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EUNICE CALDAS: POETISA DO AMOR E DO MAR

2023, Via Atlântica

https://doi.org/10.11606/va.i2.208588

Na polêmica conhecida como Literatura de Sodoma, ficou claro o embate entre o conservadorismo e o discurso homoerótico desafiador nos anos 1920. No Brasil, na mesma época, uma poetisa ousou cantar seus amores por mulheres. Os poemas de Eunice Caldas (1879-1967) reunidos em Anfitrite (1924) são marcados por um lirismo sensual que se opõe aos padrões monogâmicos heteronormativos. Quase 100 anos após seu lançamento, este artigo se propõe a libertar mais uma vez sua voz, trazendo seus versos a novos olhos. Para isso, além de alguns dados biográficos da poetisa, incluindo sua relação com as portuguesas Maria da Cunha (1872-1917) e Ana de Villalobos Galheto (1863-1944), são estabelecidos diálogos com outras escritoras herdeiras de Safo: Judith Teixeira (1888-1959) e Renée Vivien. Palavras-chave: homoerotismo feminino, poesia brasileira, Eunice Caldas, Judith Teixeira, Renée Vivien.

EUNICE CALDAS: POETISA DO AMOR E DO MAR EUNICE CALDAS: POETESS OF LOVE AND THE SEA EDUARDO DA CRUZ1 JULIE OLIVEIRA DA SILVA2 1 Professor de Literatura Portuguesa no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), atuando na graduação e na pós-graduação. 2 Mestre em Literatura Geral e Comparada pela Universidade Sorbonne Nouvelle (Paris 3). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 177 Resumo: Na polêmica conhecida como Literatura de Sodoma, ficou claro o embate entre o conservadorismo e o discurso homoerótico desafiador nos anos 1920. No Brasil, na mesma época, uma poetisa ousou cantar seus amores por mulheres. Os poemas de Eunice Caldas (1879-1967) reunidos em Anfitrite (1924) são marcados por um lirismo sensual que se opõe aos padrões monogâmicos heteronormativos. Quase 100 anos após seu lançamento, este artigo se propõe a libertar mais uma vez sua voz, trazendo seus versos a novos olhos. Para isso, além de alguns dados biográficos da poetisa, incluindo sua relação com as portuguesas Maria da Cunha (1872-1917) e Ana de Villalobos Galheto (1863-1944), são estabelecidos diálogos com outras escritoras herdeiras de Safo: Judith Teixeira (1888-1959) e Renée Vivien. Palavras-chave: homoerotismo feminino, poesia brasileira, Eunice Caldas, Judith Teixeira, Renée Vivien. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 178 Abstract: In the controversy known as “Literature of Sodom,” the clash between conservatism and the challenging homoerotic discourse in the 1920s was clear. In Brazil, at the same time, a poetess dared to sing her love for women. The poems by Eunice Caldas (1879-1967) gathered in Anfitrite (1924) are marked by a sensual lyricism that opposes heteronormative monogamous standards. Almost 100 years after its release, this article sets out to free her voice once again, bringing her verses to new eyes. To this end, in addition to some biographical data on the poetess, including her relationship with the Portuguese Maria da Cunha (1872-1917) and Ana de Villalobos Galheto (1863-1944), dialogues are established with other female writers, also heirs of Sappho: Judith Teixeira (1888-1959) and Renée Vivien (1877-1909). Keywords: female homoeroticism, brazilian poetry, Eunice Caldas, Judith Teixeira, Renée Vivien. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 179 Sei que alguém no futuro também lembrará de nós. Safo3 1 HERDEIRAS DE SAFO Atualmente, a poetisa grega Safo de Lesbos é reconhecida como referência clássica da poesia de autoria feminina, sobretudo por sua lírica amorosa. Por também cantar amores entre mulheres, passou a ser considerada pioneira de uma lírica lésbica (termo oriundo do topônimo da ilha na qual viveu). Contudo, ao longo dos séculos, foram várias as leituras veiculadas de sua obra e de sua biografia, esculpindo uma figura multiforme e contraditória, com diversas versões e traduções de seus poemas e fragmentos, em um processo de mitificação4 em torno de sua biografia. Isso se deu após prolongado silêncio, quando ela foi recuperada pelos românticos franceses, que realizaram, de acordo com o pesquisador Glenn W. Most, no artigo “Réflexions de Sapho”, uma estratégia de condensação desses diferentes processos de mitificação: 3 Fragmento 147, traduzido por Guilherme Gontijo Flores (2017). 4 Tama Lea Engelking (1992, p. 128) comenta sobre a também variada mitificação de Vivien: “She has been called everything from a feminist to a masochist, an anorexic, an alcoholic, a virgin, a devoted Roman Catholic, a pagan, a mystic, a Sappho reincarnated, Baudelaire’s daughter, a symbolist, and a romantic. In the more than 80 years since her death, some of Vivien’s worst fears have been realized as her readers create various fictions of ‘Sappho 1900’, or ‘Imaginary Renee Viviens’, to suit their own ideological agendas. In short, Vivien is becoming more like Sappho all the time!”. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 180 Ce sont les Romantiques qui ont expérimenté avec le plus grand succès une troisième stratégie pour réinscrire au cœur de l’image de Sappho la fonction poétique. En condensant dans une seule personne les nombreuses contradictions dont la tradition avait chargé Sappho, ils ont inventé une figure intensément paradoxale : une figure de poète […]. La Sappho romantique est la première à être essentiellement une poétesse – mais une poétesse romantique, mécontente de la réalité banale et cherchant à atteindre une perfection spirituelle incompatible avec cette vie et seulement accessible au prix de la mort (MOST, 2010). Podemos inferir que essa transformação da mulher em um paradigma desajustado com o mundo é um processo, em sua essência, duplamente sexista, por se apresentar como tal por conta do gênero da poetisa e de sua sexualidade. Isso apesar de as leituras da época ainda caracterizarem Safo como apaixonada por Phaon. Afinal, apenas no século XX que se difunde a imagem da poetisa de Mitilene como amante de mulheres, atribuindo-lhe importância decisiva a uma série de escritoras que encontraram nessa Safo um precedente e um modelo. De maneira análoga ao que ocorreu com Safo, as “Novas Safos”5 dos primeiros anos do século XX também apresentam lacunas biográficas que servem para caracterizá-las ora como amantes de mulheres, ora como sofredoras de amor por homens. Elas tam5 Tomamos emprestado o título do romance do Visconde de Vila-Moura, de 1912, que narra a vida de Maria Peregrina, personagem que também era uma poetisa que amava mulheres. Esse romance português reforça a ligação entre escritoras que mantinham relações homoafetivas e a imagem da poetisa Safo. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 181 bém são autoras de poemas de teor homoafetivo ou homoerótico feminino, mas nem sempre interpretadas assim, sofrendo muitas vezes diversas estratégias de silenciamento, apagamento ou branqueamento. Por isso, nesta ocasião dos 100 anos da Literatura de Sodoma, apresentaremos a poetisa brasileira Eunice Peregrina de Caldas (1879-1967), sobretudo a partir de seu livro de poemas Anfitrite (1924), em relação com a portuguesa Judith Teixeira (1888-1959) e com a britânica que escrevia em francês e ficou conhecida como “Sappho 1900”, Renée Vivien (1877-1909). O interesse deste trabalho não é de estabelecer uma nova biografia dessas escritoras, mas de divulgar a obra poética de Eunice Caldas vinculando-a a um movimento internacional seu contemporâneo de herdeiras de Safo. Percebemos na ligação entre as três escritoras estratégias de cantar a própria experiência de ser uma poetisa sáfica no século XX. Eunice, apesar de geograficamente distante de Judith Teixeira e do episódio da “literatura de Sodoma”, também foi associada à Renée Vivien, estabeleceu diálogo pessoal e literário com escritores e escritoras portugueses e foi obliterada do cânone brasileiro. Assim, se como aponta Mário Lugarinho (2003, p. 143), “do episódio da ‘literatura de sodoma’ o que fica claro é o combate que uma sociedade travou consigo mesma diante da emergência da homossexualidade como um discurso autônomo e desafiador”, é importante recuperarmos uma obra que procurou, Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 182 no Brasil, cantar também amores homossexuais, distantes do padrão heteronormativo e monogâmico. Por isso, apontaremos as aproximações que Eunice Caldas estabelece com Renée Vivien e Judith Teixeira, reforçando também as marcas próprias da composição de Eunice, pioneira da poesia sáfica de autoria feminina no Brasil, mas ainda ignorada, como se percebe pela recepção dessas três poetisas. Ao considerarmos os “consagradores institucionais”, dos quais a pesquisadora Pascale Casanova trata em seu La République mondiale des lettres (2002), além da produção de comentários, poderíamos também reconhecer o status de escritora com base em outros elementos. No caso de Renée Vivien, ela teve em sua homenagem a criação de um prêmio de poesia, o Prix Renée Vivien. Por ocasião de seu centenário, um estudo organizado pela pesquisadora francesa Nicole Albert foi publicado em homenagem a Renée Vivien. No livro editado por Wendi Prin-Conti em 2019, Femmes poètes de la Belle Époque: heurs et malheurs d’un héritage, quatro dos onze artigos são dedicados a Renée Vivien e ao tema sáfico. Renée Vivien recebeu – postumamente – diversas homenagens e estudos: é o caso do realizado pelo crítico francês Yves-Gérard Le Dantec: Renée Vivien – femme damnée, femme sauvée (1930)6 e o Livre d’or de Renée Vivien, por Henriette Willette (1927); além das menções 6 A monografia de Yves-Gérard Le Dantec, Renée Vivien – femme damnée, femme sauvée (1930), foi analisada por Camille Islert (2019). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 183 nas autobiografias e memórias das escritoras Colette (em Le Pur et l’Impur, 1932) e de Natalie Clifford Barney (Je me souviens, de 1910; e Souvenirs Indiscrets, de 1960). Judith Teixeira, por sua vez, é mencionada em poucos dicionários literários portugueses7. Apenas recentemente, tem sido mais divulgada e estudada, com destaque para a edição de sua Poesia e prosa, organizadas por Fabio Mario da Silva e Cláudia Pazos Alonso. Houve ainda um aumento do interesse sobre a vida e a obra de Judith Teixeira, com professores e pesquisadores de diferentes países realizando estudos e pesquisas biobibliográficas8. No caso de Eunice Peregrina de Caldas, esta aparece apenas9 em um dicionário literário brasileiro: o primeiro volume da Enciclopédia da Literatura Brasileira (COUTI7 Dentre os quais o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português (2010) e o Feminae – Diconário Contemporâneo (2013), cujos texto e notas sobre Judith Teixeira foram elaborados pelo pesquisador Fabio Mario da Silva. 8 Podemos citar o livro de René P. Gary, Judith Teixeira e o Modernismo sáfico português (2002), a tese de doutorado de Maria Ivanova Chokova Disobedient Women: Sexual Transgression and the Search for Female Autonomy in the Writings of Renée Vivien, Judith Teixeira and Sibilla Aleramo (2020), o volume organizado por Fabio Mario da Silva, Annabela Rita, Maria Lúcia Dal Farra, Ana Luísa Vilela e Ana Maria Oliveira, Judith Teixeira: ensaios críticos, além de artigos de pesquisadores brasileiros. 9 Nos três importantíssimos volumes organizados por Zahidé Muzart, Escritoras Brasileiras do século XIX, Eunice Caldas apenas como coautora de um texto com Anália Franco, sem mais referências. Também não há verbete sobre ela no Dicionário Crítico de Escritoras Brasileiras, de Nelly Novaes Coelho; nem foi recolhida na moderna antologia Dissidências de gênero e sexualidade na literatura brasileira, antologia preparada por César Braga-Pinto e Helder Thiago Maia com textos brasileiros de 1842 a 1930, em dois volumes que contam com poucas escritoras: Baronesa de Mamanguape; Francisca Júlia; Laura Villares; Maria Firmina dos Reis. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 184 NHO; SOUSA, 2001)10. Sua reputação, por outro lado, começa a ser difundida devido ao seu papel de educadora e pioneira do movimento feminista no Brasil11. Melissa Caputo, apesar de ter conseguido reunir diferentes elementos biográficos sobre esta escritora, destaca, acima de tudo, a dificuldade dessa conquista e denuncia a “ausência de uma mentalidade histórica e cultural de preservação, somada à ignorância […] em geral sobre o valor histórico que envolve as coleções pessoais e individuais (correspondência, manuscritos, fotografias, bibliotecas, etc.)” e que esses fatores poderiam ter levado a uma “completa ocultação do arquivo relativo a Caldas” (CAPUTO, 2008). Se, no caso de Renée Vivien, as lacunas biográficas deixam espaço para a mitificação e processos de deslocamento sobre sua figura e sua posição como poetisa, também como defende Islert (2019, p. 141): “Passée de poétesse à Muse, d’artiste à inspiratrice, Vivien est consacrée comme figure majeure de la Belle Époque en même temps qu’elle est niée de sa fonction de créatrice”; o mesmo não acontece no caso de Judith Teixeira e muito menos no caso de Eunice Peregrina de Caldas. Isso não se dá por falta de qualidades poéticas ou de importância em suas funções. Recordemos que Judith 10 A referência é a Bibliografia da crítica literária em 1907 através dos jornais cariocas, de Reis (1968). 11 A única obra biográfica notável sobre esta escritora é a dissertação de Melissa Mendes S. Caputo, da Universidade Católica de Santos, Eunice Caldas: uma voz feminina no silêncio da história (1879-1967) (PUC, 2008), que focaliza o papel de Caldas como pedagoga, com uma breve menção a suas obras literárias. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 185 Teixeira participou, inclusive, da direção da revista Europa (1925) e colaborou em outros periódicos, além de ter publicado mais livros de poesia além de Decadência, ter escrito duas novelas e proferido duas conferências12. Eunice P. Caldas foi uma das fundadoras da Escola Secundária Feminina de Santos e uma pioneira do movimento feminista no Brasil. Como escritora e educadora, Eunice publicou ensaios, poemas, contos e peças de teatro, como Anfitrite, Ressurreição, Espinhos e rosas, Cenas domésticas, Instituto Maria Braz, Inezilha Braz, A pequena sensitiva, País fulgurante, O enigma, A psicologia do lar, O jardim celestial, A esmola e a pátria, As moças da moda, entre outros13,14. Contudo, essas escritoras experimentaram “as contradições de ser mulher no início da modernidade” (CAPUTO, 2008, p. 27) e, por terem levado vidas afetivas não convencionais, sofreram processos de apagamento que poderiam corresponder a suas 12 O livro Estrada da luz, organizado em 2017 por Anabela de Campos Salgueiro e Inês da Conceição do Carmo Borges com a obra poética e iconográfica de Branca de Gonta Colaço (1880-1945), inclui a imagem da folha de rosto dos livros Decadência e Castelo de Sombras, de Teixeira, com dedicatórias manuscritas à “ilustre poetisa” Branca de Gonta, em clara estratégia de Judith por divulgação e reconhecimento. 13 Alguns dados biobibliográficos sobre Eunice Caldas são obtidos no artigo “Em memória de Eunice Caldas”, publicado por Daniel Bicudo em A Tribuna, de Santos, em 24 set. 1967, e no livro de Leal Vital Brazil, Vital Brazil Mineiro da Campanha: Uma genealogia brasileira, por ser Eunice Caldas irmã do cientista Vital Brazil. 14 Rosa Esteves, artista visual e museóloga, em alguns momentos, revisitou a memória de sua tia-avó: a série fotográfica e o objeto-livro A casa de minha tia (2014); e o livro de artista O espírito feminino, de 2020, com fotografias de Eunice Caldas e reproduções de jornais e capas de revistas da época. Esses e outros trabalhos podem ser conferidos no site da artista. Disponível em: https://www.rosaesteves.com. Acesso em: 14 set. 2023. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 186 “mortes artísticas”, tais como: 1) o afastamento de Judith Teixeira dos círculos literários e a reclusão no final dos anos 1920, mesmo após a publicação da conferência De Mim (1926) e outros escritos; e 2) o completo desaparecimento da obra literária de Eunice Caldas15. Em termos de produção de comentários e obras biográficas sobre essas novas safos, podemos encontrar, como o brevíssimo inventário acima demonstra, muito mais produções dedicadas à Renée Vivien do que à portuguesa Judith Teixeira. O caso da Eunice Caldas é extraordinário, por ser uma poetisa brasileira pioneira ao cantar amores entre mulheres e ser ainda, quase um século após a publicação de seu livro, ignorada da crítica e da academia, apesar dos muitos trabalhos arqueológicos dos estudos de gênero no país. Isso prova o longo e difícil trabalho que ainda é necessário ser feito no resgate biobibliográfico de escritoras em português. Com Judith Teixeira, o afastamento e o apagamento sofridos ainda em vida a mantiveram fora da história literária portuguesa por muito tempo, todavia, as pesquisas realizadas nas últimas décadas podem servir como um meio de sua “ressurreição artística”. Pretendemos, com este breve artigo, remover do encarceramento um pouco da voz de Eunice Caldas. 15 Agradecemos a Érico Vital Brazil, neto do cientista e presidente da Casa Vital Brazil, em Campanha (MG), pelos esforços na busca por mais dados biográficos de sua tia-avó Eunice Caldas; e à Rosa Esteves, sobrinha-neta da poetisa, pela digitalização de alguns de seus livros, incluindo o Anfitrite. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 187 2 ENTRE A LIBERDADE AMOROSA E O CÁRCERE INSTITUCIONAL O caráter pedagógico de Eunice Caldas já foi apontado e avaliado, inclusive por ela estar firmemente vinculada à história da educação de Santos (SP) (cf. CAPUTO, 2008) – Eunice fundou naquela cidade algumas instituições de ensino. Além, é claro, de Caldas ser também autora de obras voltadas para o público infantil associadas ao interesse educacional, como a trilogia Cenas Domésticas (1907), Instituto Maria Braz (1912) e Inezilha Braz (1914). Por seu reconhecimento como educadora, Eunice foi escolhida pela Associação Brasileira de Educação, em 1929, a integrar um grupo de professores que foi para um curso de férias promovido pela Fundação Carnegie, nos Estados Unidos, no início de 1930. Segundo o Yearbook da Carnegie Endowment for International Peace (1931, p. 81), os professores brasileiros chegaram a Nova York em 14 de janeiro de 1930 para uma série de estudos de duas semanas no Teachers College, na Columbia University, e visita a uma série de escolas, “where they could see theory put into practice”. De lá, partiram para Washington, em programa similar planejado por Heloise Brainerd da Pan American Union, depois seguiram para Baltimore, Filadélfia e Boston, até voltarem para Nova York, de onde retornaram a 22 de fevereiro. Na relação dos Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 188 envolvidos, Eunice Caldas é apresentada como “elementar school teacher” e “anthor of children’s books” (CARNEGIE ENDOWMENT FOR INTERNATIONAL PEACE, 1931, p. 81), sem qualquer menção à sua carreira literária, talvez pela própria motivação do evento. Contudo, a atividade poética de Eunice Caldas parece estar relacionada mais aos seus vínculos afetivos do que profissionais. Seu primeiro livro de poemas, Anfitrite16, de 1924, é uma publicação casada com o da portuguesa imigrante no Brasil, Ana Villalobos Galheto (1863-1944)17, O gênio da raça. Uma fez o prefácio para o livro da outra. Os dois saíram pela mesma editora, no mesmo ano, eram anunciados juntos nos jornais e vendidos pelo mesmo preço (Figura 1). Fig. 1 – Anúncio dos livros de Ana Galheto e de Eunice Caldas. Correio Paulistano, São Paulo, n. 22.077, 12 jan. 1925, p. 6. 16 Amphitrite no original. 17 Os dados biobibliográficos sobre Ana Galheto podem ser consultados na apresentação da escritora que acompanha seu conto “O Cupido em Palácio” na antologia organizada por Eduardo da Cruz e Andreia Castro, Ao raiar da aurora (2022). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 189 Ana de Villalobos Galheto, nascida no Alentejo, em Portugal, casou-se aos 35 anos com Joaquim David Galheto, em 1898, viajando com ele para o Brasil, onde tiveram três filhas. Ela era professora primária em Portugal antes de imigrar. Quando Ana de Castro Osório viveu em São Paulo, entre 1911 e 1914, tornou-se amiga de Galheto. O interesse pela vida da patrícia deve ter motivado que Maria Lacerda de Moura escrevesse à Castro Osório em janeiro de 1926 contando: “D. Eunice Caldas está morando com D. Anna Galheto há mais de 2 annos, disseram-me” (LEITE, 1996, p. 274). Alguns indícios, no entanto, apontam para um relacionamento mais longo do que o apontado por Maria Lacerda e envolvendo mais uma escritora portuguesa: Maria da Cunha (1872-1917). Esta, após se divorciar, imigrou para o Brasil, com breve passagem por Paris, na companhia da jornalista Virgínia Quaresma (1882-1973), em 1912. Conforme explicam Eduardo da Cruz e Andreia Castro (2021), com filhos para sustentar e sem contar mais com o apoio de Quaresma, Cunha passa a proferir conferências, primeiro no Rio, depois em São Paulo, onde se encontra constantemente com Ana Galheto e Eunice Caldas (Figura 2). Ao falecer a 1º de janeiro de 1917, Maria da Cunha é sepultada no túmulo de Galheto no cemitério da Consolação (São Paulo). Sua última publicação saiu no número de natal de 1916 da Revista da Semana; trata-se de um conjunto de três sonetos datados de Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 190 18 de julho de 1916 intitulados “O beijo de Eunice”. Inspirado em Quo Vadis (1896), romance de Henryk Sienkiewicz, sobre o amor da escrava Eunice por Petrônio, o poema retrata Eunice abraçada à estátua de Mercúrio para declarar seu amor proibido. Todavia, conhecendo esses dados biográficos que unem as três escritoras, não é impossível ler na Eunice de Maria da Cunha a escritora mineira. A voz poética conversa com a persona de Eunice: “[…] As ilusões são belas!…/ Teus olhos resplandecem como estrelas/ e o mármore trespassam de calor!” 18 (CUNHA, 1916, p. 47). Fig. 2 – Ana Galheto e Eunice Caldas. Rio de Janeiro: 7 de junho de 1924. Acervo familiar. No outro ângulo dessa relação, Ana Galheto compôs também um poema sobre Eunice inspirada em 18 Optamos por atualizar a ortografia das citações dos textos dessas escritoras. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 191 Quo Vadis. Ele está ainda em manuscrito datado de 1940, pertencente ao acervo familiar19: “Tragédia Antiga”. Neste soneto, destacam-se também os olhos de Eunice: “Tinham seus olhos a luz divina,/ Que inspira um sublime amor,/ E penetra n’alma diamantina,/D’aqueles que amam com fervor.” E termina com a percepção, por Petrônio, de que os dois amantes estavam morrendo. Ana Galheto, em seu livro, dedica alguns capítulos à Maria da Cunha, cuja lembrança ainda era viva mesmo anos depois de seu falecimento. E, como veremos mais tarde, Maria também é musa de um dos poemas de Eunice Caldas. Esses breves indícios, vestígios, detritos, restos, o que sobrou abandonado, seguindo uma “scavenger methodology”20, como define Halberstam (2018), misturando dados e documentos dispersos por jornais e revistas da época, pelos livros que elas publicaram, por arquivos públicos e familiares, revelam o sentimento que uniu essas três escritoras. Eunice Caldas viveu essa liberdade ao lado de suas companheiras portuguesas, por mais tempo, claro, com Ana Galheto. Seus poemas também reproduzem relacio19 Agradecemos a Anna Glória Teixeira de Carvalho o acesso ao arquivo familiar com os manuscritos e fotografias de sua avó Ana de Villalobos Galheto. 20 “A queer methodology, in a way, is a scavenger methodology that uses different methods to collect and produce information on subjects who have been deliberately or accidentally excluded from traditional studies of human behavior. The queer methodology attempts to combine methods that are often cast as being at odds with each other, and it refuses the academic compulsion toward disciplinary cohérence” (HALBERSTAM, 2018, p. 13). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 192 namentos assim, abertos, sem preconceitos, muito além dos modelos fechados heteronormativos. Infelizmente, contudo, sua voz foi precocemente calada. Eunice Caldas desapareceu para o mundo no ponto alto de sua carreira. Melissa Caputo sugere a possibilidade de que a ida para os Estados Unidos teria sido uma forma encontrada pelas famílias para separar Ana e Eunice. E essa viagem foi crucial para o seu apagamento. Segundo relatos familiares, a professora teria voltado para o Brasil antes dos demais, presa em camisa de força, tendo sido recebida em Santos pelo irmão Oscar Americano e pelo sobrinho. Ela foi logo internada no sanatório Pinel em 21 de fevereiro de 1930. Ficou lá por 14 anos, até a aquisição da instituição pelo estado de São Paulo. Passou então para o sanatório Bela Vista, onde permaneceu até falecer, em 1967, somando 37 anos seguidos de encerramento psiquiátrico. Do prontuário de sua entrada no Pinel, emergem vários questionamentos, observam-se limites tênues no diagnóstico de patologia psiquiátrica para o qual foram arrolados elementos como: “dedicação à profissão”, “gosto pelo trabalho”, “atividades intensas” e “procura por independência”. Não se intenta negar possíveis patologias ou se o internamento de Eunice ocorreu por atos considerados incompatíveis com as normas vigentes. A análise de casos como esse propõe a problematização de questões como gênero-loucura-confinamento-discursos médicos, nas primeiras décadas do século XX (MATOS; PEREIRA, 2022, p. 2). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 193 Como evidenciam os documentos analisados por Maria Isilda Matos e Bruna Pereira, Eunice já havia sido internada anteriormente, por período bem mais curto, como uma passagem pelo Hospital do Juquery, em 1910. Neste momento, os médicos desaprovavam a educação dispensada a ela, a família e sua independência: Os médicos observaram que Eunice era solteira, apesar de ter 30 anos e destacaram que ela trabalhava exageradamente, e já se mostrava “totalmente independente, não admitia intervenções ou conselhos do pais ou irmão mais velhos, confiava exclusivamente em si”. Os comportamentos descritos contrariavam a ordem vigente e Eunice não se enquadrava nos padrões normativos. Alegando comportamentos estranhos, seus familiares procuraram o Juquery, onde foi internada durante 5 meses (PEREIRA, 2016, p. 39). Apesar de não ser possível confirmar a existência ou inexistência de qualquer patologia de Eunice Caldas, como indica Bruna Pereira, é evidente o preconceito dos médicos da época com mulheres educadas e independentes. Além disso, quase quatro décadas de internação compulsória, afastando-a de suas atividades profissionais e literárias, de seus círculos sociais e afetivos, sem reedições de seus livros, ajudam a explicar o silêncio sobre sua obra. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 194 3 ANFITRITE – DEUSA DO MAR E DO AMOR Como já indicamos, é Ana de Villalobos Galheto a autora do prefácio do livro de poemas Anfitrite. Esse texto reivindicativo de boa acolhida para uma obra literária, reclamando que nem sempre a crítica era benévola, sobretudo se a autoria fosse feminina, defende o trabalho do escritor como o prenúncio de mudanças, sonho que se converteria em realidade. Ana indica ainda que esse livro “surge, de momento, onde os gritos abafados irrompem lancinantes em demanda duma nova era” e deseja “que estes gritos percorram o Espaço e sejam o prenúncio dum futuro risonho, – livre de preconceitos e de desigualdades” (GALHETO, 1924, p. 5, 6). E parece óbvio que essa luta, da qual um livro escrito por mulher fazia parte, está vinculada ao movimento feminista, que tanto Eunice quanto Ana integravam. Contudo, não se encontra em suas páginas propaganda dessa campanha, o que nos leva a crer que talvez fossem outros os preconceitos aludidos por Galheto21. Afinal, o primeiro parágrafo de sua apresentação ao livro aponta outro tema: “Anfitrite! A deusa do Amor que ora nos visita – saudemo-la com o entusiasmo que inspiram todas as suas obras; amálgamas de suspiros e prazeres infinitos!” (GALHETO, 1924, p. 4). Trata-se de saudação 21 Exemplo dessa luta contra preconceitos pode ser lido no poema “Oscar Wilde”, no qual se diz: “Que importa o mundo com seu vil rancor/ Por tudo que tem brilho das estrelas!” (GALHETO, 1924, p. 95). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 195 à deusa Anfitrite, indicada como do Amor, quando é, na verdade, uma divindade marinha, de modo a relacionar o mar e o sentimento. Esse trecho lembra parte do poema “Invocation”, de Cendres et Poussières (1902)22, de Renée Vivien, dedicado a Safo, marcado por prazeres e suspiros, além das flores que também aromatizam os versos de Eunice Caldas: Ô parfum de Paphôs ! O Poète ! O Prêtresse ! Apprends-nous le secret des divines douleurs, Apprends-nous les soupirs, l’implacable caresse Où pleure le plaisir, flétri parmi les fleurs ! Ô langueur de Lesbôs ! Charme de Mitylène ! Apprends-nous le vers d’or que ton râle étouffa, De ton harmonieuse haleine Inspire-nous, Psapphâ ! (VIVIEN, 1902, p. 4-5). Compreendemos, portanto, dessa nova era livre de preconceitos e de desigualdades, tanto um período mais igualitário para homens e mulheres quanto um tempo no qual outras formas de amor não seriam abafadas. O ensinamento de Safo, invocado por Renée Vivien em suas leituras e traduções23, ecoa tanto em 22 Esse livro é dedicado “À mon amie H. L. C. B.”, iniciais desordenadas do nome de sua companheira na altura, Hélène Betty Louise Caroline de Rothschild (1863-1947), baronesa pelo casamento com o barão Étienne de Zuylen de Nyevelt (1860-1934), falecida em Lisboa, para onde foi viver com Olga de Morais Sarmento (1881-1948) após retornarem dos Estados Unidos, para onde fugiram da invasão nazista à França. É desse livro o verso que Judith Teixeira utilizou como epígrafe para seu livro Nua: poemas de Bizâncio, de 1926. 23 Letticia Batista Rodrigues Leite (2018) analisa como Vivien explicitamente opta por afirmar o homoerotismo feminino nos poemas de Safo Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 196 Judith Teixeira quanto no “estranho talento” (GALHETO, 1924, p. 6) de Eunice Caldas. A poetisa de Caldas opta também pela recuperação da temática clássica. Um dos motivos pode ser o seu próprio nome, Eunice, uma das muitas nereidas, filhas de Nereu e Dóris, como a Thetis por quem Adamastor se apaixonou n’Os Lusíadas, e Anfitrite. Esta divindade, além de aparecer no romance de Vicente Blasco Ibañez, Mare Nostrum (1917), com muito sucesso na época, foi cantada por Francisca Júlia (1871-1920) em Esfinges (1903), “Surge, esplêndida, e vem, envolta em áurea bruma,/ Anfitrite, e, a sorrir, nadando à tona d’água.// Lá vai… mostrando à luz suas formas redondas,/ Sua clara mudez salpicada de espuma” (SILVA, 2020, p. 69), provável motivo para a escolha, pois Eunice Caldas dedica a essa poetisa uma composição em três sonetos louvando sua arte, incluindo os temas amorosos: “Artista, amante, delicada flor,/ Estudando os painéis bordavas meiga,/ Sem esquecer jamais na arte a veiga/ Desta corrente que se chama amor.” (CALDAS, 1924, p. 143). Assim, Eunice transmuda-se em Anfitrite, que podemos entender como pseudônimo que reafirma sua ligação com o elemento marinho e com uma estética que valoriza a nudez e a sensualidade. Essa foi uma estratégia composicional utilizada por uma série de escritoras francesas do início do séem oposição a outras leituras dos fragmentos da poetisa de Lesbos em “Renée Vivien, tradutora de Safo”. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 197 culo XX para fazer representar o homoerotismo feminino. Como aponta Marta Segarra (2019), ao analisar as obras de Renée Vivien, Natalie Barney, Lucie Dalarue-Mardrus, Jeanne Galzy e Colette, escritoras que viveram relações amorosas com outras mulheres, ela percebeu que, sobretudo nos textos poéticos, mas em menor medida também nos narrativos, o elemento líquido funciona constantemente como metáfora de relações homoeróticas entre mulheres e como imagem da fluidez das identificações de gênero e sexuais além dos binarismos homem-mulher e heterossexual-homossexual. Trata-se, segundo ela, de uma associação mais ampla do que a já apontada por Bachelard na qual as referências líquidas serviriam como representação de corpos femininos, por sua inclinação e movimento em oposição à verticalidade masculina. Os poemas de Eunice Caldas (Figura 3) seguem uma temática variada. O livro é dividido em três partes: Sinfonia d’Alma; Impressões; e Miragem. No entanto, as divisões não parecem seguir nenhum tipo de conjunto harmônico de poemas, mas são marcadas por indicações de tempos e lugares, apesar de não terem necessariamente relação com esses espaços, na sequência: Rio, junho de 1924; Estação do Prata, julho de 1924; e Poços de Caldas, 11 de agosto de 1924. Os temas também são múltiplos. Na última seção, Miragem, junto a poemas de outras temáticas, há uma série dedicada a escritores, sobretudo poetas, homens e mulheres, como o já referido à Francisca Júlia: Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 198 Cruz e Souza; Gilka Machado; Olavo Bilac; Euclides da Cunha; e Maria da Cunha. Fig. 3 – Fotografia de Eunice Caldas entre flores. Acompanha a edição de Anfitrite. No caso do dedicado à poetisa portuguesa, um conjunto de quatro sonetos, fica clara a intimidade entre elas: “Velando ao teu sepulcro, bem sozinha,/ Tal como a mais humilde avezinha,/ Desejo-te fiel por companheira” (CALDAS, 1924, p. 184). Maria da Cunha é descrita por uma série de imagens, como “flor de cactos”, “malva”, “violeta”, “cisne branco”, “estrela rutilante”, “cristal formoso”, e “Princesa”. A “flor de cactos”, a primeira metáfora com que refere a porVia Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 199 tuguesa – “Aquela flor de cactos tão rara,/ Na cetinosa cútis um brilhante,/ É o teu retrato vivo, luz flagrante,/ Que a estética divina eternizara.” (CALDAS, 1924, p. 182) –, é tema de um poema de Judith Teixeira em Decadência (1923) e apontada por ela em sua conferência “De Mim” (1926) como “uma bacante em orgias pagãs” (TEIXEIRA, 2015, p. 286). Ao mesmo tempo, essa flor representa bem a fluidez entre os gêneros por seu caráter andrógino. Há nessa imagem a representação da flor como elemento feminino ao mesmo tempo em que traz a rigidez do cacto e de seus espinhos, também marca do sofrimento de sua condição e da necessidade de defesa constante, e a sedução do líquido que conserva em seu interior. Essa flor rara, por ser difícil de brotar e para utilizar o adjetivo de Caldas, caracteriza o que a diferencia do modelo padrão das mulheres e a faz ser cultuada por essas duas escritoras. Um visual andrógino, pagão, oriental, que se destaca do comum, está no quadro também chamado “Fleur de Cactus” (Figura 4), de Emile-Auguste Pinchart, exibido no Salon de Paris. Na pintura, uma jovem de pele morena aparece em meio a um terreno arenoso e pedregoso, com um cacto florido, segurando uma bilha, com seu pequeno seio de fora, confirmando o aspecto andrógino que essa planta em flor representa. Tanto a menina com sua bilha d’água quanto o cacto conservam o elemento líquido. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 200 Fig. 4 – “Fleur de Cactus”, de Emile-Auguste Pinchart. 1911. L’Illustration n. 3.557, 29 abr. 1911. Os livros de Eunice e de Ana Galheto foram recenseados pelo crítico paraense Benjamin Lima, n’O País. Após digressão sobre o crescimento das publicações de autoria feminina e sobre a dúvida se deveria ou não avaliar trabalhos de mulheres, pois seria difícil emitir opinião sincera, pouco ousou falar sobre o da Galheto, mas alongou-se no comentário sobre Anfitrite, destacando seu “lirismo sensual”. Lima reproduz alguns versos de “Penitência”, primeiro poema após o de dedicatória a Ana Galheto, para os comentar, o que Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 201 talvez indique que parou a leitura na primeira composição. Reproduzimos o comentário: “Sabes amar com delírio, ao extremo, Fazendo de teu amor – ente supremo – Sacrifício de amar. Que se te compreendesse a ardência imensa, Poderia mover como uma prensa Teu seio a palpitar. Que sou de Natureza muito fria, Que vivo esvoaçando noite e dia E que não sei amar. Embora no delírio – êxtase de amor – Abra-me como a mais mimosa flor, Que o sol vem afagar.” Talvez pareça a críticos demasiado graves que naquela “prensa” e naquela “flor” há toques de excessivo realismo. Mas se os artistas se recusassem a liberdade da forma, em correspondência com a liberdade de sentimento ou sensação, não haveria mais poesia espontânea e sincera. Digam o que quiserem os mestres da crítica. Mas, trabalhada assim, em verso livre, e de uma inspiração que lembra tão insistentemente Renée Vivien, essa poesia é de um modernismo inquietante. Além de “mística”24, no sentido que dá a esse adjetivo o calão lisboeta (LEAL, 1925, p. 1). 24 Esse rótulo de “mística”, assim sem explicação, não deve ter sido um louvor. Na dificuldade de se descobrir hoje o que a gíria lisboeta “mística” significava nos anos 1920, podemos pensar em várias acepções. Também Renée Vivien foi considerada mística, pela valorização de misticismos orientais e pagãos. Adolfo Coelho, ao estudar o calão dos ciganos, encontra, como definição de “místico”, “bom, belo, janota”, que se ligaria etimologicamente a “misto” (“bom”, ou ainda, “doce”, saboroso”) (1892, p. 158), o que indicaria que Leal estaria elogiando o corpo de Eunice, talvez pelas diversas alusões a seios em seus poemas. Além disso, Eunice Caldas era teosofista (notícias de jornal indicam sua participação em diversas reuniões teosóficas no Rio em 1922 e 1923) e, caso fosse do conhecimento de Leal, teria sido a causa dessa indicação, além de alguns versos que podem Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 202 Parece não ter passado despercebida aos leitores a temática homoerótica feminina dos poemas de Eunice Caldas, cujas metáforas foram rapidamente decodificadas, com o sensualismo do movimento da prensa sobre o seio e a abertura da flor. E o crítico demonstra conhecer também o trabalho de Renée Vivien, a quem rapidamente associa o da poetisa brasileira. A musa desse longo poema em cinco partes parece ser a mesma da dedicatória. No poema à Ana de Villalobos Galheto está expresso que todos são efetivamente para ela: “Dou-te todos os ais e todas as sinfonias/ Enredadas aqui; espinhos lacerados/ São desta pobre alma os mais finos brocados;/ São deste pobre seio as tristes melodias” (CALDAS, 1924, p. 11). Esses versos, inclusive, trazem imagens recorrentes no livro – “espinhos”, “brocados”, “seios” –, como se seus poemas fossem desdobramentos dessa dedicatória, o que reforça a ligação entre o amor das duas escritoras e a composição lírica, tal como nos versos que fecham o poema, que reforçam a sensualidade no calor do sentimento: “Aceita o relicário, emblema desta dor;/ Aceita estes secretos hinários de minha alma;/ E serena e altiva e cheia de tua calma,/ Aqueser associados ao espiritismo, ao qual Eunice e Ana Galheto estavam ligadas, como em “Bem” – “Sofres amando e sofrerás eternamente,/ Porque em outras vidas, atroz, impenitente,/ Foste o amante incauto, insaciável, maldoso.” (1924, p. 122) –, ou em “Confissão” – “Sonhar, sonhar porém de um outro modo;/ Não castelos e fadas portentosas;/ Prever no céu esferas misteriosas/ Que nos libertem deste mundo lodo.” (1924, p. 45). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 203 ce-me, bondosa, em efusões de amor” (CALDAS, 1925, p. 12). Não obstante essa declaração amorosa, ainda no “Penitência”, pelo sofrimento requerido pelo amor, as partes II, III e IV revelam outras amantes de sua musa. A primeira, uma portuguesa: Possuíste, porém, uma outra amante, Mui terna e delicada, palpitante, Que te sabia amar. Uma pombinha que arrula maviosa Num cetinoso colo; branca rosa. Com encantos de matar. De cabeleira fulva, olhos de garça, Sorriso de madona, quando passa As noites a cantar. Um rouxinol, uma alma lusitana, De belas terras, terras alentejanas, As terras de além-mar. Encontras em meu seio o seio dela, Julgando-me assim risonha e bela, Que a posso encarnar. Deste-me o seu anel, relíquia imensa, Pedindo-me com carinho, pensa, oh! pensa, Que o teu é o seu olhar. Resignada fico; deve ser linda A imagem dessa messe, messe infinda, Que te povoou o lar. Pareço-me à poetisa que findou E que um nome ilustre nos legou Na potência de amar (CALDAS, 1924, pp. 16-17). Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 204 Considerando que a Ana Galheto é a destinatária desse poema, é possível ler nessa “poetisa que findou” de “alma lusitana” a Maria da Cunha. E está presente o desejo de Eunice de fazer parte dessa colheita amorosa, com destaque para a indicação de que o nome da falecida não é ilustre apenas por ser poetisa, mas pela potência de amar, mais uma vez associando o fazer poético ao ato erótico. Contudo, ainda houve outras amantes, como já indicado. Uma “Mulher altiva, desdenhosa, brava,/ Que no leito as ternuras ministrava/ Fazendo-te delirar” (CALDAS, 1925, p. 18). E ainda uma terceira. Todas deveriam ser reencarnadas na que aceitou receber os três anéis, representando as que passaram. Na quinta e última parte, mesmo sem explicitar Anfitrite, a voz poética revela sua vida amorosa pela metáfora marinha: Se nas ondas revoltas desta vida Encontrei-te feliz, quando perdida Sentia-me afogar, Oh! não te deixarei indiferente. Essa tua dor, eu hei de humildemente Chegar a consolar. Para que este falso anseio vivo? Se o passado te tem assim cativo Eu o devo suportar. Mergulhada no fundo do teu seio, Viverei ternamente e sem receio Que me venham acordar. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 205 Deixa-me que te ame assim chorosa; Serás talvez a purpurina rosa Que me deve matar. Não me deixes sozinha; quando é noite A dor é para mim como um açoite; Vem sempre me acordar. (CALDAS, 1924, p. 21). Pode surgir a dúvida quanto ao destinatário desse poema pelo segundo verso da segunda estrofe do excerto citado, com “cativo” no masculino, enquanto, ao longo de todo o poema, o gênero do destinatário não está definido. Isso não impediu, como vimos, que fosse lido como os de Renée Vivien, inclusive pelas várias referências a “seios” do(a) receptor(a). Esse masculino pode ser compreendido como neutro, forçado para seguir a rima com “vivo”. Também o uso do gênero neutro por Safo foi muitas vezes associado ao masculino, apenas recentemente traduzido para o feminino. Já na estrofe seguinte, a segunda pessoa é associada a uma substância no feminino, “purpurina rosa”, que também pode ser lida como droga, seguindo modelos literários da época. Contrariamente ao ciúme de amantes do passado presente nesse poema, do qual escapa, talvez, a resignação de ser como a “poetisa portuguesa”, há composições nas quais três mulheres vivem em harmonia. É o caso de “Lagrima Christi” e “A Ceia”. O primeiro, inspirado no licor, representa a união entre “três amigas” que se amam, com a recuperação de temas caros ao período, “volúpias do luxo […] o Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 206 gosto pelo uso de drogas capazes de exaltar os sentidos, abrir caminhos para novos prazeres” (RESENDE, 2006, p. 18), como a embriaguez, os incensos, o devaneio, o culto da arte e da beleza: Eu sonolenta, preguiçosa, esquiva, Com a lembrança amarga, rediviva, Pedia o meu descanso. Eruptivo cérebro em fulgor, Com o coração a palpitar de amor, Queria só descanso. Deitada a um divã macio e belo, Acalentava assim um doce anhelo25, Eternamente moça! […] A minha amiga ter e predileta, Aquela em quem pressinto a voz secreta Do verdadeiro amor, Embora pessimista, acerba, irônica, Contemplava-me, qual santa verônica, Nos olhos o fulgor. Chamo-na Bem, de tanto a bem querer, Porque sei que por mim vai a morrer De venturas num mar. Bem é a expressão da sã ternura Que tem por mim aquela criatura Que me veio acordar. […] Uma outra boa amiga também tenho, 25 Mantivemos, na atualização ortográfica destes versos, algumas palavras como no original para não alterar a sonoridade: “anhelo”; “Chamo-na”; “acariciadoura”. Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 207 Que é melancólica e triste no empenho De decantar a vida. Também me acompanhava nesse instante, E, com ar magistral e petulante, Sonhava ser querida. […] Com um Lagrima Christi ainda cheio, Traz-nos esta mensagem: […] Cantemos só a glória da alegria E essa acariciadoura fidalguia, Que fielmente amamos, Três almas devotadas à beleza, Amando só da arte a realeza Felizes, pois, sejamos. (CALDAS, 1924, pp. 78-83). O segundo, inspirado na peça de sucesso de Júlio Dantas sobre o amor à portuguesa, A ceia dos cardeais (1902), a “cozinheira” canta de forma bem-humorada a história de uma ceia para “um trio magistral” (CALDAS, 1924, p. 87), formado por ela própria, pela “mais velha, companheira/ A fidalga bondosa, a feiticeira” (p. 89) e “A outra receosa e brejeira” (p. 90), em cuja composição se converte o trabalho doméstico no literário – “Ser cozinheira esperta e literária” (p. 87), “Coberta a mesa dessas iguarias/ Que burni com as mais fartas livrarias,/ Pois cozinhar não sei” (p. 89) – recusando, assim, as imposições sociais ao seu gênero e afirmando-se como mestra da escrita. Ao mesmo tempo, como a ceia uniu as três mulheres em um amor secreto, foge-se mais uma vez de um moVia Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 208 delo monogâmico, mesmo em relações entre pessoas do mesmo sexo: Jurei folgar e dar prazer a grande, A um coração que em amor feliz se expande E faz enternecer, Por muito merecer. Compensador, Animador, Afeto Secreto. Éramos três, embora não cardeais; Corações ternos, gêmeos em ideais, Que disputam a palma De possuir a calma Capaz de amar. E reverenciar O amor, Em flor (CALDAS, 1924, p. 88-89). 4 OS OLHOS DE EUNICE Ao final do romance de Blasco Ibañez (1958, p. 397), Ulisses Ferragut acaba submergindo após seu navio ter sido bombardeado. A narrativa do afogamento é a do abraço apertado de Anfitrite: “Sintió hincharse su interior, como si toda la vida de la blanca aparición se liquidasse, passando a su cuerpo a través del beso impelente”. O encontro com a mulher amada e com a morte é um só. Ele vê Anfitrite, mas a deusa Via Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 209 se liquida e é todo o mar que o rodeia e o penetra, apoderando-se dele e de sua vida. Com tal poder de sedução, fica evidente a escolha da poeta pela troca do nome das nereidas de Eunice por Anfitrite. Destacamos dos poemas de Maria da Cunha e de Ana de Villalobos Galheto a atenção que essas duas portuguesas deram aos olhos de Eunice. Como Anfitrite, no poema “Caprichos”, revela-se o desejo possuidor da voz poética: “Eu quisera vestir-te qual boneca”; “Eu quisera fazer o teu retrato”; “Eu quisera fazer teu seio meu”; “Quisera construir o meu castelo”. E, por fim: “Quisera que meus olhos dulçorosos/ Fossem fontes perenes de ventura,/ E neles, ó criatura,/ Afogar-te, afogar-te.” (CALDAS, 1924, p. 34-35). Também seu corpo, seus olhos, transformam-se em elemento líquido para levar à morte, no encontro sexual sugerido pela repetição das ações e pela confusão dos seios. Eunice Caldas, como outras novas safos, aproveitou tanto a temática clássica quanto o elemento marinho para cantar seus amores. Além disso, a androginia de certas flores também são imagens que apontam para um ideal de mulheres além da fragilidade associada ao feminino. No entanto, Eunice não se prende a um tema ou a um modelo amoroso. Suas referências são variadas, em diálogo constante com a literatura brasileira e a portuguesa, talvez pelo contato íntimo com as escritoras Maria da Cunha e Ana Galheto. Seus poemas por vezes ganham tom melancóliVia Atlântica, São Paulo, n. 44, pp. 177-215, nov. 2023 DOI: 10.11606/va.i2.208588 210 co, mas também se voltam para um lirismo sensual e até para momentos mais bem-humorados. Sua biografia demonstra a luta por autonomia profissional e o apoio sentimental em suas companheiras, até ter sido encarcerada e calada. Agora, aproximando-se do centenário da publicação de Anfitrite, é necessário libertar mais uma vez sua voz e dar a ver seus poemas a novos olhos. Afinal, esses textos vão além de certo olhar erótico ou desejante sobre o corpo feminino como em outras poetisas brasileiras e portuguesas do final do século XIX e início do XX, como as já citadas Francisca Júlia e Maria da Cunha. Em seus versos, revela-se uma liberdade sexual e amorosa ímpar entre mulheres, muito além dos padrões monogâmicos heteronormativos. Eunice Caldas, como Safo, aguarda que se lembrem dela. REFERÊNCIAS BICUDO, Daniel. Em memória de Eunice Caldas. A Tribuna, Santos, n. 170, 24 set. 1967. BRAGA-PINTO, César; MAIA, Helder Thiago. Dissidências de gênero e sexualidade na literatura brasileira: uma antologia (1842-1930). Salvador: Devires, 2021. 2 v. BRAZIL, Lael Vital. Vital Brazil Mineiro da Campanha: uma genealogia brasileira. Rio de Janeiro: [s. n.], 1996. CALDAS, Eunice. Amphitrite. São Paulo: Typ. Paulista, 1924. 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