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Escrita e compreensão

2011, O que nos faz pensar

Este artigo discute os textos de Hannah Arendt a partir de um problema particular: aquele relativo à procura da compreensão. Esse problema é importante não apenas porque seus textos realizam uma contribuição decisiva para a compreensão daquilo que a política se tornou a partir do século XX, mas, sobretudo, porque ele nomeia o ponto sensível de sua escrita.

Tito Marques Palmeiro* Escrita e compreensão “Colocando de forma bem simples[...]” (‘To put it quite simply [...])’1 Resumo Este artigo discute os textos de Hannah Arendt a partir de um problema particular: aquele relativo à procura da compreensão. Esse problema é importante não apenas porque seus textos realizam uma contribuição decisiva para a compreensão daquilo que a política se tornou a partir do século XX, mas, sobretudo, porque ele nomeia o ponto sensível de sua escrita. Palavras-chave: Escrita . compreensão . polêmica Abstract This paper studies writings of Hannah Arendt considering a particular problem: that concerning the quest for understanding. This problem is important not only because her texts make a decisive contribution to the understanding of what politics has become since the twentieth century on, but mostly because it names the sensitive point of her writing. Keywords: Writing . understanding . polemics 1 Hannah Arendt, The Life of the Mind, p. 84. 260 Tito Marques Palmeiro A tarefa da obra de Hannah Arendt pode ser resumida em uma palavra: compreensão. Compreender é aquilo que fazemos naturalmente por habitarmos um mundo onde eventos possuem sentido, onde escutamos sons, e não barulhos; onde reagimos imediatamente ao mal, ou ao menos seria bom que assim o fizéssemos. Por esse motivo, a compreensão é dita ser o “modo especificamente humano de estar vivo”.2 Mas se ela equivale à maneira pela qual cada um vive desafios, decisões e impasses, se ela corresponde ao modo de compartilhar um mundo variado e comum, como pode ser igualmente a tarefa de uma atividade tão solitária quanto a escrita? O fato de a escrita depender da compreensão não é uma simples suposição, pois isto é expressamente dito por Hannah Arendt: “Eu devo compreender. Para mim, a escrita também pertence a esse compreender. Ela é parte [...] do processo de compreensão.”3 A escrita é parte de um processo mais geral ao qual procura dar continuidade, partindo de uma compreensão prévia e potencialmente comum a todos e procurando articular uma compreensão mais plena. A compreensão prévia pode vir a ser transformada ao longo do processo de compreensão, ou então ser simplesmente confirmada.4 A associação entre compreensão e escrita a que Hannah Arendt se refere não deve ser tomada como o programa de uma obra projetada, mas como um modo efetivo de proceder que pode ser lido em seus textos. Toda leitura é sustentada por uma soma de motivos variados que impedem sua redução à simples coleta de informações, a serem decifradas por si sós. Fatores os mais diversos são lidos e, no caso em questão, também a dependência de seus textos para com a compreensão. Ela pode ser lida em detalhes textuais que pontuam sua escrita, em expressões como “é evidente que”, “resumindo”, “naturalmente”... Não será pela constituição de uma listagem exaustiva que produziríamos um retrato fiel da obra, pois a simples tentativa de citar esses poucos casos já mostra seu vazio. Mas é justamente a impossibilidade de isolar essas expressões que mostra de modo negativo seu sentido para a obra, pois este se inscreve em sua relação com o texto onde surgem. Citá-las é dissolver seu sentido, que é o de conduzir o texto, acelerando, dando saltos, mudando sua direção. 2 “Understanding and Politics”, p. 308. 3 “Fernsehgespräch mit Günter Gaus”, p. 48 : “Ich muß verstehen. Zu diesem Verstehen gehört bei mir auch das Schreiben. Das Schreiben ist [...] Teil in dem Verstehensprozeß”. 4 A compreensão explícita pode simplesmente “articular e conirmar [...] a compreensão prévia”, “Understanding and Politics”, p. 322. Escrita e compreensão Elas parecem portar um tom ou estilo que as situaria para aquém do questionamento, pois ao dizer “Colocando de forma bem simples”, um texto não formula uma tese qualquer sobre a equivalência entre duas formulações distintas, ele apenas convida a leitura a segui-lo, sem se opor. Seria interessante então que interroguemos também aqueles modos de ler que são contrários à obra de Hannah Arendt — aqueles realizados por seus críticos. E veremos ser importante algo que eles criticam, dois problemas que em geral denunciam: o tom e o modo de proceder de seus textos. Esses dois problemas constituem pontos centrais de sua obra. Não porque seus oponentes o digam, mas porque ela os assume. Isso ocorre em uma de suas raras réplicas a uma crítica, aquela que dirige ao texto de Eric Voegelin acerca de As Origens do Totalitarismo. Em sua resenha, Voegelin afirmara compartilhar o objetivo declarado do livro de estudar os problemas políticos de nossa época. Se ele elogia a competência no uso da extensa documentação pesquisada, é, no entanto, crítico por relação ao modo de tratamento das noções, que julga pouco rigoroso. Hannah Arendt teria apresentado suas conclusões de modo imotivado, não apresentando as razões que fundamentariam suas afirmações devido ao tom pouco acadêmico que guiaria seu método, pois sua maneira de proceder “não pode ser compreendida sem sua motivação emocional”.5 Voegelin se associa às críticas que serão posteriormente dirigidas a seus textos e que denunciam seu tom parcial. Na polêmica que se seguiu a seus artigos sobre o julgamento de Eichmann em Israel, ela foi acusada de empregar um tom condescendente para com o acusado e irônico para com as vítimas;6 no caso dos movimentos civis dos anos 60, ela foi acusada de adotar um tom elitista.7 O que há de particular na crítica de Voegelin é que sua leitura não se desenvolve em um esforço polêmico procurando denunciar intenções ocultas, mas parte do princípio de que Hannah Arendt tenta seriamente compreender o totalitarismo. Voegelin lê o livro em um sentido que lhe é contrário, opondo-se ao que ele possui de específico — e por isso Hannah Arendt pode iniciar sua réplica afirmando que essa “crítica [...] é do tipo que 5 Eric Voegelin, “The Origins of Totalitarianism”, p. 71. 6 Em sua resenha de textos de e sobre Hannah Arendt em “Arendt`s Judgement”, Mark Greif resume essa posição ao deinir o estilo de seu texto sobre Eichmann como irônico e incisivo (“ironic and cutting”). Ela pareceria inverter os valores ao pedir “a perseguição daqueles que deveriam ser seus aliados”. 7 Pelo escritor Ralph Ellison que comparou seu estilo a de uma “autoridade Olímpica” em “The World and the Jug”. O que nos faz pensar nº29, maio de 2011 261 262 Tito Marques Palmeiro pode ser respondida de modo inteiramente apropriado”.8 No entanto, é justamente esse aspecto contrário que lhe permite chegar ao problema da relação entre o tom e o modo de proceder. Ele afirma que esse livro possuiria uma “organização menos rigorosa do que poderia ter”,9 e sugere como corretivo o uso dos conceitos desenvolvidos pelos estudos históricos recentes, os “instrumentos teóricos que o estado presente da ciência coloca à sua disposição”.10 Em sua réplica, Hannah Arendt defende o modo de proceder que adotara. Não se trata para ela de empregar os conceitos forjados pela historiografia recente, mas de encontrar um novo modo de tratamento que não procure explicar o totalitarismo a partir de uma cadeia de causas que remeteria seu sentido a processos que lhe são anteriores. Apenas se pode chegar à compreensão requerida partindo-se de seu caráter sem precedentes e se esforçando por distinguir os elementos em ação ao longo da história e que em um momento se cristalizaram no evento particular do totalitarismo. A compreensão substitui portanto o estudo das causas por uma distinção estrutural de elementos. 11 Mas algo de importante é dito em sua réplica, duas pistas que permitem que nos iniciemos no papel da compreensão para a escrita. A primeira concerne o estilo: “[...] a questão do estilo encontra-se ligada ao problema da compreensão”.12 Temos aqui uma indicação que permite precisar de que maneira “a escrita pertence [ao] compreender”, pois ela é dita lhe pertencer enquanto estilo. É o estilo ou modo pelo qual a escrita se faz que a inscreve na compreensão. O motivo dessa inesperada associação será dado por uma segunda pista: “O problema do estilo é um problema de adequação e de resposta (“response”).”13 Estilo não é a contribuição subjetiva que o texto guardaria da mulher de 45 anos, bem real, que o teria escrito a partir de sua história pessoal, com suas preferências, fantasmas e idiossincrasias. Estilo é o critério da compreensão, sendo o modo pelo qual um texto corresponde ao que estuda. Ele é a maneira pela qual um texto reage à questão e se mobiliza em direção à sua compreen- 8 “A Reply”, p. 77: “Professor Voegelin’s criticism [...] is of a kind that can be answered in all propriety”. 9 Ibid, p. 72. 10 Ibid, ibidem. 11 Ibid, p. 76. 12 Ibid, p. 79. 13 Ibid, ibidem. Escrita e compreensão são. Dois textos que chegam às mesmas respostas a partir de tons diferentes não dizem o mesmo, pois é em seu desenrolar que um texto distingue sua questão. Não se trata assim de fornecer respostas que possam ser retiradas de seu contexto, pois o que se encontra em jogo é algo mais geral e que concerne o modo pelo qual a escrita se faz em textos que se desdobram no modo de uma resposta. Isso significa para eles: se definir enquanto um movimento sensível à questão à qual se dirigem. Do surgimento de um tom É curioso que apesar de os problemas de tom e modo de proceder parecerem difíceis de definir, eles encontram-se identificados tão logo surgem. Eles são comentados por Karl Jaspers no relatório que redigiu sobre sua Tese de doutorado, O Conceito de Amor em Santo Agostinho, que já se movia no âmbito da compreensão, como se encontra indicado em sua primeira frase: “As dificuldades contra as quais se defronta uma interpretação compreensiva de Santo Agostinho [...].”14 Isso se dá em uma sequência de etapas que se tornam claras apenas se tomarmos esse relatório não pelo que significa institucionalmente, isto é, enquanto um julgamento universitário decisivo, mas pelo que é com vistas à obra. Trata-se de segui-lo como constituindo as anotações de um primeiro leitor, de um leitor privilegiado. Em sua análise, após um preâmbulo crítico sobre as insuficiências do trabalho desenvolvido por sua aluna, Jaspers passa a analisar o texto, começando então por seu “método”, como ocorrerá com os críticos posteriores de Hannah Arendt. Ele começará afirmando que a Tese procura “delimitar as estruturas intelectuais [de Santo Agostinho] enquanto tais, fazendo-as aparecer claramente”. 15 A Tese tem, portanto, um objetivo ambicioso, estudando seu tema, o amor, dentro do conjunto do pensamento de um autor clássico. Nada pareceria haver de problemático nesse começo de análise, nada a não ser justamente o fato de essa caracterização de seu modo de proceder ser feita. Ela indica por si só o caráter inesperado da maneira pela qual a Tese procede, e será justamente isso que se encontrará sublinhado na sequência de seu relatório, quando Jaspers reformulará sua observação inicial segundo a qual o estudo fazia aparecer 14 Der Liebesbegriff bei Augustin, p. 1: “einer verstehenden Interpretation”. Itálicos meus. 15 Hannah Arendt / Karl Jaspers, Briefwechsel 1926-1969, p. 723. O que nos faz pensar nº29, maio de 2011 263 264 Tito Marques Palmeiro claramente as estruturas intelectuais: “algumas linhas do pensamento são seguidas de maneira rigorosa (‘Härte’), e as posições que Agostinho desenvolve a partir delas são deixadas completamente em sua aspereza (‘Schärfe’).”16 As linhas traçadas não são apenas muito claras, mas claras demais, gerando a impressão de um tratamento áspero. As demarcações realizadas não se encontram resolvidas na unidade de uma obra filosófico-teológica, e Jaspers julga, por isso, que a Tese produz uma análise insuficiente.17 Ela teria dissolvido a unidade do pensamento de Santo Agostinho na tensão entre os três modos pelos quais o amor é estudado em três capítulos distintos, excluindo o debate teológico em favor de uma análise existencial centrada na relação do homem com o mundo, com a transcendência divina e com a comunidade social. No entanto, apesar de indicar repetidas vezes a insuficiência das análises feitas, enquanto leitor, Jaspers compreende que isso resulta menos de uma incapacidade que de um modo de interpretação assumido. Não é que a Tese não consiga chegar a uma síntese, pois ele percebe que ela não “procura reunir a sistemática das partes didáticas em um todo”. Se o amor é apresentado de modo fragmentário, é porque a Tese simplesmente “procura [...] conquistar [o] desacordo” que define as estruturas intelectuais do pensamento de Santo Agostinho.18 Da exigência da política A leitura que Hannah Arendt desenvolveu em sua Tese parece antecipar aquela que ela realizará duas décadas depois em As Origens do Totalitarismo por seu interesse em distinguir “elementos” ou “estruturas”. No entanto, toda tentativa de marcar uma tal continuidade se defronta com um sério obstáculo: o corte em sua vida e em sua obra ocorrido com a ascensão do nazismo. Sua verdadeira obra parece se iniciar apenas depois do término de sua atividade de resistente que se seguiu ao abandono da proteção oferecida pela carreira universitária. A brutal invasão do mundo em sua vida teria criado algo de inteiramente outro que o que fora preparado em seus anos de estudo. 16 Ibid, ibidem. 17 Jaspers não recomendou a nota máxima (III): esse “impressionante trabalho, com um conteúdo positivo excelente, infelizmente não pode obter a melhor nota. Assim: II-I.” Hannah Arendt / Karl Jaspers, Briefwechsel 1926-1969, p. 724. 18 Ibid, p. 689: “Sie sucht [...] ihre Unstimmigkeit [...] zu gewinnen”. Escrita e compreensão No entanto, a separação de sua obra em duas partes distintas não é algo tão evidente como se poderia crer, pois se é verdade que eventos transformam vidas, eles possuem uma relação mais incerta com uma obra. Se nos ativermos às aparências imediatas, pode-se dizer que uma forma de continuidade encontra-se atestada pelo simples fato de Hannah Arendt ter publicado sua Tese em 1963. Não se trata de uma imposição exterior — de seu editor, por exemplo —, mas de uma decisão assumida. Ela indica em uma carta a Jaspers sua surpresa com a proximidade que descobriu sentir com esse texto de juventude,19 o que explica que tenha acompanhado de maneira próxima sua tradução — que não lhe satisfez —, tendo escrito uma série de notas e comentários.20 O que se deve perguntar acerca da relação de sua obra com a invasão do mundo em sua vida é como seu momento inicial teria preparado o momento político posterior. Toda tentativa de contabilizar o quanto teria sido conservado ou alterado de um momento a outro de sua obra deixa escapar aquilo que lhe permite pensar o mundo apesar de ter sido ocultada por ele. Trata-se de algo mais decisivo que uma continuidade de temas ou tendências que se resumiria a um problema técnico da obra, sem relação, portanto, com a pessoa de carne e osso que vivenciou os acontecimentos. Podemos encontrar em uma nota de seu Diário filosófico uma indicação importante acerca dessa irrupção do mundo. Isso ocorre em uma reflexão sobre o movimento estudantil nas universidades americanas dos anos 60 que deveria fazer parte de seu ensaio Sobre a violência. Nessa nota, Hannah Arendt aponta para sua similaridade com algo determinante para o movimento fascista da época de sua juventude, o fato de ambos encontrarem-se determinados pelo medo. É tendo o medo por guia que os participantes desses movimentos reagiram quando “questões políticas penetraram suas vidas”. A consequência disso é que: “[As pessoas de sua geração] nunca compreenderam aquilo que os golpeou (‘hit‘), e [os estudantes americanos] provavelmente também não compreenderão o que os golpeia (‘is hitting‘) agora.”21 19 “[...] eu me reconheço ainda e sei o que queria dizer”. Ibid, carta número 389, p. 658. 20 Material que pode ser consultado no site dos Arquivos Hannah Arendt na Biblioteca do congresso. 21 Denktagebuch, p. 714. Itálicos meus. Em On Violence, p. 50, Hannah Arendt apresentará o movimento de maio de 1968 em Paris como igualmente apolítico: “ninguém, sobretudo os estudantes, estava preparado para tomar o poder e assumir a responsabilidade ele associada. Ninguém, exceto, é claro, De Gaulle.” O que nos faz pensar nº29, maio de 2011 265 266 Tito Marques Palmeiro A similaridade entre esses dois momentos reside na ausência de compreensão. Essa ausência faz com que as “questões políticas” encontrem-se ocultadas pela esfera das preocupações imediatas criada pelo medo, e assim a violência da invasão do mundo permanece um golpe seco, sem eco. Isso mostra que a compreensão é o que permite acolher o que ocorre, reagir ao choque, sem perder a capacidade de orientação. É pela acolhida que pode surgir um modo de responder ao evento em sintonia com o que nele se encontra em jogo. Ora, é justamente tal possibilidade que foi aberta pelo momento inicial de sua obra, antes, portanto, da irrupção da política em sua vida. A definição da compreensão como o modo pelo qual um texto se constitui enquanto resposta ou reação a uma questão, que Hannah Arendt defendera em sua réplica a Voegelin, já se encontra em ação em sua Tese. A “interpretação compreensiva” nela em jogo se opunha então a uma atitude teórica visando a resolução de um problema (“Lösung eines Problems”) pela remissão de suas discordâncias internas a um sistema explicativo. A compreensão assumia assim já nesse primeiro momento a forma de uma resposta à questão (“Antwort auf die Frage”), que acolhe suas contradições sem procurar produzir uma síntese.22 Será o sentido de resposta de seus textos que se encontrará radicalizado no momento político. Este não será mais aquele metodologicamente adequado ao tratamento da questão, mas se definirá por encontrar-se associado a uma exigência. A exigência em jogo significa que sua obra se definirá por um caráter agudo do responder. É por isso que Hannah Arendt poderá afirmar que as ciências políticas “encontram-se chamadas de maneira extrema a continuar a questão do sentido”.23 No entanto, isso terá uma curiosa consequência suplementar, a de tender a identificar o todo de sua obra à política, desconsiderando, por exemplo, a importância de seu momento inicial.24 O motivo dessa identificação deve ser procurado justamente na exigência da política, em particular, no fato de ela vir a ser tomada como excludente por relação a outras questões. No entanto, uma exigência é aquilo que requer, “de maneira extrema”, uma ação que lhe corresponda. Ela requer acolhida, e o responder 22 Der Liebesbegriff bei Augustin, p. 6. 23 “Understanding and Politics”, p. 320: “[...] the political sciences, which in the highest sense are called upon to pursue the quest for meaning”. Itálicos meus. 24 Ver como exemplos dessa omissão as apresentações de Margareth Canovan, Hannah Arendt: A Reinterpretation of her Political Thought, que se inicia por As origens do totalitarismo, e a apresentação de seu percurso por Dana Villa na introdução do The Cambridge Companion to Hannah Arendt. Escrita e compreensão correspondente feito por seus textos. A exigência se define por interpelar a obra a fazer. Ela se define, portanto, em ser produtiva, e não pelos limites de exclusão que lhe imporia. A incompreensão O caráter de exigência associado à política não indica apenas sua importância para a obra de Hannah Arendt, mas denuncia também o que ela possui de problemático. Se a compreensão pode vir a ser exigida, é porque ela não se encontra disponível, e que o decisivo agora é a ausência de um quadro explicativo prévio: “O paradoxo da situação moderna [...] vem do fato de que perdemos nossas ferramentas de compreensão.”25 A perda do quadro conceitual tradicional tem por consequência que não há mais fórmulas que deem conta dos modos pelos quais o mundo pode irromper em nossas vidas, e que um evento não parece mais portar o esquema das reações possíveis. A compreensão torna-se agora problema. Por esse motivo, sua obra se encontrará associada a uma dimensão pública suplementar àquela de toda obra, porque não participará tanto da tradição universitária de debates, mas iniciará, a contragosto, polêmicas. Apesar de toda obra possuir uma face pública que se mostra pelo simples fato de poder de ser lida, a sua se viu associada à dimensão suplementar das polêmicas que despertou. Isso é surpreendente para uma obra portada pela compreensão e que aparentemente deveria possuir o consenso por horizonte. Mas a associação de sua obra a polêmicas não é uma simples curiosidade histórica, é uma inesperada possibilidade sua que explica um modo pelo qual ela se presta a ser lida, à época, mas também para nós e para seus leitores futuros. É por isso que não se pode dizer que essas polêmicas se devam exclusivamente à má leitura de seus textos: essa é apenas uma precondição que não explica por que a discordância se transforma em processo de intenções. Um contraexemplo é dado pela leitura realizada por Voegelin que, mesmo não concordando com a posição de Hannah Arendt, pode admiti-la, como ele o indicou na observação final que dirigiu à sua réplica.26 As polêmicas 25 “Understanding and Politics”, p. 313. 26 Após dizer que sua crítica teve “a agradável consequência de estimular” a réplica de Hannah Arendt, Voegelin termina seu texto inal indicando a diferença entre suas leituras. “Concluding Remark”, p. 84. O que nos faz pensar nº29, maio de 2011 267 268 Tito Marques Palmeiro não se devem também à incapacidade de leitores pouco afeitos a discussões filosóficas e que não possuiriam os conhecimentos necessários para seguir o que Hannah Arendt propõe. Exemplar disso é aquela levantada pela noção de banalidade do mal, e que ainda não se encontra terminada.27 Essa noção não surge enquanto um conceito filosófico, como Hannah Arendt afirma ao final de seu livro sobre o julgamento de Eichmann: “[...] quando falo da banalidade do mal, o faço em um sentido estritamente fatual, referindo-me a um fenômeno que saltava aos olhos durante o processo.”28 Assim, essa polêmica não resulta de um mal-entendido que poderia ser sanado por uma explicação separada do calor dos acontecimentos. Ela surge pelo simples motivo de Hannah Arendt procurar estabelecer distinções. Ela provém, portanto, da compreensão. É justamente a própria atividade de compreender que se encontra em jogo em seus textos que contraria a compreensão imediata de seus leitores. Como essa atividade parece ser incompreensível, ela passa a ser lida como um simples tom, algo puramente irônico, elitista ou impiedoso. Mas isso é separar esse tom da arriscada atividade de estabelecer distinções.29 Hannah Arendt sabe que a compreensão é raramente compartilhada. Ela o atesta ao indicar como se encontra agradavelmente surpreendida, cada vez que a concordância se dá: “se outros compreendem no mesmo sentido que compreendi, isso me dá um sentimento de felicidade, como em um se sentir em casa”.30 Mas a situação é mais complicada porque a discordância e a polêmica só são possíveis por pressuporem algo de ainda mais decisivo – que a compreensão seja exigida. Os principais opositores de Hannah Arendt não são os assassinos, torturadores ou planificadores de atos criminosos, mas aqueles que também procuram compreender; aqueles para quem, como Gershom Sholem, Hans Jonas, Isaiah Berlin e diversos outros, tratava-se de algo 27 À época da redação desse texto, a última polêmica levantada foi aquela iniciada por Bernard Wasserstein, no suplemento literário do The Times de 9 de outubro 2010 que fala da introjeção por parte de Hannah Arendt da literatura nazista em sua análise do povo judeu. 28 Eichman in Jerusalem, p. 287. Essa airmação é repetida na introdução de A vida do espírito: “No meu relatório [sobre o julgamente de Eichmann] eu falei da ‘Banalidade do Mal’. Essa frase não era sustentada por nenhuma tese ou doutrina”. The Life of The Mind, p. 3. 29 Para Seyla Benhabib, “The art of making distinctions is always a dificult and risky undertaking.” Situating the self: gender, community, and postmodernism in contemporary ethics, p. 89. 30 “Fernsehgespräch mit Günter Gaus”, p. 48-49: “Und wenn andere Menschen verstehen – im selben Sinne, wie ich verstanden habe –, dann gibt mir das eine Befriedigung wie ein Heimatgefühl.” Escrita e compreensão da suprema importância. A polêmica ocorre devido à exigência de compreensão, que é responsável pela dissensão entre leituras. Da fragilidade da escrita Essas polêmicas são o índice de uma fragilidade geral que toca a obra de Hannah Arendt. Esta se deve a que a perda de nossas “ferramentas da compreensão” coloca em crise aquilo que permite que um texto venha a se tornar um patrimônio comum. As obras artísticas, científicas ou filosóficas encontramse associadas à memória na medida em que concedem durabilidade ao mundo, reificando seu caráter de pluralidade compartilhada. Isso não é verdade apenas para obras poéticas, inspiradas por Mnemosyne, mas para tudo aquilo que é produzido e que torna o mundo reconhecivelmente humano. E isso é particularmente decisivo no caso dos livros, como mostra Borges em seu poema sobre a Biblioteca de Alexandria: “Declaram os infiéis que se ela ardesse, Arderia a história. Equivocam-se. As vigílias humanas engendraram Os infinitos livros. Se de todos Não restasse nem um, voltariam A engendrar cada folha e cada linha, Cada trabalho e cada amor de Hércules, Cada lição de cada manuscrito.”31 A necessidade dos livros e a promessa de continuidade que eles anunciam é assegurada pela biblioteca em seu papel de memória. Mas sua destruição não nega a continuidade dos livros, que voltariam a ser produzidos e reproduziriam aquilo que teria sido perdido. Frente às várias destruições de livros provocadas pelos autos de fé e guerras, surge um problema de outra ordem que afeta diretamente o acesso possibilitado pela leitura. É nessa medida que se pode falar em uma crise da tradição: crise da transmissibilidade do passado. Mas ela significa igualmente uma crise de compartilhamento do presente; 31 “Biblioteca de Alexandria A.D. 655*, in Borges – Obras Completas, vol. 2, p. 168. O que nos faz pensar nº29, maio de 2011 269 270 Tito Marques Palmeiro aquele, por exemplo, que toca a obra de Hannah Arendt e seus contemporâneos. Essa crise explica por que seu tom não pode ser tomado por algo polêmico, pois ela considera que uma “escrita polêmica” apenas é possível quando “o autor pode retroceder em direção a um terreno sólido de valores tradicionais que são aceitos sem questionamento e pelo qual os juízos podem ser formados”.32 Um acesso à sua obra que se baseie no quadro de “valores tradicionais” tende a lê-la de um modo que lhe é contrário. Isso não significa que ela seria vítima de más leituras, de leituras insuficientes, pois estas sempre podem ser corrigidas por discussões ou esclarecimentos complementares. As polêmicas às quais se encontra associada mostram que ela é exposta a contraleituras, no sentido de leituras que lhe seriam opostas por operarem a partir da inércia ainda reinante das noções tradicionais. Essa leitura dirigem-se à sua obra, portanto, como não devendo ser lida. Se apesar do caráter solitário da escrita, Hannah Arendt considera que ela faça “parte [...] do processo da compreensão”, é porque ela corresponde a um aspecto singular da “vigília humana”. Trata-se daquele que, em vez de agir por gestos ou palavras no espaço público, produz uma obra. Como toda obra, a sua inscreve-se no quadro da memória, adicionando livros e outras formas de texto ao vasto conjunto de obras que se acumula no mundo. O problema do acesso à sua obra não afeta aquilo que ela anuncia, não limita sua força já que ela não depende da instituição de um terreno comum, mas opera pelo simples estabelecimento de distinções. E isso pode contribuir para a tarefa, específica de cada um, de orientar-se em um mundo ao qual falta um “terreno sólido de valores tradicionais”. 32 Rascunho em atenção a Mary Underwood citado por Lisa Ditch, Lisa em “More Truth Than Fact: Storytelling as Critical Understanding in the Writings of Hannah Arendt”, p. 671. Escrita e compreensão Referências bibliográficas ARENDT, Hannah. Der Liebesbegriff bei Augustin. Versuch einer philosophischen Investigation. Berlin, Springer, 1929. ____________. Eichmann in Jerusalem. A Report on the B anality of Evil. Nova York, Viking Press, 1963. ____________. Denktagebuch. Munique: Piper, 2002. ____________. “Fernsehgespräch mit Günter Gaus” in Hannah Arendt – Ich will verstehen. Munique, Piper, 1996. ____________. 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