UNED. REI, 5 (2017), pp. 9-28
AS LÁGRIMAS DE MARIA MADALENA:
MAR DE AMOR E DOR
GEISE KELLY TEIXEIRA DA SILVA
Universidade de Porto
[email protected]
RESUMO: O presente trabalho apresenta uma leitura do canto X do Memorial dos Milagres de Cristo, poema épico do século XVII escrito pela religiosa
cisterciense Soror Maria de Mesquita Pimentel. Pretende-se, com esta análise, demonstrar como alguns dos processos retórico-poéticos mobilizados
pela autora no referido canto —cujo núcleo narrativo é a conversão de Maria
Madalena— em articulação com os afetos que suscita, assumem uma função
retórica de persuasão que apela ao pathos do leitor no sentido de chamar
sua atenção para o comportamento penitente de Maria Madalena enquanto
modelo a ser seguido por todos os crentes, especialmente pela mulher cristã,
que deveria libertar-se dos laços mundanos para converter-se em um modelo exemplar de santidade em consonância com as coordenadas propostas
pelo Concílio de Trento.
PALAVRAS-CHAVE: Maria Madalena; epopeia religiosa; Soror Maria de
Mesquita Pimentel; literatura conventual feminina; Memorial dos Milagres
de Cristo.
DOI 10.5944/rei.vol.5.2017.18790
ISSN 2340-9029
Greise Kelly Teixeira da Silva
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As lágrimas de Maria Madalena
THE TEARS OF MARY MAGDALENE: sea of love and pain
ABSTRACT: This essay presents a reading of canto X of Memorial dos Milagres de Cristo, epic poem written by Cistercian religious Sister Maria de Mesquita Pimentel in the 17th century. This analysis seeks to demonstrate how
some of the rhetorical-poetic processes mobilized by the author in that canto
—whose narrative core is the conversion of Mary Magdalene—, in conjunction with the affections that raises, take a rhetoric of persuasion function
that calls for pathos of the reader in order to draw your attention to the
penitent behavior of Mary Magdalene as a role model to be followed by all
believers, especially the christian woman who should free themselves from
worldly bonds to be converted into an exemplary model of holiness, in line
with the proposals coordinated by the Council of Trent.
KEY WORDS: Mary Magdalene; religious epic; Sister Maria de Mesquita
Pimentel; Conventual women’s literature; Memorial dos Milagres de Cristo.
A
igura de Maria Madalena foi um dos leitmotiv mais explorados pela
Igreja Católica desde a Idade Média até inais do século XVIII. A par
de todas as variantes míticas e biográicas1 que enriqueceram o seu nome
através dos séculos, sua igura esteve quase sempre associada ao pecado
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As lágrimas de Maria Madalena
original e à luxúria, uma condensação de toda a imperfeição do sexo feminino que durante muito tempo contribuiu para sustentar a misoginia tradicional e serviu de base para a elaboração de um dos mais emblemáticos
modelos morais do Cristianismo.
O arquétipo de “pecadora penitente” forjado em torno de sua imagem prolifera na hagiograia e se difunde através da arte e da literatura
devota. Como uma segunda Eva, a igura de Maria Madalena passará a ser
situada como contraponto frente ao ideal de perfeição da Virgem Maria,
assinalando com o seu exemplo de pecadora e penitente a possibilidade de
que também estas mulheres, marginalizadas e depreciadas pela sociedade,
poderiam alcançar o perdão e a santidade. Mais do que isso, sua igura irá
representar um modelo de comportamento penitente a ser seguido e imitado pela mulher cristã, seja ela jovem, casada ou viúva. Não é por acaso
que o gesto mais eloquente da santa é a sua postura de joelhos, uma posição que representa humilhação e inferioridade diante de Cristo, constituindo um ritual que terá lugar particularmente na comunidade monástica
e cada vez mais enraizada nos hábitos religiosos femininos.
Se na arte religiosa dos séculos XVI e XVII a representação de
Maria Madalena prolifera tanto como “mirrófora” quanto penitente, no
campo literário, seja sacro ou profano, notar-se-á uma visível preponderância das lágrimas numa clara sintonia com a sensibilidade religiosa da
época, que viveu intensamente a consciência do pecado e a necessidade do
arrependimento e conversão. Com efeito, vários pregadores e tratadistas
evocaram Madalena e suas lágrimas para estimular a meditação dos iéis,
principalmente as mulheres. Suas lágrimas também virão a constituir um
tópico bastante atrativo aos olhos de eclesiásticos, poetas e dramaturgos
que, inspirados tanto nos evangelhos quanto na Legenda Áurea, de Jacopo
da Voragine, e no seu traslado português —o Flos Sanctorum—, transformam-na em uma personagem carregada de simbolismo.
Na Península Ibérica vamos nos deparar com uma larga fortuna
literária acerca da vida desta peccatrix, o que demonstra a enorme popu-
Sabe-se que a figura de Maria Madalena como hoje a conhecemos é resultado de
um longo e complexo processo de “aglutinações”. Sua identidade ainda hoje não é
consensual, embora a tradição tenha condensado em uma só personagem, sobretudo
após a Homilia XXXIII de Gregório Magno, aspectos das três figuras femininas referidas nos quatro evangelhos canônicos: a Maria de Betânia, irmã de Marta e Lázaro;
a mulher inominada de São Lucas, e a Maria de Magdalo, de quem foram expulsos
sete demônios.
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laridade alcançada por esta santa no sul da Europa. Sua representação em
Portugal2, nesse mesmo período, não se distancia muito dos contornos
apresentados na Idade Média (Barbas, 1997: 179). Sem perder os traços arquetípicos de pecadora, Maria Madalena será transformada em um modelo de “santidade heroica3” de central importância no contexto da Contrarreforma, convertendo-se em um símbolo autêntico do arrependimento e
penitência para ediicação dos iéis.
É de surpreender, contudo, a escassa repercussão de uma das iguras mais representativas da piedade barroca na literatura conventual feminina em Portugal no período moderno, ainda mais se considerarmos a
função modeladora assumida por grande parte dessa literatura (Morujão,
2013: 479). Isabel Morujão refere que apesar de Maria Madalena ter sido
objeto de tratamento poético em quase todas as poetisas, não se veriica
uma grande expansão ou qualquer assinalável recorrência nos exemplares
de que temos conhecimento4.
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As lágrimas de Maria Madalena
Contudo, é no Memorial dos Milagres de Cristo5, um poema épico do século XVII6 escrito por Soror Maria de Mesquita Pimentel7, que
encontraremos alguns traços marcantes da presença dessa santa. Um dos
aspectos que irrompe com o que há de mais inesperado neste poema é o
protagonismo que a religiosa cisterciense atribui à Maria Madalena, já que,
nenhum outro texto conhecido da literatura conventual feminina confere
a essa personagem tamanho relevo. Neste Memorial dos Milagres, entretanto, Soror Mesquita Pimentel dedica todo o canto X à “pecadora arrependida”, que é amplamente focalizada ao longo de 93 estrofes escritas em
oitava rima, recuperando a tradição dramática que se construiu em torno
dessa igura feminina.
Da mesma forma que os diversos sermões e textos hagiográicos
exploraram a imagem de Maria Madalena no esplendor de sua beleza antes
do arrependimento e depois a verter rios de lágrimas aos pés de Cristo, Soror Mesquita Pimentel também explora as duas facetas de sua personagem,
Para o caso de Portugal, cita-se alguns exemplos como: Conversam e lágrimas da
gloriosa Sancta Maria Magdalena e obras espirituais, de Diogo Mendes Quintela
(Quintela, 1615); as elegias de Jorge da Silva e de Francisco de Sá de Menezes publicadas com a obra Tractado em que se contem a Paixam de Christo, segundo o Texto dos Euangelistas muy deuotamente moralizada & outra doctrina muito deuota &
proueitosa q[ue] mostra os proueitos de se juntar hu[m]a alma cõ Xpo & duas elegias à
bem auenturada Madalegna (SILVA, 1589); a Elegia IX de António Ferreira (Ferreira,
1598); e o Soneto XXI, de Sá de Miranda, publicado em Poesias de Francisco de Sá de
Miranda (Miranda, 1989: 81-82). A propósito desses e de outros autores, ver o artigo
“Maria Madalena: lágrimas, amor e culpa”, de Luís de Sá Fardilha (1995) e a tese de
doutoramento de Maria Helena Barbas (1997) intitulada Imagens e Sombras de Santa
Maria Madalena na Literatura e Arte Portuguesa.
3
Duby; Perrot, 1994: 198
4
Isabel Morujão cita como exemplos de incursões do heroico na literatura conventual feminina os poemas escritos por D. Helena da Silva, com a sua ordenação da Vida
de Nossa Senhora, escrita a partir dos versos de Virgílio, e o Poema a la Pasión de
Cristo; também Ave Peregrina e Primaz do deserto, de Soror Maria do Céu; e A Cristo
baixando o limbo e Jacob e Raquel, de Soror Madalena da Glória. Para saber mais,
consultar Morujão, 2013: 140-182.
5
O Memorial dos Milagres de Cristo, que até pouco tempo permaneceu inédito, foi
editado pela primeira vez em 2015 (Cf. Morujão/ Conde/ Morujão, 2015). Além deste
poema épico, estruturado em versos decassilábicos escritos em oitava rima, Soror
Maria de Mesquita Pimentel escreveu também o Memorial da Infância de Cristo e
Memorial da Paixão de Cristo, obras que, juntamente com a primeira, constituem
uma trilogia que narra a vida de Cristo desde o seu nascimento até a sua morte e
ressurreição. Desses três poemas, apenas o Memorial da infância foi publicado em
1639. O Memorial dos Milagres, como já referido, foi editado em 2015, e o Memorial
da Paixão ainda continua inédito, embora a sua edição já esteja a ser ultimada por
uma equipe de investigação coordenada pela Professora Isabel Morujão.
6
Embora o manuscrito não esteja datado, toma-se como parâmetro o século XVII
como período de produção tendo em conta que o Memorial da Infância foi editado
em 1639. Contudo, suspeita-se que o Memorial da Paixão tenha sido escrito ainda
em finais do século XVI, já que foi o primeiro dos três poemas a serem escritos pela
autora, conforme explicitado nos paratextos de censura e ainda prólogo do leitor do
Memorial da Infância, no qual Soror Pimentel declara: “Os que o seu Memorial/ Da
Paixão solenizastes,/ Recebei com gosto igual/ Este, pois os bens fundaste/ Na Infância celestial”. (Pimentel, 1639: fl. inumerado)
7
No que se refere à vida dessa autora, sabe-se basicamente que ela foi uma religiosa
professa no mosteiro de São Bento de Cástris, em Évora, nascida em 1586, para além
de algumas informações sobre sua origem e filiação, conforme pontua Antónia Fialho Conde na edição do Memorial dos Milagres de Cristo (Morujão/ Conde/ Morujão,
2015: 50-62).
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esboçando a imagem de uma mulher atraída pelo luxo e vaidade para, em
seguida, transformá-la em um modelo de amor e penitência para ediicação de seu público leitor, convocando, para isso, “os elementos persuasivos
mais eloquentes da época” (Morujão, 2013: 483).
É acerca desse “pendor persuasivo” que pretendo debruçar-me
ao longo deste trabalho, buscando, sobretudo, sublinhar os processos estilísticos que vão sendo gradualmente erigidos no canto épico de Soror
Mesquita Pimentel para promover a captação de seu destinatário à maneira do consagrado conceito horaciano do ut pictura poesis. Ocupar-me-ei,
por agora, apenas em demonstrar como alguns dos processos retórico-poéticos por ela mobilizados, em articulação com os afetos que suscita,
contribuem para comover e persuadir o leitor no sentido de chamar sua
atenção para o comportamento penitente de Maria Madalena enquanto
modelo a ser seguido, em especial pelo público feminino a que se destina,
visando atingir objetivos que vão de encontro às coordenadas propostas
pelo Concílio de Trento.
A partir desta análise, pretende-se também dar visibilidade a um
tipo de produção que abarca, em vários sentidos, a expressão da marginalidade feminina em Portugal na Idade Moderna; marginalização no
que diz respeito à condição de mulher e de religiosa da autora; à posição
também marginal de sua personagem enquanto pecadora; e também ao
caráter “periférico” que a escrita conventual feminina, por seu estatuto de
menoridade, ainda hoje apresenta no contexto dos estudos históricos e literários. Relegada durante muito tempo ao esquecimento, essa obra chega
aos nossos dias como um eco das muitas vozes femininas que ao longo dos
séculos passados foram silenciadas pela historiograia literária portuguesa, ilustrando um quadro da escrita feminina que se processou a margem
do cânone literário e sob o peso de uma sociedade enraizada nos valores
patriarcais.
Um dos primeiros aspectos que salta à vista do leitor no canto X
do Memorial dos Milagres de Cristo é a presença de uma série de elementos
que se aproximam das convenções retórico-poéticas do período em que
foi constituído, sendo patente o aproveitamento e atualização de alguns
dos códigos estético-literários da altura, como metáforas minerais e natuUNED. REI, 5 (2017), pp. 9-28
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rais na construção do retrato feminino; a mitologia clássica greco-latina;
e iguras de linguagem (metáfora, hipérboles, antíteses, paradoxos). Conforme veremos mais adiante, a força do ut pictura poesis e os vários elementos retórico-poéticos que se disseminam ao longo da narrativa, em
articulação com os afetos que se expressam na “linguagem das lágrimas”,
resultam como estratégias eicazes para mobilizar no leitor emoções com
vista à comoção e persuasão.
Antes de aprofundar estes aspectos, é preciso ter em conta não
apenas as normas que moldavam a construção do texto conventual feminino, mas também as inluências que algumas das coordenadas mais evidentes do pensamento estético-literário da altura exerceram sobre a escrita de
Soror Mesquita Pimentel, o que nos remete para o panorama literário de
Seiscentos, século atravessado pela ilosoia estética do Barroco e ao longo
do qual assistimos à proliferação de obras voltadas para a conservação e
difusão da doutrina católica. Forjado pela conjuntura da época, este Memorial, assim como muitas outras obras emanadas da clausura feminina,
conigura-se como uma forma de literatura ediicante e formadora “cuja
função era a de tornar próxima e real para os cristãos a existência divina,
exercitando a adesão dos leitores pela via emotiva e pelo agenciamento de
uma retórica adequada” (Morujão, 2013: 145).
Dada a funcionalidade que a sua obra assume no âmbito dos conventos femininos, é o tipo de leitor visado que irá condicionar o estilo adotado por Soror Mesquita Pimentel. O que está em jogo no método composicional de seu canto épico não é a beleza das palavras enquanto expressão
de engenho, mas a valoração da res diante do verbum, ou seja, o que interessa é a exaltação da vida da santa Maria Madalena enquanto símbolo de
amor e penitência a ser valorizado pelos cristãos. Para conduzir o leitor
nessa direção, a autora lança mão de artifícios próprios do discurso epidítico (laudatório), de modo a garantir a produção de um efeito emotivo
capaz de suscitar a relexão.
À semelhança dos muitos textos de piedade e sermões produzidos
naquela época, no canto X de seu Memorial dos Milagres8 a poetisa tam8
À título de análise, utilizamos aqui a recente edição do Memorial dos Milagres
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bém irá explorar o motivo das lágrimas para comover o leitor e, por essa
via, colocá-lo diante da problemática do arrependimento, conversão e penitência. Na medida em que desenvolve os afetos na elocução de seu poema, a poetisa mescla em sua linguagem alguns artifícios retórico-poéticos,
recorrendo ao uso de metáforas, hipérboles e analogias para ampliicar a
projeção dos afetos ao passo que louva a superioridade da beleza da santa Maria Madalena e a grandeza de suas virtudes. Essa correlação, como
oportunamente veremos, favorece a recepção da mensagem que pretende
veicular. Primeiro, porque os afetos que o poema suscita envolvem o leitor
numa teia emotiva, causando-lhe comoção; e segundo, porque a ampliicação, enquanto artifício retórico, atinge a disposição do público pela admiração que as imagens despertam, tornando-se particularmente um dispositivo de persuasão na medida em que se assenta na sedução dos sentidos.
O argumento que antecede o canto antecipa o assunto de que se
pretende dar notícia: a vida e conversão de Maria Madalena. Ao longo das
93 estrofes que o constituem, a “pecadora arrependida” aparece mergulhada num mar de amor e dor, inundando todo o canto com as suas lágrimas;
lágrimas de contrição motivadas pela dor de seus pecados e pelo sentimento de culpa e arrependimento, mas que também expressam o grande amor
que sente por Cristo; lágrimas que a narradora toma para si, fazendo-nos
caminhar lado a lado com a pecadora arrependida e sentir com ela as suas
dores.
É com “voz de choro e de alegria” que a narradora começa a contar
a história de sua heroína. O ponto de partida é Jerusalém, lugar onde viviam seus pais, Siro e Eucária, senhores ilustres e “opulentos nas riquezas”.
Após informar o leitor acerca da origem e iliação nobre de Madalena, a
autora passa ao lugar comum da humildade: “Não é de tosca mão tão alta
empresa/ por ser digna de engenho sobre-humano/ que se afoga no mar
de tal beleza” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 6ª, 375),
descrevendo com pormenores as características físicas da pecadora, representando-a no auge de sua beleza e formosura inigualáveis.
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015), de modo que todos os excertos citados ao longo
do texto serão, a partir de agora, referenciados apenas com a identificação do canto
em análise (canto X), seguidos da estrofe e sua respectiva página.
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Mais adiante é referido o primeiro encontro de Maria Madalena
com Jesus, que estava a pregar no Templo. Com suas palavras e vista penetrante, Cristo repreendia suas maldades de tal modo que Maria chorava
e cobria-se com seu manto. Envergonhada e com o peito trespassado de
dor, a pecadora foge em direção a sua casa e, ao chegar a seus aposentos,
“o freio solta ao choro reprimido” e “com o coração rasgado de tormento/
despiu o seu riquíssimo vestido/ e icou sem as joias preciosas/ mais ricas com as lágrimas fermosas” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X,
estr. 41ª, 387). Banhada em lágrimas de arrependimento, Maria Madalena
passa a recriminar a vaidade e o “falso amor”, inaugurando um monólogo
que se prolonga por cinco estrofes, condenando a si mesma por ter preferido as “imagens falsas e ingidas” aos “verdadeiros bens”. O peso de suas
culpas é tão grande que deseja antes a própria morte do que ter cometido
algum pecado.
Logo após, a narradora regressa para airmar o estado de conversão de Maria Madalena, agora, já desvestida dos adornos do mundo. Depois de ter com o mundo “contas rematadas”, a pecadora convertida toma
um vaso de precioso unguento “e com humilde traje logo parte/ para ir
buscar de Cristo a melhor parte” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto
X, estr. 51ª, 390). Durante o percurso, Madalena derrama suas lágrimas
por todo o caminho por onde passa. Os pés, que antes a conduziam velozmente por caminhos perigosos, parecem-lhe, naquele momento, demasiado vagarosos, tamanho é o seu desejo de estar na companhia de Cristo.
Interpela, então, a seus pés: “Por que não is com asas, pés, voando/ por que
vá mais depressa a Deus chegando?” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015:
canto X, estr. 55ª, 391), desejando que estes tivessem asas para que voando
izessem-na chegar mais depressa à fonte de sua glória.
Segue-se, então, o episódio em casa de Simão, o fariseu. Aqui, a autora recria quase textualmente a cena narrada em Lucas 7, 36-50. Entrando
em casa do fariseu Simão, Maria avista Jesus sentado à mesa e tamanha é
a sua dor e culpa que “não ousa ver-lhe a face esclarecida/ mas encolhida
vai, por detrás passa” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 58ª,
392). Daí em diante, é narrado o momento em que Maria Madalena lava
os pés de Jesus com suas lágrimas e seca-os com seus cabelos: e “depois que
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com seu doce choro grave/ lavou a Cristo os pés divino ofício”, “os cabelos
soltou, laço suave/ e por lhe dar de amor mais claro indício/ com este ouro
espalhado lhos limpava/ e ininitos ósculos lhe dava” (Morujão/ Conde/
Morujão, 2015: canto X, estr. 65ª, 395). Em seguida, derrama sobre os seus
pés o alabastro de perfume que traz consigo, “metida num incêndio tão
ardente/ não fala uma palavra do que sente” (Morujão/ Conde/ Morujão,
2015: canto X, estr. 67ª, 395). O fariseu Simão, que estava a observar a
atitude de Maria Madalena perante Cristo e conhecia a má fama que ela
tinha, “logo dentro em si diz murmurando” (Morujão/ Conde/ Morujão,
2015: canto X, estr. 70ª, 396) que se Jesus fosse realmente um profeta, ele
certamente saberia que aquela mulher que lhe lavara e beijara os pés era
uma pecadora da cidade e, por isso, “era razão que logo a despedisse/ e que
estar a seus pés não consentisse” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto
X, estr. 71ª, 397).
A narrativa prossegue recriando o quadro da parábola dos dois
devedores, presente em Lucas 7, 41-42, no momento em que Jesus dialoga
com Simão, comparando a sua (ausência de) atitude com as ações de Maria
Madalena, que terá todos os seus pecados perdoados por amar a Cristo
com tanto excesso. Madalena parte, então, enriquecida, levando a situação narrativa ao desfecho com os comensais “olhando-se uns aos outros
admirados” e a perguntar quem é este homem que “tem em si cifrados/ os
poderes de Deus alto e celeste” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X,
estr. 91ª, 403).
A leitura que este canto oferece permite-nos observar um particular dramatismo, que se concentra, sobretudo, no momento em que Maria
Madalena arrepende-se de seus pecados e na cena do lavatório dos pés. A
presença redundante e hiperbólica das lágrimas, constantemente explorada pela poetisa, intensiica a expressão da dor sentida pela pecadora, emprestando à narrativa uma eloquência ímpar que apela ao pathos do leitor
devoto e provoca nele comoção pelo suscitar dos afetos. Maria Madalena
não apenas chora, mas “corrente de lágrimas lançava” (Morujão/ Conde/
Morujão, 2015: canto X, estr. 60ª, 393) e “cento de io em io lhe corriam”
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 61ª, 393). O monólogo
ferido e prolongado da pecadora não deixa de demonstrar uma clara inUNED. REI, 5 (2017), pp. 9-28
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tenção da poetisa em captar a adesão de seu destinatário, exercendo sobre
ele uma ação transformadora na medida em que o faz meditar sobre a dor
e sofrimento da personagem, identiicando-se com ela e projetando nela
a si próprio.
Neste ponto, é interessante observar que o que antes motiva a conversão da pecadora não é inluência do amor que lhe havia inspirado Cristo, mas sim o temor de vir a irritar a Deus e ser condenada a penas eternas.
É evidente a intenção de despertar no leitor cristão uma adesão emocional
baseada no medo, pois a autora apresenta diante dele a ira de Deus e o inferno a arder em fogo9, transformando o monólogo de Maria Madalena e a
dramatização de seu conlito interior em uma exortação, já que na medida
em que sua personagem recrimina a si própria, explicando a sua reprovável conduta, seu discurso estabelece com o leitor devoto, em particular a
mulher cristã, uma espécie de admoestação, funcionando como exemplo
e aconselhando todos os iéis que se enredam em caminhos semelhantes
a envergonhar-se de seus pecados, chorar suas culpas e a converter-se, assim como fez Maria Madalena. É de notar que, este tipo de construção,
baseada no medo, é algo característico das pautas religiosas impostas pelo
movimento contrarreformista, uma vez que não corresponde com a imagem evangélica da pecadora que lavou os pés de Jesus, em quem o impulso
afetivo resulta mais importante que o temor (Sánchez Ortega, 1995).
Igualmente interessante é o ritmo demorado que a poetisa confere a esta cena, construindo uma espécie de gradação pelo intensiicar do
pranto. Algo semelhante pode ser também observado no momento anterior à unção. Desde a entrada de Maria Madalena na casa do fariseu até a
unção propriamente dita, a sequência dos acontecimentos nos é narrada
com impressionante lentidão, prolongando-se por nove estrofes. Contudo,
importa destacar que esse alargamento não se dá a nível da progressão
narrativa, mas na expressão dos gestos e sentimentos de Madalena.
Vejam-se os seguintes versos: “Olha e vê de uma parte Deus irado/ E de outra o
fogo arder no inferno/ O piedoso céu está cerrado/ E vê-se assi metida neste aperto”
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 43, 387).
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Aos pés do bom Jesus chorando estava
Humilde, vergonhosa e mui confusa,
Tal corrente de lágrimas lançava
Que parecia Bíblis ou Aretusa.
E quão forçosamente que chorava
Movida da divina infusa,
Porque vestia lágrimas tão belas
Que parece que o Céu chora as estrelas!
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estrofe 60ª, 393)
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Para além dos movimentos afetivos que se observam em toda a narrativa, sublinhe-se a dimensão visual deste poema, percebida principalmente
na descrição física de Maria Madalena antes de sua conversão e na sequência
narrativa de suas ações, como numa espécie de exercício espiritual inaciano10.
Tal qual um pintor, a narradora “pinta” diante de nossos olhos um quadro
da “santa pecadora” a partir da enumeração de suas particularidades físicas,
imprimindo uma certa vitalidade que salta à vista do leitor. Maria Madalena
aparece desenhada com “olhos de diamante” e longas “madeixas de ouro”;
A fronte tinha cândida e serena
Sobrancelha arqueada e assaz escura
Para mais realçar da Madalena
A cor do rostro igual, a neve pura;
Suas formosas faces de açucena
Em que a púrpura e neve mais se apura
O nariz que as divide era aquilino
Em que pôs natureza o pincel ino.
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 9ª, 376)
O vaso de alabastro já derrama
Nos pés que com seu pranto tem lavados
Nos quais se prende, enreda, enlaça, inlama
Despois que com doçura os tem beijados.
Nunca cessa de obrar quem muito ama
E em todos estes termos delicados
Metida num incêndio tão ardente
Não fala uma palavra do que sente.
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estrofe 67ª, 395)
Veja-se que o que mais avulta nestes versos não são propriamente
as ações de Maria, mas a intensidade e riqueza expressiva de seus sentimentos. Se nos relatos evangélicos esta cena é narrada com uma certa
economia, Soror Mesquita Pimentel, pelo contrário, confere uma maior
amplitude aos gestos de sua personagem, cujas lágrimas emprestam um realismo particular e dramático à narrativa. Mas, não são apenas as lágrimas
de Maria Madalena que permeiam o texto. A narradora/poetisa também
chora a dor de sua personagem, mas é um choro que ao mesmo tempo
expressa alegria por saber que ela, “porque soube chorar”, encontrou consolo e perdão em Cristo. Não só isso: sua escrita constitui uma prática de
exercício espiritual através da qual a própria autora trabalha o autoaperfeiçoamento e o exercício ascético tão preconizado pela cultura monástica,
cuja doutrina baseava-se no desapego do mundo e no desejo de Deus. Por
esse motivo, é possível identiicar os próprios sentimentos da autora a permear o texto; sentimentos de amor, devoção e comoção que se misturam
às lágrimas de sua personagem e adensam o dramatismo de sua história.
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Sua boca que é qual rubim partido
Com perilo sutil alionado
Admirando, descobre dividido
Rico nácar de pérolas guardado;
E não tinha valor menos subido
Em seu rostro perfeito e acabado
A barba de cristal linda, engraçada
Por esmalte no meio mui rosada.
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 10ª, 377)
Em seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio propõe métodos de examinar a consciência, meditar, contemplar e orar vocal e mentalmente a partir do exercício da prática constante da “composição vendo o lugar”. No primeiro preâmbulo, da primeira
semana, Santo Inácio sugere: “Aqui é de notar que, na contemplação ou meditação
visível, como, por exemplo, contemplar a Cristo, Nosso Senhor, o qual é visível, a
composição será ver, com a vista da imaginação, o lugar material onde se acha o que
quero contemplar. Digo lugar material, como, por exemplo, um templo ou montanha
onde se acha Jesus Cristo ou Nossa Senhora, conforme o que quero contemplar”
(Loiola, 2012: 41-42).
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A descrição da santa em seu estado de pecadora segue ainda por
outras estrofes: a garganta “de azuis e roxas veias se jaspeia” (Morujão/
Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 12ª, 377), “as mãos são de marim
e pura neve” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 13ª, 377),
esboçando um retrato que segue a mesma verticalidade da composição
clássica do retrato feminino, cujo enfoque voltava-se para as partes nobres da mulher, como assim o izeram inúmeros poetas dos quais temos
conhecimento através do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Desse
modo, a poetisa fornece ao leitor um material pictórico que encontra expressão nos códigos tradicionais da representação feminina, utilizando-se
de elementos naturais e preciosos (ouro, diamante, esmeralda, rubi, pérola
e cristal) e de qualidades (branca, neve, pura) para metaforizar a raridade
da beleza e pureza da santa. Como se demonstrasse o ut pictura poesis,
Soror Mesquita Pimentel “pinta” a sua personagem de modo semelhante
aos inúmeros retratos pintados pela poesia da altura. Tal como aparece em
Góngora e Camões, “cabelos de ouro”, “olhos de diamante”, “pele branca” e
“boca de rubi” são metáforas que remetem a uma larga fortuna da tradição
petrarquista e, ainda que não desviem sua obra da tônica pedagógica cristã, imputam-lhe uma certa fruição estética.
Não obstante, na medida em que retoma metáforas consagradas
pela poética de seu tempo, Soror Mesquita Pimentel não descura da lei do
decorum horaciano, adequando os seus versos ao tema e à função de sua
obra ao passo que reveste a sua personagem de uma indumentária cristã
que se expressa por meio de metáforas colhidas nos campos semânticos
do luminoso (raios, luz, sol, estrelas, fogo, aurora). Nota-se, desse modo,
uma transladação do motivo poético da beleza feminina para o plano da
religiosidade, conigurando uma forma de divinização de sua personagem
e da matéria narrada em atenção aos códigos que orientavam e moldavam
a escrita religiosa.
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gêneros epidíticos, a descriptio11 adquire uma dimensão pragmática importante para qualquer discurso que tem por im o movere, justamente em
função do efeito perlocutório que essa composição exerce sobre o leitor.
Ao representar Maria Madalena desse modo, a autora faz com que sua
imagem seja projetada diante dos olhos do leitor pela força do ponere ante
oculo, envolvendo-o em uma teia de sentidos que se processa por meio de
um exercício de imaginação. Os adjetivos que realçam a beleza da santa
Maria Madalena, além de reforçar a sua singularidade e raridade, têm a
inalidade de louvar e engrandecer aquela que mais soube amar a Cristo,
cabendo, pois, à poetisa ampliicar tais virtudes, de modo a assinalar a sua
superioridade. Para tanto, Soror Pimentel recorre a metáforas, hipérboles e
analogias para distinguir a sua personagem, de modo a provocar no leitor
admiração pela beleza que suscita, o que por sua vez faz deslocar a imagem do que é representado para um plano onde, segundo Sócrates, “parece
mais admiravelmente maravilhoso do que antes” (apud Alves, 2001: 13).
A contemplação de alguns quadros narrativos também contribui
para a ilação dessa função suasória. Os relatos que envolvem a personagem
Maria Madalena abundam em pormenores que iluminam os seus gestos
com uma força plástica admirável, fazendo-nos acompanhar cada um de
seus passos como se pudéssemos vislumbrar os acontecimentos com o
mesmo olhar da narradora. Será interessante enumerar alguns dos sintagmas verbais que descrevem plasticamente a sua ação: “Na casa de Simão
vai já entrando” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 57ª, 392);
“Mas encolhida vai, por detrás passa” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015:
canto X, estr. 58ª, 392); “Aos pés do bom Jesus chorando estava” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 60ª, 393); “o vaso de alabastro
já derrama” (Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 67ª, 395). A
articulação discursiva destas cenas produz imagens que envolvem o leitor
É a partir daí que passaremos a observar de forma mais depurada
e signiicativa os vários recursos retórico-poéticos que incidem por trás
da composição plástica do retrato da santa e de alguns quadros narrativos. Conigurando um método da ampliicação normalmente usado nos
A descriptio, conforme prescreve Quintiliano no livro VIII de sua Instituição Oratória, é um procedimento elocutivo utilizado na descrição de pessoas, lugares, ações,
caráter, etc., e serve como técnica de amplificação do discurso. Utilizando-se de metáforas, comparações e epítetos, a descriptio visa atingir a clareza do discurso e a
eficácia visual a partir da representação das coisas como se fossem quadros, de modo
a imprimir-lhes uma vivacidade capaz de fazer “ver diante dos olhos” e, por essa via,
comover e persuadir o leitor/ouvinte/espectador mais facilmente.
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na narrativa e apela à interiorização de uma presença. A vivacidade da
descriptio de que fala Quintiliano, provoca a impressão de presença do referente quase como se este pudesse ser colocado “ante os olhos”. Atrelada
aos afetos e aos caracteres que lhes correspondem, a imagem representada permite, desse modo, que o leitor construa na alma aquilo que não é
possível captar pelos sentidos. Por conseguinte, a plasticidade de algumas
imagens oferecidas pela poetisa, em articulação com os afetos que suscita, acaba envolvendo o leitor na matéria narrada para melhor comover os
ânimos e persuadir.
Pode-se dizer ainda que o uso de tais adjetivos e metáforas serve para por em perspectiva a imagem da pecadora antes e depois de sua
conversão, produzindo um efeito de contrastes que indicia a orientação
retórica subjacente no discurso narrativo de Soror Mesquita Pimentel. Na
estrofe 23ª, percebemos de forma mais explícita essa intencionalidade:
Estrela celestial, se aqui me atrevo
A vos pintar com tinta negra e escura,
É porque irme intento na alma levo
De mostrar cedo a vossa fermosura;
As sombras como é certo e entender devo
Fazem resplandecer mais a pintura,
Tais nossas culpas são, e a sombra delas
Vos fará mais fulgente que as estrelas.
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 23ª, 381)
Veja-se que os adjetivos “negra” e “escura” produzem um efeito
contrastivo em relação ao discurso elogioso e “iluminado” com que a personagem é descrita. De acordo com Sánchez Ortega, essa duplicidade de
imagens “puede provocar em el espectador, gracias a este contraste, uma
impresión mucho más profunda” (Sánchez Ortega, 1995: 256) na medida
em que emparelha elementos antitéticos para promover uma relexão sobre o mundo das vaidades. Do ponto de vista discursivo, trata-se de uma
estratégia que pretende colocar o leitor devoto diante de dois polos distintos: o pecado e o arrependimento. É por isso que a narrativa se constrói
dividida em duas partes: na primeira, Maria Madalena aparece revestida
de rica pedraria, ressaltando-se o seu estado de pecadora; já na segunda,
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após o arrependimento e conversão, a santa é retratada sem nenhum adorno. A representação dos traços físicos que ressaltam a sua beleza corresponde à imagem de uma mulher entregue às vaidades do mundo e serve
de pretexto para a sua posterior “desiguração”, provocando no leitor um
maior efeito suasório no sentido de conscientizá-lo sobre a fugacidade da
beleza e os perigos que o “falso amor” oferece. Vale a pena retomar aqui
mais alguns versos:
Esta sua sem par rara beleza
A muita liberdade e poucos anos
Ser muito conquistada e ter riqueza
Causas assaz forçosas pera danos
Lhe foi ocasião para que presa
Ficasse com os laços dos enganos
E que tanto ao profano amor se desse
Que o divino amor de Deus perdesse.
(Morujão/ Conde/ Morujão, 2015: canto X, estr. 18ª, 379)
É a presença proeminente de Maria Madalena, ainda em seu
estado de pecadora, que irá imprimir no leitor o sentimento de contrição; “rara beleza”, “liberdade”, “poucos anos” e “riqueza” são combinações
que constituem um recorrente clichê dos sermões penitenciais e chama
a atenção para os perigos de gozar da beleza e formosura, pois a beleza
pode ser tão perigosa para a mulher que a possui quanto para o homem
que a contempla. Na medida em que “encena” ao leitor os costumes de
Maria Madalena na sua fase de pecadora, Soror Mesquita Pimentel esboça a personalidade de uma igura feminina distante do universo moral e
social valorizado pelo Cristianismo, bem como do esquema normativo o
qual deveria seguir a mulher cristã. O monólogo ferido e prolongado de
Madalena antes da conversão expressa o conlito interior de uma mulher
dividida entre o “amor sacro” e o “amor profano” que também constituiu
um dilema para as mulheres do Antigo Regime (Sánchez Ortega, 1995:
279) e que, neste canto em particular, deixa entrever a sobrevivência do
estereótipo feminino da debilidade da mulher no discurso da religiosa de
Évora. Depois de ilustrar a vida dissipada de sua personagem, a autora
passa a relatar o processo de conversão que irá transformá-la de pecadora
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em iel seguidora de Cristo, constituindo um autêntico modelo de arrependimento e penitência.
Se no início de seu canto épico a poetisa dá a entender que contará
apenas a história da vida e conversão de Maria Madalena, o desenrolar de
sua narrativa revela outra intenção. Mais do que apenas louvar a santa,
Soror Mesquita Pimentel demonstra buscar exercer também uma inluência transformadora sobre o seu público leitor. A adequação de todos os
processos retóricos por ela mobilizados demonstra uma preocupação em
captar a adesão do destinatário, na medida em que intensiica a projeção
dos afetos e explora alguns dos lugares-comuns de textos consagrados na
altura e que aparecem recolhidos nas inúmeras narrativas sobre a conversão de Maria Madalena. A contemplação dos quadros evocados constitui
uma súmula da vida ascética tal como sintetizada pelos ensinamentos de S.
Paulo e pretende conduzir os ieis à prática da perfeição cristã, principalmente as mulheres, que deveriam procurar aperfeiçoar suas próprias virtudes para que fossem exemplos por excelência da mulher cristã perfeita.
Embora que, do ponto de vista temático, o texto da autora seja
apenas mais um entre os vários que a sua época produziu em tempos de
Contrarreforma, não deixa de ser interessante observar os inluxos estilísticos que se manifestam através de um prolongado desenvolvimento poético dos textos bíblicos. Por esses aspectos particulares é que considerei a
relação entre retórica clássica e cristã uma perspectiva de leitura pertinente
na abordagem deste texto de Soror Mesquita Pimentel. É certo que seu
processo de tessitura esteve orientado pelo conjunto de regras que regiam
a escrita feminina, sobretudo dentro dos conventos, devendo-se, por isso,
evitar excessos condenáveis. No entanto, não se pode airmar categoricamente que a autora tenha escrito a sua obra sem qualquer preocupação
formal, ainda que esta não tenha sido a sua principal intenção. O conhecimento dos artifícios e procedimentos retóricos que a poetisa demonstra
ter serve não apenas para atestar que a sua obra não esteve desvinculada
das estruturas retóricas de pensamento ou que tampouco se processaram
em um contexto isolado. Antes, demonstra que, naquela altura, contrariando a ideia da inferioridade intelectual feminina presente no discurso
patriarcal, era possível, sim, que uma mulher fosse capaz de escrever obras
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de reconhecido valor estético, a exemplo de Soror Maria de Mesquita Pimentel, uma religiosa que, na sua dupla condição feminina e cristã, soube
conjugar um código linguístico fortemente retórico dentro de um gênero
tão rico e pouco aventurado por mulheres.
Recibido: 11/4/2017
Aceptado: 10/6/2017
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em casa de Martim de Burgos.
UNED. REI, 5 (2017), pp. 9-28
ISSN 2340-9029
[email protected]
RESUMO: Em 1780, D. Leonor de Almeida Portugal, Condessa de Oeynhausen e mulher do Ministro Plenipotenciário português na Corte Imperial
austríaca, enviou à família uma carta na qual descreve os últimos momentos e a morte da Imperatriz Maria de Teresa. Este documento é o ponto de
partida para uma reflexão sobre o modo como a figura da imperatriz surge
representada nesta carta, e para o modo como os apoiantes de D. Maria I
recorreram a essa representação de mulher forte, capaz de enfrentar desafios
políticos, simultaneamente como um modelo de comportamento no exercício da soberania e como legitimação da presença de uma mulher à frente do
governo de um Reino soberano.
PALAVRAS-CHAVE: Soberania feminina; Mulheres e poder; Imperatriz Maria Teresa de Áustria, Marquesa de Alorna (1750-1839).
DOI 10.5944/rei.vol.5.2017.19383
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