Lágrimas de Ferro e Sal - Caroline Carnevalle
Lágrimas de Ferro e Sal - Caroline Carnevalle
Lágrimas de Ferro e Sal - Caroline Carnevalle
Esta obra é uma publicação independente, sendo que todos os direitos relativos à
autoria, edição e publicação pertencem exclusivamente à autora, Caroline
Carnevalle.
Sento ao lado de Greta, ela está de olhos fechados. Sei que não dorme, pois
seus lábios enrugados se movem ligeiros, murmurando uma oração silenciosa
que pede proteção.
Os mais velhos de Ferroforja se acomodam pelas mesas remanescentes da
taverna. Grande parte da mobília foi destruída durante o ataque, e o chão ainda
está pegajoso pelos tonéis de cerveja que se quebraram na batalha. Uma brisa
fria vinda do mar carrega a bruma da manhã pelas janelas quebradas e nem
mesmo o fogo aceso na lareira é o bastante para aquecer o que restou do lugar.
Esfrego meus dedos uns nos outros, tentando aquecê-los. Normalmente,
neste horário, o cheiro da fumaça da forja já está forte, mas nenhum ferreiro está
trabalhando hoje. Toda a vila está dedicada a se ajudar, as fornalhas tiveram seus
metais substituídos por massa de pão. O cheiro flutua pelo ar junto da bruma e
meu estômago ronca, lembrando-me de que não comi nada desde a comoção no
banho.
Escuto murmúrios pela taverna sobre como a bebida foi roubada, um golpe
duro para a moral de Ferroforja. Após um longo inverno, todos esperam por um
reencontro caloroso, regado a álcool e extravagância em comida.
Lothar se aproxima de nós, a barba desgrenhada parece mais cinzenta e
seus olhos estão carregados de preocupação. Ele é o jarls, responsável por
Ferroforja, nomeado pela Cidade-Mãe alguns anos atrás para monitorar esta
região do litoral. Hoje, com os cabelos mais grisalhos do que ruivos, deixou para
trás todos os maneirismos e pomposidades da realeza. Assim como eu, este lugar
parece ter moldado sua essência.
— Como estão todos? — pergunto.
— Alguns feridos, muitos suprimentos saqueados — ele responde,
colocando o livro de registros sobre a mesa com um suspiro pesado. O lápis de
carvão deixa manchas escuras na ponta do indicador trêmulo.
Nenhuma morte? Por que eles tomariam esse cuidado?
Greta encerra a prece a tempo de segurar a mão de Lothar. Seus dedos
enrugados pelo tempo se entrelaçam com os dele — é o máximo de contato com
um homem que ela se permite.
— Ficaremos bem — diz firme.
Lothar lhe dirige um sorriso grato e devocional. Embora Greta nunca tenha
correspondido aos seus sentimentos, ele continua a esperar por ela. “Teremos a
eternidade para amar quando seu tempo de servidão na terra se encerrar”, eu o
ouvi confidenciar a ela certa vez, ambos embriagados numa noite sem lua.
É irreal e… bonito. A servidão de Greta só acaba quando ela morrer,
Lothar promete um amor do outro lado do véu. Ainda que mórbido, quando vejo
os dois em seus flertes tímidos, algo dentro de mim parece comovido, ao mesmo
tempo em que ferido pela inveja.
— Os ancestrais nos protegeram do pior, não foram tantos suprimentos
assim. — O olhar de Greta vaga pelo caderno aberto de Lothar.
Na verdade, foram. Mas ela não sabe ler, assim como a maioria. Metade da
folha preenchida com rabiscos lhe parece pouco, mas entendo o suficiente das
letras para ver a extensão do problema.
Forço os olhos, demoro um pouco em algumas palavras, mas encontro
diversas vezes um: estoque insuficiente.
Fiquei muito tempo sem praticar; tempo demais sem lutar, tempo demais
sem ler. A rotina pacífica dos últimos anos me deixou preguiçosa: cuidar da
fazenda, beber com os marinheiros, apartar dramas cotidianos. Sou como
Molgur, costumava ser um dragão, agora estou mais para um vira-lata.
Degolar, transar e beber é como seu povo gosta de resolver tudo.
Uma faísca de ódio me faz apertar os punhos.
— Levaram os carneiros?
— O que disse? — Pisco duas vezes antes de voltar a atenção para Lothar.
— Os saqueadores levaram algo da fazenda?
— Não. Os carneiros estão bem — confesso com alguma culpa. — Manon
ainda está checando o que foi roubado da casa, mas por enquanto não demos
falta de nada.
As moedas, as joias, as espadas no armazém, nada foi levado. O maior
atentado na noite passada foi ao meu orgulho. Flashes voltam à mente de tempos
em tempos, são incômodos e fazem meu corpo formigar em um desejo que não
quero sentir, um provável efeito colateral da canção do sireno.
Penso se devo contar para Lothar a estranha conversa com Demônio do
Mar, mas acho que ainda não sabem que a vila não foi invadida por saqueadores
comuns.
— Graças a Thalassor! — Greta roga ao mar.
Ela lista para Lothar os danos na Casa de Oração, nenhuma estatueta
sobreviveu para as festividades deste ano. Nem mesmo as de cobre barato foram
poupadas do assalto.
Várias edificações foram abaladas durante a invasão, precisam ser
consertadas antes da chegada das chuvas de verão. Ofereço para Greta ficar
comigo e Manon na fazenda, a casa é grande e há quartos suficientes para
abrigar mais moradores da vila.
Lothar ainda fala com outros presentes antes de iniciar a reunião. Apenas
os nascidos em Ferroforja com mais de setenta anos são permitidos no conselho
da vila. Não me aplico a nenhum dos dois pré-requisitos — tenho apenas três
décadas e cresci na Cidade-Mãe. Estou aqui por um motivo específico, que
Lothar não demora a revelar:
— Elena, precisamos que você peça mantimentos ao seu irmão — ele diz,
assim que a assembleia se inicia oficialmente. — Os cofres de Ferroforja não
possuem o necessário para pagá-lo, mas podemos enviar nossos melhores
ferreiros para ele durante a próxima temporada.
— Não se preocupe, será o bastante. A colheita deste ano foi boa e os
preços em Caldera estão baixos — minto, planejo sacrificar as joias na minha
penteadeira para cobrir o que faltar. — Sugiro guardar parte das moedas para
reformar a taverna. É importante manter a moral alta em momentos como esse.
O comentário arranca alguns sorrisos gratos. Passo a atenção
individualmente por cada um deles; rostos cansados que sobreviveram ao
inverno rigoroso e que tinham a certeza de que o pior já havia passado. Sou grata
que estejam todos vivos, mas meu coração está cheio de ódio por vê-los passar
por mais um desafio — como se as mortes recentes pela neve não tivessem sido
o bastante.
Se Demônio do Mar surgir novamente em meu caminho, eu juro que vou
degolá-lo dessa vez.
— A jovem Manon ainda se aventura nas artes da fermentação? — Ivar
interrompe a reunião.
Alguns anos atrás, Manon fez uma série de tentativas para se tornar sua
aprendiz, todas recusadas. Ivar gosta de mulheres apenas no salão da taverna,
mas não em sua cozinha. Todos os mestres da fermentação recebem a benção de
um Deus da Guerra e, por tradição, a primeira bebida que aprendem a preparar
— muito antes da cerveja ou do hidromel — é a que honra seu patrono. O
Sangue de Shahar, o Elixir de Phosius ou as Lágrimas de Thalassor.
Dentre as três, as Lágrimas são as menos populares em Caldera. Seu sabor
salgado e cheiro ferruginoso, devido a fermentação das algas em barris de ferro,
assustam à primeira vista. Seu preparo é o único permitido a mulheres, Phosius e
Shahar, assim como o velho Ivar, não querem mulheres em seus campos de
batalha.
— Acho que temos três ou quatro tonéis de Lágrimas prontos para
consumo no porão.
Ivar grunhe, tenta esconder seu interesse, mas os dedos impacientes
tamborilando na mesa o traem. Mesmo velho, seu porte corpulento deve ter dado
trabalho para os saqueadores, o lado direito de seu rosto carrega agora
hematomas de um roxo escuro, seu olho está tão inchado que mal consegue se
manter aberto.
Sustento o silêncio que vem a seguir. Minha paciência, abalada pela
lembrança de Demônio do Mar, corta a diplomacia pela metade. Não vou
oferecer os tonéis de bom grado; se Ivar quer a bebida produzida pelas mãos de
uma mulher, terá que dar o braço a torcer.
— Quantoquerporeles? — A pergunta sai entre dentes, quase
incompreensível.
— Não entendi — finjo apenas para provocar.
— Quanto quer por cada tonel, mulher? — ele explode, com sua paciência
tão curta quanto a de um baiacu, e bate um punho fechado na madeira.
— Ensine Manon sobre a fermentação da cerveja e os tonéis são seus.
— Não permito mulheres em minha cozinha — responde cheio de
teimosia.
— Então espere até chegar o carregamento de suprimentos de Caldera. —
Dou de ombros. — Isso se eles enviarem bebida.
O grito agudo e repentino de uma dupla de gaivotas nos faz pular nas
cadeiras. Elas acabam de entrar pela janela e brigam entre si por uma pilha de
destroços, procurando por objetos brilhantes para decorar seus ninhos.
— É o que farei — Ivar resmunga a contragosto, então se levanta de
supetão e corre em direção a janela, cada baque de seus pés enormes parecem
tremer a estrutura abalada da taverna. — Saiam daqui, ratos de asas!
Oportunistas nojentos!
Uma pontinha de culpa regada à pena me faz decidir que mais tarde
mandarei os tonéis sem dizer nada. Não quero ser como duas gaivotas brigando
por migalhas de lixo. Depois de passarmos por isso, haverá outros momentos em
que Ivar poderá aprender uma lição.
Lothar retoma a reunião, mas nenhum dos assuntos está dentro de minha
alçada. Conversam sobre quais regiões da vila terão prioridade na reforma, a
realocação de moradores desabrigados e se as festividades do final do inverno
serão adiadas.
A conversa se estende por toda a manhã, repleta de discordâncias. Quando
o sol já está alto no céu, eles decidem parar porque o ronco dos estômagos
famintos atrapalha a discussão. Ofereço mais uma vez a fazenda para receber
quem for necessário, Lothar agradece e se esquiva do assunto. Minha casa fica
longe demais da vila e próxima demais das montanhas onde Molgur fica durante
a primavera. Ninguém em sã consciência quer ficar lá, nem mesmo Greta.
Ainda assim, mantenho meu convite aberto.
A assembleia se encerra com um único tema em unanimidade: as
festividades não poderão ser adiadas. É importante para a moral depois de um
inverno tão longo que levou vidas. Neste momento, os olhares se dividem entre
mim e Ivar. Uma taverna abastecida é essencial para as festividades.
Ivar me encara, tenta jogar toda a pressão em mim. Cruzo os braços na
frente do corpo, orgulhosa demais para voltar atrás na frente de todos. Lothar se
dá por vencido e dispensa a assembleia, comentando algo sobre como, de
estômago cheio, talvez fiquemos mais amigáveis. Já estou próxima da saída
quando Ivar me alcança. Seu corpo enorme projeta uma sombra sobre mim.
— Apenas a fermentação da cerveja e nada mais. Não aceito uma mulher
como aprendiz — ele cospe a resposta.
Contenho o sorriso, é por isso que amo Ferroforja. As pessoas aqui são
diferentes da Cidade-Mãe.
— Ótimo, pedirei a Manon que venha vestindo ceroulas e calças para você
se sentir menos intimidado — brinco, mas ele não está pronto para compartilhar
do mesmo humor pela situação.
Ivar me lança um olhar irritado antes de se virar e voltar para o fundo do
bar, amaldiçoando-me por todo o caminho. Espero até ele desaparecer pela porta
da cozinha para começar a rir.
Mal posso esperar para contar a Manon.
O calor do sol do meio-dia aquece os ossos depois de tanto tempo na
taverna fria. No horizonte, o mar brilha como se estivesse cheio de diamantes,
faz um contraste bonito com os picos congelados nos telhados, os quais vão
pouco a pouco derretendo e formando pequenos riachos pelas ruas.
Mais algumas semanas e toda a neve terá descongelado.
Soren está ajudando em um dos estandes de comida, o cheiro dos filetes de
peixe fresco na grelha me fazem salivar. Há uma longa fila esperando pelo
almoço, homens e mulheres que passaram o dia inteiro cuidando dos reparos.
Será mais rápido preparar algo para comer na fazenda do que esperar aqui,
mas Soren acena para mim e faz um gesto pedindo para que eu espere. De forma
discreta, ele envolve dois filetes generosos em folhas de couro antes de correr na
minha direção.
— Você parece radiante — ele diz, um sorriso suave nos lábios.
Está vestido com a camisa de linho azul que lhe dei de presente no outono
passado, na época achei que combinava de forma encantadora com seus olhos
azul-acinzentados. E o tecido tinha um bom caimento nos músculos, formados
pelo trabalho constante na forja, deixando-o ainda mais tentador.
Hoje, seus olhos parecem um pouco pálidos, até sem graça. Um
pensamento pertubador me ocorre: teria mais interesse se seus fossem escuros
como pedra de jaspe negro.
— Sinto que tenho vinte anos de novo e acabei de derrubar meu primeiro
gigante — brinco numa tentativa de afastar eu mesma do pensamento sobre os
olhos do sireno e trazer de volta a discussão com Ivar.
— Daria uma ótima história, por que não a cria? As meninas da vila iriam
gostar.
Não seria preciso inventar. Dez anos atrás, de fato, matei um gigante, mas
o feito se perdeu e ninguém mais lembra. Quando falam sobre mim, naram sobre
todos os guerreiros derrotados por Molgur, nunca sobre meus atos heroicos.
Isso é o que acontece com as histórias que não são contadas: elas são
devoradas pelo tempo.
Ser subestimada é irritante na mesma proporção que conveniente. No
passado, um comentário como esse me faria perder a paciência em instantes,
hoje respondo com um sorriso político. Se souberem demais, começam a
questionar: Se já derrotou um gigante, por que não derrota um dragão? Por que o
Senhor de Caldera não faz nada pela irmã mais nova amaldiçoada?
Porque eu não quero. Gosto daqui, gosto da minha vida pacífica, meu
casebre e minhas ovelhas.
— Estava preocupado com você — ele diz, entregando-me o pacote com
os filetes de peixe. — Quando começou a invasão, tentei ir até a fazenda, mas as
coisas aqui estavam caóticas.
— Não se preocupe. Manon e eu ficamos bem, protegemos uma à outra.
Nossos dedos se tocam quando pego a embalagem quente e, por alguns
momentos, ficamos em um silêncio confortável. O segredo me empolga, saber
que esse toque não é acidental. E o gosto pelo perigo me faz deslizar a mão por
seu antebraço com lentidão, a pele dele se arrepia, ambos sabemos o que estou
pensando.
Soren olha ao redor, procura em vão por um espaço onde teríamos alguma
privacidade. Os Deuses sabem o quanto eu poderia fazer bom uso de uma
atividade física para liberar a adrenalina da noite passada, mas não estão
benevolentes a esse ponto. Na fila do estande, algumas pessoas começam a
reclamar, e sei que não vai demorar para alguém iniciar uma discussão com
Soren.
— É melhor você ir. Também preciso voltar para a fazenda. — Rompo
nosso breve contato.
— Tenho um assunto para discutir com você. Podemos nos encontrar
amanhã?
— Claro, à meia-noite no lugar de sempre?
Ele nega com a cabeça, um sorriso indecifrável nos lábios.
— É um assunto que gostaria de discutir em um horário normal.
— Passe perto da hora do almoço, então. — Algo me traz um
pressentimento ruim. — Devo ficar preocupada?
— São boas notícias. — Mais uma vez, ele abre aquele sorriso que não
revela suas motivações.
Nos despedimos com um aceno. Durante todo o caminho de volta para
casa fico tentando pensar no que Soren pode querer comigo sem envolver nosso
segredo. Não há muito amor entre nós, apenas paixão, somos como bons amigos
que sabem como satisfazer um ao outro.
Talvez uma conversa sobre a manutenção dessa amizade? De fato, não
temos passado muito tempo juntos vestidos.
O fedor pungente dos carneiros-de-soay no sol quente é o primeiro sinal de
que cheguei à fazenda. O cheiro me atinge em cheio, junto com uma lufada de ar
marítimo. A casa fica a alguns quilômetros de um precipício, e pela distância que
temos da vila, o ar aqui é mais fresco, não tão carregado da fuligem das forjas.
Eu costumava odiar esse cheiro dos animais, mas hoje acho até
revigorante. Acelero o passo para encontrar Manon, que vem ao meu encontro
com uma viga de madeira nos ombros, pronta para consertar o cercado.
Enquanto a ajudo, conto em detalhes a conversa com Ivar, fazendo longas
pausas para rir de seus palavrões e comentários exagerados.
— E qual foi a reação deles quando você contou sobre os sirenos? — ela
pergunta, me passando um prego.
Posiciono-o sobre a madeira, mas não começo a martelar.
— Ainda não contei. Vou falar primeiro com meu irmão sobre isso. —
Não espero pela enxurrada de perguntas, já adianto. — Você não é daqui, não
passou por isso. Mas, quando eu era criança, as pessoas tinham muito medo de
que o Povo do Mar estivesse escondido entre nós. Eu tinha uma babá, não sei
por que ela foi acusada, mas foi.
Ferroforja é diferente. Greta conta histórias sobre Thalassor e as crianças
são desde cedo ensinadas a respeitar o mar, garotas não aparecem aqui com
buracos no peito. Na Cidade-Mãe elas vinham boiando pelos córregos que
estavam conectados ao mar. Meninas jovens e mulheres maduras, nenhuma era
poupada.
Até meus oito anos tive a porta do quarto trancada todas as noites, não
pelo medo de que algo entraria, mas para garantir que eu não seria seduzida a
fugir por um canto de sireno. Às vezes, eu conseguia ouví-los durante as horas
mais escuras, bem baixinho, um sussurro carregado pelo vento. Nunca saberei se
era imaginação ou realidade, mas toda vez que pensei escutá-los, mergulhei em
tinas de água gelada ou cortei a palma da mão com facas. O truque era manter a
mente atenta e acordada para não se deixar seduzir.
— E o que fizeram com ela?
— Afogaram. Se ela sobrevivesse, pertencia ao Povo do Mar. Se morresse,
então era uma de nós.
Manon parece mais confusa do que chocada.
— Isso não faz sentido.
— Pessoas assustadas tomam medidas desesperadas.
Começo a martelar a cerca para interromper nossa conversa. Essa é uma
história ruim, real demais, revela a natureza sombria dos homens. Se eu quiser
perder minha fé em Caldera, basta revisitar minhas memórias. Prefiro as coisas
como são hoje, com histórias de esperança.
Após terminarmos o conserto da cerca, voltamos para o casarão para
almoçar os peixes que Soren me deu. Acompanho Manon até a cozinha e
observo como grande parte da casa já está arrumada.
— Descobriu se algo foi roubado? — pergunto.
— Nada que consiga lembrar — ela comenta, abrindo os armários da
despensa para checar o que temos. — Você não deu falta de nenhum pertence
pessoal seu?
Ergo os ombros.
— Não dei, mas não é como se fizesse diferença. Não tenho nada de
importante que valha a pena ser rou... — Paro a frase no meio, lembrando da
única coisa que realmente faria diferença.
O único objeto que Manon não sabe que está aqui, porque deveria estar em
uma montanha sendo protegido por um dragão.
Corro escadaria acima, direto para o meu quarto. Mergulho por debaixo da
cama, erguendo o colchão e desmanchando todos os lençóis. Vasculho cada
canto, quase rasgo o estofado, mas não está lá.
A espada lendária de meu pai foi roubada.
CAPÍTULO 05
____
Todo verão meu pai fazia uma competição anual de caça à lebre entre eu e
meu irmão, aquele que vencesse poderia usar sua espada por uma roda completa
das estações. Eu era mais forte, mais rápida e mais habilidosa na luta, e, ainda
assim, meu irmão me vencia a cada edição.
Ele também era forte, rápido e habilidoso, mas diferente de mim, ele
treinou os cachorros da casa para fazer uma armadilha contra a lebre. Enquanto
eu corria com meu arco e flecha ou me atirava no chão com uma adaga, meu
irmão emboscava o animal sem pressa. Ia bloqueando cada uma das rotas de
fuga, até não restar nenhuma alternativa para a lebre além de encarar seu
agressor.
Eu ainda lembro do pânico dos bichos quando a emboscada estava
completa. Eles olhavam para frente, para meu irmão com a espada e, ainda
assim, corriam em sua direção para escapar por entre suas pernas, uma última
tentativa desesperada de sobreviver.
Nesse momento, sou uma dessas lebres, encurralada ao ponto de não restar
outra alternativa além de ir até meu algoz. É uma armadilha, eu posso vê-la se
formar ao meu redor: o roubo da espada, a falsa invasão, o retorno dos
mantimentos saqueados e até o maldito primeiro imediato que sangra como um
homem.
Lothar pareceu convencido pelo espetáculo de Rune. Eu, no entanto,
insisti, forçando outros dois marinheiros a cortarem as mãos. Eles sangraram
como qualquer homem de Caldera, me deixando com a aparência de uma louca e
a persistente impressão de já ter visto alguns deles antes.
Não resta outra opção senão confrontar o capitão e descobrir se minha
teoria é verdadeira — ou se estou perdendo a sanidade como os fanáticos que
assassinaram minha babá.
— Ele não vai te levar embora — Soren diz enquanto me acompanha até
as docas. Durante todo o caminho tentou me tranquilizar com palavras sem
sentido.
— Não vai, porque eu vou separar a cabeça dele do corpo antes disso —
retruco, mais irritada do que gostaria. A raiva é um combustível perigoso para
decisões.
— Ei. — Ele tenta me segurar, mas desvio. — Ei, Elena, olha para mim.
Soren me agarra pelos ombros, forçando-me a parar. Minha mandíbula está
travada, e sinto uma vontade crescente de gritar. Ninguém parece entender a
gravidade da situação, e a ideia de enfrentar isso sozinha me apavora. Temos
uma embarcação do Povo do Mar atracada em nosso porto, e eles estão
espalhados pela cidade como uma praga. Podem queimar tudo ou arrancar o
coração de cada mulher viva em Ferroforja.
Onde quer que o sal toque o ferro, haverá ferrugem e destruição.
— Essa não é uma tripulação comum, seja lá o que estão traman…
— Não precisa inventar histórias, eu vou falar com ele — Soren me
interrompe, pressionando o indicador contra meus lábios. — Esse tipo de
homem vem atrás de você por dois motivos, e posso dissuadi-lo de ambos com a
verdade — continua com a confiança cega de quem não compreende a situação.
— E, depois de convencê-lo, vou reivindicar a conquista da espada de seu pai.
— Do que você está falando?
Tantas bobagens saíram da boca dele ao mesmo tempo que não sei a qual
delas estou me referindo.
— Você anda muito distraída, não é? — Ele solta um risinho, e eu me
contenho para não morder o dedo que ainda toca meus lábios. — Lembra que eu
queria te dar uma boa notícia? Era isso. Decidi que estou disposto a enfrentar o
dragão para me casar com você, mas como ele já foi derrotado, tudo ficou mais
fácil. Só preciso convencer o capitão a me entregar a espada, ou podemos juntos
tramar o assassinato dele.
As palavras de Soren são como tomar um gole grande demais do veneno,
meu corpo automaticamente tenta vomitar tudo para fora. Ele realmente acha
que inventei a história do sireno só para evitar o casamento? Pior ainda, ele acha
que eu quero me casar com ele?
O orgulho estampado em seu rosto desmorona ao ver minha expressão.
Devo estar com uma cara bastante desgostosa, pois ele recua, puxando a mão de
volta quase que instantaneamente.
— Achei que ficaria feliz em não termos mais que nos encontrarmos às
escondidas.
Ele me encara, confuso, talvez até magoado.
— Só estou cansada, me desculpa.
Um homem com o orgulho ferido é o mais perigoso dos animais, e este
não é o momento de cultivar mais um inimigo.
— Matar o capitão não parece uma ideia ruim — murmuro, se entrar em
sua fantasia é o necessário para fazê-lo me ajudar a impedir o plano do sireno,
estou disposta.
— Você poderá vir morar na vila comigo — Soren continua enquanto
seguimos o caminho, satisfeito com minha aparente cooperação. — Finalmente
deixar aquele casebre perigoso nas montanhas, parar de criar aquelas ovelhas
fedidas. Poderá me ajudar na forja, ou, se preferir, auxiliar Greta com as
crianças, até termos os nossos próprios.
Não.
Definitivamente, não.
A bile amarga da raiva sobe à minha garganta pela forma como ele
desdenha da minha vida atual. Engolir essas palavras é difícil. É exatamente por
isso que só nos encontramos à noite; tempo demais numa conversa e eu já estou
pronta para enterrá-lo no meu quintal.
— Será uma vida esplêndida. — Mantenho um sorriso congelado no rosto.
Pelo resto do caminho, Soren vai narrando todas as fantasias sobre nossa
futura vida matrimonial. Por um lado é bom ouvi-lo, me afasta um pouco do
sireno.
Sou tomada por um pensamento perigoso, a ideia de que se Manon estiver
certa e eu nunca mais voltar para casa, ao menos não terei que enrolar Soren
durante todo a primavera, até Molgur voltar para comê-lo no verão.
Um homem só é atraente na cama enquanto está de boca calada, nem todos
os músculos de seu peitoral vão conseguir prender minha atenção depois de
ouvir tanta besteira.
Chegamos ao porto, onde um grumete com não mais de dez anos aguarda
próximo da plataforma de embarque. Assim que me vê, ele pula de cima de um
amontoado de caixotes. Já estava esperando por mim, ele explica que foi
mandado pelo próprio capitão. É um rapazinho simpático e educado, mas não
consigo prestar atenção em seu nome ou na tagarelice. Ele reclama sobre o clima
frio daqui e como as peles de animal que é forçado a usar fedem. Não para um
instante enquanto conduz Soren e a mim pelo navio.
Grupos de marinheiros passam por nós, carregam os espólios roubados. Os
homens que estão dentro do navio são diferentes daqueles que vi pela vila, seus
corpos são esguios e altos, lembram muito mais o biotipo de Demônio do Mar
— ainda que nenhum porte o mesmo nível de elegância.
São todos muito diferentes das pessoas de Caldera, aqui nascemos para o
trabalho bruto e a batalha, corpos largos e contornos rudes.
Conforme avançamos, um homem se destaca no centro do convés, seu
porte é mais elegante do que os demais enquanto distribui ordens com a destreza
de um maestro. Ele está de costas, e tudo o que vejo é o casaco de lã escura e o
cabelo em cachos queimados pelo sol.
É ele, tenho certeza.
Engulo em seco, uma urgência me empurra para frente. Acelero o passo,
Soren e o grumete tentam me acompanhar, mas já estou correndo.
Preciso ver seu rosto.
Meu coração para por um instante quando toco seu ombro. Seguro a
respiração, dividida entre ansiedade e medo.
Ele se vira com lentidão.
É o homem mais bonito que já vi na vida.
Qualquer tentativa de fantasiar com a face por baixo da máscara de
demônio não chegou nem perto do que encontrei: um rosto bem esculpido,
maxilar forte, um nariz anguloso que harmoniza com as maças firmes da
bochecha; estas são quase almofadas para carregar aquele par de olhos pesados
de ressaca. Parece com algo que eu encontraria nas estatuetas da Casa de
Orações.
Dou um passo para trás, as brumas tomam os cantos da minha mente e
sinto como se estivesse em um sonho, não consigo acreditar que realmente seja
ele. Não consigo aceitar que alguém arme uma emboscada tão elaborada e ainda
reaja com um sorriso tão sem vergonha.
— Gosta do que está vendo? — Ele me provoca, ergue o queixo,
arrogante, destacando a cicatriz em meia-lua que deixei em seu rosto na última
vez em que nos enfrentamos.
— Ficará melhor quando sua cabeça rolar pelo assoalho — rosno, levando
a mão até a bainha da espada, mas não a saco.
Atacá-lo agora, cercada pelo inimigo, não seria sensato, por mais que
minha mão trema de vontade.
Demônio do Mar solta um riso descrente, acompanhado por um revirar de
olhos.
— Degolar, transar e beber — ele debocha em um sussurro, pouco antes de
trocar a máscara de desprezo por uma expressão acolhedora e falsa quando
Soren e o grumete nos alcançam. — É um belo barco, não é, querida? — finge
inocência, um ator nato. — São trezentos homens sob meu comando. Você deve
ter visto só uma pequena parcela na vila, sem falar dos setenta canhões. Galeões
como esse podem esmagar barcos menores como moscas, até pequenas vilas sem
dificuldade.
Pequenas vilas. É uma ameaça ou apenas exibicionismo?
— Um barco impressionante. — Soren toma a frente, alheio à tensão que
se acumula em meus ombros. — Sou Soren, mestre das forjas. Você deve ser o
capitão, não é?
Demônio do Mar assente.
— Esse é mestre Kaeldros. — O grumete se adianta, estala com satisfação
as sílabas do nome na boca, como se aquilo significasse algo importante que ele
tem muito orgulho de dizer.
— Certo, Kaeldros. Será que podemos conversar em algum lugar? Há um
assunto que gostaria de discutir em particular com você — Soren pede.
Não sou contra a ideia, sem uma plateia posso fazer Demônio do Mar de
refém. Isso é o básico de uma emboscada, mas Kaeldros não parece preocupado
com essa possibilidade. Concorda facilmente e nos guia para dentro do galeão
sem levar nenhum reforço consigo. Até mesmo o grumete emocionado fica para
trás, ganha apenas um carinho na cabeça de seu capitão, que lhe dá ordens para
ir ajudar os outros com a carga.
Pelo corredor conectado ao convés principal, acabo me distraindo ao
encará-lo. É lindo de uma forma não humana, cada linha parece esculpida em
mármore e mesmo a cicatriz que lhe dei não afeta o resultado final da obra, na
verdade, combina tanto com ele que poderia ter nascido assim. É insano como
não consigo compará-lo a ninguém conheço.
Soren aperta minha mão e coro de uma forma quase culpada por ter sido
pega encarando outro. Passo o resto do caminho observando meus pés, sem
confiar na própria capacidade de disfarçar meus pensamentos. Só volto a erguer
a atenção quando chegamos ao nosso destino.
— No que eu posso ajudar, mestre das forjas? — Kaeldros ergue
ligeiramente as sobrancelhas, um deboche sutil que faz meu sangue ferver.
Tudo que ele diz soa como uma provocação. Já entendi, vocês, do mar,
desprezam nossas armas. Se não gostam, deviam ficar no sul e não invadir
nossas terras.
Ele nos dá passagem para entrar no cômodo. Uma lamparina balança no
teto, seguindo o ritmo do barco, projetando sombras inquietas nas paredes. No
centro, uma mesa antiga exibe um mapa do arquipélago extremamente
detalhado, superior a qualquer um que eu tenha botado os olhos antes.
Mas isso é um detalhe periférico; o que realmente captura minha atenção
— e a de Soren — é a espada que repousa ao lado, reluzindo sob a luz fraca.
Meu coração acelera. É a minha espada! Ao meu lado, Soren fica tenso, a
atenção fixa na arma.
Kaeldros não diz nada. Ele permanece imóvel no batente, nos observando
com curiosidade. Não gosto de como ele parece calmo, como se tivesse o
controle da situação mesmo em menor número. Será que sabe de algo que eu não
sei?
Estou tentando organizar meus próximos passos quando Soren rompe o
silêncio:
— Soube que pretende se casar com Elena.
Pelos Deuses, homem, você ainda está nisso?
— Matei o dragão e conquistei honestamente a espada lendária —
Kaeldros responde sem um pingo de vergonha, colocando uma ênfase quase
sádica no "honestamente" enquanto atravessa a sala para pegar a arma. — É meu
direito tomar a Eterna Donzela, não é?
Seus olhos apáticos encontram os meus, é um desafio velado a contradizê-
lo. Não me falta vontade de saltar em sua jugular, só consigo me controlar
lembrando que é exatamente isso o que ele quer, está provocando até que eu
tome uma decisão precipitada.
— Não sei o que te levou a isso, mas se foi a fantasia de desvirginar a
Eterna Donzela, saiba que ela não é mais. Estamos juntos de forma íntima já faz
uma roda das estações. — Soren consegue roubar toda atenção para ele com
apenas uma frase.
Arregalo os olhos atordoada, sem acreditar no que acabo de ouvir. Até o
sireno parece surpreso.
— O quê? — É o máximo que consigo juntar de palavras, ainda duvidando
se escutei corretamente.
— Agora, se veio pelo prestígio político, saiba que o irmão dela a odeia.
Ela jamais poderá retomar a posição que tinha na Cidade-Mãe — Soren
continua, como se eu não estivesse ali. — Será para sempre apenas uma
fazendeira.
O comentário me atinge forte como um golpe no estômago. Apenas uma
fazendeira? É isso que ele pensa?
— Ah, entendi. Então é isso que você quis dizer com homens só virem até
mim por dois motivos.
Deveria me sentir magoada, mas o que surge é uma decepção cansada,
familiar demais. Soren se aproxima, segura minha mão. Não há culpa em seus
olhos, ele realmente acredita no que está dizendo. E isso torna tudo ainda pior.
— Você sabe como os homens são, o que eles realmente querem, mas eu
me apaixonei por você, pela sua coragem, sua força, seu sorriso, mesmo com
você…
— Mesmo não sendo virgem e tendo abandonado minha posição no campo
de batalha?
Ele acena, como se suas palavras fossem um consolo. Como se fosse
romântico. Mas tudo o que vejo é a lápide de mais um homem que nunca
entenderia quem sou. É por isso que posso entregar minha atenção, meu corpo,
meu amor, mas nunca a espada. Nunca.
Eles sempre acham que estou quebrada por viver sozinha nas montanhas,
longe de uma vida que nunca quis. Eles nunca entendem que não há nada para
ser consertado aqui.
— Você cometeu alguns erros no passado, mas está tudo bem…
— Não foram erros! — As palavras explodem de mim, a raiva finalmente
rompendo a calma superficial. Mais uma vez, alguém sugere que minha vida é
um castigo, uma punição, quando tudo o que fiz foi escolher o que era certo para
mim.
Minha fúria é interrompida por uma gargalhada alta e debochada. Kaeldros
ri e isso me enfurece a ponto de sacar a espada e apontá-la para ele. Apesar da
ameaça, sua atenção não está em mim. Ele encara Soren, parece fascinado.
— Acha que isso vai ser o suficiente para controlá-la? — Kaeldros indica
a espada lendária que roubou, seu sorriso entre a crueldade e o deboche forma
uma inesperada covinha nas bochechas. — Acredita que algo tão patético quanto
uma espada é o bastante para manter uma mulher como ela interessada em você?
— repete, como se ele mesmo não estivesse acreditando na linha de raciocínio
de Soren. Uma pequena parte de mim fica grata, e até um pouco assustada, que
alguém como ele consiga ver isso e Soren não. — Interessante, eu gostaria de te
assistir tentar.
Ele oferece a espada em um gesto trivial e Soren hesita.
— É sua. — Kaeldros insiste, empurrando a arma em sua direção. —
Permito que assuma a conquista de derrotar o dragão, desde que consiga sair
dessa sala com a espada em mãos.
— Pretende me impedir? — Soren pergunta, mas, com relutância, acaba
aceitando.
— Não — Kaeldros responde, desviando o olhar para mim. — Mas ela
vai.
Cretino.
Dou um passo à frente, bloqueando a saída com o corpo, a raiva pulsando
no peito. Neste momento, odeio todos os homens, sejam eles do Mar ou do
Ferro.
— Soren, me entregue a espada — exijo, tentando manter a calma.
— Elena? — Ele me olha, confuso, sem entender a urgência.
— Conversamos depois. Agora, me entregue a espada.
— Não.
A teimosia dele me exaspera. Sem pensar duas vezes, avanço e acerto sem
ceerimônias uma coronhada na lateral da sua cabeça. Ele tropeça, os olhos se
arregalando de surpresa — tanto músculo e nenhum senso de equilíbrio ou
defesa pessoal. Aproveito seu pescoço exposto e, antes que possa reagir, uso a
bainha para acertar o golpe final em sua nuca sem de fato ferí-lo.
O corpo inconsciente de Soren desaba no chão com um baque surdo. Eu o
empurro para o lado com o pé, recuperando a espada de meu pai.
Agora tenho duas armas, uma em cada mão, mas, ironicamente, não me
sinto mais segura. Kaeldros, sem mover um dedo, conseguiu derrubar um
oponente.
Ele parece o tipo de pessoa que sabe como ler o ambiente, manipular as
peças ao seu favor.
— Achei ofensivo ele pensar que poderia te controlar tão facilmente,
considerando o trabalho que tive para te trazer até aqui. — Sua postura é mais
relaxada agora que estamos a sós. — E, para ser honesto, não me importo que
você não seja virgem. Na verdade, é um alívio. Nunca me considerei um bom
professor.
Ignoro o comentário, estou concentrada na espada de meu pai. Faz anos
que não a empunho. A lâmina é gravada com símbolos de proteção ao longo de
toda a sua coluna, e seu nome está entalhado no final: Espírito do Norte.
Conquistar essa espada não foi fácil; ela pertence apenas a um verdadeiro
guerreiro de Caldera. Meu irmão venceu por muitos anos a competição da lebre,
mas meu pai nunca a entregou a ele oficialmente. Ele esperou até que o Espírito
do Norte florescesse em mim. Até o dia em que, durante a caçada, quebrei as
pernas do meu irmão, impedindo-o de trapacear com seus cachorros.
Artimanhas são para os covardes; um verdadeiro guerreiro enfrenta seu
inimigo com honra, cara a cara.
Encaro o sireno.
— Chega de teatro. Você não quer se casar comigo. Por que todo esse
espetáculo?
Kaeldros assente, o sorriso presunçoso desaparece e dá lugar a uma
expressão mais sombria.
— Meu dragão.
— Ele só passa o verão e o outono aqui, Molgur odeia o frio, no inverno
vai para o sul. Espere alguns meses e ele deve voltar — conforme explico, me
aproximo.
Kaeldros esconde bem a tensão, finge não estar intimidado, mas sei que
não é burro. Seus olhos desviam de mim por um instante e param na porta, checa
uma rota de fuga.
— Eu sei disso, mas esse inverno foi diferente, ele não foi para o sul —
responde.
Paro. Se ele sabe tanto e estava esperando por Molgur no inverno, isso
quer dizer que…
— Vocês também tem um acordo?
Ele confirma com um aceno sutil, e de repente tudo faz sentido. É assim
que Kaeldros sabe tanto sobre mim. Aquele dragão fofoqueiro, vira-lata de
asas... Tento repassar nossas últimas conversas, procurando algum indício de que
havia outro pacto.
— Molgur me alertou sobre você. — Kaeldros interrompe meus
pensamentos, sua voz fria. — Disse que, se ele não voltasse para o sul, eu
deveria vir atrás de você.
O choque quase me paralisa. Então é por isso que ele tem tanta certeza de
que matei o dragão? O que Molgur estava pensando ao insinuar algo assim?
Nunca o ameacei desde que selamos o acordo. Na verdade, sempre o considerei
um aliado, talvez até um amigo — ou o mais próximo que uma criatura como ele
poderia ser de um humano.
— Isso é ridículo. Eu não ganharia nada matando Molgur — tento
argumentar. — Sem ele, só tenho a perder.
Encaro Soren desmaiado no chão, sem a ameaça de Molgur, como vou
manter ele e os outros calados? Pior do que isso, como vou impedir que algum
deles force um casamento comigo? Não, a situação é ainda mais complicada:
alguém matou Molgur? Tenho certeza de que ninguém em Caldera seria forte o
bastante.
— Não faz sentido, mas não espero decisões inteligentes vindas de alguém
do Povo do Ferro. — Kaeldros me desperta mais uma vez de meus pensamentos
com seu desprezo. — Eu não matei ninguém da primeira vez para mostrar minha
boa vontade em resolver isso de forma pacífica, agora se você continuar
escondendo o que fez com ele, não tenho mais utilidade para essa vila.
Trezentos marinheiros, setenta canhões.
— Você não teria coragem, demônio. — Aperto a empunhadura das
espadas, uma em cada mão.
— Continue mentindo para mim, vou arrancar o coração da menina ruiva e
te fazer assistir.
Chega. O sangue ferve em minhas veias. Este sireno desgraçado vai pagar.
E se Molgur realmente estiver morto, ele poderá perguntar diretamente ao
dragão o que aconteceu quando eu o mandar para o outro lado do véu.
CAPÍTULO 07
Meus dentes batem furiosos uns contra os outros, o frio atravessa os ossos
e tira qualquer controle que eu tenha sobre meu corpo. Chama Viva pesa como
chumbo na minha mão trêmula, enquanto a outra se agarra à corrente da âncora.
Meus dedos já estão dormentes, rígidos, mas se mantêm firmes, é uma questão
de vida ou morte.
Foi uma ideia desesperada pular na água congelada do mar quando não sei
nadar. Meu único objetivo naquele momento era me livrar por completo das
brumas, pensei que ter a mente limpa me traria um raciocínio mais claro de
como resolver a situação.
Bom, me trouxe a certeza de que estou ferrada.
— Ne-nem pe-pe-pense ni… — Tento ameaçar erguendo a adaga, quando
Kaeldros se aproxima da beira da plataforma, mas minha voz sai trêmula.
— Você vai morrer por hipotermia — ele rosna frustrado, mas não ousa
entrar na água, depois de minha pequena demonstração violenta, ele pensará
para sempre duas vezes antes de chegar perto de mim.
Já tentou cantar para me convencer a sair do mar, mas o velho truque da
infância funciona bem, minha mente está incrivelmente acordada por causa do
frio. Nem a banda, nem Kaeldros e nem o próprio Thalassor serão capazes de me
manipular agora.
Vejo com completa clareza a festa, não há nada de errado com os músicos,
são sirenos de aparência comum. A impressão que tive de seus aspectos
monstruosos foi apenas um efeito da canção.
Infelizmente, Kaeldros continua mortalmente lindo e não consigo deixar
de achar sua carranca irritada ainda mais bonita do que o sorriso cruel.
Esse pensamento é a única coisa que me esquenta um pouco, mas não
tanto. Ele está certo; não vou aguentar muito mais tempo na água congelada. O
inverno ainda domina o mar, e minhas extremidades estão dormentes faz tempo
demais.
Avisto Manon atravessando a plataforma de embarque com alguns
moradores de Ferroforja e marinheiros. Um deles me chama mais a atenção, é
um homem alto como um gigante, carrega uma espada grande demais nas costas
e isso acende um alerta de atenção em meu cérebro, ainda que eu não consiga
dizer exatamente o por quê.
Eles se movem com uma estranha lentidão, a música enfeitiçando seus
passos. Tento agitar os braços e me fazer ser ouvida.
— Ma-manon — gaguejo, é preciso respirar fundo para juntar energia para
chamá-la mais alto. — Manon!
Ela para, os olhos vazios e turvos se voltam para mim, mas não há
reconhecimento imediato.
— Elena? O que você está fazendo aí? — A pergunta não tem urgência,
apenas confusão. Ela me vê, mas está hipnotizada demais para entender a
situação.
— Os sirenos… — Tento avisar, mas cada palavra rouba um pedaço do
pouco ar que me resta. O mundo à minha volta começa a escurecer nas bordas, o
frio já invadindo meu peito, e sei que estou ficando sem tempo.
Kaeldros faz um gesto sutil com a cabeça, e logo vejo Rune, seu primeiro
imediato, emergir da multidão de festeiros.
— Saia da festa — sussurro, vendo Rune segurar os ombros dela. — Não
escute a canção!
Manon franze a testa, confusa, mas não resiste. Deixa-se levar de volta ao
grupo, logo rindo como se nada tivesse acontecido. O gelo dentro de mim se
espalha mais rápido, e o desespero cresce junto com a dor do frio.
Olho para Kaeldros sentado na plataforma, observando-me com uma
expressão que não consigo definir entre a diversão ou a pena.
— Vou adorar ver você morrer aí, lentamente — ele diz.
Reviro os olhos e guardo o fôlego. Talvez essa não tenha sido a melhor
escolha, mas se vou morrer, que seja acordada, não sob o feitiço desse sireno
traiçoeiro.
— Ei, estou falando com você! — Kaeldros insiste quando não respondo a
sua provocação, a irritação evidente em sua voz. — Me diga o que aconteceu
com Molgur, e deixo você ir.
— Já... disse... tudo que sei… — Está cada vez mais difícil formar
palavras, perco o foco várias vezes.
— Mentirosa.
Hipotermia. Que maneira patética de morrer. Tantas batalhas vencidas,
tantos inimigos derrotados, e vou perecer aqui, em uma poça de água congelada
por tempo demais. Se ao menos minha morte pudesse servir a um propósito,
talvez salvar Ferroforja, isso seria suficiente para partir em paz, sem me tornar
um espírito inquieto.
— Se eu falar... promete... não destruir... a vila?
Kaeldros endireita a postura, seus olhos se arregalam, e pela primeira vez
vejo o desespero em seu rosto. Ele quer a informação, precisa dela, e talvez
acredite em qualquer coisa que eu disser.
— Devolvo tudo e deixo todos vivos — ele responde rápido demais.
Não sei se posso confiar em sua palavra, mas não estou em posição de
negociar. Meu tempo está acabando. Estou tão cansada, tanta coisa aconteceu
nos últimos dias… só queria descansar um pouco tendo a paz de saber que todos
estão bem.
— Ele disse… uma viagem longa… para muito longe... — Minha visão
periférica perde o foco, o frio finalmente me vencendo.
— Longe é uma direção muito vaga. — Ele se apoia na beira do cais. —
Seja mais específica.
— Era para... — Algum lugar longe, algum lugar que dê tempo para meu
irmão receber minhas cartas. — oeste… muito além dos territórios… do Ferro.
A escuridão toma as bordas, o mundo está turvo. Sinto meu corpo
enfraquecer, como se sugado para dentro de um poço, estou caindo até a luz se
tornar um único ponto distante. A voz de Kaeldros soa abafada, vinda de fora
desse buraco
— Ei! Ei! Como assim oeste? Você não pode falar isso e morrer! — ele
grita, mas não consigo reagir. — Nem pense nisso!
Ouço o som de um corpo quebrando a superfície da água. Meus dedos
congelados tentam desesperadamente segurar Chama Viva para me defender,
mas sinto-a escorregar. Estou fraca demais, e a adaga escapa de minhas mãos,
afundando lentamente no mar. Tento esticar o braço para alcançá-la, mas acabo
afundando a cabeça e uma porção de água salgada invade minhas narinas.
Tento tossir, mas tudo que consigo é engolir mais água salgada, a salmoura
queima minha garganta e pulmões como fogo líquido. O frio já não é minha
única ameaça; estou me afogando. Meu último pensamento é que vou morrer
sufocada antes de congelar, mas, então, mãos fortes me puxarem para fora.
Começo a lutar, instintivamente debatendo os braços e pernas, sem saber
se estou brigando com Kaeldros ou com o próprio frio.
— Você é incrivelmente teimosa, mulher — ele rosna, sua voz carregada
de frustração, quando finalmente consegue me arrancar do mar gelado.
— Minha… adaga…
Fraca como estou, ele mal sente meus socos contra seu peito. Ergue meu
corpo facilmente, me jogando sobre o ombro como se eu fosse um saco de
batatas.
— Pare de lutar, estou tentando salvar sua vida idiota enquanto você quer
morrer por um pedaço de metal — ele resmunga e me carrega para dentro do
navio.
Sinto como se eu estivesse presa em um pesadelo enevoado, não consigo
acompanhar o que está acontecendo. O calor das mãos de Kaeldros é um
contraste gritante com o gelo que me consome. Ouço o rangido de uma porta e,
em seguida, sinto a suavidade de uma cama sob mim. Forço meus olhos a se
abrirem, e o vejo arrancando sua camisa molhada e jogando-a de lado.
A cena é surreal, quase como um devaneio febril. Minha mente vaga pelos
lugares mais absurdos: os músculos bem delimitados por baixo da pele
bronzeada, o caminho pecaminoso de pelos acobreados que desce do umbigo
para dentro da calça, a tatuagem com o corpo de um dragão que começa em seu
pulso e se estende por todo o braço até o peitoral.
Ele se aproxima, me vira com brusquidão de barriga para baixo e começa a
desfazer os nós do meu corpete. Meu coração acelera, pavor e adrenalina me
trazem de volta à consciência.
— O que você pensa que está fazendo? Tire suas mãos de mim! — Tento
golpear seu rosto, mas meu braço mal responde, o movimento é desajeitado,
como uma carícia fracassada.
— Eu disse que sabia como tirá-los, não disse? — ele debocha, ácido,
enquanto termina de arrancar o espartilho e segue para o vestido.
Ele ignora meus protestos, cada toque dele me enfurece, mas estou fraca
demais para lutar. Começo a gritar com tudo que me resta, não sei por quem
estou chamando. Talvez só queira resistir até o último minuto. Eu esperava
muitas coisas de um sireno, mas não isso.
— Vamos, grite o quanto quiser, você acabou com a minha paciência. —
Ele está furioso, puxa o que restou do vestido por cima da minha cabeça sem
nenhum cuidado.
Resta apenas a camisola em meu corpo quando ele me vira com a barriga
para cima de novo. Volto a tentar desferir socos com meus braços cansados.
— Ótimo, se ainda consegue lutar, é um bom sinal. Não vai morrer.
Estou tremendo, mas não é só de frio desta vez; é de raiva, de impotência.
Tento me afastar, mas ele me segura com uma facilidade irritante, rasgando a
última peça de roupa, me deixando nua e vulnerável na cama. A humilhação se
mistura ao ódio.
— Porco imundo. — Cuspo na bochecha dele, e o vejo limpar o rosto. Sua
fúria esmorece por um breve momento.
— Não vou fazer nada, tem a minha palavra — ele diz, a voz baixa,
cansada, quase... triste. — Mas não posso te deixar morrer.
Minha visão oscila entre a escuridão e a luz, a exaustão pesa. Mal consigo
me mover quando ele me leva até uma poltrona, onde se senta e me acomoda em
seu colo de frente para si. O contraste de temperaturas é sufocante,
desconcertante. Kaeldros passa uma coberta por cima de nós, as mãos fortes me
puxam, forçando-me a encostar no seu peito. Meus seios pressionam sua pele
quente, e sinto-o tremer, mas não sei se é de frio ou algo mais.
Tento me debater, mas minhas forças se esvaem rápido. Ele me segura
firme, e, aos poucos, a escuridão volta a me envolver. A última coisa que sinto é
o calor dele lutando contra o gelo dentro de mim antes de ser engolida pelo
abismo, caindo em um sono turbulento e sem escapatória.
CAPÍTULO 08
____
Primeiro vem o sangue, depois a honra, por último o ego. Quando outros se
aproximam, atraídos pela comoção, os amigos de Hans tentam impedi-lo de lutar
comigo. Eles o chamam por outro nome: Areskaan, não entendo porquê, mas
também não tenho tempo para pensar nisso agora.
Os marinheiros o lembram de que Kaeldros ordenou que ninguém
encostasse em mim, mas Hans, ou Areskaan, os manda se afastar com um gesto
ríspido. O sangue é mais importante para ele do que a honra em seguir seu
comandante.
Faço o mesmo com Manon quando diz que lutará ao meu lado, mando-a
retornar para Ferroforja sozinha.
— Eu prefiro a morte do que deixar você para trás — ela responde
convicta, estar comigo até o fim é seu sangue e sua honra.
Um sireno próximo de nós — começo a conseguir diferenciá-los por seus
corpos mais esguios e altos — a encara em um misto de horror e curiosidade.
Entre Ferro e Mar, somos por volta de seis no convés principal, logo esse
número deve aumentar, mais marinheiros vão acordar quando começarmos a
lutar.
Os desertores de Caldera respeitam o duelo, acomodam-se nas vigas do
mastro para assistir, mas os sirenos não gostam disso, um deles corre para dentro
do navio, provavelmente pensando em chamar Kaeldros.
— O passado não se altera com palavras. Lutarei até o fim de maneira
honesta — declaro firme.
Por trás da raiva nos olhos de Hans, vejo algo mais — um lampejo de
respeito, talvez — que desaparece tão rápido quanto surge, sufocado pela fúria
que ele carrega.
— A morte não vai limpar sua alma — ele cospe cada palavra como
veneno. — Seus ancestrais não estarão lá para te guiar do outro lado do véu.
Você estará sozinha, presa no umbral.
Concordo com um aceno breve.
— E é por isso que ainda não estou pronta para morrer.
Congelar no mar para salvar Ferroforja é algo pelo qual eu estaria disposta
a me tornar um espírito inquieto, mas deixar Manon sozinha neste navio, cercada
por inimigos, não é uma opção. Uma onda atinge o casco com força, jogando
água salgada sobre o convés e, no horizonte, o brilho de um trovão ilumina as
nuvens escuras.
Será que os Deuses estão a meu favor ou conspirando contra mim? Desde
que o sireno surgiu, parece que cada dia me aproximo mais dos pesadelos de
Manon, aqueles em que ela me vê afogada no mar.
Ergo o florete, que espada infeliz para se lutar com alguém da estatura de
Hans.
— Contarei histórias em Caldera sobre como você lutou bravamente até o
último suspiro. — Arrisco um toque de humor, ele não compartilha desse
momento.
— Menina arrogante!
Hans avança, sua espada gigante corta o ar com um zumbido alto. Eu
desvio para o lado, sentindo o peso do golpe reverberar pelo convés inteiro
quando a lâmina atinge o chão de madeira.
Ele sua para me acompanhar, a respiração pesada se condensa em vapor no
ar frio, subindo e descendo em longas lufadas. Esquivo-me de outro golpe que
teria estilhaçado meus ossos, girando para tentar atacar sua lateral. Ele é ágil
para alguém do seu tamanho e desvia o corpo no último instante.
Cada ataque meu é preciso, buscando uma abertura, uma brecha na defesa
de um guerreiro que já era experiente antes mesmo de eu nascer. Na primeira vez
que lutamos, venci por que não estava sozinha. Agora, o que tenho a meu favor é
a idade; ele está mais velho, seus movimentos menos fluidos.
O contra-ataca vem, a espada quase me derruba quando bloqueio o golpe
com o florete. O impacto é tão brutal que o metal se parte. Metade da lâmina voa
pelo convés, deixando-me apenas com a empunhadura e um toco de aço
quebrado.
O grito entusiasmado dos marinheiros irrompe ao nosso redor, vibrando
com a batalha. Ouço Manon mandar todos calarem a boca, mas sua voz se perde
no meio da algazarra.
Droga. Recuo, dou vários passos para trás para ganhar terreno, enquanto
minha mente corre para encontrar uma solução.
Talvez seja pela garrafa de vinho que bebi na janta, ou pela artimanha
nojenta que me trouxe aqui, mas estou com raiva demais para sentir medo,
furiosa demais para pensar de forma lógica. Jogo o toco de espada para longe.
— Vou acabar com isso com minhas próprias mãos!
O fogo da batalha brilha por trás dos olhos de Hans e, para a surpresa do
convés, ele também abandona sua espada-porrete.
— Quero ver você tentar, menina!
Ele fecha os dedos em forma de punho, um soco certo de suas mãos e
quebrarei as costelas, um osso pode perfurar os pulmões e não haverá como
escapar da morte.
Meu corpo inteiro se arrepia, aquela adrenalina de uma luta de verdade que
você não tem certeza se vai sobreviver. Por Shahar, Phosius e Thalassor, como
eu senti falta das batalhas de verdade.
À minha frente, Hans também parece ter esquecido da raiva, ele está
possuído pelo Espírito do Norte. As rugas em seu rosto, o olhar endurecido pela
guerra, ele lembra tanto meu pai que quase sinto um fio de orgulho ao imaginar
morrer aqui, enfrentando alguém como ele.
Grito com toda a força dos meus pulmões, coloco a adrenalina para fora e
começo a correr em sua direção. Hans faz o mesmo. Aguardo por nosso impacto
no meio do caminho, o confronto final.
Mas, o mundo para quando escuto uma melodia suave flutuar no ar. Uma
voz masculina cantarolorando. Meus movimentos travam no mesmo instante,
bem a tempo de um vulto surgir na minha visão periférica e mudar trajetória
antes de Hans me alcançar.
Quando sou arremessada, sinto o chão duro contra meu corpo, mas os
impactos, estranhamente, não são tão dolorosos. Algo — não, alguém —
amortece minha queda. Abro os olhos, me encontro envolta nos braços de
Kaeldros.
— Por que esse desejo insano por morrer?! — A voz dele é um rosnado,
tão próximo que sinto o cheiro do rum em seu hálito.
Tento me erguer, mas sua mão se fecha em meu ombro e me empurra de
volta ao chão.
— Quem te deu o direito de interferir?!
— Meu título de noivo de uma selvagem suicida e de capitão dessa
banheira de madeira flutuante — ele sibila cheio de escárnio, então aproxima
ainda mais seu rosto do meu, os lábios tocam minha orelha quando fala: — Se
preza pela vida da menina ruiva, você vai ficar quieta e colaborar enquanto eu
conserto isso.
Um arrepio percorre minha espinha, sua mão desliza para a minha cintura,
me ajuda a levantar e me mantém perto dele. Está fingindo que somos um casal,
claro, mas a sensação de sua palma ali, a posse implícita no gesto, faz meu
sangue ferver. Seu toque tem um efeito estranho no meu corpo mesmo quando
não estou no clima para galanteios. Tento me afastar, mas ele me mantém firme
ao seu lado.
Olho ao redor e vejo o convés agora cheio de marinheiros que vieram com
Kaeldros. Foram precisos dois para conter Manon, um deles é o próprio primeiro
imediato, Rune. Eles trocam olhares ferozes, vejo os lábios dela se movendo e
reconheço uma ou outra ofensa escabrosa, mas não consigo ouvir direito, estão
longe demais e há gritaria por toda parte.
Quero intervir, xingar, fazer alguma coisa, mas há inimigos demais agora
para combater. Hans não deve ser o único desertor que quer a minha cabeça, se
eu fizer algo que mine a autoridade de Kaeldros, estarei nos condenando.
Sozinha, talvez estaria mais imprudente, entretanto, neste momento, sou
responsável não apenas pela minha vida, mas a de Manon também.
Meu corpo treme de frustração pela impotência, os músculos chegam a
doer pelo esforço de me manter parada.
Kaeldros está tão desgostoso quanto eu, cada movimento que faz é tenso,
quase mecânico. Um rosnado animalesco deixa sua garganta, um som impossível
de ser emitido pelas cordas vocais de um homem comum. Reverbera espectral
como o canto kulning, mas em vez de acalmar, sinto um impulso de querer
correr — ele parece ciente disso, pois seus dedos afundam em minha cintura
para me manter no lugar.
O rosnado faz os homens hesitarem; em segundos, a ordem é restaurada.
Hans e os marinheiros que estavam com ele desde o início são colocados de
joelhos, espadas apontadas para seus pescoços.
— Vocês têm apenas uma chance de se explicar, façam bom uso do meu
senso de justiça — anuncia Kaeldros com frieza. — Por que minha noiva foi
atacada por meus próprios homens logo após minha despedida de solteiro?
Comece, Mestre de Velas.
O único sireno do grupo engole em seco. A chuva começa a cair em gotas
grossas, e sua franja encharcada se desprende do penteado, mas ele não ousa
mover os braços para ajeitá-la.
— Ela... ela estava tentando fugir. — Sua voz é trêmula. Ele age como se
eu não estivesse ali, nunca cruza o olhar comigo.
— Está insinuando que minha noiva não deseja se casar comigo? —
Kaeldros pergunta.
Apavorado, o sireno sacode a cabeça repetidamente.
— N-não foi isso que eu quis...
— E o que você quis dizer então?
— Eu... eu cometi um erro, capitão. — Resignado, ele abaixa a cabeça até
quase tocar o chão.
— Foi o que eu pensei.
Toda essa tensão não se deve apenas ao rugido espectral, pelo olhar
aterrorizado dos marujos, suponho algo pior, talvez um histórico de punições
violentas. Esse homem ao meu lado não parece o mesmo que me descongelou
com tanto cuidado horas atrás.
O capitão do Fúria é frio e meticuloso.
— Timoneiro. — Kaeldros se dirige ao próximo da fila. Esse é um homem
do Ferro, provavelmente um desertor. Seu rosto não me é familiar, mas a postura
diz muito.
— A garota... — Ele aponta para Manon com um movimento da cabeça.
— Conspirou para levá-la embora. Eu... tentei salvá-la.
— Incriminando a dama de companhia de minha noiva? Que covarde de
sua parte.
Um a um, Kaeldros vai derrubando seus homens apenas com palavras,
forçando-os a admitir a culpa. Até restar apenas Hans. Mesmo de joelhos, sua
presença é imponente, tem quase a minha altura de pé. Me incomoda vê-lo nessa
posição, ainda que seja um inimigo. Pessoas da idade dele merecem respeito.
Não consigo deixar de pensar em como eu ficaria furiosa se fosse Lothar ou
Greta ali.
— Ela matou meus filhos, queimou minha vila, destruiu tudo o que eu
amava — Hans anuncia antes mesmo que Kaeldros o convide a falar. — Os
outros só queriam capturá-la e trazê-la de volta para você. Fui eu quem
desobedeceu sua ordem. Aceito qualquer castigo que me der.
Desta vez, a resposta não chega de imediato. Chuva escorre pelos cabelos
de Kaeldros, pingando de seu queixo quadrado enquanto ele mastiga as palavras.
O convés está quieto, exceto pelo som das gotas e o barulho das ondas contra o
casco. Então, algo muda em sua expressão. A frieza em seus olhos vacila, e vejo
um lampejo de tristeza.
— Você sabe que no momento em que te dei um nome sua antiga vida
ficou para trás — ele finalmente diz, sua voz baixa. — Areskaan será pendurado
no mastro principal por três dias e três noites. Quem ousar dar-lhe de beber,
comer ou ajudar de qualquer forma, se juntará a ele no castigo.
Por um momento, Kaeldros fica parado, penso que ele vai mudar de ideia.
Hans é um desertor, mas também alguém que perdeu tudo. Ele respira fundo,
balança a cabeça como quem tenta jogar as emoções de lado e começa a se
afastar do convés, ainda me levando junto dele.
— Os demais passarão seus dias raspando o casco e limpando o porão...
até que eu tenha esquecido o que fizeram.
A paz ilusória dura até a porta do quarto se fechar atrás de mim. Kaeldros
solta minha cintura com brusquidão, e o lugar onde seus dedos cravaram agora
lateja. Ele cruza o quarto com passos pesados, os ombros rígidos, e se posiciona
diante da janela, encarando o horizonte lá fora enquanto a chuva atinge furiosa
contra o vidro. Respiro com dificuldade, o coração disparado, não apenas pelo
que aconteceu no convés, mas pela raiva acumulada em cada célula do meu
corpo.
É um alívio poder me afastar dele, o calor de seu corpo me incomoda, faz
a pele formigar.
— Você não tinha o direito de intervir naquele duelo! — Minha voz
explode, mais alta do que deveria. — Aquilo era uma questão de honra!
Kaeldros se vira abruptamente.
— Honra? — ele rosna, avançando na minha direção. — Não existe honra
na morte! Matar e morrer não são atos nobres, são selvageria! Violência!
Ele tenta me encurralar, mas eu não recuo.
— Areskaan pode morrer naquele mastro por sua culpa! — continua.
— Não ouse colocar a culpa em mim pelo castigo que você impôs!
A centímetros de mim, Kaeldros solta um riso curto, amargo, e esfrega o
rosto com as mãos.
— Se eu não fizesse isso, meu comando estaria em cheque. Você me
colocou nessa posição.
— Eu? — rebato, o rosto quente, a respiração ofegante. — O seu sequestro
me colocou nessa posição! Você espera que eu fique sentada aqui enquanto você
destrói toda a minha vida porque seu bicho de estimação desapareceu?
Sou pega desprevenida. O impacto é rápido e brutal. Ele me empurra
contra a parede, e minhas costas batem com força na madeira. Sua mão vem logo
em seguida até meu pescoço, não para me sufocar, mas tentando me dominar.
— Molgur não é um animal, ele é muito mais do que isso.
Eu reajo sem pensar, acertando um soco em seu pulso, e ele recua. Seus
olhos, ainda flamejantes, encontram os meus, e eu me preparo para o pior.
Imagino se se vai me dar um tapa, mas ele para.
Seus dedos passam pelos cabelos, ajeitando os fios de cobre, e não precisa
de nenhuma máscara demoníaca de porcelana para voltar ao rosto frio de
capitão.
— Onde você está indo?! — pergunto quando ele segue em direção à
porta.
Ele para no batente.
— Arrancar um dedo da menina ruiva, já que violência é a única forma de
me comunicar com você.
Meu sangue gela nas veias.
— Você está blefando, não teria coragem.
— Quer testar os limites da minha civilidade, falsa donzela?
Não tenho certeza do quão longe ele iria para provar um ponto.
Kaeldros percebe minha hesitação e, com um sorriso cruel, acrescenta:
— Foi o que eu pensei.
CAPÍTULO 10
____
Dizer que acordei no dia seguinte me sentindo como as fezes de um cavalo
na rua não seria exatamente correto — para isso, eu precisaria ter dormido.
Se foi a mistura de culpa e raiva que me manteve acordada ou o incessante
balançar do maldito barco que me fez vomitar a noite inteira, não sei. Mas
quando o grumete simpático, o mesmo que me guiou no dia em que cheguei,
bateu na porta e encontrou a prisioneira do Fúria deitada na cama, pálida como
as nuvens e com o olhar fixo no vazio, eu me senti como as fezes de um cavalo
na rua.
O cheiro do quarto não ajuda em nada. Bile e suor se misturam no ar,
tornando cada respiração um esforço. Tento me sentar para falar com ele, mas
outra onda de náusea me empurra para o balde estrategicamente colocado ao
lado da cama.
Sem a adrenalina para me manter de pé, meu corpo sente finalmente os
efeitos de estar trancada nesse navio por tanto tempo.
— Chá de gengibre, vai te ajudar, senhora — ele diz com uma educação
que não espero de alguém da sua idade, muito menos criado num navio cheio de
desertores.
Ele coloca uma bandeja empoeirada sobre a mesinha ao lado da cama. A
prata parece não ter visto um pano limpo há anos, talvez desde que foi roubada
de algum lugar distante. Um bule lascado de porcelana descansa ao lado de uma
xícara delicada, com desenhos estranhos que não reconheço, certamente não é
algo feito por artesãos de Caldera.
Antes de me servir o chá, ele puxa de dentro de seu colete um pequeno
buquê de galantos. Essas flores geralmente nascem nos arredores de Ferroforja
no fim do inverno, quando a neve começa a derreter. As pétalas brancas pendem
melancolicamente para baixo, e essas parecem ainda mais abatidas, talvez
colhidas há dias.
— Para você — ele diz, estendendo o buquê com orgulho.
— Kaeldros me mandou flores? Pensei que mandaria dedos. — O
sarcasmo escapa antes que eu possa me conter.
— Não, são um presente de boas-vindas meu — ele responde com um
sorriso satisfeito. — Eu mesmo as colhi, senhora.
O gesto me pega desprevenida. O sarcasmo se dissipa enquanto observo
seu sorriso desajeitado, revelando um canino torto à direita.
— Por quê? — Hesito em pegar as flores, como se fossem venenosas.
— Por que não?
— Eu sou o inimigo. Ontem machuquei um amigo de vocês.
— Foi sem querer. Você estava com medo, não estava? — Ele me olha
com tanta sinceridade que fico desconfortável. Sua ingenuidade é quase
perturbadora. Um rapaz nessa idade, nesse ambiente, deveria ser capaz de
reconhecer más intenções.
Mesmo quando me recuso a pegar as flores, ele continua com o braço
estendido, insistente. Acabo as aceitando por pena.
— Qual o seu nome? — pergunto.
Satisfeito em me presentear, ele volta para o bule e serve uma xícara, o
aroma picante do gengibre é um alívio em meio ao mau cheiro que se instaurou
no quarto.
— Kaeliactchim — responde, engasgando na própria tentativa, o final da
palavra soando como um espirro. Ele franze o rosto, tenta de novo. — Ka-eli-
th... — divide as sílabas, mas ainda parece difícil. — Kaelitchim! — Ele sorri,
quase acertando, mas o som continua esquisito.
Definitivamente não é um nome de Caldera. Na verdade, parece
complicado demais para alguém tão jovem.
— Kaelith? — Tento ajudá-lo.
— Isso! Isso! — Ele sorri largamente, como se tivesse conquistado algo.
— Mas pode me chamar de Li, para facilitar.
A lembrança da noite passada volta à minha mente. Como todos
chamavam Hans por outro nome, e as palavras de Kaeldros ressoam: "Quando te
dou um nome, você deixa sua antiga vida para trás." Talvez seja o mesmo com
Li. Ele não parece totalmente familiar com o próprio nome.
— Eu sou Elena — digo, esperando algum reconhecimento.
Ele dá de ombros, quase sem se importar, e contorna a cama para pegar
meu balde vômito. Fico meio constrangida, mas ele não faz sequer uma careta
para a tarefa enquanto segue em direção à porta.
— Senhora, vou pegar uma bacia e água para o seu banho. Volto logo —
anuncia.
Há algo incômodo em ser chamada de "senhora", como se meu nome fosse
insignificante. Penso nisso por um momento e percebo que Kaeldros também
nunca me chamou de Elena.
— Antes de ir, pode me dizer se Manon está bem?
Ele une as sobrancelhas, confuso, não parece saber do que estou falando.
— Menina Ruiva. — Tento de novo, agora usando a forma como Kaeldros
a chama.
Um brilho de entendimento passa pelos olhos dele.
— Garçonete está bem, não se preocupe — ele responde antes de sair do
quarto.
Aproveito o breve momento sozinha para me aproximar da janela
enquanto beberico o chá. As nuvens escuras da noite anterior ainda pairam sobre
o horizonte, pesadas, como se a tempestade estivesse sempre à espreita, mas
nunca pronta para desabar. O máximo que tivemos durante a madrugada foram
gotas grossas e esparsas, ainda há muito para chover.
Entre os intervalos dessas nuvens carregadas, feixes de sol se estendem até
o mar, iluminando a água escura em pontos isolados, como pequenas janelas de
luz em meio ao caos. É bonito, embora tenha um ar melancólico.
Nenhum sinal de Ferroforja no horizonte. A minha amada cidade ficou
para trás.
Antes que eu tenha a chance de afundar em outra sessão de autopiedade, o
grumete retorna desajeitadamente ao quarto, tropeçando no próprio peso
enquanto tenta equilibrar uma bacia de água, toalhas, e alguns frascos. O menino
carrega tanta coisa que mal consegue ver o caminho à frente. Ele tropeça em
uma cadeira, solta um chiado de dor e um punhado de água esparrama pelo chão.
Eu corro para ajudá-lo, pego o balde antes que ele faça ainda mais estragos.
— Obrigado, senhora — ele murmura, depositando os itens restantes no
chão com um alívio palpável.
Eu aceno e observo enquanto ele tenta organizar tudo. Pega um pequeno
frasco de perfume e o examina como se nunca tivesse visto algo assim antes.
Abre a tampa, inala profundamente e acena com a cabeça, aprovando o cheiro
com um sorriso.
— Mulheres gostam de coisas cheirosas, né? — pergunta com um brilho
curioso.
— Quem te disse isso? — arqueio uma sobrancelha, segurando um riso.
— Mestre Kaeldros — ele responde, orgulhoso. — Disse que nenhuma
menina do porto ia olhar para mim se eu não tomasse banho.
— Ele é mesmo um especialista, não é? — reviro os olhos.
Um sireno como ele deve ser metido a conquistador, imagino quantas
mulheres por aí caíram em suas canções — eu inclusa. O efeito é estranho, é
como se um constante desejo pairasse entre nós toda vez que nos vemos e fica
ainda mais forte quando ele me toca. Não importa o quão perigoso é a situação
ou o quão furiosa estou, o desejo está sempre ali no fundo.
— O que é toda essa história com os nomes? — Mudo de assunto,
tentando afastar a lembrança de Kaeldros sem camisa rasgando meu vestido.
Ele franze a testa.
— Como assim?
— Li nem sempre foi seu nome, não é?
— Mestre Kaeldros me deu parte do nome dele depois que me salvou. —
Assente. — Ele disse que, quando eu for mais velho, serei o Segundo Imediato
do Fúria.
Eu fico em silêncio por um instante, absorvendo essa nova informação.
Apesar das diferenças culturais entre nossos povos, imagino que para o Mar,
assim como para o Ferro, dar parte do seu nome a alguém é um laço. Meu irmão
aboliu o nome dos clãs para diminuir a inimizade entre as famílias, mas antes
também compartilhávamos um nome em comum.
Não posso deixar de sentir uma ponta de admiração por Kaeldros ter
adotado o menino, mesmo sabendo que ele provavelmente o molda, assim como
faz com todos ao seu redor.
— Ele te adotou então? Por que você não o chama de pai? — pergunto,
ainda tentando entender a dinâmica entre os dois.
Li balança a cabeça com um meio sorriso, como se a ideia fosse absurda.
— Seria falta de respeito. Ele é Kaeldros.
— Que seja, não entendo essa coisa toda com os nomes.
— Não há em todo o mar dois sirenos com o mesmo nome — ele explica
com naturalidade, como se fosse o básico do básico. — Cada nome tem um
significado diferente. Quando novos marujos são recrutados, eles perdem seus
nomes antigos e são chamados pela função, até Mestre Kaeldros lhes dar um
novo.
— Hm. E o seu novo nome? O que significa?
— Futuro dos Dragões. — Ele bate uma mão no peito, quase explodindo
de tanto orgulho.
Isso dispara um gatilho na minha mente. Se parte do nome dele pertence a
Kaeldros, qual seria? Futuro ou… dragão?
— E Kaeldros? O que significa o nome dele?
Ele hesita por um segundo, como se fosse um segredo quase sagrado.
— Filho do Dragão.
Filho do dragão… Molgur também tinha um filho…
Faço questão de continuar por ali até ter certeza de que Areskaan ficará
bem. Não há muito mais a ser feito; conseguem fazê-lo beber um pouco de
caldo, tratam as feridas de bicada e aquecem seu corpo com cobertas. Depois de
algumas horas seu rosto retoma parte da cor rosada e já começam a falar sobre
transferi-lo da cantina para o dormitório nos andares mais baixos.
Com uma muda de roupas secas e bálsamos para a dor, fico bem. Algumas
horas se passam sem nenhum efeito colateral e já parece seguro dormir. Manon
vai procurar por uma muleta improvisada e fico apenas com Li na cantina
enquanto alguns marinheiros usam uma maca para levar Areskaan. Tudo parece
bem até um deles reparar na minha presença.
Seus olhos encontram os meus com surpresa, como se tivesse esquecido
que eu estava ali. Então, passam para algo mais sombrio, um daqueles olhares
cheios de rancor dos quais Kaeldros me alertou: os homens sem nome que
fariam coisas inomináveis comigo.
Ele questiona Kaeldros sobre meu castigo. Outras cabeças se erguem;
alguns querem me ver sangrar, outros buscam justiça. É como ele mesmo disse
mais cedo, ao menor sinal de fraqueza, este galeão pode virar um campo de
batalha.
Com esforço, me coloco de pé. Tudo dói, mas após algum descanso,
percebo que nada está quebrado. Talvez eu consiga aguentar um ou dois dias no
mastro. Ao contrário de Areskaan, não devo nenhum respeito a Kaeldros, e se
alguém me trouxer comida e água às escondidas, não recusarei. O maior
problema são as gaivotas.
E Manon. Preciso resolver isso enquanto ela ainda está na cozinha.
— Eu vou para...
— Mestre Kaeldros, quero assumir o castigo de Elena — Li me
interrompe.
Não sei o que me surpreende mais: o fato de ele querer ser pendurado no
mastro no meu lugar ou de ter me chamado pelo nome. Vejo a surpresa romper a
máscara de indiferença de Kaeldros, e o barulho ao redor aumenta. Alguns
discutem se Li pode ou não assumir o castigo, outros dizem que ele ainda é uma
criança, mas há quem afirme que, no mar, não existem crianças.
O tumulto atrai Manon, que sai da cozinha em disparada, seus cabelos
vermelhos ainda mais selvagens do que o normal. Para ela, nem Li, nem eu
devemos ir para o mastro — ela insiste que será ela.
No meio da confusão, encontro os olhos de Kaeldros. Ele massageia as
têmporas com os polegares, claramente exausto e frustrado. Entre os fios de seus
cabelos cor de cobre, noto alguns grisalhos. Estresse ou idade? Não consigo
segurar uma risadinha.
Ninguém percebe, todos estão ocupados gritando uns com os outros, mas
Kaeldros ouve. Ele me encara, sério a princípio, depois esboça um sorriso.
Rimos juntos, de forma quase imperceptível, enquanto o caos segue ao redor.
— Me mande para o mastro — murmuro para ele.
— Vai ficar bem? — Consigo ler seus lábios à distância.
Aceno, e ele faz o mesmo. Respira fundo, e vejo quando sua expressão
muda ligeiramente ao colocar a máscara de capitão de volta.
— Ninguém está acima das minhas regras no Fúria! — Sua voz ecoa,
silenciando todos ao redor. — Nem mesmo minha amada está acima do meu
comando. Ela será amarrada…
Protestos irrompem o silêncio, Li e Manon tentam argumentar, mas alguns
marujos já vêm na minha direção. Ofereço os pulsos sem resistência. A balbúrdia
de vozes retorna e, outra vez, são calados quando Kaeldros volta a falar:
— …na minha cama — ele completa com um sorriso sacana. Atravessa o
espaço entre nós, sutilmente dando um empurrão no marujo que já segurava
meus pulsos. — Ou vocês acham mesmo que eu iria partilhar com vocês a bela
visão dessa mulher rendida? — Ele fala alto e teatral, segura meu queixo para
exibir meu rosto para a tripulação.
É um sireno cretino e espertinho, resolve tudo com suas artimanhas. Dessa
vez não me oponho, entre ficar amarrada no mastro e ficar amarrada em sua
cama, a preferência é clara. Seguro a vontade de lhe provocar de volta, apenas
fomento seu espetáculo mostrando os dentes e rosnando.
Kaeldros abre um sorriso largo, esse não parece parte de uma atuação.
— Meus tesouros são apenas meus — diz, a promessa de seus olhos
escuros fazem meu coração pular uma batida. — Podem levá-la.
Ele permite que meus pulsos sejam amarrados e, dessa vez, quando sou
levada de volta para sua cabine, não estou mais tão preocupada. Mesmo
amarrada consigo dormir assim que sou deixada sozinha no quarto, o corpo
exausto não dá espaço para pensamentos turbulentos.
Acho que começo a entender Kaeldros e como seu galeão funciona. Vai
ficar tudo bem.
Os céus também pensam isso, pois na manhã seguinte faz sol quando
acordo.
CAPÍTULO 13
____
Acordo de um sonho com Kaeldros para encontrar o próprio me
observando. Apoiado preguiçosamente no batente da porta, uma sobrancelha
levantada e o canto dos lábios tremulando, como se segurasse uma risada. Por
um momento fico com receio de ter falado algo estranho enquanto dormia.
— Se importa? — Indico as amarras com um movimento sutil da cabeça.
— Para uma guerreira, você é péssima em seguir ordens — ele debocha, a
voz leve, sem a habitual acidez.
— Você não é meu capitão.
Ele se senta ao meu lado na cama. Está relaxado, sem a máscara impiedosa
de comandante do Fúria, parece mais com o sireno que me salvou da hipotermia.
— Sou mais do que isso, sou seu noivo — ele continua com o tom
divertido. Os nós se desatando tão rápido quanto foram feitos. — Cantaram uma
música muito bonita do seu povo durante minha despedida de solteiro, falava
sobre o amor como uma lâmina afiada capaz de rasgar o véu e desafiar o destino.
E que a esposa deve ser uma devota de seu marido.
É uma das minhas canções favoritas, sei que ele está a interpretando errado
apenas para me provocar. Espero até estar sentada e com o rosto na mesma altura
que o dele para respondê-lo de igual para igual.
— Você não é meu noivo de verdade. E mesmo que fosse, esse refrão fala
que sou sua devota, mas você deve me tratar como sua Deusa.
Por um momento, nos encaramos, sem pressa. A iluminação suave e
alaranjada do amanhecer atravessa as janelas e se projeta na lateral do rosto dele,
realçando as covinhas da bochecha e a cicatriz no queixo.
Após tantas explosões, esta é a primeira vez que tenho a oportunidade de
realmente observar seu rosto. Ele tem um arco do cupido bonito nos lábios, algo
raro na maioria dos homens. A curva longa é perfeita, como um arco bem
forjado. Uma piada sobre seus beijos serem flechas me passa pela cabeça, e se
ele fosse apenas um marinheiro de passagem por Ferroforja, eu provavelmente
ficaria meses obcecada por esses lábios, fazendo piadinhas sobre flechas do
cupido com Manon.
— Então me diga, como você quer ser adorada? — Sua voz interrompe
meus devaneios, e percebo que seus olhos, tão inchados e cansados quanto o mar
após uma tempestade, também estão focados na minha boca.
Sireno sedutor. Kaeldros sempre joga com as mesmas cartas: ameaçar
quem eu amo ou apelar para o meu desejo.
— Quanto tempo isso dura? — Empurro meu corpo para trás, buscando
uma distância segura.
Ele franze a testa, confuso.
— A canção do sireno.
— Canções não criam nada — ele explica calmamente. — Elas apenas
transformam pequenas fagulhas em incêndios, tanto para quem canta quanto
para quem escuta.
— Então você também...
— Para te manter assim, eu também tenho que estar assim — ele confessa.
— Já foram quatro canções e, se você não me provocar, talvez sejam as últimas.
Uma em meu banheiro, outra no convés quando atracaram em Ferroforja e
aquela quando lutei com Areskaan. Quando foi a quarta
— E se eu não colaborar?
— Então vou cantar até não sobrar nada no seu cérebro além de vontades
insuportáveis — Kaeldros provoca, agitando a mão num gesto para que eu me
aproxime. — Vem cá, deixa eu ver se você não quebrou nada.
Eu sei que não quebrei, mas não consigo resistir. Depois de dias infernais,
não mereço uma pequena recompensa por sobreviver? A lembrança dos dedos de
Kaeldros desfazendo todos os nós doloridos nas minhas costas na noite em que
invadiu minha casa volta com força. Eu queimaria um galeão inteiro por uma
boa massagem agora.
Cedo ao impulso e arrasto meu corpo cansado até ele, sentando de costas
para que possa checar minhas costelas.
— Não seria insuportável para você também? — pergunto.
Os dedos de Kaeldros tocam a base do meu pescoço, a pressão firme e
circular de seu polegar quase me faz suspirar. Ele desce devagar, seus toques
cuidadosos e meticulosos em cada músculo, como se soubesse exatamente onde
aplicar força.
— Estou acostumado a não ter o que quero — responde perto do meu
ouvido.
— Eu não estou — confesso, antes de me dar conta do que estou dizendo.
Quero dizer, num mundo em que tantas portas me são fechadas só por ser
mulher, por que eu mesma me negaria prazeres quase inofensivos?
Ele pressiona um dos músculos machucados na altura do cóccix, resultado
de uma das muitas quedas da noite passada, e, por reflexo, tento me afastar. Sua
outra mão segura firme na minha cintura, me mantendo no lugar. Ele aperta com
mais força e, ao mesmo tempo em que está checando se não há algo fora do
lugar, começa a massagear a área.
Gemo de dor e tenho a sensação de que ele gosta do som, porque pressiona
de novo. Dessa vez, sou eu quem gosta.
— E se eu colaborar, o que preciso fazer para isso passar? — pergunto,
meio sem ar.
— O que você faz quando quer continuar bebendo, mas sabe que o
próximo copo vai te derrubar?
Ele termina de inspecionar meus ossos e tira as mãos do meu corpo, me
deixando vazia. Me viro para encará-lo, buscando nos olhos dele algo que me dê
respostas.
— Eu já te disse — provoco, erguendo o queixo. — Não me privo de nada.
— Então você já tem sua resposta. Pode esperar o efeito passar... ou saciar
sua vontade. — Ele se inclina para trás, apoiando as mãos no colchão, deixando
o corpo num ângulo sedutor e convidativo. — Qual vai ser?
Ele é lindo de um jeito perigoso, o que só alimenta ainda mais minha
curiosidade. Foram anos de tranquilidade, me envolvendo com Sorens de rostos
diferentes, mas pensamentos iguais. Não estou reclamando; são amantes
competentes, silenciosos, que cumprem seu papel e me deixam satisfeita.
Confortáveis.
Mas Kaeldros me promete algo que não sinto há tempos, uma emoção que
acelera meu coração como se eu estivesse em um campo de batalha: o confronto,
a incerteza do próximo segundo. É excitante, mas ao mesmo tempo me assusta.
Desejo é só desejo. Não é amor.
Mergulho sobre Kaeldros, e ele não resiste; cai de costas no colchão
comigo por cima. Tomo seus lábios com uma urgência que mal consigo
controlar, desesperada por sentir sua língua explorar a minha. Ele solta uma
risadinha provocante, como se estivesse se divertindo com a minha pressa. Mas é
o sujo falando do mal lavado — consigo sentir o quanto ele está duro debaixo da
calça. Roço meu quadril contra ele, e sua risada se transforma em um gemido
baixo.
Eu poderia me viciar nesse som.
Ele gira nossos corpos com um movimento hábil, aquelas cordas que
foram usadas para prender meus pulsos aparecem de novo em suas mãos, ele
ergue meus braços até a cabeceira e volta a amarrá-los.
Isso parece uma ideia ruim, tem todo o potencial para dar errado. Mas me
deixo levar porque ele está cantarolando algo — ou, se for sincera, me deixo
levar por que parece divertido.
— Quão fundo vai aguentar… — Kaeldros murmura contra minha pele,
sua voz baixa e hipnótica me faz arrepiar.
Com um puxão firme, o decote do meu vestido se rasga, e meu cérebro, já
meio embriagado, acha isso de alguma forma engraçado. Quantas roupas ele
ainda pretende destruir? Não vou me opor se quiser acabar com o guarda-roupa
inteiro.
— ...quando na minha escuridão mergulhar... — Ele canta, enquanto suas
mãos deslizam até a parte baixa dos meus seios, apertando-os como se fossem
frutas maduras à espera de serem devoradas. — Prenda bem sua respiração para
não se afogar…
Eu obedeço, quase inconscientemente, segurando o ar como se fosse parte
de um jogo inevitável.
Os dedos de Kaeldros apertam meus mamilos com precisão, prendendo-os
entre o indicador e o dedo médio. A sensação é uma mistura de dor e prazer que
me faz soltar um gemido longo, involuntário.
— Porque com uma mulher como você, querida…
Ele continua brincando com meu mamilo, o olhar cravado no meu,
transbordando presunção e desejo. Maldito sireno mentiroso, cantarolando
promessas que parecem nunca se concretizar.
— …eu não vou conseguir me controlar.
— Então não se controle. — A frase só é firme na minha cabeça, sai quase
como uma súplica por meus lábios.
Dessa vez quando a canção acaba, minha mente não volta, continuo meio
entorpecida pelo desejo, o corpo inteiro em combustão por ele. Antes que eu
possa implorar por algo que não consigo sequer raciocinar direito o que é, ele
morde a parte alta do meu seio direito, acima da linha do decote. Afunda os
dentes com força, e eu gemo de dor. Ele suga a pele machucada, e o ar começa a
faltar enquanto eu quase deliro, ansiando que ele continue marcando cada
pedaço do meu corpo.
Não digo nada em voz alta, ou ao menos acho que não, mas ele obedece,
faz a mesma marca no outro seio, querendo manter uma simetria entre os dois.
Então, sobe para o meu pescoço, e deixa outra ali também. Vai me enchendo de
marcas arroxeadas enquanto eu gemo e esfrego as pernas, tentando, ainda
atordoada, conter o calor no meio delas.
Quando se dá por satisfeito com suas mordidas, ele volta até meus lábios e
me beija com delicadeza.
— Agora ninguém vai duvidar que você foi castigada essa noite. — Ele
sorri com malícia, os lábios avermelhados e inchados por seu esforço.
— Você vai parar? — cuspo com a respiração ofegante. A decepção na
minha voz é patética.
— Deixar você saciar suas vontades e perder o controle que seu desejo me
dá? Não, querida, talvez no final dessa jornada, se não nos matar até lá.
Um rosnado frustrado escapa do fundo dos meus pulmões, e Kaeldros me
silencia com outro beijo, mais urgente e impaciente do que o último. Seu corpo
pressiona contra o meu, e sinto seu membro rígido contra minha coxa, como se
ele quisesse me lembrar de que não sou a única consumida pelo desejo.
— Essa será uma longa viagem para o oeste — ele murmura, afastando o
rosto apenas o suficiente para segurar meu queixo entre os dedos. — Você não
mentiu sobre isso, não é? Molgur realmente disse que iria para o oeste?
Engulo em seco, tentando obrigar meu cérebro, ainda embriagado de
desejo, a funcionar. Mas é difícil raciocinar nessa posição, em que qualquer
mínimo movimento me faz tocar nele. Se eu disser a verdade, ele vai acreditar?
Ou vai me forçar a mentir de novo com algum ato louco como ameaçar uma vila
inteira? Quem sabe pendurar Manon no mastro até conseguir a resposta que
quer...
Não, eu não tenho um plano para isso agora.
— É verdade — respondo, hesitante.
Ele deposita um beijo rápido em minha testa.
— Vou pedir para Li vir te soltar daqui a pouco.
Conforme ele se afasta em direção à porta, me deixando amarrada à cama,
a familiar dor de cabeça, típica das ressacas causadas por suas canções, começa a
latejar atrás dos meus olhos.
— Se você já tem a informação, por que não me deixa ir embora? Por que
toda essa mentira complicada sobre o noivado?
Kaeldros se vira parcialmente, com aquele sorriso presunçoso que tanto
me irrita.
— Eu preciso de você. Primeiro porque foi a última a ver Molgur, talvez
você se lembre de mais alguma coisa, ou, talvez, esteja mentindo para mim. —
Os olhos dele se estreitam em descrédito, confirmando o que eu já imaginava:
podemos estar em termos mais amigáveis, mas nosso desejo não é sinônimo de
confiança. — Segundo porque sai da sua vila com as mãos abanando, você é o
tesouro que roubei de lá. — Ele faz uma pausa, sua mão desliza pelo portal de
madeira como se o barco fosse uma criatura viva. — Existem boas pessoas no
Fúria, mas aceito muitos desertores, ladrões e mercenários a bordo. A harmonia
aqui é um equilíbrio delicado, e agora você vai ter que aprender a equilibrar esse
jogo comigo em nosso teatro.
É fácil entrar em uma nova rotina agora que tenho alguma liberdade de
transitar pelo galeão, Kaeldros não gosta que eu desça nos níveis mais baixos
da embarcação, porém acredito estar mais relacionado à minha própria
segurança do que as informações que esconde de mim. Manon investiga pouco a
pouco cada cabine, não encontramos nada além de mais dúvidas entre tesouros
roubados e temperos para venda, a identidade do Fúria como um galeão de
comércio ou saqueadores do mar segue um mistério.
Li é um aprendiz rápido e desejo lhe perguntar de qual região de Caldera
veio, seus cabelos não são ruivos como os clãs do cinturão de trigo, sua pele não
é retinta como as famílias das regiões altas, seu sotaque é limpo, claro como o
meu.
— Você tem uma tendência ao egocentrismo, não tem, querida? —
Kaeldros me provoca durante um jantar quando, a sós, lhe pergunto sobre Li. —
Tenho certeza de que para alguns que não são da sua preciosa Cidade-Mãe, sua
língua carrega também um sotaque forte.
— Está dizendo que Li veio da Cidade-Mãe?
Ele dá de ombros, não me responde mais sobre isso.
Todos os dias começamos os treinos logo cedo. Gosto do céu limpo da
manhã, a forma como a água ganha um tom meio alaranjado na alvorada, os
marinheiros ainda não acordaram e, durante algumas horas, tudo o que escuto é
o som do aço das espadas, as ondas contra o casco e o chiado dos ventos contra
as velas.
Poderia perguntar ao meu pequeno aprendiz seu passado, mas uma
ferrugem toma um cantinho do meu coração de ferro e tenho receio de ouvir que
sou, de alguma forma, responsável por sua miséria.
Um visitante inesperado aparece na terceira manhã, eu sei que ele se
aproxima porque o convés inteiro vibra a cada passo de seus pés pesados. Dessa
vez, eu não me jogo no chão, porque conheço seu ataque. Consigo me virar a
tempo de bloquear a espada-porrete de Areskaan, mas não sou rápida o
suficiente para fazer isso em uma boa posição, com os pés meio desengonçados,
acabo sendo arrastada para trás alguns centímetros por sua força.
— Você está enferrujada — ele observa, seu olho bom, do lado direito,
varre minha postura.
— Se veio para uma revanche…
— Estamos acertados quanto a isso, menina — me interrompe. — Está me
dando dores físicas assistir essa sua movimentação de engrenagem de moinho.
Areskaan está bem, parece recuperado e forte. Ele dá alguns passos para
trás, desengajando nossas espadas. Checo a minha, um pequeno trinco na
lâmina. Pelos amor de nossos Deuses, quantas espadas ele vai quebrar?
— Um pouco de óleo e estou nova, não posso dizer o mesmo de você —
replico.
— Você fala demais.
Quando o próximo golpe vem, uso a mão esquerda para dar suporte a
ponta da lâmina, ajuda a distribuir o peso por igual. Minha palma arde e um
filete de sangue quente escorre pelo braço.
— Bom. Mas ainda não é assim. — Ele dá dois passos para trás e ergue a
espada novamente para outro ataque.
Assim como Li tem a mim, eu também ganho um tutor.
Manon fica ressentida por não poder se juntar a nós, de manhã precisa
ajudar na preparação do desjejum da tripulação. Para não se sentir excluída, tiro
uma hora, próximo ao almoço, para praticarmos no convés. Isso atrai a atenção
da tripulação, primeiro alguns marujos começaram a se juntar ao redor para
assistir enquanto comem seus biscoitos de marinheiro e charque, não demora
para entrarem no ringue e participarem também.
Em uma semana, a roda de luta durante o almoço se torna um
entretenimento popular antes de todos voltarem ao trabalho; não apenas para os
homens do Ferro, sirenos também se juntam para participar das rodadas e o
próprio Kaeldros gosta de sentar em cima de alguns caixotes para atuar como
árbitro.
— Até que para peixes, eles levam jeito com a espada — zombo quando
Areskaan se senta ao meu lado trazendo alguns biscoitos.
Seu preparo é composto unicamente de farinha, água e sal, alguns dias,
temperos são adicionados para deixar menos insosso. Manon me contou que não
há tantos mantimentos no porão, por isso o charque está sendo regulado. É
provável que em breve Kaeldros seja obrigado a atracar o Fúria para repor a
comida.
Dez dias de viagem — ou foram quinze? Perdi a conta — não devem ter
nos levado tão longe assim, ainda estamos nos territórios de meu irmão.
— Esses peixes são feitos de ferro. — Areskaan me tira de meus
pensamentos.
— Como assim?
— São todos mestiços, o único sireno de sangue puro no navio é Kaeldros.
Minha boca se abre em um perfeito “o”.
— Ele não prefere a companhia de seu povo?
Areskaan enche a boca de bolachas e ignora minha pergunta, suas botas
batem no chão ritmadas, um tique nervoso como se tivesse me dito algo que não
devia.
— Não prefere? — insisto, dando um chacoalhão em seu braço.
— Que opção ele tem? — rebate ranzinza, puxando o braço de volta com
brutalidade.
Não pergunto mais. Minha atenção recai em Kaeldros rindo, sua posição
soberana em cima das caixas. Eu sabia que havia algo diferente nele, sua beleza,
o poder de seu canto, tinha certeza de que não era como os outros e estava certa.
Os olhos dele encontram os meus, e com um gesto sutil me convida a subir
e me juntar a ele. Obedeço, mantendo a encenação, sentando em seu colo
enquanto seus braços envolvem minha cintura e seu queixo se encaixa
confortavelmente em meu pescoço. Seria uma mentira dizer que detesto isso. Na
verdade, gosto do seu cheiro e da proximidade de seus lábios.
Estou fascinada não apenas pelos contornos do nosso desejo físico, mas
começo a entrar em um território perigoso, cada vez mais intrigada com seus
mistérios. Um sireno criado por um dragão que adotou um garoto do Ferro.
— Por que nada em você faz sentido? — pergunto, me virando para
encará-lo. — Por que tudo tem que ser tão caótico e fora do comum?
Ele demora a responder, seus olhos me estudando, como se estivesse
tentando desvendar algo também.
— Porque você é ferro e eu sou água.
Então seus dedos envolvem meu queixo, puxando-me para um beijo
delicioso e exibicionista. Os marujos ao redor assobiam e riem, mas eu estou
concentrada demais fingido — ou, talvez, aproveitando — ser a noiva de
Kaledros.
Ainda é possível escutar o canto dos marujos na cantina quando subo para
o tombadilho, um rumo certo de volta para a cabine do capitão. É cedo, a lua
ainda está no topo do céu, mas os anos de bebedeira na taverna me ensinaram
que nada de bom acontece depois da meia-noite.
Meus passos estão desajeitados, cambaleantes, mas não posso culpar o mar
por isso. As águas estão tranquilas, serenas como uma superfície de vidro.
Nenhuma brisa sequer balança as velas. Paro por um momento, seguro a
amurada para não perder o equilíbrio e solto uma risada embriagada.
É então que um movimento sutil nas sombras chama minha atenção. Algo
mexe na minha visão periférica, oculto entre os botes no deck principal. Um
arrepio percorre minha espinha.
— Quem está aí? — Minha voz soa mais firme do que me sinto, meu
coração dispara, bombeando adrenalina em minhas veias. A sensação nublada da
bebida se dissipa num instante.
O silêncio responde. Aperto a empunhadura da espada lascada presa à
minha cintura, sinto o suor frio em minha palma.
— Revele-se, ou vou descer e acabar com você — ameaço, tentando
manter o controle da situação.
Desta vez, alguém surge das sombras. Um marinheiro. Não é alguém de
importância, um dos sem nome, chama Estripador de Peixe. Trabalha na cozinha
com Manon, um desertor de Ferroforja. Ele sorri, um sorriso malicioso, e seus
olhos deslizam sobre mim com uma clareza perturbadora.
— Boa noite, senhora, não queria assustá-la.
— Não assustou — respondo firme, tentando controlar o tremor sutil na
minha voz.
Ele dá um passo à frente, se afastando das sombras e se revelando sob a
luz do luar. Vejo o brilho metálico de uma peixeira pendendo de sua mão, e, por
reflexo, minha mão aperta ainda mais a espada em minha cintura. Não sinto
medo dele, mas uma sensação desconfortável cresce em meu estômago. Sei que
poderia derrotá-lo, mas o que me inquieta é a possibilidade de não estar sozinho
nessa emboscada.
Meus olhos varrem as sombras ao redor, procurando por outros vultos, mas
cada vez que olho para o lado, ele parece estar um passo mais perto.
— Precisa de ajuda para chegar ao seu quarto? — Sua voz está carregada
de malícia, o tom é mais uma ameaça do que uma oferta.
Ele avança, eu recuo.
Uma nuvem passa sobre a lua, mergulhando o tombadilho numa escuridão
momentânea, e eu aproveito a oportunidade para acelerar meus passos,
praticamente correndo até a porta do quarto. Assim que entro, tranco a fechadura
com um estalo alto, mas o alívio dura pouco.
Quando me viro, sinto uma presença. Meu coração pula no peito e, sem
pensar, saco a espada em um movimento rápido, girando o corpo e brandindo-a
no ar.
Uma silhueta se abaixa por um triz.
— Sou eu! — Kaeldros grita, surpreso, enquanto se esquiva do golpe.
Ofegante, demoro alguns segundos para processar que não estou mais em
perigo. A adrenalina ainda correndo em minhas veias torna difícil distinguir
realidade e imaginação.
— Você... — murmuro, ainda zonza. — Eu me assustei... não fique mais
de tocaia desse jeito.
Com as mãos trêmulas, deixo a espada cair no chão, o som metálico ecoa
pela cabine. Esfrego o rosto com as duas mãos, tentando afastar o resto da
confusão mental. Do lado de fora, o silêncio é absoluto, exceto pelo eco distante
dos marujos ainda cantando na cantina. Por um momento, a tensão queima em
minhas costas, como se o Estripador de Peixe ainda estivesse me observando.
Kaeldros se aproxima, seus olhos escuros me estudando.
— Aconteceu alguma coisa?
— Um dos sem nome estava à espreita no convés — respondo, passando a
mão pelos cabelos suados. — Mas está tudo sob controle.
Suas palpebras se estreitam.
— Qual deles?
— Já disse, está sob controle.
— Qual?
Solto um suspiro exasperado.
— Acho que era o Estripador de Peixe, mas não tenho certeza. Não
consigo decorar esses seus nomes por trabalho.
A tensão permanece no rosto dele por apenas mais um instante, antes de
desaparecer em um sorriso zombeteiro.
— Tenho algo para você — diz empolgado e me guia até a cama.
Entre os lençóis amassados e colchas que não tive paciência de arrumar
pela manhã, repousa uma velha amiga: Chama-Viva. Meu coração dá um salto,
minha adaga de prata negra, que eu perdi quando quase congelei na baía de
Ferroforja, está ali, deitada no travesseiro como se estivesse me esperando.
— Ia deixar e ir embora, mas você voltou cedo — ele acrescenta, quando
fico tempo demais parada sem saber como reagir. — É um presente.
— Pelo bom comportamento? — jogo de volta em tom zombeteiro.
Sento-me na beira da cama antes de pegá-la. Meus dedos deslizam sobre a
lâmina, inspecionando cada junção, à procura de qualquer sinal de desgaste ou
ferrugem, mas está impecável, bem cuidada.
Uma sensação familiar e reconfortante me preenche, como encontrar uma
peça de mim mesma que achei ter perdido para sempre. Não que eu morresse de
tristeza se nunca mais a visse, mas ter esse pequeno tesouro de volta me faz
sorrir de verdade.
— Se quiser ver assim... — Kaeldros dá de ombros, fingindo indiferença,
mas há um brilho nos seus olhos, está orgulhoso por me agradar. — Eu ia dizer
que estava mimando minha noiva.
— Como a recuperou?
Ele se senta ao meu lado, nossos ombros se encostando de leve.
— Ela nunca esteve perdida — explica. — Mandei um dos meus homens
mergulhar para buscá-la enquanto eu te levava desacordada. Parecia importante
para você.
A lembrança daquele dia no porto de Ferroforja é distante, não tenho
sequer certeza de quando aconteceu. Um mês? Dois? As estações passam
diferentes no mar, parei de contar. A rotina no Fúria se tornou familiar demais.
Uma brisa suave vem das janelas entreabertas, ondula as cortinas como um
fantasma vagando nos cantos do cômodo. Não sinto mais o cheiro do mar. O
odor dos carneiros-de-soay, que tanto associei ao meu lar, está sendo aos poucos
substituído pela salmoura.
Será que estou gostando mais disso tudo do que deveria? Disse a Manon
que colaborar era importante, e não há nada de errado em sentir desejo por um
rival, certo? Só que... talvez as coisas estejam se misturando perigosamente.
— Quero te pedir algo em troca. — A voz de Kaeldros me tira dos
devaneios.
— Hm?
Os dedos dele passeiam preguiçosamente pela colcha, esticando as dobras
com cuidado. É um gesto simples, mas tem algo nas mãos dele que chama minha
atenção, algo no jeito que ele movimenta os dedos, que faz minha pele formigar.
— Quero voltar a dormir no meu quarto — ele solicita casualmente, como
se estivesse pedindo uma xícara de chá.
— Hã?
— Tenho dormido na cabine do mapa, numa cadeira. — Ele dá um
destaque quase cômico à cadeira, repetindo mais uma vez para dar mais ênfase
ao seu sofrimento. — Não é exatamente confortável.
Eu o olho de canto, meus lábios tremendo para segurar a risada.
— Está sugerindo dividirmos a cama?
O sorriso de Kaeldros cresce, malicioso, enquanto ele se inclina
ligeiramente para mais perto.
— Não faça ofertas que você vai se arrepender. — Seu hálito quente bate
contra meu pescoço.
Deslizo Chama-Viva por entre as colchas para quando Kaeldros,
inevitavelmente, me jogar no colchão, não toque a lâmina por acidente e se
queime.
— Por que eu me arrependeria? — Viro o rosto para encará-lo, encontro-o
tão próximo que qualquer movimento em falso pode unir nossos lábios.
Seus olhos sombrios me capturam sem a necessidade de nenhuma canção,
quando sua mão vem até meu rosto, descendo uma carícia do queixo até os
dedos se fecharem em torno da garganta, prendo o ar — não resisto.
Um som manhoso me escapa, algo entre um lamento e um pedido.
— Porque não importa o quanto você chorar, — ele sussurra, mas seus
lábios não me tocam, seu corpo não roça no meu e a privação me deixa mais
perturbada do que se estivesse pressionando seu membro rígido contra mim. —
o quanto você implorar, o quanto você me ameaçar… — continua e eu estou
disposta a tudo isso para ter o que quero.
Ele aperta um pouco mais a minha garganta, arfo na expectativa do que
virá, na promessa sombria de me consumir na sua escuridão não importa o
quanto eu resista — e eu não vou, talvez um pouco, apenas para temperar nossa
diversão com alguma emoção.
— Não importa o que você fizer, — repete de novo — eu não vou deixar
você gozar.
Pisco diversas vezes para conseguir processar essa informação, é como
funciona a canção do sireno, se satisfazer meu desejo, não tem mais controle.
O sorriso nos lábios dele tem uma satisfação obscena em me ver
desconcertada.
— Isso é desumano, seu monstro! — Agarro um dos travesseiros e jogo
contra seu rosto. — Fique longe da minha cama!
Kaeldros liberta meu pescoço e cai na gargalhada. Mesmo com o corpo
quente de desejo, não consigo deixar de acompanhá-lo.
— Durmo no chão, querida. — Ele pega uma das colchas, bem como o
travesseiro, e me encara.
Nos encaramos por um longo momento, os dois com meios sorrisos. Fico
esperando se me dará um beijo de boa noite, nos beijamos muito durante o dia
pelo navio em demonstrações de afeto exibicionistas para sua tripulação, mas
quando estamos sozinhos, parecemos evitar. Não foi combinado, mas parece o
certo a se fazer. Se Kaeldros não tem pretensão de satisfazer meu desejo, então
os beijos seriam demonstrações de afeto.
No final, Kaeldros acaba improvisando um local para dormir ao lado da
cama sem dizer nada, e eu durmo na beira do colchão, o rosto virado na direção
dele. Sem a camisa e deitado oposto a mim, fico vendo as sardas em suas costas,
perdida entre conectar os pontos.
— Você já ia pedir para dormir aqui ou inventou isso porque contei sobre o
sem nome no deck? — sussurro, sem ter certeza se ele está dormindo ou
acordado.
— Faz diferença?
Não respondo. Não deveria fazer, ele precisa de mim viva para ajudar a
encontrar Molgur, eu não tenho porque dispensar uma proteção adicional. Isso é
tudo. Acabo pegando no sono pouco tempo depois, formando desenhos
imaginários em suas costas, mas tenho a impressão de que ele não prega o olho
por um instante sequer durante toda a noite.
Kaeldros está do lado de fora esperando por mim. É estranho, já que passei
bastante tempo lá dentro com Manon. Assim que saio da cabine, ele se aproxima
rapidamente, as palavras saltando de sua boca como se tivesse ensaiado o tempo
todo:
— Eu não quis ultrapassar o limite. Nem com a menina, nem com a sua
autoridade sobre a tripulação.
Eu estava pronta para iniciar uma briga, distorcer o mundo até que toda a
minha desgraça caísse sobre ele: se não tivesse roubado a espada, se não tivesse
me levado para o mar, se não tivesse um primeiro imediato, se sua personalidade
não transitasse entre a gentileza e rigidez. Queria encontrar qualquer motivo para
me convencer a ir embora. Mas seu pedido de desculpas me desarma, perco a
força nas pernas e preciso apoiar as costas na parede para não desabar.
— Eu não sabia o que estava acontecendo com ela. Rune também não me
contou. Se eu soubesse, jamais teria escondido algo assim de você, isso não foi
certo — Kaeldros continua. — Ela é sua família. — A palavra sai como se fosse
algo sagrado, uma justificativa para atitudes impensadas como usar vilas inteiras
de refém.
— Eu não quero perdê-la. — Soluço.
Culpa me consome pelas bordas como ferrugem. Como não percebi o que
estava acontecendo com Manon? Como fui tão cega? E se eu perdê-la para
sempre? Um desejo quase devastador de abraçar Kaeldros me invade.
Os passos pesados dos marujos no deck de cima fazem as tábuas
tremerem. Raios de sol atravessam as frestas do teto de madeira, criando feixes
onde a poeira flutua lentamente. Estão todos trabalhando, não seria certo abraçar
Kaeldros agora, porque não há ninguém aqui para presenciar nosso teatro.
Ele está imóvel, me dando tempo para processar tudo o que escutei. Seus
olhos gentis estão carregados de uma preocupação genuína, quase posso ouvi-los
dizer: vem, deixa que eu cuido de você, eu sei como é, entendo o que você está
sentindo.
É diferente de Soren que dizia saber o melhor para mim, Kaeldros deseja
compartilhar o fardo comigo.
Quando finalmente cedo e me aninho em seus braços, sinto como se o
mundo desaparecesse. Seu abraço é o lugar mais seguro em que já estive. Seu
peito na altura perfeita para a minha cabeça descansar, seus braços me
envolvendo com firmeza, como duas barreiras contra tudo o que está lá fora.
Quero ficar assim para sempre, enquanto ele deposita um beijo suave no topo da
minha cabeça e sussurra que tudo vai ficar bem — mesmo com tudo indicando
que não vai.
— Eu quero voltar para Ferroforja — sussurro contra seu peito, o rosto
afundado em suas roupas para que não veja meus olhos avermelhados segurando
as lágrimas.
— Eu juro que vou devolver vocês duas para lá. — Ele soa tão culpado
que chego a sentir pena. — Eu prometo pela minha alma e meu descanso eterno
no oceano que você vai voltar para sua amada vila, daqui um ano serei apenas
uma história que você contará na taverna junto com Manon.
— Não adianta, a Ferroforja para onde quero voltar não existe mais.
Afasto o rosto para encarar Kaeldros, sua boca se abre para dizer algo,
então se fecha quando os olhos dele encontram os meus, como se tivesse perdido
a coragem. Ele engole em seco, seu pomo de adão sobe e desce, então os lábios
se movem, mas sua garganta não emite nenhum som. Me perdoa, Elena, tenho a
impressão de que ele tenta dizer.
Devo estar louca e desesperada por carinho, Kaeldros jamais diria meu
nome.
Passos e o som de cordas arrastadas pelo corredor chamam nossa atenção,
viramos a cabeça juntos para ver alguns marinheiros descendo as escadas.
Suspiro aliviada, isso me dá uma desculpa para beijar Kaeldros com toda a
paixão indevida que meu coração começa a sentir por ele.
Os dias que se seguem são estranhos. Estou mais contida do que o normal.
Manon me evita — ou, talvez, eu esteja a evitando, não tenho certeza. Nenhuma
de nós parece pronta para retomar a conversa sobre o que faremos quando o
galeão aportar. Nossas interações são breves, focadas em atualizações sobre sua
saúde mental. Rune continua a ajudá-la durante a noite, estão testando soníferos
na enfermaria para que ela durma sem sonhos. Na maior parte dos dias,
funciona.
Pontadas de culpa vêm e vão ao longo do dia, ficam especialmente
dolorosas durante as madrugadas com Kaeldros no quarto. Ele continua tentando
dormir no chão, mas não consegue — nenhum de nós dois. Uma mistura
estranha de desejo e preocupação alimenta nossas insônias.
— Está acordada? — ele chama baixinho.
— Sempre — respondo num suspiro frustrado.
Viro na cama para encará-lo, está deitado todo exibido no chão. Mesmo
que a noite não esteja tão quente, o quarto parece insuportavelmente abafado, o
que o faz dormir quase pelado. Desço minha atenção de seus lábios para o
peitoral, a pele bronzeada é tentadora quando iluminada apenas pelo luar. Sigo
por esse caminho sem volta, chego no umbigo e, então, naquele caminho de
pelos que vai ainda mais para baixo.
Sua cintura, encoberta por um lençol e sombras, me deixa frustrada. O
calor melado entre minhas pernas me faz roçar no travesseiro que durmo
abraçada. Sei que Kaeldros percebe o movimento, porque uma sombra rígida
emerge no lençol, acompanhada de um som primitivo.
— Quer conversar? — Ele limpa a garganta, tenta fingir naturalidade.
Não, quero montar em você até o amanhecer.
— Pode ser. — Tento me ajeitar de forma que o toque das roupas não seja
insuportável, mas não encontro nenhuma posição. — Então, você acha que vou
conseguir ajuda para Manon? Como é o Povo da Visão?
— Estão quase sempre em guerra, a política lá é confusa, governa aquele
que consegue ver mais longe. Quando não está claro quem é, entram em guerras
que não de fato acontecem. Exércitos são enviados para não encontrarem nada,
porque alguém previu sua chegada.
Isso me lembra dos sonhos de Manon, ela disse que havia pessoas
esperando por ela em uma praia.
— Você acha que eles sabem que estamos indo?
— Tenho certeza que sim. — Kaeldros apoia as mãos atrás da cabeça, está
relaxado e confiante. — Tudo começa a fazer um pouco de sentido.
— O quê?
— Molgur, é coincidência demais ele estar indo para lá justo quando a
menina começa a ser afetada pelas visões. As duas coisas devem estar
conectadas.
Meu estômago dá um nó. Não, elas não estão conectadas, porque eu
inventei a história de Molgur. Não faço ideia de onde ele está. Talvez nunca mais
o vejamos. Penso em confessar, contar a verdade a Kaeldros. Mas o que ele faria
com essa informação? Eu mesma não sei mais se devo voltar para Ferrofroja ou
continuar para o oeste.
Prefiro deixar o tempo decidir por nós.
— É... provavelmente é isso — murmuro.
A culpa funciona como um balde de água gelada que apaga meu desejo por
completo, não durmo pelo resto da noite, pensando em possibilidades e decisões
que não queria tomar sozinha. Ao menos não estou queimando.
Areskaan percebe que algo está errado e tenta me ajudar da única maneira
que o Povo do Ferro conhece: com trabalho. Com a autorização de Kaeldros,
ganho uma função oficial no Fúria. Agora sou assistente de Areskaan, numa
função que ele batizou de Mestre de Armas. Não sei dizer se isso me ajuda ou
piora as coisas. Sentir que faço parte desse navio me deixa ainda mais confusa.
Pelo menos, pararam de me chamar de "senhora" e agora se referem a mim como
Mestre de Armas.
Aprendo sobre os canhões e seu funcionamento, como a artilharia é
transportada pelos decks inferiores durante uma batalha e as melhores estratégias
para proteger os pontos sensíveis do galeão. Por um tempo, isso me distrai.
— Mestre de Armas, o capitão está chamando por você na proa — um
sireno chamado Luchenin me avisa, surgindo de repente.
— Mestre de Armas... — repito, o título ainda soa estranho, embora seja
menos desconfortável do que ser chamada de "senhora".
— Não se preocupe, tenho certeza de que logo o Mestre Kaeldros te dará
um nome. — Li tenta me consolar, sentado ao meu lado na amurada e
observando o pôr do sol.
Hoje foi um dia exaustivo. Areskaan me fez escovar canhões enferrujados
por horas. Como sempre, Li tentou me ajudar, e agora aplico um bálsamo em
suas mãos para aliviar as dores e os pequenos cortes que a escova de aço causou.
— Só nos sonhos de Kaeldros que vou o deixar escolher um nome para
mim — comento com uma pontada de sarcasmo.
Areskaan, próximo de nós, resmunga algo sobre eu estar desrespeitando
meu "noivo" e que é uma honra receber um nome do Povo do Mar. As palavras
de Greta ecoam na minha mente: Você desrespeita seu futuro noivo, mas o
dragão virá e te dará uma lição. Não é que ela estava certa? Eu achava que ela
estava confusa, falando de Molgur, mas ela sempre soube do Filho do Dragão.
— Os significados são legais, mas não são práticos. Imagine ter que gritar
esses nomes complicados em meio ao calor de uma batalha — argumento, rindo.
— Aliás, o que significa Areskaan?
— Não é da sua conta. — Ele faz uma careta desgostosa.
Viro-me para Li em busca de resposta, e ele, sempre pronto, responde com
um sorriso:
— "Gigante Gentil".
Ah.
Olho para Areskaan pelo canto do olho, e ele está escondendo o rosto com
as mãos enormes, claramente envergonhado.
— Maldito Kaeldros — ele murmura, quase inaudível.
Um homem com esse tamanho, com um histórico tão brutal, conhecido por
esmagar crânios com sua espada-porrete, e Kaeldros lhe deu o nome de...
— "Gigante Gentil" — repito, tentando conter o riso. — É muito do feitio
de Kaeldros.
— É — Areskaan concorda, resignado. Antes que percebamos, estamos
rindo juntos, e Li nos observa, confuso, sem entender o motivo da nossa
diversão.
No horizonte uma gaivota plana contra o pôr do sol. É a primeira. Um
sinal de que amanhã finalmente chegaremos em terra firme.
Amanhã.
Uma brisa fria bate contra meu rosto, provocando um arrepio por todo o
meu corpo. Chegar à terra firme significa que não posso mais prolongar minhas
dúvidas. Amanhã preciso tomar uma decisão.
CAPÍTULO 16
____
No caminho até a proa, meus olhos caem sobre Manon e Rune. Ela está
com um sorriso empolgado, apesar do cansaço evidente. Seus cachos,
normalmente selvagens e cheios de vida, agora caem pesados, e suas bochechas
perderam um pouco do rosado vibrante de antes, mas, ainda assim, ela parece
genuinamente feliz ao lado dele.
Por um breve instante, nossos olhares se encontram, e o sorriso dela
desaparece. Não sei se pretendia dizer algo, mas adio nossa inevitável conversa
sobre o que faremos. Se manteve segredo, ninguém sabe ainda sobre o navio de
meu irmão e apenas nos sonhos loucos de Manon vou deixá-la para trás só
porque foi seduzida por um desertor. Vou jogá-la sobre os ombros e arrastá-la
comigo, mesmo que me odeie para sempre.
Desvio a atenção para a ilha de Pedralume no horizonte e apresso o passo
até Kaeldros.
— Pode se despedir dela, se quiser — ele sugere, pegando a sacola de juta
que carrega os poucos pertences que consegui reunir. — Temos tempo.
— Não quero — respondo seca.
Meu mau humor é respeitado por algum tempo, fico toda a descida do bote
e mais boa parte do caminho de cara emburrada e xingando Rune em minha
cabeça — como se ele fosse o problema entre Manon e eu.
É um dia bonito, daqueles que trazem uma combinação perfeita entre raios
de sol suaves e brisas refrescantes, o mar brilha com um azul radiante e
convidativo para um mergulho. A tempestade, entretanto, está na minha cabeça.
Quando estamos mais ou menos entre metade do percurso entre o galeão e
a praia, Kaeldros se cansa de assoviar no mesmo ritmo das ondas e pergunta:
— O que aconteceu entre você e seu projeto?
— Sei que estou sendo uma cretina. — A resposta escapa rápido demais,
como se estivesse esperando a deixa. — Não é de propósito, só... não estou
acostumada a ter outra pessoa opinando sobre nosso destino. Rune não parece
ser ruim, mas por muito tempo fomos só eu e Manon. Além disso, duvido que
ela consiga ser imparcial quando está tão envolvida assim.
"O sujo falando do mal lavado", penso, mas me conforto com a ideia de
que, pelo menos, tenho consciência disso.
— Está bem, talvez eu esteja com um pouco de ciúmes — continuo. —
Mas você não concorda que eles estão indo rápido demais? De repente, um
rapazola emocionado virou um grande especialista em visões e sabe mais do que
eu, que a conheço a anos e presenciei todo o avanço da visão?
O amor deixa todo mundo meio estúpido. Transforma uma perigosa
jornada por terras desconhecidas na "aventura de uma vida". Uma onda mais
forte atinge o bote, e um jato de água salgada respinga em mim. Fico observando
as pequenas bolhas se desfazerem na madeira. Pensar numa lua de mel
antecipada com Kaeldros na ilha faz meu estômago borbulhar da mesma forma.
Ele está, sem dúvida, me deixando meio estúpida também.
— Parece que ela precisa de você mais do que nunca. — Kaeldros
habilmente evita tomar partido entre seu primeiro imediato e eu. Um verdadeiro
sireno escorregadio.
— Espertinho. — Dou um leve empurrão em seu braço, e ele sorri, sem
interromper a remada. — Não estou abandonando Manon. Só não quero
conversar com ela até ter certeza do que é melhor para nós.
— E ela não deveria participar dessa decisão?
— É grande demais para alguém da idade dela — respondo de imediato.
— E para Rune também. São duas crianças querendo explorar o oeste, que você
mesmo disse ser perigoso.
Kaeldros arqueia uma sobrancelha, e não preciso que ele diga nada para
entender o que se passa em sua cabeça: "Você também não é tão velha assim."
Ele está certo, mas não quero que Manon seja influenciada como eu fui.
— Querida, o que você fez de tão imperdoável nessa idade para achar que
Manon não está pronta para tomar suas próprias decisões?
A pergunta me faz abrir e fechar a boca, sem encontrar uma boa resposta.
Ele acertou em cheio. Sou um mapa que Kaeldros está aprendendo a ler com
precisão.
— Nada que você não tenha feito pior — atiro meio sem pensar. —
Quantos corações pulsantes você já arrancou do peito?
Me arrependo no instante em que as palavras saem, não quero começar
uma discussão. Mas Kaeldros está estranhamente bem-humorado, apenas sorri.
— Ciúmes das moças que já conquistei, ou quer saber quantos matei? —
ele brinca, o brilho do mar refletindo nos olhos. — Eu conto se você contar
também.
Estamos nos aproximando da arrebentação, com a praia intocada logo à
frente. Kaeldros não mentiu ao dizer que estávamos indo para um lugar isolado.
A baía é cercada por uma densa floresta, suas árvores formando uma barreira
natural que parece proteger essa parte remota da ilha. O único vestígio de
presença humana é um velho farol no topo de um rochedo baixo, suas paredes
desgastadas pela maresia, resistindo ao tempo e ao abandono.
Kaeldros descansa os remos sobre os bancos do bote antes de saltar na
água, agora rasa, e começar a empurrá-lo até a areia. As ondas, em um ritmo
constante, parecem colaborar.
— Por que está tão empolgado? — pergunto, avaliando seu rosto que
exibe um sorriso travesso. — Qual é o seu plano?
— Gosto da ideia de termos um dia inteiro só para nós. — Ele dá de
ombros. — Acho que finalmente vou te entender melhor.
— Ah, então acha que vai me arrancar algum segredo à força?
Quando o fundo do bote raspa na areia, desço para ajudá-lo, a água morna
invade o interior das botas pelo topo. Ele solta uma risada gostosa com a minha
pergunta. Lanço um olhar feio que ele retribui de imediato.
— Você está ficando paranoica, querida.
— Será mesmo? Não sei se estou disposta a pagar para ver — respondo no
mesmo tom desconfiado que ele usou mais cedo comigo.
Nos olhamos por um longo momento, um silêncio confortável
preenchendo o espaço entre a água e nossos olhares, até que uma onda mais forte
atinge o rosto de Kaeldros, nos fazendo explodir em risadas. Acho que estamos
os dois meio estúpidos...
O farol me lembra o casarão da fazenda em Ferroforja. Não pelo formato
ou estrutura, não há nada de semelhante nisso, meu lar era espaçoso e
confortável, diferente desses cômodos claustrofóbicos, de teto baixo e escadarias
precárias, mas tem o mesmo cheiro. O odor meio abafado de uma casa próxima
ao mar e uma nota desagradável no fundo, algo que cheira mal, mas me traz uma
sensação de conforto. Fico procurando de onde vem, até perceber um animal se
movimentando pela janela.
— Um carneiro-de-soay!
Corro para fora. O balido desesperado dele tentando se soltar do meu
aperto é melodia para os meus ouvidos, o animal assustado dá coices no ar até
conseguir se libertar dos meus braços e correr de volta para a proteção das
escassas árvores próximas da praia. Levo as mãos até o nariz aspirando o cheiro
fedido do sebo, tão nostálgico.
Há mais dele; uma porção de bolinhas pretas felpudas estão espalhadas de
maneira esparsa, muitos deles pulando entre as pedras da entrada alagada de uma
caverna não muito distante.
— Eles continuam fedendo. — Kaeldros se aproxima.
— Eram os favoritos de Molgur — comento sorrindo.
Ele sorri de volta, como se tivéssemos um segredo só nosso.
— Nós moramos aqui na minha infância. — Kaeldros se posiciona atrás de
mim, seus braços me envolvem e os dedos pousam gentilmente em meu queixo
para guiar minha atenção. — Eu ficava no farol enquanto Molgur dormia
naquela caverna.
Observo a formação próxima, uma entrada imensa escavada no rochedo à
beira-mar, com um arco natural moldado pela água e pelo tempo. A maré invade
e recua, dá sensação de que a caverna respira como uma criatura viva.
— Mas foi pouco tempo — Kaeldros continua, seus dedos ainda
repousando em meu queixo e sua voz baixa em meu ouvido me arrepia. — Acho
que só até eu completar onze anos, quando uma embarcação do seu povo chegou
para reivindicar a ilha. Fomos embora para evitar o confronto.
Com um toque tão delicado, ele poderia falar sobre como reduzimos essa
ilha a brasas e eu continuaria excitada, sem entender uma palavra sequer. Dou
um passo para trás, roçando propositalmente minha bunda contra ele e tenho a
satisfação de sentir seus músculos se enrijecerem.
Até onde lembro, Pedralume é um dos últimos territórios de Caldera,
anexado ao mapa quando eu ainda era criança por um dos clãs costeiros — a
maioria deles extintos. Foram os primeiros que atacamos, meu irmão não
gostava da ideia de ter desvantagem no mar, preferiu começar pelos nossos
pontos fracos.
— Derrotados, poucos sobreviveram, servem agora ao meu irmão e são
mantidos na linha. — Acabo contando.
Kaeldros me liberta do abraço e já espero pelo sermão sobre violência,
mas desta vez apenas ergue os ombros, indiferente.
— Não posso dizer que lamento por isso.
Longe do Fúria, sem teatros e a máscara de capitão, sua expressão é menos
severa, até o tom de voz é mais relaxado.
— Pode me mostrar mais do farol?
Ele ergue as sobrancelhas, meio surpreso, então um sorriso bonito se
forma, com aquelas covinhas que gosto tanto. Acho que ficou feliz; em outras
condições, eu também ficaria em mostrar Ferroforja.
Subimos andar por andar, cinco ao todo. Kaeldros me guia com uma mão
firme em minha cintura, seus dedos às vezes deslizando por cima do tecido,
provocando cócegas suaves. Em cada cômodo apertado, ele faz uma pausa para
contar uma pequena história: um buraco na parede por onde Molgur sussurrava
histórias de ninar sobre reinos distantes; marcas no batente que registram sua
altura ao longo dos anos; os restos de uma velha estante de livros, onde ele
aprendeu cartografia; e, no chão, uma inscrição em letra infantil, com seu nome
e o da primeira garota por quem se apaixonou.
— Parece uma infância comum — comento, sem pensar.
— O que você esperava? — ele pergunta, a curiosidade evidente no olhar.
— Não sei… algo mais… — Balanço a cabeça. — Deixa para lá.
Como monstros são criados? A gente imagina que sirenos já nascem
adultos, prontos para arrancar corações e deixar corpos irreconhecíveis pelo
córrego. Minha língua coça para perguntar sobre isso, mas me contenho por
agora, não quero estragar o momento com uma conversa que vai virar uma
discussão.
O último andar do farol é uma sala circular, com as paredes de pedra ainda
mais desgastadas pela maresia do que o resto da estrutura. A antiga lente de
vidro, que um dia projetou luz para os navegantes, está quebrada e opaca,
coberta por poeira e teias de aranha. Feixes de luz do sol entram pelas janelas
sujas e partidas, iluminando o ambiente com uma suavidade cômoda.
Do teto, pende uma corda grossa e emaranhada, balançando ao sabor do
vento que entra pelas fendas nas paredes. A corda parece ter sido parte de algum
mecanismo outrora importante, mas agora é apenas uma lembrança do que o
farol já foi.
— Você se sentia sozinho? — Minha voz quebra o silêncio. Penso em
Manon e se estou a privando de algo com meu egoísmo.
Kaeldros não responde de imediato, esfrega o punho da camisa contra o
vidro de uma das janelas, limpando parte da grossa camada de poeira. Ele se
inclina para espiar pela pequena porção transparente que conseguiu criar, os
olhos fixos no mar distante, enquanto um sorriso sutil surge em seu rosto.
— Minha honestidade em troca da sua? — pergunta, ainda sem me
encarar, o tom levemente provocador.
A luz filtrada do sol envolve sua figura e, por um breve momento, vejo
algo de vulnerável nele e me pego desejando ler seus pensamentos.
— Temos um acordo.
Ele respira fundo e finalmente se vira.
— Me sinto mais sozinho hoje do que me sentia no passado.
— Por que você não está junto do seu povo?
— Minha tripulação é meu povo. — Ele me corrige. — Ou costumava ser.
Também tenho meus duelos com decisões que tomei no passado.
Me aproximo dele, existe algo malditamente íntimo na honestidade, é
despir alguém de forma irreversível — algo ainda mais hipnotizante em saber
que ele também lida com o fardo de uma decisão ruim. Tenho uma vontade
enorme de tirar tudo dele, uma curiosidade que ele cultivou por me revelar a
conta-gotas sobre si.
— Querida, não me olhe desse jeito. — Sua voz é rouca, carregada de
desejo contido. — Não brinque assim comigo.
— Olhando como?
— Como quem vai me devorar e cuspir os ossos depois — ele murmura,
os olhos semicerrados me acusando.
Seguro sua mão e levo seus dedos aos meus lábios, mordiscando as pontas
com delicadeza. Sinto um leve tremor percorrer meu corpo — talvez seja
ansiedade. Estamos sozinhos, nosso desejo escapou das cabines apertadas e
agora tem uma ilha inteira para se desenvolver.
— Então pare de me encarar como se você fosse me afogar — sussurro.
Os dedos em minha boca deslizam para meu pescoço, ele ameaça um
aperto e eu ofego. Usa isso para me guiar até um ponto exato no cômodo, sua
mão livre já segura meus pulsos naquele roteiro que conhecemos bem.
A corda pesada que pende do teto balança poucos centímetros acima da
minha cabeça.
— Eu posso confiar em você? — ele pergunta de repente, meus braços são
erguidos e a mão no meu pescoço é substituída por seus lábios deliciosos. —
Você está escondendo algo de mim, querida?
O vento silva ao atravessar as janelas quebradas, mais forte e furioso, faz a
corda bater contra minhas mãos antes de Kaeldros começar a envolver meus
pulsos com ela. Fico na ponta dos pés, toda esticada e pendurada. Eu não
entendo por quê, mas estar a sua mercê faz meu corpo todo formigar, como se ao
ser amarrada, meu destino estivesse selado e não houvesse nenhuma decisão ou
ação a ser tomada além de suportar as consequências.
— Você está sendo paranoico de novo.
— Com você mansa desse jeito, como não vou desconfiar?
Kaeldros solta um riso curto, sem humor, os dedos deslizando pelos botões
de pérola que ele abotoou com tanto cuidado mais cedo.
— Desejo me deixa assim. — Testo as amarras no pulso, apenas para
confirmar que não tenho como me soltar.
— Mentirosa. Já vi teu desejo várias vezes ao longo dos meses; se
esfregando em mim enquanto nos beijamos, dormindo quase nua ao meu lado,
não perdendo uma oportunidade sequer de me lembrar o quanto eu quero me
afogar entre as suas pernas — com um puxão firme, as pérolas estouram pelo
chão de madeira, quicando por todos os lados. — Você só fica assim quando
culpa te consome.
Engulo em seco, seu olhar inquisitivo me deixa sem resposta.
— Última chance — ele anuncia enquanto atira minhas botas para
qualquer lugar, junto com o eco das pérolas ainda quicando escadaria abaixo. —
O que você está escondendo de mim?
Abro a boca, mas Kaeldros transforma minha primeira resposta em um
gemido longo quando traça a língua lentamente pelo espaço entre meus seios.
— Pense um pouco antes de responder — ele sugere com traços de
diversão na voz.
Os dentes afundam e ele suga com crueldade minha pele, deixando uma
grande marca arroxeada no local que ele tanto gostou. Uma conhecida umidade
melada começa a queimar entre minhas pernas.
— Então, qual a sua resposta? Se for honesta, posso pensar em ser
piedoso. — Ele se ajoelha na minha frente, as mãos descem a barra da calça e
um constrangedor fio brilhante se estica entre minha intimidade e o tecido.
Kaeldros abre um sorriso largo enquanto seus olhos encontram os meus
cheios de desafio e deboche. Fervo e, dessa vez, não é só pelo desejo.
— Não estou escondendo nada — cuspo a resposta. — Faça o seu pior,
Demônio do Mar.
Ele não me dá tempo de me arrepender ou de sequer processar o que está
acontecendo. Sinto o tecido das calças se embolar nos calcanhares, seus lábios
afoitos me abocanham sem cerimônia. Suga meu clítoris com rudeza, raspa os
dentes de uma forma que faz meu baixo ventre se contrair violentamente. É tão
bom que acho que vou desmaiar de verdade, luto para afastá-lo, mas ele finca os
dedos nas minhas coxas e abre mais as minhas pernas. Sua língua me invade de
uma só vez, e meu interior se apertar com tanta força em torno dele, que chego a
gritar.
— Você tem exatamente o sabor que eu imaginava que teria — ele geme
contra a minha pele sensível.
— Você pensou muito sobre isso? — pergunto entre suspiros.
Fico arrependida no mesmo momento por interrompê-lo, Kaeldros
deposita uma lambida demorada antes de erguer o rosto para me responder.
— Toda noite, enquanto via você se roçar naquele travesseiro. — Ele abre
um sorriso largo e cruel, seu polegar se esfrega em minha entrada. — Eu vou
fazer você pagar tão caro por me levar até esse ponto, querida. Você poderia ter
sido paciente, no final eu te daria todo o prazer que você quer, mas você teve que
deixar nós dois desse jeito.
A ameaça me molha ainda mais e ele aproveita para deslizar seu polegar
melado em minha bunda, pressionando na entrada de trás. Assusto, mas, com
habilidade, ele estica o indicador e o dedo médio até meu clítoris, brinca com os
dois buracos ao mesmo tempo.
— Não vou me saciar com facilidade, vou querer você de todas as formas
possíveis. — A intensidade dos seus olhos sobre mim é desconcertante, está
avaliando cada reação minha quando pressiona um pouco mais o polegar. —
Gosta da ideia?
Minha respiração está entrecortada, a ideia é inebriante ao mesmo tempo
que um pouco assustadora. Sei de moças que fazem e gostam, mas nunca me
aventurei nisso. De repente, me sinto meio jovem e inexperiente de novo.
Confirmo com a cabeça.
— Ah, querida. — Ele solta um som rouco e sobe até meus lábios. — Eu
vou te mostrar formas de gozar que você nem imagina.
As mãos dele me abandonam enquanto sua boca toma a minha, escuto o
som da calça dele sendo aberta e meu coração dispara. Eu o desejo tanto que não
consigo raciocinar, quero responder suas provocações e entrar em seus jogos de
dominância, mas enquanto não o tiver pelo menos uma vez inteiro dentro de
mim, minha cabeça não vai conseguir se organizar.
Kaeldros engole meus gemidos quando esfrega a ponta de seu membro em
minha entrada. Estou tão desesperada que tento forçar as amarras para me soltar,
isso apenas me faz balançar no ar e perder o equilíbrio. Movo os quadris
buscando mais atrito, mas ele me permite sentir apenas a cabeça deslizando por
minha extensão molhada.
— Você quer? Então peça — ele ordena, seus olhos sombrios.
Maldito.
— Eu quero, Kaeldros — peço sem pudor. Não me importo mais.
Ele pressiona, passa pela entrada. De forma cruel, fica brincando,
colocando e tirando apenas a ponta. É gostoso, malditamente bom, ao mesmo
tempo que completamente insatisfatório.
— Implora. — Ele estala a demanda na língua, um prazer obsceno no
rosto.
— Por favor, Kaeldros, eu preciso tanto de você dentro de mim. —
Qualquer coisa, apenas faça parar de arder. — Em minha boca, pela frente, por
trás, de todas as formas que você quiser.
O som que deixa sua garganta não é algo que poderia ser emitido por um
homem, é a mistura de um timbre espectral ao mesmo tempo que animalesco.
Ele afunda o rosto entre meus seios e morde a pele marcada e ainda sensível.
Dou um grito dolorido enquanto ele mete a cabeça do membro repetidas vezes,
usando a própria mão em torno da circunferência para impedir de se afundar
demais, torturando a nós dois.
Ou melhor, torturando mais a mim, já que ele faz uma pausa com a cabeça
dentro e começa a se masturbar.
— Você quer tanto que está até chorando — ele sussurra.
Só então percebo as lágrimas escorrendo pelo canto do rosto. Estou
tremendo para ele, uma bagunça de prazer e frustração, não sei mais onde uma
coisa acaba e a outra termina, só sei que quero tanto Kaeldros que choro.
Ele lambe as lágrimas, então vai até minha boca, dando um beijo
demorado e lento. Ainda gemo contra seus lábios, tento a todo custo rebolar em
seu membro, mas ele se afasta. Escuto outra vez o barulho das calças, mas agora,
para o meu desespero, se fechando sem que nenhum de nós dois tenha se
satisfeito.
— Você é a tentação mais suculenta e perigosa que já cruzou o meu
caminho, e eu juro, querida, eu vou te destruir algum dia — ele profere entre
beijos gentis. — Até esse dia chegar, espero que isso sirva como lição para você
deixar de ser uma cretina prepotente que acha que pode me enganar.
Pisco várias vezes sem conseguir entender, só percebo que há algo
realmente errado quando ele começa a soltar meus pulsos amarrados.
— Eu… — Não sei o que dizer, ainda estou tentando entender o que está
acontecendo.
Kaeldros segura minha cintura, me ajuda a pousar no chão com cuidado, o
contato de seu corpo no meu me faz gemer, mas ele se mantém impassível.
Espera até ter certeza de que minhas pernas estão firmes.
— Eu sei sobre o navio do seu povo na ilha e você está forçando tudo isso
para minar o poder da canção e conseguir fugir. — A indiferença com que joga
meu plano na minha cara é o que mais me choca.
Meu corpo ainda arde de desejo, mas a mente está em pânico, buscando
uma resposta que não vem. O que posso argumentar? Que estava cogitando a
possibilidade de gostar tanto de transar com ele que não iria mais embora?
Kaeldros se abaixa com calma, puxando minha calça de volta para o lugar.
Ele afivela o cinto apenas o suficiente para que a peça não caia. Suas mãos
tentam ajeitar a túnica rasgada, os botões destruídos de forma irremediável.
— Agora termine de se aliviar sozinha. — Sua voz é fria, com um toque
de sarcasmo. — Estarei lá fora quando você acabar.
Ele deposita um beijo breve nos meus lábios antes de se afastar,
caminhando em direção às escadas que levam para fora do farol.
Fico ali, imóvel, o coração e a respiração disputando um colapso, o melado
entre minhas pernas escorrendo lentamente pela coxa. O pacífico som das ondas
quebrando na praia junto ao balido dos carneiros é interrompido quando dou o
grito mais alto e frustrado de toda a minha vida.
CAPÍTULO 17
____
Toco meu corpo com ódio, mas faço questão de tocar. A sombra de Kaeldros
ainda paira na escada, não foi embora como disse que iria. Está ali, escutando os
sons molhados e meus gemidos chamando por seu nome, uso todo o vasto
repertório de frases sacanas que acumulei pelos anos e sei que podem tirar a
sanidade de um homem, coisas como querer sentir seu sabor ou como me sinto
vazia sem ele.
Continuo com o espetáculo até escutá-lo chutar as barras de ferro da
escada com raiva, é tão alto que o som reverbera por todo o farol em um eco
misturado aos meus próprios sons. Ótimo, porque eu também estou furiosa. Não
demora para ele ir embora de verdade, e eu paro de me tocar. Não importa o
quanto meus dedos deslizem, isso não vai me levar ao ápice.
Fico sentada com a respiração irregular por um bom tempo odiando ter
sentimentos conflituosos por Kaeldros, tem tanta coisa se passando pela minha
cabeça que consigo ficar um bom tempo ali, reassistindo momentos aleatórios do
último mês para me convencer de que devo odiá-lo de uma vez por todas.
Uma gaivota pousa na janela quebrada. Intimidada pela minha presença,
fica congelada, seus olhos com um julgamento silencioso enquanto uma sardinha
meio viva se debate em seu bico. Deve ter construído seu ninho em algum lugar
aqui dentro e agora avalia se vale a pena abandonar sua casa ou enfrentar uma
maluca gritando.
Isso lembra meu estômago de que o sol está alto no céu, já deve ser hora
do almoço. Desço as escadas do farol, pelo caminho encontro a saco de juta com
as roupas que trouxe, aproveito para trocar a túnica destruída antes de sair. Fico
com calças, botas e a nova camisa, o vestido-casaco é deixado para trás, a ilha
tem o calor abafado e pegajoso que se cola à pele. O verão já chegou e não
percebi?
Kaeldros está sentado na beira do rochedo com um coco aberto nas mãos,
usa parte da casca como colher para raspar a polpa suculenta. Meus lábios
ressecados e estômago vazio anseiam por um pouco e fico feliz ao ver que há
uma segunda fruta aberta ao seu lado me esperando.
— Até pensei em assar alguma coisa, mas com toda a gritaria nenhum
carneiro ousou ficar por perto — ele provoca quando me sento ao lado dele.
— Culpe a você mesmo por isso.
Bebo de uma só vez a água do coco, percebendo o quanto estava com sede.
Parte do líquido escorre pelas laterais do lábio, mas não me importo, é
refrescante. Senti falta do sabor fresco da comida em terra firme. Ao meu lado,
Kaeldros me encara em silêncio com um sorriso fechado.
— Você não está bravo comigo? — pergunto.
— Por que estaria?
— Você estava certo, te seduzir e fugir são mesmo possibilidades para
mim. — Deixo propositalmente de lado a informação de que estar apaixonada e
querer ficar por vontade própria também é uma possibilidade.
Esculpo um pedaço da polpa com a colher improvisada, a suculência ajuda
a lidar com o sol quente do meio dia. O mar se estende brilhante à nossa frente,
refletindo todo o calor como um espelho. Gotas de suor se formam nas minhas
costas, ainda assim não acho ruim, a saudade de casa pode transformar as
situações mais desconfortáveis em nostálgicas.
— Nos damos bem e isso deixa nossa relação complicada, mas, por
essência, eu ainda sou seu captor e você continua minha prisioneira até o final
dessa jornada, quer queira ou não — ele explica. — Se você tivesse feito isso
dentro do Fúria, eu teria ficado irritado, porque geraria consequências, alguém
teria que ser punido. Agora, aqui, extravase todo o seu desejo de lutar comigo,
não me importo.
— Eu não te odeio tanto quanto você pensa — acabo confessando. — E se
quer saber, se alguém importante para mim desaparecesse, tomaria as mesmas
decisões que você tomou.
— Eu também não te odeio, às vezes até penso em te manter prisioneira
mesmo depois de encontrarmos Molgur — ele diz isso numa falsa casualidade,
espia minha reação pelo canto do olho.
Enfio um bocado de polpa para dentro com os olhos fixos no horizonte,
quase engasgo. Tudo está bagunçado demais, não tenho condições de incluir
mais essa possibilidade — tenho certeza de que ele mudará de ideia sobre seus
pensamentos por mim quando souber da mentira.
Se eu fujo e arrasto Manon comigo até Ferroforja, sou um monstro. Se
continuo enganando Kaeldros para irmos até o oeste, também sou um monstro.
O impulso de confessar a verdade lateja em mim. Mesmo sendo um caminho
doloroso, parece a única chance de redenção. Mas isso arruinaria essa tarde tão
tranquila, tão bonita.
Talvez amanhã.
Sou mesmo uma cretina egoísta.
— O que me leva a um assunto importante. — Kaeldros muda o tema da
conversa quando não respondo. — A parte mais difícil de ter você como
prisioneira é te manter viva.
— O que eu fiz dessa vez?
— Soube que a menina ruiva previu você se afogando.
— Ah, isso. — Esse drama é tão antigo que parece pertencer a outra vida.
— Você acha que essa previsão pode estar relacionada ao dia que quase morri
de hipotermia? Talvez você tenha mudado esse futuro.
Kaeldros arremessa a fruta que estava em sua mão com força. O coco
atinge a superfície da água e some nas profundezas enquanto ele balança a
cabeça negativamente.
— Não é assim que funciona. Quando um vidente tem uma visão e está
presente nela, isso não pode ser mudado. O vidente vai presenciar essa visão se
concretizar. Enquanto Manon não ver você se afogar, isso não estará resolvido
— ele explica, a expressão séria forma um vinco no meio das sobrancelhas. —
Mas Manon viu algo, mas não sabe seu contexto, nada impede que no minuto
seguinte algo aconteça e impeça sua morte.
Minha garganta aperta.
— Então, qual é a sua sugestão?
Ele me encara, um sorriso lento se formando.
— Eu vou te ensinar a nadar.
Desta vez, quando nenhuma palavra é dita entre Kaeldros e eu, sei que
ambos estamos processando o fim.
Sinto-me ainda mais amarrada a ele do que antes. Mas qual seria o futuro
para nós? Mesmo gostando do Fúria e me acostumando à sua rotina, quero
passar a vida no mar saltando de uma aventura para outra? Amo minha casa,
meus carneiros, minha vida pacata em uma pequena vila. Haveria um meio-
termo entre a terra e o mar?
Escolher entre seguir para o oeste com Manon ou permanecer sem rumo ao
lado de Kaeldros é uma decisão injusta. E, depois de tudo o que fiz, pedir a ele
que abandone sua busca e siga para o oeste, seria egoísmo puro.
Na verdade, estou sendo prepotente em minha certeza de que Kaeldros
quer minha companhia para além de uma noite. Serei para sempre a mulher que
por uma mentira pode ter destruído suas chances de encontrar o dragão que o
criou.
O gosto amargo e salgado do mar me enjoa enquanto remamos de volta ao
Fúria. As brumas espessas engolem a visão ao nosso redor, e só consigo perceber
o navio quando estamos quase colidindo com o casco. Kaeldros não diz nada.
Assim que pisamos no convés, parte em busca de Rune, e eu entendo que
também é minha hora de ir.
— Se divertiu em Pedralume?
Manon se vira, surpresa com a pergunta. A boca entreaberta demora alguns
segundos para responder:
— Foi... legal.
— Só legal? — insisto.
O deck principal ainda está bagunçado, caixotes e barris de madeira, sacos
de pano grosso e cestos ventilados com todo tipo de suprimento ocupam grande
parte da área livre, uma mistura de cheiros navega pelo ar desde peixe salgado
até especiarias. Os marinheiros vêm e vão pela escotilha, descendo tudo até o
paiol no porão.
Manon carrega nos braços um saco de couro desengonçado, pela beirada
aberta penso ver um punhado de figos secos.
As compras feitas no último dia foram colocadas rapidamente no Fúria
antes de zarpar do porto da Pedralume, sem dar tempo para organização, Rune
não quis arriscar alguma chance de serem pegos. Agora entendo seus olhares
culpados e a tentativa de Manon de falar comigo nos últimos dias, queria me
dizer que tomou sua decisão e contou para Rune sobre a visão do navio de meu
irmão, por isso Kaeldros já sabia tudo quando descemos na ilha.
— A taverna daqui produz Lágrimas, acredita? — ela começa meio sem
graça, faz uma pausa esperando se vou interrompê-la, quando não digo nada,
continua um pouco mais animada: — A taverneira me contou que aquele gosto
amargo nas minhas fermentações é porque eu uso o tipo errado de alga, o sabor
muda completamente com os ingredientes certos.
— Parece ótimo e quero provar, já posso imaginar a cara de Ivar quando
suas Lágrimas forem mais populares do que o Sangue de Shahar que ele produz.
Um sorriso travesso se forma nos lábios de Manon, ela respira fundo e
curva o tronco, tentando parecer maior e mais intimidadora.
— "Mulheres não pertencem à fermentação! Har! Har! Har! Tire essa
porcaria marinha da minha taverna! Har! Har! Har!" — debocha em um tom
grosso, uma imitação perfeita das reclamações de Ivar.
Caímos numa gargalhada tão intensa que preciso me apoiar no mastro. É
um alívio breve em meio à tanta insegurança. Alguns marujos nos lançam
olhares feios por estarmos brincando em horário de serviço e parte da diversão
dá lugar a um aperto no peito quando percebo que é isso, apenas uma
brincadeira, as Lágrimas produzidas por Manon nunca chegarão até Ferroforja.
As brumas começam a se desfazer no horizonte, os contornos das
montanhas de Pedralume ficam mais evidentes. Encaro Manon, ela está diferente
e não digo isso por seu rosto abatido pelas noites mal dormidas. Não sei explicar
se é o contorno das sobrancelhas ou a maneira como encara tudo com olhos
atentos, mas há algo ligeiramente fora do habitual.
— Desculpa pelos últimos dias, fui uma cretina com você... — digo de
uma vez. — Eu sinto falta de como as coisas eram antes... mas mesmo se
voltarmos para Ferroforja, não adianta mais. Nossa casa não é mais a mesma,
não é?
Ela deposita a sacola de couro no chão, um figo escapa e sai rolando pelo
piso.
— A casa pode estar lá, mas as duas mulheres que passarão pela porta não
são mais aquela Elena e aquela Manon — responde com um sorriso triste.
Ah, agora eu entendo. É a maturidade que mudou o rosto dela.
Trago Manon para um abraço, envolvo seu corpo que não é mais pequeno
como anos atrás, aspiro o cheiro de seus cabelos que não é mais igual ao meu,
porque já não compartilhamos mais todos os nossos pertences, mas ainda que
não sejamos mais aquela Manon e aquela Elena, nossos corações continuam
batendo no mesmo ritmo.
— Eu te segurei demais… — confesso em um sussurro.
— Você estava me protegendo e eu agradeço por isso. Só que... — ela
hesita um segundo, e então me afasta, continua com a determinação de quem
ensaiou algumas vezes um discurso. — ...eu não sou mais aquela menina, Elena.
Eu tenho meu próprio caminho para seguir agora.
Sou tomada por um orgulho que chega a doer o peito. Ela fala como uma
mulher determinada, não como uma garota insegura.
— E esse caminho te leva para o oeste, não é?
Manon assente.
— Eu consigo sentir, Elena, que o futuro também guarda algo para você
quando retornar para Ferroforja. — Ela escolhe com cuidado as palavras, não
quer me magoar, mas deixa claro que meu caminho não é com ela.
Um vento forte sopra, agitando as velas em repouso. O farfalhar do tecido
grosso chama minha atenção para o mastro principal. Manon embarcou em sua
própria aventura no momento em que pisou neste navio. Não há lugar para mim
no oeste. Agora, essa é a história dela.
Pelos Deuses, quando foi que ela deixou de me seguir para cima e para
baixo, brandindo uma vareta de madeira como se fosse uma espada?
Continuo observando os marinheiros se apressarem para prender a vela
antes que o vento a leve embora. Uma vontade súbita de chorar me invade, mas
seguro as lágrimas. O vento seco ajuda a disfarçar o ardor nos olhos.
Não era esse o desfecho que eu imaginava, mas depois do dia com
Kaeldros, percebo que me agarrei com força demais a certas ideias, temendo
perder minha casa, meus carneiros, minha espada… e minha irmãzinha.
Sinto como se o mar tivesse levado tudo de mim, mas se há algo que essa
viagem me ensinou, é que não adianta lutar contra as ondas. Só me resta esperar
para ver o que a maré trará.
— Você pode dar uma olhada no futuro para mim?
Manon fica surpresa, é a primeira vez que lhe peço para usar a visão.
Sempre fui contra pelos mais diversos motivos, mas se a amo, devo aceitar quem
ela é, mesmo que isso nos torne tão diferentes. Porque se um dragão e um sireno
podem ser pai e filho, Visão e Ferro também podem ser irmãs.
— Eu andei praticando, acho que estou começando a entender como
funciona — ela conta animada. — Vamos ver, vou tentar captar alguma coisa do
seu futuro.
Abro um sorriso para incentivá-la a continuar, observo quando fecha os
olhos e sua coluna se endireita, como se um calafrio breve subisse a espinha. Ela
busca por minhas mãos, entrelaçamos nossos dedos e ficamos em silêncio por
alguns minutos. Quando ela, por fim, abre os olhos, estou ansiosa para saber o
que viu.
— E então? Posso contar com uma visita sua no futuro, depois que tiver
conquistado o oeste? — brinco, mas ela não sorri.
— Não consegui ir tão longe, algo me bloqueou antes.
Os dedos dela estão tremendo nas minhas mãos.
— O que você viu?
— O navio do seu irmão, ele vai nos achar e alcançar o Fúria.
Uma tontura súbita faz o mundo ao meu redor girar. Procuro
desesperadamente por qualquer sinal de uma embarcação próxima, como se a
visão já estivesse se tornando realidade. Mas não enxergo nada além das brumas.
Perto de nós, um sem nome finge descansar os braços ao largar um enorme
saco de farinha no chão, mas suas orelhas estão voltadas para nossa direção,
atentas. Um mau pressentimento se instala.
— O que exatamente você viu? — Puxo Manon para um canto, indo em
direção à amurada na broa para que não sejamos ouvidas. — Eles estavam
atacando?
— Não sei. Apenas vi o navio se aproximando e... — Ela olha ao redor. —
As montanhas de Pedralume ao fundo!
— Ótimo, teremos a vantagem, então.
— Um contra-ataque?
— Exatamente!
Kaeldros me disse que as visões não podem ser mudadas; o Fúria será
alcançado. Mas com essa informação, podemos nos preparar para um contra-
ataque surpresa. Preciso falar com Areskaan, começar a planejar estratégias,
posicionar os canhões, preparar a artilharia e...
— Elena, veja, trouxe flores novas para você. Não se parecem com aquelas
da sua vila? — Li surge como um gato no meio de nós com um buquê de flores
murchas.
As flores amareladas se parecem com os galantos de Ferroforja, mas
demoro a notar isso. Estou ocupada demais com estratégias e batalhas. Aceito o
buquê com um sorriso forçado e me pego observando Li, tão jovem, oferecendo
flores com um entusiasmo ingênuo. Seu sorriso de dentes espaçados traz à tona a
imagem dele em sua primeira batalha de vida ou morte, e isso me deixa
nauseada.
Minha atenção se desvia para os marujos no convés, peixes de Ferro que se
tornaram parte da minha rotina no Fúria. Eles riem e trabalham, confiantes em
suas habilidades, mas a realidade é dura: quantos deles realmente sobreviveriam
se enfrentássemos um ataque?
A ideia de lutar de repente me parece vazia, uma bravata inútil. Morrer
com honra era um pensamento aceitável para mim, mas e para Li, que mal
conheceu o mundo? E para os outros, que têm tanto a perder? Degolar, transar e
beber já não parecem respostas para tudo. Não é só o sangue dos outros que
estará em jogo; é o pouco que resta em mim.
A epifania surge sem aviso, como um sussurro no meio da confusão: e se
houver outra forma? Uma forma que não precise de violência e sacrifício para
ser eficaz? Pela primeira vez, vejo a situação com outros olhos, quase como se
estivesse enxergando pelos olhos de um sireno, buscando uma solução que flua
como a água em vez de quebrar como a espada.
— Kaeldros é bom com planos. Vou falar com ele. Mas se quiser se
adiantar, avise Rune e Areskaan. Mesmo se Kaeldros pensar em algo, é melhor
estarmos com as armas prontas para um plano alternativo — digo para Manon,
então me ajoelho diante de Li, pegando uma das flores.
— Cheguei em um momento ruim? — ele pergunta.
— Não, chegou no momento certo para me lembrar que há mais de uma
forma de resolver as coisas.
— Eu achei que nesse ponto da vida, eu estaria preparada para lidar com
qualquer coisa, já teria passado por situações ruins o suficiente para nada
realmente me abalar ou surpreender, sabe? — confessei, com a mão já na borda
do bote. — Aprendi a sempre ter uma espada comigo, não vejo problema em
mentir se for para evitar uma briga, tenho uma rotina consistente que me
mantém ocupada. Mas agora aqui estou eu, despreparada mais uma vez, me
sentindo insegura.
— Maturidade não é sobre estar pronto para tudo, é sobre estar disposto a
lidar com tudo. — Kaeldros colocou a mão por cima da minha, seu aperto era
reconfortante. — Por quanto tempo você fugiu dessa conversa com seu irmão?
Assenti, fitando as ondas escuras.
— Por tempo demais.
CAPÍTULO 21
____
Ao entrar na sala de jantar, sou recebida por um cenário de ostentação. A mesa
está repleta de frutas exóticas, carnes ricamente temperadas e taças de vinho
refinado, refletindo a luz suave dos candelabros dourados. O ambiente exala
poder e conquista. Houve um tempo em que eu teria ficado impressionada, mas,
agora, só sinto um desconforto sutil, como se não pertencesse mais a esse lugar.
Meu irmão já está à mesa, com uma taça de vinho na mão e um olhar que
mistura astúcia e uma frieza familiar. Sua atenção vaga pelo meu uniforme
antigo, e um lampejo de nostalgia parece atravessar seus traços.
— Posso? — pergunto, indicando o vinho.
— Mas é claro. — Ele faz um gesto exagerado, como se me concedesse
um grande favor.
Sirvo-me de uma taça e tomo um gole, tentando afrouxar a tensão nos
ombros. O silêncio entre nós é denso, ele é um desconhecido com a aparência de
alguém que amei e, pela forma como seus olhos tem uma sombra de mágoa,
acho que pensa o mesmo de mim.
— Então, se livrou do dragão? — ele pergunta, a atenção repousando em
Espírito do Norte na minha cintura.
— Não. — Coloco a taça sobre a mesa e escolho um assento a três
cadeiras de distância dele. O banquete é grande o suficiente para trinta pessoas,
mas parece que somos os únicos convidados. — Decidi passar um tempo com a
espada, só isso.
— Ah, entendo. — Ele se inclina para trás, girando o vinho na taça. —
Confesso que tinha uma pequena esperança de que a vida campestre tivesse se
tornado entediante, e que você finalmente voltaria para o que é seu por direito.
Dou uma risada breve, sem humor.
— Meu?
— Seu — ele repete, sem se abalar. — Pai ficaria envergonhado ao saber
que você usa Espírito do Norte para escapar das suas responsabilidades, em vez
de governar nossos territórios ao meu lado.
Evocar a memória de nosso pai é um golpe baixo.
— Não tão envergonhado quanto ficaria com suas trapaças — cuspo de
volta.
Seu rosto se fecha como se eu tivesse acabado de lhe dar um tapa. Um
silêncio amargo paira entre nós, cada segundo que passa sem que alguém fale vai
tornando a verdade mais clara: talvez nunca possamos nos entender novamente.
Não somos mais aquelas crianças que corriam pelo bosque caçando coelhos e
inventando aventuras. Agora, somos adultos moldados por mágoas, escolhas
malfeitas e caminhos que se afastaram mais do que eu gostaria de admitir.
— E Leanan, como está? — Mudo de assunto, agarrando-me ao desejo
persistente de ter meu irmão por perto, de sentir que ainda resta algo de familiar
entre nós.
O candelabro no teto balança suavemente, acompanhando o ritmo das
ondas. A comida que parecia tão apetitosa quando entrei, agora tem um aspecto
borrachudo. Bane também não toca em nada, apenas serve mais vinho em sua
taça, como se precisasse do líquido para engolir as palavras que vêm a seguir.
— Está bem. Recuperando-se do parto. Tivemos nosso terceiro filho — ele
diz com uma voz que mistura orgulho e cansaço. — Um garoto forte e saudável.
— Três filhos já? — Não consigo esconder minha surpresa, e vejo o brilho
de irritação em seus olhos.
— Pelos Deuses, Elena. Sabemos que você não se importa com minha
esposa ou meus filhos. Vamos ao que interessa.
— Talvez eu me importasse se você tivesse respondido alguma das minhas
cartas — bato de volta, cansada de suas humilhações.
— Você me abandonou. Me traiu. Por que eu responderia mensagens
cheias de culpa?
Ele estreita os olhos, a forma como me encara cheio de acusação me deixa
furiosa. Ele não tem o direito de me odiar depois de tudo que quebrou dentro de
mim.
— Você virou as costas para mim primeiro! Fingiu não ver o quanto tudo
aquilo estava me despedaçando! — Perco o controle, bato os dois punhos com
força na mesa, os pratos tremem junto do estardalhaço de uma bandeja de prata
caindo no chão.
— Claro, claro. Vamos fingir que tudo isso é culpa mútua. — Bane faz um
gesto dramático com a mão. — Eu realmente acreditei que você sempre seria
minha retaguarda, você me largou sozinho com os lobos! Você acha que o que
você fez foi horrível? Você não imagina o que eu tenho que fazer todos os dias
para sobreviver depois que você foi embora!
— Imagino, sim! Você começou a fazer o serviço sujo que antes me
mandava fazer!
Desta vez, Bane não responde. Fica ali, imóvel, a expressão dura. O único
som no cômodo é da minha respiração ofegante.
— Você sabia que eu estava quebrando — continuo, agora um pouco mais
baixo, a voz vacilando com tantas emoções. — Me viu chorar e despedaçar em
mais de uma ocasião, ainda assim, no dia seguinte, me mandava de novo para
massacrar mais um pobre infeliz em seu nome. Confiei em você, Bane. Você é
meu irmão mais velho e deveria ter cuidado de mim!
— Eu cuido! — ele rebate de imediato. — É por isso que estou aqui!
— Você confunde cuidado com posse!
Pela segunda vez, Bane parece ter levado um tapa no rosto. Por um
instante, sua boca se entreabre, como se estivesse prestes a dizer algo, mas, no
último instante, ele se cala, mastiga as palavras. Uma parte de mim espera por
um pedido de desculpas, alguma confissão de arrependimento, mas não sei se ele
se acha culpado.
— Foi um erro ter vindo. — Qualquer esperança minha vai pelos ares. —
Eu deveria ter deixado o mar te levar embora.
A frase soa como uma sentença, o ponto final de uma discussão que não
vai nos levar a lugar nenhum, não importa o quanto batemos nossas cabeças
tentando fazer o outro entender. Bane coloca uma pedra em nosso passado, foi o
que foi, não há mais nada a ser dito.
— Talvez tenha razão — solto um suspiro exausto.
A chama das velas espalhadas sobre a mesa oscila com uma brisa vinda de
uma das janelas abertas, a cera se acumula nas beiradas dos castiçais, um
lembrete que já gastei tempo demais aqui.
O apego ao passado e a rotina me impediram de romper um laço que se
deteriorou, tenho carregado por tempo demais algo que só me faz mal porque um
dia me fez bem.
— Então, se não podemos voltar, podemos pelo menos acertar as contas —
continuo, o tom mais firme. — Deixe o mar me levar.
A incredulidade cruza seu rosto, e ele balança a cabeça devagar, como se
estivesse tentando entender o que acabei de dizer.
— O quê…?
— Deixe a droga do mar me levar, aí será tudo seu, não mais nosso.
— Elena... — Ele hesita, um riso seco esperando para ver se é uma piada.
Não é. — Não estou conseguindo acompanhar. Você não está sugerindo que...
— Que se você não se livrar de mim agora, eu vou atacar esse lugar com
meu navio de desertores — corto, segurando seu olhar. — E aí veremos quantos
dos seus homens ainda tem lealdade a mim. Pela comoção hoje cedo,eu
arriscaria que ao menos metade.
Suas íris escurecem e, por trás de toda aquela fachada, vejo um lampejo de
algo que parece medo.
— Você está pedindo que eu te mate?
— Sim.
— Por quê?
— Porque eu quero recomeçar.
Passamos a vida nos preparando, convencidos de que temos controle sobre
o que virá. No plano original, eu deveria ameaçar Bane até ele me acusar de
traição; a execução mais comum para aqueles que se envolvem com o Povo do
Mar é o afogamento. Pela manhã, o Fúria viria para me resgatar. Manon chegaria
a tempo de assistir minha morte e veria meu corpo afundar, exatamente como as
previsões da Visão a avisaram. Enquanto isso, Kaeldros mandaria para
Pedralume os marinheiros de confiança e deixaria apenas os sem-nome no navio
para confrontar meu irmão.
Eu costumava ser implacável, rígida como ferro, seguindo ordens sem
hesitar. Mas essa viagem mudou algo dentro de mim. Agora, sinto-me um pouco
mais como água, fluida e imprevisível.
— Você poderia tentar alistar os sem-nome, têm bom conhecimento
marítimo... talvez sejam úteis — digo a Bane, após explicar o plano.
Ele responde automaticamente, o olhar perdido em algum ponto atrás de
mim:
— Já tenho gente demais tentando me matar. Prefiro eliminar todos eles de
uma vez.
— Então, você aceita?
— Antes me diga por quê, o que faz você virar as costas para sua honra e
seu sangue.
Penso um pouco no assunto, talvez não exista um momento exato em que
aconteceu, é mais como uma junção de pequenas expectativas quebradas.
Quando Kaeldros não me prendeu no mastro mesmo indo contra suas ordens,
quando não me odiou por ter mentido sobre Molgur, quando me aceitou mesmo
eu tendo feito algo que lhe deixará uma ferida para sempre, a forma como
sempre falou comigo calmo e pausado toda vez que eu estava cega de raiva.
Kaeldros não é perfeito, ele também mata, também sente dor e solidão,
mas seus pequenos gestos de gentileza me mudaram mais do que anos de
batalha. Talvez a mudança não esteja na ponta de uma espada, mas num galanto
colhido no final do inverno e entregue a uma guerreira perdida.
— Eu entendi que também odeio guerras.
Minha resposta o atinge como um soco, seus olhos vão até mim, mas sei
que não está me vendo de verdade, enxerga nosso passado. A expressão de Bane
fica dura, o maxilar forte trava e a boca se comprime, segurando frases que
nunca saberei se são de ódio ou entendimento.
Ele apenas confirma com um gesto de cabeça.
— Obrigada por isso — digo, com a voz baixa, quase hesitante.
— Não estou fazendo isso por você — ele responde, o tom ríspido. —
Estou sendo prático. Prefiro que seu nome seja enterrado de uma vez do que ter
que lidar com você no campo de batalha. Seria uma grande dor de cabeça. — Ele
bebe mais um gole de vinho, a segunda garrafa já na metade, suas bochechas
bastante coradas pelo álcool.
Por um momento, a máscara de indiferença quase se quebra, vejo uma
expressão triste, solitária. Mas ele logo volta ao normal enquanto se levanta da
cadeira, ainda segurando a taça.
— Quer comer alguma coisa antes de te prenderem? — pergunta, como se
estivesse oferecendo algo trivial.
— Não acho que conseguiria engolir algo hoje.
— Coma mesmo assim — ele insiste autoritário. — Vai precisar de energia
para amanhã.
Bane começa a se afastar, a taça ainda na mão, e joga as últimas palavras
por cima do ombro com o pé já para fora da cabine:
— Você tem alguns minutos antes de eu voltar com os guardas.
Até tento beliscar alguns pedaços de porco assado, mas o molho tem um
sabor agridoce na boca, como o fim de um ciclo. O que deveria ser um banquete
em minha homenagem, uma celebração do meu retorno, se transformou em uma
despedida forçada. Os assentos à mesa, que deveriam estar ocupados por antigos
colegas brindando à minha saúde, permaneceram vazios e silenciosos quando os
guardas entraram para me levar.
Trancada numa cela improvisada no porão, deito sobre um saco de grãos,
sinto o cheiro mofado do lugar e o ar abafado pesando em meus pulmões. O
sono não vem. As horas se arrastam, e eu me deixo levar pelas memórias: os
momentos de glória usando este uniforme de couro, os amigos que fiz, as
decisões e as comemorações que compartilhamos como uma família. Até mesmo
os tempos em que Bane e eu tínhamos os mesmos ideais — quando eu
acreditava nas promessas que fazíamos ao clã e um ao outro.
Agora, tudo parece tão distante, como se essas lembranças pertencessem a
outra vida, uma que está para acabar.
Bane nunca chorava, nem quando éramos crianças. Mas, aos vinte e um
anos, eu o vi chorar pela primeira vez. As lágrimas escorriam pelo queixo largo,
manchando a camisa suja de cinzas da pira funerária.
Eu não estava presente quando nosso pai morreu, mas Bane estava lá, na
batalha que levou metade dos guerreiros do clã. Era a sua primeira luta. Quando
partiram de Rubinorte, todos estavam entusiasmados com a estreia dele, diziam
que seria o amuleto da sorte. Uma semana depois, Bane voltou com os
sobreviventes, trazendo os corpos que conseguiu encontrar para os ritos de
partida.
— Eu odeio a guerra, Elena — confessou certa noite. — Você acha que há
uma forma de acabar com isso?
— Ele morreu como sempre quis: em batalha, com honra. E você esteve ao
lado dele. Tenho certeza de que isso foi importante para o pai. Agora, ele está do
outro lado do véu, orgulhoso de nós — tentei confortá-lo.
Bane balançou a cabeça.
— Esse pensamento é o problema de Caldera. A dor nunca vai cessar
enquanto todos acharem que há beleza na morte. — Ele me encarou, uma
determinação feroz queimando nos olhos. — Eu vou mudar isso, nem que
precise destruir tudo e reconstruir Caldera do zero.
— Então faremos isso juntos — disse, apertando a mão dele, mesmo sem
concordar completamente.
— Eu sei que você não vê o mundo como eu vejo, mas um dia verá. — Ele
me puxou para um abraço. — Obrigado por confiar em mim.
Hoje eu vejo, Bane. E é justamente por isso que não posso mais te seguir.
O pescador joga uma rede pesada cheia de águas-vivas sobre o cais, e a dona
da taverna, uma senhora quase tão velha quanto Greta, faz uma careta de
desgosto.
— Ainda nenhum peixe?
— Não, o mar está cheio dessa praga desde que Thalassor levou a Donzela
do Ferro.
Minha bochecha e pescoço esquentam, contenho um grunhido e ajeito
melhor o capuz no rosto. O cais de Pedralume sempre fica agitado durante o pôr
do sol, pescadores voltando após um longo dia de trabalho, homens e mulheres
debatendo pelas ruas se o calor do verão é tolerável o bastante para voltarem
para suas casas ou se devem passar a noite fora em farra. O rangido das cordas
se mistura ao bater das ondas contra os pilares do cais e o burburinho das
conversas.
Viro o resto do caneco de cerveja de uma vez, o amargor preenche minha
boca junto da sensação suave de entorpecimento. Eu adoraria ficar, me divertir e
refrescar, mas desde que Kaeldros e eu entramos na fase de lua de mel, não
andamos tão empolgados em passar as noites fora.
Deixo algumas pepitas de scheelita sobre a mesinha no cais para pagar a
taberneira e aproveito que ainda está discutindo com o peixeiro para escapar sem
ser notada. Conforme caminho pelo píer, observo o mar. As águas estão cheias
de águas-vivas, flutuando em multidão. A luz do pôr do sol se refrata nas suas
formas translúcidas, transformando a superfície em um espelho ondulante de
cores e movimentos suaves.
Kaeldros e suas extravagâncias... Ele jura que não tem nada a ver com o
aumento repentino das águas-vivas, mas estou certa de que fez alguma artimanha
só para espalhar o boato de que é a reencarnação de Thalassor. Meu querido
Demônio do Mar narcisista.
Paro a breve caminhada quando chego na caravela atracada no porto. O
pequeno navio, recém-adquirido com a scheelita que pegamos na caverna da
ilha, está quase pronto para zarpar. Seus mastros são consideravelmente menores
do que os do Fúria, mas ainda assim robustos, será perfeito para guiar Manon até
o oeste.
Ela está diante do navio, observando o ritmo acelerado dos tripulantes que
carregam os últimos mantimentos, com um brilho de ansiedade nos olhos.
Aproximo-me devagar, meus passos abafados pelo barulho das ondas.
— Como estão os preparativos para a viagem? — pergunto.
— Partimos antes do amanhecer. — Ela se vira para mim, os lábios
formam um leve sorriso.
Assinto, tento ignorar o aperto no peito.
— Ansiosa?
— Um pouco — admite desviando a atenção para o horizonte. — Mas é
uma ansiedade boa. Sinto que é o começo de algo grande.
— E será.
Pensei muito no que lhe diria no dia da sua partida, se daria um último
conselho ou se apenas diria que a amo como uma irmã. Depois de algumas
canecas na taverna, descobri uma resposta ainda melhor, uma parte de mim que
estará sempre cuidando dela durante sua nova fase:
— Aqui, Chama-Viva vai te proteger agora que não estarei por perto.
Manon hesita antes de pegar a adaga, o brilho de seus olhos fica mais
vívido e úmido. Ela sabe o que essa arma significa para mim e nada me deixaria
mais feliz do que saber que Chama-Viva salvará sua vida uma porção de vezes,
assim como salvou a minha.
— Elena, eu... — A voz falha por um momento, e ela respira fundo
tentando recuperar a compostura. — Eu sempre vou lembrar do que me ensinou
e nunca vou esquecer de onde eu vim, não importa se nasci como Povo da Visão,
eu sempre serei do Ferro.
— Viva sua aventura, Manon, e não esqueça que, independente do que
fizer, eu não me importo, você sempre terá um lugar ao meu lado quando
precisar de conforto. — Chego a engasgar na última palavra e viro o rosto por
alguns instantes em direção ao oceano, tentando conter as lágrimas.
Quando volto a encará-la, Manon já está soluçando, o choro traçando
linhas molhadas em suas bochechas. Ela rapidamente tenta enxugá-las com a
manga, mas os olhos continuam cheios. Aproximo-me, tomando o rosto dela
entre as mãos e passando o polegar para limpar o rastro das lágrimas.
— Não é uma despedida, apenas uma mudança de rumo. E quando nos
encontrarmos de novo, você me contará todas as histórias de como conquistou o
oeste.
Ela assente antes de me abraçar, um aperto forte que faz meu corpo todo
doer com a certeza de que será o último.
— Prometa que vai se cuidar também — ela sussurra.
— Prometo.
— E para onde vocês vão agora?
— Ainda não sabemos ao certo — admito. — Mas continuaremos
procurando por Molgur.
Ela morde o lábio inferior e rompe nosso abraço, mastiga a resposta por
um tempo antes de finalmente admitir:
— Talvez vocês devessem voltar para onde tudo começou.
— Ferroforja? Por que lá?
— Não sei ao certo — responde com a expressão estranha, meio perdida,
nem ela parece entender completamente. — Apenas um pressentimento.
Manon me lança um último sorriso trêmulo, mas logo seus olhos
endurecem e ela se endireita, os ombros erguendo-se com a determinação de
uma guerreira do Ferro. Com um aceno firme, ela segue em direção a caravela
ancorada. As águas escuras se agitam, batendo contra o casco do navio como se
o próprio oceano estivesse impaciente para levá-la embora, ávido por entregá-la
à próxima aventura.
Observo enquanto ela sobe a rampa e assume o controle dos marinheiros,
erguendo a cabeça para dar suas ordens. O vento, agora mais forte, faz os
cabelos ruivos e selvagens dela dançarem como uma bandeira, e noto o brilho da
paixão em Rune ao se aproximar para envolvê-la nos braços e girá-la pelo
convés como uma garotinha.
Meu estômago se contrai com a visão. Certas irritações simplesmente não
desaparecem, e ver aquele sorrisinho confiante no rosto dele é suficiente para me
fazer revirar os olhos. Manon pode achar graça em seus gestos exagerados, mas,
para mim, ele sempre será um garotinho presunçoso que acredita ter todas as
respostas.
Será que ainda dá tempo de atravessar o cais e lhe dar um chute para
garantir que ele fique mais esperto? A ideia faz meus lábios se curvarem em um
sorriso malicioso, mas antes que eu possa dar um passo em direção a eles, sinto
os braços de Kaeldros se fecharem ao meu redor, puxando-me contra seu peito
com um movimento firme.
— Eu conheço esse olhar — ele sussurra, seu hálito quente contra minha
orelha, a voz grave e carregada de divertimento. — Nem pense nisso.
— Primeiro, só porque estou fantasiando em quebrar o nariz dele, não
significa que vou realmente fazer — replico, inclinando a cabeça para fitá-lo
com um sorriso de desafio. — Segundo, e se eu decidisse fazer, como pretende
me impedir? Até onde me lembro, suas canções só funcionam quando estou
sedenta, e acho que fui muito bem saciada hoje de manhã.
Kaeldros ri baixo, o som vibrando em seu peito contra minhas costas.
— Ah, querida, existem tantas formas de te persuadir. — Ele inclina o
rosto e deposita um beijo na curva do meu pescoço, seus lábios roçando minha
pele e me arrancando um arrepio. Sua barba curta, uma novidade que ele tem
cultivado desde que percebeu que me agrada, faz cócegas, e não consigo evitar a
risada que escapa de mim, mesmo quando um calor familiar desperta entre as
minhas pernas.
Antes que eu possa responder, o som de passos apressados interrompe o
momento. Li surge ao nosso lado com Areskaan, o rosto jovem iluminado de
expectativa e empolgação.
— Mestre Kaeldros, agora que Rune está indo embora, isso significa que
eu serei o Primeiro Imediato? — ele pergunta cheio de entusiasmo, exibindo o
espaço entre os dois dentes da frente no sorriso.
Kaeldros se afasta de mim para bagunçar os cabelos de Li em um gesto
paternal que me comove.
— Com certeza! — anuncia exagerado. — Uma promessa é uma dívida
para um dragão. Prepare-se para trabalhar duro.
Enquanto Li e Kaeldros trocam brincadeiras e discutem suas obrigações de
mentirinha, Areskaan se aproxima de mim, cruzando os braços com uma
expressão ponderada enquanto observa a tripulação se organizando para a
partida. O vento levanta a borda do meu manto, e eu o ajusto para cobrir melhor
os ombros.
— Pensei que você fosse partir com eles — comento.
Os marujos trazidos do Fúria foram divididos. Kaeldros convocou os que
ansiavam por grandes aventuras e tesouros para seguir com Rune e Manon rumo
ao oeste. Discretamente, incentivou que fossem — eles precisariam muito mais
de reforços do que nós. Restamos com uma tripulação compacta de quinze
marinheiros, suficiente para guiar a pequena coca, já ancorada e pronta para
zarpar do lado isolado da ilha.
Areskaan balança a cabeça lentamente, e sinto um alívio ao saber que ele
continuará conosco. Há tanto que ainda quero aprender com ele, mas, ao mesmo
tempo, quando observo sua respiração pesada e o cansaço que se acumula em
seus movimentos durante nossos treinos, sou lembrada de uma verdade simples e
cruel: nada dura para sempre.
— Deixe as grandes aventuras para os jovens — ele diz com um suspiro.
— Já decidiram para onde iremos agora?
— Pensei em uma última viagem para Ferroforja — respondo, e noto
Kaeldros se virar para mim, a atenção dele capturada pelo nome. — Manon teve
um pressentimento antes de partir, e acho que sei do que ela estava falando.
A viagem de volta até Ferroforja é mais rápida. A coca, por ser um barco
menor, é bem mais ágil e, como já fizemos o caminho uma vez, Kaeldros sabe
exatamente quais ilhas precisa evitar. Apesar do meu desejo de me despedir de
Greta, Lothar e até de Ivar, respeito o pedido do meu irmão, atracamos na
encosta da montanha, distantes o suficiente para não sermos vistos pelo vilarejo.
Os sinais do princípio do outono tomam Nebruína, os vastos córregos que
descem pela montanha carregam folhas secas e levantam um odor terroso forte.
Há uma quietude no ar, um silêncio que é quebrado apenas pelo som dos galhos
se partindo debaixo dos meus pés e dos de Kaeldros. É próximo do topo que se
encontra a entrada para a morada de Molgur. Faço uma breve pausa, vendo
Ferroforja tão pequenina lá embaixo, minha casa, meus carneiros, tudo parece
estar exatamente como deixei.
Kaeldros percebe a saudade tomando meu coração e me envolve com um
braço, deposita um beijo gentil em minha testa.
— Não importa o que Bane disse, nós podemos…
— Bobagem, nós viemos por outro motivo — eu o interrompo. — Está
pronto?
Ele assente, os lábios comprimidos em uma expressão temerosa. No fundo,
nós já sabemos, durante toda a viagem repassamos lembranças, pequenas frases
e ações que foram deixando mais e mais claro o quanto Molgur estava velho.
Mas quando amamos algo, é difícil de ver os sinais.
O ambiente da caverna ainda me é familiar, mesmo que Kaeldros nunca
tenha entrado aqui antes, ele me conta que Molgur tinha uma morada nas ilhas
do sul e a organizou de forma semelhante. Ainda assim, há algo diferente, algo
que falta, há um frio úmido que eu nunca senti quando Molgur estava aqui.
As pilhas de moedas de ouro e os tesouros acumulados ao longo de
incontáveis séculos brilham sob a luz fraca que se infiltra pelas aberturas da
rocha, mas o brilho parece morto, sem vida. E é no meio delas que eu o vejo: o
contorno imponente de um lagarto gigante, seu corpo alado repousando entre os
montes de riqueza, o pescoço erguido como se ainda estivesse em guarda.
— Molgur! — grito e minha voz faz eco.
Corremos em direção à sombra, mas conforme nossos olhos se ajustam à
escuridão, a inevitável realidade chega: o corpo está estático, o peito não se
move, petrificado como uma estátua. Debaixo de um feixe solitário de luz, o
dragão que nos uniu jaz em seu último repouso.
— Kaeldros, eu... — Minha voz falha, um nó apertando minha garganta.
— Lamento muito.
Ele não responde, se ajoelha ao lado do dragão, os dedos trêmulos passam
pelas escamas e saem marcados por uma fina camada alaranjada.
— É ferrugem — ele confirma.
As escamas de aço ganharam um tom acobreado, enferrujam com a
passagem do tempo e eternizaram Molgur na montanha. Apesar da tristeza do
fim, ele está lindo, imponente em uma pose orgulhosa com seus tesouros.
— Foi por isso que você me disse para vir atrás dela se não voltasse. Não
era porque ela teria te matado, você sabia que ia morrer... — ele pausa, os olhos
marejados de dor e compreensão. — Não queria que eu ficasse sozinho.
Meu coração se parte e meus olhos lacrimejam. Observo Kaeldros
enquanto ele permanece ao lado do corpo inerte do pai, sua mão deslizando
gentilmente pelas escamas desgastadas. Uma mistura de riso e soluço escapa de
seus lábios, um som tão doloroso que meu maior desejo é que ele nunca mais
sinta isso.
— Você poderia ter sido mais claro, sabia? — ele ri, limpando as lágrimas
com a manga da camisa. — Nós quase nos matamos uma porção de vezes. — O
riso se transforma em choro novamente, ele abaixa a cabeça com os ombros
tremendo. — Me desculpe por tudo o que eu disse. Tenho orgulho de ser um
dragão... Tenho orgulho de ser seu filho.
Kaeldros continua sua despedida, por mais um tempo conversa com o pai.
E mesmo em silêncio, sinto que Molgur está ali, escutando-o uma última vez.
Fico de pé, mas depois me sento em uma pilha de moedas, observando à
distância, sem interromper o momento.
Quando tudo que não foi dito em vida é finalmente colocado para fora, ele
se levanta, enxuga os últimos vestígios de lágrimas de seu rosto e caminha até
mim. Seus olhos cor de jaspe me encaram de forma diferente, carregam algo
diferente em sua expressão.
— Elena... — ele começa, a voz suave enquanto se ajoelha à minha frente.
Meu coração dispara.
— Kaeldros, o que você está fazendo?
Sem pressa, segura minha mão, acaricia cada um dos dedos antes de
entrelaça-los nos dele. Então, me encara mais uma vez, um sorriso pequeno e
determinado no rosto quando diz:
— Quero ser o dragão que vai proteger a sua liberdade.
Anos atrás eu entrei nessa montanha, uma garota com uma tendência forte
ao drama, uma habilidade razoável no manejo da espada e nenhuma resiliência
emocional. Preferia enfrentar monstros do que confrontar meu próprio coração.
Hoje, eu voltei para a mesma montanha, mas não me sinto mais como
aquela garota.
Com uma confiança que eu nunca senti antes, retiro Espírito do Norte da
cintura e a ofereço para Kaeldros. Ele a segura com reverência, e então me puxa
para um beijo. Enquanto nossos lábios se tocam, suas lágrimas se misturam às
minhas. Lágrimas de Ferro e Sal.
FIM
SOBRE LÁGRIMAS DE FERRO E SAL
Eu espero que esse livro tenha sido um abraço para você, pra mim com
certeza foi.
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