[REVISTA ESTUDOS LIBERTÁRIOS (REL), UFRJ, VOL. 1. N º2]
2º semestre de 2019
ÉTICA E HISTÓRIA NOS ESCRITOS DE MARIA LACERDA DE MOURA
Daniel Santos da Silva
Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP); Mestrado em Filosofia pela
Universidade Estadual do Ceará (UECE).
Poderiamos ir mais longe: a que chamam inferioridade? A' diferença?!
Maria L. de Moura
É quase inevitável que um texto remeta, de alguma forma, ao mundo vivo que o
circunda, que o define e que medirá o quanto teoria e prática podem se envolver; a
multiplicidade de caracteres de nossa história, infelizmente, é constantemente ofuscada,
ainda, pela imposição de memórias de “grandes” feitos pontuais. Na literatura política
brasileira, sem querer impor alguma métrica específica, a obra de Maria Lacerda de
Moura (1887-1945) é dos mais transparentes sintomas de conturbações e desejos que
logravam entrever o novo - mesmo que soasse absurdo - e destrinchar o seu presente com
a argúcia de quem tem a história como centro de exercícios para confrontar as hegemonias
de ideias e imagens então padronizadas.
Poucas tintas deram tanta cor a desamparos invisibilizados por camadas de
mentira e sede de domínio dos homens seus contemporâneos; suas performances escritas,
faladas e seus devires afetivos e intelectuais sintonizavam-se à árdua busca das mulheres
por liberdade; por outro lado, recusando a fantasia de vítima, a escritora perspectiva a
autocompreensão das “mulheres” em necessária refundação, reinvenção, tomada de
responsabilidade. Com suas palavras, estirava a quem ouvisse as linhas inauditas de fuga
e estratégias de emancipação radicais que denunciavam também o conformismo feminino
- sugando do fato, na medida do possível, suas causas reais. Seus processos têm sido
reativados hoje, já que sua obra e vida têm devidamente, aos poucos, nutrido estudiosas
e estudiosos em diversos meios.
Os movimentos de Maria Lacerda de Moura seguiam-se rapidamente - de seu livro
publicado em 1918, Em torno da educação, já se veem ressalvas na obra seguinte, um
ano após, chamada Renovação. Se os dias então corriam depressa, não é qualquer olhar
que captaria sutilezas de seus trajetos em consonância com a experiência própria, a qual
desde cedo fora engajada com a prática e a reflexão da educação. Na sequência, a
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princípio, do espanhol Ferrer, suas ideias ao redor do educar impunham-se a todos os
âmbitos de vida e reflexão e mostravam o incômodo com a facilidade de tudo
compartimentar em utilidades isoladas. Maria Lacerda tinha um alvo claro e reconhecia.
Leio, partindo daí, o uso da história por Maria Lacerda como um confronto com
o tempo acumulado em mentira, em dominação - de transmutação em rotina de violências
às quais nos tornamos insensíveis. Vejo assim sua luta pela criação de uma cadeira sobre
História da Mulher, com sua consciência de que "o homem não está em condições de
pensar a educação feminina", 1 com sua convicção de que a potência que poderá gerar o
novo tem de ser fenomenal, capaz de fazer frente aos preconceitos mais sanguíneos de
nossas vidas. É uma abordagem geral, sem dúvida - Maria Lacerda tampouco brincou
com a sorte produzindo uma teoria da história; é um entrelaçamento específico que me
chamou a atenção, e por duas razões: primeiramente, pela maleabilidade “proposital” dos
termos envolvidos, e, enfim, pela coerência constantemente incrementada que tal
maleabilidade engendrou.
À minha atenção, certos traços se destacaram quando percebi que o uso da história
por Maria Lacerda é minuciosamente articulado pela tensão ética entre desespero e
convicção, liberdade e responsabilidade, saber e dominação; não há identidade entre essa
tensão e algum conceito filosófico universal que empurra a autora a aplicá-lo a
acontecimentos particulares da história - pelo contrário, a maleabilidade das ideias
históricas e éticas de seus escritos se apega à possibilidade de notar a crueza do real, talvez
até desesperar dele, alimentando com a outra mão o desejo do novo, da revolução, do
porvir, da concreção da "moral do futuro" (Moura, 1982: 72).
É o entrelaçamento entre ética e história, pois, um foco, sem ser guia de leitura. A
escritora não enlaçou definitivamente as duas ideias, antes as construiu em um processo
de décadas de experimentação e estudo. O que me resta é apenas refazer alguns pontos
dessa malha - não traduzir Maria Lacerda para públicos contemporâneos (há quem o faça
Sobre a "missão complexa da mulher”, cf. A mulher é uma degenerada?, ps. 80, 86 e 89, em que afirma:
“só as mulheres conscientes entendem que a liberdade não se pede, se conquista...”; sobre a disciplina de
História da Mulher desejada por Maria Lacerda, vários comentários foram feitos – indico “Movimento
feminista e educação: cartas de Maria Lacerda de Moura a Berta Lutz” (p.213), de Ângela Maria Souza
Martins e Nailda Marinho Costa; também a dissertação de Jussara Valéria de Miranda – pela qual temos
acesso a muitos textos de Maria Lacerda, fora a ótima interpretação -, “Recuso-me”! Ditos e escritos de
Maria Lacerda de Moura, p. 13. Sobre a acumulação da mentira, Maria Lacerda escreve em Ferrer e o
clero romano, p.13: “A primeira providência de Ferrer foi preservar o cérebro infantil e adolescente da
sugestão e da rotina, determinadas pela influência ancestral, impressa no ativismo e na ignorância, ou na
malícia, com que são feitos os livros escolares".
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magistralmente), mas jogar, com ela, sob o signo justamente da experimentação e do
estudo.
***
O aguçamento perceptivo que levou Maria Lacerda a separar-se das que lutavam
pelo sufrágio feminino, momento reavivado em vários escritos sobre a autora, é escoltado
por uma rede de ideias visivelmente conectadas a literaturas e práticas anarquistas proximidade amenizada pela dificuldade de enquadrar a escritora em qualquer
demarcação ideária; de todo modo, antes dessa ruptura - cristalizada por seu
distanciamento de Bertha Lutz – ícone do movimento sufragista brasileiro -, Maria
Lacerda preconiza o corpo da mulher como centro de autoconhecimento feminino e de
tomada de força, de responsabilidade sobre si e de amor a si e aos seres. Esse é um motivo,
creio, que nos permite reconhecer sua pena nas diversas perspectivas que assume - pena
que, aliás, parecia esconder seu "sexo" aos olhos pobres e preconceituosos da "reação
masculina". 2
Acompanha essa constância temática da autoeducação da mulher a denúncia do
aguilhão histórico da violência traduzida em inferioridade econômico-social (Moura,
1932: 75-77), fomentada por sua "deseducação" enviesada pelos homens e que a afasta
da vida e da atividade reflexiva que a torna verdadeira, plena e com "clarividência moral".
2
Cf. o artigo mencionado acima, “Movimento feminista e educação”, p. 222, sobre a mulher consciente de
si e do seu corpo; na página seguinte, reproduz-se a citação: "(...) quando escrevo meus panfletos e nas
entrelinhas não vêem a minha alma essencialmente feminina a maneira de sentir e de viver - batizam-se
com todos os adjetivos capazes de mudar o meu sexo .... muita gente precisa me conhecer pessoalmente
para se capacitar de que sou mulher, de que tenho a natureza delicada de meu sexo. Dois pesos e duas
medidas. É a reção masculina procurando impedir a evolução feminina". Outra figura de destaque a
defender o sufrágio feminino foi Leolinda Figueiredo Daltro (1858-1935), defensora da participação
feminina na guerra; vale conferir o texto "Apontamentos sobre campos de guerra", de Norma Telles, na
Revista do Centro de Pesquisa e Formação. Sobre a anarquia, Margareth Rago situa Maria Lacerda – e
nesse aspecto a aproxima da ítalo-uruguaia Luce Fabbri – de modo especial, pois é grande responsável pela
“renovação do anarquismo na América do Sul”, em “Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de
Moura e Luce Fabbri”, p.54; Rago esclarece um pouco a natureza da proximidade entre anarquismo e
feminismo, proximidade essa que impregna Maria Lacerda e Luce Fabbri, e escreve, p. 70: “Com todas as
críticas que os opositores lançam aos anarquistas, não há como negar que o anarquismo foi a doutrina
política e o movimento social que mais avançaram na formulação e na exigência do respeito à diferença e
à liberdade individual, inclusive para as mulheres”; complementa, na página seguinte (depois de ampliar o
leque de mulheres de destaque na luta feminista): “É interessante observar que nem sempre a dimensão
anarquista ganha prioridade em relação ao feminismo no discurso dessas revolucionárias que, ao mesmo
tempo, consideravam negativamente como ‘feministas’ as mulheres burguesas ou das camadas médias”.
Rago enfatiza o anarquismo de Maria Lacerda e pontua o encontro com José Oiticica, em outro texto,
“Ética, anarquia e revolução em Maria Lacerda de Moura”, p. 264
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É ingênuo pensar que haja, aqui, prioridade do pensamento abstrato: ao contrário, e não
por outra razão menciono os anarquismos, a educação do gênero humano exercita mãos
e cérebros, é integral, concilia a oficina e o livro, o prazer dos despertares empíricos e o
rigor das ciências.
Por muito tempo, sua inspiração na prática educacional foi Francisco Ferrer
Guardia (1859-1909), que conscientemente rejeitava a redução de suas ideias a qualquer
corrente; é constante, porém, que sua literatura e a Escola Moderna sejam tomadas pelos
sinais próprios à "educação libertária", sempre apoiadas que eram nos pilares da ciência,
da liberdade e da solidariedade – essa ancoragem também serve para desarticular valores
venerados na sociedade e que são sintomas de seu cinismo, como proteção e caridade.
Esse tríptico atiçava a crítica em pelo menos dois sentidos: fundava a relação com a
criança pela vivência aberta e crítica da pluralidade de ideias; e, do mais, quando
concretizado na Escola Moderna, fundava a crítica à escola e seus usos correntes,
conduzidos por ambições de capitalistas, sacerdotes, militares e afins. Paralelamente, esse
duplo caminho de construção crítica exigia, não menos, a incorporação do saber libertário
– não restrito à corrente libertária - na singularidade que educa, já que o topos vulgar de
quem ensina é hierárquico e pode ser violento.
A experimentação racional de Ferrer despertou a ira das grandes reações, e, em
1909, sua vida foi aniquilada. Não importa para onde miremos, à época os contrafluxos
às ideias revolucionárias cresciam à proporção da influência dessas ideias entre as classes
operárias e campesinas. O pacifismo presente no educador espanhol e em Maria Lacerda
a/os posicionava em um embate mais amplo em meios libertários, em que divisões
ocorriam por discrepâncias a respeito da ação direta, da violência como propaganda e
apelo à luta. O pacifismo de Maria Lacerda “contrastava” com certa realidade que se
impunha, mas sua leitura, lúcida, via no indivíduo a centelha da mudança possível – na
nossa semelhança reside a peculiaridade de cada desenvolvimento, não como seres
isolados, mas por que o que afeta apenas afeta individualmente. 3
Assim, individualidade e pacifismo complementam-se, ou melhor, têm o mesmo
núcleo conceitual e prático. Tanto que a questão, para ela, não era repisar o pensamento,
Em A mulher é uma degenerada, p. 189, lemos: “Os homens são mais ou menos os mesmos. (...) E
voltamos ao desenvolvimento individual, á necessidade de tocar no intimo de cada criatura (sic)”. Na p.
142, lemos: “A nova civilização tem como caracteristica a UNIÃO e o respeito à individualidade. Temos
que trabalhar por essa união si queremos velar por nós mesmos (sic).” Em Civilização - Tronco de escravos,
p. 63: “Idolos novos dentro de nichos antiquissimos. O homem é o mesmo troglodita sanguinario (sic)”. A
maternidade consciente integra o individualismo lacerdiano.
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como se isso fosse inculcar liberdade em quem escuta; a insistência de verbo e do
pensamento masculinos aproxima-se demais de um repisamento, em que é intrínseca a
força sobre – interessa mais intensamente a Maria Lacerda revolver a terra pobre dos
preconceitos, despedaçá-los conceitual e vivazmente ao extremar a liberdade de
pensamento e palavra na prática de abertura mental priorizada por sua ideia de educação,
que foge à programação e organização de verdades.
Não é casual que em seu livro, Fascismo: filho dileto da igreja e do capital
(publicado em 1935), a organização de verdades seja uma operação medular dos
totalitarismos que conhece, e que as etapas da vida humana, a seu ver, seguissem em
constante absorção, cada vez mais elaborada, de medo e superstição. Revolver a terra dos
preconceitos equivale, pois, a mexer na história, destruí-la e reconstruí-la –
simultaneamente -, praticando a revolução desde o ensino à vida ética, que é a vida bem
utilizada também na compreensão de si própria. 4 A história, em sintonia, é um agir atrás
das causas e, simultaneamente, o lapidar de nossa percepção total para o que o momento
oferece de abertura – ao novo: sem compreender o alcance da força individual e sua
natureza ético-política, facilmente se reproduzem os esquemas postos de dominação.
Em cima desse enlace filosófico – que busca as causas – entre ética e história, a
velha tensão entre o que é e o que deve ser ganha sua dimensão própria nos escritos de
Maria Lacerda. Os problemas mais localizados erguem-se sobre lógicas primárias mais
duras, ou melhor estabelecidas, porém é o interesse momentâneo da obra quem dita as
configurações que distribuem os problemas. Focar uma questão desloca diversas outras
em conjunto, e pode ser repetitivo ler Maria Lacerda acerca – por exemplo – da
proximidade entre Igreja e Estado fascista em muitos de seus escritos, em afirmações bem
semelhantes. Poderíamos, por outro lado, perder as sutilezas dos movimentos efetuados
por cada deslocar de ponto de vista: causas que aparentam ser expostas como suficientes
para explicar tal fenômeno são, entretanto, perspectivas que o definem parcialmente e que
perdem sentido se isoladas em um dos polos do eixo ser/dever-ser.
O que a ela permite iluminar alguma via de emancipação para as mulheres se
abastece exatamente da compreensão da natureza artificiosa do que é o feminino – não se
4
Nisso reside a força da coeducação como a pensa Maria Lacerda; cf. A mulher é uma degenerada, ps. 94
- 104 - nesta, escreve: “Finalmente, si a mulher nasceu para perpetuar a especie, deve elevar-se á altura da
beleza interior a que possa atingir. Deve instruir-se até poder conceber a finalidade da vida, realizando seu
mundo interior, conhecer-se – ‘para aprender a amar’. Socialmente falando é fator da civilização moral:
deve caminhar e fazer caminhar a Humanidade em busca da Beleza e da Verdade, que o seu cerebro ainda
lhe não deixou entrever”. Itálico dela.
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trata somente de desmanchar os biologismos e cientificismos berrantes em seu tempo, o
que fez com frequência, Maria Lacerda igualmente retira da suspensão cética quem
acredita ser impossível desfazer tão antigo e profundo enraizamento da mulher na
servidão. Isso pode gerar – e gera – ambiguidades a respeito do conceito de educação,
tanto mais se nos detemos aí, na existência de um conceito estritamente teórico, a ser
manuseado como guia de práticas e análises.
A complexidade do conceito de educação remonta a múltiplas críticas que, em
geral, têm em comum uma lógica “radicalmente contrária à dogmatização e à organização
das ideias através de programas autoritários” (Lima, 2016:14). Maria Lacerda
recorrentemente menciona experiências educacionais modernas em uso na Europa e nos
Estados Unidos, mas sabe que poucas levam à radicalidade a proposta de cultivar sem
distorções atrozes a singularidade dos seres; em certa medida, a experiência da Escola
Moderna foi, com seus limites, insuperável nesse sentido. Consoante aos trágicos
horizontes da educação burguesa e aos limites intrínsecos das experiências existentes, a
formulação contínua da ideia de educação é par das propostas que aquiescem em não
invadir o que há de singular nos seres humanos, nos indivíduos – de modo ativo: não se
trata de deixar ao indivíduo o que seria só dele (um aceite de premissas liberais), sim de,
positivamente, engendrar espaços de conhecimento e ação individuais pela determinação
mesma da tarefa da educação.
A formação da ideia de educação – que anima a afirmá-la como meio de libertação
–, consequentemente, opera em momentos diversificados conforme perspectivas
imanentes às multiplicidades cognitivas, é busca interseccional de causas, e se mantém
coesa ao penetrar em todas as esferas portando a consciência de que são as
individualidades que geram as energias que podem ser bem usadas coletivamente e de
que, como está dada, a constituição dos caracteres individuais é marcada pela violência
homogeneizante de instituições e poderes históricos que submetem as complexidades das
relações a estruturas normativas tendenciosas e hierárquicas.
***
Com coerência, constituir novas educações passa por remodelar conhecimentos,
ou, em todo caso, lutar pela eliminação das forças que nos entravam. Maria Lacerda
adianta um ponto fundamental a epistemologias feministas nossas contemporâneas, que
subvertem os princípios de conhecimento e prática da capa de entendimento patriarcal,
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provocando a tomada em mãos da narrativa histórica – nas ciências, por exemplo, não se
quer negar a realidade de certos fenômenos, mas a idealidade que conforma as pesquisas
a concepções parciais de realidade. Muitas vezes, Maria Lacerda não queria negar a
relevância de certas descobertas científicas, questionava e/ou negava o porquê chegou-se
à descoberta, de quem ela efetivamente avança a vida. 5
Essa discussão é o cerne do livro Civilização - tronco de escravos (1931), mas é
inseparável de todas as preocupações da autora. Na página 9, escreve: "a civilização
sufoca o instinto animal de defesa"; essa afirmação não significa somente que a alvorada
civilizatória se deu pelo silenciamento de impulsos inerentes à nossa luta ancestral pela
sobrevivência – significa que a ideia de civilização é construída com a morte intencional
e a escravização de muitos corpos e muitas mentes que aprendem a desejar a morte e a
escravidão, sob o nome de patriotismo, de religião, de educação e outras formas. Nessas
batalhas, as mulheres são triplamente constrangidas; todo o controle e a formação
premeditada que o capitalismo impõe a corpos e mentes não atua simetricamente em
relação aos “sexos”, pois no caso feminino a estruturação dos poderes incide sobre sua
capacidade produtiva e, também diretamente, reprodutiva. A dinâmica ímpar envolvida
no controle do corpo feminino é capaz de transformar a vivência bela e natural da
maternidade em uma prisão e um contrato de união em submissão legitimada. 6
Essas agressões especialmente forjadas para as mulheres já vinham sendo
denunciadas há tempo. No Brasil, mas não apenas, isso ainda não trazia consigo todo o
trabalho de reperspectivação histórica da luta das mulheres – um projeto como este respira
sozinho apenas nos anos 70, com a chamada Segunda Onda. Maria Lacerda,
5
Em texto intitulado “A sciencia a serviço da degenerescencia humana”, no jornal O combate (e citado em
Miranda, 2006, p. 48), Maria Lacerda escreve: “Descobertas, investigações, os methodos scientificos
attestam o esforço genial da élite para uma evolução mais alta. O resultado não se faz esperar: o capitalismo
industrializado apodera-se do esforço scientifico, ainda em embryão, de maneira a canalisar todas as
energias humanas, em uma direção única – a lucta de competições, a concorencia economica, o assalto ás
posições já occupadas, o nacionalismo, e, consequentemente, as guerras.”; Margareth Rago, 2007, p. 270,
cita Maria Lacerda: “A ciência costuma afirmar que a mulher é uma doente periódica, que a mulher é útero.
Afirma que o amor para o homem, é apenas um acidente na vida e que o amor, para a mulher, é toda a razão
de ser da sua vida, e ela põe nessa dor o melhor de todas as suas energias e esgota o cálice de todas as suas
amarguras, pois que o amor é a consequência lógica, inevitável de sua fisiologia uterina. Há engano no
exagero de tais afirmações. Ambos nasceram pelo amor e para o amor”.
6
A mulher é uma Degenerada, p. 164: "a mulher é 3 vezes escrava: pela subserviência, pela domesticidade,
ao homem mais autoritário e superior"; cf, também a dissertação de Jussara, mencionada na nota acima e
Pacheco, 2010. Sobre o casamento, Maria Lacerda escreve em Religião do amor e da beleza, p.184: “Esse
‘contrato’ é a partilha do leão: o homem é forte, instrui-se, vai até onde sua capacidade o leva, e a mulher
é ‘do lar’, não cursa estudos superiores, obedece, serve, abdica do direito de pensar para ‘ser do lar’, para
defender a instituição da família (...)”.
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particularmente, conviveu e trocou cartas com nomes que tocaram na ferida da dominação
masculina em seu tempo (Bertha Lutz, Raquel de Queiroz, Ana Castro Osório...), e
antecipava-se criticamente às teorias científicas e morais que veiculavam a debilidade
inata ao feminino, e o fazia decompondo as ideias reacionárias ditas científicas e
mostrando os elementos morais e doutrinários indissolúveis que eram camuflados por trás
da “objetividade” (“nosso programa se baseia na ciência e na ética, na filosofia e no
amor"; Moura, 1982:183).
Dentre as mulheres com quem se correspondeu, Raquel de Queiroz, mesmo com
dificuldades de compreender o que queria positivamente Maria Lacerda, soube que "sua
reflexão é fundamentalmente orientada por uma noção de natureza"; 7 uma intuição que
muito diz da sensibilidade da jovem escritora cearense e também retrata o continuado
exercício lacerdiano de instigar o autoconhecimento – trilha em que a individualidade se
concretiza em ações práticas de solidariedade – e enfatizar a congruência dessa mirada de
si com a experiência da natureza e da sociedade, enfim, da ciência e da história – que,
enquanto disciplinas, não podem ser modificadas senão em conjunto com as mudanças
do que está arraigado em nós sobre nossa própria natureza.
Não há, portanto, um itinerário revolucionário traduzido pela obra de Maria
Lacerda, mas quer-se reconhecer os instrumentos sem os quais todo trabalho será inútil e
até traiçoeiro. O vetor individual aponta a mútua implicação entre autoconhecimento e
comunicação, entre natureza e civilidade. Discernir o que significam essas implicações
em atos como gerar, educar, comunicar, aprender, escrever, amar, e tantos outros, serve
a treinar o olhar em direção às demais individualidades – a meu ver, esses laços que
prendem a atenção, em sua obra, expressam a preocupação em ressaltar a complexidade
alheia, fácil e erroneamente simplificada naquilo que aparenta, no que interessa
aparentar. Pela moralidade assimétrica, os atos não são julgados, mas quem o faz – para
as mulheres, observa-se, é visto como inato o que nos homens é tranquilamente
camuflado, em que se transforma vício em virtude.
Assim é com o egoísmo masculino, cujas dimensões catastróficas quase que
preenchem as páginas da historiografia androcêntrica ocidental (Moura, 1932: 112); a
maternidade, por esse prisma, deve ser a antítese dessa vital qualidade masculina, arma
7
Natália de Santana Guerellus, “Feminismo e anarquismo nos anos 1920: uma diálogo entre Raquel de
Queiroz e Maria Lacerda de Moura”, 2013, p.6; na p. 9, cita Raquel de Queiroz: "aprenas compreendi o
que ela não quer."
8
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de sobrevivência, mas vetada às mulheres, as quais devem ser devotadas exclusivamente
à benevolência e à caridade – por que não, à renegação quase que completa de si? Não é
universal e natural que todas e todos nos esforcemos motivados pelo autointeresse? 8
Benevolência e caridade são, perspectivadas pela história que vê profundamente, as
marcas de ferro quente da mulher mortificada pelos hábitos burgueses, cujo maior valor,
nem sempre latente, é a hipocrisia.
“Como nos sentimos humilhadas diante dessas transmutações de valores éticos”
(Moura, 1931: 63), porque há um cotidiano tão ensopado de violência que é interpretado
como natural – não apenas pelo senso comum, mas pelas ciências e outras produções
ideárias quando a serviço da ganância. Entre elas, a história, dos primeiros campos a
serem tomados de assalto por quem objeta conscientemente essa ordem maliciosamente
tida por natural. Mas também os espaços se modificam quando o olhar atenta a tais
aspectos, e nesse sentido a luta cotidiana se enxerga como necessariamente
internacionalista – como em um princípio de plenitude, não pode haver recantos
esquecidos pela revolução. "somos internacionalistas porque o coração feminino deve
estar em toda parte" (Moura, 1982:190).
Assim ampliada, a luta rompe a película estetizante que encobre as fraquezas
masculinas e os conformismos femininos – mais ainda, denuncia o embelezamento
proposital das mazelas sociais, frequentemente encapotadas de fatalismo (Moura,
1982:157), a ponto de quem sofre agradecer pela dor, desculpar-se por sua presença
“incômoda”, não esquentar o sangue e continuar na vida como quem espera a morte (Cf.
Rago, 2012:66). Essa situação de acobertamento do vigor e da energia que todo indivíduo
tem é armada por diversas estruturas de dominação física e afetiva, Maria Lacerda o sabe,
e quer mostrar em que recantos está a real alegria de viver, e para isso descaracteriza a
falseada harmonia que justifica o dominismo. Nessa linha, escreve em Han Ryner e o
amor plural: “Homens e mulheres encontrarão nas leis biológicas e nas necessidades
8
O livro de Edgar Rodrigues, Mulheres e anarquia, reproduz texto de Maria Lacerda, em que toca na prisão
da operária Geny Gleiser pela polícia paulista, endereçado às mães, e ela escreve (ps. 21-22): “O mundo
está às vésperas de notáveis transformações de valores. Não apelamos nem mesmo para a emotividade
proverbial ou para a generosidade tão decantada, em prosa e verso, da mulher brasileira, mas apelamos
para vosso egoísmo de mães: se quereis a liberdade de vossos filhos, defendei a liberdade dos filhos das
outras mães. Se quereis a felicidade do vosso lar, lembrai também dos lares desgraçados, onde a dor se
alojou na tortura de um pai que viu suicidar-se a mulher, vencida pela miséria, e vê, hoje, a filha
martirizada pelo crime inominável de buscar, por toda a parte, a solução para o problema da solidariedade
humana de fraternidade universal”.
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afetivas e espirituais, o seu caminho, a sua verdade e a sua vida. A solução só poder ser
individual. Cada qual ama como pode...”.
Maria Lacerda compreendeu a mazela generalizada do sistema sócio-político do
capitalismo e, como lembra Margareth Rago, sua percepção alcança complexidades da
vida humana que pouco eram relevadas na época – já que não assumia em seu horizonte
nenhuma organização partidária como meio de liberação, já que sua ideia de revolução
não se servia de formatar nossas capacidades afetivas, sua obra então sofre permanente
ataque da esquerda organizada e oficiosa; os ritmos impostos de cima por tais
organizações da luta e dos afetos são contraditórios com o tempo necessário para reatar
nossa vida à natureza, instância inescapável à elaboração ética:
Qualquer que seja a classe social a que pertença o indivíduo, ele precisa
aprender a amar a natureza, a respeitar os outros indivíduos, a só dizer
a verdade, a reprimir paixões grosseiras, as más tendências, a cultivar
os sentimentos nobres, a vislumbrar preceitos morais a serem
observados numa sociedade futura, sempre melhor que a atual: não
explorar o próximo, ser útil, solidário com os outros homens, ser uma
fonte de amor, de heroísmo, de abnegação, de paciência em vez de
respirar irritabilidade e mau-humor e ódio: fazer crescer dentro da alma
um nobre ideal de equidade em vez de constituir-se em fonte perene de
egoísmo individual (Moura, 1925: 10).
“Sempre melhor que a atual” – Maria Lacerda recusa aliar-se idealmente à crença
de que a história avança por si, de que a liberdade espera a humanidade ao fim de todo
processo evolutivo do espírito humano e universal. São besteiras de quem é cego ao
presente, sem dúvida; mas para quem descortina a potência individual e coletiva de
revolucionar cotidianamente a sexualidade, a aprendizagem e o ensino, as relações
pessoais e institucionais – para quem descortina tal potência seria exercer violência não
comunicar a visão do futuro aos contemporâneos, a quem, enfim, há de concretizar
efetivamente os ideais de solidariedade, liberdade e conhecimento.
O primor de estilo na escrita de Maria Lacerda já seduz, já nos desvia da
normalidade conformada e da monotonia que reclama; a tentação de crer que nossa época
é mais sadia e avançada que as anteriores me fez, a princípio, querer adaptar certas ideias
da escritora a atuais reivindicações – o melhor de tudo foi verificar com ela que nada há
de anacrônico em seus ditos e escritos, que seus movimentos na história já firmam um
sentido ético que nada deve à investigação contemporânea mais profunda – e para
assegurar isso, nem por um segundo preciso menosprezar o contemporâneo.
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Bibliografia
GUERELLUS, Natália de Santana. Feminismo e anarquismo nos anos 1920: um diálogo
entre Rachel de Queiroz e Maria Lacerda de Moura. XXVII Simpósio Nacional de
História
–
Anpuh
(2013),
pp.
1-13.
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