REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO ( v. 23, 2023)
ARTIGO ORIGINAL
ESCREVER
E ASSINAR:
habilidades seletivas em um universo iletrado
(São João del-Rei, 1750-1850)
Writing and signing: selective skills in an illiterate universe
(São João del-Rei, 1750-1850)
Escribir y firmar: habilidades selectivas en un universo analfabeto
(São João del-Rei, 1750-1850)
CHRISTIANNI CARDOSO MORAIS
Universidade Federal de São João del-Rei, São João del-Rei, MG, Brasil. E-mail:
[email protected].
Resumo: Investiga-se a relação de moradores de São João del-Rei (Minas Gerais) com a palavra escrita,
tomando como fontes testamentos e inventários, produzidos entre 1750-1850. Foi realizado um perfil
dos assinantes e das assinaturas qualificadas a partir de uma escala, sendo a segurança dos traços
tomada como indicador de letramento. Os dados foram analisados à luz da História da Educação em
diálogo com a História da Cultura Escrita. Conclui-se que a capacidade de assinar era mais disseminada
entre os homens brancos e proprietários. Os maiores graus de letramento eram reservados aos
professores, clérigos e negociantes. Mesmo assinando em menor número que os homens, as mulheres
sanjoanenses apresentaram índices de letramento superiores às portuguesas e africanas.
Palavras-chave: perfil de assinantes; escala de assinaturas; indicadores de letramento.
Abstract: This work aims to investigate the inhabitants’ relations in São João del-Rei with the
written word, based on wills and inventories written in 1750-1850. A scale was used to establish the
subscribers’ profiles and the qualified signatures observing the traces security as literacy indicator.
The data analyzed used the dialogue between The History of Education and The History of Written
Culture. It was concluded that the ability to sign was a more common practice used by white men
and owners. A high literacy level was allocated to teachers, the clergy, and businessmen. Despite
having a lower writing rate in relation to men, Sanjoanense women presented a higher rate as
compared to Portuguese and Africans.
Keywords: subscribers’ profile; scale of signatures; literacy rates.
Resumen: Investigase la relación de moradores de São João del-Rei (Minas Gerais) con la palabra
escrita, tomando como fuentes testamentos y inventarios, producidos entre 1750-1850. Fue
realizado un perfil de los firmantes y las firmas cualificadas a partir de una escala, siendo la
seguridad de los trazos tomada como indicador de alfabetismo. Los datos fueron analizados a base
de la Historia de la Educación en diálogo con la Historia de la Cultura Escrita. Concluyese que la
capacidad de firmar era más diseminada entre los hombres blancos y propietarios. Los mayores
niveles de alfabetismo eran reservados a los profesores, clérigos y negociantes. Aun firmando en
menor número que los hombres, las mujeres sanjoanenses presentaron índices de alfabetismo
superiores a las portuguesas y africanas.
Palabras clave: perfil de firmantes; escala de firmas; indicadores de alfabetismo.
https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e284
e-ISSN: 2238-0094
Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
I NTRODUÇÃO
Um domínio completo das falanges, do pulso e da chave da mão,
uma firmeza absoluta tanto nas linhas curvas como nas linhas
retas, um quase instintivo sentido dos grossos e dos finos, uma
noção perfeita do grau de fluidez e viscosidade das tintas
(Saramago, 1997, p. 56).
No trecho utilizado como epígrafe, retirado de Todos os nomes, Saramago (1997)
descreve uma assinatura e mostra que este traço único de identificação pode revelar
muitas habilidades. Suas palavras dizem respeito ao domínio da capacidade de
escrever, enfatizam o que não foi propositalmente registrado pelo assinante e
remetem a um tempo antigo, no qual era preciso ter intimidade com a pena e o
tinteiro. Levam a pensar em outros contextos históricos e trazem à mente uma
questão que se encontra na origem deste artigo: nos séculos que nos antecederam,
quem era capaz de dominar a palavra escrita? 1 Pesquisar a disseminação das
habilidades de ler/escrever e os usos do escrito em períodos históricos para os quais
esses temas não eram tomados como uma questão social é tarefa árdua, considerando
a inexistência de fontes criadas com o objetivo específico de registrar essas
informações. Sabe-se que foram realizados recenseamentos nos Oitocentos e,
segundo Carvalho (1980), em 1872, 15,75% da população brasileira era alfabetizada –
dentre estes, 34,31% eram livres. Para o ano de 1890, foram identificados 14,80% como
alfabetizados. Essas informações são interessantes, mas cabe questionar o que
significava o termo alfabetizado no período em que estes censos foram realizados.
Segundo Chagas e Galvão (2017, p. 2),
[...] a expressão analfabeto, embora já dicionarizada desde a
primeira década dos oitocentos, começa a ser utilizada na imprensa,
ainda de maneira muito esporádica, na década de 1830, tornandose mais recorrente a partir dos anos 1860. A palavra analfabetismo,
por sua vez, emerge posteriormente, a partir da República,
sobretudo no século XX.
1
Este artigo traz resultados de minha tese de doutorado (Morais, 2009) cuja pesquisa se baseou em 787
testamentos originais, 1.011 traslados de testamentos contidos em códices cartorários e 205 inventários,
elaborados entre 1750 e 1850 na Vila e Termo de São João del-Rei. No artigo, enfatizei os dados referentes
aos testamentos originais, pois possuem as assinaturas realizadas pelos próprios testadores e
testamenteiros. Os inventários foram utilizados para compor o perfil socioeconômico dos sujeitos
estudados. Esses documentos se encontram no Arquivo Histórico e Escritório Técnico 2 de São João delRei/IPHAN. Foram analisados 787 testamentos originais, 1.011 traslados de testamentos em códices e 205
inventários, produzidos entre 1750 e 1850 na Vila e Termo de São João del-Rei. A relação completa com
os documentos utilizados na pesquisa pode ser vista em Morais (2009). Ao transcrever os documentos,
mantive a ortografia e a pontuação originais.
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Morais, C. C.
Ainda conforme as mesmas autoras, é recente em nossa história a visão do
analfabetismo como problema social. Destarte, ao investigar períodos anteriores a 1850,
faz-se fundamental superar a dicotomia ‘alfabetizado’ versus ‘analfabeto’. Kleiman
(1995) sublinha que essa oposição foi criada pela escola, durante longo e conflituoso
desapossamento do direito de ensinar, e sugere, em vez dessa oposição, o conceito de
‘letramento’ para se pensar os usos sociais das habilidades de leitura e escrita. De acordo
com Soares (2004), o conceito de letramento se tornou foco de pesquisas das áreas de
Educação e de Linguagem em vários países do Ocidente na década de 1980. Ao
estabelecer uma diferenciação entre alfabetização e letramento, a autora define a
primeira como “[...] aquisição do sistema convencional de escrita [...]” e o segundo
conceito como o “[...] desenvolvimento de habilidades de uso desse sistema em
atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a língua escrita”
(Soares, 2004, p. 14). Afirma, além disso, que seria um equívoco tomar esses processos
como antagônicos, pois compreende ambos como interdependentes, indissociáveis e
simultâneos. O conceito de letramento, portanto, diz respeito aos usos sociais da leitura
e da escrita, em determinado contexto social, mesmo entre aqueles que não sabem ler
e escrever. Considerando a noção de letramento sob o ponto de vista da História, Soares
(1995) relaciona uma diversidade de elementos que podem ser tomados como objeto de
estudo, desde os processos de difusão e circulação da escrita até as consequências
sociais da imprensa, o perfil dos leitores, as práticas de leitura e escrita etc.
Na primeira década do século XXI, observou-se uma ampliação de horizontes
nas pesquisas relacionadas à leitura e à escrita, marcada pela utilização do termo
‘cultura escrita’. De acordo com Castillo Gómez (2003), a História da Cultura Escrita,
tributária da História Cultural, busca estudar a leitura e a escrita, os diferentes
suportes e as práticas variadas de produção e apropriação do escrito.
Trabalhos mais recentes definem a noção de cultura escrita “[...] como o lugar
simbólico e material que o escrito ocupa em determinados grupos sociais,
comunidades e sociedades, em épocas distintas” (Galvão & Frade, 2016, p. 207)2. O
conceito de cultura escrita tem sido tomado em uma concepção antropológica,
considerando toda a produção humana, buscando compreender os diversos lugares
que o escrito ocupa em uma dada sociedade. Dessa forma, a expressão cultura escrita
compreende um conjunto amplo de objetos de estudo e engloba as investigações sobre
os usos sociais da leitura e da escrita, mas vai além (Jinzenji, Galvão, & Melo, 2017;
Antunes, 2020). Os estudiosos que se baseiam nessa noção buscam interface com
outras áreas, da História do Livro e da Leitura à História da Educação e da
2
O Dossiê ‘História da cultura escrita’, publicado na Revista Brasileira de História da Educação, v. 16, n.
1(40), apresenta especificidades conceituais e muitas possibilidades de pesquisa. Cf. Graff (2016);
Chartier (2016); Frade e Galvão (2016); Peres, Vahl e Thie (2016); Bertoletti e Silva (2016). Outros artigos
publicados na RBHE que se utilizam do conceito são: Musial e Galvão (2012); Frade (2012); Jinzenji e
Pinto (2018). Os artigos se referem ao fim do século XIX a meados do XX. Apenas o de Chartier (2016) se
ocupa do século XVI ao XXI, mas considera o espaço francês.
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
Alfabetização. Há um consenso na necessidade de superação de dicotomias. Dentre as
dicotomias a serem suplantadas, destacam-se: “[...] oralidade ‘e’ escrita, estudos
históricos, sociológicos ‘e’ históricos e práticas pedagógicas, prescrições ‘e’ usos;
idealizações e materialidade” (Galvão & Frade, 2016, p. 209, grifo do autor; Galvão,
Melo, Souza, & Resende, 2007).
Este artigo se insere, portanto, no campo da História da Educação em diálogo com
o da História da Cultura Escrita, tomando como referência as práticas de letramento –
entendidas como intimamente inscritas nos contextos históricos nos quais se
estabelecem. Assim, tenho como objetivo analisar a difusão e o lugar simbólico da palavra
escrita no contexto da vida em sociedade da Vila e Termo de São João del-Rei.
PROCEDIMENTOS DE PESQUISA E DOCUMENTOS
A periodização da pesquisa, que vai de 1750 a 1850, foi estabelecida
considerando que nesse período, no Brasil, testamentos e inventários estão entre os
poucos documentos que possuem séries completas e marcas de letramento, como as
assinaturas. No decorrer desse período, houve debates políticos e a promulgação de
leis voltadas para a escolarização. Destaco o Alvará Régio de Regulamentação dos
Estudos Menores, assinado por D. José I em 1759, que expulsou os jesuítas de todos os
domínios lusitanos e secularizou o ensino, criando as aulas de Humanidades
(Gramática Latina, Grego, Hebraico, Retórica e Poética). Em 1772, houve uma segunda
fase dessa reforma, tendo sido estabelecidas as aulas de Primeiras Letras, nas quais se
aprendia a ler, escrever, as quatro operações básicas da Matemática e o Catecismo
Católico. As aulas régias eram voltadas para uma pequena parte dos súditos, pois a
educação escolar no período colonial tinha como finalidade reproduzir a ordem
estamental. Com a Independência do Brasil em 1822, a estrutura escolar colonial foi
em grande medida herdada, mesmo com o estabelecimento da primeira Lei Geral da
Educação, ou Lei de 27 de outubro de 1827, que previa a adoção do Método
Lancasteriano de ensino nos lugares mais populosos. No Império, a escola pública
elementar era considerada capaz de criar cidadãos civilizados, minimamente letrados
e sobretudo que se submetessem à ordem pública (Morais, 2009).
No recorte histórico de 100 anos empregado neste artigo, não se pode afirmar
que a promulgação de leis relacionadas à escolarização tenha causado grandes
impactos no contexto estudado. Faz-se necessário considerar que o tempo das
reformas políticas é diferente do tempo das transformações culturais, pois os
processos de difusão da leitura e da escrita em uma sociedade basicamente iletrada se
encontram profundamente marcados pelas permanências. Privilegiar um tempo longo
possibilita a observação de fenômenos socioculturais que se modificam lentamente e,
dessa maneira, o contexto cultural de ensino da leitura e da escrita foi tomado como
principal referência para o estabelecimento do recorte cronológico investigado. Até
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Morais, C. C.
meados do século XIX, os aprendizados da leitura e da escrita se davam em momentos
dissociados e sucessivos. Historicamente, a leitura se disseminou de modo mais
rápido, pois primeiramente se aprendia a ler e depois passava-se ao aprendizado da
escrita, conforme Viñao Frago (1993, p. 66):
[...] no século XIX, uma das principais inovações pedagógicas foi a
aprendizagem da leitura feita ao mesmo tempo que a da escrita, ao
contrário do que acontecia tempos anteriores, quando o
aprendizado da escrita era feito – se o aluno tivesse condições de
seguir sua vida escolar – dois anos após seu ingresso na escola,
quando já dominava um pouco a leitura.
Recomendações para seguir essas etapas de ensino foram observadas em
manuais de caligrafia lusitanos, dentre os quais destaco o de Jerônimo Soares Barbosa:
[...] os meninos não se devem ‘ensinar a Escrever’, senão depois de
terem já alguma firmeza nos musculos da mão [...] e ‘depois de
saberem lêr desembaraçadamente’ a letra impressa tanto redonda
como bastarda; e antes de entrarem na leitura da letra de mão ou
diplomatica ([Barbosa], 1796, p. 2, grifo nosso).
Tais etapas eram recomendadas seja pelo fato de a leitura se tratar de uma
aprendizagem mais fácil e acessível financeiramente, seja ainda por questões morais
naquele contexto – especialmente para a condição feminina –. Logo, as taxas de
assinaturas não permitem mensurar a população que somente sabia ler, deixando
escapar aqueles que se encontravam reduzidos ao papel de leitores, o que denota um
limite deste estudo (Chartier, 2016). Ao longo do século XIX, a aprendizagem da
leitura e da escrita de forma simultânea no contexto escolar aumentou o número
daqueles que podiam assinar seus nomes, mas que não sabiam ler. Essa realidade
disseminada pela escola inviabiliza que as escalas de assinaturas sejam aplicadas a
períodos posteriores a 1850.
No que se refere ao recorte geográfico, São João del-Rei caracterizava-se pelo
dinamismo econômico, a princípio com a descoberta do ouro e posteriormente com o
desenvolvimento de atividades econômicas diversificadas. Sua posição geográfica
privilegiada permitiu que se estabelecessem complexas articulações entre a produção
agrícola e o comércio (Lenharo, 1979; Graça Filho, 2002). Os dados demográficos do
período oferecem uma estimativa que revela grande contingente populacional: 31.029
habitantes em 1821 e 22.135 em 1823-1835 (Brügger, 2007). A Vila era ainda a cabeça
da Comarca do Rio das Mortes, possuindo expressiva vida política e cultural.
Sob o ponto de vista metodológico, as assinaturas contidas em testamentos são
as principais fontes documentais deste estudo. Inicialmente as capacidades
autográficas foram classificadas de acordo com os dados disponíveis: a) os que
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
assinam (considerando as rubricas e as assinaturas completas); b) os que não puderam
assinar; c) os que não sabiam assinar; d) os que fizeram um sinal. Nestes casos, todos
marcaram uma cruz – significado que será discutido posteriormente –. As assinaturas
encontradas em testamentos foram indexadas em um banco de dados, assim como
outras informações que me permitiram traçar o perfil sociocultural dos assinantes. As
assinaturas foram fotografadas uma a uma, sendo posteriormente comparadas e
qualificadas, a partir da escala elaborada por Magalhães (1994). Destarte, qualificar as
assinaturas por meio de uma escala foi a principal ferramenta metodológica para
averiguar indicadores de letramento dos assinantes.
Outros historiadores se utilizaram de escalas em investigações sobre
assinaturas (Viñao Frago, 1993; Marquilhas, 2003). Neste artigo, utilizei a escala
proposta por Magalhães (1994), com cinco níveis, a qual será apresentada em
pormenores na última seção deste artigo. Tal escala foi escolhida por permitir
possibilidades de análise mais refinadas e, além disso, nossa tradição de escrita está
intimamente ligada à portuguesa. A escala de Magalhães foi empregada, outrossim,
por Alves (2003), Rachi (2016) e Paula (2016).
A produção de testamentos remonta a práticas medievais, ligadas ao ato de
morrer e à crença no purgatório (Rodrigues, 2005). Paulatinamente, foram
estabelecidos modelos para sua escrita, tendo sido publicados ‘manuais para bem
morrer’, que expressam a composição dos testamentos (Oliveira & Oliveira, 2012).
Geralmente, eram “[...] escritos a rogo”, ou seja, ditados pelo testador a outrem capaz
de escrever. Trata-se de documento constituído a partir da relação complexa entre a
oralidade e a escrita (Rachi, 2016). Deve-se ter em mente que, em um contexto
marcado pela oralidade, ao se produzir um testamento, a palavra oral era tensionada
por uma estrutura de texto que remonta a séculos. Dentre os 787 testamentos aqui
analisados, não foram encontradas mulheres redatoras. Apenas 40 homens (5%)
escreveram seus próprios testamentos, sendo os demais 747 (95%) escritos ‘a rogo’.
Esses documentos trazem dados que extrapolam as intenções originais da época de
sua produção, oferecendo indícios que permitem perceber a dimensão simbólica
atribuída ao escrito, bem como os usos da palavra escrita.
USOS DA PALAVRA ESCRITA
Apesar de muitos testadores não saberem ler nem escrever, 140 (17,7%)
ouviram seus testamentos serem lidos. Dentre estes, Antônia Martins Ferreira, preta
forra de Angola, que em 1807 afirmou: “[...] por ser molher e não saber ler nem
escrever pedi ao Reverendo João Luiz Coelho que este testamento por mim fizesse e a
meu rogo assignace depois de elle me ser lido e o achar conforme o dictei” (Ferreira,
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Morais, C. C.
1807)3. Essas informações corroboram o fato de que a prática da leitura em voz alta ou
“leitura de oitiva” no período em análise era difundida (Villalta, 1999; Morais, 2002).
A linguagem escrita possui uma lógica interna própria, não se tratando da simples
transcrição da oralidade. Além disso, para que um texto lido em voz alta seja
compreendido, aquele que escuta precisa possuir alguma intimidade com a lógica
escrita, o que revela um grau de letramento.
Os testamentos registram a condição das pessoas que não puderam assinar.
Permitem que se separem os que sabiam – mas não podiam – daqueles que não
detinham essa capacidade. Dentre os testadores, 42 (5,3%) não puderam assinar, dos
quais 23 (2,9%) eram homens e 19 (2,4%) mulheres. Dentre estas, estava Maria Eulina
Carmo, solteira, moradora e natural da Vila de São João del-Rei. Afirmou que não pôde
assinar porque não conseguia enxergar, em 1825: “[...] posto saiba ler, e escrever,
contudo pelo motivo acima relatado de falha de vistas, pedi e roguei a José Maria da
Camara que este por mim fizesse, e assinasse” (Carmo, 1825). Registrar a
impossibilidade física era importante para a lisura da testamentaria, permitindo
conferir autenticidade a algum documento assinado anteriormente e que porventura
surgisse após a morte do testador. Outrossim, firmar o próprio testamento era uma
forma de engrandecimento social, o que corrobora a conjectura sobre o valor
simbólico atribuído ao saber assinar em ocasiões solenes, como batizados e
casamentos (Petitat, 1994).
Outro caso exemplar é Francisco Coelho Souza, forro, banguela, vivia dos
ofícios de barbeiro e sangrador em São João del-Rei. Não assinou seu testamento,
tendo feito uma cruz. Mas se utilizava da palavra escrita, assim como outros escravos
e forros daquele contexto (Morais, 2007), pois mantinha um livro de contas. Não
declarou quem realizava as anotações, conforme ditou em 1828:
Tenho servido das Artes de Barbeiro e sangrador, e tenho muitos
freguezes, com os quaes as minhas contas saõ de = Deve, e Hadever,
e meo Testamenteiro pelos meos assentos as ajustará, ressebendo
o que elles me deverem, e pagando o que eu dever, sem figura
alguma de Juizo, bastando para as contas, as declaraçoens de meo
Testamenteiro em hum simples requerimento em que exponha e
jure qualquer ajuste de contas (Souza, 1828).
A produção manuscrita aludida nomeava-se como ‘livro de contas’ ou ‘livro de
razão’. Eram manuscritos disseminados desde século XVII, utilizados para organizar
3
O ano de produção/assinatura do testamento é geralmente anterior ao de finalização do processo de
testamentaria, pois este se dava após o falecimento do testador. A data tomada como referência para
guarda no arquivo foi a do fim do processo. Assim, fez-se necessário informar no texto o ano em que o
testamento foi escrito/assinado, bem como indicar o ano de encerramento do processo com número da
caixa na qual o documento se encontra alocado. Estes dados que ajudam na localização das fontes no
arquivo foram citados sempre entre parênteses.
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
a vida e a contabilidade, mesmo entre os incapazes de ler e escrever (Hébrard, 2000).
Os testamenteiros deviam tomar posse destes manuscritos para cumprir legados,
cobrar ou pagar as dívidas dos testadores, e nenhum escrito dessa natureza foi
encontrado em anexo aos testamentos analisados.
Conforme Magalhães (1994), os que firmavam com uma cruz não sabiam ler ou
escrever, o que pode ser corroborado nos testamentos produzidos em São João delRei. Todos os 54 sujeitos que fizeram uma cruz no lugar da assinatura (6,8% de 787)
disseram não saber ler nem escrever, assim como Antônia Silva Jesus, em 1794. Essa
mulher, que foi ministra na Ordem Terceira de São Francisco, justificou que “[...] por
não saber ler nem escrever pedi ao Padre Marçal Cunha Matos que este escrevesse e
eu me assinei com o meu sinal costumado que he huma cruz” (Jesus, 1794). A partir
desses casos exemplares, cabe registrar o quanto os testamentos são relevantes para
se ter acesso aos valores atribuídos e aos usos cotidianos da palavra escrita, mesmo
por pessoas incapazes de ler e escrever.
Com base em uma perspectiva quantitativa, uma análise longitudinal pode ser
realizada a partir da Tabela 1, que apresenta as assinaturas em testamentos ao longo
das décadas4:
Tabela 1 - Testamentos por décadas e testadores assinantes da Vila e Termo de São João del-Rei (1750-1850)
Décadas
1750-1760
1761-1770
1771-1780
1781-1790
1791-1800
1801-1810
1811-1820
1821-1830
1831-1840
1841-1850
Total
Testamentos transcritos em
códices (1759-1848)
Testadores
Quantidade
assinantes
de
Nº
testamentos
%
absoluto
01
01
100%
16
14
87,5%
65
47
72%
118
76
64%
85
52
61%
170
118
69%
157
109
69%
187
131
70%
164
97
59%
48
28
58%
1.011
673
-
Testamentos originais
(1750-1850)
Testadores
assinantes
Quantidade de
testamentos
Nº absoluto
17
16
28
36
54
126
132
165
137
76
787
07
12
22
27
32
83
90
116
79
51
519
%
41%
75%
78%
75%
59%
65%
68%
70%
57,6%
67%
-
Fontes: Livros de testamentos (1759-1848) e testamentos originais (1750-1850) da Vila e Termo de São
João del-Rei.
4
Apenas na Tabela 1 apresento os 1.011 testamentos transcritos em códices (1759-1848), que são traslados
realizados por escrivães. Esse universo permite que se tenha ideia da representatividade das fontes acionadas.
Ao longo deste artigo, os dados trabalhados em profundidade se referem aos testamentos originais (787 casos,
de 1750-1850). Este conjunto foi analisado detidamente pelo fato de possuir as assinaturas originais.
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Morais, C. C.
Os dados coligidos na Tabela 1 revelam aumento na produção de testamentos
nas quatro primeiras décadas do século XIX. Esse período foi, de acordo com Graça
Filho (2002), de intenso comércio da Comarca do Rio das Mortes com o Rio de Janeiro.
Em certa medida, o crescimento econômico poderia estimular o aumento no número
de testamentos. O maior poder econômico das pessoas ligadas ao comércio
interprovincial certamente gerou maior acumulação de bens e fortunas e, dessa
maneira, ampliação dos registros de testamentos, o que facilitaria, por exemplo, a
partilha entre herdeiros. Há, dentre os testamentos originais, 77 testadores (9,7%) que
se ocupavam de ‘negociar’. Alguns especificavam seus negócios (comércio de fazendas
secas, molhados da terra e do Reino, tecidos e louças), outros limitavam-se a afirmar
‘vivo do meu negócio’ e, no contexto, da expressão ‘viver de negócio’ se originou o
termo ‘negociante’ (Brügger, 2007).
Em estudo sobre Vila Rica, Silveira (1997) afirma a importância dos negócios
para a escrita em Minas Gerais, que possuía uma organização socioeconômica
diversificada, na qual se articulavam várias atividades, da mineração à agricultura, dos
ofícios mecânicos ao comércio. Nesse mercado desenvolvido, os pagamentos a prazo
eram comuns e a escrita tinha papel fundamental. Os agentes ligados ao comércio
necessitavam saber ler/escrever/calcular e produziram testemunhos escritos ao selar
seus compromissos. Apesar de os fatores econômicos serem importantes para a
compreensão das relações com o escrito, não se pretende, neste artigo, lhes atribuir
um papel de determinante único. Mas é provável que a elevação nas taxas de
assinantes no período de 1821 a 1830, verificada na Tabela 1, se relacione com a
expansão das atividades econômicas.
Deve-se ter em mente que os testamentos são documentos que indicam o temor
pela morte (Rodrigues, 2005). Assim, é importante lembrar que o Brasil apresentava
muitas epidemias nas primeiras décadas do século XIX. Houve no Rio de Janeiro as
epidemias de febre amarela entre 1828-1840, de sarampo entre 1834-1835 e de gripe
(1835), seguida pela de febre tifoide em 1836 (Ferreira, 2000). Nessa conjuntura de
temor diante da morte, também se deve pensar o aumento do número de testamentos
em São João del-Rei. Considerando essas epidemias que assolavam a Corte e dada a
sua proximidade com a Vila de São João, não é de se admirar que houvesse um
aumento no número de testamentos na década de 1830, cf. Tabela 1.
Desde o período colonial, Minas Gerais se destacava pela urbanização e
circulação crescente da palavra escrita, seja impressa ou manuscrita. Villalta (2007b,
p. 292) analisou 911 inventários de Mariana (1714-1822) e constatou que “[...] 570
inventariantes (62,5%) foram capazes de assinar, enquanto 45 (4,9%) recorreram a um
sinal; 296 (32,5%) indivíduos nada conseguiram registrar”. Do universo de 787
testamentos de São João del-Rei, 519 testadores assinaram (65,9%), 214 (27%) não
assinaram e 54 fizeram cruzes (6,8%). Quando comparados os dois estudos, em
números relativos, observa-se que mais de 60% dos sujeitos foram capazes de assinar.
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
Deve-se ainda avaliar que, no período posterior à Independência do Brasil,
houve um expressivo aumento da publicação e circulação de materiais impressos,
como os periódicos e folhetos políticos. Foram também inauguradas bibliotecas
públicas e propostas sociedades de leitura. Minas Gerais teve sua história marcada
pela presença de aulas públicas e de mestres particulares, em todo o período em
análise (Morais, 2002; Moreira, 2006; Jinzenji, 2010b). A articulação das variáveis
econômicas e culturais pode ter contribuído para tornar mais expressivo o número de
assinantes entre os testamentos analisados justamente no período de ampliação do
campo da leitura em Minas.
De volta à Tabela 1, esta evidencia número menor de documentos para o século
XVIII, com as porcentagens de testadores assinantes superiores nas décadas
posteriores a 1760, acima dos 70%. Outro aumento significativo do número de
assinantes foi observado, como disse, entre 1821-1830, chegando a 70%. Para que
essas taxas de concentração de assinantes nas últimas décadas dos Setecentos e no
período de 1821-1830 possam ser compreendidas, faz-se necessário incluir outras
variáveis na análise, o que se verá na sequência.
DIFUSÃO DAS ASSINATURAS: HOMENS, MULHERES E NACIONALIDADES
Dados sobre os testadores de São João del-Rei, conforme suas origens, sexo e
capacidades autográficas, podem ser visualizados a partir do Gráfico 1:
Gráfico 1 - Sexo, origens e capacidades autográficas dos testadores da Vila e Termo de São João delRei (1750-1850)
Fonte: Testamentos originais da Vila e Termo de São João del-Rei (1750-1850).
Dentre os 787 testadores de São João del-Rei, contabilizei 477 homens (60%) e
310 mulheres (39%). Dentre os que assinaram, há 198 brasileiros (25% do total de
testadores e 41,5% dos homens), 166 portugueses (21% e 34,8%) e 3 africanos (0,3% e
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Morais, C. C.
0,6%). As mulheres assinantes somam 92 brasileiras (11% do total e 29% do grupo
feminino) e 1 africana (0,12% e 0,32%). Aqueles que não puderam assinar, apesar de
asseverar sabê-lo, compreendem 10 portugueses (1% e 2%), 9 brasileiros (1% e 1,8%)
e 12 brasileiras (1,5% e 3,8%). Não foram encontradas portuguesas e africanos de
ambos os sexos na situação de assinantes e tampouco dentre os que não puderam
assinar. Os que não sabiam assinar totalizam 5 brasileiros (0,6% e 1%), 3 portugueses
(0,3% e 0,6%) e 3 africanos (0,3% e 0,6%); 113 brasileiras (14% e 36%), 18 africanas
(2% e 5,8%) e 4 portuguesas (0,5% e 1,2%). Os que não sabiam ler e escrever, mas
marcaram uma cruz, incluem 17 portugueses (2% e 3,5%), 9 africanos (1% e 1,8%) e 7
brasileiros (0,8% e 1,4%); 10 brasileiras (1% e 3%) e 4 africanas (0,5% e 1%). Também
não foram encontradas portuguesas nessa amostra. De todos os grupos, destaca-se o
das mulheres brasileiras que não sabiam assinar, representando 14% do total e 36%
do grupo das mulheres, contrastando com os brasileiros nessa mesma condição (0,6%
do total e 1% do grupo masculino).
Outros sujeitos que deixaram assinaturas são os testamenteiros, ou seja:
aqueles que faziam cumprir a vontade dos mortos 5. Sua indicação pelos testadores
pautava-se sobretudo pela confiança, parentesco e suas habilidades de leitura e
escrita. Dentre os 656 testamenteiros, foram identificados 501 homens (76%) e 155
mulheres (23,6%). Sua distribuição conforme o sexo e as capacidades autográficas foi
coligida no Gráfico 2:
Gráfico 2 - Sexo e capacidades autográficas dos testamenteiros da Vila e Termo de São João delRei (1750-1850).
Fonte: Testamentos originais da Vila e Termo de São João del-Rei (1750-1850).
5
Era comum assumir mais de uma testamentaria. Realizei detalhada análise das assinaturas e das datas
dos documentos para excluir repetições e identificar casos de homonímia. Nos testamentos em que foram
indicados dois testamenteiros, priorizei aquele para o qual havia assinatura. Os testamentos a cargo de
Ordens Terceiras também foram excluídos dessa contagem.
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
Os que assinaram somam 447 homens (68% do total de testamenteiros e 89%
dos homens) e 68 mulheres (10% do total e 43,8% das mulheres). Houve grande
disparidade entre essas amostras, chegando a 58% (do total) a favor dos homens. A
disparidade entre os que não sabiam assinar também chama a atenção: 11 homens
(1,6% do total e 2% dos homens) e 59 mulheres (8,9% e 38%). Fizeram sinais 15
homens (2% e 3%) e nenhuma mulher. Dentre os testamenteiros que asseveraram não
poder assinar, encontram-se 3 mulheres (0,4% e 1,9%).
Ao comparar as quatro amostras de homens e mulheres, o destaque positivo fica
para os homens na situação de testamenteiros, seguidos dos homens testadores;
depois, estão as mulheres testamenteiras e, por fim, as testadoras. Provavelmente
porque, no processo de testamentaria, do cumprimento dos legados até a
comprovação de que as disposições do falecido foram executadas, tudo deveria ser
realizado por escrito e apresentado em juízo.
Em relação aos homens, cruzando as informações contidas na Tabela 1 com o
Gráfico 1, percebe-se uma concentração de assinantes portugueses no fim do século
XVIII. Tal fenômeno pode ser entendido quando se considera que, desde o período das
grandes navegações, a escrita era ferramenta útil para os que saíam de sua terra natal,
uma vez que a emigração pode ser tomada como estímulo para a aquisição da palavra
escrita. A escrita epistolar foi um importante meio de comunicação entre os dois lados
do Atlântico (Castilho Gómez, 2002; Furtado, 2005). Dessa maneira, a administração
dos negócios e o desejo de manter relações familiares por meio da correspondência
podem ser considerados estímulos para o domínio da palavra escrita pelos
portugueses que se dirigiram ao Novo Mundo.
Outro aumento significativo do número de assinantes foi observado entre 18211830, conforme a Tabela 1. O Gráfico 1 revela expressivo número de brasileiros
capazes de assinar: 63 dentre 787 testamentos originais (o que equivale a 31,8% do
total de brasileiros assinantes, 15,6% do total de homens assinantes e 8% do total de
testamentos originais). Como afirmei, nas três primeiras décadas dos Oitocentos, a
Vila de São João del-Rei vivia um momento próspero com o comércio intraprovincial.
Dentre os ‘negociantes’ que habitavam São João del-Rei, 57 (74%) fizeram seus
testamentos entre os anos de 1801 e 1839, período que corresponde à ampliação do
comércio intraprovincial, ao aumento da quantidade de testamentos registrados e a
uma expressiva quantidade de assinantes. Para uma sociedade com comércio
desenvolvido e que considerava que aos homens cabia a administração dos negócios,
a aquisição da escrita era relevante para o sexo masculino.
Os indícios sobre a menor ocorrência de assinaturas entre mulheres e a
quantidade expressiva daquelas que não sabiam assinar corroboram uma constatação
comum para o período pesquisado, mesmo em outros recortes geográficos: não havia
um processo uniforme de difusão do letramento. Havia uma construção seletiva na
disseminação da palavra escrita, a qual se desenvolvia sob a lógica da diferenciação
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Morais, C. C.
social e cultural. O sexo masculino possuía maior participação nessa cultura, sendo
esse fenômeno naturalizado historicamente e, portanto, não questionado (Fernandes,
1994; Magalhães, 1994; Alves, 2003; Marquilhas, 2003). Estudos sobre diversos países
europeus afirmam que a educação feminina se encontrava, em muitos casos, reduzida
à leitura. A escrita poderia se transformar em instrumento moralmente perigoso, o
que levou à tradição da mulher leitora e incapaz de escrever. Nesses casos, as
assinaturas são indicadores frágeis, e os dados históricos, irrecuperáveis (Viñao Frago,
1993; Chartier, 1996; Roche, 1996). No Brasil, as pesquisas afirmam que as mulheres
eram menos letradas que os homens por possuírem uma educação voltada para o
mundo doméstico, sendo educadas para se tornarem esposas e mães, quando
pertencentes às elites. Além disso, eram destinadas aos trabalhos que não
demandavam diretamente o uso da leitura e escrita, no caso das mulheres livres
pobres ou das escravas e alforriadas. Somente no final do século XIX, houve uma
produção literária feminina mais considerável, como poemas, jornais e romances,
todavia voltada às mulheres das elites (Telles, 2004; Louro, 2004; Jinzenji, 2010a).
De volta aos dados produzidos em São João del-Rei, apesar da inferioridade de
assinaturas das testadoras brasileiras em relação aos homens, quando comparamos
mulheres nascidas aqui com mulheres naturais de Portugal, os índices de assinaturas
das brasileiras tornam-se instigantes. Ao pesquisar a situação feminina, Magalhães
(1994) concluiu que a relação das portuguesas com a escrita ocupava lugar inferior. O
estudo de Alves (2003) revela que 9% das mulheres da região de Mafra assinavam. Os
dados referentes a São João del-Rei revelam que as quatro portuguesas que viviam na
Vila não sabiam assinar, ao passo que as mulheres nascidas no Brasil que sabiam
assinar somam 92 (o que corresponde a 11% do total de 787 testamentos e a 29% do
grupo feminino). Em pesquisa sobre 557 testamentos de mulheres da Comarca do Rio
das Velhas (1780-1822), Rachi (2016, p. 126) constatou que “[...] somente 49 mulheres,
isto é, 8,8%, efetivamente grafaram o nome [completo]” 6. Dessa maneira, percebe-se
que as mulheres sanjoanenses apresentaram cifras ligeiramente superiores em relação
às dos demais estudos.
As constatações acima sobre a relação das testadoras brasileiras com as
assinaturas dos testamentos levam a examinar duas hipóteses. A primeira seria a de
que, para o contexto em análise, a escrita feminina talvez não fosse considerada algo
tão recriminável, como se vê nos trabalhos que se debruçam sobre diferentes
realidades europeias. Minas Gerais, se comparada às demais capitanias do litoral, é
uma região de colonização mais recente e extremamente mestiça, na qual dominar a
cultura escrita por parte das mulheres poderia ser tomado como um elemento de
6
A autora considerou somente as assinaturas completas, excluindo as rubricas. Neste artigo sobre São João
del-Rei, foram incluídas as rubricas, o que dificulta a comparação entre os dois trabalhos. Ao optar por
analisar as rubricas, considerei que seu uso não deve ser associado a um baixo grau de letramento, mas
sim a um costume da época. A documentação mostra que mesmo as pessoas mais letradas utilizavam
muitas rubricas e abreviaturas.
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
distinção. A segunda hipótese seria considerar que as mulheres capazes de assinar
conquistaram, não se sabe exatamente a partir de que maneiras, a possibilidade de
acessar o mundo do escrito. A ideia de que as mulheres eram incapazes de administrar
bens há muito tem sido questionada pela historiografia brasileira (Del Priore, 2009).
A participação do sexo feminino na cultura escrita, bem como sua capacidade de gerir
negócios tem sido cada vez mais observada empiricamente.
A documentação não traz muitos indícios sobre os locais e tampouco as
maneiras como e onde as mulheres se apropriaram da palavra escrita. Sobre as escolas
públicas, sabe-se que, desde 1830, em Minas Gerais, havia duas escolas públicas
femininas – em Ouro Preto e em São João del-Rei (Jinzenji, 2010b). Mesmo sendo
poucos os indícios sobre os locais de aprendizado, muitos deles restritos ao ambiente
familiar, havia mulheres em São João del-Rei que se tornaram ativas no que se refere
à administração de seus bens e ao uso da palavra escrita. Os casos de indicação de
tutoras pelos testadores são relevantes. Para períodos anteriores à escolarização, uma
possibilidade para que as mulheres aprendessem as letras era com a contratação de
professores pelas famílias, para ensinar nos lares (Frias, 2017). A documentação em
análise revela que, dos 49 homens indicados como tutores, 33 (67,3%) foram capazes
de assinar. Dentre as 17 tutoras, 11 assinavam (64,7%); 5 não sabiam assinar (29,4%)
e para uma não foi encontrada informação (5,8%). Também, dentre os tutores, uma
característica observada foi a habilidade da escrita. Como exemplo, cito D. Maria
Benedita Noronha Negreiros, casada com o Sargento-mor Cândido Álvaro José Lima,
com quem teve seis filhos. Em 1814, o marido assegurava em testamento ‘conhecer a
sua capacidade’ e, portanto, “[...] a instituo, e nomeio também Tutora dos Nossos
Filhos por confiar dela não só a boa educação, e instrução delles, mas a administração
de seus bens e legítimas” (Lima, 1814). A historiografia atesta a capacidade das tutoras
em administrar os bens dos órfãos a partir de sua familiaridade com o escrito, o que
tem sido corroborado para diferentes regiões mineiras (Chequer, 2002; Gorgulho,
2011; Paula, 2016; Julio, 2017). Tal situação se verifica também em São João del-Rei,
com destaque para as esposas de comerciantes (Frias, 2017).
OUTRAS VARIÁVEIS: MORADIA, POSSES, COR E CONDIÇÃO
Há estudos que sugerem que o letramento irradia dos núcleos urbanos para os
meios rurais, segundo uma lógica vertical, que se traduz em diferenciação e
hierarquização (Roche, 1996; Magalhães, 1994). Pode-se dizer que, para os que viviam
em vilas prósperas e sedes administrativas, o escrito estava presente em uma
multiplicidade de formas de acesso. Entre os homens que viviam nas cidades, havia
ocupações que requeriam as práticas de leitura, escrita e cálculo: comerciantes,
administradores públicos, notários, clérigos, juízes etc. Mas na região e no período
analisados neste artigo, a dicotomia urbano versus rural não deve ser tomada de forma
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Morais, C. C.
radical. Havia uma interpenetração de mundos, em razão da grande possibilidade de
circulação das pessoas, favorecida principalmente pelo fato de São João del-Rei ser um
entreposto comercial diversificado. Os dados não mostram demasiada diferença entre
os testadores que afirmaram em testamento residir na Vila (35,7% assinantes) e os que
moravam nas zonas mais rurais, como arraiais, sítios e fazendas, chegando a 28% de
assinantes. As cifras são ainda mais próximas quando se analisa aqueles que não
sabiam assinar: 75 (ou 9,5% da Vila) e 91 (ou 11,5% de ‘outros locais’).
De acordo com Magalhães (1994), os proprietários de bens móveis ou imóveis
estão sempre à frente nas quantificações dos níveis de letramento e há grande relação
entre a profissão e as capacidades autográficas, destacando-se os comerciantes. A
relação entre as posses ou ‘haveres’ e a apropriação da cultura escrita também foi
observada por Villalta (2007a, 2007b).
No caso de São João del-Rei, dentre os testadores assinantes, há 208
proprietários de bens imóveis (40% dos 519 assinantes). Aqueles relacionados a
atividades rurais eram mais numerosos do que os mineradores: 116 (22% dos
assinantes) exerciam atividades agrícolas, dos quais 98 (19%) possuíam terras de
plantio e 43 (8%) criavam gado; 18 (3% dos assinantes) possuíam terras minerais. Os
bens móveis foram assim mencionados: 26 pessoas referiram ao ouro (5% dos 519
assinantes), 28 (5%) à prata; 9 (1,7%) a joias; 8 (1,5%) a utensílios de mesa em prata;
e 1 (0,1%) referiu a louças. A posse de escravos foi o bem mais relacionado, pois 338
testadores assinantes possuíam cativos (65%).
É difícil precisar o ramo profissional dos testadores, por não existir, na estrutura
do testamento, local para essa informação. Muitos atuavam em mais de um serviço, e
identifiquei ocupações para 146 sujeitos (18,5% de 787). Os dados reiteram que os
testamentos foram registrados, em sua maioria, a rogo de proprietários de bens imóveis
e de escravos, com ocupações que demandavam participação na cultura escrita.
Observam-se capacidades de assinatura elevadas entre os clérigos (100%), magistrados
(100%), professores (100%) e negociantes (88% dos que exerciam esta ocupação).
Considerando a especificidade do contexto histórico estudado, convém verificar
ainda as variáveis ‘cor’ e ‘condição’ dos sujeitos. Trabalhar o critério ‘cor’, contudo, é
extremamente complexo, uma vez que as designações da época eram muitas e
imprecisas e não remetiam somente à pigmentação da pele, mas, ainda, levavam em
conta a condição social e o status dos sujeitos (Faria, 1998; Castro, 1998). Nesta
pesquisa, não foi possível estabelecer essa caracterização de modo preciso. As fontes
são limitadas, pois em 707 testamentos (90% de 787) não há menção à cor dos
testadores. Os dados demográficos referentes à cor evidenciam que a Comarca do Rio
das Mortes possuía um contingente populacional de brancos superior a outras
comarcas mineiras (Paiva, 1996). Dentre os testamenteiros, todos os identificados nos
documentos como brancos eram portugueses (25 ou 3%). Há outros 41 indicados como
pretos, todos africanos (5% do total); 6 (0,7%) crioulos; 2 (0,2%) mulatos; 5 (0,6%)
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
pardos; um homem classificado como cabra (0,1%). Dos testadores, 577 afirmaram
pertencer a alguma agremiação religiosa. Destes, 250 (43%) pertenciam à Ordem
Terceira de São Francisco de Assis, e 225 (39%), à de N. Sra. do Carmo. Esses indícios
permitem a seguinte conjectura: 82% de 577 testadores que registraram o
pertencimento a uma ordem religiosa eram livres e brancos. Sabe-se que essas ordens
não aceitavam ‘pessoas de cor’. A Irmandade de N. Sra. do Rosário, da qual os escravos
participavam maciçamente (Boschi, 2007), foi indicada 60 vezes (10%), e a de N. Sra.
das Mercês dos Homens Pardos, 35 vezes (6%).
No período, saber a ‘condição’ significa conhecer qual a situação jurídica dos
estudados. Aos escravizados, era proibido o ato de testar. Os alforriados podiam fazê-lo,
mas a maior parte dos testamentos foi produzida a rogo de pessoas livres (736 ou 93,5%
dos testadores). Em contrapartida, a Comarca do Rio das Mortes era a que contava com
o maior contingente cativo das Minas Gerais, principalmente no século XIX (Brügger,
2007; Libby, 1988). Quando comparados os assinantes com os totais de homens e
mulheres de cada condição, os números são reveladores. Dentre 457 homens livres, 398
(87%) assinaram e 8 (1,7%) não sabiam assinar. Dos 20 homens forros, 5 (25%) assinaram
e outros 5 não sabiam assinar. Das 279 mulheres livres, 114 (40%) assinaram e 135 (48%)
não sabiam. As mulheres forras contam 2 (6%) assinantes e 24 (77%) foram incapazes de
assinar. As mulheres livres que não sabiam assinar (48%) eram mais numerosas do que
os homens forros que também não sabiam (25%), uma disparidade de 23%. Mais uma
vez, o fato de se pertencer ao sexo feminino parece expressar o lugar simbólico e a
participação na cultura escrita, mesmo entre as mulheres livres. A relação das mulheres
com a palavra escrita não parecia simples, pois saber escrever, no caso delas, poderia
carregar uma carga de negatividade, sob o aspecto moral.
ASSINATURAS EM ESCALAS: INDICADORES DE LETRAMENTO
Para a elaboração deste estudo, a qualidade das assinaturas foi analisada a partir
da escala proposta por Magalhães (1994). Essa escala possui cinco níveis, aos quais
correspondem diferentes graus de letramento. Apresento, a seguir, as características
dos níveis e exemplos de assinaturas encontradas nos testamentos, bem como a análise
dos dados encontrados para a Vila e Termo de São João del-Rei entre 1750-1850.
O ‘nível 1’ caracteriza-se por sinais. Seus autores não formavam letras, não
sabiam ler nem escrever, mas deixaram marcas (cruzes). Esse tipo de registro foi muito
comum entre africanos e entre mulheres livres analisados neste estudo. Esses casos
são interessantes, pois a pena, o tinteiro e o papel não eram objetos comuns nas
‘moradas de casas’. Naquele contexto, manusear um instrumento de escrita, mesmo
que de modo rudimentar, e marcar um sinal no papel demarcavam uma diferenciação
social. Grafar uma cruz parecia ser a expressão mais autorizada para as mulheres,
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Morais, C. C.
como o exemplo a seguir (Figura 1), de um sinal feito por uma mulher sanjoanense,
após ditar seu testamento:
Figura 1 - Nível 1: Sinal de cruz.
Fonte: Cruz de Josefa Maria de Mendonça em 1814 (Mendonça, 1814).
Em São João del-Rei, 69 sujeitos fizeram cruzes, sendo 54 testadores (6,8% de
787) e 15 testamenteiros (2% de 656). Com relação à cidade de Mariana, 4,9% fizeram
sinais (Villalta, 2007b). Na Freguesia de Mafra, Portugal, a porcentagem de sinais
chegava a 48% (Alves, 2003).
A soma de testadores e testamenteiros assinantes de São João del-Rei totaliza
1.034 casos, incluindo os sinais. Destes, 519 (66% de 787) testadores e 515 (78,5% de
656) testamenteiros assinaram. Conforme Villalta (2007b), em Mariana, 62,5%
assinaram. De acordo com Alves (2003), em Mafra, 32% foram capazes de assinar. De
maneira comparativa, os dados mostram que a inserção na cultura escrita era muito
maior nas regiões mineiras aludidas do que em Mafra, em Portugal.
No ‘nível 2’, as assinaturas são rudimentares. Nota-se uso inapropriado de
maiúsculas no lugar de minúsculas ou vice-versa. Letras trêmulas, não interligadas e
que não seguem uma linha reta, com traços de ‘mão guiada’. Os que se encontravam
nesse nível seriam capazes de ler e escrever mal, ou escrever o nome. Considerandose os 1.034 assinantes, 144 se encontravam no ‘nível 2’ (14% desse total), dos quais
111 testadores (21% de 787) e 33 testamenteiros (5% de 656). Segue um exemplo em
que se destacam as letras traçadas de forma insegura e a incapacidade de seguir uma
linha reta, que pode ser observada ao se comparar as linhas escritas acima e abaixo da
assinatura (Figura 2):
Figura 2 - Nível 2: Assinatura de ‘mão guiada’.
Fonte: Assinatura de Antônio Xavier de Moura em 1809 (Moura, 1809).
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
Os que possuíam o ‘nível 3’ eram capazes de ler, de assinar de forma completa
e de escrever pequenas mensagens com erros. A chancela possui boa composição,
porém o assinante não consegue executar a escrita cursiva com fluidez, havendo
ausência de ligação entre as letras. No universo estudado, 386 assinantes se
encontravam no ‘nível 3’ (37% de 1.034): 228 testadores (44% de 787) e 158
testamenteiros (30,6% de 656). A assinatura de Maria do Carmo Albina é um bom
exemplo. Afirmou que lera e assinara seu testamento em 1829, mas apresentou
dificuldade em interligar as letras e em seguir uma linha reta (Figura 3).
Figura 3 - Nível 3: Assinatura normalizada, completa.
Fonte: Assinatura de Maria do Carmo Albina em 1829 (Albina, 1829).
A assinatura de ‘nível 4’ traduz uma significativa competência motora. Eram
pessoas que liam e escreviam, efetuando uma chancela bem distribuída. As letras em
estilo cursivo encontram-se interligadas de forma harmoniosa, o que revela prática da
escrita. Embora de fácil compreensão, é ‘caligráfica’, ou seja, praticamente copia o
estilo da época. Não revela apropriação criativa da habilidade de escrever, não
havendo criação de uma assinatura com estilo próprio. As letras assemelham-se às
disseminadas pelos manuais de caligrafia do período. Do total de 1.034 assinantes
sanjoanenses, 117 estavam no ‘nível 4’ (11%), distribuídos entre 44 testadores (8,4%
de 787) e 73 testamenteiros (14% de 656). Para este nível, a assinatura de Antônio
Joaquim do Rego Barros é exemplar (Figura 4):
Figura 4 - Nível 4: Assinatura caligráfica.
Fonte: Assinatura de Antônio Joaquim do Rego Barros em 1844 (Barros, 1844).
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Morais, C. C.
Chegar ao ‘nível 5’ demandava constante treinamento, o que permitia
apropriar-se da escrita e executar uma assinatura de modo criativo e inventivo,
dominar as linhas curvas e retas, os traços grossos e finos, criar ‘penadas’ (arabescos).
Manoel Ignácio de Almeida 7, natural da Vila de São José, filho natural de Ana
Fernandes Bastos, preta forra, manifestou, em seu testamento, tal desenvoltura com
a pena. Abreviou seu nome, mas sua assinatura apresenta extrema firmeza nos traços.
Criou ‘penadas’ que alternaram traços finos e grossos, o que indica grande prática de
escrita. Seu testamento foi assinado em 1781 e em anexo ao processo encontra-se um
comprovante de uma dívida. Trata-se de um bilhete escrito de próprio punho do século
XVIII, solicitando itens alimentícios a um comerciante, o que revela a utilização da
palavra escrita como forma de comunicação em seu cotidiano (Figura 5). A transcrição
do bilhete diz assim:
Senhor Domingos da Costa Cardoso.
Se a Vossa Merce lhe naõ for molesto, mandar-me duas livras [sic] de passas e//
duas de biscoitos, satisfarey a Vossa Merce que Deus Guarde Muitos anos//
De seu Captivo, e obrigado.
Manoel Ignacio de Almeida
Figura 5 - Nível 5: Bilhete com Assinatura pessoalizada.
Fonte: Bilhete de próprio punho com assinatura de Manoel Ignácio de Almeida (século
XVIII), anexo ao processo de testamentaria (Almeida, 1781).
7
Em algumas partes do testamento, o nome do testador consta como Manoel Ignácio de Almeida (e assim
foi arquivado). Porém, em outras partes do documento, consta como Manoel Ignácio de Almeida Faria.
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Escrever e assinar: habilidades seletivas em um universo iletrado (São João del-Rei, 1750-1850)
No corpo do testamento, Manoel Ignácio registrou sua atividade como professor,
ao afirmar: “[...] deixei hum Rol de dividas que se me devem de emsino os rapazes da
minha escola por mim assignado no qual declaro as pessoas que me devem e as
quantias”. Daí sua intimidade com a escrita. Chama a atenção o fato de ser descendente
de uma preta forra e trabalhar com as letras, um caso raro, considerando o que os dados
quantitativos deste estudo revelaram. Os clérigos, magistrados, professores e alguns
negociantes eram capazes de efetuar esse nível de assinatura. Dentre os assinantes
sanjoanenses, 387 se encontravam no ‘nível 5’ (37% de 1.034). Destes, há 136 testadores
(26% de 787) e 251 testamenteiros (48,7%). Entre as mulheres, apenas três
testamenteiras realizaram assinaturas de nível 5 (0,2% do total de 1.034).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Hipóteses que estabelecem íntima relação entre posse de bens, profissões e
capacidades de assinar foram confirmadas com os dados dos moradores de São João
del-Rei. Considerando a origem, o sexo, as variáveis socioeconômicas e a condição
jurídica dos testadores, percebe-se que a pesquisa se restringe a alguns setores
economicamente mais favorecidos da sociedade sanjoanense e aos nascidos livres.
A disseminação da capacidade de assinar se organizava, entre os testadores da
Vila e Termo de São João del-Rei, de forma similar a outros contextos geográficos:
atingindo mais os homens do que as mulheres, principalmente os proprietários e
aqueles que desempenhavam ocupações como professores, clérigos e negociantes.
Nota-se diferença da população estudada em relação a outras partes da Europa quando
analisada a variável local de moradia, uma vez que não houve grande disparidade entre
os índices de assinantes daqueles que afirmavam, na hora de testar, que moravam na
parte urbana, com relação aos que possuíam propriedades em áreas mais rurais e
provavelmente nelas viviam quando do registro de seus testamentos.
Os indícios sobre a menor ocorrência de assinaturas entre mulheres e a
quantidade expressiva daquelas que não sabiam assinar são corroborados por outros
estudos e ao longo deste artigo, levando a uma constatação comum sob o ponto de
vista histórico: até meados dos Oitocentos, o domínio da escrita pelos homens estava
sempre à frente, tanto quantitativa quanto qualitativamente.
Mesmo buscando perceber rupturas ou mudanças de padrão ao longo do tempo,
com relação às mulheres, foram encontradas continuidades na longa duração, à vista
de que não foram identificadas como redatoras de testamentos e seus índices de
assinaturas se mostraram inferiores aos dos homens. Conclui-se que, no espaço
estudado, entre 1750 e 1850, o mundo das letras era marcadamente ocupado pelas
pessoas de posses e que as mãos que assinavam eram sobretudo masculinas e brancas.
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Apesar dessa conclusão geral, os testamentos analisados revelam que as
mulheres de São João del-Rei apresentavam índices de letramento superiores aos de
suas contemporâneas portuguesas e africanas. Mesmo cerceadas, os casos de
mulheres tutoras, raros, mas relevantes, comprovam inserção das mulheres na cultura
escrita e a capacidade feminina de administrar os bens de seus filhos, especialmente
entre esposas de comerciantes.
As análises sobre a cultura escrita em interface com a História da Educação
fornecem possibilidades interessantes para pensar as desigualdades culturais que se
expressam em realidades regionais, contribuindo para comparações entre espaços e
tempos distintos.
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CHRISTIANNI CARDOSO MORAIS: Graduada em
Filosofia pela Fundação de Ensino Superior de
São João del-Rei, Mestre em Educação e Doutora
em História pela Universidade Federal de Minas
Gerais. Professora Associada do Departamento
das Ciências da Educação da Universidade
Federal de São João del-Rei. Docente do
Programa
de
Pós-Graduação
Processos
Socioeducativos e Práticas Escolares. Atua nos
seguintes temas: fontes primárias, práticas
formativas, história da leitura/escrita, história da
infância e patrimônio histórico educativo.
Atualmente é Presidenta do Comitê Gestor do
Centro de Referência em Pesquisa Documental
(CEDOC).
E-mail:
[email protected]
https://orcid.org/0000-0001-6083-0864
Como citar este artigo:
Morais, C. C. Escrever e assinar: habilidades
seletivas em um universo iletrado (São João delRei, 1750-1850). Revista Brasileira de História da
Educação, 23. DOI:
https://doi.org/10.4025/rbhe.v23.2023.e284
FINANCIAMENTO:
A RBHE conta com apoio da Sociedade Brasileira de
História da Educação (SBHE) e do Programa
Editorial (Chamada Nº 12/2022) do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq).
LICENCIAMENTO:
Este artigo é publicado na modalidade Acesso
Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição
4.0 (CC-BY 4).
Recebido em: 21.06.2022
Aprovado em: 05.01.2023
Publicado em: 22.06.2023
Editor-associado responsável:
Olívia Medeiros Neta (UFRN)
E-mail:
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-4217-2914
Rodadas de avaliação:
R1: três convites; duas avaliações recebidas.
R1: dois convites; duas avaliações recebidas.
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