Lágrimas de Ferro e Sal - Caroline Carnevalle

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DIREITOS AUTORAIS

Lágrimas de Ferro e Sal


Copyright © 2024 Caroline Carnevalle

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eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação ou qualquer outro — sem a permissão
prévia, por escrito, da autora, exceto nos casos previstos em lei.

Esta obra é uma publicação independente, sendo que todos os direitos relativos à
autoria, edição e publicação pertencem exclusivamente à autora, Caroline
Carnevalle.

Este é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, locais e eventos são produtos


da imaginação da autora ou usados de forma fictícia. Qualquer semelhança com
pessoas, vivas ou falecidas, eventos reais ou locais reais é mera coincidência.

A autora agradece a todos os leitores pelo apoio contínuo à literatura


independente.

Publicado por Caroline Carnevalle


Ilustração de capa por Camila Grivicich
Ilustrações de troca de capítulo e diagramação: Caroline Carnevalle
Revisão por Camila A. Santos
Eu não sei quem é você, não sei sua história e não sei seu passado, mas se você
fez algo estúpido algum dia, esse livro é para te dizer que seus erros não te
definem — nunca é tarde para mudar.
O que faz de você, você mesma?
CAPÍTULO 01
____

As mais jovens adoram ouvir histórias sobre os homens do Povo do Mar.


Elas se aglomeram ao redor de Greta, próximas o suficiente da fogueira para que
a brisa gelada das águas não as deixem resfriadas.
Por segurança, adiciono mais toras à pira — o inverno foi rigoroso e levou
consigo a pequena Lisandra.
Contamos a todos que o Príncipe da Neve tinha ficado tão encantado com
a beleza de Lisa que a convidou para morar em seu Palácio de Gelo. Essa
história trouxe um pouco de encanto e esperança, não apenas para as mais novas;
os corações antigos também encontraram conforto na ideia de que ela está em
um lugar melhor.
— Nunca caminhe sozinha pela praia à noite, pois você pode encontrar
Thalassor, o Deus do Mar — começa Greta, a luz da fogueira projeta sombras
em seu rosto, alonga as linhas das tatuagens ritualísticas e lhe atribui uma
aparência sinistra, como se tivesse sido tomada pelo espírito de uma sábia
ancestral.
Ainda que eu conheça todas as histórias, e possa eu mesma contá-las
quando Greta é tomada por episódios de fraqueza pela tuberculose, uma faísca
de empolgação se acende dentro de mim durantes as vigílias.
Nosso povo gosta de contar histórias. É assim que transmitimos
conhecimento, lidamos com a vida e aceitamos a morte. Quando a Sábia-Mãe
sente os espíritos agitados na vila, organizamos as vigílias: reunimos todas as
virgens em uma roda para acalmá-los, relembrando e honrando nosso passado.
Nem todas as garotas aqui serão eternas devotas aos Deuses e aos
antepassados como Greta, mas, quando crescerem, contarão nossas histórias e
manterão vivo o conhecimento de nosso povo. Isso é o que chamamos de honrar
nossos ancestrais: não esquecer de onde viemos, para saber para onde vamos.
— Você ainda tem Lágrimas? — pergunto a Manon.
A ruiva puxa uma garrafa de dentro do manto e me entrega. As garotas da
sua idade se juntaram em uma segunda roda para dançar; é um grupo bem menor
do que o das crianças. Menos adolescentes aparecem nas vigílias a cada ano; ou
deixaram o status de donzela, ou partiram de Ferroforja rumo à sedutora Cidade-
Mãe.
Dou um gole e a bebida alcoólica queima ao descer pela garganta, mas
alivia as dores nos braços após carregar tanta madeira até o topo da colina. Em
teoria, eu não poderia estar aqui, mas ninguém sabe. Gosto de ajudar Greta da
mesma forma que ela me ajudou quando cheguei na vila. Como nenhum raio
caiu em minha cabeça nos últimos anos, acho que a pureza das minhas boas
intenções compensa a falta de pureza física.
Nos acomodamos entre as raízes de um freixo, distantes o suficiente para
que nossa conversa não atrapalhe as histórias. É a primeira noite que podemos
sair e nos reunir nesse horário, o sol forte do princípio da primavera começa a
descongelar a neve, o tapete branco em breve será desfeito e substituído por um
gramado vivido.
— Ele vaga pelas praias do mundo em busca de sua próxima esposa. Se
você o vir, tampe os ouvidos, pois, com suas canções, ele é capaz de seduzir
qualquer moça a entrar no mar — continua Greta.
A noite está particularmente bonita. Os raios esverdeados da aurora fazem
os céus parecerem um reflexo do mar, enquanto as ondas batem contra o
penhasco e lembram uma canção.
É o próprio Thalassor nos convidando a saltar em seu abraço gelado.
Penso que é um romântico, provavelmente o último; durante todo o
inverno, mesmo nas noites mais frias, quando fomos forçados a ficar trancados
dentro de casa, pude olhar para o horizonte e ver suas serpentes marinhas
dançando na aurora, uma lembrança de que não se esqueceu de nós.
— Por que acha que elas gostam tanto dessa história? — cochicha Manon
para mim.
— O que há para não gostar? Um Deus bonito, poderoso e carente de amor
soa como um acordo vantajoso. Melhor do que a maioria dos homens da vila tem
a oferecer — digo ao cutucar-lhe as costelas. — Se você ignorar o final, claro.
Ela não responde, seus olhos meio vazios refletem as labaredas da
fogueira.
— Manon, você está bem?
— Eu preciso te contar algo, Elena…
— Mas isso não vai afogar a noiva? — Somos interrompidas por uma das
meninas da roda.
— Thalassor não deseja nenhum mal a sua futura esposa, ele irá beijá-la
por todo o caminho até seu palácio, passando por seus lábios suspiros de ar —
Greta responde.
As garotas se acotovelam, entre risadinhas comentam quais já deram seu
primeiro beijo e quais seguem perfeitas donzelas. Nenhuma quer ficar por baixo,
as intocadas falam estar reservando seus lábios aos Deuses e aos grandes
guerreiros.
— Assim como Elena, só irei me entregar ao homem mais poderoso de
toda Caldera, não aceito nada menos do que isso! — Uma delas faz a observação
e todas viram os rostos ao mesmo tempo para mim.
Abro um sorriso amarelo e sem graça em resposta. Ao meu lado, Manon
solta um risinho debochado porque é uma das poucas que sabe a verdade.
— Prestem atenção, a história ainda não acabou — repreendo-as numa
tentativa de mudar o foco.
Greta gesticula um agradecimento e retoma:
— Ainda assim, nem toda jovem sobrevive a travessia do mar. Aquelas
que falecem têm seu coração tirado do peito e transformado em águas-vivas para
fazerem companhia a Thalassor pela eternidade, enquanto seus corpos são
devolvidos para as famílias se despedirem.
O desfecho sinistro cala todos os risos e comentários abobados sobre
beijos e toques inapropriados. Essa não é uma história para inspirar a busca do
amor verdadeiro, ou sequer a coragem de enfrentar a maré, é um alerta contra o
Povo do Mar; impiedosos ladrões, belos na mesma proporção que são cruéis,
devoradores de corações que te seduzem com a voz.
Eu me pergunto quantas garotas foram encontradas na praia com buracos
no peito até criarem essa história.

Soren não é um romântico como Thalassor.


Dividir a cama com um homem do tamanho dele é um verdadeiro desafio.
Tento empurrá-lo com uma cotovelada nas costelas, mas o maldito nem percebe,
tanto músculo e nenhum senso de espaço pessoal. Ele solta um suspiro profundo,
e tenho a sensação de que, em vez de recuar, ele se espalha ainda mais pelo meu
lado da cama.
— Pelos Deuses, homem! Você vai me jogar para fora!
— Elena? Já acordou? — pergunta, a voz arrastada de sono.
Não tenho certeza se sequer consegui dormir. Voltei da vigília quando os
primeiros raios da manhã tingiam o céu, só para encontrar Soren esperando no
meu quarto. Fizemos amor até a claridade começar a incomodar, então tapei as
janelas com as cobertas pesadas. Mas, quando voltei, pronta para mandá-lo
dormir na própria cama, o homem já estava roncando. Desde então, me reviro no
pequeno espaço que deixou livre no colchão.
Ele esfrega o corpo contra minha coxa, a rigidez evidente, enquanto suas
mãos deslizam para minha cintura, me puxando para mais perto.
— Vou te cansar, assim você consegue dormir mais fácil — ele murmura,
afundando os lábios no meu pescoço, aquele jeito meio provocador que me faz
rir.
Apesar de negar com a cabeça, minhas pernas já estão enlaçando sua
cintura. Os beijos dão lugar a uma mordida forte em meu ombro, enquanto
correntes elétricas percorrem o meu corpo ao senti-lo roçar contra meu centro de
prazer.
— Você gosta mais quando sou delicado ou quando sou bruto?
— Você não consegue ser delicado. — Não é uma reclamação.
— Não? — Soren volta a brincar com meu pescoço, usando a ponta da
língua no que deveria ser uma tentativa de ser gentil, mas sua barba áspera
machuca a pele de um jeito agradável e grosseiro. — Se eu praticar, posso
aprender. Podemos começar agora…
— Nem pense nisso — digo entre risos com a cosquinha. — Preciso
dormir ao menos algumas horas, Greta deve chegar a qualquer…
Como se eu tivesse invocado uma maldição sobre mim mesma, o ranger
das tábuas do corredor chama minha atenção. Levo a mão ao peito de Soren,
afastando-o o suficiente para me concentrar. No meio do balido dos carneiros, do
canto dos pássaros e das ondas distantes batendo contra o penhasco, consigo
distinguir o murmúrio de duas vozes femininas se aproximando.
— Não é preciso, espere lá embaixo que já vou chamá-la — ouço Manon
tentando conter a visita.
— Bobagem, criança, volte para suas tarefas, eu mesma posso acordar
Elena — responde Greta.
— Você precisa ir. Agora. — Em um movimento rápido, já estou fora do
colchão e começo a procurar as roupas de Soren, que estão espalhadas.
A camisa está jogada sobre a penteadeira, arremesso-a para ele enquanto
me ajoelho para procurar embaixo da cama. Encontro um dos sapatos perdido ali
e, satisfeita, volto a me levantar, vendo Soren se equilibrando desajeitadamente
enquanto tenta vestir as calças, dando pequenos pulinhos para não cair.
— Mulherzinha maldi… — ele começa a resmungar, mas interrompe o
xingamento ao encontrar meu olhar de advertência. — Desculpa, mas estava na
expectativa de que teríamos mais tempo hoje.
Entendo sua frustração, fazem oito anos que sou refém da minha própria
mentira: a Eterna Donzela é a história que inventei para mim. As lendas dizem
que um dragão se apaixonou por minha beleza, e, após ser rejeitado, fez a
promessa de devorar todo homem que tentar me desposar. A única forma de
matá-lo é usando a lendária espada que pertenceu ao maior guerreiro de Caldera
— meu falecido pai —, essa, obviamente, também roubada pelo dragão.
O que poucos sabem é que a lenda é fruto de um acordo que fiz com a
própria criatura, Molgur. Eu queria liberdade para seguir meus próprios
caminhos, ele precisava de uma fonte de alimento fácil.
A cada novo ciclo das estações, menos homens estão dispostos a desafiar a
morte por mim. Se antes Molgur tinha comida em abundância, hoje ele passa
apenas o verão e o outono nas montanhas — no inverno parte para o calor das
ilhas do sul. E, ainda assim, nas últimas três rodas precisei criar ovelhas para
alimentá-lo, pois nenhum guerreiro apareceu.
A lenda toda é um tanto exagerada, fruto da mente de uma jovem
desesperada. Mas grandes histórias precisam de títulos exagerados para inspirar
corações perdidos. E o mais importante: funciona. Mesmo Soren, e todos os
amantes que vieram antes dele, nenhum teve a coragem de abrir o bico e contar
por aí que não sou mais uma donzela e correr o risco de Molgur descer da
montanha para devorá-los.
— Pobre homem, privado dos prazeres carnais. Vou pedir a Greta que faça
uma oração por sua alma — brinco, puxando com firmeza as cobertas da janela e
deixando que a luz do meio-dia inunde o quarto.
Soren sorri, apreciando minha provocação, e eu o empurro suavemente
contra a parede para um último beijo de despedida. Seus lábios, um pouco mais
ásperos do que o meu gosto, devoram os meus com a intensidade de quem sabe
que está prestes a ser expulso do banquete. Enquanto isso, tateio a janela atrás
dele, tentando destrancar o trinco sem perder o ritmo.
— Eu posso… voltar mais tarde… para ajudar… — ele fala entre beijos.
— Acho que já me ajudou bastante essa manhã.
Quando tento capturar sua boca novamente, ele segura meu queixo.
— Ajudar na fazenda, é trabalho demais para você e Manon, precisam de
um homem por aqui. Até sua cama está quebrada; tem uma viga fora do lugar,
me incomodou a noite inteira.
Um sabor amargo toma minha língua e perco a vontade de continuar
beijando Soren.
Às vezes penso como um par extra de braços fortes seria bem-vindo por
aqui — não necessariamente masculinos. Os carneiros-de-soay ficam mais
agressivos nesta época do ano, atacados por um mau humor latente após o
confinamento nos estábulos durante o inverno. Os machos mais chifrudos
sempre tentam derrubar a porta. Manon quebrou uma perna no último ano por
causa disso.
Mas a presença de um homem na morada da Eterna Donzela não seria bem
vista pela vila, a menos que nos casássemos, é claro.
— É mesmo? Pois você não parecia incomodado durante as dez vezes que
tentei te acordar por dormir todo esparramado na cama.
Preciso lembrar de trocar a espada do meu pai de lugar. Com Molgur no
sul, deixei-a escondida debaixo do colchão até ele retornar no verão.
— Estou falando sério — ele insiste.
Consigo abrir a janela no mesmo instante em que as batidas na porta
ecoam pelo quarto.
— Pra que bater, menina? Apenas entre logo — Greta repreende Manon
do lado de fora.
Soren também escuta, me encara com os olhos arregalados de pânico. Meu
coração acelera e acabo o empurrando forte demais para fora. Ele cai de costas
no telhado, a neve amortece o impacto, mas ele ainda fica estatelado em uma
pose engraçada, as roupas bagunçadas, bainha fora da calça, pés descalços e uma
única bota perdida ao seu lado.
Rimos da situação e ele me lança um beijo no ar antes de sair correndo aos
tropeços.
— Chegou cedo. — Alongo os braços, fingindo ter acabado de acordar no
momento em que Manon e Greta entram.
Essa foi por pouco.
— Por que você está nua? — Greta franze as sobrancelhas grisalhas, o
olhar afiado como uma adaga.
Encaro meu corpo com surpresa, não havia percebido; no calor da emoção
mal senti a pele arrepiada pela brisa fria.
A atenção de Greta me abandona e varre o quarto, analisando cada detalhe.
As roupas da vigília estão espalhadas de maneira incriminadora: o espartilho
largado perto da porta do banheiro, a camisola amarrada na cabeceira da cama
e… um pé de bota grande demais para seu meu, esquecido bem na frente da
porta.
Droga.
— Não é o que você está pensando.
Greta dá aquele suspiro cansado, já passamos por essa cena outras vezes.
Apenas balança a cabeça em um gesto de evidente desaprovação e se vira de
volta para o corredor.
Esfrego o rosto com força, um grunhido frustrado travado na garganta.
Você pensa que a idade lhe dará liberdade, mas as expectativas dos outros se
tornam uma cela mais apertada a cada roda das estações. Quando se tem vinte e
poucos, ninguém espera a maturidade das ditas boas decisões, mas uma mulher
de trinta deve saber seu lugar e honrar seus ancestrais, seja na castidade da
devoção aos nossos Deuses, na benção da maternidade ou na força no campo de
batalha — não há espaço para quem busca um quarto caminho.
Abandonei minha posição nas linhas de frente de Caldera quando inventei
a história de Molgur, evitei a maternidade compulsória com a maldição e, por
muitos anos, Greta tentou me convencer a me tornar sua aprendiz na servidão
aos Deuses — até Deuses intrometidos lhe contarem a verdade.
— Você desrespeita o homem a quem está prometida! — A voz de Greta
ecoa pelo corredor, carregada de fúria, enquanto luto para amarrar um robe sobre
meu corpo.
Da porta, Manon me lança um olhar cheio de desculpas. Agito a cabeça
negativamente, acalmando-a. Enrosco meu braço ao dela para seguirmos Greta
até o andar inferior do casarão.
— Mas o Dragão logo virá e lhe ensinará uma lição! Você não perde por
esperar! — Ela me amaldiçoa.
Greta não é uma ameaça à mentira da Eterna Donzela, jamais me
entregaria — mas adora ameaçar minha liberdade. Alguns anos atrás, junto com
as visões sobre meu mau comportamento, os Deuses lhe deram uma previsão: é
o destino de Elena se tornar a noiva do dragão.
Por mais que eu tente lhe explicar sobre o acordo que fiz com Molgur ser
falso, sua idade avançada e mente confusa a impedem de entender. Estamos
sempre em páginas diferentes dessa história.
— Molgur só desce da montanha quando eu o chamo — digo, tentando
manter a paciência enquanto dou algumas passadas maiores para chegar a ela
antes das escadas.
Deixo Manon de lado e ofereço minha mão. Greta se apoia em mim, seus
dedos frágeis, com unhas longas e meticulosamente lixadas até adquirirem o
formato de garras, entrelaçam-se aos meus. Descemos com cuidado, degrau por
degrau.
— Já disse: seu futuro não vem das montanhas, vem do mar — ela me
corrige. Não sei se os suspiros indicam o cansaço por nossos constantes embates
ou pela dor que a gota causa em seus tornozelos. — E seu desrespeito está
enfurecendo Thalassor. Veja o que apareceu na praia hoje. — Aponta com a mão
livre para algo sobre a mesa da cozinha.
Um calafrio percorre minha espinha, esse nada tem a ver com o frio.
Aproximo-me relutante, aquela parte irracional do cérebro espera
encontrar uma garota com um buraco vazio no peito toda vez que escuta sobre
coisas vindas do mar. Obviamente, isso jamais aconteceria, se uma menina de
Ferroforja fosse achada nesse estado, todos os moradores já teriam sido
convocados, e não haveria nenhum motivo para ser deixada em minha cozinha.
Ainda assim, por mais ilógico e antinatural que seja a ideia, minhas mãos
suam e sou transportada de volta para algum lugar da infância, escondida atrás
dos pilares da Casa de Preparação dos Mortos com meu irmão, enquanto nosso
pai avalia os corpos enviados pelo Povo do Mar.
— Um leme — constato em voz alta, aliviada.
Quebrado, claramente arrancado à força de um galeão. Pela pintura ainda
viva, não deve ter ficado muito tempo à deriva antes de chegar à praia. O estado
fragmentado sugere que foi rompido durante uma batalha.
Meus olhos encontram os de Greta com descrença, ela dirá que Thalassor
derrubou uma embarcação porque o irritei, eu digo que devemos tomar cuidado
com saqueadores do mar, deve haver um bando deles por perto.
— Você sabe que…
— Não tire conclusões sem ouvir Manon primeiro — Greta demanda.
Uma cabeleira ruiva desponta timidamente por detrás dela na escada.
— Me deixem fora dessa briga — Manon encolhe os ombros tentando
desaparecer, mas Greta lhe dá um puxão, arrastando-a até a mesa como uma
testemunha crucial.
— Vamos, diga o que me contou — insiste.
Manon torce a boca numa careta, sua atenção vaga por todos os lados
buscando por uma rota de fuga, e quando não encontra nenhum motivo para se
ausentar da conversa, me lança outro olhar cheio de desculpas.
— Os pesadelos… — ela começa — …aqueles nos quais vejo você se
afogando no mar, estão ficando mais frequentes.
Assim como Greta, Manon é abençoada com a Visão. Alguns poucos em
toda Caldera tem a habilidade de ver o futuro, em geral essa é uma característica
passada de pai para filho. As meninas nascidas com isso são incentivadas a se
tornarem Sábias-Mães, enquanto os meninos dão continuidade à benção.
Os pais de Manon morreram quando ela tinha doze anos, a embarcação foi
atacada por saqueadores. Entre os destroços que chegaram na praia de Ferroforja
estava a menina, agarrada a um baú de roupas por sabe-se lá quantos dias. Um
milagre da vontade de Thalassor. Não sabemos de onde ela veio e sua memória
foi afetada pelo tempo que se desidratou e quase morreu no mar.
Ainda que eu tenha trazido Manon para trabalhar na fazenda desde o
ocorrido e lhe pague um salário, para todos os efeitos sociais sou sua protetora.
O que impede Greta de apenas arrastá-la até a Casa de Oração e forçá-la ao
celibato.
— Não sabia que estava se interessando pelo ofício da Sábia-Mãe,
finalmente sentindo o chamado? — debocho um pouco mais ácida do que
gostaria.
— Eu não consigo controlar isso… — Ela abaixa o olhar.
Manon odeia as visões, elas vêm como pesadelos e terrores noturnos. No
começo não era tão frequente, mas no último ano pioraram bastante, e eu me
pergunto se não estou cometendo um erro ao protegê-la da persistência de Greta.
Diariamente recebo suas intimações de que devo forçar Manon ao ofício, pois
será pior para ela lidar com isso no futuro.
Nunca a obriguei a nada, se Manon prefere aprender comigo a arte da luta,
é uma opção dela.
— Claro que não consegue, porque assim como Elena, passa mais tempo
se divertindo com os prazeres desse lado do véu do que cuidando da passagem
— Greta a repreende. — Os ancestrais te chamam, menina, se continuar os
ignorando, eles começarão a gritar até estourar seus ouvidos!
Sinto pontadas dolorosas logo atrás dos olhos, sei que Greta não quer o
nosso mal. Se quisesse, já teria entregado minha mentira sobre a Eterna Donzela,
eu seria enviada de volta para a Cidade-Mãe, onde meu irmão escolheria meu
castigo por todas as mortes. Então, Manon seria adotada por ela e não teria outra
opção além de seguir o ofício.
Mas não é isso que Greta deseja, ela é a Sábia-Mãe e, para ela, somos
todas suas filhas.
— Por que não tira o dia de folga para ter algumas aulas com Greta? Eu
posso cuidar do trabalho na fazenda sozinha hoje — sugiro e recebo como
resposta uma expressão chocada de Manon.
— Você prometeu que jamais me obrigaria a nada — ela rebate com
mágoa.
Se antes senti culpa por não forçá-la a aprender a lidar com seu dom, agora
sinto culpa por forçar.
— Não estou mandando você fazer um juramento de castidade, só acho
que estamos em um ponto em que não dá mais para ignorar. — Tento explicar;
de nada adianta.
Manon inicia uma longa lista de reclamações, mas é uma boa guerreira,
sabe aceitar ordens. Quando Greta começa a arrastá-la em direção a porta,
protesta verbalmente, mas não a impede.
Greta me lança um olhar de respeito, um pequeno reconhecimento ao que
estou fazendo. Manon vai me odiar por alguns dias, mas é o melhor por agora.
Quando elas já estão quase do lado de fora, faço apenas um último acréscimo:
— Greta, se Thalassor voltar a se intrometer em como eu cuido da minha
vida e continuar enviando pesadelos para Manon, avise a ele para mandar logo
meu prometido. Assim arranco sua cabeça do corpo de uma vez e encerramos
esses maus presságios.
CAPÍTULO 02
____

A tarde se passa numa lentidão quase entediante sem Manon. Em dias


normais dividimos nosso tempo entre as tarefas da fazenda, os treinos com a
espada e as fofocas sobre a vila. A segunda atividade um pouco negligenciada no
último ano, agora que Manon adquiriu o novo passatempo de praticar a
fermentação de Lágrimas no porão.
É cruel exigir que uma garota de dezessete decida o ofício que quer
exercer pelo resto da vida. Eu, com minhas três décadas, ainda não tenho certeza
de como quero estar nos próximos anos. Filhos? Voltar para o exército de meu
irmão? Os dois? Talvez continuar com meus carneiros na fazenda e encontros
escondidos com amantes na calada da noite? Não é uma vida ruim. Eu até gosto
da emoção do perigo de quase ser descoberta.
Ao menos a servidão aos Deuses é algo que posso eliminar da lista.
Manon volta para a fazenda próximo ao anoitecer. Não está tão furiosa
quanto imaginei, mas também não quer conversar comigo, dá a desculpa de que
vai esquentar água para meu banho e corre para dentro da casa. Aproveito o
momento para adiantar a última tarefa do dia.
Para cada guerreiro morto por Molgur há uma lápide em meu quintal. Elas
começam no princípio do cercado que rodeia os pastos e se estendem até o
casarão principal. Entre uma e outra, há um carneiro-de-soay rechonchudo a
dormir. Suas pelagens grossas, cobertas por um sebo fedorento que funciona
como um isolante térmico, garantem sua sobrevivência durante o inverno.
Como o sol estava forte durante a tarde, deixei-os passear um pouco.
Da soleira, levo as mãos em formato de concha até os lábios para chamar
pelos bichos, deixo um canto agudo e espectral sair pela garganta. O kulning,
como as mulheres daqui me ensinaram, imita o som da floresta. É uma técnica
usada para atrair os animais da fazenda de volta; eles associam o chamado
melódico à segurança do rebanho e à proteção dos homens.
Observo satisfeita quando alguns chumaços felpudos emergem das
sombras, se aproximando. Continuo cantando por mais alguns minutos,
garantindo que qualquer carneiro perdido pela mata seja capaz de encontrar seu
caminho de volta.
Paro apenas quando uma voz, tão doce quanto uma flauta, canta de volta
para mim.
Um arrepio sobe pela espinha. Não parece em nada com o som de um
animal conhecido. É a voz de um homem. Apreensiva, dou um passo cauteloso
para fora da casa, chegando até os primeiros degraus da varanda numa tentativa
de enxergar na escuridão da floresta, localizar onde está o estranho.
O vento gélido bate contra minha pele, o robe não me protege das rajadas.
Ainda assim, o frio não me atinge como deveria. A canção parece invadir meu
corpo, me aquecendo de dentro para fora. A melodia é hipnotizante, quase
mágica.
Onde está? Eu quero achá-lo. Quero ir até ele.
— Elena, o banho está quase pronto! — Manon grita de algum lugar do
segundo andar da casa.
O encanto se quebra, a voz some no ar tão repentinamente que parece
nunca ter existido. Olho ao redor assustada. Meus pés descalços afundam na
neve meio derretida, doloridos pelo frio. Percorri dois metros do quintal sem
sequer perceber.
Tento recordar como cheguei até ali ou por que deixei a casa. Penso na
voz, mas a lembrança se esvai à medida que retorno. Assim que piso na soleira,
já não sei sequer o que estava fazendo ali.

— O que você queria me contar ontem à noite durante a vigília? —


pergunto.
Manon preenche a tina com mais uma panela de água quente, o vapor
carrega o odor suave das flores de freixo boiando. Um pouco de suor brota em
sua testa sem rugas, ela o seca com a ponta da manga.
Optei por evitar falar sobre Greta agora, quem sabe mais tarde quando ela
estiver em paz com isso.
— Acho que é o bastante para você começar a se banhar, vou trazer outra
panela. — Tenta fugir, mas eu a seguro pela gola.
— Manon…
— Fred pediu minha mão em casamento — ela vomita as palavras de uma
vez.
— O aprendiz de ferreiro?
Manon agita a cabeleira ruiva em uma confirmação.
— Virá amanhã pela manhã formalizar o pedido para você.
Ah. Ela acaba de receber um pedido de casamento e eu a mandei passar a
tarde em um local que prega o completo oposto. Será que Greta concordaria em
ajudar Manon a controlar a Visão mesmo sem nenhuma chance de ela se tornar
uma Sábia-Mãe?
— Sua expressão não deixa claro se devo te parabenizar ou dar minhas
condolências — constato, ela não parece empolgada.
— Eu não tenho certeza — admite.
— Até sua última atualização, você me disse que o aprendiz de ferreiro
tinha tanta habilidade na forja quanto com a língua na hora de beijar. — Sento-
me na beirada da tina, aproveitando para checar a temperatura da água com a
ponta dos dedos. — Visto que Fred tem recebido convites para praticar o ofício
na Cidade-Mãe, imagino que ele não seja de se jogar fora.
Desfaço o laço do robe, deixando a peça no chão antes de entrar na
banheira. Manon segura minha mão, me ajudando a equilibrar.
— Se fosse apenas isso, minha resposta seria certamente um não — ela
explica. — O problema é que eu estou…
Dou-lhe alguns segundos. Quando a careta desgostosa não se desfaz de sua
expressão, eu mesma termino a frase:
— Apaixonada.
Os seus olhos se arregalam, como se eu tivesse profetizado uma morte
precoce e dolorosa.
— Me diga a verdade, Elena, esse será o meu fim?
Eu me lembro de como eram as emoções no começo, quando o mundo
inteiro ainda parecia empolgante na mesma proporção que era assustador,
esperando por mim para ser explorado.
Foi em um rompante assim que entrei nas montanhas atrás de Molgur.
Uma garota com uma tendência forte ao drama, uma habilidade razoável no
manejo da espada e nenhuma resiliência emocional.
Preferia enfrentar monstros do que confrontar meu próprio coração.
— Do que você está rindo? — ela insiste, um vinco se formando entre suas
sobrancelhas unidas.
— Vá pegar mais água, Manon. Estamos falando de um homem, não de
uma espada no seu pescoço.
Ela deixa o banheiro em passos pesados, o temperamento a faz bater a
panela contra as paredes pelo caminho.
Ouço o som distante da água fervendo no fogão, o estalar suave das
chamas, o crepitar da madeira queimando. Lá fora, o balido agitado dos
carneiros indica uma perturbação, talvez um bêbado atravessou todo o campo até
chegar na fazenda. Ou um lobo, incentivado pela friagem noturna, preferiu se
arriscar invadindo o espaço humano.
Forço um pouco mais os ouvidos, há barulho na vila. Estão comemorando
algo? Uma data e horário estranhos para isso.
— E não é a mesma coisa? — Manon grita da cozinha. — Se homens
fossem bons, você teria se casado!
— Tranque as portas, acho que escutei algo no quintal!
— Não fuja do assunto!
Espero até ouvir a barra de madeira ser encaixada na porta da frente, só
então me permito relaxar. Afundo mais na água, brincando com as pétalas que
flutuam ao meu redor.
— Se fossem de todo mal, eu não teria companhias noturnas. Veja como
um veneno que pode ser tomado em pequenas doses sem ser letal — respondo
ainda meio jocosa, mas Manon não compartilha do mesmo humor.
— Um casamento não me parece uma dose pequena — retruca.
— Você é jovem e ainda pode criar resistência ao veneno.
Espero pela próxima resposta mal-humorada, mas essa nunca chega.
— Não fique brava — grito um pouco mais alto, para ter certeza de que
me escutará de qualquer ponto da casa. — Prometo parar com as piadas, suba
aqui e vamos conversar.
Ser jovem é por essência perder a cabeça para as mais tolas preocupações.
Queria a disposição e corpo da juventude, com a mentalidade de hoje. Teria
tomado decisões mais razoáveis, haveria menos cadáveres no meu quintal.
O silêncio se perpetua por mais alguns momentos, começo a ficar tensa.
— Manon?
Passos pesados sobem a escada, me acalmo. Ela chega até a porta do
banheiro sem dizer uma palavra sequer. A entrada fica atrás de mim, mas não
faço questão de me virar, posso imaginar sua carranca perfeitamente.
— Eu sinto falta dessa emoção do desconhecido, o desafio de desvendar
cada canto do pensamento de alguém e ser igualmente desvendada. — Ergo o pé
para fora da água, há um anel fino de ouro maciço no mindinho, foi presente de
um conde exagerado e passional.
Tento conter o pequeno sorriso ao lembrar. Ele, de joelhos na areia,
segurando meu pé como se fosse algo frágil e precioso. “Será nosso segredo, até
você estar pronta para anunciar ao mundo que é minha, então colocarei um anel
de verdade em sua mão“.
Ele também era jovem, um desejo por tudo o que não pode ter. Contei-lhe
a verdade sobre Molgur e ele prometeu esperar até eu lhe dar a espada. Dei
muitas coisas para ele, incluindo meu amor, mas nunca a espada.
A parte triste é que, às vezes, preciso me esforçar para lembrar seu nome.
Era… Aric. Aric do Coração de Aço.
— Por que está demorando tanto com a água?
Manon se aproxima, despeja a bacia atrás de mim. A água quente forma
uma cascata reconfortante contra meus ombros. Fecho os olhos, aproveitando
cada segundo enquanto a tensão escorre.
— Se não tem certeza, diga a verdade para Fred. Ele vai entender e esperar
até você estar pronta. Se não esperar, então você estará se livrando de um traste.
Sigo sem resposta. Não fico brava com seu tratamento silencioso; eu
também não escutava conselhos alheios quando tinha sua idade. É muita coisa
para processar, decisões importantes que podem afetar o resto de sua vida. Sinto
pavor só de me imaginar no seu lugar.
— Antes de ir pegar mais água, aperte um pouco aqui. — Dou algumas
batidas nos ombros doloridos. — Ainda temos arnica selvagem? Se você estiver
com dores também, podemos fazer um chá forte de alecrim.
Puxo meus cabelos para frente, expondo a nuca. As mãos de Manon não
vêm de imediato. Está tão furiosa assim comigo? O barulho na vila fica mais
alto, o que antes era apenas um reverberar, agora posso discernir como uma
gritaria. O que está acontecendo?
— Você está… — Quando tento me virar para encarar Manon, uma de suas
mãos segura com firmeza meus cabelos na altura da nuca.
Ela empurra minha cabeça, me obrigando a inclinar todo o tronco para
frente. Então, com os nós dos dedos, pressiona a base da minha coluna e sobe a
pressão por toda a extensão das costas, até chegar na altura dos ombros. O
movimento vai liberando cada um dos pontos de tensão pelo caminho; é meio
doloroso, mas traz um alívio que me faz suspirar.
A sensação prazerosa não perdura, pois um pensamento me faz contrair
todos os músculos das costas novamente: apenas uma mão experiente teria um
toque assim.
Essa não é a mão de Manon.
Os gritos de socorro na vila ficam mais altos e claros. No andar de baixo,
algo cai com um baque surdo contra o chão.
— A casa foi invadida por saqueadores! Fuja, Elena! — Manon grita de
um lugar distante.
Aqueles dedos experientes, antes na nuca, envolvem meu pescoço. É a
mão grande e firme de um homem. Ele testa o aperto contra a minha garganta,
tira meu fôlego por um momento enquanto seu rosto chega até a altura de minha
orelha para dizer:
— Se você se comportar, será apenas uma conversa.
Em meio a todo o cenário catastrófico, um detalhe rouba a minha atenção:
a voz dele é melodiosa como as ondas batendo no rochedo.
CAPÍTULO 03
____

— Eu ficaria mais confortável em ter essa conversa vestida.


O indicador pressiona minhas cordas vocais, dificulta a respiração, mas
não sufoca. Tento puxar o ar em respiros lentos e longos para manter a calma,
meus seios sobem e descem, parcialmente cobertos pela água. Posso sentir o seu
olhar, sua própria respiração se torna ruidosa.
— Eu posso confiar que não tentará fugir no instante em que te libertar? —
As palavras batem em sopros quentes contra meu ombro molhado.
— Você me pegaria antes de eu conseguir saltar pela janela.
— Você é uma das espertas, não é?
Assim que ele se afasta, giro o corpo dentro da tina para observá-lo
melhor. A figura imponente de quase dois metros de altura veste preto da cabeça
aos pés, um traje elegante composto por um pesado sobretudo de lã escura,
camisa bufante e calças largas enfiadas dentro das botas de bucaneiro.
Não são roupas novas, talvez até um tanto gastas pelo sal da maré. Mas seu
porte requintado e ombros largos lhe garantem uma aura nobre que poucos
homens conseguem conquistar.
Em sua cintura repousa uma rapieira dentro da bainha, e passo tempo
demais encarando a região. Isso arranca um riso baixo e rouco dele, o qual faz
meu estômago se contorcer. Mesmo libertada do aperto de sua mão, não consigo
respirar direito, algo em sua aparência me inspira um terror primitivo
Ergo finalmente a atenção para seu rosto encoberto por uma máscara. Dois
chifres pequenos emergem da porcelana escura e combinam perfeitamente com
seus olhos de jaspe bruto, meio inchados e sonolentos, como se viver lhe desse
uma constante ressaca.
É um demônio do mar. As águas estão cheias deles; saqueadores, homens
que não reconhecem a supremacia de meu irmão sobre Caldera, então se
refugiam no reino de Thalassor.
— Manon está bem? — pergunto.
— Por enquanto, sim. — Ele dá de ombros em um movimento calculado.
— E a vila?
A resposta não vem de imediato, os gritos distantes são um péssimo sinal.
Em Ferroforja temos ótimos ferreiros, os minérios são vastos nas montanhas ao
redor, mas poucos aqui dominam a arte de guerrear.
Não costumamos sofrer muitas invasões. Apesar do porto, o comércio é
fraco, não há muito interesse para os saqueadores. No passado, alguns desses
ataques foram direcionados a me sequestrar para demandar um regaste do meu
irmão. Demônio do Mar está atrasado alguns anos se for esse seu interesse.
— Quanto antes você responder minhas perguntas, mais cedo partiremos
— ele explica.
— Essa confiança entre nós inclui alguma privacidade?
Lanço um olhar para minhas roupas dobradas sobre a pia, tanto o pijama
que ia colocar quanto o traje que estava usando durante a tarde. Quando retorno,
a atenção dele ainda está colada em mim, tão intensa que posso sentir como um
toque quente contra a pele.
Demônio do Mar me dirige um aceno cortês, inesperado para um fora da
lei. Seus cabelos de cachos de um cobre queimado caem na frente da máscara e,
por um momento, quando nossos olhos se encontram, ele parece sério demais,
quase cruel.
Confiante de dominar a situação, ele se vira de costas. Só então sinto o
aperto na garganta desaparecer, consigo respirar uma longa golfada. Meu
coração ainda bate forte contra as costelas, houve um tempo em que situações
perigosas eram mais comuns, estou desacostumada.
Em passos cautelosos deixo a segurança da tina. Sem tempo para me secar,
apenas envolvo o corpo com a toalha.
— Posso saber sobre o que é essa conversa? — Jogo uma túnica depressa
por cima da cabeça, o tecido se embola pelo corpo molhado. Bate só até os
joelhos, mas é o suficiente por agora.
— Estou procurando por alguém.
Vasculho as roupas que usei durante a tarde, no meio delas está Chama
Viva, uma adaga de lâmina curva e forjada em Prata Negra. Foi um presente de
meu irmão quando atingi idade para me casar. “Quando eu não estiver presente
para defender sua honra, Chama Viva fará isso por mim“, ele disse.
— Quem?
Em passos ligeiros, começo a me aproximar dele.
— Um dragão.
Paro no meio do caminho.
Molgur?
No começo do inverno o dragão veio recolher sua última oferenda de
ovelhas. Antes de partir, deixou a espada de meu pai comigo até o verão —
agora escondida debaixo do colchão. Ainda levou dois animais extras nas garras
como juros, uma desculpa torta sobre como faria a viagem mais longe de sua
vida esse ano.
Criatura preguiçosa, está deixando de ser uma fera e se tornando um vira-
lata.
— Precisa de ajuda para se vestir? — Ele bate o pé impaciente no chão,
percebe minha demora.
— Você sabe como amarrar um espartilho? — Tento ganhar tempo.
Fico parada logo atrás de Demônio do Mar, por um breve momento
atrapalhada com a movimentação. Como era mesmo uma emboscada? Primeiro
ia a mão direita com a adaga no pescoço e depois a esquerda para imobilizar o
braço ou era o inverso?
— Sei como tirá-los, não seria apenas fazer o processo reverso?
O riso debochado balança seus ombros largos e me faz revirar os olhos. É
o bastante para me dar o impulso de atacar: passo os braços ao redor de seu
corpo, ficando na ponta dos pés para pressionar Chama Viva contra seu pescoço.
Isso. Primeiro a esquerda para imobilizar. É como aprender a andar a
cavalo, uma memória mecânica que perdura por anos.
— Sem movimentos bruscos, Demônio do Mar — sussurro em seu ouvido.
Seus cabelos de cobre roçam minhas bochechas, tem cheiro de uma
mistura de sal das águas e o âmbar de lâmpadas queimadas. É agradável de uma
forma inesperada. Observo seu pomo de Adão subir e descer antes de ele inclinar
a cabeça ligeiramente para me encarar de canto.
— Degolar, transar e beber, é como vocês gostam de lidar com tudo, não
é? — Notas de um desprezo evidente dançam em um sorriso falso.
— O que disse?! — Pressiono com mais força a lâmina.
Meus seios tocam suas costas em uma posição quase íntima. Mesmo a lã
grossa do casaco não é o bastante para ocultar a sensação de proximidade. Sei
que ele também sente, pois encontro algo ardente em seus olhos, inspira desejo,
mas também medo.
— Conseguiu um bom preço pelas escamas de Molgur ou apenas se
cansou de explorá-lo?
— Do que você está falando? Eu e o dragão temos um acordo.
— Um acordo coagido anos atrás com a espada no coração dele, não é?
Típico do Povo do Ferro.
Povo do Ferro. É como os habitantes das ilhas do sul costumam nos
chamar, aqueles que conhecemos como Povo do Mar.
Meu coração dá um solavanco; aperto o cabo de Chama Viva com mais
firmeza. Talvez Demônio do Mar não seja um mero saqueador. É a primeira vez
que encontro um sireno cara a cara, isso se ele estiver dizendo a verdade.
Não vou pagar para ver, o pânico me impele a contar sua garganta antes
que comece a cantar, mas é tarde demais, algo trava todos os músculos do meu
braço.
— Não tente, donzela… — A canção vem graciosa, flutua pelo ar como
uma nuvem de açúcar fino.
Tudo fica... estranho. Minha visão se turva por um momento, os gritos na
vila parecem ainda mais distantes. Sinto um arrepio na espinha, um estado quase
febril vai tomando todo o meu corpo. O cabo da adaga escorrega levemente da
minha mão suada.
Tento reagir mas a canção dele continua, envolvendo-me como uma bruma
espessa.
— …meu coração roubar.
— Pare com isso! — ordeno, minha voz soa mais fraca do que gostaria.
Ele ri suave, um som que reverbera em meus ossos. O sorriso cruel
aumenta, meio charmoso, meio assustador. Sua mão segura a minha, primeiro
para me obrigar a soltar a adaga de uma vez, depois para entrelaçar os dedos nos
meus e girar nossos corpos.
— Sou do mar e do meu lar. — Seus olhos me aprisionam mais do que sua
força. Não consigo parar de encará-lo, imaginar como é seu rosto por baixo da
máscara.
Algo me diz que será o homem mais bonito que já vi. Uma bela forma de
morrer.
É como dizem as lendas, sua canção me faz queimar e sufocar. Uma brisa
vinda das frestas da janela bate contra o tecido molhado em mim, mas não é o
bastante para acalmar minha pele. Cada centímetro formiga de forma
insuportável, só encontrando alívio quando ele pousa a mão em minha cintura,
conduzindo-me até a parede.
O toque da pedra fria contra minhas costas é um alívio breve e
insuficiente. Suspiro alto, observando, quase hipnotizada, enquanto ele desenrola
calmamente uma corda do cinto. Deveria estar com medo, mas a canção me
mantém em um estado letárgico. A única coisa que não parece calma em mim é
uma leve contração no baixo ventre a cada movimento dele.
De forma perturbadora constato que desejo tanto ser tocada por ele que
poderia implorar.
— … nunca vou me afastar.
Ele une meus pulsos à minha frente, os nós são precisos, amarrados com a
habilidade de um marinheiro experiente. Ele dá um puxão firme, garantindo que
as amarras estejam seguras.
— Quero ver seu rosto, Demônio do Mar. — Me sinto mortificada por
falar isso em voz alta.
Ele balança a cabeça em negativa, uma provocação cruel enquanto se
aproxima, seus lábios finos pairando a um sopro dos meus. Sinto minha cabeça
girar, a respiração dele rouba todo o meu ar. Queria tanto beijá-lo, apenas para
recuperar um pouco do fôlego que ele tirou de mim.
— Se me deseja tanto, venha mergulhar…
Está bem. Eu me inclino para frente, tentando capturar sua boca, mas ele
me empurra de volta para a parede. Uma mão vai até minha cintura, a outra
ergue meus braços até estarem esticados e acima da minha cabeça.
— …para as profundezas vou te levar. — As últimas notas vêm mais
lentas e, quando ele acaba, uma dor de cabeça monstruosa me atinge, como uma
faca atravessando meu cérebro.
Fecho os olhos, a bruma desaparece, mas preferia antes, quando não
conseguia compreender com exatidão o que estava acontecendo. De volta a
realidade sou uma mistura de dor, vergonha e medo.
Ele me dá alguns instantes para me recuperar, volta a falar apenas quando
o encaro.
— Onde está o dragão? — Sua voz é menos amigável e gentil agora que o
açúcar da melodia se dissipou. — Morto?
— Eu não sei, acredite em mim.
— Tanto quanto eu acreditei que poderia te dar privacidade?
Sua máscara oculta as expressões, me incomoda não poder lê-lo. Estou
vulnerável em minha túnica fina e molhada, exposta enquanto ele cobre até
mesmo suas emoções.
A mão em minha cintura desliza até o laço frouxo no decote, expõem o
espaço entre meus seios com facilidade. Entro em pânico quando ele desce o
indicador áspero com lentidão até o centro.
— O que está fazendo?!
Ele faz pressão com a ponta do dedo seu rosto mortalmente sério.
— Talvez você fique mais maleável depois que eu tirar seu coração.
A porta do banheiro explode quando Manon entra em um rompante
furioso, ela é uma bagunça ruiva gritando com uma espada. Gira a cabeça de um
lado para o outro procurando por mim.
— Elena! — grita ao me ver.
Sem dar oportunidade para diálogo, avança em direção a Demônio do Mar.
Ele liberta meus braços, afastando-se em um movimento ágil para desviar do
golpe. Minhas pernas bambas me fazem cair no chão de joelhos, tateio o piso
procurando por Chama Viva e ergo a atenção a tempo de ver o invasor desferir
um chute no abdômen de Manon.
Ela se desequilibra, atingindo a parede oposta. É minha vez, não lhe dou
tempo de se recuperar, com os pulsos ainda amarrados consigo lançar a adaga
em sua direção. Demônio do Mar a percebe segundos antes do impacto,
consegue se mover a tempo de sair apenas com um corte na altura do queixo.
O ferimento não sangra, ele queima como se a lâmina estivesse quente
pela brasa e uma cicatriz no formato de meia lua é deixada para sempre no rosto
do invasor. Esse é o efeito da Prata Negra contra o Povo do Mar, ela cauteriza
suas peles.
— Covarde! — grunho quando ele chega na porta do banheiro.
Demônio do Mar interrompe sua fuga, por um breve momento seu olhar
escuro e ambíguo me captura. Posso sentir as brumas retornando nos cantos da
minha mente.
— Nos encontraremos em breve, Eterna Donzela.
Depois de sair, a porta do banheiro é trancada do lado de fora.
Manon e eu até tentamos derrubá-la, mas ele é esperto ao arrastar móveis
para bloquear a passagem. Por um tempo tentamos forçar passagem e gritamos
ameaças em vão, quando, por fim, arriscamos escapar pelas janelas, é tarde
demais. A casa está revirada pelo avesso.
E o Demônio do Mar?
Desaparecido.
CAPÍTULO 04
____

Sento ao lado de Greta, ela está de olhos fechados. Sei que não dorme, pois
seus lábios enrugados se movem ligeiros, murmurando uma oração silenciosa
que pede proteção.
Os mais velhos de Ferroforja se acomodam pelas mesas remanescentes da
taverna. Grande parte da mobília foi destruída durante o ataque, e o chão ainda
está pegajoso pelos tonéis de cerveja que se quebraram na batalha. Uma brisa
fria vinda do mar carrega a bruma da manhã pelas janelas quebradas e nem
mesmo o fogo aceso na lareira é o bastante para aquecer o que restou do lugar.
Esfrego meus dedos uns nos outros, tentando aquecê-los. Normalmente,
neste horário, o cheiro da fumaça da forja já está forte, mas nenhum ferreiro está
trabalhando hoje. Toda a vila está dedicada a se ajudar, as fornalhas tiveram seus
metais substituídos por massa de pão. O cheiro flutua pelo ar junto da bruma e
meu estômago ronca, lembrando-me de que não comi nada desde a comoção no
banho.
Escuto murmúrios pela taverna sobre como a bebida foi roubada, um golpe
duro para a moral de Ferroforja. Após um longo inverno, todos esperam por um
reencontro caloroso, regado a álcool e extravagância em comida.
Lothar se aproxima de nós, a barba desgrenhada parece mais cinzenta e
seus olhos estão carregados de preocupação. Ele é o jarls, responsável por
Ferroforja, nomeado pela Cidade-Mãe alguns anos atrás para monitorar esta
região do litoral. Hoje, com os cabelos mais grisalhos do que ruivos, deixou para
trás todos os maneirismos e pomposidades da realeza. Assim como eu, este lugar
parece ter moldado sua essência.
— Como estão todos? — pergunto.
— Alguns feridos, muitos suprimentos saqueados — ele responde,
colocando o livro de registros sobre a mesa com um suspiro pesado. O lápis de
carvão deixa manchas escuras na ponta do indicador trêmulo.
Nenhuma morte? Por que eles tomariam esse cuidado?
Greta encerra a prece a tempo de segurar a mão de Lothar. Seus dedos
enrugados pelo tempo se entrelaçam com os dele — é o máximo de contato com
um homem que ela se permite.
— Ficaremos bem — diz firme.
Lothar lhe dirige um sorriso grato e devocional. Embora Greta nunca tenha
correspondido aos seus sentimentos, ele continua a esperar por ela. “Teremos a
eternidade para amar quando seu tempo de servidão na terra se encerrar”, eu o
ouvi confidenciar a ela certa vez, ambos embriagados numa noite sem lua.
É irreal e… bonito. A servidão de Greta só acaba quando ela morrer,
Lothar promete um amor do outro lado do véu. Ainda que mórbido, quando vejo
os dois em seus flertes tímidos, algo dentro de mim parece comovido, ao mesmo
tempo em que ferido pela inveja.
— Os ancestrais nos protegeram do pior, não foram tantos suprimentos
assim. — O olhar de Greta vaga pelo caderno aberto de Lothar.
Na verdade, foram. Mas ela não sabe ler, assim como a maioria. Metade da
folha preenchida com rabiscos lhe parece pouco, mas entendo o suficiente das
letras para ver a extensão do problema.
Forço os olhos, demoro um pouco em algumas palavras, mas encontro
diversas vezes um: estoque insuficiente.
Fiquei muito tempo sem praticar; tempo demais sem lutar, tempo demais
sem ler. A rotina pacífica dos últimos anos me deixou preguiçosa: cuidar da
fazenda, beber com os marinheiros, apartar dramas cotidianos. Sou como
Molgur, costumava ser um dragão, agora estou mais para um vira-lata.
Degolar, transar e beber é como seu povo gosta de resolver tudo.
Uma faísca de ódio me faz apertar os punhos.
— Levaram os carneiros?
— O que disse? — Pisco duas vezes antes de voltar a atenção para Lothar.
— Os saqueadores levaram algo da fazenda?
— Não. Os carneiros estão bem — confesso com alguma culpa. — Manon
ainda está checando o que foi roubado da casa, mas por enquanto não demos
falta de nada.
As moedas, as joias, as espadas no armazém, nada foi levado. O maior
atentado na noite passada foi ao meu orgulho. Flashes voltam à mente de tempos
em tempos, são incômodos e fazem meu corpo formigar em um desejo que não
quero sentir, um provável efeito colateral da canção do sireno.
Penso se devo contar para Lothar a estranha conversa com Demônio do
Mar, mas acho que ainda não sabem que a vila não foi invadida por saqueadores
comuns.
— Graças a Thalassor! — Greta roga ao mar.
Ela lista para Lothar os danos na Casa de Oração, nenhuma estatueta
sobreviveu para as festividades deste ano. Nem mesmo as de cobre barato foram
poupadas do assalto.
Várias edificações foram abaladas durante a invasão, precisam ser
consertadas antes da chegada das chuvas de verão. Ofereço para Greta ficar
comigo e Manon na fazenda, a casa é grande e há quartos suficientes para
abrigar mais moradores da vila.
Lothar ainda fala com outros presentes antes de iniciar a reunião. Apenas
os nascidos em Ferroforja com mais de setenta anos são permitidos no conselho
da vila. Não me aplico a nenhum dos dois pré-requisitos — tenho apenas três
décadas e cresci na Cidade-Mãe. Estou aqui por um motivo específico, que
Lothar não demora a revelar:
— Elena, precisamos que você peça mantimentos ao seu irmão — ele diz,
assim que a assembleia se inicia oficialmente. — Os cofres de Ferroforja não
possuem o necessário para pagá-lo, mas podemos enviar nossos melhores
ferreiros para ele durante a próxima temporada.
— Não se preocupe, será o bastante. A colheita deste ano foi boa e os
preços em Caldera estão baixos — minto, planejo sacrificar as joias na minha
penteadeira para cobrir o que faltar. — Sugiro guardar parte das moedas para
reformar a taverna. É importante manter a moral alta em momentos como esse.
O comentário arranca alguns sorrisos gratos. Passo a atenção
individualmente por cada um deles; rostos cansados que sobreviveram ao
inverno rigoroso e que tinham a certeza de que o pior já havia passado. Sou grata
que estejam todos vivos, mas meu coração está cheio de ódio por vê-los passar
por mais um desafio — como se as mortes recentes pela neve não tivessem sido
o bastante.
Se Demônio do Mar surgir novamente em meu caminho, eu juro que vou
degolá-lo dessa vez.
— A jovem Manon ainda se aventura nas artes da fermentação? — Ivar
interrompe a reunião.
Alguns anos atrás, Manon fez uma série de tentativas para se tornar sua
aprendiz, todas recusadas. Ivar gosta de mulheres apenas no salão da taverna,
mas não em sua cozinha. Todos os mestres da fermentação recebem a benção de
um Deus da Guerra e, por tradição, a primeira bebida que aprendem a preparar
— muito antes da cerveja ou do hidromel — é a que honra seu patrono. O
Sangue de Shahar, o Elixir de Phosius ou as Lágrimas de Thalassor.
Dentre as três, as Lágrimas são as menos populares em Caldera. Seu sabor
salgado e cheiro ferruginoso, devido a fermentação das algas em barris de ferro,
assustam à primeira vista. Seu preparo é o único permitido a mulheres, Phosius e
Shahar, assim como o velho Ivar, não querem mulheres em seus campos de
batalha.
— Acho que temos três ou quatro tonéis de Lágrimas prontos para
consumo no porão.
Ivar grunhe, tenta esconder seu interesse, mas os dedos impacientes
tamborilando na mesa o traem. Mesmo velho, seu porte corpulento deve ter dado
trabalho para os saqueadores, o lado direito de seu rosto carrega agora
hematomas de um roxo escuro, seu olho está tão inchado que mal consegue se
manter aberto.
Sustento o silêncio que vem a seguir. Minha paciência, abalada pela
lembrança de Demônio do Mar, corta a diplomacia pela metade. Não vou
oferecer os tonéis de bom grado; se Ivar quer a bebida produzida pelas mãos de
uma mulher, terá que dar o braço a torcer.
— Quantoquerporeles? — A pergunta sai entre dentes, quase
incompreensível.
— Não entendi — finjo apenas para provocar.
— Quanto quer por cada tonel, mulher? — ele explode, com sua paciência
tão curta quanto a de um baiacu, e bate um punho fechado na madeira.
— Ensine Manon sobre a fermentação da cerveja e os tonéis são seus.
— Não permito mulheres em minha cozinha — responde cheio de
teimosia.
— Então espere até chegar o carregamento de suprimentos de Caldera. —
Dou de ombros. — Isso se eles enviarem bebida.
O grito agudo e repentino de uma dupla de gaivotas nos faz pular nas
cadeiras. Elas acabam de entrar pela janela e brigam entre si por uma pilha de
destroços, procurando por objetos brilhantes para decorar seus ninhos.
— É o que farei — Ivar resmunga a contragosto, então se levanta de
supetão e corre em direção a janela, cada baque de seus pés enormes parecem
tremer a estrutura abalada da taverna. — Saiam daqui, ratos de asas!
Oportunistas nojentos!
Uma pontinha de culpa regada à pena me faz decidir que mais tarde
mandarei os tonéis sem dizer nada. Não quero ser como duas gaivotas brigando
por migalhas de lixo. Depois de passarmos por isso, haverá outros momentos em
que Ivar poderá aprender uma lição.
Lothar retoma a reunião, mas nenhum dos assuntos está dentro de minha
alçada. Conversam sobre quais regiões da vila terão prioridade na reforma, a
realocação de moradores desabrigados e se as festividades do final do inverno
serão adiadas.
A conversa se estende por toda a manhã, repleta de discordâncias. Quando
o sol já está alto no céu, eles decidem parar porque o ronco dos estômagos
famintos atrapalha a discussão. Ofereço mais uma vez a fazenda para receber
quem for necessário, Lothar agradece e se esquiva do assunto. Minha casa fica
longe demais da vila e próxima demais das montanhas onde Molgur fica durante
a primavera. Ninguém em sã consciência quer ficar lá, nem mesmo Greta.
Ainda assim, mantenho meu convite aberto.
A assembleia se encerra com um único tema em unanimidade: as
festividades não poderão ser adiadas. É importante para a moral depois de um
inverno tão longo que levou vidas. Neste momento, os olhares se dividem entre
mim e Ivar. Uma taverna abastecida é essencial para as festividades.
Ivar me encara, tenta jogar toda a pressão em mim. Cruzo os braços na
frente do corpo, orgulhosa demais para voltar atrás na frente de todos. Lothar se
dá por vencido e dispensa a assembleia, comentando algo sobre como, de
estômago cheio, talvez fiquemos mais amigáveis. Já estou próxima da saída
quando Ivar me alcança. Seu corpo enorme projeta uma sombra sobre mim.
— Apenas a fermentação da cerveja e nada mais. Não aceito uma mulher
como aprendiz — ele cospe a resposta.
Contenho o sorriso, é por isso que amo Ferroforja. As pessoas aqui são
diferentes da Cidade-Mãe.
— Ótimo, pedirei a Manon que venha vestindo ceroulas e calças para você
se sentir menos intimidado — brinco, mas ele não está pronto para compartilhar
do mesmo humor pela situação.
Ivar me lança um olhar irritado antes de se virar e voltar para o fundo do
bar, amaldiçoando-me por todo o caminho. Espero até ele desaparecer pela porta
da cozinha para começar a rir.
Mal posso esperar para contar a Manon.
O calor do sol do meio-dia aquece os ossos depois de tanto tempo na
taverna fria. No horizonte, o mar brilha como se estivesse cheio de diamantes,
faz um contraste bonito com os picos congelados nos telhados, os quais vão
pouco a pouco derretendo e formando pequenos riachos pelas ruas.
Mais algumas semanas e toda a neve terá descongelado.
Soren está ajudando em um dos estandes de comida, o cheiro dos filetes de
peixe fresco na grelha me fazem salivar. Há uma longa fila esperando pelo
almoço, homens e mulheres que passaram o dia inteiro cuidando dos reparos.
Será mais rápido preparar algo para comer na fazenda do que esperar aqui,
mas Soren acena para mim e faz um gesto pedindo para que eu espere. De forma
discreta, ele envolve dois filetes generosos em folhas de couro antes de correr na
minha direção.
— Você parece radiante — ele diz, um sorriso suave nos lábios.
Está vestido com a camisa de linho azul que lhe dei de presente no outono
passado, na época achei que combinava de forma encantadora com seus olhos
azul-acinzentados. E o tecido tinha um bom caimento nos músculos, formados
pelo trabalho constante na forja, deixando-o ainda mais tentador.
Hoje, seus olhos parecem um pouco pálidos, até sem graça. Um
pensamento pertubador me ocorre: teria mais interesse se seus fossem escuros
como pedra de jaspe negro.
— Sinto que tenho vinte anos de novo e acabei de derrubar meu primeiro
gigante — brinco numa tentativa de afastar eu mesma do pensamento sobre os
olhos do sireno e trazer de volta a discussão com Ivar.
— Daria uma ótima história, por que não a cria? As meninas da vila iriam
gostar.
Não seria preciso inventar. Dez anos atrás, de fato, matei um gigante, mas
o feito se perdeu e ninguém mais lembra. Quando falam sobre mim, naram sobre
todos os guerreiros derrotados por Molgur, nunca sobre meus atos heroicos.
Isso é o que acontece com as histórias que não são contadas: elas são
devoradas pelo tempo.
Ser subestimada é irritante na mesma proporção que conveniente. No
passado, um comentário como esse me faria perder a paciência em instantes,
hoje respondo com um sorriso político. Se souberem demais, começam a
questionar: Se já derrotou um gigante, por que não derrota um dragão? Por que o
Senhor de Caldera não faz nada pela irmã mais nova amaldiçoada?
Porque eu não quero. Gosto daqui, gosto da minha vida pacífica, meu
casebre e minhas ovelhas.
— Estava preocupado com você — ele diz, entregando-me o pacote com
os filetes de peixe. — Quando começou a invasão, tentei ir até a fazenda, mas as
coisas aqui estavam caóticas.
— Não se preocupe. Manon e eu ficamos bem, protegemos uma à outra.
Nossos dedos se tocam quando pego a embalagem quente e, por alguns
momentos, ficamos em um silêncio confortável. O segredo me empolga, saber
que esse toque não é acidental. E o gosto pelo perigo me faz deslizar a mão por
seu antebraço com lentidão, a pele dele se arrepia, ambos sabemos o que estou
pensando.
Soren olha ao redor, procura em vão por um espaço onde teríamos alguma
privacidade. Os Deuses sabem o quanto eu poderia fazer bom uso de uma
atividade física para liberar a adrenalina da noite passada, mas não estão
benevolentes a esse ponto. Na fila do estande, algumas pessoas começam a
reclamar, e sei que não vai demorar para alguém iniciar uma discussão com
Soren.
— É melhor você ir. Também preciso voltar para a fazenda. — Rompo
nosso breve contato.
— Tenho um assunto para discutir com você. Podemos nos encontrar
amanhã?
— Claro, à meia-noite no lugar de sempre?
Ele nega com a cabeça, um sorriso indecifrável nos lábios.
— É um assunto que gostaria de discutir em um horário normal.
— Passe perto da hora do almoço, então. — Algo me traz um
pressentimento ruim. — Devo ficar preocupada?
— São boas notícias. — Mais uma vez, ele abre aquele sorriso que não
revela suas motivações.
Nos despedimos com um aceno. Durante todo o caminho de volta para
casa fico tentando pensar no que Soren pode querer comigo sem envolver nosso
segredo. Não há muito amor entre nós, apenas paixão, somos como bons amigos
que sabem como satisfazer um ao outro.
Talvez uma conversa sobre a manutenção dessa amizade? De fato, não
temos passado muito tempo juntos vestidos.
O fedor pungente dos carneiros-de-soay no sol quente é o primeiro sinal de
que cheguei à fazenda. O cheiro me atinge em cheio, junto com uma lufada de ar
marítimo. A casa fica a alguns quilômetros de um precipício, e pela distância que
temos da vila, o ar aqui é mais fresco, não tão carregado da fuligem das forjas.
Eu costumava odiar esse cheiro dos animais, mas hoje acho até
revigorante. Acelero o passo para encontrar Manon, que vem ao meu encontro
com uma viga de madeira nos ombros, pronta para consertar o cercado.
Enquanto a ajudo, conto em detalhes a conversa com Ivar, fazendo longas
pausas para rir de seus palavrões e comentários exagerados.
— E qual foi a reação deles quando você contou sobre os sirenos? — ela
pergunta, me passando um prego.
Posiciono-o sobre a madeira, mas não começo a martelar.
— Ainda não contei. Vou falar primeiro com meu irmão sobre isso. —
Não espero pela enxurrada de perguntas, já adianto. — Você não é daqui, não
passou por isso. Mas, quando eu era criança, as pessoas tinham muito medo de
que o Povo do Mar estivesse escondido entre nós. Eu tinha uma babá, não sei
por que ela foi acusada, mas foi.
Ferroforja é diferente. Greta conta histórias sobre Thalassor e as crianças
são desde cedo ensinadas a respeitar o mar, garotas não aparecem aqui com
buracos no peito. Na Cidade-Mãe elas vinham boiando pelos córregos que
estavam conectados ao mar. Meninas jovens e mulheres maduras, nenhuma era
poupada.
Até meus oito anos tive a porta do quarto trancada todas as noites, não
pelo medo de que algo entraria, mas para garantir que eu não seria seduzida a
fugir por um canto de sireno. Às vezes, eu conseguia ouví-los durante as horas
mais escuras, bem baixinho, um sussurro carregado pelo vento. Nunca saberei se
era imaginação ou realidade, mas toda vez que pensei escutá-los, mergulhei em
tinas de água gelada ou cortei a palma da mão com facas. O truque era manter a
mente atenta e acordada para não se deixar seduzir.
— E o que fizeram com ela?
— Afogaram. Se ela sobrevivesse, pertencia ao Povo do Mar. Se morresse,
então era uma de nós.
Manon parece mais confusa do que chocada.
— Isso não faz sentido.
— Pessoas assustadas tomam medidas desesperadas.
Começo a martelar a cerca para interromper nossa conversa. Essa é uma
história ruim, real demais, revela a natureza sombria dos homens. Se eu quiser
perder minha fé em Caldera, basta revisitar minhas memórias. Prefiro as coisas
como são hoje, com histórias de esperança.
Após terminarmos o conserto da cerca, voltamos para o casarão para
almoçar os peixes que Soren me deu. Acompanho Manon até a cozinha e
observo como grande parte da casa já está arrumada.
— Descobriu se algo foi roubado? — pergunto.
— Nada que consiga lembrar — ela comenta, abrindo os armários da
despensa para checar o que temos. — Você não deu falta de nenhum pertence
pessoal seu?
Ergo os ombros.
— Não dei, mas não é como se fizesse diferença. Não tenho nada de
importante que valha a pena ser rou... — Paro a frase no meio, lembrando da
única coisa que realmente faria diferença.
O único objeto que Manon não sabe que está aqui, porque deveria estar em
uma montanha sendo protegido por um dragão.
Corro escadaria acima, direto para o meu quarto. Mergulho por debaixo da
cama, erguendo o colchão e desmanchando todos os lençóis. Vasculho cada
canto, quase rasgo o estofado, mas não está lá.
A espada lendária de meu pai foi roubada.
CAPÍTULO 05
____

Tem algo errado com a lua cheia refletida na água.


É brilhante demais, quase falsa. Algo no fundo da minha mente se
incomoda com isso, mas ignoro a sensação.
A brisa pegajosa da praia deixa meus cabelos grudados nas bochechas, e
não consigo me concentrar em mais nada quando preciso me agarrar aos musgos
nas formações rochosas, tomando cuidado para meus joelhos não escorregarem
enquanto permaneço na beira da enseada.
— Me deixe ver seu rosto! — Demando, agitando os braços no ar, como
uma criança impertinente tentando alcançar algo proibido.
O sireno está submerso até o queixo, poucos metros de distância nos
separam. Não sei dizer o que me irrita mais: sua máscara demoníaca cobrindo o
rosto ou o sorriso debochado ao desviar com facilidade.
Ele mergulha para as profundezas, desaparecendo na água escura do mar.
Por alguns momentos, fico ali sozinha, observando o ponto onde ele afundou
sem conseguir ver o que está fazendo. Quando emerge novamente, traz algo
brilhante nas mãos: uma espada.
Minha espada.
Apesar de a arma possuir um formato antigo e pouco usual para os dias de
hoje, está reluzente e bem cuidada. Eu a lustro todo inverno, sabendo que
Molgur terá pouco cuidado com ela no verão. Uma dor profunda toma meu peito
ao ver a arma em contato com a salmoura. Se não for devidamente seca e limpa,
os pequenos ornamentos no cabo vão enferrujar.
— Covarde! Você a roubou!
Ele ri com desprezo e agita o objeto no ar, cheio de uma diversão maldosa.
Permaneço onde estou, ainda mais irritada. Parte de mim quer desesperadamente
avançar e pegar a espada de volta, mas a outra parte sabe que é exatamente o que
ele quer, está a usando como isca para me atrair.
— Terá que fazer melhor do que isso — respondo com desdém, tentando
mascarar o nervosismo em minha voz.
Os olhos inchados e sombrios dele brilham com o desafio, a espada
desaparece novamente no mar. Antes que eu possa protestar, ele avança veloz até
a beirada. Vai me arrastar a força. Preparo-me para o pior, finco os dedos nos
musgos para me segurar na rocha, espero por um puxão brusco para dentro do
mar. Não sei nadar, se ele conseguir, vou me afogar.
Mas o que vem é um toque gentil. O coração para na garganta ao sentir as
pontas molhadas de seus dedos acariciarem meu pescoço, mal consigo engolir
saliva pelo nervosismo.
Ele apoia um cotovelo nas pedras e ergue parte do corpo para fora. Sua
atenção está fixa em meus lábios, e eu, hipnotizada pelos dele, observo cada
linha fina de sua boca. Então, desço para as veias grossas do pescoço, os ossos
profundos do colo, os ombros largos manchados por sardas de sol e, por fim, o
peitoral forte.
Seu riso sacana se sobressai ao som das ondas e me arrasta de volta para
seus olhos inchados, esquento por dentro ao ser pega encarando.
— Se me deseja tanto, venha para o mar.
Ele ergue o corpo um pouco mais, avança só metade do caminho até mim.
Poucos centímetros nos separam agora. Eu poderia me inclinar um pouco e,
mesmo com sua agilidade, ele não conseguiria desviar a tempo.
Sinto meu corpo respondendo inconscientemente, vou na direção dele.
Quero tanto beijar esses lábios e saber se tem um gosto salgado como as
Lágrimas de Thalassor.
Estou muito próxima de descobrir quando um grito distante rasga o ar,
puxando-me de volta à realidade.
— Elena! — A voz de Manon está cheia de pânico.
Desperto bruscamente ajoelhada à beira do penhasco, os dedos fincados na
relva rala que desponta na neve, os olhos fixados lá embaixo. Ondas batem com
violência contra o rochedo, encobrem parcialmente os picos pontiagudos. Sinto a
bile chegar até a boca.
Manon me agarra pelos ombros, sacudindo-os com força, e me puxa para
longe da beirada. Seu rosto está vermelho e ofegante, os cabelos grudados na
pele devido ao suor. Encaro-a confusa, estamos ambas vestindo nossas camisolas
e de pés descalços na mistura lamacenta de neve derretida e terra.
— O que aconteceu?! — O vento açoita meu rosto e me faz gritar para ser
ouvida.
A noite não está calma ou sequer gentil como é típico dessa época, uma
ventania anormal deixa o mar enfurecido e as nuvens pesadas encobrem
qualquer sinal da lua. Em meio à escuridão noturna, tento me localizar, mas tudo
parece estranho, apesar de familiar.
— Onde nós estamos?!
Manon fica aliviada ao me escutar, para de sacudir meus ombros e me
envolve em um abraço apertado.
— Acordei com você destrancando a porta — ela diz ofegante. — Vim
gritando por toda a colina atrás da casa, mas você não parava.
Pouco a pouco, a realidade começa a se firmar em minha mente. O sonho
com o sireno, a espada do meu pai, tudo parecia tão real. Ainda consigo sentir o
toque frio e escorregadio da mão dele em meu pescoço.
Antes disso, havíamos ido dormir cedo. Mandei uma carta para meu irmão
em um corvo da família, pedi pelos suprimentos e abrandei a situação. Comentei
sobre o sireno, mas lhe garanti que não havia perigo, não quis causar alarde.
Então, trancamos todas as portas e janelas da casa. Uma garantia de que nada
entraria no meio da noite para nos machucar, só não percebi que o problema já
está instalado do lado de dentro.
Dentro da minha cabeça.
Meu corpo treme, não sei se pelo frio ou pelo medo.
— Vamos para casa…
Manon me ajuda a levantar, seus olhos cheios de preocupação. Enquanto
caminhamos de volta pela colina, as sombras das árvores projetam figuras
assustadoras no chão, seus galhos retorcidos e sem folhas formam o contorno de
corpos meio quebrados, como o das garotas enviadas sem os corações até a
Cidade-Mãe.
Dependendo da época, os córregos ficam mais agitados. Os cadáveres
batiam violentamente contra troncos e rochas e quando chegavam ao seu destino
final estavam tortos, inchados e quase irreconhecíveis. Na história, Thalassor
mandava-os de volta para as famílias se despedirem, mas a realidade é muito
diferente.
Não havia como dar um adeus para as enviadas, não era sequer possível
reconhecê-las.
— Foi… o sireno? — Manon pergunta baixinho, quase hesitante.
Engulo em seco, a garganta árida.
— Acho que sim.
Seguimos abraçadas por todo o caminho, tentando proteger uma à outra do
frio. As extremidades doem, mal consigo sentir as pontas dos dedos e do nariz.
Disparo para dentro da casa pensando em buscar por cordas, Manon pode
me amarrar na cama para garantir que não fugirei novamente. Estou tão
envolvida em pensar formas de sobreviver aos efeitos colaterais do canto do
sireno que demoro a perceber que ela ficou na soleira.
Rajadas de vento passam pela porta aberta, levando embora o calor
acumulado do lado de dentro. Mas Manon não se move, está parada com o olhar
vitrificado no vazio.
Está tendo uma visão.
Certa vez, durante o jantar, quando retornou à realidade após um desses
episódios, enfiou vários pedaços de pão de uma só vez na boca, eram tantos que
ela se afogava e tossia, então voltava a tentar comê-los desesperadamente.
Quando consegui acalmá-la, me falou que tinha a forte sensação de que
precisava comer o máximo possível agora, pois não haveria comida no futuro.
Ela estava certa, alguns dias depois uma tempestade alagou as plantações
daquele ano.
Fecho a porta atrás dela com cuidado, não quero que se assuste com o
baque, então a conduzo até uma das cadeiras da cozinha e espero. Manon pisca
algumas vezes, não demora para retornar dessa vez.
— O que você viu?
— Não foi uma visão, apenas um pressentimento — explica hesitante.
— Ruim?
Ela agita a cabeleira ruiva em negação, esfrega os olhos com força
tentando afastar algo de seus pensamentos.
— Fiquei abalada quando você quase caiu, não deve ser nada.
A resposta vem rápida, quase defensiva. Ela tenta se levantar, mas seguro
seu braço, impedindo-a de fugir.
— Qual o pressentimento, Manon? — persisto.
A ventania bate com mais força contra o casebre, aquele chiado alto como
se algo lá fora estivesse gritando conosco. Manon se escolhe na cadeira e eu a
envolvo nos braços, nossos corpos frios não ajudam em nada a aquecer uma a
outra, a única coisa que posso fazer é apertá-la mais forte para tremer menos.
Penso em deixar para lá e voltar no assunto depois de algumas horas de
sono, mas a resposta chega em um sussurro baixo contra meus cabelos:
— De que essa é a última vez que entraremos nessa casa.
Qualquer possibilidade de pegar no sono foi varrida após o mau presságio
de Manon. Posso amarrar meu corpo à cama, trancar as portas ou caçar um
sireno pelos mares. Mas de que isso adianta se não tiver um teto no final do dia?
O que ela quis dizer com a última vez que entramos nesta casa? A estrutura
pegará fogo em outro ataque? Seremos levadas para longe de Ferroforja?
A madrugada não foi suficiente para levantar todas as hipóteses.
Sem ter pregado os olhos por um minuto sequer, assisto o quarto ser
manchado pelos tons avermelhados do amanhecer e tomo minha decisão: não há
mais como abrandar o que está acontecendo. Tenho medo de que Ferroforja se
torne um reflexo da minha infância e o terror do Povo do Mar leve a população a
matar uns aos outros. Ainda assim, é irresponsável não passar toda a informação
disponível para meu irmão.
Uma nova carta é escrita com urgência. Aviso que se algo acontecer
comigo, ele poderá me encontrar — ou meu cadáver — no mar.
Observo o segundo corvo mensageiro voar desengonçado pelo horizonte.
Esse é mais gordo e velho do que o primeiro, reservado apenas para
emergências. Fico parada do lado de fora, esfregando os braços por baixo do
xale. O dia não está ensolarado, nuvens pesadas de chuva cobrem grande parte
do céu e o frio machuca a pele.
Penso que o calor deixaria as coisas menos sinistras. O mau presságio de
Manon parece estar por todos os lados: na tempestade que se aproxima, nos
falcões rodeando meu corvo velho e… no barco que acaba de virar a encosta.
O navio é um galeão e ostenta a bandeira das tropas de meu irmão, mas é
cedo demais para terem sido enviados por ele. Com sorte, estará lendo a primeira
carta ao final do dia. Precisaremos de ao menos mais uma semana para um karvi
com dezesseis remadores contornar o continente e chegar até aqui. É mais
provável enviar alguma tropa a pé antes, esta chegaria em três ou quatro dias.
Ainda que a misteriosa embarcação pareça aliada, tem algo errado. Posso
sentir.
— Manon! Pegue as espadas, nós precisamos correr até Ferroforja!
O caminho colina abaixo nunca pareceu tão longo. Escorregamos várias
vezes na grama úmida pela neve. Esses sapatos de ficar em casa não tem boa
aderência nesse solo, mas não tive tempo de me preparar.
— Seriam saqueadores disfarçados? — Manon arrisca, a respiração
ofegante devido à corrida.
— É provável. Em uma situação em que estamos em menor número, qual
é a melhor estratégia para evitar um massacre?
Ela pensa um pouco no assunto, precisando fazer uma pausa quando
chegamos a um cercado baixo. Dar a volta tomaria muito tempo, então jogo o
xale por cima dos pregos soltos das vigas e passamos por cima com cuidado.
Mesmo coberto, um deles ainda consegue se enrolar no tecido do meu vestido.
Dou um puxão para soltá-lo e um rasgo se abre da altura do joelho direito até a
barra.
— Droga!
— Ir até o líder inimigo e eliminá-lo primeiro? — ela responde.
Um sentimento de orgulho me faz parar por um instante e encará-la.
Treinei bem Manon, e ela se mostra uma pupila perfeita: forte, inteligente e
sensata. Eu deveria mandá-la para meu irmão; teria uma ótima posição na
Cidade-Mãe e avançaria nos cargos de seu exército rapidamente. Se tiver foco e
não passar tantas noites se bebendo e abusando da posição de poder, como eu
mesma fiz, penso que bateria meus recordes.
A ideia tem um sabor agridoce.
"É um desperdício alguém como você criando ovelhas no fim do mundo.
Os Deuses nunca irão te perdoar por desperdiçar seu dom para a guerra. Eu
nunca vou te perdoar se fizer isso, Elena." Essas foram as últimas palavras que
ouvi do meu irmão, já faz oito anos que ele lê minhas cartas, mas não responde a
nenhuma delas.
— Falei besteira? — Manon me desperta, os lábios torcidos em uma
careta.
— Não, mas estamos em duas, o que pode facilitar. Eu vou atrás do líder,
você coordena a vila. Vá direto para as forjas, junte o que tiver de armamento e
distribua entre todos que forem capazes de empunhar uma espada.
Voltamos a correr. Quanto mais nos aproximamos da vila, mais me
incomoda a tranquilidade do ambiente. A mata é substituída pelas casas com
telhado de colmo, a bruma da manhã se torna uma espessa fumaça das forjas
com o suave odor de pão assado. Encontramos os primeiros moradores, eles
apenas sorriem e acenam ao nos verem.
Esse não é o cenário esperado, não estou gostando nada disso.
Forço os olhos para enxergar o porto na parte baixa da cidade, o galeão
misterioso está atracado, e os marinheiros descarregam a carga com a ajuda dos
habitantes. O que está acontecendo?
— Ainda bem que você chegou. — Soren abandona um pequeno grupo de
conversa para se juntar a nós, uma preocupação evidente em seu olhar.
Era o sinal que eu precisava para confirmar que há algo errado.
— Manon, você já sabe o que fazer. — Dispenso-a com um aceno. —
Tome cuidado com as canções.
Ela não espera um minuto sequer, desaparece no horizonte antes de Soren
chegar até mim com uma expressão torta. Ele me encara da cabeça aos pés, os
lábios fechados torcidos um pouquinho para a esquerda.
— Ah…
Sigo sua atenção e encontro meu vestido rasgado no joelho, várias
manchas molhadas e amarronzadas de lama adornam todo o tecido. Imagino que
o estado de meus rosto e cabelos também não deve ser dos melhores, a noite mal
dormida provavelmente me presenteou com duas marcas de meia-lua escuras
embaixo dos olhos, e, após uma corrida na neblina da manhã, meus cabelos
devem estar no mesmo nível do restante do visual.
Não é um julgamento escrachado do tipo que acusa: uma mulher na sua
posição não deveria ser vista assim em público. Mas está ali, consigo perceber
na forma como o sorriso dele congela de um jeito forçado e seus olhos não tem o
brilho de admiração de todos os dias.
Tivemos a vila saqueada duas noites atrás. Assim que vi o navio
desconhecido, corri como o vento para proteger esse lugar. Mas, aparentemente,
Soren gostaria que eu fizesse isso tão bonita quanto estou todos os dias.
— O que está acontecendo? — Guardo o rancor para mais tarde, em um
momento onde não houver tanto em jogo.
Ele sacode a cabeça, voltando para uma expressão mais normal.
— Um navio do seu irmão interceptou os saqueadores, vieram devolver os
espólios roubados.
— Isso não faz sentido — digo mais para mim mesma do que para ele. —
Quero falar com o capitão, onde ele está?
— Lothar está conversando com o Primeiro Imediato perto da taverna.
Soren tenta me dizer mais alguma coisa, porém deixo sua voz no ar
quando avanço pelas ruelas. Ouço comentários e comemorações por todos os
lados, planejam uma grande festa para celebrar a benção dos Deuses ao
devolverem nossos pertences. Entre os rostos conhecidos, há homens e mulheres
nos trajes da Cidade-Mãe, marinheiros supostamente sob ordens de meu irmão.
Não acredito por um momento sequer, qualquer embarcação pirata pode
roubar essas roupas. Fico encarando cada um, tentando encontrar sinais de que
pertecem ao Povo do Mar. É enlouquecedor como são parecidos conosco, não há
nada que eu possa acusar apenas por suas aparências.
— E tem mais… — Soren me alcança.
— Que outra benfeitoria de mentira eles fizeram?
— A espada do seu pai…
Soren ainda está falando quando avisto Lothar junto de um homem
desconhecido. Por um momento espero encontrar Demônio do Mar ali, mas a
figura misteriosa não é ele.
Ainda que eu não tenha visto seu rosto naquela noite, o primeiro imediato
é mais baixo e seu corpo um tanto mais truculento. A pele negra azulada é
característica da região alta de Caldera, faz contraste com um par de olhos de
caramelo melado. Fico um tanto decepcionada, percebo uma ânsia dentro de
mim por encontrar a escuridão de jaspe de novo.
Lothar me recebe com desconfiança, apesar de fingir certa naturalidade na
conversa com o forasteiro, a mão direita está sobre a bainha da espada.
— Rune, deixe-me te apresentar Elena, nossa joia vinda da Cidade-Mãe.
— Ele ergue o braço esquerdo para indicar que eu me aproxime, a mão direita
continua pronta para ação. — E Soren, um dos melhores ferreiros de Ferroforja.
Ao contrário de nós, com movimentos controlados e cheios de suspeita, o
primeiro imediato está calmo, faz gestos largos e descontraídos para me
cumprimentar. De perto, é jovem demais, tem a idade de Manon e um sorriso
pueril, não cruel.
Rune ignora Soren por completo, seu olhar se fixa em mim, avaliando cada
detalhe da minha aparência, como se estivesse comparando uma lenda com a
realidade diante dele.
O desconforto que senti por conta de Soren minutos atrás volta a
incomodar. Procuro no estranho qualquer indício de desaprovação ou surpresa,
mas o que encontro é algo mais complexo. Seja lá o que ele ouviu sobre mim,
não são as histórias que destacam minha beleza. Ele não está desapontado,
está… cauteloso.
— Então, você é Elena — Rune diz, seu tom espirituoso contrasta com o
olhar atento. — Sou Rune, Primeiro Imediato do Fúria.
Ele estende a mão para um cumprimento formal, suas ações
exageradamente cordiais escondem a tensão. Percebo um leve tremor na ponta
de seus dedos, quase imperceptível. Ao invés da minha palma, entrego-lhe
Chama Viva; a lâmina brilha faminta.
— Faça um corte — ordeno, sem rodeios.
— Como é? — Ele pisca surpreso, alternando o olhar entre mim e Lothar,
buscando algum tipo de explicação.
— O homem que invadiu minha casa durante o saque era um sireno. Essa
lâmina é de prata negra — explico, mas falo para Lothar, não para o falso
imediato.
— O quê?
— Desculpe por não ter mencionado isso antes — respondo sucinta,
haverá tempo para mais explicações depois. Volto-me para Rune, os olhos dele
se estreitam. — Faça um corte na mão, ou eu mesma corto sua cabeça.
Desembainho a espada que trago na cintura.
Rune solta uma risada seca, desprovida de qualquer traço de cortesia. O
charme que ele exibiu segundos atrás desaparece por completo. Estou preparada
para cortar sua garganta se ele tentar cantar ou gritar por ajuda. Ao meu lado,
Lothar e Soren estão em alerta, prontos para reagir. Assim que a ferida cauterizar
iniciaremos nosso contra-ataque. Só posso esperar que Manon já esteja a
caminho com as armas.
Cada movimento é crucial, cada segundo, um teste de nervos. A tensão
entre nós é quase palpável, como o ar pesado antes de uma tempestade.
A lâmina toca a palma de Rune, tudo é feito numa lentidão
enlouquecedora. Meus dedos apertam a empunhadura, e o impulso para agir
toma conta de mim, quando Lothar segura meu ombro, firme, impedindo meu
movimento.
— Espere, olhe!
Gotas de sangue vermelho caem no chão, uma após a outra. A ferida não
cauterizou.
— Como é possível?!
Um sorriso petulante se forma nos lábios grossos de Rune, que estende a
adaga de volta para mim.
— Satisfeita? — ele pergunta, o tom impregnado de ironia.
Tomo a arma com um movimento brusco.
— Isso é mentira! Eu quero falar com seu capitão, agora! — grunho.
Rune não parece nem um pouco intimidado, apenas inclina a cabeça, a
confiança retornando à sua postura.
— Perfeitamente, ele já está à sua espera para discutir os detalhes do
matrimônio — diz com uma calma perturbadora, cada palavra sai com uma
suavidade que só aumenta minha raiva.
— Detalhes do quê?
— Era isso que eu estava tentando te dizer — Soren interrompe. — Eles
interceptaram os saqueadores porque já estavam a caminho de Ferroforja. O
capitão do Fúria matou o dragão das montanhas e recuperou a espada. Eles já
estavam vindo te buscar.
CAPÍTULO 06
____

Todo verão meu pai fazia uma competição anual de caça à lebre entre eu e
meu irmão, aquele que vencesse poderia usar sua espada por uma roda completa
das estações. Eu era mais forte, mais rápida e mais habilidosa na luta, e, ainda
assim, meu irmão me vencia a cada edição.
Ele também era forte, rápido e habilidoso, mas diferente de mim, ele
treinou os cachorros da casa para fazer uma armadilha contra a lebre. Enquanto
eu corria com meu arco e flecha ou me atirava no chão com uma adaga, meu
irmão emboscava o animal sem pressa. Ia bloqueando cada uma das rotas de
fuga, até não restar nenhuma alternativa para a lebre além de encarar seu
agressor.
Eu ainda lembro do pânico dos bichos quando a emboscada estava
completa. Eles olhavam para frente, para meu irmão com a espada e, ainda
assim, corriam em sua direção para escapar por entre suas pernas, uma última
tentativa desesperada de sobreviver.
Nesse momento, sou uma dessas lebres, encurralada ao ponto de não restar
outra alternativa além de ir até meu algoz. É uma armadilha, eu posso vê-la se
formar ao meu redor: o roubo da espada, a falsa invasão, o retorno dos
mantimentos saqueados e até o maldito primeiro imediato que sangra como um
homem.
Lothar pareceu convencido pelo espetáculo de Rune. Eu, no entanto,
insisti, forçando outros dois marinheiros a cortarem as mãos. Eles sangraram
como qualquer homem de Caldera, me deixando com a aparência de uma louca e
a persistente impressão de já ter visto alguns deles antes.
Não resta outra opção senão confrontar o capitão e descobrir se minha
teoria é verdadeira — ou se estou perdendo a sanidade como os fanáticos que
assassinaram minha babá.
— Ele não vai te levar embora — Soren diz enquanto me acompanha até
as docas. Durante todo o caminho tentou me tranquilizar com palavras sem
sentido.
— Não vai, porque eu vou separar a cabeça dele do corpo antes disso —
retruco, mais irritada do que gostaria. A raiva é um combustível perigoso para
decisões.
— Ei. — Ele tenta me segurar, mas desvio. — Ei, Elena, olha para mim.
Soren me agarra pelos ombros, forçando-me a parar. Minha mandíbula está
travada, e sinto uma vontade crescente de gritar. Ninguém parece entender a
gravidade da situação, e a ideia de enfrentar isso sozinha me apavora. Temos
uma embarcação do Povo do Mar atracada em nosso porto, e eles estão
espalhados pela cidade como uma praga. Podem queimar tudo ou arrancar o
coração de cada mulher viva em Ferroforja.
Onde quer que o sal toque o ferro, haverá ferrugem e destruição.
— Essa não é uma tripulação comum, seja lá o que estão traman…
— Não precisa inventar histórias, eu vou falar com ele — Soren me
interrompe, pressionando o indicador contra meus lábios. — Esse tipo de
homem vem atrás de você por dois motivos, e posso dissuadi-lo de ambos com a
verdade — continua com a confiança cega de quem não compreende a situação.
— E, depois de convencê-lo, vou reivindicar a conquista da espada de seu pai.
— Do que você está falando?
Tantas bobagens saíram da boca dele ao mesmo tempo que não sei a qual
delas estou me referindo.
— Você anda muito distraída, não é? — Ele solta um risinho, e eu me
contenho para não morder o dedo que ainda toca meus lábios. — Lembra que eu
queria te dar uma boa notícia? Era isso. Decidi que estou disposto a enfrentar o
dragão para me casar com você, mas como ele já foi derrotado, tudo ficou mais
fácil. Só preciso convencer o capitão a me entregar a espada, ou podemos juntos
tramar o assassinato dele.
As palavras de Soren são como tomar um gole grande demais do veneno,
meu corpo automaticamente tenta vomitar tudo para fora. Ele realmente acha
que inventei a história do sireno só para evitar o casamento? Pior ainda, ele acha
que eu quero me casar com ele?
O orgulho estampado em seu rosto desmorona ao ver minha expressão.
Devo estar com uma cara bastante desgostosa, pois ele recua, puxando a mão de
volta quase que instantaneamente.
— Achei que ficaria feliz em não termos mais que nos encontrarmos às
escondidas.
Ele me encara, confuso, talvez até magoado.
— Só estou cansada, me desculpa.
Um homem com o orgulho ferido é o mais perigoso dos animais, e este
não é o momento de cultivar mais um inimigo.
— Matar o capitão não parece uma ideia ruim — murmuro, se entrar em
sua fantasia é o necessário para fazê-lo me ajudar a impedir o plano do sireno,
estou disposta.
— Você poderá vir morar na vila comigo — Soren continua enquanto
seguimos o caminho, satisfeito com minha aparente cooperação. — Finalmente
deixar aquele casebre perigoso nas montanhas, parar de criar aquelas ovelhas
fedidas. Poderá me ajudar na forja, ou, se preferir, auxiliar Greta com as
crianças, até termos os nossos próprios.
Não.
Definitivamente, não.
A bile amarga da raiva sobe à minha garganta pela forma como ele
desdenha da minha vida atual. Engolir essas palavras é difícil. É exatamente por
isso que só nos encontramos à noite; tempo demais numa conversa e eu já estou
pronta para enterrá-lo no meu quintal.
— Será uma vida esplêndida. — Mantenho um sorriso congelado no rosto.
Pelo resto do caminho, Soren vai narrando todas as fantasias sobre nossa
futura vida matrimonial. Por um lado é bom ouvi-lo, me afasta um pouco do
sireno.
Sou tomada por um pensamento perigoso, a ideia de que se Manon estiver
certa e eu nunca mais voltar para casa, ao menos não terei que enrolar Soren
durante todo a primavera, até Molgur voltar para comê-lo no verão.
Um homem só é atraente na cama enquanto está de boca calada, nem todos
os músculos de seu peitoral vão conseguir prender minha atenção depois de
ouvir tanta besteira.

Chegamos ao porto, onde um grumete com não mais de dez anos aguarda
próximo da plataforma de embarque. Assim que me vê, ele pula de cima de um
amontoado de caixotes. Já estava esperando por mim, ele explica que foi
mandado pelo próprio capitão. É um rapazinho simpático e educado, mas não
consigo prestar atenção em seu nome ou na tagarelice. Ele reclama sobre o clima
frio daqui e como as peles de animal que é forçado a usar fedem. Não para um
instante enquanto conduz Soren e a mim pelo navio.
Grupos de marinheiros passam por nós, carregam os espólios roubados. Os
homens que estão dentro do navio são diferentes daqueles que vi pela vila, seus
corpos são esguios e altos, lembram muito mais o biotipo de Demônio do Mar
— ainda que nenhum porte o mesmo nível de elegância.
São todos muito diferentes das pessoas de Caldera, aqui nascemos para o
trabalho bruto e a batalha, corpos largos e contornos rudes.
Conforme avançamos, um homem se destaca no centro do convés, seu
porte é mais elegante do que os demais enquanto distribui ordens com a destreza
de um maestro. Ele está de costas, e tudo o que vejo é o casaco de lã escura e o
cabelo em cachos queimados pelo sol.
É ele, tenho certeza.
Engulo em seco, uma urgência me empurra para frente. Acelero o passo,
Soren e o grumete tentam me acompanhar, mas já estou correndo.
Preciso ver seu rosto.
Meu coração para por um instante quando toco seu ombro. Seguro a
respiração, dividida entre ansiedade e medo.
Ele se vira com lentidão.
É o homem mais bonito que já vi na vida.
Qualquer tentativa de fantasiar com a face por baixo da máscara de
demônio não chegou nem perto do que encontrei: um rosto bem esculpido,
maxilar forte, um nariz anguloso que harmoniza com as maças firmes da
bochecha; estas são quase almofadas para carregar aquele par de olhos pesados
de ressaca. Parece com algo que eu encontraria nas estatuetas da Casa de
Orações.
Dou um passo para trás, as brumas tomam os cantos da minha mente e
sinto como se estivesse em um sonho, não consigo acreditar que realmente seja
ele. Não consigo aceitar que alguém arme uma emboscada tão elaborada e ainda
reaja com um sorriso tão sem vergonha.
— Gosta do que está vendo? — Ele me provoca, ergue o queixo,
arrogante, destacando a cicatriz em meia-lua que deixei em seu rosto na última
vez em que nos enfrentamos.
— Ficará melhor quando sua cabeça rolar pelo assoalho — rosno, levando
a mão até a bainha da espada, mas não a saco.
Atacá-lo agora, cercada pelo inimigo, não seria sensato, por mais que
minha mão trema de vontade.
Demônio do Mar solta um riso descrente, acompanhado por um revirar de
olhos.
— Degolar, transar e beber — ele debocha em um sussurro, pouco antes de
trocar a máscara de desprezo por uma expressão acolhedora e falsa quando
Soren e o grumete nos alcançam. — É um belo barco, não é, querida? — finge
inocência, um ator nato. — São trezentos homens sob meu comando. Você deve
ter visto só uma pequena parcela na vila, sem falar dos setenta canhões. Galeões
como esse podem esmagar barcos menores como moscas, até pequenas vilas sem
dificuldade.
Pequenas vilas. É uma ameaça ou apenas exibicionismo?
— Um barco impressionante. — Soren toma a frente, alheio à tensão que
se acumula em meus ombros. — Sou Soren, mestre das forjas. Você deve ser o
capitão, não é?
Demônio do Mar assente.
— Esse é mestre Kaeldros. — O grumete se adianta, estala com satisfação
as sílabas do nome na boca, como se aquilo significasse algo importante que ele
tem muito orgulho de dizer.
— Certo, Kaeldros. Será que podemos conversar em algum lugar? Há um
assunto que gostaria de discutir em particular com você — Soren pede.
Não sou contra a ideia, sem uma plateia posso fazer Demônio do Mar de
refém. Isso é o básico de uma emboscada, mas Kaeldros não parece preocupado
com essa possibilidade. Concorda facilmente e nos guia para dentro do galeão
sem levar nenhum reforço consigo. Até mesmo o grumete emocionado fica para
trás, ganha apenas um carinho na cabeça de seu capitão, que lhe dá ordens para
ir ajudar os outros com a carga.
Pelo corredor conectado ao convés principal, acabo me distraindo ao
encará-lo. É lindo de uma forma não humana, cada linha parece esculpida em
mármore e mesmo a cicatriz que lhe dei não afeta o resultado final da obra, na
verdade, combina tanto com ele que poderia ter nascido assim. É insano como
não consigo compará-lo a ninguém conheço.
Soren aperta minha mão e coro de uma forma quase culpada por ter sido
pega encarando outro. Passo o resto do caminho observando meus pés, sem
confiar na própria capacidade de disfarçar meus pensamentos. Só volto a erguer
a atenção quando chegamos ao nosso destino.
— No que eu posso ajudar, mestre das forjas? — Kaeldros ergue
ligeiramente as sobrancelhas, um deboche sutil que faz meu sangue ferver.
Tudo que ele diz soa como uma provocação. Já entendi, vocês, do mar,
desprezam nossas armas. Se não gostam, deviam ficar no sul e não invadir
nossas terras.
Ele nos dá passagem para entrar no cômodo. Uma lamparina balança no
teto, seguindo o ritmo do barco, projetando sombras inquietas nas paredes. No
centro, uma mesa antiga exibe um mapa do arquipélago extremamente
detalhado, superior a qualquer um que eu tenha botado os olhos antes.
Mas isso é um detalhe periférico; o que realmente captura minha atenção
— e a de Soren — é a espada que repousa ao lado, reluzindo sob a luz fraca.
Meu coração acelera. É a minha espada! Ao meu lado, Soren fica tenso, a
atenção fixa na arma.
Kaeldros não diz nada. Ele permanece imóvel no batente, nos observando
com curiosidade. Não gosto de como ele parece calmo, como se tivesse o
controle da situação mesmo em menor número. Será que sabe de algo que eu não
sei?
Estou tentando organizar meus próximos passos quando Soren rompe o
silêncio:
— Soube que pretende se casar com Elena.
Pelos Deuses, homem, você ainda está nisso?
— Matei o dragão e conquistei honestamente a espada lendária —
Kaeldros responde sem um pingo de vergonha, colocando uma ênfase quase
sádica no "honestamente" enquanto atravessa a sala para pegar a arma. — É meu
direito tomar a Eterna Donzela, não é?
Seus olhos apáticos encontram os meus, é um desafio velado a contradizê-
lo. Não me falta vontade de saltar em sua jugular, só consigo me controlar
lembrando que é exatamente isso o que ele quer, está provocando até que eu
tome uma decisão precipitada.
— Não sei o que te levou a isso, mas se foi a fantasia de desvirginar a
Eterna Donzela, saiba que ela não é mais. Estamos juntos de forma íntima já faz
uma roda das estações. — Soren consegue roubar toda atenção para ele com
apenas uma frase.
Arregalo os olhos atordoada, sem acreditar no que acabo de ouvir. Até o
sireno parece surpreso.
— O quê? — É o máximo que consigo juntar de palavras, ainda duvidando
se escutei corretamente.
— Agora, se veio pelo prestígio político, saiba que o irmão dela a odeia.
Ela jamais poderá retomar a posição que tinha na Cidade-Mãe — Soren
continua, como se eu não estivesse ali. — Será para sempre apenas uma
fazendeira.
O comentário me atinge forte como um golpe no estômago. Apenas uma
fazendeira? É isso que ele pensa?
— Ah, entendi. Então é isso que você quis dizer com homens só virem até
mim por dois motivos.
Deveria me sentir magoada, mas o que surge é uma decepção cansada,
familiar demais. Soren se aproxima, segura minha mão. Não há culpa em seus
olhos, ele realmente acredita no que está dizendo. E isso torna tudo ainda pior.
— Você sabe como os homens são, o que eles realmente querem, mas eu
me apaixonei por você, pela sua coragem, sua força, seu sorriso, mesmo com
você…
— Mesmo não sendo virgem e tendo abandonado minha posição no campo
de batalha?
Ele acena, como se suas palavras fossem um consolo. Como se fosse
romântico. Mas tudo o que vejo é a lápide de mais um homem que nunca
entenderia quem sou. É por isso que posso entregar minha atenção, meu corpo,
meu amor, mas nunca a espada. Nunca.
Eles sempre acham que estou quebrada por viver sozinha nas montanhas,
longe de uma vida que nunca quis. Eles nunca entendem que não há nada para
ser consertado aqui.
— Você cometeu alguns erros no passado, mas está tudo bem…
— Não foram erros! — As palavras explodem de mim, a raiva finalmente
rompendo a calma superficial. Mais uma vez, alguém sugere que minha vida é
um castigo, uma punição, quando tudo o que fiz foi escolher o que era certo para
mim.
Minha fúria é interrompida por uma gargalhada alta e debochada. Kaeldros
ri e isso me enfurece a ponto de sacar a espada e apontá-la para ele. Apesar da
ameaça, sua atenção não está em mim. Ele encara Soren, parece fascinado.
— Acha que isso vai ser o suficiente para controlá-la? — Kaeldros indica
a espada lendária que roubou, seu sorriso entre a crueldade e o deboche forma
uma inesperada covinha nas bochechas. — Acredita que algo tão patético quanto
uma espada é o bastante para manter uma mulher como ela interessada em você?
— repete, como se ele mesmo não estivesse acreditando na linha de raciocínio
de Soren. Uma pequena parte de mim fica grata, e até um pouco assustada, que
alguém como ele consiga ver isso e Soren não. — Interessante, eu gostaria de te
assistir tentar.
Ele oferece a espada em um gesto trivial e Soren hesita.
— É sua. — Kaeldros insiste, empurrando a arma em sua direção. —
Permito que assuma a conquista de derrotar o dragão, desde que consiga sair
dessa sala com a espada em mãos.
— Pretende me impedir? — Soren pergunta, mas, com relutância, acaba
aceitando.
— Não — Kaeldros responde, desviando o olhar para mim. — Mas ela
vai.
Cretino.
Dou um passo à frente, bloqueando a saída com o corpo, a raiva pulsando
no peito. Neste momento, odeio todos os homens, sejam eles do Mar ou do
Ferro.
— Soren, me entregue a espada — exijo, tentando manter a calma.
— Elena? — Ele me olha, confuso, sem entender a urgência.
— Conversamos depois. Agora, me entregue a espada.
— Não.
A teimosia dele me exaspera. Sem pensar duas vezes, avanço e acerto sem
ceerimônias uma coronhada na lateral da sua cabeça. Ele tropeça, os olhos se
arregalando de surpresa — tanto músculo e nenhum senso de equilíbrio ou
defesa pessoal. Aproveito seu pescoço exposto e, antes que possa reagir, uso a
bainha para acertar o golpe final em sua nuca sem de fato ferí-lo.
O corpo inconsciente de Soren desaba no chão com um baque surdo. Eu o
empurro para o lado com o pé, recuperando a espada de meu pai.
Agora tenho duas armas, uma em cada mão, mas, ironicamente, não me
sinto mais segura. Kaeldros, sem mover um dedo, conseguiu derrubar um
oponente.
Ele parece o tipo de pessoa que sabe como ler o ambiente, manipular as
peças ao seu favor.
— Achei ofensivo ele pensar que poderia te controlar tão facilmente,
considerando o trabalho que tive para te trazer até aqui. — Sua postura é mais
relaxada agora que estamos a sós. — E, para ser honesto, não me importo que
você não seja virgem. Na verdade, é um alívio. Nunca me considerei um bom
professor.
Ignoro o comentário, estou concentrada na espada de meu pai. Faz anos
que não a empunho. A lâmina é gravada com símbolos de proteção ao longo de
toda a sua coluna, e seu nome está entalhado no final: Espírito do Norte.
Conquistar essa espada não foi fácil; ela pertence apenas a um verdadeiro
guerreiro de Caldera. Meu irmão venceu por muitos anos a competição da lebre,
mas meu pai nunca a entregou a ele oficialmente. Ele esperou até que o Espírito
do Norte florescesse em mim. Até o dia em que, durante a caçada, quebrei as
pernas do meu irmão, impedindo-o de trapacear com seus cachorros.
Artimanhas são para os covardes; um verdadeiro guerreiro enfrenta seu
inimigo com honra, cara a cara.
Encaro o sireno.
— Chega de teatro. Você não quer se casar comigo. Por que todo esse
espetáculo?
Kaeldros assente, o sorriso presunçoso desaparece e dá lugar a uma
expressão mais sombria.
— Meu dragão.
— Ele só passa o verão e o outono aqui, Molgur odeia o frio, no inverno
vai para o sul. Espere alguns meses e ele deve voltar — conforme explico, me
aproximo.
Kaeldros esconde bem a tensão, finge não estar intimidado, mas sei que
não é burro. Seus olhos desviam de mim por um instante e param na porta, checa
uma rota de fuga.
— Eu sei disso, mas esse inverno foi diferente, ele não foi para o sul —
responde.
Paro. Se ele sabe tanto e estava esperando por Molgur no inverno, isso
quer dizer que…
— Vocês também tem um acordo?
Ele confirma com um aceno sutil, e de repente tudo faz sentido. É assim
que Kaeldros sabe tanto sobre mim. Aquele dragão fofoqueiro, vira-lata de
asas... Tento repassar nossas últimas conversas, procurando algum indício de que
havia outro pacto.
— Molgur me alertou sobre você. — Kaeldros interrompe meus
pensamentos, sua voz fria. — Disse que, se ele não voltasse para o sul, eu
deveria vir atrás de você.
O choque quase me paralisa. Então é por isso que ele tem tanta certeza de
que matei o dragão? O que Molgur estava pensando ao insinuar algo assim?
Nunca o ameacei desde que selamos o acordo. Na verdade, sempre o considerei
um aliado, talvez até um amigo — ou o mais próximo que uma criatura como ele
poderia ser de um humano.
— Isso é ridículo. Eu não ganharia nada matando Molgur — tento
argumentar. — Sem ele, só tenho a perder.
Encaro Soren desmaiado no chão, sem a ameaça de Molgur, como vou
manter ele e os outros calados? Pior do que isso, como vou impedir que algum
deles force um casamento comigo? Não, a situação é ainda mais complicada:
alguém matou Molgur? Tenho certeza de que ninguém em Caldera seria forte o
bastante.
— Não faz sentido, mas não espero decisões inteligentes vindas de alguém
do Povo do Ferro. — Kaeldros me desperta mais uma vez de meus pensamentos
com seu desprezo. — Eu não matei ninguém da primeira vez para mostrar minha
boa vontade em resolver isso de forma pacífica, agora se você continuar
escondendo o que fez com ele, não tenho mais utilidade para essa vila.
Trezentos marinheiros, setenta canhões.
— Você não teria coragem, demônio. — Aperto a empunhadura das
espadas, uma em cada mão.
— Continue mentindo para mim, vou arrancar o coração da menina ruiva e
te fazer assistir.
Chega. O sangue ferve em minhas veias. Este sireno desgraçado vai pagar.
E se Molgur realmente estiver morto, ele poderá perguntar diretamente ao
dragão o que aconteceu quando eu o mandar para o outro lado do véu.
CAPÍTULO 07

A mesa de centro voa na minha direção, Kaeldros a vira bem a tempo de


bloquear meu primeiro golpe. A madeira barata cede ao toque da espada,
estilhaçando-se no ar.
— Rato do mar covarde! Pare de fugir e venha lutar comigo! — brado
enquanto puxo a lâmina de volta, arrancando um naco da mobília no processo.
O sireno, escorregadio como uma enguia, aproveita os poucos segundos de
distração para ganhar espaço, da porta da sala me encara, dando um último
revirar de olhos.
— Selvagem maluca! Você não aguenta cinco minutos de diálogo sem
sacar suas faquinhas! — grita de volta antes de começar a correr.
Sigo-o em disparada. Não tenho um plano, ele venceu, tirou minha
paciência até extrair o pior da selvageria de mim. Consigo acompanhá-lo até o
convés, onde desaparece no meio de uma inesperada festividade. Durante o
tempo que estivemos do lado de dentro do galeão, uma banda improvisada foi
montada no convés, as barracas estão do lado de fora espalhadas pelo porto, o
cheiro delicioso de carne assada e cerveja.
Marinheiros, ferreiros, homens, mulheres, rostos conhecidos e
desconhecidos se misturam em um êxtase dançante ao som da banda. Os
músicos têm feições levemente distorcidas, algo neles é sutilmente errado, mas
ninguém parece perceber.
O violinista, com dedos longos demais, emite um som que lembra mais um
lamento do que uma melodia alegre. Ao lado dele, um homem sopra um
acordeão que parece respirar como se estivesse vivo, expandindo e contraindo
em um ritmo estranho. No fundo, um tambor grave ecoa em batidas lentas de um
coração pulsando, enquanto, por fim, um trio de homens entoa uma canção
animada sobre pés que dançam até a morte.
Algo está terrivelmente errado.
As pessoas ao meu redor estão presas na música, seus corpos se movendo
como se fossem puxados por fios invisíveis. Sorrisos tolos e olhares vidrados,
estão perdidos em um prazer forçado e artificial. Sinto a pressão da música
tentando me envolver, aquela conhecida bruma impelindo a me juntar a eles, mas
consigo resistir.
O canto deles não é tão forte quanto o de Kaeldros. Se tivesse que fazer
uma comparação, a banda é uma sugestão, Kaeldros em meu banheiro foi uma
ordem.
Agarro uma mulher pelos ombros, sacudindo-a na tentativa de despertá-la.
Um marinheiro próximo me lança um olhar ameaçador.
— Estraga prazeres, deixa a moça se divertir!
Não está hipnotizado. Deve ser um sireno, como Kaeldros. Ele puxa a
mulher para si, e ela cai em seus braços, rindo como um bêbado expulso da
taverna.
— Afaste-se dela — ameaço, apontando a espada para seu pescoço.
Os olhos do marinheiro se arregalam, mas, ao redor, ninguém parece notar
ou sequer se importar com meu gesto. Todos continuam dançando e cantando,
cegos e surdos ao perigo.
— Você não está ouvindo a música? — ele pergunta.
Um assovio alto corta o ar. A música pode não ter força suficiente para me
controlar, mas ainda assim me deixa tonta quando me viro rápido demais em
direção ao som. Kaeldros está na plataforma de embarque, parado com os braços
cruzados, como se estivesse me esperando.
— Impressionante, Falsa Donzela. — Sua voz não chega aos meus
ouvidos, mas leio seus lábios com clareza. Ele aplaude lentamente.
— Faça-os parar! — grito por cima do caos.
Avanço em sua direção, as espadas firmes em minhas mãos, mas, quando
estou a poucos metros de distância, ele toma um fôlego longo. O sorriso cruel e
arrogante em seus lábios entrega seu próximo golpe, tento levar as mãos até as
orelhas, porém é tarde demais.
— Por que teme tanto me entregar seu coração?
Maldito. Sua voz não é como a da banda, não é como qualquer outra coisa
que já escutei na vida. Tudo ao meu redor desaparece. Somos só ele e eu de
novo.
Dessa vez, quando as brumas avançam e tomam cada canto do meu
cérebro com um desejo indevido, não resisto. Não vou desperdiçar minhas forças
lutando contra algo que não posso vencer, prefiro guardá-las para o momento em
que ele, inevitavelmente, terá de calar a boca. Então, poderei dar meu contra-
ataque.
— Não deseja viver a eternidade em minha escuridão? — ele continua.
As espadas deslizam dos meus dedos, caindo ambas no chão sem
resistência, enquanto meus pés seguem, quase por conta própria, o restante do
caminho.
Ele tem uma mão estendida para mim, convidativo em me receber em seus
braços. Nem mesmo Thalassor deve ser tão belo quanto este homem. Penso que
sua existência é uma ofensa aos Deuses.
— Posso fazer um pedido antes de morrer? — pergunto quando ele
gentilmente envolve minha cintura e me puxa para mais perto. Ofego com o
calor de seu corpo por baixo das roupas, consciente demais de cada ponto onde
nos tocamos.
Kaeldros inclina a cabeça, intrigado, milhões de questões passam por trás
de seus olhos, mas ele não interrompe a canção.
— Uma coisa te prometo, serei gentil ao arrancá-lo. — Ele confirma com
a cabeça.
— Um beijo. Não me deixe morrer sem conhecer o sabor dos seus lábios,
Demônio do Mar — imploro, e parte do meu orgulho despedaçado realmente
deseja que essas sejam minhas últimas palavras.
Kaeldros sorri, vitorioso e convencido. Minhas entranhas se remexem.
Quero beijá-lo na mesma proporção que quero fazê-lo pagar por um truque tão
ardiloso.
Outra confirmação com a cabeça e fecho os olhos. Seu toque se torna mais
excitante quando não vejo seus movimentos. Os dedos deslizam suaves em meu
rosto, seguram meu queixo para erguer meus lábios para ele.
— Em uma caixa de ouro, fria como a tua pele morta, vou guardá-lo. —
Sua promessa causa um efeito febril, meu corpo treme e a pele sua.
Abro as pálpebras por um breve instante, o suficiente para ver a
intensidade em seus olhos antes de ele extinguir a distância entre nós. Seu beijo
é inesperadamente passional e ansioso, pensei que esse desejo fosse unilateral e
gerado pela canção, mas ele está tão envolvido nisso quanto eu.
Sua língua demanda entrada por entre meus lábios, explora minha boca até
me faltar ar. O mundo ao nosso redor desaparece. Só existe o calor do corpo dele
contra o meu, a pressão de seus lábios, a forma como sua língua invade minha
boca, explorando, reivindicando.
É um beijo que devora, que exige tudo de mim, e sinto a fraqueza tomando
conta dos meus membros, como se cada fibra do meu ser estivesse se rendendo.
Uma de suas mãos desliza pela curva interna da minha coxa, puxando-me
ainda mais para ele, enquanto a outra se embrenha em meu cabelo, segurando-
me no lugar. Eu deveria lutar, deveria recuar, mas não há vontade em mim para
resistir. Em vez disso, deixo-me levar, permitindo que ele roube o ar dos meus
pulmões e a sanidade da minha mente.
É melhor do que eu imaginava que seria, é um beijo digno de todas as
histórias sobre o Povo do Mar. Mas, com sua língua tão ocupada em me
saborear, a canção é interrompida. Sinto aquela pontada de dor cabeça forte atrás
dos olhos e a consciência sobre meu corpo retornando. As brumas ainda estão lá,
mas é diferente, é aquele juízo nublado característico de quando você deseja
muito ser tocada pelo outro.
É uma vontade enlouquecedora de montar nele até que nenhum de nós
tenha energia para sair da cama. Talvez, se eu ainda fosse uma donzela, algo
assim tão intenso me deixaria paralisada. Mas conheço muito bem meus desejos
e sei como mandá-los calar a boca.
Espero que os Deuses me perdoem por machucar algo tão bonito.
Ergo o joelho sem aviso, atingindo com força entre suas pernas. Kaeldros
urra de dor e eu aproveito sua distração para saltar nas águas congelantes do mar.

Meus dentes batem furiosos uns contra os outros, o frio atravessa os ossos
e tira qualquer controle que eu tenha sobre meu corpo. Chama Viva pesa como
chumbo na minha mão trêmula, enquanto a outra se agarra à corrente da âncora.
Meus dedos já estão dormentes, rígidos, mas se mantêm firmes, é uma questão
de vida ou morte.
Foi uma ideia desesperada pular na água congelada do mar quando não sei
nadar. Meu único objetivo naquele momento era me livrar por completo das
brumas, pensei que ter a mente limpa me traria um raciocínio mais claro de
como resolver a situação.
Bom, me trouxe a certeza de que estou ferrada.
— Ne-nem pe-pe-pense ni… — Tento ameaçar erguendo a adaga, quando
Kaeldros se aproxima da beira da plataforma, mas minha voz sai trêmula.
— Você vai morrer por hipotermia — ele rosna frustrado, mas não ousa
entrar na água, depois de minha pequena demonstração violenta, ele pensará
para sempre duas vezes antes de chegar perto de mim.
Já tentou cantar para me convencer a sair do mar, mas o velho truque da
infância funciona bem, minha mente está incrivelmente acordada por causa do
frio. Nem a banda, nem Kaeldros e nem o próprio Thalassor serão capazes de me
manipular agora.
Vejo com completa clareza a festa, não há nada de errado com os músicos,
são sirenos de aparência comum. A impressão que tive de seus aspectos
monstruosos foi apenas um efeito da canção.
Infelizmente, Kaeldros continua mortalmente lindo e não consigo deixar
de achar sua carranca irritada ainda mais bonita do que o sorriso cruel.
Esse pensamento é a única coisa que me esquenta um pouco, mas não
tanto. Ele está certo; não vou aguentar muito mais tempo na água congelada. O
inverno ainda domina o mar, e minhas extremidades estão dormentes faz tempo
demais.
Avisto Manon atravessando a plataforma de embarque com alguns
moradores de Ferroforja e marinheiros. Um deles me chama mais a atenção, é
um homem alto como um gigante, carrega uma espada grande demais nas costas
e isso acende um alerta de atenção em meu cérebro, ainda que eu não consiga
dizer exatamente o por quê.
Eles se movem com uma estranha lentidão, a música enfeitiçando seus
passos. Tento agitar os braços e me fazer ser ouvida.
— Ma-manon — gaguejo, é preciso respirar fundo para juntar energia para
chamá-la mais alto. — Manon!
Ela para, os olhos vazios e turvos se voltam para mim, mas não há
reconhecimento imediato.
— Elena? O que você está fazendo aí? — A pergunta não tem urgência,
apenas confusão. Ela me vê, mas está hipnotizada demais para entender a
situação.
— Os sirenos… — Tento avisar, mas cada palavra rouba um pedaço do
pouco ar que me resta. O mundo à minha volta começa a escurecer nas bordas, o
frio já invadindo meu peito, e sei que estou ficando sem tempo.
Kaeldros faz um gesto sutil com a cabeça, e logo vejo Rune, seu primeiro
imediato, emergir da multidão de festeiros.
— Saia da festa — sussurro, vendo Rune segurar os ombros dela. — Não
escute a canção!
Manon franze a testa, confusa, mas não resiste. Deixa-se levar de volta ao
grupo, logo rindo como se nada tivesse acontecido. O gelo dentro de mim se
espalha mais rápido, e o desespero cresce junto com a dor do frio.
Olho para Kaeldros sentado na plataforma, observando-me com uma
expressão que não consigo definir entre a diversão ou a pena.
— Vou adorar ver você morrer aí, lentamente — ele diz.
Reviro os olhos e guardo o fôlego. Talvez essa não tenha sido a melhor
escolha, mas se vou morrer, que seja acordada, não sob o feitiço desse sireno
traiçoeiro.
— Ei, estou falando com você! — Kaeldros insiste quando não respondo a
sua provocação, a irritação evidente em sua voz. — Me diga o que aconteceu
com Molgur, e deixo você ir.
— Já... disse... tudo que sei… — Está cada vez mais difícil formar
palavras, perco o foco várias vezes.
— Mentirosa.
Hipotermia. Que maneira patética de morrer. Tantas batalhas vencidas,
tantos inimigos derrotados, e vou perecer aqui, em uma poça de água congelada
por tempo demais. Se ao menos minha morte pudesse servir a um propósito,
talvez salvar Ferroforja, isso seria suficiente para partir em paz, sem me tornar
um espírito inquieto.
— Se eu falar... promete... não destruir... a vila?
Kaeldros endireita a postura, seus olhos se arregalam, e pela primeira vez
vejo o desespero em seu rosto. Ele quer a informação, precisa dela, e talvez
acredite em qualquer coisa que eu disser.
— Devolvo tudo e deixo todos vivos — ele responde rápido demais.
Não sei se posso confiar em sua palavra, mas não estou em posição de
negociar. Meu tempo está acabando. Estou tão cansada, tanta coisa aconteceu
nos últimos dias… só queria descansar um pouco tendo a paz de saber que todos
estão bem.
— Ele disse… uma viagem longa… para muito longe... — Minha visão
periférica perde o foco, o frio finalmente me vencendo.
— Longe é uma direção muito vaga. — Ele se apoia na beira do cais. —
Seja mais específica.
— Era para... — Algum lugar longe, algum lugar que dê tempo para meu
irmão receber minhas cartas. — oeste… muito além dos territórios… do Ferro.
A escuridão toma as bordas, o mundo está turvo. Sinto meu corpo
enfraquecer, como se sugado para dentro de um poço, estou caindo até a luz se
tornar um único ponto distante. A voz de Kaeldros soa abafada, vinda de fora
desse buraco
— Ei! Ei! Como assim oeste? Você não pode falar isso e morrer! — ele
grita, mas não consigo reagir. — Nem pense nisso!
Ouço o som de um corpo quebrando a superfície da água. Meus dedos
congelados tentam desesperadamente segurar Chama Viva para me defender,
mas sinto-a escorregar. Estou fraca demais, e a adaga escapa de minhas mãos,
afundando lentamente no mar. Tento esticar o braço para alcançá-la, mas acabo
afundando a cabeça e uma porção de água salgada invade minhas narinas.
Tento tossir, mas tudo que consigo é engolir mais água salgada, a salmoura
queima minha garganta e pulmões como fogo líquido. O frio já não é minha
única ameaça; estou me afogando. Meu último pensamento é que vou morrer
sufocada antes de congelar, mas, então, mãos fortes me puxarem para fora.
Começo a lutar, instintivamente debatendo os braços e pernas, sem saber
se estou brigando com Kaeldros ou com o próprio frio.
— Você é incrivelmente teimosa, mulher — ele rosna, sua voz carregada
de frustração, quando finalmente consegue me arrancar do mar gelado.
— Minha… adaga…
Fraca como estou, ele mal sente meus socos contra seu peito. Ergue meu
corpo facilmente, me jogando sobre o ombro como se eu fosse um saco de
batatas.
— Pare de lutar, estou tentando salvar sua vida idiota enquanto você quer
morrer por um pedaço de metal — ele resmunga e me carrega para dentro do
navio.
Sinto como se eu estivesse presa em um pesadelo enevoado, não consigo
acompanhar o que está acontecendo. O calor das mãos de Kaeldros é um
contraste gritante com o gelo que me consome. Ouço o rangido de uma porta e,
em seguida, sinto a suavidade de uma cama sob mim. Forço meus olhos a se
abrirem, e o vejo arrancando sua camisa molhada e jogando-a de lado.
A cena é surreal, quase como um devaneio febril. Minha mente vaga pelos
lugares mais absurdos: os músculos bem delimitados por baixo da pele
bronzeada, o caminho pecaminoso de pelos acobreados que desce do umbigo
para dentro da calça, a tatuagem com o corpo de um dragão que começa em seu
pulso e se estende por todo o braço até o peitoral.
Ele se aproxima, me vira com brusquidão de barriga para baixo e começa a
desfazer os nós do meu corpete. Meu coração acelera, pavor e adrenalina me
trazem de volta à consciência.
— O que você pensa que está fazendo? Tire suas mãos de mim! — Tento
golpear seu rosto, mas meu braço mal responde, o movimento é desajeitado,
como uma carícia fracassada.
— Eu disse que sabia como tirá-los, não disse? — ele debocha, ácido,
enquanto termina de arrancar o espartilho e segue para o vestido.
Ele ignora meus protestos, cada toque dele me enfurece, mas estou fraca
demais para lutar. Começo a gritar com tudo que me resta, não sei por quem
estou chamando. Talvez só queira resistir até o último minuto. Eu esperava
muitas coisas de um sireno, mas não isso.
— Vamos, grite o quanto quiser, você acabou com a minha paciência. —
Ele está furioso, puxa o que restou do vestido por cima da minha cabeça sem
nenhum cuidado.
Resta apenas a camisola em meu corpo quando ele me vira com a barriga
para cima de novo. Volto a tentar desferir socos com meus braços cansados.
— Ótimo, se ainda consegue lutar, é um bom sinal. Não vai morrer.
Estou tremendo, mas não é só de frio desta vez; é de raiva, de impotência.
Tento me afastar, mas ele me segura com uma facilidade irritante, rasgando a
última peça de roupa, me deixando nua e vulnerável na cama. A humilhação se
mistura ao ódio.
— Porco imundo. — Cuspo na bochecha dele, e o vejo limpar o rosto. Sua
fúria esmorece por um breve momento.
— Não vou fazer nada, tem a minha palavra — ele diz, a voz baixa,
cansada, quase... triste. — Mas não posso te deixar morrer.
Minha visão oscila entre a escuridão e a luz, a exaustão pesa. Mal consigo
me mover quando ele me leva até uma poltrona, onde se senta e me acomoda em
seu colo de frente para si. O contraste de temperaturas é sufocante,
desconcertante. Kaeldros passa uma coberta por cima de nós, as mãos fortes me
puxam, forçando-me a encostar no seu peito. Meus seios pressionam sua pele
quente, e sinto-o tremer, mas não sei se é de frio ou algo mais.
Tento me debater, mas minhas forças se esvaem rápido. Ele me segura
firme, e, aos poucos, a escuridão volta a me envolver. A última coisa que sinto é
o calor dele lutando contra o gelo dentro de mim antes de ser engolida pelo
abismo, caindo em um sono turbulento e sem escapatória.
CAPÍTULO 08
____

Acordar e sonhar se confundem nos braços de Kaeldros. Passei a noite em


um sono inquieto, despertando repetidamente, me esforçando para fugir do seu
aperto. A cada tentativa, ele me puxava de volta, com uma paciência irritante,
encostando minha cabeça em seu peito enquanto assobiava uma melodia suave e
hipnótica que me embalava de volta ao sono.
Depois de tantas tentativas frustradas, acabei desistindo. Desta vez, quando
acordei de uma lembrança distante de Molgur, permaneci deitada, a cabeça
repousando em seu ombro. Meu corpo ainda está exausto, cada músculo pesado
como pedra, mas não posso negar que há um estranho conforto nesta posição
com ele.
Kaeldros permanece em silêncio, o polegar desenhando círculos
preguiçosos no meu ombro, enquanto a outra mão segura um livro aberto.
Tento mover a cabeça ligeiramente, na esperança de ver sua expressão sem
que ele perceba. Seus traços estão relaxados, uma suave curva nos lábios que
quase se transforma em um sorriso. Um contraste curioso com as olheiras
escuras de noites mal dormidas que acentuam um cansaço em seu rosto.
— Acordada? — Sua voz interrompe meus pensamentos, pegando-me de
surpresa.
— O que você está fazendo?
— Lendo — responde pragmático.
— Isso eu vejo. Mas por que está lendo?
Ele desvia a atenção do livro por um momento, seus olhos de jaspe
encontram os meus com um sorriso quase travesso nos lábios.
— Tenho uma bela mulher nua deitada no meu colo, preciso de algo para
me distrair.
Uma risadinha inesperada escapa de mim, e Kaeldros inclina a cabeça,
curioso.
— Não é que o ferreiro estava certo, você tem mesmo um sorriso bonito.
Sinto um turbilhão na boca do estômago e não sei se é o efeito das brumas
dele ou simplesmente a surpresa de gostar do elogio. Apoio as mãos trêmulas em
seus ombros e tento me ajeitar, esforçando-me para ficar ereta e encará-lo de
frente. Meus músculos ainda estão fracos, mas consigo me sentar em seu colo.
A posição é íntima demais, cada joelho meu está de um lado de seu corpo
e, quando me ajeito, fico mais uma vez nua a sua frente. Kaeldros arruma o
cobertor em meus ombros com um zelo inesperado, cobrindo meus seios e
qualquer outra parte indevida. O tecido áspero roça minha pele e sinto uma
estranha falta do calor dele contra a mim.
Os raios da manhã banham o quarto em um tom rosado, o aroma da
madeira envelhecida e ligeiramente mofada me fisga, é a confirmação de que
ainda estou no navio. Meus olhos correm o cômodo sem muita atenção,
procurando por uma janela para descobrir minha localização exata, encontro-a
atrás de mim, uma vidraçaria enorme que dá vista para o mar e, no horizonte
afastado, minha amada Ferroforja.
O navio zarpou, e a realidade disso me atinge, sinto o mundo ao meu redor
girar. Manon estava certa, foi a última vez que vi minha casa.
Kaeldros percebe algo de errado em mim, pois suas mãos correm para
minha cintura, como se eu fosse me desfazer ali mesmo. O toque é quente, quase
reconfortante, mas minha mente está longe de ceder à sua suposta gentileza.
— Para o seu próprio bem, espero que tenha cumprido sua promessa e
todos estejam bem — ameaço cheia de escárnio.
— Cumpri — responde frio, aquela receptividade de momentos atrás
desaparece e ele retorna ao sireno de sorriso cruel de antes. — Bem vinda ao
Fúria, querida. Se já está recuperada o bastante para dormir sozinha, tenho
assuntos para tratar lá fora. — Suas mãos deslizam sobre minhas coxas.
Estremeço com seu toque.
— Onde estão minhas roupas?
Não resisto quando ele me ergue nos braços. Aproveito o momento para
uma nova inspeção pelo quarto. Não conheço muitas embarcações, mesmo que a
ameaça dos sirenos tenha sido contida durante minha infância, meu pai nunca
achou prudente me deixar perto do mar. Sou uma guerreira da terra, pisei poucas
vezes em navios. Mesmo em Ferroforja, não criei o costume de me banhar no
mar durante os dias quentes de verão.
O que sei sobre galeões é o básico, o necessário caso precisasse comandar
a derrubada de um: canhões de grande calibre, bem posicionados na linha d'água,
podem rasgar o casco e inundar o navio; catapultas com munição incendiária são
perfeitas para queimar o convés e desviar a atenção dos marinheiros e, a minha
tática preferida, infiltrar-me com um pequeno grupo para destruir o navio de
dentro para fora.
— Mandei jogarem aqueles trapos fora. — A voz de Kaeldros me arranca
das lembranças animadas dos meus vinte anos. — Alguém trará roupas novas
para você mais tarde.
Ele me coloca no colchão com uma gentileza que contrasta com seu tom
indiferente. O cheiro de lençóis limpos me envolve, e o colchão afunda
suavemente sob o meu peso. Ele ajeita a manta sobre mim, cobrindo-me com
uma segunda camada de cobertas ainda mais quentes.
— Por que está sendo gentil?
— Tenho algum motivo para não ser?
— Quer que eu liste todos? Pode levar um tempo.
Kaeldros revira os olhos, mas há um traço de diversão em sua expressão.
Ele se senta ao meu lado na cama, soltando um suspiro exausto enquanto me
observa. Não sei por quanto tempo dormi, mas desconfio que ele esteve
acordado durante todo o período.
— Posso confiar que não tentará fugir no instante em que te deixar
sozinha?
— Eu seria pega antes de entender a configuração do navio e encontrar um
bote para escapar — respondo com um toque de ironia.
— Você é mesmo uma das espertas, não é? — ele esboça um pequeno
sorriso, que rapidamente desaparece. — Dessa vez, não traia minha confiança, é
para a sua própria segurança.
Não respondo, e ele não insiste. É óbvio que vou fugir na primeira
oportunidade, nem toda a gentileza do mundo consegue consertar suas ações: ele
hipnotizou uma vila inteira e poderia ter dizimado Ferroforja facilmente. Quanto
tempo até descobrir minha mentira e fazer algo pior? Quanto tempo até usar sua
voz para me obrigar a coisas que não desejo? Não vou ficar para testar os limites
de sua gentileza.
Kaeldros vai até a janela e fecha as cortinas, deixando o quarto em uma
meia-luz acolhedora. Ao alcançar a porta, para por um instante e me encara.
— Quando você tentar fugir, tenha em mente que não matei ninguém da
sua vila, gostaria que estendesse essa mesma cortesia para a minha tripulação.
Seu problema é comigo, não com eles.
Fecho os olhos e finjo ter pegado no sono, ele demora alguns minutos ali,
tentando forçar uma resposta, mas acaba desistindo. Espero até escutar a porta
ser fechada para realmente me permitir voltar a dormir.
Desperto com o som abafado de cantoria vinda do convés. Não é como a
música hipnótica que ouvi em Ferroforja; essa parece apenas com uma festa
animada a bordo do galeão. O quarto está envolto em penumbra, sem sinais da
luz do dia lutando contra as cortinas, já anoiteceu. A única iluminação vem de
um lampião deixado ao lado da cama, junto a um prato de pão, uma garrafa de
vinho e uma pequena pilha de roupas dobradas.
Testo minhas pernas e, para minha surpresa, consigo me mover bem. Há
alguma rigidez nas juntas, mas nada que prejudique minha mobilidade. Embora
eu queira explorar o quarto em busca de uma arma, meu estômago tem outras
prioridades. Sento-me na cama, comendo e bebendo um pouco enquanto
inspeciono as roupas. São vestidos lindos, apropriados para uma mulher de alta
estirpe, mas péssimos para quem está planejando uma fuga.
Com o lampião em mãos, vasculho o cômodo, minha curiosidade se atiça a
cada descoberta: a pequena coleção de livros de Kaeldros disposta em uma mesa
com vista para o mar, a tapeçaria atrás da cama que exibe um dragão e uma
criança e seus diversos pertences pessoais espalhados pelas paredes e prateleiras.
Ele claramente não é uma pessoa minimalista; cacarecos brilhantes ocupam
todos os cantos, fazendo o lugar parecer mais a caverna de um dragão.
— Sirenozinho supérfluo, acumulando tesouros. — Murmuro para mim
mesma, irritada. Pelo tipo de vestido que escolheu para mim, parece pensar que
serei mais um objeto em sua coleção.
Opto por usar as roupas dele em vez das minhas. Ajusto uma calça larga
com um cinto, enfio uma túnica grande para dentro e preencho o par de botas de
bucaneiro enormes com meias grossas de lã. Não é o ideal, mas servirá. Procuro
em todos os cantos por seu arsenal de espadas, mas não encontro nada. Será que
ele as tirou daqui por segurança? Estranho... Eu teria ao menos encontrado o
lugar onde as guarda. Será que ele não mantém suas armas por perto? Não, isso
seria absurdo; que tipo de tolo não manteria algumas armas sempre à mão?
Depois de terminar o vinho, quebro a garrafa na beirada da escrivaninha
— servirá por enquanto. Checo a porta, não está trancada, mas um homem está
de guarda no corredor. Terei que esperar. Pela agitação lá fora, ainda há muitos
marinheiros acordados. Será melhor durante a madrugada, quando estarão mais
vulneráveis.
Sento-me na beirada da cama, meu pé batendo contra o chão em um tique
nervoso. Tento convencer a mim mesma de que deveria economizar energias,
mas a inquietação me consome. Lá fora, a cantoria continua e, de repente,
reconheço a melodia — uma canção do meu povo. Fala sobre o fim da farra dos
noivos e a devoção de um amor que transcende o véu e desafia os Deuses.
É estranho escutá-la aqui, como os sirenos a conhecem? Então, lembro de
Rune e dos outros marinheiros em Ferroforja que sangravam como homens. A
tripulação não é composta apenas pelo Povo do Mar, deve estar cheia de
traidores, os ratos que se escondem nas águas para fugir de meu irmão.
A canção no convés me leva de volta ao passado, ao casamento dele,
quando se uniu à herdeira de uma família rival. Eram nosso último obstáculo
para unificar todas as tribos de Caldera sob um reinado absoluto, um clã tão
numeroso que seria impossível derrotá-los em combate direto.
Eu estava preparada para morrer por essa causa, pronta para liderar um
exército em uma batalha suicida.
Mas meu irmão... ele tinha outros planos.
Escolheu as vilas mais vulneráveis dos nossos inimigos e ordenou ataques
simultâneos, esmagando-as até o pó. Guerreiros, aldeões, homens, mulher e
crianças. A proporção da destruição nos fez parecer um exército maior do que
realmente éramos e forçou nossos inimigos a buscarem por um acordo.
Meu irmão me convenceu de que, assim, pouparíamos vidas — nossas, é
claro.
A lembrança me corrói por dentro como ferrugem. Ser tratada como um
cão caçando seus coelhos... Aquele massacre foi a última vez que pisei em um
campo de batalha. Mas chamar aquilo de batalha seria um insulto ao próprio
conceito de guerra.
Balanço a cabeça, tentando afastar as sombras. Volto a focar no dia do
casamento. Lembro de como bebemos e cantamos juntos, celebrando sua
ascensão como Senhor de Caldera. Hoje, todo o continente vive sob um reinado
mais justo por causa dele.
Essas memórias me arrastam de volta às festas de Ferroforja, e sinto um
aperto no peito. Meu lar, o lugar que escolhi para mim, longe de toda essa dor.
— "Como uma Deusa você vai tratar sua senhora, sem mais farra para
você agora..." — canto junto com eles, deixando as boas lembranças me
inundarem para me dar força.
Eu vou voltar para casa.
Não sei há quanto tempo estou perdida em meus pensamentos. A cantoria
cessou faz horas, mas decidi esperar até que o silêncio fosse absoluto — nenhum
som de passos bêbados ou risos abafados.
Não fui a única a esperar a madrugada. Passos rápidos no corredor
chamam minha atenção, seguidos por um baque surdo, acho que o marujo de
guarda foi derrubado.
Meu coração acelera, cada músculo do meu corpo se enrijece enquanto
minha mente se prepara para o pior: Kaeldros pode não ter interesse em me
matar agora, mas não posso dizer o mesmo do resto de sua tripulação cheia de
sirenos e desertores, as opções são vastas.
Sem pensar, estou de pé diante da porta, a garrafa quebrada em punho,
pronta para atacar o invasor. A maçaneta gira, e eu ergo o braço, mas interrompo
o golpe no ar quando avisto uma conhecida cabeleira ruiva.
— Manon?!
Ela entra rápido, ofegante, um sorriso atrevido e suado no rosto.
— Precisando de um resgate? — Fecha a porta atrás de si, a voz vibrando
com a adrenalina.
Sem acreditar, corro em sua direção e a envolvo nos braços. Como é
possível? Checo cada parte de seu corpo, apalpando suas juntas e costelas,
girando-a em busca de qualquer sinal de sangue ou ferimento. Tudo parece estar
no lugar, a única coisa estranha é o forte cheiro avinagrado emanando de seus
cabelos.
— Como? — pergunto, ainda em dúvida se não estou delirando.
Ela gargalha com meu espanto e me abraça de novo, afundando o rosto em
meu ombro. Por um momento também deixo os perigos de lado e retribuo,
aliviada por estarmos ambas bem e juntas.
— Consegui me infiltrar antes do navio zarpar. Durante a festa no porto,
anunciaram que você estava partindo com seu futuro marido. — Manon explica
e, sem perder tempo, abre novamente um espaço da porta para espiar o corredor
antes de me puxar pela mão. — Os sirenos zarparam e ninguém desconfiou de
nada, ainda estavam sob o efeito da canção. Mas eu me lembrei da nossa
conversa, de você na água. Parecia um pesadelo, porém eu sabia que era real.
Você nunca iria embora sem se despedir, certo?
Confirmo com um aceno, eu nunca deixaria Manon para trás.
No corredor, encontro o guarda inconsciente, sua espada ainda está na
bainha presa a calça, ele sequer percebeu Manon chegando. O orgulho por ela
cresce em mim.
— Como você se infiltrou? — pergunto.
Ajoelho ao lado do homem para checar a veia no pescoço, seu pulso está
constante e estável. Inclino sua cabeça, o ferimento na base da nuca sangra, mas
nada alarmante, vai sobreviver. Manon une as sobrancelhas e eu disfarço ao
desabotoar a camisa do marinheiro, não quero explicar que pretendo atender o
pedido de Kaeldros sobre não matar sua tripulação.
Ela entende o plano sem que eu precise explicar e começa a me ajudar. Os
contornos de seu vestido chamam muita atenção; precisamos nos disfarçar se
quisermos escapar sem sermos notadas.
— Lothar deu-lhes alguns mantimentos para a viagem — explica.
Consigo imaginar a cena: como um pai orgulhoso, pagando o dote de sua
filha. O gesto carinhoso me deixa feliz ao mesmo tempo que preocupada se ele
não ofereceu demais. Então, mais uma vez furiosa, agora por Kaeldros fazer
minha amada Ferroforja de tola.
— Me escondi em um barril de vinagre. — Ela faz uma careta e eu a
acompanho. Isso explica o cheiro ruim. — Depois me esgueirei até o paiol do
porão, me camuflei no meio dos estoques de comida.
Manon veste as roupas do marinheiro, enquanto eu aproveito para
surrupiar a espada. É um florete, leve e frágil, não exatamente o que prefiro, mas
melhor do que a garrafa.
— E qual foi a primeira coisa que fez quando o inimigo abaixou a guarda?
— Reconhecimento do terreno inimigo — ela responde meio tensa, espera
por minha aprovação. — Estamos no tombadilho. Há um conjunto de botes na
lateral do convés principal. A maioria dos marinheiros está dormindo ou
desmaiada pela bebida. Se formos discretas, só darão falta de nós ao amanhecer.
Um sorriso orgulhoso se forma em meus lábios, não há ninguém no mundo
que eu confiaria nesse momento além dela.
— Lidere a fuga, Manon. Hoje você está no comando.
Seguimos pelo corredor. Damos a sorte de não encontramos com mais
ninguém pelo percurso, o dormitório dos marinheiros costuma ser nos andares
abaixo do mar, então o maior risco por agora é topar com Kaeldros. Quando
chegamos à porta que dá acesso para o convés, abro-a com cuidado, deixo
apenas uma fresta para espiar do lado de fora.
Ainda que o deck esteja deserto, Manon fica tensa ao meu lado. Seus olhos
esverdeados se perdem no mar escuro. Não há lua ou estrelas nesta noite para
iluminar o caminho, as nuvens agourentas dominam por completo o céu e
tornam a água um manto infinito e sombrio.
— Uma visão? — pergunto.
— Dessa vez não, mas acho que se forçar, talvez consiga.
— Não precisamos disso. — Coloco a mão em seu ombro. — Faremos
nosso próprio futuro e nenhum homem do Ferro, do Mar ou Deus poderá nos
impedir de voltar para casa.
Ela assente, mais confiante.
Não estou subestimando Kaeldros, ele sabe que vou tentar fugir e com
certeza há uma emboscada nos esperando. Não preciso de nenhuma previsão do
futuro para isso saber disso.
Se Manon ver algo positivo em nosso futuro, ficaremos descuidadas e
confiantes demais; agora, se prever algo negativo, o medo vai nos impedir de
tentar, e é quando perdemos as esperanças que somos verdadeiramente
derrotados. Enquanto o futuro for incerto, ele pertence a nós.
Começamos a correr. Do lado de fora, uma ventania fria e úmida castiga
nossos rostos, ao mesmo tempo que as ondas atingem o casco do navio com
força. A embarcação toda balança, quase escorrego várias vezes.
Sair de bote agora é arriscado, talvez até suicida, mas é a única chance que
temos. A praia de Ferroforja ainda é visível no horizonte, os pequenos pontinhos
de luz da vila se destacam na escuridão.
Quando estamos quase chegando no convés principal, sinto um calafrio na
espinha, o piso treme fora do ritmo da batida das ondas. As vibrações vêm no
ritmo de passos apressados na nossa direção. Por instinto, me jogo sobre Manon,
derrubando nós duas no assoalho de madeira bem a tempo de esquivar do golpe.
O zumbido de uma lâmina rasga o ar centímetros acima de minha cabeça.
Estateladas no chão, vejo um homem enorme emergir à minha frente, o
corpo tão grande que bloqueia toda a visão das velas do navio atrás dele.
Empunha uma arma de lâmina cega e opaca, tão grossa quanto a casca de um
carvalho — isso não foi feito para cortar, é um porrete no formato de uma
espada, um golpe disso e seus ossos são triturados de forma irremediável.
É o estranho que estava com Manon mais cedo, durante a festa! Agora
consigo reconhecê-lo. Essa arma, esse expressão cheia de ódio... A cicatriz que
atravessa seu rosto, do olho esquerdo até o queixo, ficou ainda mais profunda,
emoldurada pelas rugas. Seus cabelos, antes castanhos, agora são tingidos de um
grisalho escuro, mas mesmo as marcas da idade não conseguem amenizar a
presença imponente que ele exala, tão aterrorizante quanto no dia em que destruí
sua vila.
— Hans, o Gigante do Norte — sussurro.
Manon me encara confusa, não conhece a lenda. Hans foi um mito em
vida, um dos guerreiros mais poderosos de Caldera. Diziam que seu corpo
imenso abrigava o sangue de gigantes. Ele havia se aquietado em uma pequena
vila no norte, no cinturão de trigo, onde casou, teve filhos e se tornou o jarls
daquela terra.
Eu queimei tudo.
— Essa noite minha família finalmente descansará em paz quando seu
corpo afundar no mar, Elena, a Lâmina do Usurpador.
Fazia muito tempo que eu não escutava esse nome.
Ele não volta a atacar de imediato, espera eu me levantar. Seu objetivo não
é um assasinato desonroso como fiz com a vila de Rocafria, deseja um duelo
para trazer a paz para aqueles que matei.
Há um nó em minha garganta, um refluxo amargo de bile e
arrependimentos. Não é a primeira vez que um guerreiro vem até mim em busca
de vingança e, assim como das outras vezes, lhe darei essa chance. É uma
questão de honra, é só assim que posso redimir o meu passado.
Olho para o mar, para Ferroforja, que agora parece um ponto distante no
horizonte, apenas um sonho envolto em ondas furiosas. As previsões de Manon
estavam certas: não voltaremos para casa.
CAPÍTULO 09
____

Primeiro vem o sangue, depois a honra, por último o ego. Quando outros se
aproximam, atraídos pela comoção, os amigos de Hans tentam impedi-lo de lutar
comigo. Eles o chamam por outro nome: Areskaan, não entendo porquê, mas
também não tenho tempo para pensar nisso agora.
Os marinheiros o lembram de que Kaeldros ordenou que ninguém
encostasse em mim, mas Hans, ou Areskaan, os manda se afastar com um gesto
ríspido. O sangue é mais importante para ele do que a honra em seguir seu
comandante.
Faço o mesmo com Manon quando diz que lutará ao meu lado, mando-a
retornar para Ferroforja sozinha.
— Eu prefiro a morte do que deixar você para trás — ela responde
convicta, estar comigo até o fim é seu sangue e sua honra.
Um sireno próximo de nós — começo a conseguir diferenciá-los por seus
corpos mais esguios e altos — a encara em um misto de horror e curiosidade.
Entre Ferro e Mar, somos por volta de seis no convés principal, logo esse
número deve aumentar, mais marinheiros vão acordar quando começarmos a
lutar.
Os desertores de Caldera respeitam o duelo, acomodam-se nas vigas do
mastro para assistir, mas os sirenos não gostam disso, um deles corre para dentro
do navio, provavelmente pensando em chamar Kaeldros.
— O passado não se altera com palavras. Lutarei até o fim de maneira
honesta — declaro firme.
Por trás da raiva nos olhos de Hans, vejo algo mais — um lampejo de
respeito, talvez — que desaparece tão rápido quanto surge, sufocado pela fúria
que ele carrega.
— A morte não vai limpar sua alma — ele cospe cada palavra como
veneno. — Seus ancestrais não estarão lá para te guiar do outro lado do véu.
Você estará sozinha, presa no umbral.
Concordo com um aceno breve.
— E é por isso que ainda não estou pronta para morrer.
Congelar no mar para salvar Ferroforja é algo pelo qual eu estaria disposta
a me tornar um espírito inquieto, mas deixar Manon sozinha neste navio, cercada
por inimigos, não é uma opção. Uma onda atinge o casco com força, jogando
água salgada sobre o convés e, no horizonte, o brilho de um trovão ilumina as
nuvens escuras.
Será que os Deuses estão a meu favor ou conspirando contra mim? Desde
que o sireno surgiu, parece que cada dia me aproximo mais dos pesadelos de
Manon, aqueles em que ela me vê afogada no mar.
Ergo o florete, que espada infeliz para se lutar com alguém da estatura de
Hans.
— Contarei histórias em Caldera sobre como você lutou bravamente até o
último suspiro. — Arrisco um toque de humor, ele não compartilha desse
momento.
— Menina arrogante!
Hans avança, sua espada gigante corta o ar com um zumbido alto. Eu
desvio para o lado, sentindo o peso do golpe reverberar pelo convés inteiro
quando a lâmina atinge o chão de madeira.
Ele sua para me acompanhar, a respiração pesada se condensa em vapor no
ar frio, subindo e descendo em longas lufadas. Esquivo-me de outro golpe que
teria estilhaçado meus ossos, girando para tentar atacar sua lateral. Ele é ágil
para alguém do seu tamanho e desvia o corpo no último instante.
Cada ataque meu é preciso, buscando uma abertura, uma brecha na defesa
de um guerreiro que já era experiente antes mesmo de eu nascer. Na primeira vez
que lutamos, venci por que não estava sozinha. Agora, o que tenho a meu favor é
a idade; ele está mais velho, seus movimentos menos fluidos.
O contra-ataca vem, a espada quase me derruba quando bloqueio o golpe
com o florete. O impacto é tão brutal que o metal se parte. Metade da lâmina voa
pelo convés, deixando-me apenas com a empunhadura e um toco de aço
quebrado.
O grito entusiasmado dos marinheiros irrompe ao nosso redor, vibrando
com a batalha. Ouço Manon mandar todos calarem a boca, mas sua voz se perde
no meio da algazarra.
Droga. Recuo, dou vários passos para trás para ganhar terreno, enquanto
minha mente corre para encontrar uma solução.
Talvez seja pela garrafa de vinho que bebi na janta, ou pela artimanha
nojenta que me trouxe aqui, mas estou com raiva demais para sentir medo,
furiosa demais para pensar de forma lógica. Jogo o toco de espada para longe.
— Vou acabar com isso com minhas próprias mãos!
O fogo da batalha brilha por trás dos olhos de Hans e, para a surpresa do
convés, ele também abandona sua espada-porrete.
— Quero ver você tentar, menina!
Ele fecha os dedos em forma de punho, um soco certo de suas mãos e
quebrarei as costelas, um osso pode perfurar os pulmões e não haverá como
escapar da morte.
Meu corpo inteiro se arrepia, aquela adrenalina de uma luta de verdade que
você não tem certeza se vai sobreviver. Por Shahar, Phosius e Thalassor, como
eu senti falta das batalhas de verdade.
À minha frente, Hans também parece ter esquecido da raiva, ele está
possuído pelo Espírito do Norte. As rugas em seu rosto, o olhar endurecido pela
guerra, ele lembra tanto meu pai que quase sinto um fio de orgulho ao imaginar
morrer aqui, enfrentando alguém como ele.
Grito com toda a força dos meus pulmões, coloco a adrenalina para fora e
começo a correr em sua direção. Hans faz o mesmo. Aguardo por nosso impacto
no meio do caminho, o confronto final.
Mas, o mundo para quando escuto uma melodia suave flutuar no ar. Uma
voz masculina cantarolorando. Meus movimentos travam no mesmo instante,
bem a tempo de um vulto surgir na minha visão periférica e mudar trajetória
antes de Hans me alcançar.
Quando sou arremessada, sinto o chão duro contra meu corpo, mas os
impactos, estranhamente, não são tão dolorosos. Algo — não, alguém —
amortece minha queda. Abro os olhos, me encontro envolta nos braços de
Kaeldros.
— Por que esse desejo insano por morrer?! — A voz dele é um rosnado,
tão próximo que sinto o cheiro do rum em seu hálito.
Tento me erguer, mas sua mão se fecha em meu ombro e me empurra de
volta ao chão.
— Quem te deu o direito de interferir?!
— Meu título de noivo de uma selvagem suicida e de capitão dessa
banheira de madeira flutuante — ele sibila cheio de escárnio, então aproxima
ainda mais seu rosto do meu, os lábios tocam minha orelha quando fala: — Se
preza pela vida da menina ruiva, você vai ficar quieta e colaborar enquanto eu
conserto isso.
Um arrepio percorre minha espinha, sua mão desliza para a minha cintura,
me ajuda a levantar e me mantém perto dele. Está fingindo que somos um casal,
claro, mas a sensação de sua palma ali, a posse implícita no gesto, faz meu
sangue ferver. Seu toque tem um efeito estranho no meu corpo mesmo quando
não estou no clima para galanteios. Tento me afastar, mas ele me mantém firme
ao seu lado.
Olho ao redor e vejo o convés agora cheio de marinheiros que vieram com
Kaeldros. Foram precisos dois para conter Manon, um deles é o próprio primeiro
imediato, Rune. Eles trocam olhares ferozes, vejo os lábios dela se movendo e
reconheço uma ou outra ofensa escabrosa, mas não consigo ouvir direito, estão
longe demais e há gritaria por toda parte.
Quero intervir, xingar, fazer alguma coisa, mas há inimigos demais agora
para combater. Hans não deve ser o único desertor que quer a minha cabeça, se
eu fizer algo que mine a autoridade de Kaeldros, estarei nos condenando.
Sozinha, talvez estaria mais imprudente, entretanto, neste momento, sou
responsável não apenas pela minha vida, mas a de Manon também.
Meu corpo treme de frustração pela impotência, os músculos chegam a
doer pelo esforço de me manter parada.
Kaeldros está tão desgostoso quanto eu, cada movimento que faz é tenso,
quase mecânico. Um rosnado animalesco deixa sua garganta, um som impossível
de ser emitido pelas cordas vocais de um homem comum. Reverbera espectral
como o canto kulning, mas em vez de acalmar, sinto um impulso de querer
correr — ele parece ciente disso, pois seus dedos afundam em minha cintura
para me manter no lugar.
O rosnado faz os homens hesitarem; em segundos, a ordem é restaurada.
Hans e os marinheiros que estavam com ele desde o início são colocados de
joelhos, espadas apontadas para seus pescoços.
— Vocês têm apenas uma chance de se explicar, façam bom uso do meu
senso de justiça — anuncia Kaeldros com frieza. — Por que minha noiva foi
atacada por meus próprios homens logo após minha despedida de solteiro?
Comece, Mestre de Velas.
O único sireno do grupo engole em seco. A chuva começa a cair em gotas
grossas, e sua franja encharcada se desprende do penteado, mas ele não ousa
mover os braços para ajeitá-la.
— Ela... ela estava tentando fugir. — Sua voz é trêmula. Ele age como se
eu não estivesse ali, nunca cruza o olhar comigo.
— Está insinuando que minha noiva não deseja se casar comigo? —
Kaeldros pergunta.
Apavorado, o sireno sacode a cabeça repetidamente.
— N-não foi isso que eu quis...
— E o que você quis dizer então?
— Eu... eu cometi um erro, capitão. — Resignado, ele abaixa a cabeça até
quase tocar o chão.
— Foi o que eu pensei.
Toda essa tensão não se deve apenas ao rugido espectral, pelo olhar
aterrorizado dos marujos, suponho algo pior, talvez um histórico de punições
violentas. Esse homem ao meu lado não parece o mesmo que me descongelou
com tanto cuidado horas atrás.
O capitão do Fúria é frio e meticuloso.
— Timoneiro. — Kaeldros se dirige ao próximo da fila. Esse é um homem
do Ferro, provavelmente um desertor. Seu rosto não me é familiar, mas a postura
diz muito.
— A garota... — Ele aponta para Manon com um movimento da cabeça.
— Conspirou para levá-la embora. Eu... tentei salvá-la.
— Incriminando a dama de companhia de minha noiva? Que covarde de
sua parte.
Um a um, Kaeldros vai derrubando seus homens apenas com palavras,
forçando-os a admitir a culpa. Até restar apenas Hans. Mesmo de joelhos, sua
presença é imponente, tem quase a minha altura de pé. Me incomoda vê-lo nessa
posição, ainda que seja um inimigo. Pessoas da idade dele merecem respeito.
Não consigo deixar de pensar em como eu ficaria furiosa se fosse Lothar ou
Greta ali.
— Ela matou meus filhos, queimou minha vila, destruiu tudo o que eu
amava — Hans anuncia antes mesmo que Kaeldros o convide a falar. — Os
outros só queriam capturá-la e trazê-la de volta para você. Fui eu quem
desobedeceu sua ordem. Aceito qualquer castigo que me der.
Desta vez, a resposta não chega de imediato. Chuva escorre pelos cabelos
de Kaeldros, pingando de seu queixo quadrado enquanto ele mastiga as palavras.
O convés está quieto, exceto pelo som das gotas e o barulho das ondas contra o
casco. Então, algo muda em sua expressão. A frieza em seus olhos vacila, e vejo
um lampejo de tristeza.
— Você sabe que no momento em que te dei um nome sua antiga vida
ficou para trás — ele finalmente diz, sua voz baixa. — Areskaan será pendurado
no mastro principal por três dias e três noites. Quem ousar dar-lhe de beber,
comer ou ajudar de qualquer forma, se juntará a ele no castigo.
Por um momento, Kaeldros fica parado, penso que ele vai mudar de ideia.
Hans é um desertor, mas também alguém que perdeu tudo. Ele respira fundo,
balança a cabeça como quem tenta jogar as emoções de lado e começa a se
afastar do convés, ainda me levando junto dele.
— Os demais passarão seus dias raspando o casco e limpando o porão...
até que eu tenha esquecido o que fizeram.

A paz ilusória dura até a porta do quarto se fechar atrás de mim. Kaeldros
solta minha cintura com brusquidão, e o lugar onde seus dedos cravaram agora
lateja. Ele cruza o quarto com passos pesados, os ombros rígidos, e se posiciona
diante da janela, encarando o horizonte lá fora enquanto a chuva atinge furiosa
contra o vidro. Respiro com dificuldade, o coração disparado, não apenas pelo
que aconteceu no convés, mas pela raiva acumulada em cada célula do meu
corpo.
É um alívio poder me afastar dele, o calor de seu corpo me incomoda, faz
a pele formigar.
— Você não tinha o direito de intervir naquele duelo! — Minha voz
explode, mais alta do que deveria. — Aquilo era uma questão de honra!
Kaeldros se vira abruptamente.
— Honra? — ele rosna, avançando na minha direção. — Não existe honra
na morte! Matar e morrer não são atos nobres, são selvageria! Violência!
Ele tenta me encurralar, mas eu não recuo.
— Areskaan pode morrer naquele mastro por sua culpa! — continua.
— Não ouse colocar a culpa em mim pelo castigo que você impôs!
A centímetros de mim, Kaeldros solta um riso curto, amargo, e esfrega o
rosto com as mãos.
— Se eu não fizesse isso, meu comando estaria em cheque. Você me
colocou nessa posição.
— Eu? — rebato, o rosto quente, a respiração ofegante. — O seu sequestro
me colocou nessa posição! Você espera que eu fique sentada aqui enquanto você
destrói toda a minha vida porque seu bicho de estimação desapareceu?
Sou pega desprevenida. O impacto é rápido e brutal. Ele me empurra
contra a parede, e minhas costas batem com força na madeira. Sua mão vem logo
em seguida até meu pescoço, não para me sufocar, mas tentando me dominar.
— Molgur não é um animal, ele é muito mais do que isso.
Eu reajo sem pensar, acertando um soco em seu pulso, e ele recua. Seus
olhos, ainda flamejantes, encontram os meus, e eu me preparo para o pior.
Imagino se se vai me dar um tapa, mas ele para.
Seus dedos passam pelos cabelos, ajeitando os fios de cobre, e não precisa
de nenhuma máscara demoníaca de porcelana para voltar ao rosto frio de
capitão.
— Onde você está indo?! — pergunto quando ele segue em direção à
porta.
Ele para no batente.
— Arrancar um dedo da menina ruiva, já que violência é a única forma de
me comunicar com você.
Meu sangue gela nas veias.
— Você está blefando, não teria coragem.
— Quer testar os limites da minha civilidade, falsa donzela?
Não tenho certeza do quão longe ele iria para provar um ponto.
Kaeldros percebe minha hesitação e, com um sorriso cruel, acrescenta:
— Foi o que eu pensei.
CAPÍTULO 10
____
Dizer que acordei no dia seguinte me sentindo como as fezes de um cavalo
na rua não seria exatamente correto — para isso, eu precisaria ter dormido.
Se foi a mistura de culpa e raiva que me manteve acordada ou o incessante
balançar do maldito barco que me fez vomitar a noite inteira, não sei. Mas
quando o grumete simpático, o mesmo que me guiou no dia em que cheguei,
bateu na porta e encontrou a prisioneira do Fúria deitada na cama, pálida como
as nuvens e com o olhar fixo no vazio, eu me senti como as fezes de um cavalo
na rua.
O cheiro do quarto não ajuda em nada. Bile e suor se misturam no ar,
tornando cada respiração um esforço. Tento me sentar para falar com ele, mas
outra onda de náusea me empurra para o balde estrategicamente colocado ao
lado da cama.
Sem a adrenalina para me manter de pé, meu corpo sente finalmente os
efeitos de estar trancada nesse navio por tanto tempo.
— Chá de gengibre, vai te ajudar, senhora — ele diz com uma educação
que não espero de alguém da sua idade, muito menos criado num navio cheio de
desertores.
Ele coloca uma bandeja empoeirada sobre a mesinha ao lado da cama. A
prata parece não ter visto um pano limpo há anos, talvez desde que foi roubada
de algum lugar distante. Um bule lascado de porcelana descansa ao lado de uma
xícara delicada, com desenhos estranhos que não reconheço, certamente não é
algo feito por artesãos de Caldera.
Antes de me servir o chá, ele puxa de dentro de seu colete um pequeno
buquê de galantos. Essas flores geralmente nascem nos arredores de Ferroforja
no fim do inverno, quando a neve começa a derreter. As pétalas brancas pendem
melancolicamente para baixo, e essas parecem ainda mais abatidas, talvez
colhidas há dias.
— Para você — ele diz, estendendo o buquê com orgulho.
— Kaeldros me mandou flores? Pensei que mandaria dedos. — O
sarcasmo escapa antes que eu possa me conter.
— Não, são um presente de boas-vindas meu — ele responde com um
sorriso satisfeito. — Eu mesmo as colhi, senhora.
O gesto me pega desprevenida. O sarcasmo se dissipa enquanto observo
seu sorriso desajeitado, revelando um canino torto à direita.
— Por quê? — Hesito em pegar as flores, como se fossem venenosas.
— Por que não?
— Eu sou o inimigo. Ontem machuquei um amigo de vocês.
— Foi sem querer. Você estava com medo, não estava? — Ele me olha
com tanta sinceridade que fico desconfortável. Sua ingenuidade é quase
perturbadora. Um rapaz nessa idade, nesse ambiente, deveria ser capaz de
reconhecer más intenções.
Mesmo quando me recuso a pegar as flores, ele continua com o braço
estendido, insistente. Acabo as aceitando por pena.
— Qual o seu nome? — pergunto.
Satisfeito em me presentear, ele volta para o bule e serve uma xícara, o
aroma picante do gengibre é um alívio em meio ao mau cheiro que se instaurou
no quarto.
— Kaeliactchim — responde, engasgando na própria tentativa, o final da
palavra soando como um espirro. Ele franze o rosto, tenta de novo. — Ka-eli-
th... — divide as sílabas, mas ainda parece difícil. — Kaelitchim! — Ele sorri,
quase acertando, mas o som continua esquisito.
Definitivamente não é um nome de Caldera. Na verdade, parece
complicado demais para alguém tão jovem.
— Kaelith? — Tento ajudá-lo.
— Isso! Isso! — Ele sorri largamente, como se tivesse conquistado algo.
— Mas pode me chamar de Li, para facilitar.
A lembrança da noite passada volta à minha mente. Como todos
chamavam Hans por outro nome, e as palavras de Kaeldros ressoam: "Quando te
dou um nome, você deixa sua antiga vida para trás." Talvez seja o mesmo com
Li. Ele não parece totalmente familiar com o próprio nome.
— Eu sou Elena — digo, esperando algum reconhecimento.
Ele dá de ombros, quase sem se importar, e contorna a cama para pegar
meu balde vômito. Fico meio constrangida, mas ele não faz sequer uma careta
para a tarefa enquanto segue em direção à porta.
— Senhora, vou pegar uma bacia e água para o seu banho. Volto logo —
anuncia.
Há algo incômodo em ser chamada de "senhora", como se meu nome fosse
insignificante. Penso nisso por um momento e percebo que Kaeldros também
nunca me chamou de Elena.
— Antes de ir, pode me dizer se Manon está bem?
Ele une as sobrancelhas, confuso, não parece saber do que estou falando.
— Menina Ruiva. — Tento de novo, agora usando a forma como Kaeldros
a chama.
Um brilho de entendimento passa pelos olhos dele.
— Garçonete está bem, não se preocupe — ele responde antes de sair do
quarto.
Aproveito o breve momento sozinha para me aproximar da janela
enquanto beberico o chá. As nuvens escuras da noite anterior ainda pairam sobre
o horizonte, pesadas, como se a tempestade estivesse sempre à espreita, mas
nunca pronta para desabar. O máximo que tivemos durante a madrugada foram
gotas grossas e esparsas, ainda há muito para chover.
Entre os intervalos dessas nuvens carregadas, feixes de sol se estendem até
o mar, iluminando a água escura em pontos isolados, como pequenas janelas de
luz em meio ao caos. É bonito, embora tenha um ar melancólico.
Nenhum sinal de Ferroforja no horizonte. A minha amada cidade ficou
para trás.
Antes que eu tenha a chance de afundar em outra sessão de autopiedade, o
grumete retorna desajeitadamente ao quarto, tropeçando no próprio peso
enquanto tenta equilibrar uma bacia de água, toalhas, e alguns frascos. O menino
carrega tanta coisa que mal consegue ver o caminho à frente. Ele tropeça em
uma cadeira, solta um chiado de dor e um punhado de água esparrama pelo chão.
Eu corro para ajudá-lo, pego o balde antes que ele faça ainda mais estragos.
— Obrigado, senhora — ele murmura, depositando os itens restantes no
chão com um alívio palpável.
Eu aceno e observo enquanto ele tenta organizar tudo. Pega um pequeno
frasco de perfume e o examina como se nunca tivesse visto algo assim antes.
Abre a tampa, inala profundamente e acena com a cabeça, aprovando o cheiro
com um sorriso.
— Mulheres gostam de coisas cheirosas, né? — pergunta com um brilho
curioso.
— Quem te disse isso? — arqueio uma sobrancelha, segurando um riso.
— Mestre Kaeldros — ele responde, orgulhoso. — Disse que nenhuma
menina do porto ia olhar para mim se eu não tomasse banho.
— Ele é mesmo um especialista, não é? — reviro os olhos.
Um sireno como ele deve ser metido a conquistador, imagino quantas
mulheres por aí caíram em suas canções — eu inclusa. O efeito é estranho, é
como se um constante desejo pairasse entre nós toda vez que nos vemos e fica
ainda mais forte quando ele me toca. Não importa o quão perigoso é a situação
ou o quão furiosa estou, o desejo está sempre ali no fundo.
— O que é toda essa história com os nomes? — Mudo de assunto,
tentando afastar a lembrança de Kaeldros sem camisa rasgando meu vestido.
Ele franze a testa.
— Como assim?
— Li nem sempre foi seu nome, não é?
— Mestre Kaeldros me deu parte do nome dele depois que me salvou. —
Assente. — Ele disse que, quando eu for mais velho, serei o Segundo Imediato
do Fúria.
Eu fico em silêncio por um instante, absorvendo essa nova informação.
Apesar das diferenças culturais entre nossos povos, imagino que para o Mar,
assim como para o Ferro, dar parte do seu nome a alguém é um laço. Meu irmão
aboliu o nome dos clãs para diminuir a inimizade entre as famílias, mas antes
também compartilhávamos um nome em comum.
Não posso deixar de sentir uma ponta de admiração por Kaeldros ter
adotado o menino, mesmo sabendo que ele provavelmente o molda, assim como
faz com todos ao seu redor.
— Ele te adotou então? Por que você não o chama de pai? — pergunto,
ainda tentando entender a dinâmica entre os dois.
Li balança a cabeça com um meio sorriso, como se a ideia fosse absurda.
— Seria falta de respeito. Ele é Kaeldros.
— Que seja, não entendo essa coisa toda com os nomes.
— Não há em todo o mar dois sirenos com o mesmo nome — ele explica
com naturalidade, como se fosse o básico do básico. — Cada nome tem um
significado diferente. Quando novos marujos são recrutados, eles perdem seus
nomes antigos e são chamados pela função, até Mestre Kaeldros lhes dar um
novo.
— Hm. E o seu novo nome? O que significa?
— Futuro dos Dragões. — Ele bate uma mão no peito, quase explodindo
de tanto orgulho.
Isso dispara um gatilho na minha mente. Se parte do nome dele pertence a
Kaeldros, qual seria? Futuro ou… dragão?
— E Kaeldros? O que significa o nome dele?
Ele hesita por um segundo, como se fosse um segredo quase sagrado.
— Filho do Dragão.
Filho do dragão… Molgur também tinha um filho…

Quando me recusei a voltar para o campo de batalha após queimar a vila


de Hans, Rocafria, meu irmão foi claro: Não aceito que sangue do meu sangue
se torne uma vagabunda, bebendo o dia inteiro. Se não vai ser uma guerreira,
então será uma esposa.
Ambas as ideias me apavoraram, tanto voltar para o campo de batalha,
quanto o casamento. Para escapar de ambos, fugi para as montanhas de Molgur.
O plano? Ganhar tempo. Enquanto estivesse em uma missão suicida para matar
um dragão, ninguém podia me obrigar a nada. Mas, ao chegar em Nebruína e
encontrar um lagarto gigante e inteligente, destruí-lo era a última coisa que eu
queria.
Molgur também não demonstrou interesse em me matar, embora tenha
deixado claro que o faria se eu invadisse seu território. No final, selamos o pacto
da Eterna Donzela, e, por dias, não consegui ir embora. Não queria voltar para
Caldera, enfrentar meu irmão ou ser parabenizada em Rubinorte — a agora
chamada Cidade-Mãe — por um feito tão vil quanto matar inocentes.
Mas Molgur não me queria ali. Isso ele deixava bem claro a cada dia.
— Você é teimosa como meu filho! — Ele cuspiu, lançando uma rajada de
fogo enquanto eu corria, me abrigando atrás de uma formação rochosa.
As chamas passaram rentes à minha cabeça, o calor aquecendo o calcário,
forçando-me a me afastar. Nebruína era feita desse tipo de pedra sem valor, uma
das razões pelas quais a região permanecia intocada. Todas as outras montanhas
foram tomadas pelos clãs e seus dragões extintos de Caldera.
Era linda, com suas galerias subterrâneas cujas paredes exibiam camadas
como os anéis de uma árvore antiga. Uma nascente cristalina fluía por entre as
rochas, formando piscinas de água fresca, a mais pura que já provei. Rios
cortavam a montanha como veios de prata, espalhando-se pela terra.
À noite, a neblina fria e úmida tomava conta de tudo, transformando o
lugar numa visão etérea. Estar ali era a experiência mais pacífica que já tive.
— Achei que você fosse o último dragão vivo! — gritei, desafiadora.
— De maneira alguma. Tenho um filho, e ele carrega a herança da espécie
— respondeu, e escutei o som de suas escamas raspando nas pedras enquanto
voltava a se deitar. — Mas se você continuar aqui, é você quem se tornará a
última de sua espécie.
Espiei por trás da rocha. Molgur já não parecia mais disposto a me
transformar em assado. Nos últimos dias, percebi o quanto ele se cansava
rapidamente. Era uma criatura muito velha; cheia de sabedoria, mas com pouca
energia. Quantos anos de vida ainda teria?
— O que quer dizer com isso? Vai atacar Caldera e extinguir os humanos?
— perguntei, enxugando o suor da testa com a mão. O calor do esconderijo era
insuportável, mas não me atrevi a sair. Não confiava totalmente no dragão.
Ele sacudiu seu enorme corpo, como o de um cachorro velho, animado,
mas cansado demais para se levantar.
— O que faz de você uma Elena? — ele perguntou, sua voz carregada de
uma ironia divertida.
— Hã?
— Meu raciocínio é muito rápido para um bípede? — Sua risada ecoou
pelas paredes, e o som de suas escamas era quase musical, como o tilintar de
sinos. — Vamos tentar de novo: o que faz de mim um dragão?
Sua cauda bateu contra o chão, moedas de ouro saltarem da pilha atrás
dele. As riquezas que acumulava estavam espalhadas em montes ao redor, junto
de pedras preciosas, baús e armaduras. Ele era possessivo com seus tesouros,
dividindo-os por categorias em diferentes câmaras pela montanha.
Sempre se orgulhava em me mostrar — à distância, é óbvio — os espólios
que acumulou em sua longa vida. Chegamos a ter uma discussão violenta
quando tentei me aproximar de uma coleção de espadas.
— Escamas? Asas? Dentes afiados e... uma obsessão doentia por moedas?
— Que mente limitada. — Ele bufou. — Esta velha carcaça tem pouco a
ver com o que realmente é ser um dragão. Quando eu morrer, será apenas
comida para as plantas. Patético, não acha? Um dragão devorado por arbustos.
— Então o que faz de você um dragão? — perguntei, inclinando-me para
fora do meu esconderijo.
Molgur me olhou, e por um momento seus olhos dourados brilharam tanto
quanto o ouro ao redor dele. Suas escamas eram negras e opacas como
porcelana, quando ficava por muito tempo parado, quase podia ser confundido
com a mais perfeita estátua, que levaria a vida inteira de um artesão abençoado
para esculpi-la.
— Ah, finalmente uma pergunta inteligente. Meu senso de justiça, acima
de tudo. Os tesouros que acumulei, e não apenas estes... — Ele acenou com a
cauda para as pilhas de ouro. — Mas os valores que carrego. E minha beleza, é
claro.
— Está ficando velho e vaidoso. — Brinquei.
— Sabe, tenho um filho que carrega minhas melhores características. E as
piores também. Mas é o destino de todo pai ver os filhos cometerem os mesmos
erros e não poder fazer nada a respeito.
Ele fez uma pausa, me dando tempo para refletir.
— E você? O que faz você da sua espécie, Elena?
Minha resposta saiu amarga, sem nenhum traço de humor:
— Covardia. Desonra. Vergonha.
— Não se defina por um erro, menina. Tente de novo.
Respirei fundo, olhando para minhas mãos calejadas, marcas deixadas pelo
manejo da espada.
— Minha coragem. Minha honra. Minha habilidade com a espada.
Molgur sorriu, satisfeito.
— Veja só. — Ele inclina a cabeça. — Me parece infeliz que Elenas sejam
extintas do mundo porque você decidiu se esconder em uma montanha.
Alguns dias depois, deixei as montanhas. Fui para Ferroforja, conheci
Greta, montei a fazenda e, meses depois, o mar me trouxe Manon. Foi então que
comecei a entender as palavras de Molgur.
Mas é só agora que eu começo a pensar se Molgur realmente estava
falando de um dragão de escamas, asas e dentes quando disse que tinha um filho.
CAPÍTULO 11
____

Convenço Li a me fazer companhia. Preciso de algo para ocupar a mente e as


mãos, então improviso uma aula de manejo de espada com dois cabos de
vassoura. É isso ou ser consumida por culpas que não são apenas minhas.
Kaeldros claramente não lhe ensinou nada sobre luta — o garoto mal sabe
como posicionar os pés. Passo a maior parte da tarde corrigindo seus
movimentos, vendo-o tropeçar desajeitadamente, mas aprendendo rápido, afinal,
ele é um menino do Ferro. Paramos apenas para um lanche na hora do almoço, e
embora meu estômago ainda rejeite comida sólida, ao menos os enjoos
diminuíram com o chá de gengibre. Amanhã devo estar melhor.
Quando a noite cai e Li sai para buscar algo mais substancial para eu
comer, quem volta ao quarto não é ele.
— Quem te deu permissão para ensinar essas selvagerias ao Li? —
Kaeldros entra, fechando a porta com um estalo seco, seu olhar já buscando
confronto.
Ele está vestido de preto da cabeça aos pés, como na noite em que nos
conhecemos. Sua postura é arrogante, o queixo erguido exibe a cicatriz que eu
mesma lhe deixei e seus lábios se curvam em um desprezo contido.
Minha respiração acelera; quero perguntar sobre Molgur, sobre Manon, até
mesmo implorar por clemência em relação a Hans. Mas quando o vejo ali, tão
superior, como se a noite passada fosse culpa exclusivamente minha, o sangue
ferve. É incrível como raiva e desejo se entrelaçam, indistinguíveis. Olho para
seus lábios, sem saber se quero beijá-los novamente ou ver como ficariam
tingidos de vermelho depois de socá-los.
— Ele precisa aprender a se defender. — Cruzo os braços, firme. — Não
tem sequer instinto de sobrevivência. Um grumete que não sabe empunhar uma
arma? Ingênuo como um pato.
Kaeldros esfrega as têmporas, claramente irritado.
— Estou ensinando coisas mais importantes — retruca, o tom ácido. —
Como ler os ventos, interpretar cartas náuticas, lidar com as cordas... e a
gentileza. Conhece essa palavra?
— De que adianta tudo isso se ele morrer no primeiro ataque? Ferro corre
nas veias dele. Nasceu para segurar uma espada e gosta das aulas. Não é justo
afastá-lo de seus ancestrais.
Você é teimosa como meu filho, lembro das palavras de Molgur e, por um
momento, minha raiva diminui, penso até em recuar um pouco. Reconhecer que
precisamos tomar decisões difíceis quando temos outros sob nossa
responsabilidade, passei por isso com Manon e suas visões. Mas antes de
conseguir formular uma frase para pacificar a situação, ele cospe um punhado de
veneno:
— Assim como você fez com a garota ruiva?
— O quê? — Pisco surpresa. — Manon não é do Povo do Mar. Não a
afastei de nada.
Ele repuxa os lábios em um sorriso frio, satisfeito com minha confusão. Se
aproxima devagar, sustentando um silêncio dramático apenas para me perturbar.
Para à minha frente, inclinando-se até que nossos rostos fiquem na mesma altura,
o nariz quase tocando o meu.
— Talvez não seja do mar, mas também não pertence ao povo do Ferro.
Nunca questionei de forma consciente a origem de Manon. Mesmo com
minha influência na Cidade-Mãe, a embarcação que ela estava nunca foi
identificada, ninguém em Caldera reportou um navio afundado. Era estranho,
muitos objetos de valor chegaram na praia junto com ela, muitos deles eram
diferentes do que temos, mas eu apenas supus que aquela devia ser uma
embarcação de saqueadores ou qualquer coisa do tipo.
Meu silêncio é resposta suficiente para Kaeldros continuar a me provocar.
— Veja só — ele murmura, seus olhos cravados nos meus, desvendando
cada detalhe da minha expressão. — Talvez se alguém tivesse te ensinado
cartografia, você saberia que o mundo é maior do que apenas norte e sul.
Meu rosto queima de raiva. Aperto os punhos e recuo até bater na mesa do
quarto. Ele está me chamando de selvagem e ignorante; desprezando, mais uma
vez, as tradições do meu povo.
Kaeldros agita essa nova informação como uma isca, esperando que eu
implore por mais, que pergunte sobre o oeste e o leste.
— Por quanto tempo vai me manter trancada aqui? — pergunto frustrada.
— Até eu achar tolerável olhar para você de novo. — Ele ergue ombros
com indiferença.
— Você quis dizer até fazer as pazes consigo mesmo por ter pendurado
Hans no mastro?
O golpe o atinge em cheio. O sorriso desaparece, e eu celebro essa
pequena vitória.
— Areskaan. — Ele me corrige, até tenta esconder o quanto o afetei, mas
fica evidente quando foge em direção a porta. — Se precisar de algo, peça a
Kealitch. — Cospe as palavras sem sequer me olhar antes de desaparecer.
Li volta para quarto algum tempo depois com a janta e uma camisola para
mim, continuo me recusando a vestir as roupas enviadas por Kaeldros. Pelo resto
da noite lhe conto histórias de seu povo em uma vigília improvisada. Não sou
uma Sábia-Mãe, ele não é uma jovem virgem do vilarejo, mas, neste momento, é
tudo que tenho para acalmar os Deuses e meus próprios pensamentos.
No dia seguinte, acordo ainda miserável. Minha mente é uma tormenta,
não parou por um momento sequer durante a noite, igual ao meu estômago que
rejeitou toda a refeição do jantar. Estou fraca, desidratada e paranoica.
A tempestade que tanto ameaçou os céus, chegou. O barco balança mais do
que nunca e meus enjoos voltam com força total. O horizonte exposto pela janela
é um tanto assustador, as ondas batem com violência contra o casco, atingem o
vidro como se quisessem entrar e me arrastar para o mar.
Li me explica que não está tão ruim assim, já passaram por tempestades
piores. Diz, inclusive, que não chamaria isso de tempestade, está mais para uma
chuva forte. Não sei se quer apenas se exibir ou se fala a verdade.
Kaeldros não o proibiu de ficar comigo, me faz companhia durante mais
um dia. Tento conseguir mais informações sobre Manon e Hans, mas estas ele
me nega. Kaeldros pode estar piedoso o bastante para não me colocar sozinha
numa cela, mas não bondoso o suficiente para me eliminar das preocupações. Li
não admite, mas percebo que não está me contando a mando dele.
A angústia cresce à medida que as horas se arrastam. O tédio é sufocante,
assim como a ansiedade por não saber o que está acontecendo lá fora. Mesmo
com Li ao meu lado, a solidão do quarto se torna insuportável. Ele me conta algo
sobre os videntes do oeste, mas as palavras se perdem em meio ao redemoinho
de pensamentos sobre Manon e a constante náusea. Não consigo me concentrar.
Percebendo meu estado, Li finalmente decide falar com Kaeldros. Ele sai,
deixando-me sozinha com o som das ondas e o lamento da tempestade. O tempo
passa de forma confusa — poderiam ter sido minutos ou horas. Quando Li volta,
está encharcado, mas não cheira a salmoura, o que significa que não caiu no mar.
Deve ter sido a chuva. Ele traz uma bacia de água, toalhas e roupas novas.
— Mestre Kaeldros permitiu que você jante com ele — anuncia animado.
Jantar? Já é noite?
Dou uma olhada no vestido bonito que ele trouxe, muito parecido com
todos os outros que rejeitei. Penso em rasgá-lo apenas por birra, mas a
perspectiva de Kaeldros falar que não quer olhar para mim em suas roupas de
marujo e me mandar de volta para o quarto, é enlouquecedor.
Fico o mais apresentável que as condições me permitem. Não há
maquiagem para esconder o rosto pálido pelo enjoo, ou as olheiras cavadas pela
preocupação, e muito menos algo que suavize a carranca irritada que insiste em
permanecer em meu rosto.
— Está muito bonita, senhora — Li elogia, seu sorriso sincero quase
desarma meu mau-humor. — Lembra as mulheres das pinturas na cabine dos
tesouros.
Deixo escapar um sorriso forçado. Não importa o quão bonita ele pense
que estou, sinto-me desarrumada e exausta.
Nós saímos da cabine do capitão, mas o alívio de respirar ar fresco dura
pouco. Li abre a porta que leva ao convés, e uma lufada de vento gelado,
acompanhada de gotas de chuva, me atinge. O rugido das ondas é ensurdecedor,
vejo as massas de água batendo com violência no navio, como se as mãos
gigantes de Thalassor tentassem arrastar o galeão para o fundo do mar. O aperto
no estômago só confirma o que tenho ganhado certeza a cada dia: eu odeio o
mar, muito.
— Atrás do mastro principal fica a escotilha para a cantina. No três,
corremos. Tudo bem?
Faço que sim com a cabeça. Avançamos pela chuva, e rapidamente me
arrependo de ter cedido aos caprichos de Kaeldros. O vestido é impraticável,
atrapalha cada movimento. As ondas nos dão uma breve trégua, permitindo que
eu me agarre ao mastro enquanto Li luta para abrir a escotilha.
No meio da tempestade, um som abafado chega aos meus ouvidos: uma
oração de guerra a Phosius. Olho para cima e vejo a figura corpulenta de um
homem amarrado ao mastro. Hans. Ele está lutando contra a tempestade,
implorando para não morrer daquela maneira.
Sinto a bile subir pela garganta e, desta vez, não é apenas o enjoo. É
vergonha. Um guerreiro não deveria morrer assim, preso como um animal,
impotente diante do mar. Se não fosse por Kaeldros, teríamos lutado até o fim,
honradamente. Agora, Hans está destinado a morrer humilhado, mais uma vez
por minha causa. Eu o desonrei.
Minhas mãos tocam as cordas que envolvem o mastro. Eu conseguiria
escalá-las, mesmo com a madeira escorregadia? Como os marinheiros fazem
para chegar lá em cima?
— Senhora, rápido! — Li grita, despertando-me do transe.
Uma onda enorme se aproxima, erguendo-se ameaçadoramente enquanto
ele segura o alçapão da escotilha para eu passar.
— Aguente firme! — grito por cima do rugido do vento, sem saber se
Hans consegue me ouvir.
Eu vou voltar para te soltar.

A cantina do galeão é apertada e mal iluminada, por estar abaixo do nível


do mar, não há janelas aqui. O cheiro de peixe salgado, couro encharcado e
cerveja barata domina o ambiente, misturado ao leve aroma de bolor que parece
vir de todos os cantos. O barulho da tempestade lá fora sacode o navio e o
tilintar das canecas nas mesas acompanham o ritmo das ondas.
Kaeldros me leva até uma mesa mais afastada, longe dos marujos
barulhentos, que bebem e gritam, ignorando o caos do lado de fora. Eu mal
consigo andar, ainda mais verde do que pálida, depois de vomitar minhas
entranhas ao pé da escotilha. Sento com um gemido, apoiando os braços na
mesa. Tento disfarçar o quanto odeio este navio, mas falho miseravelmente.
Kaeldros também não está muito melhor. Sua perna balança
incessantemente embaixo do tampo, o nervosismo óbvio. Ele me encara com a
testa franzida e se vira para Li, que está de pé ao lado.
— Você deveria ter me dito que ela ainda estava vomitando.
— Você sempre fala que os enjoos são o primeiro passo para se unir ao
povo do mar. — Li dá de ombros, como se fosse algo normal.
— Um dia de teste, não dois — ele retruca, virando-se para mim. —
Quando foi a última vez que você conseguiu comer?
— Estou bem. — Tento soar firme, mas minha voz sai fraca como um
gemido.
— Não está — ele insiste, o olhar me atravessando como uma adaga. —
Quando vai parar com essa teimosia?
Antes que a conversa possa se tornar uma discussão, Rune, chega à
cantina, tirando a água do cabelo e da barba rala com as mãos. Kaeldros o chama
com um aceno.
Aproveito a pequena distração para procurar por Manon, encontro-a em
outro ponto do espaço, no meio dos marujos. Ela está... servindo cerveja?
Vestida em roupas de marinheiro e um avental surrado, equilibra canecas
enormes e uma jarra de líquido âmbar, desviando dos bêbados com agilidade.
Quase dou risada de seu sorriso atrevido quando ela desce a mão com
gosto em um homem que tenta furar a fila da bebida. Parte do meu enjoo chega a
desaparecer ao vê-la bem, mas, ao contrário de mim, quando os olhos de Manon
encontram os meus, o sorriso dela se desfaz em preocupação.
Sibilo que estou bem, mas ela faz sinal com as mãos, como quem pede
para que eu espere, e desaparece por uma das portas da cantina.
— Qual é a situação lá fora? — Kaeldros sussurra para Rune, os dois estão
inclinados sobre o tampo da mesa, conversando baixo para não serem ouvidos.
— Tentei levar algo para Areskaan comer, mas ele se recusou — Rune
suspira. — Está fraco e a tempestade não está ajudando.
— Ele quer viver, mas prefere morrer humilhado do que existir na desonra
de desobedecer pela segunda vez uma ordem — comento, e Rune agita a cabeça
em confirmação, ele entende, é um desertor mas já pertenceu ao Povo do Ferro.
Kaeldros me encara com o lábio torto.
Confesso que a obediência de Hans me surpreendeu, pensei que aceitar
Kaeldros como capitão era um meio para um fim, não achei que os desertores
realmente o reconheciam como líder.
— Se está arrependido, deveria encerrar o castigo. — Completo.
Kaeldros abre um sorriso sem humor.
— E perder o controle deste navio? Acredite, querida, há homens sem
nome aqui que fariam coisas inomináveis com você ao menor sinal de fraqueza
minha. Eles só precisam de uma desculpa.
Minha atenção vaga mais uma vez pela cantina, agora entre os rostos
embriagados e animados, presto atenção naqueles que me encaram de forma
predatória. Não há honra nesses olhares, parecem vazios e consumidos
puramente pelo desejo de causar dor.
— Que venham tentar! — rosno alto, batendo os dois punhos na mesa,
querendo ser ouvida por esses patifes.
— Vou degolá-los no meio da noite, não se preocupe. — Uma tigela
fumegante de caldo é colocada à minha frente.
Manon para ao meu lado, lançando um olhar ameaçador para os mesmos
homens que encaro. Ainda há três canecas em sua bandeja, ela serve as duas com
cerveja para Rune e Kaeldros, enquanto a terceira, com um conteúdo que cheira
a leite com especiarias, é entregue para Li.
— Sob a minha supervisão, Encrenca, você só vai servir cervejas e o mais
próximo que vai chegar de uma arma é a faca de manteiga. — O rosto de Rune
se ilumina com a chegada de Manon, os olhos caramelos ficam mais vívidos e a
expressão cansada dá lugar a um sorriso aberto e provocador. — Por que só ela
recebe tratamento especial? — zomba, indicando minha tigela de caldo.
— Quer um conselho amigo? Durma com um olho aberto, você também
está na minha lista — ela bate de volta, então se vira para mim. — Você está
bem? Está muito pálida. Eles me prometeram que você estaria bem.
A cantina começa um coral de reclamações porque Manon está a tempo
demais aqui, o consumo das canecas parece ser rápido, fico pensando o que todo
esse bando de bêbados faria se um navio de Caldera chegasse neste exato
momento. Nem metade está em condições de lutar.
— Estou melhor agora que sei que você está com seus dedos — provoco
Kaeldros, mas ele dá de ombros. — Pode ir, conversamos depois.
Manon aceita com relutância, persuadida pela gritaria que vira uma
cantoria improvisada sobre uma taverneira arisca. Seguro outra risada, parece
que em um dia ela já se tornou uma figura popular no navio.
Rune vira o rosto descaradamente para encarar a bunda dela quando saí e,
sem pensar duas vezes, dou um chute debaixo do tampo da mesa, logo embaixo
de sua cerveja, a caneca vira, derramando todo o líquido em seu colo.
— Droga!
— Esse foi um aviso, o próximo chute não vai ser na mesa — ameaço.
Ele encara Kaeldros, como quem busca reforços, mas seu capitão dá outra
vez de ombros.
— Você mereceu.
— Eu não estava fazendo nada de errado… eu estava… — Rune começa a
se atrapalhar enquanto busca uma explicação. A juventude de seu rosto lhe dá
um ar de moleque pego fazendo algo errado, quase esqueço que é o primeiro
imediato do navio que me sequestrou.
— Aceite outro conselho, amigo: às vezes, é melhor não explicar. — O
tom de Kaeldros é quase divertido.
Rune acaba fugindo da mesa com a desculpa de se limpar, assim que se
afasta, Kaeldros e eu começamos a rir. A tensão do último dia diminui, tanto eu
quanto ele ficamos mais relaxados, parte daquela raiva é esquecida. Talvez eu
não ache que ele seja uma pessoa ruim, talvez ele seja apenas alguém muito
desesperado para encontrar seu pai.
— Um pouco de cor retornou ao seu rosto — ele comenta.
Realmente me sinto ligeiramente melhor agora, ainda fraca mas menos
enjoada. Penso que os vômitos não estavam sendo causados apenas pelo mar, ao
menos hoje foram também devido ao nervosismo.
— Nunca mais me tranque em um quarto, eu não gosto de me sentir presa.
— Eu queria que soasse como uma ordem, mas parece um pedido.
Um vislumbre de culpa passa pelo rosto de Kaeldros e ele assente.
Parte da fraqueza melhora após beber o caldo forte que Manon trouxe para
mim, não converso com Kaeldros e ele também evita falar comigo. Li é o
responsável por tirar a mesa do silêncio incômodo, nos enche de perguntas
difíceis sobre a cena que acabou de presenciar, coisas como: o que Rune estava
olhando que me deixou tão brava e o que significa a palavra degolar.
Para manter a pose de casal em público, Kaeldros puxa sua cadeira para
próximo da minha, é um tanto incômodo, me deixa consciente do calor de sua
pele, ao mesmo tempo que está longe demais para eu de fato sentir seu toque.
Esses pensamentos tem me deixado louca, quando esse efeito estranho da canção
do sireno vai passar?
Fica pior quando ele se inclina para falar baixo em meu ouvido, eu mal
consigo prestar atenção em nada do que ele diz, todo o meu foco se volta para
sua voz melodiosa e o quão próximo seus lábios estão do meu pescoço.
— Acho que vou vomitar. — Levanto-me de supetão e corro para fora da
cantina.
Li me segue, mas paro nas escadas, sem vomitar. Espero para ver se
Kaeldros vem atrás, mas ele não aparece. Ótimo, vai dar certo.
— Senhora, o que está fazendo? — Li pergunta quando começo a subir as
escadas.
— Preciso que fique aqui. Vou fazer algo errado e não quero que você seja
punido por isso.
— Vai soltar Areskaan? — Ele adivinha.
Que garoto esperto, pode ser péssimo com a espada, mas assimila rápido
as situações e emoções. Confirmo com a cabeça, confiando em seu julgamento.
Ele poderia correr agora, me entregar para Kaeldros antes que eu tenha a chance,
mas sei que não vai, porque é um menino gentil.
— Quero ajudar — ele pede subindo o primeiro degrau.
— Não há nada que você possa fazer lá fora. Ficar aqui me dando
cobertura já será o bastante.
— Eu sei como funcionam as cordas do navio. Posso soltar Areskaan sem
que você precise escalar o mastro.
Ele tem um ponto. Acabo aceitando, mesmo se tivesse negado, duvido que
conseguiria o impedir de me seguir. Enquanto subimos as escadas para o convés
principal, me pergunto se seu desejo de ajudar é a coragem do Povo do Ferro que
corre em suas veias, ou a gentileza que Kaeldros diz ter lhe ensinado.
CAPÍTULO 12
____

Li me conduz até o centro do convés, onde me mostra um mecanismo robusto,


usado para içar a vela do mastro principal. Ele explica que foi com aquilo que
ergueram Hans até lá em cima. A estrutura circular possui várias barras de
madeira, que giram o cabrestante e controlam sua altura. Ficamos em lados
opostos e começamos a empurrar, nossos pés escorregando no chão molhado
enquanto a chuva nos encharca, e as ondas violentas invadem o deck nos
derrubando repetidamente.
A cada empurrão, conseguimos baixar o guincho um pouco. O estado do
meu vestido ou a dor nos joelhos, machucados pelas quedas, não me importam
mais. O que me preocupa é o silêncio inquietante. Hans deveria estar rezando ou,
no mínimo, lançando ofensas por estarmos interrompendo seu castigo. Mas não
há nada.
Quando o guincho finalmente toca o chão, não parece que acabamos de
baixar um homem. É como se tivéssemos descido um saco pesado de legumes.
— Hans! — grito correndo até ele, o pânico me consumindo.
Caio de joelhos ao seu lado, meus dedos trêmulos buscam seu pescoço. Ele
está vivo, mas sua respiração é fraca, irregular. O alívio que sinto é cruel, rápido
demais para ser reconfortante.
— Hans, acorde! — Balanço seus ombros e o corpo enorme mal se move.
Nada. O desespero começa a crescer. Cheguei tarde demais?
— Areskaan?! — Tento seu outro nome. Ele mexe um pouquinho. —
Areskaan! Areskaan! Areskaan!
Ele reage com dificuldade, levantando um pouco a cabeça, mas seus olhos
não conseguem focar. Suas roupas estão molhadas por uma mistura de água e
sangue. Pequenos cortes são visíveis debaixo das roupas rasgadas, parecendo o
resultado de bicadas das gaivotas que o atacaram.
— Me coloque de volta no mastro... — ele murmura, os lábios mal se
movem quando fala.
Uma onda gigantesca se ergue ao lado do navio, e eu me lanço sobre
Areskaan, tentando ao menos proteger seu rosto. A força da água nos arrasta
vários metros pelo convés.
— Consegue se levantar? Eu vou te ajudar a entrar! — Preciso gritar para
ser ouvida.
Não espero por uma resposta, tento passar seu braço largo por cima do
meu ombro, mas ele me empurra.
— Menina teimosa... você me desonra... Me coloque de volta naquele…
mastro… ou lute… comi… — Seus olhos vão se fechando conforme avança na
frase.
Seguro seu rosto com as duas mãos, dou tapas em sua bochecha tentando
despertá-lo.
— Não durma ou você não vai mais acordar!
Ele abre as pálpebras assustado, olha envolta meio confuso, mas logo um
pouco de consciência retorna.
— Eu já… mandei… você…
— Não há desonra! — grito, a voz rasgando minha garganta. — Você
vingou sua família! Eu estaria morta se Kaeldros não tivesse intervido!
Quais eram minhas chances? Poderia ter furado seus olhos com os dedos,
mas ainda assim ele teria reduzido meu tórax a um saco de pancadas no
processo. Para todos os efeitos, ele cumpriu com seu dever.
Muitas vezes fatores fora do nosso controle selam nosso destino, mas os
Deuses e o acaso não determinam nosso caráter. Ele é um bom guerreiro e não
quero que ele se torture mais por isso.
— O que seus companheiros em Rocafria pensariam se morresse dessa
forma? — Continuo gritando quando sua atenção se volta para mim.
Ele me encara pela primeira vez, a emoção deixa seus olhos brilhantes e
úmidos.
— Hans pode descansar em paz agora com sua família e companheiros,
mas Areskaan deve viver para lutar mais um dia!
Uma lágrima ameaça cair da lateral dos seus olhos, mas ele a segura. Luta
contra as emoções da mesma forma que duela com a morte. Por um momento, eu
também enfrento as lágrimas. Não sei de onde vem esse nó na garganta, mas
fungo o nariz, engulo.
— Me leve para dentro, menina... — A voz dele sai abafada, quase
inaudível quando cobre o rosto com a mão grande e pesada.
Passo o braço dele pelos ombros, tento erguê-lo, mas só consigo levantar a
frente de seu corpo alguns centímetros, as pernas ainda se arrastam pelo chão.
Para cada passo que dou, o vento me empurra para trás, mal consigo ficar de pé.
Meus joelhos vacilam por um momento, e caímos juntos.
— Merda! — grito, uma dor aguda na perna.
Tento mais uma vez. E outra. Cada tentativa é uma pequena vitória,
avançando centímetros. Ele é pesado demais, e o convés está escorregadio. Outra
onda gigantesca nos atinge, e quando caio, minha cabeça bate no deck. O gosto
metálico de sangue preenche minha boca, mas eu não paro.
— É o melhor que você consegue fazer?! — grito para a tempestade.
— Menina… você vai morrer se continuar…
— Então morreremos os dois com honra lutando contra a tempestade!
Nós rimos, mas só até a próxima onda nos derrubar.
Apesar de minha proibição, Li desafia as ordens de Kaeldros e começa a
nos ajudar. Ele empurra as pernas de Areskaan pelo chão, não é de grande ajuda,
mas suas intenções são o bastante para renovar minha determinação.
Quando finalmente chegamos à escotilha, ele corre para abrir o alçapão.
Encaro as escadas, não vou conseguir descer e carregar Areskaan ao mesmo
tempo, os degraus são muito estreitos.
— Isso vai doer — eu aviso, enquanto me viro meio desengonçada até
ficar de frente para ele.
Neste ponto, a consciência de Areskaan está mais do outro lado do que
aqui, seu aceno grogue é um reflexo. Melhor assim, talvez não sinta dor se
acabarmos nos machucando. Abraço seu rosto, tento proteger ao máximo sua
cabeça quando nos jogo pelas escadas. Rolamos pelos degraus, mas como a
queda foi controlada, é menos pior do que se tivéssemos caído por acidente.
Minha cabeça bate em algum lugar, tudo fica meio borrado, meio confuso.
Levo a mão até a nuca, não há sangue, vou ficar bem.
Arrasto Areskaan para dentro da cantina, tão zonza que já não sinto mais
dor. Uma gritaria de vozes me rodeia: são marinheiros perguntando o que está
acontecendo, é Li constantemente querendo saber se estou bem. Eu não escuto
nada, são todos ruídos debaixo de um apito constante quando deposito Areskaan
no chão.
Penso que acabou, mas ninguém vem ao nosso socorro.
Meu corpo está tremendo, não, está se debatendo. Não sei como ainda
estou de pé. Eu encaro todos aqueles rostos desconhecidos que me observam,
nenhum deles ousa vir me ajudar. Nenhum deles sequer cogita ir contra
Kaeldros.
— Por que vocês não fazem nada?! Ele é companheiro de vocês!
No chão, Areskaan geme dolorosamente. Volto a me ajoelhar. Não sei o
que fazer, pensei que só precisava trazê-lo até aqui. O que eu faço agora?!
— Manon! Traga um ensopado! Li, pegue cobertas!
Que morram em agonia todos os que apenas observam. Vejo a cabeleira
ruiva de Manon se mover em algum lugar e tenho certeza de que Li me ajudará.
Em meio a multidão de rostos, tento me concentrar, esfrego os olhos para tirar o
embaçado e assim eu possa reconhecê-los.
Com muito esforço avisto Kaeldros, ou alguém muito parecido com ele.
— Eu aceito qualquer castigo, duplique se for preciso. Mas… — Minha
voz embarga. Eu engulo de novo aquele bolo na garganta, junto com o que
restou de mim para me manter firme: — Dragões são justos, e não é certo deixar
Areskaan morrer assim.
O rosto de Kaeldros é um borrão, não sei qual é sua expressão nesse
momento, se falei um completo absurdo ao supor que realmente é o filho adotivo
de Molgur, tendo suas melhores características.
Ele ergue o braço, com um simples gesto autoriza seus marinheiros a se
aproximarem. Dois deles vêm direto até Areskaan, outro me leva até uma das
mesas para me examinar. Uma comoção se inicia, todos se movem de um lado a
outro e, apesar de não conseguir entender o que está acontecendo, sinto que vai
ficar tudo bem.
O homem que está examinando minha testa sai para pegar algo e Kaeldros
aproveita para se aproximar.
— Você é cabeça dura, mas ainda assim é perigoso dormir. Acha que
consegue ficar acordada? — Ele passa os dedos pelos meus cabelos,
inspecionando a batida próxima da nuca.
Tento responder, mas minha voz está rouca, então apenas confirmo com
um grunhido.
Ele fica parado ali por mais um momento sem dizer nada, queria conseguir
ler seu rosto, mas ainda está tudo embaralhado demais. Antes de se afastar, diz
algo, mas é tão baixo que não tenho certeza se estou ouvindo coisas ou se é real:
— Obrigado.
O homem que estava me tratando retorna com ervas, panos limpos e
Manon ao seu encalço. Eles cuidam de mim, mas não há nada muito grave: um
hematoma na nuca, joelhos inchados e uma porção de arranhões.
Meus cabelos ensopados escorrem pelo rosto, fico feliz por isso, escondem
as lágrimas de alívio que caem ora ou outra.

Faço questão de continuar por ali até ter certeza de que Areskaan ficará
bem. Não há muito mais a ser feito; conseguem fazê-lo beber um pouco de
caldo, tratam as feridas de bicada e aquecem seu corpo com cobertas. Depois de
algumas horas seu rosto retoma parte da cor rosada e já começam a falar sobre
transferi-lo da cantina para o dormitório nos andares mais baixos.
Com uma muda de roupas secas e bálsamos para a dor, fico bem. Algumas
horas se passam sem nenhum efeito colateral e já parece seguro dormir. Manon
vai procurar por uma muleta improvisada e fico apenas com Li na cantina
enquanto alguns marinheiros usam uma maca para levar Areskaan. Tudo parece
bem até um deles reparar na minha presença.
Seus olhos encontram os meus com surpresa, como se tivesse esquecido
que eu estava ali. Então, passam para algo mais sombrio, um daqueles olhares
cheios de rancor dos quais Kaeldros me alertou: os homens sem nome que
fariam coisas inomináveis comigo.
Ele questiona Kaeldros sobre meu castigo. Outras cabeças se erguem;
alguns querem me ver sangrar, outros buscam justiça. É como ele mesmo disse
mais cedo, ao menor sinal de fraqueza, este galeão pode virar um campo de
batalha.
Com esforço, me coloco de pé. Tudo dói, mas após algum descanso,
percebo que nada está quebrado. Talvez eu consiga aguentar um ou dois dias no
mastro. Ao contrário de Areskaan, não devo nenhum respeito a Kaeldros, e se
alguém me trouxer comida e água às escondidas, não recusarei. O maior
problema são as gaivotas.
E Manon. Preciso resolver isso enquanto ela ainda está na cozinha.
— Eu vou para...
— Mestre Kaeldros, quero assumir o castigo de Elena — Li me
interrompe.
Não sei o que me surpreende mais: o fato de ele querer ser pendurado no
mastro no meu lugar ou de ter me chamado pelo nome. Vejo a surpresa romper a
máscara de indiferença de Kaeldros, e o barulho ao redor aumenta. Alguns
discutem se Li pode ou não assumir o castigo, outros dizem que ele ainda é uma
criança, mas há quem afirme que, no mar, não existem crianças.
O tumulto atrai Manon, que sai da cozinha em disparada, seus cabelos
vermelhos ainda mais selvagens do que o normal. Para ela, nem Li, nem eu
devemos ir para o mastro — ela insiste que será ela.
No meio da confusão, encontro os olhos de Kaeldros. Ele massageia as
têmporas com os polegares, claramente exausto e frustrado. Entre os fios de seus
cabelos cor de cobre, noto alguns grisalhos. Estresse ou idade? Não consigo
segurar uma risadinha.
Ninguém percebe, todos estão ocupados gritando uns com os outros, mas
Kaeldros ouve. Ele me encara, sério a princípio, depois esboça um sorriso.
Rimos juntos, de forma quase imperceptível, enquanto o caos segue ao redor.
— Me mande para o mastro — murmuro para ele.
— Vai ficar bem? — Consigo ler seus lábios à distância.
Aceno, e ele faz o mesmo. Respira fundo, e vejo quando sua expressão
muda ligeiramente ao colocar a máscara de capitão de volta.
— Ninguém está acima das minhas regras no Fúria! — Sua voz ecoa,
silenciando todos ao redor. — Nem mesmo minha amada está acima do meu
comando. Ela será amarrada…
Protestos irrompem o silêncio, Li e Manon tentam argumentar, mas alguns
marujos já vêm na minha direção. Ofereço os pulsos sem resistência. A balbúrdia
de vozes retorna e, outra vez, são calados quando Kaeldros volta a falar:
— …na minha cama — ele completa com um sorriso sacana. Atravessa o
espaço entre nós, sutilmente dando um empurrão no marujo que já segurava
meus pulsos. — Ou vocês acham mesmo que eu iria partilhar com vocês a bela
visão dessa mulher rendida? — Ele fala alto e teatral, segura meu queixo para
exibir meu rosto para a tripulação.
É um sireno cretino e espertinho, resolve tudo com suas artimanhas. Dessa
vez não me oponho, entre ficar amarrada no mastro e ficar amarrada em sua
cama, a preferência é clara. Seguro a vontade de lhe provocar de volta, apenas
fomento seu espetáculo mostrando os dentes e rosnando.
Kaeldros abre um sorriso largo, esse não parece parte de uma atuação.
— Meus tesouros são apenas meus — diz, a promessa de seus olhos
escuros fazem meu coração pular uma batida. — Podem levá-la.
Ele permite que meus pulsos sejam amarrados e, dessa vez, quando sou
levada de volta para sua cabine, não estou mais tão preocupada. Mesmo
amarrada consigo dormir assim que sou deixada sozinha no quarto, o corpo
exausto não dá espaço para pensamentos turbulentos.
Acho que começo a entender Kaeldros e como seu galeão funciona. Vai
ficar tudo bem.
Os céus também pensam isso, pois na manhã seguinte faz sol quando
acordo.
CAPÍTULO 13
____
Acordo de um sonho com Kaeldros para encontrar o próprio me
observando. Apoiado preguiçosamente no batente da porta, uma sobrancelha
levantada e o canto dos lábios tremulando, como se segurasse uma risada. Por
um momento fico com receio de ter falado algo estranho enquanto dormia.
— Se importa? — Indico as amarras com um movimento sutil da cabeça.
— Para uma guerreira, você é péssima em seguir ordens — ele debocha, a
voz leve, sem a habitual acidez.
— Você não é meu capitão.
Ele se senta ao meu lado na cama. Está relaxado, sem a máscara impiedosa
de comandante do Fúria, parece mais com o sireno que me salvou da hipotermia.
— Sou mais do que isso, sou seu noivo — ele continua com o tom
divertido. Os nós se desatando tão rápido quanto foram feitos. — Cantaram uma
música muito bonita do seu povo durante minha despedida de solteiro, falava
sobre o amor como uma lâmina afiada capaz de rasgar o véu e desafiar o destino.
E que a esposa deve ser uma devota de seu marido.
É uma das minhas canções favoritas, sei que ele está a interpretando errado
apenas para me provocar. Espero até estar sentada e com o rosto na mesma altura
que o dele para respondê-lo de igual para igual.
— Você não é meu noivo de verdade. E mesmo que fosse, esse refrão fala
que sou sua devota, mas você deve me tratar como sua Deusa.
Por um momento, nos encaramos, sem pressa. A iluminação suave e
alaranjada do amanhecer atravessa as janelas e se projeta na lateral do rosto dele,
realçando as covinhas da bochecha e a cicatriz no queixo.
Após tantas explosões, esta é a primeira vez que tenho a oportunidade de
realmente observar seu rosto. Ele tem um arco do cupido bonito nos lábios, algo
raro na maioria dos homens. A curva longa é perfeita, como um arco bem
forjado. Uma piada sobre seus beijos serem flechas me passa pela cabeça, e se
ele fosse apenas um marinheiro de passagem por Ferroforja, eu provavelmente
ficaria meses obcecada por esses lábios, fazendo piadinhas sobre flechas do
cupido com Manon.
— Então me diga, como você quer ser adorada? — Sua voz interrompe
meus devaneios, e percebo que seus olhos, tão inchados e cansados quanto o mar
após uma tempestade, também estão focados na minha boca.
Sireno sedutor. Kaeldros sempre joga com as mesmas cartas: ameaçar
quem eu amo ou apelar para o meu desejo.
— Quanto tempo isso dura? — Empurro meu corpo para trás, buscando
uma distância segura.
Ele franze a testa, confuso.
— A canção do sireno.
— Canções não criam nada — ele explica calmamente. — Elas apenas
transformam pequenas fagulhas em incêndios, tanto para quem canta quanto
para quem escuta.
— Então você também...
— Para te manter assim, eu também tenho que estar assim — ele confessa.
— Já foram quatro canções e, se você não me provocar, talvez sejam as últimas.
Uma em meu banheiro, outra no convés quando atracaram em Ferroforja e
aquela quando lutei com Areskaan. Quando foi a quarta
— E se eu não colaborar?
— Então vou cantar até não sobrar nada no seu cérebro além de vontades
insuportáveis — Kaeldros provoca, agitando a mão num gesto para que eu me
aproxime. — Vem cá, deixa eu ver se você não quebrou nada.
Eu sei que não quebrei, mas não consigo resistir. Depois de dias infernais,
não mereço uma pequena recompensa por sobreviver? A lembrança dos dedos de
Kaeldros desfazendo todos os nós doloridos nas minhas costas na noite em que
invadiu minha casa volta com força. Eu queimaria um galeão inteiro por uma
boa massagem agora.
Cedo ao impulso e arrasto meu corpo cansado até ele, sentando de costas
para que possa checar minhas costelas.
— Não seria insuportável para você também? — pergunto.
Os dedos de Kaeldros tocam a base do meu pescoço, a pressão firme e
circular de seu polegar quase me faz suspirar. Ele desce devagar, seus toques
cuidadosos e meticulosos em cada músculo, como se soubesse exatamente onde
aplicar força.
— Estou acostumado a não ter o que quero — responde perto do meu
ouvido.
— Eu não estou — confesso, antes de me dar conta do que estou dizendo.
Quero dizer, num mundo em que tantas portas me são fechadas só por ser
mulher, por que eu mesma me negaria prazeres quase inofensivos?
Ele pressiona um dos músculos machucados na altura do cóccix, resultado
de uma das muitas quedas da noite passada, e, por reflexo, tento me afastar. Sua
outra mão segura firme na minha cintura, me mantendo no lugar. Ele aperta com
mais força e, ao mesmo tempo em que está checando se não há algo fora do
lugar, começa a massagear a área.
Gemo de dor e tenho a sensação de que ele gosta do som, porque pressiona
de novo. Dessa vez, sou eu quem gosta.
— E se eu colaborar, o que preciso fazer para isso passar? — pergunto,
meio sem ar.
— O que você faz quando quer continuar bebendo, mas sabe que o
próximo copo vai te derrubar?
Ele termina de inspecionar meus ossos e tira as mãos do meu corpo, me
deixando vazia. Me viro para encará-lo, buscando nos olhos dele algo que me dê
respostas.
— Eu já te disse — provoco, erguendo o queixo. — Não me privo de nada.
— Então você já tem sua resposta. Pode esperar o efeito passar... ou saciar
sua vontade. — Ele se inclina para trás, apoiando as mãos no colchão, deixando
o corpo num ângulo sedutor e convidativo. — Qual vai ser?
Ele é lindo de um jeito perigoso, o que só alimenta ainda mais minha
curiosidade. Foram anos de tranquilidade, me envolvendo com Sorens de rostos
diferentes, mas pensamentos iguais. Não estou reclamando; são amantes
competentes, silenciosos, que cumprem seu papel e me deixam satisfeita.
Confortáveis.
Mas Kaeldros me promete algo que não sinto há tempos, uma emoção que
acelera meu coração como se eu estivesse em um campo de batalha: o confronto,
a incerteza do próximo segundo. É excitante, mas ao mesmo tempo me assusta.
Desejo é só desejo. Não é amor.
Mergulho sobre Kaeldros, e ele não resiste; cai de costas no colchão
comigo por cima. Tomo seus lábios com uma urgência que mal consigo
controlar, desesperada por sentir sua língua explorar a minha. Ele solta uma
risadinha provocante, como se estivesse se divertindo com a minha pressa. Mas é
o sujo falando do mal lavado — consigo sentir o quanto ele está duro debaixo da
calça. Roço meu quadril contra ele, e sua risada se transforma em um gemido
baixo.
Eu poderia me viciar nesse som.
Ele gira nossos corpos com um movimento hábil, aquelas cordas que
foram usadas para prender meus pulsos aparecem de novo em suas mãos, ele
ergue meus braços até a cabeceira e volta a amarrá-los.
Isso parece uma ideia ruim, tem todo o potencial para dar errado. Mas me
deixo levar porque ele está cantarolando algo — ou, se for sincera, me deixo
levar por que parece divertido.
— Quão fundo vai aguentar… — Kaeldros murmura contra minha pele,
sua voz baixa e hipnótica me faz arrepiar.
Com um puxão firme, o decote do meu vestido se rasga, e meu cérebro, já
meio embriagado, acha isso de alguma forma engraçado. Quantas roupas ele
ainda pretende destruir? Não vou me opor se quiser acabar com o guarda-roupa
inteiro.
— ...quando na minha escuridão mergulhar... — Ele canta, enquanto suas
mãos deslizam até a parte baixa dos meus seios, apertando-os como se fossem
frutas maduras à espera de serem devoradas. — Prenda bem sua respiração para
não se afogar…
Eu obedeço, quase inconscientemente, segurando o ar como se fosse parte
de um jogo inevitável.
Os dedos de Kaeldros apertam meus mamilos com precisão, prendendo-os
entre o indicador e o dedo médio. A sensação é uma mistura de dor e prazer que
me faz soltar um gemido longo, involuntário.
— Porque com uma mulher como você, querida…
Ele continua brincando com meu mamilo, o olhar cravado no meu,
transbordando presunção e desejo. Maldito sireno mentiroso, cantarolando
promessas que parecem nunca se concretizar.
— …eu não vou conseguir me controlar.
— Então não se controle. — A frase só é firme na minha cabeça, sai quase
como uma súplica por meus lábios.
Dessa vez quando a canção acaba, minha mente não volta, continuo meio
entorpecida pelo desejo, o corpo inteiro em combustão por ele. Antes que eu
possa implorar por algo que não consigo sequer raciocinar direito o que é, ele
morde a parte alta do meu seio direito, acima da linha do decote. Afunda os
dentes com força, e eu gemo de dor. Ele suga a pele machucada, e o ar começa a
faltar enquanto eu quase deliro, ansiando que ele continue marcando cada
pedaço do meu corpo.
Não digo nada em voz alta, ou ao menos acho que não, mas ele obedece,
faz a mesma marca no outro seio, querendo manter uma simetria entre os dois.
Então, sobe para o meu pescoço, e deixa outra ali também. Vai me enchendo de
marcas arroxeadas enquanto eu gemo e esfrego as pernas, tentando, ainda
atordoada, conter o calor no meio delas.
Quando se dá por satisfeito com suas mordidas, ele volta até meus lábios e
me beija com delicadeza.
— Agora ninguém vai duvidar que você foi castigada essa noite. — Ele
sorri com malícia, os lábios avermelhados e inchados por seu esforço.
— Você vai parar? — cuspo com a respiração ofegante. A decepção na
minha voz é patética.
— Deixar você saciar suas vontades e perder o controle que seu desejo me
dá? Não, querida, talvez no final dessa jornada, se não nos matar até lá.
Um rosnado frustrado escapa do fundo dos meus pulmões, e Kaeldros me
silencia com outro beijo, mais urgente e impaciente do que o último. Seu corpo
pressiona contra o meu, e sinto seu membro rígido contra minha coxa, como se
ele quisesse me lembrar de que não sou a única consumida pelo desejo.
— Essa será uma longa viagem para o oeste — ele murmura, afastando o
rosto apenas o suficiente para segurar meu queixo entre os dedos. — Você não
mentiu sobre isso, não é? Molgur realmente disse que iria para o oeste?
Engulo em seco, tentando obrigar meu cérebro, ainda embriagado de
desejo, a funcionar. Mas é difícil raciocinar nessa posição, em que qualquer
mínimo movimento me faz tocar nele. Se eu disser a verdade, ele vai acreditar?
Ou vai me forçar a mentir de novo com algum ato louco como ameaçar uma vila
inteira? Quem sabe pendurar Manon no mastro até conseguir a resposta que
quer...
Não, eu não tenho um plano para isso agora.
— É verdade — respondo, hesitante.
Ele deposita um beijo rápido em minha testa.
— Vou pedir para Li vir te soltar daqui a pouco.
Conforme ele se afasta em direção à porta, me deixando amarrada à cama,
a familiar dor de cabeça, típica das ressacas causadas por suas canções, começa a
latejar atrás dos meus olhos.
— Se você já tem a informação, por que não me deixa ir embora? Por que
toda essa mentira complicada sobre o noivado?
Kaeldros se vira parcialmente, com aquele sorriso presunçoso que tanto
me irrita.
— Eu preciso de você. Primeiro porque foi a última a ver Molgur, talvez
você se lembre de mais alguma coisa, ou, talvez, esteja mentindo para mim. —
Os olhos dele se estreitam em descrédito, confirmando o que eu já imaginava:
podemos estar em termos mais amigáveis, mas nosso desejo não é sinônimo de
confiança. — Segundo porque sai da sua vila com as mãos abanando, você é o
tesouro que roubei de lá. — Ele faz uma pausa, sua mão desliza pelo portal de
madeira como se o barco fosse uma criatura viva. — Existem boas pessoas no
Fúria, mas aceito muitos desertores, ladrões e mercenários a bordo. A harmonia
aqui é um equilíbrio delicado, e agora você vai ter que aprender a equilibrar esse
jogo comigo em nosso teatro.

A brisa marítima é refrescante debaixo do sol morno, agradável. Vem em


lufadas constantes, carregando um odor bem suave do mar. Respiro fundo, mais
alguns dias e provavelmente estarei tão acostumada com o cheiro que não irei
mais senti-lo. Ainda é meio assustador encarar esse azul infinito até onde a vista
alcança, como se não existisse mais nada no mundo além deste barco, porém,
agora até vejo um pouco de beleza quando um pequeno cardume de peixes com
barbatanas aladas planam em pequenos pulos ao lado da proa do navio.
Um dos marujos me disse que são peixes-voadores e ficam ótimos quando
servidos com um purê à base de milho. Não são todos, mas depois de ontem,
alguns marinheiros parecem aceitar minha presença.
— Elena? — Manon me desperta de meus pensamentos.
— Desculpa. — Volto a atenção para ela a fim de retomar o assunto. —
Não entendi por que está preocupada, você parece ter descrito sonhos eróticos, é
perfeitamente normal.
O rosto dela assume uma tonalidade tão vermelha quanto seus cabelos,
levou uns bons minutos para conseguir me explicar o sonho, deu várias voltas e
gaguejou até finalmente dizer que estava deitada nua na relva com o primeiro
imediato Rune.
Ela limpa a garganta, visivelmente desconfortável com o quão direta fui,
isso só me dá mais vontade de provocá-la.
— E era grande?
— O quê?
— Você sabe… — Normalmente diria algo propositalmente estranho
como bengala, pepino ou cobra, mas estamos em alto mar e decido ser temática.
— …O mastro. Era grande?
Primeiro ela une as sobrancelhas sem entender bem do que estou falando
e, quando percebe, rosna entre a frustração e a raiva, dizendo que sou
insuportável nesse assunto. Começo a gargalhar com vontade e preciso conter o
ímpeto de querer abraçá-la. Os últimos dias foram muito ruins, cheguei a pensar
que momentos assim não existiriam mais.
— Eu acho que foi um pouco mais intenso do que isso — ela me explica,
depois de se recompor.
— Como assim?
— Eu acho que foram… visões.
Ah.
Rune é uma escolha interessante para uma primeira vez. Algumas
mulheres preferem esperar pelo parceiro certo, eu penso que a certeza é algo do
momento e que mesmo o mais certo dos homens se torna errado depois de um
tempo.
As primeiras vezes são supervalorizadas, desengonçadas e potencialmente
dolorosas; as segundas, terceiras… centésimas, são muito melhores. Eu posso
apostar que em algum lugar de Ferroforja, um Deus intrometido conta meus
pensamentos para Greta. Ela deve estar nesse exato momento gritando e me
amaldiçoando por ser um exemplo terrível para Manon, que nunca se tornará
uma Sábia-Mãe.
Sinto saudade dos seus sermões.
— Ele foi gentil e você queria? — pergunto.
Ela acena positivo. É o que importa.
— Que atire a primeira pedra quem nunca se sentiu atraída pelo perigo. —
Dou de ombros. Não possuo moral para dar um sermão nesse quesito.
Como se pudesse sentir que estamos falando dele, Rune passa pelo meio
do convés conversando com o timoneiro — consigo reconhecê-lo, é um dos
homens que estava com Areskaan na noite em que me atacou, como não carrega
nenhum esfregão, imagino que Kaeldros deve ter cancelado seu castigo também.
Ao meu lado, o rosto de Manon se converte em uma careta irritada que
mais entrega sentimentos do que os oculta. Aceno para Rune e até mesmo para o
timoneiro quando suas atenções se voltam para nós. Rune sorri para mim, mas
para Manon lança um beijo no ar e quase caio na gargalhada pela segunda vez.
O timoneiro se mantém sério, sem sorrisos e acenos, mas vejo uma vitória
pelo simples fato de não reagir negativamente. Se eu pudesse converter cada
desertor nesse navio a retornar para Caldera, meu irmão seria razoável em não
condená-los. Estamos em tempos de paz, ele veria como vantajoso todo o
conhecimento marítimo que esses homens adquiriram.
— Ele é estúpido, arrogante e mulherengo — Manon comenta quando
Rune volta a se afastar com o timoneiro, estão indo em direção ao castelo de
popa.
Consigo ver Kaeldros no convés superior ao lado do timão os esperando, é
provável que irão discutir a rota do Fúria para os próximos dias. Esse assunto
muito me interessa.
— Ele tem olhos bonitos, braços fortes e acho que percebi uma bunda
redonda — provoco.
— Elena! — Ela dá uma cotovelada em minhas costelas e rimos juntas.
— Foram dias ruins e estamos no meio do mar, não acho que haja muita
opção além de dar tempo ao tempo.
Apoio o corpo na amurada, mais uma vez encaro a imensidão do mar,
nenhum sinal de terra à vista em nenhuma direção. É, tempo é algo que teremos
muito por aqui.
Manon se apoia ao meu lado, há um conflito de emoções em seu rosto, um
brilho empolgado no olhar ao mesmo tempo em que morde o lábio inferior com
receio. Entendo esse sentimento, quando um horizonte de possibilidades que
você nem imaginava ter se abre à sua frente, é assustador, mas meio empolgante.
Seguro sua mão, feliz que tenhamos uma a outra mesmo aqui.
— Enlouquecer agora não vai ajudar em nada amanhã quando tivermos
uma chance de fugir — sussurro.
Ela olha para os dois lados, checando se ninguém está nos ouvindo.
— Qual o plano?
— Esperar e colaborar. Kaeldros não é burro, mas tem uma tendência a
inocência, eu acho que vai abaixar a guarda de novo em breve e aí fugimos.
Também há a chance de meu irmão mandar algum navio de guerra ao nosso
resgate.
— Esperar e colaborar — Manon repete, assentindo com a cabeça
enquanto seus olhos varrem o convés mais uma vez. — Eles não parecem ruins...
não acho que sejam saqueadores, pelo menos não a maioria.
Encaro também a tripulação espalhada pelo deck. Os marujos estão
divididos entre limpar o convés, consertar velas danificadas pela tempestade ou,
assim como nós, aproveitar o sol da manhã. O som rítmico das ondas batendo no
casco se mistura ao murmúrio das conversas e cantorias baixinhas.
— Encontrei muitas especiarias no paiol do porão — Manon acrescenta
franzindo o cenho, como se ainda estivesse processando a descoberta. — Sacas
demais para uso próprio... comerciantes, talvez?
Mal termina de falar, e minha atenção encontra um homem robusto que
passa ao longe carregando uma caixa. Ele parece mais tenso do que os outros, os
olhos nos avaliando com certa malícia.
Kaeldros falou sobre isso, como sua tripulação tem bons homens, mas
também mercenários. Esse é apenas um dos vários mistérios que envolvem o
Fúria e seus marujos, se parte da tripulação é composta de desertores do Ferro e
a outra parte do Povo do Mar, como ninguém usou canções contra mim ainda?
Por que no dia do sequestro a música no deck não causou o mesmo efeito que
poucas frases de Kaeldros conseguem causar em mim?
Terei tempo para descobrir tudo isso e, da próxima vez que fugirmos,
ninguém conseguirá nos impedir.
— É quase como se houvesse duas tripulações distintas nesse barco —
reflito.
Manon também pensa sobre isso. Depois de um silêncio breve, sem
chegarmos a lugar nenhum, mudo de assunto
— Mas sobre os sonhos... — começo. — Por que acha que são visões?
— Nas últimas duas noites tenho sonhado demais, e tem sido… intenso.
Não só os sonhos com Rune, mas eu tenho visto coisas muito estranhas quando
durmo.
— Como o quê?
Ela reluta da mesma forma que relutou em me contar a sensação de que
seria a última vez que entraríamos em casa. Nos segundos em que segura o
silêncio entre nós, escolhendo o que vai me revelar, sinto meu braço se arrepiar e
quase acabo dizendo que prefiro não saber.
— Uma praia que eu nunca vi antes — cospe de uma vez, como se
vomitasse algo ruim preso no estômago. — Haviam pessoas encapuzadas
esperando por mim.
Penso se ela está falando sobre o que encontraremos no oeste. Li disse algo
sobre videntes enquanto eu passava mal na noite passada, Kaeldros também
zombou de meu pouco conhecimento de mundo.
— São apenas sonhos — minto, porque acho que é o que ela precisa ouvir
agora.
— Você acha mesmo?
— Tenho certeza.
Deixo Manon na proa, observando-a por um instante enquanto o vento
brinca com seus cabelos. Ela parece absorta, perdida em pensamentos. Suspiro
por não poder fazer nada para ajudar, queria que Greta estivesse aqui, ela saberia
o que fazer.
Caminho em direção ao convés superior, onde Kaeldros ainda está
conversando com o timoneiro e Rune. Sua voz firme se mantém baixa o
suficiente para que eu só pegue fragmentos da conversa, algo sobre quanto
tempo podem ficar no mar sem reabastecer e qual seria a melhor ilha para isso.
Continuo ouvindo, mas antes que consiga captar qualquer coisa útil,
Kaeldros me percebe. Ele lança um olhar divertido em minha direção, ergue o
queixo marcado pela cicatriz e faz um leve gesto com a cabeça, convidando a me
aproximar.
Antes que eu possa abrir a boca, ele segura minha mão com uma suavidade
inesperada e deposita um beijo. Fico sem reação, borboletas lutando no
estômago. Ele aproveita para me puxar, envolve meu corpo com o dele e me
abraça por trás. Sua voz baixa e rouca atinge meu ouvido, a respiração quente
provocando arrepios no meu pescoço.
— Finja que estou te mostrando a imensidão do oceano e lhe prometendo
uma vida de aventuras em alto-mar — murmura enquanto levanta um braço à
nossa frente, fazendo um gesto como se contemplasse o oceano.
Quase deixo escapar uma risada quando vejo alguns marujos no deck
inferior nos olhando, mas me contenho.
— Quem diria... você é um romântico nato, quando não está entre quatro
paredes sendo um completo escroto.
Suas mãos envolvem minha cintura num aperto possessivo, e ele responde
com um sorriso malicioso que quase posso sentir.
— Eu me esforço, falsa donzela.
Os marujos lá embaixo mantêm a atenção em nós, e logo entendo o
motivo: estão comentando as marcas que Kaeldros deixou no meu pescoço.
Ótimo. A humilhação quase se materializa no ar, e ele, claro, se diverte com isso.
— Percebo, Demônio do Mar — murmuro, revirando os olhos. — Me
responde uma coisa... já que temos que manter essa farsa de casamento, não
seria mais convincente se você começasse a me chamar de...
Ele me interrompe antes que eu consiga terminar a frase:
— Só dou nomes aos que me importam. Vou te chamar de minha eterna
amada, minha bela donzela, querida... escolha algo igualmente meloso e
ficaremos bem.
— Certo... — Tento pensar em algo, mas as palavras parecem travar. —
Meu... querido...? — A estranheza me atinge; nunca tive o hábito de usar
apelidos assim, nem mesmo nos meus relacionamentos mais duradouros.
Kaeldros acha graça e ri contra meu pescoço, a respiração dele me
causando cócegas.
— Quem diria? Problemas em lidar com intimidade?
Desvencilho-me de seus braços, encarando-o de frente. Por trás dele, vejo
o timoneiro apertando o timão com força, claramente irritado pela nossa
interrupção. Dou de ombros, ainda não consegui o que quero.
— Não se preocupe comigo — tento soar casual. — Então, o que você
acha que Molgur foi fazer no oeste? — Baixo o tom, sem saber o quanto
Kaeldros compartilhou sobre o dragão com sua tripulação.
— Nada de bom. — Ele até tenta manter a neutralidade, mas o assunto o
pega desprevenido, seu desgosto é evidente. — Só existe uma coisa pior do que
o Povo do Ferro.
— E o que seria?
— Os videntes. — Desvia o olhar. — Espiar o futuro nunca traz nada de
bom.
O tema parece azedar o humor de Kaeldros. Ele logo se afasta, retomando
a conversa com Rune e o timoneiro. Reconheço isso como um sinal claro: ele
não vai me dar mais informações por agora. Aceito, nossa colaboração depende
de paciência e estratégia.
— Minha eterna amada — ele me chama quando estou próxima da escada
para o convés inferior, o tom carregado de um toque sarcástico. — Li pediu para
continuar as lições com a espada. Eu poderia te recompensar com privilégios ou
moedas, o que achar mais adequado.
— Não, isso é um direito de nascença dele. — Finjo seriedade, como se
não adorasse a ideia. — Não precisa me pagar nada.
Gosto da ideia de me manter ocupada, gosto ainda mais do tempo que
passo com Li. Fico feliz que ele também se interesse pelas lutas, ensinar a arte
da espada é algo que me traz satisfação.
CAPÍTULO 14
____

É fácil entrar em uma nova rotina agora que tenho alguma liberdade de
transitar pelo galeão, Kaeldros não gosta que eu desça nos níveis mais baixos
da embarcação, porém acredito estar mais relacionado à minha própria
segurança do que as informações que esconde de mim. Manon investiga pouco a
pouco cada cabine, não encontramos nada além de mais dúvidas entre tesouros
roubados e temperos para venda, a identidade do Fúria como um galeão de
comércio ou saqueadores do mar segue um mistério.
Li é um aprendiz rápido e desejo lhe perguntar de qual região de Caldera
veio, seus cabelos não são ruivos como os clãs do cinturão de trigo, sua pele não
é retinta como as famílias das regiões altas, seu sotaque é limpo, claro como o
meu.
— Você tem uma tendência ao egocentrismo, não tem, querida? —
Kaeldros me provoca durante um jantar quando, a sós, lhe pergunto sobre Li. —
Tenho certeza de que para alguns que não são da sua preciosa Cidade-Mãe, sua
língua carrega também um sotaque forte.
— Está dizendo que Li veio da Cidade-Mãe?
Ele dá de ombros, não me responde mais sobre isso.
Todos os dias começamos os treinos logo cedo. Gosto do céu limpo da
manhã, a forma como a água ganha um tom meio alaranjado na alvorada, os
marinheiros ainda não acordaram e, durante algumas horas, tudo o que escuto é
o som do aço das espadas, as ondas contra o casco e o chiado dos ventos contra
as velas.
Poderia perguntar ao meu pequeno aprendiz seu passado, mas uma
ferrugem toma um cantinho do meu coração de ferro e tenho receio de ouvir que
sou, de alguma forma, responsável por sua miséria.
Um visitante inesperado aparece na terceira manhã, eu sei que ele se
aproxima porque o convés inteiro vibra a cada passo de seus pés pesados. Dessa
vez, eu não me jogo no chão, porque conheço seu ataque. Consigo me virar a
tempo de bloquear a espada-porrete de Areskaan, mas não sou rápida o
suficiente para fazer isso em uma boa posição, com os pés meio desengonçados,
acabo sendo arrastada para trás alguns centímetros por sua força.
— Você está enferrujada — ele observa, seu olho bom, do lado direito,
varre minha postura.
— Se veio para uma revanche…
— Estamos acertados quanto a isso, menina — me interrompe. — Está me
dando dores físicas assistir essa sua movimentação de engrenagem de moinho.
Areskaan está bem, parece recuperado e forte. Ele dá alguns passos para
trás, desengajando nossas espadas. Checo a minha, um pequeno trinco na
lâmina. Pelos amor de nossos Deuses, quantas espadas ele vai quebrar?
— Um pouco de óleo e estou nova, não posso dizer o mesmo de você —
replico.
— Você fala demais.
Quando o próximo golpe vem, uso a mão esquerda para dar suporte a
ponta da lâmina, ajuda a distribuir o peso por igual. Minha palma arde e um
filete de sangue quente escorre pelo braço.
— Bom. Mas ainda não é assim. — Ele dá dois passos para trás e ergue a
espada novamente para outro ataque.
Assim como Li tem a mim, eu também ganho um tutor.
Manon fica ressentida por não poder se juntar a nós, de manhã precisa
ajudar na preparação do desjejum da tripulação. Para não se sentir excluída, tiro
uma hora, próximo ao almoço, para praticarmos no convés. Isso atrai a atenção
da tripulação, primeiro alguns marujos começaram a se juntar ao redor para
assistir enquanto comem seus biscoitos de marinheiro e charque, não demora
para entrarem no ringue e participarem também.
Em uma semana, a roda de luta durante o almoço se torna um
entretenimento popular antes de todos voltarem ao trabalho; não apenas para os
homens do Ferro, sirenos também se juntam para participar das rodadas e o
próprio Kaeldros gosta de sentar em cima de alguns caixotes para atuar como
árbitro.
— Até que para peixes, eles levam jeito com a espada — zombo quando
Areskaan se senta ao meu lado trazendo alguns biscoitos.
Seu preparo é composto unicamente de farinha, água e sal, alguns dias,
temperos são adicionados para deixar menos insosso. Manon me contou que não
há tantos mantimentos no porão, por isso o charque está sendo regulado. É
provável que em breve Kaeldros seja obrigado a atracar o Fúria para repor a
comida.
Dez dias de viagem — ou foram quinze? Perdi a conta — não devem ter
nos levado tão longe assim, ainda estamos nos territórios de meu irmão.
— Esses peixes são feitos de ferro. — Areskaan me tira de meus
pensamentos.
— Como assim?
— São todos mestiços, o único sireno de sangue puro no navio é Kaeldros.
Minha boca se abre em um perfeito “o”.
— Ele não prefere a companhia de seu povo?
Areskaan enche a boca de bolachas e ignora minha pergunta, suas botas
batem no chão ritmadas, um tique nervoso como se tivesse me dito algo que não
devia.
— Não prefere? — insisto, dando um chacoalhão em seu braço.
— Que opção ele tem? — rebate ranzinza, puxando o braço de volta com
brutalidade.
Não pergunto mais. Minha atenção recai em Kaeldros rindo, sua posição
soberana em cima das caixas. Eu sabia que havia algo diferente nele, sua beleza,
o poder de seu canto, tinha certeza de que não era como os outros e estava certa.
Os olhos dele encontram os meus, e com um gesto sutil me convida a subir
e me juntar a ele. Obedeço, mantendo a encenação, sentando em seu colo
enquanto seus braços envolvem minha cintura e seu queixo se encaixa
confortavelmente em meu pescoço. Seria uma mentira dizer que detesto isso. Na
verdade, gosto do seu cheiro e da proximidade de seus lábios.
Estou fascinada não apenas pelos contornos do nosso desejo físico, mas
começo a entrar em um território perigoso, cada vez mais intrigada com seus
mistérios. Um sireno criado por um dragão que adotou um garoto do Ferro.
— Por que nada em você faz sentido? — pergunto, me virando para
encará-lo. — Por que tudo tem que ser tão caótico e fora do comum?
Ele demora a responder, seus olhos me estudando, como se estivesse
tentando desvendar algo também.
— Porque você é ferro e eu sou água.
Então seus dedos envolvem meu queixo, puxando-me para um beijo
delicioso e exibicionista. Os marujos ao redor assobiam e riem, mas eu estou
concentrada demais fingido — ou, talvez, aproveitando — ser a noiva de
Kaledros.

Ainda é possível escutar o canto dos marujos na cantina quando subo para
o tombadilho, um rumo certo de volta para a cabine do capitão. É cedo, a lua
ainda está no topo do céu, mas os anos de bebedeira na taverna me ensinaram
que nada de bom acontece depois da meia-noite.
Meus passos estão desajeitados, cambaleantes, mas não posso culpar o mar
por isso. As águas estão tranquilas, serenas como uma superfície de vidro.
Nenhuma brisa sequer balança as velas. Paro por um momento, seguro a
amurada para não perder o equilíbrio e solto uma risada embriagada.
É então que um movimento sutil nas sombras chama minha atenção. Algo
mexe na minha visão periférica, oculto entre os botes no deck principal. Um
arrepio percorre minha espinha.
— Quem está aí? — Minha voz soa mais firme do que me sinto, meu
coração dispara, bombeando adrenalina em minhas veias. A sensação nublada da
bebida se dissipa num instante.
O silêncio responde. Aperto a empunhadura da espada lascada presa à
minha cintura, sinto o suor frio em minha palma.
— Revele-se, ou vou descer e acabar com você — ameaço, tentando
manter o controle da situação.
Desta vez, alguém surge das sombras. Um marinheiro. Não é alguém de
importância, um dos sem nome, chama Estripador de Peixe. Trabalha na cozinha
com Manon, um desertor de Ferroforja. Ele sorri, um sorriso malicioso, e seus
olhos deslizam sobre mim com uma clareza perturbadora.
— Boa noite, senhora, não queria assustá-la.
— Não assustou — respondo firme, tentando controlar o tremor sutil na
minha voz.
Ele dá um passo à frente, se afastando das sombras e se revelando sob a
luz do luar. Vejo o brilho metálico de uma peixeira pendendo de sua mão, e, por
reflexo, minha mão aperta ainda mais a espada em minha cintura. Não sinto
medo dele, mas uma sensação desconfortável cresce em meu estômago. Sei que
poderia derrotá-lo, mas o que me inquieta é a possibilidade de não estar sozinho
nessa emboscada.
Meus olhos varrem as sombras ao redor, procurando por outros vultos, mas
cada vez que olho para o lado, ele parece estar um passo mais perto.
— Precisa de ajuda para chegar ao seu quarto? — Sua voz está carregada
de malícia, o tom é mais uma ameaça do que uma oferta.
Ele avança, eu recuo.
Uma nuvem passa sobre a lua, mergulhando o tombadilho numa escuridão
momentânea, e eu aproveito a oportunidade para acelerar meus passos,
praticamente correndo até a porta do quarto. Assim que entro, tranco a fechadura
com um estalo alto, mas o alívio dura pouco.
Quando me viro, sinto uma presença. Meu coração pula no peito e, sem
pensar, saco a espada em um movimento rápido, girando o corpo e brandindo-a
no ar.
Uma silhueta se abaixa por um triz.
— Sou eu! — Kaeldros grita, surpreso, enquanto se esquiva do golpe.
Ofegante, demoro alguns segundos para processar que não estou mais em
perigo. A adrenalina ainda correndo em minhas veias torna difícil distinguir
realidade e imaginação.
— Você... — murmuro, ainda zonza. — Eu me assustei... não fique mais
de tocaia desse jeito.
Com as mãos trêmulas, deixo a espada cair no chão, o som metálico ecoa
pela cabine. Esfrego o rosto com as duas mãos, tentando afastar o resto da
confusão mental. Do lado de fora, o silêncio é absoluto, exceto pelo eco distante
dos marujos ainda cantando na cantina. Por um momento, a tensão queima em
minhas costas, como se o Estripador de Peixe ainda estivesse me observando.
Kaeldros se aproxima, seus olhos escuros me estudando.
— Aconteceu alguma coisa?
— Um dos sem nome estava à espreita no convés — respondo, passando a
mão pelos cabelos suados. — Mas está tudo sob controle.
Suas palpebras se estreitam.
— Qual deles?
— Já disse, está sob controle.
— Qual?
Solto um suspiro exasperado.
— Acho que era o Estripador de Peixe, mas não tenho certeza. Não
consigo decorar esses seus nomes por trabalho.
A tensão permanece no rosto dele por apenas mais um instante, antes de
desaparecer em um sorriso zombeteiro.
— Tenho algo para você — diz empolgado e me guia até a cama.
Entre os lençóis amassados e colchas que não tive paciência de arrumar
pela manhã, repousa uma velha amiga: Chama-Viva. Meu coração dá um salto,
minha adaga de prata negra, que eu perdi quando quase congelei na baía de
Ferroforja, está ali, deitada no travesseiro como se estivesse me esperando.
— Ia deixar e ir embora, mas você voltou cedo — ele acrescenta, quando
fico tempo demais parada sem saber como reagir. — É um presente.
— Pelo bom comportamento? — jogo de volta em tom zombeteiro.
Sento-me na beira da cama antes de pegá-la. Meus dedos deslizam sobre a
lâmina, inspecionando cada junção, à procura de qualquer sinal de desgaste ou
ferrugem, mas está impecável, bem cuidada.
Uma sensação familiar e reconfortante me preenche, como encontrar uma
peça de mim mesma que achei ter perdido para sempre. Não que eu morresse de
tristeza se nunca mais a visse, mas ter esse pequeno tesouro de volta me faz
sorrir de verdade.
— Se quiser ver assim... — Kaeldros dá de ombros, fingindo indiferença,
mas há um brilho nos seus olhos, está orgulhoso por me agradar. — Eu ia dizer
que estava mimando minha noiva.
— Como a recuperou?
Ele se senta ao meu lado, nossos ombros se encostando de leve.
— Ela nunca esteve perdida — explica. — Mandei um dos meus homens
mergulhar para buscá-la enquanto eu te levava desacordada. Parecia importante
para você.
A lembrança daquele dia no porto de Ferroforja é distante, não tenho
sequer certeza de quando aconteceu. Um mês? Dois? As estações passam
diferentes no mar, parei de contar. A rotina no Fúria se tornou familiar demais.
Uma brisa suave vem das janelas entreabertas, ondula as cortinas como um
fantasma vagando nos cantos do cômodo. Não sinto mais o cheiro do mar. O
odor dos carneiros-de-soay, que tanto associei ao meu lar, está sendo aos poucos
substituído pela salmoura.
Será que estou gostando mais disso tudo do que deveria? Disse a Manon
que colaborar era importante, e não há nada de errado em sentir desejo por um
rival, certo? Só que... talvez as coisas estejam se misturando perigosamente.
— Quero te pedir algo em troca. — A voz de Kaeldros me tira dos
devaneios.
— Hm?
Os dedos dele passeiam preguiçosamente pela colcha, esticando as dobras
com cuidado. É um gesto simples, mas tem algo nas mãos dele que chama minha
atenção, algo no jeito que ele movimenta os dedos, que faz minha pele formigar.
— Quero voltar a dormir no meu quarto — ele solicita casualmente, como
se estivesse pedindo uma xícara de chá.
— Hã?
— Tenho dormido na cabine do mapa, numa cadeira. — Ele dá um
destaque quase cômico à cadeira, repetindo mais uma vez para dar mais ênfase
ao seu sofrimento. — Não é exatamente confortável.
Eu o olho de canto, meus lábios tremendo para segurar a risada.
— Está sugerindo dividirmos a cama?
O sorriso de Kaeldros cresce, malicioso, enquanto ele se inclina
ligeiramente para mais perto.
— Não faça ofertas que você vai se arrepender. — Seu hálito quente bate
contra meu pescoço.
Deslizo Chama-Viva por entre as colchas para quando Kaeldros,
inevitavelmente, me jogar no colchão, não toque a lâmina por acidente e se
queime.
— Por que eu me arrependeria? — Viro o rosto para encará-lo, encontro-o
tão próximo que qualquer movimento em falso pode unir nossos lábios.
Seus olhos sombrios me capturam sem a necessidade de nenhuma canção,
quando sua mão vem até meu rosto, descendo uma carícia do queixo até os
dedos se fecharem em torno da garganta, prendo o ar — não resisto.
Um som manhoso me escapa, algo entre um lamento e um pedido.
— Porque não importa o quanto você chorar, — ele sussurra, mas seus
lábios não me tocam, seu corpo não roça no meu e a privação me deixa mais
perturbada do que se estivesse pressionando seu membro rígido contra mim. —
o quanto você implorar, o quanto você me ameaçar… — continua e eu estou
disposta a tudo isso para ter o que quero.
Ele aperta um pouco mais a minha garganta, arfo na expectativa do que
virá, na promessa sombria de me consumir na sua escuridão não importa o
quanto eu resista — e eu não vou, talvez um pouco, apenas para temperar nossa
diversão com alguma emoção.
— Não importa o que você fizer, — repete de novo — eu não vou deixar
você gozar.
Pisco diversas vezes para conseguir processar essa informação, é como
funciona a canção do sireno, se satisfazer meu desejo, não tem mais controle.
O sorriso nos lábios dele tem uma satisfação obscena em me ver
desconcertada.
— Isso é desumano, seu monstro! — Agarro um dos travesseiros e jogo
contra seu rosto. — Fique longe da minha cama!
Kaeldros liberta meu pescoço e cai na gargalhada. Mesmo com o corpo
quente de desejo, não consigo deixar de acompanhá-lo.
— Durmo no chão, querida. — Ele pega uma das colchas, bem como o
travesseiro, e me encara.
Nos encaramos por um longo momento, os dois com meios sorrisos. Fico
esperando se me dará um beijo de boa noite, nos beijamos muito durante o dia
pelo navio em demonstrações de afeto exibicionistas para sua tripulação, mas
quando estamos sozinhos, parecemos evitar. Não foi combinado, mas parece o
certo a se fazer. Se Kaeldros não tem pretensão de satisfazer meu desejo, então
os beijos seriam demonstrações de afeto.
No final, Kaeldros acaba improvisando um local para dormir ao lado da
cama sem dizer nada, e eu durmo na beira do colchão, o rosto virado na direção
dele. Sem a camisa e deitado oposto a mim, fico vendo as sardas em suas costas,
perdida entre conectar os pontos.
— Você já ia pedir para dormir aqui ou inventou isso porque contei sobre o
sem nome no deck? — sussurro, sem ter certeza se ele está dormindo ou
acordado.
— Faz diferença?
Não respondo. Não deveria fazer, ele precisa de mim viva para ajudar a
encontrar Molgur, eu não tenho porque dispensar uma proteção adicional. Isso é
tudo. Acabo pegando no sono pouco tempo depois, formando desenhos
imaginários em suas costas, mas tenho a impressão de que ele não prega o olho
por um instante sequer durante toda a noite.

Na manhã seguinte, o sol já está alto quando desperto, o calor invade a


cabine. Pisco algumas vezes, tentando me situar. A primeira coisa que noto é a
ausência de Kaeldros. Ele não está no chão, onde havia dormido, e uma sensação
de desconforto cresce no fundo do meu estômago. Já estou atrasada para a aula
com Li, mas outra coisa parece fora do lugar.
Me levanto, ainda sonolenta, e saio da cabine para o café da manhã. O
clima a bordo está estranho. Os marujos, normalmente ruidosos e animados nas
primeiras horas, agora evitam meus olhos, não demora muito para eu descobrir o
motivo.
Na beirada do convés, o murmúrio dos poucos tripulantes por ali cessa
quando me aproximo e vejo Estripador de Peixe. Está à deriva no mar, preso a
uma corda que envolve sua cintura. Seu corpo flutua desajeitado nas águas
agitadas, se debatendo para não atingir o casco toda vez que uma onda o atinge.
Três dias e três noites foi o castigo decretado por Kaeldros, segundo o que me
contam. E se a corda romper, ninguém tem permissão de saltar para salvá-lo.
Meu sangue ferve.
— Deixa eu entender, você está furiosa porque eu te defendi? — Kaeldros
me puxa dentro da cabine de munição quando começo a discutir no corredor do
convés inferior.
Olheiras pesadas carregam seu rosto, uma mistura de irritação e culpa é
evidente na maneira como mastiga as palavras antes de falar.
— Você minou minha autoridade! — respondo, até tento manter a calma,
porque entendo que teve boas intenções, mas o custo disso será caro. Quanto
tempo até conseguir ganhar a confiança de todos novamente? — Eles têm medo
de você, quando deviam ter medo de mim!
Respeito é algo que se conquista sozinho, não pode ser transferido dessa
forma.
Kaeldros solta uma risada baixa, desprovida de humor, mais próxima de
um rosnado frustrado. Ele dá um passo na minha direção, aquele movimento
calculado que ele sempre usa para tentar me intimidar. Minhas costas tocam as
bolas frias de canhão, dispostas lado a lado nas estantes, e a sensação gélida traz
de volta a primeira ameaça dele: "Trezentos marinheiros, setenta canhões".
— Eu mesma ia dar uma surra nele hoje — continuo, mantendo a postura.
— Não fiz ontem porque não sou idiota; estava bêbada e escuro demais para
saber se ele estava sozinho.
— Fico feliz em saber que você, ao menos, tem um mínimo de instinto de
autopreservação. — A resposta dele vem afiada, carregada de sarcasmo. — Já
estava me perguntando quantos duelos até a morte eu teria que impedir por sua
causa.
— Isso é completamente diferente, e você sabe disso.
— Sei mesmo? — Ele inclina a cabeça, aquele sorriso desdenhoso nos
lábios. — Tudo me parece violência, no fim das contas.
A estupidez dele corrói minha paciência. Ferro e água nunca chegam a um
meio-termo, sempre formando ferrugem no final.
— Você fala como se fosse o moralista da história, mas é o seu povo que
arrancava o coração de mulheres e mandava os corpos mutilados de volta —
cuspo as palavras, a raiva subindo como uma maré.
Uma onda mais forte atinge o galeão, fazendo toda a estrutura balançar.
Algumas das bolas de canhão rolam pelas prateleiras, e preciso me apoiar para
não cair. Kaeldros, no reflexo, agarra minha cintura com força, segurando-me
firme.
Meu corpo é pressionado contra o dele, e seus músculos duros esmagam
meus seios, obrigando-me a olhar para cima para ver sua expressão. O calor dele
irradia, e o espaço entre nós se torna sufocante.
— Veja só, — ele murmura, a voz baixa, carregada de provocação e algo
mais sombrio — a tendência ao egocentrismo dando as caras de novo. Você só
conhece metade da história, querida.
Outra onda balança o navio, e Kaeldros me aperta ainda mais contra seu
corpo. Uma ideia ilícita se forma na minha mente, algo selvagem e perigoso. O
pensamento de foder com raiva ali mesmo, no meio de uma cabine cheia de
instrumentos de destruição, enquanto ele me segura pela cintura e me toma com
brutalidade. A adrenalina de estar agarrada nas prateleiras, sentindo seu corpo
duro entre minhas pernas, é atraente demais para ignorar.
E parece que Kaeldros tem o mesmo pensamento. Sinto algo duro roçar
contra meu ventre e, ao olhar para baixo, confirmo o volume evidente em suas
calças. Quando volto a encará-lo, suas bochechas estão levemente coradas. Ele
recua de repente, passando a mão pelo rosto em uma tentativa óbvia de retomar
o controle.
— Antes que a gente chegue a lugar nenhum... — ele murmura, tentando
parecer sério de novo — seu "mini projeto” de você mesma está na enfermaria.
A menção de Manon é o suficiente para me fazer largar qualquer outro
pensamento. Sem dar a Kaeldros nem um segundo a mais de atenção, já estou no
corredor, correndo em direção à enfermaria.
CAPÍTULO 15
____

A cabine da enfermaria é pequena e abafada, saturada pelo cheiro forte de


ervas secas e xarope. Se não fosse por isso, seria apenas mais um dos muitos
compartimentos apertados e claustrofóbicos nos decks inferiores do Fúria. Não
há um médico a bordo, então o espaço é mais um depósito improvisado para
qualquer coisa que possa, teoricamente, curar enfermidades.
Uma única maca ocupa quase todo o cômodo estreito, espremida de forma
que um armário de remédios fica logo acima. Qualquer um que se levante rápido
demais corre o risco de bater a cabeça.
Manon está sentada na borda da cama, abraçando os próprios joelhos. Seu
olhar perdido me aperta o coração; as olheiras profundas ressaltam a palidez de
seu rosto. Sem pensar, sinto um impulso de atravessar a sala e abraçá-la, protegê-
la de qualquer coisa que a esteja consumindo.
Mas há alguém já fazendo isso.
Rune está ao lado de Manon, os braços firmes envolvendo seu corpo frágil
e o rosto afundado nos cabelos ruivos dela. A intimidade entre os dois me pega
de surpresa, um nó incômodo se forma na boca do estômago.
— O que aconteceu?
Manon levanta o olhar vazio e, ao me ver, parece voltar ao presente. Ela
pisca algumas vezes, até que o foco retorna. Isso responde minha pergunta, sei
exatamente o que aconteceu: uma visão.
— Elena?! — Ela estende os braços para mim.
Rune se afasta, e eu me aproximo rápido, abraçando-a com força. Sinto
seu corpo trêmulo, como se ainda estivesse parcialmente presa ao futuro que
vislumbrou.
— As visões estão piorando — Rune explica com a naturalidade de quem
já está acostumado com o assunto. — Durante a madrugada, ela não conseguia
distinguir sonho de realidade. Tentei acordá-la, mas foi inútil. Então fiquei aqui
com ela até que passasse.
— Por que não me chamou antes? — Minha voz sai mais afiada e
acusatória do que eu pretendia.
— Ele manteve segredo a meu pedido — Manon sussurra com culpa
demais para algo pontual.
— Não é a primeira vez? — arrisco.
O silêncio dos dois é resposta suficiente. Algo dentro de mim se parte,
uma pontada inesperada de ciúme que mal consigo disfarçar. Tento afastar o
sentimento, mas Manon percebe, seu olhar me pede desculpas.
Ela não está errada, é só... inesperado. Sempre fomos nós duas. Eu tinha
meus amantes, e ela, seus namorados. Mas, no fim do dia, éramos eu e ela.
Homens não são bons quando estão envolvidos demais, atrapalham um
julgamento claro.
— O que você viu nos sonhos? — pergunto.
— A mesma praia... — Manon hesita, e Rune a interrompe, sua
persistência em participar da conversa é irritante.
— Pela descrição, acho que é a Baía das Almas. Fica no território dos
videntes, a oeste. Você conhece?
Percebo pela primeira vez os detalhes do rosto de Rune. As olheiras são
tão profundas quanto as de Manon, e seus braços estão cobertos de arranhões,
alguns já cicatrizados, outros ainda inchados. Provavelmente marcas de suas
tentativas de acalmá-la durante as visões.
— Precisamos voltar para Ferroforja — anuncio, ignorando-o. — Greta
pode ajudar, ela tem experiência com visões...
— A melhor chance de Manon é com o próprio povo dela. — Rune me
corta, cada palavra que sai de sua boca me faz odiá-lo um pouco mais.
Nossos olhares se cruzam cheios de ameaça, é um rapazola com seus vinte
e poucos querendo bater de frente comigo. Um zé-ninguém com nome pomposo
que Kaeldros deu um título qualquer. Já o observei trabalhando, não é
particularmente habilidoso em nada, mas faz um equilíbrio com Kaeldros,
enquanto o capitão precisa ser temido para manter o respeito, o primeiro
imediato se encarrega de ser adorado com uma política de boa vizinhança.
Em suma, nada mais é do que um fantoche bonito e carismático. É um
guerreiro razoável, mas nos espetáculos do almoço, quase desloquei seu braço
sem querer. Darei-lhe outra surra, essa sem Kaeldros para protegê-lo, assim
entenderá seu lugar como um bom namoradinho silencioso.
Mas ele não recua como os outros namorados de Manon que vinham me
pedir permissão para se encontrar com ela. Não é por falta de medo, seus
músculos estão todos tensos, está até mesmo com uma mão em cima da
empunhadura da espada em sua cintura.
E é nesse momento que percebo algo desconcertante: ele está me
enfrentando porque gosta dela. Gosta ao ponto de entrar numa batalha que vai
perder.
— Por isso vamos voltar para Ferroforja — murmuro, tento ao máximo
não deixar a raiva ganhar a melhor. — Greta sabe lidar com isso.
— Querida, nós começamos essa conversa assim que você veio para cá. —
Kaeldros aparece na porta, a última pessoa que eu gostaria de ver agora. Fala
com uma calma irritante, como se estivesse lidando com um animal perigoso. —
Ela não é do Povo do Ferro.
Manon se remexe nos meus braços, busco por reforços, mas ela desvia o
olhar do meu. Concorda com eles?
De repente, todos sabem mais do que eu, e a culpa disso é apenas minha.
Escolhi ignorar os sinais, mesmo com as pistas de Kaeldros, não quis cogitar
essa possibilidade. Pensei que, se ignorasse, isso apenas iria embora e não faria
diferença em nossa vida. Agi mal? No que isso implica? Ficará para sempre em
outras terras ou podemos resolver isso e voltar para Ferroforja depois?
— Já encontramos outros videntes antes — Rune volta a falar antes que eu
tenha processado tudo. — Quando alguém como ela não é treinado a controlar o
dom da visão, perde a sanidade.
— Nossas Sábias-Mães sabem lidar com isso — argumento de volta, não
sei se estou certa, só não quero ceder para ele. — Elas têm experiência...
— Com o que conhecem. Mas o dom delas é uma versão diluída,
corrompida pelas gerações.
— Está bem, me deixe pensar.
— O que Manon tem é algo puro, algo que elas não compreendem —
Rune continua. Quero mandá-lo calar a boca, preciso de tempo, espaço para
pensar.
— Já entendi, mas você está sendo precipitado.
— Não estou. Manon não tem memórias de onde veio, faz sentido que seja
do oeste, ela deve ficar lá até apren...
— Cale a droga da boca ou vou arrancar sua língua!
Minha raiva escala rápido demais, em um momento tenho Manon nos
braços, no outro estou de pé, Chama-Viva pressionada contra a barriga de Rune.
— Como uma guerreira como ela não é do Ferro? — Minha mão livre
rouba a espada de Rune antes que ele consiga sacá-la. — Ela tem mais Ferro
correndo nas veias do que um desertor patético como você jamais terá!
Ele bate contra a parede da cabine quando o empurro, é rápido, nem tenho
mais certeza do que estou fazendo. Meus músculos se movem sozinhos, é a raiva
quem decidirá o quanto vou machucá-lo. Espero que os Deuses não queiram que
ele morra, porque eu não tenho certeza.
— Querida... — Estou tão possuída de ódio que não reconheço a voz a
princípio, apenas me viro na direção da mão que tocou meu ombro, pronta para
degolar qualquer inimigo que tente me impedir. — Siga com nosso acordo.
Pisco várias vezes até processar Kaeldros à minha frente, mãos erguidas
em rendição. Pisco ainda mais até entender do que está falando.
— Não matei ninguém na sua vila e espero a mesma cortesia da sua parte,
seu problema é comigo, sou eu quem mantém vocês duas cativas aqui — ele fala
com uma lentidão controlada, me dando tempo para entender cada sílaba.
Minha adaga está posicionada em seu pescoço e continua lá por longos
segundos até que eu consiga estabilizar minha respiração. Sendo sincera, há um
desejo em mim de machucar Kaeldros, porque, no fundo, tudo isso é culpa dele.
Se não tivesse me sequestrado, ainda estaríamos em Ferroforja e…
O que realmente me faz abaixar a guarda é Manon, em algum momento da
confusão ela agarrou um cabo de vassoura como arma, está com o corpo metade
para fora da cama, os olhos arregalados e sua espada de madeira improvisada
apontada na minha direção.
Ela recua quando a encaro, envergonhada, deixa a vassoura cair no chão e
volta a se encolher na cama. Sinto uma pontada no peito.
— Um sireno e um desertor achando que sabem mais sobre a minha gente
do que eu? — Cuspo cheia de desprezo, só desejo que sumam. — Quero falar
com Manon. Sozinha.
Kaeldros me observa, seus olhos transbordando pena, o que só intensifica
a revolta dentro de mim. Rune parece pronto para continuar o confronto, mas
Kaeldros intervém com um gesto, ordenando que ele se acalme e o acompanhe.
Rune hesita, mas, por fim, obedece, deposita um beijo suave no topo da cabeça
Manon e sussurra algo antes de ir.
Quando a porta se fecha, sinto uma insegurança estranha por não saber se
estou certa ou errada. As palavras se enroscam na garganta, e uma parte de mim
quer desesperadamente se desculpar. Mas outra parte — teimosa, cheia de
orgulho — está completamente tomada por um medo que nunca conheci antes.
Um medo irracional, inexplicável, de perder Manon para sempre.
— Eu não sei o que fazer... — ela rompe o silêncio entre nós. — Você acha
que eles estão certos?
Minha boca permanece fechada. Não sei. Não quero falar sobre isso.
— Nós vamos dar um jeito. Nós sempre damos — murmuro passando a
mão pelo cabelo dela, na tentativa de acalmá-la, e a mim mesma.
Manon assente, mas algo ainda a inquieta. Há um silêncio prolongado, até
que, finalmente, ela parece juntar coragem para falar:
— Elena, tem algo que eu não contei para eles...
— O quê?
— Eu vi...
— Não importa o que você viu. — Tento interromper, não quero saber de
um futuro em que ela está em uma praia que não conheço e rodeada de
estranhos.
— Não, é importante — ela insiste. — O Fúria vai precisar atracar em uma
ilha... e haverá um navio do seu irmão lá.
Meu corpo reage antes de minha mente, a espinha se enrijecendo, o
coração disparando. As possibilidades giram em minha cabeça.
— É a nossa chance — sussurro, já imaginando um plano.
— Acho que sim... — Hesita trêmula, como se estivesse reconsiderando.
Fico em silêncio, observando-a mais de perto. O medo ainda está lá, mas
algo mais borbulha sob a superfície, algo que pesa mais do que qualquer ameaça
externa. Manon não teme apenas o futuro incerto. Há algo mais profundo que a
impede de agir, e quando ela finalmente olha para mim, seus olhos revelam um
misto de emoções confusas.
— Você não quer ir, quer? — Meu tom é mais severo do que pretendia.
— Eu... não sei...

Kaeldros está do lado de fora esperando por mim. É estranho, já que passei
bastante tempo lá dentro com Manon. Assim que saio da cabine, ele se aproxima
rapidamente, as palavras saltando de sua boca como se tivesse ensaiado o tempo
todo:
— Eu não quis ultrapassar o limite. Nem com a menina, nem com a sua
autoridade sobre a tripulação.
Eu estava pronta para iniciar uma briga, distorcer o mundo até que toda a
minha desgraça caísse sobre ele: se não tivesse roubado a espada, se não tivesse
me levado para o mar, se não tivesse um primeiro imediato, se sua personalidade
não transitasse entre a gentileza e rigidez. Queria encontrar qualquer motivo para
me convencer a ir embora. Mas seu pedido de desculpas me desarma, perco a
força nas pernas e preciso apoiar as costas na parede para não desabar.
— Eu não sabia o que estava acontecendo com ela. Rune também não me
contou. Se eu soubesse, jamais teria escondido algo assim de você, isso não foi
certo — Kaeldros continua. — Ela é sua família. — A palavra sai como se fosse
algo sagrado, uma justificativa para atitudes impensadas como usar vilas inteiras
de refém.
— Eu não quero perdê-la. — Soluço.
Culpa me consome pelas bordas como ferrugem. Como não percebi o que
estava acontecendo com Manon? Como fui tão cega? E se eu perdê-la para
sempre? Um desejo quase devastador de abraçar Kaeldros me invade.
Os passos pesados dos marujos no deck de cima fazem as tábuas
tremerem. Raios de sol atravessam as frestas do teto de madeira, criando feixes
onde a poeira flutua lentamente. Estão todos trabalhando, não seria certo abraçar
Kaeldros agora, porque não há ninguém aqui para presenciar nosso teatro.
Ele está imóvel, me dando tempo para processar tudo o que escutei. Seus
olhos gentis estão carregados de uma preocupação genuína, quase posso ouvi-los
dizer: vem, deixa que eu cuido de você, eu sei como é, entendo o que você está
sentindo.
É diferente de Soren que dizia saber o melhor para mim, Kaeldros deseja
compartilhar o fardo comigo.
Quando finalmente cedo e me aninho em seus braços, sinto como se o
mundo desaparecesse. Seu abraço é o lugar mais seguro em que já estive. Seu
peito na altura perfeita para a minha cabeça descansar, seus braços me
envolvendo com firmeza, como duas barreiras contra tudo o que está lá fora.
Quero ficar assim para sempre, enquanto ele deposita um beijo suave no topo da
minha cabeça e sussurra que tudo vai ficar bem — mesmo com tudo indicando
que não vai.
— Eu quero voltar para Ferroforja — sussurro contra seu peito, o rosto
afundado em suas roupas para que não veja meus olhos avermelhados segurando
as lágrimas.
— Eu juro que vou devolver vocês duas para lá. — Ele soa tão culpado
que chego a sentir pena. — Eu prometo pela minha alma e meu descanso eterno
no oceano que você vai voltar para sua amada vila, daqui um ano serei apenas
uma história que você contará na taverna junto com Manon.
— Não adianta, a Ferroforja para onde quero voltar não existe mais.
Afasto o rosto para encarar Kaeldros, sua boca se abre para dizer algo,
então se fecha quando os olhos dele encontram os meus, como se tivesse perdido
a coragem. Ele engole em seco, seu pomo de adão sobe e desce, então os lábios
se movem, mas sua garganta não emite nenhum som. Me perdoa, Elena, tenho a
impressão de que ele tenta dizer.
Devo estar louca e desesperada por carinho, Kaeldros jamais diria meu
nome.
Passos e o som de cordas arrastadas pelo corredor chamam nossa atenção,
viramos a cabeça juntos para ver alguns marinheiros descendo as escadas.
Suspiro aliviada, isso me dá uma desculpa para beijar Kaeldros com toda a
paixão indevida que meu coração começa a sentir por ele.
Os dias que se seguem são estranhos. Estou mais contida do que o normal.
Manon me evita — ou, talvez, eu esteja a evitando, não tenho certeza. Nenhuma
de nós parece pronta para retomar a conversa sobre o que faremos quando o
galeão aportar. Nossas interações são breves, focadas em atualizações sobre sua
saúde mental. Rune continua a ajudá-la durante a noite, estão testando soníferos
na enfermaria para que ela durma sem sonhos. Na maior parte dos dias,
funciona.
Pontadas de culpa vêm e vão ao longo do dia, ficam especialmente
dolorosas durante as madrugadas com Kaeldros no quarto. Ele continua tentando
dormir no chão, mas não consegue — nenhum de nós dois. Uma mistura
estranha de desejo e preocupação alimenta nossas insônias.
— Está acordada? — ele chama baixinho.
— Sempre — respondo num suspiro frustrado.
Viro na cama para encará-lo, está deitado todo exibido no chão. Mesmo
que a noite não esteja tão quente, o quarto parece insuportavelmente abafado, o
que o faz dormir quase pelado. Desço minha atenção de seus lábios para o
peitoral, a pele bronzeada é tentadora quando iluminada apenas pelo luar. Sigo
por esse caminho sem volta, chego no umbigo e, então, naquele caminho de
pelos que vai ainda mais para baixo.
Sua cintura, encoberta por um lençol e sombras, me deixa frustrada. O
calor melado entre minhas pernas me faz roçar no travesseiro que durmo
abraçada. Sei que Kaeldros percebe o movimento, porque uma sombra rígida
emerge no lençol, acompanhada de um som primitivo.
— Quer conversar? — Ele limpa a garganta, tenta fingir naturalidade.
Não, quero montar em você até o amanhecer.
— Pode ser. — Tento me ajeitar de forma que o toque das roupas não seja
insuportável, mas não encontro nenhuma posição. — Então, você acha que vou
conseguir ajuda para Manon? Como é o Povo da Visão?
— Estão quase sempre em guerra, a política lá é confusa, governa aquele
que consegue ver mais longe. Quando não está claro quem é, entram em guerras
que não de fato acontecem. Exércitos são enviados para não encontrarem nada,
porque alguém previu sua chegada.
Isso me lembra dos sonhos de Manon, ela disse que havia pessoas
esperando por ela em uma praia.
— Você acha que eles sabem que estamos indo?
— Tenho certeza que sim. — Kaeldros apoia as mãos atrás da cabeça, está
relaxado e confiante. — Tudo começa a fazer um pouco de sentido.
— O quê?
— Molgur, é coincidência demais ele estar indo para lá justo quando a
menina começa a ser afetada pelas visões. As duas coisas devem estar
conectadas.
Meu estômago dá um nó. Não, elas não estão conectadas, porque eu
inventei a história de Molgur. Não faço ideia de onde ele está. Talvez nunca mais
o vejamos. Penso em confessar, contar a verdade a Kaeldros. Mas o que ele faria
com essa informação? Eu mesma não sei mais se devo voltar para Ferrofroja ou
continuar para o oeste.
Prefiro deixar o tempo decidir por nós.
— É... provavelmente é isso — murmuro.
A culpa funciona como um balde de água gelada que apaga meu desejo por
completo, não durmo pelo resto da noite, pensando em possibilidades e decisões
que não queria tomar sozinha. Ao menos não estou queimando.

Areskaan percebe que algo está errado e tenta me ajudar da única maneira
que o Povo do Ferro conhece: com trabalho. Com a autorização de Kaeldros,
ganho uma função oficial no Fúria. Agora sou assistente de Areskaan, numa
função que ele batizou de Mestre de Armas. Não sei dizer se isso me ajuda ou
piora as coisas. Sentir que faço parte desse navio me deixa ainda mais confusa.
Pelo menos, pararam de me chamar de "senhora" e agora se referem a mim como
Mestre de Armas.
Aprendo sobre os canhões e seu funcionamento, como a artilharia é
transportada pelos decks inferiores durante uma batalha e as melhores estratégias
para proteger os pontos sensíveis do galeão. Por um tempo, isso me distrai.
— Mestre de Armas, o capitão está chamando por você na proa — um
sireno chamado Luchenin me avisa, surgindo de repente.
— Mestre de Armas... — repito, o título ainda soa estranho, embora seja
menos desconfortável do que ser chamada de "senhora".
— Não se preocupe, tenho certeza de que logo o Mestre Kaeldros te dará
um nome. — Li tenta me consolar, sentado ao meu lado na amurada e
observando o pôr do sol.
Hoje foi um dia exaustivo. Areskaan me fez escovar canhões enferrujados
por horas. Como sempre, Li tentou me ajudar, e agora aplico um bálsamo em
suas mãos para aliviar as dores e os pequenos cortes que a escova de aço causou.
— Só nos sonhos de Kaeldros que vou o deixar escolher um nome para
mim — comento com uma pontada de sarcasmo.
Areskaan, próximo de nós, resmunga algo sobre eu estar desrespeitando
meu "noivo" e que é uma honra receber um nome do Povo do Mar. As palavras
de Greta ecoam na minha mente: Você desrespeita seu futuro noivo, mas o
dragão virá e te dará uma lição. Não é que ela estava certa? Eu achava que ela
estava confusa, falando de Molgur, mas ela sempre soube do Filho do Dragão.
— Os significados são legais, mas não são práticos. Imagine ter que gritar
esses nomes complicados em meio ao calor de uma batalha — argumento, rindo.
— Aliás, o que significa Areskaan?
— Não é da sua conta. — Ele faz uma careta desgostosa.
Viro-me para Li em busca de resposta, e ele, sempre pronto, responde com
um sorriso:
— "Gigante Gentil".
Ah.
Olho para Areskaan pelo canto do olho, e ele está escondendo o rosto com
as mãos enormes, claramente envergonhado.
— Maldito Kaeldros — ele murmura, quase inaudível.
Um homem com esse tamanho, com um histórico tão brutal, conhecido por
esmagar crânios com sua espada-porrete, e Kaeldros lhe deu o nome de...
— "Gigante Gentil" — repito, tentando conter o riso. — É muito do feitio
de Kaeldros.
— É — Areskaan concorda, resignado. Antes que percebamos, estamos
rindo juntos, e Li nos observa, confuso, sem entender o motivo da nossa
diversão.
No horizonte uma gaivota plana contra o pôr do sol. É a primeira. Um
sinal de que amanhã finalmente chegaremos em terra firme.
Amanhã.
Uma brisa fria bate contra meu rosto, provocando um arrepio por todo o
meu corpo. Chegar à terra firme significa que não posso mais prolongar minhas
dúvidas. Amanhã preciso tomar uma decisão.
CAPÍTULO 16
____

— Posso entrar? — Kaeldros bate três vezes na porta da cabine.


Consigo escutar o galeão agitado do lado de fora, nas próximas horas
aportaremos na Ilha de Pedralume. Alguns poucos devem ficar para garantir a
segurança e um pequeno grupo é responsável pelas compras que vão abastecer o
navio. Pelo o que ouvi no deck, Kaeldros autorizou a saída da maioria para um
dia de folga e descanso.
— Pode.
É mentira, ainda estou me vestindo. As calças largas de Kaeldros já estão
presas por um cinto. Tenho feito misturas excêntricas de calças e túnicas
combinadas com vestidos cortados ao meio, como se fossem casacos. Às vezes
troco o cinto por um espartilho por cima da roupa, não é confortável, mas gosto
de como aparenta. Também gosto dos olhares desejosos que isso atrai. E, gosto
ainda mais quando Kaeldros percebe e me puxa para uma longa sessão de beijos
na frente de todos.
Desta vez tenho dificuldade com os vários pequenos botões perolados da
túnica que escolhi. É uma peça meio pomposa, mal consigo imaginá-lo usando.
Na verdade, pela dificuldade que tenho de passar as pérolas por entre os
buraquinhos de abotoar, acho que ele também nunca a usou.
Kaeldros trava no batente, seus olhos fixos em quanta pele estou exibindo.
— Eu poderia ter esperado. — Ainda que soe meio culpado, seus olhos
continuam no espaço entre meus seios.
— Não há nada aqui que você já não viu uma vez — debocho.
— Duas vezes — ele corrige em mesmo tom. — Acho que nunca vi tanto
a mesma mulher nua sem ir mais longe.
O tecido cobre meus mamilos, mas a abertura desabotoada vai até o
umbigo, como um decote grande e indecoroso.
— Por culpa sua. Eu estou bastante disposta a resolver isso.
Parece ser o próximo passo razoável. Minha cabeça está confusa, essa
mistura de desejo, canção do sireno, gentilezas e sequestros, tudo está nublando
meu juízo. Fiquei revirando na cama mais uma noite enquanto tentava decidir o
próximo passo: tentar fugir ou não?
Só de me fazer essa pergunta, a resposta já deveria ser clara. Se quero fugir
de algo, é porque estou cativa, presa. Fui sequestrada de meu lar, mas agora me
vejo com sentimentos complicados por meu captor.
Já passei por isso antes, o desejo nos faz criar desculpas absurdas para
conseguir o que queremos. Um idiota na taverna só é um idiota na manhã
seguinte depois que você saciou todas as suas vontades durante a madruga e o
que resta é uma personalidade podre. Antes disso você arruma desculpas para
dizer que ele não é tão ruim assim.
Talvez seja o caso de Kaeldros.
Ou, talvez, eu só estou adiando uma conclusão inevitável.
— O que você está tramando? — A convivência parece tê-lo ensinado
como ler minha mente. — Se está pensando em fugir, saiba que você e eu não
vamos descer em Pedralume.
Ele se aproxima com desconfiança, a atenção desce de volta para os
botões. Afasto minhas mãos para que ele assuma a tarefa, seus dedos são bem
mais ágeis e delicados do que os meus, não tem tanta dificuldade em lidar com
as pérolas. Estou meio obcecada pela maneira como se movimentam.
— Vai me deixar trancada aqui?
— Não sou tão cruel, mas também não vou te deixar circulando por aí.
Preparei um pequeno bote para nos levar ao outro lado da ilha, não há nenhuma
vila por lá, mas você ainda poderá desfrutar um pouco de terra firme. — Ele para
no meio dos botões, mal respiro, como se qualquer movimento em falso pudesse
causar um toque fatal. — Se eu lhe der um colar, você vai atirá-lo no mar na
primeira oportunidade ou usaria?
Uno as sobrancelhas.
— Hã?
Ele desliza a língua pelo lábio inferior antes de morder.
— O espaço entre os seus seios. — Aponta, mas não toca. — É bonito;
pede por um belo pingente, uma tatuagem ou uma marca de mordida. Algo que
diga que você me pertence.
— Ninguém veria. — Reprovo minha resposta assim que ela deixa meus
lábios, o correto seria um: não te pertenço.
— Mas eu saberia que está aí. — Ele ergue os ombros e volta a abotoar as
pérolas. — Pode respirar, estou brincando com você, meu troco por me fazer
entrar no quarto com você assim.
Deixo o ar escapar em uma única lufada. Ele sorri, divertido com a
situação.
— Devo arrumar uma mala para nossa viagem? — Mudo de assunto.
Sozinhos do outro lado da ilha não parece uma má ideia, me dá tempo para
pensar e oportunidades para seduzir Kaeldros. Uma noite para colocar a cabeça
em ordem, matar a vontade e na manhã seguinte descobrir se o desejo está
nublando meu julgamento. Se estiver, também tenho a vantagem de que não
poderá mais usar suas cançõezinhas para me controlar.
— Pouca coisa, vamos passar apenas uma noite fora. — Ele termina com
os botões, então ajeita o tecido antes de ficar satisfeito e se afastar. — Por que
está tão colaborativa?
Dou de ombros, enquanto enfio a barra da túnica para dentro da calça.
— O que você está tramando dessa vez? — Kaeldros insiste, estreita os
olhos e me avalia de cima a baixo, como se pudesse decifrar meus planos. —
Vai tentar se livrar de mim enquanto estivermos sozinhos? Nem tente, querida.
Assim que eu ver aquele brilho sanguinário nos seus olhos, vou cantar.
— Não vou fazer nada.
Ele não se dá por satisfeito, me segue até o guarda-roupa enquanto finjo
escolher o que levar. Apenas vou puxando peças de um lado para o outro, uma
encenação tosca, porque parte de mim acha que ele aprendeu a ler minhas
expressões assim como lê seus mapas náuticos.
— É claro que vai, por que não iria? A menos que você tenha se
apaixonado por mim — Kaeldros dispara casual, é apenas uma piada, mas isso
me trava.
A boca seca e preciso passar a língua pelos lábios enquanto penso em uma
resposta.
— Me apaixonei entre você quase me matar de hipotermia no mar e se
recusar a me satisfazer, você realmente sabe como impressionar uma mulher,
Kaeldros. — Meu deboche sai meio esganiçado, mas nada na expressão dele
entrega qualquer estranheza. — A única coisa que eu quero de você é uma noite
em que jogue sua gentileza no lixo e me faça esquecer meu próprio nome.
Os dedos dele tamborilam pela madeira do armário, sustenta sozinho o
silêncio entre nós. Estou consciente demais de seu olhar em cima de mim, isso
deixa meus movimentos meio mecânicos, meio travados. Menti tantas vezes para
Kaeldros, por que agora pareço ter perdido a habilidade?
— Perguntei se poderia confiar em você duas vezes e, nas duas, você traiu
minha confiança. — O final da frase é meio aberto, ele parece querer que eu
argumente em minha defesa.
— Você está ficando paranoico — fujo, porque não quero o trair pela
terceira vez.
Ele se afasta um pouco, mas sinto sua atenção ainda fixa em mim,
queimando minha pele.
— Será mesmo? Não sei se estou disposto a pagar para ver.

No caminho até a proa, meus olhos caem sobre Manon e Rune. Ela está
com um sorriso empolgado, apesar do cansaço evidente. Seus cachos,
normalmente selvagens e cheios de vida, agora caem pesados, e suas bochechas
perderam um pouco do rosado vibrante de antes, mas, ainda assim, ela parece
genuinamente feliz ao lado dele.
Por um breve instante, nossos olhares se encontram, e o sorriso dela
desaparece. Não sei se pretendia dizer algo, mas adio nossa inevitável conversa
sobre o que faremos. Se manteve segredo, ninguém sabe ainda sobre o navio de
meu irmão e apenas nos sonhos loucos de Manon vou deixá-la para trás só
porque foi seduzida por um desertor. Vou jogá-la sobre os ombros e arrastá-la
comigo, mesmo que me odeie para sempre.
Desvio a atenção para a ilha de Pedralume no horizonte e apresso o passo
até Kaeldros.
— Pode se despedir dela, se quiser — ele sugere, pegando a sacola de juta
que carrega os poucos pertences que consegui reunir. — Temos tempo.
— Não quero — respondo seca.
Meu mau humor é respeitado por algum tempo, fico toda a descida do bote
e mais boa parte do caminho de cara emburrada e xingando Rune em minha
cabeça — como se ele fosse o problema entre Manon e eu.
É um dia bonito, daqueles que trazem uma combinação perfeita entre raios
de sol suaves e brisas refrescantes, o mar brilha com um azul radiante e
convidativo para um mergulho. A tempestade, entretanto, está na minha cabeça.
Quando estamos mais ou menos entre metade do percurso entre o galeão e
a praia, Kaeldros se cansa de assoviar no mesmo ritmo das ondas e pergunta:
— O que aconteceu entre você e seu projeto?
— Sei que estou sendo uma cretina. — A resposta escapa rápido demais,
como se estivesse esperando a deixa. — Não é de propósito, só... não estou
acostumada a ter outra pessoa opinando sobre nosso destino. Rune não parece
ser ruim, mas por muito tempo fomos só eu e Manon. Além disso, duvido que
ela consiga ser imparcial quando está tão envolvida assim.
"O sujo falando do mal lavado", penso, mas me conforto com a ideia de
que, pelo menos, tenho consciência disso.
— Está bem, talvez eu esteja com um pouco de ciúmes — continuo. —
Mas você não concorda que eles estão indo rápido demais? De repente, um
rapazola emocionado virou um grande especialista em visões e sabe mais do que
eu, que a conheço a anos e presenciei todo o avanço da visão?
O amor deixa todo mundo meio estúpido. Transforma uma perigosa
jornada por terras desconhecidas na "aventura de uma vida". Uma onda mais
forte atinge o bote, e um jato de água salgada respinga em mim. Fico observando
as pequenas bolhas se desfazerem na madeira. Pensar numa lua de mel
antecipada com Kaeldros na ilha faz meu estômago borbulhar da mesma forma.
Ele está, sem dúvida, me deixando meio estúpida também.
— Parece que ela precisa de você mais do que nunca. — Kaeldros
habilmente evita tomar partido entre seu primeiro imediato e eu. Um verdadeiro
sireno escorregadio.
— Espertinho. — Dou um leve empurrão em seu braço, e ele sorri, sem
interromper a remada. — Não estou abandonando Manon. Só não quero
conversar com ela até ter certeza do que é melhor para nós.
— E ela não deveria participar dessa decisão?
— É grande demais para alguém da idade dela — respondo de imediato.
— E para Rune também. São duas crianças querendo explorar o oeste, que você
mesmo disse ser perigoso.
Kaeldros arqueia uma sobrancelha, e não preciso que ele diga nada para
entender o que se passa em sua cabeça: "Você também não é tão velha assim."
Ele está certo, mas não quero que Manon seja influenciada como eu fui.
— Querida, o que você fez de tão imperdoável nessa idade para achar que
Manon não está pronta para tomar suas próprias decisões?
A pergunta me faz abrir e fechar a boca, sem encontrar uma boa resposta.
Ele acertou em cheio. Sou um mapa que Kaeldros está aprendendo a ler com
precisão.
— Nada que você não tenha feito pior — atiro meio sem pensar. —
Quantos corações pulsantes você já arrancou do peito?
Me arrependo no instante em que as palavras saem, não quero começar
uma discussão. Mas Kaeldros está estranhamente bem-humorado, apenas sorri.
— Ciúmes das moças que já conquistei, ou quer saber quantos matei? —
ele brinca, o brilho do mar refletindo nos olhos. — Eu conto se você contar
também.
Estamos nos aproximando da arrebentação, com a praia intocada logo à
frente. Kaeldros não mentiu ao dizer que estávamos indo para um lugar isolado.
A baía é cercada por uma densa floresta, suas árvores formando uma barreira
natural que parece proteger essa parte remota da ilha. O único vestígio de
presença humana é um velho farol no topo de um rochedo baixo, suas paredes
desgastadas pela maresia, resistindo ao tempo e ao abandono.
Kaeldros descansa os remos sobre os bancos do bote antes de saltar na
água, agora rasa, e começar a empurrá-lo até a areia. As ondas, em um ritmo
constante, parecem colaborar.
— Por que está tão empolgado? — pergunto, avaliando seu rosto que
exibe um sorriso travesso. — Qual é o seu plano?
— Gosto da ideia de termos um dia inteiro só para nós. — Ele dá de
ombros. — Acho que finalmente vou te entender melhor.
— Ah, então acha que vai me arrancar algum segredo à força?
Quando o fundo do bote raspa na areia, desço para ajudá-lo, a água morna
invade o interior das botas pelo topo. Ele solta uma risada gostosa com a minha
pergunta. Lanço um olhar feio que ele retribui de imediato.
— Você está ficando paranoica, querida.
— Será mesmo? Não sei se estou disposta a pagar para ver — respondo no
mesmo tom desconfiado que ele usou mais cedo comigo.
Nos olhamos por um longo momento, um silêncio confortável
preenchendo o espaço entre a água e nossos olhares, até que uma onda mais forte
atinge o rosto de Kaeldros, nos fazendo explodir em risadas. Acho que estamos
os dois meio estúpidos...
O farol me lembra o casarão da fazenda em Ferroforja. Não pelo formato
ou estrutura, não há nada de semelhante nisso, meu lar era espaçoso e
confortável, diferente desses cômodos claustrofóbicos, de teto baixo e escadarias
precárias, mas tem o mesmo cheiro. O odor meio abafado de uma casa próxima
ao mar e uma nota desagradável no fundo, algo que cheira mal, mas me traz uma
sensação de conforto. Fico procurando de onde vem, até perceber um animal se
movimentando pela janela.
— Um carneiro-de-soay!
Corro para fora. O balido desesperado dele tentando se soltar do meu
aperto é melodia para os meus ouvidos, o animal assustado dá coices no ar até
conseguir se libertar dos meus braços e correr de volta para a proteção das
escassas árvores próximas da praia. Levo as mãos até o nariz aspirando o cheiro
fedido do sebo, tão nostálgico.
Há mais dele; uma porção de bolinhas pretas felpudas estão espalhadas de
maneira esparsa, muitos deles pulando entre as pedras da entrada alagada de uma
caverna não muito distante.
— Eles continuam fedendo. — Kaeldros se aproxima.
— Eram os favoritos de Molgur — comento sorrindo.
Ele sorri de volta, como se tivéssemos um segredo só nosso.
— Nós moramos aqui na minha infância. — Kaeldros se posiciona atrás de
mim, seus braços me envolvem e os dedos pousam gentilmente em meu queixo
para guiar minha atenção. — Eu ficava no farol enquanto Molgur dormia
naquela caverna.
Observo a formação próxima, uma entrada imensa escavada no rochedo à
beira-mar, com um arco natural moldado pela água e pelo tempo. A maré invade
e recua, dá sensação de que a caverna respira como uma criatura viva.
— Mas foi pouco tempo — Kaeldros continua, seus dedos ainda
repousando em meu queixo e sua voz baixa em meu ouvido me arrepia. — Acho
que só até eu completar onze anos, quando uma embarcação do seu povo chegou
para reivindicar a ilha. Fomos embora para evitar o confronto.
Com um toque tão delicado, ele poderia falar sobre como reduzimos essa
ilha a brasas e eu continuaria excitada, sem entender uma palavra sequer. Dou
um passo para trás, roçando propositalmente minha bunda contra ele e tenho a
satisfação de sentir seus músculos se enrijecerem.
Até onde lembro, Pedralume é um dos últimos territórios de Caldera,
anexado ao mapa quando eu ainda era criança por um dos clãs costeiros — a
maioria deles extintos. Foram os primeiros que atacamos, meu irmão não
gostava da ideia de ter desvantagem no mar, preferiu começar pelos nossos
pontos fracos.
— Derrotados, poucos sobreviveram, servem agora ao meu irmão e são
mantidos na linha. — Acabo contando.
Kaeldros me liberta do abraço e já espero pelo sermão sobre violência,
mas desta vez apenas ergue os ombros, indiferente.
— Não posso dizer que lamento por isso.
Longe do Fúria, sem teatros e a máscara de capitão, sua expressão é menos
severa, até o tom de voz é mais relaxado.
— Pode me mostrar mais do farol?
Ele ergue as sobrancelhas, meio surpreso, então um sorriso bonito se
forma, com aquelas covinhas que gosto tanto. Acho que ficou feliz; em outras
condições, eu também ficaria em mostrar Ferroforja.
Subimos andar por andar, cinco ao todo. Kaeldros me guia com uma mão
firme em minha cintura, seus dedos às vezes deslizando por cima do tecido,
provocando cócegas suaves. Em cada cômodo apertado, ele faz uma pausa para
contar uma pequena história: um buraco na parede por onde Molgur sussurrava
histórias de ninar sobre reinos distantes; marcas no batente que registram sua
altura ao longo dos anos; os restos de uma velha estante de livros, onde ele
aprendeu cartografia; e, no chão, uma inscrição em letra infantil, com seu nome
e o da primeira garota por quem se apaixonou.
— Parece uma infância comum — comento, sem pensar.
— O que você esperava? — ele pergunta, a curiosidade evidente no olhar.
— Não sei… algo mais… — Balanço a cabeça. — Deixa para lá.
Como monstros são criados? A gente imagina que sirenos já nascem
adultos, prontos para arrancar corações e deixar corpos irreconhecíveis pelo
córrego. Minha língua coça para perguntar sobre isso, mas me contenho por
agora, não quero estragar o momento com uma conversa que vai virar uma
discussão.
O último andar do farol é uma sala circular, com as paredes de pedra ainda
mais desgastadas pela maresia do que o resto da estrutura. A antiga lente de
vidro, que um dia projetou luz para os navegantes, está quebrada e opaca,
coberta por poeira e teias de aranha. Feixes de luz do sol entram pelas janelas
sujas e partidas, iluminando o ambiente com uma suavidade cômoda.
Do teto, pende uma corda grossa e emaranhada, balançando ao sabor do
vento que entra pelas fendas nas paredes. A corda parece ter sido parte de algum
mecanismo outrora importante, mas agora é apenas uma lembrança do que o
farol já foi.
— Você se sentia sozinho? — Minha voz quebra o silêncio. Penso em
Manon e se estou a privando de algo com meu egoísmo.
Kaeldros não responde de imediato, esfrega o punho da camisa contra o
vidro de uma das janelas, limpando parte da grossa camada de poeira. Ele se
inclina para espiar pela pequena porção transparente que conseguiu criar, os
olhos fixos no mar distante, enquanto um sorriso sutil surge em seu rosto.
— Minha honestidade em troca da sua? — pergunta, ainda sem me
encarar, o tom levemente provocador.
A luz filtrada do sol envolve sua figura e, por um breve momento, vejo
algo de vulnerável nele e me pego desejando ler seus pensamentos.
— Temos um acordo.
Ele respira fundo e finalmente se vira.
— Me sinto mais sozinho hoje do que me sentia no passado.
— Por que você não está junto do seu povo?
— Minha tripulação é meu povo. — Ele me corrige. — Ou costumava ser.
Também tenho meus duelos com decisões que tomei no passado.
Me aproximo dele, existe algo malditamente íntimo na honestidade, é
despir alguém de forma irreversível — algo ainda mais hipnotizante em saber
que ele também lida com o fardo de uma decisão ruim. Tenho uma vontade
enorme de tirar tudo dele, uma curiosidade que ele cultivou por me revelar a
conta-gotas sobre si.
— Querida, não me olhe desse jeito. — Sua voz é rouca, carregada de
desejo contido. — Não brinque assim comigo.
— Olhando como?
— Como quem vai me devorar e cuspir os ossos depois — ele murmura,
os olhos semicerrados me acusando.
Seguro sua mão e levo seus dedos aos meus lábios, mordiscando as pontas
com delicadeza. Sinto um leve tremor percorrer meu corpo — talvez seja
ansiedade. Estamos sozinhos, nosso desejo escapou das cabines apertadas e
agora tem uma ilha inteira para se desenvolver.
— Então pare de me encarar como se você fosse me afogar — sussurro.
Os dedos em minha boca deslizam para meu pescoço, ele ameaça um
aperto e eu ofego. Usa isso para me guiar até um ponto exato no cômodo, sua
mão livre já segura meus pulsos naquele roteiro que conhecemos bem.
A corda pesada que pende do teto balança poucos centímetros acima da
minha cabeça.
— Eu posso confiar em você? — ele pergunta de repente, meus braços são
erguidos e a mão no meu pescoço é substituída por seus lábios deliciosos. —
Você está escondendo algo de mim, querida?
O vento silva ao atravessar as janelas quebradas, mais forte e furioso, faz a
corda bater contra minhas mãos antes de Kaeldros começar a envolver meus
pulsos com ela. Fico na ponta dos pés, toda esticada e pendurada. Eu não
entendo por quê, mas estar a sua mercê faz meu corpo todo formigar, como se ao
ser amarrada, meu destino estivesse selado e não houvesse nenhuma decisão ou
ação a ser tomada além de suportar as consequências.
— Você está sendo paranoico de novo.
— Com você mansa desse jeito, como não vou desconfiar?
Kaeldros solta um riso curto, sem humor, os dedos deslizando pelos botões
de pérola que ele abotoou com tanto cuidado mais cedo.
— Desejo me deixa assim. — Testo as amarras no pulso, apenas para
confirmar que não tenho como me soltar.
— Mentirosa. Já vi teu desejo várias vezes ao longo dos meses; se
esfregando em mim enquanto nos beijamos, dormindo quase nua ao meu lado,
não perdendo uma oportunidade sequer de me lembrar o quanto eu quero me
afogar entre as suas pernas — com um puxão firme, as pérolas estouram pelo
chão de madeira, quicando por todos os lados. — Você só fica assim quando
culpa te consome.
Engulo em seco, seu olhar inquisitivo me deixa sem resposta.
— Última chance — ele anuncia enquanto atira minhas botas para
qualquer lugar, junto com o eco das pérolas ainda quicando escadaria abaixo. —
O que você está escondendo de mim?
Abro a boca, mas Kaeldros transforma minha primeira resposta em um
gemido longo quando traça a língua lentamente pelo espaço entre meus seios.
— Pense um pouco antes de responder — ele sugere com traços de
diversão na voz.
Os dentes afundam e ele suga com crueldade minha pele, deixando uma
grande marca arroxeada no local que ele tanto gostou. Uma conhecida umidade
melada começa a queimar entre minhas pernas.
— Então, qual a sua resposta? Se for honesta, posso pensar em ser
piedoso. — Ele se ajoelha na minha frente, as mãos descem a barra da calça e
um constrangedor fio brilhante se estica entre minha intimidade e o tecido.
Kaeldros abre um sorriso largo enquanto seus olhos encontram os meus
cheios de desafio e deboche. Fervo e, dessa vez, não é só pelo desejo.
— Não estou escondendo nada — cuspo a resposta. — Faça o seu pior,
Demônio do Mar.
Ele não me dá tempo de me arrepender ou de sequer processar o que está
acontecendo. Sinto o tecido das calças se embolar nos calcanhares, seus lábios
afoitos me abocanham sem cerimônia. Suga meu clítoris com rudeza, raspa os
dentes de uma forma que faz meu baixo ventre se contrair violentamente. É tão
bom que acho que vou desmaiar de verdade, luto para afastá-lo, mas ele finca os
dedos nas minhas coxas e abre mais as minhas pernas. Sua língua me invade de
uma só vez, e meu interior se apertar com tanta força em torno dele, que chego a
gritar.
— Você tem exatamente o sabor que eu imaginava que teria — ele geme
contra a minha pele sensível.
— Você pensou muito sobre isso? — pergunto entre suspiros.
Fico arrependida no mesmo momento por interrompê-lo, Kaeldros
deposita uma lambida demorada antes de erguer o rosto para me responder.
— Toda noite, enquanto via você se roçar naquele travesseiro. — Ele abre
um sorriso largo e cruel, seu polegar se esfrega em minha entrada. — Eu vou
fazer você pagar tão caro por me levar até esse ponto, querida. Você poderia ter
sido paciente, no final eu te daria todo o prazer que você quer, mas você teve que
deixar nós dois desse jeito.
A ameaça me molha ainda mais e ele aproveita para deslizar seu polegar
melado em minha bunda, pressionando na entrada de trás. Assusto, mas, com
habilidade, ele estica o indicador e o dedo médio até meu clítoris, brinca com os
dois buracos ao mesmo tempo.
— Não vou me saciar com facilidade, vou querer você de todas as formas
possíveis. — A intensidade dos seus olhos sobre mim é desconcertante, está
avaliando cada reação minha quando pressiona um pouco mais o polegar. —
Gosta da ideia?
Minha respiração está entrecortada, a ideia é inebriante ao mesmo tempo
que um pouco assustadora. Sei de moças que fazem e gostam, mas nunca me
aventurei nisso. De repente, me sinto meio jovem e inexperiente de novo.
Confirmo com a cabeça.
— Ah, querida. — Ele solta um som rouco e sobe até meus lábios. — Eu
vou te mostrar formas de gozar que você nem imagina.
As mãos dele me abandonam enquanto sua boca toma a minha, escuto o
som da calça dele sendo aberta e meu coração dispara. Eu o desejo tanto que não
consigo raciocinar, quero responder suas provocações e entrar em seus jogos de
dominância, mas enquanto não o tiver pelo menos uma vez inteiro dentro de
mim, minha cabeça não vai conseguir se organizar.
Kaeldros engole meus gemidos quando esfrega a ponta de seu membro em
minha entrada. Estou tão desesperada que tento forçar as amarras para me soltar,
isso apenas me faz balançar no ar e perder o equilíbrio. Movo os quadris
buscando mais atrito, mas ele me permite sentir apenas a cabeça deslizando por
minha extensão molhada.
— Você quer? Então peça — ele ordena, seus olhos sombrios.
Maldito.
— Eu quero, Kaeldros — peço sem pudor. Não me importo mais.
Ele pressiona, passa pela entrada. De forma cruel, fica brincando,
colocando e tirando apenas a ponta. É gostoso, malditamente bom, ao mesmo
tempo que completamente insatisfatório.
— Implora. — Ele estala a demanda na língua, um prazer obsceno no
rosto.
— Por favor, Kaeldros, eu preciso tanto de você dentro de mim. —
Qualquer coisa, apenas faça parar de arder. — Em minha boca, pela frente, por
trás, de todas as formas que você quiser.
O som que deixa sua garganta não é algo que poderia ser emitido por um
homem, é a mistura de um timbre espectral ao mesmo tempo que animalesco.
Ele afunda o rosto entre meus seios e morde a pele marcada e ainda sensível.
Dou um grito dolorido enquanto ele mete a cabeça do membro repetidas vezes,
usando a própria mão em torno da circunferência para impedir de se afundar
demais, torturando a nós dois.
Ou melhor, torturando mais a mim, já que ele faz uma pausa com a cabeça
dentro e começa a se masturbar.
— Você quer tanto que está até chorando — ele sussurra.
Só então percebo as lágrimas escorrendo pelo canto do rosto. Estou
tremendo para ele, uma bagunça de prazer e frustração, não sei mais onde uma
coisa acaba e a outra termina, só sei que quero tanto Kaeldros que choro.
Ele lambe as lágrimas, então vai até minha boca, dando um beijo
demorado e lento. Ainda gemo contra seus lábios, tento a todo custo rebolar em
seu membro, mas ele se afasta. Escuto outra vez o barulho das calças, mas agora,
para o meu desespero, se fechando sem que nenhum de nós dois tenha se
satisfeito.
— Você é a tentação mais suculenta e perigosa que já cruzou o meu
caminho, e eu juro, querida, eu vou te destruir algum dia — ele profere entre
beijos gentis. — Até esse dia chegar, espero que isso sirva como lição para você
deixar de ser uma cretina prepotente que acha que pode me enganar.
Pisco várias vezes sem conseguir entender, só percebo que há algo
realmente errado quando ele começa a soltar meus pulsos amarrados.
— Eu… — Não sei o que dizer, ainda estou tentando entender o que está
acontecendo.
Kaeldros segura minha cintura, me ajuda a pousar no chão com cuidado, o
contato de seu corpo no meu me faz gemer, mas ele se mantém impassível.
Espera até ter certeza de que minhas pernas estão firmes.
— Eu sei sobre o navio do seu povo na ilha e você está forçando tudo isso
para minar o poder da canção e conseguir fugir. — A indiferença com que joga
meu plano na minha cara é o que mais me choca.
Meu corpo ainda arde de desejo, mas a mente está em pânico, buscando
uma resposta que não vem. O que posso argumentar? Que estava cogitando a
possibilidade de gostar tanto de transar com ele que não iria mais embora?
Kaeldros se abaixa com calma, puxando minha calça de volta para o lugar.
Ele afivela o cinto apenas o suficiente para que a peça não caia. Suas mãos
tentam ajeitar a túnica rasgada, os botões destruídos de forma irremediável.
— Agora termine de se aliviar sozinha. — Sua voz é fria, com um toque
de sarcasmo. — Estarei lá fora quando você acabar.
Ele deposita um beijo breve nos meus lábios antes de se afastar,
caminhando em direção às escadas que levam para fora do farol.
Fico ali, imóvel, o coração e a respiração disputando um colapso, o melado
entre minhas pernas escorrendo lentamente pela coxa. O pacífico som das ondas
quebrando na praia junto ao balido dos carneiros é interrompido quando dou o
grito mais alto e frustrado de toda a minha vida.
CAPÍTULO 17
____

Toco meu corpo com ódio, mas faço questão de tocar. A sombra de Kaeldros
ainda paira na escada, não foi embora como disse que iria. Está ali, escutando os
sons molhados e meus gemidos chamando por seu nome, uso todo o vasto
repertório de frases sacanas que acumulei pelos anos e sei que podem tirar a
sanidade de um homem, coisas como querer sentir seu sabor ou como me sinto
vazia sem ele.
Continuo com o espetáculo até escutá-lo chutar as barras de ferro da
escada com raiva, é tão alto que o som reverbera por todo o farol em um eco
misturado aos meus próprios sons. Ótimo, porque eu também estou furiosa. Não
demora para ele ir embora de verdade, e eu paro de me tocar. Não importa o
quanto meus dedos deslizem, isso não vai me levar ao ápice.
Fico sentada com a respiração irregular por um bom tempo odiando ter
sentimentos conflituosos por Kaeldros, tem tanta coisa se passando pela minha
cabeça que consigo ficar um bom tempo ali, reassistindo momentos aleatórios do
último mês para me convencer de que devo odiá-lo de uma vez por todas.
Uma gaivota pousa na janela quebrada. Intimidada pela minha presença,
fica congelada, seus olhos com um julgamento silencioso enquanto uma sardinha
meio viva se debate em seu bico. Deve ter construído seu ninho em algum lugar
aqui dentro e agora avalia se vale a pena abandonar sua casa ou enfrentar uma
maluca gritando.
Isso lembra meu estômago de que o sol está alto no céu, já deve ser hora
do almoço. Desço as escadas do farol, pelo caminho encontro a saco de juta com
as roupas que trouxe, aproveito para trocar a túnica destruída antes de sair. Fico
com calças, botas e a nova camisa, o vestido-casaco é deixado para trás, a ilha
tem o calor abafado e pegajoso que se cola à pele. O verão já chegou e não
percebi?
Kaeldros está sentado na beira do rochedo com um coco aberto nas mãos,
usa parte da casca como colher para raspar a polpa suculenta. Meus lábios
ressecados e estômago vazio anseiam por um pouco e fico feliz ao ver que há
uma segunda fruta aberta ao seu lado me esperando.
— Até pensei em assar alguma coisa, mas com toda a gritaria nenhum
carneiro ousou ficar por perto — ele provoca quando me sento ao lado dele.
— Culpe a você mesmo por isso.
Bebo de uma só vez a água do coco, percebendo o quanto estava com sede.
Parte do líquido escorre pelas laterais do lábio, mas não me importo, é
refrescante. Senti falta do sabor fresco da comida em terra firme. Ao meu lado,
Kaeldros me encara em silêncio com um sorriso fechado.
— Você não está bravo comigo? — pergunto.
— Por que estaria?
— Você estava certo, te seduzir e fugir são mesmo possibilidades para
mim. — Deixo propositalmente de lado a informação de que estar apaixonada e
querer ficar por vontade própria também é uma possibilidade.
Esculpo um pedaço da polpa com a colher improvisada, a suculência ajuda
a lidar com o sol quente do meio dia. O mar se estende brilhante à nossa frente,
refletindo todo o calor como um espelho. Gotas de suor se formam nas minhas
costas, ainda assim não acho ruim, a saudade de casa pode transformar as
situações mais desconfortáveis em nostálgicas.
— Nos damos bem e isso deixa nossa relação complicada, mas, por
essência, eu ainda sou seu captor e você continua minha prisioneira até o final
dessa jornada, quer queira ou não — ele explica. — Se você tivesse feito isso
dentro do Fúria, eu teria ficado irritado, porque geraria consequências, alguém
teria que ser punido. Agora, aqui, extravase todo o seu desejo de lutar comigo,
não me importo.
— Eu não te odeio tanto quanto você pensa — acabo confessando. — E se
quer saber, se alguém importante para mim desaparecesse, tomaria as mesmas
decisões que você tomou.
— Eu também não te odeio, às vezes até penso em te manter prisioneira
mesmo depois de encontrarmos Molgur — ele diz isso numa falsa casualidade,
espia minha reação pelo canto do olho.
Enfio um bocado de polpa para dentro com os olhos fixos no horizonte,
quase engasgo. Tudo está bagunçado demais, não tenho condições de incluir
mais essa possibilidade — tenho certeza de que ele mudará de ideia sobre seus
pensamentos por mim quando souber da mentira.
Se eu fujo e arrasto Manon comigo até Ferroforja, sou um monstro. Se
continuo enganando Kaeldros para irmos até o oeste, também sou um monstro.
O impulso de confessar a verdade lateja em mim. Mesmo sendo um caminho
doloroso, parece a única chance de redenção. Mas isso arruinaria essa tarde tão
tranquila, tão bonita.
Talvez amanhã.
Sou mesmo uma cretina egoísta.
— O que me leva a um assunto importante. — Kaeldros muda o tema da
conversa quando não respondo. — A parte mais difícil de ter você como
prisioneira é te manter viva.
— O que eu fiz dessa vez?
— Soube que a menina ruiva previu você se afogando.
— Ah, isso. — Esse drama é tão antigo que parece pertencer a outra vida.
— Você acha que essa previsão pode estar relacionada ao dia que quase morri
de hipotermia? Talvez você tenha mudado esse futuro.
Kaeldros arremessa a fruta que estava em sua mão com força. O coco
atinge a superfície da água e some nas profundezas enquanto ele balança a
cabeça negativamente.
— Não é assim que funciona. Quando um vidente tem uma visão e está
presente nela, isso não pode ser mudado. O vidente vai presenciar essa visão se
concretizar. Enquanto Manon não ver você se afogar, isso não estará resolvido
— ele explica, a expressão séria forma um vinco no meio das sobrancelhas. —
Mas Manon viu algo, mas não sabe seu contexto, nada impede que no minuto
seguinte algo aconteça e impeça sua morte.
Minha garganta aperta.
— Então, qual é a sua sugestão?
Ele me encara, um sorriso lento se formando.
— Eu vou te ensinar a nadar.

Até agora, eu só havia ouvido falar da scheelita. Um mineral raro em


Caldera, dizem que se desenvolve melhor próximo da água, por isso muitas
embarcações foram enviadas para as ilhas do sul, território do Povo do Mar.
Embora formem espadas formidáveis, não usamos a scheelita na forja. Ela
é a moeda mais valiosa em Caldera, um símbolo de riqueza extrema. Hoje, meu
irmão tem cofres cheios dela, mas, durante nossa infância, quando Rubinorte
ainda não era a Cidade-Mãe, nosso clã não desfrutava desse tipo de luxo.
Por isso, quando vejo o brilho azulado, característico dessa pedra, vindo do
fundo do lago subterrâneo da caverna, fico paralisada. A base da ilha inteira deve
ser composta de scheelita, o que explica o nome Pedralume. Me sinto meio
idiota, é claro que o clã costeiro que reivindicou este lugar sabia disso quando
deu esse nome, mas nos mantiveram no escuro.
Isso planta uma dúvida no meu coração. Sempre acreditei que a
supremacia de meu irmão uniria toda Caldera, mas quantos segredos foram
levados para o túmulo quando eliminamos nossos adversários? Quantas
conspirações ainda se escondem, esperando o momento certo para derrubar o
homem que eles chamam de "O Usurpador de Tronos"?
— Vou ter que cantar pra você entrar? — Kaeldros zomba ao emergir da
água.
Ele apoia os cotovelos na rocha. O sorriso despreocupado destaca suas
covinhas, e os cabelos ensopados, puxados para trás, brilham sob a luz da
caverna.
Ajoelho na beirada, próxima dele, sentindo a pedra fria e escorregadia sob
minhas mãos, é como reviver o pesadelo de quase despencar do penhasco em
Ferroforja. Borboletas se agitam no meu estômago, uma mistura de medo e
excitação.
— Não me oponho, eu até gosto da sua voz — brinco de volta.
Os dedos molhados de Kaeldros envolvem meu queixo, o polegar acaricia
minha bochecha e, por um longo momento, nos encaramos em silêncio, apenas o
som da água fluindo e os ecos distantes da caverna.
— Quer mesmo?
Confirmo com um aceno. Por que não?
— Se você me prometer seu coração — ele começa a canção mais suave
que o habitual, o ritmo é alegre, combinaria bem com uma flauta doce ao fundo.
Sem hesitar, aceito a mão que ele estende para me ajudar a entrar na água.
O frio imediato me faz dar um pulo, e meu corpo, por reflexo, tenta se afastar.
— Eu te darei toda a minha devoção... — ele sussurra, a canção tomando
conta de mim, as brumas de sua voz derretendo minha resistência, dominando a
adrenalina que percorre minhas veias.
Quando não tento resistir, o efeito é meio embriagante como álcool —
agradável.
Uma de suas mãos escorrega molhada até meu cotovelo, enquanto a outra
se posiciona na minha cintura, me guiando com calma para dentro do lago. O
frio da água contrasta com o calor que emana de seu corpo, e logo me encontro
encaixada nele, um choque térmico entre a água gelada e sua pele quente.
— Está frio... — Meus dentes tremem, e me encolho em seus braços
buscando abrigo.
— Seja gentil comigo, meu amor... — ele murmura, o nariz roçando
suavemente minha bochecha, a voz baixa e íntima.
A scheelita no fundo do lago é a única fonte de luz nessa parte da caverna,
seu brilho azulado traz uma anormalidade estranhamente confortável, ares
místicos que nos envolvem como se estivéssemos em algum lugar fora do
mundo que conhecemos. É apenas nós dois e o mar.
Levo minhas mãos até o rosto de Kaeldros, sinto a textura de sua pele
úmida por baixo dos dedos. É diferente, em contato com a água fica mais lisa e
escorregadia, ele assume sua verdadeira face de sireno. Não reparei nisso antes
porque estava quase desacordada a última vez que estive em seus braços no mar.
Deslizo a ponta dos dedos até encontrar as fendas em seu pescoço, logo
atrás das orelhas. São três de cada lado; guelras. Ele ergue uma palma aberta,
exibe para mim a membrana fina que surgiu entre seus dedos, conectado-os
como uma nadadeira.
— E eu prometo afastar toda a sua dor.
Encaixo minha mão em cima da dele, observo a diferença de tamanho, de
formato, de espécie. Seus olhos me observam atentamente, como se aguardasse
minha reação, curiosos e, talvez, um pouco vulneráveis.
Por um instante, fico sem saber o que fazer. Pela primeira vez, uma tímida
hesitação se instala em mim. Esse toque, esse carinho silencioso entre segredos
compartilhados, não é uma expressão de desejo, nem mesmo de amizade. É algo
mais profundo, algo íntimo de uma forma que não estou acostumada a ter com
um homem.
Ele percebe que fiquei sem jeito, puxa meu rosto para um beijo longo e
gentil. Suas mãos envolvem minha cintura enquanto me agarro ao seu pescoço,
seus pés se agitam ritmados pela água para nos manter flutuando. É tão gostoso
que poderia beijá-lo pelo resto do dia, sem segundas intenções ou roupas voando
para todo lado, apenas flutuar nessa poça azul e beijar meu sireno.
— Hmmm — ele suspira, as palavras vibrando contra meus lábios. —
Desse jeito, vamos demorar o dobro do tempo para chegar ao oeste.
— Por quê?
— Vou querer ficar sozinho com você em todas as ilhas.
Meu coração bate tão forte que parece ecoar nas paredes da caverna, cada
pulsação pesada, como se quisesse rasgar meu peito. Eu também quero mostrar
para ele quem sou, as barbatanas e guelras que escondo.
— Meu irmão foi quem deu a ordem para eu queimar todas aquelas vilas,
era o último obstáculo para tomar o trono — começo antes que me falte a
coragem, minha voz sai baixa, quase sufocada. — Mas não posso dizer que fui
manipulada. Eu realmente achava que estava fazendo o certo... nós achávamos.
Durante todos esses anos, só falei sobre isso com Molgur. Faz sentido que
apenas um dragão, uma criatura selvagem e monstruosa, entenda o que eu fiz.
— Ele é ótimo para Caldera — continuo, a água agora parecendo mais fria
contra minha pele enquanto tento me justificar. — Os clãs viviam em constante
guerra e morriam aos montes, mas, agora, por causa dele, estamos em paz. A
divisão das riquezas é mais justa, as leis são mais claras. Ele não é um monstro.
Kaeldros me observa em silêncio, nada em sua expressão aprova ou
desdenha minha explicação. É um alívio, pensei que logo de cara me condenaria
como a maioria.
— Mas ele te fez sentir que você é?
Fez.
— No começo, não. Foi só quando os primeiros sobreviventes vieram atrás
de mim que comecei a me sentir assim... — Minha garganta aperta. — Eu achei
que viriam por vingança, para restaurar a honra de uma derrota. Mas não era
isso, eles vinham me matar como uma forma de aplacar a dor da perda. Não
apenas destruí o que eles amavam, mas fiz de forma desonesta e sequer dei a
chance de eles lutarem. Não existe sentimento pior do que a impotência de
proteger quem você ama.
É quase insuportável dizer essas palavras em voz alta, como se colocá-las
no mundo as tornasse ainda mais reais, mas Kaeldros se mantém quieto, seus
braços ao meu redor enquanto absorve cada uma de minhas confissões.
— E sabe, mesmo hoje quando dou a chance de uma luta justa, isso não
muda nada, mas é a única coisa que eu posso fazer. Não dá para voltar no
passado e fazer diferente.
Parece tão óbvio agora, mas naqueles tempos eu não via isso, embebida
pela vaidade de conquistar o mundo, tomada por um idealismo cego de que
estava fazendo o certo, ou apenas não pensando muito sobre o assunto. Eu tinha
meu irmão, meu irmão tinha a mim, e juntos nós éramos invencíveis.
Eu achei mesmo que estava fazendo o melhor por todos, que os fins
justificariam os meios — não levei em conta que os meios também são pessoas.
— Mas fiz as pazes comigo mesma — concluo, as palavras saindo mais
firmes, quase arrogantes, porque se continuar nessa espiral começarei a chorar a
qualquer momento. — Um erro não define quem eu sou. E hoje eu tomo minhas
decisões sozinha, faço o que considero certo e não me deixo levar pelos outros.
— Você pode ter feito as pazes com o que aconteceu, mas ainda é dura
com ela — Kaeldros responde rápido, é bom porque não me deixa na tensão
sobre o que está pensando, é ruim porque não entendo o que quer dizer. Ela
quem? Manon? — Acha que ela não consegue tomar decisões sozinha. Diria até
que a odeia.
Franzo a testa, confusa, o comentário me pegando desprevenida.
— Hã? Não! Claro que não odeio Manon — respondo, a voz um pouco
mais alta do que pretendia. — Ela só não tem experiência, e é fácil se deixar
levar por aquilo que acelera o coração. Quando ela for mais velha...
— Eu não estou falando de Manon. Estou falando de você — ele me
interrompe naquele tom pausado que usa quando fico exaltada com algo. —
Pode ter feito as pazes, mas você odeia a menina que tomou essas decisões, não
é? Isso te quebrou de forma que não confia em mais ninguém para tomar
decisões junto com você.
Não respondo e isso dá a chance de ele continuar:
— Você fala muito do seu irmão, tenta fazer parecer que gosta dele, mas
eu acho que você o culpa também por fazer você se sentir assim. E talvez se
sinta ainda mais culpada por odiá-lo?
Começo a tremer e não acho que seja de frio, meu corpo inteiro reage ao
que ele está falando. De repente, estar flutuando não é mais tão pacífico, fico
desesperada pensando em uma forma de fugir, mas estou cercada de água por
todos os lados.
— E de repente você se t-tornou um especialista… — Minha mandíbula
está batendo, meu coração tão acelerado que preciso fazer uma pausa no meio da
frase — …nas minhas e-emoções em poucos meses?
— Você aprendeu a se defender com a espada, eu aprendi manipulando as
emoções e pensamentos alheios — Kaeldros justifica, seu aperto fica mais forte,
tenta conter meus tremores em vão. — Se estou errado, você pode me dizer.
Mas há uma coisa que você não pode negar. — Ele me encara sério e meu
estômago se revira, já antecipando o próximo baque. — Você nunca diz o nome
dele. Tem medo de invocar seu nome e vê-lo pelos olhos de uma pessoa e não
pelos olhos de uma irmã?
Eu acho que vou vomitar.
— Me leva de volta para a margem.
— Querida, desculpa se eu fui rápido demais, não queria…
— Me leva de volta para a margem!
Começo a me debater nos braços de Kaeldros, tentando me soltar. Se o
objetivo dele era me fazer aprender a nadar, funcionou. A urgência de fugir me
força a agitar braços e pernas desajeitadamente, desesperada para escapar.
Mesmo com meus golpes erráticos o acertando várias vezes, ele não me solta.
Segura minha cintura como se eu fosse uma criança, com aquela calma irritante,
e me guia até a beira do lago.
Assim que saio da água, meu corpo treme ainda mais forte. As roupas se
colam à minha pele, geladas e pesadas. Kaeldros faz menção de me abraçar, mas
eu levanto a mão, parando-o antes que ele possa me tocar.
— Sua vez, quantos corações? — peço, preciso saber. — Quantos corações
você já tirou do peito?
Ele suspira e, sem ofensa aparente, se senta no chão à minha frente, como
se finalmente estivéssemos dispostos a acertar as contas.
— Não sei, eu não os tiro eu mesmo e não conto os corpos boiando.
A resposta me choca, com a convivência e todas as vezes que julgou meu
gosto por batalhas, imaginava que ele fosse mais… inocente. É errado o quão
reconfortante é saber disso?
— Quando estou triste, eu canto, e toda pequena tristeza ao meu redor fica
tão dolorosa, que quem escuta prefere tirar o próprio coração do peito do que
continuar sentindo isso — ele explica. — Às vezes acontece mesmo que eu não
queira, canto para conseguir uma coisa em específico, mas a tristeza vem sem
pedir permissão... Como quando você quase caiu do penhasco…
Então realmente foi Kaeldros? Eu quase saltei do penhasco porque ele
estava triste?
— Foi um acidente, eu queria te seduzir com desejo para vir de boa
vontade até o navio, as duas coisas se misturaram e você quase saltou para vir ao
meu encontro.
— Então está me dizendo que toda a minha infância vendo mulheres sem
coração sendo enviadas pelos córregos... foi um acidente?
— Não, nesse caso não. O que restou dos sirenos atacou o seu povo por
vingança. Mas a maioria deles foi caçada. Já faz muitos anos que não encontro
um.
— Como assim?
— Não existem mais sirenos de sangue puro. — Sua voz é baixa, com uma
tristeza silenciosa. — Às vezes encontro outro, assim como eu, escondido, mas
vamos aos poucos acabar.
Meu corpo gela. Eu sabia que o Povo do Mar havia sido caçado, mas
nunca imaginei que estivesse à beira da extinção. Durante anos, a única coisa
que se falava era sobre os confrontos entre nossos clãs e os sirenos. Diziam que
havíamos invadido o território deles em busca de scheelita, assim como fizemos
com os dragões nas montanhas. Mas enquanto os dragões eram solitários, os
sirenos eram muitos. Ou, pelo menos, deveriam ser.
— Você não está sendo razoável — tento argumentar, a voz trêmula. — Se
ainda existem alguns, é possível que, em algumas gerações, voltem.
Ele ri amargamente, um som curto e sem alegria.
— Quando eu tinha uns quatro anos… — começa, o tom sombrio. —
Havia uma festividade estúpida para celebrar Amahra, a Deusa da Fertilidade.
Todas as mulheres foram reunidas em uma das sete ilhas do sul para os
preparativos.
Meu estômago se revira. Eu sei onde essa história vai parar, mas não quero
acreditar.
— Nós… não matamos os homens? — arrisco, minha voz mal saindo. —
Atacamos primeiro todas as mulheres?
Ele confirma com um aceno breve, os olhos nublados de dor.
— O sangue dos sirenos vai se diluir aos poucos na água — ele diz com
um suspiro resignado.
— É por isso que os sirenos que vieram atrás de vingança só cantavam
para as mulheres? — pergunto, as peças começando a se encaixar e o horror
crescendo em mim.
Kaeldros inclina a cabeça, os olhos se fixando nos meus com uma
intensidade que me faz tremer.
— Existem coisas mais dolorosas do que a morte — ele murmura. —
Perder a pessoa que você ama é uma delas.
Minha respiração para por um instante e, então, num fio de voz, pergunto:
— Então... sua mãe...?
— Minha mãe, minhas duas irmãs mais velhas e uma tia. Todas mortas
naquele dia.
— E seu pai...? — Minha voz quase falha, o peso da revelação esmagando
meu peito.
— Provavelmente morto também — ele responde, a voz fria e distante. —
Enquanto tentava aplacar a dor da perda.
Eu fecho os olhos, tentando absorver tudo. É demais. A dor, a vingança, a
extinção iminente de um povo. Quando abro os olhos de novo, sinto algo
quebrar dentro de mim.
— Kaeldros, eu... sinto muito. Desculpe, de verdade.
Ele franze a testa, me olhando com uma confusão repentina.
— Você não precisa me pedir desculpas. Não fez nada. Não pode carregar
o fardo do seu povo.
— Eu sei — digo, ainda sem conseguir afastar a culpa que me corrói por
dentro.
— Então por que está se desculpando? — ele pergunta, os olhos buscando
algo em mim que nem eu mesma sei responder.
Minha garganta se aperta e, finalmente, a verdade escapa dos meus lábios.
— Porque eu menti. Molgur nunca disse que ia para o oeste.
CAPÍTULO 18
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O estalido da pele do peixe tostando na fogueira deveria ser atraente, depois


de um dia a base de frutas e emoções rançosas, meu estômago deveria implorar
por comida. Não é o caso. O calor abafado da noite se une ao vapor da maresia e
me sinto sufocada, enjoada como se as palavras que vomitei não fossem nem
metade do que estou escondendo dentro de mim.
— Você tem todo o direito de estar furioso comigo — quebro o silêncio.
Kaeldros ergue os olhos da fogueira para me encarar. Não falou nada
relevante desde minha revelação sobre Molgur. Não faça brincadeiras assim,
querida, ele pediu, aquele jeito incrédulo balançando a cabeça de um lado ao
outro. Persisti na verdade até ele trocar a negação pelo silêncio.
Esperei por muitas reações vindas desse momento, aguardei por barganhas
absurdas, por chantagens envolvendo a canção do sireno e surtos de raiva, mas o
silêncio parece pior. Conversou comigo o mínimo desde que deixamos a
caverna, pediu para eu acender a fogueira enquanto ele foi para o mar. Ficou lá
por horas até retornar com um par de tainhas para a janta e um olhar ainda mais
perdido.
— Não estou. — A fogueira projeta sombras em seu rosto, deixa suas
olheiras ainda mais profundas.
— Não?
Preferia que estivesse.
— Aquele dia no porto, não te dei muita opção além de mentir, não é? —
ele dá um longo suspiro, a brisa noturna vinda do mar bagunça seus cabelos.
Parece tão perdido que parte meu coração. — Estou cansado.
A lua tenta se esconder atrás do farol, está minguante e incompleta, mas,
em compensação, o céu está tomado por um tapete estrelado. Se estivéssemos
bem, perguntaria para Kaeldros sobre as constelações. Já o vi analisando o céu
algumas vezes antes de ajustar o percurso do Fúria.
Mais do nunca, sinto que estou perdida — e ele também.
— Se não está bravo, então por que o tratamento silencioso?
— Acho que estou processando que isso acabou.
— Isso o quê?
— Eu e você.
Minha mão vai ao peito instintivamente, o aperto inesperado torna difícil
respirar, como se o ar ao redor desaparecesse.
— Não tenho motivos para ir ao oeste, você não tem motivos para
continuar me ajudando. — Kaeldros se levanta para mover o espeto com os
peixes de lugar, finca a base na areia fofa. — Rune provavelmente vai continuar
a jornada com a menina ruiva, posso lhe ceder alguns homens e moedas
suficientes para comprar um barco modesto. Só resta você decidir se vai com
eles ou se quer que eu te leve de volta para Ferroforja.
Ele sequer cogita a possibilidade de que eu continue no Fúria e, talvez,
esteja certo. De repente, me sinto meio triste, como se algo precioso estivesse se
desfazendo na água diante dos meus olhos. Preferia Kaeldros furioso, gritando
comigo, enquanto há confronto, existe a chance de vitória, mas sua quietude é
uma sentença de que essa batalha acabou.
Você venceu, Elena, parabéns. Era isso que você queria, não é? Voltar para
casa. A grande dúvida é onde é sua casa…
— O que você vai fazer?
— Eu não sei, querida, você era minha única pista — ele dá outro suspiro
exausto, passa as mãos pesadas pelo rosto tentando afastar as emoções. — Não
me resta muito além de aceitar. Talvez ele apareça, ou talvez eu nunca saiba o
que aconteceu, mas vou aprender a viver com o arrependimento do que eu disse.
— Ele dá de ombros, tenta fingir indiferença, mas sua expressão está carregada
de tristeza. — Foi ele quem te ensinou que um erro não define quem somos, não
é?
Os olhos de Kaeldros encontram os meus, sem brilho e fundos como um
poço. Tenho vontade de chorar por vê-lo assim e saber que é culpa minha. De
repente, pareço decepcionar todos à minha volta, sou egoísta com Manon e
mentirosa com Kaeldros. Esse é o problema das decisões ruins, você não as toma
por mal, você não tem a intenção de ferir ninguém, você realmente acha que está
fazendo o melhor.
Afundo os dedos na terra, é uma mistura fofa entre a areia da praia e o solo
da floresta, um espaço onde não estamos nem em um, nem no outro.
— Foi…
— Maldito dragão velho — ele dá riso amargo, desviando o olhar como se
o contato entre nós fosse demais para suportar.
— O que você disse para ele? — pergunto relutante, não sei se ainda quer
compartilhar comigo seus segredos.
Uma cigarra distante grita no silêncio entre nós, é logo acompanhada por
outras companheiras em um coral agonizante. Ao menos isso esconde o barulho
das batidas do meu coração contra o peito, desejo tanto que Kaeldros me conte
que quase rezo aos Deuses por isso. Estou apegada demais ao nosso frágil
vínculo.
— Aceitei desertores e mercenários demais no Fúria... — Ele se senta ao
meu lado, nossos ombros roçam e seus cabelos, ainda meio molhados pelo
mergulho no mar, respingam em mim. — Eu estava cansado de ser caçado, de
viver isolado num ciclo infinito de autopiedade. Com uma tripulação dessas,
comecei a agir de forma mais... brutal, mais violenta com qualquer um que
cruzasse meu caminho.
Eu já sabia. Sempre ficou claro que havia dois grupos no Fúria: os antigos,
mais leais, e os sem nome, aqueles que carregam a sombra da traição nos olhos.
Mas ouvir isso dele faz meu estômago se apertar.
— Na última vez que falei com Molgur, antes de ele voar para o norte, ele
me disse que eu estava esquecendo o que significava ser um dragão. Que mais
mortes não trariam os sirenos de volta, e que isso só alimentaria meu vazio. — A
voz de Kaeldros vacila, sua mão se fecha em um punho tenso. — Eu respondi...
— ele pausa, as palavras parecendo rasgar sua garganta. — Eu disse que ele
poderia me chamar de dragão o quanto quisesse, mas isso não me faria ser um.
Que ele era só um velho louco, condenado a morrer sozinho como o último de
sua espécie.
Seus olhos brilham, refletindo as estrelas acima e as lágrimas que ele não
deixa cair.
— E talvez ele realmente tenha mo...
— Não — interrompo, minha voz desesperada, sem controle. — Nós
vamos encontrá-lo, eu prometo.
Mais uma mentira. E eu sei que deveria parar, mas não consigo.
Ele sorri, mas é um sorriso triste, quebrado.
— Querida, é bonito te ouvir dizendo "nós", mas você está livre.
— Não me sinto livre — confesso, sentindo o peso invisível das cordas
que nos ligam desde o momento em que ele me amarrou no banheiro. Cada laço
apertando mais e mais…
Eu viro o corpo para ficar de frente para ele, calafrios me consomem da
cabeça aos pés enquanto seu olhar se prende ao meu em outro longo silêncio.
Quantas palavras não são ditas entre nós? Foi uma longa tarde sobre verdades,
mas sinto que a mais importante delas não foi dita: Kaeldros, você é o sireno que
me sequestrou do meu lar, seduziu meu corpo com canções e então trancou meu
coração em uma caixinha.
E eu amo você.
Desvio o olhar para baixo, envergonhada, como se o pensamento fosse
dito em voz alta.
— Acho que já passou da hora de resolvermos isso, — Os dedos de
Kaeldros puxam com delicadeza meu queixo até voltar minha atenção para si. —
Elena.
Meu corpo inteiro se arrepia.
— Elena — ele repete, testando o nome em sua boca.
Seu sotaque desliza pelas sílabas de um jeito inesperado, quase como uma
carícia aveludada no ar. Ele prolonga o "E", transformando-o em um som mais
profundo, meio rouco, enquanto o "L" parece mais suave, como se se dissolvesse
no vento do mar. "Eee-leh-na," a voz dele carrega um ritmo sensual e
preguiçoso, é o meu nome, mas não parece com ele. É diferente, íntimo.
É isso, enlouqueci. Suas canções fritaram meu cérebro ao ponto de ficar
melada apenas por escutá-lo dizer meu nome.
Os dedos em meu queixo deslizam para a nuca, ele me puxa para um beijo.
Começa suave e melancólico, mas como uma faísca na madeira, as chamas
crescem conforme vamos explorando o corpo um do outro com as mãos. Seus
dedos brincam por cima do tecido fino da camisola que tomou o lugar da túnica
e calça molhadas, a princípio é apenas uma carícia gostosa em meus seios —
confortável. Acompanhado do crepitar suave das chamas próximas, parece algo
controlado como a fogueira em nosso acampamento improvisado.
Então, ele prensa meu mamilo entre o indicador e o polegar e belisca com
força. A madeira no fogo estala alto, meu corpo inteiro se acende, as terminações
nervosas confusas se devo sentir dor ou prazer com isso. Me contraio por
impulso, aquele lugar entre as pernas pulsando, se sentindo meio vazio.
Empurro Kaeldros até o deitar de costas no chão e ergo a bainha da
camisola na altura da cintura para montar nele, satisfeita em encontrar seu
membro rígido por baixo das calças. Esfrego-me, desesperada por contato.
Kaeldros geme em resposta. Seu olhar, repleto de adoração, faz minha pele
formigar.
— Eu não queria que fosse assim — ele confessa, mas suas mãos traem
suas palavras quando uma segura minha cintura e me incita a rebolar mais,
enquanto a outra tira de vez a camisola por cima da cabeça. — Em um contexto
tão deprimente.
— É o contexto perfeito. — Talvez não seja, mas, francamente, eu não
consigo pensar direito. Com os dedos determinados, tento livrar Kaeldros de
suas roupas, quero sentir sua pele se esfregando contra a minha. — Intimidade
também é uma forma de confortar.
— Você vai devorar toda a minha tristeza então? — ele provoca, me ajuda
a livrá-lo da camisa, quando vamos para suas calças, ele inverte nosso
posicionamento, me coloca de bruços no chão enquanto ergue minha cintura
para ficar na altura da dele.
Fico exposta, aberta para ele me manipular. Seus dedos provocam minhas
entradas da mesma forma como brincou comigo no farol. Apoio os antebraços
no chão para me dar estabilidade e me empinar melhor para ele, a mistura de
areia e terra arranhando a pele, mas não faz diferença.
— Eu queria lamber você por horas — ele continua confessando, e escuto
o som de sua calça sendo aberta. — Te ouvir implorar por mim, então calar seus
gemidos me enfiando em sua boca. Mas, nesse contexto…
Gemo. Muito alto. Muito. A ideia é inebriante, mas o fator horas me
desespera. Eu preciso dele, e preciso agora. Lanço um olhar necessitado por
cima do ombro, vejo-o pela visão periférica no exato momento em que segura
seu membro apontado para mim. Ele desliza a mão com lentidão, indo e
voltando por todo o comprimento que quero dentro de mim.
Gemo de novo, porque não consigo encontrar palavras para dizer o quanto
eu o quero agora.
— Shiiiu. — Ele lê minha mente. — Eu sei, também preciso muito.
Ainda que esteja melada ao ponto de escorrer pelas coxas, faz algum
tempo desde a última vez, meu interior se desacostumou com tudo que é mais
largo do que um par de dedos. Kaeldros força sua entrada, sinto cada centímetro
de mim se expandindo dolorosamente para ele, se moldando ao seu formato.
É um atentado à minha sanidade que seja tão delicioso, parece com
aquelas histórias absurdas sobre mulheres que atingem o ápice em segundos.
Mas Kaeldros é real e eu penso que se meu interior continuar se contraindo
assim ao redor dele, terei meu orgasmo precoce. Só preciso de mais um pouco,
mais fundo para me preencher por completo.
Ele me nega isso, é um sireno cretino. Pode não estar disposto a gastar
horas me lambendo, porque seu membro deve estar pulsando tanto quanto meu
interior, mas não perde a oportunidade de me torturar. Com apenas metade
dentro, ele se retira até a ponta, voltando para aquela insanidade de deslizar a
cabeça pela entrada.
— Pare de brincar, eu quero tudo — rosno.
— Aprendeu de novo como falar? — ele debocha com um riso que dura
pouco. Seus dedos se emaranham nos cabelos próximos da minha nuca e, com
um puxão firme, ergue meu corpo até estar de joelhos, seu membro desliza e me
empala, entra por completo de uma vez. Isso cala meu rosnado e seu riso,
gememos juntos.
Lá está. Fecho os olhos sendo jogada para a beira do orgasmo, as mãos de
Kaeldros agora deslizando pelo meu torso exposto, a brisa marítima batendo
contra meus seios.
— Eu estou tão próxima. — Ergo um braço para trás, emaranhando meus
dedos em seus fios cor de cobre para trazê-lo para mais perto.
Seus lábios deslizam por meu pescoço, pousam na orelha com uma
respiração ofegante que acompanha o ritmo com o qual me invade repetidas
vezes.
— Ainda não — ele sussurra rouco e diminui a velocidade. — Consegue
aguentar mais um pouco por mim?
Não. Definitivamente não.
— Uhum. — A confirmação sai falha e gutural.
— Eu vou bem devagar para você conseguir se segurar — ele continua
falando ao pé do meu ouvido. Seus movimentos lentos quase me fazem revirar
os olhos de tão prazerosos, consigo sentir cada centímetro se afundando em mim
até me chocar contra suas bolas. — Assim você consegue, querida?
— Uhuuuum — gemo outra confirmação, apenas para que ele não pare.
— Mentirosa, mentirosa. — Ele ri baixinho.
Como castigo, Kaeldros me deixa cair de bruços novamente. Desta vez, ele
deita o corpo por cima do meu, seu peitoral contra minhas costas, os lábios vão
parar direto no meu pescoço, distribuindo beijos e mordidas que se estendem até
a orelha, não sei se esse som molhado vem do estalo de sua língua em meu
lóbulo ou do meu interior encharcado por ele.
Cada investida firme de seu quadril me faz gritar por mais, ele acelera os
movimentos, mais rápido, mais fundo, mais forte. Sua mão direita vai até a
minha, se entrelaça aos meus dedos, essa intimidade me excita de forma
inesperada. Choramingo, apertando a palma dele enquanto rebolo por mais
contato. A posição de bruços é deliciosa, permite que Kaeldros faça o que bem
quiser comigo, mas é difícil de atingir o orgasmo assim. Sinto falta de contato,
de roçar contra ele.
Não preciso dizer nada, meu choro é o bastante para meu sireno entender o
que preciso. Ele leva a mão livre em formato de meia concha para frente,
estimula exatamente onde desejo, permitindo que eu me esfregue contra seus
dedos sem atrapalhar seu membro entrando e saindo de mim.
— Onde você quer que eu termine? — ele pergunta rouco e ofegante.
É um alívio, porque também estou prestes a atingir o ápice.
— Dentro, por favor. Dentro — imploro sem ele sequer pedir.
Se é apenas por uma noite, se esta será a despedida de nosso noivado de
mentira, quero de fato encerrar me sentindo a noiva de Kaeldros por completo,
sendo preenchida por ele enquanto eu mesma atinjo o limite.
Como se também não aguentasse mais se segurar, ele se desfaz quente
dentro de mim, e o calor parece se espalhar por todo o meu corpo. Meus dedos
ainda estão entrelaçados nos dele, mas toda a minha força me abandona. Me
derreto sob o peso de seu corpo, a cabeça repousa na areia fria, sem me importar
com mais nada.
Kaeldros traça um caminho suave com os lábios pelo meu pescoço,
arrepiando cada centímetro da minha pele. Ele me vira com cuidado, quase como
se eu fosse algo frágil, e passa a mão pelo meu rosto, limpando as bochechas
coladas de areia. Seu sorriso aparece, e é aquele sorriso, o que me faz derreter
por dentro — lindo, com as covinhas que eu tanto adoro. Ele roça os lábios nos
meus, de leve, sem realmente me beijar. O toque é uma carícia, íntima e gentil.
— Eu vou sentir sua falta — ele sussurra, parte da satisfação dá lugar à
melancolia em seus olhos. — Para uma noiva de mentira, você foi a melhor
noiva que eu poderia ter.
Demoro alguns segundos para entender do que ele está falando, ainda meio
perdida nas ondas do orgasmo.
— É… parece apropriado nossa farsa acabar na lua de mel — respondo,
por que sou orgulhosa demais para dizer que o amo sem ter certeza se é
correspondido. — Mas ainda vale por essa noite, certo?
Estou tão insegura que mal me reconheço, tenho tanto medo da próxima
resposta dele que penso ter regredido anos de maturidade. Eu, que me achava tão
acima das bobagens do amor e que trocava de amante como a lua troca de fase,
me esqueci que o amor é por essência estar vulnerável ao outro.
— Claro. — Kaeldros não faz suspense, me puxa para deitar em seu peito,
os braços envolvendo meu corpo de um jeito que me faz sentir pequena,
protegida. — Quer ir para o farol ou prefere ficar aqui?
— Aqui. — Me acomodo em seu peito de forma que não consiga ver meu
rosto, não o quero lendo minhas expressões. — Pode me falar sobre as
constelações?
Por um momento, ele estranha o pedido, então aponta para a primeira
formação de estrelas e começa uma história. Assim como os marinheiros
dependem dessas estrelas para encontrar seu caminho em meio à vastidão do
oceano, estou perdida, sem um norte. Ouço atentamente e, enquanto ele fala, só
desejo que, em meio a essas constelações, eu descubra meu caminho de volta
para casa.
CAPÍTULO 19
____

Desta vez, quando nenhuma palavra é dita entre Kaeldros e eu, sei que
ambos estamos processando o fim.
Sinto-me ainda mais amarrada a ele do que antes. Mas qual seria o futuro
para nós? Mesmo gostando do Fúria e me acostumando à sua rotina, quero
passar a vida no mar saltando de uma aventura para outra? Amo minha casa,
meus carneiros, minha vida pacata em uma pequena vila. Haveria um meio-
termo entre a terra e o mar?
Escolher entre seguir para o oeste com Manon ou permanecer sem rumo ao
lado de Kaeldros é uma decisão injusta. E, depois de tudo o que fiz, pedir a ele
que abandone sua busca e siga para o oeste, seria egoísmo puro.
Na verdade, estou sendo prepotente em minha certeza de que Kaeldros
quer minha companhia para além de uma noite. Serei para sempre a mulher que
por uma mentira pode ter destruído suas chances de encontrar o dragão que o
criou.
O gosto amargo e salgado do mar me enjoa enquanto remamos de volta ao
Fúria. As brumas espessas engolem a visão ao nosso redor, e só consigo perceber
o navio quando estamos quase colidindo com o casco. Kaeldros não diz nada.
Assim que pisamos no convés, parte em busca de Rune, e eu entendo que
também é minha hora de ir.
— Se divertiu em Pedralume?
Manon se vira, surpresa com a pergunta. A boca entreaberta demora alguns
segundos para responder:
— Foi... legal.
— Só legal? — insisto.
O deck principal ainda está bagunçado, caixotes e barris de madeira, sacos
de pano grosso e cestos ventilados com todo tipo de suprimento ocupam grande
parte da área livre, uma mistura de cheiros navega pelo ar desde peixe salgado
até especiarias. Os marinheiros vêm e vão pela escotilha, descendo tudo até o
paiol no porão.
Manon carrega nos braços um saco de couro desengonçado, pela beirada
aberta penso ver um punhado de figos secos.
As compras feitas no último dia foram colocadas rapidamente no Fúria
antes de zarpar do porto da Pedralume, sem dar tempo para organização, Rune
não quis arriscar alguma chance de serem pegos. Agora entendo seus olhares
culpados e a tentativa de Manon de falar comigo nos últimos dias, queria me
dizer que tomou sua decisão e contou para Rune sobre a visão do navio de meu
irmão, por isso Kaeldros já sabia tudo quando descemos na ilha.
— A taverna daqui produz Lágrimas, acredita? — ela começa meio sem
graça, faz uma pausa esperando se vou interrompê-la, quando não digo nada,
continua um pouco mais animada: — A taverneira me contou que aquele gosto
amargo nas minhas fermentações é porque eu uso o tipo errado de alga, o sabor
muda completamente com os ingredientes certos.
— Parece ótimo e quero provar, já posso imaginar a cara de Ivar quando
suas Lágrimas forem mais populares do que o Sangue de Shahar que ele produz.
Um sorriso travesso se forma nos lábios de Manon, ela respira fundo e
curva o tronco, tentando parecer maior e mais intimidadora.
— "Mulheres não pertencem à fermentação! Har! Har! Har! Tire essa
porcaria marinha da minha taverna! Har! Har! Har!" — debocha em um tom
grosso, uma imitação perfeita das reclamações de Ivar.
Caímos numa gargalhada tão intensa que preciso me apoiar no mastro. É
um alívio breve em meio à tanta insegurança. Alguns marujos nos lançam
olhares feios por estarmos brincando em horário de serviço e parte da diversão
dá lugar a um aperto no peito quando percebo que é isso, apenas uma
brincadeira, as Lágrimas produzidas por Manon nunca chegarão até Ferroforja.
As brumas começam a se desfazer no horizonte, os contornos das
montanhas de Pedralume ficam mais evidentes. Encaro Manon, ela está diferente
e não digo isso por seu rosto abatido pelas noites mal dormidas. Não sei explicar
se é o contorno das sobrancelhas ou a maneira como encara tudo com olhos
atentos, mas há algo ligeiramente fora do habitual.
— Desculpa pelos últimos dias, fui uma cretina com você... — digo de
uma vez. — Eu sinto falta de como as coisas eram antes... mas mesmo se
voltarmos para Ferroforja, não adianta mais. Nossa casa não é mais a mesma,
não é?
Ela deposita a sacola de couro no chão, um figo escapa e sai rolando pelo
piso.
— A casa pode estar lá, mas as duas mulheres que passarão pela porta não
são mais aquela Elena e aquela Manon — responde com um sorriso triste.
Ah, agora eu entendo. É a maturidade que mudou o rosto dela.
Trago Manon para um abraço, envolvo seu corpo que não é mais pequeno
como anos atrás, aspiro o cheiro de seus cabelos que não é mais igual ao meu,
porque já não compartilhamos mais todos os nossos pertences, mas ainda que
não sejamos mais aquela Manon e aquela Elena, nossos corações continuam
batendo no mesmo ritmo.
— Eu te segurei demais… — confesso em um sussurro.
— Você estava me protegendo e eu agradeço por isso. Só que... — ela
hesita um segundo, e então me afasta, continua com a determinação de quem
ensaiou algumas vezes um discurso. — ...eu não sou mais aquela menina, Elena.
Eu tenho meu próprio caminho para seguir agora.
Sou tomada por um orgulho que chega a doer o peito. Ela fala como uma
mulher determinada, não como uma garota insegura.
— E esse caminho te leva para o oeste, não é?
Manon assente.
— Eu consigo sentir, Elena, que o futuro também guarda algo para você
quando retornar para Ferroforja. — Ela escolhe com cuidado as palavras, não
quer me magoar, mas deixa claro que meu caminho não é com ela.
Um vento forte sopra, agitando as velas em repouso. O farfalhar do tecido
grosso chama minha atenção para o mastro principal. Manon embarcou em sua
própria aventura no momento em que pisou neste navio. Não há lugar para mim
no oeste. Agora, essa é a história dela.
Pelos Deuses, quando foi que ela deixou de me seguir para cima e para
baixo, brandindo uma vareta de madeira como se fosse uma espada?
Continuo observando os marinheiros se apressarem para prender a vela
antes que o vento a leve embora. Uma vontade súbita de chorar me invade, mas
seguro as lágrimas. O vento seco ajuda a disfarçar o ardor nos olhos.
Não era esse o desfecho que eu imaginava, mas depois do dia com
Kaeldros, percebo que me agarrei com força demais a certas ideias, temendo
perder minha casa, meus carneiros, minha espada… e minha irmãzinha.
Sinto como se o mar tivesse levado tudo de mim, mas se há algo que essa
viagem me ensinou, é que não adianta lutar contra as ondas. Só me resta esperar
para ver o que a maré trará.
— Você pode dar uma olhada no futuro para mim?
Manon fica surpresa, é a primeira vez que lhe peço para usar a visão.
Sempre fui contra pelos mais diversos motivos, mas se a amo, devo aceitar quem
ela é, mesmo que isso nos torne tão diferentes. Porque se um dragão e um sireno
podem ser pai e filho, Visão e Ferro também podem ser irmãs.
— Eu andei praticando, acho que estou começando a entender como
funciona — ela conta animada. — Vamos ver, vou tentar captar alguma coisa do
seu futuro.
Abro um sorriso para incentivá-la a continuar, observo quando fecha os
olhos e sua coluna se endireita, como se um calafrio breve subisse a espinha. Ela
busca por minhas mãos, entrelaçamos nossos dedos e ficamos em silêncio por
alguns minutos. Quando ela, por fim, abre os olhos, estou ansiosa para saber o
que viu.
— E então? Posso contar com uma visita sua no futuro, depois que tiver
conquistado o oeste? — brinco, mas ela não sorri.
— Não consegui ir tão longe, algo me bloqueou antes.
Os dedos dela estão tremendo nas minhas mãos.
— O que você viu?
— O navio do seu irmão, ele vai nos achar e alcançar o Fúria.
Uma tontura súbita faz o mundo ao meu redor girar. Procuro
desesperadamente por qualquer sinal de uma embarcação próxima, como se a
visão já estivesse se tornando realidade. Mas não enxergo nada além das brumas.
Perto de nós, um sem nome finge descansar os braços ao largar um enorme
saco de farinha no chão, mas suas orelhas estão voltadas para nossa direção,
atentas. Um mau pressentimento se instala.
— O que exatamente você viu? — Puxo Manon para um canto, indo em
direção à amurada na broa para que não sejamos ouvidas. — Eles estavam
atacando?
— Não sei. Apenas vi o navio se aproximando e... — Ela olha ao redor. —
As montanhas de Pedralume ao fundo!
— Ótimo, teremos a vantagem, então.
— Um contra-ataque?
— Exatamente!
Kaeldros me disse que as visões não podem ser mudadas; o Fúria será
alcançado. Mas com essa informação, podemos nos preparar para um contra-
ataque surpresa. Preciso falar com Areskaan, começar a planejar estratégias,
posicionar os canhões, preparar a artilharia e...
— Elena, veja, trouxe flores novas para você. Não se parecem com aquelas
da sua vila? — Li surge como um gato no meio de nós com um buquê de flores
murchas.
As flores amareladas se parecem com os galantos de Ferroforja, mas
demoro a notar isso. Estou ocupada demais com estratégias e batalhas. Aceito o
buquê com um sorriso forçado e me pego observando Li, tão jovem, oferecendo
flores com um entusiasmo ingênuo. Seu sorriso de dentes espaçados traz à tona a
imagem dele em sua primeira batalha de vida ou morte, e isso me deixa
nauseada.
Minha atenção se desvia para os marujos no convés, peixes de Ferro que se
tornaram parte da minha rotina no Fúria. Eles riem e trabalham, confiantes em
suas habilidades, mas a realidade é dura: quantos deles realmente sobreviveriam
se enfrentássemos um ataque?
A ideia de lutar de repente me parece vazia, uma bravata inútil. Morrer
com honra era um pensamento aceitável para mim, mas e para Li, que mal
conheceu o mundo? E para os outros, que têm tanto a perder? Degolar, transar e
beber já não parecem respostas para tudo. Não é só o sangue dos outros que
estará em jogo; é o pouco que resta em mim.
A epifania surge sem aviso, como um sussurro no meio da confusão: e se
houver outra forma? Uma forma que não precise de violência e sacrifício para
ser eficaz? Pela primeira vez, vejo a situação com outros olhos, quase como se
estivesse enxergando pelos olhos de um sireno, buscando uma solução que flua
como a água em vez de quebrar como a espada.
— Kaeldros é bom com planos. Vou falar com ele. Mas se quiser se
adiantar, avise Rune e Areskaan. Mesmo se Kaeldros pensar em algo, é melhor
estarmos com as armas prontas para um plano alternativo — digo para Manon,
então me ajoelho diante de Li, pegando uma das flores.
— Cheguei em um momento ruim? — ele pergunta.
— Não, chegou no momento certo para me lembrar que há mais de uma
forma de resolver as coisas.

Encontro Kaeldros na cabine do mapa, debruçado sobre a mesa. Está tão


absorto na tarefa que demora a erguer os olhos quando entro, os cabelos meio
desgrenhados e uma carranca mal-humorada no rosto. Sinto uma fisgada no
estômago ao pensar que ele já planeja o próximo passo da viagem — uma etapa
sem mim. Quando, enfim, nossos olhares se encontram, ele me dá um sorriso
fino e melancólico.
— Elena — diz com aquele sotaque que o faz meu nome parecer uma
palavra nova.
— Preciso falar com você.
— Chegou em boa hora. Se quer uma carona até Ferroforja, agora é o
momento de incluir isso na rota — ele tenta manter o tom casual, mas há uma
tensão perceptível, como se estivesse oferecendo algo apenas por educação.
Fecho a porta atrás de mim, apoiando as costas contra a madeira fria. Meus
olhos vagam até a mesa, onde uma rachadura antiga divide a superfície ao meio
— uma cicatriz que minha espada deixou quando entrei no Fúria pela primeira
vez. Um carpinteiro tentou consertar o estrago, mas a falha é evidente,
atravessando o móvel como um lembrete de que, mesmo com reparos, algumas
marcas são impossíveis de apagar.
— Manon teve uma visão — começo.
Revelo tudo, sem deixar nenhum detalhe de fora — ou quase nenhum, já
que mantenho meus sentimentos fora da pauta. Falo sobre o plano que elaborei
nos últimos minutos e sobre minhas preocupações em evitar riscos
desnecessários à tripulação, especialmente àqueles que me são mais queridos.
Ele escuta em silêncio, mas vejo o fogo crescendo em seus olhos — uma forja
quente em sua mente, pronta para moldar um plano.
Encerro dizendo que se houver qualquer forma de evitar o confronto, estou
disposta a assumir o risco sozinha. Mas ele nega, balança a cabeça antes mesmo
que eu termine.
— Não pense por um minuto sequer em se enfiar em um duelo até a morte
com seu irmão, se tentar vou can… — ele para, fica sem jeito e encara as
próprias mãos, esse seria o momento em que me ameaçaria com uma canção,
mas elas não funcionam mais. — Eu preferia que não fizesse isso.
— Não farei.
A expressão dele suaviza, apesar de continuar com os ombros tensos, e
algo me diz que o motivo sou eu. Continuo apoiada na porta, ele permanece na
mesa, nenhum de nós ousa romper o espaço.
— Eu tenho uma ideia, mas… — Kaeldros começa com cautela, cada
palavra escolhida como se estivesse pisando em ovos. — Isso te impediria de
voltar permanentemente para Caldera. Mas não é como se você estivesse
pensando em voltar para lá, não é? — ele não soa tão confiante quanto de
costume.
— É… não sei…
— Não vai para oeste com a menina ruiva?
— Ah…
— Elena?
— O quê?
— Oeste ou norte? — ele insiste. — Eu preciso saber.
Meu coração acelera e a garganta se aperta com a pergunta. As palavras se
embolam na minha mente, formam nós difíceis de desfazer. Encaro outra vez a
rachadura que percorre a madeira da mesa, nenhuma resposta vem. Estou com
medo, não do caminho em si, mas de admitir o que realmente quero e descobrir
que não há uma chance para nós, que meu erro pode, desta vez, realmente definir
quem sou.
Sou a mulher que arruinou qualquer possibilidade de você encontrar o
dragão que o criou.
Kaeldros percebe meu surto nervoso e reduz a distância entre nós em um
instante. Sua proximidade traz um doloroso conforto, porque sinto que não
mereço.
— Ei, está tudo bem. — Ele me envolve em um abraço antes que eu possa
resistir. — Você quer voltar para casa, não é? Me desculpe por ter sugerido isso.
Foi egoísmo meu. Podemos encontrar outra saída, uma que não te impeça de
retornar para Ferroforja.
Para alguém que sempre me lê tão bem, desta vez Kaeldros parece cego ao
que realmente está acontecendo. Empurro levemente seu peito, apenas o
suficiente para abrir espaço entre nós. Sinto seu coração pulsando acelerado sob
a minha mão, enquanto seus lábios permanecem comprimidos em uma linha
tensa e seu olhar se desvia do meu quando tento encontrá-lo.
Vejo no brilho profundo de suas íris, como duas pedras de jaspe negro, os
reflexos das minhas próprias rachaduras. Subitamente, percebo o quanto ele
também está inseguro, apesar de todos os esforços para esconder isso.
Amar é isso, não é? É expor nossas cicatrizes e aceitar que o outro verá
cada falha, cada fragilidade, e mesmo assim escolher ficar. É se permitir ser
vulnerável, arriscar que nossas rachaduras sejam vistas como algo belo e não
como razões para afastamento.
— Não quero voltar para Caldera — tomo coragem, confesso com a voz
quase trêmula. — E também não quero ir para o oeste.
Por um instante, a expressão de Kaeldros vacila, seus dedos apertam a
minha cintura com força.
— Querida, não brinque comigo.
— Não estou brincando — digo baixinho. — Estou falando a verdade.
— Então, o que você quer?!
— Quero continuar com você! — vomito de uma vez. — Se você me
quiser também… Sei que não somos exatamente o casal mais… — faço uma
pausa, buscando a palavra certa. — Propício.
Ele abre a boca para responder, mas eu continuo, deixo sair tudo, preciso
descarregar cada dúvida antes que ele tenha a chance de me impedir.
— Metade da sua tripulação provavelmente quer minha morte lenta, e o
meu povo destruiu tudo o que você conhecia. Você passa a vida de ilha em ilha,
enquanto eu prefiro a segurança de um lugar fixo. Mas… — outra pausa, tenho
um tolo fio de esperança me segurando. — Se até Molgur passava metade do
ano no norte e a outra metade no sul, por que nós não podemos encontrar nosso
próprio equilíbrio?
Os lábios de Kaeldros se curvam em um sorriso genuíno e meu coração
acelera com tanta força que parece tentar saltar do peito. Ele inclina o rosto para
me beijar, mas me desespero, coloco um dedo sobre seu lábio enquanto
desembesto a falar.
Não quero dúvidas, não quero segredos e nem temores, todas as cartas vão
para a mesa:
— Meu maior medo é saber se você consegue me perdoar por ter mentido
sobre Molgur. Talvez, por minha culpa, você nunca...
Minha voz se desfaz antes que eu consiga terminar a frase. Kaeldros beija
meu dedo suavemente, seus lábios tocando minha pele com um carinho que me
desarma. Ele segue o caminho dos beijos até a palma da minha mão, segurando
meu pulso com cuidado, e traça um longo percurso de selares até alcançar meus
lábios.
— Eu te roubei do seu lar, te tirei do que mais amava e talvez você nunca
volte para lá — sussurra contra minha boca. — Mas dois erros não devem
definir quem somos, muito menos a nossa relação.
— E quem nós somos?
Em um movimento ágil, ele se abaixa e segura minhas coxas, erguendo-me
do chão e girando pela sala. Uma gargalhada boba escapa de mim enquanto me
agarro ao seu pescoço, e quando ele me coloca sentada na mesa, o riso se desfaz
em um suspiro.
— Ferro e água.
Kaeldros se inclina para me beijar e, dessa vez, eu não o impeço. Seus
lábios encontram os meus com uma ternura que me toma por inteiro, cada
movimento delicado como se quisesse dizer mais do que qualquer palavra. Não é
apenas um beijo; é uma promessa de que, apesar de tudo, as cicatrizes que
deixamos um no outro é o que tornará nossa história única.
— Teremos tempo para entender como isso vai funcionar, mas por agora
há algo mais urgente. — Apesar de interromper o beijo, ele se recusa a se afastar.
— Eu tenho algumas ideias, a maioria arriscadas, em todas vou precisar que
você confie sua vida a mim. Você acha que consegue?
E, pela primeira vez em muito tempo, a resposta é sim.
CAPÍTULO 20
____

A água gelada bate contra o casco do bote, respingando no interior a cada


remada. Meus braços protestam — não tanto pelo esforço, mas pela sensação de
estar navegando em direção a algo irreversível. As brumas dominam o mar,
encobrem até o sol, que se tornou apenas uma bolota esmorecida por trás do
filtro acinzentado.
É a primeira vez em seis anos que verei meu irmão. O rosto dele surge nas
minhas lembranças, tão semelhante ao meu que, quando éramos mais novos, as
pessoas diziam sermos reflexos em um espelho. Ainda assim, ele sempre teve
algo a mais — uma energia magnética que faz os outros orbitarem ao seu redor,
eu inclusa. Mesmo agora, não sei ao certo se estou indo ao seu encontro para
confrontá-lo ou pelo desejo de vê-lo uma última vez.

As discussões se arrastaram por horas, até que, em meio aos planos e


estratégias, Kaeldros sugeriu algo que fez um calafrio percorrer minha espinha.
— Você não vai cantar para afundar um navio inteiro — repreendi,
tentando manter a voz firme. — Primeiro, isso não é uma luta honrada.
Segundo, você se odiaria por isso. Terceiro, você nem está deprimido o
suficiente para ter o efeito desejado.
Ele ergueu uma sobrancelha, e um sorriso travesso começou a se formar
em seus lábios.
— Errada. Eu não me importo com honra. Errada de novo, sempre tenho
razões para me odiar, essa seria só mais uma. E, por fim, errada de novo, se eu
pensar que posso te perder, ficaria deprimido o bastante, sim.
Suspirei, tentando conter a preocupação.
— Nada disso. Precisamos encontrar uma solução melhor. Menos mortes,
de ambos os lados.
Eu esperava que ele se aborrecesse com a recusa, mas, em vez disso, seu
sorriso se ampliou, quase brincalhão.
— Para alguém que até pouco tempo falava em degolar qualquer um, você
está parecendo... gentil demais. O que será que aconteceu com você?

O navio se ergue à minha frente, as velas escuras, características do galeão


pessoal de meu irmão, tremulando ao vento como fantasmas do passado.
Conforme me aproximo, alguns marujos me avistam e uma comoção se inicia lá
em cima. Quando chego ao casco, alguém joga uma corda. Com um nó rápido,
amarro-a ao bote antes de subir pela escada de corda para o convés.
Faço tudo sem pensar, porque se parar para analisar a situação, tenho medo
de perder a coragem. Levo a mão várias vezes até a cintura para checar se
Espírito do Norte, minha espada, está ali.
"Prometa que, se tudo der errado, vai trazer seu lado mais selvagem à
tona. Prometa que vai voltar para mim." Kaeldros disse ao me devolver a espada
antes de eu partir.
Sou recebida por rostos conhecidos e ansiosos no convés: Aric, um dos
meus casos mais longos; Cassia, por anos minha amiga mais próxima; Ronan,
meu aprendiz mais dedicado numa época em que eu mal tinha idade ou
sabedoria para ensinar. Eles correm para me abraçar, o alívio estampado em seus
rostos marcados pelo tempo.
Outros aplaudem e comemoram — homens e mulheres com quem lutei
lado a lado em tantas batalhas. Meu coração se enche de uma felicidade boba,
uma nostalgia boa ao rever todos eles.
As perguntas vêm de todos os lados: "Como escapou?" "Está bem?"
"Fizeram algo com você?" "Quantos matou para conseguir fugir?". Mas todos
são silenciados por uma única voz masculina que ecoa por todo o convés:
— Elena?! — É tão familiar quanto a minha própria. — Eu disse que havia
mais chances de encontrarem os destroços de um navio, junto dos corpos dos
tripulantes, do que o seu único cadáver boiando!
O rosto de meu irmão surge diante de mim com aquele mesmo sorriso
confiante da minha memória. Uma onda de emoções conflitantes me invade —
alívio, dor e saudade. Muita saudade.
— Oi, Bane.

— Bane? Como Bane, o Deus da Destruição? — Kaeldros fez uma careta


quando contei.
— É o patrono do nosso clã. — Dei de ombros, mas ele continuou com
aquela expressão estranha.
—Nomes dizem muito sobre uma pessoa.
— E o que significa Elena? — acabei perguntando, nunca me preocupei
em saber, não parecia importante antes.
— Luz — ele respondeu com um sorriso pequeno.

Bane segura meu braço direito e o ergue em um gesto vitorioso. O


assoalho do navio treme quando todos os guerreiros batem seus pés ao mesmo
tempo em comemoração, isso perdura por alguns momentos até meu irmão
dispensá-los de volta ao trabalho com a promessa de que mais tarde beberíamos
todos juntos em preparação ao ataque contra meu captor.
Um arrepio sobe minha espinha, disfarço com um sorriso. O incômodo
fica ainda mais forte quando Aric, Cassia e Ronan também se afastam, me
deixando sozinha com Bane.
— Minha querida irmã.
Ele me abraça como se eu tivesse me ausentado apenas alguns meses após
uma longa batalha e não anos de cartas sem retorno. No começo, estou tensa, os
braços travados ao lado do corpo, mas ele insiste, dá alguns tapinhas amigáveis
em minhas costas como quem diz: está com medo do quê, bobinha?
Só existe uma coisa que me deixa mais preocupada do que meu irmão com
raiva, é ele fingindo não estar.
— Confesso que, depois de tanto tempo te procurando, fiquei com um
pouco de medo. — Parece honesto e isso me desarma um pouco.
Acabo cedendo em abraçá-lo, seu corpo já não é tão forte quanto me
lembrava, são braços de alguém habituado à vida no palácio, não aos campos de
batalha.
Observo como o tempo deixou suas marcas. Há linhas de expressão que o
fazem parecer mais com nosso pai do que comigo, e entradas discretas em seu
cabelo, onde o grisalho começa a se misturar ao castanho da família.
Ainda vejo meu irmão ali, mas é diferente, quase outra pessoa. É estranho
a sensação, como alguém que você conheceu tão bem pode se tornar um
completo desconhecido.
— Não exagere, não fiquei no mar por tanto tempo assim.
— Foram três meses.
— Tudo isso?
A conversa é interrompida pelo som de correntes raspando contra a
madeira do assoalho e um gemido sôfrego de dor. Olho ao redor e vejo os
homens do Ferro ocupados, preparando canhões e afiando espadas, se tivesse me
demorado mais, estariam a caminho de iniciar o ataque ao Fúria.
Mas o barulho que ouvi vem de algo ainda pior, vem de um cabrestante no
centro do convés, onde seis marujos têm os pés acorrentados, forçados a girar o
mecanismo que impulsiona uma hélice sob a embarcação. Suas roupas
maltrapilhas e aparências cansadas entregam que estão ali há certo tempo. Para
meu horror, Ronan os assiste de perto, tem um cabo de madeira nas mãos,
lembra uma bengala, mas tenho a forte sensação de que está sendo usada com
outra função.
Escravos... Uma prática que Bane havia proibido ao tomar o poder em
Caldera — ou, ao menos, era proibido até a última vez que fui atualizada no
assunto.
— A vida campestre te deixou sensível? — Bane brinca, como se não
tivesse nada demais naquilo.
Fico sem palavras. Fizemos o que fizemos para acabar com as injustiças
em Caldera e, agora, Bane parece bastante com o tipo que tanto combatemos.
— Ossos do ofício, você lembra como é, certo? Fomos avisados que você
estava a caminho de Pedralume. — Ele coloca a mão em minhas costas,
conduzindo-me para longe. Encaro seu rosto, procurando por algum
constrangimento, mas encontro apenas indiferença. — Os homens tiveram que
se revezar por uma semana inteira, remando sem descanso para garantir que
chegaríamos a tempo. Foi preciso algum incentivo.
— Quem são eles?
— Alguém que me irritou, alguém que fez um trabalho mal feito, alguém
que falhou. Não faz realmente diferença, o que importa é a ideia que isso gera, o
medo de ir para o cabrestante — ele explica quase didático. — Quando um
usurpador perde sua lâmina, precisa encontrar outras formas de manter o
controle e não ser assassinado. — O comentário sai com um sorriso tão afiado
que sinto um arrepio, como se uma adaga fria tivesse sido encostada em minha
nuca.

— Cale a boca ou vou cortar sua língua — ameacei Kaeldros, a espada


em seu pescoço, mas não fez nenhuma diferença, ele não tinha mais medo
nenhum de mim.
— Querida, alguém tem que ser honesto o suficiente para te dizer a
verdade: seu irmão já parecia um grande escroto antes, anos no poder só devem
ter acentuado ainda mais o que há de pior nele — Kaeldros argumentou.
Me afastei, massageando as têmporas.
— Passei dos limites? — ele perguntou.
— Um pouco — respondi magoada.
— Me desculpa. — Pareceu um pedido sincero.

— Como escapou? — Bane me puxa do meu devaneio.


— Como ficaram sabendo? — respondo com outra pergunta, tenho medo
de que pegue minha mentira no ar.
Subimos para o tombadilho, a configuração desse galeão é bastante
semelhante ao de Kaeldros, se estiver certa, está me levando para seus
aposentos. Não sei se tenho vantagem em um local aberto ou fechado. Na
verdade, aqui não tenho vantagem nenhuma.
— Há muitos desertores de Caldera no navio do sireno. — Ele não se
importa com a mudança de assunto, a vaidade em explicar sua perspicácia
escorre pela lateral dos lábios. — Estive me correspondendo com um deles,
atende pelo nome de Esfregão de Convés. Fascinante a estratégia de persuasão
deste sireno, tirar o que confere individualidade a um homem para torná-lo um
equipamento dentro de seu navio. Você presenciou isso? O que achou?
Meus dedos traçam a empunhadura de Espírito do Norte mais uma vez, me
pergunto se Bane sempre foi tão insensível à dor alheia e eu nunca percebi.
— Sua visão está sendo superficial.
— É mesmo? E ele usou essa estratégia com você?
Não respondo e isso chama sua atenção. Aric ameaça se aproximar, tem
um pergaminho aberto nas mãos que parece querer mostrar para meu irmão, mas
Bane ergue a mão, o dispensa sem tirar a atenção de mim.
— Do que ele te chama? — Ele para no meio do deck superior, o brilho
maldoso em seus olhos faz eu me sentir desconfortável e pequena.
Tento desviar a atenção, encarar as velas tremulando no mastro. Agora que
as brumas se foram, deixaram a visão de um céu tão escuro quanto um mau
agouro.
— Aprendeu a me respeitar e me chama de Elena. — Não é a resposta que
eu quero dar, mas é o máximo que posso dizer agora sem tornar a situação
complicada.
— Você se sentiu especial com isso? Fez você pensar que faz parte da
família dele?
É por isso que Bane nunca vai até campos de batalha, sua língua é pior do
que qualquer espada e ele vive em constantes duelos com qualquer um que cruze
seu caminho. Sei que Kaeldros não é esse manipulador nojento, mas não consigo
deixar de me sentir meio humilhada perante a insinuação.
O sorriso dele se alonga, sabe que me acertou em cheio.
— Você não fugiu, ele te deixou vir até aqui — conclui.
Meu coração dispara, mas não me dou ao trabalho de disfarçar. Não
adianta.
— Tenho uma proposta — digo, jogando as cartas na mesa.
— Claro que tem — ele responde com indiferença, dando de ombros antes
de acenar para um grumete que carregava pólvora nos canhões. — Vamos
conversar no jantar. Tire um tempo para pensar. Sabe, eu vim porque estava
preocupado com você. Não importa em que encrenca você se meteu, ainda sou
seu irmão.
As palavras dele soam como um misto confuso de carinho e desprezo,
fazendo minha cabeça girar e minha boca secar. É uma sensação familiar, que
me leva de volta a todas as batalhas em que relutei, mas que Bane me convenceu
a travar: "Estamos salvando muitas vidas, não importa se o mundo inteiro se
voltar contra nós, porque você sempre será minha retaguarda, e eu, a sua."
Quero gritar e fugir.
Um grumete desconhecido e com uma expressão nada amigável surge e
me poupa de responder. É um alívio. Não suportaria conversar com um rosto
familiar neste momento. Ele me conduz até a cabine do meu irmão, onde me
oferece roupas limpas, uma bacia para banho e algumas frutas para passar a
tarde.
Cometo o erro de vestir meu antigo uniforme: o couro tingido de preto, o
brasão do ouroboros bordado no peito. Prendo os cabelos no alto da cabeça,
como costumava fazer, e delineio os olhos com tinta escura. Ao me encarar no
espelho, vejo uma versão mais imponente de mim mesma, até mais bonita, se for
honesta. Uma beleza que tem algo de mortal e assustador.
Mas por baixo dessa aparência, volta a lembrança do quanto me sentia
quebrada, perdida e, principalmente, solitária.
Sento no chão, ao pé da cama, e enfio a cabeça entre os joelhos, respirando
fundo para me acalmar. Sacar a espada e lutar até a morte parece menos doloroso
do que enfrentar o passado. Fico as horas seguintes revivendo mentalmente cada
detalhe do plano com Kaeldros, na tentativa de encontrar algum consolo.

— Eu achei que nesse ponto da vida, eu estaria preparada para lidar com
qualquer coisa, já teria passado por situações ruins o suficiente para nada
realmente me abalar ou surpreender, sabe? — confessei, com a mão já na borda
do bote. — Aprendi a sempre ter uma espada comigo, não vejo problema em
mentir se for para evitar uma briga, tenho uma rotina consistente que me
mantém ocupada. Mas agora aqui estou eu, despreparada mais uma vez, me
sentindo insegura.
— Maturidade não é sobre estar pronto para tudo, é sobre estar disposto a
lidar com tudo. — Kaeldros colocou a mão por cima da minha, seu aperto era
reconfortante. — Por quanto tempo você fugiu dessa conversa com seu irmão?
Assenti, fitando as ondas escuras.
— Por tempo demais.
CAPÍTULO 21
____
Ao entrar na sala de jantar, sou recebida por um cenário de ostentação. A mesa
está repleta de frutas exóticas, carnes ricamente temperadas e taças de vinho
refinado, refletindo a luz suave dos candelabros dourados. O ambiente exala
poder e conquista. Houve um tempo em que eu teria ficado impressionada, mas,
agora, só sinto um desconforto sutil, como se não pertencesse mais a esse lugar.
Meu irmão já está à mesa, com uma taça de vinho na mão e um olhar que
mistura astúcia e uma frieza familiar. Sua atenção vaga pelo meu uniforme
antigo, e um lampejo de nostalgia parece atravessar seus traços.
— Posso? — pergunto, indicando o vinho.
— Mas é claro. — Ele faz um gesto exagerado, como se me concedesse
um grande favor.
Sirvo-me de uma taça e tomo um gole, tentando afrouxar a tensão nos
ombros. O silêncio entre nós é denso, ele é um desconhecido com a aparência de
alguém que amei e, pela forma como seus olhos tem uma sombra de mágoa,
acho que pensa o mesmo de mim.
— Então, se livrou do dragão? — ele pergunta, a atenção repousando em
Espírito do Norte na minha cintura.
— Não. — Coloco a taça sobre a mesa e escolho um assento a três
cadeiras de distância dele. O banquete é grande o suficiente para trinta pessoas,
mas parece que somos os únicos convidados. — Decidi passar um tempo com a
espada, só isso.
— Ah, entendo. — Ele se inclina para trás, girando o vinho na taça. —
Confesso que tinha uma pequena esperança de que a vida campestre tivesse se
tornado entediante, e que você finalmente voltaria para o que é seu por direito.
Dou uma risada breve, sem humor.
— Meu?
— Seu — ele repete, sem se abalar. — Pai ficaria envergonhado ao saber
que você usa Espírito do Norte para escapar das suas responsabilidades, em vez
de governar nossos territórios ao meu lado.
Evocar a memória de nosso pai é um golpe baixo.
— Não tão envergonhado quanto ficaria com suas trapaças — cuspo de
volta.
Seu rosto se fecha como se eu tivesse acabado de lhe dar um tapa. Um
silêncio amargo paira entre nós, cada segundo que passa sem que alguém fale vai
tornando a verdade mais clara: talvez nunca possamos nos entender novamente.
Não somos mais aquelas crianças que corriam pelo bosque caçando coelhos e
inventando aventuras. Agora, somos adultos moldados por mágoas, escolhas
malfeitas e caminhos que se afastaram mais do que eu gostaria de admitir.
— E Leanan, como está? — Mudo de assunto, agarrando-me ao desejo
persistente de ter meu irmão por perto, de sentir que ainda resta algo de familiar
entre nós.
O candelabro no teto balança suavemente, acompanhando o ritmo das
ondas. A comida que parecia tão apetitosa quando entrei, agora tem um aspecto
borrachudo. Bane também não toca em nada, apenas serve mais vinho em sua
taça, como se precisasse do líquido para engolir as palavras que vêm a seguir.
— Está bem. Recuperando-se do parto. Tivemos nosso terceiro filho — ele
diz com uma voz que mistura orgulho e cansaço. — Um garoto forte e saudável.
— Três filhos já? — Não consigo esconder minha surpresa, e vejo o brilho
de irritação em seus olhos.
— Pelos Deuses, Elena. Sabemos que você não se importa com minha
esposa ou meus filhos. Vamos ao que interessa.
— Talvez eu me importasse se você tivesse respondido alguma das minhas
cartas — bato de volta, cansada de suas humilhações.
— Você me abandonou. Me traiu. Por que eu responderia mensagens
cheias de culpa?
Ele estreita os olhos, a forma como me encara cheio de acusação me deixa
furiosa. Ele não tem o direito de me odiar depois de tudo que quebrou dentro de
mim.
— Você virou as costas para mim primeiro! Fingiu não ver o quanto tudo
aquilo estava me despedaçando! — Perco o controle, bato os dois punhos com
força na mesa, os pratos tremem junto do estardalhaço de uma bandeja de prata
caindo no chão.
— Claro, claro. Vamos fingir que tudo isso é culpa mútua. — Bane faz um
gesto dramático com a mão. — Eu realmente acreditei que você sempre seria
minha retaguarda, você me largou sozinho com os lobos! Você acha que o que
você fez foi horrível? Você não imagina o que eu tenho que fazer todos os dias
para sobreviver depois que você foi embora!
— Imagino, sim! Você começou a fazer o serviço sujo que antes me
mandava fazer!
Desta vez, Bane não responde. Fica ali, imóvel, a expressão dura. O único
som no cômodo é da minha respiração ofegante.
— Você sabia que eu estava quebrando — continuo, agora um pouco mais
baixo, a voz vacilando com tantas emoções. — Me viu chorar e despedaçar em
mais de uma ocasião, ainda assim, no dia seguinte, me mandava de novo para
massacrar mais um pobre infeliz em seu nome. Confiei em você, Bane. Você é
meu irmão mais velho e deveria ter cuidado de mim!
— Eu cuido! — ele rebate de imediato. — É por isso que estou aqui!
— Você confunde cuidado com posse!
Pela segunda vez, Bane parece ter levado um tapa no rosto. Por um
instante, sua boca se entreabre, como se estivesse prestes a dizer algo, mas, no
último instante, ele se cala, mastiga as palavras. Uma parte de mim espera por
um pedido de desculpas, alguma confissão de arrependimento, mas não sei se ele
se acha culpado.
— Foi um erro ter vindo. — Qualquer esperança minha vai pelos ares. —
Eu deveria ter deixado o mar te levar embora.
A frase soa como uma sentença, o ponto final de uma discussão que não
vai nos levar a lugar nenhum, não importa o quanto batemos nossas cabeças
tentando fazer o outro entender. Bane coloca uma pedra em nosso passado, foi o
que foi, não há mais nada a ser dito.
— Talvez tenha razão — solto um suspiro exausto.
A chama das velas espalhadas sobre a mesa oscila com uma brisa vinda de
uma das janelas abertas, a cera se acumula nas beiradas dos castiçais, um
lembrete que já gastei tempo demais aqui.
O apego ao passado e a rotina me impediram de romper um laço que se
deteriorou, tenho carregado por tempo demais algo que só me faz mal porque um
dia me fez bem.
— Então, se não podemos voltar, podemos pelo menos acertar as contas —
continuo, o tom mais firme. — Deixe o mar me levar.
A incredulidade cruza seu rosto, e ele balança a cabeça devagar, como se
estivesse tentando entender o que acabei de dizer.
— O quê…?
— Deixe a droga do mar me levar, aí será tudo seu, não mais nosso.
— Elena... — Ele hesita, um riso seco esperando para ver se é uma piada.
Não é. — Não estou conseguindo acompanhar. Você não está sugerindo que...
— Que se você não se livrar de mim agora, eu vou atacar esse lugar com
meu navio de desertores — corto, segurando seu olhar. — E aí veremos quantos
dos seus homens ainda tem lealdade a mim. Pela comoção hoje cedo,eu
arriscaria que ao menos metade.
Suas íris escurecem e, por trás de toda aquela fachada, vejo um lampejo de
algo que parece medo.
— Você está pedindo que eu te mate?
— Sim.
— Por quê?
— Porque eu quero recomeçar.
Passamos a vida nos preparando, convencidos de que temos controle sobre
o que virá. No plano original, eu deveria ameaçar Bane até ele me acusar de
traição; a execução mais comum para aqueles que se envolvem com o Povo do
Mar é o afogamento. Pela manhã, o Fúria viria para me resgatar. Manon chegaria
a tempo de assistir minha morte e veria meu corpo afundar, exatamente como as
previsões da Visão a avisaram. Enquanto isso, Kaeldros mandaria para
Pedralume os marinheiros de confiança e deixaria apenas os sem-nome no navio
para confrontar meu irmão.
Eu costumava ser implacável, rígida como ferro, seguindo ordens sem
hesitar. Mas essa viagem mudou algo dentro de mim. Agora, sinto-me um pouco
mais como água, fluida e imprevisível.
— Você poderia tentar alistar os sem-nome, têm bom conhecimento
marítimo... talvez sejam úteis — digo a Bane, após explicar o plano.
Ele responde automaticamente, o olhar perdido em algum ponto atrás de
mim:
— Já tenho gente demais tentando me matar. Prefiro eliminar todos eles de
uma vez.
— Então, você aceita?
— Antes me diga por quê, o que faz você virar as costas para sua honra e
seu sangue.
Penso um pouco no assunto, talvez não exista um momento exato em que
aconteceu, é mais como uma junção de pequenas expectativas quebradas.
Quando Kaeldros não me prendeu no mastro mesmo indo contra suas ordens,
quando não me odiou por ter mentido sobre Molgur, quando me aceitou mesmo
eu tendo feito algo que lhe deixará uma ferida para sempre, a forma como
sempre falou comigo calmo e pausado toda vez que eu estava cega de raiva.
Kaeldros não é perfeito, ele também mata, também sente dor e solidão,
mas seus pequenos gestos de gentileza me mudaram mais do que anos de
batalha. Talvez a mudança não esteja na ponta de uma espada, mas num galanto
colhido no final do inverno e entregue a uma guerreira perdida.
— Eu entendi que também odeio guerras.
Minha resposta o atinge como um soco, seus olhos vão até mim, mas sei
que não está me vendo de verdade, enxerga nosso passado. A expressão de Bane
fica dura, o maxilar forte trava e a boca se comprime, segurando frases que
nunca saberei se são de ódio ou entendimento.
Ele apenas confirma com um gesto de cabeça.
— Obrigada por isso — digo, com a voz baixa, quase hesitante.
— Não estou fazendo isso por você — ele responde, o tom ríspido. —
Estou sendo prático. Prefiro que seu nome seja enterrado de uma vez do que ter
que lidar com você no campo de batalha. Seria uma grande dor de cabeça. — Ele
bebe mais um gole de vinho, a segunda garrafa já na metade, suas bochechas
bastante coradas pelo álcool.
Por um momento, a máscara de indiferença quase se quebra, vejo uma
expressão triste, solitária. Mas ele logo volta ao normal enquanto se levanta da
cadeira, ainda segurando a taça.
— Quer comer alguma coisa antes de te prenderem? — pergunta, como se
estivesse oferecendo algo trivial.
— Não acho que conseguiria engolir algo hoje.
— Coma mesmo assim — ele insiste autoritário. — Vai precisar de energia
para amanhã.
Bane começa a se afastar, a taça ainda na mão, e joga as últimas palavras
por cima do ombro com o pé já para fora da cabine:
— Você tem alguns minutos antes de eu voltar com os guardas.
Até tento beliscar alguns pedaços de porco assado, mas o molho tem um
sabor agridoce na boca, como o fim de um ciclo. O que deveria ser um banquete
em minha homenagem, uma celebração do meu retorno, se transformou em uma
despedida forçada. Os assentos à mesa, que deveriam estar ocupados por antigos
colegas brindando à minha saúde, permaneceram vazios e silenciosos quando os
guardas entraram para me levar.
Trancada numa cela improvisada no porão, deito sobre um saco de grãos,
sinto o cheiro mofado do lugar e o ar abafado pesando em meus pulmões. O
sono não vem. As horas se arrastam, e eu me deixo levar pelas memórias: os
momentos de glória usando este uniforme de couro, os amigos que fiz, as
decisões e as comemorações que compartilhamos como uma família. Até mesmo
os tempos em que Bane e eu tínhamos os mesmos ideais — quando eu
acreditava nas promessas que fazíamos ao clã e um ao outro.
Agora, tudo parece tão distante, como se essas lembranças pertencessem a
outra vida, uma que está para acabar.

Bane nunca chorava, nem quando éramos crianças. Mas, aos vinte e um
anos, eu o vi chorar pela primeira vez. As lágrimas escorriam pelo queixo largo,
manchando a camisa suja de cinzas da pira funerária.
Eu não estava presente quando nosso pai morreu, mas Bane estava lá, na
batalha que levou metade dos guerreiros do clã. Era a sua primeira luta. Quando
partiram de Rubinorte, todos estavam entusiasmados com a estreia dele, diziam
que seria o amuleto da sorte. Uma semana depois, Bane voltou com os
sobreviventes, trazendo os corpos que conseguiu encontrar para os ritos de
partida.
— Eu odeio a guerra, Elena — confessou certa noite. — Você acha que há
uma forma de acabar com isso?
— Ele morreu como sempre quis: em batalha, com honra. E você esteve ao
lado dele. Tenho certeza de que isso foi importante para o pai. Agora, ele está do
outro lado do véu, orgulhoso de nós — tentei confortá-lo.
Bane balançou a cabeça.
— Esse pensamento é o problema de Caldera. A dor nunca vai cessar
enquanto todos acharem que há beleza na morte. — Ele me encarou, uma
determinação feroz queimando nos olhos. — Eu vou mudar isso, nem que
precise destruir tudo e reconstruir Caldera do zero.
— Então faremos isso juntos — disse, apertando a mão dele, mesmo sem
concordar completamente.
— Eu sei que você não vê o mundo como eu vejo, mas um dia verá. — Ele
me puxou para um abraço. — Obrigado por confiar em mim.
Hoje eu vejo, Bane. E é justamente por isso que não posso mais te seguir.

Na manhã seguinte, o navio inteiro está inquieto com a iminência da


minha execução. Suas ondas batendo com violência contra o casco, e o céu é tão
escuro que as lamparinas tiveram de ser acesas, mesmo em pleno dia.
No horizonte, o Fúria surge.
Tudo parece acontecer de forma distante, como se eu estivesse assistindo à
cena da minha própria morte sem realmente fazer parte dela. Estou ali, na popa
do navio, o ponto mais alto onde todos poderão ver quando meu corpo for
jogado ao mar. A única coisa que me separa da queda é o frágil corrimão de
madeira, baixo o suficiente para que um empurrão baste para me jogar daqui de
cima.
A notícia da minha execução se espalhou pelo navio durante a noite.
Alguns dos guerreiros, que já lutaram ao meu lado no passado, me encaram com
incredulidade e pesar. Os murmúrios de insatisfação se intensificam a cada
minuto, os ânimos esquentam, mas nenhum deles ousa desafiar as ordens de
Bane abertamente — ao menos não por enquanto.
Aric aparece para me colocar os grilhões nos tornozelos, uma expressão
pesarosa no rosto. Ele oferece duas vezes uma chance de fuga, sussurrando com
urgência enquanto se ajoelha aos meus pés. Na primeira vez, as palavras se
perdem, e não chego a prestar atenção no que ele diz. Na segunda, consigo
entender, mas recuso com um gesto vago e um sorriso.
Deve ter sido um sorriso bem estranho, pois ele se afasta sem insistir mais,
provavelmente convencido de que perdi a sanidade.
Posso ver a silhueta do Fúria através da névoa, cada vez mais próximo,
agora é uma questão de minutos. Seus marujos correm de um lado para o outro
no convés, preparando-se para o confronto. Estreito os olhos para focar nas
figuras à distância, e o coração se aperta ao reconhecer Manon no meio deles, os
cabelos ruivos e selvagens ao vento enquanto organiza os sem-nome para a
batalha.
Posso jurar que ouço meu nome sendo gritado por ela, mesmo por cima do
rugido da tempestade. Espero que me perdoe por fazê-la passar por isso.
Procuro por Kaeldros, mas não há sinal dele, tudo segue como planejado.
— Nunca mais volte para Caldera — Bane interrompe meus pensamentos,
aparece ao meu lado na popa. Por baixo da camada de raiva, há uma urgência,
ele também sabe que não temos muito tempo antes disso virar uma bagunça. —
Nunca mais cruze meu caminho. Quando tudo der errado, não venha até mim.
Eu não sou mais seu irmão. E da próxima vez, Elena... — Ele se inclina para
perto, os olhos ardendo como brasa. — Você vai morrer de verdade.
Antes que eu possa responder, sinto a mão dele agarrar a minha. Algo frio
e metálico é pressionado contra a minha palma. Olho para baixo e vejo uma
pequena chave, do tamanho exato para libertar os grilhões em meus tornozelos.
— Mas espero que você encontre a vida que procura. — A voz dele vacila
por um instante, e os olhos estão um pouco avermelhados, brilhando na
penumbra.
Um sentimento de angústia fecha minha garganta. Não odeio Bane, apesar
de tudo, ele não é um monstro. Não gostaria que nosso último encontro fechasse
nossas memórias de forma tão triste. Então, ofereço para ele um pouco de
gentileza. Mentirosa, mas um presente por tudo que vivemos juntos:
— Bane... me desculpa pelo que eu disse ontem. Apesar de tudo, acho que
o pai está orgulhoso.
Pego desprevenido, ele pisca os olhos com lentidão.
— De você também, Elena. — As palavras são quase sufocadas pelo
vento.
Gritos irrompem pelo convés. Os marinheiros começam a se revoltar,
discutindo entre si e protestando contra a execução iminente. Alguns tentam
avançar, a confusão se espalha. Há tanto que eu gostaria de dizer ainda, mas
Bane lança um último olhar para mim — um que quero memorizar para sempre
— antes de atender meu pedido final e me empurrar do navio.
Enquanto caio, ouço o estrondo de um canhão disparando no Fúria, o som
ensurdecedor se mistura ao rugido do mar e ao grito sufocado de Manon. As
ondas me engolem, chacoalham meu corpo de um lado para o outro, e por
instinto me debato. Ainda que eu saiba que está tudo bem, não consigo manter a
calma. Luto agitando pernas e braços para chegar até a superfície, mas os
grilhões me arrastam para as profundezas.
Perco metade do ar nessa batalha comigo mesma, o instinto de
sobrevivência tirando o melhor em cima da minha racionalidade. Quando lembro
da chave, já é tarde, até consigo me soltar, mas as bolhas que escapam dos meus
lábios são poucas, não porque estou calma, o ar está acabando.
Distante no mar, vejo algo próximo na superfície tentando vir até mim,
apenas um borrão ruivo lutando em vão contra as ondas. Manon assiste eu me
afogar antes de Rune a puxar para fora da água.
Fecho os olhos e paro de lutar, uma sensação de paz se apoderando sobre
mim. Afundo cada vez mais enquanto minha mente flutua em pensamentos sobre
a linha fina que separa heróis de monstros. Bane queria mudar o mundo;
Kaeldros, encontrar o pai; e eu só desejava paz para as pessoas que amava. Mas
basta viver tempo suficiente para que qualquer boa intenção se torne a ruína de
alguém.
Um gesto de bravura para uns é um ato de crueldade para outros; a mesma
mão que protege também pode ferir. O sal e o frio queimam minha garganta, e as
memórias se confundem na água turva — os sonhos de um futuro melhor, os
sacrifícios feitos em nome de uma causa que se desgastou com o tempo.
Os heróis se tornam monstros, e os monstros, heróis. No fim, não há
absolutos, apenas as escolhas que nos arrastam cada vez mais fundo. Enquanto a
corrente me leva para as profundezas do oceano, a verdade mais cruel se revela:
não existem heróis ou vilões, apenas aqueles que, incessantemente, tentam fazer
o que acreditam ser certo — mesmo que o significado desse "certo" mude com o
passar do tempo.
Então, eu o vejo: meu sireno.
Kaeldros pode não ser Thalassor, o Deus do Mar, e eu não sou sua noiva
de verdade. Mas, assim como na antiga lenda, ele cumpre sua promessa. Seus
lábios encontram os meus na escuridão fria da água e, com seus beijos, ele me dá
o ar que preciso para sobreviver, compartilhando o fôlego que me mantém viva
enquanto me carrega para longe.
Nunca fui uma mulher que teme os Deuses ou se curva às tradições. Ainda
assim, é estranho perceber como tudo parecia me preparar para este momento: as
profecias de Greta, que diziam que eu seria a noiva do dragão; as visões de
Manon, que previram minha morte no oceano. Elas estavam todas certas, de
certo modo.
É estranho que, ao entregar meu destino a alguém, descubro finalmente a
liberdade que sempre procurei.
CAPÍTULO 22
____

O pescador joga uma rede pesada cheia de águas-vivas sobre o cais, e a dona
da taverna, uma senhora quase tão velha quanto Greta, faz uma careta de
desgosto.
— Ainda nenhum peixe?
— Não, o mar está cheio dessa praga desde que Thalassor levou a Donzela
do Ferro.
Minha bochecha e pescoço esquentam, contenho um grunhido e ajeito
melhor o capuz no rosto. O cais de Pedralume sempre fica agitado durante o pôr
do sol, pescadores voltando após um longo dia de trabalho, homens e mulheres
debatendo pelas ruas se o calor do verão é tolerável o bastante para voltarem
para suas casas ou se devem passar a noite fora em farra. O rangido das cordas
se mistura ao bater das ondas contra os pilares do cais e o burburinho das
conversas.
Viro o resto do caneco de cerveja de uma vez, o amargor preenche minha
boca junto da sensação suave de entorpecimento. Eu adoraria ficar, me divertir e
refrescar, mas desde que Kaeldros e eu entramos na fase de lua de mel, não
andamos tão empolgados em passar as noites fora.
Deixo algumas pepitas de scheelita sobre a mesinha no cais para pagar a
taberneira e aproveito que ainda está discutindo com o peixeiro para escapar sem
ser notada. Conforme caminho pelo píer, observo o mar. As águas estão cheias
de águas-vivas, flutuando em multidão. A luz do pôr do sol se refrata nas suas
formas translúcidas, transformando a superfície em um espelho ondulante de
cores e movimentos suaves.
Kaeldros e suas extravagâncias... Ele jura que não tem nada a ver com o
aumento repentino das águas-vivas, mas estou certa de que fez alguma artimanha
só para espalhar o boato de que é a reencarnação de Thalassor. Meu querido
Demônio do Mar narcisista.
Paro a breve caminhada quando chego na caravela atracada no porto. O
pequeno navio, recém-adquirido com a scheelita que pegamos na caverna da
ilha, está quase pronto para zarpar. Seus mastros são consideravelmente menores
do que os do Fúria, mas ainda assim robustos, será perfeito para guiar Manon até
o oeste.
Ela está diante do navio, observando o ritmo acelerado dos tripulantes que
carregam os últimos mantimentos, com um brilho de ansiedade nos olhos.
Aproximo-me devagar, meus passos abafados pelo barulho das ondas.
— Como estão os preparativos para a viagem? — pergunto.
— Partimos antes do amanhecer. — Ela se vira para mim, os lábios
formam um leve sorriso.
Assinto, tento ignorar o aperto no peito.
— Ansiosa?
— Um pouco — admite desviando a atenção para o horizonte. — Mas é
uma ansiedade boa. Sinto que é o começo de algo grande.
— E será.
Pensei muito no que lhe diria no dia da sua partida, se daria um último
conselho ou se apenas diria que a amo como uma irmã. Depois de algumas
canecas na taverna, descobri uma resposta ainda melhor, uma parte de mim que
estará sempre cuidando dela durante sua nova fase:
— Aqui, Chama-Viva vai te proteger agora que não estarei por perto.
Manon hesita antes de pegar a adaga, o brilho de seus olhos fica mais
vívido e úmido. Ela sabe o que essa arma significa para mim e nada me deixaria
mais feliz do que saber que Chama-Viva salvará sua vida uma porção de vezes,
assim como salvou a minha.
— Elena, eu... — A voz falha por um momento, e ela respira fundo
tentando recuperar a compostura. — Eu sempre vou lembrar do que me ensinou
e nunca vou esquecer de onde eu vim, não importa se nasci como Povo da Visão,
eu sempre serei do Ferro.
— Viva sua aventura, Manon, e não esqueça que, independente do que
fizer, eu não me importo, você sempre terá um lugar ao meu lado quando
precisar de conforto. — Chego a engasgar na última palavra e viro o rosto por
alguns instantes em direção ao oceano, tentando conter as lágrimas.
Quando volto a encará-la, Manon já está soluçando, o choro traçando
linhas molhadas em suas bochechas. Ela rapidamente tenta enxugá-las com a
manga, mas os olhos continuam cheios. Aproximo-me, tomando o rosto dela
entre as mãos e passando o polegar para limpar o rastro das lágrimas.
— Não é uma despedida, apenas uma mudança de rumo. E quando nos
encontrarmos de novo, você me contará todas as histórias de como conquistou o
oeste.
Ela assente antes de me abraçar, um aperto forte que faz meu corpo todo
doer com a certeza de que será o último.
— Prometa que vai se cuidar também — ela sussurra.
— Prometo.
— E para onde vocês vão agora?
— Ainda não sabemos ao certo — admito. — Mas continuaremos
procurando por Molgur.
Ela morde o lábio inferior e rompe nosso abraço, mastiga a resposta por
um tempo antes de finalmente admitir:
— Talvez vocês devessem voltar para onde tudo começou.
— Ferroforja? Por que lá?
— Não sei ao certo — responde com a expressão estranha, meio perdida,
nem ela parece entender completamente. — Apenas um pressentimento.
Manon me lança um último sorriso trêmulo, mas logo seus olhos
endurecem e ela se endireita, os ombros erguendo-se com a determinação de
uma guerreira do Ferro. Com um aceno firme, ela segue em direção a caravela
ancorada. As águas escuras se agitam, batendo contra o casco do navio como se
o próprio oceano estivesse impaciente para levá-la embora, ávido por entregá-la
à próxima aventura.
Observo enquanto ela sobe a rampa e assume o controle dos marinheiros,
erguendo a cabeça para dar suas ordens. O vento, agora mais forte, faz os
cabelos ruivos e selvagens dela dançarem como uma bandeira, e noto o brilho da
paixão em Rune ao se aproximar para envolvê-la nos braços e girá-la pelo
convés como uma garotinha.
Meu estômago se contrai com a visão. Certas irritações simplesmente não
desaparecem, e ver aquele sorrisinho confiante no rosto dele é suficiente para me
fazer revirar os olhos. Manon pode achar graça em seus gestos exagerados, mas,
para mim, ele sempre será um garotinho presunçoso que acredita ter todas as
respostas.
Será que ainda dá tempo de atravessar o cais e lhe dar um chute para
garantir que ele fique mais esperto? A ideia faz meus lábios se curvarem em um
sorriso malicioso, mas antes que eu possa dar um passo em direção a eles, sinto
os braços de Kaeldros se fecharem ao meu redor, puxando-me contra seu peito
com um movimento firme.
— Eu conheço esse olhar — ele sussurra, seu hálito quente contra minha
orelha, a voz grave e carregada de divertimento. — Nem pense nisso.
— Primeiro, só porque estou fantasiando em quebrar o nariz dele, não
significa que vou realmente fazer — replico, inclinando a cabeça para fitá-lo
com um sorriso de desafio. — Segundo, e se eu decidisse fazer, como pretende
me impedir? Até onde me lembro, suas canções só funcionam quando estou
sedenta, e acho que fui muito bem saciada hoje de manhã.
Kaeldros ri baixo, o som vibrando em seu peito contra minhas costas.
— Ah, querida, existem tantas formas de te persuadir. — Ele inclina o
rosto e deposita um beijo na curva do meu pescoço, seus lábios roçando minha
pele e me arrancando um arrepio. Sua barba curta, uma novidade que ele tem
cultivado desde que percebeu que me agrada, faz cócegas, e não consigo evitar a
risada que escapa de mim, mesmo quando um calor familiar desperta entre as
minhas pernas.
Antes que eu possa responder, o som de passos apressados interrompe o
momento. Li surge ao nosso lado com Areskaan, o rosto jovem iluminado de
expectativa e empolgação.
— Mestre Kaeldros, agora que Rune está indo embora, isso significa que
eu serei o Primeiro Imediato? — ele pergunta cheio de entusiasmo, exibindo o
espaço entre os dois dentes da frente no sorriso.
Kaeldros se afasta de mim para bagunçar os cabelos de Li em um gesto
paternal que me comove.
— Com certeza! — anuncia exagerado. — Uma promessa é uma dívida
para um dragão. Prepare-se para trabalhar duro.
Enquanto Li e Kaeldros trocam brincadeiras e discutem suas obrigações de
mentirinha, Areskaan se aproxima de mim, cruzando os braços com uma
expressão ponderada enquanto observa a tripulação se organizando para a
partida. O vento levanta a borda do meu manto, e eu o ajusto para cobrir melhor
os ombros.
— Pensei que você fosse partir com eles — comento.
Os marujos trazidos do Fúria foram divididos. Kaeldros convocou os que
ansiavam por grandes aventuras e tesouros para seguir com Rune e Manon rumo
ao oeste. Discretamente, incentivou que fossem — eles precisariam muito mais
de reforços do que nós. Restamos com uma tripulação compacta de quinze
marinheiros, suficiente para guiar a pequena coca, já ancorada e pronta para
zarpar do lado isolado da ilha.
Areskaan balança a cabeça lentamente, e sinto um alívio ao saber que ele
continuará conosco. Há tanto que ainda quero aprender com ele, mas, ao mesmo
tempo, quando observo sua respiração pesada e o cansaço que se acumula em
seus movimentos durante nossos treinos, sou lembrada de uma verdade simples e
cruel: nada dura para sempre.
— Deixe as grandes aventuras para os jovens — ele diz com um suspiro.
— Já decidiram para onde iremos agora?
— Pensei em uma última viagem para Ferroforja — respondo, e noto
Kaeldros se virar para mim, a atenção dele capturada pelo nome. — Manon teve
um pressentimento antes de partir, e acho que sei do que ela estava falando.

Antes da chegada do último inverno…


— Isso é dois a mais que o nosso combinado — resmunguei, observando
Molgur segurar nas garras mais carneiros do que o habitual, quando um deles
conseguiu escapar, o dragão usou a pata livre para jogar o animal para o alto e
abocanhá-lo de uma vez como uma ervilha.
Molgur sempre seguia as regras que estabelecemos, mas estava abusado
esse dia, demandando pequenos caprichos como vir ele mesmo até a fazenda
buscar pelas oferendas e até dar um voo exibicionista por cima da vila, o que
deixou todos bastante aterrorizados.
— Sua cria fez Lágrimas para o inverno? — ele perguntou enquanto
mastigava, ignorando minha reclamação.
— Temos alguns barris no porão. Por quê?
— Traga um para mim — ele demandou num tom quase teatral de tão
exagerado. — Farei uma longa viagem este ano, a mais longa de toda a minha
vida.
Eu hesitei por um momento, achando que era alguma piada, mas ele se
deitou no pasto para aguardar pacientemente, então me dei por vencida. Quando
retornei com o barril de bebida, Molgur o arremessou ao ar, assim como fez com
o carneiro, e engoliu o líquido e a madeira de uma vez, emitindo um som de
satisfação no final.
— Um sabor que eu não vou sentir falta, mas queria provar uma última
vez — comentou, o brilho de humor sombrio surgindo em seu olhar.
Dei risada sem entender bem o que ele queria dizer, mas algo naqueles
olhos escuros me fez ter um breve calafrio, a sensação de estar deixando algo
passar.
— Nos vemos no verão, então?
Ele não respondeu de imediato, apenas me encarou por um tempo.
— Talvez eu me atrase um pouco, Elena... mas você não ficará sozinha por
muito tempo, isso eu posso te prometer. — Ele faz uma nova pausa, como se as
palavras seguintes fossem difíceis de dizer. — Nos veremos do outro lado,
criança.
Na época, não prestei atenção, Molgur era velho e excêntrico, sempre
falando em códigos. De qualquer forma, estaria de volta no verão e poderia
perguntar para onde foi. Eu só não tinha pensado que nada dura para sempre.

A viagem de volta até Ferroforja é mais rápida. A coca, por ser um barco
menor, é bem mais ágil e, como já fizemos o caminho uma vez, Kaeldros sabe
exatamente quais ilhas precisa evitar. Apesar do meu desejo de me despedir de
Greta, Lothar e até de Ivar, respeito o pedido do meu irmão, atracamos na
encosta da montanha, distantes o suficiente para não sermos vistos pelo vilarejo.
Os sinais do princípio do outono tomam Nebruína, os vastos córregos que
descem pela montanha carregam folhas secas e levantam um odor terroso forte.
Há uma quietude no ar, um silêncio que é quebrado apenas pelo som dos galhos
se partindo debaixo dos meus pés e dos de Kaeldros. É próximo do topo que se
encontra a entrada para a morada de Molgur. Faço uma breve pausa, vendo
Ferroforja tão pequenina lá embaixo, minha casa, meus carneiros, tudo parece
estar exatamente como deixei.
Kaeldros percebe a saudade tomando meu coração e me envolve com um
braço, deposita um beijo gentil em minha testa.
— Não importa o que Bane disse, nós podemos…
— Bobagem, nós viemos por outro motivo — eu o interrompo. — Está
pronto?
Ele assente, os lábios comprimidos em uma expressão temerosa. No fundo,
nós já sabemos, durante toda a viagem repassamos lembranças, pequenas frases
e ações que foram deixando mais e mais claro o quanto Molgur estava velho.
Mas quando amamos algo, é difícil de ver os sinais.
O ambiente da caverna ainda me é familiar, mesmo que Kaeldros nunca
tenha entrado aqui antes, ele me conta que Molgur tinha uma morada nas ilhas
do sul e a organizou de forma semelhante. Ainda assim, há algo diferente, algo
que falta, há um frio úmido que eu nunca senti quando Molgur estava aqui.
As pilhas de moedas de ouro e os tesouros acumulados ao longo de
incontáveis séculos brilham sob a luz fraca que se infiltra pelas aberturas da
rocha, mas o brilho parece morto, sem vida. E é no meio delas que eu o vejo: o
contorno imponente de um lagarto gigante, seu corpo alado repousando entre os
montes de riqueza, o pescoço erguido como se ainda estivesse em guarda.
— Molgur! — grito e minha voz faz eco.
Corremos em direção à sombra, mas conforme nossos olhos se ajustam à
escuridão, a inevitável realidade chega: o corpo está estático, o peito não se
move, petrificado como uma estátua. Debaixo de um feixe solitário de luz, o
dragão que nos uniu jaz em seu último repouso.
— Kaeldros, eu... — Minha voz falha, um nó apertando minha garganta.
— Lamento muito.
Ele não responde, se ajoelha ao lado do dragão, os dedos trêmulos passam
pelas escamas e saem marcados por uma fina camada alaranjada.
— É ferrugem — ele confirma.
As escamas de aço ganharam um tom acobreado, enferrujam com a
passagem do tempo e eternizaram Molgur na montanha. Apesar da tristeza do
fim, ele está lindo, imponente em uma pose orgulhosa com seus tesouros.
— Foi por isso que você me disse para vir atrás dela se não voltasse. Não
era porque ela teria te matado, você sabia que ia morrer... — ele pausa, os olhos
marejados de dor e compreensão. — Não queria que eu ficasse sozinho.
Meu coração se parte e meus olhos lacrimejam. Observo Kaeldros
enquanto ele permanece ao lado do corpo inerte do pai, sua mão deslizando
gentilmente pelas escamas desgastadas. Uma mistura de riso e soluço escapa de
seus lábios, um som tão doloroso que meu maior desejo é que ele nunca mais
sinta isso.
— Você poderia ter sido mais claro, sabia? — ele ri, limpando as lágrimas
com a manga da camisa. — Nós quase nos matamos uma porção de vezes. — O
riso se transforma em choro novamente, ele abaixa a cabeça com os ombros
tremendo. — Me desculpe por tudo o que eu disse. Tenho orgulho de ser um
dragão... Tenho orgulho de ser seu filho.
Kaeldros continua sua despedida, por mais um tempo conversa com o pai.
E mesmo em silêncio, sinto que Molgur está ali, escutando-o uma última vez.
Fico de pé, mas depois me sento em uma pilha de moedas, observando à
distância, sem interromper o momento.
Quando tudo que não foi dito em vida é finalmente colocado para fora, ele
se levanta, enxuga os últimos vestígios de lágrimas de seu rosto e caminha até
mim. Seus olhos cor de jaspe me encaram de forma diferente, carregam algo
diferente em sua expressão.
— Elena... — ele começa, a voz suave enquanto se ajoelha à minha frente.
Meu coração dispara.
— Kaeldros, o que você está fazendo?
Sem pressa, segura minha mão, acaricia cada um dos dedos antes de
entrelaça-los nos dele. Então, me encara mais uma vez, um sorriso pequeno e
determinado no rosto quando diz:
— Quero ser o dragão que vai proteger a sua liberdade.
Anos atrás eu entrei nessa montanha, uma garota com uma tendência forte
ao drama, uma habilidade razoável no manejo da espada e nenhuma resiliência
emocional. Preferia enfrentar monstros do que confrontar meu próprio coração.
Hoje, eu voltei para a mesma montanha, mas não me sinto mais como
aquela garota.
Com uma confiança que eu nunca senti antes, retiro Espírito do Norte da
cintura e a ofereço para Kaeldros. Ele a segura com reverência, e então me puxa
para um beijo. Enquanto nossos lábios se tocam, suas lágrimas se misturam às
minhas. Lágrimas de Ferro e Sal.

FIM
SOBRE LÁGRIMAS DE FERRO E SAL

Um dia desses, em uma palestra, falei que gosto de escrever livros de


fantasia porque posso contar em contextos mais lúdicos problemas da vida real:
em Pequenas Maldições, falei das pressões que a sociedade impõe e como é
preciso endurecer, mesmo quando você quer ser gentil; em Ladrões de Corações,
falei sobre a dificuldade em se encaixar em um mundo tão cheio de extremos e
que dá pouco espaço para quem quer o caminho do meio; em Coração Mecânico,
falei sobre toda a ira que tenho dentro de mim e que nunca coloco pra fora.
Agora em Lágrimas de Ferro e Sal… sabe, não fui uma adolescente fácil, posso
não ter botado fogo na vila de ninguém, mas magoei muitas pessoas.
Elena é de longe minha personagem de moral mais dúbia, ela é meio
egoísta, meio babaca, já começa o livro tendo feito uma besteira colossal que
matou um monte de gente. Ela não faz um arco de corrupção, nem o arco de
redenção durante a história, porque na vida real você dificilmente faz qualquer
um dos dois. Na vida real você só aprende a viver com as merdas que você fez,
com as pessoas que te odeiam e entende que certas marcas sempre vão estar lá,
mas isso não vai definir quem você é.
E quem te ama, ama mesmo as suas partes mais feias.

Eu espero que esse livro tenha sido um abraço para você, pra mim com
certeza foi.

Rafa (@rafanabiblioteca), Sandila, Amanda (@bruxadoslobos) e Loíze,


acho que palavras nunca serão o suficiente para agradecer o apoio de vocês,
espero algum dia poder retribuir. Carol (@acarolfacanha), entre surtos e gritos,
obrigada por nunca soltar a minha mão, mesmo quando eu começo a distribuir
socos.

◆ ◆ ◆

E agora, depois dessa jornada, eu te pergunto: o que faz de você,


você mesma?
SOBRE A AUTORA

Caroline Carnevalle (@carnevallebooks) é o pseudônimo de uma millenial


em plena crise dos trinta. Tentando fazer as pazes com sua adolescente interior,
crescida no auge dos romances sobrenaturais como Crepúsculo e Hush Hush,
seus livros são protagonizados por mulheres em universos de fantasia (mas com
problemas muito reais), que se envolvem com parceiros que dão borboletas no
estômago.

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