cada um dos passos, orientar a
materialização do mapa por uma ideia do espaço nacional e, assim,
falar de uma “operação” e um “processo de produção” históricos de
sua representação.
Como outro exemplo da premissa de Koselleck, examinemos
a relação literária experimentada por dois escritores estadunidenses,
H. P. Lovecraft e Robert E. Howard, com foco na invenção da personagem Conan.
Howard viveu na cidade de Cross Plains, situada no estado do
Texas, numa sociedade extremamente religiosa e conservadora, onde
foi discriminado por suas ideias liberais, sua vivência artística e sua
ascendência irlandesa. Por um lado, a personagem Conan incorpora
em sua fabricação as condições que o autor teve de experimentar, sendo reproduzida nessa composição a figura do bárbaro solitário e contestado pela civilização, que vive por seus próprios códigos, os quais
revelam um sentido de humanidade mais agudo que o de qualquer
civilizado – alter ego de Howard, a personagem Conan explicita uma
subalternidade vivida de fato.
Por outro lado, a personagem Conan foi composta no diálogo
com H. P. Lovecraft; a ideia de barbárie se contrapunha à afinidade
de Lovecraft com o Fascismo, mas incorporava alguns dos ingredientes mais geniais das obras do segundo, que seriam depois juntados
por Auguste Derleth no “Ctulhu Mythos” e, ajudaram Howard a
constituir um universo fantástico próprio, a “Hyboria”, emoldurado
numa cartografia imaginária (Figura 5). Esse universo foi formulado
a partir de uma narrativa baseada na teoria da História cíclica – inspirada na Teosofia – e nos faz acreditar na convivência entre os espaços
25
Cartografias Imaginárias
Figura 5.
Mapa da Hibória. Mapa retirado dos
quadrinhos Conan the Barbarian.
Fonte: EDWARDS (1970).
26
Renato Amado Peixoto
concretos e a Geografia não euclidiana: superfícies anormais e ângulos impossíveis com “locais e dimensões repulsivas, diferentes dos
nossos”, portanto inconcebíveis para a mente humana, como instrui
Lovecraft (2000, p. 135) no conto “O chamado de Ctulhu”.
Howard fabricou a personagem Conan em pleno contexto da
Depressão, em meio às crescentes dificuldades financeiras e emocionais que o impeliram ao suicídio. Refletindo esse tempo de extremos
ideológicos e de embates sociais contínuos, o enredo dos contos de
Conan não é apenas violento e sensual, mas também iconoclasta e
herético. Civilizações, governos e deuses, reais e imaginários, são
atropelados pelo impulso de liberdade e gozo que move o duplo Conan-Howard e, espelhando isso, sua narrativa alterca com a História
e a Geografia e flui descontínua, temporal e espacialmente. Uma narrativa tão inovadora que foi capaz de inspirar, cinquenta anos depois,
tanto os que se moviam contra a Guerra do Vietnã quanto aqueles
que produziram os primeiros role-playing games (RPGs).
Por conseguinte, entendemos que Howard procurou orientar
a materialização de Conan por meio de concepções imaginárias de
história e espaço, mas, como no caso da Carta Niemeyer, podemos
dizer, novamente, de uma ‘operação’ e um ‘processo de produção’ históricos de sua representação.
A segunda condição de investigação do espaço para Koselleck:
a ‘história da produção das espacialidades’
Koselleck, ao tratar da dupla condição de investigação do espaço,
apresenta-nos num segundo momento as possibilidades para problematizar uma História da produção das espacialidades, que investigaria
as articulações de narrativas de ação e da transformação dos espaços
27
Cartografias Imaginárias
das unidades territoriais que se formaram com a ascensão, na primeira modernidade, das unidades estatais (o período que se estende até
a Revolução Francesa). Assim, o historiador dos espaços teria como
tarefas examinar as produções que relatam e cuidam da expansão do
Estado e de seus meios e perscrutar o processo de inscrição de suas
espacialidades e territorialidades.
A lógica dessa investigação pressupõe que o historiador dos espaços pense as articulações em torno dos projetos de Estado e a produção dos trabalhos estadísticos (aqueles que se referem ao governo,
à governabilidade ou à governança) que então trataram de construir
“as chamadas realidades do passado sem tratar de reconstruir as antigas concepções de espaço”. Para Koselleck (2001, p. 97), isso instruiu
um duplo uso da categoria espaço, por conta de ter instigado a “tensão
produtiva entre geólogos e morfólogos, por um lado, e [...] planejadores do espaço, por outro”, problema que voltaremos a discutir mais
adiante com o auxílio do texto de Immanuel Wallerstein.
Enquanto isso, é necessário fazer notar que nesse período se
constituiu um dos paradoxos com que o historiador dos espaços tem
de lidar, e isso pode ser exemplificado na Cartografia histórica, que
construiu as imagens do passado dos Estados “sem inserir os seus
dados nas representações antigas de espaço, mas desenhando mapas produzidos com os atuais procedimentos de medida e anotando
cientificamente as modificações geológicas ou climáticas que o mundo antigo não conhecia” (KOSELLECK, 2001, p. 98). Desse modo,
uma das tarefas do historiador dos espaços é considerar a utilização
de contramedidas investigativas, de modo a se ultrapassarem os saberes e a escrita constituídos, visando reconstruir historicamente as
representações espaciais de cada entidade territorial.
Trabalhando a partir do exemplo anterior, no caso do Brasil na
SENE e em instituições ligadas ao esforço de produção historiográ28
Renato Amado Peixoto
fico como o IHGB, a Cartografia histórica foi utilizada como ferramenta para legitimar os pressupostos da inscrição de uma narrativa
espacial que se colava aos interesses do Estado. Essa narrativa possibilitou a enunciação da antiguidade da presença da elite intelectual
no espaço nacional, inclusive pela inscrição de seus símbolos no território, como por exemplo a Linha de Tordesilhas, representação, em
última análise, da atividade continuada de produção de um espaço
da Nação e da reconstrução periódica de sua narrativa, que implica a
subalternização da maioria dos seus integrantes.
Ora, para desconstruir essa narrativa torna-se necessário mesmo
investir sobre a Cartografia histórica, erigida em meio às instâncias
do Estado, formulando, como contramedida, um estudo cartográfico
que procure discernir a operação de inscrição do espaço, cuidando de
contextualizar as técnicas e esforços cartográficos em relação às estratégias do Estado e às táticas dos seus produtores. Em suma: deve-se
rever a ideia da Cartografia como uma ciência em progresso para se
poder atender às tarefas de desconstruir a narrativa histórica do espaço e reconstruir as antigas concepções de espaço.
Continuando a desenvolver o raciocínio de Koselleck no que
diz respeito a aclarar as condições de investigação da História da produção das espacialidades, ele distingue as especificidades da segunda
modernidade (aquela que se inicia com a Revolução Francesa), que
introduz outro paradoxo com que os historiadores dos espaços teriam de lidar. É a partir da segunda modernidade que se procura reconstruir o passado a partir das narrações que instruem origens para
o Estado-Nação e daí se desenvolvem identidades por meio dos constructos elaborados nas tarefas de produção dessas narrações. Essas
preocupações foram explicitadas em uma nova espécie de trabalhos
estadísticos, capazes de tornar possível a lógica de deslizamento da
Nação para escalas e racionalizações identitárias menores: o regional,
29
Cartografias Imaginárias
o estadual etc.
Segundo Immanuel Wallerstein (1998) em “O Tempo do Espaço e o Espaço do Tempo”, essa lógica se constituiria por meio da
Academia e pelo incentivo do Estado, quando se instituem os diferentes papéis que geógrafos e historiadores passaram a assumir no
século XIX. O afastamento que paulatinamente se constitui entre os
métodos e os conteúdos da História e da Geografia seria explicado
pela interação das disputas por espaço acadêmico com as especificidades de projeção, divulgação e inscrição do Estado-Nação sobre o
seu território e sobre o globo.
A partir dessa interação se estabeleceram três clivagens básicas
nas Ciências Sociais separando os seus domínios de conhecimento:
uma clivagem temporal (passado/presente) e duas clivagens espaciais
– a que separava o espaço euro-estadunidense do resto do mundo
(civilizado/outro) e a que distinguia os espaços hipotéticos que permeavam a Nação (mercado/Estado/sociedade).
Essas clivagens refletiam o contexto cultural da época, dominado pela ideologia imperialista e pelo liberalismo, que fez emergir
seis disciplinas nas Ciências Humanas, distribuídas por três campos
de interesse: no primeiro campo, a História; no segundo, a Antropologia e os Estudos Orientais; no terceiro, a Economia, as Ciências
Políticas e a Sociologia.
Wallerstein observa que a Geografia quase desapareceu enquanto campo de estudo separado, por conta de não se encaixar inteiramente em nenhuma das três clivagens das Ciências Sociais, mas, ao
mesmo tempo, insistiu em concorrer com as seis disciplinas principais em seus campos de interesse.
Nesse sentido, Wallerstein salienta que a Geografia só conseguiu sobreviver porque recebeu forte suporte de instituições não
ligadas à Academia, mas que estavam incluídas diretamente nos es30
Renato Amado Peixoto
forços do Estado, como por exemplo, no caso da Inglaterra, da Royal
Geographical Society. Além disso, a importância da Geografia decorria do fato de ser ensinada nas escolas primárias, prestando-se
ao esforço de inculcar nos cidadãos a integridade do território e a
utilidade de todas as suas partes para a Nação. Como a História, a
Geografia servia diretamente aos interesses do Estado-Nação, mas,
frisa Wallerstein (1998, p. 76-79), como a Geografia não se pretendia
universal, podiam-se trabalhar por meio dela certas demandas particulares do Estado.
No Brasil, onde não havia ainda uma separação rigorosa entre a
História e a Geografia, a lógica de deslizamento da Nação em escalas
e racionalizações identitárias menores tornar-se-ia factível desde o
último quartel do século XIX, com a decadência do acordo entre as
elites locais. A regionalidade Nortista, por exemplo, podia ser enunciada a partir de um espaço já disponibilizado no saber geográfico
desde a década de 1850, a partir da discussão acerca da Comissão
Científica de Exploração no IHGB, já que seus temas podiam ser
enfronhados junto à trama nacional.
No mesmo sentido, com a República, por conta do novo acordo
das elites em torno da arrumação e composição do governo brasileiro, fez-se possível constituir e disponibilizar pedagogicamente identidades estaduais capazes de resguardar os seus interesses no novo
recorte territorial estadual.
O Rio Grande do Norte serve como um bom caso de estudo, na
medida em que não se considerava na construção de sua identidade
apenas o acordo nacional, mas também as diferentes porções do seu
território. Além disso, de acordo com as tramas estaduais e a nacional, foi possível aos seus políticos e intelectuais produzir, por meio
de uma terminologia melodramática, novos espaços e identidades
focados em interesses mais amplos, como nos mostra a atuação de
31
Cartografias Imaginárias
Tavares de Lyra no IHGB e de Eloy de Souza no Parlamento durante
as duas primeiras décadas do século XX, operando a transformação
da regionalidade Nortista em Nordestina.
O duplo uso da categoria espaço
Voltando ao raciocínio de Koselleck, a introdução do duplo uso da
categoria espaço pelos tratados estadísticos da primeira modernidade
deveria ser enfrentada pelo historiador dos espaços a partir da crítica
à diferença instituída entre os espaços históricos da organização humana e as condições espaciais meta-históricas. Como por essas condições se podem inferir as possibilidades da História que não estão ao
alcance do homem, “mas que, ao mesmo tempo, como condições de
nossa ação, se convertem em desafios para a atividade humana”, transformam-se, consequentemente, as condições meta-históricas em espaços históricos (KOSELLECK, 2001, p. 99). Por conseguinte, se a
investigação dos espaços históricos da organização humana estivesse
sempre correlacionada com a investigação das condições meta-históricas e se estas estivessem sempre em capacidade de transição, poderíamos estabelecer esta seria a perspectiva do historiador dos espaços
(KOSELLECK, 2001, p. 102).
Nesse ponto, os historiadores esbarram na dificuldade conceitual e ética de pensar se o exame dessas relações foi instruído na segunda modernidade em torno de um saber que pretendeu para si o
estatuto de ciência, a Geopolítica, constituída a partir das tensões e
demandas do Imperialismo, e se esta teria servido para sufragar suas
pretensões expansionistas e, logo depois, para justificar as demandas
das ideologias totalitárias no século XX.
Entretanto, o caso do Brasil nos mostra que o saber geopolítico
32
Renato Amado Peixoto
teve grande aceitação e disseminação já no início do século XX, por
conta da sobrevivência do espaço enquanto categoria de possibilidade das análises feitas no âmbito do pensamento social e político, e do
forte legado da produção estadística Imperial que, conectada com o
espaço e o território, foi sublimada na Primeira República por meio
da atuação de Rio Branco, ministro das Relações Exteriores e presidente do IHGB, e por influência de um dos líderes do catolicismo,
Everardo Backheuser.
A Geopolítica tornar-se-ia, em meados do século, a razão de
existência de uma instituição, a Escola Superior de Guerra (ESG),
constituída para gerenciar a atividade de planejamento do Estado
e de coordenação dos esforços militares, políticos e diplomáticos.
Desde o Governo Vargas e durante a Ditadura Militar, a Geopolítica norteou o planejamento e a territorialização do Estado brasileiro,
bem como lastreou os seus esforços internacionais.
Koselleck aponta que o erro da Geopolítica consiste em se fazer uma ciência prática para a análise das ações sobre o espaço histórico que pretende compreender as condições meta-históricas para
delas retirar as leis naturais ou ontológicas capazes de guiar a História. No entanto, as questões e premissas formuladas erroneamente
pela Geopolítica assinalam condições de análise para o historiador
dos espaços, as quais já estavam colocadas dentro das condições de
possibilidade da História antes mesmo da constituição desse saber
(KOSELLECK, 2001, p. 104).
Neste sentido depois de eliminadas as ambiguidades e confusões na abordagem histórica do espaço e esclarecidas as possibilidades de se trabalhar tanto a partir de uma História das concepções
do espaço quanto de uma História da produção das espacialidades,
caberia também estabelecer e explorar as condições que remeteriam
a uma reflexão sobre a complexidade da interação entre espaço e tem33
Cartografias Imaginárias
po. Koselleck (2001, p. 105) insinua, nesse entendimento, que “a bela
expressão espaço de tempo” não seria só uma metáfora da cronologia
e da classificação por épocas, mas ofereceria a possibilidade de investigar a remissão recíproca do espaço e do tempo em suas concretas
articulações históricas.
A partir dessa insinuação, há que se considerar que, se o espaço
mesmo tem uma História, o tempo também não possuiria uma Geografia? Se o espaço é uma condição meta-histórica, o tempo não seria
também uma condição meta-geográfica?
Conclusão
Na verdade, poderíamos dizer que o entrecorte meta-histórico e meta-geográfico não pressupõe uma verdadeira interdisciplinaridade,
mas antes uma zona de confluxo, uma área de hachura onde o sentido mesmo do que poderia ser descrito como História ou Geografia
quase se esvanece. No caso dos historiadores, a incompreensão dessa
hachura produz uma tensão que se traduz no afastamento em relação
ao campo da Geografia em direção a aproximações com domínios
muito distantes das premissas históricas, como a Física Quântica, em
busca de se refletir sobre o “espaço do tempo”. E essa tensão se reflete
inclusive na ambiguidade de tratamento dos objetos partilhados por
geógrafos e historiadores, que, em vez de partilharem uma aproximação fecundante, têm persistido na separação esterilizadora.
De modo a pensar a História dos espaços a partir da imersão
na zona de confluxo, volto ao texto “O Tempo do Espaço e o Espaço
do Tempo” no ponto em que se explicita o conceito de TempoEspaço
[TimeSpace].
Na compreensão de Wallerstein, TempoEspaço seria uma cate34
Renato Amado Peixoto
goria analítica que se apoia sobre os pressupostos hoje divididos entre
a História e a Geografia, na medida em que a fratura entre História
e Geografia deve ser explicada não apenas por meio da opção dos
historiadores entre o tempo e o espaço, mas também como uma escolha dos historiadores e geógrafos por determinadas formas de compreensão do tempo e do espaço. Raciocinando por meio da tese de
Wilhelm Windelband (1914), que explicita que no final do século
XIX as Ciências Sociais teriam sido colhidas em uma controvérsia
a respeito dos métodos a serem utilizados [Methodenstreit], Wallerstein entende que historiadores e geógrafos preferiram se organizar
em campos opostos. Enquanto os historiadores foram ao encontro
do idiografismo [idiographisch], se juntando àqueles que entendiam
seus objetos hermeneuticamente, empaticamente e focando nos
particularismos, os geógrafos escolheram o nomotetismo [nomothetisch], buscando leis que pudessem traduzir a compreensão de uma
análise universal.
Segundo Wallerstein, a fratura entre a História e a Geografia
no que eram então as Ciências Sociais foi comparável à clivagem
das “Duas Culturas” [Two Cultures], as Artes ou Humanidades de
um lado e as Ciências de outro, enxergada por Charles Percy Snow.
Porém, na Methodenstreit, os historiadores e geógrafos não gozaram
de uma verdadeira autonomia de escolha, mas teriam sido levados às
suas escolhas pela influência de correntes intelectuais que se originaram em campos mais fortes. Diante disso, caberia agora recolher as
diferentes compreensões temporais e espaciais separadas desde a controvérsia, fazendo-as convergir para a formulação de um novo conceito, o TempoEspaço, que passaria doravante a embasar não apenas
a História ou a Geografia, mas todas as Ciências Humanas (WALLERSTEIN, p. 75-76).
Acredito que a categoria analítica de Wallerstein sinaliza a mes35
Cartografias Imaginárias
ma constatação a que chegou Koselleck: a História dos Espaços sempre esteve no horizonte de nossa disciplina e, por conta disso, não
precisa de novos modelos, mas antes deve ser empreendida a partir
do esforço de recuperação de antigos insumos e do afastamento de
novos preconceitos, de modo a não se perder a oportunidade que
variados enfoques e análises podem oferecer, e a não se privar da colaboração com os geógrafos e os cartógrafos naquilo que se poderia
chamar de zona de confluxo: a área de hachura que antes reunia, mas
que hoje afasta e separa História, Geografia e Cartografia.
36
Enformando a Nação:
a construção da história do espaço nacional no projeto historiográfico
do IHGB e seu exame por meio do estudo cartográfico
O IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro tem sido
consistentemente apontado por vários autores como o centro da
produção de um projeto histórico que, no século XIX, se constituiu
em torno da questão nacional, destacando-se, em geral, que as particularidades dessa instituição guardavam profundas relações com a
própria estrutura do Estado, com aqueles grupos que o sustentavam e
com um determinado contexto histórico. Um destes autores, Manoel
Luís Salgado Guimarães, apontou que essa historiografia, homogeneizadora da visão das elites, procurava definir a Nação e a identidade
brasileira por meio do reconhecimento do legado da Metrópole e da
continuidade de sua tarefa civilizadora, constituindo daí uma dupla
ideia do outro, no caso, identificando-o externamente com as repúblicas sul-americanas e internamente com os negros e indígenas.
A produção do IHGB seria reveladora das particularidades que
tensionaram o projeto histórico uma vez que esta, conforme a análise do conteúdo de sua Revista feita por Guimarães, concentrou-se
em torno de três temas, a saber, a problemática indígena, o debate
da história regional e as viagens e explorações científicas. Buscava-se
fundamentalmente, por meio desses temas, discutir a questão do tra37
Cartografias Imaginárias
balho indígena e escravo, construir uma harmonização das histórias
regionais com a da nação e cuidar da descrição do território e das suas
fronteiras, em suma, refletir sobre os problemas agudos de viabilização de uma ordem central e hierarquizadora.3
Considerando essa construção, poderíamos pensar que o projeto histórico foi constituído a partir da premissa mesma de que certas
noções de espaço haviam que ser discutidas e que por meio destas discussões se estabeleceriam os pressupostos e as condições para a construção de uma história da nação, tal como a que foi levada a cabo por
Varnhagen já na década de 1850, e que a produção do IHGB poderia
continuar revelando tensões e ambiguidades em torno de certos pontos críticos da discussão.
A partir disto, podem-se desenvolver algumas reflexões: primeiro, se estas discussões estavam já prometidas no projeto de constituição do próprio IHGB, uma vez que este havia sido concebido
a partir do entendimento de que os esforços da história e geografia
constituiriam dois momentos de um mesmo processo, caberia pensar
as razões a partir das quais este entendimento se estabeleceu e as condições que permitiram estabelecer as premissas espaciais do projeto
histórico do IHGB.
Segundo, se o exame da produção do IHGB revelasse tensões e
ambiguidades em torno das elucubrações do espaço, essas poderiam
nos permitir ajudar a pensar as relações entre Estado, Elites e Instituto
como um processo descontínuo e heterogêneo, onde a discussão em
torno da produção do espaço seria estratégica para as partes envolvidas.
Entendendo que as condições de integração das elites num sistema institucional central e o reconhecimento mesmo da existência
GUIMARÃES, Manoel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, n. 1, p. 5-27, 1988. Este artigo e o livro Historiografia e Nação no Brasil (2011), de
Salgado são as referências a partir da quais construímos a argumentação central deste livro.
3
38
Renato Amado Peixoto
de um centro dependia da manutenção de uma afinidade entre os vários grupos que residiam num território extenso, seria razoável supor
que o projeto histórico caminhasse pari passu com a constituição de
um saber sobre o espaço que possibilitasse o estabelecimento de um
consenso acerca da identidade.
Nesse caso, o pensar o espaço permitiria determinar aqueles
com quem se poderia compartilhar um conjunto de crenças, compatibilizando as demandas locais, regionais ou mesmo periféricas em
relação ao centro. Se pensarmos a ideia de centro não enquanto um
lugar geograficamente demarcável e único, mas como um fenômeno
pertencente à esfera da cultura, dos valores e das crenças com uma
racionalidade inerente a seu próprio modelo e suas conexões internas
e que a própria integração dos grupos no sistema institucional central
seria heterogênea e intermitente, poderíamos entender que o pensar
o espaço permitiria constituir uma reelaboração contínua do centro
e das relações entre este e as várias partes do espaço. Pensar, portanto,
o regional ou o local seria uma tarefa imbricada numa operação do
centro que se realizaria não apenas nas esferas da cultura, dos valores
e das crenças, mas que também transitaria para a esfera da ação, absorvendo demandas ou contribuições para reinserir o produto resultante na estrutura mesma do Estado.4
Nesse ponto, podemos entender que a tarefa de construir um
passado comum requeria a inscrição da Nação num território reconhecido e recortado por limites bem conhecidos, não apenas porque se delimitava o espaço do outro, mas também porque se visava
conjugar a relação dos grupos dispersos no território com um espaço
e um centro comum, buscando-se, assim, constituir um sentido de
Sobre os problemas da integração entre o centro da sociedade e suas partes, consultar a obra
Centro e Periferia, de Edward Shils. A obra oferece importantes subsídios para se pensar uma
relação entre a História e o espaço.
4
39
Cartografias Imaginárias
afinidade mais amplo entre todos os grupos que se julgavam poder
reunir num dado momento. A ideia mesma de afinidade seria adensada pela atribuição da ideia de transcendência ao centro, a saber, pela
construção de uma contiguidade idealizada deste com outro centro e
outro espaço muito afastado, a antiga metrópole e a Europa Ocidental. Desse modo, a operação do centro em direção a suas partes deixaria de ser apenas representada, para ser também transubstanciada
no espaço como um dos elementos da construção mitológica de uma
continuidade com um espaço e centro transcendente, o que conformaria melhor a legitimidade do centro por torná-lo mais localizável
por meio da transcendência mesma do espaço e tempo.5
Contudo, se entendermos que o pensar o espaço no IHGB foi
um processo de jogo e entrelaçamento entre o centro e as partes que
objetivava alcançar o acordo, poderíamos supor que a operação central necessitasse de um sentido de continuidade e de certa liberdade
criativa que lhe permitisse influir na tarefa maior que então se constituía no IHGB. Neste momento, é necessário lembrar que parte das
tensões e ambiguidades no Instituto decorre justamente das disputas
acerca do papel que este deveria atribuir a si mesmo e desempenhar
daí em doravante, seja como instituição científica, seja enquanto
instrumento do Estado. Por conseguinte, seria no próprio aparelho
de Estado, mais ao abrigo de disputas, pressões e demandas que se
poderia desenvolver uma solução de continuidade em relação a esforços que obrigatoriamente já haviam sido realizados, uma vez que
o Estado brasileiro já tivera anteriormente de responder a pressões e
demandas externas em relação ao território e ao sentido de sua inserção num espaço verdadeiramente contíguo, a América. A Secretaria
Sobre a ideia de espaço mítico e o problema da investigação da racionalidade inerente aos
seus modelos, ver a obra A Filosofia das formas simbólicas, de Ernst Cassirer. O volume dois –
‘O pensamento mítico’ – é especialmente elucidativo a respeito dos problemas da produção
do espaço.
5
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Renato Amado Peixoto
de Estado dos Negócios Estrangeiros (SENE) foi o lugar do Estado
onde esses esforços seriam mais desenvolvidos, embora estes tivessem
se originado, muito provavelmente, das premissas desenvolvidas no
Segundo Conselho de Estado e no Parlamento, durante o reinado
de D. Pedro I. Mas, como se poderia pensar a relação mesma entre a
produção do espaço na SENE com a produção de um projeto histórico no IHGB?
Acreditamos que um sentido dessa relação poderia ser aventado
se entendermos o projeto histórico do IHGB como a tarefa principal de um esforço que visava a produzir uma visão homogeneizadora
das elites acerca da Nação e da identidade, mas que, por conta dos
problemas inerentes à construção do pensar o espaço, desdobrava-se
para tarefas subsidiárias, na SENE e no Conselho de Estado. Outro
sentido da relação poderia ser aventado se considerarmos a manutenção continuada de elos que possibilitariam a integração tanto entre as
tarefas quanto entre o centro e as partes, no caso, estes elos poderiam
ser indivíduos, grupos ou institutos que partilhariam o sentido da integração ainda que ao custo de um entendimento variado desta. Por
este raciocínio, por exemplo, poderíamos pensar a produção de uma
história das fronteiras na SENE concomitante à construção de uma
História da Nação no IHGB: em ambos os casos, um de seus principais autores é Varnhagen, membro das duas instituições, e o esforço
da SENE poderia ser justificado enquanto parte da operação do centro, na medida em que a construção de uma história das fronteiras
ora se articulava com a tarefa do IHGB ora procurava mais ratificar o
sentido de sua atuação enquanto parte do Aparelho de Estado.
Por último, depois de termos minimamente refletido sobre o
argumento proposto e apontado sua referência, como justificarmos
uma aproximação em relação ao problema que é tão circunstanciada
pela discussão da produção do espaço?
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Cartografias Imaginárias
As vantagens que julgamos poder resultar de uma aproximação
com o problema da produção do projeto histórico do IHGB circunstanciada por essa aproximação seriam as seguintes: permitir ligar as
origens do IHGB aos esforços do Estado; apontar as tensões e as ambiguidades da produção do IHGB em relação à produção do espaço;
destacar no processo de produção do projeto histórico do IHGB a
importância da geografia; adensar a participação atribuída a Varnhagen no processo de produção do projeto histórico, lembrando ainda
a importância de outros personagens menos discutidos; finalmente,
essa aproximação pode ser justificada na medida em que se necessita
utilizar uma abordagem historiográfica diferenciada, no caso, a do
estudo cartográfico. Esta necessidade se dá na medida em que tanto
a produção do espaço nacional dialoga com a cartografia quanto a
inscrição desse espaço se faz por meio da cartografia.
Para que expliquemos essa premissa será preciso esclarecer alguns pontos de nossa compreensão, inclusive estabelecendo algumas
diferenças em relação a outras aproximações. O estudo da cartografia
histórica que na Europa, nos Estados Unidos e mesmo no Brasil remonta ao século XIX, objetiva, quase sempre, o exame dos produtos
cartográficos e das técnicas de mapeamento. Essa perspectiva se baseia na ideia da existência de um saber sobre o espaço norteado pela
ciência cartográfica, que desenvolveria progressivamente tecnologias
de levantamento e de inscrição de um conhecimento geográfico adquirido e acumulado continuamente sobre um meio legível, os mapas. Por conseguinte, o estudo da cartografia histórica visa a recolher
e organizar os esforços da ciência cartográfica e compreender avanços, afastamentos e incompatibilidades em relação à norma técnica.
O estudo da cartografia histórica, portanto, faria parte do discurso
mesmo da cientificidade em torno do qual se articulou progressivamente um saber sobre o espaço desde os séculos XVII e XVIII,
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Renato Amado Peixoto
ao qual a produção historiográfica teve de se remeter em busca de
sua própria legitimidade. Seria por meio da utilização eficiente dessa
perspectiva que, por exemplo, José Maria da Silva Paranhos Júnior,
o Barão do Rio Branco, conseguiria fazer valer a pretensão brasileira
nos litígios de fronteira do Amapá e de Palmas.
Esta perspectiva se estabeleceu ao longo do século XVIII por
sobre o desenvolvimento de critérios de rigorosidade científica que
resultaram em adensar os padrões que regulavam a discussão geográfica: não bastava mais registrar o espaço por meio do mapa para legitimar a posse do território, este mapa tinha de ter sido construído
por meio de princípios reconhecidos pela ciência cartográfica. O espaço tinha de ter sido antes explorado por especialistas, astrônomos
e engenheiros que levantariam astronômica e matematicamente certos pontos que permitiriam reunir as demais observações num todo
articulado, o mapa. Por si só, estes padrões impunham uma tarefa
que somente poderia ser enfrentada pelos Governos que se dispusessem a constituir uma estrutura muito dispendiosa e que demandava aprimoramentos e manutenção constantes. Em relação ao nosso
caso de estudo, se a produção historiográfica do IHGB podia ser
incorporada sem muitas discussões a um processo que ganhava seus
contornos ainda no século XIX, a produção do espaço dependia de
um diálogo difícil com um saber já consolidado na Europa e nos
Estados Unidos que divulgava espaços concorrenciais em relação ao
brasileiro. Essa divulgação era resultado do domínio nesses países de
um custoso e especializado processo gráfico e técnico que somente se tornou mais acessível com a difusão da litografia em meados
do século XIX. A cartografia era, pois, um processo coletivo, qualificado e de múltiplas etapas que incluía planejamento estratégico,
execução no campo e confecção no gabinete e atelier gráfico, realizado, muitas vezes, em conjunto pelo Estado e pela iniciativa privada,
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Cartografias Imaginárias
dado o seu grau de complexidade. Portanto, o espaço nacional, no
século XIX, teve de ser discutido a partir de produtos estrangeiros
e, muitas vezes, contra esses produtos, necessitando de inscrever suas
posições através de mapas que tinham de ser produzidos a partir de
certas normas acreditadas.
O estudo cartográfico
Por conseguinte, torna-se necessário explicitar sucintamente o sentido do que chamamos de estudo cartográfico situando-o como uma
contrapartida a certas premissas prevalecentes nos estudos de cartografia histórica. Em nosso entender, a naturalização de certas premissas pelo estudo da cartografia histórica e pela pesquisa histórica
que nele se apoia, introduz uma clivagem entre o método e a possibilidade de conhecimento histórico, na medida em que constitui,
em primeiro lugar, uma reificação do produto cartográfico e do que
poderíamos chamar de ‘fazer mapas’, ou seja, dos esforços diretos em
torno da elaboração dos mapas, em detrimento de uma contextualização das técnicas e dos esforços em relação às estratégias do Estado
e às táticas dos seus produtores. Em segundo lugar, reduzir-se-iam
também as possibilidades de um exame hermenêutico do produto
cartográfico, uma vez que preexistiria a este exame uma noção mesma da justa exação entre as técnicas cartográficas e o conhecimento
geográfico. Tal precondição, se por um lado, permite aos estudiosos
da cartografia histórica estabelecer através dos mapas uma relação retroativa da técnica mais avançada com o conhecimento geográfico
antigo nele representado (o que foi muito explorado, por exemplo,
nas discussões de litígio de fronteiras) por outro, não reconhece a
possibilidade de uma investigação iconológica ou semiológica do
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Renato Amado Peixoto
mapa. Em terceiro lugar, o estudo da cartografia história, constituído
muitas vezes a partir da engenharia, entende a cartografia enquanto
uma ciência além dos limites de inquirição histórica, desconstituindo, assim, a construção de uma historicidade mesma de esforços capazes de apontar suas incertezas, descontinuidades e irracionalidades. A história apresenta-se nessa arrumação como um saber domado
e subsidiário das interpretações e legitimações de um saber que não
se desautoriza e que incorpora os historiadores mais como mantenedores de uma memória corporativa e/ou organizadores de seu vasto
arquivo material.
Por conseguinte, entendemos que o estudo cartográfico deve:
1) Expor, investigar e questionar os processos cognitivos e as relações
de forças que constituem e resultam em determinado saber cartográfico ou atividade cartográfica; 2) Entender esta atividade cartográfica
não como um fim, mas enquanto um processo mesmo, que depende
da formação de um saber sobre o espaço e que se desdobra a partir
de suas estratégias e táticas; 3) Compreender que a investigação da
atividade cartográfica não se resume ao trabalho sobre o mapa, mas
que antes deve resgatar um regime da exequibilidade dos mapas que
nos permite discernir certas continuidades ou descontinuidades, especialmente no que tange ao agenciamento das técnicas e das condições da escrita e à distribuição e atribuição de tarefas (por exemplo,
por meio do exame das discussões acerca da projeção a ser utilizada, dos métodos de execução e do planejamento das atividades, dos
problemas e do processamento dos trabalhos de campo e das características de composição artística, que se desdobra em trabalhos de
gabinete, no atelier gráfico e na impressão); 4) Analisar os produtos
cartográficos cuidando de entender que suas particularidades, estilos,
especificidades técnicas e características de mercado das quais se revestem ou são investidos emprestam novos sentidos à compreensão
45
Cartografias Imaginárias
desses produtos (São mapas manuscritos, gravados, litografados, impressos? Da escola francesa ou alemã? Que projeção e escala utiliza?
Fazem parte de atlas, de folhetos, de livros? Em que tipo de livro estão inseridos: didático, técnico ou de propaganda?); 5) Buscar uma
leitura hermenêutica dos produtos cartográficos por meio de uma
investigação semiológica ou iconológica dos elementos disponibilizados no mapa (símbolos, colorações, legendas etc.) e a sua volta
(decoração, ilustrações, grafismos etc.), considerando o contexto
cultural e social de seus produtores; 6) Entender o espaço registrado
nos mapas como um campo sobre o qual são rebatidos enunciados
e discursos, que se revelam nos enquadramentos utilizados (os quais
denunciam a orientação do território representado em relação a um
espaço fora do mapa ou o privilégio de um certo recorte do espaço
que foi inserido no mapa sobre o território representado), por meio
das sentenças que se inserem nos conteúdos e símbolos gráficos, e
nos silêncios ou silenciamentos (os quais podem ser intuídos num símbolo cartográfico inacabado ou incompleto ou num espaço vazio ou
esvaziado de significação no mapa); 7) Procurar perscrutar os usos e
as funções que estes produtos assumem inclusive procurando-se entender sua disseminação em outros produtos cartográficos ou mesmo
outros saberes, sua divulgação e sua circulação.
Por meio desses pressupostos, o estudo cartográfico nos permite explicitar que, no contexto do processo de produção do projeto
histórico do IHGB, os usos e as funções da atividade cartográfica adquiriram dois sentidos principais, por um lado, os mapas políticos e
históricos permitiram à produção historiográfica explicitar pedagogicamente tanto a unidade dos diversos grupos dispersos pelo território com o Estado quanto à identidade fundamental da Nação com
um passado comum.
Por outro lado, as Cartas Gerais do Brasil estavam destinadas
46
Renato Amado Peixoto
a cumprir a função de tentar acomodar a visão sobre a Nação que
então se construía com as visões sobre o Brasil que se faziam a partir
de fora, na medida em que a imagem da Nação inserida num espaço
transcendente ligado à Europa se desvanecia em contato com as inscrições feitas por meio do molde que a ciência cartográfica oferecia
cuja racionalidade intrínseca era oposta ao esforço que impelia o projeto historiográfico. Na realidade, outra pedagogia se insinuava até
se entranhar mesmo no projeto do IHGB, a de uma subalternidade
continuada em relação a um espaço privilegiado que era capaz de demonstrar, inclusive, os limites do acordo interno – a representação
do todo para si, ou seja, da Nação para aqueles que irão integrá-la,
rebate-se a partir das representações de fora.
É, pois, nesse contexto amplo que se encerra a tarefa de produção do espaço, num duplo pedagógico pelo qual se explicitam relações descontinuadas de desconforto da elite com uma identidade
e com uma visão da Nação que resulta do acordo, mas das quais se
separa a partir de uma experimentação do espaço e da visão de fora
que a impele a se pensar a partir de fora sobre os de dentro, num pensar iluminado pela força da ficção, mas esbatido na realidade da força. Em outro trabalho, procuramos mesmo justificar uma apreciação
deste problema por meio da metáfora da ‘Máscara da Medusa’: se a
máscara de representação mal oculta um olhar que sempre petrifica,
sobra-nos apenas procurar imitar a jornada de Perseu.
47
Cartografias Imaginárias
Os insumos para a produção do espaço da Nação
Para ligarmos as origens do IHGB aos esforços do Estado e a um
debate sobre o espaço, torna-se necessário entender que, se experimentação da soberania fornece subsídios para o debate, este se realiza
a partir de insumos que o precedem.
Nos dezesseis anos que transcorrem desde a Independência até
a criação do Instituto, discute-se vivamente no Conselho de Estado
e no Parlamento a política externa, algumas vezes enredada em problemas regionais. Afinal, havia-se experimentado o medo de uma invasão restauradora por parte de Portugal e o custoso tratado de reconhecimento da Independência; a intromissão da Santa Sé no direito
nacional; a ingerência estrangeira no Amazonas; a derrota na guerra
contra as Províncias Unidas do Rio da Prata e a perda da Cisplatina;
a imposição do pagamento pelas presas de guerra e os ‘Tratados Desiguais’; o humilhante ultimato inglês de 1829 e a invasão francesa do
Amapá; a tentativa de secessão do Rio Grande do Sul e o surgimento
de lideranças agressivas e antagônicas nas fronteiras do Prata.
Se tomarmos como ponto de aproximação os discursos e as
ações dos indivíduos que podemos considerar elos de integração entre as várias partes da sociedade na tarefa de construção do espaço,
como Raimundo José da Cunha Matos, podemos entrever nas discussões do Parlamento a desilusão em relação ao que se esperava das
potências europeias, tanto por conta do sistema de tratados, considerado injusto e opressivo, quanto por causa da ação direta daqueles
Estados que, inclusive, emprestavam argumentos aos que entendiam
ser inútil o esforço diplomático. Já em relação à América, o tom das
discussões seria ambíguo, uma vez que se existia uma simpatia para
com a aproximação privilegiada com o continente, esta derivava de
uma análise da própria capacidade de projetação de poder, como
48
Renato Amado Peixoto
considerava Cunha Matos (BRASIL, 1827, p. 16): “É com as nações
americanas que devemos ter íntimas relações diplomáticas [...]. Na
América, figuramos como potência de 1ª ordem, ao mesmo passo,
que no mundo antigo nos classificarão a par do rei de Sardenha” 6. O
mesmo deputado também considerava que desses países se devia esperar apenas hostilidade no tocante às instituições do Império, conforme salientava quando da guerra com as Províncias Unidas do Prata:
Pelo que nós vemos nos papéis públicos de Buenos
Aires, aquele governo apresenta as mesmas idéias, que
outrora apresentara Catão a respeito da república dos
cartagineses – delenda est Carthago – dizia Catão!
[...] A guerra que nos faz Buenos Aires não é para ganhar território, a maior guerra que nos faz é de opinião (BRASIL, 1827, p. 24).
Cunha Matos criticava também a desconexão do Governo com
um pensamento nativista que julgava ter sido ofendido por sua pouca
ou inadequada ação. Suas censuras visavam à atuação da SENE, considerada como prejudicial ou mesmo inimiga dos interesses brasileiros:
Desaprovei a convenção pecuniária de Portugal,
desaprovei a infame convenção com a Inglaterra
pela qual os cidadãos brasileiros foram entregues ao
cutelo britânico; desaprovei os tratados feitos com a
mesma Inglaterra, França, Prússia e, sobretudo o das
cidades hanseáticas [...] desaprovo todos os tratados
que agora estão na forja, e dos quais, segundo dizem
já chegou da Áustria, e desaprovarei todos os outros,
que debaixo dos mesmos auspícios se fizerem para o
futuro com qualquer nação do universo! E não deveEm relação a uma análise mais aprofundada das discussões no Parlamento, ver CERVO, Amado Luiz. O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
6
49
Cartografias Imaginárias
mos nós todos lamentar os misérrimos tratados feitos pelo ministério transato? Não devemos lamentar
que o atual ministro dos negócios estrangeiros [...]
referendasse o absurdo tratado com a Prússia, e lhe
acrescentasse um artigo adicional, se não odioso, ao
menos tão impolítico como os dos seus antecessores?
(BRASIL, 1828, p. 174).
Na mesma época, no Conselho de Estado, também transpareciam, mesmo antes da abdicação de D. Pedro I, opiniões semelhantes
àquelas que eram expressas pelo Parlamento, como no caso do exame
das alternativas à usurpação do trono português por D. Miguel quando o Conselho de Estado rejeitou todas as proposições que diziam
respeito à intromissão do Brasil na questão; ou como no caso do exame da secessão da Cisplatina, cuja discussão iria desencadear a exoneração do conselheiro José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde
de São Leopoldo, insatisfeito com a política imperial.7
Conforme a análise de Cervo8, pode-se compreender que as
discussões sobre o espaço no Parlamento e no Conselho de Estado
desencadeariam tomadas de posição favoráveis ao entendimento da
necessidade de adensar o papel da Câmara e do Senado na condução da política externa, de maneira a diminuir os custos financeiros e
políticos decorrentes do que era entendido como uma excessiva centralização do processo. Neste sentido, poder-se-iam compreender as
sucessivas demandas parlamentares no período, como a exigência de
ATAS do Conselho de Estado, Sessões de 12/03/1830 e 27/08/1828. In: RODRIGUES,
José Honório (Org.) Atas do Conselho de Estado, v. II. Brasília: Centro Gráfico do Senado,
1978. p. 33-34 e 101-103. Em relação à exoneração do Visconde de São Leopoldo ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro
através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em História)
- UFRJ, Rio de Janeiro, 2005. p. 171-177.
7
CERVO, Amado Luiz. O Parlamento Brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília: Universidade de Brasília, 1981.
8
50
Renato Amado Peixoto
que todos os tratados negociados pela SENE passassem antes pela
aprovação da Câmara dos Deputados e do Senado, uma conquista
que somente seria alcançada após a abdicação de D. Pedro I.
Essas discussões haviam sido grandemente subsidiadas por vários insumos, como a Política Externa Joanina e por certas construções intelectuais como as de José Feliciano Fernandes Pinheiro. No
primeiro caso, a proposta de permuta do território ao norte do Rio
Negro e Amazonas pelo Uruguai, tal como havia sido instruído o representante português, em 1818, revela a existência de um sentido
de privilegiamento do espaço que vai ser ratificado pela ocupação da
Cisplatina e depois legado à política externa do futuro Estado brasileiro (AGUIAR, 1816). Do mesmo modo, a recusa de se receberem enviados e plenipotenciários do continente africano pode ser
entendida como o estabelecimento de uma relação diferenciada com
o espaço, utilizando como modelo uma visão idealizada da Europa.
Essa ideia pode ser mais bem explicitada se observarmos a exemplar
recepção de D. Pedro I ao rei do Havaí, Kamehameha II, em 1824.
Embora originário de um espaço tão ou mais bárbaro que a África
aos olhos das elites, o havaiano foi recebido com todas as honras por
D. Pedro I, que o presenteou com uma espada e um anel de brilhante.
Contava mais que Kamehameha II, um convertido ao protestantismo, estivesse então viajando para encontrar com o rei da Inglaterra,
após ter procurado ocidentalizar seu país e nessa diligência, destruído o sistema religioso de seus ancestrais. Mirava-se a Europa não apenas em busca das suas luzes, mas também, procurava-se inflectir uma
relação de força que o velho continente lhes demonstrara, reinserindo-a continuadamente sobre suas próprias instituições e indivíduos;
cabia evitar, nesse raciocínio, num misto de desdém e temor, aos que
na América e na África deveriam estar sujeitos a essa nova relação.
No segundo caso, José Feliciano Fernandes Pinheiro escreveria,
51
Cartografias Imaginárias
em 1807, a ‘História nova e completa da América’, privilegiando o
relato da construção de uma nova Nação no Continente, os Estados
Unidos, a partir do contributo europeu e do enraizamento deste no
território. Esta ideia precoce de uma ligação entre o tempo, a terra e o
homem baseando a compreensão do espaço seria depois adaptada ao
contexto brasileiro por meio de outra obra de sua autoria, os ‘Anais
da Província de São Pedro’, cuja primeira edição foi impressa entre os
anos de 1819 e 1822. Por meio desse livro, Fernandes Pinheiro defenderia que a conquista do território fora obra da força dos brasileiros e dos portugueses residentes, no Brasil, os quais haviam destruído
pela guerra toda a possibilidade de retorno ao sistema antigo. Se a
força definia a posse do território, a ligação deste com os indivíduos
era descrita como uma relação ininterrupta e continuada que poderia
ser provada por meio do recurso ao documento, ao testemunho e à
tradição. Constituía-se, assim, por meio de uma narrativa territorial,
um modelo de espaço onde um indivíduo plural, o brasileiro, era o
ator principal: Nação e identidade fundiam-se desde o início.
Em 1827, dois meses antes de ser nomeado Conselheiro de Estado, Fernandes Pinheiro procuraria construir mesmo uma ligação
permanente do Estado com o modelo de espaço que havia prescrito nos Anais: ofereceu a D. Pedro I a ‘Memória acerca dos Limites
naturais’, um documento que deveria ser guardado no Arquivo do
Estado, “entre os seus segredos mais importantes” e aberto apenas
quando um novo Imperador subisse ao trono, a fim de que pudesse
então servir de guia ao futuro governante do Brasil. Na ‘Memória’,
Fernandes Pinheiro formulou o que pretendia que fosse o ‘Sistema
Político’ do Brasil, a saber, “um plano sempre uniforme de conservar-se e engrandecer-se”. Este ‘Sistema Político’ fundava-se sobre certos
“interesses naturais imutáveis e indestrutíveis” que davam “um estado
de Direitura e estabilidade” à Nação: Fernandes Pinheiro considera52
Renato Amado Peixoto
va ser de “opinião geral” a percepção de que a vocação do Brasil era a
de tornar-se uma “Grande Potência Marítima e Comerciante”. Contudo, era necessário antes que seu território fosse “previamente circunvalado” a partir dos principais traços da natureza, os ‘limites naturais’, para que a Nação se conservasse acobertada “das querelas e da
fácil invasão de vizinhos” e, assim se propiciasse um desenvolvimento
seguro da sua população e da sua riqueza. Esses seriam fatores indispensáveis para a formação de uma Marinha que se tornaria capaz de
ativar “o círculo de relações entre a Capital e as Províncias remotas” e
de servir como “fortaleza volante”, levando “o ataque e a defesa onde
conviesse”. Segundo Fernandes Pinheiro, os ‘limites naturais’ da Nação deveriam se alargar na fronteira meridional desde as nascentes do
rio Paraguai, passando pelo rio Paraná e pelo rio Uruguai até o Rio da
Prata, “em compensação dos custos e perdas de uma guerra não provocada que vinha sendo movida contra os brasileiros pelos espanhóis
e seus sucessores há vinte anos” (PINHEIRO, 1827).
As ‘Memórias’, que poderiam ser consideradas o primeiro grande texto de geopolítica do Brasil, coincidiam sobremaneira com o
debate do final da década de 1820 e inclusive com as obras de Cunha
Matos que, por exemplo, na sua ‘Corografia de Minas Gerais’ alertava:
Os habitantes do Brasil têm o bom senso de conhecerem que os nossos arquivos públicos ainda agora
começam a ser organizados, e que as memórias mais
interessantes dos Fastos Nacionais foram devoradas
por insetos, acham-se cobertos de poeira em poder de
quem não sabe apreciá-los, ou existem nas bibliotecas
dos fidalgos, e Ministros portugueses, que governaram
as Colônias. [...] Permita Deus que o Governo abra
enfim os olhos, e que o Brasil não censure o seu desleixo quando vir tantos outros naturalistas atravessando,
esquadrinhando, e descrevendo aquilo que não deve-
53
Cartografias Imaginárias
mos ignorar; e que assim nos lancem no rosto a nossa
indiferença ou a nossa barbaridade (MATOS, 1837).
Distinguir as fronteiras e reconhecer o território era a precondição para se concretizar um determinado sentido da Nação que então se formava. Por conseguinte, entendemos que o debate no Parlamento revelava um pensamento sobre o espaço capaz de influenciar
as demandas que resultariam nas grandes conquistas da década de
1830, como a derrubada do Sistema de Tratados, a tomada do poder de decisão na política externa e, muito provavelmente, também
a ‘grande política americana’, como foi apelidada na Câmara dos Deputados, por volta de 1850, a busca de soluções para as questões de
fronteira e o estreitamento de vínculos com os países americanos.
Inclusive, repercutindo este ajustamento político, na reativação do
Conselho de Estado a discussão da política externa seria feita antes
em separado, na ‘Seção dos Negócios Estrangeiros’ onde em grande
parte do tempo estiveram representadas as lideranças dos dois partidos políticos do Império.
A ação da SENE seria mesmo norteada por uma política que
visava a responder as questões esboçadas pelo pensamento sobre o
espaço: em 1837, impulsionado pela expansão francesa e inglesa nas
Guianas, seu ministro, Antônio Carlos Maciel Peregrino, nomearia
Fernandes Pinheiro e Cunha Matos9 para a ‘Comissão Investigadora
O diálogo com Fernandes Pinheiro na ‘Comissão Investigadora de Limites’ influenciaria
mesmo a obra de Cunha Mattos, já que este autor endossaria as principais ideias apontadas
por Fernandes Pinheiro nos ‘Anais’ já em 1839, como, por exemplo, àquela relativa à associação necessária do tempo e da terra com o homem por meio de uma narrativa territorial: “o Sr.
Visconde de São Leopoldo mostrou [...] que ora não estamos habilitados a escrever a história
geral do Brasil, por nos faltarem muitos elementos provinciais para isso necessários”. Ver MATOS, Raimundo José da Cunha. Dissertação acerca do sistema de escrever a História Antiga e
Moderna do Império do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo
XXVI, p. 122, 1863.
9
54
Renato Amado Peixoto
dos Limites’ do Brasil,10 discernindo-a como “uma das primeiras necessidades públicas”. Seriam então atribuídas à ‘Comissão’ as tarefas
de “determinar quais os limites do Sul e Oeste do Império do Brasil,
à vista dos Tratados e Convenções existentes” e definir “quais os limites, que se podem considerar como naturais, com relação às localidades, e topografia do país.” 11 Portanto, entendia-se que os limites
brasileiros deveriam ser definidos por meio da ideia das ‘fronteiras
naturais’ esboçada por Fernandes Pinheiro. Sobre a base desse entendimento, resultaram dois trabalhos distintos na ‘Comissão Investigadora de Limites’, o primeiro, de José Saturnino da Costa Pereira,
senador e ex-presidente da província de Mato Grosso, que fora autorizado a emitir um parecer em separado por conta de seus problemas
de saúde;12 e o segundo, assinado pelo presidente da Comissão, Fernandes Pinheiro.
Na primeira parte de seu trabalho, Costa Pereira versa sobre a
utilidade dos tratados do século XVIII para a determinação dos limites, apontando os vícios e problemas decorrentes das suas demarcações. Em relação aos limites naturais, Costa Pereira observaria, com
pesar, que o Rio da Prata e o rio Uruguai seriam as fronteiras mais
próprias ao Brasil, evidenciando, assim, mais uma vez, a influência
dos ‘Anais da Província de São Pedro’ de Fernandes Pinheiro, obra,
aliás, citada explicitamente por Costa Pereira.
10
Embora não tenha sido denominada nos documentos oficiais, nosso trabalho adotará,
doravante, a denominação ‘Comissão Investigadora dos Limites’, a qual era empregada por
Duarte da Ponte Ribeiro, conforme anotação autógrafa à margem da correspondência entre
José Feliciano Fernandes Pinheiro e Antônio Peregrino Maciel Monteiro. Ver AHI-Arquivo
Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 228, Maço 5, Documento 4.
A ‘Comissão Investigadora de Limites’ foi nomeada diretamente pelo titular da SENE,
Antônio Peregrino Maciel Monteiro. Ver Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios
Estrangeiros, 1838, p. 8.
11
Conforme carta de José Saturnino da Costa Pereira para Antônio Peregrino Maciel Monteiro, de 26/10/1837. AHI- Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 286, Maço
6, Documento 32.
12
55
Cartografias Imaginárias
Na segunda parte, Costa Pereira aponta a impossibilidade de
se analisarem os limites por meio do recurso aos tratados anteriores, uma vez que não existia nenhuma cópia do Tratado de Santo
Ildefonso nos arquivos da SENE. No caso, poder-se-iam apenas fazer algumas conjeturas a respeito do Tratado de Santo Ildefonso a
partir do texto do Tratado de Madri. Mesmo assim, não havia um
conhecimento do território que permitisse uma aproximação segura,
haja vista que Costa Pereira foi obrigado a utilizar um mapa inglês,
a Carta da América Meridional, de John Arrowsmith, como base de
seu trabalho (PEREIRA, 1837).
Já o trabalho de Fernandes Pinheiro limitou-se a reafirmar o valor de sua ‘Memória’ como a melhor interpretação das fronteiras naturais, bem como da ideia da nulidade dos tratados anteriores que havia defendido nos ‘Anais’, contudo, faz a ressalva de que o Tratado de
Madri era aquele que melhor se prestava para os fins de delimitação
do espaço nacional, justamente porque, como observado por Costa
Pereira, era com o que se podia contar.13 Coincidentemente, no ano
seguinte, na Bolívia, após uma troca comum de notas, os representantes daquele país fizeram saber ao plenipotenciário brasileiro, Duarte da Ponte Ribeiro, que o Tratado de Santo Ildefonso também não
existia nos arquivos de seu Governo e que, por conta disso, a Bolívia
não mais o reconheceria como base para a fixação de limites.14
Assim, após o término dos trabalhos da Comissão, se decidiu
por uma extensa reforma na estrutura da SENE, de modo a provê-la de recursos que melhor permitissem enfrentar esses problemas.
Constituiu-se um ‘Arquivo’, para onde seriam encaminhados os do13
Correspondência do Visconde de São Leopoldo ao Ministro dos Negócios Estrangeiros,
1837. AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 284, Maço 5, Pasta 4, Documento 3.
Duarte da Ponte Ribeiro, Ofício de 19 de janeiro de 1839. AHI, Lima - Ofícios, 18381840.
14
56
Renato Amado Peixoto
cumentos e mapas referentes às questões de limites (que daria origem
ao Arquivo do Itamaraty); e uma ‘Biblioteca Especial’, destinada a
armazenar “todas as produções, que o desenvolvimento do espírito
humano houver de dar à luz no que respeita à marcha dos Governos,
e às modificações, que porventura se tenham de realizar nas relações
das diversas associações políticas.” 15
Por sua vez, Fernandes Pinheiro (1839) também apresentaria
vários argumentos favoráveis à constituição de “um colégio especial
de literatos escolhidos, incumbidos de recolher e transmitir os feitos
que constituem a vida das nações” conforme seu prefácio à segunda edição dos ‘Anais da Província de São Pedro’. Nesse, fazia ver a
necessidade de que “se deputassem literatos Brasileiros de conceito,
que fielmente colhessem da Torre do Tombo, e doutros Arquivos Nacionais, e copiassem os monumentos e escritos, que tivessem relação
com a História do Brasil”,16 muito provavelmente influindo decisivamente para que o ministro dos Negócios Estrangeiros Caetano Maria
Lopes Gama, indicasse Francisco Adolfo de Varnhagen como adido
da Legação brasileira em Lisboa, com a missão expressa de selecionar
e copiar os “documentos que sirvam para a organização da História
do Brasil” (ADONIAS, 1984).
Portanto, a ‘Comissão Investigadora de Limites’ teve como
principal resultado admitir o desconhecimento do território e a subsequente impossibilidade de se definir os limites brasileiros. Secun15
Relatório da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, 1838, p. 18.
Faz-se necessário apontar que, embora a data de publicação da segunda edição dos ‘Anais’
seja posterior à fundação do IHGB, sua redação foi feita em data anterior, constituindo-se
possivelmente na primeira ata de intenções dessa instituição. Nesse sentido, dois fatos corroboram nossa hipótese: primeiro, o exame dos ‘Anais’ pelo Instituto foi publicado já no
primeiro número de sua revista, e seus pareceristas identificam as intenções de Pinheiro com
o IHGB. Segundo, o ‘Programa Geográfico’ de Pinheiro, uma obra posterior à redação da
segunda edição dos ‘Anais’, foi lida no IHGB já na sessão de 16 de fevereiro de 1839, o que
por si só já recuaria a redação dos ‘Anais’ para o ano anterior.
16
57
Cartografias Imaginárias
dariamente, consagraram-se as ideias de Fernandes Pinheiro, reconhecendo-se a necessidade de um esforço contínuo que se destinasse
a pensar o espaço e a embasar as negociações com outros países suprindo-se o Estado de informações sobre o seu próprio território e
suas fronteiras. Estabelecer-se-ia, assim, uma ponte definitiva entre
a Geografia e a História e por meio destas com uma produção do espaço nacional onde se salientava a importância do Tratado de Madri,
então a única fonte histórica dos limites brasileiros.
Provavelmente, a partir dos resultados da ‘Comissão’ constituiu-se um entendimento de que as demandas dos Negócios Estrangeiros
inflectiam sobre a própria manutenção e organização do Estado devendo, portanto, somar-se ao debate mais amplo que implicava então
na fundação do IHGB. O peso deste entendimento pode inclusive
ser aventado a partir do exame do quadro de seus sócios fundadores,
já que dentre eles figurava o titular da pasta dos Negócios Estrangeiros e dois dos principais formuladores do espaço, Fernandes Pinheiro
e Cunha Matos, escolhidos respectivamente para a presidência e vice-presidência do Instituto.
A produção da história do espaço nacional no IHGB
Ao discutirmos a produção do projeto histórico do IHGB interessa-nos ressaltar certas continuidades e descontinuidades em relação
ao pensamento sobre o espaço que acreditamos ser esclarecedoras
de um processo que envolve o Estado na constituição de uma história do espaço nacional e onde se evidencia certos usos e funções
da cartografia. No caso, fica claro que as preocupações da ‘Comissão
Investigadora de Limites’ foram retomadas já na 5ª sessão do IHGB
pela iniciativa do próprio Fernandes Pinheiro de instituir a seguinte
58
Renato Amado Peixoto
diretriz de discussão por meio da apresentação da memória ‘Programa Geográfico’:
Quais são os limites naturais, pactuados e necessários
do Império do Brasil? Quando o Brasil aparece em
notória crise; quando por todos os lados é comprimido, e estreitado em fôrma de bronze, e os escritores do dia provocam e desafiam os literatos para que
instruam o Público, ávido de conhecer os títulos da
sua propriedade; o Instituto Histórico e Geográfico
do Brasil há de cruzar os braços, com indiferença e
insensibilidade? (PINHEIRO, 1902a). 17
A argumentação do ‘Programa Geográfico’ derivava diretamente das conclusões da ‘Comissão’, buscando explicitar a argumentação
da nulidade de todos tratados anteriores através da constituição de
uma narrativa linear que ligava os vários tratados coloniais ao apontar sua contradição com os interesses da Nação brasileira. Contudo,
destacava-se nessa narrativa a excepcionalidade do Tratado de Madri,
por ser o mais vantajoso para o Brasil e também o mais justo dentre
todos os que haviam sido acordados entre Portugal e Espanha, e que
esta grandeza do Tratado de Madri derivava do fato de ter sido planejado por um brasileiro, Alexandre de Gusmão, injustamente desconhecido.18 Procurando melhor embasar os seus argumentos, Fernandes Pinheiro buscou subsídios principalmente na cartografia, inven17
O ‘Programa Geográfico’ foi lido na sessão do Instituto de 16/02/1839. Consultar a obra
de Fernandes Pinheiro, 1902a.
18
Note-se que essa circunstância seria enfatizada também no ‘Programa Histórico’ do
IHGB: “Alexandre de Gusmão, que por incúria dos tempos escassamente é conhecido por
algumas cartas expedidas do gabinete de D. João V de Portugal, porém, que para ser hoje
admirado a par do Marquês de Pombal (não se me trate de exagerado, em tempo o demonstrarei) só lhe faltou haver nascido além do Atlântico [...]: Gusmão foi dotado de vistas mais
vastas, de mais variados conhecimentos nas ciências [...] o Brasil lhe deve em especial o plano
e direção do mais vantajoso tratado de limites, o de 1750”. Revista do IHGB. tomo I, trimestral, 1839, p. 62.
59
Cartografias Imaginárias
tariando a cada página do ‘Programa Geográfico’ os mapas e cartas
capazes de endossar ou esclarecer sua lógica.19 Portanto, Fernandes
Pinheiro foi o responsável por trazer a cartografia para o centro do
debate do IHGB, acreditando-a como uma das fontes principais da
posse do território e da ligação do homem com a terra, em razão da
ausência então de outros documentos. Vale à pena acrescentar, no sentido de demonstrar a importância que Fernandes Pinheiro atribuía
à cartografia, que a publicação da segunda edição dos seus ‘Anais da
Província de São Pedro’ foi atrasada apenas para se poder encadernar
nesta um mapa que ainda aguardava sua gravação em Paris.
O ‘Programa Geográfico’ seria impresso à custa do IHGB
e distribuído entre os seus sócios e correspondentes, rapidamente
atraindo as críticas de Manoel José Maria da Costa e Sá, membro
da Academia Real de Ciências de Lisboa, que acusaria abertamente
Fernandes Pinheiro de ter omitido, suprimido e distorcido a interpretação de diversos elementos de sua narrativa e em sua argumentação. Procurando exemplificar sua crítica, Sá investiu pesadamente
contra o tratamento dispensado ao Tratado de Madri, insistindo que
esse fora extremamente nocivo a Portugal e, inclusive, lembrando
que Alexandre de Gusmão havia caído em desgraça logo após sua
assinatura, inclusive por ter pesado contra ele a acusação de suborno
(SÁ, 1902).20
Como as duras críticas de Sá desarticulavam completamente a
narrativa construída no ‘Programa Geográfico’, tornava-se necessá-
19
Consolida-se no IHGB uma sintonia com os trabalhos anteriores de Pimenta Bueno e de
Duarte da Ponte Ribeiro na Secretaria de Negócios Estrangeiros, onde se defende a ligação da
construção do espaço com a prova histórica. Ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da
Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no
século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005. cap. VII. Em
relação à construção do conceito do uti possidetis na SENE ver cap. VIII.
20
Trata-se de breves anotações à Memória que o Ex. Sr. Visconde de São Leopoldo escreveu.
60
Renato Amado Peixoto
rio, sobretudo pela insistência de D. Pedro II,21 contra-argumentar
com novos elementos. Fernandes Pinheiro escreveria uma ‘Resposta’
às críticas de Costa e Sá, reafirmando perante a assembleia do IHGB
a argumentação da nulidade dos tratados, desta vez ressaltando a
transcendência mesma do tratado de 1750 para a formação da Nação
brasileira, já que esta fora “enformada” em seu território pelo gênio
de Alexandre de Gusmão, um patriota antes de seu tempo, distinguindo-se, assim, o Tratado como o marco inicial da história da nação (PINHEIRO, 1902b).
Em 1841, Fernandes Pinheiro continuaria a articular as bases
de construção de uma história do espaço nacional no Instituto, fazendo publicar os Diários das demarcações dos tratados do século
XVIII e apresentando ao IHGB a primeira biografia de Alexandre
de Gusmão, denominada ‘Da vida e feito de Alexandre de Gusmão e
de Bartolomeu Lourenço de Gusmão’, também impressa e distribuída à custa do Instituto. Esta biografia dos Gusmões, proposta por
Pinheiro “para resgatá-los de um esquecimento, onde ficariam indignamente sepultados” (PINHEIRO, 1902c), já fazia parte de seus
planos desde pelo menos 1838, quando em uma viagem a Santos,
sua cidade natal, colheu os documentos para escrever sobre seus conterrâneos, então desconhecidos mesmo das elites letradas, mas cuja
lembrança provavelmente fora cultivada e preservada pela memória
local. Se no ‘Programa’ já se podia distinguir uma idealização da figura e do saber de Alexandre de Gusmão, nesta biografia sua figura
seria mais aproximada do ideal romântico de herói, enriquecida com
a descrição de sua precocidade, de sua lealdade e de seu desapego à
riqueza ou a fama. Segundo este enredo, o Tratado de Madri devia
ser compreendido como sua obra magna, uma façanha capaz de lhe
Carta de José Feliciano Fernandes Pinheiro para Joaquim Caetano Fernandes Pinheiro,
em 15/09/1846, citada em Pinheiro, 1898.
21
61
Cartografias Imaginárias
garantir a eternidade nos “Fastos do Brasil”. Já para Bartolomeu, o
irmão de Alexandre de Gusmão, Fernandes Pinheiro reservaria a glória e a ventura de ter sido o inventor da primeira máquina voadora,
embora ressaltasse que a alcunha de “os voadores” cabia a ambos os
irmãos (PINHEIRO, 1902a).
Ainda no mesmo ano, o IHGB publicaria um opúsculo de
Varnhagen denominado ‘As primeiras negociações diplomáticas
respectivas ao Brasil’, onde através da concatenação da ideia da ação
diplomática com a construção do espaço brasileiro se defendia que a
escrita da história deveria servir-se das mesmas fontes que a diplomacia, circunstanciando-se, assim, a necessidade de constituição de um
arquivo comum,22 premissa a partir da qual iria justificar a remessa
de diversos documentos diplomáticos para o IHGB, em especial, a
transcrição certificada do Tratado de Madri.
Igualmente podemos notar que a participação de Duarte da
Ponte Ribeiro no IHGB se dá concomitantemente ao início de uma
colaboração íntima deste com o então titular da SENE, Paulino José
Soares de Sousa, futuro visconde do Uruguai. Fruto dessa interação
excepcional surgiria então a ‘Memória n° 12’ onde Ponte Ribeiro juntava ao argumento da nulidade dos tratados o uti possidetis, conceito
que havia sido construído nos anos anteriores na SENE de modo a
poder justificar a compensação ou a cessão de territórios a fim de cobrir a ‘fronteira natural’, inclusive, preemptivamente, ou seja, visando
a uma definição futura dos limites.23 Para elucidar esta interpretação
Ponte Ribeiro fez desenhar um mapa que servia de contraponto à
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. As Primeiras Negociações Diplomáticas Respectivas ao Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LXV, n° 105, parte
I, p. 427-454, 1902.
22
23
RIBEIRO, Duarte da Ponte. Memória sobre limites e negociações do Império do Brasil
com as Repúblicas do Peru, Bolívia e Paraguai. N° 12. AHI, Arquivo Particular de Duarte da
Ponte Ribeiro, Lata 268, Maço 1, Documento 2.
62
Renato Amado Peixoto
argumentação e como reforço da narrativa, tornando, de fato, a cartografia inseparável do texto escrito e também um texto a ser trabalhado: inaugurava-se, assim, um recurso que a história do espaço nacional utilizaria inúmeras vezes, como no caso do ‘Mapa do Tratado
de Tordesilhas’, que Varnhagen incorporaria a sua História Geral do
Brasil e onde, de modo a reforçar a política de cessão de limites da
SENE, grafava-se o meridiano de Tordesilhas do modo mais desfavorável ao Brasil.
Esse raciocínio seria expresso diretamente por Varnhagen em
1850, quando foi chamado a participar enquanto consultor da ‘Comissão de Limites’ constituída por Paulino Soares de Souza, para
elaborar uma ‘Memória’ que relacionasse e opinasse sobre os mapas e
outros documentos que pudessem ser utilizados nas negociações de
limites. Nessa ‘Memória’, Varnhagen sugeriria que uma “História das
Fronteiras” não se diferenciaria da história mesma do Brasil e que deveria alcançar até os “primeiros anos de existência colonial”, remetendo a investigação dos limites aos mapas e documentos que os originaram ou sobre os quais se basearam. Por conseguinte, o Tratado de
Tordesilhas se impunha como o marco inicial da história do espaço
nacional e os pactos entre as Metrópoles constituíam-se também em
balizamentos da história da nação, uma vez que se poderia imprimir
por meio destes um vínculo com o passado e com a legitimação da soberania. Nesse sentido, Varnhagen se remetia à primitiva construção
de Fernandes Pinheiro, como pode ser compreendido, por exemplo,
na reiteração do julgamento do Tratado de Madri: “ponto de partida
para todas as futuras questões [...] negociado com tanta sabedoria,
tanta boa fé e lisura [...] que os negociadores de parte a parte se mostraram com ele superiores ao seu século” (VARNHAGEM, 1851, p.1).
Portanto, a ação diplomática, a geografia e a história se fundiam
num só esforço, propiciando uma relação direta dos interesses do Es63
Cartografias Imaginárias
tado com o que era produzido no Instituto, através de uma história
do espaço nacional já articulada no IHGB pelo menos dez anos antes
da feitura da ‘História Geral do Brasil’ de Varnhagen.
A cartografia e a construção do espaço nacional
Os mapas serviram então, indistintamente, enquanto fonte qualificada, argumento de retórica e material de escrita numa verdadeira
polissemia que pode ser inquirida com o objetivo de se entender a
importância da cartografia para o projeto historiográfico.
Podemos observar por meio de um ‘estudo da composição’24 de
certos mapas produzidos então no IHGB e na SENE, que a cartografia se prestou, por exemplo, à construção de uma pedagogia da
Nação, como na ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’ (Figura
6), premiada em 1846 pelo IHGB, conforme pode ser observado a
partir dos diferentes níveis de escolha que no processo de sua composição relacionaram esse objetivo com as técnicas e materiais disponíveis na época. O traçado geral da Carta foi feito a partir de dois dos
mapas estrangeiros mais conhecidos de sua época, visando-se com
isto a alcançar o reconhecimento da comunidade cartográfica internacional a partir de seus próprios cânones. Este mesmo traçado foi
complementado com os trabalhos recolhidos ou reconhecidos pelo
IHGB, procurando-se assim instituir a centralidade do projeto historiográfico na discussão do espaço. Por fim, sua grande dimensão
(1,5 m x 1,5 m), objetivava impactar aqueles que a vissem; diminuir
o problema dos erros, pois se tornava possível dimensionar mais o
24
Entendemos que o estudo da composição dos mapas deve procurar elucidar as relações
entre os processos externos e internos de sua produção, que grosseiramente definiremos aqui
como aqueles que dizem respeito, respectivamente, às estratégias e táticas dos operadores da
representação e às particularidades das técnicas e procedimentos cartográficos.
64
Renato Amado Peixoto
Figura 6.
Carta Corográfica do Império do Brasil.
Fonte: NIEMEYER (1846).
65
Cartografias Imaginárias
desenho dos rios; e direcionar a atenção sobre certos detalhes, especialmente, os limites com o Paraguai.
Por sua vez, se estudarmos a composição do ‘Mapa do Rio Grande’, desenhado por Duarte da Ponte Ribeiro para servir às discussões
do Conselho de Estado em 1840, podemos observar que a cartografia foi utilizada tanto para disseminar o pensamento constituído no
projeto historiográfico quanto para servir de argumento a este nas
discussões sobre o espaço. Para alcançar este efeito, escolheram-se
técnicas capazes de ser trabalhadas retoricamente sem perder sua eficácia cartográfica: a orientação do Mapa foi deslocada do Norte para
o Sul, literalmente inscrevendo o território nacional de ponta-cabeça (caso único na cartografia brasileira do período), procurando-se
enfatizar com isto a importância do espaço platino; a inscrição de
certos elementos cartográficos como a toponímia foi feita de forma
invertida, tornando possível enfatizar uma relação mais destacada
com o espaço externo, no caso, o Uruguai; a escala foi parcialmente deformada em parte do mapa de forma a constituir uma ordem
de leitura mais favorável à argumentação da SENE; selecionaram-se
propositadamente certos elementos geográficos citados nos tratados
do período colonial de modo que estes pudessem ser comparados
desvantajosamente com o argumento traçado em colorido no mapa.
Em ambos os casos se verifica ainda, desta vez através de uma
investigação iconográfica e semiológica, que os mesmos mapas serviram como material para a escrita do projeto historiográfico, como se
pode verificar através do exame de seus elementos estruturais, a saber:
o Meridiano do Rio de Janeiro foi disponibilizado como a origem
do sistema de coordenadas, permitindo explicitar-se assim a centralidade do Estado; a nomeação dos espaços indígenas se dava a partir
de citações que recordavam sua hostilidade ao elemento branco e à
civilização; a toponímia foi acompanhada, muitas vezes, por citações
66
Renato Amado Peixoto
que remetiam à transcendência do espaço e de seu centro em relação
à antiga Metrópole; o sertão era distinguido e demarcado enquanto
um local de barbárie e também como um espaço vazio destinado a ser
conquistado; o Prata foi representado como um território contíguo,
mas inimigo.
Estes exemplos evidenciam o sentido muito amplo que a cartografia adquiriu para o projeto historiográfico, o que permite, inclusive, entender que certas tendências de representação nos mapas podem revelar indícios das tensões e ambiguidades do projeto, as quais
podem ajudar a pensar as relações entre Estado, Elites e Instituto
como um processo descontínuo e heterogêneo, onde a discussão em
torno da produção do espaço e de sua representação seria estratégica
para as partes envolvidas.
É possível discernir que, nos dois mapas, as províncias foram
distinguidas por meio de uma combinação de técnicas ou de elementos cartográficos que as destacam tanto ou mais que a Nação. Ao
examinarmos a ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’, podemos
perceber que, além da utilização do colorido ter enfatizado mais os
limites provinciais que a fronteira do Império, as plantas topográficas das capitais das províncias de São Paulo, do Rio de Janeiro, do
Rio Grande do Sul, da Bahia, de Pernambuco, Maranhão e Pará foram disponibilizadas em torno da representação do Brasil, ou seja, na
composição procurou-se literalmente ‘emoldurar a Nação’.
No ‘Mapa do Rio Grande’, embora o enfoque temático seja o
da discussão das fronteiras com o Uruguai, podemos observar que
a composição cartográfica visou a constituir esse enfoque através do
argumento de um esvaziamento material e humano da Província em
razão da permanência do envolvimento brasileiro nos conflitos do
Prata, uma vez que a SENE visava, então, a alcançar um acordo político no Conselho de Estado em torno da delimitação de fronteiras
67
Cartografias Imaginárias
com o Uruguai. No caso, a combinação de uma deformação deliberada da escala com o maior dimensionamento e seleção dos elementos
geográficos construiu no mapa uma representação do esvaziamento
e da drenagem do território do Rio Grande do Sul em direção do
Prata.
Por conseguinte, entendemos que os produtos cartográficos explicitavam tanto uma tensão em torno da questão provincial e regional quanto uma ambiguidade em torno do papel a ser exercido pelo
IHGB em relação ao Estado, questões estas que podem ser mais bem
avaliadas a partir de exemplos da discussão do espaço no Instituto e
que podem nos ajudar a discernir uma separação de tarefas na produção historiográfica.
A censura na produção do espaço da Nação
Em relação ao papel a ser exercido pelo IHGB, dois episódios de censura na produção do Instituto nos permitem distinguir o fechamento
da construção do espaço nacional e o momento em que se processa
uma separação das tarefas no projeto historiográfico, com a SENE
passando a se concentrar mais na produção da história do espaço nacional e sua representação por meio da cartografia. O primeiro destes
episódios foi o dos ‘Apontamentos Diplomáticos’ de Ernesto Ferreira
França Filho, em 1849, e o segundo o da ‘Memória Histórica’ de Joaquim José Machado de Oliveira em 1853.
Quando os ‘Apontamentos Diplomáticos’ foram apresentados
por Ernesto Ferreira França Filho ao IHGB, esta obra foi logo identificada pela Comissão de Geografia (dominada então pela SENE),
como um trabalho escrito pelo pai de Ernesto, antigo ministro dos
Negócios Estrangeiros. Na Memória, eram apresentadas três dire68
Renato Amado Peixoto
trizes para a definição e defesa dos limites: primeiro, a constituição
de outra comissão que não a Geográfica para cuidar da confecção de
uma série de mapas onde se representassem os limites do Brasil a partir de certas normas fixas, tais como a orientação pelo Meridiano do
Rio de Janeiro; segundo, que se estabelecesse um plano de ocupação
e manutenção de certos pontos estratégicos considerados essenciais
para a ‘segurança e conservação dos direitos’ e que por este plano se
orientasse a doutrina do uti possidetis; terceiro, aconselhava a constituição de um ramo especial do serviço público para cuidar da segurança e da inviolabilidade das fronteiras.
Neste caso, se as sugestões dos ‘Apontamentos’ fossem aprovadas, diminuir-se-iam tanto as atribuições da SENE quanto sua influência na condução do projeto historiográfico, inclusive por desvincular desta instituição a produção cartográfica.25 Sintomaticamente,
para o entendimento do desdobramento subsequente das tensões no
Instituto, deve-se esclarecer que a Comissão Geográfica entendeu
que não havia sequer necessidade de apresentar um parecer sobre os
‘Apontamentos’, já que o IHGB não possuía atribuição para tratar
das questões ali discutidas, não podia cogitar de divulgá-las e menos
ainda fazer uso de suas informações.26
Ao contrário do caso dos ‘Apontamentos’, a censura às ‘Memórias Históricas’ acarretou uma acalorada discussão que colocaria, em
xeque, o papel do IHGB em relação ao Estado, uma vez que essa obra
era um violento libelo contra a política de limites e a utilização do
uti possidetis pelo Governo, lançando mão da discussão do Tratado
Os ‘Apontamentos Diplomáticos’ somente seriam publicados em 1870. Ver FRANÇA
FILHO, Ernesto Ferreira. Apontamentos Diplomáticos Sobre os Limites do Brasil. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XXXIII, n° 41, parte II, 1870.
25
RIBEIRO, Duarte da Ponte. Resumo da Memória apresentado ao Instituto Histórico sobre limites, por Ernesto Ferreira França Filho. AHI-Arquivo Particular de Duarte da Ponte
Ribeiro, Lata 268, Maço 2, Pasta 11, Documento 2.
26
69
Cartografias Imaginárias
de Limites com o Uruguai de 1851 para argumentar a favor do que
considerava ser os “incontestáveis direitos” à verdadeira “amplitude
territorial do Brasil” (OLIVEIRA, 1853).
Encaminhada conforme a praxe para a Comissão de Geografia,
as ‘Memórias Históricas’ seguiram o trâmite normal em direção ao
veto, merecendo um parecer circunstanciado onde se procurava negar tanto a ideia da cessão de território pela política de limites, quanto os “incontestáveis direitos” esgrimidos por Machado de Oliveira
em relação ao território que coubera ao Uruguai. Ainda, a aplicação
do conceito do uti possidetis foi defendida pela Comissão de Geografia através de sua remissão ao Tratado de Madri, apontando-se que
a característica mais marcante deste Tratado era justamente a de ter
consolidado uma expansão do território nacional em relação ao Tratado de Tordesilhas. Mais importante: o parecer distinguia o Tratado
de Tordesilhas enquanto a origem dos limites brasileiros e esclarecia
que, ao contrário do que defendia Machado de Oliveira, o Tratado de
Tordesilhas havia sido muito mais desvantajoso ao Brasil, segundo os
cálculos mais precisos de que a Comissão de Geografia dispunha. Por
meio do recurso à cientificidade e a uma lógica inerente à História do
espaço nacional, procurava-se então desmontar uma argumentação
expansionista que possuía grande apelo para as elites e que estava sendo utilizada então pelas elites gaúchas de encontro aos seus interesses.
Portanto, por meio de uma nova contribuição à História do
espaço nacional, negava-se terminantemente, a idéia da diminuição
do território brasileiro que então ganhava forças a partir do próprio
material juntado pelo Instituto.27
A discussão resultaria na expressão pela plenária do desejo
27
Parecer do Sr. conselheiro Duarte da Ponte Ribeiro, sobre a referida Memória, lido na
sessão do Instituto Histórico de 17 de Junho de 1853. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo XII, n° 3, p. 435, 1853.
70
Renato Amado Peixoto
de uma maior autonomia em relação ao Governo, rejeitando-se os
pressupostos da Comissão de Geografia, inclusive, por meio de uma
proposição de se fazer rever a ‘Carta Corográfica do Império’, o que
colocava o Instituto em contraposição a uma Comissão de Limites
recém-estabelecida na SENE. Seria também aprovada a proposta
de se buscar estabelecer uma coleção de tratados, criando-se, deste
modo, condições para que se pudesse organizar no IHGB uma base
documental própria sobre os limites e a política externa, expondo-se,
com esta atitude, a disposição de se discutir abertamente os problemas de Estado, demonstrando-se, por conseguinte, a ambiguidade
com que no Instituto se entendia esta questão.28
Finalmente, outro episódio, o debate acerca da Comissão Científica de Exploração, permite-nos perscrutar mais de perto a importância da tensão em torno da questão provincial e regional no IHGB
que no caso anterior já pode ser aventada por conta dos interesses da
elite gaúcha.
A Comissão Científica do IHGB resultaria das discussões acontecidas a partir de 1854, quando se convergiria para uma posição
comum de rejeição aos relatos dos viajantes estrangeiros, acusados
de falsificar e distorcer a verdade sobre o país, uma leitura também
condizente com o entendimento de que a corografia do território
passava a ser então uma das prerrogativas do IHGB, devendo-se, portanto, passar a assumir uma participação mais ativa em relação a sua
exploração.29 Assim, aprovou-se o envio de uma Comissão destinada
a pesquisar “algumas das províncias menos conhecidas do Brasil” e
28
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Tomo XVII, n° 17, 1854, pp. 77102. Para maiores esclarecimentos sobre estas questões ver PEIXOTO, Renato Amado. A
máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da
cartografia no século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em História) — UFRJ, Rio de Janeiro,
2005. cap. VIII.
Veja-se, por exemplo, o ataque de Manoel Ferreira Lagos à obra de Castelnau na Revista do
IHGB, suplemento ao Tomo XVIII, 1855, p. 28.
29
71
Cartografias Imaginárias
formar uma coleção de espécimes da fauna, da flora e da cultura indígena para enriquecer as coleções do Museu Nacional.30 Após inúmeros contratempos, inclusive por conta do bloqueio de suas verbas
no Ministério dos Negócios do Império, somente em 1859, é que, a
Comissão começaria a percorrer as províncias do Ceará, Piauí, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, reunindo neste esforço
grande quantidade de espécimes e de informações.
Apesar disto, a Comissão seria ridicularizada no Ceará e na
Corte, atacada nos jornais e no Parlamento pela sua má conduta e
desperdício do dinheiro público, terminando apelidada de ‘Expedição Defloradora’ e ‘Comissão das Borboletas’. Quase todas as suas
coleções seriam dispersas e perdidas, metade dos seus relatórios científicos nunca foi publicada e parte destes acabaria censurada, omitindo-se mesmo a questão da seca de seus preâmbulos e nem sequer o
IHGB retornaria ao problema – Como entender este desfecho?
O objetivo inicial da Comissão era observar a desertificação de
certas áreas do Norte e estudar o melhor aproveitamento dos seus
recursos hídricos pela identificação das áreas onde melhor conviesse
o recurso à construção de grandes açudes, represas ou de um sistema de poços artesianos, bem como de canais destinados à irrigação
dos campos. Buscava-se investigar as causas da seca, estabelecer uma
regularidade do fenômeno e a viabilidade de se reflorestar a área. Entendia-se então que o Ceará era a área mais atingida, deplorando-se
a decadência provocada pelo abandono da lavoura nessa província.
Nos relatos dos sócios do Instituto, equiparava-se essa área a Argélia e
ao Egito, explicando-se assim ter a Expedição recorrido a experimentos já testados nesses locais, daí, dentre outras providências, a ideia
de aparelhar militarmente a Expedição e a de utilizar dromedários
30
REVISTA DO IHGB. Rio de Janeiro: IHGB, Tomo XIX, 1856.
72
Renato Amado Peixoto
como meio de transporte, mandando-os trazer, junto com seus tratadores do norte da África.31
Mas, na medida em que a Comissão Científica cumpria suas
funções, suas conclusões passavam a apontar o problema político
como o fato amplificador dos problemas atribuídos à seca: descaso
público e mau emprego dos recursos técnicos, estes eram os verdadeiros problemas da região aos olhos dos exploradores.
Tais críticas aos políticos provinciais e ao Governo imperial colidiam com uma composição entre ambos que se fazia representar em
torno dos interesses comuns, que se explicitava por meio do uso de
uma linguagem compartilhada e de um discurso daí originado. Assim, se determinado argumento tal como a metáfora da seca foi utilizado para fazer valer um sentido diferenciado de inserção no espaço
nacional, era justamente porque os interesses envolvidos precisavam
ser harmonizados num saber sobre o espaço que se reconstituía constantemente, definindo domínios, estabelecendo fronteiras e articulando responsabilidades – o pensar o espaço se constituiu a partir de
uma verdadeira tensão que era reelaborar permanentemente o acordo sobre o espaço e sua territorialização com a subsequente afirmação
dos lugares de subalternidade.
Conclusão
Constituídos todos os termos da história do espaço nacional, Varnhagen articularia a partir deles a sua ‘História Geral do Brasil’, inclusive cuidando de utilizar a cartografia para ilustrar a nova representa31
Ver: As bases das instruções para a Comissão Científica de Exploração. Revista do IHGB,
Rio de Janeiro; Tomo XIX, p. 70, 1856. Suplemento e Contribuições para as instruções da
Comissão Científica de Exploração. Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, p. 76-82.
1856. Suplemento.
73
Cartografias Imaginárias
ção do Tratado de Tordesilhas, influenciando toda uma linhagem de
narradores como Capistrano de Abreu (veja-se, por exemplo, em seu
‘Capítulos de História Colonial’, a ‘Formação dos limites’), Pandiá
Calógeras e o Barão do Rio Branco.
Por sua vez, separadas as tarefas do projeto historiográfico e geográfico, a SENE cuidaria de manter a prerrogativa de produzir os
mapas que haveriam de representar a imagem da Nação, tomando a
antiga ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’ de Conrado Jacob
Niemeyer como modelo. Todas as Cartas Gerais do Império seriam
compostos a partir dos materiais resgatados ou produzidos pelo
IHGB e pela SENE, por meio de uma bricolagem que permitia ao
Governo tanto resguardar e explicitar suas posições quanto continuar a participar do projeto centrado no Instituto.
Os mapas tornar-se-iam menos um instrumento científico
que uma superfície de escrita, um avatar da Nação que tinha de ser
continuamente atualizado a partir dos insumos externos, de modo
a se poderem contrapor respostas às representações concorrenciais
que se faziam do território nacional e a melhor figurarem no lugar
central das Exposições Universais em que o Brasil participaria, emoldurando com sua presença nossas contribuições a essas ‘Vitrines da
Civilização’. Metáforas da construção continuada de nosso projeto
de Nação, também as Cartas Gerais, no contato com seus congêneres
europeus, expunham às nossas elites os limites de sua invenção, do
mesmo modo como foi impossível tirar do mármore um Lacoonte a
gritar, ficava explicitada por essa visão de fora a subalternidade e soía
retornar para dentro do espaço da Nação a sua pedagogia.
74
A lógica do sentido do espaço da Nação:
a produção do espaço da Nação e das protorregiões no Terceiro
Conselho de Estado (1842-1848)
A proposta deste texto é trabalhar a ideia de que a tarefa de produção
do espaço da Nação no IHGB e na SENE se desenvolveu em meio
a certas dinâmicas, mecânicas e tensões, cujas demandas implicaram
na cognição de direções no espaço da Nação, e, no discernimento de
suas partes, as protorregiões ‘Sul’ e ‘Norte’.
Entendemos ser possível trabalhar este problema a partir da
utilização da ‘metáfora do teatro’, com a identificação dos ‘palcos’ de
produção do espaço (o IHGB, a SENE, etc.) e de um ‘teatro’ que
os reunia através da promoção de um ‘dispositivo de interlocução’, a
lógica do sentido daquilo que era produzido e daqueles que a produziam. No caso, para que o teatro de construção do espaço da Nação
existisse, pressupunha-se o entendimento recíproco de sua importância e o acordo para que este se firmasse continuamente como lugar
de entendimento e pertencimento recíproco, onde o que fosse produzido se manifestasse como objeto de elucubração, representação,
repetição e disseminação.
Pretendemos explicitar esta ideia por meio do estudo do Conselho de Estado, um dos palcos de produção que, junto com o IHGB
e a SENE, formavam o teatro de construção do espaço da Nação no
Segundo Reinado.
75
Cartografias Imaginárias
O estudo do Conselho de Estado justifica-se mesmo em razão
do problema que é o estudo do Estado brasileiro no Segundo Reinado, seja pela importância excepcional que essa instituição política
possuía como um lugar de construção e afirmação do pensamento
parlamentar, seja pelo pertencimento noutros palcos de produção
do espaço, seja por conta da influência, crescente no período estudado, sobre as ações do Estado e o funcionamento cotidiano da Secretaria dos Negócios Estrangeiros. Em razão desta complexidade e
de certas particularidades de nosso objeto de estudo a serem explicitadas, procuramos circunscrever este estudo a uma das seções que
compunham o Conselho de Estado, no caso, a ‘Seção de Negócios
da Justiça e dos Estrangeiros’ (doravante referida como SJNE) e ao
período entre 1842 e 1848, balizamento temporal que possibilita
comparar a produção do espaço no Conselho de Estado com as discussões ocorridas no IHGB. Assim, entendemos que esta abordagem permite contribuir para o grande debate a respeito do verdadeiro peso político do Conselho de Estado, debate este que se iniciou
ainda no século XIX a partir de várias análises de caráter administrativo e jurídico, como, por exemplo, aquelas feitas pelo Marquês de
São Vicente em Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição
do Império ou por Zacarias de Góes e Vasconcelos em Da natureza e
limites do Poder Moderador, encontrando continuidade nas obras de
autores mais tardios como Tavares de Lyra, José Honório Rodrigues
e José Murilo de Carvalho.
Nosso estudo foi feito a partir das atas da SJNE, uma das quatro seções que compunham o Terceiro Conselho de Estado32 desde
32
Em relação à denominação de ‘Terceiro Conselho de Estado’, utilizamos aqui a distinção
terminológica iniciada por José Honório Rodrigues que considerava o Conselho de Procuradores de 1822-1823 e o Conselho de Estado de 1823-1834, como, respectivamente, Primeiro
e Segundo Conselhos. Ver RODRIGUES, José Honório. Conselho de Estado: o quinto poder? Brasília: Senado Federal, 1978.
76
Renato Amado Peixoto
sua constituição (as outras seções eram a de Negócios do Império, de
Negócios da Fazenda e de Negócios da Guerra e da Marinha). A favor dessa aproximação se torna necessário argumentar contra a ideia
comum de que o exame das atas das seções possibilitaria apenas uma
amostra muito reduzida do pensamento do Conselho de Estado tanto pelo pequeno número de componentes das seções em relação ao
Conselho Pleno quanto pela fixidez organizativa das seções, que as
subordinaria à organização mesma do Conselho.
No caso, o Conselho de Estado podia ser integrado por até
24 conselheiros, os quais eram escolhidos em caráter vitalício pelo
Imperador dentre os mais proeminentes membros da classe política
do Império. Até 12 desses conselheiros podiam ser nomeados como
membros ordinários do Conselho e outros 12 como membros extraordinários, sendo que os primeiros diferenciavam-se dos segundos pela possibilidade de poderem ser dispensados de suas funções
por tempo indefinido, cabendo aos membros extraordinários suprir
dispensas, impedimentos ou obedecer a determinadas convocações.
Contudo, o total de conselheiros nunca chegou aos 24 previstos, tendo seu número médio oscilado durante o período de existência do
Conselho em torno de apenas 16, sendo que, no período estudado
(1842-1848), a SJNE nunca possuiu mais de três integrantes.
Ainda, coloca-se que o trabalho das seções dependia de consultas prévias que lhes eram endereçadas pelo Ministro de Estado
a cujo ministério a Seção estivesse relacionada, e a este Ministro a
Seção deveria oferecer um parecer que formalmente era apenas circunscrito ao âmbito da consulta imperial, ou seja, oferecia-se ao
Imperador um parecer que poderia ser acompanhado ou rejeitado.
Para que esse parecer fosse elaborado, o ministro deveria encaminhar à Seção correspondente uma minuta da consulta e designar
dentre seus membros um Relator dentre os membros da Seção, ca77
Cartografias Imaginárias
bendo também ao Ministro presidir a reunião na qual este parecer
fosse debatido.
Contra isso, é preciso esclarecer que o chamado Conselho Pleno se compunha pela reunião das Seções e que, portanto, a ação destas é que condicionava o funcionamento do Conselho de Estado e
ainda, que as Seções não eram de todo carentes de iniciativa, podendo se reunir sem convocação para propor ações dentre os assuntos
que lhes eram relativos. Note-se que o Ministro de Estado oferecia a
minuta a ser considerada e presidia a reunião de discussão, mas não
tinha direito de veto sobre o parecer, devendo considerar mesmo as
opiniões discordantes da maioria já que a minoria podia elaborar um
ou mais parecer em separado ao do Relator.
Na prática, pudemos observar que a presença dos conselheiros
nas reuniões secionais e mesmo o seu pertencimento eram bastante transitórios, fruto de uma mecânica de suplência oficiosa que foi
adotada no Terceiro Conselho de Estado à margem do regimento.
Assim, torna-se possível pensar as mudanças na composição da SJNE
dentro de um contexto de estratégias e/ou alianças que refletiam não
só as transições de poder ou a predominância de determinada corrente de pensamento político, mas também a importância da Seção
relativamente ao conjunto do Conselho.
Por outro lado, observamos que se tornou comum reunirem-se
outras Seções à SJNE, fazendo, deste modo, quase triplicar em várias
ocasiões o número formal de seus membros. Muitas vezes, inclusive,
o número de conselheiros que participavam das reuniões conjuntas com a SJNE ultrapassava o quantitativo necessário à reunião do
Conselho Pleno (eram necessários sete conselheiros em exercício efetivo para que este se reunisse) deixando antever a projeção e o peso
que teriam as discussões ali travadas, se não bastasse o fato de que, em
grande parte do período estudado, os partidos estivessem represen78
Renato Amado Peixoto
tados diretamente na SJNE por seus líderes. Portanto, por conta de
todas as observações anteriores, as atas da SJNE possuem a vantagem
de ser um material de análise, não apenas do pensamento político,
mas também das práticas do Terceiro Conselho de Estado e da elite
política do império.
Nesse sentido, também é possível balizar a influência e poder da
SJNE em relação a alguns dos ministérios a ela afetos, bem como a
reunião e o desenvolvimento das ideias que influíram na construção
do espaço nacional e nortearam as iniciativas de política externa, inclusive através do estudo da precedência e da importância que certos
problemas ou materiais de consulta tiveram em relação aos demais
porquanto uma das questões que podem ser colocadas a partir desta
pesquisa diz respeito ao real poder do Conselho de Estado no Império.
Considerando que o Conselho de Estado foi constituído no
decorrer da luta política que sinalizou a adoção da centralização e
da recuperação do Poder Moderador quando do chamado Regresso
Conservador, a constituição inicial da SJNE tenderia a refletir a predominância do Partido Conservador assim como as suas sucessivas
formações espelhariam a adesão do Partido Liberal às regras do poder e sua importância no jogo político. Conquanto essa formulação
possa ser considerada verdadeira no geral, já que no início do período
estudado todos os membros da SJNE pertenciam ao Partido Conservador ou a este eram simpáticos, o concurso de liberais à Seção
foi muito tardio, dando-se somente a partir de 1847.33 Mais, ainda
que o problema da influência dos partidos na tomada de decisões do
Conselho de Estado seja no mínimo discutível, haja vista que alguns
autores defendem mesmo uma independência tradicional dos conse-
Miguel Calmon du Pin e Almeida (Marquês de Abrantes) integraria a Seção a partir de
1847 e Antônio Paulino Limpo de Abreu (Visconde de Abaeté) a partir de 1848.
33
79
Cartografias Imaginárias
lheiros em relação aos partidos,34 alguns dados desta pesquisa permitem somar algumas reflexões à questão.
Primeiramente, notamos que o predomínio conservador na
composição da SJNE foi contrabalançado, especialmente nos anos
de governo liberal (1844-1848), por meio de um mecanismo de suplência e de reunião das Seções que permitiu a presença de integrantes do Partido Liberal e, inclusive, dos líderes dos dois partidos, na
maioria das reuniões da SJNE.35
Em segundo lugar, e o que não é de modo algum novidade,
observamos que certos posicionamentos são mais comuns dentre os
membros de um partido do que no outro, mas, não identificamos
em nenhuma das cento e quinze atas analisadas uma oposição estrita
entre membros dos dois partidos.
Em terceiro lugar, atentamos que o pensamento sobre o espaço
na SJNE foi construído mais através do debate e da apresentação de
certas correntes de pensamento que estavam representadas no Parlamento e que perpassavam os dois partidos políticos do que por uma
suposta independência dos conselheiros.
Em quarto lugar, os resultados de nossa pesquisa se contrapõem
à ideia de que a política externa era o ponto de consenso entre os
partidos,36 uma vez que, apesar do predomínio absoluto dos conservadores na Seção durante grande parte do período pesquisado, o
exame das Atas dá conta de um alto percentual de discordâncias nas
Veja-se, por exemplo, CARVALHO, José Murilo de. Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1988. p. 110-111.
34
Verifica-se através desse mecanismo de suplência, a presença nas votações da SJNE dos seguintes liberais: Antônio Paulino Limpo de Abreu (Visconde de Abaeté), Francisco de Paula
Sousa e Melo, Manuel Alves Branco (2º Marquês de Caravelas) e José da Costa Carvalho
(Marquês de Monte Alegre).
35
36
Alguns autores defendem ter havido “Conciliação” em política externa, decorrente da
consciência nacional e que teria precedido a conciliação interna, veja-se, por exemplo: CERVO, Amado Luiz. O Parlamento brasileiro e as Relações Exteriores (1826-1889). Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1981. p. 11.
80
Renato Amado Peixoto
reuniões da Seção, em alguns anos apontando praticamente o ponto
de ruptura, conforme podemos apreciar na Tabela 1.
Ano
Divergências
Convergências
% de Divergências
1842
0
7
0%
1843
3
2
60%
1844
7
11
39%
1845
8
18
31%
1846
15
28
35%
1847
1
11
8%
1848
3
1
75%
Total
37
+
78
= 115
32%
Tabela 1. Divergências e convergências nas consultas da SJNE (1842-1848).
Observe-se que os anos de 1843 e 1848 são os que apresentam o
maior número de divergências no período, mas sucedendo aos anos
de maior convergência e, ao mesmo tempo, de menor número de
consultas à SJNE.
Num primeiro momento de análise, sabe-se que o mês de setembro de 1848 marca a retomada do governo pelos Conservadores,
marcando o fim de um período de grande instabilidade na Secretaria
de Negócios Estrangeiros, quando cinco titulares exerceram o ministério em menos de dois anos.37 Ao mesmo tempo, 1849 será o ano
em que o Brasil começa a abandonar a estrita neutralidade no Prata
e passa ao intervencionismo, enquanto que se resolve pelo término
do Tráfico de Escravos. Nesse sentido, muitas vezes se tem argumen37
Passaram pela pasta dos Negócios Estrangeiros, de janeiro de 1847 até setembro de 1848,
os seguintes ministros: Bento da Silva Lisboa (2º Barão de Cairu), Saturnino de Sousa e Oliveira, José Antonio Pimenta Bueno, Antônio Paulino Limpo de Abreu e Bernardo de Sousa
Franco.
81
Cartografias Imaginárias
tado, como exemplos de um diferencial entre os partidos em política
externa, que a neutralidade e o fim do Tráfico foram defendidos com
mais afinco pelos liberais, enquanto que os conservadores eram partidários do intervencionismo e da manutenção do Tráfico. Entretanto,
por que não se opuseram antes estes dois grupos na SJNE, se ali estiveram representados os seus líderes e se este era o lugar por excelência
de discussão da política externa? Por que o ano de 1847 apresentou
apenas 8% de divergências? Por que rareiam ainda as consultas a
SJNE entre 1846 e 1848?
Para poder explicar tais fatos, mais o elevado quantitativo de divergências nos anos anteriores a 1847, seria necessário que se aceitasse a existência de grupos, ou melhor, de correntes de pensamento que
se sobrepusessem aos partidos e que houvesse alguma concorrência
entre essas correntes. Acessoriamente, para se explicar a diminuição
abrupta das consultas à SJNE (90,7% entre 1846 e 1848) seria preciso que alguma mudança no relacionamento com a Secretaria dos
Negócios Estrangeiros a impusesse, já que esta decorreria da iniciativa ministerial.
Num segundo momento de análise, note-se que, entre 1842 e
1843, existe, na SJNE, um aumento no quantitativo de divergências
da ordem de 60%, ainda que, nesse momento, a predominância conservadora fosse quase que absoluta. Neste raciocínio, poder-se-ia entender este incremento como um indício de que uma nova corrente
de pensamento tivesse obtido representação na SJNE, mesmo que
formalmente não se tivesse alterado sua composição. Portanto, seria
necessário que os mecanismos de suplência e de reunião das seções
do Conselho de Estado, em função de algum arranjo interno, fossem
os responsáveis por esta mudança.
Examinando as Atas da SJNE, observa-se que novos conselheiros passaram a integrar as reuniões da Seção a partir desse período,
82
Renato Amado Peixoto
sendo que um destes, Bernardo Pereira de Vasconcelos, se engajaria
muito mais profundamente e com maior assiduidade que os demais:
Vasconcelos participou de praticamente todas as reuniões da Seção
até 1848, sendo que se pode traçar um esboço dessa trajetória através
dos dados organizados na Tabela 2.
Relatores
1842-45
1846-48
Total
Bernardo Pereira de Vasconcelos
23 (41%)
37 (63%)
60 (52%)
Caetano Maria Lopes Gama
14 (25%)
10 (17%)
24 (21%)
Honório Hermeto Carneiro Leão
7 (13%)
8 (14%)
15 (13%)
José da Costa Carvalho
7 (13%)
7 (6%)
José Cesário de Miranda Ribeiro
1 (2%)
1 (1%)
Miguel Calmon du Pin e Almeida
2 (3%)
2 (2%)
Antônio Paulino Limpo de Abreu
2 (3%)
2 (2%)
Desconhecido
Total
3 (5%)
56 (49%)
3 (3%)
59 (51%)
115
Tabela 2. Relatores das consultas da SJNE (1842-1848).
A partir do exame da Tabela 2, podemos perceber que Vasconcelos foi o relator de nada menos que 52% das consultas no período
1842-1848, número este que sobe para 56% se consideramos apenas
a partir de 1843, quando Vasconcelos começa a participar das reuniões da SJNE. Entre 1846-1848, Vasconcelos exerceria a função de relator em 63% das consultas, um número impressionante, ainda mais
se for considerada a sua progressiva decadência física. Paralelamente
a este engajamento progressivo de Vasconcelos na Seção, passam a se
reduzir as ocasiões em que o D. Pedro II restitui a matéria de consulta
ao exame do Conselho Pleno,38 o que provavelmente é um indicador
REZEK, José Francisco. Prefácio do segundo volume. Conselho de Estado: 1842-1889
- Consultas da Seção dos Negócios Estrangeiros (v. II: 1846-1848). Brasília: Câmara dos
38
83
Cartografias Imaginárias
tanto do maior prestígio da Seção como do alcance dos argumentos
do Relator.
Neste processo, pode-se observar ainda uma mudança paulatina
no relacionamento da SJNE com a SENE que irá se caracterizar pelo
esvaziamento das funções diretivas e administrativas da SENE e pela
transferência de parte destas para a SJNE. Tais ocorrências desmentem a ideia de que o Conselho de Estado possui apenas uma função
consultiva e demonstram que efetivamente a SJNE se torna um dos
principais agentes da política externa brasileira transubstanciando o
pensamento sobre o espaço ali produzido em ação sobre o território
enquanto política de Estado.
Ao iniciar as suas atividades, em 1842, a postura da SJNE em
relação à SENE era ainda a de mero organismo consultivo e observador, sendo seus relatórios, então, praticamente inócuos.39 O começo
dessa transformação já ser detectado em 1844, quando os pedidos de
instruções dos diplomatas estrangeiros passam a ser encaminhados
pela SENE à SJNE,40 prosseguindo pela emissão de pareceres que
efetivamente instruem o início da reorganização do serviço diplomático brasileiro, introduzindo os princípios do mérito e da competência para a admissão na carreira diplomática e, mais importante, vinculando a demissão do pessoal da SENE à chancela e julgamento da
SJNE.41 Já a partir de 1845, também as instruções aos diplomatas seriam minuciosamente fornecidas pela SJNE,42 que passaria também
Deputados, p. 14.
39
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
11/03/1842.
40
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
28/06/1844.
Passariam a ser exigidas a fluência nas línguas francesa e inglesa, o conhecimento da Geografia e da História do Brasil e do Direito. CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e
Negócios Estrangeiros. Atas..., 10/07/1845.
41
42
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
84
Renato Amado Peixoto
a opinar mesmo sobre questões triviais do funcionamento da SENE,
tais como gratificações, emolumentos e regulamentos consulares.43
A mudança na interação entre os dois órgãos se tornaria ainda
mais aguda entre os anos de 1846 e 1847, quando a própria estrutura da diplomacia do Império passaria a ser organizada a partir de
regulamentações e modificações urdidas no âmbito da SJNE. 44 Neste período também se elevou o tom das discussões sobre estratégia,
relações externas e o espaço nacional, e, sintomaticamente, Bernardo
Pereira de Vasconcelos serviu como relator em praticamente todos os
pareceres onde se alterou substancialmente o poder e a influência da
SJNE sobre a SENE.
Portanto, constata-se que o engajamento de Vasconcelos coincide com uma mudança progressiva no relacionamento da Seção
com a Secretaria e poder-se-ia aventar que representaria a ascensão e
o predomínio de uma determinada corrente de pensamento sobre o
espaço no Conselho de Estado.
Em 1842, no Conselho de Estado, a principal corrente de pensamento sobre espaço afirmava-se em torno das ideias da afirmação
da soberania e da construção econômica da nação, cujas origens
derivavam da discussão dos problemas decorrentes dos tratados de
comércio firmados nas décadas de 1820 e 1830. A maioria dos conselheiros entendia então que convinha sacrificar parte da soberania em
razão da grande necessidade de capitais e de população que somente
poderia ser satisfeita pela imigração. Nesse período, embora houvesse
quem defendesse a reciprocidade e o fim dos privilégios,45 os parece30/07/1845.
43
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
09/03/1847, 06/05/1847, 18/10/1847, 27/09/1848 e 13/12/1848.
44
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
11/02/1846 e 18/10/1847.
45
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
85
Cartografias Imaginárias
res foram, em geral, complacentes em relação aos interesses dos países
europeus. No que diz respeito ao espaço nacional, a SJNE, como o
restante do Conselho de Estado, reconhecia então desconhecer o território da nação e seus limites, pelo que, então, passava-se a justificar a
recusa em celebrar tratados com os países limítrofes.
A partir de 1843, com Bernardo Pereira de Vasconcelos, começa
a se consolidar um entendimento que passa a identificar os interesses
comerciais das potências mais com o engrandecimento de seu poder
marítimo e militar, entendendo serem estes negativos aos interesses
nacionais.46 Defende-se especialmente uma nova relação do Brasil
com as potências europeias: os acordos que forem celebrados com
estes países deveriam possuir compensações reais e condições iguais
para o país, jamais tolhendo as iniciativas do Legislativo “na adoção
de medidas apropriadas ao desenvolvimento da indústria, bem-estar
e prosperidade do Brasil” (ATAS..., 1844a). Embora de certo modo
essa ideia já estivesse presente na repulsa aos tratados de comércio,
naquelas discussões ainda não era decisivo o argumento concorrencial com os interesses da Nação. Este entendimento irá, doravante,
constituir o cerne de um pensamento da identidade nacional que se
formará na Seção, ao qual será agregada a compreensão de um espaço
que é remetido ao legado da metrópole e que reflete as discussões das
variáveis externas no Parlamento.
A animosidade contra a Inglaterra é um dos vetores dessa produção, que contrapõe o estrangeiro ao nacional e onde se advoga a
resistência e a exaltação dos valores e instituições.47 Neste sentido,
passa-se a identificar o nacional e a política externa brasileira no le04/11/1842 e pareceres anexos de 20/12/1842 e 11/07/1843.
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
18/09/1843.
46
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
23/02/1844.
47
86
Renato Amado Peixoto
gado das tradições portuguesas, resultando, portanto, em considerar
opostos ao Brasil todos aqueles que habitam as antigas colônias hispânicas, uma vez que são considerados indistintamente espanhóis e
possuidores de uma rivalidade intransponível e rancorosa contra os
portugueses.48 A antiga impressão portuguesa das fronteiras naturais
é interpretada então nesse contexto: recupera-se, por exemplo, a ideia
da reincorporação da Cisplatina, que pertencera ao Brasil por “livre e
espontânea vontade” e do qual fora separado graças ao Imperador D.
Pedro I ter cedido aos impulsos dos “sentimentos liberais e generosos
do seu coração.” (ATAS..., 1844b). 49
A essa argumentação irá contrapor-se outra corrente de pensamento, cujo maior expoente identificamos em Caetano Maria Lopes
Gama. Esta corrente era favorável a uma aproximação e identificação com a Europa, culpando as divisões políticas e o mau estado das
finanças públicas pela situação nacional. Essa fraqueza conjuntural
fatalmente levaria à agressão externa e ao consequente esfacelamento
do território, tornando urgente, por conseguinte, incentivar e acelerar reformas internas que, ao mesmo tempo, servissem para fortalecer a autoridade central e proteger a propriedade. Essa corrente de
pensamento considerava ainda o tráfico de escravos como um elemento retardador da indústria e da riqueza nacional, por inibir a imigração europeia e inviabilizar o crescimento da população livre e o
entendimento com a Inglaterra.50 A continuação do Tráfico, além de
estimular a mistura de raças, poderia ser a ruína da Monarquia e das
48
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
02/07/1844.
A ideia da independência da antiga Província Cisplatina nunca foi bem aceita por determinados setores das elites. José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São Leopoldo,
único Conselheiro de Estado a ser exonerado em toda a história do Império, deveu sua exoneração justamente aos desdobramentos desse episódio.
49
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
28/06/1844.
50
87
Cartografias Imaginárias
elites, “o Cavalo de Tróia” que traria para o Brasil “os defensores das
instituições do Haiti.” (ATAS...,1846). Quanto ao espaço nacional, a
região do Prata, por motivos políticos e econômicos, era considerada
prioritária e a intervenção, seja diplomática ou militar, era advogada
como um instrumento necessário, salientando-se, porém, para essa
ação, a necessidade do entendimento e mesmo do alinhamento do
Brasil com a Europa.
Diferentemente da argumentação de Lopes Gama, o pensamento explicitado por Vasconcelos era pragmático, pois defendia a
neutralidade do Brasil nos conflitos do Prata ou na Amazônia como
um instrumento ditado pela ocasião para que se acumulassem as forças materiais necessárias para um futuro confronto, posto que fatal.
A própria escravidão, se não o Tráfico, eram considerados inevitáveis em função de um contexto que incluía a falta de braços para a
agricultura; as dificuldades na criação de leis para a venda de terras
e imigração de colonos e pelo apoio que o Tráfico possuía por parte
das elites produtoras tanto no próprio Parlamento quanto no nível
local que, por conta da direção da eleição dos juízes de paz, garantia
uma tolerância completa ao tráfico, especialmente nos locais de desembarque.51
O desconhecimento do espaço nacional não impedia que as
visões dessas duas correntes de pensamento convergissem em certos
pontos. Os limites de 1777 eram rejeitados por ambas as correntes,52
uma postura calculada para possibilitar uma futura expansão brasileira, tanto pela interpretação que davam ao instrumento jurídico do
Uti Possidetis, tido como circunstancial e positivo, quanto pela iden51
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
10/10/1846.
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
23/06/1845.
52
88
Renato Amado Peixoto
tificação com o antigo pensamento estratégico português que priorizava a consolidação de posições em lugar de ocupação do território.
A fronteira não era entendida, portanto, como um limite reconhecido, delimitado e verificado, mas como um espaço granular, distendido e projetável. Entretanto, um dos motivos de distanciamento entre
as duas visões era a ideia de Vasconcelos de que os tratados com os
países vizinhos seriam possíveis na medida em que, no interesse nacional, projetassem ou resguardassem a influência brasileira. Nesse
raciocínio, a SJNE, sob a liderança de Vasconcelos, tomaria a iniciativa de propor um Tratado de amizade, comércio, navegação e limites
com o Paraguai,53 assim como a negociação de limites com a Venezuela, a fim de se diminuir a pressão britânica e impedir a expansão
territorial daquela potência na Amazônia.54
Ainda uma terceira corrente de pensamento estaria também
representada na SJNE e tendo como maior expositor Francisco de
Paula Sousa e Melo. Para essa corrente, a neutralidade não era apenas
uma condição para o crescimento do Brasil, mas como a única postura possível diante da constatação da pouca importância do país nos
cenários americano e mundial e dos insucessos recentes e passados.
Dadas estas condições, cabia ao Brasil construir com os seus vizinhos
as condições de convivência e prosperidade material, inclusive no
respeito ao território. Para que fosse possível a resistência às pressões
externas era ainda necessário abrir novas vertentes diplomáticas, especialmente estreitando-se as relações com os Estados Unidos e a
Rússia, vistos como nações cujos interesses coincidiam com os do
Brasil e que seriam possuidores de peso e influência sobre a política
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas..., 25/06/1845,
note-se que não estavam presentes à reunião os representantes da posição contrária.
53
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
06/10/1846.
54
89
Cartografias Imaginárias
externa da Inglaterra.55 Ainda que esta corrente tenha origens no movimento parlamentar antitratadista cujas ideias esposou e defendeu,
a Inglaterra não era vista como um concorrente, mas antes como um
exemplo a ser copiado e um país com o qual o Brasil devia buscar a
colaboração e o entendimento. De certo modo, procurar-se-ia elaborar um pensamento que privilegiasse as relações comerciais em lugar
da diplomacia estrita e, portanto, nesta ótica se considerava imperativo superar as dificuldades que a última traria à primeira.
As variáveis da política externa teriam também grande influência na produção do espaço e no desenvolvimento das tensões e das relações entre as três correntes de pensamento. O aumento das pressões
inglesas correspondeu à tendência de aproximação entre as correntes
na SJNE. Por exemplo, entre novembro de 1844 e janeiro de 1845,
produziu-se uma série rara de decisões unânimes contra as posições
inglesas, sobretudo no tocante às Comissões Mistas. Refletindo essa
inclinação, a argumentação dos pareceres relativos à extinção das
Comissões Mistas se constituiria, em grande parte, no amálgama das
principais ideias esposadas pelas correntes. Seriam invocadas em sua
defesa, tanto a obstrução do comércio, quanto a soberania e a falta
de braços para a agricultura. Construção semelhante também embasaria o progressivo abandono da ideia de neutralidade no Prata – a
necessidade de evitar o engrandecimento argentino, evocada como
um legado da estratégia portuguesa, misturava-se numa argumentação que incluía o temor da possibilidade de intervenção externa
e fracionamento do território nacional e até mesmo a concorrência
comercial sofrida pelo Brasil.
O exercício dessas dinâmicas permitiria evitar o rompimento de
relações com a Inglaterra, o que chegou a ser posto em discussão em
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
23/12/1845 e 23/06/1845.
55
90
Renato Amado Peixoto
determinados momentos, bem como lograria impedir o engajamento precoce no Prata. Ainda que não se consolidassem as alternativas
de Vasconcelos ao Tráfico56 e a estratégia do Conselho de Estado fosse limitada pela incapacidade de reação às agressões inglesas,57 o crescente isolamento frente às posições europeias levaria à produção de
um ideário nacionalista por meio da identificação com o legado da
Metrópole e com a afirmação e diferenciação da Nação no cenário
americano e mundial: o Brasil era idealizado como “o supremo árbitro dos novos Estados da América ex-espanhola e o rival da grande
potência americana outrora colônia inglesa.” (ATAS..., 1845). Estas
ideias avançariam inclusive no sentido de se diferenciarem os interesses da monarquia daqueles do Estado brasileiro: as ideias de reciprocidade de tratamento e parentesco deveriam ser substituídas pelas do
realismo político e dos interesses comerciais. Inclusive, como parte
deste raciocínio estaria incluído dentre os deveres que cabiam aos
membros do corpo diplomático brasileiro no exterior, “influir, e até
dirigir a administração em benefício de sua nação, sem que, contudo,
de qualquer modo a comprometa, e lhe suscite os menores embaraços e dificuldades” (ATAS..., 1847).
Por conseguinte, a produção do espaço no Conselho de Estado
durante o período 1846-1848 não deve ser analisada apenas através
da ótica do pensamento Liberal ou Conservador, mas no conjunto
dos embates de várias influências que se sublimaram na SJNE. Parte
destas ideias surgiram no Parlamento ainda no Primeiro Reinado e
encontraram seu desenvolvimento original no exercício das questões
concretas que se apresentaram ao Segundo Conselho de Estado.
Através, por exemplo, e de acordo com o Zollverein ou da imigração chinesa. Ver CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas..., 17/03/1846 e
30/05/1846.
56
CONSELHO DE ESTADO. Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Atas...,
11/04/1846 e seguintes.
57
91
Cartografias Imaginárias
O discernimento de que o espaço da Nação deveria se orientar
pelo acordo entre as suas partes se deu a partir do sentido tomado
naquelas mesmas discussões: não foi à toa que nas primeiras digressões sobre a guerra com as Províncias Unidas do Prata se passasse a
chamar a esta de ‘Guerra do Sul’; que nas discussões sobre as províncias açucareiras fossem estas aclaradas como ‘do Norte’; e, que o
estabelecimento das Faculdades de Direito no Brasil contemplasse,
salomonicamente - segundo a proposta de Fernandes Pinheiro, as
províncias de São Paulo e Pernambuco - o Sul e o Norte.
A Corte passou a ser chamada de ‘Município Neutro’ em 1834,
se reconhecendo o local de reunião das elites provinciais como o centro do acordo em torno da Nação, e isto estabelecia a lógica do sentido do seu espaço: suas direções no espaço e o discernimento das suas
partes, as protorregiões Sul e Norte.
Uma das suas resultantes seria um instrumento de expansão do
espaço nacional flexível, o Uti Possidetis e, a recusa dos tratados firmados por Portugal decorreria exatamente das vantagens enxergadas
nesse processo.
Mas, a originalidade desta lógica do sentido vai além da busca
de uma representação do espaço da Nação, ou ainda da recusa dos
modelos estrangeiros e da sustentação da soberania: ela transtorna
a busca da identidade nacional e se torna um ônus recorrente para o
pensamento e a consolidação do espaço da Nação.
A partir do exame das correntes de pensamento no Terceiro
Conselho de Estado, compreendemos que a produção do espaço da
Nação se deu em meio às tensões e dinâmicas inerentes às características dessa instituição e que estas foram determinantes para a ressignificação do pensamento de espaço produzido na SENE e no IHGB.
Por conseguinte, a ideia de ‘palco de representação’ estaria minimamente caracterizada e, a sua importância justificada, na medida em
92
Renato Amado Peixoto
que pudemos compreender que a constituição de uma dinâmica incomum na SJNE propiciou demandas e interlocuções também incomuns junto à SENE. E, tudo isto nos permite inferir, finalmente, que
a consolidação de um ‘teatro de construção do espaço’ dependeu da
articulação de um ‘dispositivo de interlocução’ e que isto foi afinado
nas atuações e elaborações dos vários ‘palcos’.
93
Impertinentes, desinteressados
ou sem escolha:
a produção no IHGB de uma história dos demarcadores
e das demarcações Portuguesas no Norte do Brasil
Uma das propostas de Roger Chartier no seu livro ‘À Beira da Falésia’
dizia respeito à constituição de uma aproximação da história em relação à filosofia e à crítica literária a fim de criar um terreno comum,
“aberto à análise epistemológica”, e um método de análise que pressupusesse em seu centro os “dispositivos de representação que dão a ler
ou a entender os textos (ou ver as imagens)”, de modo a “compreender como as formas materiais que sustentam os discursos contribuem
para a significação que os diferentes leitores – ou espectadores – lhes
atribuem” (CHARTIER, 2002).
Nosso propósito, a partir deste texto, é desenvolver essa proposta a partir de uma discussão epistemológica dos dispositivos que possibilitaram a produção de uma história do espaço da Nação no século
XIX, considerando que a aproximação defendida por Chartier pode
ser feita a partir de textos literários que já considerem também uma
interlocução com a filosofia. Essa abordagem visa a incrementar tanto o que Chartier chama de ‘economia da escritura’, a saber, o exame
da ‘materialidade’ dos textos e da ‘socialidade’ dos traços impressos
nas obras; quanto tornar mais apurada uma ‘economia da escrita’, no
caso, por meio de melhor entender os dispositivos de representação
95
Cartografias Imaginárias
onde deslizam as ‘diferenças’ a ação dos produtores da história e a
produção das fontes.
As limitações da operação historiográfica
Como vimos anteriormente, a construção historiográfica do espaço
nacional no IHGB trabalhou a ideia de uma construção pretérita da
nação e da identidade nacional, descrevendo por meio de suas narrativas a adesão de certos indivíduos, distinguidos por sua nobreza
e abnegação a serviço do bem comum, a uma ideia de nacionalidade
que imprimia mesmo o sentido de suas ações. Essas ações seriam justificadas pela clarividência mesma desses indivíduos que sabiamente
articulariam por meio de seus esforços a ação do estado português em
direção à construção do território brasileiro.
Nesse sentido, a ação dos demarcadores dos limites do Tratado
de Santo Ildefonso foi construída no IHGB justamente de modo a
consolidar a ideia de que a experiência das Demarcações conectava-se
a um esforço continuado da metrópole que se teria iniciado já com
o Tratado de Tordesilhas e que se encontrava então inserido numa
grande estratégia da administração pombalina que, além de redefinir,
guarnecer, configurar e harmonizar as fronteiras no período colonial
possibilitava inscrever no espaço o território do Brasil antes mesmo
de sua independência.
Como essa construção historiográfica se consolida a partir da
articulação de dispositivos de representação que constituem a construção pretérita do espaço nacional, valer-nos-emos de um dos autores literários que melhor utilizou esses dispositivos, H. P. Lovecraft,
e de um texto onde esses dispositivos foram bem constituídos. Essa
escolha se justifica ainda na medida em que Lovecraft foi sabidamen96
Renato Amado Peixoto
te um dos leitores de Schopenhauer e que a influência desse filósofo
se faz sentir no conjunto de sua obra.
No livro ‘O Caso de Charles Dexter Ward’, o personagem principal do livro foi descrito como um antiquário jovem e inteligente
que, obcecado pelo ocultismo, renega a universidade, mas não o interesse pelo passado e que, em meio as suas novas atividades, descobre ser possível restaurar literalmente uma parte do passado, no caso,
resgatando por meio de uma evocação mágica a presença material de
Joseph Curwen, um antepassado seu.
Podemos entender essa transição de Charles rumo ao ocultismo como uma metáfora da própria concepção do ‘fazer a história’
que, abandonando a articulação do passado proporcionada pela coleção deixa de se subordinar a um sentido do tempo e espaço imposto pela natureza, voltando-se para uma ação de produção que visava
a descortinar, subverter mesmo aqueles sentidos, por conta de uma
imprescindível necessidade de operar o passado e “revolucionar da
maneira mais profunda a atual concepção das coisas”. Esta necessidade é bem enfatizada por Lovecraft, conforme podemos observar
na passagem do livro na qual se informa que o interesse de Charles
por seu antepassado foi desencadeado justamente a partir da leitura
de um trecho do diário de Joseph onde estava transcrito o seguinte
versículo bíblico: “Nos anos por vir aparecerá aquele que olhará para
trás e usará os sais e a matéria dos sais que tu lhe deixares” ( JÓ 14, 14
apud LOVECRAFT, 1997).
Contudo, ainda que o resgate de Joseph do esquecimento constitua uma ação verdadeiramente prometeica, a metáfora do ocultismo
nos relembra a irracionalidade de sua origem: o afã do conhecimento
levaria à necessidade de se encontrar e se estabelecer um começo, o
primeiro abismo, o qual obrigatoriamente não poderia existir independente do demiurgo. Assim, ainda que os atributos da narração e
97
Cartografias Imaginárias
da representação tenham sido separados por Lovecraft de uma razão
e de uma consequência que eram operados pela ação humana, consolidar-se-ia ainda mais a mesma ordem, uma vez que se constituía uma
razão divina e insondável como fundamento primeiro a ser perscrutado ou a ser representado por meio dessa mesma ação.
O primeiro indício dessa questão surge para o leitor na medida
em que este descobre que o antepassado de Charles, ameaçado pela
perseguição às bruxas, já havia feito no passado outra operação mágica de modo a garantir sua ressurreição no futuro. Como o sucesso
da ressurreição de Joseph dependia exclusivamente de que a evocação
fosse feita por um seu descendente, a operação mágica de Joseph consistia mais em construir o elo entre a ressurreição e esse descendente,
ou seja, sem que Charles soubesse, sua participação na evocação de
Joseph já havia sido garantida no passado por outra operação mágica.
Note-se, nesse ponto, a articulação narrativa e representacional constituída por Lovecraft: uma primeira operação é capaz de condicionar
e mesmo constituir outras operações.
Quando Joseph é materializado, Charles finalmente descobre a
operação anterior, apresentando-se para o leitor um segundo indício
da questão: o sucesso final da operação, no caso, a permanência de
Joseph no mundo real dependia da eliminação de Charles, situação
que era muito facilitada pela incrível semelhança física entre os dois
personagens, assim, Charles pôde ser friamente assassinado por Joseph, que passaria depois a assumir integralmente a identidade de seu
descendente.
A assunção de Joseph seria uma metáfora da atuação dos historiadores na operação de articulação dos dispositivos de representação, o que nos permite remeter essa metáfora à observação de Schopenhauer sobre o que ele chama de paradoxo da Razão de Schelling:
embora esta fosse desvinculada por Schelling da Escolástica, voltava98
Renato Amado Peixoto
-se para a ideia do abismo valentiniano, da profundidade sem fundo,
do insondável abyssus que se reproduzira pela comunhão dos princípios opostos e que se constituía como um mistério a não ser deslindado (SCHOPENHAUER, 1981, p. 47). Por meio disto, poderíamos
compreender que o tempo e espaço podem ser articulados não apenas enquanto elementos da narração, mas também como materiais
de sua própria representação, a qual pode ser instituída como um
‘momento eterno’, uma fração de tempo e espaço operacionalizada,
vinculada por seus operadores a uma produção histórica.
Após o assassinato de Charles, um terceiro indício se apresenta ao leitor: a semelhança de Joseph com Charles não evitaria o seu
desmascaramento pelos amigos do antiquário, uma vez que esses perceberam que o passado era por demais “evidente em cada palavra e
gesto” de Joseph, ou seja, eram evidentes os resquícios da operação.
Contudo, não bastava o desmascaramento para que Joseph fosse derrotado, já que a evocação reificara a presença sobrenatural do velho
bruxo e essa somente poderia ser contrariada por mais uma operação
mágica. Disto nos alertaria Lovecraft: “não se tratava de uma simples
dissolução, mas de uma transformação ou recapitulação” (LOVECRAFT, 1997, p. 171).
Restou aos amigos de Charles, na presença mesma de Joseph,
refazer ao contrário a primeira operação mágica, ao fim da qual, e não
sem resistência, o velho bruxo jazia “espalhado sobre o chão como
uma leve camada de fino pó cinza-azulado”.
Por conseguinte, a metáfora da recapitulação nos instrui tanto
das limitações da operação historiográfica quanto de sua força, estabelecida pela sua própria irracionalidade constitutiva: ao final, somente o retorno à história permitiria dissolver o passado já reificado
como momento eterno.
99
Cartografias Imaginárias
O problema das Demarcações do Tratado de Santo Ildefonso
Uma vez que não desejamos alongar este texto pela discussão da
produção historiográfica do espaço nacional, no século XIX, centraremos seu argumento no problema das Demarcações do Tratado
de Santo Ildefonso, antecipando já que os resultados dessas foram
sobrevalorizados a partir dessa operação historiográfica, assim como
procuramos perscrutar os anseios e os interesses dos demarcadores, já
que estes têm sido interpretados usualmente no sentido de ratificar
tanto os resultados quanto a construção mesma do espaço nacional.
Em primeiro lugar, é necessário salientar que a cartografia portuguesa, nos séculos XVII e XVIII, já se encontrava completamente
decadente em relação aos avanços realizados na Europa: se o segredo de cartografia impediu que a partir dos sucessos das explorações
do século XVI se estabelecesse uma escola cartográfica dinâmica e
aberta em Portugal, a união com a Espanha esvaziaria esses esforços
em função de sua transferência de Lisboa para Madri. Com o subsequente desenvolvimento das técnicas de gravação em cobre e com a
proliferação dos ateliers cartográficos no norte do continente, a cartografia manuscrita se tornaria praticamente obsoleta e os processos
cartográficos mais avançados, por serem muito dispendiosos, tornariam a produção e divulgação dos mapas um monopólio dos estados
mais ricos de seu tempo. A cartografia em Portugal, no século XVIII,
tornou-se, por conseguinte, limitada à cópia dos mapas e atlas estrangeiros ou a confecção de mapas topográficos. Este é o cerne do problema das demarcações; era necessário realizar observações e cálculos
científicos in loco que pudessem ser acreditados pela comunidade
cartográfica, uma vez que os mapas haviam se tornado incapazes de
legitimar pretensões territoriais se não fossem embasados por uma
construção científica acreditada.
100
Renato Amado Peixoto
Para isso, tornou-se necessário designar oficiais de alta patente,
engenheiros militares e outros profissionais deslocando os poucos elementos disponíveis no Império português para intermináveis comissões no interior do Brasil, praticamente fixando-os à Colônia. Mas,
mesmo assim, o pouco desenvolvimento das ciências matemáticas e
naturais em Portugal dificultaria o exercício dessa nova cartografia.
Nesse sentido, a quase totalidade dos autores portugueses58 considera
que, após um período de florescimento no século XVI, a matemática portuguesa teria entrado num período de decadência continuada.
Esse período seria, inclusive, caracterizado por alguns autores, como
um “deserto” intelectual que perduraria até 1760, quando, a partir
da reforma pombalina da Universidade de Coimbra, novamente a
matemática alcançaria algum nível, mesmo assim, note-se que num
período de vinte e oito anos (de 1772 até 1800) foram concedidos
apenas vinte graus de doutor em ciências matemáticas, sendo que
desses doutores, apenas dois eram brasileiros. Segundo essa mesma
bibliografia, a decadência das ciências matemáticas em Portugal teve
várias causas, a saber, a predominância dos jesuítas na Educação secundária e universitária; os privilégios concedidos à formação jurídica em detrimento do estudo técnico; a atitude mental e cultural
predominante em Portugal no período, que opunha os interesses
religiosos e políticos então predominantes às inovações científicas.
58
Veja-se o estudo de QUEIRÓ, João Filipe. A Matemática. In: História da Universidade em
Portugal. v.1. parte II. (1537-1771). Lisboa: Fund. Gulbenkian, 1993.; no qual são citadas as
seguintes obras sobre a história da Matemática em Portugal: ‘Ensaio histórico sobre a origem
e progressos das Matemáticas em Portugal’, de Francisco de Borja Garção-Stockler, editada
em Paris, no ano de 1819; ‘Memórias históricas sobre alguns Matemáticos Portugueses, e
Estrangeiros Domiciliários em Portugal, ou nas Conquistas’, de Antônio Ribeiro dos Santos;
‘Les Mathématiques en Portugal’, editada em Coimbra, no ano de 1909, de Rodolfo Guimarães; ‘História das Matemáticas em Portugal’, de Francisco Gomes Teixeira, editada em Lisboa, no ano de 1934); ‘Memórias de Literatura Portuguesa’, publicadas pela Academia Real
das Ciências de Lisboa, tomo VIII, parte I, 1812, pp. 148-229; ‘Matemática e matemáticos
em Portugal’, de Luís de Albuquerque e ‘As Matemáticas em Portugal - da Restauração ao
Liberalismo’, de J. Tiago de Oliveira.
101
Cartografias Imaginárias
Tal contexto corroboraria, por conseguinte, a situação de penúria extrema da cartografia portuguesa no século XVIII, que carecia
de meios, pessoal e mesmo de obras: a própria cobertura topográfica
e cartográfica de Portugal era extremamente reduzida se comparada
a de outros países, como, por exemplo, a França, tendo começado a
ser implementada somente a partir de 1851, quando se criaram as
condições de consenso político e estabilidade institucional que permitiriam aprofundar os esforços de modernização e de consolidação
territorial do estado português.59
Ainda em 1780, segundo a análise do mais capacitado engenheiro português da época, Francisco João Rocio, muito pouco do
que se havia produzido sobre o território da Metrópole podia ser elevado à condição de Mapa, e mesmo assim, grande parte deste esforço
se deveu ao empenho da iniciativa privada. Segundo Rocio, somente
haviam sido convenientemente mapeadas algumas propriedades rurais do Alto Douro e das margens do Tejo, regiões econômicas ou
politicamente mais importantes, com a importante ressalva destes
registros terem sido feitos sobre um “terreno limpo, cultivado e ocupado”, ou seja, em áreas que ofereciam menores dificuldades técnicas
a atividade cartográfica.60
Além disso, havia uma grande carência de pessoal capaz de realizar no campo os cálculos e as observações necessários aos levantamentos cartográficos, a saber, engenheiros, geógrafos e astrônomos.
Especialmente no que se refere aos últimos, este problema pode ser
exemplificado pela dificuldade na arregimentação de astrônomos
CASTELO BRANCO, Rui Miguel. O mapa de Portugal. Lisboa: Livros Horizonte,
2003. p. 13.
59
60
Ver Resposta à consulta de D. Maria I ao Ten. Cel Eng. Francisco João Rocio em
29/08/1780. IHGB, lata 69, documento 8; Tratado preliminar de limites entre Portugal e
Espanha [correspondência] dos vice-reis Marquês do Lavradio e Luiz Vasconcellos e Souza
com a Corte de Portugal. IHGB, Lata 110, Pasta 7.
102
Renato Amado Peixoto
para a demarcação dos limites referentes ao Tratado de Madri: os estrangeiros ocuparam então a maioria dos cargos técnicos e, inclusive,
de comando, isto, saliente-se, numa empresa de extrema importância
estratégica para o Estado português. Inclusive, em 1751, o posto mais
alto da Comissão Demarcatória, composta ainda por militares e por
pessoal de apoio, foi ocupado por um genovês, enquanto que a maioria dos 27 técnicos empregados era composta por italianos e alemães,
sendo que destes apenas seis eram portugueses.61 Ainda em 1780, ou
seja, trinta anos depois, o número de astrônomos e geógrafos disponíveis era tão pequeno que as demarcações decorrentes do Tratado
de Santo Ildefonso tiveram de ser atrasadas em até dez anos. Além do
mais, era praticamente inexistente uma estrutura de apoio que propiciasse o transporte, a proteção e a substituição desse pessoal, especialmente no Mato Grosso e na Amazônia. Em 1792, quando o então
Capitão General do Pará Francisco de Souza Coutinho determinou
que dois astrônomos complementassem o trabalho iniciado pelos demarcadores da década de 1780, o trabalho não pôde ser levado a cabo
tanto por falta de soldados que os protegessem quanto pela morte de
um dos astrônomos durante a viagem.
Mas, ainda existiria outro fator limitador, este de ordem material e de custos: a falta de instrumentos para astrônomos e geógrafos, uma vez que, dada a sua complexidade, eram então importados
a maioria dos instrumentos necessários para o trabalho de campo e a
totalidade daqueles destinados à observação dos fenômenos astronômicos, sendo a Inglaterra o seu principal fornecedor.62
Em segundo lugar, é preciso esclarecer que, em face da escassez
61
Relação dos oficiais de guerra e mais pessoas que se acham nomeadas por Sua Majestade
para a expedição da América Portuguesa. AHI, Arquivo Particular Ponte Ribeiro, Lata 290,
Maço 3.
PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Anais da Província de São Pedro. 2.ed. Paris:
Typografia de Casimir, 1839. p. 181.
62
103
Cartografias Imaginárias
material e técnica da cartografia portuguesa, foram pouquíssimos os
indivíduos que participaram das atividades de demarcação no Brasil
na década de 1780: somente cinco astrônomos ficaram responsáveis
pela cobertura da maior parte de todo o território da América portuguesa: Antonio Pires da Silva Pontes Leme, Francisco José de Lacerda e Almeida, estes dois brasileiros, Francisco de Oliveira Barbosa,
Bento Sanches e José Simões de Carvalho.63
Suas tarefas eram simplesmente gigantescas, mesmo para os padrões atuais, já que foram designadas a eles todas as observações no
que atualmente chamamos de Amazônia e no Centro-Oeste, sendo
que, nos rios Solimões, Jupará, Branco, Madeira, Guaporé e na maior
parte do Mato Grosso, as medições foram feitas por apenas três dos
astrônomos citados, a saber: Simões, Lacerda e Pontes Leme. Mais, a
repulsa das elites políticas metropolitanas a esse Tratado e o fracasso
das negociações posteriores transformariam ainda as atividades daqueles indivíduos destinando-os mais a coadjuvar as atividades militares, administrativas e comerciais da Colônia.
As exigências eram muitas vezes brutais: o astrônomo Antonio
Pires da Silva Pontes Leme, nascido em Mariana, Província de Minas
Gerais, no reconhecimento de rotas comerciais e na demarcação de
limites, cumpriu no conjunto de suas comissões um périplo várias vezes maior que o de Humboldt, Condamine ou qualquer outro viajante do século XVIII, que talvez só possa ser superado pelas grandes explorações da África no século XIX. Outro daqueles astrônomos, José
de Lacerda e Almeida, nascido na cidade de São Paulo, após cumprir
suas missões, no Brasil, recebeu ainda a duvidosa glória de tentar a
travessia da África, de Moçambique para Angola, mesmo depois de
63
Tabuadas de longitudes e latitudes de grande parte do Brasil observadas pelos astrônomos
empregados na Demarcação. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo
XLV, n° 64, 1882.
104
Renato Amado Peixoto
ter tido sua saúde minada por mais de um ano pelas febres tropicais
no interior do Mato Grosso, vindo a falecer nesse esforço no meio
da selva africana, tudo para ser tardiamente reconhecido pela historiografia portuguesa como um “escravo do dever e mártir da ciência”
(EÇA, 1951).
Outro participante das atividades desse período, Ricardo Franco de Almeida Serra, designado chefe dos Engenheiros Militares na
expedição de Antonio Pires da Silva Pontes Leme, comandou durante grande parte da sua comissão apenas um subordinado. Depois disso, Serra seria ainda designado para várias comissões no interior da
Província de Mato Grosso, passando a ser responsável pela confecção
da maior parte dos planos e plantas topográficas da área Amazônica
no período.
Em terceiro lugar, consideramos que mesmo a ideia de demarcação das fronteiras tem de ser reconsiderada, uma vez que o Tratado
de Santo Ildefonso é extremamente vago ou dúbio, especialmente no
que se refere à atual Amazônia, reverberando a falta de conhecimento geográfico sobre a região nos dois países signatários, ainda, a ideia
de fronteira, no século XVIII, em nada se assemelha a ideia que é
manejada nos séculos XIX e XX. Nesse sentido, o conceito de limite
é mais apropriado, pois retém a ideia de fluidez e incerteza que basearam a maior parte das atividades dos demarcadores. Por exemplo, nas
medições relativas às áreas do rio Branco e do Jupurá, os astrônomos
portugueses foram muito além do que seria razoável em termos do
Tratado, podendo sua atividade ser mais bem enquadrada enquanto
um reconhecimento militar e comercial destinado a suportar uma
futura expansão territorial.
Grande parte das medições de longitude possuía pouca exatidão pela exiguidade das condições e, na maioria das vezes, preferiu-se medir-se apenas a latitude, cálculo bem mais rápido e de menor
105
Cartografias Imaginárias
complexidade, um problema que era reconhecido pelos próprios
membros da demarcação. O cálculo da longitude exigia na época que
se observasse o eclipse dos satélites de Júpiter, o que demandava observações e cálculos demorados além de instrumentos acurados e em
ordem, condição rara em meio à floresta amazônica. Note-se, ainda,
que em certas regiões e períodos o planeta Júpiter não se mostra ao
observador durante longos períodos, como foi o caso, a saber, de todas as observações do Mato Grosso, como pode ser comprovado pelo
diário de viagem de Pontes Leme.64
Finalmente, em relação ao modo como os demarcadores eram
vistos pela administração portuguesa no Brasil, a pesquisa permite
constatar que este difere muito do retrato que a historiografia construiu a esse respeito, sendo essa diferença um indício importante para
a análise da sua operação.
Para isso é importante fazer notar que a primeira narrativa das
demarcações não foi constituída no IHGB, mas na Secretaria dos
Negócios Estrangeiros por Duarte da Ponte Ribeiro, um dos seus
principais funcionários em 1855. Somente muito depois é que esta
‘História das Demarcações’ seria desenvolvida por Varnhagen nas
‘Biografias’ de Lacerda e Ponte Leme e publicada na Revista do IHGB
em 1873. Observe-se que em 1851 Varnhagen, também funcionário
da Secretaria, havia defendido em memorando interno a necessidade
de se constituir uma ‘História das Fronteiras’ que concatenasse a atuação diplomática com a construção da Pátria e defendendo que seu
começo deveria remontar aos primeiros tratados entre as metrópoles
ou, pelo menos ao Tratado de Tordesilhas, incorporando-a, depois a
sua ‘História Geral do Brasil’.
PONTES, Antonio Pires da Silva. Diário histórico e físico da viagem dos oficiais da demarcação que partiram do quartel general de Barcelos para a capital de Vila Bela da Capitania
de Mato Grosso em 1° de setembro de 1781. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, n° 262, Jan. - Mar 1964, p. 344-345.
64
106
Renato Amado Peixoto
Por conseguinte, a história das demarcações estava conectada
ao projeto de construção do espaço nacional centralizado no IHGB,
mas apresentando características próprias, pois apenas nas ‘Biografias’ é que dois dos participantes de uma das demarcações do século XVIII seriam alçados à condição de protagonistas principais da
construção. Nas ‘Biografias’ Antonio Pires da Silva Pontes Leme e
Francisco José de Lacerda e Almeida, demarcadores do Tratado de
Santo Ildefonso, foram descritos enquanto patriotas abnegados que
enfrentaram grandes riscos e sacrifícios para colaborar na ‘política de
demarcação das fronteiras brasileiras’ [sic]. Naquelas, Varnhagen destacaria ainda a fidelidade do paulista Lacerda à derradeira missão que
lhe fora designada, orgulhoso até o fim, de estar a serviço do Estado
português, no afã de atravessar o Continente africano.
Como podemos interpretar esse processo de seleção?
A escolha de Lacerda e Pontes Leme dentre outros participantes das demarcações do século XVIII, atendia então a diversos propósitos: primeiramente, como os dois foram os únicos brasileiros
que receberam o grau de doutores em matemática pela Universidade
de Coimbra, visava-se a exaltar essa condição relacionando-a com a
ideia de construção pretérita da nacionalidade.
Em segundo lugar, procurava-se, através de seus exemplos, distinguir esse patriotismo na figura mesma dos demarcadores, isto num
momento em que novamente se procurava demarcar as insalubres
fronteiras amazônicas.
Por último, atendia-se aos interesses internos da própria Secretaria dos Negócios Estrangeiros e ao corporativismo dos diplomatas,
já que o filho de Pontes Leme era então um dos seus funcionários
mais proeminentes.
Entretanto, as ‘Biografias’ acrescentariam ainda mais um elemento a uma verdadeira ‘mitologia do espaço nacional’, por conta
107
Cartografias Imaginárias
de se elidir o verdadeiro contexto das atividades de Lacerda e Pontes
Leme, já que muitos dos trabalhos destes não podiam ser propriamente conectados a uma ‘política de demarcações’ e menos ainda a
um ‘esquadrinhamento do espaço nacional’, como ecoaria mais tarde
Sérgio Buarque de Holanda.65
Nessa operação, Lacerda e Pontes Leme foram despidos mesmo de suas vozes e impressões e isso se deve destacar, inclusive, por
conta de um resgate da memória dos astrônomos, uma vez que a pesquisa permite apresentá-los enquanto críticos do Estado português
e da sociedade da época, sendo apenas tolerados pela raridade de seu
saber. Exatamente por conta disso, ambos eram mantidos sob a vigilância estreita das autoridades locais, deslocados o maior tempo
possível para atividades fora dos núcleos urbanos, mesmo que em
trabalhos secundários. Eram então considerados enquanto impertinentes, descuidados, pouco interessados no trabalho e no estudo,
“mais amigos do seu divertimento e comodidade, do que do desempenho das obrigações.”66
Um dos poucos textos de Pontes Leme que sobraram nos serve
para sublinhar os dispositivos narrativos de que se serviu a operação
de uma história das demarcações e para pelo menos aventar os anseios daqueles indivíduos que cruzaram os oceanos de água e selva à
serviço do Estado e das demarcações:
[Ao nos retirar do Amazonas seguindo para o Mato
Grosso] Viam-se pelas barreiras de Barcelos, chorando, algumas índias e mamelucas, e faziam chorar
a quem pensasse na grande miséria em que vive esta
HOLLANDA, Sérgio Buarque de (Org.). História Geral da Civilização Brasileira, Vol. 1.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil: 2003. p. 297-298. (Edição original – 1961).
65
Capitão-General Luis de Albuquerque com Martinho de Mello [correspondência]. 1787.
AHI, Arquivo Particular de Duarte da Ponte Ribeiro, Lata 266, Maço 1, Pasta 10.
66
108
Renato Amado Peixoto
gente toda, fazendo um jejum que passa de magno, ou
abstinência de toda a carne, a ser a xerofagia da Igreja
Grega, não tendo mais que beiju e pimentas para comer. Também os oficiais que nos fizeram a honra de
vir até a escada, mostravam sentimento, creio de nos
verem apartar e que desejavam vir também. Eu não
pude ter a mesma alegria de me ver fora de um cárcere do gênero humano, em que todos sofrem e muito
mais os índios que andam buscando tartaruga do rio
Solimões e do rio Branco, e farinhas da Cachoeira,
para ter mão da vida dos que ali se acham por mero
capricho (PONTES, 1964).
Quando as ‘Biografias’ foram publicadas, exibia-se em Viena,
na Exposição Universal de 1873, o novo avatar do espaço da Nação,
a ‘Carta Geral do Brasil’, desenhada por Duarte da Ponte Ribeiro, na
realidade, apenas a atualização da velha ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’ de Conrado Jacob Niemeyer - com o aval da SENE.
109
O espelho do Jacobina:
uma discussão dos problemas de representação do
espaço da Nação por meio do estudo cartográfico
Como poderíamos ligar a ‘Carta Geral do Brasil’ de Ponte Ribeiro à
‘Carta Corográfica do Império do Brasil’, de Niemeyer? Seria possível fazê-lo pelo estabelecimento de uma lógica do sentido estabelecida
noutro mapa? Num dos mais belos contos de Machado de Assis, ‘O
espelho’, o personagem Jacobina instruía que cada criatura humana
trazia nada menos que duas almas consigo, uma que olha de dentro
para fora, outra que olha de fora para dentro. Esta última alma seria
mutável, de natureza e de estado, mas, como as duas almas complementariam o homem, quem perdesse apenas esta metade perderia
naturalmente metade da existência.
A observação de Machado de Assis, carregada da sua leitura de
Arthur Schopenhauer, permite-nos esboçar um tratamento possível
para um dos problemas do estudo do espaço, que vem a ser a necessidade de alcançar um entendimento preciso do que diz respeito
àqueles mapas. No caso, acreditamos que não nos basta apenas compreender a existência de uma episteme, mas ainda buscar-se os particularismos, os idiomatismos que encerram as referências necessárias
para uma nova compreensão.
No recorte que vimos trabalhando, o século XIX, a cartografia
111
Cartografias Imaginárias
é parte integrante da sintaxe da gramática do espaço, mas a ideia de
cartografia ou mesmo de mapa para aqueles que participam do teatro
de construção do espaço no Brasil é diferente daquela que é dominante, por exemplo, na Inglaterra, sendo mesmo esta ideia diferente
para cada um dos palcos de produção, ou seja, existe diferença do
que é apreendido no IHGB para o que apreendido na Secretaria dos
Negócios Estrangeiros. A diferença entre essas diferentes apreensões
é esclarecedora do processo de construção do espaço e nos permite
distinguir as representações e as narrativas historiográficas que a partir
daí são elaboradas enquanto um jogo de tensões e contratensões, ou
melhor, como uma escritura em premente e permanente reelaboração.
Procuraremos, por conseguinte, trabalhar essa nossa ideia a
partir, primeiramente de uma explicitação do problema cartográfico,
depois pela sua exemplificação por meio do estudo da ‘Carta Geral’,
composta por um dos membros do IHGB, e do ‘Mapa do Rio Grande’ composta na Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
A luta de representação
J. B. Harley foi um dos poucos autores a propor uma leitura dos produtos cartográficos capaz de ultrapassar os métodos e a interpretação
costumeira dos historiadores da cartografia, os quais visam, segundo esse autor, apenas a investigar e catalogar os mapas segundo suas
características técnicas e de produção. Tal atitude, segundo Harley,
refletiria a adesão de seus cultores a um “positivismo cartográfico”
que deveria ser confrontado e substituído por uma interpretação
baseada, por sua vez, numa teoria iconológica e semiológica da natureza dos mapas.67 Para esse fim, Harley proporia a utilização dos
67
HARLEY, J.B. ‘Maps, Knowledge and Power’ e ‘Deconstructing the Map’ in: The New
112
Renato Amado Peixoto
conceitos anteriormente desenvolvidos por Erwin Panofsky para o
estudo dos níveis dos temas ou significados na arte,68 visando, com
estes, a identificar, através dos elementos simbólicos e estruturais dos
mapas, certas disposições qualificadas como “eminentemente retóricas”, as quais seriam capazes de explicitar relações de “Poder e Saber”,
conforme a definição de Michel Foucault, bem como certos condicionamentos sociais.
Ainda que reconheçamos a pertinência da teorização de Harley,
acreditamos que, por conta da grande abertura e universalidade de
seus conceitos, esta deva ter seu uso condicionado a análises e enfoques que, por sua vez, devam estar orientados e direcionados por um
método que permita perscrutar a inscrição no mapa a partir de uma
pesquisa do contexto que envolve a composição cartográfica. Para
isso, seria preciso entender a composição cartográfica, a partir de
Schopenhauer, como um ‘ato da representação’ que objetiva a Vontade de certos indivíduos ou grupos.
Nesse sentido, o ato de representação está relacionado a determinados propósitos, conveniências e circunstâncias dependentes de
certas condições, ou seja, esse Ato objetiva-se através da competição
ou pelo ajustamento a outros Atos também objetivados por diferentes motivações, o que, por sua vez, leva a estabelecer, para o historiador, novos lugares para a leitura de contextos e referências.69
Para isso, será necessário compreender essas objetivações da
Vontade como uma disputa entre os indivíduos que visam a expressar
Nature of Maps: Essays in the History of Cartography Baltimore: The John Hopkins University Press, 2001.
68
PANOFSKY, Erwin. Iconografia e Iconologia: Uma introdução ao Estudo da Arte da
Renascença. In: Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Perspectiva, 1976.
69
Ver SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo. São Paulo: UNESP, 2003. cap.
2 e SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2001, § 56-57.
113
Cartografias Imaginárias
suas Ideias por meio de sua materialização. Como essa matéria será
disputada com o mesmo fim por outros indivíduos, todos tenderão
continuamente a usurpá-la, possuindo-a, cada um deles, apenas na
medida do que puderam tomar dos outros: constituir-se-á assim, em
torno do ato de representação, uma guerra eterna de vida ou de morte, quando o surgimento de obstáculos e impedimentos à objetivação
da Vontade se consubstanciará no indivíduo através do sofrimento e
da insatisfação.
O ato de representação dá-se então em meio a uma competição contínua pela expressão da Ideia, interessando e emocionando
a Vontade, daí relacionar-se pela sua satisfação com determinados
propósitos, conveniências, eventos e circunstâncias. Por conseguinte, este mesmo ato da Vontade será objetivado ainda que ao custo
de sua transformação e do seu ajustamento a outros atos da Vontade
inclusive os alheios e vinculados a outras motivações, não sem lançar
o indivíduo novamente no sofrimento e na insatisfação que, por sua
vez, o conduzirão a novos atos de vontade, no estado que denominamos de luta de representações.70
Retomando o texto de Machado de Assis, observamos que o autor reconhece a ideia da luta de representações, pois separa o Jacobina
narrador, mais velho vinte anos, do Jacobina que centraliza a narrativa. Este último, ao mirar-se no espelho se recompunha da solidão
admirando a farda de Alferes, encontrando sua alma exterior, mas o
Jacobina mais velho “Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do
instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e
acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada,
70
SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003. cap.
2. e SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro:
Contraponto, 2001, § 56-57.
114
Renato Amado Peixoto
e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna.” (ASSIS, 1962, p.345) O
Jacobina narrador, separava-se pois do Jacobina jovem pela recusa de
se lançar à luta de representação.
Por outro lado, Machado reconhece também na alma exterior
a mutabilidade de natureza e de estado da alma exterior que completaria a alma interior. Por conseguinte, a investigação do ato de representação remeteria não apenas à compreensão de propósitos, conveniências e circunstâncias, mas também, demandaria à compreensão
dos processos de escolha do recorte cartográfico e de seleção das mecânicas de composição e produção dos mapas. Para isso, seria necessário trabalharem-se não apenas os mapas, mas também os textos que
se referissem aos processos de seleção e às mecânicas de composição
e produção cartográfica relacionando-os com os produtos finais, os
mapas. Essa escolha possibilitaria leituras que não estão diretamente
relacionadas com a utilização do mapa ou com os efeitos de sua divulgação, mas com os processos de composição mesma, mais ligados, em
nosso entender, à objetivação do ‘ato de representação’, permitindo
ao historiador, por exemplo, inferir as diferenças em relação as outras
apreensões ou à episteme citadas, pois que estas estão ligadas à composição mesma, conforme Machado de Assis, a uma completude da
alma, posta que contínua e mutável.
Finalmente, nessas leituras, as inscrições e as estruturas técnicas
dos mapas não seriam apenas entendidas como elementos ou etapas
de um processo criativo, mas enquanto escolhas conectadas diretamente à objetivação do ato de representação, porquanto, para este
método, o estudo do processo de composição do mapa pode ser tão
ou mais significante que a interpretação iconológica e semiológica
dos mapas.
115
Cartografias Imaginárias
Processo interno e processo externo
Durante os séculos XVII e XVIII, por um lado, a cartografia se converteu de uma tarefa quase solitária numa escrita coletiva por excelência, dotada de práticas diversas e complexas, tornando necessário
que a leitura do processo de composição dos mapas fosse feita através da apreensão de sentidos e saberes que incluíam tanto o agenciamento das técnicas e das condições da escrita quanto à distribuição e
atribuição de tarefas. Por outro lado, a mesma cartografia tornou-se
também o lugar por excelência de inscrição da narração territorial
dos Estados em centralização, o que nos leva a ter de analisar os processos de escolha, produção, reprodução e divulgação da cartografia
enquanto sujeitos a usos e estratégias por parte de seus autores.
Portanto, entendemos ser necessário distinguir na produção
dos mapas a existência simultânea de dois processos, um relativo à
natureza das apreensões locais, aos usos, formalização das decisões,
estratégias, táticas; e outro que diz respeito a uma episteme e às práticas e procedimentos de um saber cartográfico, ou seja, das suas classificações, hierarquizações e divisões de trabalho. Tendo-se em vista
que seu produtor é sujeito e também objeto dos processos, é necessário investigar a interação desses processos cartográficos, interação
esta que constitui um verdadeiro sistema de relações entre estratos
tão diversos como os de recepção, compreensão e transformação que
interagem nos palcos de produção do espaço.
Esses dois processos simultâneos distinguir-se-iam do que
Harley definiu como poder interno e poder externo, entendidos por
esse autor como a contraposição de uma instância de poder local e
descentralizado em relação a outra instância de poder centralizada e
concentrada, grosso modo, opondo produtores e Estado. Para Harley,
a convivência entre essas duas instâncias faria parte das relações de
116
Renato Amado Peixoto
poder que penetrariam os interstícios da prática e da representação
cartográfica, permitindo assim com que os mapas pudessem ser lidos
como textos que legitimariam a teorização Poder-Saber de Foucault.71
Já em nossa ideia de processo interno e processo externo entendemos que a produção do mapa esteja sujeita a ser modificada, alterada
ou limitada tanto por circunstâncias inerentes à composição quanto
por características e propriedades das técnicas e procedimentos.
Por um lado, o agenciamento das técnicas por parte dos produtores faz parte de um processo de escolhas que não é apenas objetivo,
mas que também constitui um procedimento da representação da
forma, ligado às estratégias e táticas dos produtores da representação
e que depende ainda de suas capacidades técnicas ou operacionais.
Nesse sentido, a utilização de uma determinada técnica não significa
que esta seja a melhor ou a mais tecnicamente apropriada, mas que
sua escolha possibilita a entrada em cena do objeto no mundo da representação mesmo que por dissimilação ou simulação de sua forma.
Assim, podemos entender o medium como um facilitador da apreensão da Ideia pelos outros e essa apreensão da Ideia será condicionada
pela natureza ou característica do medium e pelo gênio do operador.72
Por outro lado, esse mesmo medium pode ser condicionado na
medida em que o processo externo impuser restrições à representação
pura da Ideia, a qual, em tese, deve ser complementada ou substituída
por outras representações a partir das táticas dos seus operadores, constituindo-se estas enquanto uma objetividade imperfeita da Vontade.
Ainda, se as restrições exigirem um sacrifício da forma que vá
HARLEY, J.B. Power and legitimation in the english geographical atlases of the eighteenth century. In: The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography. Baltimore:
The John Hopkins University Press, 2001. p. 111-113.
71
72
O gênio é entendido por Schopenhauer como uma capacidade de conhecimento inata e
que se encontra em diversos graus em todos os homens, o que pressupõem lhe serem inerentes
às habilidades da criatividade e do entendimento. Ver SCHOPENHAUER, Arthur. A Metafísica do Belo, São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 83-87.
117
Cartografias Imaginárias
além das capacidades, pode-se produzir uma alteração do objeto não
prevista pelos seus operadores, constituindo-se essa alteração do objeto, ela mesma, como uma representação mais ou menos independente da objetivação da Vontade.
Por conseguinte, entendemos por processo interno aquele que
diz respeito à objetivação da produção e processo externo aquele que
tem a ver com os condicionamentos e propriedades que incidem
sobre essa objetivação modificando-a, alterando-a ou limitando-a,
logo, o mapa é sempre a resultante da luta de representações.
Em respeito à importância do medium para a produção da representação, podemos citar o adendo de Schopenhauer à célebre
discussão sobre a razão de não se representar o grito do personagem
ferido no grupo escultural de Laocoonte. Enquanto Winckelmann
e Lessing atribuíram tal característica, respectivamente, ao estoicismo do personagem ou à incompatibilidade da beleza com a dor, para
Schopenhauer a ação de gritar não fora representada “pela simples
razão de que o grito é inteiramente rebelde aos meios de imitação
da escultura”. Portanto, para Schopenhauer, era impossível tirar do
mármore um Laocoonte a gritar, entendendo assim, existirem limites
para a representação, os quais estariam impressos nas possibilidades
mesmas do medium (SCHOPENHAUER, 2001, § 46).
O medium cartográfico no XIX
Até o século XIX, o método usual para a reprodução de mapas e de
atlas era o da gravação em cobre: os mapas manuscritos tinham seus
detalhes copiados para uma placa desse material, na qual eram gravados em alto-relevo, gerando-se, assim, uma matriz de impressão passível de receber alterações e capaz de permitir seguidas reimpressões.
118
Renato Amado Peixoto
Nesse sentido, estima-se que uma matriz de cobre bem cuidada e que
recebesse uma manutenção regular do traçado de seu relevo podia ser
utilizada até três mil vezes, possuindo comumente uma durabilidade
capaz de ultrapassar a centena de anos.73 Entretanto, a gravação em
cobre era um processo caro, trabalhoso e altamente especializado e,
por conta dessas características, a reprodução cartográfica em escala
consolidou-se, nos séculos XVII e XVIII, apenas onde o Estado fosse
capaz de arcar com seus custos ou onde existisse um mercado capaz
de atrair empreendimentos particulares que possibilitassem, sobretudo, a manutenção dos melhores profissionais.
Nesse período, foi estabelecida uma nova tradição no processo cartográfico, com uma separação e uma estandardização rigorosa
das tarefas entre astrônomos, desenhistas, gravadores e impressores,
o que consolidou o controle da composição nas mãos dos editores (o
que pode ser exemplificado, inclusive, através da prevalência do anonimato no processo cartográfico).74 Contudo, alguns cartógrafos,
como Gerhard Mercator, John Thornton e John Arrowsmith foram
capazes de dominar todas as instâncias do processo cartográfico, estabelecendo-se privativamente e disputando o mercado de mapas e
atlas com trabalhos de sua autoria.75
Portanto, uma das principais características da produção cartográfica anterior ao século XIX é a existência de diferentes centros
fora do controle direto do Estado, capazes de produzirem em escala
e em disputa pelo controle de um mercado lucrativo. A lucratividade desse mercado se devia ao fato de os produtos cartográficos não
VERNER, Coolie. Copperplate Printing. In: Five Centuries of Map Printing. Chicago:
University of Chicago Press, 1975. p. 72.
73
HARLEY, J.B The New Nature of Maps: Essays in the History of Cartography. Baltimore:
The John Hopkins University Press, 2001. p. 113-115.
74
VERNER, Coolie. Copperplate Printing. In: Five Centuries of Map Printing. Chicago:
University of Chicago Press, 1975.p. 70.
75
119
Cartografias Imaginárias
serem apenas utilizados como fonte de informação para o Estado ou
para o investidor, mas também como estímulos de sociabilidade e
artigos de uma cultura de consumo que se estabeleceram no período. Tais eventos foram impulsionados pelas transformações culturais
decorrentes da difusão da tipografia e pelas viagens transatlânticas,
combinadas na grande circulação de livros corográficos e de narrações de viajantes.76
O desenvolvimento da gravação em cobre foi decisivo para o
estabelecimento das condições desse novo mercado, propiciando
que a cartografia se tornasse, durante o século XIX, parte mesmo da
cultura material, com seus produtos circulando sob as mais variadas
formas, mesmo como elemento decorativo em utensílios e vestimentas. Contudo, a verdadeira popularização dos produtos cartográficos
e corográficos, que apenas faziam parte de uma cultura de elites até o
século XVIII, somente se tornou possível pela apropriação, nas estratégias dos produtores, de uma técnica nova desenvolvida e divulgada
nas primeiras décadas do século XIX: a litografia.
A técnica litográfica consistia na escrita direta sobre uma matriz
de pedra calcária ou zinco ou no transporte dessa escrita para a pedra
através de uma folha especial, quando então se utilizava um processo químico que tornava a superfície capaz de permitir sucessivas impressões. Além de tornar a composição dos mapas mais rápida, pois
exigia uma menor especialização de tarefas, ao eliminar, por exemplo, a obrigação de que esses fossem desenhados em reverso como na
gravação em cobre, a litografia também possibilitou uma diminuição
acentuada dos custos materiais na cartografia. Essas características
tornaram possível, no século XIX, disponibilizarem-se os produtos
76
Ver “Pictorial prints and the growth of consumerism: class and cosmopolitanism in early
modern culture” e “A new world picture: maps as capital goods for the modern world system”
in MUKERJI, Chandra. From graven images: patterns of modern materialism, New York:
Columbia University Press, 1983. p. 30-130.
120
Renato Amado Peixoto
cartográficos a um público imensamente maior e mais diversificado
que nos séculos anteriores, ao mesmo tempo em que permitiriam que
países sem tradição de produção cartográfica em escala, como era o
caso de Portugal e depois do Brasil, pudessem desenvolver uma incipiente produção cartográfica centralizada no Estado.
A introdução da cartografia no Brasil
No Brasil, a criação do Arquivo Militar, já no mesmo ano da chegada da Corte, serve-nos para aferir a existência de uma percepção,
no bojo da transferência do Estado português, de que a produção
cartográfica em escala poderia coadjuvar a ação do Estado, trazendo
vantagens administrativas e servindo como um instrumento prático para a centralização da autoridade. Nesse sentido, essa instituição
teria duas funções: primeiro, centralizar a guarda, a organização e a
classificação dos produtos cartográficos; segundo, a partir do arquivo
formado e utilizando-se os critérios da utilidade e da necessidade administrativa, escolher-se o material a ser vulgarizado.
No arquivo dessa instituição, visava-se a recolher todas as cartas, mapas topográficos e planos iconográficos trazidos de Portugal
para que fossem juntados aos que se encontravam dispersos no Brasil
entre várias repartições, acabando-se, assim, com a descentralização
documental que imperava até então nas secretarias de Estado portuguesas. Entretanto, essa iniciativa de centralização cartográfica, no
Brasil, estaria dada ao fracasso já em seus primórdios, uma vez que
grande parte da documentação que fora reunida no Arquivo Militar
retornou a Portugal junto com D. João VI em 1821, sem que se distinguisse critério algum nesse repatriamento, o que tanto acarretou
a permanência, no Brasil, de muitos produtos cartográficos relativos
a Portugal e seus domínios, quanto a ida para Portugal de muito do
121
Cartografias Imaginárias
que fora produzido sobre o Brasil, um problema que somente seria
sanado, em 1867, a partir de uma permuta documental efetuada pela
Secretaria dos Negócios Estrangeiros.
Em relação à função de vulgarização cartográfica do Arquivo
Militar, pensava-se, quando de sua criação, em utilizar a gravação em
cobre, contudo, as vantagens da litografia impuseram-se, sobretudo
pelo custo. Essa opção consolidou-se, na prática, com a criação, em
1825, da Oficina Litográfica do Exército, quando se importaria todo
o material necessário à sua operação junto com dois técnicos estrangeiros responsáveis por sua operação, os quais deveriam atuar, também, como professores junto a um corpo de aprendizes composto
por soldados do Exército.
Ainda que, com essas iniciativas, o Estado buscasse resguardar
para si e em uma só instituição a centralidade da produção cartográfica, não foi possível consolidar essas opções, no Brasil, devido a se
terem preservado certas condições tecnológicas e culturais herdadas
de Portugal. No caso, sustentava-se, ainda, na antiga Metrópole, o
prestígio da composição cartográfica manuscrita e a tradição de descentralização dos arquivos e da produção cartográfica, uma vez que,
nos séculos anteriores, não se acompanhara o desenvolvimento do
agenciamento das técnicas que resultaram na especialização, na estandardização e na concentração das tarefas cartográficas.
Em consequência, no Brasil, a composição cartográfica manuscrita se impôs ao processo de produção, com suas características de
individualização, descentralização, sigilo e repetição de padrões, em
que cada cartógrafo era, acima de tudo, o membro de uma escola e
um transmissor de padrões estabelecidos.77 Ainda, a antiga tradição
77
A respeito da influência dos estilos e da transmissão de padrões na cartografia manuscrita,
ver MARQUES, Alfredo Pinheiro. The dating of the oldest Portuguese charts. Imago Mundi. vol. 41. 1989. p. 87-97.
122
Renato Amado Peixoto
de descentralização cartográfica seria paulatinamente retomada no
Brasil, resultando no esvaziamento do Arquivo Militar, mesmo em
detrimento da iniciativa particular, que atraía sua mão-de-obra especializada. Durante o Segundo Reinado, chegaram-se mesmo a constituir dois outros grandes arquivos cartográficos além do Arquivo
Militar, um na Secretaria dos Negócios Estrangeiros e outro na Secretaria de Obras Públicas. Instituições como a Secretaria dos Negócios Estrangeiros jamais confiaram a composição de mapas a outros
cartógrafos que não fossem os seus, nem deixaram de antagonizar a
produção alheia. Por conta de tudo isso, a parte mais representativa
da reprodução em escala por meio da litografia foi composta sob as
técnicas da produção manuscrita, por conseguinte, submetendo-se a
produção cartográfica às regras, às limitações e aos condicionamentos culturais do medium manuscrito.
A Carta Corográfica do Império do Brasil
Na década de 1840, a consolidação da discussão do espaço nacional
em palcos de produção bem definidos em torno do IHGB, do Conselho de Estado e da Secretaria dos Negócios Estrangeiros, a descentralização do processo de produção cartográfica e o esvaziamento das
funções do Arquivo Militar contribuíram para que a primeira Carta
Geral do Brasil não nascesse a partir de uma iniciativa do Estado,
mas de uma contribuição para o debate da narrativa territorial no
IHGB. Composta por Conrado Jacob de Niemeyer durante os anos
de 1842 a 1846, a Carta Corográfica do Império do Brasil estabeleceu padrões técnicos e estéticos que seriam endossados pelas Cartas
Gerais posteriores e mapas parciais do território.
A composição da Carta de Niemeyer envolveu um procedimento de escolha do padrão técnico que pode explicitar a relação
123
Cartografias Imaginárias
entre o que denominamos de processo interno e processo externo,
a partir de sua delimitação em três níveis de apreensões: o primeiro,
do geral, relacionado à inserção no universo conhecido das representações cartográficas; o segundo, do particular, relacionado à escolha
do repertório das tradições das experimentações do território; o terceiro, do conceitual, relacionado à divulgação e à consolidação das
formas percebidas e extraídas da intuição.78
Niemeyer procurou inicialmente basear sua representação do
território brasileiro sobre o que chamou de ‘Mapa Geral’, no caso, o
produto resultante da reunião dos traçados das duas cartas estrangeiras mais bem reputadas no Brasil, a Carta da América Meridional, da casa editorial Arrowsmith, e a Carta da Costa Brasileira, do
Almirante Roussin. Em seguida, esse Mapa Geral foi modificado e
complementado através da consulta a diversos mapas, roteiros, memórias e descrições produzidos por brasileiros, sendo que, dentre
esses, Niemeyer utilizou principalmente os trabalhos de Cerqueira e
Silva, Cunha Mattos e Aires de Casal, não por acaso, todas essas eram
obras acreditadas pelo debate no IHGB.79 Finalmente, as fronteiras
nacionais foram inscritas sobre o produto resultante das operações
anteriores a partir do estabelecido no ‘Programa Geográfico’ de José
Feliciano Fernandes Pinheiro, presidente do IHGB e os limites da
divisão provincial foram desenhados de acordo com a ‘Corografia
Brasílica’, de Aires de Casal.
78
Essa ideia origina-se da relação estabelecida por Schopenhauer entre a música, a realidade
e os conceitos abstratos. Ver SCHOPENHAUER, Arthur A Metafísica do Belo, São Paulo:
Editora Unesp, 2003. p. 83-87.§52.
79
Respectivamente, a ‘Corografia Paraense’, a ‘Corografia histórica da província de Goiás’ e
a ‘Corografia Brasílica’. Ver: SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Corografia Paraense ou
Descrição física, histórica e política da Província do Grão-Pará. Salvador: Tipografia do Diário, 1833; MATOS, Raimundo José da Cunha. Corografia histórica da Província de Goiás.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Vol. 37, Tomo 48, 1874; CASAL,
Manoel Ayres de. Corografia Brasílica ou Relação Histórico-geográfica do Brasil, II vols. São
Paulo: E. e H. Laemmert, 1817; Edições Cultural, 1943.
124
Renato Amado Peixoto
Já o processo de escolha do padrão estético da Carta derivou da
decisão de se compor o ‘Mapa Geral’ a partir da redução e transformação da sua base de dados à escala 1:3.000.000, capaz de viabilizar
a composição da Carta Geral em quatro folhas iguais, de acordo com
a maior capacidade de impressão da oficina mais bem aparelhada, no
Brasil, naquele momento, a Litografia Rensburg, possibilitando assim que se atingisse o tamanho de 1,50 m de altura por 1,50 m de
largura. A decisão de orientar todo o projeto cartográfico da Carta
de 1846 pelo tamanho da maior folha que fosse possível imprimir
foi tomada por Niemeyer em função de três objetivos: primeiro,
tornar certos detalhes distinguíveis em relação a outros e “dignos de
atenção”, especialmente aqueles relativos aos limites com o Paraguai;
segundo, diminuir o problema dos erros, através do maior dimensionamento dos elementos geográficos, especialmente da hidrografia;
terceiro e mais importante, equiparar a representação cartográfica do
espaço nacional às cartas de grande dimensão impressas na Europa,80
cujos modelos eram as grandes cartas gravadas pela casa editorial Arrowsmith, as quais chegavam a medir até dois metros de altura por
um metro e quarenta de largura que, emolduradas, eram expostas
sobre grandes paredes, geralmente em órgãos públicos e escolas. Portanto, Niemeyer buscava não apenas construir uma representação do
espaço nacional brasileiro, mas ainda inscrever a presença, centralidade e monumentalidade do Estado nas relações do indivíduo com
o meio social.
Finalmente, podemos observar que a Carta Geral resulta das esCarta de Conrado Jacob de Niemeyer ao IHGB oferecendo a Carta Corográfica do Império Brasileiro. IHGB, Lata 510, Pasta 5, 1846; Nota de Conrado Jacob de Niemeyer, dizendo estar quase pronta a carta corográfica do Império do Brasil IHGB, Lata 142, Pasta 49,
1844 e Carta de Jacob de Niemeyer para o Visconde de São Leopoldo em 20/9/1843. In:
PAUWELS, Geraldo José. Algumas notas sobre a gênese dos números para as áreas do Brasil
e seus Estados. Porto Alegre: Tipografia do Centro, 1924, p. 7-8.
80
125
Cartografias Imaginárias
tratégias e táticas desenvolvidas na relação entre o processo externo e
o processo interno por meio de uma leitura semiológica e iconológica
que considera a historicidade da inscrição e da negação de inscrição81
dos elementos que podem ser identificados objetivamente enquanto
“alegorias” e “representações simbólicas” pertinentes à representação
cartográfica.82 Acreditamos, assim, que a leitura semiológica e iconológica deva ser entronizada num método que dê conta dos processos
de objetivação do ato de representação. Em razão disso, sugerimos
que a leitura semiológica e iconológica dos produtos cartográficos
deve se basear o quanto possível nos problemas percebidos por meio
do estudo das relações entre o processo interno e o processo externo,
conforme apontaremos a seguir a partir da Carta Geral.
Em primeiro lugar, o meridiano que passa pela cidade do Rio de
Janeiro é utilizado como origem de todo o sistema de coordenadas da
Carta Geral, ao invés dos outros mapas, que utilizavam o meridiano
de Paris ou o meridiano de Londres. Essa opção de Niemeyer derivava justamente do debate então travado no IHGB e que dizia respeito
às questões da construção da Nação, da Nacionalidade e da centralidade do Estado: o Rio de Janeiro era o centro da Nação e elemento
coordenador não apenas do espaço nacional, mas deste em relação
aos demais Estados.
Em segundo lugar, o destaque dado à divisão provincial pela
81
A ideia de ‘negação da inscrição’ corresponde aproximadamente ao que Harley denomina
de ‘Silêncios’ [Silences]: para este autor, o espaço vazio nos mapas estaria ligado a um discurso
político e à legitimidade de seu status, enquanto que em nossa ideia da negação da inscrição, o
‘Silêncio’ não corresponderia a um vazio, mas a um espaço preenchido por uma continuação
ou um desdobramento daquele discurso. Ver HARLEY, J. B. Silences and Secrecy. In: The
new nature of maps: essays in the History of Cartography. Baltimore: The John Hopkins
University Press, 2001, p. 99-100.
Arthur Schopenhauer identifica a historicidade das “alegorias” e “representações simbólicas” como parte mesmo do problema da compreensão da Representação. Ver SCHOPENHAUER, Arthur. O Mundo como vontade e representação. Rio de Janeiro: Contraponto,
2001. § 50.
82
126
Renato Amado Peixoto
utilização do colorido quase que equipara estes limites aos da divisão
internacional. Esse destaque pode ser entendido por conta mesmo
da sobrevivência e da importância da questão provincial em meio ao
debate da construção do nacional. Nesse sentido, observe-se também
que, na Carta Geral, as plantas das capitais das províncias do Rio
Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Pará e a planta da Corte foram inseridas no
mapa ao redor do território nacional, verdadeiramente emoldurando
a Carta.
Finalmente, através do estudo dos elementos utilizados para
descrever o território, podemos compreender as distintas implicações sociais e políticas da inscrição do Estado no território, considerada então no IHGB enquanto uma missão civilizadora. Nesse
caso, a Carta Geral é prolífica em exemplos como: “Gentio Jacundá
tratável e que fala a língua geral”; “Sertão ainda desconhecido e sem
cultura”; “Terrenos inteiramente desconhecidos e ocupados por diversas tribos de índios selvagens que embaraçam a navegação fluvial”
e “Paritins, Andiras, Araras, Mundrucus e outras nações – Em grande parte domesticados”.
O Mapa do Rio Grande
Já a composição do ‘Mapa do Rio Grande’ decorreu da participação
de Duarte da Ponte Ribeiro em certas discussões do Terceiro Conselho de Estado durante a década de 1840, onde atuaria enquanto consultor da Seção de Justiça e Negócios Estrangeiros. Nessas discussões,
debater-se-ia especificamente a questão de limites com o Uruguai e
coube a Duarte da Ponte Ribeiro, após reunir as opiniões dos conselheiros que compunham a Seção, elaborar sobre essas um documento
127
Cartografias Imaginárias
ao qual integrou seus conhecimentos sobre a questão. Ribeiro redigiria, então, o ‘Memorando 37’, para servir como orientação à Secretaria dos Negócios Estrangeiros para as conversações de limites com
os representantes da República do Uruguai, ao qual seria anexado
um mapa, denominado de ‘Mapa do Rio Grande’, onde as apreensões
acerca do espaço foram inscritas por meio de certos símbolos e recursos retóricos que, na verdade, tornavam a leitura do Memorando
propositalmente dependente da consulta a este (Figura 7).
Podemos observar a partir de sua comparação com a Carta Arrowsmith (Figura 8), então uma das peças cartográficas mais citadas
nas discussões do Conselho de Estado e no IHGB, que o território
mapeado foi representado segundo técnicas inusitadas para a época.
No mapa de Duarte da Ponte Ribeiro, a orientação do mapa contraria a norma cartográfica; as escalas foram deslocadas a partir de utilização de procedimentos pouco usuais; certos elementos geográficos
menos relevantes seriam propositalmente destacados; finalmente,
alguns topônimos foram registrados através da utilização de rotinas
anormais.
Conforme podemos observar pelo esquema que desenhamos a
partir do Mapa do Rio Grande (Figura 9), ao contrário de praticamente todas as outras cartas do século XIX, a orientação do Mapa de
Ribeiro não é o norte, mas o sul, representando-se, no caso, o espaço
nacional literalmente de ponta-cabeça. E, essa opção do cartógrafo
somente pode ser compreendida se pudermos admitir a existência de
uma apreensão particular do espaço compartilhada pelos conselheiros do Conselho de Estado a despeito de sua irrisão em relação à norma cartográfica. Podemos colocar que se pode verificar uma leitura
semelhante àquela realizada por Ponte Ribeiro em relação à sua composição da ‘Carta geral do Brasil’ em 1873’. E, analisando-se o ‘Mapa
do Rio Grande’ a partir desta lógica do sentido, pode-se entender
128
Renato Amado Peixoto
Figura 7.
Mapa do Rio Grande.
Fonte: RIBEIRO (1840).
129
Cartografias Imaginárias
Figura 8.
Detalhe do Rio Grande do Sul e Uruguai.
Detalhe ampliado do mapa do Brasil.
Fonte: ARROWSMITH (1844).
130
Renato Amado Peixoto
Figura 9.
Esquema do Mapa do Rio Grande.
Fonte: PEIXOTO (s.d.).
131
Cartografias Imaginárias
que a intelecção do Conselho de Estado relacionaria, pela orientação
e pelo enquadramento,83 o espaço não inscrito com o território mapeado, ou seja, a região do Prata com a província do Rio Grande do
Sul, por conseguinte, pode-se deduzir que a relação entre esses dois
espaços e a importância desta relação para o espaço nacional foram as
razões que então nortearam as discussões e subsequentemente condicionaram a composição do mapa.
Em relação às escalas, veja-se que o espaço da República do
Uruguai foi representado com uma superfície bem menor da que era
usual por meio de uma deformação das escalas que acentuava tanto a
curvatura do Rio Uruguai quanto a inclinação da costa em direção ao
interior. Nesse sentido, embora a acentuação da inclinação da costa
sul do Brasil fosse um problema comum na cartografia do início do
XIX por conta do problema da medição das longitudes, esse exagero não se justificaria na medida em que o modelo da composição, a
Carta Arrowsmith, não apresentava uma deformação tão acentuada.
No caso, essa diferença do ‘Mapa do Rio Grande’ em relação à ‘Carta Arrowsmith’ pode ser analisada levando-se em conta dois argumentos: primeiro, que a acentuação da inclinação no mapa tornaria
possível representar no mapa a ideia então presente nas discussões do
Conselho de Estado de que a questão de limites poderia degenerar
numa possível secessão do território do Rio Grande do Sul. O artifício da deformação do desenho do território permite tornar visível
o desligamento do Brasil dos territórios uruguaio e gaúcho sugerinO enquadramento é compreendido aqui como um recorte da superfície terrestre disponibilizado para a leitura através de uma determinada perspectiva possibilitada pelo emolduramento do mapa. Nesse sentido, os paralelos e meridianos que estabelecem esse recorte da
superfície terrestre são instrumentos que possibilitam, num primeiro nível, instituir relações
de pertencimento e exclusão e, num segundo nível, organizar uma estrutura territorial que dê
sentido e referências à construção do espaço. Ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da
Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro através das corografias e da cartografia no
século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
83
132
Renato Amado Peixoto
do não apenas a ideia da continuidade espacial, mas também uma
ação centrífuga com origem no Prata. Segundo, a diferença poderia
ser interpretada como uma alteração do objeto não prevista pelo seu
operador que seria fruto de uma contingência sofrida pela cartografia
brasileira que era a influência do medium cartográfico manuscrito:
como essa deformação era muito mais comum nos mapas manuscritos, poderia haver uma tendência inconsciente de reproduzi-la.
O desenho de um dos elementos cartográficos do Mapa, o Rio
Negro, seria exageradamente dimensionado tanto na sua largura
quanto no seu prolongamento, tendência repetida também para os
seus afluentes. Uma leitura possível dessa diferença em relação às produções cartográficas de seu tempo, é que, a deformação deliberada do
elemento geográfico estaria em consonância com as já citadas ideias
de secessão do território gaúcho e da importância da questão de limites. No caso, se levarmos em conta essas discussões, a deformação
do desenho do Rio Negro e de seus afluentes permitiria transmutar
a ideia da drenagem fluvial do território condizente com o elemento
geográfico numa ideia de direcionamento em função do espaço platino, que organiza o território uruguaio e penetra e absorve o espaço
brasileiro por meio de seus afluentes.
Em relação aos topônimos, uma leitura apresenta-se ainda mais
clara, a partir também das discussões no Conselho de Estado: certos
topônimos foram registrados no mapa numa evidente quebra da rotina cartográfica, a saber, foram registrados ao contrário da orientação
do mapa, de cabeça para baixo. Este registro inusitado foi justamente
o das áreas que alguns conselheiros haviam entendido fazer parte do
espaço brasileiro recorrendo ao instrumento jurídico do uti possidetis, sugestão essa que acabou sendo descartada pela maioria dos conselheiros. No caso, a leitura possível da diferença é a de que Duarte
da Ponte Ribeiro registraria, conforme os costumes do Conselho de
Estado, todas as apreciações mesmo que em desacordo com o pare133
Cartografias Imaginárias
cer final, reservada a licença de diferenciá-las da opinião da maioria.
Contudo, existe um complicador: dois dos topônimos que deveriam
ter acompanhado a quebra da rotina cartográfica foram registrados
conforme a rotina, a saber, o registro no território uruguaio das cidades de Bagé e Alegrete foi feito de cabeça para cima. Por conseguinte, pode-se compreender que Ribeiro sugeriu através da composição
do mapa que a opinião minoritária seria a mais sensata, devendo-se
manter esta área no território nacional.
Duarte da Ponte Ribeiro inscreveu, também, no mapa as sugestões de limites que haviam predominado na discussão do Conselho
de Estado e seu desenho foi feito pela utilização de duas linhas coloridas, uma vermelha, outra azul, as quais foram ligadas ao registro de
uma linha de pequenas elevações, a “Cuchilera Geral do Rio Grande”, e a dois minúsculos elementos geográficos, as ilhas de Castilhos
Grandes e as de Castilhos Pequenos.
Num primeiro momento, ao comparar-se o texto do Memorando 37 com o desenho, percebe-se que a sugestão mais apreciada
por Duarte da Ponte Ribeiro foi desenhada em azul, enquanto que a
outra foi desenhada em vermelho, logo parece satisfatório supor que
houve uma utilização deliberada da cor para impactar a audiência do
mapa, sugerindo uma apreciação negativa pelo vermelho.
Num segundo momento, percebe-se que as duas sugestões de
limites estavam claramente ligadas a uma escolha dos elementos
geográficos registrados no mapa. Nesse sentido, o registro de dois
conjuntos de ilhas que normalmente não seriam grafadas no mapa
em razão de sua pequenez, remetia a uma representação da memória
das antigas reivindicações portuguesas, que estavam relacionadas à
linha costeira e a esse grupo de ilhas. Por outro lado, o registro da
‘Cuchilera Geral’, elevações de escassa importância do ponto de vista
geográfico, remetia a uma representação da interpretação do limite
mais natural do território que, no caso, carecia justamente de marcos
134
Renato Amado Peixoto
geográficos que pudessem ser utilizados para registrar essa interpretação. Poderíamos entender que Duarte da Ponte Ribeiro interpôs
esse registro às sugestões do Conselho de Estado, parecendo esclarecer que essas sugestões, apesar de remeterem às antigas reivindicações
portuguesas, contrariariam o sentido dos limites naturais, que considerava mais útil à defesa do território.
Ainda, outra leitura seria possível a partir do resgate de todos
os elementos e sua ligação com as discussões subsequentes: estar-se-ia
assistindo a exibição de uma nova apreensão do espaço, essa ligada,
por sua vez, a Secretaria dos Negócios Estrangeiros. Nessa apreensão, o Prata era tomado como um espaço além das possibilidades brasileiras e, contrária às posições defendidas no Conselho de Estado
onde muitas vezes se levantavam vozes a favor da reincorporação da
Cisplatina, entendia-se que estas pretensões minavam os recursos de
um território maior, o do Rio Grande do Sul, em detrimento de um
menor, o do Uruguai. Assim, dever-se-ia privilegiar, nas futuras discussões de limites, uma interpretação mais coerente com os esforços
de consolidação do Estado nacional, mesmo que ao preço da cessão
de território, iniciativa essa consolidada por meio da reelaboração do
conceito do uti possidetis.
Conclusão
Machado de Assis lança mão de um artifício para aumentar o impacto do conto ‘O espelho’: o texto termina, abruptamente, com o
Jacobina narrador não se despedindo dos seus ouvintes, estes apenas
percebem, como que acordados de um transe, que o narrador os havia abandonado. “Tinha descido a escada”, a expressão utilizada por
Machado nos recorda que a opção do Jacobina de se negar a repre135
Cartografias Imaginárias
sentar é de todo modo impossível, porque nos remete ao ideal do
anacoreta que, abandonando o lugar em que vivia, em solidão, vai
viver a vida contemplativa.
Sem o mesmo talento (e também sem pretensão para isso), resolvemos fechar este estudo a respeito da ligação entre a ‘Carta Geral
do Brasil’ de Ponte Ribeiro e a ‘Carta Corográfica do Império do Brasil’, de Niemeyer, apenas remetendo a outra lição de Machado de Assis: se o espelho é a metáfora utilizada para nos fazer melhor entender
a ideia da alma externa, será pela diferença em relação ao lugar e ao
tempo que ele nos leva a perceber que aquele era o espelho apenas do
outro Jacobina.
136
O mapa antes do território:
o território do Javari como exemplo da
construção concorrencial de espaços
Pode-se dizer que mapear o território significa inscrevê-lo num determinado espaço e, ao mesmo tempo, possibilitar que a escrita desse
território possa transformar o mapa. O exame dessa construção verdadeiramente recíproca permite identificar certos processos de formação da identidade, clarificando suas estratégias e táticas, considerando para isso que o ato de mapear um território envolve um esforço
continuado (explorar, descrever, cartografar, divulgar) de constante
articulação e diálogo. Nesse sentido, pode-se entender que quando
um indivíduo ou um grupo inscreve um território por meio do mapa
suas impressões e suas descrições de si mesmos são participantes desse
processo, portanto, poder-se-ia dizer mesmo que o mapa é construído, a priori, no conjunto das representações culturais dos narradores
e está sujeito a constantes reinvenções, que são também reelaborações de sua identidade. Nesse processo, os produtos cartográficos e
geográficos participam da interação e competição com outros espaços e identidades, muitas vezes através da concorrência com outras
operações que não podem, do mesmo modo, serem concebidas sem
que um território específico as situe e lhes dê raízes e limites.
A mecânica da concorrência com outros espaços estabelece
137
Cartografias Imaginárias
uma luta de representações que possibilita estimular a coesão interna
e promover a diferenciação externa e que, por outro lado, exige que o
território seja definido tão preciso e completamente até que não haja
dúvida da sua singularidade. Por conta disso, as cartas e as representações geográficas, por interagirem diretamente com o território, podem tornar-se instrumentos de articulação e estratégia que permitem
construir e promover um consenso acerca do espaço e da identidade.
Na lógica do centro, quanto mais precisa fosse a imagem do
território nacional, maiores seriam as chances de se afirmar a singularidade do espaço, mas, num paradoxo, para que se afirme o consenso em torno do local, muitas vezes, torna-se necessário abstrair-se o
todo dessa mesma precisão.
Se a construção da identidade coletiva redefine ou reconceitua
um território, a mudança da escala altera o que é visto e o modo como
os achados serão organizados: a concorrência espacial pode se estabelecer no nível local e construir no interior do território nacional outro
território tão referenciado por sua perspectiva própria que essa exija
uma mudança de articulação e de estratégia da perspectiva central.
Para que se possa aprofundar essas questões e as relacionar com
o problema da construção do espaço nacional, será utilizado o caso
do rio Javari.
As origens da presença portuguesa no Javari
Na fronteira militar portuguesa, a ação humana era determinante
para a indefinição dos limites, como, aliás, verifica-se ainda no léxico do início do século XIX: o ‘Fronteiro’ era o “Capitão da praça,
que está nas rayas, e fronteira inimiga”. A palavra ‘Fronteira’ também
podia significar “Expedição contra terra de inimigos” e tinha como
138
Renato Amado Peixoto
principal definição a palavra ‘Confins’, que possuía então a característica de expressar não somente uma zona larga, profunda, mas também indefinida: “Os Confins, s.m. pl. rayas, extremos, fronteiras de
Terra estrangeira: os confins da Terra”.84
Assim, a fronteira seria uma área que constantemente poderia
ser movida para a frente, contra o inimigo, depois do território parcialmente conhecido, o Sertão. Nesse sentido, nas narrativas portuguesas sobre o Brasil, a linha da fronteira é vista como delimitando
simultaneamente o ponto onde cultura e natureza se cruzam: é o
ponto de encontro entre a selvageria e a civilização. Veja-se a descrição do território do rio Javari:
Em ambos os rios laterais se criam os mesmos peixes do Solimões; ambos oferecem extensa navegação
para transporte das produções do país às margens do
que os recolhe. Nas adjacências dum e outro há salsaparrilha, e também cacaueiros. Os confluentes, que
os engrossam, são-nos incógnitos. Os seus extensos
bosques, onde se cria e perde preciosa madeira, são
povoados de porcos, antas, veados e outras raças miúdas, geralmente perseguidas por várias nações ainda
selváticas [...], os Maiurunas, que fazem uma coroa
no mais alto da cabeça, e deixam tomar aos cabelos
todo o seu crescimento. Tem muitos furos no nariz e
beiços, em que metem espinhos compridos; nos cantos da boca trazem penas de arara. No lábio inferior,
na extremidade do nariz e das orelhas, penduram rodelinhas de conchas. São antropófagos; e quando os
mesmos parentes adoecem gravemente, matam-nos,
para os comer antes que emagreçam com a moléstia
[...](CASAL, 1943).
84
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos
impressos até agora, e nesta segunada edição novamente emendado, e muito accrescentado.
Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813. p. 442.
139
Cartografias Imaginárias
Dos seus costumes, dizem que são mui bárbaros,
sendo mesmo antropófagos não só para com os inimigos, como para com os de sua própria nação que
estão muito doentes ou muito velhos, tomando parte
nos banquetes os próprios filhos e pais dos que foram
mortos. [...] Que eles são ferozes, que matam seus
inimigos sem perdão e que com os ossos das canelas
fazem ornamentos [...] (MARAJÓ, 1895).
Observe-se a presença na descrição do léxico ‘Nação’ para designar “Raça, casta, espécie” e não “A gente de um país, ou região, que
tem Língua, Leis, e Governo a parte,” ‘País’ tinha então o significado
tão-somente de “Terra, região”.85 O território do Javari foi descrito,
portanto, nos confins do espaço português, a partir da ótica mercantil da Metrópole, de acordo com as possibilidades de exploração
econômica das quais os indígenas eram um fator impeditivo, mas aos
indígenas seria reconhecido um estatuto próprio.
Especificamente no caso do Javari, este rio era, ao mesmo tempo, o único limite natural da Amazônia e o marco mais ocidental da
fronteira portuguesa, o qual somente se alcançava após uma jornada
de oitenta e sete dias de canoa a partir de Belém do Pará. Por que se
estabeleceria como limite natural uma parte tão remota do espaço
português, fora do circuito de expansão mercantil e dos interesses estratégicos, como explicar essa excentricidade no modelo de espaço?
No século XVIII, após terem sido desalojados de suas pretensões no alto Solimões, os portugueses aquartelaram na foz do Javari
a sua última guarnição antes dos territórios espanhóis e esta, por sua
vez, foi transferida por causa dos ataques dos índios e das péssimas
condições do terreno para um lugar duas léguas acima do Solimões,
85
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da Língua Portugueza recopilado dos vocábulos
impressos até agora, e nesta segunada edição novamente emendado, e muito accrescentado.
Lisboa: Typographia Lacérdina, 1813, p. 442.
140
Renato Amado Peixoto
onde já estava estabelecido um posto de inspeção.86 Ali foi fundado o
presídio de São Francisco Xavier de Tabatinga, num sítio mais amplo
e de melhor posição estratégica, sobre um barranco de onde se avistava tanto a foz do Javari, quanto os territórios espanhóis limítrofes.87
Entretanto, ainda que Tabatinga passasse a partir desse momento a
abrigar a derradeira presença portuguesa na Amazônia ocidental,
o abandonado rio Javari se sustentaria enquanto marco natural na
fronteira amazônica, sendo reconhecido enquanto tal pela Coroa espanhola através da linha provisória demarcada, em 1751, e posteriormente ratificada em 1777.
Ainda que os Tratados de Madrid e Santo Ildefonso tivessem
sido repudiados por Portugal e depois pelo Brasil, o Javari jamais deixaria de ser considerado tanto pela Espanha como pelos Estados que
a sucederam como o limite natural com o Brasil. Entretanto, o Javari
escapava mesmo da estratégia da fronteira militar portuguesa, pois
não tinha importância para a navegação, não apresentava nenhum
interesse para a penetração dos interesses mercantis, não se prestava à
catequese nem ao aldeamento dos índios, nem havia perspectiva para
o seu povoamento: numa fronteira móvel, destinada a penetração, o
território do Javari era a própria materialização da inércia.
O espantoso, é que no caso do rio Javari, ao contrário do rio Madeira, a presença portuguesa continuaria apenas simbólica, uma vez
que o seu “sinuoso e lentíssimo curso,” como era descrito na época,
era despovoado e, sobretudo, desconhecido, devido às dificuldades
reais ou imaginárias.88
86
PINTO, Alfredo Moreira. Apontamentos para o dicionário geográfico do Brasil (III). Rio
de Janeiro: Imprensa Nacional, 1889.
SILVA, Ignacio Accioli de Cerqueira e. Corografia Paraense ou descrição física, histórica e
política da província do Grão-Pará. Salvador: Typografia do Diário, 1833. p. 309-310.
87
Símbolo dessas dificuldades, é que ainda em março de 1903, 60 fuzileiros navais embarcaram no Cruzador Barroso e seguiram para Tabatinga, na Amazônia, onde, estacionados, ve-
88
141
Cartografias Imaginárias
As explorações do século XIX
No decorrer do século XIX, o território do rio Javari passaria a ser
descrito diferentemente do período colonial: a cristalização da nação
se impunha por meio da racionalização que conquista e bane o mistério, nega e extirpa outros povos. Paisagem e população passariam
a ser classificadas e analisadas, não apenas em função da utilidade
mercantil, mas em termos de quantidade, qualidade e diversidade.
Os indígenas veriam desaparecer gradualmente seus atributos de diferenciação, uma vez que, no novo discurso da fronteira cristalizado
pela doutrina do uti possidetis, o sujeito ativo era usualmente negado.
Sublinhar-se-ia nos indígenas apenas a circunstância de seu não pertencimento à civilização e de participação numa nova ordem da qual
os exploradores tinham o controle e de onde, inclusive, poderiam adquirir novas qualidades:
Alguns [indígenas eram] inteiramente brancos [...] as
mulheres [...] não pintavam o corpo e eram esbeltas e
elegantes [...] Eram ousados e valentes, atacando o civilizado de frente e não por traição [...] casavam-se na
idade própria, por amor e inclinação [...] eram antropófagos mesmo entre si, não poupando os próprios
parentes, salvo se a morte tivesse sido provocada por
veneno ou moléstia epidêmica. Não poupavam os inimigos, matando-os sem piedade, e de maneira atroz
[...] o prato predileto nos canibais festins, [eram] os
miolos e as mãos das vítimas, apreciando em demasia as dos homens civilizados. Dos ossos, dentes, etc.
faziam troféus de guerra, conservando alguns a cabelariam pela neutralidade brasileira no conflito Peru-Colômbia. Em quatro meses, uma febre
equatorial dizimou o contingente, regressando para o Rio de Janeiro, como sobreviventes, um
sargento, dois cabos e três soldados. MARTINS, Hélio Leôncio. Poderes Combatentes. In:
História Naval Brasileira 5 Tomo I B,. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha,
1997. p. 91.
142
Renato Amado Peixoto
ça da vítima na frente de suas malocas, espetada na
própria lança do guerreiro que a matou (CUNHA
GOMES, 1898).89
Note-se que, apesar da diferença em relação às narrativas coloniais, essas descrições do território do Javari eram apenas reelaborações das primeiras, uma vez que poucos homens brancos se aventuraram a percorrer o rio Javari antes do boom da borracha.90 Esses
homens, demarcadores e exploradores, pressionados pelas dificuldades materiais do empreendimento, produziram os mais duvidosos e
desencontrados relatos, os quais contribuiriam para tornar o Javari o
“rio misterioso” das narrativas do século XIX e induzir em erro toda
a cartografia da época.
Por exemplo, a comissão de demarcação portuguesa de 1781
calculou haver descido 210 milhas do rio, estimando que seu curso se
estendesse para noroeste até atingir 5° 36’ de latitude Sul e inscreveu
os dados obtidos num mapa que foi manuscrito em 1786. 91 Nesse
mapa, dois símbolos topográficos foram assinalados no curso médio
do Javari, indicando-se a existência de duas ‘Vigias’ (Figuras 10 e 11),
termo que, segundo o vocabulário da época, poderia significar a existência de bancos de areia ou, menos possivelmente, locais onde houvessem sido instaladas sentinelas às margens do rio.
Décadas depois, o plenipotenciário brasileiro quando da negociação de limites com o Peru, Duarte da Ponte Ribeiro, relataria estuRelatório da exploração do Rio Javari por Cunha Gomes ao Ministro das Relações Exteriores. In: Relatório do Ministro das Relações Exteriores, 1898. p. 247.
89
“[...] nenhum explorador ou flibusteiro conseguira navegar [o rio Javari] por mais de três
dias sem ser massacrado” TEFFÉ, Tetrá. Barão de Teffé - Militar e cientista. Biografia do
Almirante Antonio Luiz von Hoonholtz. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral
da Marinha, 1977. p. 239.
90
Carta do rio Javari até a latitude meridional 5° 36’ pelos Engenheiros José Joaquim Victorio da Costa e Pedro Alexandrino de Souza, 1787.
91
143
Cartografias Imaginárias
Figura 10.
Detalhe do rio Javari com as vigias. Detalhe ampliado
da Carta da Nova Lusitânia
Fonte: LEME (1798).
144
Renato Amado Peixoto
Figura 11.
Carta da Nova Lusitânia.
Fonte: LEME (1798).
145
Cartografias Imaginárias
pefato que os representantes daquele país reconheceram de pronto a
posse brasileira de todo o território do Javari apenas baseados no fato
de seus próprios mapas registrarem duas povoações brasileiras no
curso médio do rio.92 Provavelmente, este grave erro da diplomacia
peruana se deveu ao fato de se terem consultado mapas cujos autores
haviam copiado os dados do mapa de 1786 e, mal interpretando o
significado das ‘Vigias’, transcreveram-nas como duas localidades.93
Depois disso, o Javari somente seria navegado nas décadas de
1840 e 1850, dessa vez, pelos exploradores W. L. Herdon e F. L. Castelnau, o primeiro dos quais havia recebido da Marinha americana
a missão de explorar o vale do Amazonas, enquanto que o segundo
estava executando a viagem por ordem do Governo francês, num roteiro que ia do Rio de Janeiro até Lima e daí novamente até Belém.
Estas duas expedições, que já se inserem no âmbito da produção de
espaço concorrencial, produziriam resultados bastante diversos em
relação ao Javari: Herdon diria ter reconhecido 183 Km do rio, enquanto que Castelnau alegaria ter penetrado profundamente o Javari
por 270 milhas estabelecendo assim a direção de seu curso em leste-oeste!94
Alguns anos depois, em 1866, uma expedição conjunta brasileiro-peruana destinada a verificar a fronteira entre os dois países
(posteriormente denominada expedição Soares Pinto – Paz Soldán),
tentou determinar a nascente do Javari, mas foi arrasada pelos indígenas na latitude 6° 50’ Sul tendo falecido ali o Capitão-tenente Soares
Pinto, considerado então um dos maiores hidrógrafos e astrônomos
brasileiros.
92
Protocolo da Negociação do Tratado de Limites com o Peru, concluído em 23 de outubro
de 1851. Acesso em AHI - Arq. Part. Ponte Ribeiro.
93
Um desses exemplos é a carta Leme. Ver LEME, Antonio Pires da Silva Pontes. Carta da
Nova Lusitânia. Lisboa: [s.n.]. 1798.
94
Castelnau navegou o Javari entre os anos 1843-1847 e Herdon em 1854.
146
Renato Amado Peixoto
Somente em julho de 1874, seria designada um nova comissão
para verificar as origens do Javari, dessa vez sob o comando de Antônio Luiz von Hoonholtz, professor de hidrografia da Escola de Marinha desde 1857, autor da primeira obra em língua portuguesa sobre
hidrografia e do mapa da Ilha de Santa Catarina que foi incluído no
prestigioso Atlas Mouchez. Na sua narrativa, Hoonholtz assinalava
que “ninguém havia ultrapassado impunemente a foz do rio Galvez”
e que ele mesmo só havia conseguido determinar a nascente do Javari
em 7° 06’ depois de ter travado duas dificílimas batalhas com os indígenas e após cortar 176 grossos troncos de árvore que serviam de
ponte àqueles (os troncos estavam atravessados de margem a margem
do Javari impedindo a navegação).
O relato sublinha ainda que a nascente do rio Javari foi determinada com o auxílio apenas do último dos nove cronômetros com
que iniciara a jornada e que morreram nesse esforço 23 dos seus 82
homens (notícias posteriores deram conta de 53 mortos, dentre os
quais o próprio irmão do explorador), ainda que tivessem navegado
em canoas protegidas por uma grossa tela de arame e praticamente
não houvessem desembarcado.
As memórias dessa viagem exploratória, publicadas na França
por Alfred Marc, têm o título de “Um explorador brasileiro, dois mil
quilômetros de navegação em canoas através de um rio inexplorado
e completamente dominado por selvagens ferozes e indomáveis.” Sugestivamente, ainda que por conta desse feito Hoonholtz tenha sido
agraciado com o título de Barão, o explorador não quis que o título se
referisse ao Javari, preferindo ser reconhecido como o Barão de Tefé,
lugar onde a jornada terminou.
Entretanto, ao contrário do que seria de se esperar, a conclusão
dessa expedição seria muitíssimo mal recebida por seus compatriotas, uma vez que, por conta dos padrões de limites que haviam se
147
Cartografias Imaginárias
estabelecido através dos atlas, a soberania brasileira sobre a área incluiria não só o Javari, mas ainda todo o território à leste desse rio,
já que se traçava, na maioria das representações cartográficas estrangeiras, uma reta de sua nascente até encontrar o rio Madeira, logo,
quanto maior fosse a extensão do rio Javari, maior seria o território
pertencente ao Brasil.
O Javari na cartografia
Ainda que ao início do século XIX, a Corografia Brasílica houvesse
localizado as nascentes do rio Javari em 7° 30’, (quase o mesmo valor
que é atribuído atualmente, aproximadamente 7° 01’), os mapas portugueses e atlas estrangeiros, como o La Rochette de 1807 (desenhado em grande parte sobre as mesmas cartas), passariam a prolongar
a extensão do rio Javari até 10º 20’, valor este que em que chegaria
mesmo a 12º no Atlas Balbi-Monlon.95 No entanto, ainda que essa
representação cartográfica prevalecesse nos atlas estrangeiros, outros
padrões de limites que negavam aquele território ao espaço brasileiro
também passaram a ser divulgados surgindo, para o Brasil, a necessidade de se construir uma visão cartográfica oficial.
As iniciativas governamentais tardariam, tomando mais ímpeto apenas na década de 1870, a partir da necessidade de embasar a
presença brasileira nas Exposições Universais, sendo então estabelecidas várias comissões destinadas a elaborar a Carta Geral do Brasil,
resultando destas, após inúmeros adiamentos e contratempos, duas
Cartas oficiais do Império Brasil, as de 1873 e 1874, apresentadas
respectivamente na Exposição Universal de Viena em 1873 e na ExBALBI, A.; MONLON, Emile. Atlas da Geographia Universal. Paris: J. P. Aillaud Monlon e Cª, 1858.
95
148
Renato Amado Peixoto
posição Nacional de 1875. De todo modo, algumas outras iniciativas
esparsas se fizeram sentir, como, por exemplo, a concessão do primeiro prêmio geográfico no IHGB para o autor de uma carta do Império
já em 1846 e a organização do Atlas Almeida, “destinado à instrução
pública no Império com especialidade à dos alunos do imperial Colégio de Pedro II” (ALMEIDA, 1868).
No que se refere particularmente ao rio Javari, as obras resultantes do esforço nacional endossariam a posição brasileira corrente até
o ano de 1875, quando da publicação da ‘Carta do Império do Brasil’,
onde a pretensão de soberania total sobre o território do Javari foi
subitamente abandonada.
Por que uma mudança tão repentina após quase cem anos de
narrativas geográficas e registros cartográficos noutro sentido?
Esta mudança da posição oficial foi realizada por razões de estado: em 1867, durante a Guerra do Paraguai, com o objetivo de garantir a neutralidade da Bolívia no conflito, o Brasil assinaria com este
país o Tratado de Ayacucho, no qual, pela primeira vez, o Governo
brasileiro admitia abrir mão da soberania integral sobre o Javari: caso
algum dia se constatasse que esse rio ultrapassava o paralelo de 10º 20’,
seu curso inferior passaria a pertencer à Bolívia, ou numa hipótese
mais prejudicial ainda ao Brasil, se a cabeceira do rio fosse localizada
em uma latitude inferior, o território entre essa e o referido paralelo
seria boliviano.
A partir da expedição de Hoonholtz, e por uma via tortuosa, já
que a missão exploratória se destinava a balizar os limites do Brasil
com a república do Peru, ficaria confirmada a segunda conjetura e o
Brasil perderia a maior parte do território naquela área, já que o misterioso rio Javari encolheria substancial e subitamente.
Entretanto, esta representação do espaço brasileiro que se consolidava através de instrumentos jurídicos internacionais não havia
149
Cartografias Imaginárias
contemplado uma articulação com as elites regionais que incluísse
suas expectativas em relação à construção local de espaço.
As lutas pela representação do Javari
A província do Amazonas experimentaria um intenso desenvolvimento a partir dos meados da década de 1860, fruto da migração
nordestina e dos altos lucros provenientes da exportação de um produto, a borracha, que seria responsável pela produção de uma forte
identidade local:
A província do Amazonas, assim como a sua limítrofe do Pará, são as duas que oferecem um futuro mais
grandioso em todo o Império. Apesar do seu desenvolvimento se ter feito lenta e parcamente, por circunstâncias especiais da sua situação nos confins do
litoral marítimo e da metrópole, a riqueza espontânea
de seu imenso território, a opulência das numerosas
artérias fluviais e a proximidade dos muitos estados e
colônias estrangeiras, hão de necessariamente dar-lhe
um impulso vigoroso e constituir uma nação rica, forte e colossalmente grandiosa.96
Esta identidade divergiria da construção historiográfica idealizada no IHGB, uma vez que não era construída em relação com a tradição, mas com o novo, comprometendo-se com a abertura a outras
culturas e a uma conexão com outros países que quase substituía a
ligação com o centro. O Amazonas, segundo essa construção, seria o
país do futuro, uma terra de oportunidades, habitado em sua grande
maioria por migrantes e estrangeiros, aos quais os naturais já estavam
96
SILVA, Viriato Augusto da. Corografia do Brasil. Lisboa: D. Corazzi, 1882. p. 38.
150
Renato Amado Peixoto
integrados, preenchido por uma natureza prestes a ser submetida
pelo progresso e pela civilização trazida pela opulência:
As febres intermitentes, que podem ser contraídas
por impureza das águas, não são endêmicas e quase
nunca atacam as pessoas que filtram o precioso líquido para bebê-lo, andam calçadas e confortavelmente
vestidas, evitando os banhos fora das horas matinais
(GONÇALVES, 1904).
Nesse contexto, também a noção dos limites territoriais dessa
nova identidade não coincidiria mais com as cartas oficiais que, cada
vez mais desacreditadas, não impediram que em Manaus se passasse a conceder lotes de terras com títulos definitivos de posse no rio
Acre, muito ao sul da fronteira estabelecida pelo governo central, por
exemplo, a constituição da comarca amazonense de Antimary excederia até os padrões de limites anteriores a expedição de Hoonholtz,
ultrapassando muito o paralelo de 10º 20’.
No entanto, essa divergência não se limitava à região do Javari.
Segundo uma corografia divulgada no Estado, que inclusive ainda
mantinha inclusa a carta oficial do Brasil, o limite do Amazonas com
a Colômbia seria o antigo rio dos Enganos, o que permitia estender o
espaço local até os contrafortes da Cordilheira dos Andes. A própria
exploração comercial da região que o Javari delimitava passou a ser
incentivada pelo governo estadual, apoiada na lógica de que a metade
da sua produção de borracha provinha daquela área.
Concomitantemente, diversos geógrafos e militares no Rio de
Janeiro passaram a contestar a perspectiva de espaço central, posicionando-se contra a cessão do território do Javari com argumentos que
reinventavam os padrões de limites, no caso, argumentando que as
nascentes do Javari só poderiam estar onde sempre estiveram: “pelo
menos, na altura de 10° 20’, isto é, no paralelo do Madeira.”
151
Cartografias Imaginárias
A luta de representações se intensificaria com a República, estendendo-se então ao próprio Ministério das Relações Exteriores,
que emprestaria credibilidade a estas suposições ao constituir duas
novas expedições com o propósito explícito de determinar as nascentes do Javari, nos anos de 1897 e 1902. Contraditoriamente, entre os anos de 1895 e 1899, também seriam tomadas uma série de
providências destinadas a defender a soberania da Bolívia sobre a
área pretendida pelo Amazonas, reconhecendo-se como ilegais os
decretos de Manaus, autorizando-se a criação de uma alfândega e
demais repartições bolivianas na região e instalando-se um consulado brasileiro na povoação de Porto Alonso, centro do território
disputado.
A reação do governo amazonense e dos comerciantes locais,
contando com o apoio popular, foi incentivar a desobediência às diretrizes do Rio de Janeiro e apoiar a guerrilha contra as autoridades
bolivianas:
[...] àquela porção de brasileiros, que em zona longínqua, regam com seu sagrado sangue a idéia patriótica
de fazer permanecer brasileira a larga faixa de terra
ora ocupada pelo estrangeiro, ao sul da chamada linha Cunha Gomes, que o governo vê-se obrigado
a respeitar por força de um tratado. Por mais ilegal
que pareça este proceder dos insurretos, traduz um
belo movimento de patriotismo e os sentimentos
apurados do direito de propriedade que, no dizer de
von Thering, é um prolongamento da personalidade
mesma, parte integrante do indivíduo, porque é a sua
condição de coexistência social. Homens que, arriscando a vida, conseguiram construir habitação, constituir um lar, fundar uma propriedade em territórios
inexplorados, que possuíam como pedaços da pátria,
a cujas leis eram obedientes, não se podem conformar
152
Renato Amado Peixoto
a ver, de um momento para o outro, perdidos todos
os seus esforços inteligentes, passando a leis diversas
em estranha pátria (GONÇALVES, 1904).
Já em 1900, a eleição para o governo do Amazonas seria ganha
por Silvério Nery, cuja principal plataforma de governo era
a idéia de despertar, por todos os meios justos e legais, a atenção dos poderes públicos da União para
uma ação comum, tendente a reivindicação do Acre
[onde] o estrangeiro, tendo invadido, com o assentimento do governo federal, uma parte do território amazonense, parecia zombar de nossos direitos
(GONÇALVES, 1904).
Iniciar-se-ia, em seguida, uma campanha de imprensa e intensas
pressões no Congresso com vistas a defender os interesses de Manaus,
onde o ex-ministro das Relações Exteriores tentaria negar autoridade
à visão local de espaço:
[...] [esta] questão que não existe [...] esta questão [a
do Acre] que nasceu nas praças comerciais de Belém
e Manaus, de lá subiu ao palácio do governo do Amazonas, daí se propagou aos seringais do Acre, fosse
agitada na imprensa diária, até que vieram morrer
suas ondas na outra casa do Congresso (CERQUEIRA, 1901).
No centro de toda a controvérsia, encontrar-se-ia de novo o rio
Javari: de supetão, as discussões se encaminhariam nos meios geográficos até que se tornasse majoritária a ideia que o rio explorado por
Hoonholtz não era o Javari, mas apenas um braço deste, o Jaquirana,
sendo necessário, portanto, prosseguir no esforço de encontrar o fugidio rio.
153
Cartografias Imaginárias
Sob tais circunstâncias, Dionysio Cerqueira, o ministro das Relações Exteriores, enunciaria a posição do Governo em um pronunciamento estranho e, no mínimo, enigmático:
Vou demonstrar que a fronteira do Brasil com a Bolívia, entre os rios Madeira e Javari, é a linha geodésica que liga a foz do Beni à nascente do Javari, e não
uma linha, que não é linha, mas um ângulo formado
de duas linhas, ou uma linha que é constituída por
dois lados de um ângulo, cujo vértice é o ponto de
intercessão do meridiano que passa pela cabeceira do
Javari, e pelo paralelo que passa pela boca do Beni, e
cujos extremos são as cabeceiras do Javari e a boca do
Beni (CERQUEIRA, 1901).
A partir desse momento, toda a questão fora remetida ao marco zero, uma vez que o rio Javari, o qual balizara as fronteiras do
Brasil desde o século XVIII, simplesmente desaparecera, permitindo-nos parodiar o que certa vez disse o próprio Barão de Tefé: “[...]
escondia-se a fonte desse rio misterioso, quase encantado” (VIANA
FILHO, 1959).
A confusão se transformaria ainda numa questão da campanha
presidencial capaz de mudar os rumos da eleição: acompanhando
a tendência do eleitorado, Rodrigues Alves passaria a demonstrar
simpatia pelos chamados “combatentes do Acre”. Eleito, este reconstruiria a articulação do centro com a periferia designando para o
Ministério das Relações Exteriores um indivíduo já reconhecido por
suas ligações com as questões de limites: Rio Branco. Este, em 18 de
Janeiro de 1903, faria um comunicado à Bolívia no qual se informava
que o Brasil passaria a sustentar o que considerava a verdadeira interpretação do Tratado de Ayacucho: a fronteira brasileira era o mítico
nascedouro do Javari, “o paralelo de dez graus e vinte minutos”.
154
Renato Amado Peixoto
Remate de Males
Depois da compra do Acre, o Javari já estava aberto à navegação comercial até a sua principal povoação, denominada então Remate de
Males, localizada na confluência com o rio Itecuaí e ainda em vapores
e lanchas até a confluência com o rio Curuçá. A companhia de navegação que prestava esse serviço era inglesa, a The Amazon Steamship
N. Company, Ltd. e navegava uma vez por mês esse percurso. Remate
de Males possuía naquele ano mais de 1.000 habitantes e contava com
uma escola pública mantida pelo governo do estado do Amazonas.97
Consta que o nordestino que lançou os fundamentos dessa povoação chegou à Amazônia fugindo da seca depois de haver experimentado todo tipo de dificuldade: lá se tornaria ainda mais infeliz,
perdendo o que lhe havia sobrado da família e os últimos recursos
conseguidos. Em seu leito de agonia, desanimado, resolveu batizar a
localidade de Remate de Males.98
Após a reinvenção do espaço nacional e depois de finalmente se
haver descoberto que o rio Javari não estivera onde se acreditara houvesse existido, Remate de Males mudaria de nome: passaria a se chamar Benjamim Constant, um dos patronos da República – do Brasil.
GONÇALVES, Lopes. O Amazonas - Esboço histórico, corográfico e estatístico até o ano
de 1903. New York: Hugo J. Hanf, 1904. p.72-73.
97
BITTENCOURT, Agnelo. A psicologia nos nomes geográficos do Amazonas. In: Mosaicos do Amazonas - Fisiografia e demografia da região. Manaus: Edições Governo do Estado
do Amazonas, 1966. p. 128.
98
155
Os dromedários e as borboletas:
uma análise da produção da espacialidade regional por meio da
‘Comissão Científica de Exploração’ do IHGB (1855-1862)
Uma das características da construção do espaço nacional, no século
XIX, é que ela propicia as condições para a integração das elites num
sistema institucional central, uma vez que o reconhecimento mesmo
da existência do centro dependia da manutenção da afinidade entre
os vários grupos que residiam no território. Assim, o projeto histórico caminhou, num jogo de tensões e contratensões, pari passu com
a constituição de um saber sobre o espaço que possibilitou o estabelecimento do consenso acerca da identidade. Este processo descontínuo e heterogêneo pode ser revelado pelo exame das iniciativas e da
produção sobre o espaço do período, uma vez que sua discussão mesma seria estratégica para as partes envolvidas. Um dos lugares estratégicos para esta investigação é o IHGB, uma vez que seus mecanismos internos estimularam a manutenção continuada de elos entre o
centro e as partes, numa colaboração acentuada pelo pertencimento
de seus membros a outras instituições. O exame de uma de suas iniciativas, a Comissão Científica de Exploração, se torna estratégico na
medida em que seus resultados interessavam simultaneamente tanto
ao centro quanto às elites regionais e acabariam expondo os limites
entre a tensão e o entendimento.
157
Cartografias Imaginárias
Alguns autores têm apontado os anos setenta do século XIX
como o início da chamada diferenciação regional no Brasil, quando
se teria constituído uma argumentação que passava a dissociar claramente os espaços norte e sul do Brasil. Evaldo Cabral de Mello
discerniu-a nos discursos das elites políticas do final do Império,
entendendo que teria sido motivada pela modificação do equilíbrio
inter-regional e intrarregional.99 Rosa Maria Godoy entenderia, por
sua vez, que, a partir desta argumentação, fundamentar-se-ia uma
identidade regional e uma narrativa territorial nortista que se consolidaria a partir dos acontecimentos que desencadearam o Congresso
Agrícola do Recife de 1878.100 Nesse raciocínio, a identidade nortista
seria então caracterizada pela perspectiva que a classe dominante teria
do processo como um todo, o que teria levado à elaboração de uma
narrativa que articulava o discurso regional à narrativa da unidade
nacional enquanto parte de uma estratégia que visava à manutenção
de seus privilégios. Por sua vez, os elementos que constituíam o discurso da regionalidade resultariam de uma perspectivação do espaço
regional como um domínio das antigas práticas e lugares sociais.
Por meio do raciocínio dos dois autores, poderíamos entender
que o espaço nortista foi constituído numa tensão entre a estratégia
inter-regional e a reafirmação da inscrição intrarregional, tensão essa
que teria se inflectido na elaboração do discurso nortista, uma vez
que sua estrutura narrativa articulou metáforas claramente opostas
na busca de uma unidade de sentido. Em relação ao tema do espaço,
por exemplo, as metáforas através das quais o Norte é descrito enquanto uma região superior às demais, seja em cultura seja em produção, convivem com metáforas que o identificam como um território
MELLO, Evaldo Cabral de. O Norte Agrário e o Império, 1871-1889. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999.
99
SILVEIRA, Rosa Maria Godoy. O Regionalismo Nordestino: Existência e Consciência
da Desigualdade Regional. São Paulo: Editora Moderna, 1984.
100
158
Renato Amado Peixoto
abandonado ou permanentemente vitimado por acontecimentos naturais fora do seu controle. Do mesmo modo, o tema da identidade
se compõe tanto por metáforas que fazem referência a valentia, capacidade de luta e a vontade de independência contra o colonizador,
contra Palmares, contra o Governo Central, quanto pela uma generosidade e capacidade de convivência com as chamadas ‘Províncias
irmãs’. Portanto, a semântica do discurso nortista ou pernambucanista evidenciaria uma retórica que conjuga a inserção diferenciada no
espaço nacional com um sentido de arrumação regional preciso.
Neste estudo, pretendemos observar que o sucesso do discurso regional não se deu a despeito dessa tensão evidente na estrutura
narrativa, mas porque essa tensão foi capaz de se articular com outras metáforas mais antigas que compunham um saber sobre o espaço cuja semântica era partilhada e compreendida tanto pelas elites
que organizavam um espaço nacional centralizado no Rio de Janeiro
quanto por aquelas elites que se tornariam agentes e recipientes da
construção regional. Nesse sentido, entendemos que vários dos elementos utilizados na elaboração do discurso regionalista, na década
de 1870, já eram de uso corrente na linguagem sobre o espaço desde
pelo menos vinte anos antes e serviam então para constituir certas representações que inscreviam o território e seus habitantes no espaço
nacional. Contudo, essa inscrição não deve ser compreendida como
tendo sido feita do centro do espaço contra sua periferia, mas pela recepção da periferia no centro do espaço e pela coadunação de interesses e demandas. A inscrição da região e de seus habitantes no espaço
nacional se deu, portanto, em meio de uma operação que também os
instituía como operadores junto a uma simbolização das representações já constituídas.101
Quanto à idéia de simbolização, representação e operação Ver CASSIRER, Ernst. A Filosofia das formas simbólicas. II – O pensamento mítico. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
101
159
Cartografias Imaginárias
Examinaremos com o objetivo de articular esta operação com a
construção do território e da identidade nortista os discursos acerca
da instalação e dos resultados da ‘Comissão Científica de Exploração
do IHGB’, que percorreu as províncias do Ceará, Piauí, Pernambuco,
Paraíba e Rio Grande do Norte entre 1859 e 1861. O exame desses
discursos se torna relevante na medida em que nos permite observar as transformações da semântica e da retórica que constituíram as
metáforas utilizadas na inscrição da Região em meio à operação da
territorialização de seus domínios na construção do espaço nacional,
já que os discursos foram emitidos em meio a sua produção e por meio
dessa produção, o que nos permite inferir que a transformação metafórica foi uma resultante do acordo entre as partes.
A Comissão Científica de Exploração do IHGB
A Comissão Científica de Exploração nasceu das discussões que dividiram o Instituto entre 1853 e 1854, e que consistiram essencialmente na disputa acerca da delimitação das atribuições do IHGB, no
caso, opondo aqueles que entendiam que o Instituto deveria manter-se enquanto um mero aparelho legitimador do Estado e os que pensavam que o IHGB deveria assumir na íntegra suas funções enquanto
sociedade científica. Embora o segundo grupo vencesse a disputa, ele
acabaria convergindo, por conta dos argumentos nacionalistas esgrimidos na querela, para uma posição comum de rejeição aos relatos
dos viajantes estrangeiros, acusados de falsificar e distorcer a verdade
sobre o país, numa leitura condizente com o entendimento de que a
Em relação à conexão dessas ideias com a construção do espaço nacional brasileiro ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional brasileiro
através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese – (Doutorado em História)
– UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
160
Renato Amado Peixoto
corografia do território passava a ser então uma das prerrogativas do
Instituto e que esse deveria passar a assumir uma participação mais
ativa em relação à questão.102
Assim, em 1856, no bojo de mais um debate a respeito dos trabalhos dos viajantes estrangeiros, seria possível formular-se a proposta da formação de uma “comissão de engenheiros e de naturalistas nacionais” que deveria ser destinada a explorar “algumas das províncias
menos conhecidas do Brasil”, tendo ainda a missão complementar de
formar uma coleção de espécimes da fauna, da flora e da cultura indígena para enriquecer as coleções do Museu Nacional.103
Por conseguinte, a proposta de formação da Comissão se amparava num entendimento comum à maioria de seus membros, mas
como essa iniciativa dependia dos recursos do Estado para efetivar-se, a busca de um estatuto científico por parte do IHGB passou a
depender das reviravoltas da política.
Embora o aceite do Governo e a nomeação dos membros da
Comissão pelo Ministro dos Negócios do Império tenham sido comunicados ao IHGB já na sessão de 25 de julho de 1856,104 a Comissão somente começaria seus trabalhos três anos depois. Isto pode
ser explicado por meio de um remetimento ao próprio caráter da
composição do Instituto que, por conta de seus princípios de recrutamento, fazia reunir, muitas vezes na mesma Seção, aqueles que se
revezavam numa só função do aparelho de Estado. O fato é que as
desavenças surgidas durante as discussões de 1853 e 1854 haviam
tornado os chefes da Comissão desafetos dos que se encontravam a
frente do Ministério dos Negócios do Império, problema este que se
Veja-se, por exemplo, o ataque de Manoel Ferreira Lagos à obra de Castelnau: Revista do
IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XVIII, 1855. p. 28. Suplemento.
102
103
REVISTA DO IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 11-12. Suplemento.
104
REVISTA DO IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 21. Suplemento.
161
Cartografias Imaginárias
refletiu no corte de suas verbas, causando os sucessivos adiamentos
dos preparativos para a viagem.105
Por conta disso, a Comissão Científica de Exploração somente conseguiria chegar a Fortaleza em 1859, quando inauguraria uma
atuação que seria depois lembrada pelos episódios escandalosos ou
cômicos, os quais, tornando-se destaque nos mexericos da Província
e da Corte, acabariam por lhe indispor o Governo e o Parlamento.
No Senado, referia-se a ela como a ‘Comissão das Borboletas’,
lamentando-se a insensatez de se gastar tanto dinheiro público apenas para que se juntassem tais insetos. Em Fortaleza apelidaram-na
de ‘Expedição Defloradora’, entendendo ser o desregramento o objetivo central de seus membros. Salientava-se o despudor de seus
membros ao circular pela cidade de bermudas e em fraldas de camisa.
Falar-se-ia também do desatino de seus integrantes, capazes de, em
suas viagens pelo interior da província, usar chapéus cujo preço equivalia ao de dez bois. Ficaria registrado no folclore da cidade o dia em
que a população assistiu embasbacada ao desembarque de quatorze
dromedários junto com seus tratadores argelinos, providência que,
comentava-se, não teve nenhuma serventia. Dir-se-ia, ainda, que os
chefes da Comissão teriam afundado propositalmente o navio que
levava parte do material coletado de modo que não lhes pudesse ser
cobrada a falta de resultados.106
Não faz parte de nosso objetivo reconstituir o cotidiano da
Comissão, mesmo porque as fontes disponíveis para tal são muito
exíguas, mas cotejar o discurso de suas desventuras por meio das suas
metáforas dominantes, com outros discursos acerca da Comissão
Correspondência entre Guilherme Schüch de Capanema e Gonçalves Dias. IHGB, Lata
216, Pasta 50.
105
BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.
106
162
Renato Amado Peixoto
feitos antes e após sua expedição.107 Desse modo, entendemos ser
possível reconstituir uma linguagem sobre o espaço compreendida
e manejada por certos falantes ideais os quais territorializavam seus
domínios inscrevendo-os por meio de suas gramáticas.108
Observe-se, como chave de compreensão que, mesmo sendo
cobrada a responsabilidade de seus integrantes, metade dos relatórios científicos da Comissão jamais foi publicada, enquanto a parte
restante acabaria sendo censurada. Do mesmo modo que, apesar de
se alardear o custo da Expedição ou a exiguidade de seus resultados,
quase todos os espécimes coletados ficaram abandonados no Museu
Nacional, todo o material geográfico foi disperso e mesmo no IHGB,
a Comissão passaria como que despercebida.
Ao analisarmos o discurso das desventuras da Comissão, podemos notar duas metáforas centrais construídas ao redor das figuras
dos dromedários e das borboletas, as quais denotam a distância entre
a letra do texto e seu sentido virtual, conotando-se assim todo um regime cultural, pois os desvios do discurso traem-se nessas metáforas e
revelam seu sentido, “tal como o inconsciente se revelaria num sonho
ou num lapso”, como Paul Ricoeur assinalou.109
A metáfora do dromedário foi constituída a partir de figuras
Referimo-nos aos seguintes documentos: AS BASES DAS instruções para a Comissão
Científica de Exploração In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 42-84.
Suplemento.; CONTRIBUIÇÕES para as instruções da Comissão Científica de Exploração. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro; Tomo XIX, 1856, p. 76-82. Suplemento.; TRABALHOS DA Comissão Científica de Exploração. In: BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.; INSTRUÇÕES
gerais para a Comissão Científica encarregada de explorar o interior de algumas províncias do
Império menos conhecidas. In: BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]: Imprensa Universitária do Ceará, 1962.; RELATÓRIOS da Comissão Científica Exploradora. In: BRAGA, Renato. História da Comissão Científica de Exploração. [S.l.]:
Imprensa Universitária do Ceará, 1962.
107
A respeito da definição de falantes ideais, ver CHOMSKY, Noam. Rules and representations. New York: Columbia University Press, 1978.
108
109
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. São Paulo: Edições Loyola, 2000. p. 228-229.
163
Cartografias Imaginárias
que evocam o desconhecimento e a inadaptação dos integrantes da
Comissão ao espaço que buscam explorar, num sentido que destitui
de razão suas ações, remetendo-as ao domínio do desatino, da loucura. Afinal, o dromedário era mesmo um animal desconhecido nessa
região e agredia a compreensão dos seus naturais, sinuoso, espalhafatoso, estrangeiro. Se aproximarmos essa metáfora aos discursos acerca da constituição da Comissão, veremos que no IHGB, em 1856,
quando se procuraram estabelecer os seus objetivos, acordou-se que
estes deveriam girar essencialmente em torno do problema da seca.
A tônica da discussão no IHGB era que a “desertificação” de
certas áreas do Norte tornava-as comparáveis à Argélia e ao Egito,
daí ser possível explicar o recurso da Expedição a experimentações
já testadas nesses locais, uma delas a utilização de dromedários como
meio de transporte.
Explicava-se que o Ceará era a área mais atingida por esse fenômeno, deplorando-se a decadência provocada pelo abandono da lavoura nessa província e esperava-se que a Comissão fosse capaz trazer
subsídios para seu restabelecimento, pesquisando um melhor aproveitamento dos recursos hídricos, identificando as áreas onde melhor
conviesse o recurso à construção de grandes açudes, represas, sistemas de poços artesianos ou canais destinados à irrigação dos campos.
Entendia-se que a Comissão deveria também investigar as causas da
seca, estabelecendo uma regularidade do fenômeno e, inclusive, estudando a viabilidade do reflorestamento de certas áreas.
Assim, podemos entender que o saber sobre a região compreendia duas leituras, a primeira, concatenando o problema da seca com
a compreensão de um território cujo centro era o Ceará; a segunda,
perspectivando o problema da seca a partir de uma dimensão externa, o norte da África. Portanto, duas dinâmicas de territorialização
se sobrepunham, a primeira, depreendendo-se de uma perspectiva164
Renato Amado Peixoto
ção, por assim dizer, local, garantindo que a Comissão já estivesse,
desde sua origem, destinada a percorrer o itinerário do “flagelo da
seca devastadora”. Por sua vez, a segunda dinâmica decorria de uma
perspectivação do centro, que trai uma visão quase ultramarina ou colonial do território, compreensão esta que se adensa quando é sabida
a preocupação dos exploradores em armar e municiar a expedição,
providência que inclusive lhe valeu ácidas críticas da imprensa cearense, que se referindo à Expedição, insinuava: “a Comissão vem de
cangaço” (RELATÓRIO..., 1962).
Entretanto, se pensarmos que havia uma tensão entre as duas
perspectivações, como explicar que o discurso das desventuras da
Comissão fosse acreditado tanto na província como na Corte? Para
entendermos esse problema é necessário considerar os relatórios da
Expedição.
Curiosamente, Gonçalves Dias, o responsável pela redação de
seus preâmbulos, escreve que inicialmente não havia a intenção de
dirigir a expedição para o Ceará e que, quando a decisão foi tomada,
essa teria se devido, pasmem, à vontade de buscar naquela província
os grandes depósitos de metais preciosos que nela se julgavam existir!
A questão da seca foi completamente omitida!
Essa questão fica mais clara na medida em que sabemos que
o preâmbulo de Gonçalves Dias fora anteriormente censurado por
conter várias críticas à Pasta do Império. A partir da leitura dos relatórios das várias Seções da Comissão, podemos aventar em que
direção a tesoura da censura havia cortado: praticamente todos os
relatórios apontam o problema político como o fato amplificador
dos problemas atribuídos à seca – descaso público, mau emprego dos
recursos técnicos – estes eram os verdadeiros problemas da região.
Tais críticas aos políticos provinciais e ao governo imperial provinham de uma casa, o IHGB, que há poucos anos havia discutido a
165
Cartografias Imaginárias
contingência de se manter ou não atrelada à política imperial e que finalmente optara por buscar se conformar aos moldes de um instituto
científico. Fora desse palco, os que se julgavam atingidos, buscaram
desqualificar moral e intelectualmente os integrantes da Comissão.
Por sua vez, a metáfora da borboleta foi constituída a partir de
figuras que participam o logro perpetrado pelos integrantes da Comissão, um sentido que busca dar conta da tentativa destes de transgredir ou subverter os lugares aos quais não se conformavam, afinal,
as borboletas esvoaçam sem rumo, sugam o pólen das flores em que
pousam, maculam e defloram. Se buscarmos aproximar esta metáfora
dos discursos acerca da Comissão, veremos que a alcunha de ‘Expedição Defloradora’ pode ter se originado dos mesmos preceitos científicos que orientaram os integrantes da Comissão a coletar espécimes
de insetos. A instrução principal da seção encarregada da etnografia
dizia respeito à coleta de dados para distinguir as diferentes raças ou
indivíduos que habitavam a área:
Particularmente às mulheres, não se olvidará apanhar a forma geral e constante dos músculos externos que revestem o sacro e a bacia, porque na forma
dos glúteos há diferenças notáveis nas raças, assim
como na dos seios e sua colocação mais aproximada
ao externo, e mais vizinha das clavículas: cumpre estudar as mudanças destes órgãos, que têm tão íntima
relação com todos os fenômenos de sua vida física
(AS BASES...., 1856).
Ao mesmo tempo, como vimos, uma das principais orientações
da Comissão dizia respeito à escrita de uma corografia que pudesse
ser contraposta aos relatos dos viajantes estrangeiros. Nesse sentido,
dever-se-ia avaliar a prosperidade ou decadência das povoações e
terrenos, recolher cópias de documentos, compilar dados de cartó166
Renato Amado Peixoto
rios, arquivos, secretarias e de particulares, atividades que somadas às
medições topográficas realizadas pela Seção de Geografia, provavelmente provocaram a desconfiança local em relação aos verdadeiros
interesses da expedição
Voltando com o nosso argumento inicial, podemos perceber
que não havia propriamente uma oposição entre as diferentes perspectivações sobre a região, mas uma tensão capaz de possibilitar a
composição em torno dos interesses comuns e que se explicitava por
meio de uma linguagem que se buscava compartilhar e pelo discurso
dela originado. Assim, se argumentos como a metáfora da seca ou o
sentido para a inserção diferenciada no espaço nacional foram utilizados na elaboração do discurso nortista, foi justamente porque estes
argumentos já estavam disponibilizados desde a década de 1850.
Mesmo o discurso das desventuras da Comissão possui uma
unidade metafórica que é a delimitação de domínios, veja-se bem,
domínios que não se excluem e se revelam na medida em que convergem para a condenação da Comissão. Perversão, corrupção, incompetência, malícia, malversação dos bens e interesses públicos – a
operação conjugada destes sentidos somente se tornou possível porque os interesses envolvidos estavam harmonizados num saber sobre
o espaço que definia domínios nítidos, estabelecia suas fronteiras e
definia suas responsabilidades – um Saber construído a partir da verdadeira tensão entre a inscrição dos lugares do acordo e a territorialização dos lugares da subalternidade.
Subalternidade esta que no último quartel do século XIX e no
alvorecer da República se explicitaria na produção de novas espacialidades - as Regiões e os Estados, interligadas à Nação. Não seria por
acaso que numa das províncias do Norte as elites políticas e intelectuais desenvolveriam uma digressão a partir do saber sobre o espaço
inaugurado pela Comissão Exploradora e, consagrariam a nova re167
Cartografias Imaginárias
gião, o Nordeste, simultaneamente à sua produção da estadualidade,
no Rio Grande do Norte.
No caso, a produção da estadualidade norte-rio-grandense unificava os interesses locais em torno de uma articulação que possibilitava legitimar e manter os seus interesses.110 Dois de seus protagonistas, Eloy de Souza e Augusto Tavares de Lyra - na sua época um dos
sócios mais destacados e respeitados do IHGB, seriam exatamente os
responsáveis por consolidar o Nordeste como tema de discussão no
Parlamento, criar a proposta de um Dicionário do Nordeste e, entronizar esta Região como tema de pesquisa histórica e geográfica nos
Congressos de História Nacional promovidos pelo IHGB, e, tudo
isto ainda nos primeiros vinte anos do século XX
PEIXOTO, Renato Amado. ‘Espacialidades e estratégias de produção identitária no Rio
Grande do Norte no início do século XX’. In: Peixoto, Renato Amado. (Org.). Nas trilhas
da representação: trabalhos sobre a relação história, poder e espaços. 1ed.Natal: EDUFRN,
2012, p. 11-36.
110
168
Por uma análise crítica das
políticas de espaço:
isto pode ser chamado de estudo do ‘Geopoder’?
Em meados da década de 1970, Michel Foucault enveredaria por uma
série de investigações que tinham como fim compreender as formas
de experiência e de racionalidade a partir das quais se teria organizado, no Ocidente, um poder sobre a vida, sobre a população e os vivos,
que denominaria de Biopoder e que corresponderia, mais diretamente, aos seus trabalhos sobre a história da sexualidade. Contudo, cabia
naquele momento situar e articular este novo esforço em respeito aos
seus estudos anteriores acerca das técnicas e tecnologias de vigilância
e punição que lhe haviam permitido enunciar um ‘poder disciplinar’
que se aplicava sobre os corpos e sobre eles se afirmava. Nesse sentido,
os cursos ‘Em defesa da sociedade’ e ‘Segurança, território e população’, respectivamente lecionados no Collège de France em 1975-76 e
1977-78, teriam sido trabalhados por Foucault com o fim de permitir a constituição de uma ‘genealogia do Biopoder’.
Ao mesmo tempo, a questão do poder será tratada por Foucault
por meio de uma análise que se remete ao diálogo com Freud e Marx,
dado o contexto histórico em que foi escrita. Assim, se nos cursos
citados a genealogia do Biopoder é trabalhada por sobre uma análise
169
Cartografias Imaginárias
do governo e do Estado relacionada à questão do liberalismo ou da
passagem e articulação com este, serão bem ressaltadas nesta análise questões como as das resistências e dos processos de produção do
poder. Este tratamento da questão do poder possibilitou a Foucault
constituir a hipótese do Biopoder como a insinuação de um contra-poder possível em meio e a despeito de posições que se enunciavam
no mesmo diálogo, como, por exemplo, àquelas defendidas por Gilles Deleuze.
Por conseguinte, os trabalhos de Foucault não pretendiam
compreender uma análise geral das estratégias de poder, mas antes
perscrutar condições e problemas que teriam engendrado mecanismos e que teriam possibilitado a sociedade instituir certas espécies e
relações de poder. No que isto diz respeito à hipótese do Biopoder,
Foucault o faz a partir de um trabalho no qual procuraria reconstituir, minimamente, uma história das tecnologias de segurança e uma
história da governabilidade. Poder-se-ia entender mesmo que a hipótese do Biopoder surgiria como um deslizamento e consequente
desraizamento de uma análise do poder que se voltaria cada vez mais
para um exame das suas relações com o sujeito e sua ética. Nesse raciocínio, fazia sentido buscar entender um discurso histórico e político das lutas das raças e um discurso histórico-político diplomático-militar, no qual se salientava que “o poder seria essencialmente o que
reprime” – aquilo que reprime as classes, os instintos, mas também os
indivíduos e a natureza.111
Nesse ponto, entendo que deva situar este trabalho: a hipótese
do Biopoder de Foucault constitui-se por meio de uma análise sobre
o poder que explicita a ideia da relação de força e de uma função continuada do político de reinseri-la internamente nas sociedades oci111
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 21.
170
Renato Amado Peixoto
dentais, ou seja, “nas instituições, nas desigualdades econômicas, na
linguagem, até nos corpos de uns e outros”. Sobre essa consideração
paira aquilo que para Foucault seria essencial, a constatação que, a
partir do século XVIII, essas mesmas sociedades “voltaram a levar em
conta o fato biológico fundamental que o ser humano constitui uma
espécie humana” (FOUCAULT, 2008, p. 3).
Por conseguinte, embora esta análise parta do pressuposto da
instituição de subalternidades e para explicá-la busque trabalhar a
construção histórica de discursos e narrativas de um racismo biológico-social e a constituição da política como uma forma de guerra continuada por meio da construção de um dispositivo diplomático-militar concomitante ao da polícia, ela não considera uma função continuada do político de inscrever e reinserir externamente à sociedade
ocidental as relações de força estabelecidas. Nesse sentido, o desdobramento da análise a partir de certa relação de força estabelecida, em
dado momento, historicamente precisável, na guerra e pela guerra, o
Imperialismo, simplesmente não era relevante para o constructo analítico de Foucault. Note-se que esta função da inscrição e reinserção
externa das relações de força pode ser pensada enquanto lógica se observarmos que a mesma análise considera elementos como: a racionalidade governamental; a ideia da conservação do Estado numa ordem
geral; a concorrência entre Estados; uma estratégia da concorrência;
a ideia da busca de uma posição dominante dentre os Estados; de
uma noção de força do Estado; de técnicas de tipo diplomático-militares, ou seja, o emprego de elementos que tratam de dar sentidos a
concorrência e ao equilíbrio espacial dos Estados.
Nesse ponto e, em benefício da justificativa deste trabalho, acreditamos que tal opção (ou ‘esquecimento’) tenha sido devido justamente ao que já foi anteriormente colocado: por um lado, a análise de Foucault não se pretendia geral nem instrumental, por outro,
171
Cartografias Imaginárias
ela se constituía estrategicamente em relação ao contexto em que se
inscrevia. Se desdobrada, a hipótese do Biopoder poderia se perder
tanto por diluição quanto ao conteúdo tanto por seu enquadramento em relação as outras posições que então se constituíam na década
de 1970 como contrapoderes. Portanto, se este trabalho pretende
aventar um desdobramento possível da análise foucaultiana, isso se
faz porque acreditamos que ela possa ser útil para o trabalho com a
hipótese do Biopoder, na medida que a investigação de uma função
continuada do político de inscrever e reinserir externamente à sociedade ocidental as relações de força, permite discutir também uma genealogia desta função, inclusive, entendendo que se vão se constituir
mecanismos, poderes disciplinares e saberes que se dobram para o
interior das sociedades ocidentais, articulando-se com aqueles expostos pela hipótese do Biopoder.
No século XIX, a partir dos insumos que geram o Imperialismo, como, por exemplo, o racismo, o nacionalismo e a dinamização
dos dispositivos diplomático-militares, estabelecem-se saberes que
permitem ao Estado produzir continuamente políticas de espaço.
Genericamente denominados de Geopolítica, esses saberes distinguem novas espacialidades e escalas, redefinem territórios, articulam
políticas de espaço, constroem razões de convivência não apenas dos
entes políticos, mas também dos coletivos populacionais que habitam os espaços distinguidos, inclusive, os instituindo ou eliminando
enquanto atores.
Constituir-se-ia, então, o que podemos definir grosseiramente
como uma coligação diplomático-militar em cada um dos invólucros
nacionais, ao mesmo tempo concorrente e aliada. Cada uma dessas
se radicularia por instituições, corporações, agentes do governo que
reverberariam saberes, mecanismos, poderes disciplinares cujo principal atributo seria remeter a lógica da subalternidade contínua a
172
Renato Amado Peixoto
uma operação da espacialidade. Discursos e narrativas mítico-históricas serviriam então para constituir uma subalternidade continuada
dos habitantes e espaços extraeuropeus e estadunidense, permitindo
aos dispositivos diplomático-militares, em cada um dos seus invólucros nacionais, constituir razões de reprodução e disseminação destes
discursos sobre a própria sociedade. Falamos aqui não apenas uma
de uma nova reprodução, mas também de uma continuação dos mecanismos descritos por Foucault no curso ‘Em defesa da sociedade’.
Se esta continuidade foi tornada factível e operável no exterior da sociedade, também as novas razões espaciais da subalternidade seriam
tornadas factíveis e operativas para o interior da sociedade.
Portanto, seria necessário, primeiro, entender a geopolítica
além daquilo com que esta se define a si mesma, ou seja, é necessário entendê-la como um saber sobre o espaço e fazer uma genealogia
desses saberes que comporte tanto a sua escrita como também sua
inscrição. Segundo, é necessário estender o próprio entendimento da
‘geopolítica’ para que neste se comporte também as políticas de espaço
dela derivadas, ou seja, é necessário entender uma geografia que comporte sua extensão. Terceiro, deve-se também procurar articular esse
saberes sobre o espaço e essas políticas de espaço com os elementos
que Foucault trabalha na hipótese do Biopoder. Quarto, é preciso
constituir uma cartografia desses saberes e de suas políticas do espaço
articulados que não seja apenas uma superposição de seus mapas, mas
que dê conta da cognição e construção desses mesmos mapas e que
os entenda enquanto composições independentemente engendradas
por meio de uma linguagem original e com uma lógica inerente a esta
originalidade.
Cabe aqui uma observação: este seria verdadeiramente um desdobramento da hipótese do Biopoder e que, por analogia, poderia ser
chamado de Geopoder, ou seria apenas adensamento do Biopoder
173
Cartografias Imaginárias
exercido a partir do governo e do Estado sobre os indivíduos que se
desdobra para uma ressignificação dos usos e invenções do cotidiano?
De todo modo, permitimo-nos observar que um campo próprio de investigação poderia ser atribuído a este desdobramento ou
adensamento da hipótese citada, no caso, o estudo de dinâmicas de
espaço desencadeadas a partir do governo, por agentes do Estado,
por integrantes da coligação diplomático-militar ou por institutos,
organizações, grupos ou elementos que articulam ou exercem políticas de poder baseadas nos saberes sobre o espaço.
Assim, primeiro, poder-se-ia investigar o saber sobre o espaço
em si, inquirindo o modo como este se legitima e se institui, no caso,
procurando entender as práticas e estratégias por detrás da operação
e construção de uma narrativa mitológica do Estado, do território
ou da identidade e que pode também desencadear suas contranarrativas. Caberia aqui discutir a construção/inscrição do território e
da identidade por meio de produções culturais e/ou instrumentos
culturais, como a literatura, a pintura, a poesia, etc.; a investigação de
sua operação/divulgação por meio de práticas e políticas culturais,
como, por exemplo, os monumentos, o cinema, as novelas de televisão, os quadrinhos etc.
Segundo, a partir da investigação das performances do Estado, das instituições ou dos organismos e grupos que lhe estão vinculados a estudar o que diz respeito à construção e a operação do espaço,
ou seja, as práticas espaciais, materiais e representacionais operadas a
partir do Estado ou sob sua influência, por exemplo, o estudo das
práticas sobre o espaço a partir de instituições/organismos ligados
ao governo ou Estado, como: as forças armadas, os ministérios das
relações exteriores, os partidos políticos, os institutos históricos e geográficos etc.
Esse ponto, ainda, poderia ser mais afinado se considerado o
174
Renato Amado Peixoto
discernimento das relações localizadas de produção de um certo
pensamento em relação a uma dada performance, considerado
seu recorte espacial ou contexto histórico. Por exemplo, a adoção
de um pensamento sobre o espaço que possibilitou o plano naval dos
grandes navios de batalha na Marinha do início do século; a constituição do binômio segurança-desenvolvimento na ESG da década de
1950; as inflexões na produção do plano diretor de Natal, em 2007, se
examinadas as discussões e votações na sua Câmara dos Vereadores etc.
Terceiro, como uma investigação das práticas e estratégias
de inscrição das fronteiras e dos limites, englobando-se aí tanto as
disputas por território ou por uma territorialização de determinados
espaços geográficos quanto às políticas de delimitação ou estabelecimento de fronteiras, limites, exclusões ou inclusões sociais e culturais, o que permitiria estabelecer ou constituir cartografias dessas
políticas, como, por exemplo, uma cartografia da pobreza, uma cartografia da discriminação, uma cartografia da fome etc.
Quarto, como a análise crítica de produções plurais sobre
uma dada espacialidade, no caso, privilegiando o estabelecimento
de raciocínios que articulem esta pluralidade ou que procurem entender as distinções teóricas que considerem uma dada multiplicidade. Por exemplo, a análise das diferenças entre as versões populares,
práticas e formais de um mesmo espaço; a transposição do erudito/
formal para o popular; a divulgação/disseminação/inscrição diferenciadas da produção do espaço na cultura erudita e popular etc.
Quinto e último, a investigação do pensamento e/ou planejamentos a respeito de circunstâncias tecnológicas e sociais que
visem ao desenvolvimento e/ou usos do espaço e/ou do território,
por exemplo, o planejamento da ligação entre espaços ou da incorporação de espaços; o pensamento e atividades ligadas à centralização
do poder, construção e mudança de capitais; a análise das relações
175
Cartografias Imaginárias
entre um centro e suas periferias; o estudo dos movimentos e das descontinuidades estruturais sobre o espaço (fluxos econômicos, fluxos
demográficos, movimentação de capitais, tráfico de drogas, disseminação de doenças, fluxo turístico) etc.
Em defesa deste campo de investigação do que gostaríamos agora de chamar provisoriamente de Geopoder e de uma análise crítica
do espaço que considere os pressupostos antes alinhados, repetindo,
o discernimento de um saber sobre o espaço, a extensão desse discernimento às práticas derivadas deste e a sua articulação com a hipótese
do Biopoder, buscaremos agora trabalhar um caso de estudo.
A viagem do encouraçado São Paulo à Bélgica
Em 1920, o presidente do Brasil, Epitácio Pessoa, pronunciou um
discurso de despedidas para a tripulação do encouraçado São Paulo,
dias antes deste zarpar para o porto belga de Zeerbruge, onde os soberanos desse país seriam embarcados rumo ao Rio de Janeiro.
Em sua fala, Epitácio destacou a importância fundamental da
missão, salientando ser essa a primeira visita de um Chefe de Estado ao Brasil desde a Independência e, ressaltava que não se buscaria
qualquer um, mas o Rei Alberto I “aquele que, nos momentos mais
sombrios da história,” havia sabido “defender com brio e denodo a
fé dos tratados e a integridade de sua pátria” e que “nos momentos
mais críticos deu ao mundo um atestado veemente de sua energia e
patriotismo”. Afinal, o São Paulo abrigaria aquele a quem a imprensa
internacional havia cognominado de ‘Rei Herói’, ‘Rei Cavaleiro’.
Ainda, segundo Epitácio, outro aspecto aumentava a “delicadeza da missão”: cabia à guarnição do São Paulo “levar a longes terras e a
estranhas gentes uma impressão de nossa cultura e de nossa educação
176
Renato Amado Peixoto
militar”. Ora, o São Paulo não serviria simplesmente como o transporte dos soberanos da Bélgica, mas deveria constituir-se também
numa embaixada da pátria, representando uma porção de sua identidade, porventura a mais elevada.
Assim, a tripulação do São Paulo deveria “demonstrar tudo de
excelente e nobre”, o que, segundo Epitácio Pessoa, não se resumia
apenas aos tesouros de cultura e aos predicados morais, mas deveria
incorporar também “o tato, a finura, as delicadezas do coração, os hábitos da boa sociedade, uma prova de sua civilização e adiantamento”
(UMA VISITA..., 1920, p. 13).
Chegando a Zeerbruge no final de agosto de 1920, o comandante do São Paulo, Tancredo de Gomensoro, verifica que o navio,
um dos maiores de sua época, não poderia atracar no porto devido
ao seu grande calado. Portanto, seria necessário transportar os reis
belgas de bote desde o cais até o São Paulo, já que se encontrava fundeado ao largo do porto, para depois fazê-los subir ao navio por meio
de uma escada de cordas.
Considerando que tal procedimento seria indigno da estatura
do Rei Herói, Tancredo de Gomensoro, reunido com a oficialidade,
concebe outro esquema, uma verdadeira façanha: ao custo de perder
o próprio São Paulo, um dos navios mais caros de sua época, decide
atracar de ré no porto para que assim se pudesse estender uma rampa
desde o cais até a popa do navio, por onde o Rei Cavaleiro e sua consorte desfilariam.
Concluída a arriscadíssima manobra, diga-se de passagem, contra o conselho dos próprios belgas, Tancredo voltou ao Rio de Janeiro conduzindo Alberto I para receber o seguinte elogio do Ministro
da Marinha:
Da ordem do Sr. presidente da República, recomendo seja em ordem do dia desse Estado Maior, elogia177
Cartografias Imaginárias
do, nominalmente, o capitão de mar e guerra Tancredo de Gomensoro, comandante do encouraçado
‘São Paulo’ [...]. A maneira superiormente distinta, o
brilho incontestável, a disciplina irrepreensível com
que se conduziram oficiais e marinheiros, para orgulho e satisfação do governo brasileiro; não podiam
ser de maior correção a inteligência e a habilidade do
comandante do São Paulo e seus distintos comandados durante a viagem de Ss. Mm. os reis dos belgas,
gesto que tanto nos cativou e muito concorreu para
o prestígio internacional de nossa pátria [...] (LIGA
MARÍTIMA, 1921, p. 12).
Em relação à análise desse caso, entendemos que a fala inicial
de Epitácio Pessoa sublima uma construção do espaço brasileiro que
o situa de costas para a maioria dos indivíduos que o habitam e de
frente para a Europa. O espaço europeu é um espaço de mimesis, não
apenas de imitação, mas também de drama: imitação porque se tentam implantar hábitos e cultura desejados, mas que, muitas vezes,
não deixam de ser mais do que maneirismos; drama porque a todo
o momento se constata sua impossibilidade, seu anacronismo, sua
inadaptabilidade, mas, ainda assim, tentada implantar a todo custo
porque permitia inscrever e justificar fronteiras sociais e culturais no
espaço brasileiro e manter certas relações de força e subalternidade.
Sobretudo, a fala de Epitácio Pessoa não traduzia apenas uma
imagem que a elite política brasileira fazia de si mesma que, num jogo
de espelhos com a figura do soberano belga, se amalgamava na figura
do ‘cavalheirismo’, mas também o que se reproduzia continuamente na Marinha enquanto ideal de formação, perpassando a educação
formal dos aspirantes a oficiais, mantido pelo recurso a uma cultura
regimental e pelas rigorosas normas de ingresso na Escola Naval, conforme ratificado pelo discurso do então Ministro da Marinha.
178
Renato Amado Peixoto
Essas normas, encimadas por impedimentos de ordem monetária, fizeram possível que a Escola Naval permanecesse, mesmo na
República, enquanto um lugar de prestígio, e que o oficialato da Marinha, através da cultura regimental, reverberasse conceitos e ideias
próprias. Mas esta cultura regimental, legado da marinha portuguesa
ao Império, fora reformada na República por meio da constituição de
uma narrativa mitológica que reforçaria o élan corporativo da Marinha. Nessa narrativa, enaltecia-se o martírio de um oficial/cavalheiro, o Almirante Saldanha da Gama, Diretor da Escola Naval durante
a Revolta da Armada.
O almirante Saldanha da Gama
Segundo a narrativa, Saldanha da Gama era um oficial unicamente
devotado ao seu ofício de Diretor da Escola Naval, sendo que, por
esse amor aos alunos, se engajaria na Revolta, já que a maioria daqueles escolhera o partido dos revoltosos, contra o jacobinismo e a
truculência de Floriano Peixoto. Saldanha, exímio chefe militar, agora junto ao grosso de sua Corporação, passaria naturalmente a comandar os sublevados. Resiste ao poder maior do Governo, mas a
vileza de Floriano, que não hesita nem dividir a Marinha, oferecendo
privilégios aos trânsfugas, nem em envolver os estrangeiros na peleja,
obriga-o a retirar-se.
No episódio final da saga, um Saldanha da Gama exilado, mas
altivo e sem medo, lideraria seus comandados na invasão dos pampas
gaúchos, quando, montado a cavalo e à frente de suas tropas, morreu
heroicamente em batalha pela honra da corporação, transpassado
pela lança de um estrangeiro, que não hesitaria mesmo em profanar
o seu cadáver.
179
Cartografias Imaginárias
Tal narrativa permitiria Rui Barbosa bradar, já em 1896: Saldanha da Gama, “o herói dos heróis, [...], o homem mais completo e o
caráter mais extraordinário que já conheci nesta terra” (BARBOSA,
1946, p. 6).
Observe-se que as palavras ‘cavaleiro’, ‘cavalheiro’ e ‘herói’ utilizadas na descrição do martírio de Saldanha da Gama repetem-se
no núcleo do tema mitológico que fora construído pela imprensa
internacional à volta de Alberto I: este Rei, comandante máximo das
tropas belgas, para incutir bravura às suas tropas, visitava o fronte da
1ª Guerra montado a cavalo e arriscando-se a ser morto por qualquer
soldado.
Por uma razão de honra, altivez e patriotismo não aceita o ultimato da Alemanha e, apesar da discrepância militar contra si, luta até
o fim. Pode-se, portanto, pressupor a constituição de elos de ligação
entre os dois mitemas e mesmo uma ‘semelhança de famílias’ entre as
palavras utilizadas, a partir da qual, poder-se-ia instituir tanto uma
topografia gramatical quanto uma geografia das palavras cuja organização e compreensão nos permitiriam aventar uma representação
perspícua, ou seja, uma ‘observação’ dessas conexões.
Note-se que existe uma semelhança de família entre os termos
que remetem às palavras cavaleiro e cavalheiro nos dois mitemas e na
fala de Epitácio Pessoa, mas que, ao mesmo tempo, insisto, essa semelhança não impede que diferentes saberes e práticas de espaço possam
ser distinguidos a partir de cada um dos exemplos.
Logo, para se evitar uma conclusão sinóptica ou desenvolvimentista se faz necessário investigar suas representações perspícuas,
superando-se as aparências da linguagem não por meio de uma geologia lógica e integradora das palavras, mas através de uma geografia
lógica das palavras, que consistiria exatamente na investigação das
suas conexões.
180
Renato Amado Peixoto
Segundo Wittgenstein, a explicação histórica como hipótese de
desenvolvimento seria apenas um modo de juntar os dados: uma sinopse. Seria igualmente possível ver os dados em sua relação mútua e
sintetizá-los em um modelo geral sem que isso tenha a forma de uma
hipótese sobre o desenvolvimento temporal. Contudo, faltar-nos-ia
tanto uma compreensão de sua gramática quanto uma ‘visão sinóptica’ [Übersich], uma visão global do uso de nossas palavras.
Para isso, seria necessário buscarmos, inicialmente, uma compreensão clara, nítida das construções e das utilizações daquelas palavras, problema enfeixado no conceito de ‘representação perspícua’
[übersichtliche Darstellung]. Neste conceito, seria de uma importância fundamental buscar superar as aparências da linguagem não
por meio de uma geologia lógica das palavras, mas através de uma
geografia lógica das palavras, que consistiria exatamente na investigação das suas conexões, daí a importância de se procurar ou inventar
cadeias e casos intermediários.
O trabalho sobre essas hipotéticas cadeias e casos intermediários permitiria entrever as semelhanças, os nexos entre os feitos, não
para afirmar que estes haveriam se desenvolvido a partir de um lugar comum, mas para tornar mais aguda nossa observação frente sua
relação formal. Portanto, este trabalho não visaria a caracterizar os
fenômenos, mas determinar um esquema possível para concebê-los.
Por isso, buscar-se-ia substituir, na medida do possível, a explicação
pela descrição e reflexão a partir das conexões entre casos históricos
procurando uma representação perspícua do uso das palavras que nos
permita oferecer uma alternativa possível à ideia do desenvolvimento
e da evolução histórica para o estudo de certos problemas.
Por conseguinte, no caso das falas de Epitácio Pessoa e do Ministro da Marinha, pode-se perceber que coexistem dois jogos de linguagem em relação às palavras apontadas, o primeiro expressando a
181
Cartografias Imaginárias
relação de uma imagem que a elite brasileira faz de si com o seu lugar
na sociedade; o segundo, sobrepondo ao primeiro uma relação desta
elite com os oficiais da Marinha, reconhecendo um grupo que lhe
está ligado e suas especificidades.
Já no caso do mitema do rei Alberto essas palavras relacionam
um jogo de linguagem complexo onde a ideia de Nação e o conceito
de soberania estão interligados à figura reguladora de um soberano
por meio da qual se permite expressar uma ideia da identidade.
Por conseguinte, se a estratégia de aproximação através da semelhança de família das palavras busca elidir diferenças em relação às
diferentes enunciações, deve-se reparar que o esquema de construção
do mitema de Saldanha da Gama se faz por meio de uma elisão no nível do sistema de escolha dos elementos, no caso se faz a aproximação
pela elisão dos elementos fracos, ou seja, aqueles que seriam capazes
de tornar ineficaz o esquema de partilha de significações estabelecido
por meio da semelhança de família.
Um desses elementos fracos é justamente o da condição de
amotinado de Saldanha da Gama, haja vista que a hierarquia é um
dos princípios básicos da organização militar e sua quebra vai de encontro à própria cultura regimental. Outro elemento fraco é a sua
condição de experto na arte militar, já que é um completo contrassenso imaginar marinheiros combatendo em terra e a cavalo contra
elementos especialistas no mesmo tipo de luta. Também a dedicação
a vida militar deixa de ser questionada na medida em que não se discute o engajamento pregresso de Saldanha na vida militar.
A partir das várias biografias de Saldanha, depreende-se um indivíduo dominado pela figura paterna, condição esta que se sobrepõe
a sua dedicação à Marinha conforme pode ser entendido pela quantidade de sinecuras desfrutadas e barganhadas por Saldanha em nome
da pretensão de atender aos anseios de seu pai, como era, por exem182
Renato Amado Peixoto
plo, o caso da disputa por comendas e pelo privilégio de acompanhar
as missões oficiais do governo brasileiro na Europa.
No mesmo sentido, Saldanha se fez capaz de abandonar a mulher amada e o seu lar, unicamente pelo argumento paterno de que
estes não faziam jus a sua posição social: abandonado à tediosa tarefa
de se construir social e idealmente como a imagem de seus pares, Saldanha transforma seu corpo num simulacro de si mesmo – o mesmo
corpo-simulacro que será retalhado pelos seus opositores ao fim da
batalha.
Ainda, a elisão desses elementos fracos no mitema se torna ainda mais evidente se procurarmos entender a ação dos oficiais que comandavam o São Paulo e o desfecho da missão a partir do lugar de
discurso de Epitácio Pessoa.
O bom uso do bem público e de um meio de guerra caríssimo,
cede vez a uma prática destinada apenas a legitimar a ideia que parte
da instituição fazia de si e, que procurava coadunar esses integrantes
no lugar mítico da identidade da nação. Se a narrativa buscava construí-los enquanto guerreiros-poetas, a investigação os revela apenas
cidadãos-eunucos brandindo suas palavras-espada.
Finalmente, no caso do mitema de Saldanha da Gama, resta
apontar que as palavras-núcleo estão também ligadas à construção
de um espaço de solidariedade corporativa decorrente tanto do desfecho da Revolta da Armada quanto a uma fronteira de disputa da
identidade que se devia definir exatamente no mesmo local: o São
Paulo era o mesmo navio que menos de dez anos antes fora considerado o mais poderoso barco de guerra do mundo e onde, ainda assim,
grassara a Revolta da Chibata.
183
Espaços imaginários:
o historiador dos espaços como cartógrafo
Pensar o espaço não é apenas entender sua representação, considerar
sua inscrição, perscrutar sua construção; é também necessário buscar
suas conexões. Não custa relembrar que o sentido atribuído por Deleuze à afirmação de Foucault: “eu sou um cartógrafo” (DELEUZE,
1988, p. 53),112 decorre da concepção de uma cartografia extensiva a
todo o campo social, no que se resultaria expor as relações de força
que constituem o poder. Nesse entendimento, essa cartografia não
seria bem grafada através de um único mapa, mas por um atlas que
em permanente composição fosse integrado por inúmeros mapas superpostos.
Entretanto, se por um lado, essa metáfora do mapa resolve o
problema da compreensão de um método foucaultiano, por outro, ela
também nos impele a considerar a cartografia enquanto um processo
cuja racionalidade já está predefinida, sem atentar que a cartografia
mesma é parte também de um conjunto complexo de cognições que
a faz diferir de outras escritas. Essa utilização da metáfora do mapa
DELEUZE, Gilles. Um novo cartógrafo. In: Foucault. São Paulo: Editora Brasiliense,
1988.
112
185
Cartografias Imaginárias
refletiria alguns dos principais problemas da análise foucaultiana do
espaço, a saber, primeiro, a inexistência de uma clara e rigorosa distinção de certos elementos básicos para sua compreensão, como ‘lugar’,
‘espaço’, ‘localização’, ‘local’. Segundo, a inexistência de uma crítica da
ideia de ‘local’, embora grande parte da pesquisa de Foucault possa ser
caracterizada como um investimento em torno da exploração de temas que contextualizem a perspectiva poder/conhecimento a partir
de uma definição do que poderíamos chamar de contralocais. Terceiro, um desgaste da proposta foucaultiana de historicização do espaço,
na medida em que um dos princípios mesmo do que podemos chamar de ‘heterotopologia’, o estudo das heterotopias, é o universalismo, que, a nosso ver, iria de encontro à própria premissa histórica,
condicionando-a e restringindo-a.113
Talvez a chave para se ultrapassar aquela compreensão e minimizar os problemas da análise foucaultiana do espaço seja, primeiro, contextualizar a questão do espaço em relação à própria obra de
Foucault; segundo, a partir dessa contextualização, buscar, em seus
escritos e observações, um viés conceitual alternativo que reoriente a
compreensão daquela análise.
No primeiro caso, cabe observar que em relação aos mapas não
existiu uma exclusão total da desrazão, se tomarmos esse conceito tal
como Foucault observou em sua ‘História da Loucura’ ou em relação
à Literatura desde a época clássica até a modernidade. Desde o século
XVII, muitos mapas se afastaram dos princípios de razão ou verdade
enfeixados nos saberes cartográficos e geográficos sendo mesmo organizados em torno de um princípio de desrazão que foi o elemento
essencial de sua organização, construção e disseminação. A sobreviVeja-se, por exemplo, a análise da compreensão foucaultiana de espaço de Edward S. Casey. CASEY, Edward S. The fate of place. Berkeley: University of California Press, 1998, p.
296-301.
113
186
Renato Amado Peixoto
vência desse princípio de desrazão pode ser minimamente explicada
se considerarmos que não acontecem na cartografia nem rupturas
nem cercamentos da linguagem, ao contrário, a experimentação de
linguagens é uma de suas tônicas. Ainda, mesmo que a geografia ou
os métodos cartográficos constituíssem modelos racionais para essa
escrita, não existiu um consenso a respeito de controles que desclassifiquem ou excluam obras ou sujeitos, ou seja, pode-se dizer que existiam outras razões possíveis. Desse modo, é possível observar, desde o
século XVII, a inserção mesma dessa experimentação da desrazão ou
de razões outras na cartografia e a possibilidade de inscrição, validação e disseminação do que poderíamos chamar de geografias pessoais
e mapas da imaginação.
No segundo caso, entendemos que a problematização de uma
discussão em torno da cartografia deve ser feita menos em função
da sua escritura e mais em torno dos processos cognitivos que a originam e dos métodos em que se investe sua inscrição. Para se pensar
um espaço é necessário considerar antes um espaço imaginário onde
se produz uma linguagem através de múltiplas experiências de outras linguagens; é preciso pensar os pressupostos que possibilitaram
as condições de composição da gramática e da sintaxe dessas linguagens; entender cada um dos mapas das imaginações e das geografias
pessoais que extrapolaram em um dado momento seus limites para
constituir uma gramática e uma sintaxe cartográfica. Pensar o espaço
significa investigar uma construção humana que só existe enquanto
parte de um campo de forças no qual a energia é o falante e a linguagem seu gerador – como Antonin Artaud entendia a encenação,
é necessário considerar essa linguagem sob a forma de encantamento,114 uma linguagem que visa a encerrar e utilizar a extensão e fazê-la
ARTAUD, Antonin. A encenação e a metafísica. In: O teatro e seu duplo. São Paulo: Max
Limonad, 1984, p. 62.
114
187
Cartografias Imaginárias
falar.115 Uma linguagem que Foucault entenderia ser tanto um exercício de autonomia quanto um exercício de decomposição da individualidade, um entendimento que pode ser acompanhado através
das investigações da relação entre a literatura e a linguagem feitas por
Foucault e, especialmente, pelo remetimento dessas às suas observações sobre a vida e obra de Antonin Artaud.
As referências a Artaud na obra de Foucault
As referências a Artaud abrangem um longo período de pelo menos
dezessete anos, desde 1961 até 1978, podendo ser encontradas em
vários dos artigos e conferências de Foucault assim como em algumas
de suas principais obras, especialmente em ‘As palavras e as coisas’,
na ‘História da Loucura’ e em ‘O nascimento da clínica’. Como essas referências acompanham o deslocamento temático e teórico das
pesquisas de Foucault, pudemos nos servir delas para inferir certas
transformações pontuais no seu entendimento da obra de Artaud.
Mas essa transformação do entendimento de Foucault está conectada
também com uma recepção renovada das principais obras de Artaud
na França: novas edições de ‘Heliogabalo ou o anarquista coroado’,
‘O teatro e seu duplo’ e ‘Van Gogh, o suicidado pela sociedade’, foram lançadas na França a partir de meados da década de 60. Afinal
de contas, Artaud abordava em cada uma dessas obras temas caros
ao próprio pensamento foucaultiano, como o homossexualismo, a
linguagem e a loucura. Além disso, não se deve também descartar a
renovação do interesse em torno da obra de Artaud provocado pela
radiodifusão em 1973 de ‘Para acabar com o julgamento de Deus’,
ARTAUD, Antonin. Cartas sobre a linguagem. In: O teatro e seu duplo. São Paulo: Max
Limonad, 1984, p. 141-142.
115
188
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após nada menos que vinte e cinco anos de censura. Finalmente, devemos considerar um certo desencanto de Foucault pela literatura,
que provavelmente guiou-o a uma nova observação de certas categorias artaudianas, como o ‘atletismo afetivo’ e o ‘teatro da crueldade’.
A primeira referência a Artaud já é um termômetro seguro da
importância que Foucault lhe atribui, uma vez que o insere junto a
Nerval no restrito rol dos criadores que através da linguagem romperam com uma tradição de racionalidade ao refazer a experiência da
loucura.116 Essa importância seria ainda mais alargada na medida em
que a obra de Artaud, juntamente com a de Nietzsche, foi entendida
como um dos marcos delimitadores da clivagem entre Razão e desrazão na cultura ocidental.117 Mais, o centro mesmo do argumento final da ‘História da Loucura’ se constituiria em torno da tensão entre
a arte e a loucura na obra de Artaud, definida pela expressão “palavras
jogadas contra a ausência fundamental da linguagem [...]”, servindo
ainda para alicerçar o conceito de “ausência de obra” que Foucault
utilizaria para melhor exemplificar a ideia de ruptura.118
Entre 1963 e 1966, acompanhando o deslocamento da pesquisa em torno de ‘O nascimento da clínica’ e ‘As palavras e as coisas’ a
obra de Artaud passaria a ser entendida a partir da relação que faz das
chamadas ciências empíricas com a concepção filosófica do conhecimento. Assim, Foucault passaria a entendê-la também enquanto uma
experimentação119 conectada mais à ideia da construção da linguagem, acenando um afastamento da ideia da “ausência de obra”, como
FOUCAULT, Michel. La folie n’existe que dans une societé. 1961 In: ________. Dits et
écrits. Tomo I. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p.167.
116
FOUCAULT, Michel. Préface; Folie et Déraison. 1961. In: _____. Dits et écrits. Tomo
I. Paris: Éditions Gallimard, 1994. p. 161.
117
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Ed. Pespectiva, 1978, pp. 528530.
118
FOUCAULT, Michel. Guetter le jour qui vient. 1963, in ______. Dits et écrits. Tomo I.
Paris: Éditions Gallimard, 1994. p. 266.
119
189
Cartografias Imaginárias
assinalaria Foucault em 1964: “Artaud pertencerá ao solo de nossa
linguagem e não a sua ruptura”.120
Esse entendimento da obra de Artaud enquanto uma linguagem em movimento, uma “linguagem experimentada e percorrida
como linguagem”, consolidar-se-ia em ‘As palavras e as coisas’ quando
Foucault a discerniria como “uma espécie de contradiscurso”, junto
a outras obras nas quais julgava poder discernir uma “autonomia literária” capaz de impelir “às margens onde ronda a morte, onde o
pensamento se extingue”.121 Entretanto, na obra de Artaud, mais do
que em outros autores, essa linguagem era entrevista como uma ação,
um ato perigoso, “recusada como discurso e retomada na violência
plástica do choque e remetida ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne”.122 Por conseguinte, a transformação
do pensamento seria operada por uma sublimação da energia material, capaz de sufocar a linguagem discursiva e aniquilar o sujeito ele-mesmo e engendrar a nova linguagem.123 A materialização de uma
“linguagem do pensamento” passaria então a ser compreendida tanto
como o exercício de uma autonomia linguística124 quanto como um
processo de decomposição da individualidade (no caso, se observada
a associação da obra de Artaud com a esquizofrenia125 ou pela relação
FOUCAULT, Michel. La folie, l’absence d’ouvre. 1964. In: Dits et écrits. Tomo I. Paris:
Éditions Gallimard, 1994, p. 412-413.
120
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tomo I. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
p. 60-400.
121
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Tomo I. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p. 400.
122
123FOUCAULT, Michel. La pensée du dehors, 1966. In: _____. Dits et écrits. Tomo I.
Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 522; 525.
FOUCAULT, Michel. De l’archéologie à la dynastique, 1972. In: _______. Dits et écrits.
Tomo II. Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 412-413; Ver o paralelo entre Freud e Artaud em
FOUCAULT, Michel. Theatrum philosophicum, 1970. In: ______. Dits et écrits. Tomo II.
Paris: Éditions Gallimard, 1994. p.80.
124
FOUCAULT, Michel. La folie et la sociéte, 1970. In: ______. Dits et écrits. Tomo II.
Paris: Éditions Gallimard, 1994, p. 132.
125
190
Renato Amado Peixoto
que Foucault estabelece entre uma literatura da peste e ‘O teatro e
seu duplo’126).
A cartografia dos espaços de Artaud
Por conseguinte, a materialização da linguagem do pensamento se
constitui num espaço de contínua tensão entre a razão e a desrazão
que pode ser problematizada por meio da metáfora cartográfica. Neste sentido, é necessário centralizar nosso argumento sobre uma das
proposições iniciais deste ensaio, de modo a exemplificá-la, no caso, a
ideia de que nos mapas não existiu uma exclusão total da desrazão, tal
como Foucault observou na sua ‘História da Loucura’ ou em relação
à Literatura desde a época clássica até a modernidade, mas a convivência de várias razões.127 Para isso nos valeremos de alguns exemplos
selecionados de modo a cobrir alguns elementos essenciais tanto para
a compreensão do espaço como para a construção cartográfica. Esses
exemplos visarão a constituir, a partir do viés interpretativo da ‘linguagem artaudiana’, elementos para a minimização dos problemas da
análise foucaultiana do espaço.
Pesquisada a cartografia dos séculos XVI e XVII, podemos
observar que a existência de modelos cuja cientificidade, estética e
acuidade geográfica eram amplamente reconhecidas, não impede o
surgimento e a aceitação de mapas absolutamente divergentes em
relação àqueles. No século XVI, por exemplo, as cartas baseadas na
projeção de Mercartor dividiram o espaço editorial com o modelo
‘O teatro e seu duplo’ está considerado dentro de uma linhagem literária que remonta a Tucidídes. Ver FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 58; 68.
126
Ver PEIXOTO, Renato Amado. A máscara da Medusa: a construção do espaço nacional
brasileiro através das corografias e da cartografia no século XIX. 2005. Tese-(Doutorado em
História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2005.
127
191
Cartografias Imaginárias
cartográfico de John Ogilby que diferia abruptamente tanto no que
diz respeito à orientação quanto à construção dos mapas.
No modelo de Ogilby, os mapas eram projetados sobre pergaminhos imaginários que dividiam entre si a extensão da folha. Cada
pergaminho destinava-se a permitir o acompanhamento de um itinerário, que partia de uma cidade ou povoado situado sempre na parte
de baixo no extremo esquerdo da folha. Essa rota ascendia então ao
topo do pergaminho para reaparecer na parte de baixo do pergaminho seguinte, daí ascendendo novamente e continuando sucessivamente, até terminar no topo do pergaminho situado no extremo da
página direita.
A partir desse exemplo, também podemos utilizar a ideia da
linguagem artaudiana para problematizar o espaço enquanto uma
produção ao mesmo tempo autônoma e múltipla. Ao contrário da
cartografia achatada e estática de Mercartor, sempre orientada para o
norte, em Ogilby cada pergaminho imaginário possuía uma orientação diferente, novamente transformada nos pergaminhos seguintes
(Figura 12). Cada um desses pergaminhos imaginários buscava detalhar os elementos que podiam servir enquanto marcos para suas narrativas peculiares: alguns enfatizavam as estradas, outros destacavam
os montes, rios, florestas e pontes, outros ressaltavam ainda cidades e
vilas. O modelo de Ogilby não revelava apenas fragmentos do espaço,
mas, através da utilização do mistério e do suspense, elaborava espaços em permanente fruição.
A ideia de uma produção do espaço autônoma e múltipla pode
ser mais aprofundada se entendermos ainda a existência de ‘lugares’
produzidos, os ‘espaços imaginários’, e as ‘localizações’ que interagiriam com aquele através de sua inscrição no mapa. A ‘produção’ e a
‘inscrição’ desses ‘lugares’ e ‘locais’ remetem, portanto, à investigação
de um processo de composição onde é necessário delimitar diferentes
192
Renato Amado Peixoto
Figura 12.
Mapa Ogilby.
Fonte: OGILBY (1675).
193
Cartografias Imaginárias
instâncias: a composição propriamente dita, seu projeto e construção, a inscrição e a sua disseminação. Nesse sentido, continuando a
utilizar a metáfora do mapa, poderíamos exemplificar a constituição
de diferentes condições da composição de suas gramáticas e sintaxes.
Se tomarmos um novo exemplo, o ‘Mapa de Nova Harmonia
(Figura 13), podemos observar que esse pode ser lido a partir de
qualquer posição: alto-baixo, esquerda-direita, etc. Esta característica somente pode ser explicada se for entendido que o ‘Mapa de Nova
Harmonia’ foi confeccionado, nos Estados Unidos, por dissidentes
da Igreja Luterana, seguindo os padrões já utilizados nos mapas de
outra denominação protestante, os ‘Shakers’. No caso, o ‘Mapa de
Nova Harmonia’ segue uma linhagem que ‘localiza’ através da própria inscrição um ‘lugar’ de composição, representando um ‘espaço’
da experiência, a saber, a perseguição religiosa sofrida e o desejo de
possibilitar o exercício de diferentes interpretações. O ‘lugar’ seria,
portanto a expressão aceita pelos falantes ideais de uma dada comunidade linguística em certo momento, que poderia, ou não, conviver
com outras expressões, mas que poderia a partir daí constituir ‘locais’,
os quais só podem ser bem entendidos a partir das leituras feitas por
meio da escrita que os inscreveu no mapa.
Veja-se este exemplo: no mapa ‘Neu-York’ de Melissa Gould
(Figura 14), os topônimos da cidade de Nova Iorque estão grafados
em alemão e a partir deste são ‘localizados’ no mapa da cidade certos
lugares típicos da Alemanha do Entre-guerras. No caso, a autora, filha de judeus austríacos que haviam se exilado nos Estados Unidos
na década de 1930, pretende partilhar a vivência do preconceito que
experimentou durante sua residência de dois anos na Berlim dos anos
80 e com isso motivar os judeus de Nova Iorque para ações junto à
opinião pública que informem a sobrevivência daquilo que motivou
a imigração de seus pais e também o Holocausto.
194
Renato Amado Peixoto
Figura 13.
Mapa de Nova Harmonia.
Fonte: WEINGARTNER (1832).
195
Cartografias Imaginárias
Figura 14.
Detalhe da região do Central Park.
Detalhe ampliado do Mapa Neu-York.
Fonte: GOULD (1991).
196
Renato Amado Peixoto
Por outro lado, o mapa ‘A New Yorker’s idea of United States of
America’ (Figura 15), produzido para a Feira Mundial de Nova Iorque de 1939 explora o provincianismo dos nova-iorquinos através de
uma distorção que enfatiza os espaços mais valorizados por eles e da
inscrição de nomes incorretos ou fictícios, por exemplo, ‘Mineápolis’
e ‘Indianápolis’ são grafadas nesse mapa como ‘The twin cities’. Se
no primeiro exemplo, a transliteração pode ser entendida enquanto a inscrição de um lugar, um ‘espaço da imaginação’ resultante da
autonomização da linguagem, no segundo, a transliteração pode ser
entendida como a representação de um espaço pela disseminação dos
mapas das imaginações e das geografias pessoais que em um dado
momento extrapolaram seus limites para constituir uma gramática e
uma sintaxe cartográfica.
‘Local’, ‘Lugar’ e ‘Espaço’ resultariam, portanto, de uma contínua tensão entre autonomia e multiplicidade onde o exercício da
cartografia significaria reconhecer não apenas os interstícios e as
margens que permitiram a construção dos mapas, mas também uma
economia de suas linguagens que remete à investigação de sua produção e de sua reelaboração. Afinal, retiradas as convenções cartográficas, resta-nos não mais um mapa, mas apenas uma folha em branco
que, esvaziada de suas fruições, pode ser preenchida por razões outras
às da sua linguagem.
Seria nesse sentido que Lewis Carrol, em ‘The hunting of the
Snark’ (Figura 16) utiliza também a metáfora cartográfica e mesmo
um mapa em branco para ilustrar o episódio em que os protagonistas,
de barco, preparavam-se para cruzar o oceano e iniciar a caçada aos
‘Snarks’, seres imaginários, fugidios, múltiplos.
197
Cartografias Imaginárias
Figura 15.
Mapa A New Yorker Idea of United States.
Fonte: WALLINGFORD (1939).
198
Renato Amado Peixoto
Figura 16.
Mapa Ocean-Chart.
Fonte: CARROLL (1931).
199
Cartografias Imaginárias
“Ele [o Capitão-sineiro] tinha trazido um grande
mapa representando o mar,
Sem o mínimo vestígio de terra:
E a tripulação ficou muito agradecida quando descobriu que aquele era
Um mapa que todos poderiam entender.
Para que servem os Pólos Norte e os Equadores de
Mercator,
Trópicos, Zonas, e Linhas de Meridiano?
Então o Sineiro gritou: e a tripulação responderia
‘Eles são apenas sinais convencionais!
Outros mapas são do mesmo formato, com suas ilhas
e cabos!
Mas nós temos nosso bravo Capitão para agradecer:
(E a tripulação protestaria) Ele nos trouxe o melhor –
Um perfeito e absoluto vazio!
Isto era maravilhoso, sem dúvida; Mas eles rapidamente descobriram
Que o Capitão que eles acreditavam tanto
Tinha apenas uma noção para cruzar o oceano,
E esta era o tilintar de seu sino.128
Se considerarmos a cartografia enquanto o experimento resultante de uma linguagem múltipla e autônoma, a afirmação de Foucault “eu sou um cartógrafo” ganharia outros sentidos. Utilizando
novamente a metáfora dos mapas, esta cartografia constituiria uma
crítica à linguagem achatada e inerte das cartas, remetendo-nos ao estudo de uma construção que se efetuaria pelas margens e nos interstícios, atravessando organizações gramaticais, léxicas e sintáticas, para
compreender sua deformação a partir do exercício da constituição
The Bellman’s Speech. In: CARROLL, Lewis. The Hunting of the Snark: An Agony in
Eight Fits. Adelaide: The University of Adelaide Library, 2007.
128
200
Renato Amado Peixoto
de um sujeito-esquizofrênico, múltiplo, multiplicado, mas multiplicador. Afinal, para Artaud, a linguagem emergiria em um estado de
putrefação pura do ser, como uma linguagem do pensamento, capaz
de engendrar, como a peste, o outro que seria o sujeito mesmo. Contudo, essa estética da crueldade estaria ligada a uma ética da crueldade, onde caberia a cada um a invenção de uma linguagem própria e
múltipla, lapidada por meio de uma boca-ânus que suga e esvazia. Ao
cartógrafo caberia, portanto, a tarefa de investigar a invenção de uma
linguagem que constrói espaços por meio do excremento, espaços-sêmen que engendram e se multiplicam – espaços imaginários – ao
mesmo tempo que mergulha e bebe desses líquidos.
Foucault (1994, p. 762), aquele que fala sobre espaços separados, as ‘heterotopias’, talvez ecoando Lewis Carroll, escreveria no
final de seu famoso texto sobre o espaço que, “nas civilizações sem
barcos os sonhos se escoam”.
No final de outro texto, igualmente famoso, Antonin Artaud
descreve um espaço igualmente separado: seu corpo.
“O espaço do infinito
Não sei
Mas
Sei que
o espaço
o tempo
a dimensão
o devir
o futuro
o destino
o ser,
o não-ser,
o eu,
o não-eu
nada são para mim;
201
Cartografias Imaginárias
mas há uma coisa
que é algo,
uma só coisa
que é algo
e que sinto
por ela querer
SAIR:
a presença
da minha dor
do corpo,
a presença
ameaçadora
infatigável
do meu corpo.”129
E este não é o corpo sem órgãos de que nos fala Gilles Deleuze,
mas a linguagem de Artaud - entrevista por Foucault e Derrida, é
uma geografia dos sonhos; o seu espaço - nossos corpo e mentes, um
barco sempre pronto a zarpar.
ARTAUD, Antonin. Para acabar com o julgamento de Deus. In: ______. Escritos de
Antonin Artaud. Porto Alegre: L&PM, 1983. p. 157-158.
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Sobre o Autor
Renato Amado Peixoto é professor titular de História na UFRN e pesquisador do CNPq. Possui licenciatura em História pela UERJ (1989),
Especialização em História (História das Relações Internacionais) pela
UERJ (1998), mestrado em História (História Política) pela UERJ
(2000), doutorado em História (História Social) pela UFRJ (2005),
pós-doutor pela UFRGS (2019) com estágio como Investigador Visitante Sênior no Centro de Estudos Geográficos da Universidade de
Lisboa (2019). Renato é um dos líderes da Rede de Pesquisa História e
Catolicismo no Mundo Contemporâneo (RHC), coordenador do Grupo de Pesquisa Teoria da História, Historiografia e História dos Espaços
(UFRN) e do Projeto Direitas e Religião no Brasil (Propesq/UFRN).
Está integrado à Red de Estudios de Historia de la Secularización y la
Laicidad (REDHISEL/Argentina); à Sociedade Brasileira de Teoria e
História da Historiografia (SBTHH); e à European Society for the Study of Western Esotericism (ESSWE). Atua principalmente nos seguintes temas: História do Catolicismo, História do Esoterismo, História da
Cartografia, História da Literatura e História dos Espaços.
209
Esta obra foi composta em Garamond Premier Pro
pela Acervus Editora
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Passo Fundo | Rio Grande do Sul | Brasil
Tel.: (54) 99676-9020
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Renato Amado Peixoto
E
sclarecendo as origens do processo político e intelectual que criou o Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
Cartografias Imaginárias utiliza a cartografia e
a literatura para discutir a formação do espaço
da nação e da região, deslindando o papel das
elites locais e a cooperação das corporações
diplomática e militar com estas. O seu resultado é a construção do mito, tantas vezes desmentido, de um país coeso e forte, destinado
a ocupar o papel de potência e de liderança
internacional, que tem norteado a direita e a
esquerda brasileiras nos últimos dois séculos.
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