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Escrita e performance

2019, Scripta

Performances da escrita é o tema organizador deste número da revista Scripta. A escolha desta temática guarda, em sua base, um desejo de refletir sobre a pluralidade das práticas da escrita, a partir da leitura mesma dessa pluralidade. Almeja-se, assim, ampliar os debates sobre as várias possibilidades de realização da escrita e as variadas formas discursivas que assumem nas sociedades de diferentes tempos e espaços. A contemporaneidade se marca por uma multiplicidade de textualidades e suportes, e em função disso, por uma heterogeneidade de semioses e sentidos. A esse apelo do contemporâneo, a escrita responde não como mera modalidade da língua, mas como objeto plástico, modo de enunciação movente, tecnologia multimodal, processo, performance, abarcando experimentações multiformes, estéticas ou não. Por isso, este número da Scripta é um convite à reflexão sobre a pluralidade das práticas e dos modos da escrita. Ou seja, sobre as performances da escrita. A performance é da ordem da ...

Escrita e performance Jane Quintiliano Guimarães Silva* Terezinha Taborda Moreira** Performances da escrita é o tema organizador deste número da revista Scripta. A escolha desta temática guarda, em sua base, um desejo de refletir sobre a pluralidade das práticas da escrita, a partir da leitura mesma dessa pluralidade. Almeja-se, assim, ampliar os debates sobre as várias possibilidades de realização da escrita e as variadas formas discursivas que assumem nas sociedades de diferentes tempos e espaços. A contemporaneidade se marca por uma multiplicidade de textualidades e suportes, e em função disso, por uma heterogeneidade de semioses e sentidos. A esse apelo do contemporâneo, a escrita responde não como mera modalidade da língua, mas como objeto plástico, modo de enunciação movente, tecnologia multimodal, processo, performance, abarcando experimentações multiformes, estéticas ou não. Por isso, este número da Scripta é um convite à reflexão sobre a pluralidade das práticas e dos modos da escrita. Ou seja, sobre as performances da escrita. A performance é da ordem da ação: é atuação. É da ordem do acontecimento: é evento. É da ordem do desempenho: é interpretação. É da ordem da representação: é apresentação. É da ordem do improviso: é composição e execução simultâneas. Produção e mediação num ato único de construção de sentido. Renato Cohen nos diz que, “a rigor, antropologicamente falando, pode-se conjugar o nascimento da performance ao próprio ato do homem se fazer representar (a performance é uma arte cênica) e isso se dá pela institucionalização do código cultural”. (COHEN, 2004, p. 40-41). Ato que, para o estudioso, se reveste de preparação, mais do que de improviso e de espontaneidade – embora o improviso esteja em sua natureza –, a performance é comumente associada a acontecimento. Ela encontra sua expressão máxima na experimentação, que lhe atribui a característica de “arte de fronteira”, que “rompe convenções, formas e estéticas, num movimento que é ao mesmo tempo de quebra e de aglutinação”. Por isso, para Cohen seu estudo permite a discussão de questões complexas, “como a da representação, do uso da convenção, do processo de criação etc.” (COHEN, 2004, p. 27). Esse crítico associa a performance à representação cênica. Aqui, no entanto, ousamos pensá-la associada à escrita. Porque a escrita é, também, ato pelo qual o homem se faz representar. A escrita é ato enunciativo, simultaneamente social e subjetivo, nos termos de Mikhail Bakhtin (1981) e Émile Benveniste (1995). A noção de escrita na qual estamos pensando se alinha à perspectiva benvenistiana de que, como forma de linguagem, a escrita permite ao homem realizar uma ação individual, presente e concreta de produzir a relação eu/tu, ao mesmo tempo em que é produzido por ela. Para Benveniste, “é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem fundamenta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito de ‘ego’”. (BENVENISTE, 1995, p. 286). Assim, a relação eu/tu preconiza a organização da cena enunciativa, acionada toda vez que alguém põe em ato a sua fala. * Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas. ** Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Professora do Programa de Pós-graduação em Letras da PUC Minas. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível 2. Coordenadora do Grupo de Pesquisa África e Brasil: repertórios literários e culturais. 7 Jane Quintiliano Guimarães Silva e Terezinha Taborda Moreira Essa noção de escrita se alinha também ao fundamento dialógico da linguagem, no que exatamente ele encerra como constitutivo da língua e do discurso: a heterogeneidade e a alteridade. O ato de escrever, ainda que possa se realizar de maneira solitária, corresponde a uma práxis de implicarse com a palavra do outro, na palavra do outro, com outros textos e outros discursos. Escrever é envolver-se em uma condição de dialogicidade que é própria e constitutiva do homem. Assim, a escrita encena essa condição da linguagem de ser, sempre, o estabelecimento de um diálogo. Diálogo que permite ao homem se constituir como sujeito, como um eu que fala para si e para o outro, insere-se em um contexto e dirige-se, necessariamente, a um tu, com o qual se comunica. Na escrita em performance, fundam-se textualidades abertas, que não apenas remetem aos objetos sobre os quais se debruçam, mas que dão a ver a própria forma de evidenciar esses objetos como um diálogo sem fim. Performar a escrita é abrir-se, bakhtinianamente, ao diálogo, assumi-lo como essência que funda a prática discursiva, num ato que se projeta nas vozes convocadas pelas relações dialógicas que um texto pode estabelecer. Performar a escrita é assumir a estabilidade como provisória. É integrar-se a uma rede de discursividades. Daí a hibridez que assoma como característica de uma escrita em performance. Hibridez que resulta do fato de que a escrita se apropria da fecundidade derivada da polivalência semântica dos códigos culturais gerados e institucionalizados no corpo social, se relaciona com esses códigos, os traduz, os transcria, numa ação que entendemos ser a de colocar em movimento o sentido. A performance se torna apreensível no corpo da escrita. Esse se constrói no e pelo processo escritural. No processo escritural a escrita se institui e constitui a partir das relações que estabelece com o(s) gênero(s). A essas relações chamamos performances da escrita. Elas podem corroborar o gênero, transmudá-lo, travesti-lo com hibridações as mais diversas. Constituem-se, pois, como gestos, simultaneamente, de leitura, interpretação e criação pelos quais instalam a possibilidade da errância no sentido. Na escrita, a performance pode romper convenções, formas e estéticas. Pode estabelecer um movimento de quebra e aglutinação. Pode abrir-se à experimentação. Isso porque permite analisar, enquanto confronta, questões como a da representação, a dos sentidos estabilizados, a do processo criativo, a dos gestos de leitura e de escrita institucionalizados. Quem é, para nós, o sujeito da escrita performática? Trata-se de um sujeito que se constrói no texto a partir da incompletude, da heterogeneidade. Sujeito visceral, apaixonado, intenso, tenso. Sujeito da experimentação. Sujeito que deseja o prazer da/na escrita. Que escreve promovendo intensidades e deslocamentos, porque se debruça sobre escritas que também os promovem. Sujeito cuja respiração, ritmos e entonações ganham corpo no e com o próprio processo escritural. Sujeito para quem a escrita se impõe como um acontecimento discursivo, na perspectiva de Michel Pecheaux. Acontecimento esse que, por sua vez, impõe ao leitor inserir-se no processo escritural como elemento responsivo que amplifica a produção e a circularidade das vozes. São sujeitos de escritas performáticas os autores dos textos que trazemos neste número da Scripta. Por meio de seus processos escriturais apreendemos experimentações com a teoria literária, a linguística, a comunicação, a sociologia, dentre outras áreas, a partir das quais, respaldados em seus aportes teórico-conceituais, eles se debruçam sobre práticas de escritas em recortes que perscrutam as diversas e múltiplas formas que a escrita pode assumir. Dentre as práticas performáticas de escritas trazidas encontram-se investigações sobre os limites entre história, poética, autópsia e verossimilhança; a associação entre o conceito musical de poética enarmônica e a escrita literária para investigar a ambiguidade como efeito da oposição entre as forças de disjunção, que diz respeito à desagregação, e conjunção, que se refere à latência; especulações da crítica e da teoria literária sobre o tema da escrita, da memória e da autobiografia; discussões sobre o erotismo, o sagrado e a morte como modos performáticos da linguagem, sua tendência incontinente, seu excesso; a exploração do inacabamento do ser humano, e da tensão do sujeito lírico e da errância 8 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 23, n. 47, p. 7-10, 1º quadrimestre de 2019 Escrita e performance da escrita na composição da subjetividade lírica; aproximações entre literatura e direitos humanos para focalizar, em “narrativas de vida” (life-writing) alicerçadas na subjetividade da experiência do sujeito que narra, como se pronunciam os sujeitos excluídos; investigações sobre os aspectos performáticos de uma escrita literária que projeta, sobre a errância do sujeito que transita entre a vida e a morte, a errância da escrita que transita entre a prosa e a poesia, a ficção e o ensaio poético; observações dos encontros entre escrita e oralidade, seja para pensar a terra e o rio como metáforas da recordação, falas e suportes da existência nos quais se inscrevem caligrafias da existência inscritas nas tramas dos personagens, seja para analisar o modo como a performance dos contadores de história é encenada na escrita; análise sobre a possibilidade de uma narração ficcional, baseada em uma série de entrevistas, ser uma releitura crítica da realidade histórica e social que compõe as memórias da entrevistada, as quais servem de mote para um texto que rompe os limites entre realidade e ficção; perquirições sobre a concepção da criação artística a partir da relação entre poesia e fotografia; o estudo das relações entre imagem e palavra nas artes gráficas e visuais para flagrar não apenas as homologias e as similitudes, mas também os antagonismos e as dissonâncias entre uma e outra; o exame das práticas discursivas da escrita jornalística como espaço dialógico, atravessado por diferentes discursividades, que, a despeito do desejo de objetividade na produção do texto noticioso, acaba por recriar o acontecimento noticiado; a análise das formas de silenciamento e evidenciamento propostas por textos midiáticos como possibilidade de visibilizar uma polêmica que transpõe questões da ordem da língua sobre a representação de gênero; a discussão da revisão de textos como uma prática que se constitui a partir da interpretação e movência dos sentidos, de sua incompletude e de seu movimento, da não transparência da língua, da heterogeneidade do discurso e da escrita; e, finalmente, um exercício por meio do qual a crítica critica a si mesma, assumindo-se como metracrítica para tentar responder à questão sobre a importância do crítico na contemporaneidade, propor um entendimento da literatura como ensaio e performance, e proporcionar a compreensão do teor artístico e do gesto político da atuação do crítico. Em todas essas práticas performáticas, a escrita assume o hibridismo e se articula numa fronteira entre o acadêmico, o ensaístico, o científico, o estético, o sistema alfabético, a oralidade, o produtor, o receptor etc. No limite, essas escritas se constituem como cenários onde se projetam encenações simultaneamente experienciais (perceptivo, sensorial, psíquico, sócio-cultural) e conceptuais (cognitivo), as quais projetam, para o leitor, uma aventura experiencial e conceptual com a linguagem. SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 23, n. 47, p. 7-10, 1º quadrimestre de 2019 9 Jane Quintiliano Guimarães Silva e Terezinha Taborda Moreira Referências BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1981. BENVENISTE, G. Problemas de Linguística Geral I. Tradução Maria da Glória Novak e Maria Luiza Néri. Campinas, SP: Pontes/Editora da Unicamp, 1995. COHEN, Renato. Performance como linguagem. Criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 2004. 10 SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 23, n. 47, p. 7-10, 1º quadrimestre de 2019