4 Veneno e Outras Coisas (Ravina) - Red R

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Sumário

Dedicatória
Epígrafe.
Aviso.
Prólogo.
Capítulo 1.
Capítulo 2.
Capítulo 3
Capítulo 4.
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12.
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16.
Capítulo 17.
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20.
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25.
Capítulo 26.
Capítulo 27
Capítulo 28.
Capítulo 29.
Capítulo 30.
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33.
Capítulo 34
Capítulo 35.
Capítulo 36
Capítulo 37.
Capítulo 38 .
Capítulo 39
Epílogo.
Nota da Red.
Agradecimentos.
Os direitos autorais dessa história pertencem à autora.

Esta é uma obra de ficção.

Qualquer semelhança com a realidade é mera


coincidência.

Todos os direitos reservados.

São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução total


ou parcial de qualquer parte dessa obra, através de
quaisquer meios.

Revisão: Luhana Andreoli


Leitura Crítica: Adriana Mantovanelli
Capa: Red R.
Diagramação: Bruna Gurgel

Criado no Brasil.
Tenha uma melhor experiência de leitura ouvindo a
playlist.
Para todas as meninas que,
acreditando ser uma princesa, descobriram
da pior maneira que princesas não existem.
“Posso ser de mel, e de veneno.
Posso ser muito humana, e muito bicho também.
Me morde e eu te como.”
- Clarice Lispector
Este é o quarto e último livro da Série Ravina, mas não é necessário
ler os anteriores para compreender a história. São narrativas independentes.
O livro contém gatilhos envolvendo pedofilia (não existe a menor
sombra de romantização), incesto e menção a abuso sexual (não é entre os
personagens principais), ninfomania, fanatismo religioso, violência física e
psicológica, abuso de substâncias lícitas e ilícitas, luto, palavrões, sexo
explícito, menção a aborto, fetiches, ofidiofobia e vícios.
“Ele não é real!”, gritaram para mim.
“Não havia mais ninguém lá!”, repetiram em meus ouvidos
incontáveis vezes.
Aquelas frases ficaram na minha mente por anos.
Então, como um passe de mágica ou trapaça do destino, eu o vi.
E ele era tão real quanto os meus piores sonhos, não me restando
nada diferente do que me tornar o seu maior pesadelo.
Uma pessoa crédula, nervosa e impulsiva.
Eu joguei minhas mãos para o alto e disse: “Mostre-me alguma coisa”.
Ele disse: “Se você se atreve, chegue mais perto”.

Stay, Rihanna.

Aquela filha da puta!


Eu não posso entrar na porra de qualquer partida de videogame, que
ela está lá. Essa garota simplesmente surge, como se rastreasse meus passos
on-line, invadindo minhas partidas e se dedicando a me matar.
Eu amo jogar videogame, me distrai, aguça o meu espírito
competitivo. E, modéstia à parte, sempre fui muito bom nisso. Agora,
alguma garota mimada e com muito tempo livre aprendeu a me rastrear e se
dedica a fazer parecer que eu sou a porra de um perdedor. Não que isso seja
verdade, ela é que é muito boa. E sim, é a porra de uma garota! Há uma
semana, ela me mandou uma mensagem de voz no chat do Xbox e me
chamou de otário, depois gargalhou da minha cara. Tem voz de mulher,
sotaque carioca e parece jovem. E cacete... eu fiquei pensando naquela
maldita voz. Me arrepiei todinho, feito um moleque punheteiro. É claro que
fiquei bravo comigo mesmo, afinal, vai saber que idade essa lazarenta tem...
Pode ser uma pirralha, do outro lado. Mas a voz não era de pirralha. Era de
mulher feita.
Menina doida do caralho!
Deve ser uma espécie de hacker, porque não tem como
simplesmente conseguir me achar toda vez que eu entro em um jogo on-
line, seja no meu computador ou videogame. Ela sabe meus horários,
sempre à noite, quando chego do trabalho, ou nos fins de semana. E não
tem nada que eu possa fazer para não perder a paciência. Já troquei meu
nickname — antes era HarryGostosão123, agora é apenas
OSenhorDosGames123 —, já mudei de console, de computador... Só falta
eu trocar de alma, mas nada trava essa maldita. Ela está há um ano inteiro
me infernizando!
Acabei de tomar uma sequência de tiros no Fortnite[1], e mal
começou a partida. E quem me matou? O avatar de uma garota, usando o
ridículo traje de um urso cor-de-rosa. Eu nem preciso esperar a rodada
terminar para descobrir que o nickname dela é Veneno, a tal stalker
obcecada por mim.
Atiro o controle do Xbox no sofá, sua cor branca contrastando com o
couro caramelo do estofado. Já passa das dez da noite, e marquei uma
balada com a Ana e o Josiah às onze, perto da Praia do Flamengo.
Entro no pequeno banheiro ao lado do rack cinza da sala, tirando
minha samba-canção escura e a deixando largada no chão. Retiro meu
cordão de correntes finas e o coloco sobre o mármore preto da pia, vendo a
aliança de prata, que agora serve de pingente, reluzindo ao refletir o brilho
da lâmpada acima da minha cabeça. O costumeiro aperto no peito me
domina. É como uma presença dolorosa chegando do nada, tocando-me os
ombros, fazendo-os pesar. Engulo em seco, com paisagens mentais de
momentos que nunca mais voltarão me dominando quando eu olho para o
objeto.
É como se toda a casca feliz e animada em que eu consigo me
enrolar por boas horas do dia evaporasse quando estou sozinho. Eu tento ser
um cara feliz, e na maior parte do tempo até consigo ver beleza na vida.
Mas, nesses momentos, quando eu me lembro dos estilhaços que fazem
meu coração sangrar, eu me pergunto se sou realmente assim ou se estou
me enganando, tentando parecer feliz para me proteger.
No espelho amplo, encaro o homem diante de mim, de pele negra,
olhos castanhos –– que as minas sempre dizem parecer gentis ––, piercings
espalhados pelo corpo, que são meu orgulho e maior paixão, e tatuagens
que exibem significados fortes. Suspiro, então me pergunto se... se eu exibir
esse Harry às pessoas, esse cara por trás da casca iluminada e sorridente,
ainda vão gostar de mim? Meus amigos, que são pedaços importantes da
minha vida, a família que eu recebi de presente de Deus e do destino, ainda
vão curtir esse cara frágil, partido e machucado por trás da máscara?
Quando estou sozinho em casa, no silêncio dos meus pensamentos,
percebo que todas as piadas que faço e as risadas que arranco das pessoas
são a minha maior defesa. Um jeito de deixar o mundo do lado de fora
muito mais iluminado do que a caverna repleta de gritos e desespero que
mora dentro de mim.
Sob os jatos gelados do chuveiro, flashs fortes daquela noite voltam
à minha mente consciente. Com a testa grudada no azulejo escuro do
banheiro, soluços desesperados inundam a minha garganta, e deixo que os
lamentos saiam em forma de choro.
É uma culpa absurda.
Um barulho muito pesado dentro da minha cabeça.
Eu odeio ficar calado quando estou com outras pessoas. Por isso, me
rodeio de mulheres, para transar, beber ou conversar. Eu grudo nos meus
amigos ou jogo videogame até ficar com dor de cabeça.
Nunca sozinho.
Nunca em silêncio.
Porque quando o lado de fora está silencioso, os fantasmas do lado
de dentro gemem e narram seus contos de terror sobre o que eu fiz. Sobre o
merda que fez tudo dar errado. Sobre o garoto-problema que é rejeitado
pela família na qual veio ao mundo.
É por isso que odeio ficar em casa. Quando não estou rodeado pelos
meus amigos, pelos casais que fazem com que eu me sinta querido, meus
traumas voltam. Então, cansado de sofrer, de me deixar afundar nos
pesadelos da minha perda, me ensaboo correndo, me enxáguo e finalmente
saio deste lugar de horror chamado banheiro, a costumeira testemunha das
minhas fraquezas.
Após me secar, com a toalha enrolada no quadril, recoloco o cordão,
tiro a roupa suja do chão e a deposito no cesto abaixo da pia, então caminho
a passos largos para fora. Subo a escada vazada de ferro e, já no quarto, em
formato de mezanino, abro o guarda-roupa de madeira. Pego uma calça
jogger preta e uma regata da mesma cor. Me visto com toda a pressa do
mundo. Quanto mais rápido eu sair de casa, mais cedo silencio a dor que
irradia pelos meus ossos, fazendo-os doer como se estivessem tão
fraturados quanto a minha alma.
Coloco uma corrente prateada presa a duas alças da minha calça,
deixando que penda na lateral do meu quadril. Quando me olho no espelho,
meus piercings de aço cirúrgico nos mamilos refletem contra a luz. Gosto
de mantê-los em evidência, por isso uso regatas com alças cavadas,
deixando meu peitoral de fora. Qual seria a graça de trabalhar como Body
Piercer[2] e não ter meu próprio corpo como propaganda? É estiloso pra
caralho. Só nas orelhas, tenho vinte e quatro piercings. No restante do
corpo, tenho mais oito. É uma paixão.
Coloco uma touca preta na cabeça, calço meus sapatos e, por último,
pego meu telefone, chaves e carteira, enfiando tudo nos bolsos da calça.
Agora sim estou pronto para ir encher a cara com os meus amigos, depois
conhecer uma mulher legal e fazer algo que adoro: foder!
Tranco a porta de madeira marrom pelo lado de fora. O barulho me
faz correr os olhos pelo corredor estreito, de paredes brancas e manchadas,
em direção ao elevador. A nova moradora do apartamento em frente ao
meu, uma mina mal-encarada e que nunca me dá bom-dia, está lá dentro,
apertando com raiva o botão de descer.
— Segura aí, vizinha! — peço, tentando agilizar o passo sob os
meus coturnos pesados, vendo as portas começarem a se fechar.
Essa lata velha aqui do prédio parece demorar mais que o normal
para subir ou descer. E depois que a velha do andar de baixo virou síndica,
aumentou o condomínio, mas não consertou o elevador. Ergo as
sobrancelhas quando, surpreso e até abalado, vejo a maluca da vizinha me
dedicar um dedo do meio, que vai sumindo lentamente, sendo ocultado
junto ao seu sorriso pelas portas do elevador, que se fecham.
Dou uma bufada, descrente.
Sério?
O que eu fiz para essa daí?
Ela é bonita. Não é tão magra nem tão baixinha como as esposas dos
meus amigos. Deve ter 1,70m de altura, por aí. E tem uma franja reta, com
cabelos lisos e castanhos. Ela só é branquela demais, porém, não é nada que
a deixe menos gata. Mas é uma mulher marrenta, e agora, pelo que notei,
também é mal-educada.
Para não ficar ainda mais puto, resolvo descer os cinco andares
pelas escadarias, a fim de não precisar esperar aquele caixote enferrujado e
cujas ligaduras gemem mais que um moribundo voltar ao meu andar. Tudo
neste prédio é velho, e eu tive de gastar muito dinheiro, que nem podia, para
reformar o meu loft por dentro e o deixar maneiro.
Um pouco ofegante, finalmente chego ao hall de entrada. Enquanto
caminho até a porta do prédio, ouço o barulho anunciando que o elevador
chegou ao térreo. Quando olho por cima do ombro, percebo que a velha ––
a síndica filha da puta que me deu duas multas no último trimestre por som
alto, e que, por sinal, é mãe da Maria, esposa do Bill, meu outro melhor
amigo –– está saindo com a vizinha mal-humorada.
A dona Isaura me sonda de cima a baixo, com seus cabelos rajados
entre preto e branco presos em um coque pequeno e apertado no alto da
cabeça. Seu rosto parece eternamente travado em um semblante carrancudo.
Está vestindo uma roupa que mais parece um uniforme, já que ela só varia
na cor das blusas de mangas. Mas a saia jeans que chega aos joelhos é
sempre idêntica. Será que ela tem várias assim, ou apenas nunca a troca?
— Não se esqueça de trancar a porta muito bem! — a síndica fala,
cerrando os cílios para mim.
— Pode deixar... — É um esforço responder.
Ela é um porre! Quando não está metida na igreja, está tomando
conta da vida dos moradores. Ou olhando com seu ar de coruja pelas grades
da fachada a vida do povo que passa pela rua.
Bill, genro e sobrinho de Isaura, largou esse carma que ele chama de
sogra morando no meu prédio. Foi ele quem atirou pedra na cruz se casando
com a prima, mas sou eu o castigado por Deus com essa velha lazarenta
pegando no pé.
Enquanto a síndica segue em direção à sala onde ficam as caixinhas
de correio, do lado oposto onde estou, espero a metida da minha vizinha. Eu
já girei a chave na porta de vidro da entrada, e a estou segurando
entreaberta, aguardando a garota chegar até aqui. Quando me vê, com seu
vestido curto de paetê chamando mais atenção do que tudo nela, a mina
ergue as sobrancelhas. Está com uns saltos finos e tão altos que, se cair, terá
o mesmo efeito que despencar lá do quinto andar. Agora está explicado o
porquê eu a achei alta.
— Sei abrir a porta para mim mesma. — Sua fala é meio rosnada.
— E meu nome é Branca, não me dê apelidos!
— Que apelido?
Quero rir. Eu a apelidei de quê?
— Me chamou de vizinha! — responde entredentes.
Reviro os olhos, vendo os dela faiscando de raiva, a ponto de quase
queimar os cílios imensos e falsos que está usando. Essa aí não gosta
mesmo de mim, o que é um desperdício, eu sou bem gostável. Só que,
embora eu tenha 25 anos, ainda posso ser muito pentelho quando quero.
Não quer ir com a minha cara? Ok! Vou dar motivos para não ir mesmo.
— Posso ficar segurando a porta a noite inteira, até a minha vizinha
mal-amada resolver passar. — Estou sorrindo, vendo sua boca larga e
pintada de rosa se expandir em um semblante chocado. — Só tem uma
saída, lembra? Vai ter de passar por aqui ou dar meia-volta, gatinha!
Ela não gosta de apelidos...
Logo comigo?
Eu adoro apelidar as pessoas, ainda mais quando elas não gostam
disso. Dei apelidos para as esposas dos meus amigos. No começo, era para
irritá-las, agora elas amam e sabem que tem mais carinho do que qualquer
outra coisa neles. Mas chamar essa mulher de gatinha é mais um deboche
do que elogio, embora ela realmente seja gata pra cacete.
Branca cruza os braços, balançando a bolsa preta pendurada em seu
ombro. Troca o peso dos pés, então cerra os cílios, prometendo arrancar
meu pau fora só com o olhar. Gosto do estilo dela. Usa acessórios maneiros,
como o colar em formato de arame farpado adornando o pescoço, e ainda
tem um piercing no hélix da orelha direita. Dá um ar de personalidade forte.
E, a essa altura, está bem claro que é o que essa daí mais tem.
Alguns minutos se passam, com o cheiro fraco do perfume dela
sendo soprado em minha direção. É algo leve, um aroma delicado de flor,
contrastando com quase tudo nela. Mas ainda combina com seu rosto. Com
contornos redondos e um nariz batatinha, ela não parece ter mais que 18
anos de idade. Branca revira os olhos e, xingando meio baixinho, caminha
até mim, com o salto ecoando pelo piso gasto da recepção.
Então, eu tenho a minha vingança, pois dou um passo para fora e
bato a porta de vidro bem na cara de encrenqueira dela.
— Ninguém mandou me odiar à toa, sua mandada[3]! — debocho,
dando um sorriso largo.
Mas realmente dou um motivo à Branca para não gostar de mim
quando ainda meto a chave na fechadura e tranco a porta bem nas fuças
dela. Sua voz abafada recita alguns “arrombado” e outros muitos “filho da
puta”, enquanto eu, cantarolando, sigo em direção ao portão de ferro, do
lado de fora do jardim, e o atravesso. Finalmente sinto o ar empoeirado da
rua se chocando contra mim. Caminho até as vagas de moto do outro lado
da calçada, parando diante da Ducati Monster vermelha. Assoviando e me
sentindo ótimo por ter uma vizinha gostozinha para me divertir ao poder
perturbar, enfio a chave na ignição.
— Ei, idiota?! — A voz irritada de Branca, que já me parece
familiar, surge atrás de mim. — Eu perdi meu Uber por sua causa! — Pisa
duro até a minha frente. — Não sou obrigada a dividir o elevador contigo,
que fuma maconha e deixa meu apartamento e o corredor empesteado com
aquele cheiro de merda! E, para piorar, ainda ouve música tão alto que eu
não sei como não estoura os tímpanos!
Agora eu entendo o motivo do ranço dela por mim. Eu não sou
mesmo um bom vizinho.
— Conhece o ditado “antiguidade é posto”? Você que se acostume
ou se mude! E quer saber de outra? Você é simpática como o próprio
capeta, vizinha — revido, levantando uma das sobrancelhas. — Tu não é
nenhum exemplo de boa vizinhança.
— Aposto que o diabo ainda é um melhor vizinho que você,
querido!
Fico surpreso quando ela mete a mão na minha chave e a arranca da
ignição.
— Bora definir uma coisa: ninguém toca na minha princesa! —
Aponto o dedo para o rosto dela, puto da vida, enquanto desço da moto. —
Já ouviu falar em terapia? Eu estava achando que tinha ouvido a sua voz em
algum lugar, aí percebi que você tem o mesmo tom de loucona das esposas
dos meus amigos. Elas melhoraram com algumas sessões de terap...
— Vai se foder e me dê a droga de uma carona! — ela rosna,
levando a mão cheia de pulseiras prateadas para a parte de trás do corpo,
escondendo a chave da moto.
Meu peito acelera e esquenta de raiva quando me dou conta de que
ela ousou enfiar essa mão de unhas afiadas e pretas na minha moto. Se ela
tivesse quebrado a chave na ignição, eu seria obrigado a retribuir de algum
jeito.
Eu sou um cara legal, mas não gosto quando pisam no meu calo ou
metem a mão na princesa.
— Tu não disse que não é obrigada a andar de elevador comigo, ô
cuzona? — rosno, prendendo meu piercing da língua entre os dentes. Fecho
os olhos e seguro as têmporas para me acalmar, ouvindo-a soltar uma
risadinha. Por que caralho ela está rindo? Abro os olhos, pronto para a
trucidar com eles, mas sou desarmado ao notar como ela fica bonita ao
sorrir. Uma vizinha alucinada e linda pra caralho. Eu mereço... — Não vou
te dar carona, tá legal? Não sou motoboy. Vai andando, caralho. E devolve a
minha chave, ou vou tomar à força!
— Se não me der a droga da carona para a porra da Vermute, eu juro
que vou arranhar tua moto inteira quando você não estiver por perto! —
ameaça, com seus olhos grandes e castanhos arregalados, dispersando o
sorriso de tal jeito que ele parece jamais ter estado ali.
— Tu usa drogas? — pergunto. — Sério mesmo... você é meio
instável, devia tratar isso...
— Me dá a porra da carona! — ela grita.
Irritado, dou vários passos em sua direção, percebendo que as
pessoas que passam na calçada movimentada ao nosso redor prestam
atenção no barraco que estamos armando. A pose dela começa a cair
conforme anda para trás, tentando se manter distante de mim. Mas quando
alcança as vigas de ferro do portão do nosso prédio, não há mais margem
para fuga. Suas costas colidem, seus olhos se arregalam, o medo domina
seu semblante. Seguro duas vigas, uma de cada lado de sua cabeça,
precisando me inclinar para isso, porque, mesmo com esse saltão, ela ainda
é bem mais baixa do que eu. De perto, essa mulher é ainda mais gata. Sua
boca entreaberta, soprando um hálito de bala e cigarro em meu rosto, deixa-
me levemente excitado. Então, ela fuma? Eu não costumo gostar de cheiro
de cigarro em mulheres, mas, nela, parece estranhamente sexy.
Detesto mina marrenta. Eu não gosto de ter que me esforçar muito
para conquistar alguém. Mas essa garota, tão cheia de si e ao mesmo tempo
amedrontada pela minha proximidade, até que seria um bom desafio.
— Me entrega a chave da princesa, aí te dou uma carona.
Ela desvia os olhos. Ouso dizer que parece mais submissa conforme
chego a encostar meu corpo no dela. Sua respiração está vacilante, e, feito
uma garotinha sem experiência, ela foge da minha encarada, olhando para
tudo ao redor, menos para mim. Sorrio, gostando disso, de a desarmar.
— Só entrego se for mesmo me levar à balada!
— Eu vou levar. — Minha voz sai mais baixa. — Estou indo para a
Vermute encontrar um casal de amigos.
— Ok! Mas se me der uma volta quando eu entregar a chave
— agora ela me encara por cima dos olhos, repleta de ameaça na voz —,
vou fazer sua moto de tela e deixar um belo lembrete. Vai ser conceitual. As
novas gerações chamarão a minha arte de rabisco sobre lata-velha.
Reviro os olhos. Ela é esperta, percebeu que a moto importa. Já de
saco cheio do joguinho, resolvo dar as costas a ela e voltar até a
motocicleta. Eu me sento sobre o assento e digo:
— Bora! Senta logo essa bunda aí e me dá a chave, já estou
atrasado!
Eu vejo a sombra de luz tracejando seus olhos quando a encaro por
cima do ombro. Branca não consegue disfarçar a breve animação,
caminhando rápido até a princesa, tentando esconder o sorrisinho de
triunfo. Quando se senta atrás de mim, balançando a moto, envolve minha
cintura com seus braços magros.
— Péssima escolha de vestido para andar de moto... — resmunga,
como se falasse para si mesma, tentando se acomodar melhor.
— Achei uma escolha maravilhosa — sopro a provocação.
— Cala a boca, vai?! — O tom de sua voz muda, como se estivesse
tentando conter uma risada. — E princesa? — Liberta uma risada
anasalada. — É brega demais para o nome de uma moto.
Balanço a cabeça e tento não dizer nada, fingindo que o sopro
quente de sua respiração em meu pescoço não me deixou arrepiado.
Por que todo mundo fala essa bosta quando ouve o nome da minha
moto? Eu gosto. Ela é mesmo a minha princesa, pois sonhei muito em
poder ter uma dessas. Era princesa ou preciosa. Meus amigos teriam
encarnado muito na segunda opção.
Sob o ar gelado da noite se chocando contra o rosto, piloto até a
balada. Um trajeto rápido e silencioso, e nem mesmo nos sinais vermelhos,
onde fomos obrigados a parar, trocamos alguma palavra. Quando estaciono
diante da casa noturna, repleta de veículos e pessoas sorridentes em grupos,
falando alto, tragando cigarro ou compartilhando garrafas de bebida, Branca
se apressa em saltar da moto.
— De nada! — grito, observando sua bunda redonda rebolando para
longe.
A única resposta que ela me dá é um dedo do meio erguido acima de
sua cabeça.
Estou mesmo fodido com essa vizinha...
“Ela tem confiança, é tudo parte do jogo.
Porque para ela não significa nada...”
Seduction, Usher.

Um mar de gente, é o que se torna a Vermute em noites de sexta. O


ambiente é escuro, com luzes coloridas se dispersando em direções distintas
por toda a pista de dança. O som alto do funk carioca ressoa pelo ambiente,
fazendo as paredes vibrarem com o “batidão”. Tem muita mina gostosa
rebolando, gente beijando na boca, e bebida rolando. É minha balada
favorita, eu venho muito aqui, seja sozinho ou com meus amigos.
A Branca já sumiu. Seria impossível encontrá-la com seu vestidinho
roxo neste lugar escuro e repleto de fumaça artificial, que faz parecer que o
ambiente está preso em névoas.
Gosto de festas, música alta e muita gente ao meu redor. E, neste
minuto, sei que é tudo o que mais preciso. Isso silencia qualquer ruído
interno que esteja querendo escapar. Também me faz esquecer as coisas que
me dilaceram.
Eu me embrenho em meio às pessoas como dá, seguindo caminho
até a área VIP. Depois de mostrar minha pulseira comprovando que eu
tenho acesso ao camarote, sou liberado por um segurança todo fortão e com
cara emburrada para subir pela escadaria preta. No corredor largo, cerceado
por uma grade escura que dá visão para a pista abaixo de nós, diversos
cubículos estão divididos por muretas de alvenaria com revestimento
vermelho. Dentro de cada um, conjuntos de sofás de couro adornam
ambientes reservados. O meu destino é o último, onde um cara grandão e
tatuado pra caralho está sentado, sussurrando algo no pescoço da esposa
enquanto acaricia sua barriga. Diante deles, há um balde prateado, e muitas
garrafas de água descansam em meio ao gelo, junto a outras latas de
cerveja.
— Fala aí, meu parceiro! — cumprimento Josiah, que, vestido de
preto dos pés à cabeça, parece até fazer parte da decoração da balada.
— Até que enfim, Harry! — Levantando-se para bater sua mão
contra a minha, Jow grita para sobrepor o som alto, com os olhos verdes
brilhando e parecendo animados ao me verem. — Como vai o meu futuro
sócio?
Meu sorriso se expande quando ouço sua última palavra. Caralho!
Eu nem acredito nisso! Finalmente me tornarei sócio do Estúdio de
Tatuagem Ravina. É o local em que trabalho há alguns anos, propriedade de
Josiah e Bill, meus melhores amigos. A marca deles está cada vez mais
famosa, por isso estão abrindo uma rede de franquias.
Eu consegui guardar certinho cinquenta mil reais na minha
poupança, a fim de entrar em uma participação pequena da sociedade. Mas
valerá a pena e me dará um bom lucro.
Quando Josiah e Bill me chamaram para uma reunião e me
ofereceram a entrada na sociedade, eu precisei me esforçar muito para não
abrir o berreiro, de tanta emoção. Embora eu tente transparecer o contrário,
sou chorão pra cacete. E eu nem tinha um par de óculos escuros para
disfarçar os olhos mais vermelhos do que qualquer baseado me daria.
Eu amo esses caras!
Eles são tudo para mim.
A única família que eu ainda tenho.
— Tô bem! Tenho uma parada engraçada que aconteceu pra contar a
vocês — digo, sentando-me no sofá em frente à Ana e meu amigo. Minhas
sobrancelhas quase se unem quando vejo que, pela primeira vez em uma
balada, a Surtada está tomando água. — Mas acho que vocês têm uma
fofoca melhor para mim, não é?
Ana dá um sorriso tão largo que duas covinhas se aprofundam em
suas bochechas. O par de íris cor de mel se torna radiante enquanto uma
pequena lágrima despenca por sua face.
–– Estou grávida, Harryzinho. Grávida!
Por cima da mesa de madeira grossa, aceito as mãos emocionadas
que ela estende para mim. Eu as aperto, com meu peito esquentando de
felicidade. Tenho tanto carinho por essa doidinha. Ela é a alma-gêmea do
meu mano e o faz feliz.
Minha amiga solta um soluço enquanto, radiante, sorri para mim.
— Eu disse para você confiar em Deus, não foi? — falo,
relembrando uma de nossas festas, quando Isabela e Maria anunciaram que
estavam grávidas, três meses atrás.
A Ana já sabia, é melhor amiga das duas, mas em meio à comoção
das pessoas presentes que comemoravam a notícia, acabou se afastando.
Quando fui atrás dela, eu a vi chorando, abraçada ao marido, então disse
isso a ela. E aí está! Eu sabia que eles conseguiriam. Por muito tempo
vinham tentando ter outro bebê, pois já têm uma filhinha, de quatro anos.
Os dois estavam para fazer uma fertilização in vitro, mas, pelo visto, os
planos de Deus eram outros.
Afastando-me, engulo em seco para tentar barrar o choro.
— Estou tão feliz! Descobri nos exames para começar o processo de
fertilização. Acredita que já estou de cinco semanas?
— Vocês merecem muito essa benção. — Eu me estico para apertar
a mão de Josiah. — Parabéns, irmão! E não quero nem saber, serei o
padrinho do moleque!
— Bom, o Bill não é católico, o Nate não tem religião, realmente o
posto é teu.
— Acho bom mesmo! Já estou ansioso para postar foto do
bebezinho no Insta com a hashtag “padrinho ama” — brinco, voltando-me
para o balde de cerveja e enchendo um copo plástico com a Brahma
geladinha.
Minha boca até saliva.
— Você não se cansa dessa tática, né? As mulheres ficam loucas
com você postando foto brincando de chá com a minha filha.
Eu frequento bastante o lar dos meus amigos. Além desses dois
aqui, tem o Bill e sua esposa, Maria, e Isabela e seu marido, o Nate. Estou
sempre enfiado na casa de algum deles, buscando algum alento para a
minha alma em frangalhos. Sempre que estou pela Ana, aproveito para
brincar com a Júlia. Ela mal me vê e já me chama para fazer algo, que pode
envolver pintar minhas unhas, tomar chá com suas bonecas assustadoras
cujos braços e pernas ela adora arrancar, ou desenhar. Eu não vou mentir,
amo esses momentos. Adoro criança. Elas são felizes, não conhecem o lado
ruim e pesado da vida. Enchem tudo ao redor com a alegria de sua
inocência.
E brincar com a Júlia tem o outro lado também, as fotos divertidas
que eu consigo tirar desses momentos para rechear as minhas redes sociais.
— Eu já conquistei algumas mulheres assim. Elas amam ver que eu
gosto de crianças. — Aproveito para me gabar, tomando metade do copo.
— Como o Bill está?
Sei que o clima está bom, mas a situação do nosso outro amigo não
anda nada boa. Bill tem um trauma, e agora sua esposa engravidou, mesmo
com eles tentando evitar. O cara anda super abalado. Por isso, sei que
preciso passar na casa dele para dar uma força. Bill não tem ido muito ao
estúdio, tem até um assistente fazendo as tatuagens para ajudar o Josiah,
enquanto ele, que é o outro tatuador do Ravina, tenta melhorar
emocionalmente. Contratar esse tatuador assistente deu trabalho, pois já
passamos por um susto com um funcionário no passado, que entrou no
Ravina com segundas intenções. Dessa vez, investigamos muito bem todos
os dados desse candidato antes da contratação.
— Hoje eu fui lá ajudar a Maria a arrumar algumas coisas no ateliê
dela e da mãe. Tia Isaura, agora que virou síndica lá do prédio de vocês,
abriu vaga para uma segunda costureira, para auxiliar a Maria. Assim, as
duas têm menos trabalho, podendo se dedicar mais à administração do
negócio –– Ana diz, alisando a barriga, ainda reta, por cima do vestido de
um preto quase azulado. Só cessa as carícias no ventre para jogar os cabelos
cacheados, longos e marrons para as costas, pois um punhado caía em seu
rosto redondo. — Ela chorou um pouco, triste por perceber quão assustado
o Bill está. Eu disse que ia pedir para você, o Josiah e o Nate o levarem para
fazer algo.
Divago sobre o primeiro ponto. A porra da síndica ainda está
contratando alguém para ficar no seu lugar no trabalho. Maria e dona Isaura
têm um ateliê, onde produzem vestidos de festa. Mas o trabalho é tanto que
a minha amiga já tinha contratado uma funcionária para ajudá-la, e agora,
com a gravidez, precisa ainda mais de ajuda. O foda disso tudo é que, com
mais tempo livre, essa síndica vai foder com o meu juízo.
E o Bill? Caralho! Ele é um dos meus melhores amigos. Somos uma
tribo, pessoas que se encontraram, que se amam, que dariam a vida pelos
outros. Eu odeio ver qualquer um deles sofrendo e não poder fazer nada. É
como se doesse na minha alma. Mas eu sinto, como a forte intuição que eu
tive sobre a Ana e que ela iria engravidar de novo, que o Bill vai conseguir
superar seus medos e amar a paternidade, que isso vai refazer o coração
dele.
E vou dizer isso a ele mais uma vez.
Todos os dias, se for necessário.
E vou guardar um bom estoque de piadas para fazê-lo rir.
E para a Santinha, a Maria, vou levar um doce bem gostoso. Ela
ama quando eu levo guloseimas à casa dela. Na verdade, mal imagina que
eu levo bolo da padaria para, em troca, filar sua comida caseira e
fresquinha.
— Vou passar lá amanhã e conversar com ele. Bora todo mundo?
Assim a gente anima os dois — sugiro, tirando a touca para coçar a cabeça,
recolocando-a na sequência.
— Acho uma boa. Vou mandar mensagem para a Isabela e o Nate
avisando da surpresa — Ana diz, tirando seu celular de dentro do decote do
vestido.
Josiah se inclina para frente. O maluco é bonito, tem um rosto tão
perfeito que parece até de mentira. E não existe um só lugar aonde a gente
vá que não tenha mulher de olho nele. Elas até se esforçam para chamar sua
atenção, mas é em vão. Meus amigos são foda, todos os três, eles só têm
olhos para as suas mulheres. Também, elas são incríveis, raras pra caralho, e
merecem o respeito que recebem deles. E quem se dá bem com isso sou eu.
Aproveito sempre a brecha e chego nas amiguinhas das que se jogam para o
Josiah. Costuma dar certo.
— Então, amanhã, o contador do Ravina deve te mandar alguns
documentos para a sociedade. — Josiah enche seu copo com mais cerveja,
com os olhos já ficando vermelhos, um presente do álcool. — Ansioso para
você entrar nessa com a gente, mano. Tu merece. E eu te amo, seu cuzão!
— Também amo você, arrombado! — revido, erguendo a mão
fechada para darmos um soquinho amistoso. No meio do caminho, meus
olhos são sugados por um rastro roxo.
Branca passa por mim segurando uma garrafa do que parece tequila
em uma das mãos. Abraçada ao cangote de uma garota, está indo em
direção ao banheiro que fica atrás do nosso espaço VIP. Exibe os dentes
claros em um sorriso tão largo que nem parece a vizinha que me espezinhou
ainda há pouco.
— Conhece? — Ana aponta com o queixo para a garota. — Tá
olhando de um jeito estranho para ela...
— Essa daí é a minha nova vizinha. — Largo as costas no encosto
do sofá. — Era essa a fofoca que eu ia contar.
— Mentira?! Conta, conta! — Ana bate palminhas.
Ela ama uma fofoca... E eu também.
— Então, acredita que ela me odeia?
— Nãoooo... — Ana coloca a mão no peito, e com a cara mais
cínica do mundo, finge estar chocada. Seu marido gargalha alto, puxando-a
pelo quadril para se sentar em seu colo. Vai começar... Daqui a pouco
estarão quase transando aqui mesmo, e serei obrigado a meter o pé para a
pista de dança. — Quem em sã consciência odiaria um vizinho tão calmo e
cheio de bons modos como o Harryzinho?
— Qual foi, Surtada? — Finjo irritação. — Eu achei um absurdo,
mesmo!
— E o que você fez? Transou com alguma mina no elevador? Botou
funk de madrugada? Deixou teu hamster solto, cagando pelo corredor? —
pergunta meu amigo.
Reviro os olhos para o Jow. Não que ele tenha dado alguma hipótese
impossível de acontecer. Digamos que o Adolfo, meu hamster, tenha fugido
algumas vezes enquanto eu limpava sua gaiola.
Meu antigo vizinho, o seu José, mudou-se do prédio praguejando
contra mim, dizendo que tinha pressão alta por culpa minha, que eu merecia
encontrar um vizinho tão ruim quanto eu era. Achei um exagero. Meu
hamster só fez cocô na porta dele duas vezes, e desde então eu não havia
mais dado brecha para o roedor fugir. Mas foi um alívio me livrar daquele
senhor como vizinho. Volta e meia alguns dos seus amigos “Testemunhas
de Jeová” vinham tentar me dar alguma palavra. Eu até fingia que não
estava em casa.
— O nome dela é Branca. — Divido mais uma lata de cerveja com o
meu parceiro, e só depois de beber alguns goles do copo, volto a dizer: —
Se mudou há duas semanas para lá. Ela tá sempre em casa, e acho que tem
dois irmãos morando no andar de baixo, em frente à mãe da Maria. Eles se
parecem muito. Todos têm o cabelo da mesma cor. Hoje ela simplesmente
não quis segurar o elevador para mim, e ainda me mostrou o dedo do meio.
Aí eu dei um jeito de trancar a porta da entrada na cara dela...
Conto detalhadamente a fofoca inteira, com Ana e Josiah amando a
treta e soltando gargalhadas.
— Ela é muito bonita, Harry. E quando começa assim, termina em
namoro.
— Rá! — Desdenho da fala da Ana. — Eu não namoro nem mina
maneira e que me agrada, toda submissinha, imagina essa daí!
Ana se senta mais de lado no colo do marido, nem disfarça que quer
provocá-lo ao se roçar nele. Que porre! Eu sempre fico de vela nesta porra!
Ela olha para o marido e diz algo. Ele ri, então me encara e abre a boca:
— Cara, eu aposto que você vai se apaixonar por essa garota. —
Começa a alisar a coxa da Ana. Pego outra lata de cerveja do balde, tendo
certeza de que já vou ter que meter o pé se não quiser ver os dois se
alisando de modos piores. — São sempre as geniosas que domam a gente.
E lá está, o filho da puta subindo a mão na coxa da esposa!
Safados do caralho!
— Fui! Vejo vocês amanhã!
Já dou o fora, sem nem olhar para trás. É sempre assim, mas
geralmente eles demoram um pouco mais antes de começar com a putaria.
Eu prefiro quando vão para o dark room e me deixam sozinho, com o
camarote e o balde de cerveja só para mim.
Desço para a pista e vou em direção ao bar, composto por um balcão
de madeira imenso, com led vermelha adornando suas extremidades, taças
suspensas acima de nossas cabeças e garrafas de bebidas variadas atrás dos
bartenders. Eles são um trio de homens empenhados em fazer drinks
diferentes.
Feliz por encontrar um banco livre, coisa rara, eu me sento logo,
para garantir que ninguém o roube. Geralmente é no bar em que me dou
bem, consigo chegar mais fácil em alguma mina maneira para terminar a
noite em alto estilo.
Giro sobre o banco redondo, ficando com as costas apoiadas no
balcão e tendo uma visão privilegiada da pista de dança. Mexo os ombros e
a cabeça, acompanhando a batida da música. Dou goladas na cerveja,
observando se tem alguma mulher ao redor que possa me interessar.
Faz umas duas semanas que eu não saio com ninguém. Já estou me
sentindo necessitado, com as bolas cheias e pesadas precisando de alívio.
Só que, como uma maldição, é aquele maldito brilho roxo que toma por
completo o foco do meu olhar. Branca está a poucos metros de distância,
rebolando até o chão e pagando calcinha. É impossível não notar que é
vermelha. Porra! Será que já está doidona?
De tudo o que pensei para esta noite, nem nas mais remotas
possibilidades eu achei que fosse ter que ficar de olho na minha vizinha.
Quando ela levanta, rindo, entrega a garrafa de tequila a uma loira toda
gostosona que está com ela. Eu não sei por que fico surpreso quando vejo a
Branca meter um beijão molhado na boca da mulher, repleto de línguas se
roçando. Suas mãos pequenas agarram a bunda imensa da loira.
Ela é lésbica?
Que porra é essa? Um filme?
Agora tem um cara com a loira, abraçando-a por trás. E em meio à
penumbra do local, vejo que o homem usa uma aliança dourada idêntica à
da mulher. Mas é quando o beijo triplo vem que eu resolvo dar as costas
para essa porra.
Branca é liberal até demais!
E não sei por que estou puto com essa merda.
Ela é adulta! Eu não preciso me preocupar se está bêbada ou se sai
beijando mulheres por aí. Amasso a porra da lata já vazia e a descarto no
balcão. Quando o barman vem até mim, peço uma garrafa de cerveja.
— Essa filha da puta vai conseguir foder com a minha noite! —
penso alto, abrindo a minha carteira e empurrando uma nota de vinte pelo
balcão ao receber a cerveja.
— Hum, ser xingada por sua boca gostosa me deixa animada. — O
sussurro é bem no pé do meu ouvido. — Ficou excitado ao tomar conta da
minha vida?
Após falar com uma voz mais sóbria do que bêbada, Branca se senta
ao meu lado, virada de frente para mim. A essa altura, eu não sei se ainda
deveria me surpreender com as atitudes dessa mulher. Ainda assim, eu o
faço.
— Mete o pé! — falo, sem querer olhar para ela. — Não é porque
você é minha vizinha que tem que ficar me marcando.
— Está com ciúmes, vizinho? — pergunta, e após eu dar um gole
em minha bebida e a pousar sobre o balcão, ela se apressa a roubá-la dos
meus dedos.
— Meu nome é Harry, então, não me dê apelidos! — Uso suas
próprias palavras para revidar o jeito como me corrigiu em nosso prédio. —
E ciúmes de quê? Eu nem te conheço!
Ela ri.
Olho para Branca por cima do ombro direito, mais sério do que de
costume. A garota dá longas goladas na cerveja. E, totalmente de propósito,
deixa o líquido escorrer por seu queixo, serpentear por seu pescoço e pousar
em seu peito.
É um gesto propositalmente obsceno.
Cheio de insinuação.
A reação do meu pau é incontrolável. Ele fica duro feito pedra,
pulsando. Engulo em seco quando a mulher ao meu lado, assumindo o ar
diabólico mais safado do mundo, ri. Ela gargalha enquanto se aproxima do
meu rosto. Eu deveria desviar, mas não consigo. Branca quase encosta sua
boca na minha, a milímetros tão rasos de distância que me faz estremecer.
— Estarei no dark room. Caso não queira ver uma ceninha para
maiores de dezoito, não me siga.
E sem esperar por resposta, ela vai embora.
O dark room é um quarto escuro destinado a putaria. Pode rolar de
carícias a sexo explícito lá dentro. Em algumas baladas, ele é gratuito; aqui,
tem um segurança na porta que só deixa entrar quem tem pulseira VIP. Você
já compra o ingresso com a taxa extra para entrar lá, ou tem acesso liberado
porque alugou um camarote.
Eu não deveria, mas sou completamente incapaz de controlar meus
olhos. Eles precisam persegui-la para ver o que fará. Por isso, giro sobre o
banco e a acompanho com o olhar. Branca volta até o casal que acabou de
beijar. Segurando a loira pelas mãos, diz algo em seu ouvido. Depois,
afasta-se, sorrindo de um jeito tão safado quanto acabou de fazer comigo.
Eu não sei por que essa louca que acabei de conhecer tem tanto
efeito sobre o meu corpo. E algo me diz, com todas as letras, que ela quer
me provocar. Que, de um jeito insano, sabe que está me irritando. E parece
que é exatamente isso o que busca.
Quando dá as costas ao casal, seus olhos expressivos se prendem em
mim pelos segundos exatos de me deixar uma mensagem, uma provocação,
quase um convite.
Eu duvidei que ela realmente fosse fazer isso. Pensei que fosse um
blefe, algo para me deixar excitado, sei lá. Mas não achei que Branca
viraria as costas, convidaria um casal a segui-la, e que depois realmente iria
à área pecaminosa da balada.
O que eu faço agora? Ela está bêbada! E vai fazer merda com um
casal!
Ela sempre faz isso? Vai a baladas e transa com todo mundo? Ou
Branca conhece aqueles dois de longa data? Eu preciso socorrê-la, ou ali
não existe nenhuma donzela indefesa?
Eu não sei por que estou fazendo essa merda.
Esse não sou eu.
Eu venho a baladas para foder, beber e fugir de tudo. Mas, agora...
agora estou seguindo a minha vizinha, quase preso em uma espécie de
magnetismo insano que emana dela.
Quando desvio de pessoas dançando, deparando-me com olhares
provocadores de grupinhos de mulheres, que em outro momento seria um
convite perfeito para eu sair daqui direto para um motel com alguma delas,
percebo que estou fora da casinha. Por quê? Por que estou seguindo essa
mulher?
Quando entro no cômodo longo e muito escuro, com uma luz
estroboscópica vermelha surgindo por poucos segundos, iluminando o local
com os tons do inferno e depois sumindo, procuro Branca com uma
sondada desesperada ao redor.
Tem casais se chupando pelas paredes, gente se alisando, e bem lá
no fundo, uma garota quicando no pau de algum cara. Alguns blocos
quadrados de alvenaria, revestidos com o que parece cimento queimado,
servem de banco. Um pouco mais adiante, quando, por breves segundos, o
quarto se ilumina, vejo Branca. Está beijando a mulher. E então o mundo
escurece quando a lâmpada volta a se apagar.
Aqui dentro, a música é um pouco mais baixa, e os gemidos,
sussurros e arfadas até sobrepõem os resquícios do funk proibidão. Quando
o mundo volta a adquirir o tom infernal, sedutor e quente de vermelho,
Branca está sentada. Seu vestido está na altura da barriga, e a mulher, de
joelhos, tem a boca entre suas pernas.
Branca é uma puta safada!
Isso está mexendo com a minha mente.
Eu não deveria estar aqui, olhando essa merda. Agora, cada vez que
eu a vir pelos corredores do meu prédio, vou me lembrar disso, dessa
mulher lambendo a sua boceta bem no meio da balada.
Quando tudo volta a se apagar e eu não vejo mais um palmo à
minha frente, eu me pergunto se não é o momento de sair daqui. Mas antes
que eu tenha um tempo adequado para pensar, a sala clareia e o golpe
derradeiro em minha mente é cravado. Agora Branca está com o pau do que
eu creio ser o marido da loira enfiado na boca.
E finalmente meus pés funcionam e eu resolvo me afastar deste
lugar.
Eu nem conheço essa garota, mas de um jeito estranho, estou mal,
quando deveria apenas ter ficado excitado.
Planejei ter uma noite incrível, e por culpa dessa demônia em um
corpo perfeito e tentador, vou embora frustrado, irritado e excitado. Eu não
terei ânimo para seguir com o meu plano de beber ou conhecer alguém. Os
flashs escarlates da cena que acabei de ver voltam toda hora à minha
cabeça. É melhor eu ir embora e tentar, de algum jeito, fingir que nunca vi
aquela merda.
Seria uma fofoca incrível, se não tivesse me afetado.
“No silêncio, quando estou voltando para
casa e estou sozinha, eu poderia mentir,
dizer que eu gosto assim”.
When the party's over - Billie Eilish.

O sabor quente do pau desse cara, salgado, suado, cheirando a


homem, na minha boca é perfeito. O que estou fazendo é errado, como tudo
em mim. E cada vez que eu entorto meu corpo para conseguir enfiar seu
membro o mais fundo possível em minha garganta, mais podre eu me sinto.
Nem mesmo a voz da moral sussurrando em minha nuca que sou
uma vadia consegue me conter.
É isso o que sou.
Uma puta imunda e bêbada que se satisfaz com sexo barato em
baladas lotadas, becos escuros e banheiros públicos. Onde der. É essa merda
que sobrou de mim.
A boca deliciosa da esposa dele está dando tudo de si em minha
boceta, circulando meu clitóris em um ritmo insano, ora descendo até se
enfiar em minha carne úmida, ora voltando até ele para me fazer tremer.
E sabendo que logo eu não vou aguentar e acabarei gozando, busco
o meu prêmio de uma vez, apostando no golpe baixo de uma garganta
profunda. Eu engulo o pau desse estranho até que esteja atolado no fundo
da minha garganta. Mergulho e emerjo em sua pica como se estivesse em
meu brinquedo favorito. Em um minuto, voltando para lamber a cabeça e o
masturbando com a mão, em outro, engolindo como se estivesse faminta e
meu único alimento fosse este boquete. Quando sinto o membro inteiro
vibrando, eu o retiro da boca e me dedico a masturbá-lo. Pouso sua cabeça
imensa em minha língua, e quando o líquido quente e gostoso a inunda,
chego a suspirar de boca aberta. E como se a minha vida dependesse disso,
bebo todo o gozo que esse maldito estranho está me dando.
A loira continua sua tortura deliciosa lá embaixo, mas agora que eu
bebi toda a porra do seu marido, quero terminar a brincadeira provando a
dela também.
Eu estava quase deitada sobre a bancada de alvenaria, mas agora
estou completamente sentada, e quando sou presenteada com um flash de
luz vermelha, vejo o rosto dela cheio de tesão enquanto me lambe sem
pena.
Preciso acabar com essa chupada logo, ou vou acabar gozando. E se
eu gozar, tudo termina. E, quando terminar, eu vou afundar na carne podre
dentro de mim, e não estou pronta para isso ainda. Afasto a loira cujo nome
nem sei do meio das minhas pernas por tempo suficiente para me inclinar e
atacar sua boca borrada de vermelho com meus lábios. Eu a beijo com
fome, misturando o sabor de seu marido em minha língua ao meu próprio
gosto, que dança uma valsa na sua. Seguro seus cabelos, algo que me excita
muito, e do jeito rude e esfomeado que carrego dentro de mim, enfio
minhas mãos pequenas em seu pescoço e a enforco com força enquanto a
beijo. Eu mordo seu lábio inferior, alimento-me ao senti-la sufocar, e
quando a luz oscilante surge por milésimos de segundo, vejo o prazer
brilhando em seus olhos azuis. Sorrio, solto sua garganta e dou um tapinha
em sua bochecha molhada com a umidade de minha boceta, enquanto ela
luta para sugar de volta o ar de que eu a estava privando.
Quando a escuridão volta a nos brindar, eu a puxo pelos cabelos,
forçando-a a se erguer. Mais alta do que eu, ela precisa se curvar para
sussurrar em meu ouvido:
— Como uma coisinha pequena e novinha assim tem uma pegada
dessas?
Mordisco meu lábio inferior o suficiente para sangrar enquanto
sorrio, posicionando-a do jeito exato para que se sente no banco onde eu
estava. Eu me ajoelho diante dela, com a boca salivando ao ver que está
sem calcinha por baixo de seu vestido de malha branca. Ela é grande,
definida e gostosa pra caralho. E seu marido é do tipo que pode me quebrar
ao meio, o que eu particularmente não curto tanto. É muito forte. Eu prefiro
homens musculosos, mas não exagerados, como esse aqui. Gosto do porte
de atleta, tipo o Har...
Merda!
Eu não quero pensar nele.
Eu não vou pensar nele!
Não agora...
Não desse jeito!
Irritada, eu me apresso em me esticar um pouco para o lado, com o
chão áspero arranhando meus joelhos, até alcançar minha bolsa. Sou ágil
em pegar o pacotinho roxo contendo uma camisinha. O marombado já se
ajoelha atrás de mim, e nem parecendo que acabou de gozar, já esfrega o
pau duro na minha bunda, desce as mangas do meu vestido e alcança meus
seios. Aproveito para me recostar em seu peito, virar o rosto para o seu
ouvido e sussurrar:
— É pra foder com força!
Eu não o deixo dizer nada, apenas fico o mais empinada possível,
então resolvo puxar sua esposa pelas coxas, para que fique com a bunda na
borda do banco.
Ele não é gentil quando mete seu pau dentro de mim, mas não há
resistência alguma do meu corpo. Minha boceta está úmida feito um
manancial. Não existe sutileza quando seu membro se choca com força no
meu ponto mais fundo. Gemo alto, abocanhando o clitóris farto de sua
mulher. Esse homem me fode com vontade, apertando meu quadril a ponto
de seus dedos quase rasgarem a pele para se infiltrar inteiros nela, e, em
consequência, suas unhas se enterram em minha carne. A cada investida
frenética dentro de mim, eu fervo, sinto as paredes internas de minha boceta
ardendo. Estou pegando fogo, com tanto tesão, tanto desejo, que a cada vez
que ele mete, emite um barulho molhado.
Eu me perco na boceta macia dessa mulher, tendo tudo o que preciso
para alimentar o lado viciado em sexo dentro de mim. Fodo uma esposa e
sou fodida pelo marido.
Em meio ao frenesi do nosso sexo doentio, não demora muito até
que estejamos gozando juntos. Eu sinto o cara enchendo a camisinha e seu
pau inchando em minha boceta, que, em meio aos espasmos esfomeados do
meu próprio gozo, aperta o membro inteiro. A mulher goza em minha boca,
seu néctar escorre pelo meu queixo. Meu último ato é beber tudo o que ela
deixa escapar. E, quando termino e ele sai de dentro de mim, sentindo que
estou saciada, que alimentei a minha podridão, dou um jeito de me afastar
dos dois. Com o dorso da mão, limpo o orgasmo da loira que me maculava
o queixo.
Estou cansada.
Minha cabeça começa a doer e o costumeiro peso absurdo que surge
desses momentos é como um saco de cimento em cima de cada ombro. O
homem os toca, parece perceber que eu não estou bem agora, mas não
adianta.
Não é culpa deles que eu esteja assim.
Eles foram apenas o meio para eu alimentar um lado desesperado
em mim.
Fico de joelhos e, mais lenta que um caramujo poderia fazer, arrasto
meu vestido para baixo, então, puxo minha bolsa até sua alça pousar em
meu ombro. Eu não sei onde minha calcinha está, mas, neste segundo, é o
que menos importa. Tateando até encontrar as coxas da mulher com quem
transei, eu as uso para me apoiar e ficar de pé.
Cambaleio para longe, querendo me esconder do mundo, desses
dois, de mim mesma.
— Espera! –– Ouço a loira gritar, sobrepujando a música.
Mas nada é capaz de me fazer esperar.
Eu sou apenas um corpo agora.
Com uma alma fodida.
Uma mente perdida, imunda, suja...
Vagueio em meio a pessoas felizes na pista de dança. Penso em ir
até o bar e comprar outra garrafa de tequila. A minha se perdeu ou foi
furtada, vai saber... Certamente, já está fazendo efeito no fígado de um
desses arrombados ao meu redor.
A verdade é que preciso ir para casa.
Que preciso de um banho.
Que preciso ficar sóbria e voltar a ser a Branca. A que se isola. A
que se protege. E não a Veneno. A que quer vingança. Que não mede
consequências e que se suja ainda mais do que a sujaram.
Em meio ao mar de gente, paro de andar. Sinto as paredes tremendo
junto à intensidade do som, e sabendo que ninguém pode me ouvir ou
prestar atenção em mim, eu grito. Grito para espantar o barulho da minha
mente. Grito até que minha garganta arda. Que minhas cordas vocais
reclamem. Grito porque sou incapaz de chorar.
Estou quebrada há anos demais para conseguir uma mísera lágrima.
E quando me torno rouca, quando até minhas cordas vocais se
esgotam, eu resolvo seguir para fora, vendo pessoas e rostos disformes ao
meu redor.
A garota safada que chegou a este antro querendo apenas alguns
corpos para usá-la não está mais aqui. Agora, eu sou apenas a mulher
descendo na areia movediça da própria culpa.
É sempre assim. Uma dança em que eu já conheço todos os passos.
Eu já me acostumei, mas isso não torna nada menos doloroso.
Sou apenas os cacos que sobraram de mim.

Em frente ao meu prédio, desço do táxi, e carregando meus sapatos


em uma das mãos, eu me inclino sobre a janela do carona do veículo
amarelo e estendo uma nota de cinquenta para o taxista. Ele demora a pegar,
pois está preso demais na minha cara de bêbada, provavelmente achando
que sou o prato perfeito para ele enfiar a boca velha e suja. Irritada e até
ultrajada, atiro a nota, que voa pelo ar antes de pousar em cima dele. Então,
eu lhe dou as costas. Ouço um “vadia” sendo soprado antes de o carro
arrancar a toda a velocidade, fazendo as rodas soltarem um ruído horrível
pista afora.
Na calçada de casa, corro os olhos pelo prédio onde resolvi me
enfiar. Morar aqui é o anúncio do começo de uma jornada obsessiva. Ou
seria o fim?
Quando olho para cima, pela fachada desbotada e de janelas
extensas e antigas, vejo, no quarto andar, uma silhueta fumando. É o Rafael,
meu irmão mais velho. Ele não cansa de ficar me marcando. E quando meu
telefone começa a vibrar dentro da bolsa, bufando e sentindo o peito arder
de raiva, resolvo atender.
— O que foi?
— Entra logo na porra do prédio! — Sua voz é grossa e, como
sempre, mal-humorada. — A rua está um breu. Quer ser assaltada?
Reviro os olhos e desligo na cara dele. Enquanto faço o trajeto até o
portão, percebo que a moto do Harry não está na calçada. Acho que ele
ainda está na Vermute.
Eu amo baladas, mas geralmente prefiro as casas de swing. Fui a
essa hoje porque sei que é a que ele costuma frequentar. Planejei sair no
mesmo horário que o Harry, ser gentil, conseguir uma carona e fazer
amizade.
Mas eu fiz tudo errado!
Saiu tudo diferente do que eu havia imaginado, da merda que passei
meses planejando.
Quando eu o provoquei no bar e vi desejo em seus olhos, e o jeito
como me encarou, eu quis que ele me seguisse, que visse o que eu estava
fazendo. Por alguns segundos, jurei que ele estava com raiva, com alguma
espécie de ciúme de mim. Feito uma idiota que nem controla mais o que é
capaz de sentir, que já misturou tudo, eu fiquei animada com isso, com a
possibilidade de arrancar algo dele. Não importava se fosse tesão ou apenas
raiva. Mas eu não o vi no dark room. Acho que ele não entrou no meu jogo.
Talvez aquele garoto não seja capaz de descer tão baixo quanto eu.
Quando entro no prédio, com meus saltos na mão e os pés no chão
imundo –– mas nem de longe tão sujo quanto a minha alma ––, sinto o
vento gelado da madrugada balançando-me os cabelos e arrepiando-me a
nuca.
Eu movi mundos e fundos, briguei com todos os meus irmãos para
estar aqui, no mesmo lugar onde mora a minha maior obsessão, diante do
cara que eu persigo virtualmente há um ano inteiro. E quando finalmente
interagi com ele, eu não consegui segurar a porra do meu ranço.
— Fodida do caralho! — xingo a mim mesma.
Eu quero chorar.
Fico assim todas as vezes que abro as celas na minha mente e deixo
a maldita viciada em sexo sair. Mas as lágrimas, os soluços, eles ficam
presos, calcificados nos meus ossos, embrenhados na minha pele. Não saem
por nada.
Engulo o desespero, forçando-o a descer pela garganta, e quando
entro no elevador velho e enferrujado, eu me pergunto: “Como mudar
isso?”. E não importa o quanto eu busque a resposta, ela não vem. Eu não
sei se realmente quero mudar ou apenas não consigo.
Demora uma eternidade até chegar ao quinto andar, mas eu me
apresso a sair assim que as portas se abrem. Eu não estou andando, estou
arrastando os pés pelo piso do meu corredor, que parece sujo, mas só está
manchado. Quando paro entre a minha porta e a do homem a quem
certamente irei destruir, tenho um flash do meu segundo maior pesadelo.
Aperto a testa, agarro meus cabelos, tento expulsar os pensamentos,
mas as luzes fortes do farol não saem dos meus olhos. Os gritos. A sensação
de estar nas nuvens, só para depois despencar. E então... o silêncio. O
anúncio do fim. Eu grito com a minha cabeça. Imploro que pare. Que afaste
essa lembrança.
A minha mente é um lugar de dor. Consequentemente, tudo ao meu
redor acaba do mesmo jeito.
Abro a porta da minha casa, e quando acendo as luzes do ambiente
cheirando a incenso de lavanda e cigarro, a primeira coisa que meus olhos
encaram é o terrário da Nagini, majestoso e envidraçado ao lado da minha
cama. As luzes estão apagadas para que a minha cobra Real Mexicana
durma. Eu as deixo acesas a partir das oito da manhã e as apago doze horas
depois, para que o ciclo de dia e noite ocorra direitinho para o organismo da
minha bebezinha.
Eu ganhei a cobra do Rafael quando tinha treze anos. Nossa vida
havia mudado. Estávamos quebrados em pedaços muito pequenos,
sobrevivendo a doses grandes de veneno e tentando nos reconstruir.
Perdemos uma parte muito importante para nós. Eu estava tão ferida que
tinha medo da minha própria sombra. Foi por isso que meu irmão me deu a
cobra, dizendo que me protegeria.
Jogo os sapatos emporcalhados pelo chão de piso laminado e escuro
ao lado da porta. Atravesso a cozinha em conceito aberto, colocando de
qualquer jeito a minha bolsa em cima da mesa de sete lugares com um
tampo em laca branca.
Vou direto para o banheiro, um cômodo pequeno, de azulejos claros
e móveis brancos. Diante do espelho em estilo camarim, com luzes
amareladas, observo a garota que me encara de volta.
— Sempre perdida... — digo ao meu reflexo.
Engulo em seco, como costumo fazer quando o choro deveria ser a
verdadeira opção. Retiro meu colar e os brincos, então pego uma presilha
em cima do balcão de mármore cinza e a embrenho de qualquer jeito em
meu cabelo, amontoando os fios, que chegam aos ombros, bem no alto da
cabeça. A poucos passos do blindex que separa o chuveiro do restante do
banheiro, deixo o vestido despencar pelo meu corpo, pousando nos pés.
Inteiramente nua, eu me enfio embaixo de jatos pesados de uma
água gelada. Coloco sabonete líquido na esponja de banho, e quando ela
está cheia de espuma, esfrego meu corpo. Eu tento fazer isso não ser tão
doloroso, mas a cada vez que os flashs vermelhos da foda na balada voltam
à minha mente, mais forte eu lavo a minha pele, como se precisasse esfolar
para retirar o toque, a imundice que repousa sobre ela.
Eu poderia fingir que realmente gosto disso. Que quando estou na
rua, com corpos sobre o meu, querendo a todo custo sentir a porra de
alguma coisa além da agonia eterna que é existir, que isso é algo bom. Mas
quando chego em casa, quando estou sozinha, tudo o que eu vivo é isso. A
sensação eterna de ser uma imunda. De ser corrompida. De que nem toda a
água do mundo seria capaz de limpar a podridão que existe em mim.
Uma vez envenenada, sempre envenenada.
“Algo está em minha mente.
Sempre na minha cabeça.”
Lovely (feat. Khalid), Billie Eilish.

Eu tenho onze anos.


Posso sentir meus cabelos compridos e nunca cortados chegando ao
quadril, fazendo cócegas em meus braços desnudos. A camisola em meu
corpo é branca, macia e tão longa que chega a rastejar no chão.
Estou em uma sala gigante, escura e esquisita. É gelada e tem um
cheiro estranho, meio empoeirado e terroso. Em meio a rostos conhecidos e
sempre queridos, temerosa e assustada, sei que aquilo no meio da sala é
para mim: o altar feito de pedra.
Em um segundo, tudo está intacto. Em outro, é como se as coisas, as
pessoas, tudo ao meu redor começasse a estilhaçar. Como se cada detalhe
do ambiente, até mesmo o ar, fosse feito de poeira, sendo soprado e se
desfazendo com o vento.
Quando, em meio ao desespero, eu percebo que estou em um lugar
vazio, inteiramente negro, como se estivesse perdida em um buraco escuro,
tudo o que surge diante de mim é uma pessoa: o homem que foi o meu
início e quase o meu fim.
Eu me sento em um pulo, com o coração pesado, a ponto de doer.
Estou respirando tão forte que quase sinto os pulmões ardendo. Acabei de
despertar do pesadelo que ama me torturar. Repetitivo. Noite após noite,
revivo essa bosta, como se fosse parte do ritual da minha existência. Eu me
deito na cama, mas não é realmente um sonho o que tenho. É como se
minha mente fosse sempre transportada para um mesmo lugar no passado: o
dia em que eu morri.
Enquanto espero meu coração parar de errar as batidas, meus olhos,
que aos poucos vão se adequando à luz do dia, caem sobre Dan, meu irmão
e dono do meu coração. Ele ri para mim, bagunçando com uma mão seu
cabelo castanho e meio desgrenhado. Em seguida, por meio dos gestos
lindos de sua linguagem, em Libras, ele me diz que está fazendo o nosso
café da manhã.
Eu dei a chave do apartamento a ele, mas não aos outros irmãos. Por
isso ele tem entrado, desde que eu vim morar aqui, para fazer café para
mim. Ou me acordar com carinho na cabeça quando estou gritando em meio
ao sonho.
De lado, manejando uma frigideira em meu fogão, consigo ver a
tatuagem que ele tem na lateral direita de seu abdome malhado. É
igualzinha à que eu tenho na coxa direita: uma Medusa em tons de preto,
com as cobras eriçadas apontando para qualquer um que ouse olhar para
ela. Quando eu a fiz, aos quinze anos, escondida de Rafael, meu irmão mais
velho, os outros cinco irmãos me imitaram. É claro que depois de um
sermão do caralho em meu ouvido.
Cada um fez a sua Medusa em uma parte do corpo. Adam tem uma
no peito, João tem a sua nas costas, Elias e Samuel fizeram na panturrilha.
E vendo que já havia virado uma marca nossa, Rafael teve que se render,
tatuando a sua no bíceps direito.
Dan, na verdade, chama-se Daniel.
Já o meu nome a minha mãe me disse, por vezes demais, que
escolheu por causa do conto da Branca de Neve. Porque a mais bela das
princesas era ela. E depois de ter tido sete filhos homens, quando veio a
menina, ela resolveu homenagear a sua princesa favorita.
Daqui, observo meu irmão dançar, embalado por uma música da
Lady Gaga que toca baixinho na cozinha, em uma caixinha de som que ele
trouxe de sua casa. Dan gosta de música. Isso o deixa calmo.
Ele sabe o que eu fiz ontem. Na verdade, todos os meus irmãos
sabem. Eu não escondo que sou uma puta, porque, quando saio de casa à
noite, nunca volto sem me sentir péssima por ter transado com alguém ou
ter tomado um porre.
Eu até tentei manter isso em segredo. Porém, quando eu tinha
quinze anos, Rafael me arrastou de baixo de um cara que comia o meu rabo
como foderia uma vagabunda experiente. E bem no banheiro do nosso
condomínio, na Barra da Tijuca. Meu irmão me deu vários tapas nos braços,
perguntando aos berros se eu estava louca. Eu ri feito uma desvairada, só
sendo capaz de responder que eu era a puta que os nossos pais haviam
criado. Pensei que os tapas dele migrariam para a minha cara, mas, em vez
disso, o homem com o rosto mais bravo que eu já vi na vida chorou.
Naquele dia, deixando os vestígios do veneno que inunda minhas
veias escaparem pela boca, eu soube que havia tocado em uma ferida que
também era dele. Que eu não tinha aquele direito. Só que era incontrolável.
Era dor demais. Eu tinha de deixar sair. Eu precisava arruinar o lado de
fora, deixá-lo quebrado como o meu interior.
Balanço a cabeça, tentando a todo custo não ferrar com o meu dia
logo cedo com essas lembranças. Esticando-me ao me espreguiçar, solto um
som que parece um miado. Levanto-me da cama. E, como todos os dias, a
primeira coisa que faço é abrir o terrário da Nagini. Assim que deslizo a
tampa de vidro, ela rasteja rápido para fora do galho de árvore onde estava
escondida. Quando mergulho meu braço, ela serpenteia por ele. O tom de
negro quase se funde à minha pele conforme a cobra se enrola em mim.
Com 120 centímetros de comprimento, ela é um pouquinho pesada,
mas nada muito difícil de aguentar. Extremamente dócil, Nagini é tão
devota a mim quanto eu sou dela.
— Vamos lá dar bom-dia para o titio? — falo, acariciando com o
dorso do dedo a sua cabecinha.
Seus olhos negros são muito hipnóticos e parecem presos em mim,
enquanto sua língua chicoteia para fora por breves segundos, tentando
captar melhor os cheiros do ambiente. Serpentes usam a língua para isso,
embora muita gente pense que é alguma forma de ameaça. As coitadas só
estão captando o cheiro ao redor.
Chego à mesa, que escolhi a dedo para que tenha assento disponível
para todos os irmãos quando vierem me ver, e me sento em uma das
cadeiras cor de mel. Deixo que Nagini rasteje por meu braço, sentindo uma
breve cócega quando ela passa pela minha nuca e deita com a cabeça sobre
um dos meus ombros.
— Bom dia, Xuxu! — brinco quando meu irmão pousa um prato
com panquecas americanas na minha frente.
É meu café da manhã afetivo. Deixa-me feliz. E como se conhecesse
cada pedaço da minha alma, Dan sempre sabe quando estou precisando
disso. Por cima dos olhos, eu o vejo gesticular:
“Bom dia, safada!”
Meu irmão me ouve perfeitamente. Ele parou de falar quando tinha
doze anos, no mesmo dia em que me mataram por dentro. Daniel não é
surdo, pelo contrário, tem um ouvido aguçado para fofocas.
Quando eu resolvi sair de casa e vir morar aqui, somente ele soube
uma fração da verdadeira razão. Embora este prédio seja o escolhido apenas
por causa do Harry, eu já queria morar sozinha, para evitar a superproteção
do Rafael.
O garoto diante de mim ajeita a calça de pijama vermelha em seu
corpo, depois se joga na cadeira à minha frente.
— E o Rafael? — pergunto.
Coloco uma boa dose de mel sobre as minhas panquecas, deixando
que respingue pelo prato de cerâmica clara e até suje um pouquinho da
mesa, depois dou uma garfada farta e encaro os invejáveis olhos claros do
meu irmão. As sobrancelhas grossas, bem-feitas e levemente arqueadas,
parecem a pincelada perfeita para que seu rosto seja uma obra de arte. Sua
boca, igualzinha à minha, abre-se em um sorriso enquanto ele diz:
“Foi minerar. Mas antes disse que você precisa voltar para a
terapia, que saiu para caçar sexo de novo.”
— Já estou até voltando! — debocho, colocando uma dose de café
em minha caneca de cerâmica branca e estampada com corações cor-de-
rosa. — E sim, fui dar o que é meu. Ele já deveria ter entendido que sou
adulta e faço o que eu quiser. Se terapia resolvesse, você já teria voltado a
falar e eu não estaria aqui... — Paro a tempo de não soltar o restante da
frase em voz alta.
Mas nada me impede de pensar que, se a porra da terapia realmente
resolvesse, eu não estaria aqui, morando na frente de quem eu mais odeio
no mundo, esperando para dar o bote e acabar com ele!
Eu fiz terapia dos treze aos dezessete anos por dois traumas
gigantes. E nunca resolveu. Nada é capaz de remendar o que tem dentro de
mim, porque não tem como apagar o que fizeram comigo. Não tem como
consertar o que se partiu na minha mente ou trazer de volta o que me foi
tirado.
Rafael está morando com o Dan no andar de baixo, em frente à
síndica aqui do prédio. Eu briguei muito para poder morar sozinha. Porra,
eu já tenho vinte anos! Sei me cuidar. E sou totalmente capaz de me
sustentar. Aprendi a “minerar” como todos eles, do meu jeito, com meu
próprio talento.
Descobri, pouco depois que todos nós saímos do lugar onde
crescemos, que tinha uma facilidade absurda com programação. Comecei
aprendendo a criar sites, depois os invadindo, apenas para colocar o nome
Veneno em todos eles para me exibir. E logo eu estava criando trojans[4] e
roubando moedas das contas dos outros em jogos. Por fim, fazendo ataques
Phishing[5]. Com eles, eu consigo dados de contas e cartões de crédito, então
movo dinheiro dos outros para mim mesma, sem deixar qualquer rastro
onde possam me encontrar. Em fóruns na Dark Web, muitos hackers
conhecem e admiram o meu “pseudônimo”. E embora não devesse, eu me
orgulho e gosto do que faço.
E se me perguntassem se eu tenho pena das pessoas que roubo, a
resposta seria muito simples: não. Eu tenho bastante tempo livre. Antes de
roubar alguém, eu me certifico de que a pessoa não merece a minha
empatia. Geralmente, aplico golpes cibernéticos em caras que conheço em
sites de namoro. Os que traem esposas, seduzem e tentam abusar de
crianças, ou seja, a banda podre da humanidade. Pedófilos são a minha
maior diversão. Quando eu não os exponho no trabalho, mando prints de
suas conversas com as crianças que tentam aliciar para membros de suas
famílias. Ou para a polícia.
É uma das minhas maiores satisfações.
Meus irmãos e eu precisávamos nos manter de alguma maneira. É
claro que poderíamos ser uma família mais comum, mesmo que
disfuncional, trabalhando, estudando e fazendo as coisas do modo correto.
Mas nada nunca foi correto para nós.
Sequer foi justo.
E pela primeira vez na vida, depois de tudo o que tentamos para nos
refazer dar errado, meus irmãos optaram por um caminho mais fácil: golpes
de colarinho branco. Fora o Dan, meus outros cinco irmãos são expert
nisso. Eles não são como eu, não ligam para quem está do outro lado.
Qualquer um pode ser enganado em vendas de imóveis que não existem,
esquemas de pirâmides ou outras merdas lucrativas que os cinco inventam.
Chamamos o nosso trabalho imoral de “minerar”.
Daniel é o mais bonzinho de todos nós. Isso é dele, porque, mesmo
com toda a merda que passamos, continua sendo alguém com muita luz
dentro dele. Dan faz faculdade on-line de Letras, não que queira ser
professor ou algo do tipo. Ele quer se aperfeiçoar. É um escritor nato, conta
histórias incríveis de amores tão profundos, doces e tocantes que eu me
pergunto se realmente há no mundo pessoas que vivenciam isso. Uma
doação para outro ser humano como as que ele escreve. A meu ver, a vida é
cruel demais para que algo bonito assim possa existir. Amores perfeitos,
almas-gêmeas, isso só existe no papel.
Rafael é quem paga a faculdade dele. E mesmo que se negue a
minerar, Dan não recusa o fruto do que nós seis conseguimos e também o
beneficia.
Meu irmão sonha em encontrar um homem que seja a sua outra
metade da laranja, e volta e meia aparece com algum namorado que jura
que se casará e manterá uma família. E quando dá errado, passa dias
agarrado a mim, chorando em minha cama ou ouvindo músicas
melodramáticas que me fazem querer bater a cabeça na parede.
Eu amo todos os meus irmãos, mas com o Dan a minha conexão vai
além. Eu não sei se por ele ter apenas um ano a mais que eu, tenho uma
maior intimidade e ligação com ele. Ou, por ser tão doce, e até inocente, faz
com que eu me sinta no dever de protegê-lo. Mas eu o amo tanto, tanto, que
meu coração até dói quando penso em tudo o que passamos. Em como ele
acabou se resguardando da própria dor se tornando mudo. Se eu pudesse,
teria concentrado tudo aquilo apenas em mim, aguentado tudo sozinha, para
que ele e os outros não tivessem que passar pelo mesmo.
“Ei, Branquinha, não pense nessas coisas! Sei que está
relembrando. Dá para ver em seu rosto.”
Reviro os olhos, engulo o nó atado em minha garganta e solto a
Nagini no chão. Ela gosta de rastejar pela casa, embora não seja de subir em
nada além das cadeiras ou minha cama. Por isso, fico tranquila em deixá-la
solta de vez em quando. Ela já tem sete anos, é uma mocinha comportada.
— Estou bem! Não quer saber como foi a minha noite? — pergunto,
sorvendo um gole do meu café.
“Quero, óbvio. Foi um bofe bem gato ou alguma gatinha?”
Eu amo que ele não me julga ou tenta me dar lição de moral. Na
verdade, Dan também me conta sobre as suas aventuras sexuais, e eu adoro
essa amizade entre nós. Isso é realmente a coisa mais preciosa que eu tenho
com ele.
— Os dois — digo e sorrio. E mesmo que eu não me sinta orgulhosa
das coisas que faço, reconheço que meu corpo fica mais calmo depois que
transo com alguém. — Um casal.
“Safada! E o menino aqui da frente, não ia tentar sair com ele?”
Dan acha que eu fiquei obcecada com o Harry por causa do
videogame, e que por isso eu virei uma stalker fodida e resolvi me enfiar na
vida dele a qualquer custo. Ele não pode saber a verdade, embora me doa
precisar mentir logo para alguém que eu tanto amo e confio. Mas nenhum
dos meus irmãos pode sequer sonhar sobre quem verdadeiramente é o
Harry. Isso poderia virar uma tragédia. E não é realmente o que eu quero.
Eu não quero esse homem lindo, cheio de piercings e cheiroso morto.
Merda! Como eu posso achá-lo tudo isso, quando o odeio tanto? O que
importa mesmo é que eu o quero apenas derrotado.
— Na verdade, eu até interagi com ele. Consegui a carona, como
havia planejado. Mas na hora “H”, eu meio que fiquei com um rancinho
dele, por causa daquele dia, em que o vimos transando no corredor. Então,
eu o tratei mal.
Meu irmão ri, depois pega um maço de cigarro de menta, pendura
um nos lábios e me oferece outro. E já tendo terminado a minha refeição, eu
aceito. Ele acende e me entrega. Após uma longa tragada que parece
acalmar cada célula do meu corpo, eu me lembro do dia em que vim morar
aqui. Com a ajuda do Dan, eu desfazia as caixas da mudança. Foi aí que
ouvimos gemidos femininos muito altos vindo do corredor.
Quando Dan e eu enfiamos a cara para fora da porta, vimos Harry
transando com uma garota na parede em frente ao elevador. Cara, ele estava
a pouquíssimos passos da casa dele, por que não transou lá dentro? Mas eu
não fiquei com raiva dele por isso. Eu o odeio por razões profundas e
antigas. Essa é apenas a desculpa para que meu irmão não desconfie do
ranço que, pelo visto, vai emergir mais vezes do que sou capaz de imaginar.
“Se quer conquistá-lo, não pode ficar com raiva disso ou o tratando
mal. Ele é solteiro, Branca. Assim como você faz, e muito, ele pode foder e
se aliviar a hora que bem entender. Por que não para de graça e o chama
para sair?”
— Eu não quero só dizer: “E aí, bora sair para uma balada?”.
Quero que ele se interesse por mim, que se apaixone.
E não é mentira. Eu quero que o Harry fique doido por mim,
enquanto, por outro lado, faço da vida dele um inferno. Ele estará tão
perdido que nem vai perceber quando eu lhe der o bote!
Apago meu cigarro em um cinzeiro de cristal no centro da mesa,
bem no meio dos pratos do nosso café da manhã.
Com os pensamentos fervendo na mente, vou até o viveiro da
Nagini para começar a limpá-lo e depois dar comida a ela. Essa conversa
com o Dan ativou todas as coisas que eu pretendo fazer com o meu vizinho,
e preciso iniciar algo importante quanto antes. Eu já deixei passar muito
tempo. Não pode passar de hoje!
“Lembra quando você tentou me sacanear?
Lembra quando você achou que

eu aceitaria como uma derrota?”

Bad Blood (feat. Kendrick Lamar), Taylor Swift.

Estou há meia hora olhando para o teto, tão obstinado que consigo
até mesmo notar as irregularidades na pintura branca. Meu cérebro parece
se recusar a apagar as imagens de Branca na balada. Eu vejo flashs dela
transando com o casal acendendo e apagando junto à maldita luz vermelha.
Por que isso me tira do eixo? Eu quero jogar uma pá de terra em cima dessa
lembrança, mas não consigo.
Preciso me levantar, no entanto, meu corpo molenga e as pálpebras
pesadas parecem ter outra ideia. Eu não costumo ser assim. Geralmente, eu
me levanto de boa se tive uma noite tranquila, sem beber ou ter ido caçar
uma foda. Hoje é sábado, dia de folga, eu deveria estar mais relaxado. Mas
não, sigo aqui, parecendo um idiota, com uma preguiça do caralho e sem
conseguir sair da cama, mesmo que o relógio em formato de robô na minha
mesinha de cabeceira marque sete horas da manhã.
Eu preciso ir à porra da Vermute buscar minha moto, porque, como
bebi ontem, mesmo que pouco, voltei de Uber. Em geral, costumo ir aos
locais de moto, e se ingerir bebida alcóolica, eu nunca volto dirigindo. Isso
é lei para mim.
E só de pensar nisso é como se cortinas começassem a se abrir em
minha mente, doidas para trazer uma paisagem mental à tona, uma da qual
eu amo fugir. E evitar isso é o impulso que tenho para tomar coragem e
finalmente me levantar da cama.
Meu hamster, o Adolfo, não para de correr na roda azul, seu
brinquedo favorito. Eu o tenho há um ano. Resolvi comprá-lo pensando que
poderia me ajudar a não ficar tão triste quando estou em casa. Não que
realmente tenha resolvido. Com passos preguiçosos, caminho até sua gaiola
vermelha, que fica perto da minha cama. Quando abro a portinhola e coloco
minha mão lá dentro, ele não foge. Deixa que eu acaricie sua cabeça, que
sinta a maciez de seus pelos beges. Ele tem olhões fofos, escuros e doces.
Eu amo muito esse carinha.
Após colocar comida para ele e limpar por alto sua gaiola, desço as
escadarias e vou direto ao banheiro. Depois de urinar, lavo as mãos, e
enquanto escovo os dentes, dou uma olhada em meu cavanhaque e vejo que
logo estará na hora de aparar a barba, para que ele não seja camuflado por
ela. Após enxaguar a boca, vistorio meus piercings pelo reflexo no espelho.
No rosto, eles se distribuem em um Bridge, que fica no alto do nariz, entre
os dois olhos, outro no septo e o meu favorito: o da sobrancelha. Os
remanescentes estão dentro da boca, um Smile no freio superior e um na
língua. Tem um piercing abandonado em meu rosto, chama-se Labret e fica
embaixo da boca. Eu acabei enjoando dele e decidi não usar mais a joia.
Assim, fica mais camuflado. De todo jeito, acho que tenho poucos
piercings. Vou colocar um na aba direita do nariz assim que der.
Assoviando, caminho até a cozinha. Coloco a cafeteira prateada para
trabalhar e, enquanto espero a minha injeção fumegante de energia ficar
pronta, como quatro bananas com aveia. Depois de lavar o prato branco,
encho uma caneca preta, com a estampa dos botões do Xbox, com meu
cafezinho e vou para o sofá da sala.
Eu quero aproveitar que está bem cedo para dar uma jogada. A
mandada da Veneno não deve estar on-line agora. Nos fins de semana, ela
geralmente surge em meus games na parte da tarde. De segunda a sexta,
meu pesadelo em forma de hacker está sempre me perseguindo nos jogos
durante a noite.
Após ligar meu videogame, espero que o Xbox se conecte à internet,
e enquanto cantarolo um pagode, movimento os botões do controle para
abrir um jogo de Battle Royale. Levo alguns segundos para encontrar uma
partida com jogadores o suficiente, afinal, não são nem oito da manhã. Mas
é só meu avatar entrar no dirigível, que flutuará até sobrevoar a ilha onde
será a partida, que meu coração passa a bater de modo desenfreado. Eu
nunca sei quando a maldita vai surgir e me matar. E como o intuito do jogo
é que todos os participantes se ataquem até que só reste um sobrevivente,
fica fácil que ela me meta tiro sempre que dá de cara comigo.
Assim que o balão libera para que os jogadores pulem em direção à
ilha, eu me jogo em queda livre. Quando estou bem perto do solo, aperto o
botão para que meu paraquedas se abra e meu avatar com um traje do Thor,
o deus nórdico do trovão, pouse no chão.
Quando estou jogando, é como se eu realmente estivesse naquele
mundo, teletransportado, vivendo uma coisa única. Minha mente se desliga
de tudo o que é real.
A adrenalina se infiltra em minhas veias enquanto meu avatar entra
nas ruínas de uma casa abandonada. Andando pelos cômodos, encontro a
primeira arma. Após pegar algumas munições, olho pelo buraco onde
deveria ser uma janela para vistoriar o ambiente do lado de fora, tentando
ver se há outros jogadores por lá que possam atirar em mim. Por um golpe
de sorte ou misericórdia do destino, vislumbro o avatar de um grande urso
rosa andando pelo lado de fora, com toda certeza procurando armamento.
Aperto o botão para andar abaixado, subo as escadarias da casa
abandonada sem produzir sons que possam fazer com que outros jogadores
me detectem, pulo pela janela de um dos quartos e fico sobre o telhado que
imita a cerâmica da varanda. Faço tudo isso sem que ela sequer olhe em
minha direção.
É a porra do meu dia de sorte!
Enquanto meu coração ribomba em meus ouvidos, uma camada de
suor desce pela minha testa. Parece até que estou realmente diante do maior
desafio da minha existência.
Veneno está pegando uma caixa fluorescente que contém munições,
embaixo de uma árvore. Sem dó, eu sento bala nela. É tanto tiro que
certamente estou atraindo os outros jogadores para a nossa localização. Mas
neste exato segundo, isso não importa. É apenas o triunfo que me interessa,
a sensação de que, finalmente, após a porra de um ano, estou me vingando.
Quando leio a frase que pisca na minha tela, até meio emocionado e
descrente, eu gargalho.
“Você eliminou o jogador Veneno.”
— Ééééé, porraaaa! — grito, batendo os pés no chão, tamanha
animação.
Finalmente consegui acabar com essa vadia!
Eu não acredito!
Consegui meter bala nela e eliminá-la da partida.
Vinguei as incontáveis vezes em que a puta fez isso comigo.
Sabendo que o jogador, mesmo depois de eliminado, consegue
observar a partida, desço com meu avatar do telhado e corro até o corpo
dela. Em cima de seu “cadáver”, aperto o botão para que meu boneco
dance. “Perdeu, otária!”
Esse é o maior deboche que eu poderia fazer.
E quando uma rajada de tiros me elimina da partida e acaba com a
minha jogada, eu não me importo.
Eu me vinguei!
Acabei com ela pela primeira vez!
Uma notificação de mensagem no chat do videogame aparece
piscando no alto da tela. Sorrindo, eu abro a “conversa”, a fim de ler o que a
projetinho de hacker me deixou.
“Harry, você não pode fugir de mim! Foi a primeira vez que
conseguiu me vencer, e também a última! Acabarei contigo sempre que
puder. E posso ser incansável, Sr. Alencar.”
Pisco muitas vezes para as palavras escritas na tela da minha
televisão. Como ela sabe que meu sobrenome é Alencar? Eu não deixo isso
aparecer para outros usuários do Xbox que não estejam na minha lista de
amigos.
Dando de ombros para suas palavrinhas de má perdedora, resolvo
responder:
“Perdeu, otária!”

Aperto a campainha da casa em tonalidade branca, observando o


quanto gosto de sua fachada moderna e envidraçada. Enquanto espero,
segurando uma bandeja descartável com um bolo de churros redondo que
comprei na padaria que tem ao lado do condomínio, olho ao redor. A rua
está animada, com crianças correndo para lá e para cá, moradores
passeando com seus cãezinhos, e até passarinhos cantando ao voar pelas
árvores espalhadas por canteiros aqui e ali.
As casas aqui do La Grassa, o condomínio, são maneiras. Algumas
mais simples, outras mais chiques, contudo, só a experiência de morar aqui
já parece top. Faz anos que eu frequento este lugar. Tem muita história aqui
dentro, principalmente nessa casa, a que estou visitando, onde Bill e Maria
moram. Antes, era do Josiah, que agora reside a algumas ruas daqui, em
uma verdadeira mansão.
Enquanto espero os donos da casa virem me receber, vejo Isabela
saindo pelo portão ao lado. Está sorrindo largamente, com seu cabelo loiro
preso em um rabo de cavalo. Ela é vizinha do Bill e da Maria, mora na casa
de dois andares aqui do lado. Com paredes amarelas e janelas de madeira, é
uma das mais simples da rua, o que contrasta com seu poder aquisitivo,
afinal, ela e o cara a acompanhando, que tem quase o dobro do seu
tamanho, são ricos pra caralho.
Nate, seu marido, está em seu encalço carregando um tabuleiro de
inox cheio de salgadinhos. Andando mais lento do que a Isa, ele aproveita
para, sorrateiramente, enfiar duas coxinhas dentro da boca, certamente para
que ela não veja e brigue por estar beliscando antes da hora.
— E aí, otário?! — a ex-ruivinha diz. Agora que assumiu seu loiro
natural, parece muito mais doce do que realmente é. — Soube que está
apaixonado.
Olho dentro dos seus olhos castanhos, cerrando os cílios ao perceber
que a Ana já bateu a fofoca mentirosa para ela.
— Porra nenhuma! — nego, entortando a boca em desdém. — A
Ana conta as coisas aumentando a história. E você é o tipo de fofoqueira
que repassa a fofoca errada, né?
— Foi o Josiah quem contou que você anda tendo embates com a
nova vizinha — Nate fala, dando uma cheirada no cangote da esposa,
roçando seu cabelo castanho e rebelde na bochecha dela. — Ele ligou para a
gente hoje cedo e contou.
— Eu e meu bebezinho estamos ofendidos por nos chamar de
fofoqueiros à toa. — Isabela faz beicinho, com os lábios superiores
apertando o piercing do septo no processo. — Pede desculpa!
— Foi mal! — Reviro os olhos, totalmente vencido pela chantagem
barata. — Só estou me desculpando porque não quero a porra de um tersol!
Isabela ri com satisfação, depois alisa a barriga por cima de seu
vestido de babados vermelho. As pernas tatuadas estão de fora; nesse calor,
até eu poderia usar um vestido. A calça jeans que estou trajando está me
fazendo suar, nem mesmo os rasgos largos nos joelhos fazem algum ar
entrar. Ao menos estou usando uma regata cinza, ou já estaria derretendo.
— É divertido ficar grávida! Acho que vou pedir para o meu marido
me fazer bebês sempre. Posso conseguir o que quero tão fácil por conta da
gestação...
Passando por mim, Isabela mete a chave no portão e abre a casa da
Maria. Eu não entendo como ela ainda não devolveu a porra da chave.
Como no segundo andar da casa do Bill já foi o Ravina anos atrás e ela era
a recepcionista, até hoje tem a chave. Até eu, que sou um porra-louca, já
devolvi a minha cópia. E por que Maria e meu amigo ainda não trocaram as
fechaduras?
Seja lá como for, resolvo seguir atrás dela, com Nate a reboque. De
Havaianas e bermuda de sarja bege, ele parece apenas um marido comum.
Eu nunca vou me acostumar com isso. Quando o conheci, ele parecia só um
mauricinho rebelde e tatuado. Agora, é todo cadelinha da esposa.
Nate enfia mais dois salgadinhos na boca, e, no meio do gramado
frontal do quintal, aproveito para meter a mão no tabuleiro e pegar algumas
coxinhas. Quando chegamos à varanda, vejo que Isabela nem bateu à porta,
já foi entrando, como se fosse sua própria casa.
— Cadê a minha grávida gostosa? — Isa pergunta alto, e assim que
adentro a sala, vejo Maria sentada no sofá cinza. Bill está largado no tapete
à sua frente, massageando seus pés.
— Me sentindo imensa e feia! — Com o rosto redondinho e o nariz
mais inchado que o normal, ela dá a mim e aos outros um sorriso gentil. —
Oi, pessoal!
— E aí, Santinha?! — Tento engolir as coxinhas antes de falar,
dando uma acenada com a mão livre. — Eu trouxe bolo para você!
— Obrigada, Harry — diz, soltando um gemido satisfeito com as
mãos do marido apertando seus pés. — Pode colocar ali na cozinha?
— Fala, Bill?! — cumprimento, obedecendo ao pedido da anfitriã e
caminhando para a cozinha clara e em conceito aberto. — Estava com uma
rola no ouvido? Demorou um ano e não abriu o portão!
— Quanta delicadeza... — ele brinca, dando um sorrisinho mais
animado do que eu esperava. — A campainha está com defeito. E vocês não
avisaram que vinham, de todo modo.
— E desde quando a gente avisa? — Nate indaga. — Padrinhos de
casamento não precisam de convite.
— Onde está escrito isso? — Maria revida. — Podiam ter falado,
assim eu faria alguma coisa gostosa para comermos. Meu marido e eu
pretendíamos pedir um delivery.
— Ah, eu trouxe salgadinhos, embora tenha quase certeza de que o
Nate comeu metade no caminho até aqui — diz a loira. Daqui da cozinha,
eu a vejo se sentando com suavidade no sofá, ao lado da amiga.
— Jow está trazendo as coisas para fazermos um churrasco — Nate
anuncia, e, chutando o balde, agora pega as bolinhas de queijo na caradura.
Abro a geladeira de inox sem cerimônia, afinal, eu me sinto em
casa. Enquanto encho um copo com água gelada, olho para a galera, então
meus olhos vão direto para o brilho feliz nos sombrios olhos do Bill. Ele
está sem camisa, com as tatuagens que dominam seu corpo todo sendo
exibidas. Eu me sinto até humilhado. O cara é grande! Com cerca de dois
metros de altura, intimida qualquer um. Sem falar no tamanho dos
músculos. Maria parece uma tampinha perto dele. Magra e pequena, é o
completo oposto do meu amigo.
Enquanto volto para a sala, eu a vejo alisando a barriga por baixo da
blusa solta de um rosa claro. Seu rosto branco demais fica corado quando
ela olha para o marido. Sempre deixa transparecer em seu semblante o
quanto é apaixonada.
Acho da hora o quanto esses casais se gostam. Quando os observo,
acabo pensando no quanto formar uma família parece legal. Embora eu não
ache que isso seja realmente algo para mim, eles fazem parecer que é uma
coisa boa. Que é algo que eu poderia gostar de ter um dia.
Quando meu telefone apita no bolso da minha calça jeans, resolvo
dar uma olhada, ouvindo Isabela falar algo sobre o quanto transar grávida é
mais gostoso do que imaginava. Quando ela fala essas coisas, eu gostaria de
ser surdo. Odeio quando as garotas engatam assuntos assim.
Imaginando que possa ser uma mensagem de Josiah e Ana avisando
em nosso grupo de amigos que estão vindo para cá, desbloqueio a tela do
celular. Mas eu estranho completamente a notificação do banco dizendo que
meu Pix foi realizado com sucesso.
Trincando as sobrancelhas, sou capaz de sentir o ambiente
emudecendo, como se um controle remoto fosse diminuindo o volume dos
sons ao redor. Descrente do que estou vendo, pensando ser alguma piada do
destino, observo meu saldo da conta corrente zerado. Quando tento puxar o
extrato da conta, não mostra nenhum Pix realizado. Deve ser algum bug do
sistema. Precisa ser!
Caralho! Como sessenta mil reais sumiram do nada? Eu tinha
cinquenta que vinha juntando, que tirei da aplicação para poder transferir ao
Josiah e ao Bill e finalmente me tornar sócio. E mais dez mil estavam lá,
para pagar minhas contas do mês. Mais da metade desse dinheiro como
resultado do meu salário como militar reformado, e a outra parte como
rendimentos do meu trabalho como Body Piercer.
Abro o WhatsApp às pressas para enviar uma mensagem à minha
gerente do banco, mas quando vejo a notificação sem foto de um número
dos Estados Unidos, é como se o chão abaixo dos meus pés se partisse,
como se um buraco fosse me sugando.
“Obrigada pela grana, Harry! Seu inferno pessoal só está
começando. Com carinho, Veneno!”
“Tenho uma lista de nomes, e o seu está em vermelho,
sublinhado. Eu o marco uma vez, e aí marco duas.”
Look What You Made Me Do - Taylor Swift.

No alto da escadaria do meu loft tem uma porta. Nenhum dos meus
irmãos tem permissão para entrar ali. É meu templo e local de trabalho. E
enquanto eu subo os degraus, com uma caneca de café que desci para
reabastecer, penso quão perigoso seria se algum deles resolvesse bisbilhotar.
Assim que destranco a porta pela fechadura digital, usando
biometria, vejo os incontáveis post it’s coloridos espalhados pelas paredes
no tom de um azul tão claro que facilmente se confundiria com branco. Os
papéis têm a porra da mesma frase, a confissão mais precisa da minha
obsessão:
Destruir o Harry!
Destruir o Harry!
Destruir o Harry!
Destruir o Harry!
Destruir o Harry!
A frase está por todo canto, berrando que sou louca, mas também
me lembrando do que se tornou o meu maior objetivo de vida.
Assim que me acomodo na cadeira gamer de couro preto com
detalhes em vermelho e pouso a caneca sobre o porta-copos de madeira,
penso no que finalmente consegui fazer. Parece que a minha cabeça é feita
de rabiscos confusos em espiral. Está tudo embaralhado dentro de mim.
Apoio os cotovelos sobre a madeira branca da minha bancada de
trabalho. Meu rosto é adornado por um sorrisinho de triunfo, afinal, é
apenas o começo da vingança contra o meu inimigo.
Eu venho observando o celular do Harry há meses. Após invadir seu
aparelho – o que foi bem fácil –, eu tive acesso a cada e-mail, foto, ligação
e mensagem. Mulheres, incontáveis conversas com um grupo de amigos
que ele parece gostar muito, mais mulheres, marcação de atendimentos para
colocar piercings em clientes no estúdio em que ele trabalha... é o que
resume o histórico do seu WhatsApp.
Durante os últimos meses, eu fui traçando uma estratégia de como
atingi-lo. Inicialmente, fiquei frustrada ao ver que ele não faz
absolutamente nada de errado. Harry é certinho. Trabalha, parece não ter
família, mas tem um círculo fiel de amigos apelidado de Tribo. Pelas
mensagens, seu único deslize é fumar maconha. Nada muito diferente do
que os meus irmãos fazem. Dan mesmo, que é o puro samaritano da
família, aperta um de vez em quando.
Quando eu ainda morava na mansão dos meus irmãos, ficava
martelando sobre como fazer para destruir alguém que não deixava o menor
rastro que o incriminasse. Cheguei à conclusão de que eu precisava me
aproximar, tinha de estar ao lado do diabo para descobrir suas fraquezas, e
então poder derrotá-lo. Eu não sou tola, sei que meu plano de vingança se
tornou uma obsessão. Eu respiro o maldito Harry, durmo e acordo pensando
nele, em como destruir cada parte dele até que não lhe reste um só pedaço
inteiro.
Ao longo do tempo, percebi que um bom jeito seria seduzi-lo, fazê-
lo se apaixonar por mim, e depois chutá-lo. Mas isso, por mais que seja
delicioso e tentador, ainda soa infantil, e não me parece o bastante. Ele
merece mais!
Descobrir o quanto era importante para ele se tornar sócio do
estúdio onde trabalha há anos foi a deixa perfeita para eu iniciar a minha
vingança. Harry é muito amigo de três casais, e dois dos caras são chefes
dele. A cada mensagem que eu lia deles acordando coisas sobre essa tal
sociedade, mais eu percebia que era a opção perfeita de golpeá-lo. Em suas
confissões com os amigos, Harry disse inúmeras vezes que vinha juntando
dinheiro para essa oportunidade de se tornar um dos donos do estúdio e
entrar na fatia de lucro da expansão que eles estão fazendo com a marca.
Existe vingança mais perfeita do que roubar o dinheiro que ele
pretendia investir? Esta semana eu vi que ele estava muito perto de fechar o
negócio, por isso precisei fisgá-lo com um e-mail falso. Hoje cedo, fiz uma
oferta muito atraente de moedas para o seu jogo favorito, quase a preço de
banana. Ingênuo que só, não demorou nem meia hora para ele cair no golpe
e colocar suas informações no formulário.
Precisei de poucas horas para transferir toda a grana dele para um
dos laranjas que meus irmãos arrumaram para mim. Deixo uma
porcentagem do dinheiro como pagamento, então eles sacam o montante,
entregam a um dos meus irmãos, e aí começa o processo de lavar o
dinheiro. Às vezes, usamos uma rede de lojas que temos, ou alguns postos
de gasolina. Assim, fugimos dos olhos da receita e da polícia.
Eu não vou devolver esse dinheiro ao Harry. Perto do que ele me
tirou, sessenta mil reais não é nada! O que eu perdi não tem preço. E
mesmo que ele fosse capaz de me vender um lugar no céu em troca do que
me tirou, eu não aceitaria. Eu queria muito ter visto a cara dele quando
descobriu que limpei sua conta e não sobrou nadinha. E quer saber? O
Harry que se foda!
Tive de fazer um tremendo esforço para deixar que ele ganhasse a
partida de hoje cedo, mas foi maravilhoso saber que a felicidade dele foi de
cem a zero na mesma manhã. Eu quis que ficasse muito feliz e se sentindo
um vencedor, e depois arranquei tudo o que ele tinha, assim como ele fez
comigo.
Sou viciada em videogame. Meu irmão mais velho foi quem me
apresentou aos jogos, quando eu tinha treze anos, antes de as coisas ruírem
totalmente.
Eu cresci em um mundo diferente do que este em que vivemos
agora, distante da realidade da maioria das crianças, e foi só quando
fugimos de lá que eu fui conhecer diversas coisas, inclusive o que era
mesmo a tecnologia. E fiquei maravilhada com a internet, com celulares e
todos os tipos de jogos.
Então, invadir os jogos do Harry é algo que me diverte, fora que, às
vezes, eu o ouço gritar da casa dele quando dou cabo dos seus avatares nas
partidas. Ele me xinga de tantos nomes criativos, e é muito emocionante
que não faça ideia de que estou do outro lado do corredor, sentindo o corpo
flutuando de felicidade e me embebedando com as suas derrotas.
Estou de frente para o meu computador, que tem um monitor de 24
polegadas. E eu ainda acoplei mais duas telas, para aumentar a minha
produtividade. Na parede à minha frente, algumas luminárias de led em
formato de joystick estão acesas em tons variados, aumentando a sensação
de ser um ambiente divertido.
Vou entrar na Deep Web para vender alguns vírus a outros hackers
agora, e assim ganhar mais uma grana para o meu futuro. Depois que eu der
um xeque-mate no Harry, quando eu me sentir realmente satisfeita por vê-lo
arruinado de vez, talvez eu saia do país.
Originalmente, eu tenho dupla cidadania. Eu nasci nos Estados
Unidos, assim como os meus irmãos e o meu pai, mas minha mãe era
brasileira. Eu precisei mudar de identidade para evitar que pessoas grandes
e poderosas me encontrassem, então vou ter de tirar um visto, como
qualquer pessoa comum, para entrar no país onde nasci.
Ir para lá talvez me ajude a sair do looping eterno em que vivo. Eu
revisito as minhas dores quase diariamente, como se estivesse morando no
passado por boas frações do dia, deixando o presente para habitar meus
pesadelos. Isso ainda vai me matar.
Sinto um nó apertado no pescoço, como se estivesse em uma forca.
A sensação de ter emoções presas na garganta é tão grande que eu chego a
massagear o pescoço.
Ok, eu não vou conseguir fazer mais nada nesta porra de escritório
hoje, mas ao menos consegui dar o golpe no Harry mais cedo, que é o que
realmente importa. Eu me levanto bem rápido, deixando que a cadeira se
arraste para trás.
Dan e Rafael ficaram de almoçar aqui hoje, mas antes de fazer a
comida, acho que tenho tempo de ir à academia e jogar um pouco de
energia fora.
Desço as escadarias em direção ao quarto. Antes de vir morar aqui,
eu fiz uma pequena reforma no loft e fechei a parede do mezanino onde
deveria ser o quarto, para ter privacidade no escritório, e no local em que
seria a sala, eu fiz o meu quarto.
Ao lado da minha cama, tenho um pequeno guarda-roupa espelhado.
Trato de vestir uma legging de academia e um cropped preto. Prendo o
cabelo em um rabo de cavalo e me sento na cama. No exato segundo em
que estou colocando as meias, Dan entra.
— Ei, gostoso, toma conta da Nagini para mim? Vou à academia. Eu
acho que ela está um pouquinho agitada, fora que não quis comer o ratinho
que dei a ela.
“Eca! Eu nunca vou me acostumar a essa comida bizarra da sua
‘filha’. Mas ok, titio ama e titio cuida, mesmo que de uma cobra muito
assustadora!”
Sorrio da sua piadinha, e após calçar os tênis e pegar minha bolsa,
que já deixo preparada para ir me exercitar, dou um beijo estalado na
bochecha macia do meu príncipe em forma de irmão.
— Te amo!
“Eu te amo mais, gatinha! Acho que já vou preparar o almoço. O
Rafael ficou de trazer as coisas para a salada, então vou colocar o frango
para assar.”
Depois que o Dan fez as panquecas para mim hoje cedo, deixei a
ave marinando antes de subir para o escritório para dar o golpe no Harry.
Uma coisa que eu amo e me relaxa pra cacete é cozinhar. Mas sabendo que
vai ser uma mão na roda que o Dan coloque a ave no forno, eu apenas
assinto.
Enquanto abro a porta, digo:
— Deixe a janela de cima da cama aberta, para não ficar muito
quente para a Nagini, por causa do forno.
Sem dizer mais nada, saio pelo corredor. Decidida a não passar raiva
com o elevador bosta daqui do prédio, sigo pelas escadarias de emergência
até o térreo. Assim que saio pela porta do hall de entrada, vejo a dona
Isaura mexendo nos escaninhos de correspondência.
— Ah, mocinha, eu queria mesmo falar com a senhorita!
Merda! Por que não dei meia-volta quando a vi?
Ela é muito chata! Sempre que me vê, fica me alugando sobre as
regras do prédio e querendo contar da vida dos outros.
— Oi, tudo bem? — Forço um sorrisinho.
— Estou ótima. Esses dias descobri o sexo do bebê da minha filha, é
uma menina. Luz, o nome dela.
— Nossa, que lindo! Parabéns!
— Obrigada, querida! Você parece uma menina de bem. Se tiver
qualquer problema com algum morador aqui do prédio, não hesite em me
avisar — fala, segurando as minhas mãos. Estou um pouco chocada com a
sua simpatia. É a primeira pessoa que diz que eu tenho cara de “boa
menina”. — Seu vizinho de porta é meio bagunceiro. Harry é muito amigo
do meu genro, sabe? Mas embora ele seja desajuizado, não é uma pessoa
ruim. Só não diga a ele que eu o elogiei. Quero botar aquele moço nos
trilhos, para que não ouse colocar o som nas alturas, como vinha fazendo.
— Pode deixar! Eu não sabia que o Harry era amigo do seu genro.
Qual é o nome dele?
— Bill. Mora no condomínio aqui da frente. Ele e minha filhinha
Maria. Agora deixe-me ir, que estou com feijão no fogo.
— Foi um prazer falar com a senhora, dona Isaura. E parabéns de
novo pela netinha.
Assim que saio pela portaria, sou baqueada pelo calor absurdo que
está fazendo. Meu rosto automaticamente esquenta, e dou graças aos céus
pela academia ficar a apenas uma quadra de distância.
Até que foi legal o papo com a síndica. Ao menos dessa vez a fofoca
foi importante, pois saber que o Harry é amigo de seu genro é útil. Pelas
mensagens que eu vi no telefone dele, todos os seus amigos moram no
mesmo condomínio, esse bem chique aqui na frente do meu prédio.
Conhecer os amigos dele é outra parte da minha vingança. Se eu
puder me aproximar, talvez consiga tirar algo tão importante para ele
quanto o desgraçado tirou de mim.
Eu posso tomar seu lugar, ser uma amiga exemplar e fazer a
amizade deles ruir, como um verdadeiro Cavalo de Troia.
“Você me tem em suas mãos,
Nem sabe o tamanho do seu poder.”
Mercy, Shawn Mendes.
Acho que poucas vezes eu senti meu coração bater com tanta
urgência assim. O sentimento de estar desolado, eu já conheço, pois o
experimentei diversas vezes. É como se o mundo fosse uma partida de
videogame em que você é a parte central, mas, ironicamente, o controle
desse game não é seu. Essa dádiva é apenas do destino.
Você é pequeno, insignificante diante das reviravoltas desse jogo
sádico chamado vida. E aqui estou, de cabeça baixa, sem saber que caralho
eu faço agora e me sentindo um rato preso em um labirinto.
Para onde eu vou?
Qual é o caminho?
De todos os planos que eu fiz para a minha vida, não existe um que
não envolva me tornar sócio do Ravina. Sem essa possibilidade, eu sou uma
bússola sem ponteiro, sem norte, perdido.
Parado no meio da cozinha, aos poucos volto a captar com clareza
os estímulos do ambiente ao meu redor, mesmo que agora eu deseje que
todos os meus sentidos sumam, para eu não precisar encarar este pesadelo.
— Harry? — Bill pousa sua mão enorme em meu ombro. Parece
preocupado comigo. — Tudo bem?
Eu pisco muitas vezes, só então percebo que a vida voltou a operar
com o volume normal, com as vozes dos meus amigos preenchendo o
ambiente. Ana acaba de entrar pela porta da sala, fazendo uma dancinha
animada que balança os babados do decote de seu vestido amarelo curto.
Josiah está dizendo algo sobre ir buscar o carvão no carro, chamando o
Nate para acompanhá-lo.
Engulo em seco, ainda processando a porra do fato de que eu fui
roubado. De que a brincadeira idiota e inocente da Veneno está saindo do
controle. Ou nunca foi uma brincadeira? Será que sempre foi uma
criminosa do outro lado?
Quando meus olhos focam por inteiro o rosto de feições duras do
Bill, sopro o ar com força pelos lábios, como se isso fosse o bastante para
jogar para fora um pouco da impotência que estou sentindo.
Se eu soubesse que matar aquela vadia no jogo me renderia uma
conta zerada no banco, eu teria aceitado ser massacrado por ela muitas
vezes, sem revidar.
— Oi... — finalmente respondo, tentando com força não divagar.
Pensa, Harry! O que você faz agora?
— Aconteceu alguma coisa?
Enquanto ele afasta a mão do meu ombro, eu corro em círculos
dentro da minha mente, feito um gato correndo atrás do próprio rabo. Eu me
sinto um tolo, sem saber o que fazer. Conto a ele que fui roubado? Revelo
que a tal hacker é também uma ladra? Vou à polícia, abro um boletim de
ocorrência e peço alguma orientação?
Puta que pariu! Guardo o telefone no bolso, olho para o meu amigo
e forço um sorriso.
— Estou bem, mas morrendo de fome. E... falando nisso, eu acabei
de lembrar que não dei a comida do Adolfo –– minto, mesmo que isso me
deixe chateado. Mas eu preciso de tempo, de espaço para respirar. Gosto de
contar tudo aos meus amigos, só que esse rolo os envolve diretamente.
Estou para fechar um negócio com Bill e Josiah, porra! Como revelar que a
grana para o meu ingresso na sociedade foi roubada? — Vou dar um pulo lá
e já volto.
Eu nem consigo olhar direito em seus olhos ou responder aos
questionamentos das minhas amigas empoleiradas no sofá da sala, que a
cada passo que eu dou para sair da casa, perguntam aonde estou indo.
Quando atravesso o portão, agradeço silenciosamente por Josiah e Nate
estarem de costas para mim, pegando coisas na caçamba da picape preta
estacionada aqui em frente. É só quando estou quase na esquina que ouço
Nate gritando:
— Vai aonde, cuzão?
Penso em responder, mas... quer saber? Se eu parar e disser algo,
vou acabar desmoronando. Preciso me isolar e pensar, tentar colocar a
cabeça no lugar. De todo modo, eu não quero levar mais preocupação ao
Bill. Ele já está todo ferrado emocionalmente.
Percebo que meu corpo se move, mas minha mente está tão
distante... Minhas pernas se mexem, seguem o caminho para casa, enquanto
eu me sinto fora do corpo. Será que estou chapado? Que fumei um baseado
com uma erva potente, batizada, que me deixou mais louco do que de
costume? A quem eu quero enganar? É só a realidade se tornando fodida
novamente.
Eu não sei se estou cego, porém, quando estou prestes a atravessar a
via movimentada que separa o Condomínio La Grassa do prédio onde
moro, sinto que sou puxado para trás. E, aos poucos, a cortina de fumaça
que me cegava os olhos se dispersa com tudo. A realidade me bate como se
eu pedisse por mais, como se eu gostasse disso, deixando claro que, por
pouco, tudo não piora de vez. Uma moto em disparada passa perto demais
do meu corpo, enquanto eu caio para trás, salvo pelas mãos de um estranho.
Eu seria atropelado em cheio se não fosse o cara que se arrasta para o lado,
tirando-me de cima dele, pois eu caí com as costas sobre o seu corpo e
certamente o estava esmagando.
Descrente de que tudo está realmente dando errado para mim,
encaro o céu azulado lá em cima. Tomo coragem e me sento, aos poucos,
com as palmas das mãos fervendo, por entrarem em contato com o asfalto
quente da via.
— Tudo bem, cara? — pergunta o homem, ficando de pé e tentando
usar as mãos para varrer a sujeira da roupa. Está usando um terno cinza,
agora sujo, por conta do chão. Sua mão branca e tatuada se estende para
mim com gentileza. Eu não sei por que estou rindo, mas enquanto aceito a
sua ajuda e fico de pé, é tudo o que consigo fazer. Gargalho feito um
desvairado, mas é um riso regado a sofrimento, não existe uma mísera gota
de diversão. — Quase que você batia as botas, amigão!
— Obrigado! — após finalmente conseguir parar de dar um de
Coringa e cessar a risada, agradeço. — Estou vivendo um dia de merda, eu
não prestei atenção enquanto atravessava a rua. Se não fosse você, eu iria
para o colo do capeta agorinha, para ele terminar de enfiar uma rola no meu
rabo.
— Eita! — O cara ri. — Prazer, Rafael Mesquita! Sou seu novo
vizinho. Estou morando no 402, com o Daniel, meu irmão mais novo. Eu te
vi outro dia tomando uma prensa da síndica –– fala depois de apontar com o
indicador para o prédio aqui em frente.
Aceito a mão que ele me oferta, mais por educação do que por
qualquer simpatia, apertando-a em um gesto cortês. Embora eu seja grato
por esse cara ter me salvado de um atropelamento, ainda estou fodido
demais para querer bater papo.
— Harry Alencar! — Após me apresentar, bufo ao me lembrar da tia
Isaura. — Ela ama encher o meu saco.
Não é comum as pessoas usarem o sobrenome nas apresentações
aqui no Rio de Janeiro. Costumamos só falar o primeiro nome, e já está de
bom tamanho. Sem ter muito para onde fugir, e com a alma voltando ao
corpo aos poucos após as merdas que aconteceram nos últimos minutos,
sigo com ele para o outro lado da rua. Antes que eu tenha a chance de
reorganizar meus pensamentos para cogitar pegar a chave do prédio em
meu bolso, Rafael o faz. Sigo atrás dele, e quando chegamos ao elevador e
o esperamos descer, fito seu rosto. Os cabelos castanho-escuros e meio
desgrenhados, a boca, o tom da pele... tudo isso me lembra alguém. Ele é
um dos caras que eu vi com a Branca outro dia. Reparo na tatuagem com a
palavra Grumpy no alto da maçã direita do rosto. É tão pequena que eu mal
consegui decifrar.
— Você é parente da Branca? — solto a pergunta de uma só vez,
sem energia para enrolação.
— Ah, ela é minha irmã caçula. — Seu olhar se prende em mim de
um jeito diferente. E enquanto Rafael adentra o elevador e segura a porta,
eu me pergunto se é realmente seguro embarcar nessa porra com ele. Parece
até que o capeta fez download em seu corpo neste exato segundo, porque
toda a gentileza em seu olhar desapareceu. Decidido a ser corajoso, eu entro
no elevador. — Você a conhece?
Eu posso jurar que sua voz desceu muitos tons, tornando-se meio
sombria. Rafael é estranho como a irmã. Toda a simpatia que ele tinha me
dedicado na rua evaporou.
— Sim. Ela me obrigou a lhe dar carona para a balada ontem.
— E foi só isso?
Sua pergunta é uma pegadinha? Tipo, eu falo que a vi trepando com
um casal, então ele termina de fazer o trabalho que a moto na via não fez?
Ou Rafael acha que foi comigo que ela transou? Ou que temos um caso?
— Foi!
Eu não sou sem noção a ponto de contar o que rolou na balada, por
mais tentador que seja dedurar a Branca e sua putaria ousada para o seu
irmãozinho mais velho. Caso eu tivesse uma irmã, odiaria que alguém me
narrasse suas aventuras íntimas.
Hoje é mesmo o meu dia...
Os céus olharam para mim e decidiram que era o momento perfeito
para eu pagar por meus pecados. Só falta a síndica aparecer e me dar mais
uma multa.
Estou um pouco mais atrás dele, com as costas na parede do fundo,
e enquanto o elevador geme como um idoso que sobe uma escadaria, vejo
Rafael se virando de lado após ter apertado o botão do quarto andar. Seus
olhos castanhos me inquirem sem dizer uma palavra.
Irritado, eu me inclino para a frente e aperto o botão do meu andar.
Durante o trajeto, que parece se estender por uma era até a primeira parada,
Rafael não deixa de me encarar. Estou a ponto de dizer que não curto outros
caras, que meus gostos se limitam apenas a garotas. Aproveito que está me
olhando como se fosse me esfaquear a qualquer segundo para reparar nele.
É mais alto do que eu, e olha que tenho 1,85m de altura. O que mais me
gera estranheza é que ternos não combinam com ele. Rafael tem uma
caveira tatuada em uma das mãos e usa brinco em uma das orelhas. Não que
ternos sejam patentes de estilo algum, mas eu realmente não acho que
combinam com ele.
Bom, mesmo sendo doido, eu usei terno no casamento dos meus
amigos. Vai que ele está voltando de um casamento...
— Foi bom te conhecer, Harry! — Sua frase falsa é dita enquanto
ele sai do elevador. Chego a soltar uma bufada. Eu só não digo que é um
cuzão completo porque acaba de salvar a minha vida. É apenas quando ele
gira sobre os sapatos lustrados e pretos, com aparência de custarem uma
grana alta, que eu aprumo a postura para encará-lo. Rafael segura a porta do
elevador, fixa os olhos bem dentro dos meus e, com um sorriso que eu só
posso definir como assassino, diz: — Mais cuidado da próxima vez que
atravessar a rua, não queremos que seja atropelado, não é?
Enquanto as portas se fecham, eu me pergunto se é mal de família
ser insuportável assim. A ameaça nublada em suas palavras não me passou
despercebida. Tudo isso só porque eu dei uma carona à Branca? Fico só
imaginando se ele soubesse o que eu vi. Sendo ciumento assim com a irmã,
acho que infartaria ao vê-la com uma pica na boca e uma mina chupando a
sua boceta.
Quando finalmente entro em casa, eu me lembro da razão de ter
voltado para cá tão cedo. Os breves momentos com o novo vizinho me
fizeram esquecer a coisa infinitamente mais séria.
Frustrado, retiro os sapatos e os largo pelo chão, então caminho até
o sofá da sala. Eu queria fumar um baseado, mas terei de ir à polícia daqui a
pouco, é melhor não ficar doidão. Quando eu me sento, apoio os cotovelos
nos joelhos e deixo que minha cabeça caia sobre as minhas mãos.
Pensa, Harry!
Meu celular está tocando, e quando eu o retiro do bolso, vejo que é
Isabela. Recuso a chamada. Uma infinidade de mensagens no grupo do
WhatsApp intitulado Tribo, onde todos os meus amigos estão, inunda a tela
de bloqueio do meu iPhone.
É melhor começar pelo óbvio, ligar para a minha gerente do banco.

Foi uma tarde pesada. Após conversar com a gerente da minha


agência, fiquei sabendo que o banco não pode resolver o meu problema.
Com o jeito mais polido do mundo, a mulher me disse que, primeiramente,
eu precisava ir à polícia, noticiar a fraude, e depois procurar um advogado.
Ou seja, eles não vão me devolver a porra da grana. Imaginei que fossem se
eximir da responsabilidade com a segurança do meu dinheiro.
Fiquei horas na delegacia, até, por fim, conseguir fazer um boletim
de ocorrência. Depois, entrei em contato com um advogado, e agora só me
resta esperar até que consigamos processar o banco, e, quem sabe, por
alguma clemência divina, que a polícia seja eficaz em encontrar a tal ladra
virtual.
A noite começa a se espreguiçar do lado de fora da janela aberta da
minha sala. Aos poucos, o céu, antes azulado do dia quente, é inteiramente
tomado por um tom de laranja, que em breve dará lugar ao negro bem-
vindo da noite.
Sentindo um vento gostoso soprando pela janela, estou enrolando
um baseado, e embora tenha lágrimas acumuladas nos cílios, eu não chorei.
E não vou. Eu quero apenas alimentar o ódio pela filha da puta que meteu a
porra de uma pá de terra em cima do meu projeto, dos tempos em que
venho, pouco a pouco, juntando grana para realizar o meu sonho.
Fui orientado pelo meu advogado a não trocar palavras com ela,
caso volte a me enviar algo por meio de mensagens. O problema é a
vontade absurda que sinto de ligar para aquele número, de chamá-la de
vadia, de mandá-la ir se foder.
Eu não faço ideia de como contar isso ao Josiah e ao Bill. Sei que
eles me amam, que somos como irmãos, mas ninguém dá uma sociedade de
presente a outro cara. Eu só vou conseguir entrar nessa com o pagamento, e
nada mais justo, afinal, eles contam com a grana para expandir o estúdio e o
lance da franquia.
De tudo o que pensei, cheguei à conclusão de que preciso conversar
com os dois, revelar essa merda toda e pedir que eles esperem um pouco até
eu conseguir o dinheiro.
Não vai dar para esperar os trâmites legais, pois, pelo que Ernesto,
meu advogado, disse, isso vai demorar, e talvez eu nunca recupere toda a
quantia.
Isso tudo me faz pensar na pessoa que eu jurei nunca mais procurar,
mas provavelmente terei de engolir o meu orgulho e ir atrás do cara que me
obrigou a entrar para o exército quando eu tinha dezessete anos. Que jogou
na minha cara por muito tempo o quanto eu era um bosta, que eu fazia tudo
errado, o homem que sempre tentou me podar como se eu fosse um arbusto
que pudesse ser moldado no formato que ele bem entendesse.
Eu não tenho escolha.
Somente ele tem dinheiro de sobra para me ajudar com isso.
Mas como fazê-lo acreditar que sou digno do seu dinheiro, visto que
me deserdou quando eu fui reformado, após fazer merda na Escola de
Sargentos? Ele me vê como um caso perdido, e não tem luz no fim do túnel
que me mostre uma maneira de fazer aquele velho casca-grossa que eu
chamo de avô acreditar que eu mudei.
Estou mesmo fodido!
“Se você quer quebrar essas paredes,
você será ferido.”
Castle, Halsey.

Está um sol bem grandão lá fora. Eu gosto muito de dias assim,


quando não tem nenhum pinguinho de chuva para acabar com a minha
diversão. Eu poderia estar brincando no parquinho, subindo nas árvores ou
dando chá para as minhas bonecas, mas, em vez disso, estou ao lado do
púlpito de madeira, e com um montão de outras crianças, canto um louvor.
A gente nem parece que está cantando a mesma música, porque meus
amiguinhos gritam em vez de louvar, aí sai tudo confuso e fora de ordem.
Mas é uma música que fala sobre Davi e como ele esteve na cova dos
leões... Pera, ou seria Daniel? São muitos nomes, eu sempre confundo, e às
vezes acabo de castigo.
Ainda bem que a música acabou, porque eu errei a letra toda. Deus
do céu! Meu pai vai ficar bravo comigo de novo. Mas não importa, hoje
estou muito feliz! Mamãe colocou uma faixa de tecido branca em meus
cabelos para este culto, e tem um laço no alto. O nome da minha mãe é
Ema, igualzinho ao daquela ave que parece um avestruz. Nós duas
combinamos de fingir que a faixa é igualzinha à da Branca de Neve. E
ainda combina com o meu vestido branco e longo.
Meu papai não gosta quando falamos de princesas. Ele diz que são
histórias do demônio e que todas elas foram criadas para enfiar bobagens na
cabeça das crianças, por isso é um segredo só meu e da minha mamãe. Eu
sou a sua Branca de Neve, e por isso ela escolheu o nome Branca para mim.
Meu papai às vezes é muito bravo. Mamãe me disse que ele não era
tão nervoso assim antes de seus cabelos ficarem brancos. Que ele era um
jovem legal – como os príncipes dos contos de fadas que ela me conta –
quando eles moravam em um estado chamado Califórnia. É do outro lado
do muro, muito, muito distante, em um país que se chama Estados Unidos
da América. Foi lá que eles se apaixonaram, mas a minha mãe vivia “no
mundo”, e meu pai a trouxe para o caminho de Deus. Eles se casaram e
tiveram meus sete irmãos, e depois eu vim, a única menina.
Minha mãe estava sentada em uma cadeira marrom, bem no
cantinho do palco, e agora está vindo para onde estou. Ela guia a mim e as
outras crianças para fora do altar, e, sem precisar de ajuda, eu corro para um
dos bancos de madeira.
Todo dia tem culto, e muitas vezes é à noite. E não é por mal que
meus olhos se fecham ou eu boceje, é que quando fica escuro, me dá muito
sono. Hoje é domingo, por isso está sendo na parte da manhã. Na hora dos
cultos, todas as famílias têm de estar presentes, e precisam se sentar juntas.
Meus sete irmãos estão apertados em um dos bancos, por isso eu vou até
eles.
Como Daniel está tirando meleca enquanto meu pai fala algo lá na
frente, eu me arrasto por cima dos meus irmãos para o outro lado do banco,
assim, eu não corro perigo de ele passar a gosma em mim. Eu me sento ao
lado do Ivan, meu irmão mais velho. Ele já tem barba e tudo, tem dezessete
anos, e é o meu melhor amigo no mundo inteirinho. Ele é muito, muito
legal e sempre me trata como se eu fosse a coisa mais importante do
mundo.
— Você cantou muito bem, Branca!
— Errei a letra toda. São nomes parecidos, como Daniel e Davi. É
fácil confundir, porque começam iguais — reclamo, cruzando os braços e
soprando minha franja. Ela está grande, começando a irritar meus olhos.
Mamãe precisa cortar!
— Você é muito inteligente — ele diz, beliscando minha bochecha
de leve. — Está crescendo tão rápido...
Dou um sorrisinho, olhando para cima e observando seu rosto
magro. Seus olhos são escuros, mas geralmente estão mais animados.
Sempre que ele diz que estou crescendo, seu semblante muda. Ele parece
que vira uma nuvem, que está prestes a pingar e virar chuva. Eu prefiro
quando ele é sol, quando me olha tão animado que me deixa feliz só de
bater os olhos nele.
— Você não quer que eu cresça? — Minha pergunta sai sussurrada,
e eu puxo um pouquinho sua camisa azul-céu na altura do cotovelo.
Ivan olha para o púlpito, vê se nosso pai está nos observando, afinal,
se ficarmos de assunto durante o culto, vamos juntos para a sala do castigo.
É um lugar horrível e gelado. Quando não tomamos surras de cinto de
algum dos adultos, ficamos horas no escuro. E sempre tem um deles do lado
de fora prestando atenção; se ouvirem que demos um só “pio”, prolongam o
castigo e ficamos lá por mais tempo. Ou apanhamos de novo.
James, meu pai, fala com seu sotaque arrastado:
— E Deus o guiou. Disse a ele que o mundo acabaria com tremores
horríveis, que aquela cidade inteira viria abaixo por conta da iniquidade dos
seus moradores. — A voz dele é mansa, tão calma que dá vontade de
dormir. — Então, o meu avô e seus amigos levaram suas famílias para uma
fazenda chamada Vale Alegre. — É a mesma história de sempre. Mamãe
me disse para nunca confessar que eu acho muito chato que todos os cultos
tenham quase sempre os mesmos assuntos, mesmo eu já sabendo tudo de
cor. Por que ele repete a mesma história todos os dias? Todo mundo aqui se
lembra de como o Vale começou! — Um terremoto destruiu a cidade, e
como ficamos em um abrigo de guerra dentro da fazenda, sobrevivemos.
Deus nos guiou para a salvação, e naquela mesma semana, enquanto os
sobreviventes do lado de fora das cercas da fazenda juntavam os corpos de
seus entes queridos, meu avô teve uma miragem de Deus. Ele deveria tornar
o Vale um paraíso na Terra, onde os seus habitantes viveriam bem e
sobreviveriam ao fim do mundo, que estava muito perto...
E blá-blá-blá.
E foi assim que todos eles fizeram muros enormes ao redor da
fazenda e criaram o Vale, a comunidade religiosa que se tornou uma grande
família e que acredita que todas as crianças que nascem aqui têm um
propósito dado por Deus.
Mesmo que eu ache chato que meu pai ou os outros tios contem as
mesmas histórias todos os dias, sou muito feliz por ter nascido no Vale, o
lugar que papai do céu abençoou. Aqui, estamos seguros do diabo, que é o
rei do mundo lá fora, onde tem um montão de gente doente e mulheres se
tornando esposas do capeta. E a cada dia, mais o fim do mundo se aproxima
para matar todos eles. Quando tudo for destruído e o mundo lá fora
terminar, somente o Vale vai sobreviver, porque aqui vivemos para o pai
maior, Deus.
Meu pai para de falar um pouco e bebe um copo de água, enquanto
isso, eu me viro para o outro lado e vejo meu irmão Rafael. Ele é muito
nervoso, agora mesmo não para de balançar a perna. Mamãe diz que ele é o
tipo de adolescente problema, porque, com dezesseis anos, jura que é adulto
e pode decidir o que quer da vida. Minha mãe também diz que ele nunca
duraria um dia do lado de fora dos muros do Vale sozinho.
Em breve, ele vai poder sair pela primeira vez, e eu tenho medo de
que não volte. Sempre que os homens saem para as expedições, eu fico
morrendo de medo. O mundo atrás dos muros é terrível. E se o diabo os
matar? Ou entrar em seus corpos e os deixar doentes da cabeça?
Uma das tias saiu dos muros uma vez, e mulheres nunca podem ir
para o Além. Nos cultos, aprendemos que as mulheres foram criadas para
servir aos seus maridos, tal como Eva foi feita da costela de Adão para fazer
companhia a ele. Somente os homens são fortes o bastante para sair sem
correr tanto o risco de o diabo os dominar.
Meu pai fez uma enorme fogueira na frente da igreja quando eles a
encontraram, e por mais que a mulher gritasse que não tinha demônio lá
fora, ele a queimou. Não existe cura para essa contaminação que não seja o
fogo. Só o fogo pode limpar um corpo assim.
Eu não dormi por dias depois que vi aquilo. Eu nunca vou sair do
Vale, eu nem chego muito perto do muro, tenho medo que, só de olhar para
ele, o diabo me domine também.
Rafael estala os dedos diante dos meus olhos, e só então percebo
que estava olhando para ele, mesmo que com o pensamento tão, tão
distante.
— Não deveria estar olhando para a frente? — pergunta, levantando
uma das sobrancelhas.
Dou de ombros.
Sei que ele odeia vir aos cultos, mas nunca poderia dizer isso em
voz alta. Eu sou muito boa em observar as pessoas. Minha mamãe diz que
eu nasci com um cérebro “afiado”, que me acha muito inteligente para a
minha idade. E acho que sou mesmo.
— Eu tenho medo do que vai acontecer quando você crescer mais...
— diz Ivan, inclinando o corpo um pouco para o lado, sem virar em minha
direção.
Chego a dar um pulinho de susto, pois ele demorou tanto para
responder que eu esqueci que havia perguntado.
— Como assim?
Meus olhos crescem de ansiedade. Por quê? Por que meu irmão tem
medo de que eu cresça? O que ele espera, que eu seja uma criança para
sempre? Eu quero muito crescer! Eu não sou como o Peter Pan. Quando eu
tiver treze anos, finalmente serei iniciada no primeiro grau das mulheres do
Vale! Eu vou saber quais são os mistérios que Deus criou para nós e que só
descobrimos quando nos tornamos de fato uma mulher. E eu não sei o que é
se tornar uma mulher, acho que é sobre se casar ou ter pelos no sovaco,
como a mamãe tem.
— Parem de conversar! — minha mãe fala, enfiando o rosto entre
nós dois. — Ou eu mesma os levarei para o quarto do castigo após o culto!
Ela está sentada no banco de trás.
Fico emburrada até que meu pai ou um dos tios terminem de falar, e
quando começamos a última oração, eu a recito em minha mente bem
rápido, para acabar logo.
Somente os homens podem falar nos cultos, e geralmente é o meu
pai quem começa a passar a palavra de Deus, e também quem faz a oração
final. Ele é um profeta, pois veio do sangue do meu bisavô, Ivan Berg, que
foi o criador do Vale. O manto de Deus, que havia sido posto por Ele sobre
os olhos do meu avô, passou para o papai quando o meu bisavô morreu de
uma terrível inflamação em seus pés, que foi se espalhando de um jeito
muito feio pelas pernas. Era a doença do açúcar. Eu sei que um dia o manto
passará para o Ivan, é o que o papai sempre diz.
Assim que meu pai nos libera, Ivan me pega pela mão e tenta andar
comigo, mas eu gosto de dar pulinhos enquanto ando, o que faz minha mão
ficar deslizando na dele. Meus outros seis irmãos seguem atrás de nós, com
mamãe, que diz algo sobre precisarem ajudar a uma das éguas que vai parir
em breve.
O primeiro Vale que existiu ficava naquele outro lugar da história
que meu pai sempre conta, mas ele disse que os homens de lá, que viviam
fora do muro, movidos pelo demônio, começaram a persegui-los, então,
uma parte dos habitantes do Vale precisou fugir para outro país, o Brasil, e
as outras partes foram para outros locais. Mas já tinha gente aqui, nesta
fazenda, quando chegamos, amigos do vovô. Esses amigos são os Oliveiras,
cinco famílias com gente à beça.
Somente os homens com mais de quinze anos têm permissão de sair
para o Além. Eles ajudam a trazer os mantimentos que não conseguimos
produzir aqui, além de pregar a palavra de Deus para pessoas que conhecem
lá fora. Só podem ir dois de cada família, por isso o Rafael ainda não foi.
Isso não quer dizer que nunca vá, só que meu pai ainda não deixou, pois
sempre escolhe o Ivan.
Quando o mundo lá fora acabar, meu pai disse que o Vale vai ter
tudo. Então, nós nunca precisaremos sair daqui. O Ivan já foi para o Além
várias vezes, mas ele é proibido de contar o que viu lá. Somente os homens
podem saber, e as mulheres que já vieram do mundo lá de fora, como a
minha mãe, não contam nada para nós, a nova geração. Eu acho que se
esqueceram de como era, pois não soltam nenhuma fofoquinha
pequenininha sobre isso. E se nós perguntamos, elas ficam bravas ou
mudam de assunto.
Quase todos os meus irmãos falam inglês e português, mas meu pai
e os tios definiram que o único idioma a ser falado aqui é o português,
então, Daniel e eu, os mais novos, não aprendemos quase nada do inglês.
Vivemos atrás de muros muito altos, onde, no topo, ainda tem arame
farpado. Temos tudo aqui, então, por que alguém iria querer morar com o
diabo, no Além? Aqui tem uma pequena enfermaria, a igreja, uma grande
estufa, onde plantamos alimentos, o refeitório, onde comemos juntos, e a
escola.
Na escola aqui do Vale, nós aprendemos a ler, a fazer contas e
também sobre ciências. Em ciências, a tia Annie, uma das mais velhas – e
que não tem muitos dentes, mas mamãe disse que eu não devo ficar
reparando –, passa lições para nós com livros sobre o reino animal, sobre as
plantas e coisas assim. Ela disse que no meio deste ano, vamos aprender
sobre a reprodução humana e como os bebês são feitos.
— Branca, minha princesa? — chama minha mãe, surgindo atrás de
mim e me pegando com suavidade das mãos de Ivan. — Hoje à noite
teremos uma fogueira, lembra?
Ela se abaixa na minha frente, com seu longo vestido de linho verde
arrastando no chão enquanto o faz. Estamos paradas diante da entrada da
igreja simples de madeira.
— Sério? — Sinto a alegria se revirando dentro de mim. Eu amo
fogueiras! Minha mãe sempre canta e dança nas noites de fogueira. Ela é a
minha melhor amiga, e nem as outras crianças aqui do Vale são tão
divertidas quanto ela depois de tomar vinho. — Eu tinha esquecido.
— Sim! — Ela segura minha cintura e me chacoalha, fazendo-me rir
enquanto me balança. Seu rosto quadrado está corado, ela sorri de um jeito
animado, fazendo rugas se aprofundarem ao redor de sua boca. Mamãe
odeia rugas. Ela diz que a fazem parecer velha, mas eu não acho. Mesmo
sendo uma das adultas, ela não parece. Mamãe é a mulher mais linda de
todo o Vale. Eu amo o cabelo dela. É escuro, como o meu. E sua trança é
muito longa, chega até o bumbum. Sua pele é tão branca que qualquer coisa
a faz ficar vermelha. — E vamos tostar marshmallows!
— Eba! — grito de animação, dando alguns pulinhos. — Eu amo
muito marshmallows!
— Eu sei! — Mamãe me puxa com força contra si e me abraça.
Sinto seu cheiro, é sempre de erva cidreira. — E, antes de dormir, vou
sussurrar no seu ouvido a nossa história favorita.
— Da Branca? — Faço uma conchinha com a mão no ouvido dela
ao cochichar.
— Sim! Paramos ontem na parte da...?
— Maçã envenenada.
— Ema?! — Meu pai a chama e a puxa pelo cotovelo. Não é nada
muito forte, mas sempre que ele se aproxima, minha mãe se contorce. Ela
tem medo dele, afinal, como todos os maridos aqui do Vale, meu pai castiga
sua esposa quando ela falha. — Temos uma reunião antes da fogueira de
hoje à noite. É sobre a iniciação deste ano.
— Iniciação? Mas não temos adolescentes para serem iniciados este
ano.
— Vamos até a sala de reuniões lá da igreja!
O corpo de minha mãe está me tapando. Eu só enxergo seu traseiro,
porque ela não sai da minha frente, e assim eu não consigo ver o papai. Eu
conheço bem o tom de voz dele, deixa bem claro que não existe conversa.
Quando ele fala assim comigo, eu saio correndo na hora. O que não resolve
muito se eu tiver sido pega rabiscando paredes com giz de cera, brigando
com alguma criança ou o respondendo, pois levo tapas na bunda ou cintadas
na sala do castigo.
Uma vez papai me bateu com tanta força que saiu sangue das
minhas costas, e agora eu tenho uma cicatriz grande nela. Mamãe chorou
comigo, soluçando a cada soluço meu, e se recusou a falar com ele. Papai
até a deixou com o olho roxo para forçá-la a respondê-lo, mas nem assim
ela falou. Demorou para ela perdoá-lo, por isso eu amo a minha mamãe
mais do que tudo no mundo.
Olho para o lado. Um pouquinho mais atrás de nós, Ivan e Rafael
fingem estar conversando, mas eu sou esperta, consigo ver que os dois estão
prestando atenção em mim e nos nossos pais. E o rosto dos dois está
estranho, parece que viram o próprio diabo, de tanto medo.
Eu me assusto quando meu pai empurra minha mãe para o lado. O
rosto dele está mais carrancudo, e o terno escuro parece deixá-lo mais
assustador. Papai me olha de cima, com sobrancelhas erguidas e os olhos
verdes sempre muito gelados.
— O que está fazendo parada aí, pequena? Vá brincar!
Encaro minha mãe. Por alguma razão, seus olhos estão molhados.
Ela vai chorar. Eu quero abraçá-la e dizer que está tudo bem, que vamos ter
uma fogueira hoje, vamos tostar marshmallows juntas e dormir abraçadas.
Mas ela apenas olha para o céu e me dá as costas, deixando meu pai me
medindo de cima a baixo, como costuma fazer com os cavalos do pasto.
Eu gosto dele. Ele é meu pai. É nossa obrigação gostar dos nossos
pais, mas eu prefiro mil vezes a mamãe.
Uma vez eu sonhei que ele tinha caído na fogueira e não podia mais
castigar a gente ou bater na mamãe.
Sei que papai do céu deve ter se chateado comigo, mas eu acordei
feliz após aquele sonho.
“Porque, meu bem,
agora nós temos um conflito.
Bad Blood (feat. Kendrick Lamar), Taylor Swift.

Estou andando pela rua da minha casa, pois desci do táxi duas
esquinas antes. Está um engarrafamento horrível, e como já estava perto, eu
preferi vir andando.
Saí de casa rumo à academia, fiz uma série de exercícios, mas não
senti que foi o bastante para gastar a minha energia. Então, eu tive a ideia
de ir ao shopping. Como estou um pouco ansiosa por ter roubado o Harry,
acabei querendo fazer compras. Este é um dos meus péssimos hábitos,
passear de loja em loja pagando por coisas que não preciso. Estou cheia de
sacolas, porque comprei uma infinidade de roupas e acessórios novos. Ao
menos desta vez acho que vou usá-las, porque geralmente eu as largo com
etiqueta e tudo dentro do guarda-roupa, para mofar por lá até eu resolver
doar.
O ruim foi que eu perdi o almoço com os meus irmãos; quando dei
por mim, com o telefone repleto de mensagens e ligações perdidas, vi que já
passava das quatro horas da tarde. Liguei para o Daniel antes de sair do
shopping, e ele disse que Rafael comeu o frango quase inteiro em
represália, e ainda acabou com todos os doces da minha geladeira.
Embora eu tenha perdido o almoço com os dois, ao menos suavizei
a ansiedade com compras, e não fui atrás de transar com alguém.
Como eu me aliviei muito bem ontem, espero ficar uns dias sem ter
um frenesi que me faça correr atrás de sexo. É horrível viver esse ciclo. É
como um vício, a porra de um canto de sereia que me convida e que é quase
impossível resistir. Estou vivendo a minha rotina, fazendo algo
completamente aleatório, assistindo a uma série, lendo um livro, jogando ou
hackeando alguém, e, de repente, bate um tédio, uma necessidade absurda,
e lá estou eu buscando sexo para preencher essa porra. É o único jeito que
eu encontro de ter alívio. Eu me enfio em casas de swing, dou em cima
descaradamente de mulheres ou caras bonitos em qualquer lugar, tudo que
me leve a uma foda rápida e descompromissada, onde vou gozar e depois
chutar a pessoa. Sem sentimentos. Sem rostos para lembrar. E, então, eu
volto para casa, visto a minha casca de culpa e me agarro à certeza da
minha podridão. Eu não repito pessoas e não fico com conhecidos. Quanto
mais distante de mim, melhor.
“Ninfomaníacos correm para o banheiro e se masturbam, não
preferem o toque humano, como você, Branca. É difícil te definir, mas acho
que, de certo modo, você se enquadra nesse diagnóstico. Você tem a
compulsão sexual, não consegue se controlar quando a vontade chega. E
por mais que não queria detalhar bem o que aconteceu no passado, você
relata os traumas da sua infância. Provavelmente, são as causas do seu
transtorno.”
Esse foi o diagnóstico que me fez sumir do consultório da minha
psiquiatra, há três anos. Eu sou fodida, já sei disso, não preciso da porra de
um nome para essa merda fedida dentro da minha cabeça. Mas também é
horrível a maneira como tudo se torna meio obsessivo dentro de mim. Eu
relembro essas malditas palavras sempre que termino de transar com
alguém.
Talvez, eu não saiba existir sem sexo porque foi essa porra que eu
aprendi!
A mulher loira, tão magra e alta que poderia certamente ser
confundida com uma dessas modelos de passarela, foi até bem condizente
ao falar sobre a necessidade do toque. Eu não gosto de me masturbar. Não
sozinha. É tão... vazio e sem sentido. Eu gosto do toque humano, da
temperatura da pele. Por mais empoderador que seja se dar prazer sem o
auxílio de alguém, para mim, soa deprimente. Não que me enfiar embaixo
de bocetas e paus desconhecidos seja menos deprimente, mas ao menos isso
me traz alívio na hora.
Como se o destino quisesse zombar de mim, meus olhos são
atraídos para o outro lado da avenida movimentada, onde ônibus e carros
vagueiam sem parar. O alvo do meu olhar é uma igreja com arquitetura
vitoriana. Toda vez que eu passo aqui na frente, é como entrar em uma
máquina do tempo que me puxa em direção àquela criança de anos atrás, a
garotinha arruinada concebida em uma seita americana, mas que jurava ser
uma princesa.
Eu não quero parar, mas meus pés estacionam contra a minha
vontade. Encaro a torre no topo da construção, com passado e presente se
misturando sem que eu possa controlar. Eu quase posso sentir o cheio das
árvores e da lama fresca do Vale. É como enxergar a projeção da pequena
igreja, as placas de madeira branca e lascada das paredes, a torre pequena
do sino chamando atenção acima do teto triangular, as janelas apertadas que
mal deixavam o ar circular, tornando lá dentro abafado.
Eu me vejo, tão pequena e doce ziguezagueando entre os cinco
degraus largos da entrada. Quase posso ver a minúscula cidade feita de
madeira com pintura branca e gasta, com casas pequenas, uma estufa
deprimente, cavalos magros e malcuidados. Um paraíso torto e corrompido
oculto por muros imensos, projetados para que todos os segredos ficassem
escondidos lá dentro, como um mausoléu que carrega os ossos de tudo o
que morre.
Por que o meu inferno na Terra ainda tem cheiro de lar? Por que, por
mais que eu tenha sido destruída incontáveis vezes no Vale, ainda sinto
saudade de quando eu era aquela garota? A que achava que as coisas que
vivia não eram tão dolorosas, que via em sua mãe uma verdadeira rainha e
digna de todo o seu amor?
Hoje, eu me lembro do Vale e vejo, como a adulta que sou, que
aquilo era um lugar em ruínas. Não era bonito. Nunca foi. E, ainda assim, às
vezes, quando eu fecho os olhos, ouço o barulho dos meus irmãos
capinando ou sinto o cheiro dos bolos preparados na cozinha. Ouço o
relincho dos cavalos ou sinto o cheiro das lamparinas a óleo, da cera das
velas, e, em dados momentos, a voz da minha mãe me ninando ao som de
suas histórias.
É confuso.
Ao mesmo tempo que odeio tudo o que vivi, eu daria o mundo para
viver presa nos meus dez primeiros anos de vida, porque ali nada havia
ruído em minha mente. Ali, era apenas eu sendo feliz, mesmo que não
devesse. Mesmo que não entendesse que os meus irmãos já estavam
sofrendo. É egoísta e sujo desejar morar lá, naquele passado que já era
imundo, onde eu apenas não sabia que havia nascido atolada num tanque
com merda.
Eu passo a vida como se fosse uma bruxa queimando na fogueira da
Inquisição, ou uma das mulheres “possuídas” do Vale, para sempre ardendo
e gritando, agonizando, nunca vivendo...
Sinto a pressão dilaceradora dentro do peito. Ele se comprime.
Parece esmagado. É a vontade maldita de chorar que nunca será sanada. Faz
tantos anos que eu não sei o que é isso, que sei o quanto preciso colocar
esse aperto no peito para fora...
Reviro os olhos. Eu me forço a sair do passado, a voltar a ser o que
sou: apenas uma garota envenenada. Em silêncio, com os ombros
costumeiramente pesados doendo, faço o caminho até o meu prédio. Já
diante dele, meus olhos são levados até a fachada com portões de ferro
vazados do condomínio do outro lado da rua. Dona Isaura fala com um trio
de mulheres. Duas estão grávidas. A loira tatuada não está com o ventre tão
elevado, mas a outra, a que tem cabelos longos e castanhos, parece estar
com a barriguinha um pouco maior. Deve ser a Maria. Reconheço seus
rostos, são as amigas do Harry. Eu já vi fotos das três nas redes sociais dele
várias vezes.
A síndica acena ao me notar, com os olhos semicerrados e o rosto de
semblante sério se abrindo em um sorriso duro. Devolvo o aceno com
dificuldade, chacoalhando algumas sacolas no processo, e notando que as
três acompanhantes dela giram a cabeça para me encarar. A terceira garota
diz algo enquanto prende os longos cabelos cacheados no topo da cabeça.
Elas riem, parecem cochichar sobre mim. Em outro momento, isso me
irritaria a ponto de eu querer ir tirar satisfação. Odeio que debochem da
minha cara, mas como preciso me tornar amiga delas, engulo a curiosidade
de saber por que estão rindo.
Eu poderia ir até lá agora, inventar alguma história para puxar papo
com a dona Isaura, e assim começar o plano de aproximação com as
garotas. Mas eu não estou bem neste momento. Preciso estar inspirada para
ser o mais simpática e acessível possível. Virando-me para o prédio, eu me
sinto aliviada ao abrir o portão e seguir para dentro.
Diante do elevador, penso em subir pelas escadarias, mas estou com
o peso das sacolas, então vou esperar essa porcaria. Odeio socializar com
vizinhos, porém, na próxima assembleia do prédio, farei questão de ir,
porque precisam melhorar essa bosta. Eu tenho um certo medo de um dia
acabar presa nesse caixote.
Aperto milhares de vezes o botão para o quinto andar, e enquanto o
elevador se arrasta para cima, eu pego meu celular na bolsa e verifico as
mensagens. Tem uma do meu irmão mais velho. Eu me pergunto se vale a
pena ler, já que ele sempre quer me encher o saco com algo e
provavelmente está reclamando por eu ter furado com o nosso almoço. Mas,
sem muita opção, resolvo o fazer.

Rafael: “Conheci seu novo boneco inflável, o tal vizinho chamado


Harry!”

Quê? O que aquele idiota disse para o meu irmão? Merda!


A essa altura, tudo o que eu menos preciso é do meu irmão pegando
no pé do Harry. Ele está pensando que transamos, e na cabeça do Rafael,
todo mundo com quem fodo está se aproveitando de mim e da minha
“doença”. Capaz de querer bater nele. Ou simplesmente começar a
intimidá-lo, o que pode atrapalhar os meus planos.
Assim que as portas do elevador se abrem, eu tenho até uma
vertigem diante do que vejo.
Puta que pariu!
Saio às pressas para o corredor. Deixando minha bolsa de academia
e as sacolas pelo caminho, eu me ajoelho. Nagini está rastejando pelo chão,
parecendo tranquila, como se não estivesse fazendo uma grande merda. Ela
acaba de sair da porta entreaberta da casa do Harry. E está com alguma
coisa dentro da boca. Eu entendo que, na cabecinha dela, isso é apenas seu
instinto natural, mas ela apenas está fodendo com tudo.
Nagini vira a cabeça para mim, finalmente me notando. Eu
engatinho para perto dela, bem lenta, para não a assustar. Suando frio e
ensurdecendo com o som alto dos meus próprios batimentos cardíacos, levo
minhas mãos até a cobra. Seguro a sua cabeça e, tentando não emitir
nenhum som, começo a me preparar para tentar arrancar o que tem dentro
de sua boca. Eu não consigo ter certeza, mas acho que já era. Ela aperta o
que quer que seja antes de tentar comer, envolvendo a vítima com seu corpo
até matá-la.
Droga! É o hamster do Harry! Ele tem inúmeras fotos desse ratinho
em seu Instagram.
— Como foi fazer isso? — sussurro em meio ao desespero. Cacete,
acho que vou desmaiar. Meu corpo todo está aquecendo de pavor, mesmo
que o suor em minhas têmporas seja gelo puro. — Solta logo esse rato!
Mas não importa o quanto eu tente apertar sua boca pelos lados, ela
não solta. E, revoltada, ainda envolve meu braço com seu corpo e começa a
constringir.
Mesmo assustada por ela estar me apertando, acho que consigo me
levantar e sair logo daqui com a Nagini, antes que o Harry...
— Puta que pariu! — Ouço o grito que gela cada átomo do meu ser.
O pesadelo começa quando eu caio sentada, tentando lidar com um
Harry desesperado surgindo em sua porta e uma cobra rebelde apertando o
meu braço. Geralmente, quando está assustada, ela joga cocô em mim.
Nagini nunca me atacou assim.
— Calma! Não assuste ela, ou vai ficar pior! — peço. Mas não
importa, com certeza o Harry já viu quem está na boca da cobra, pois
começa a pular de desespero, com o volume gigante em sua boxer preta
balançando.
Daniel sai de dentro da minha casa, e assim que dá de cara com a
cena, arregala os olhos.
— Faz a cobra soltar o Adolfo, ou juro que vou matá-la! — Harry
grita mais alto desta vez, seu brado quase treme as paredes. E por mais
assustador que o grito seja, a frase termina trêmula, como se estivesse
chorando. — Por favor, anda logo, porra!
— Estou tentando, Harry! — aviso, comprimindo os lábios de dor.
— Dan, me ajuda!
Nagini vira a cabeça para mim, e eu não sei se sabendo que está
machucando ou apenas agindo por instinto. Porém, ela cospe o hamster e se
desenrola do meu braço.
Vejo que meu irmão estava se movendo para me ajudar, mas a cobra
é rápida em serpentear pelo chão, passar por entre suas pernas e ir varada
para dentro de casa.
— Adolfo?! — Harry soluça, ficando de joelhos ao meu lado.
Ele se joga por cima de mim e agarra seu bichinho. O animal parece
ainda menor em suas mãos imensas. Harry acaricia sua pelagem bege,
balança o animal... Mas, como eu previ, já está morto.
— Daniel... — Eu quero gritar com ele por ter deixado isso
acontecer, mas minha voz mal sai. — Prende a Nagini no terrário logo!
“Desculpa, eu...”, tenta gesticular.
— Vai logo, porra!
Ele não ousa me olhar. Com os olhos escorrendo lágrimas, meu
irmão entra e fecha a porta. Seja lá como foi que isso aconteceu, ele deixou
a porta do apartamento e o terrário da minha cobra abertos. E meu vizinho
também estava com a sua porta do mesmo jeito. Mas o Harry não tem culpa
dessa bosta.
É de cortar o coração vê-lo levar o hamster até o rosto e beijar sua
cabecinha sem vida. Eu odeio o Harry, mas não faria algo tão baixo, como
deixar a minha cobra matar seu animal de estimação. Eu não sou assim.
Ele cai para trás, com as costas desnudas contra a parede do
corredor. Seu rosto está uma poça formada por incontáveis lágrimas. E a
cada vez que eu vejo seu peito chacoalhar, mais filha da puta me sinto.
Eu não consigo sentir prazer vendo-o chorar a morte do seu hamster,
que foi totalmente culpa minha. Eu sou a dona da Nagini. E tenho
verdadeiro fascínio por animais, eu os amo desde criança. E por mais que
eu alimente a Nagini com ratos, já os compro frescos e mortos – e são
camundongos, não hamsters. Eu jamais atingiria alguém machucando um
bichinho indefeso.
E que porra eu faço agora?
Droga!
Não era para isso ter acontecido!
Eu o roubei, era para ele chorar apenas por isso!
Só por isso, pela porra do dinheiro! Que merda!
— É sua? — A voz soando sem uma mísera nota de emoção me
atordoa.
Só então percebo que Harry está me encarando. Na verdade, quase
me atravessando com olhos repletos de ódio.
— Qu... quê? — gaguejo.
Que porra é essa? Eu não deveria gaguejar diante dele, mesmo que
esteja errada nesta merda toda.
— A porra da cobra! — grita, tremendo a boca de raiva. — É sua ou
do seu irmão?
— Minha!
— Ótimo! Já se prepara para mostrar a documentação dela para o
Ibama!
— Harry...
Eu me levanto, mesmo que esteja um pouco tonta. Dou um passo
adiante, aterrorizada com a sua última palavra. Deus! Eu nunca pensei
nisso, que um dia precisaria do documento dela, que precisaria de uma
autorização comprada de alguém de dentro do órgão regulador.
Harry se ergue com tanta velocidade que eu me sobressalto. Ele
aponta um dedo na minha cara e se aproxima, fitando-me com uma raiva
tão profunda que eu tenho dúvidas se ele não está realmente me ferindo
com seu olhar cortante.
— Eu não quero ver a sua cara de sonsa nunca mais! Vai ter sorte se
eu não ligar para a polícia também!
E a última coisa a ser ouvida, creio que não somente por mim, mas
talvez pelo prédio inteiro, é a porta batendo com força extrema na minha
cara.
Ironicamente, embora o estrondo que causou pareça ter chacoalhado
as paredes, é o meu interior que está balançando.
“Band-aids não curam buracos de bala,
Você pede desculpas só para aparecer.”
Bad Blood (feat. Kendrick Lamar), Taylor Swift.

Meu corpo está vibrando. Raiva e dor massacram meu peito. A


caixa de sapatos branca está forrada com algodão, estou improvisando do
jeito que dá para fazer uma despedida decente. Em cima da bancada da
cozinha, ao lado da caixa, está o corpinho do serzinho que eu comprei há
um ano para trazer um pouco de alegria à minha casa.
Eu não consigo conter as lágrimas, mas também não quero. Dói
saber que ele morreu sofrendo, e por mais que eu saiba que a cobra daquela
desgraçada que chamo de vizinha tenha agido por instinto, aproveitando
que eu, com a cabeça nas nuvens, esqueci a porta aberta, ainda estou com
muita raiva de tudo isso.
O sangue está misturado a fogo em minhas veias, borbulhando, e eu
juro que tenho vontade de quebrar a casa da Branca inteira. É claro que eu
não vou fazer isso, mas a raiva aplaca um pouco a tristeza e a impotência
que sinto diante do corpo sem vida do Adolfo.
Tremendo com a força do soluço que me domina, pego seu corpinho
bege e, com delicadeza, pouso-o sobre a cama de bolinhas de algodão que
improvisei.
— Me desculpe, amigão! Isso é culpa minha, acima de tudo. Com os
meus problemas em primeiro lugar, deixei sua gaiola aberta, assim como a
porta. Eu deveria ter cuidado de você. Mas obrigado por ter me feito feliz
nesse último ano!
Subo seu corpo e beijo sua cabecinha, depois fecho a caixa. Apoio
as mãos no balcão da cozinha e suspiro, lutando para ser mais forte, para
engolir o choro e a dor. Eu choro por tudo o que perdi hoje, mas a tragédia
de saber que o Adolfo foi assassinado é o pior de todos os baques.
Eu não sei se um dia me sentirei menos culpado por isso. E por mais
que eu esteja louco para ligar para o Ibama e para a polícia, ainda darei um
pequeno funeral ao meu bichinho.
Ando pela cozinha, abro uma gaveta e pego uma colher grande de
inox. Vai servir para cavar a grama dos fundos aqui do prédio. E juro por
Deus, se algum vizinho vier me irritar por enterrá-lo aqui, eu o xingarei dos
piores palavrões possíveis.
Com a colher sobre a caixa, saio do meu apartamento. Infelizmente,
dou de cara com o irmão da Branca. Com os olhos cheios de lágrimas, seu
rosto parece uma súplica, uma confissão de culpa. Estou cansado demais,
porém, ainda quero mandá-lo tomar no olho do cu. Mas quando ele diz algo
em língua de sinais, e com certo desespero, eu desisto e apenas lhe dou as
costas.
Sem querer dar a chance de dividir o elevador com ele, eu me
direciono para as escadarias. Meu corpo dói. Tem um peso absurdo em
minhas costas, e sei que, quando bater na cama hoje, eu não sairei dela por
um bom tempo.
— Harry?
A voz que eu menos quero escutar me assombra no segundo em que
a porta corta-fogo bate atrás de mim. Pesadelo mesmo é ouvi-la falando,
com suas palavras ecoando pelas paredes da escadaria, pois está me
seguindo.
— Vaza, porra! — rosno, mas não me dou o luxo de parar.
Sigo meu trajeto. Quero enterrar meu hamster e qualquer simpatia
que eu já senti por essa aí.
Isso é praga do meu ex-vizinho. Ele desejou que eu encontrasse um
vizinho pior que eu, e olha a filha da puta que caiu na minha vida.
— Me deixe falar com você, por favor! — grita, ofegante, e posso
ouvir seus tênis malditos retumbando contra os degraus atrás de mim.
Eu não respondo, e quando saio no hall de entrada, já vou direto
para a saída, dando a volta pela lateral do prédio para chegar aos fundos.
Tem uma área aberta, mas muito pequena, com uma amendoeira grande no
canto, ao lado do muro de pintura branca, manchada e descascando.
Bem diante da árvore, eu me ajoelho. Pouso com todo o cuidado do
mundo o caixão improvisado do meu amiguinho no chão e, com
sofreguidão, ponho-me a cavar sua cova.
— Sinto muito! — Respiro fundo e paro minha tarefa quando a
ouço. — Eu voltaria no tempo, se pudesse. Jamais deixaria a Nagini tocar
no seu hamster ou fugir de casa. Meu irmão é um pouco desligado e se
descuidou...
— Nagini? — Eu quero rir, contudo, a minha voz soa mais como
um misto de deboche e descrença. — Nome perfeito! Parabéns!
— É sério! Me perdoa!
— Seu pedido de desculpas de merda não vai trazer meu hamster de
volta! — grito, levantando-me. Com raiva, meus pés quase perfuram o chão
quando vou até ela. Branca se encolhe, parecendo ainda menor, porque
claramente está assustada comigo. Estou bravo pra caralho quando a seguro
pelos ombros, com o ar fugindo das minhas narinas com força. Eu não sou
rude quando a viro de costas para mim. Na verdade, sou mais delicado do
que esperava. Eu não quero machucá-la, apenas que me deixe em paz. —
Vaza daqui! — Levo o rosto até a lateral de sua cabeça e sussurro
entredentes em seu ouvido, com a pele quente de seu corpo se arrepiando
abaixo dos meus dedos: — Eu não costumo odiar as pessoas, mas você está
muito perto de se tornar alguém que detesto. Então, mete o pé e livre a nós
dois dessa porra de mal-estar!
Quando eu a solto, comprimo os lábios e seguro a cabeça. Olho para
o céu. A noite, antes estrelada e aberta, agora parece se assemelhar ao meu
interior de merda, nublada, anunciando um temporal.
Quando olho para Branca, ela já está de frente para mim de novo,
com medo e algo estranho em seu olhar. Seria culpa? Raiva? Eu não
consigo decifrar.
— Não me denuncie, ok? Eu ganhei a Nagini do meu irmão mais
velho. Ela é muito importante para mim, e não fez por mal. É o instinto
dela.
Reviro os olhos. Essa mandada do cacete não vai sair daqui, e
resolvendo a deixar choramingando suas súplicas, eu volto a me ajoelhar.
Cavo com raiva, não prestando atenção ao que ela diz. Branca que tivesse
feito as coisas direito e conseguido uma autorização. Quem me garante que
aquele bicho não vai se soltar de novo? E eu nem sei se aquela cobra é
venenosa, para começar. Espero mesmo que a recolham, por mais que,
como o fraco que sou, eu ainda esteja com o peito apertado de pena dessa
chata falando sem parar atrás de mim.
Quando eu cavo fundo o suficiente, finas gotas de chuva desaguam
sobre o meu corpo. O vento gelado bate com força em minhas costas nuas.
Eu só me lembrei de vestir uma bermuda antes de começar a preparar o
caixão do Adolfo.
Com a chuva dando o ar de sua graça, eu tenho certeza que Branca
deve estar correndo para dentro do prédio, então finalmente terei um pouco
de paz para sepultar o Adolfo.
Tremendo de frio e sofrimento, coloco a caixa do meu hamster
dentro do buraco. Uma gota mais grossa de chuva cai em meu rosto,
misturando-se à lágrima agoniada que também o toma. Após um soluço
longo, sussurro:
— Tchau, amigão! Sinto muito...
A primeira e a última pá de terra são jogadas com dor. Odeio
funerais, e enterrar um animal que amamos é horrível. Eu amei meu
pequeno, de verdade. Sento-me ao lado de seu túmulo. E mesmo que o
temporal se torne forte, a ponto de ventar muito e a força da água doer em
minhas costas, eu apoio os cotovelos em meus joelhos e passo um bom
tempo pensando em tudo o que perdi na vida, sempre de maneira trágica.
Relembro a primeira vez que vi pás de terra cobrindo alguém que
amei. Alguém que me fazia inteiro. Desmembrado, com um buraco na alma
e a dor em meu peito, eu não faço ideia de quanto tempo se passou comigo
aqui, imerso na profundidade dos meus pensamentos.
A verdade é que a chuva parece me purificar, lavar e levar embora
um pouco da dor. E mesmo que eu esteja sem forças, levanto-me em um
impulso rápido.
Assim que eu me viro, sou surpreendido ao dar de cara com a
Branca. Ela está sentada, encharcada, abraçada aos joelhos e me encarando
com olhos idênticos aos de um cachorro pidão. Ela não se parece em nada
com a mulher cheia de marra que eu conheci ontem.
— Vai pra casa, Branca — aconselho.
Caminho até ela e, mesmo puto e cansado, oferto a mão para ajudá-
la a se levantar.
— Posso te dar outro hamster, fazer o que você quiser! Eu não sou
ninguém sem a Nagini... Você não entende!
Sua voz soa fraca, e, após falar, ela tosse um pouco. Seus lábios
arroxeados estão tremendo enquanto ela me encara. Eu me pergunto se está
chorando ou se seus olhos estão vermelhos apenas por causa da chuva. O
cabelo grudado no rosto, a pele mais branca do que nunca toda molhada...
Que desgraçada gostosa e linda!
Recolho a mão, tentando prender a frase que está dançando em
minha língua, mas sou completamente ineficaz de conter a minha ira:
— Se eu subir até o seu apartamento agora e torcer o pescoço da sua
cobra até ela sufocar, depois te oferecer outra como pedido de desculpas,
vai curar a sua dor?
Eu mal consigo terminar a frase, porque, feito uma leoa, Branca
pula em cima de mim. Desesperada, ela me golpeia seguidas vezes no peito,
e mesmo que use toda a sua força, não me causa dor, apenas espanto.
— Não ouse tocar nela! Não ouse, ou eu mato você, seu cretino! —
ameaça, e mesmo enraivecida, ainda parece assustada. Eu tento segurá-la,
mas Branca agora se dedica a tentar me dar uma joelhada no saco. — Ela
foi o que me manteve segura! Você não tem o direito de querer matá-la ou
fazer com que a tirem de mim!
Eu não consigo ter certeza do momento exato em que acontece, mas
com o coração frenético, tentando me desvencilhar quando ela consegue
cravar uma unhada em meu pescoço, eu me desequilibro. Em meio à queda
e tentando me manter de pé, minhas mãos a puxam comigo em destino ao
solo. Eu me espatifo de costas, e Branca cai em cima de mim. Enraivecida,
ela ainda tenta continuar me agredindo.
Não tendo a menor escolha, eu rolo para o lado, forçando-a a ficar
com as costas no chão e embaixo de mim. Eu me ajoelho entre as suas
pernas, inclino-me e prendo suas mãos no alto da cabeça. A chuva sobre
nós está mais fraca, mas ainda somos uma confusão de merda. Sujos de
lama, enxarcados e afogados no mar de raiva que sentimos um do outro.
— Eu não vou matar a sua cobra. Apenas fiz uma comparação. Eu
não sou podre como você, que deixou aquela coisa selvagem me ferrar —
rosno, chegando tão perto de seu rosto que ela treme ainda mais, eu não sei
se de frio ou de medo. Meu peito sobe e desce com velocidade,
desesperado, como o dela. Estou ferrado, com ódio dessa mulher e triste
para um caralho. — Mas vou te denunciar sim! Espero que a Nagini vá para
um lugar onde tenham pessoas mais responsáveis e ela não machuque
nenhum outro animal doméstico!
— Não! Eu faço o que você quiser, Harry... Me fala o que você
quer...
— Falar o que eu quero? Não tem nada que você possa me dar,
porra! — grito tão alto que ela fecha os olhos com força e se encolhe. Isso
faz com que eu me sinta um merda. Afrouxo um pouco os dedos, que
apertavam um pouco demais seus pulsos. Quando eu a solto, ela tenta rolar
para o lado, mas não é o que quero. Eu ainda não terminei de falar.
Deposito meu peso sobre ela, tão pequena e frágil embaixo de mim. Gosto
mais dessa versão, a que não me peita ou tenta me bater. Apoio meus
antebraços ao lado de sua cabeça e, com o gosto amargo das lembranças
tomando a minha boca, falo: — Eu tive toda a minha grana roubada hoje
cedo, o banco não vai me ajudar a ter o dinheiro de volta, eu quase fui
atropelado e fui salvo pelo seu irmãozinho, que ainda me fez uma ameaça
velada... — Eu mal tenho tempo de respirar, pois falo sem parar, com os
olhos injetados nos dela. Por um milésimo de segundo, reparo no quanto
são escuros e lindos. — E para foder tudo de vez, eu tive um gatilho do
caralho com luto ao enterrar o Adolfo. Estou fodido, e ainda tendo de lidar
com você. A melhor coisa que pode fazer por mim é me deixar em paz. Eu
não vou ter pena de você, coisinha sonsa!
— Por favor, eu não sei o que dizer... apenas sinto muito. Eu faço o
que você quiser, já disse!
Enquanto eu a ouço implorar, dou-me conta, tarde demais, de que
meu pau está muito duro. Ela é linda pra cacete, e está embaixo de mim.
Mas esse não é problema, a questão é que estou literalmente com ele no
meio de suas pernas, roçando contra a sua boceta, e tenho certeza de que ela
pode sentir isso. Imediatamente, eu me afasto, envergonhado. Nós não
somos íntimos, porra! Ela deve achar que eu sou alguma espécie de tarado,
mas, como está desesperada para que eu não denuncie a cobra, não reclama.
Branca se senta, parece cansada quando esconde o rosto entre os
joelhos e abraça as pernas. Vamos acabar doentes tomando essa bosta de
chuva.
— Vai pra casa, se seca, bebe algo quente e poupa a sua garganta.
Suas súplicas não vão funcionar comigo.
Eu não digo mais nada, não dou margem para conversa, apenas me
viro, pego a colher e sigo para longe dela e dessa chuva desgraçada.
“Venda sua alma, não você por completa.”
Afraid, The Neighbourhood.

Ainda estou tremendo, e embora eu já esteja seco e tomando um chá


de hortelã bem quente, nada é capaz de esquentar as partes geladas dentro
de mim. Nem nas mais remotas possibilidades eu imaginei que meu dia
terminaria assim, fodido da cabeça aos pés. Ou melhor, da cabeça ao meu
saldo bancário.
Sei que preciso ligar para os moleques, Jow e Bill, para ter aquela
conversa, mas farei isso amanhã. Ainda acredito que encontrarei uma
solução para apresentar a eles junto às explicações do que aconteceu com o
dinheiro. Tem muitas mensagens deles perguntando se estou realmente
bem, e eu só respondi um “estou com dor de barriga”, porque, se eu disser
que muitas coisas ruins aconteceram comigo hoje, eles virão correndo aqui
para casa, e meu interesse é colocar a cabeça no lugar antes de vê-los.
Será que a maluca da Branca se cuidou direito depois de ficar
naquela chuva? Cara, eu não suporto aquela garota, então, por que estou
preocupado com isso? Na real, peguei um baita ranço dela. E não importa
que seja linda, que me deixe atordoado ou de pau duro quando fica com ar
doce e vulnerável. Ela é a maior filha da puta!
E que lance foi aquele de “eu faço o que você quiser”? Ela acha
mesmo que pode cravar uma estaca no meu peito e depois tentar colocar um
curativo? Até a porra do funeral do Adolfo, que foi culpa dela, a desgraçada
conseguiu estragar, ficando no meu pé.
Enrolado em uma manta felpuda, estou sentado no sofá, com a
caneca do chá em uma mão e o celular na outra. Volta e meia, olho para o
filme rolando na tela da minha TV de cinquenta polegadas, mas sempre
com a cabeça a léguas de distância.
Meu telefone começa a vibrar, e, no susto, eu quase derrubo o chá
no meu colo. Molharia tanto a manta quanto o meu conjunto de moletom
cinza.
— Merda! — rosno, fazendo malabarismo para conseguir atender ao
número desconhecido e voltar a equilibrar a caneca. — Alô!
— Harry? — pronuncia uma voz feminina que eu não conheço. Só
falta ser alguma oferta de telemarketing... — Sou a Edna, secretária do
Isaque, seu avô. Você enviou um e-mail para ele querendo marcar um
horário para conversar há algumas horas.
Meu coração dá um tranco. Antes de toda a merda rolar e meu
hamster morrer, eu liguei para o número antigo que tinha do meu avô. Deu
como inexistente. Precisando falar com ele e não tendo ideia de como
conseguir seu número novo, devido aos sete anos sem vê-lo, entrei no site
de sua empresa. Ele é dono de uma marca famosa de cigarros. Liguei para
uma série de números até finalmente alguém me fornecer o e-mail do meu
avô. Enviei uma mensagem curta anunciando quem eu era e que precisava
muito falar com ele, e finalizei deixando o meu número, para que me
retornassem.
— Sim, sou eu mesmo. Tudo bem, Edna? — Estou tão ansioso que
até prendo a respiração depois de falar.
— Tudo ótimo. Eu passei para o senhor Isaque a sua solicitação de
contato, mas ele anda muito ocupado com alguns assuntos pessoais e de
trabalho...
Meus ombros, antes eretos pela expectativa do que ela poderia dizer,
agora se retraem com a tristeza de descobrir a recusa de contato daquele
velho. Não que eu já não esperasse por isso, mesmo que houvesse, bem
entranhado em meu peito, uma esperança de que ele aceitasse falar comigo.
— Entendo.
— Entretanto... — Ela faz uma pausa dramática e longa, até que, por
fim, resolve prosseguir: — Ele pediu que eu o convidasse para a sua festa
de aniversário. Será na mansão dele, na Barra da Tijuca, e começa na
próxima sexta-feira à noite. Terá o fim de semana inteiro de duração. Ele
vai ceder um quarto para que você se acomode e possa participar, e entre
as confraternizações, disse que irá separar um tempo para ouvi-lo. — Puta
que pariu! Eu não acredito! Posso sentir o sangue correndo com urgência
em minhas veias. Meus olhos se arregalam tanto com o choque que eu
tenho medo de que pulem para fora do meu rosto. — É do seu interesse
comparecer?
— É claro que sim! — Tento não soar tão animado ao dizer, mas
acabo falhando ao quase gritar. Eu não estou feliz por comparecer a essa
merda de festa, ou por ter de olhar na cara dele, mas sim por ter uma mísera
chance de conseguir a grana que preciso. — Fico muito feliz com o convite.
— Ele apenas deixou o pedido de que respeite o dress code, que, no
caso, será casual chic, evitando o uso de piercings. E proibiu que você leve
companhias indesejadas, estendendo o convite apenas em caso de uma
eventual companheira.
Respiro fundo. É claro que ele mandaria que eu escondesse os meus
piercings, os protagonistas de nossas maiores brigas na minha adolescência.
Isaque nunca mudará. Sempre terá tesouras a postos para tentar me podar.
Só de pensar nisso, meus dentes rangem e meus dedos se apertam com
fúria, tanto ao redor do telefone quanto da caneca. Fecho os olhos, tento
respirar com calma e expurgar a raiva junto ao ar que expulso pelas narinas.
Eu preciso dele!
O banco não vai me ceder um empréstimo do valor que eu preciso,
agiotas não são uma opção, só me resta esse homem!
— Tudo bem! Diga a ele que estarei presente em sua festa e que
agradeço o convite.
— Obrigada, Harry. Até mais!
Após desligarmos, eu tento ver o lado positivo de toda essa merda
enquanto pouso a caneca de chá em um pufe preto e redondo ao lado do
sofá. Apoio meus pés no piso vinílico cinza, pouso os cotovelos nas coxas e
deixo minha cabeça despencar para apoiar a testa em minhas mãos. Balanço
a cabeça, perguntando-me se eu não atirei pedra na cruz em algum episódio
de minhas bebedeiras e acabei esquecendo, porque não é possível...
Ter de me humilhar para o meu avô nunca passou pela minha mente.
Ele me deserdou há anos, e desde então não nos falamos. Eu vivo sem
precisar dele, sem família, apenas eu, Deus e os amigos que a vida me deu.
Eu não imaginei que precisaria voltar a vê-lo, e por vezes achei que
o nosso reencontro se daria apenas em seu funeral. Não por ódio dele,
somente por mágoa, e porque ficamos bem longe um do outro. Nunca perto.
Sempre a uma distância segura para que as dores soterradas jamais voltem à
superfície para envenenar a nós dois.
Agora, não existe opção. Eu preciso me blindar para encarar o
demônio. E pode ser que ele não queira me emprestar o dinheiro.
Eu já pensei no que direi ao meu avô. Contarei que preciso da grana
para investir na franquia dos meus amigos. Mostrarei como o Ravina faz
sucesso, as reportagens falando sobre o nosso desempenho em concursos de
tatuagens, a fama que temos e tudo mais. Ainda assim, ele pode pensar que
eu continuo o mesmo garoto inconsequente que diz ter errado ao criar, que
deveria ter tido o pulso mais firme comigo.
A minha mente fica nublada quando eu penso em como mostrar a
ele qualquer coisa que o faça acreditar que vale a pena investir em mim e no
meu plano.
Como fazê-lo acreditar que eu mudei?
Como criar um personagem que ele compre, que possa gostar?
Eu não sei se consigo. Nem no exército, onde ele me obrigou a estar,
eu conseguia me segurar. Volta e meia, eu soltava gírias ou fazia piadas nas
horas erradas, tomando reprimendas dos meus superiores.
Desta vez, no entanto, é diferente. Andar na corda bamba para
agradar ao meu avô é do meu interesse. Eu quero algo dele. Acho que posso
tentar fingir ser o seu projeto perfeito. Ir com as roupas adequadas, sem
piercings aparentes, tentar me segurar e não soltar nem uma mísera gíria.
Seria o suficiente?
Achei engraçado a secretária me dizer que eu não devo ir
acompanhado, a menos que seja de uma namorada ou parceira. O que o
meu avô pensou, que eu levaria baderneiros à sua festa, como eu fazia em
nossa casa quando ainda morava com ele? Eu cresci, porra! Meus amigos
são caras de bem – embora, à primeira olhada, Josiah, Nate e Bill pareçam
baderneiros mesmo. Mas as garotas não. As esposas deles são encantadoras.
Meu avô gostaria delas.
Meu celular volta a apitar e a breve prévia de um e-mail aparecendo
na tela me chama atenção. Quando vejo que o remetente se chama Isaque
Alencar, meu peito explode de ansiedade. Às pressas, desbloqueio a tela e
corro para ler:

“Olá, Harry!
Quanto tempo, não? Estou ansioso para saber o que quer tratar
comigo. E... eu não vou mentir, gostaria muito de ver como você está, se
tomou jeito na vida, se tem filhos ou se casou. Mas eu não quero criar
expectativas de que tenha tomado jeito. Quem se casaria com o rapaz
inconsequente que deixou a minha casa? Se for para apenas me trazer
problemas, espero que não venha.
Atenciosamente, Isaque Alencar.”

O veneno de suas palavras desliza para fora da tela feito uma


serpente, percorre o meu corpo e me fura a pele, adentra minhas veias e me
faz querer explodir de raiva.
Ele sabe girar uma chave na minha mente. Consegue fazer com que
eu me sinta um inútil.
“Quem se casaria com o rapaz inconsequente que deixou a minha
casa?”
Sua frase de merda se infiltra em meus neurônios e cria raízes em
meu cérebro. Neste segundo, eu me arrependo de nunca ter me relacionado
de maneira séria com uma mulher, de nunca ter namorado. Eu queria poder
esfregar na cara dele que está errado. Que eu sou alguém apaixonante,
digno de amor, e não o merdinha que só pode ser rejeitado, como ele
acredita que sou. E eu nunca namorei porque eu não quis, porque não me
apaixonei de verdade para isso. Eu não vou ter algo superficial só para
cumprir o que ele espera de mim. Se um dia eu formar uma família, será
porque terei encontrado a mulher perfeita para mim e para ser a mãe dos
meus filhos.
Mas eu ainda queria, com toda a força do meu ser, ter alguém para
poder esfregar na cara daquele narcisista, para fazê-lo ficar de queixo caído.
Um relâmpago clareia o céu com tudo do lado de fora da janela
larga, bem ao lado esquerdo do meu sofá. E o mesmo raio parece acender
uma lâmpada no meu cérebro, capaz de fritar os meus neurônios. É o
lampejo de uma ideia doida, insana, mas que pode dar muito certo.
Olho por cima do ombro, mirando a porta da minha casa, como se
eu pudesse enxergar o outro lado do corredor, como se eu sentisse a garota
que detesto e que pode, de certo modo, ser a minha salvação.
Ela disse que faria qualquer coisa, não foi?
O que faço é impulsivo, meio impensado, com chance de dar errado.
Mas, mesmo assim, vou lá e faço.
Sou incapaz de controlar meus pés, que, animados e imprudentes,
guiam-me até sua porta. Aperto a campainha, ouvindo Gasoline, da Halsey,
tocando lá dentro, com o som escapando pelas frestas marrons do batente.
Meu coração está um pouco estressado, batendo em descompasso, e,
ansioso, eu aperto mais duas vezes o botão branco da campainha. Estou
descalço, e certamente ela vai achar que sou louco quando eu disser o que
estou pensando. Mas não importa, ela me deve, e vai pagar, se não quiser
perder o animal selvagem que cria em um apartamento.
Posso ouvir a música sendo desligada lá dentro. Ouço passos leves,
que aos poucos se tornam mais altos. Escuto quando a correntinha da porta
desliza. E o girar da chave. Por fim, abrindo uma pequena brecha na porta,
Branca me olha. Está com os olhos muito inchados e o nariz vermelho, e
antes de abrir a boca, solta um espirro que lança sua cabeça para frente, por
pouco não a fazendo bater com a testa na porta.
Branca usa um moletom preto e muito grande para o seu corpo. Não
tem estampa na frente; na verdade, parece masculino. Eu não consigo não
reparar nessa demônia. É como se ela fosse magnética, atraindo-me de tal
modo que tudo o que meus olhos fazem é reparar em cada átomo seu. Suas
coxas grossas estão camufladas por uma calça do mesmo material do casaco
e de mesma tonalidade. Branca assopra a franja dos olhos, depois me olha
de um jeito colérico.
— Oi...
Sua voz está meio rouca. A imunidade deve ter caído, pelas horas no
frio comigo, deixando brecha para um resfriado.
— Quero levar um papo contigo. Bora lá em casa?
Já vou me afastando da porta dela após perguntar, esperando que
Branca me siga, mas não parece nem de longe que essa seja a sua ideia.
— Fala aqui, ué. Se não reparou, estou resfriada e sem energia para
discussão.
— É um papo longo! — aviso, abrindo a minha porta. — Sobre não
denunciar a sua cobra. — Por cima do ombro, posso ver a luz tomando
conta dos seus olhos, com os cílios longos e escuros batendo sem parar. —
Tá a fim de ter essa conversa ou não?
— Sim! — diz, cheia de animação. — Eu só vou colocar uma
pantufa.
— A cobra tá presa, né?
— Tá sim! — grita lá de dentro.
Branca volta para o corredor, calçando uma pantufa estranha e fofa
dos Minions, nem um pouco espalhafatosa. Ela não diz mais nada, apenas
passa por mim e adentra a minha casa.
Assim que eu bato a porta atrás de mim, vejo a bonita se jogando
sentada em meu sofá, e sem a menor sombra de insegurança, pega a minha
caneca e começa a beber o meu chá.
— Casa maneira! — fala, assoprando a caneca e me olhando. —
Gostei.
— Esse chá era meu!
— Eu não me importo em dividir. — Dá um sorriso meio sugestivo.
— Você ainda quer?
Reviro os olhos, depois me sento do outro lado do sofá, com os dois
pés sobre ele, e virando-me de frente para a Branca, abraço os joelhos. Ela
fica fofa com carinha de doente. E eu sou mesmo um otário por achá-la
bonita a cada maldito segundo que a encaro. Eu não costumo ser tão trouxa
assim.
— O que você quer falar? — Depois da pergunta, ela sorve um
pouco do chá, sondando as paredes, que passeiam entre o verde-musgo e o
preto, e as prateleiras de ferro escuro, contendo decorações rústicas em tons
de ferrugem ou entralhes de madeira. Por fim, ela encara o dichavador e o
baseado apagado largado em uma badeja espelhada em cima da mesinha de
centro. — Estava fumando um e ficou mais calmo? Desistiu de denunciar a
Nagini?
— Não para as duas perguntas. Eu estava me aquecendo
adequadamente para não ficar doente.
— Ah, ao menos um de nós não ficou tão fodido... — comenta com
desdém e me oferece um pouco do chá. — Quer alguns germes para
equilibrar a nossa situação?
— Sai fora! — Afasto com calma a caneca que ela se esticou toda
para enfiar perto da minha boca. Mas, estranhamente, eu não paro de sorrir.
— A parada é a seguinte... — Respiro antes de continuar, observando que
me olha com atenção. — Eu tenho uma oferta para você. Preciso que faça
algo para mim em troca de eu não denunciar a sua cobra.
Branca revira os olhos e fecha o semblante. Até chega a apertar os
lábios, como se lutasse para não dizer algo. Mas se empertiga toda, olha
dentro dos meus olhos e diz:
— Eu não vou trepar com você! — Na verdade, ela quase rosna,
mas sua voz sai meio fanha, por certamente estar com o nariz entupido. —
Eu não me vendo, idiota! Transo com quem me interessa e quando estou
com vontade. Eu não troco a minha boceta por favores.
Ela está achando que eu quero me aproveitar dela porque a vi
fazendo sexo na balada? Por isso foi direto para esse raciocínio de bosta?
Quem falou em sexo aqui?
— Eu não disse isso! Não estou querendo te comer! — devolvo,
trucidando-a com os olhos. — O que não falta para mim é sexo.
— Então, o que você quer?
— Quero que vá ao aniversário do meu avô comigo. Que finja ser
minha noiva.
Demora alguns segundos até que ela esboce uma reação, como se eu
tivesse causado uma pequena pane em seu sistema com a minha explicação.
— Rá! — Branca me olha com tanto brilho em seus olhos que, a um
desavisado, pareceria até que está feliz, mas como eu a conheço, mesmo
que pouco, sei que o que exibe ali é a satisfação de me achar um doido. —
Tá de zoeira? — Chego a trincar o maxilar. — Sabe que a nossa vida não é
uma fanfic, né?
— Fan o quê? — Ergo as sobrancelhas, sentindo meu corpo
começar a esquentar de raiva dessa mulher.
— Fanfic, histórias escritas por fãs... — Branca me olha como se
fosse óbvio, mas quando eu continuo inabalado e doido para colocá-la para
fora da minha casa, ela joga uma mão para cima e bufa. — Deixa pra lá! O
que eu quero dizer é que isso é brega. E a gente não se suporta, dá pra ver o
ranço mútuo que sentimos do outro quarteirão.
— A gente não precisa se gostar pra isso.
— Precisa no mínimo tolerar. E o jeito como eu precisei implorar na
chuva pra você não denunciar a minha cobra me fez te odiar ainda mais! —
Ela fica vermelha ao dizer. — Só estou aqui, respirando no mesmo
ambiente que você, porque estou nas suas mãos. Do contrário, eu estaria
querendo socar a sua cara.
— Pra mim, você tem cara de sonsa, ou seja, sabe fingir muito bem.
E, acredite, a sua presença aqui também é bastante desconfortável — falo,
fingindo lixar as unhas da mão direita no meu moletom, na altura do peito.
Observando-a morder o interior da boca para conter um palavrão, sorrio,
triunfante. — Se não quiser que eu denuncie a sua cobra, eu posso ficar
quieto e esquecer o assunto. Mas, em troca, terá de passar o fim de semana
comigo na festa do velho...
— É assim que chama o seu avô?
— Não vem me dar lição de moral! — Branca ri da minha cara de
raiva. Porra, eu detesto a maneira como esse sorriso de dentes brancos e
pequenos me desarma. Onde está a vontade de socar a minha cara nessas
covinhas minúsculas afundando em suas bochechas? Não parece conter
raiva nesse sorriso. — Vai aceitar essa porra ou não?
— Tô pensando... — Branca enrola, voltando a beber o chá, quase
afundando o rosto na caneca e me encarando ao dobrar as pernas de lado
sobre o sofá. — E por que precisa fingir que tem uma noiva?
Penso por poucos segundos sobre o motivo de não contar a história
toda a ela, mas não vejo por que omitir. O mais importante é resolver isso e
convencê-la a me ajudar.
— Eu fui roubado por uma stalker de merda. História longa... —
resumo.
— Minha agenda está livre, conta aí — Branca pede, olhando-me
com interesse.
— Há cerca de um ano eu venho sendo importunado por uma
maluca em jogos de videogame. Ela invade as minhas partidas e me mata.
Pensei que era uma brincadeira boba, mas agora a mulher foi além e
conseguiu limpar a minha conta bancária.
Eu não consigo decifrar bem o rosto dela. Não sei se esse semblante
é de satisfação, por saber que me foderam, ou se ela está duvidando do que
estou contando, como se eu fosse um mentiroso.
— Que situação... Parece coisa de novela.
— A questão é que não é fácil conseguir a grana de volta, por isso
preciso do meu avô. Ele me vê como um inconsequente, não aceita o meu
estilo, a minha personalidade, e não temos uma boa relação. Por isso, acho
que, talvez, se eu aparecer com uma noiva, mostrar que hoje tenho uma
vida mais estável, dê mais confiança a ele de me emprestar o montante.
— E seus pais, não são uma opção para te ajudar com isso?
Sua pergunta inocente me atinge como uma facada.
Que pais?
A mãe morta a quem levo flores uma vez ao ano, e diante de seu
túmulo conto sobre como anda a minha vida? O pai imprudente que se acha
o Jack Sparrow, que deixou minha mãe grávida aos cuidados do meu avô e
foi viajar o mundo em um veleiro? Ele nem sabe como eu sou, nunca quis
me ver, sempre me renegou. Nem mesmo quando minha mãe teve câncer e
veio a falecer, ele se preocupou em aparecer para me reconfortar, dar apoio
ao garoto de cinco anos que ficava inteiramente aos cuidados do avô. Que,
enlutado e sem entender nada, só queria o pai. A criança que aprendia a
falar sem parar para conter o vazio dentro do próprio corpo, que fazia
piadas para que as pessoas o achassem interessante.
— Não tenho pais. Não tenho família.
Um silêncio denso se amontoa como uma névoa dentro da minha
sala.
Eu não tenho ninguém além dos meus amigos.
Por muito tempo, eu pensei que a culpa fosse minha, que eu nunca
fui interessante o suficiente para que meu pai me quisesse, e acabei me
transformando inteiro, querendo ser outra pessoa.
Por trás do meu sorriso, eu sempre escondo essas camadas, as
vergonhosas, as sofridas.
— Que festa é essa que dura um fim de semana inteiro? — Ela
pigarreia, parecendo ver tudo dentro de mim, percebendo que estou mal.
— Meu avô gosta de plateia, pessoas babando o seu ovo. Vai lotar a
casa dele de gente para ouvir as piadas sem graça que conta ou sobre como
ele saiu do nada e construiu seu império e todo tipo de merda que ele ama
fazer.
Branca me sonda como se quisesse entrar em meu corpo e ver sob a
minha pele. É um olhar profundo, intrigado, como se quisesse entender
mais sobre mim. É estranho, sinto que não devo me abrir tanto com essa
garota, mas, ao mesmo tempo, eu quero saber mais dela.
— E você, tem família? — Vejo a pergunta escorrer pelos meus
lábios.
E a confusão em seu rosto se torna esquisita. É como se ela mudasse
completamente. Seus olhos se tornam vidrados, a boca se abre de leve, e,
quando suspira, ela me olha com olhos avermelhados, prestes a chorar.
— Só tenho os meus irmãos.
— Os dois do andar de baixo? — Sei que deveria parar, mas não
consigo.
— Tenho outros. Um deles morreu há alguns anos...
— Sinto muito! Eu também perdi pessoas no passado.
— Sério?
— Sim.
Branca sorve a última golada do chá, pousa a caneca sobre a
mesinha de centro e puxa a manta que estava largada no meio de nós dois
para si. É estranho ver que, como se não notasse o que está fazendo, ela
cheira minha coberta. A garota cora, a ponto de ficar quase roxa ao ver que
eu a encaro como se ela fosse um ET.
— Está cheirando a minha coberta por quê?
— Tá com cheiro de maconha. Iria te mandar lavar... — Hesita ao se
enrolar mais na manta.
— Sei... Tá querendo e não tá sabendo pedir, Branca? — provoco,
só para ver quão mais rubra ela pode ficar.
Gosto desse joguinho, de a ver encurralada, sem reação.
— Vai à merda! — xinga, armando um bico do tamanho do mundo.
— Teremos de dizer algo ao meu irmão mais velho, porque...
— Quantos anos você tem? Não vai me dizer que é menor de idade!
— Eu tenho vinte anos, imbecil! — Ela ri. — Como eu estava
dizendo, antes de o senhor mal-educado me interromper, teremos de dizer a
ele que estamos saindo, porque, se o Rafael achar que você está se
aproveitando de mim, vai te tornar um inimigo. E, acredite, você não vai
querer o Rafael no seu pé!
Seu rosto deixa claro que ela não está brincando. E eu conheci
aquele otário, percebi que ele é um porre quando se trata da irmã. Só tem
uma coisa que não se encaixa bem...
— Por que ele pega assim no seu pé? Você tem vinte anos, mora
sozinha... Eu não consigo entender.
— Porque ele cuidou de mim e dos meus outros irmãos desde os
meus treze anos. Ele se sente responsável e não entende que eu cresci. Mas
não importa, a questão é que precisaremos encenar pra ele também. E
precisa ser convincente, se não o quiser indo atrás da gente ou te enchendo
de porrada toda vez que te ver.
— Como se ele fosse conseguir me bater... — murmuro para mim
mesmo, tão baixo que ela certamente não ouve. — Eu taquei, né, Deus? —
Olho para o teto da minha casa como se o cara lá de cima estivesse me
ouvindo agorinha. — Taquei mesmo uma pedra na cruz quando estava
chapado, para ter de me meter numa com essa aí...
Aponto com o queixo para a Branca, que dá um sorrisinho e revira
os olhos para mim.
— A ideia foi sua! — relembra. — E eu ainda não gosto de você! —
avisa, levantando-se e jogando a coberta no sofá. — Anota logo o meu
número, para a gente ir se falando durante a semana sobre o assunto.
Enquanto ela canta os números de seu telefone, vou anotando na
agenda do meu celular. Branca não espera mais, apenas sai do meu campo
de visão. Quando fecha a porta da minha casa, eu só olho em direção a ela
para ver se fechou mesmo.
Acho que desmaio se um dia eu acordar e der de cara com aquela
víbora negra e assassina de hamsters.
“Não gosto desse seu palco inclinado.
O papel que você me fez interpretar, de tola,
não, eu não gosto de você.”
Look What You Made Me Do, Taylor Swift.

Olho para o terrário da Nagini. Ela está me encarando, enrolada no


galho seco de árvore que tanto ama.
— Você deveria ter comido os ratinhos que dei, e não ter ido devorar
o hamster do Harry! — repreendo, a voz ficando rouca pelo resfriado. —
Olha só o problemão em que me enfiou com aquele cuzão. Agora preciso
fingir ser noiva dele... Que humilhação!
Parecendo notar que está levando uma bronca, Nagini desce a toda a
velocidade do galho e se esconde em meio à folhagem seca no fundo do
terrário. Eu sempre ouvi dizer que répteis não têm emoção. Às vezes, eu
concordo; em outros momentos, acho Nagini amorosa. Em dadas ocasiões,
no entanto, ela é temperamental à beça.
Sentada em minha cama, estou com o notebook sobre as coxas e as
costas afundadas na cabeceira acolchoada cinza. Meu nariz está pegando
fogo, eu não aguento mais espirrar. Provavelmente eu já tinha entrado em
contato com um vírus de gripe, aquela chuva só lhe deu forças para atacar o
meu sistema.
Foi deprimente como eu precisei me humilhar para o Harry,
desesperada com a hipótese de arrancarem a Nagini de mim. Ele não faz
ideia do quanto ela significa, do quanto essa cobra foi importante para que a
minha mente não criasse uma ruptura definitiva da realidade. Se a tirarem
de mim, levarão embora a pouca sanidade que me resta.
Estou jogando The Sims 4[6] no notebook. Fico à esmo criando
personagens que crescem em famílias amorosas e saudáveis, vão para a
faculdade e constroem a carreira dos sonhos, depois têm filhos, envelhecem
e, por fim, morrem, mas tendo vivido de modo pleno e feliz. Dou a eles a
vida perfeita que eu jamais terei. Isso me distrai, mas sempre expõe o
buraco que carrego dentro de mim, que grita em linguagens distintas que eu
fui amaldiçoada, que eu nasci e morrerei corrompida.
Isso me faz pensar no quanto estou atolada em um mundaréu de
lama com toda essa confusão. Estou nas mãos do Harry, embora já tenha
entrado em contato com algumas pessoas na internet para tentar conseguir
um documento que me permita ter a Nagini em casa. Mas vai demorar
muito, pelo que me disseram. Enquanto isso, estou refém, precisarei
participar desse acordo de bosta com ele.
Está tudo saindo dos trilhos, seguindo a direção contrária da que eu
imaginei ou tracei para a minha vingança. O que não quer dizer que, de
alguma maneira, é ruim. Pelo contrário. Eu descobri muitas coisas sobre o
Harry depois que a Nagini cometeu aquele ato terrível.
O jeito como o Harry me olhou em alguns momentos foi o que mais
mexeu comigo, o que mais me deixou irritada. Porque era como se... como
se ele me quisesse, e mesmo em meio à raiva, não conseguisse esconder
isso. Ele reparou em cada parte minha quando estava entre as minhas
pernas, com um brilho contido nos olhos. Eu via algo borbulhando em meio
ao ódio que evaporava dele. Era desejo. E aquele pau duro roçando contra
mim só confirmou as minhas suspeitas.
Ele me quer.
E a minha mente grita comigo, berra que sou uma imunda, porque,
mesmo humilhada, cheia de lama e completamente dominada, querendo que
a raiva fosse a protagonista ali, eu fervi com aquele olhar. Eu o desejei de
volta. Quis sentir aquela coisa imensa e dura dentro de mim. Mesmo em
meio a todo o ódio que eu senti por ele me tornar tão vulnerável. Por ter
arrancado de mim algo tão importante no passado e ainda assim me
incendiar. Meu corpo estava gelado pela chuva, mas, por dentro, era lava
correndo em minhas veias.
Tudo isso é muito contraditório.
Eu o quero de quatro por mim, mas dentro do meu corpo tem algo
gritando que eu vou cair na armadilha que montei para ele. Que serei eu a
presa na arapuca. Que, fingindo ser sua namorada, talvez eu misture as
coisas.
Eu nunca me envolvi com pessoas próximas, porque sou
naturalmente carente. Eu me apego. E tenho medo de fazer isso. Eu não
confio em ninguém, porque, quando confiei, meus estilhaços se espalharam
por toda a parte ao me quebrarem.
Então, como ficar sob o toque daquele homem sem sentir nada? Ele
é sexy, e grande, e... porra... cheiroso. O cheiro dele é a coisa mais gostosa
que eu já senti na vida. É surreal como, mesmo que sua casa estivesse com
cheiro de maconha, do sofá à manta exalavam o aroma de seu perfume,
sobrepondo qualquer outro. Um cheiro de limão... Limão e outras coisas
que eu não sei definir. Eu nunca senti um cheiro tão viciante e tão bom. E o
desgraçado me flagrou fungando a sua manta. Ainda debochou de mim,
fazendo-me querer cavar o piso do prédio para me esconder sob o concreto.
Merda!
Sinto vontade de atirar meu notebook na parede.
O Harry não pode se infiltrar na minha pele!
Eu quero e vou me embrenhar em cada neurônio dele, quebrá-lo por
dentro, mas não deixarei que faça o mesmo comigo. Eu não posso deixar.
Essa vingança é minha, para beber cada gole, não dele!
Ouço uma batida à porta. Meu coração acelera feito um tolo. Será o
Harry? Logo na sequência, Dan entra em minha casa, com os olhos
inchados de choro e um lenço de tecido cinza em uma das mãos. Quando
Rafael chega, atrás dele, meu irmão mais novo o empurra para frente, como
se quisesse colocar o mais velho em evidência. Gesticula sem parar,
desesperado, limpando as lágrimas e até xingando com as mãos,
embananando-se com o lenço, que atrapalha seus gestos.
“Fala, seu idiota! Fala para ela o que você fez!”, Daniel ordena,
batendo os pés.
— Me respeita, moleque! Eu sou seu irmão mais velho! — Rafa
avisa, apontando o dedo no rosto do mais novo. — E vou contar, sim. Acha
mesmo que eu não pretendia dizer à nossa maninha o que eu fiz com o
espertinho aí da frente?
Minhas sobrancelhas se unem em confusão. E, embora eu queira, a
todo custo, que meu julgamento sobre o que acabei de ouvir esteja errado,
acho que entendi perfeitamente o que o cara vestindo jeans escuro e polo
azul-marinho disse.
— O que caralho você fez? — grito, jogando o notebook para o
lado, com as mãos tremendo de raiva. — Não vai me dizer que causou a
morte do hamster de propósito!
Rafael ri, puxando uma das cadeiras da mesa e se sentando.
Despreocupado, pousa o tornozelo direto sobre o joelho esquerdo e relaxa
sobre o assento. Pega um palito de dente em um paliteiro de vidro que
repousa sobre a mesa, depois o segura entre os dentes e me encara.
— Isso... eu não pretendia — fala, balançando a merda do palito em
seus lábios, com a voz saindo estranha por causa do objeto. Seus olhos
estão divertidos, brilhando, como se houvesse orgulho em cada maldita
palavra que sai de sua boca. — Eu apenas aproveitei que o Harry estava
com a porta aberta e soltei a cobra. Queria que a Nagini fizesse um trabalho
para o titio, assustando o aproveitador de merda que mora aqui na frente.
É impossível medir o tamanho do ódio que percorre o meu ser neste
momento.
— Ele não é um aproveitador! — berro, cerrando as mãos em
punho, mesmo que defender o meu maior inimigo faça a minha língua
queimar. Fico estagnada no mesmo lugar, pois sei que, se eu for até ele, sou
capaz de torcer seu pescoço. — Ele é meu... é meu... — grito, mas a mentira
fica entalada como uma bola de chumbo bem no meio da minha garganta.
Ainda assim, ela desliza por meus lábios: — É meu namorado!
Vejo que Dan e Rafael me encaram com olhos arregalados. Daniel
estava diante da pia, servindo-se do chá de capim-cidreira que eu preparei
após chegar do apê do Harry.
Sinto vergonha da mentira. Sinto vergonha de dizer essas palavras
em voz alta. Elas soam ridículas, porque sei que coisas assim não são para
mim. Eu nunca imaginei que um dia diria essa frase, tampouco que seria
falsa.
“É sério?”, Dan pergunta, puxando a barra da camiseta branca para
cima da calça de moletom cinza, meio ansioso.
Assinto para ele. É claro que depois eu vou contar ao Dan sobre a
merda do “relacionamento de mentira” em que estou metida. Eu não preciso
mentir para ele além da conta. Sobre isso, eu posso ser sincera, pois só
tenho de omitir quem é verdadeiramente o Harry, e isso já me dilacera. Dan
é o meu cristalzinho, meu conforto em forma de pessoa. Eu não queria ter
tantos segredos com muros erguidos entre nós.
— Sei... E desde quando você namora?
A desconfiança é um adereço reluzindo no semblante de Rafael. Ele
me analisa dos pés à cabeça, e quando pousa os olhos sobre o meu rosto,
parece querer arrancar a camada de pele e ossos e olhar dentro de mim,
pegar no flagra a mentira que samba em minhas entranhas. Mas eu sou boa
com isso. Com essa coisa de fingir, de mentir.
Precisei aprender a ser assim.
— Desde hoje cedo. A gente fica há um tempo, e hoje ele me pediu
em namoro. E seja lá o que ele tenha dito a você quando se esbarraram, ele
mentiu, porque eu pedi. Pedi que escondesse até que eu mesma contasse —
falo, lutando para ser convincente. E como a sonsa dissimulada que eu
posso ser quando quero, até deixo meu tom de voz emocionado. — Ele é
gentil, e doce, e muito, muito divertido. E cheiroso. E se quer saber, a gente
nunca transou! — Quando dou por mim, estou me gabando de algo que
sempre sonhei em poder dizer. Que sempre achei ser impossível: me
apaixonar sem ter feito sexo, antes do toque mundano. Ainda existe uma
garota boba dentro de mim, embora eu a enforque todos os dias e tente
mantê-la pequena e insignificante. Ela ainda está aqui, morando na minha
cabeça. Ela me faz sonhar em um dia ter algo limpo e inocente como uma
paixão. E embora isso seja só mais uma das minhas inverdades, ela sai
saborosa pelos meus lábios: — Sim, eu posso me apaixonar! Eu posso e
quero viver algo melhor com o Harry. Ele vale a pena. Então, por favor,
deixe-o em paz!
Quando vejo um semblante emotivo no rosto costumeiramente
fechado do meu irmão mais velho, eu me sinto, só um pouquinho, bem
pouco mesmo, culpada. É quase palpável a admiração no rosto do Rafael,
como se ele estivesse diante de um pequeno milagre.
— Espero que não seja mentira. — Sua voz sai fraca. Ele engole em
seco muitas vezes antes de prosseguir: — Veio morar aqui por causa dele?
Como se conheceram?
— Sim. A gente se conheceu em uma balada, meses atrás. Quando
eu disse que queria me mudar, ele me falou que havia este apartamento à
venda.
— Quantos meses?
Eu sei, ele vai me interrogar. O bom de Dan estar ouvindo tudo é
que vai me lembrar de cada palavra que estou dizendo aqui. Vai servir para
eu falar ao Harry e forçá-lo a decorar depois.
— Três. Eu sei que é pouco tempo...
— Não! É um milagre! É muito tempo! — Rafael se levanta da
cadeira. Ele segura o quadril, dando um sorriso de orelha a orelha. — Eu já
amo esse cara. Vou lá me desculpar pelo incidente com a minha sobrinha.
— Não! — grito, correndo para me enfiar no caminho dele. Eu me
jogo contra a porta, bloqueando-a com os braços abertos, sentindo o
coração palpitar a ponto de me fazer ofegar. — Ele não pode saber que foi
você. — Merda! Capaz de o Harry voltar atrás e ligar para o Ibama na hora,
achando que planejamos matar o Adolfo, e não que foi um acidente. — Ele
vai te odiar. Não contaremos isso a ele. Deixe-o pensar que foi um acidente.
— Cara, olha isso... Você está preocupada que ele me odeie. Você...
você gosta dele. Porra! Isso é incrível!
Sou obrigada a segurar a risada. Eu? Gostar dele? Só estou
preocupada em perder a porra da minha cobra!
Observo os olhos de Rafael marejando. E por mais que eu o ache
um saco, ver o quanto isso importa para ele, o quanto meu irmão deseja me
ver curada, conseguindo me apaixonar, deixa-me emotiva. Sinto a pressão
do choro me massacrando, mas como sou uma puta estéril de lágrimas, ele
não sai.
— Ele é apaixonante — comento.
Até parece...

Passei horas contando a mentira lavada ao meu irmão, vendo-o todo


feliz com a nova descoberta. Atrás dele, o maravilhoso do Dan me mostrou
que estava gravando a conversa em seu telefone, escondido, para que o
Rafa não visse. Isso vai me ajudar a não me perder na mentira mais à frente.
E é óbvio que quando eu falei que estava me relacionando com o Harry
havia três meses, o Daniel sacou a lorota na hora.
Eu fiz torrada para nós três, depois passei um café, e foi legal
acabarmos a noite conversando sobre as séries que andamos assistindo.
Assim que o Rafael foi embora, expliquei minuciosamente o que aconteceu
ao Dan. Ele riu, disse que isso realmente é coisa de livro, mas me entendeu.
E eu não duvidei nem por um segundo que ele o faria.
“Sabe, essa oportunidade de conhecer o avô dele pode ser boa para
você realmente fazer o gostosinho aí da frente se apaixonar por ti.
Impressione o avô dele, faça que empreste o dinheiro ao Harry. Ele vai ser
grato a você.”
Dan ainda acha que eu gosto do Harry, afinal, eu também o estou
enganando um pouquinho, fingindo que sou apenas a stalker louca
querendo o amor do meu vizinho.
Espero a rodela de vitamina C terminar de se dissolver na água em
meu copo de vidro. Na verdade, a minha intenção era esperar o Harry não
estar por perto e falar mal dele para o seu avô, e assim jogar a última pá de
terra em seus planos de ser sócio do estúdio. Mas a ideia do meu irmão cai
como uma luva. Conseguir me infiltrar no coração do Harry seria ótimo.
Fazê-lo se apaixonar por mim. E eu me esforçarei para ser a melhor
namorada possível. Então, saborearei cada segundo de amor que ele dedicar
a mim. Depois, pisarei em seu coração até virar farelo. Eu quero acabar
com o coração do Harry assim como ele fez com o meu!
— Com certeza farei isso!
“Eu não consigo esquecer isso.
Eu luto com você enquanto durmo.”
Would've, Could've, Should've, Taylor Swift.

Chego do mercado empunhando algumas sacolas pesadas de


mantimentos para a semana. Assim que as portas do elevador se abrem,
saio para o corredor do meu andar... e ele se choca com tudo contra mim.
Se as portas do elevador não tivessem fechado a tempo, Harry e eu
cairíamos lá dentro.
Sua mão imensa envolve o meu pescoço, e com o instinto de
sobrevivência tomando todo o poder sobre mim, eu largo as sacolas no
chão e seguro seu punho.
— Filha da puta! — sopra o xingamento entre os dentes.
Meu coração acelera a ponto de parecer um tambor, com o som
explosivo de cada batimento alto o suficiente para me enlouquecer. Sinto o
sangue correr em minhas veias feito um trem-bala.
— Harry... — tento falar, lutando contra a falta de ar que resulta do
enforcamento, com as costas quase se fundindo ao metal das portas do
elevador.
Ele aproxima a boca da minha orelha. É sério que a última coisa
que sentirei antes de morrer será esse cheiro de limão? E a miragem
derradeira diante de mim será o mais puro ódio que emana de seus olhos?
— Oi, Veneno!
Abro os olhos com tanta força que eles ardem. Encaro o teto do meu
quarto, sentindo o suor em meu corpo me tomando, a ponto de o colchão
estar úmido. Eu ainda sou capaz de sentir sua mão em meu pescoço, como
se ele realmente o tivesse apertado.
— Foi apenas um sonho, Branca! — repito para mim mesma com
dificuldade; se pela adrenalina do momento ou por meu corpo realmente
acreditar que fui sufocada, eu não faço ideia.
Sorrio, descrente, quase emocionada. Essa foi a madrugada mais
filha da puta dos últimos tempos, por causa do resfriado, e, ainda assim, foi
nela que eu sonhei. Porra, eu sonhei! Passei anos apenas fechando os olhos
para dormir e revivendo uma agonia em forma de pesadelo. Mas... isso...
Esse sonho foi diferente de tudo o que meu cérebro ousou produzir todas as
vezes em que eu fechei os olhos. Eu senti cada detalhe do sonho, a
adrenalina correndo em minhas veias por ver Harry me encarar sabendo
realmente quem sou: a puta que quer acabar com ele.
Eu não estou agoniada, não acordei com chumbo na garganta,
ofegando e triste por me lembrar da minha morte sobre um altar de pedra.
Nada disso! Estou plena, saboreando aquele cenário ilusório criado em um
mundo imaginário, mas que um dia eu espero que aconteça. Eu quero, com
toda a força do meu ser, que depois de eu concluir tudo o que preciso para
arruiná-lo, ele descubra que eu lhe dei um xeque-mate. Que passei por cima
dele e o esmaguei, do mesmo jeito que fez comigo!
Pensando nele, eu me levanto da cama, deixando a coberta
escorregar pela beirada do colchão até despencar no chão. Eu me
espreguiço, inteiramente nua, sentindo Nagini me julgar de sua redoma de
vidro.
— Você não usa roupas! Não me julgue por eu ter ficado irritada
com as minhas e preferido dormir pelada — rosno para ela, indo direto ao
banheiro.
Quando encaro o meu reflexo no espelho, vejo quão arruinada estou.
Meus olhos estão caídos e tão vermelhos quanto o meu nariz. Meu cabelo é
um ninho de nós amontoados em um coque embaraçado no topo da cabeça.
Por que eu fiquei na chuva com ele?
Por que senti pena do maldito enquanto o via aos prantos enterrando
seu bichinho?
Eu até tentei me enganar, fingir que estava na lama, molhada,
apenas pela Nagini. A realidade é que eu fiquei com dó do hamster. Que
senti empatia por ver o Harry enterrá-lo. Por culpa minha.
E olha o resultado de ter ficado lá, naquela tempestade... Estou
arruinada! Mas não importa, meus planos para hoje envolvem dar um jeito
nesta situação e ficar apresentável, afinal, está na hora de fazer alguns
movimentos no tabuleiro do meu jogo com o Harry.
Após tomar banho e ficar limpa o suficiente, saio do banheiro.
Enrolada em um roupão cinza-escuro, vou direto para o meu guarda-roupa.
Estou pisando na minha camisola, que, durante a noite, arranquei do corpo,
junto à calcinha, e lancei pelos ares. Estava me incomodando, e dormir já
era uma tarefa impossível.
Visto uma calcinha limpa, um short jeans, e finalizo com uma regata
preta de tecido molinho, do jeito que eu amo, por não incomodar ou agarrar
nos piercings que tenho nos mamilos. Eu não me preocupo em colocar
sutiã, quero ficar o mais confortável possível.
Ao som de Lana Del Rey, a manhã se esvai quase em um piscar de
olhos. Entre tomar o meu café, dar um jeito na casa e finalmente conseguir
fazer a Nagini comer o que eu comprei para ela, as horas voam, e, quando
dou por mim, já são onze da manhã.
Quando, por fim, estou com as coisas no lugar e a roupa suja
batendo na máquina de lavar, que fica em um canto da cozinha, subo para o
meu escritório com o celular na mão. Eu ainda não verifiquei as mensagens,
porque, se abro o telefone ao acordar, perco boa parte da manhã me
distraindo com memes ou fofocas no Twitter.
Ligo o computador e, entre uma golada e outra no energético que
acabo de pegar no pequeno frigobar em estilo retrô branco abaixo da minha
mesa, finalmente abro o WhatsApp e deslizo o dedo pela tela do celular.
A infinidade de mensagens no grupo dos meus irmãos deixa muito
claro que Rafael espalhou a notícia de que eu tenho um namorado para os
garotos. Eu nem vou perder meu tempo lendo. Eu me interesso apenas por
uma mensagem privada do Dan.
Dan: “Mana, hoje preciso ler um artigo para um trabalho da
faculdade. Não vou subir aí, mas, se quiser, vem pra cá, que eu cuido de
você e te dou comida. Tem chocolate também!”
Eu: “Te amo, gatinho, mas estou bem. Fica tranquilo, eu me viro
por aqui.”
Assim que estou prestes de bloquear o aparelho, a mensagem com o
número que eu sei de cor, de tanto que já o stalkeei, faz meus olhos quase
saltarem para longe das órbitas.
Harry: “Então, Sonsinha, acabei de dar de cara com o seu irmão, o
Rafael. Ele me tratou de um jeito estranho, todo feliz por ser meu
“cunhado”.”
Sonsinha? Eu quero fazê-lo engolir esse apelido! Não que deixe de
me definir quando se trata dele, afinal, eu sou bem sonsa e finjo na caradura
que não sou sua maior inimiga. Pisco para o telefone, sem saber ao certo o
que responder. É como se eu precisasse calcular cada palavra e movimento,
já que essa é uma dança que, quem errar o passo, pode se foder. E eu quero
sair triunfante!
Eu: “Já contei a ele que estamos namorando. Na real, precisamos
nos ver. Temos de alinhar as mentiras, tanto para o seu avô quanto para o
caso dos meus irmãos te interrogarem em algum momento. Quer vir
almoçar comigo?”
Eu não sei bem o que é isso em minha barriga, uma quentura
estranha, acho que nunca senti. É como se a apreensão que me assola
fizesse a minha barriga revirar, aquecer, prender a minha respiração.
Enquanto espero a resposta que Harry está digitando, luto com o ímpeto de
roer as unhas. Elas finalmente cresceram, porque, quando a minha
ansiedade ataca com tudo, elas se tornam meu alvo favorito para extravasar.
Clico em sua foto de perfil, e preciso admitir que é a coisa mais fofa
do mundo. Harry está sentado ao redor de uma mesa rosa minúscula, com
bonecas incontáveis ao seu redor. Algumas, sem braço; outras, com olhos
furados. Tem uma menina loira muito linda ao seu lado, que se estica toda
para colocar uma coroa de plástico na cabeça dele. Certamente é filha de
um dos seus amigos, pois tem mais fotos dessa garotinha no Instagram do
meu pesadelo em formato de homem.
É tão contraditório observar esse lado doce que o Harry exibe. Ele
tem amigos, e parece amá-los. Mas tudo o que eu conheço do Harry é o
mauricinho inconsequente que ferrou com a vida perfeita que eu estava
prestes a ter.
E quando eu penso nisso, quando lembro, sinto vontade de quebrar
tudo. De atravessar o corredor e atirar o arame farpado cravado em meu
peito bem na cara dele. De gritar o mais alto que eu puder, até que minhas
cordas vocais explodam que ele é o responsável por arrancar um pedaço da
minha alma. E, então, eu me lembro de que não pode ser fácil assim, que
não pode ser tão rápido. Ele precisa definhar, morrer um pouco, como
aconteceu comigo.
Harry: “Se não for colocar veneno na comida, eu quero. Peguei a
porra do teu resfriado e tô todo moído. Mas não tô a fim de entrar aí, não
quero ver a tua cobra! Vem cozinhar aqui ou traz a comida.”
Isso! Ele aceitou. Sorrio largamente. É como se algumas pedras
saíssem da minha barriga, e até os pesos que me tencionavam os ombros
somem. Respiro aliviada.
Eu: “Ok! Levo a comida!”
Sei que essa coisa de o convidar para almoçar parece melosa, mas
tanto para o meu plano quanto para o dele, teremos de conviver. E eu ainda
preciso enrolar o Harry hoje, conseguir sua promessa de que, mesmo
quando o seu avô lhe emprestar o dinheiro, ainda continuaremos sendo
“namorados de mentira” por um tempo. É claro que é para que eu tenha
tempo hábil para seduzi-lo, mas direi que é para que o Rafael largue do meu
pé.
Eu queria minerar, mas agora que preciso preparar a comida, tudo o
que faço é terminar a lata de energético, desligar o computador e voltar para
a cozinha. Enquanto deixo a massa cozinhando, aproveito para colocar a
máquina de lavar no ciclo de secagem, porque, embora eu tenha dinheiro,
não quero gastar com uma funcionária para cuidar da casa. Estou juntando
uma grana, só excedo meus gastos com roupas e noitadas. Fora isso, eu
quero acumular o máximo de dinheiro que puder, para então sair do país e
viver uma vida nova. Uma vida limpa, onde, talvez, eu possa deixar a
garota sonhadora dentro de mim ser livre.
Preparo o molho, e quando o refratário com a massa está pronto, eu
o coloco no forno pelo tempo necessário de aplicar um corretivo e camuflar
minhas olheiras horrorosas e arroxeadas, borrifar um perfume e deixar meu
cabelo aceitável. Aplico só um pouco de máscara de cílios, e quando me
olho no espelho, percebo que ainda estou uma confusão. Mas é aquele tipo
de caos agradável aos olhos, e eu gosto da blusa que estou usando.
Checo rapidinho se preciso passar mais desodorante, e vendo que
estou cheirosa o suficiente, calço meus chinelos de dedo, pego o refratário e
finalmente atravesso o corredor.
Dando um jeito de apertar a campainha do apartamento de Harry
com o cotovelo, eu aguardo, com a bosta daquela coisa em minha barriga
voltando a acontecer. É uma coisa estranha e que me deixa apreensiva.
Será que eu não deveria ter aplicado um batom? Ter passado um
blush ou colocado um brinco? Por que estou tão preocupada com ele me
achar bonita? Que droga! Pareço uma idiota. Eu não sou de ficar insegura
com a minha aparência, eu sempre me acho desejável. Por que isso agora?
Eu nem tenho tempo de me responder, porque Harry abre a porta, e
com apenas uma calça de moletom preta, seu abdômen sarado é o maior
foco da minha atenção. Os gomos de sua barriga profundamente marcados,
os piercings nos mamilos, a tatuagem de três lanças cruzadas na costela
esquerda, e mais acima, no ombro, uma arte tribal em tons escuros
arrematando tudo com chave de ouro. Céus, ele tem os braços na medida
certa para me deixar molhada... Puta que pariu! Eu realmente estou com a
calcinha úmida apenas por olhar para esse idiota incrivelmente gostoso. Eu
tento disfarçar o interesse crescendo, fazendo a safada que mora em mim
acordar, mas quando subo os olhos para o seu rosto, para o sorrisinho
preguiçoso e doente em seus lábios carnudos, eu quase suspiro.
Que porra está rolando comigo?
Eu odeio esse imbecil!
Ele não tem o direito de mexer com o meu corpo!
Meu Deus! Se eu não precisasse almoçar com ele, sairia correndo
agora, porque a compulsão, a fome, a agonia absurda por querer transar está
me tomando. A porra da ninfomaníaca está saindo da cela, quebrando os
grilhões que a mantinham presa desde a noite de foda com aquele casal.
Mas eu lutarei com isso, e pela primeira vez me forçarei a sufocar essa
vontade. Eu preciso enlouquecidamente me aproximar dele, e não vou
perder a chance.
Engolindo em seco, digo para mim mesma que sairei à noite, e
apenas à noite, e, mesmo resfriada, caçarei alguém para me aliviar.
— Viu um fantasma, Sonsinha?
— Oi para você também! — digo, passando por ele e entrando em
sua casa, que, de um modo irritante, é decorada com um enorme bom gosto.
Meu corpo está fervendo, mas eu tento me distrair lembrando o
quanto amo estilo industrial. E essa decoração é realmente a cara do Harry.
Vou até a ilha da cozinha e, sobre o mármore escuro com rajadas douradas,
coloco o refratário. Vejo que Harry arrumou nossos lugares, e diante de
duas banquetas altas, colocou dois jogos americanos brancos, com pratos
escuros e talheres ao lado de cada um. Ele é caprichoso.
— O que fez para nós? — Harry chega por trás de mim, e, no
mesmo segundo, eu paraliso. Ele está muito, muito perto, a ponto de sua
respiração quente aquecer minha pele ao soprar em meu pescoço. É sério,
eu não sei qual é o efeito desse homem sobre mim. Eu devo estar no meu
período fértil, porque sentir tesão apenas com a aproximação do meu
inimigo, por ele respirar em meu pescoço ao se inclinar para fungar o aroma
da comida, é demais! Demais até para uma vadia como eu. — Cheiro bom!
Amo comida caseira, mas, sabe, eu não cozinho quase nada. Na real, eu não
me dou bem com isso. Acabo queimando a porra toda.
Ele está sendo bem mais simpático do que eu esperava, e fico
aliviada quando sai de trás de mim, dando a volta no balcão adornado pelo
preto fosco das portas dos armários. Harry volta com um pegador de
macarrão de inox e, sem a menor cerimônia, parecendo bem faminto,
coloca comida em seu prato.
Eu deslizo para um dos bancos, muito mais sem jeito do que de
costume. Eu não sou tímida com homens ou mulheres. Sou introvertida
apenas quando se trata de deixar que as pessoas se aproximem de mim de
maneira profunda. Eu não faço amigos. Eu não me abro. Só que, quando se
trata de relações amorosas, eu tomo iniciativa, sei seduzir, instigar. Eu não
me acovardo ou fico assim, com as bochechas fervendo e sem saber o que
dizer.
— Tem alguns tutoriais na internet que ensinam receitas para
iniciantes — após raspar a garganta, tanto pelo resfriado quanto pela
timidez enervante que me domina, consigo dizer. — Posso te ensinar
algumas coisas, quando tiver um tempo livre.
Assim que Harry está com seu prato feito, gira sobre o banco para
ficar de frente para mim. Ele não se dá ao trabalho de me responder, apenas
enrola uma boa porção da massa no garfo e, sorrindo feito um moleque
brincalhão, a ponto de seus olhos naturalmente puxadinhos se tornarem
ainda mais fechados, oferta a garfada a mim.
— Vai, Branquinha, prova primeiro, pois eu não vou arriscar morrer
por causa de uma doida que não quer perder a cobra de estimação.
O quê? Ele acha mesmo que eu posso ter colocado veneno na
comida? Eu quero ferrar com a vida dele, mas não nesse nível! E mesmo
que eu morra de medo de acabar tendo a Nagini tirada de mim, eu quero
que ele pague pelo que fez, mas não com a vida.
— Deixe de ser idiota, Harry! — rosno, e só para provar quão
errado ele está, enfio a droga do garfo na boca e como a massa. De boca
cheia, digo: — Viu? Nada de veneno!
Ele sorri ainda mais, e seu bom humor contrasta totalmente com o
homem enlutado que eu vi ontem e que, se pudesse, certamente estapearia a
minha cara. Sem me esperar, ele começa a comer.
— Que bom! Eu já tive a minha dose de Veneno nos últimos dias —
fala, com sua voz soando um pouco mais molenga e anasalada, pelo
resfriado. E eu entendo a referência, mesmo que ele nem sonhe que esteja
falando de mim, que eu sou a Veneno. — Está uma delícia! — Harry até
suspira quando para de mastigar e me elogia. — Até que tu manda bem
nessa parada de cozinhar.
— Obrigada!
Eu sou bem mais educada ao me servir, e coloco pouca comida no
prato, porque, quando estou doente, eu não sinto tanta fome. E é só quando
estou abocanhando meu próprio garfo que me dou conta... É quase como
um farol acendendo dentro da minha cabeça. O impulso louco de querer
transar sumiu com a mesma velocidade que chegou. Harry me distraiu com
a sua brincadeirinha boba. O Harry despertou a maluca que existe aqui
dentro, que tiraria a roupa e gritaria em línguas incontáveis para ele a foder,
e depois também a fez dormir.
Como?
A vontade não vai embora assim.
Ela é indomável.
Ruge em minha mente, fica, feito um espírito, martelando em meu
ouvido até que eu a alivie. Até que eu dê de comer à entidade maligna que
certamente mora sentada em meu pescoço, guiando-me como uma
marionete para caçar pecados.
Por que a gracinha despretensiosa do Harry me distraiu? E mesmo
que o seu cheiro incrivelmente gostoso esteja soprando – junto ao vento
gelado que adentra a janela da sala – direto em meu rosto, a umidade em
minha calcinha está mais contida, embora ainda me deixe meio
incomodada, por estar pegajosa.
— Teu irmão é estranho, hein?! — comenta após tossir um pouco.
Harry já devorou toda a comida de seu prato, e quando se levanta, leva sua
louça suja em direção à pia. — Na primeira vez que nos falamos, ele ficou
puto porque eu disse que te dei carona para a balada. Agora... veio segurar
meu ombro e dizer que eu tenho a benção dele, me chamou de cunhado e o
caralho.
Eu não consigo imaginar o Rafael chamando alguém de cunhado.
Parece até que estou em uma realidade paralela ao ouvir isso. Chega a me
dar um treco estranho na espinha, fazendo-me tremer de nervoso. Eca!
Cunhado? Sai fora! Espero nunca o ouvir chamando o Harry assim!
— O sonho dele é que eu arrume um namorado. O Rafael não
consegue lidar com o meu espírito livre. — Harry coloca um pouco de suco
de laranja em um copo para mim, desses de garrafa que vendem no
mercado. — Obrigada.
— Suco de laranja é bom para a imunidade — avisa, depois enche o
próprio copo e se senta ao meu lado. — Eu queria mesmo era entornar uma
garrafa de tequila como a que você estava enchendo a cara na Vermute, pra
ver se esqueço as merdas que aconteceram comigo ao menos por algumas
horas — divaga. E só de ele falar nisso, sinto um pouco de pena. Não pelo
dinheiro, mas pelo seu ratinho. Eu nunca vou me perdoar por isso, ou
perdoar o idiota do Rafael. E tenho sérios problemas com perdão. —
Falando em Vermute, você conhecia aquele casal?
Enquanto bebo o suco, tento não me mexer na cadeira ou evidenciar
quão desconfortável sua pergunta me deixou. Sei que estou vermelha,
porque parece que o Harry usou um isqueiro e tacou fogo em minhas
bochechas, de tanto que ardem. Quando pouso o copo sobre a bancada,
reflito sobre toda essa vergonha. Eu não sinto isso nem com os meus
irmãos, então, por que com ele?
Mas como eu não sou nenhuma fracote, resolvo responder, mesmo
que com a voz baixa:
— Eu os conheci lá.
— E você sempre faz isso? Tipo, transa com pessoas nas baladas?
Por que ele está perguntando sobre isso? Parece até que o banco tem
formigas, de tanto que eu me mexo no assento. Irritada com o desconforto
absurdo que falar sobre isso com Harry me traz, giro sobre a banqueta e me
viro de frente para ele, pois eu só o estava vendo de perfil.
Seus olhos estão muito sóbrios, fitando-me como se eu fosse o
cálculo matemático mais difícil de ser resolvido. Ele realmente quer
respostas sobre aquela noite. E como sabe que eu transei?
— Você me seguiu até o dark room?
Então, o jogo vira. Eu não estou mais solitária no banquinho do
desconforto. Agora Harry está comigo, engolindo em seco e me encarando
como se tivesse sido pego no pulo. Seus cílios grandes batem sem parar, e
as maçãs proeminentes do rosto se movem a cada vez que ele suspira sem
perceber, por estar respirando rápido.
Por que ele tinha que ser tão bonito? O maxilar perfeitamente
marcado, o queixo um pouco quadrado e com uma leve fenda no meio, os
lábios tão grossos que mexem com a imaginação... Tudo nele parece ser
feito para endoidar as mulheres. Não é à toa que a louca que o Harry fodeu
no corredor gritava de desespero e prazer. Deve ter sido bom experimentar
esse homem. Mas eu não farei isso. Eu não quero, e não posso, ter algo
desse nível com ele.
— Foi você quem me convidou, ou estava tão doidona que nem se
lembra? — justifica, fechando a cara, como se, do nada, seu rosto deixasse
a timidez de lado e ficasse raivoso. — E por que fugiu da resposta?
Cruzo os braços, elevando uma das sobrancelhas. Eu não esperava
por isso. Vim até aqui para acertamos os pontos da mentira que vamos
contar aos nossos familiares, e não para eu dar satisfação da minha vida
sexual. E só de pensar nisso, eu me enraiveço. Sinto raiva quando vejo
qualquer julgamento ao meu comportamento. Meu irmão mais velho já
gritou na minha cara que eu fico nervosa quando sou questionada, porque é
o que um viciado faz quando jogam na cara dele que precisa de tratamento.
— Então, foi me assistir e não quis participar? — provoco,
saboreando a maneira como seus olhos brilham com minhas palavras. Posso
ver o choque por minha ousadia e o tesão reluzindo em suas pupilas. — Eu
vou a baladas e trepo com quem acabei de conhecer. E eu faço muito isso,
sempre que me dá vontade! — Cuspo o veneno da verdade bem na cara
dele. Já que quer tanto uma resposta, aí está, crua, imunda. — Satisfeito?
— Por quê?
Não há julgamento em sua voz. Na verdade, ele parece realmente
curioso, embora, bem no fundo dos seus olhos, haja uma certa fúria
dançando em meio ao castanho de suas íris. Como se... como se ele sentisse
ciúme quando falamos sobre isso.
Não. Estou errada. Estou vendo demais porque quero que Harry se
apaixone por mim.
— Como assim “por quê”?
— Por que você vai a baladas e transa com estranhos? Tipo, não tem
um ficante fixo, uma foda amiga, sei lá...? Precisa ser sempre com estranhos
nas baladas?
— Porque eu sinto vontade, porra! Eu fico entediada e saio para
beber, e quando encontro alguém que acho interessante, vou além. Você não
faz a mesma coisa? Tá surpreso por quê?
— Estou tentando montar o quebra-cabeça que você é, Sonsinha.
— Não me chame assim! — Cerro os cílios e as mãos ao mesmo
tempo.
— Ih, escuta só: você tem uma dívida eterna comigo, mulher! —
Harry parece bem seguro de si quando diz essa lorota, seduzindo-me com o
sorriso de dentes mais retos e brancos que eu já vi na vida. — Tu matou
meu hamster! E ele não tem preço. Vou te apelidar como eu quiser, e você é
minha namorada, apelidos combinam com namoros.
Eu quero rir. Olha só como o filho da puta é abusado...
— Eu não matei o seu hamster. Minha cobra fez isso, e eu daria tudo
para desfazer essa merda. — Estou falando com calma e sendo o mais
sincera possível, olhando em seus olhos. — Mas não, você não pode me dar
apelidos. E o nosso namoro é tão fake quanto uma nota de três reais.
Falando nisso, precisaremos fingir por mais tempo para os meus irmãos.
— Como assim?
Suas sobrancelhas franzidas anunciam que eu tenho toda a sua
atenção, o que é ótimo, pois eu o quero muito focado na minha proposta.
— Então, eu gosto de festas, de ficar com pessoas sem
compromisso, apenas para me divertir. — Depois do nosso papo
embaraçoso, eu não preciso ter mais medo de me expor. — E o Rafael se
preocupa demais com isso. Ele acha que as pessoas com quem eu saio se
aproveitam de mim, por isso pega tanto no meu pé. Se ele pensar que
estamos namorando, vai me dar um alívio. Talvez até volte para a casa dos
nossos irmãos, na Barra. E se terminarmos assim, tão rápido, ele pode te
colocar na mira dele, achando que se aproveitou de mim. Fora o seu avô,
que poderia ficar sabendo de algum jeito que você terminou comigo, porque
meu irmão sabe ser bem vingativo quando odeia alguém, e certamente
descobriria tudo a seu respeito.
E isso é um fato. Se eu conseguisse que o Rafa metesse seu pé
enxerido do meu prédio, eu ficaria mais à vontade para fazer o que quiser.
— Seu irmão não me assusta. Não sou criança, porra! — Sua voz sai
tão séria que poderia até mesmo me cortar. Quando prossegue, atenua o
tom: — Por quanto tempo precisa disso? Que sejamos namorados de
mentira?
— Uns dois meses...
— Quê? — Harry quase grita. Seu semblante de completa
indignação faz minha barriga dar voltas nervosas, porque eu pensei que,
como ele quer que eu finja para o seu avô, não fosse ligar em estender isso
ao meu irmão.
— Ué, se vamos fingir para o seu avô até que ele empreste o
dinheiro, por que não aproveitar para me ajudar com o meu irmão?
— Não! É tempo demais! Aí eu não vou poder trazer nenhuma
garota aqui. Além do mais, vai que o seu irmão me vê por aí pegando
alguém?
— É só você não pegar ninguém enquanto estivermos nessa farsa!
Não consegue segurar o pau?
Quando dou por mim, as palavras já escaparam. Por que tem uma
bomba explodindo no meu peito quando penso nele ficando com outra?
Harry não pode ter a satisfação de sair com alguém. E se acabar se
apaixonando? E se fechar a porta para a minha proximidade e meu plano de
seduzi-lo se tornar inviável?
— Rá! Tu quer que eu fique dois meses na seca por causa do teu
irmão? Tu vai ficar sem transar, sem sair com alguém por causa disso?
É nesse ponto que ele monta acampamento na minha mente e me
pega no pulo da minha própria proposta.
Eu conseguiria?
“Se você sentiu gosto de veneno, você poderia
ter me cuspido na primeira oportunidade.”
Would've, Could've, Should've, Taylor Swift.

Olho bem para a cara dela. Branca é maluca? Ela acha que meu saco
é de brinquedo? Ele já está até doendo, de tão cheio, porque, por culpa dela,
meu fim de semana inteiro foi para o lixo e eu não consegui sair com mina
nenhuma. E ela ainda tem a coragem de meter essa de eu não sair com
ninguém por dois meses?
Branca vai dar para mim? Vai sentar no meu pau e me aliviar? É
cada uma dessa garota que, cada vez mais, eu tenho certeza de que é doida!
Enquanto reparo mais de perto nas cobras no cabelo da Medusa grande e
maneira que Branca tem tatuada na coxa, ela abre a boca:
— Conseguiria!
Branca se estica toda no banco após meter a mentira mais lavada do
mundo na minha cara, mas fica bem claro, pela maneira como seus olhos se
movem de um lado para o outro, que ela está mentindo para si mesma e
sabe disso.
E não é o modo como espera que eu diga algo que me chama
atenção, é a porra do detalhe que fecha com chave de ouro quão gostosa ela
é, e que, até então, havia passado despercebido por mim. Por baixo da blusa
de alças pretas, seus peitos ostentam piercings nos mamilos, piercings que
marcam o tecido, que parecem me convidar. Minha boca se enche de água,
e eu preciso lutar para olhar para o outro lado. Mas não tem jeito, meu pau
endurece na hora. Se tem algo que eu amo em mulheres, são piercings
enfeitando a pele, as joias mais bonitas que existem.
— Para de encarar meus peitos e diz alguma coisa! — agora ela
grita, irritada e fazendo um bico que a deixa ainda mais bonita.
Engolindo em seco e me dobrando de um jeito desconfortável para
ela não ver que meu pau está igualzinho a uma rocha, eu apoio o cotovelo
no balcão e pouso o queixo sobre ele, encarando-a.
— Não vou entrar nessa — respondo sem muita emoção. — A
menos que pretenda me montar sempre que eu estiver precisando, não
encha o meu saco com isso.
— Você é mesmo um imbecil! — Seus olhos faíscam, são pura raiva
e mágoa. — Eu não vou dar pra você! — grita, pulando da banqueta e me
encarando. O rosto, já vermelhinho pelo resfriado, agora está quase roxo,
um efeito colateral da ira, que, em algum momento, ainda a fará ter um
treco. — Não pode tocar a droga de uma punheta durante esse tempo? Foi
você que nos enfiou nessa bosta de acordo, agora sustente-o!
— Eu?! — Levanto-me ao perguntar. Eu não sou de ficar bravo com
facilidade, mas essa mulher dos infernos sabe apertar os botões certos para
me tirar do sério. Quase sinto minha cabeça queimando, de tanta raiva. —
Você e sua maldita cobra levaram o Adolfo de mim, então, se estamos
nessa, você também tem culpa no cartório! E não vou tocar punheta porra
nenhuma. Eu não sou moleque. A menos que faça papel de namorada
nesses dois meses, trepando comigo, eu não vou ficar na seca.
— Eu te odeio, Harry! — Seu brado é tão forte que as veias de seu
pescoço saltam, e só cessa quando empurra meu peito. — E vai se foder!
Ela me odeia... olha só! Ela tem me irritado desde a porra do
primeiro momento em que abriu a boca para falar comigo, e ainda vem
dizer que me odeia?
— E acha que eu gosto de você? — grito de volta, segurando seus
braços. — Eu te acho gostosa, mas tua beleza não vale o problema que você
é. Na tua cara tá escrito com letras bem grandes: “Vou foder com a vida de
qualquer um que se envolver comigo”. Então, se estou querendo te comer, é
porque você tá me deixando contra a parede, pois tu seria a minha última
opção.
É só quando as palavras saem da minha boca que eu me dou conta
da tremenda merda que acabo de dizer a ela. Não há mais raiva em seu
rosto. Aqui, embaixo de mim, Branca só parece pequena e frágil. Seus
olhos ficam mais vermelhos que o inferno, mas não há raiva neles. Apenas
mágoa, nítida, clara, palpável. Seu queixo treme, e sinto vontade de pedir
desculpas, de dizer que exagerei, mas nem tenho tempo de sentir culpa
demais. A filha da puta abre a boca, mas não diz nada, em vez disso, cospe
em meu rosto.
Estou segurando seus braços, e com o rosto molhado por sua
agressão, percebo que meus dedos quase rasgam sua pele. Que poder de me
deixar irado é esse? Eu não sou assim. Ela desperta algo muito furioso em
meu corpo. E se eu a solto, é apenas para não fazer a merda de cuspir nela
de volta.
— Mete o pé! — Minha voz não se eleva, é apenas gelo puro. —
Agora!
— Eu não daria pra você nem que minha boceta estivesse com teias!
— rosna, mas engole em seco, como se estivesse se segurando para não
chorar na minha frente. Enquanto limpo a minha bochecha com a mão, sem
deixar, por um só segundo, de observar a desgraçada, tomo ciência de que
fui baixo ao dizer que ela é tão ruim que eu só a foderia em último caso, o
que ainda é uma mentira. Pois, além de Branca ser uma das mulheres mais
gatas que eu já vi, ela mexe comigo. — E você vai entrar nessa comigo e
mentir para o Rafael, ou juro que encontro o teu avô e conto tudo a ele, que
tu tá fodido porque foi roubado por uma hacker e agora quer enganá-lo com
um namoro fake!
Sem dizer mais nada, Branca sai correndo da minha casa, e quando
bate a porta atrás de si, é com tanta força que eu quase posso ver lascas da
parede se soltando ao redor.
Vou até a sala e me jogo na bosta do sofá, seguro a cabeça e,
encarando o teto, pergunto-me se essa mina é meu carma. Eu detesto essa
garota. O tamanho do meu ranço por ela só perde para a Veneno.
E agora? A filha da puta ameaçou encontrar o meu avô e contar
tudo. Embora eu não tenha dito para a Branca quem ele é, ela parece o tipo
de mulher que, quando quer algo, vai até o inferno para conseguir. E se ela
for falar essas merdas ao Isaque, vai atrapalhar de vez os meus planos. Eu
posso caçar outra mulher para ir comigo à festa do velho, mas agora a
Branca já disse ao irmão sobre mim. Ela precisa tanto dessa mentirada
quanto eu, e não vai pensar duas vezes se eu a deixar na mão. Só que nessa
de sair com outras mulheres, eu não darei o braço a torcer. Detesto punheta,
porque não consigo gozar, preciso de uma mulher para isso.
Eu tenho 25 anos, caralho! Eu me sinto um moleque nessa trama
toda e não sei o que fazer. Como ela conseguiu me irritar tanto? Acho que
tudo começou quando falamos sobre a história da balada, quando eu senti
uma bola quente e explosiva dentro de mim ao me lembrar daquela cena.
Jogo o ar para fora do nariz com força, ainda com dificuldade, por causa da
coriza. Chego a ficar com dor de cabeça com todo o caos que estou
vivendo. Problemas com o meu avô, com a desgraçada da Veneno, e agora
com a Branca. Ela é mimada, louca, infantil... e muito irritante! Ainda
assim, eu preciso dela. Da mesma maneira que ela está nas minhas mãos
com esse lance da cobra, estou refém dela com o meu avô. Só que eu não
quero ceder. Eu vou endoidar se ficar dois meses sem transar.
E se eu mentir para a Branca? Se disser que aceitei e, por baixo dos
panos, pegar algumas minas no estúdio? Não seria uma traição. A gente
nem tem nada, tampouco se suporta. É só eu não deixar que ela ou seus
irmãos saibam.
Porra! Quer saber? Chega de ficar sozinho martelando sobre essas
coisas. Vou lá falar com os meus amigos agora mesmo, conto a merda toda
e ainda peço um conselho sobre essa maluca da Branca.

— Como assim? — Josiah, que está na minha frente, quase grita,


mas olha para atrás de mim e se contém, começando a ceder ao tique de
meter a mão no cabelo para se acalmar.
Nate está parado do meu lado direito, com as mãos enfiadas nos
bolsos frontais de seu moletom azul-escuro e me encarando, boquiaberto.
Bill, prostrado feito um poste à minha esquerda, tira o boné para coçar a
cabeça, depois puxa um cigarro do maço no bolso de seu jeans e o acende.
— Roubou tudo, cara. Não ficou um centavo na minha conta.
Mandei uma mensagem em nosso grupo do WhatsApp avisando que
viria aqui, pedindo para que os caras estivessem presentes, e como o Nate
também é nosso amigo, falei para vir também. Estamos reunidos nos fundos
da casa do Josiah, uma mansão em estilo contemporâneo e toda branca por
fora.
Gotas de chuva caem aqui e ali, molhando a grama verde e bem
cuidada do quintal. Mas embaixo do telhado da área gourmet, estamos
seguros. Foi foda conseguir que as garotas ficassem lá dentro para
podermos conversar. Elas viram na minha cara que era algo sério assim que
eu cheguei, e feito um bando de grávidas fofoqueiras, queriam vir atrás de
nós, mas não deixamos.
Eu me arrisco a olhar por cima do ombro, e quando meus olhos
percorrem as paredes brancas dos fundos da casa, são logo atraídos para o
janelão da cozinha, onde Ana, Maria e Isabela estão empoleiradas atrás da
cortina, jurando que estão camufladas pelo tecido claro enquanto tentam
nos espionar. Quando cerro os olhos, para enxergar melhor, os cabelinhos
loiro-escuros, quase castanhos, entregam que até Júlia está ali, agarrada ao
colo de Ana e rindo, como se estivesse participando de uma brincadeira
nova: descobrir em que merda o tio Harry se meteu.
— O banco tinha de se responsabilizar sim! — Nate fala, já se
balançando. Ele costuma dar pulinhos quando está bravo, parecendo prestes
a entrar em um ringue de luta. — Onde já se viu?! Cadê a segurança do
sistema deles? E como assim não encontram o rastro do dinheiro?
–– Essa tal Veneno precisaria ser a fodona, a maior das hackers para
que nenhum mísero rastro tenha ficado pelo caminho... — Bill
complementa.
— Talvez ela seja mesmo — resmungo, espirrando na sequência.
Pego um lenço de papel no bolso do meu moletom escuro para limpar o
nariz, depois o atiro em uma lixeira atrás do Josiah. — Bom, como eu disse,
vai demorar até que eu consiga algum resultado com o processo que estou
abrindo contra o banco. E pela polícia, eu não vou esperar progresso, sabem
bem como é o nosso país. Eles nem vão se coçar para procurar pela vadia
ladra de contas bancárias.
— Quem é a vadia ladra de contas bancárias? — Eu me arrisco a
encarar novamente a casa por cima do ombro, enquanto Isabela grita, após
abrir a janela da cozinha e enfiar o rosto redondo por ela: — A gente tá
ouvindo tudo, seus otários! É melhor contarem logo!
— Fica na tua, Isabela! — peço ao dar as costas para ela. — Depois
teu marido vai te contar, que eu sei!
— Porra, cara... pior que a Isabela e eu estamos investindo muita
grana. Sabe que estamos expandindo os negócios da Faculdade Revolta
para criar uma rede de Ensino Fundamental, né? — Nate indaga, segurando
o meu ombro. — Eu poderia te emprestar a metade do montante, e tu vai
me pagando com o tempo. Só não tenho como te emprestar esse valor
inteiro, porque a estimativa de retorno desse investimento é apenas de longo
prazo.
Nate e Isabela são donos de uma faculdade especializada em artes.
Os dois são bem ricos, assim como Josiah, que é filho de um político muito
famoso e abastado. Mas eu não tenho como pedir dinheiro emprestado para
ele ou Bill, afinal, estou querendo investir no negócio dos dois, e não faz
sentido eu pedir a grana para isso. Além do mais, Bill não é rico. Ele tem
uma vida confortável, pois já “trabalhou” para o pai do Josiah, só que,
agora, além de estar prestes a começar uma obra em sua casa, para fazer um
quarto para a bebezinha na barriga da Maria, ele conta apenas com a renda
do estúdio e de alguns investimentos bancários.
O estúdio, embora seja a paixão da vida do Bill e Josiah, nunca lhes
deu uma grande receita, e a chance de realmente dar muito lucro é a
expansão com a franquia.
Olho para Nate e lhe dou um sorriso, observando seus olhos azuis
parecendo tristes. É por isso que nós nos chamamos de tribo, somos unidos,
porra. Tomamos as dores um do outro e nos defendemos, mesmo que nos
coloquemos em problemas que não são nossos. Mas eu sei que nesse lance
não é qualquer coisa. São cinquenta mil reais. Ele me oferecer metade desse
valor é muito maneiro, mas eu não quero aceitar. Se irei até o meu avô,
tentarei conseguir os cinquenta, que nem farão cócegas no bolso dele.
Isaque figura a lista de bilionários brasileiros, embora não me dê um tostão
desde que eu entrei para o exército.
— Você é foda, cara! — respondo, precisando engolir muitas vezes
para não chorar enquanto encaro o marido da Isa. — Mas se vou tentar a
grana com o meu avô, tentarei logo os cinquenta. Não vai fazer diferença
pedir apenas vinte e cinco mil. E ele não vai ligar para o valor, só quer me
humilhar e me pisotear.
— O quê? Vai pedir pro teu avô? — Bill arregala os olhos escuros,
cruzando os braços e esquecendo que estava com um cigarro entre os dedos,
quase o derrubando.
— É minha única saída, cara! Falando nisso...
— Mas vocês não estão brigados? — Jow questiona, com o rosto
bem sério.
Sei que ele está chateado, o que me deixa ainda mais triste e me
sentindo o pior tipo de pessoa. A merda em que a Veneno me meteu
respinga neles, que também contavam com a grana da minha entrada no
negócio.
— A gente não se fala desde aquela parada... — Engulo em seco
para dizer, mencionando o dia em que saí de casa. — Mas enviei um e-mail
dizendo que precisava falar com ele.
Conto todos os detalhes, não esquecendo nenhum. Inclusive, explico
tudo certinho sobre a Branca, o Adolfo e a porra do “relacionamento de
mentira” em que estamos metidos.
— Que isso, Harry, uma novela mexicana? — Isabela, surgindo
feito um vulto, já se enfia embaixo do braço do marido, com o vestido claro
maculado por alguns pingos de chuva.
Ela não sente frio? Está geral agasalhado, menos essa doidinha.
— Eu disse para você não se molhar, My Sun — Nate fala, beijando
a cabeça dela. — Quer ficar resfriada? E como fica o nosso Sam aí no
forninho?
— Ou você, né? Já que a Isabela fica terrível quando está doente...
— Ana fala, fazendo um coraçãozinho com as mãos após zombar da nossa
amiga.
–– Teu cu! — revida Isa, com um dedo do meio.
Enquanto Ana corre da chuva com a filha a reboque e se enfia perto
do marido, Nate esfrega a barriga de Isabela com carinho, depois a vira de
costas para ele e a abraça. Isa é marrenta, tem uma personalidade forte, mas
diante do marido, só parece uma garotinha apaixonada. Ela olha para Nate
com tanto amor que, até eu, que sou homem, percebo o sentimento
transbordando dali.
— Marido... — resmunga Isa, fazendo bico e segurando o moletom
dele na altura das coxas. — Sabe que não resistimos a uma boa fofoca. E
como esperava que eu ficasse lá dentro, depois de ouvir que o Harry está
namorando de mentirinha a vizinha que matou o hamster dele?
— Nós a vimos ontem, sabia? — Maria fala, enfiando algumas
jujubas na boca. Está usando um conjunto de moletom rosa, e, vestida
assim, parece até uma boneca. Bill, ciumento pra caralho, já marca território
a puxando para a frente dele. Está para nascer um homem mais possessivo
que ele. — Minha mãe disse assim para mim: “A nova moradora lá do
prédio é muito linda, uma boa moça! Não deixe o Harry perturbá-la!”.
— Boa moça? Rá! — debocho, mas logo me arrependo, afinal, eu
não contei a ninguém que a vi no dark room. E nem vou! Por alguma razão,
só de pensar em alguém a vendo com maus olhos, eu fico puto. E quer
saber? Eu não sou moleque, não vou expor a mina. — Ela é endemoniada,
igual à Isabela. Na verdade, é até pior.
— Vai deixar o Harry falar assim de mim, amor? — a loira pergunta
ao marido por cima do ombro, fingindo estar magoada.
Nate finge que me fuzila com o olhar, mas está segurando uma
risada, já que sabe o gênio da esposa que tem. Isabela é minha amiga há
muitos anos, eu a conheço bem. Maria, por outro lado, chegou há pouco
tempo em nossas vidas, enquanto a Ana também é outra amiga de longa
data.
Quando Isabela e eu trabalhávamos juntos no Ravina, a gente era
mais grudado. Ela não estava com o Nate ainda, e eu já tive o delírio de dar
em cima dela. Hoje, parece algo meio nojento, já que eu a vejo como irmã.
Eu daria o mundo para protegê-la de qualquer um, sério mesmo. Na real, eu
acho que daria a vida por todos eles aqui, a minha única família.
— Bom, sei que estamos todos ansiosos para saber mais sobre esse
rolo dele com a tal da Branca, mas eu quero muito dizer uma coisa... —
Josiah cruza os braços, ficando com os olhos vermelhos. Eu não sei se já
pegando meu resfriado ou apenas de emoção. — Desde o dia em que te vi,
quando éramos dois moleques metidos no exército por pressão dos outros,
eu soube que tu seria meu amigo. Não me importa a sociedade, o dinheiro...
Se não conseguir, a gente espera. A tua amizade é o que me importa, seu
pau no cu. Tu é meu irmão. Todos vocês são. Menos a Ana, claro, porque o
único que pegaria irmã aqui é o Bill.
Eu não consigo conter a gargalhada. Na verdade, estamos todos
parecendo um bando de idiotas rindo da piada do Josiah. Até a Júlia está
rindo, mesmo não entendendo nada. Ela apenas imita os adultos.
— Wow! — Nate abafa a boca para provocar, e, irritado, Bill já
revida, mandando um dedo do meio para ele.
Os dois já chegaram a se detestar no passado. Um rolo que o Bill
teve com a irmã do Nate e um breve caso que também teve com a Isabela
há uns anos cravou a inimizade entre eles. Mas tudo mudou quando, num
dia difícil, Nate ajudou o Bill a salvar a Maria. Nate não pensou duas vezes
ao se meter no meio do inferno, dando um de kamikaze para salvar a
Santinha. O golpe derradeiro para alimentar a amizade dos dois foi quando
Nate aceitou o convite para ser padrinho do casamento da Maria e do Bill.
Agora, eles se adoram, embora sejam dois marrentos que fingem o
contrário.
— Maria é minha deusa, Jow. Eu faria o que fosse preciso por ela.
— Ah, não vão começar de grude com a mulher de vocês, né? —
Seguro a cabeça, de tão irritado. — É uma merda ser o único solteiro aqui.
— Eu também acho chato, tio — Júlia se mete, com sua vozinha
doce fazendo todo mundo virar o olhar para ela. — Vamos todos brincar de
boneca comigo, é bem mais legal.
Jow pega a filha no colo e beija sua bochecha, depois a balança e
arranca gargalhadas da menina, sussurrando que estamos conversando e não
podemos brincar com ela agora. Júlia está muito lindinha com o
conjuntinho de frio em um azul-céu.
— E você não é mais solteiro — Maria zomba, dando uma
risadinha. — É namoradinho da Branca.
— Tu tá me zoando, Santinha? — rebato, sentindo as bochechas
queimando. — Eu não sou namorado daquela maluca!
— Estou trazendo à tona os fatos que você mesmo narrou.
Ela cerra os lábios, segurando uma risada ao me ver bufar.
— Deboche deve ser algum tipo de pecado, hein?! — Resolvo
entrar na zoeira. — Se bem que você já é mais pecadora que todo mundo
aqui junto. Se pegar com o marido dentro da igreja é passaporte direto para
o inferno!
— Isso é golpe baixo! — Bill enche o pescoço da mulher de beijo
como consolo.
— Eu só trouxe os fatos à tona! — Balanço as sobrancelhas,
provocando a Santinha ao usar suas próprias palavras.
Maria revira os olhos, dando-se por vencida, sabendo que a minha
zoação foi melhor. E ninguém mandou agirem como se não estivéssemos
presentes quando começam a falar de coisas íntimas. Outro dia, a Maria
contou às meninas sobre a quantidade de vezes em que se pegou com medo
do inferno ao se lembrar de uma ceninha dela e do Bill dentro da igreja.
É fácil que nossos assuntos se misturem quando estamos reunidos.
A gente se empolga e sai atropelando um ao outro com as nossas gracinhas.
Faz parte da magia da nossa relação. E resolvendo levar o assunto para o
que interessa, eu olho para o Josiah.
— Eu amo ser seu amigo. Sempre me reconheci em você, e foi o
que eu precisei para sair daquela carreira que eu odiava. Estou aliviadão por
ver que você me entendeu e que vai esperar. E, na real, eu amo todos vocês.
A nossa tribo é a melhor coisa que me aconteceu.
Eu não aguento, meu lado pisciano de merda vem à tona e eu acabo
deixando uma lágrima rolar. E como um bom pisciano, eu acredito em
signos, em inferno e em mais um monte de outras superstições.
— Awn, a gente te ama, Harryzinho! — Ana devolve.
Quando eu menos espero, Isa puxa o coro:
— Abraço grupal de leve, porque estamos barrigudas.
E eles realmente se embrenham ao meu redor. Se eu fui destruído
nos últimos dias, com meus amigos, eu sempre me sinto refeito.
“Fodi e bebi a noite toda,
Eu fiz tudo direitinho,
Não precisei lutar.”
Go Fuck Yourself, Two Feet.

Paro a princesa entre a moto do Bill e a picape preta do Josiah.


Retiro o capacete e me permito percorrer a distância entre as vagas de
estacionamento em frente à calçada até a porta do Ravina. Quando olho
para a fachada escura, as vidraças imensas e a logo do corvo preto no alto,
eu me lembro dos dias no exército, quando, em meio à carreira que era o
nosso tormento, gostávamos de sonhar em ter um pequeno paraíso onde nós
três nos dedicaríamos ao que realmente amávamos. E quando eu abro a
porta e adentro a pequena recepção, é impossível não sentir que estou
pisando em um pedaço de sonho, um sonho que agora é real.
— Que cara de mocinha é essa? — Bill pergunta, pegando a ficha da
agenda do seu dia com o recepcionista.
Enquanto retiro meu traje de chuva e o coloco em um cabideiro
atrás da porta de entrada, penso no quanto é bom ver que ele tem vindo
trabalhar esses dias. E embora, às vezes, ainda mostre uma feição perdida,
tem ficado animado ao tatuar os clientes.
— Estava me lembrando de quando comi o teu rabo. — Eu nem
consigo terminar a frase sem cair na risada. — Tá animado?
— Sim. Eu me lembrei do dia em que fodi tua tia — devolve,
virando a aba do boné preto para trás.
— Se eu tivesse uma, até me importaria. — Dou de ombros, mas a
risada é interrompida por um arrepio gelado espetando a minha nuca. — Tá
tentando conservar um corpo em algum canto, Bill? Desliga esse ar-
condicionado, cara!
Além de ser sete da manhã, a Cidade Maravilhosa está dominada
por um céu cinzento e um vento gelado. Gotas finas de chuva vão
molhando as ruas pouco a pouco. Não tem motivo algum para Bill ligar o
ar.
— Estou com calor. — Lixando-se para o meu pedido, ele me dá as
costas e pega o corredor ao lado da mesa de recepção.
Quando some das nossas vistas, Serginho, o garoto magricela, de
olhos puxados e cabelos bem escuros, corre para aumentar a temperatura do
ar-condicionado. Bill parece um búfalo: grande, pesado e sempre com calor.
E embora Josiah até seja um pouco como o Bill, o nosso funcionário e eu
não somos. Nós sentimos frio! Por isso, eu já vim com uma jaqueta de
couro preta e calça jeans. Assim, eu me blindo da sensação de estar no Polo
Norte.
Enquanto caminho pela recepção decorada para ser bem escura –
porque o Josiah é obcecado por preto e quis deixar tudo parecendo um
mausoléu –, com meu coturno preto sujando um pouco o chão de concreto
polido com a água das poças que pisei na rua, aceno para o Serginho. Ele
está com a gente há pouco tempo, e nos desafoga agendando tudo referente
aos clientes ou à manutenção do estúdio.
— Bom dia, amigão! Tudo em cima? — pergunto, aceitando a folha
branca que ele me entrega.
É a minha agenda do dia. Verifico que tenho quatro atendimentos na
parte da manhã, e mais seis ao longo da tarde.
— Tudo, Harry. Está melhor do resfriado?
— Acho que estou quase recuperado.
Caminhando pelo corredor estreito lotado de quadros psicodélicos
com molduras brancas em direção à minha sala, fungo para ver se meu
nariz está menos congestionado.
Alguns dias se passaram, hoje já é quarta-feira. Eu venho sentindo
uma melhora, afinal, tomei o xarope doido feito com ervas e mel que a
síndica me obrigou a tomar, batendo à minha porta na segunda-feira de
manhã com o vidro de líquido marrom. Ela disse que foi a Maria quem
pediu que o fizesse para mim. E, no fim das contas, realmente ajudou, eu
senti uma melhora significativa, fora que é doce e bem gostoso.
Branca também já deve estar melhor, pois, por trás da porta, ouvi a
tia Isaura entregando o remédio caseiro a ela também. E por que a mãe da
Maria gosta da Branca? Ela é uma diaba! Não tem uma boa moça em
nenhuma mísera célula de sua composição corporal. O faro da tia Isaura
para boas ou más garotas é péssimo!
E falando na demônia, ou melhor, pensando, ela não tem falado
comigo. Eu não enviei mensagens a ela, tampouco a vi pelo prédio depois
da nossa briga. Tenho até medo desse silêncio todo, afinal, não dá para
saber se ela vai dar para trás e me deixar na mão no lance do fim de semana
com o meu avô. Ou pior, se vai até ele para meter areia nos meus planos.
Sei que preciso falar com ela, mas não tenho vontade. Eu não gosto do
quanto ela mexe comigo, seja para me deixar excitado ou puto da vida.
Diante dela, é como estar sendo sugado em direção a um buraco negro.
Tudo se torna sobre ela, a raiva, o tesão... Tudo!
Assim que eu entro na pequena sala de paredes oscilando entre o
preto e o cinza, pouso meu capacete sobre a mesa de tampo de madeira
amendoada. Ao lado dele, repouso minha mochila preta. Na parede ao lado
da minha mesa, um mostruário enorme em formato de nicho se exibe. Tem
piercings de diversos tipos ali, protegidos por uma camada de vidro. Lá na
recepção tem uma réplica dele, para tentar fisgar os clientes logo de cara.
Mas é aqui, no meu reino particular, onde explico às pessoas sobre cada um
e aproveito para, enquanto faço um furo, já fazer propaganda de outros,
para que os clientes voltem.
Abro as persianas da janela nos fundos da sala e deixo a luz entrar e
iluminar naturalmente o local, embora, de todo modo, eu sempre acenda a
luz auxiliar na hora das perfurações. Após colocar um rock para tocar em
volume baixo, passo álcool na maca preta que fica no centro da sala.
Aproveito para passar pano no chão e organizar meus utensílios no carrinho
auxiliar de tons escuros. Quando tudo está no seu devido lugar para eu
começar meu dia de trabalho, resolvo ir pegar um café na copa.
— Come a Ana de lado. A obstetra disse que o sexo é bom para a
mulher durante a gravidez. Que só nos últimos meses, caso tenha muito
desconforto, é que não é aconselhado.
— E aí, cara?! — Josiah me cumprimenta. Pelo visto, chegou há
pouco tempo, pois ainda está com a blusa preta de mangas longas molhada
de chuva. Depois de apertar minha mão, ele se volta para o Bill e responde:
— Eu sei, mas às vezes me bate esse medo. Vai que estou cutucando a
cabeça da criança.
Bill chega a chacoalhar o café em seus dedos, rindo das palavras do
amigo.
— Sai daí, Jow! Todo mundo sabe que, para enxergar o seu pau, é
preciso uma lupa — debocho, apenas para tirar um sarro da cara dele. —
Fica tranquilo, que não vai nem chegar perto do útero da tua mulher.
— Não tem esse perigo, cara, mas, se for te deixar mais tranquilo, só
bota o pau até a metade. — A voz do Bill é calma enquanto aconselha.
Josiah já é pai, mas, por diversos problemas, esteve longe da Ana
durante a gestação da Júlia. Então, essa fase é nova para ele.
— Vai, podem continuar, joguem na minha cara que vocês transam.
— Na pequena saleta da copa, dou a volta por Bill, que, usando apenas uma
blusa de mangas e uma calça jeans, parece até uma das colunas de
sustentação do estúdio. — Eu já estou subindo pelas paredes, mano!
— Por que não chama aquela mina que você costuma pegar de vez
em quando para sair, a Amandinha? — sugere Josiah, tomando uma lata de
energético.
— Vou passar na casa dela hoje, quando sair daqui — conto
enquanto beberico meu café.
Josiah se senta em um sofá de couro preto, depois pousa a lata de
Monster no barril de latão vermelho ao seu lado. Bill se joga em um banco
de madeira preta, na frente do Jow.
O estúdio só abre às oito e meia da manhã, por isso temos um tempo
para colocar o papo em dia antes de iniciar o expediente.
Ontem, marquei com a Amandinha de nos encontrarmos hoje à
noite, pois ela acabou de chegar de viagem, estava passando as férias do
trabalho na casa da irmã, em São Paulo. Era previsto que só voltasse na
próxima semana, mas acabou voltando antes. A gente se conheceu em um
barzinho ano passado; desde então, ficamos de vez em quando. Raramente
dormimos juntos ou fazemos algo além de ver um filme ou comer entre as
transas. Ela é maneira, sabe me fazer rir, é bonita... Mas não tem nada nela
que me encante, embora eu perceba que ela até gosta de mim, que, se eu
desse abertura, teríamos algo além. Eu sempre deixo claro que não curto
compromisso, que gosto de ser bicho solto, então a Amanda não tenta nada.
— Mas e a Branca? — pergunta Bill, depois de sorver mais um gole
de café. — Não disse que ela está bolada, querendo que você não saia com
ninguém?
— E vai continuar querendo! Cara, o que ela quer não tem lógica.
Eu mal a conheço. Pedi a ela para ir comigo a uma festa no fim de semana,
e não...
— Chantageou — Josiah corrige, dando um sorriso largo e se
esticando no sofá. — Essa é a palavra correta.
— Seja lá como for, era apenas por um fim de semana. Agora, a
Branca quer dois meses enganando o irmão. E, ainda por cima, um voto de
castidade.
— Vocês se viram depois de domingo? — Aliso o meu cavanhaque
enquanto nego. Bill se levanta e escancara as portas da geladeira de inox,
então abre um pote de plástico e me oferece um pedaço de brownie. E é
claro que eu não recuso. Enquanto mastigo, ele diz: — É melhor chamar a
vizinha para conversar, porque, se o lance já é na sexta, é bom você se
certificar de que a mina não vai mudar de ideia em cima da hora.
— Eu deveria ter pensado na Amanda desde o começo —
resmungo.
— Deveria mesmo! — Josiah chuta o balde e pega um pedaço do
bolo também. Ele estava de dieta. — Por que tu meteu a Branca nessa?
— Porque a Amanda estava viajando e só voltaria na outra semana.
Decidiu voltar ontem, de última hora.
— Podia ter ligado para ela e visto se podia voltar antes — Jow
rebate.
— Eu estava com o mundo caindo na minha cabeça, Josiah! E a
Branca... Ela... ela... Ela tem a porra de uma presença! Eu não consigo
pensar em mais nada quando estou perto dela.
Josiah e Bill trocam uma olhada que não me passa despercebida.
— Duas semanas, e aposto cem — Josiah sopra a proposta para o
Bill.
Reviro os olhos quando o outro resolve responder:
— Duzentinhos que a ficha cai em três semanas.
— Fechado! — Josiah aperta a mão dele.
Bufo, sem acreditar que eles acabaram de fazer uma aposta na
minha frente. Não é justo, porque eu ensinei isso a eles quando apostei
sobre quando o Josiah e a Ana ficariam juntos de novo, ou quanto tempo o
Bill e a Maria demorariam para se pegar. Agora, eles viraram a arma que
lhes dei contra mim.
— Vocês são dois pau no cu!
— Não fica bravo. Está bem nítido na sua cara que você gosta dessa
mina. Você é alegre e feliz, e agora vive irritado. E ainda manda essa de que
não consegue pensar em nada com a Branca por perto.
— Isso é frase de homem com os quatro pneus arriados — Bill
concorda com o nosso amigo. — O tipo de coisa que eu sentia quando
estava me apaixonando pela Maria.
Meu rosto está quente. Engulo em seco, tentando desviar de suas
palavras como se fossem balas capazes de furar minha pele, e só percebo
ser impossível quando começo a refletir sobre isso. Eu não estou
apaixonado por ela. Isso nunca aconteceu nem com minas que peguei por
mais tempo do que saio com a Amanda. Acho que é outra coisa. A Branca é
sedutora.
“Então, foi me assistir e não quis participar?”
A frase se repete em minha mente, e o arrepio escalando cada
vértebra da minha coluna faz parecer que a voz dela está aqui, que sua boca
está soprando cada palavra em meu ouvido.
— A Branca é linda, porra! Isso... eu não vou negar. Mas não estou
a fim dela. — O tom fraco da minha voz me deixa bravo comigo mesmo.
— E se ela estiver a fim de você?
Reflito sobre a frase do Bill. Ela gosta de provocar, de me deixar
instigado, como fez na balada ao me chamar para o dark room, ou com essa
frase insinuante no almoço que tivemos. Porém, quando eu propus que a
gente transasse, ela ficou ofendida. A Branca não me quer. Acho que ela
apenas gosta de seduzir. Que esse é o prazer dela.
— Ela cuspiu na minha cara! — Abro bem os braços ao dizer,
sentindo até uma quentura na pele. — Isso é o tipo de coisa que uma mulher
a fim de você faria?
É óbvio que ela também me detesta. Só que agora meu cérebro joga
a imagem dela cheirando a minha manta bem diante dos meus olhos, ou o
jeito como ela me olha e ri em alguns momentos, ou a mágoa absurda que
se desenhou em seu rosto quando eu falei que ela seria a minha última
opção. Aquela mágoa era apenas orgulho ferido... ou ela queria algo
comigo?
— Quero refazer minha aposta. — Josiah levanta o indicador,
fazendo-me trincar os dentes de raiva e me levantar. — Talvez demore um
mês...
Dou as costas aos meus amigos, deixando-os entregue às
gargalhadas. Volto para o templo onde vou fazer o que amo pelo dia inteiro:
colocar joias em peles alheias.

Assim que saio pelo corredor de paredes bem cuidadas azuis, eu me


pergunto por que não conseguimos deixar o nosso prédio arrumado assim.
Dar uma boa retocada nas paredes internas das áreas comuns já resolveria
muita coisa, afinal, o condomínio não é barato. Fizemos uma obra na
fachada, agora falta cuidar dos muros. A porra da pintura interna e o
conserto do elevador ficarão por último.
O corredor estreito ostenta quatro portas, e a primeira à esquerda é o
meu destino. Aperto a campainha. Só preciso esperar alguns segundos até
que ela abra a porta para mim. Seu sorriso vermelho é bem amplo, afinal,
Amanda tem lábios carnudos. Ela é um pouco alta, e seu corpo curvilíneo e
sarado é algo que me deixa bem excitado.
— Oi, gato! — fala, abrindo bem a porta para que eu entre.
— Boa noite, linda!
Sua casa sempre cheira a vela perfumada, e a decoração simples me
agrada bastante. As paredes claras, o piso laminado, os móveis oscilando
entre amêndoa e branco fazem tudo parecer sereno. Quando entro, caminho
até o sofá e deixo minha mochila sobre ele. Gosto da música ambiente
tocando, de como boa parte das luzes da sala estão apagadas, deixando o
clima agradável. Eu me viro para a porta. Amanda está parada, sorrindo de
leve ao me encarar. Seu cheiro doce parece serpentear até atacar com tudo o
meu nariz.
— Tudo bem? — pergunto.
— Muito melhor com a gente finalmente se revendo.
Ela acaba com qualquer distância entre nós e fica na ponta dos pés,
segura minha nuca e me beija. Gosto do sabor de sua boca, uma
combinação de pasta de dente e bala de morango. Misturo minha língua
com a dela, e sem deixar por um segundo de mergulhar na boca gostosa que
ela tem, minhas mãos seguem o caminho até sua bunda imensa. Aperto com
vontade, com meu pau já muito duro, a ponto de ser desconfortável.
Tem calor subindo dos meus pés até o meu pau, escalando até a
barriga, enquanto subo uma das mãos até o cabelo dela. Não tem muita
conversa quando ela me guia de costas para a frente do sofá. É difícil não
soltar a boca dela enquanto deslizo para baixo as alças de sua camisola bem
curta e de um preto transparente. Quando o tecido passeia por seu corpo até
cair no chão, esfomeado, desço a boca, deixando um rastro com a língua
por sua pele, até finalmente encontrar seus peitos enormes. Quando chupo
um deles e belisco com força o bico do outro, ela dá o gemido escandaloso
que é sua marca registrada.
— Saudade desses peitos! — É uma luta tirar o que está em minha
boca para dizer.
— Saudade do seu pau!
E ela nem diz mais nada, já me empurra com tudo contra o sofá. Eu
não tenho opção que não seja cair sentado e deixar que ela deslize minha
calça para baixo, junto à cueca. E com uma fome que faz meu pau ficar
ainda mais duro, ela o abocanha.
Junto seus fios de um ruivo alaranjado em minhas mãos. Quando ela
suga a cabeça do meu pau, depois passa a língua no piercing frenum que
fica na parte de baixo, chego a soltar um sibilo de prazer. Ela gosta de
lamber e sugar as pequenas bolas de aço que ficam uma de cada lado da
haste que atravessa o freio do meu pau, e isso me deixa doido.
–– Porra, Amanda... — Eu não me contenho e seguro a cabeça dela.
Eu a puxo pelos cabelos, e quando arremeto e soco o pau na boca dela, ela
engasga na mesma hora. Eu fico excitado com esses ruídos, com quão
vermelha ela fica; por ser muito branca, fica exageradamente rubra. Só
puxo o pau quando ela fica tonta, e dou uns tapinhas em sua bochecha para
despertá-la. Gosto de sufocar, de ver a baba caindo na minha pica. —
Estava com saudade de quase desmaiar sendo sufocada por ele também,
linda? — Ela assente, ainda em outro mundo. Eu deveria chupá-la, fazê-la
inundar o sofá com seu orgasmo doce, mas estou subindo pelas paredes. E,
pelo visto, ela também, pois nem teve conversa, uma bebida, porra
nenhuma. — Termina de tirar a minha calça?
Enquanto ela obedece, de joelhos no tapete com estampa indiana da
sua sala, eu me estico para o lado e alcanço o pacote de camisinhas no bolso
frontal da minha mochila. Sou rápido em rasgar uma delas, vendo-a sorrir
para mim, com o queixo molhado por causa do boquete.
Estou quente, com o corpo inteiro acordado, doido para finalmente
meter nela. Quando termino de deslizar a camada de látex por minha pica,
bato na coxa, em um sinal silencioso que ela entende muito bem. Com os
olhos meio fechados de tesão, ela fica de joelhos no sofá, com uma perna de
cada lado das minhas coxas, e desliza pelo meu pau.
É tão apertada que quase me esfola. Meu pau vibra dentro dela, com
a necessidade urgente de que ela vá mais fundo. Mas ela vai devagar, até eu
ficar inteiramente dentro. Deito as costas no encosto do sofá e aperto suas
coxas malhadas. Seu rosto ovalado começa a suar conforme ela rebola.
Amanda geme alto quando deslizo uma das mãos para o seu clitóris grande
e inchado, certamente irritando os vizinhos, que são obrigados a ouvir o
quanto ela está gostando do meu pau.
— Harry!
Solto um sibilo e fecho os olhos quando ela me aperta de tanto
tesão. Chego a prender um pouco o ar, e quando ela começa a sentar com
força e mais velocidade, eu nem consigo mais masturbá-la. Ela enlouquece,
desliza para fora do meu pau para ficar com os pés sobre o sofá, e quando
agacha, já o engole novamente com a boceta e quica com força.
— Senta no meu pau, sua gostosa! — elogio, alisando suas coxas e
vendo quão louca de prazer ela está. — E goza nele do jeito que só você
faz.
Amanda mistura o sorriso a um gemido, e ainda mais doido que ela,
eu agarro seus seios. Meu peito entra em combustão, meu pau começa a
vibrar mais forte, e quando ela goza, quando o aperta com vontade e berra,
eu tenho de fazer muita força para não jogar minha porra dentro dela.
— Filho da puta! — grita, segurando os meus ombros, tremendo
inteira enquanto goza, a ponto de alagar minhas bolas.
Quando seu orgasmo termina, com ela arfando e querendo deitar no
meu peito, tento ser gentil enquanto a viro de costas no sofá. Eu a forço a
empinar o rabo gostoso para mim, e antes de meter com tudo no cu dela,
dedico um tempo para alisar sua bunda bonita. É tão dura e perfeita. Sua
boceta rosa parece até me convidar, toda brilhosa e molhada, mas é o
cuzinho apertado o meu maior interesse. Eu não resisto e dou um tapão em
sua nádega, deixando a forma exata da palma da minha mão em um
vermelho intenso sobre a pele. O estalo reverbera pelas paredes, e nenhum
som sai de sua garganta.
Amanda deita o rosto no estofado branco, dando-me a visão ainda
mais perfeita de sua boceta inchada. Com a camisinha completamente
lubrificada pelo gozo dela, eu não perco tempo e começo a deslizar para
dentro do seu rabo apertado e depilado. Ela sente dor, solta gemidos de
sofrimento e quase enfia as unhas no tecido do sofá. Amanda não gosta de
dar o cuzinho, mas sabe que eu amo gozar nele, então ela me deixa devorá-
lo.
Quando começo a me mover, aperto sua bunda a ponto de arranhar a
pele. Mordendo o lábio, jogo a cabeça para trás e fecho os olhos. Porra! Eu
precisava disso, desse prazer, desse alívio. É bom pra caralho. E quanto
mais eu meto, mais ela geme.
— Ai, Harry...
— Hum, tá doendo?
Quando olho para ela, Amanda está com o rosto de lado no sofá, a
testa franzida e os olhos fechados. Ela tem dificuldade de aguentar o meu
tamanho quando eu me enfio todo em seu rabo.
— Sim.
— Vem, gostosa — peço, a voz saindo arrastada. — Levanta e se
encosta em meu peito.
Ela demora, mas, com esforço, consegue ficar mais reta. Deslizo as
mãos para a frente do corpo dela, que está rígido de dor. Uma vai subindo
por sua barriga, e o cheiro maravilhoso dos seus fios ondulados me faz
latejar. Amo mulher cheirosa. Desço a outra mão até alcançar a sua boceta,
e bastam alguns movimentos sobre o seu grelinho para que ela comece a
amolecer.
— Isso, lindo... Assim é bom.
Gosto do gemido dela quando fica mais baixo, e conforme volto a
enfiar meu pau, vou mexendo a mão. Preciso fazê-la sentir prazer, ou vai
me mandar parar. E quanto mais eu a fodo, mais meu pau vibra, mais
quente eu fico, mais meu coração me leva à beira de um precipício. E
quando eu gozo, é como cair dele, forte pra caralho. Eu não paro de
massagear a boceta dela ou bombar meu pau em seu rabo, e quando ela
também alcança seu prazer, aperta mais o cu ao meu redor. Eu perco o ar,
gemo também, finalmente jogando para fora tudo o que estava me matando.
Sinto a boceta dela gotejando na base do meu pau, e quando a última gota
da minha porra jorra na camisinha, escorrego para fora dela.
Amanda desliza de lado e se deita no sofá. Retiro a camisinha, e
sabendo o caminho, vou até o pequeno banheiro no canto da sala e a
descarto. Com passos leves, volto até a mulher que acaba de me dar um
gozo delicioso e a puxo para o meu colo, para lhe dar o conforto que
merece, afinal, não é porque é apenas minha ficante que eu não preciso ser
carinhoso com ela.
Eu a puxo para o meu colo, e, manhosa, Amanda me monta de
frente e deita em meu peito. Enquanto eu aliso suas costas, começamos a
conversar.
Mais tarde, quando eu voltar para casa, terei uma boa noite de sono,
para compensar os últimos dias.
É só eu não deixar a Branca saber, afinal, se por ciúme ou apenas
pelo trato de merda que deseja que eu honre, ela pode me foder se souber da
Amanda.
“Me lance pra longe Jogue estes joguinhos.
Agindo como se estivesse tudo bem.”
Go Fuck Yourself, Two Feet.

Foram os piores dias dos últimos tempos. Além de eu ter pegado


aquela gripe dos infernos, estou mal. Ando um lixo e não sei bem o porquê,
embora a maldita imagem da minha antiga psiquiatra fique martelando na
minha cabeça vez ou outra...
“Em alguns casos, quando pessoas com transtorno de
comportamento sexual compulsivo tentam conter os impulsos, podem
acabar depressivas.”
Desde que eu saí da casa do Harry, tive uma baixa de humor, e fico
me lembrando de que realmente tentei engolir a vontade de correr atrás de
uma trepada na rua. E eu consegui, não sozinha, mas com Harry me
distraindo com toda aquela merda que rolou no nosso almoço.
Mais uma vez, as coisas não saíram como planejei em nosso
encontro. Eu sou muito impulsiva, não consigo segurar o que penso ou
dominar a minha raiva. E fico extremamente chateada quando percebo que
os planos que tracei dão errado por minha culpa.
Acontece que estou lenta, sem querer sair de casa para ir à academia
ou fazer qualquer outra coisa. Desmarquei meu ginecologista, não fui dar
um jeito nas unhas, e minha geladeira está quase vazia. Dan ficou de trazer
algumas coisas hoje à noite. Contei a ele sobre a minha briga com o Harry,
e meu irmão está com um pouco de raiva por nosso vizinho dizer que sou a
última mulher que pegaria.
Eu não sei por que isso doeu tanto. A resposta, talvez, seja bem
clara: eu nunca fui rejeitada dessa maneira. E mesmo o odiando, aquilo me
deu vontade de chorar. Tanta vontade que eu senti meus olhos marejarem,
mesmo que não tenha caído uma só lágrima.
Consegui trabalhar nos últimos dias, mas sem aplicar golpes.
Apenas vendi um vírus que aprimorei na Deep Web e recebi o pagamento
em criptomoeda. Comprei várias maquiagens na internet e algumas roupas
para a festa do avô do Harry. As roupas chegam amanhã. Eu sou tão fodida
que, quando não estou correndo atrás de pau ou boceta por aí, livro-me da
ansiedade com compras. Bom, ainda é melhor que usar drogas. Ao menos
isso, eu nunca tive vontade de fazer.
A questão é que estou um lixo, e Dan acha que é por causa do Harry.
Concordo, em partes, pois sei que ele mexe comigo. Mas acredito que é por
causa da energia que estou colocando nessa vingança, e não por uma paixão
mal retribuída. Sei que quero muito acabar com ele, mas, ao mesmo tempo,
percebo que isso está abalando tudo em mim. Dos ossos aos fios de cabelo,
tudo meu está danificado com esse desejo de vingar o que ele me fez.
Quando saí da casa dele, achei que fosse me dar a loucura insana de
querer compensar o estresse com sexo, mas ela não veio. Eu só deslizei para
a minha cama e fiquei horas encarando o terrário da Nagini. Roí minhas
unhas até o sabugo, comi fast food nos últimos três dias, e esgotei minhas
séries fazendo maratona.
Estou sem energia até para enviar uma mensagem e perguntar algo
sobre o fim de semana. Mas sei que preciso falar com o idiota que mora do
outro lado do corredor. Que preciso perguntar o horário em que iremos. E
se, mesmo que ele queira continuar trepando com as vadias dele, ainda vai
fingir que somos namorados pelos dois meses que eu quero.
Perguntas sussurram feito fantasmas em meus ouvidos, deixando-me
mais insegura do que eu gostaria.
E se o Harry não se apaixonar?
E se não me der espaço para eu entrar em seu coração?
Como fazer para acabar com ele?
Em sua cama, ele deixou bem claro que me quer. O problema é que
eu não quero esse tipo de contato. Transo com qualquer um, menos com o
Harry. Não porque eu não sinta tesão por ele. Acho o idiota muito gostoso.
É porque eu não quero sentir nada além de ódio por ele. E se eu gostar mais
do que é preciso da sua pele? Se gostar do beijo? Se me viciar em seu
cheiro?
A merda da carência insana, como um vírus oportunista dentro do
meu sistema, pode me atrapalhar. E eu não consigo controlar isso. Essa é a
razão de ter um muro feito de estacas pontudas ao meu redor, o motivo que
me faz não deixar ninguém entrar na minha vida. Todo mundo em que
confiei me machucou, arrancou pedaços de mim, e isso doeu de tal modo
que eu desejei estar morta. Eu sei que se ficar amiga de alguém, que se
namorar uma pessoa, eu vou me apegar. E este é o caminho mais fácil para
terminarem de destruir o que ainda me resta: encontrarem a garota tola que
mora dentro de mim. Mas eu a guardo a sete chaves. Além dos meus
irmãos, ninguém vai alcançá-la!
Olho para o desenho se desenrolando à minha frente. Eu não tenho
televisão. Coloco um projetor na janela, acima da minha cabeceira, conecto-
o ao meu celular ou computador, e então assisto a filmes e séries. Tenho
uma tela branca para projetor sobre um tripé, ela equivale ao tamanho de
uma TV de quarenta polegadas, e eu a arrasto para a frente da cama. O som
sai em uma caixinha na minha mesinha de cabeceira.
Meu celular vibra, e quando eu olho para a tela, vejo a mensagem do
meu irmão.
Dan: “Estou pegando o elevador, mas esqueci a chave da sua casa.
Abre para mim?”
São quase dez da noite, e já usando uma camisola de seda vermelha,
com os cabelos uma confusão e o rosto inchado por eu estar nessa bad, vou
até a porta. Nem ânimo para stalkear o celular do Harry eu tive. Estou
mesmo ferrada.
Ouço o elevador subindo. Como se meu corpo tivesse o dobro do
peso e fosse difícil sustentá-lo, apoio a cabeça no batente da porta e cruzo
os braços. Usando um pijama em um xadrez azul-escuro, meu irmão vem
até mim, com algumas sacolas de mercado cheias de compras. Sorrindo, ele
me dá um beijinho na bochecha.
Abro espaço para que ele entre, e um pouco atrapalhado com o peso
das sacolas, Dan consegue colocá-las sobre a mesa, comigo o seguindo feito
uma sombra.
— Você é mesmo um príncipe.
“O que eu não faço pela princesa mais linda?”, diz, segurando o
quadril e tentando conter o sorriso com um bico. “Tem sorvete, biscoitos de
chocolate e muitos Cheetos. Mas eu ainda acho que você precisa mesmo é
de comida de verdade.”
— Vou comer melhor a partir de amanhã — prometo, mas nem eu
sei se isso é verdade.
“Preciso ir, Branquinha. Quero terminar meu trabalho da faculdade
ainda hoje, para me dedicar ao novo conto que estou escrevendo.”
Dan já vai caminhando para a porta, e eu faço um biquinho triste
enquanto o sigo.
— Queria que dormisse comigo.
“Se eu conseguir colocar tudo em ordem, amanhã dormimos juntos,
assistindo a alguma temporada de Hora de Aventura.”
— Promete? — Ofereço a ele o meu mindinho quando abrimos a
porta.
“Prometo!”, e assim que termina o gesto, Dan enlaça nossos
dedinhos.
Dou um sorriso amoroso, mas quando as portas do elevador se
abrem, meu sorriso é assassinado no mesmo segundo. Meu coração resolve
entrar em disparada, e aquela droga de quentura em meu estômago volta.
Harry atravessa o corredor, segurando as alças da mochila pendurada em
suas costas.
— Oi, amor! — fala, sorrindo tão largo que seu piercing smile
aparece com tudo, parecendo até gêmeo da joia em seu septo.
Amor? Minhas sobrancelhas se erguem quando Harry começa a
caminhar até mim. Só então percebo o que está acontecendo: ele acha que o
Dan não sabe sobre o nosso acordo. Que o Dan também acredita que somos
namorados. Engulo em seco quando, com poucos passos, Harry está à
minha frente. Meu coração parece se esquecer de como fazer o seu trabalho
de bater quando o maldito ergue a mão e a leva à minha nuca. O arrepio
cruzando minha espinha é instantâneo.
Não... Ele não vai fazer isso...
Eu não tenho tempo de pensar, porque, quando acredito que não me
beijará, Harry se abaixa e, contrariando-me, cola sua boca na minha. Eu...
não sei o que fazer. Estou assustada, com os olhos arregalados e a pele
queimando onde ele a toca. E embora seja a nuca que ele está segurando, é
meu corpo inteiro que está reagindo. Mesmo que não abramos os lábios, eu
posso sentir a maciez dos dele. Meus olhos piscam sem parar enquanto
Harry se afasta, rindo da minha cara de um jeito que, para quem olha de
fora, parece até carinhoso. E dentro de mim só existe a certeza de que ele
está amando me deixar sem reação. Antes que eu possa medir se estou feliz
ou puta com a sua atitude, singelo como truque de mágica, algo domina a
minha atenção: esse cheiro...
Harry, vagarosamente, começa a erguer a postura, mas a mulher
impulsiva dentro de mim não quer isso. Agarro as lapelas de sua jaqueta de
couro e fico na ponta dos pés. Eu não sei o motivo de ter tanto ódio
contaminando as minhas veias, correndo por elas e envenenando o meu
coração. Eu levo a boca até a dele, e, no mesmo instante, Harry ergue as
sobrancelhas em espanto, embora não tente se afastar. Ele segura o meu
quadril, certamente achando que eu quero seguir com o joguinho para
enganar o Dan, o que não é, nem de longe, o meu intuito. Eu não o beijo,
paro com a boca a milímetros quase inexistentes de distância. Harry chega a
lamber os lábios, lindos e volumosos, para me receber, mas eu apenas
inspiro o cheiro que sopra de suas narinas. Cerveja, é o que evapora de seu
corpo. Contudo, não é esse o cheiro que estou buscando. Fingindo fazer
carinho nele, arrasto meu nariz por sua bochecha, amando a aspereza leve
de sua barba por fazer. Não dá para negar que estremeço com suas mãos
apertando com pouca força a seda da camisola sobre o meu quadril, e que
isso me faz aquecer. Porém, todo e qualquer desejo morre quando fungo
com força o cheiro em seu pescoço. Não tem a menor sombra de limão, é
apenas o doce, barato e irritante cheiro de mulher. Posso sentir seu toque
endurecendo em meu quadril, junto à sua postura.
Eu quase ouço o barulho da minha cabeça explodindo de raiva.
Subo as mãos e finjo acertar as lapelas da jaqueta na altura do pescoço, mas
puxo com força, assustando-o e fazendo-o se desequilibrar um pouquinho.
E embora, dentro de mim, eu esteja desejando quebrar tudo, sou fria quando
me afasto de seu pescoço, levo a boca até a sua e dou um selinho breve.
— Boa noite, amor! — devolvo o cumprimento, mesmo que exista
algo rugindo sob a minha pele, ordenando que eu deveria mesmo era
arrancar um pedaço de sua boca.
E... quer saber? O Harry que se foda! Vou deixá-lo pensar que o Dan
acredita que somos namorados. É sempre bom tratá-lo como o babaca que
é. Por baixo dos panos, é claro.
Seu rosto está quase lívido, e a rigidez em sua postura evidencia que
entendeu que eu senti o cheiro da vadia em seu pescoço. E eu não estou
com ciúme dessa droga. O que me domina é raiva, porque, seja quem for
essa mulher, pode atrapalhar os meus planos.
— Oi, tudo bom? — Harry reage para cumprimentar Daniel,
estendendo a mão para ele.
Dan, mesmo bravo com o Harry, ainda aperta sua mão e acena com
a cabeça.
— Ele é mudo. — Após alguns segundos, eu finalmente consigo
encontrar a minha voz para avisar, deixando-a bem doce e carinhosa, antes
que o babaca fique esperando que meu irmão diga algo. — Você demorou,
eu já estava com saudade.
Dou um sorriso falso e gentil, esticando-me e fazendo um breve
carinho com o dorso da mão direita em sua bochecha, olhando em seus
olhos com tanta doçura que os cantinhos dos meus olhos se enrugam. Ele
sorri de volta, tão sem graça que faz a sádica que mora em mim se deliciar.
Embora a gente não tenha nada, de algum jeito, ele ter saído com
alguém soa embaraçoso. Eu lhe pedi para não o fazer, e ele já havia deixado
claro que não cumpriria, mas, mesmo assim, está todo sem graça. Será que
está com medo de que eu dê para trás e não vá ao aniversário do seu avô?
Dan se move, e meus olhos finalmente se desgarram de Harry e vão
para o meu irmão.
“Não vai contar a ele que eu sei sobre o namoro de mentirinha?”
Dou de ombros e respondo em libras:
“É divertido vê-lo fingir que é meu namorado. Te amo, maninho,
mas, agora, vá embora, porque preciso conversar sobre o aniversário do
avô dele.”
“Você às vezes é tão má”, comenta, depois dá um aceno de
despedida para o Harry e se volta para mim: “Nos vemos amanhã”.
Aceno em despedida, e enquanto espero Dan atravessar a porta da
escadaria de emergência, olho para o cretino à minha frente. Preciso
recalcular a minha rota, e decididamente não dá para continuarmos
brigando, pois isso nos afasta, quando o que quero é conquistá-lo. Embora
haja sentimentos explosivos morando sob a minha pele agora, querendo
queimá-lo, eu preciso ser gentil.
— Melhorou do resfriado? — pergunto.
Harry não esconde o espanto com a minha pergunta, e vejo a
maneira descarada como me come com os olhos. Encara a fenda de renda
da camisola na altura da minha coxa esquerda e, percebendo ou não, lambe
os lábios.
Gosto do jeito como me olha, parece me querer. É bom para os meus
planos. Posso jogar com isso, porque preciso seduzi-lo, e agora que eu não
sei se tenho uma concorrente ou se Harry apenas ficou com alguém que mal
conhece, eu não posso desperdiçar oportunidades.
— Sim. O xarope da síndica fez milagre. — Sua voz é mansa
quando fala. Ele não parece bêbado, embora o cheiro denuncie o contrário.
— E você, melhorou?
Aceno com a cabeça, encostando o ombro no batente da minha
porta. Seu olhar está fixo em meu rosto, como se inspecionasse cada
detalhe, e eu gostaria de saber o que se passa em sua cabeça quando me
olha assim.
Harry disse que está escrito em meu rosto que eu vou foder qualquer
um que se envolver comigo. E isso foi tão fundo dentro de mim... Pior do
que um tapa na cara. Pois quando a ofensa é temperada com verdade, dói
mais. É melhor eu não ficar pensando nisso, ou vou querer socá-lo.
— Acha que fui convincente para o seu irmão?
Tem um sorrisinho travesso em seus lábios, e detesto gostar da
perfeição que seu rosto se torna assim. Eu tenho uma leve impressão de que
ele está rindo à toa e mais soltinho por causa da bebida.
— Bastante. — Lambo os lábios, porque, de alguma maneira
absurda, eles estão ficando secos quando meus olhos se perdem na boca de
Harry.
— Você tá bem mesmo? Estou te achando meio pálida...
— Tive uns dias ruins, mas estou melhorando. Eu queria saber sobre
o fim de semana com o seu avô. — Raspo a garganta. Eu não quero
demonstrar fragilidade a ele. — A que horas iremos na sexta-feira? Tem
algum estilo de roupa que devo levar?
— O dress code da festa é casual chique. A gente pode ir no meio da
tarde, porque recebi um e-mail da secretária dele me dizendo que à noite
terá um coquetel, e que seria bom chegarmos antes, para nos acomodarem
em um dos quartos da mansão. Avisei a ela que levarei você.
— Tudo bem. Vou organizando a minha mala. Você acha que
voltamos domingo ou antes?
— Não faço ideia. — Ele cruza os braços. — Se você for levar
mala, terei de pegar um carro emprestado.
É verdade! Ele tem uma moto! Como eu não pensei que não daria
para levar bagagem?
— Eu tenho um carro. Ele é pequenininho, mas se deitarmos os
bancos traseiros, conseguimos levar duas malas grandes. — Harry está
encarando minha tatuagem. Quando não olha para os meus peitos, fica
comendo minhas pernas com os olhos. — Você não consegue olhar para o
meu rosto enquanto eu falo?
— Consigo, mas, se quiser, eu posso me concentrar mais na sua
boca. Não será nenhum trabalho... — Seu sorrisinho é sugestivo, parecendo
combustível para me fazer ruborizar. Ele está insinuando que pode me
beijar? — E por que mala grande? É só um fim de semana.
Demoro alguns segundos para organizar minha mente e entender sua
última frase, e só então respondo:
— Ué, você não quer impressionar o seu avô? — Harry pareceu até
os meus irmãos me julgando quando íamos para a casa de praia e eu queria
carregar o mundo comigo na bagagem. — Parece que vai ser algo chique,
então, vou levar minhas melhores roupas.
— Tá bom. Preciso entrar e tomar um banho, amanhã a gente se
fala. Vou trabalhar cedo, e quando eu chegar, bato aqui para você me ajudar
com o tipo de roupa que devo levar. Não faço a menor ideia de que caralho
é casual chique.
Dou um sorrisinho. Ele realmente não parece saber, e como vou
julgar? Tive de olhar na internet para descobrir.
Harry já está se virando quando resolvo perguntar:
— No que você trabalha?
Dou uma de sonsa, afinal, eu sei muito bem.
— Sou Body Piercer no estúdio dos meus amigos. E você?
— Trabalho como designer gráfica para mídias sociais.
Essa é a mentira padrão para a minha profissão. Eu tenho até um
portifólio com clientes que realmente cheguei a atender para usar como
fachada. E eu sabia que, no caso do Harry, em algum momento precisaria
contar com o que trabalho.
— Maneiro. Por isso tá sempre em casa... — Ele parece pensar alto.
— Boa noite, Branquinha! — Fico surpresa como, após um longo bocejo,
ele fala meu nome no diminuitivo. — E me desculpe pelo que te disse
ontem. Tu nunca seria minha última opção. Tu é gostosa e gata demais para
isso.
Harry sorri de um jeito preguiçoso quando, após girar a chave na
porta de sua casa, vira-se para mim. Eu não sei o que dizer, e mesmo que
soubesse, eu nem conseguiria. Só fico parada, como se tivessem me lançado
um Petrificus Totalus, observando Harry fechar a porta atrás de si. Ele
acabou me cantar?
"Eu estou curiosa por você. Chamou minha atenção.
Eu beijei uma garota e gostei disso."
I Kissed A Girl, Katy Perry.

Estou terminando de fazer esteira, com a adrenalina vibrando por


cada pedaço suado da minha pele. A academia ampla e espelhada está
tranquila, sem aquelas filas insuportáveis para usar os aparelhos. Como
acordei bem disposta e com um ânimo que parece ter corrido de mim nos
últimos dias, resolvi comer bem, deixar a casa em ordem e depois vir
malhar. Sei que essa animação tem totalmente a ver com o Harry. Fiquei
feliz por ele ter encenado o namoro na frente do Dan, isso quer dizer que
ele está entrando na minha onda.
Fechando o tempo que estipulei para a esteira, começo a diminuir a
velocidade do aparelho. Enquanto meus passos desaceleram, migrando de
correr para apenas caminhar, reparo na música que escapa pelos alto-
falantes das paredes, I Kissed a girl, da Katy Perry.
Cantarolo com a melodia quando, por fim, saio do aparelho.
Ofegante, aproveito para sorver um pouco de água enquanto caminho pelo
chão amadeirado até o vestiário. Entro em uma sala ampla com armários
compartilhados para ambos os sexos, já a parte de banho e sanitários é
separada para homens e mulheres. Diante do paredão com armários de ferro
amarelo, retiro a chave do decote do meu top preto e abro o cadeado do
compartimento onde deixei minha bolsa. Guardo a garrafa de água e enrolo
a toalha em meu corpo. De um jeito atrapalhado, porém funcional, consigo
ficar sem nada por baixo da toalha rosa-bebê. Pego a minha necessaire e,
depois de trancar tudo, começo a caminhar pelo chão de piso escuro,
rodeada por paredes amplas e claras, até chegar à ala feminina, tendo como
destino final os boxes com chuveiros.
— Ei, Branca?!
Ouço alguns passinhos atrás de mim. Arrisco uma olhada por cima
do ombro, dando de cara com olhos castanhos adornados por cílios
imensos. Diminuo o ritmo da caminhada quando a garota de cabelos curtos,
cacheados e marrons para ao meu lado.
— Oi... — cumprimento. Ela sorri, com a pele oliva brilhando de
suor, enquanto me encara, provavelmente esperando que eu diga algo mais.
Intrigada, resolvo ficar de frente para ela. — A gente se conhece?
— Ah, desculpa! Eu sou a Lu. A gente revezou os equipamentos da
última vez que você veio aqui. — Suas bochechas se enchem de cor,
acredito que por vergonha de eu não me lembrar dela. E feito a vadia que
sou, sinto o diabo espetando a minha espinha com seu tridente imbuído em
fogo, pois começo a reparar nela inteira. É menor que eu. E bem magrinha.
O conjunto de short-saia e top em um tom de rosa claro lhe dão um ar
meigo. — Você me disse que malhava aqui todos os dias. Mas, desde então,
eu não a vejo...
— Ah, sim. Agora me lembrei — minto. Eu não lembro porra
nenhuma. Aperto os lábios, gostando do tamanho médio dos seus seios
pesando no decote do top. — Acabei pegando um resfriado e não vim
malhar. — É melhor me certificar de que não é menor de idade, pois seu
rosto redondo e fofo faz parecer que ela não passa dos vinte. — Quantos
anos você tem mesmo?
— Fiz 19 mês passado. Você tem 20, não é? — Assinto e tento não
deixar bem na cara o quanto respiro aliviada por não haver impedimentos
para eu dar em cima dela. — Mas já está melhor? Vi de longe que você fez
sua série inteira.
Eu nunca imaginei que um dia fosse ficar excitada no meio da
academia, olhando para uma garota que nem sei se gosta de mulher. E só
para contrariar minhas crenças, estou fervendo, gostando da voz dela, do
tamanho de sua boca.
Eu não sou o tipo de garota que convida alguém para sair. Nunca.
Eu chamo para transar. Eu não nomeio nem como “ficar”. E os beijos só
servem quando são o caminho mais rápido para uma transa ocasional.
— Já estou novinha em folha. Você mora por aqui?
Ela troca o peso dos pés quando, descaradamente, eu dou meu
primeiro ataque para dar em cima dela, inclinando-me até seu rosto e
fingindo limpar uma sujeirinha inexistente ao lado de sua boca. Sua pele é
tão macia quanto um pedaço de seda. Demoro um pouco antes de me
afastar. Ela engole em seco, e quando me olha por cima dos olhos, é o prato
cheio para eu perceber que está tão a fim quanto eu. Que não está de
assunto comigo porque quer ser minha amiga. Esse olhar é de submissão,
de desejo, e eu, melhor do que ninguém, sei decifrá-lo.
— Moro a duas ruas daqui. E você?
— Aqui pertinho também.
Sua boca é estreita, bem volumosa e rosada, o que a faz parecer ter
lábios de boneca. É ser cretina demais adorar imaginar isso no meio das
minhas pernas? Se for, eu não ligo. Não existe pele em meu corpo para
sujar, eu já estou imunda.
— E você tem namorado?
Levanto as sobrancelhas, completamente surpresa com a sua
pergunta direta. Achei que a Lu fosse mais tímida, que enrolaria até tentar
saber se sou comprometida ou se gosto de mulher. Dou um passo à frente,
com a urgência louca começando a surgir nas profundezas do meu ser, e
como se o próprio Kraken[7] acordasse, ela vai afundando minha
embarcação inteira no poço da devassidão. A vontade que me faz dar em
cima de qualquer pessoa que eu ache interessante e transar em qualquer
lugar me domina. Seguro um dos cachos de seu cabelo e o enrolo em meus
dedos, amando a sedosidade dos fios.
— Não tenho namorado... — Um flash maldito da cara do Harry
surge feito uma maldição diante dos meus olhos. Grito para a minha mente
doente que ele não é nada meu. Voltando ao que interessa, fixo uma
encarada no rosto dela, e eu nem preciso de muito para sentir que Lu prende
a respiração. — Nem namorada. E você?
— Estou solteira. Vou a uma festa amanhã, quer ir comigo?
Acho fofo o brilho em seus olhos, o sorriso tímido que me dá após
fazer o convite. Um convite doce, de uma garota que parece ser tudo o que
eu não sou: boa. Eu não ousaria me aproximar mais de uma vez de uma
mulher suave assim. Ela não merece ir ao inferno comigo, que é o que eu
faria com alguém por quem me apaixonasse. Mas, se um dia eu namorasse,
ela seria o tipo perfeito de garota para o qual eu olharia. O contraste ideal
para o meu caos.
O que eu preciso dela é apenas uma coisa, por mais sujo e cruel que
seja: gozar na sua boca. E nada além.
— Então, gatinha... — Deixo que a mecha de cabelo deslize pela
minha mão e a recolho. — Infelizmente, tenho uma viagem amanhã. Mas
estou indo tomar um banho agora. Se quiser vir comigo... Eu soube que um
dos boxes tem a água mais quente.
Embora eu já esteja de costas, a visão de surpresa em sua face vai
ficar comigo por um tempo. Os olhos arregalados, a boca se abrindo
demais. É sempre gostoso ver o choque das pessoas com a minha
irreverência. Faz com que eu me sinta poderosa.
Agora, fica a expectativa: mesmo que eu deteste, terei de me
masturbar no banho para aliviar a umidade entre as minhas pernas e
alimentar o meu vício imundo... ou ela se juntará a mim?
Entro em um dos boxes de vidro temperado, jogo a toalha por cima
da porta e a encosto, mas não passo o trinco. Eu não ousaria fechar as portas
do inferno para aquele anjo.
Coloco a necessaire vermelha no gancho de metal ao lado da porta,
pego o sabonete líquido e abro a torneira, esperando que a água fique
morna. Enquanto eu me lavo, viro-me de frente para a porta.
Às vezes, eu me pego pensando sobre a minha sexualidade. Eu não
consigo lembrar ao certo quando descobri que gostava de mulheres. Fora
todo aquele martírio que eu vivi no Vale, eu só descobri mesmo do que
gostava quando saí de lá, quando frequentei cursinhos e a escola, onde a
minha compulsão sexual começou a gritar. Então, passei a seduzir de
garotos a professoras. Algumas chamavam meus irmãos na escola para
reclamar, mas duas delas treparam comigo depois da aula. Eu gosto de
mulheres na exata proporção que sinto prazer com homens. E quando
imagino um futuro feliz para a menina tola acorrentada dentro de mim, vejo
cenários onde posso ter uma família com qualquer um dos dois.
A porta sendo aberta faz meu ventre se agitar na mesma intensidade
que meu coração. Nua, incerta e um pouco tímida, Lu entra no box e fecha
a porta atrás de si. É como se eu ganhasse o meu presente do dia.
Geralmente, as coisas não são tão calmas quando estou caçando. Eu
posso simplesmente pegar no pau de um cara que acho bonito e me sarrar
nele. A conversa é secundária quando eu quero transar. Mas essa garota...
Ela soa tão inexperiente. Parece até pecado eu me aproximar dela como
estou fazendo, ou tocar seus seios de bicos marrons e inchados, depois
apertá-los suavemente e amar o jeito como preenchem as minhas mãos. Eu
não digo nada, apenas me entrego à vontade e vou para cima dela com a
fome que é minha marca. Eu a beijo, inspirando entre seus lábios, gostando
do quanto ela treme sob o meu corpo quando eu a encurralo contra a porta.
Sua língua está mole, esperando ser conduzida, e, neste segundo, eu me
pergunto se ela já ficou com mulheres. Não que eu me importe.
— Que bom que veio — sussurro.
— Tive dúvidas... — começa a falar, mas quando desço com uma
trilha de beijos até finalmente colocar seu peito gostoso na boca, ela solta
um gemido baixinho, quase sussurrado. Talvez Lu tenha medo de que nos
flagrem aqui. Mal sabe ela que um dos meus maiores fetiches é o perigo de
ser pega transando em locais proibidos. Isso faz meu gozo ser ainda mais
forte. — Mas eu decidi que não queria perder a chance de ficar contigo.
Doida com suas palavras, com seu gosto suado e seu cheiro de
mulher, eu desço mais, até ficar com o rosto no meio de suas pernas. Ela as
abre para me receber, e quando eu coloco a boca na sua bocetinha, chego a
suspirar. É realmente o meu prato preferido. O gosto doce, pegajoso e
saboroso dela inunda a minha boca. Está molhada pra caralho.
Subo e desço a língua por sua boceta, engolindo todos os resquícios
do seu tesão, e quando me dedico a mover a língua sobre o seu clitóris, faço
com vontade. Eu a sugo e gemo, olho para cima para encarar o rosto lindo e
vermelho de quem está sendo bem fodida. Não demora nada até que eu dê
um jeito delicado de enfiar dois dedos dentro dela, tornando meu oral mais
poderoso. Eu a fodo com a língua e a massacro com os dedos, mas quando
ela começa a agarrar as paredes ao redor e tremer, resolvo parar. É gostoso
ver a sua carinha chorosa de quem foi privada de gozar.
— Vamos chegar lá juntas! — aviso, levando minha boca inundada
com o seu mel até a dela, fazendo-a beber do próprio prazer.
Em meio ao vapor do chuveiro e aos nossos toques delicados e
safados, a gente se explora o suficiente para dar prazer uma à outra,
engolindo gemidos, apertando, mordendo e lambendo. Não tem pudor
quando nos deitamos de lado no chão onde qualquer um toma banho,
encaixamos nossas bocetas e nos esfregamos, enlouquecidas, misturando
nossas umidades e sarrando nossos clitóris até o prazer ser insuportável e
gozarmos com gemidos estrangulados.
Quando ficamos satisfeitas, terminamos o banho em meio a beijos
preguiçosos e algumas carícias. Quando eu fecho o chuveiro, gentilmente a
seco com sua toalha branca, vendo sua carinha de interesse, que me encara
como se eu brilhasse. Eu tenho a porra de um lado bobo que facilmente se
apaixonaria se visse esse rosto por vezes demais, é por isso que lhe dou um
selinho, enrolo a toalha nela e depois faço o mesmo comigo, doida para
apressar a nossa despedida.
Quando saímos do box, lado a lado, com os cabelos molhados e
completamente relaxadas, ela pede:
— Pode me dar seu número? Eu queria que pudéssemos fazer isso
mais vezes.
Lu não é o tipo de garota que merece ser magoada, por isso, eu
prefiro não ser grosseira. Engolindo a sensação ruim que começa a surgir
em meu corpo, porque, mesmo que eu tenha me satisfeito e amado o que
fizemos, tem a bosta da culpa, da pressão de lembrar que sou viciada nisso,
querendo me jogar na lama.
Quando chegamos diante dos armários, digo:
— É claro que sim. Espere um segundo, amore... — Abro a minha
bolsa e, sacando o celular, olho para ela. É quase um soco no estômago o
brilho esperançoso em seu rosto. — Fala para mim seu telefone.
Quase sendo incapaz de conter a animação, ela dispara seu número.
Dou um sorriso triste e me inclino até ela. Eu me permito provar sua língua
só mais uma vez, tão macia, calma, gostosa... Quando eu me afasto, sinto
tristeza por estar preferindo lhe dar falsas esperanças a ser sincera de que eu
só queria transar. Dou um jeito de me vestir rápido, guardar meus pertences
e me virar para ela.
— A gente se fala, tá, linda? Mas, agora, preciso ir, porque tenho
um compromisso e já estou atrasada.
— Eu também preciso ir. Espero você me mandar mensagem.
— Tá bom! — Dou um selinho nela e viro-me de costas.
Eu só não esperava dar de cara com isso. Ele não malha aqui. Ou
malha? Meu corpo paralisa. Minhas cordas vocais resolvem fingir que nem
existem, e todo o sangue do meu corpo corre até se concentrar em minhas
bochechas. Meu coração está galopando como se apostasse uma corrida,
onde o ponto de chegada é um infarto fulminante.
Harry está com a mão em um dos armários, sem camisa, com um
short de tactel preto bem baixo e o cós da cueca aparecendo. Tem raiva em
seu rosto, mas, em seus olhos, tem um clarão sádico de satisfação, como se
ele estivesse feliz por me pegar no pulo.
Penso em dizer alguma coisa, fazer uma piada, mas como não lhe
devo satisfação, apenas ignoro a sua presença e sigo meu caminho de volta
para casa.

Já começou a escurecer, e desde que voltei da rua, eu não paro de


andar pela casa. Quando me sento, bato os pés sem parar. É como se a
sensação de derrota por ter me rendido ao vício se misturasse à ansiedade
de ter sido flagrada pelo Harry.
É óbvio que eu sei que ele não tem o direito de me cobrar nada,
assim como eu fui obrigada a não comentar sobre o seu cheiro contaminado
pelo perfume da mulher com quem estava.
O verdadeiro tormento tem sido pensar que eu quero conquistá-lo,
mas se ele tiver certeza de que eu sou promíscua, talvez não me queira. Já
olhei meu telefone dezenas de vezes e não tem uma só mensagem dele.
O número da Lu, eu apaguei assim que entrei no elevador do meu
prédio. E também vou mudar de academia, afinal, o rito perfeito para ter o
menor dano possível com o meu vício é nunca mais ver a pessoa com quem
transei.
Pensando em encontrar logo outra academia, tiro meus chinelos e
me jogo na cama. Nagini está deitada em meu travesseiro, mas já vou
prendê-la. Eu a soltei para deixar que relaxasse do lado de fora por um
tempo. Assim que eu me aninho de costas no travesseiro, ela rasteja por
minhas coxas, serpenteando por meu macaquinho jeans até pousar a cabeça
pequena em meu seio direito. Com meu telefone na mão, pesquiso as
academias próximas. Tem uma a dez minutos a pé, é de uma franquia
grande e famosa. Assim que eu me preparo para ligar para lá, uma
mensagem de Harry faz meu coração ficar mais parado do que a Nagini se
fingindo de estátua em cima de mim.
Harry: “Estou em casa. Pode vir aqui me ajudar a escolher as
roupas?”
Nossa, eu já ia me esquecendo de que ficamos de fazer isso hoje.
Meu estômago esquenta, a ponto de parecer que estou com azia. Sempre
que estou para ver o Harry, sinto como se algo dentro da minha barriga se
mexesse, formigasse. Eu nunca senti isso, e é bem irritante.
Eu: “Estou indo.”
— Acabou a festa, princesinha. Vou até a casa daquele otário. Mais
tarde, o titio Dan vem dormir com a gente, então... — Eu me levanto,
deixando que ela se enrole em meu braço de maneira suave. Abro a tampa
do terrário e, com cuidado, coloco-a em seu galho. Comportando-se muito
bem, Nagini se enrola nele e finge que eu não existo. Fecho a tampa do
compartimento e, alisando o vidro, digo: — Fique direitinho enquanto isso.
Coloco o telefone no meio dos peitos, calço os chinelos e vou até a
porta do Harry. Eu nem me preocupo em girar a chave na minha, só tem a
gente neste andar. Aperto a campainha e, resistindo à vontade de roer o que
sobrou das minhas unhas, espero que ele abra a porta.
Quando aparece, Harry me encara de um jeito atravessado que faz
minha pele se arrepiar no mesmo minuto. Eu até repenso se deveria entrar
na casa dele, pois está com um semblante de que quer me comer viva.
Meu lado irreverente resolve contrariar meus receios e tomar a cena:
— Oi, amor! Quer minha ajuda? — Com um semblante debochado,
resolvo passar por ele e entrar logo.
Seu cheiro me ataca com tudo, e eu agradeço aos céus por não estar
misturado ao de outra mulher.
— Você é muito engraçadinha! — fala, pisando duro atrás de mim,
enquanto eu ando pela sua cozinha e vou até a geladeira. Sentindo a boca
secando por prever que ele vai falar sobre ter me visto com a Lu, pego uma
garrafa de vidro na porta e a viro na boca. — Existe uma coisa chamada
copo!
— Existe. E eu acho um desperdício de materiais quando se tem
garrafas.
— Quem era aquela garota? — Sua voz sai tão nublada quanto seu
olhar.
Meus olhos o percorrem, gostando do que encontram. Ele é tão
gostoso que eu sinto vontade de me chicotear por ter de apertar as coxas
sempre que encaro esse abdômen perfeito, esses olhos puxados e essa boca
do tamanho exato para engolir meu seio de uma só vez.
— Olha só... — Respiro, xingando meu lado safado e o fazendo
calar a boca antes de prosseguir, tentando encontrar um equilíbrio em minha
voz e não brigar. Eu não quero retroceder no que alcançamos ontem.
Conseguimos dialogar, e ele ainda me passou algumas cantadas. — Você
saiu com uma mulher, eu entendi, respeitei e nem te questionei sobre. A
gente não tem um relacionamento de verdade, então...
— Eu sei que não temos. Apenas estou curioso. Vocês são ficantes?
Reviro os olhos, indo até a pia e jogando o restante da água pelo
ralo. Eu só bebi no gargalo para implicar com ele. Detesto quando meus
irmãos fazem isso. Lavo a garrafa e a coloco sobre a pia. Quando me viro,
secando as mãos em um pano de prato, Harry está concentrado em meu
rosto.
Tem um ponto de interrogação se embrenhando em meus neurônios.
Embora ele tenha usado um tom ameno em sua última pergunta, seu rosto
inteiro está fechado. Harry parece muito puto. Está com ciúmes de mim? Eu
quero enforcar a garota tola aprisionada em minhas entranhas, que ri com
isso, que gosta disso. Eu não gosto, embora entenda as vantagens. Harry ter
ciúmes significa que sente algo além. E já que está tão interessado em me
interrogar sobre a Lu, bora colocar minhas garrinhas de fora e descobrir as
coisas que me interessam.
Mesmo que eu tenha stalkeado o telefone dele antes de dormir e
descoberto que ele fica com uma ruiva chamada “Amandinha” – era a
forma como o contato dela estava salvo, e me fez quase quebrar os dentes
de tanto que eu os trinquei –, tem coisas que eu não consegui descobrir com
a minha invasão. Percebi que se conhecem há um tempo, mas não
conversam muito por mensagens, a não ser para marcar encontros, que
acontecem mensalmente, eu quase não vi algo com um tempo menor que
esse. Harry tem mensagens salvas somente do começo deste ano em diante,
como se tivesse trocado de telefone ou apagado tudo.
— Se eu te contar, vai ter de responder as minhas perguntas
também.
— Por mim... — Harry dá de ombros, puxando uma das banquetas e
se sentando. — Pergunta o que quiser, mas, primeiro, responde o que eu
perguntei.
Sua ansiedade por uma resposta é palpável. Tento segurar uma
risadinha de satisfação enquanto digo:
— Eu não a conheço. Fizemos um revezamento na academia outro
dia, e hoje ela me chamou para sair.
— E vocês ficaram lá na academia mesmo?
Quando um flash dos momentos com a Lu se desenha diante dos
meus olhos, chego a morder os lábios, mas assim que os pensamentos se
dispersam, vejo Harry me encarando, como se tivesse sido capaz de ler a
minha mente. Raspo a garganta, sabendo que sou incapaz de perder a
oportunidade de alfinetá-lo.
— Sim. Tomamos um banho bem interessante juntas. E foi apenas
isso, nada significativo. — Descanso meu corpo contra a pia e cruzo os
braços, como se isso me protegesse dos julgamentos dele, um cuidado
prévio para o que estou prestes a dizer: — Eu não tenho ficantes. Saio com
pessoas, transo, depois as apago da minha vida. É como se nunca tivessem
existido. Então, satisfeito?
— Mas ela te olhava com tanto carinho... — Seus olhos quase se
fecham com a força que ele coloca na encarada para me julgar, como se eu
estivesse mentindo.
— Ela é uma menina fofa, só isso. Agora, sua vez: quem era a dona
do perfume podre e barato no teu pescoço?
Odeio quando ele ri assim, tão cheio de si. Como se amasse quando
eu demonstro que algo me irrita.
— Eu não acho o perfume dela podre. É bem gostoso, na verdade.
Se eu apertar mais os dentes, posso realmente parti-los, tamanha a
força da raiva que suas palavras provocam em mim. Chego a fechar os
olhos para não explodir, cerrando tanto os punhos que meus ossos poderiam
arrebentar a pele.
Respira, Branca!, grito dentro da minha mente.
Harry sabe como me irritar, e eu me sinto uma garotinha boba
caindo em sua provocação. Quando abro os olhos, o interesse em seu
semblante entrega que está adorando a minha reação. Por isso, decido que
não lhe darei mais disso, nenhuma demonstração de ciúmes. E não porque
eu o queira. Ciúmes porque ela está roubando a atenção que eu quero
apenas para mim, para o meu plano!
— Responde logo!
— É a Amanda. Uma ficante que tenho. Não é nada sério.
— Como a conheceu?
— Em um barzinho, ano passado. — Boceja, como se fosse
entediante falar sobre isso. — A gente se pega quando tá a fim.
De repente, imagino a boca de sua ficante no meio das minhas
pernas. Seria um bom jeito de irritá-lo, do mesmo jeito que faz comigo. Isso
me faz sorrir, e como se a minha mente amasse me sabotar, meus
pensamentos de merda acabam com a diversão: eu nunca ficaria com ela.
Eu já a detesto, por estar no meu caminho. Eu não gosto de rivalidade
feminina, mas ela é realmente um empecilho para mim.
— Entediante... — minto. Sei que isso é autodefesa, por saber que
ele gosta dela em algum nível. — Prefiro meu modus operandi.
— Eu também uso a sua tática, na maior parte do tempo. Mas a
Amanda é maneira, e...
— Ah, cala a boca! — rosno, deixando meu gênio de merda vir à
tona. Começo a caminhar para a porta, porque, se eu o ouvir elogiar essa
garota mais uma vez, terei de quebrar alguma coisa nesta casa, e Harry terá
muita sorte se não for a cara dele. — Pede para ela te ajudar com a porra da
tua roupa!
Enfio a mão na maçaneta, querendo chorar, de tanta raiva, sentindo
o coração fervendo, como se Harry tivesse colocado gasolina nele e depois
acendido um fósforo.
Sou contida por seu braço enlaçando a minha barriga. Estou
respirando forte, tanto pelo ódio quanto por sua proximidade.
— Ei, nervosinha, não precisa ir embora. Eu não vou mais te
provocar. É que você fica muito linda quando está com ciúmes.
— Não estou com ciúmes porra nenhuma!
Aí está, a besta geniosa que sou incapaz de domar. A que estraga
meus planos de seduzi-lo, que não leva desaforo para casa. É o meu pior
lado.
— Então, que seja... Foi você quem perguntou, mas eu não falarei
mais da Amanda. Vem me ajudar com as roupas, por favor?
Ele está colado em minhas costas, e a maneira como agora envolve
outro braço ao meu redor é cálida e íntima demais. Desse jeito, seu perfume
forma uma cortina ao meu redor. Eu gosto tanto disso que poderia dormir
com esse aroma em meu travesseiro. Não porque é o cheiro do Harry. A
fragrância é apenas muito agradável. Respiro por alguns momentos,
apoiando mais meu corpo em suas costas, aproveitando um pouco seu
abraço até me acalmar.
— Tá bom! E depois... vai comigo ver as que eu escolhi também?
Que porra de vozinha doce é essa que estou usando? Desbloqueei
um novo modo de ser bizarra?
— Vou, Branquinha!
Harry consegue deixar a sua voz ainda pior quando me chama no
diminutivo. E não importa quão irritante seja tê-lo me abraçando assim, é
um caminho para uma relação melhor com ele. O foda é que eu tenho
certeza de que poucas faíscas entre nós já podem resultar em um fogaréu.
“Eu sou seu veneno,
Você está brincando com fogo.”
Veneno, Anitta.

Arrasto a mala preta de tamanho médio pela sala, indo em direção à


saída do meu apê. Quando estou no corredor, vejo uma grande mala
vermelha do lado de fora da porta aberta da minha vizinha.
— E não se esqueça de apagar as luzes na hora certa de a Nagini
dormir, ou ela vai ficar agitada — Branca fala lá dentro, dando as
coordenadas para que o irmão cuide da assassina que trata como se fosse
um pet.
Ontem à noite, ela me ajudou a escolher algumas roupas, e riu para
caralho por eu não saber combinar nada que não envolva correntes, regatas
e calças rasgadas. O resultado de sua ajuda foi bem positivo, pois além de
escolher sapatos que combinassem com as roupas, ainda pegou dois blazers
emprestado com o Daniel para eu poder levar. Quando terminamos, Branca
quis que eu fosse até a sua casa para retribuir o favor, para eu dar a minha
opinião sobre as roupas que ela já havia separado. Eu até tentei, mas parei
em cima do limiar da porta quando dei de cara com o terrário daquela
cobra. Desisti no mesmo instante, ouvindo os chiados e lamentos da
Branca, que se deu por satisfeita quando eu disse que iria opinar quando ela
estivesse se arrumando para as confraternizações na casa do meu avô.
Daniel me assusta ao surgir diante da porta de repente, carregando
uma frasqueira de viagem que faz conjunto com a mala e a apoiando na
parte de cima. Ele abre a boca, idêntica à da irmã, e sorri, depois acena para
mim. Retribuo o cumprimento com um gesto, é quando Branca surge. Sua
beleza é quase como uma porrada, pois me deixa atordoado. É a primeira
vez que eu a vejo tão elegante. A blusa bege de alças finas e tecido molinho
por dentro da calça larga e de um azul-acinzentado a faz parecer uma dessas
ricaças da Zona Sul. Ela não está usando salto, mas o sapato que calça é
fechado, e o bico fino aparece por baixo da barra larga, tão branco quanto o
seu nome.
— Como estou? — pergunta, parecendo animada ao dar uma
voltinha.
É foda vê-la tão descontraída. Eu gosto dessa Branca, essa que faz
gracinha, que sorri à toa...
Como seu cabelo está preso em um coque no alto da cabeça, apenas
a franja balança. E embora eu goste de quando ela usa acessórios estilosos,
o conjunto delicado de colares e brincos de pérola a deixa ainda mais
perfeita.
— Está linda! — Minha voz sai até fraca. Eu a percorro inteira com
os olhos.
A lembrança intrusa dela enrolada em uma toalha e cheia de
chamego com aquela garota surge como um feixe de luz na minha mente.
Eu nem contei isso aos garotos no trabalho hoje, ou eles diriam que aquele
ciúme infernal que me dominou é sinal de que estou apaixonado, o que não
faz sentido algum, pois mal nos conhecemos. Sim, estou interessado em
Branca, em sua beleza, em seu jeito. Mas não a ponto de sentir algo. O
ciúme foi porque... porque... foi irritante ver a Branca beijando aquela
mulher com tanta vontade, ou ficando vermelha enquanto parecia flertar.
Quando ela foi embora, sem dizer uma maldita palavra, eu precisei me
segurar, pois, feito um idiota, senti vontade de chamar a mulher e perguntar
desde quando se conheciam. Só bastaram alguns segundos para eu me
lembrar de que Branca e eu não temos nada, que o nosso namoro é um
acordo que beneficia a nós dois, e que, assim como eu fodi com a Amanda,
ela também tinha o direito de se divertir. Então, engoli a raiva e enchi o
saco de boxe da academia de socos, tentando aliviar aquela sensação
incendiária dentro de mim. E, mesmo assim, eu não consegui me conter
quando a safada da Branca entrou na minha casa. Eu já fui logo
questionando sobre a novinha que ela estava pegando.
Tem horas que eu me pergunto se Branca é algum tipo de carma. A
gente se conheceu de um jeito insano, acabou metido nesse acordo, e agora
ela ainda malha no mesmo lugar que eu. São coincidências demais para o
pisciano supersticioso dentro de mim não se importar.
— Olha, Dan... Coube certinho nele!
Ela está na minha frente, afastando meus pensamentos com seu
toque no blazer preto que estou vestindo, que, na verdade, é do Daniel.
Ele gesticula a resposta para a irmã. Acho fofo o jeito como os dois
se tratam. Quero, depois, tentar saber mais coisas sobre ela, sobre a sua
relação com os irmãos. Eu não vou ser otário e fingir que não estou a fim
dessa mina. Estou, mesmo que saiba que ela cheira a confusão.
Tentando dar uma de engraçadinho, eu puxo Branca pela cintura e a
abraço, antes que se afaste. Ela disse que queria que fingíssemos para os
seus irmãos, e eu não me importo de tentar ser convincente, por isso, seguro
sua cabeça e beijo sua testa demoradamente, engolindo um pouco do cabelo
de sua franja no processo. Seu cheiro delicado é algo com que eu facilmente
poderia me acostumar a ter por perto. Gosto do quanto Branca deixa a sua
pose de fodona quando eu a toco. Ela sempre estremece, parecendo
nervosa, insegura... E deixa meu pau bem duro quando age assim.
— Precisamos meter o pé logo, porque, daqui a pouco, o trânsito
começa a engarrafar. Horário de pico — falo, soltando sua cabeça, mas
olhando seus olhos arregalados enquanto me afasto. — Teu outro irmão, o
Rafael, já sabe que estamos indo?
— Sim, avisei ontem. Ele está na casa dele da Barra, e realmente me
deu uma folga, agora que estamos namorando. — É até difícil prestar
atenção em suas palavras, porque sua maquiagem toda clarinha, a boca com
um brilho labial transparente, está linda demais. — Estamos indo, Xuxu. —
Ela se vira para o Daniel. — Te mando mensagem quando chegar lá.
Após dar um beijinho na bochecha do irmão, deixando a impressão
de sua boca brilhante na pele dele, Branca sai andando em direção ao
elevador, deixando as malas para trás, para que eu as carregue. Reviro os
olhos, mas faço o cavalheirismo de prender bem a frasqueira no puxador de
sua mala, levando todas as bagagens até o elevador. Quando entramos nele,
sinto a ansiedade começar a me infernizar. A todo o momento em que eu
me lembro de que terei de ver o meu avô, que terei de aguentar suas piadas
ácidas, minha pele pinica e meu estômago arde.
— É estranho te ver sem os piercings — após tirar a chave do carro
de sua bolsa a tiracolo clara, ela diz. — Por que tirou todos? Até os da
orelha?
O elevador pousa no térreo, e Branca segura a porta para que eu
arraste as malas para fora.
— Se alguém um dia desenhasse o capeta, seria o esboço perfeito do
meu avô! — Tento não trincar os dentes após dizer, pois os cerro com força.
— A secretária dele disse que eu deveria tirar os piercings aparentes se
quisesse ir à festa.
Branca passa por mim e abre a porta de vidro do prédio, depois faz a
mesma coisa com o portão de ferro. Quando estamos na rua, ela respira
fundo e fala, ao passar por mim:
— Sabe o significado de “pau no cu”? Se pesquisar no Google, vai
aparecer o nome do teu avô.
Dou uma boa gargalhada, vendo-a caminhar direto para um Fiat 500
branco estacionado ao lado da minha moto, em frente ao nosso prédio.
— Você não me disse que viajaríamos em uma lata de sardinha —
provoco, para terminar de jogar algumas pás de terra no clima bosta que
ficou após falarmos do Isaque.
— Não ofende o poodle! — Depois de abrir o porta-malas, ela
resolve me ajudar e pega a minha mala, deixando a sua, que é maior e
provavelmente pesa uma tonelada, para que eu mesmo leve até o
automóvel. — Ele é o meu bebê. Adoro esse carro, porque cabe em
qualquer vaga.
— É claro que cabe! Ele realmente tem o tamanho de um poodle. E
poodle? É brega para o nome de um carro — alfineto, usando suas exatas
palavras do dia em que nos conhecemos, vingando-me de quando ela
desdenhou do apelido da princesa.
Branca me encara segurando um sorriso, parece ter pegado a
referência direitinho. Quando eu paro ao seu lado, ela está se debruçando
sobre o porta-bagagens, deitando os bancos traseiros do carro para
conseguir um porta-malas de tamanho decente. É impossível não reparar no
bundão que ela tem. Até mesmo usando uma calça solta como essa, seu
rabo enorme fica marcado. A minha mão até coça, sussurrando baixinho
que quer bater na bunda dela. E para não fazer a merda de obedecer, eu
cruzo os braços.
— Você não consegue me olhar sem fazer cara de tarado? — Já abre
a bocona para reclamar quando se levanta e me vê encarando a sua bunda.
— Coloque logo as malas aqui!
— É impossível não reparar em um monumento...
— Essa foi péssima! — Branca cai na risada, dando a volta por mim
e saindo de perto.
Nem eu consigo ficar sério depois dessa cantada de merda, então
solto uma gargalhada. Posiciono as malas e a frasqueira dentro do carro.
Quando fecho o porta-malas, percebo que Branca se sentou no banco do
carona. Ela ainda quer que eu dirija essa humilhação que chama de carro?
Eu não protesto quando dou a volta no automóvel e me sento diante
do volante. Coloco o cinto de segurança e observo o quanto ele até que é
bonitinho por dentro. Combina com a doidinha sentada ao meu lado.
— Ao menos o câmbio é automatizado — resmungo para mim
mesmo, mas Branca certamente ouviu, pois bufa.
Seguro o volante, mas o peso sutil em meu bolso é o lembrete de
que eu preciso dar logo essa coisa a ela. Não que seja algo importante, é
apenas para que a nossa mentira tenha um tom a mais de verdade, pois
certamente o meu avô repararia. Então, qual é a razão de eu me sentir um
molequinho, todo nervoso, quando enfio a mão no bolso da minha calça e
pego a caixinha de veludo preto? Com o coração parecendo um batidão de
funk em meus ouvidos, eu encaro Branca, que está olhando para o lado,
como se sua mente estivesse viajando por alguns mundos distantes. Engulo
em seco.
Qual foi, Harry? Vai ficar tremendo mesmo?, falo dentro da minha
mente. O que nem de longe me faz ficar menos nervoso. Respiro fundo e,
no exato segundo em que eu me preparo para chamar a mandada, ela gira a
cabeça para mim. Seu rosto inteiro demonstra espanto quando me vê de
lado, segurando a caixa com a joia e a encarando. Ela começa chocada, mas
seu semblante vai tomando um contorno de curiosidade, e decidido a
primeiro mostrar, para depois explicar, eu abro a caixa. É incrível como os
olhos dela conseguem brilhar.
— Então, lembra que eu disse à secretária do meu avô que você era
a minha noiva? Minhas amigas disseram para eu te dar um anel. Você
sabe... — Passo a segurar a caixa com uma mão só, e com a outra coço a
cabeça. — Para deixar o nosso noivado mais convincente. Então, comprei
este aqui. Espero que caiba. — Retiro o anel de ouro da caixa. — Elas
disseram que é no anelar direito.
Porra! Isso é meio constrangedor. E a timidez é algo que
compartilhamos, quando, incerta, Branca me dá sua mão. Quando deslizo o
anel por seu dedo, vejo que ela está meio trêmula.
Curioso, investigo cada traço de emoção cruzando o seu semblante.
Ela parece admirada, incapaz de tirar os olhos do presente. Demora até
finalmente retirar sua mão quente de cima da minha, mas, quando o faz, é
apenas para erguer a mão diante do rosto e observar o modelo chuveirinho
em ouro 18 quilates, com algumas pedras no topo. Pedras de... Como é
mesmo o nome que a vendedora me disse? Zircônia!
— É lindo... — Sua voz sai baixa, mas a sua reação é tão séria...
Branca parece realmente ver significado nisso.
— Não foi nada muito caro, mas foi o que consegui comprar. Espero
que goste do presente.
— Eu amei! — Quando vira o rosto para mim, ela me dá um sorriso
largo e maravilhoso, e os olhos mais brilhantes que as pedras do anel fazem
algo diferente se formar dentro do meu peito. Eu... estou me achando o
cara, porra! Eu a deixei feliz. A Branca gostou mesmo disso. — Mas eu não
vou devolver quando tudo acabar. Você me deu, então é meu!
— Sim, é seu, Branquinha!
Ela vira o olhar para o vidro da janela, sem deixar por um só
instante que seu sorriso morra. Sopro o ar com uma risadinha, e quando dou
partida no carro, penso que preciso agradecer às minhas amigas depois. Elas
me mandaram uma mensagem no grupo hoje cedo, dizendo que eu não
poderia ir a esse evento sem dar o anel à Branca.
Enquanto nos afastamos do prédio, Branca conecta seu telefone à
mídia do painel por um cabo, selecionando uma playlist de música pop. E
como se fosse o destino querendo zombar da minha cara, começa a tocar
Veneno, da Anitta.
Sendo completamente retirado da onda boa em que eu estava, meus
pensamentos me sugam e me direcionam até a minha inimiga: o que será
que a desgraçada da Veneno fez com o meu dinheiro? É melhor eu dar um
jeito de tirar essa vadia da cabeça, ou vou ficar puto antes mesmo de
conversar com o meu avô, e prefiro guardar meu ranço apenas para as
humilhações que terei de passar.
Levo quase uma hora para chegar à Barra da Tijuca, um bairro na
Zona Oeste do município do Rio de Janeiro. Durante o caminho, tivemos
alguns breves diálogos sobre o gosto musical de Branca, que, no geral,
envolve pop e músicas de filmes de princesas. Isso me deixou bem
surpreso, pois Branca não parece o tipo de garota que gosta de filmes assim.
E ela não apenas me fez ouvir, como cantou a música da Branca de Neve
inteira. E assim preenchemos o tempo até finalmente entrarmos no
condomínio de mansões.
Após eu me identificar na portaria e ser autorizado a prosseguir,
guio o carro por ruas asfaltadas e largas, repletas de casas que custam
muitos milhares de reais, pertencentes a famosos e anônimos, mas todos
cheios da grana. Demorei anos até descobrir que aqui também mora o pai
do Josiah, um político famoso e com o nome envolvido em muitos
escândalos de corrupção. E embora nossas vidas tenham se cruzado apenas
no exército, meu amigo e eu crescemos aqui, sem saber da existência um do
outro.
É impossível não suar frio quando eu paro diante dos muros altos e
brancos da casa onde cresci. Uma pequena lembrança me domina, é do dia
em que eu saí desses portões imensos apenas com uma mochila nas costas,
lágrimas nos olhos e um coração fatiado.
Há um segurança diante do portão de garagem imenso. Embora o
condomínio já tenha uma boa vigilância, meu avô é paranoico e encheu sua
propriedade de seguranças armados.
— Seu avô é algum famoso? — Branca, que já estava toda largada
no banco do carona, apruma a postura, parecendo assustada quando eu a
olho de esguelha. Ela está com os olhos enormes focados na quantidade de
homens que se amontoa ao redor do carro. Certamente, porque não é um
carro importado, então, acreditam que erramos de endereço. — Para que
tanto segurança?
— Ele é apenas um velho rico que se acha o próprio sol. — Abaixo
o vidro do motorista após falar, e quando um homem alto, forte e de rosto
cumprido chega ao meu lado, abaixando-se para enxergar tudo dentro do
veículo, eu digo: — Sou Harry Alencar, neto do Isaque. Vim para a festa.
Ele levanta as sobrancelhas, sonda meu rosto com interesse e se
afasta. Enquanto os outros ainda seguem nos vigiando de perto, como se
estivéssemos com o carro cheio de explosivos, o que falou comigo diz algo
em seu rádio. Demora alguns minutos até que volte até mim.
— Liberado. E me desculpe pelo inconveniente, senhor Harry.
— Nada! Bom trabalho aí pra você!
Não é culpa dele não saber que sou neto do seu chefe, ele nunca viu
a minha cara por aqui.
— Já vi que este fim de semana será intenso... — Branca leva as
unhas à boca depois de resmungar.
Guio o carro para dentro da propriedade, parando poucos metros
depois do portão. Somos recepcionados por um funcionário moreno, que,
trajando terno e gravata, dedica a nós um sorriso e gesticula para que eu
pare o carro. Antes que ele se aproxime, uma mulher alta, morena e esbelta
vem até o meu lado.
— Olá, Harry! Sou a Edna, tudo bem?
Desço do carro para falar com ela. Seus olhos são alegres, e se
enrugam um pouco conforme ela sorri. Embora me olhe com gentileza, não
passa batido que está checando a minha vestimenta e os furos em meu
rosto.
— É um prazer, Edna!
— Deixe o carro aqui, o Fernando irá conduzi-lo até o
estacionamento do condomínio. Outro funcionário levará as bagagens para
os aposentos do senhor e de sua noiva.
Ela olha por cima do meu ombro após dizer, fazendo seu vestido
azul-escuro subir um pouco pelas coxas magricelas, tentando enxergar a
Branca. Eu não sou bom nessas paradas de ser social quando não estou a
fim. Neste fim de semana, isso não é uma escolha, terei de ser falso e
bajulador como a corja de urubus que rodeia o meu avô.
Acabo refletindo sobre como transmitimos notícias diferentes a
nossas famílias. A Edna se refere à Branca como minha noiva; aos seus
irmãos, Branca contou que somos namorados. Demos a cada lado a versão
que nos seria mais útil, afinal, se Branca fosse apenas minha namorada, não
soaria tão sério para o meu avô. Mas se disséssemos aos seus irmãos que
estamos noivos, eles nos achariam malucos, pelo pouco tempo que fingimos
nos conhecer.
Dou a volta no carro e abro a porta para a Branca, vendo como ela
parece assustada quando eu lhe estendo a mão, tentando ser um cavalheiro
para que a olheira do meu avô transmita esses detalhes a ele. Eu tenho um
leve choque quando Branca pousa sua mão sobre a minha, notando quão
frio ela é capaz de suar quando está nervosa.
Minha noiva de mentira olha para tudo, do gramado amplo à nossa
frente à mansão gigante em frente a ele. Com a mão em seu quadril, eu a
guio até a funcionária do meu avô.
— Olá, senhorita!
— Branca! — anuncia enquanto estende a mão para Edna, que, por
sinal, repara logo no anel de compromisso.
Após tocar a mão de Branca em um cumprimento, Edna pega um
celular que eu nem havia notado. Parece desbloquear a tela, depois, dando
um largo sorriso, olha para a Branca e pergunta:
— Branca de quê?
— Han... Branca Mesquita.
— Ah, que sobrenome lindo! — elogia enquanto digita em seu
telefone. Provavelmente meu avô vai investigar a minha vizinha. Espero
que ela não tenha nada de errado com o seu nome. — Eu não sei se o seu
noivo mencionou, mas eu sou a Edna, secretária particular do senhor
Isaque. Fiquei encarregada de acomodá-los pessoalmente, para que tenham
todo o conforto durante a sua estadia.
Como se estivesse assustada até demais com tudo isso, Branca se
enfia embaixo do meu braço, buscando, ao que parece, algum tipo de
segurança. E eu gosto mais dessa merda do que deveria, de que me abrace
porque está insegura.
— Obrigado, Edna — falo, sorrindo sem mostrar os dentes. — E o
meu avô?
— Ele irá recebê-lo no momento apropriado. Avisarei quando o
puder fazer. — Por que imaginei algo diferente disso? Que fosse se
importar de vir me receber? Ele é um narcisista! Não mudou nada... —
Sigam-me, por favor.
Edna começa a andar. Eu conheço tudo aqui, então, quando ela
começa a apresentar o local, é mais para a Branca do que para mim. A
mansão de 21 quartos, branca, em estilo clássico, foi minha casa por quase
18 anos. Suas janelas de topo ovalar, imensas e com vidro preto, viram
minhas artes de menino. Eu já me pendurei nas imensas colunas gregas da
fachada, derrubei as estátuas de mármore ao lado da porta principal e as
quebrei incontáveis vezes, fazendo com que meu avô decidisse colocar as
próximas presas ao chão. E eu já fiz xixi e joguei lama na fonte gigantesca
que fica no meio do gramado frontal. Eu não preciso que Edna aponte para
a casa anexa para visitantes em um dos lados do gramado, ou que dê a volta
conosco pela lateral da casa, indo até os fundos, como está fazendo, só para
mostrar a piscina gigantesca, com bar molhado e um salão coberto para
eventos do outro lado dela.
A garota de mãos dadas comigo observa tudo embasbacada,
reparando nos bustos de estátuas pelos corredores de pé direto alto de
dentro da casa, andando como se fosse pecado pisar na tapeçaria fina da
sala principal. Empregados circulam de um lado para o outro, preparando
tudo para as festividades, sequer reparando em nós três.
A sala é ampla, com móveis de madeira de cerejeira e estofados de
tecidos finos. Só as cortinas imensas pagariam um carro popular. E cada
canto deste lugar é decorado com a inspeção do meu avô, que venera todos
os tijolos desta construção, que ama este lugar mais do que é capaz de amar
a mim.
— O senhor Isaque pediu que os acomodasse na casa principal, em
seu antigo quarto, Harry. — Sua voz se torna mais doce quando diz, e
quando para na base das escadarias imensas, largas e com um tapete
vermelho descendo no meio dos degraus claros, parece saber que suas
palavras atingiram a minha alma. — Acho que sabe o caminho, não é?
Agora sou em quem está suando frio. Eu jurei que ele me colocaria
na casa anexa, a de convidados. Meu antigo quarto? Qual é a pegadinha? Eu
nem consigo andar, como se cada mecanismo que faz meu cérebro
funcionar tivesse parado, esquecido como se mover.
— Ei?! — Branca alisa com carinho o dorso da mão que está
entrelaçada com a dela. — Tudo bem?
— Sim. Bora nessa...
Apesar de todo o caos que Branca trouxe com o seu surgimento em
minha vida, de uma maneira torta, eu gosto de tê-la aqui neste momento.
Como se... como se ela me trouxesse algum tipo de conforto.
Eu a puxo para subir as escadarias comigo, mas sei que minha voz
deixou claro que estou nervoso, pois saiu meio embargada, parecendo que
eu precisei retirar uma pedra da garganta para conseguir falar.
Atravessar o largo corredor é quase como entrar em um túnel do
tempo. Eu posso me ver correndo feito o moleque atentado que eu era, e
quando paro diante da porta de madeira pesada do lugar que, por muito
tempo, foi meu porto seguro, sinto um aperto no peito.
— Um funcionário trará a bagagem. Caso precise de serviço de
quarto, é só usar o telefone da mesa de cabeceira e apertar o zero. E
precisando de algo, é só mandar que um dos funcionários me chame — com
as mãos entrelaçadas na frente do corpo, Edna diz. E voltando-se para
Branca, continua: — Tomei a liberdade de colocar um cartão com os
horários das festividades ao lado do telefone. Espero que tenham uma boa
estadia. Ajudo em algo mais?
Quando nós dois negamos, Edna se despede e se afasta, finalmente
nos deixando a sós. Antes de entrar em meu quarto, eu prendo a respiração.
Eu nem olho para a Branca, apenas giro a maçaneta...
“Em primeiro lugar, eu vou dizer tudo que
está na minha cabeça. Estou irritado e cansado.”
Believer, Imagine Dragons.

Deixo Branca para trás quando tomo coragem de adentrar o


cômodo. Forcei tanto a minha mente a esquecer este lugar que eu realmente
sentia que ele não existia mais. É tão contraditório... Isaque me escorraçou a
vida inteira, nunca mais quis saber de mim, mas manteve meu quarto
intocado. As paredes seguem oscilando entre cinza e azul. Os pôsteres das
minhas bandas favoritas continuam colados de maneira desordenada nas
paredes. Até mesmo minha coleção de CDs nas duas estantes pequenas ao
lado da cama king com cabeceira de couro segue igualzinha. Daqui, eu
consigo ver que nem a ordem deles foi alterada.
Meus olhos estão marejados, porque, como se tivesse um imã no
painel da televisão, vou direto aos porta-retratos sobre a prateleira abaixo
dela. Tem foto da minha formatura no Ensino Médio, fotos minhas quando
era bebê, no colo da minha falecida avó, e outras da minha mãe. E, então,
fotos da minha pessoa favorita, a pessoa que se foi por culpa minha. Pego o
porta-retrato preto. Henrique está sorrindo ao meu lado, aos 12 anos,
comemorando porque conseguiu fisgar um pirarucu.
Meu irmão mais velho.
Meu melhor amigo.
A minha outra metade, que sempre me amou e me viu como eu sou,
que jamais me julgou, mesmo que tivesse uma personalidade diferente da
minha, uma muito mais calma. O rosto redondo, o corpo baixinho e
rechonchudo... tudo nesta foto faz a saudade assassina tomar meu coração e
o tornar uma centelha ensanguentada, que, mesmo minúscula, dói de um
jeito que poderia me matar. Levo minha mão ao colar, seguro o anel dele
em meu dedo, e com uma lágrima escorrendo pela bochecha, sussurro um
“sinto muito”.
O cheiro de dias em um campo florido toma espaço, a mão quente
reconforta meu antebraço onde ela o toca, e com voz mansa, parecendo
apreensiva, pergunta:
— Ele é a pessoa que você perdeu? É o dono da aliança em seu
cordão?
Eu não quero desmoronar agora. Eu não quero me lembrar de tudo.
Mas quando olho por cima do ombro para essa garota linda, sinto vontade
de chorar, de deixar sair, e mesmo que eu tente, as palavras não saem. Elas
cavam, criam buracos nas minhas entranhas e se recusam a sair. Eu não
tenho opção que não seja fazer um resumo superficial enquanto seco o
rosto:
— É o meu irmão mais velho, Henrique. Ele se foi há alguns anos, e
este é o anel dele. Ele nunca o tirava do dedo. — Beijo o anel e o recoloco
dentro da blusa. — Mas não quero falar sobre isso, Branca. — Eu não faço
a menor ideia do porquê busco o seu abraço, do porquê a puxo para mim
como se fosse minha, como se fosse seguro ter o seu conforto. E mesmo
que Branca envolva seus braços ao redor da minha cintura, que pareça triste
ao deitar o rosto em meu peito, eu ainda ouço uma voz quase sobrenatural
dentro da minha mente. Ela sussurra que essa mulher é furada. Mas desde
quando eu tenho medo de uma boa confusão? — Parece clichê de filme de
mulherzinha, mas só tem uma cama, e eu não estou a fim de dormir no
chão. Vai rolar uma conchinha?
Quando eu mudo de assunto, tentando fazer graça, para fugir da dor,
Branca olha para cima, aperta os lábios e me sonda. Parece querer ver
coisas demais em meu rosto, mas eu me blindo. Eu não quero desmoronar
na sua frente, e se eu falar, vou arruinar todas as chances de conseguir a
grana com o meu avô, pois vou me afundar na cama e não vou querer sair
até que minhas lágrimas formem poças no colchão.
Eu tento focar nela, nos seus olhos castanhos, nos cílios, mesmo
naturais, grandes e escuros. Sei que o nosso olhar se prende um ao outro por
poucos segundos, mas a sensação é que durou uma eternidade, pois a
respiração presa e o coração batendo mais forte não cessam quando somos
interrompidos por um homem baixinho, de cabeça branca e uniforme preto.
— Com licença... — pede. E mesmo com a sua intromissão, eu
ainda demoro a me afastar de Branca. E mesmo quando ela sai dos meus
braços e dá um passo para trás, ainda me olha daquele jeito intenso, quase
fazendo uma radiografia e vendo as minhas entranhas. — Eu vim trazer as
bagagens.
Após o funcionário ir embora, Branca nem perde tempo, largando os
sapatos pelo chão acarpetado. Caminha até as malas e começa a mexer em
sua bagagem. Eu deixo o blazer sobre o encosto da cadeira de couro preto
da minha escrivaninha, e quase consigo me ver jovem, estudando por horas
a fio debruçado sobre a bancada. Eu era o melhor aluno da minha turma,
minhas notas sempre foram impecáveis. Mas isso nunca bastou. Eu aprendi
inglês, espanhol, libras e francês. Sei tocar piano, flauta, e até fiz equitação.
Para alguns pais, isso bastaria para que o filho fosse admirado. Hoje,
quando eu olho para aquele Harry, vejo que todo o esforço foi em vão. Meu
avô jamais me fez um elogio por tudo o que eu fui capaz de aprender. Era o
meu jeito que o incomodava. Sempre havia algo para criticar, para me fazer
imperfeito. Quando a minha adolescência chegou, eu chutei o balde. Eu me
enchi de piercings e me aproximei da banda podre de moleques da escola, e
mesmo que eu quisesse ser o pior da turma, as minhas notas ainda saíam na
média. E o preço acabou sendo a obrigação de eu entrar para o exército.
Mas eu já estava estragado, rebelde, com ódio dele. Aproveitei a
oportunidade e dei meu golpe derradeiro ao sair do exército. Eu só não fazia
ideia de que aquele momento de liberdade também se misturaria à muita
dor.
Quando eu me afasto da cadeira, tento me distanciar dos
pensamentos, embora sinta que eles planejam me sugar por todo este fim de
semana. Olho para a minha cama de casal com um conjunto elegante e claro
de roupa de cama. Eu me sento na beirada e até me choco com a maciez do
colchão. Planejei apenas tirar os sapatos e me deitar. Mas nem tenho tempo
de tirar meu calçado em paz, pois Branca me obriga a levantar e desfazer a
mala, para que as roupas não fiquem amassadas.
Gastamos um bom tempo nessa tarefa, e quando eu termino de
organizar as minhas roupas em meu antigo guarda-roupa, vou até a mesa de
cabeceira onde tem o telefone. De soslaio, vejo a maluca perambulando
para checar se eu guardei meus trajes direito. Reviro os olhos e pego o
pequeno cartão com os horários das festividades, e quando percebo que o
coquetel de “boas-vindas” está marcado para as seis da tarde, checo meu
relógio de pulso. São cinco em ponto, então, ainda tenho meia hora para
tirar um cochilo.
— Eu tinha esquecido que meu avô dorme cedo. — Bocejo,
jogando-me de costas sobre a cama. — O tal coquetel começa em uma hora,
acredita?
— O quê? — Branca quase grita, o que me faz deitar de lado e
abraçar um travesseiro para a encarar. — Não vai dar tempo! Eu preciso
tomar um banho e trocar o penteado.
— Vai trocar para quê? Está linda assim.
— Droga! — pragueja, colocando a mão no cabelo e desfazendo o
coque. — Eu não vou conseguir me arrumar em uma hora.
Ela está parecendo as meninas, Ana, Isa e Maria. Elas sempre dão
esses showzinhos e precisam de horas para se aprontar para sairmos.
Geralmente, eu fico na sala da casa delas com os garotos, jogando
videogame e papeando, enquanto esperamos que troquem de roupa umas
cinco vezes ou mais, até, por fim, ficarem prontas. Como eu já estou
acostumado com isso, tento tirar um cochilo. Ouço Branca suspirar dentro
do banheiro por ter uma banheira para poder relaxar mais tarde.
Viro de um lado para o outro algumas vezes, ouvindo o barulho do
chuveiro. Quando percebo que o sono não é o meu maior aliado neste
momento, resolvo mexer no celular.
Abro o grupo Tribo no WhatsApp, tem bastante mensagem. Eles
falam pra caralho, e hoje os assuntos são sobre os enjoos da Maria, sobre a
Isabela querer cortar o cabelo, sobre as dicas da Ana para evitar estrias na
barriga... Ainda tem o Josiah falando que o Bill precisa parar de fumar, e,
por fim, tem algumas mensagens das garotas para mim:
Ana: “Harry, não se esqueça de contar o que a sua namorada
achou do anel.”
Maria: “Ele disse que a Branca não é sua namoradinha.”
Bill: “Harry está em negação.”
Nate: “Que anel????”
Isa: “Ah, a gente falou para o Harry comprar um anel para a
namorada dele. Assim, ajudaria a passar uma melhor impressão para o avô
dele, para o velho acreditar que estão noivos.”
Maria: “Mas... embora quiséssemos que o anel deixasse as coisas
mais convincentes para o avô dele, a razão maior era outra. Queríamos
que ele desse um anel para a menina ficar apaixonada e o namoro se
tornar real.”
Então, era isso? A Branca até que gostou do presente, mas eu acho
que minhas amigas são muito emocionadas. Acabamos de nos conhecer, o
máximo que poderia acontecer é ficarmos a fim um do outro. Eu já estou no
meio do caminho, mas a louca que acaba de sair do banheiro, com uma
toalha branca na cabeça e outra envolvendo o corpo, ainda é uma imagem
nublada para mim. Eu não sei o que ela realmente quer. A minha
imaginação suja pinta imagens dela sem nada e gemendo embaixo de mim.
Porra... essa bunda enorme que ela tem mexe comigo, até de toalha fica
muito marcada.
— Vai logo tomar o seu banho! E não demora, pois vou secar o meu
cabelo.
Levanto as sobrancelhas. E não estou obedecendo porque ela
mandou, apenas porque só falta meia hora para a gente ir lá encontrar o cara
perfeito para um filme chamado “O diabo veste terno”.

No cartão dizia que o coquetel seria no salão dos fundos, onde meu
avô sempre gostou de reunir os amigos ricaços para beber, fumar charuto e
contar vantagens sobre a sua vida.
Foi um saco ter de esperar a Branca trocar de roupa três vezes, para,
no fim, escolher o primeiro vestido azul que colocou. É lindo, tem uma
parada aberta em um dos lados da perna, mas só mostra a coxa não tatuada.
Eu gostei, é de alças e tem um decote maneiro que não exibe muito os seios.
Depois que se maquiou e escovou os cabelos, parece ter ficado mais segura
de que está bonita, pois subiu nos saltos finos prateados e me deu a mão,
sem qualquer sombra de insegurança nos olhos. E meu pau... ficou duro, é
claro. Eu não sei a quem ando querendo enganar, a parada é que estou
mesmo a fim dela. Que quero a foder, e beijar e morder. Eu só não posso me
concentrar nisso agora.
Um funcionário nos guia até a entrada do salão, como se eu não
soubesse de cor o número de passos necessários para chegar aqui. Assim
que entramos, noto algumas dezenas de pessoas espalhadas pelo local.
Passeio os olhos pelos presentes, e até o momento não reconheci ninguém.
Pensei que os convidados fossem vir mais elegantes, mas acho que meu avô
se cansou de tanta pompa e festas com trajes de gala. Embora haja de idosos
a mais jovens pela sala, tomando champanhe caro e comendo canapés, suas
roupas são como as minhas, mais casuais, com apenas uma peça mais
clássica, como um blazer. As mulheres é que estão um pouco mais
arrumadas.
— Cadê ele? — Branca se aproxima do meu ouvido para perguntar.
É meio irritante o modo como eu me arrepio sempre que sinto seu
hálito próximo. Ela está com uma mão entrelaçada à minha; com a outra,
segura meu antebraço.
— Eu ainda não o vi — respondo baixinho, olhando ao redor da sala
envidraçada e de paredes claras. As mesas de madeira robusta no meio do
salão ostentam taças de champanhe sobre bandejas de vidro, aperitivos
variados e flores brancas. Tem uma mesa específica em um dos cantos, com
charutos e cigarros à vontade, afinal, Isaque ama fazer propaganda da
própria marca. — Eu não quero que fume na frente dele — falo para a
mandada. — Ele adora julgar mulheres que fumam — aviso.
— Sério? O cara vende cigarros e pensa assim? — Sua voz é jocosa,
e ela bate os cílios enormes e falsos que colou para vir aqui. Mas eu
agradeço aos céus por Branca não insistir no assunto. — Pode deixar, gato.
Nada de cigarros aqui. Mas vou fumar no quarto, não quero nem saber. Não
vou conseguir ficar dois dias sem contaminar os meus pulmões.
— Cada um tenta se prejudicar da maneira que encontra... —
reclamo, mas quando ela bufa, solto sua mão e deslizo a minha pela lateral
de seu quadril. Acho que a minha raiva dela tem sumido, o que é bom.
Posso me concentrar em só dar um de atacante, pois quero muito saber o
gosto dessa boca perfeita. — Ok, pode fumar no quarto. Eu ainda não disse
o quanto você está bonita, sabia?
Branca me olha por cima dos olhos e umedece os lábios, como se
fosse possível deixá-los ainda mais brilhantes com saliva. Ela se solta e
desliza para a minha frente. Leva suas mãos delicadas para as lapelas do
meu blazer branco, depois as desce para dentro, tocando minha camiseta
preta e alisando o meu peito. Sorri de maneira sedutora, exalando essa coisa
sensual que parece estar entranhada em sua alma.
— Tentando dar em cima de mim, Harryzinho? — provoca, depois
lambe os lábios novamente. — Você disse que estava escrito na minha cara
que eu vou foder qualquer homem que se envolver comigo. — Pelo visto,
Branca nunca vai esquecer que eu disse essa merda a ela. Mesmo de salto,
essa safada ainda precisa ficar na ponta dos pés para alcançar a minha boca.
Olha nos meus olhos enquanto me deixa de pau duro bem no meio da sala.
Chutando o balde, seduzido por seu cheiro, desço as mãos por suas costas e
as pouso em sua lombar, pouco antes do relevo de seu rabão bonito. A
minha coluna arrepia quando ela me dá um selinho breve, envolvendo as
mãos no meu rosto, deixando um rastro com seu cheiro sobre ele. — Ficou
excitado ao me ver foder com o casal, espionando enquanto eu beijava
aquela gatinha na academia, e agora quer o mesmo para você, não é? Mas
não vai ter.
— Eu só disse que você está bonita. — Entrando na sua onda, eu a
puxo com um tranco para mim, deixando que sinta a merda que está
causando dentro da minha calça no meio de um evento importante, sarrando
meu pau bem duro em sua barriga. Raspo meu nariz em sua bochecha, e
antes de chegar ao seu ouvido, mordo de maneira bem demorada a pele
gostosa de seu pescoço. — Eu não posso elogiar a minha noiva? —
provoco, apertando com força o seu quadril, querendo que estivéssemos
sozinhos agora, porque seria muito difícil não mergulhar com tudo nessa
boca abusada dela. — Faça isso de me alisar quando estivermos sozinhos,
então eu te mostro que aquele casal e aquela garota não poderiam te fazer
gozar gritando como eu posso.
Branca arfa, e quando eu a afasto de mim, está com os olhos
arregalados e engolindo em seco. Eu a fito de cima, com um sorriso torto,
deixando bem escancarado que ela não está no controle como pensa. Abro a
boca para provocá-la, mas antes que consiga, uma presença baixinha e loira
toma totalmente a direção dos meus olhos.
— Ah! — Ela dá alguns pulinhos, parada um pouco atrás de Branca.
Os babados no decote de seu macacão azul-escuro chegam a balançar com
sua animação. — Harry?! Eu não acredito!
Meu coração se alegra quando dou a volta em Branca e caminho até
Aurora, quando a levanto do chão e a rodo, animado. Seu cheiro doce me
lembra os velhos tempos. Leve como uma folha de papel, eu não tenho
dificuldade para a rodar.
— Tampinha?! Que saudade! — Quando eu a coloco no chão,
sorrindo, aproveito para implicar com ela: — Cresceu um pouquinho, né?
— E você não mudou nadinha, né? Continua com essas piadas
baratas! — Dá um tapinha em meu braço. — Eu pensei que nunca mais
fosse vê-lo, cara!
— Você me segue no Instagram, não manda mensagem porque não
quer. — Faço bico, fingindo analisar as unhas e estar magoado.
Aurora é minha amiga de infância. Filha do melhor amigo do meu
avô, cresceu correndo pelos corredores desta casa comigo. Já aprontamos
muito, demos alguns beijos escondidos nos cantos deste lugar, e foi com ela
que eu transei pela primeira vez, mas nada que tenha sido muito sério. Ela
foi estudar Medicina, depois se dedicou a morar fora do país, e nunca mais
nos falamos.
— Eu mandei! Várias vezes, até! E você nunca me respondeu... —
Cruza os braços e faz um bico na boca minúscula e rosada.
Tudo nela é pequeno, os olhos castanhos, o nariz, os seios... toda
minúscula. Reflito sobre o que ela disse. Eu respondo todo mundo no
Instagram, principalmente se for mulher. Só se a mensagem dela foi parar
nas solicitações de mensagem. Quando penso em dizer essa hipótese a ela,
ouço os passos em meu encalço.
— Não vai me apresentar à sua amiga?
A voz de Branca surge feito uma cortina gélida capaz de provocar
uma queimadura de gelo em minha pele. A tensão que sinto por achar que
ela está enciumada é bizarra. Branca não é minha mina de verdade, mas
quando para ao meu lado, eu estremeço, com medo de sua reação, como se
ela fosse. Embora Branca sorria para Aurora, eu percebo que está puta. Seu
olhar é vidrado e cortante, mas o sorriso falso e a postura aprumada deixam
claro que ela não vai demonstrar.
— Essa é a Aurora, uma amiga de longa data. — Para evitar
problemas com essa maluca logo agora, que eu preciso dela, dou alguns
passos para trás e paro ao seu lado. Deslizo a mão para segurar a lateral de
seu quadril. Ela está tensa, mas não passa batido que parece mais aliviada
quando eu volto a minha atenção para ela. — E, Aurora, esta é minha noiva,
Branca.
As sobrancelhas da minha amiga se elevam, mas ela sorri de um
jeito gentil para a Branca e estende a mão.
— Noiva?! Como o mundo não foi destruído em chuva? Eu nunca
imaginei que viveria para te ver noivo — brinca, voltando a atenção para a
minha vizinha. — Prazer, Branca! Uau, você é muito bonita! — elogia,
alargando mais o sorriso.
— O prazer é todo meu, linda! — Se para me irritar ou não, Branca
vai até Aurora e a puxa pelos ombros gentilmente, dando um beijinho
demorado em cada uma de suas bochechas. Aurora nunca usa maquiagem,
por isso, quando Branca se afasta, ela está vermelha como molho de tomate.
— Amei o colar... — Descarada, Branca segura o pingente em formato de
gota em ouro amarelo no pescoço pálido da minha amiga. Eu quase ouço o
barulho do sangue borbulhando na porra das minhas veias. Ela está
querendo me provocar. Ficou com ciúmes e quer revidar. Caralho! Essa
mulher é um campo-minado. Qualquer passo em falso, ela está assim,
querendo me explodir. — Depois me conta onde comprou.
— Claro! Se quiser, tenho um igualzinho em ouro branco. Até
combinaria com o seu nome. — Aurora dá uma risadinha sem jeito.
Puxo a mandada com tudo para colar suas costas em meu peito.
Aurora é fofa, mas já pegou mulher para um caralho. Eu não quero a
Branca perto dela. Não por ciúmes. Ou sei lá... Talvez seja, droga! Mas eu
não quero essas duas juntas. Por isso, chego bem perto do ouvido de Branca
e sussurro:
— Nem pense em dar em cima dela!
— Meu tio foi quem disse que você estava aqui — a loira explica, e
sem fazer ideia de que me interrompe, aponta o dedo para um canto isolado
do salão, onde o homem vestindo um terno caro e tão preto quanto a noite
fuma um charuto e me encara, rodeado de pessoas, mas parecendo nem as
ouvir.
Meu corpo inteiro se arrepia, e minha alma parece encolher quando
ele desvia dos amigos sem dizer uma palavra e, apoiando-se em uma
bengala escura, começa a caminhar em uma marcha lenta. É como se o
tempo parasse enquanto observo o próprio diabo vindo em minha direção.
Sua pele negra clara parece mais enrugada do que da última vez que
eu o vi. Agora, ele definitivamente assumiu o branco dos cabelos, pois os
pintava uma vez por semana, para deixá-los sempre preto. E parece que
diminuiu de tamanho, pois era alto e sempre se sentiu forte como um leão,
como ele mesmo dizia. Mas os efeitos da gravidade chegam para leões
também.
— É ele? — Branca sussurra, e toda a aura de ciúmes e provocação
parece se desfazer como poeira. Agora, ela respira em um ritmo mais
rápido.
— Sim.
— Ora, ora... — A voz rouca por anos de fumo desmedido nos
brinda. Ou seria... amaldiçoa? — Dizem que um bom filho a casa torna —
começa, com seu sorriso de raposa velha. — Eu nunca achei que isso se
aplicaria a você.
Tenho de olhar para o lado para conter a raiva. Eu sou um pouco
reativo, e talvez eu seja assim porque vivi anos ouvindo coisas desse tipo.
Engulo a amargura secando a minha garganta, e me lembrando de que
passar por isso é importante para o meu sonho, eu me preparo para falar,
enquanto Branca sai da minha frente e se enfia embaixo do meu braço
direito. Acho que essa é sua marca registrada de quando está insegura.
— Oi, vô! — cumprimento. — Como o senhor está?
— Forte como um leão! — Dá seu sorriso, que mora a léguas de
distância dos olhos. O broche na lapela de seu paletó, com o símbolo de um
leão, até brilha sob a luz do lustre caríssimo acima de nossas cabeças, um
deboche velado do destino. — Pensei que não fosse viver para ver uma
mulher aceitar ter uma vida ao seu lado. — Tosse após falar, pegando um
lenço no bolso do paletó e limpando a boca. Ele guarda rapidamente o
pedaço de tecido no bolso da calça e guia seus olhos para Branca. — Então,
a senhorita é a noiva do meu neto? — Ele a sonda desde os cabelos até as
unhas dos pés. Não é nada sexual, é mais como uma inspeção. Branca sorri
para ele enquanto sai de baixo do meu braço para apenas ficar ao meu lado,
mas eu já conheço o seu olhar. É meio assassino, como se detestasse o meu
avô. Isso já a faz ganhar alguns pontos comigo. — Minha família tem fama
de ter bom gosto para mulheres. Harry puxou a esse lado, pelo visto. Ao
menos em algo não me deu desgosto.
Branca está com uma das mãos ao redor do meu antebraço, e mesmo
que eu a tenha visto roendo as unhas no quarto, ainda sobrou alguma coisa
para ela tentar enfiar na minha carne. Mas quando não consegue, por causa
do blazer, ela me aperta, a ponto de doer. Branca está mais do que irritada,
está puta para caralho. Mas nada perto do que eu sinto sendo alvo desse
comportamento passivo-agressivo uma vida inteira.
Sempre tive medo de chegar um momento em que eu aceitasse que
merecia isso. Que merecia sofrer, não receber amor, que o errado era eu.
Mas acho que consegui sair antes.
— Esta é a Branca. — Tento controlar a voz trêmula ao dizer. —
Como o senhor mesmo disse, minha noiva.
— É um prazer conhecê-lo, senhor...
— Isaque Alencar, querida. É uma honra conhecê-la e recebê-la em
minha família! — Meu avô estende a mão para ela. Quando Branca pousa a
dela sobre a do velho, ele deixa um beijo suave no dorso. Meu avô ama
fazer isso com as mulheres, elas ficam felizes. Mas embora Branca esteja
sorrindo, afasta a mão rápido demais para ter se encantado com os bons
modos dele. — Seja lá o que temos para conversar, garoto... — Meu avô
olha para mim agora. — Trataremos no domingo. Quero aproveitar a minha
festa sem maiores problemas. — Tenho de trincar os dentes por ele arrumar
um jeito de me prender nesta porra até o último dia. — Eu gostaria de
conversar com a senhorita, Branca. Vamos dar uma volta?
Ele ameniza o tom da voz para falar com ela, muito diferente da
maneira rude com que fala comigo, como se eu fosse um pouco de sujeira
que ele facilmente varre de seu paletó.
Branca me olha por cima do ombro, meio incerta, esperando que eu
lhe diga o que fazer. Eu apenas meneio a cabeça, concordando que ela
obedeça. Alguns segundos e respirações profundas depois, eu a observo
caminhar para longe, de braço dado com o meu avô.
Deixando Aurora para trás, vou até uma das mesas de buffet e pego
uma taça de champanhe. Enquanto bebo, as perguntas rodam na minha
mente.
E se ele estiver desconfiado e tentar encontrar alguma incoerência
nela?
E se a Branca ainda estiver brava comigo e tentar me foder de
propósito?
Respostas, eu não tenho, mas bebida de graça é o que não falta.
Pouso minha taça já vazia sobre a mesa e pego outra.
“Serei a atriz estrelando nos seus pesadelos”.
Look What You Made Me Do - Taylor Swift.

Meu coração está acelerado. Eu não imaginei que teria de lidar


sozinha com o avô do Harry. Embora cada pedaço do meu corpo se
encontre pegando fogo pelo flerte absurdo que tivemos no salão e minha
pele ainda esteja ardendo pela raiva que aquela tal de Aurora me causou,
ironicamente, eu me sinto nadando em um lago congelado enquanto ando
de braços dados com este homem maldoso cheirando a perfume caro e
charuto. Sei que esta é a chance perfeita de foder o Harry, mas as palavras
de Daniel voltam com tudo, e feito uma entidade fantasmagórica, sussurram
em meus ouvidos:
“Impressione o avô dele, faça com que empreste o dinheiro ao
Harry. Ele vai ser grato a você.”
Estou nervosa, mas me recuso a demonstrar insegurança diante
deste homem. Eu odiei ver o modo como ele tratou o Harry. E mesmo que
meu lado doce esteja completamente encantado com o babaca que arruinou
a minha vida, que me elogiou mais de uma vez e me deu um anel lindo,
capaz de me causar borboletas na barriga, meu lado vingativo o odeia o
suficiente para não querer outro vilão em sua vida. Não há ninguém mais
digno de destruir o coração do Harry do que eu.
Ver este velho metido o tratando mal me fez criar planos mentais de
sequestrar os dados das suas empresas, corromper todo o sistema e não
devolver nem que me ofereça uma fortuna.
— Sabe, o Harry foi um menino muito complicado... — entre
algumas paradas para tossir, Isaque diz, caminhando comigo até um
aglomerado de sofás de couro em um dos cantos do enorme salão. Por onde
passamos, os convidados tentam dar um jeito de acenar ou falar com ele,
que os ignora como se fossem um inseto insignificante. Com certeza ele
pensa como eu, que são um bando de interesseiros, feito formigas em volta
de um punhado de açúcar. — Harry já contou a você sobre sua história de
vida?
Merda! Eu sei pouco sobre isso. Apesar de ter descoberto que sua
mãe já faleceu e que seu pai é um velejador famoso por meio do meu
cyberstalking[8], eu não consegui informações relevantes sobre a sua
infância. Engulo o temor que toma como teias de aranha, impedindo minhas
cordas vocais de funcionarem, para dizer:
— Algumas coisas... — Dou um chute no escuro, mas se ele quiser
que eu diga quais, falarei do irmão, da mãe e do pai. Acho que isso traz
mais profundidade à minha mentira.
— Sente-se, querida!
O velho demora a cair sentado sobre uma das poltronas, enquanto eu
me posiciono no assento em frente. Cruzo as pernas e o ouço começar a
falar:
— Jaime, o pai do Harry, é um espírito livre. Desde que minha
falecida nora engravidou do Henrique, ele deixou às claras a sua total
inaptidão para tarefas paternais. — Embora eu deteste ouvir monólogos
chatos ou histórias longas e entediantes de pessoas mais velhas, esta é uma
que eu pagaria para ouvir. Tudo sobre o Harry me interessa. — Eu o
obriguei a se casar com a mãe do Harry. Eu não criei aquele cara para fugir
de suas obrigações. Então, embora nunca tenha tratado a Aila como sua
esposa, ele a engravidou novamente em um dos raros momentos que veio
para casa. Estava sempre pelo mundo metido em seu veleiro.
“Fui eu quem apoiou a criação dos meus netos, quem os vestiu,
calçou e deu educação. Eu me sentia velho, cansado, e ainda tinha o fardo
de ser pai de filhos que não fui eu quem gerou. Mas eu sempre fui homem,
honrei meus deveres. Aila não tinha família, veio de outro país no veleiro
do desajuizado do Jaime. Eu lhe dei a casa onde hoje hospedo meus
convidados. Cuidei dela como se fosse minha filha. E para os meus netos,
eu me dediquei a dar a melhor educação que pude. Enquanto Henrique se
mostrava um garoto dócil, Harry sempre foi muito carente, rebelde e
inconveniente. Era impossível não o associar ao pai. Parecia ter herdado a
personalidade daquele inconsequente. Quando a mãe morreu de câncer,
enquanto Henrique se tornava mais independente, Harry ia pela contramão,
tornando-se ainda mais necessitado de atenção.
Sei que fui duro, que não tive a paciência necessária com nenhum
dos dois, mas eu não imaginava que ele usaria a minha falta de tato para as
suas questões emocionais como desculpa para se tornar um baderneiro, para
ser a cópia ferrada do pai. Era como se eu estivesse revivendo a
adolescência do Jaime, parecia um completo dèjá-vu.”
Enquanto ele pausa sua fala para tossir, pegando no bolso da calça
um pedaço de pano, eu tento entender por que está me contando tudo isso.
Jurei que Isaque pretendia saber sobre a minha relação com seu neto, sobre
quem eu sou, o que faço da vida, se não sou apenas uma interesseira
querendo fisgar o herdeiro de uma das maiores fortunas do país. Mas ele
está apenas revirando destroços do passado.
Eu sei muito sobre esse homem, pois pesquisei sobre ele, que me
surpreende ao retirar o tecido dos lábios. A cor brilhando e maculando o
lenço me deixa chocada.
É sangue.
Vivo.
Vermelho.
Assustador.
— Não se apavore, mocinha. Eu tenho oitenta anos, ou seja, já vivi
muito. — Ele dá um sorriso amarelo, manchado pelo líquido que anuncia
que realmente está perto de ver a luz no fim do túnel. — Meu prazo de
validade está quase vencendo.
Embora esta seja uma mansão linda, decorada com requinte e até
delicadeza, a energia vibrando por cada parede é cáustica. O clima é
horrível. Fique tempo demais vivendo aqui e será realmente corroído.
Respirando fundo, resolvo perguntar:
— Eu quero saber mais sobre o que está me contando, mas, antes, o
que o senhor tem? O Harry já sabe?
— Tenho câncer. Surgiu em meu pulmão direito, e agora já se
espalhou para o fígado. Eu não posso nem olhar para o céu e reclamar. Eu
pedi por isso, e, talvez, seja até o carma de anos vendendo veneno
embalado para outras pessoas fumarem. Mas eu não me importo. Com o
tempo, a solidão faz a vida perder o sentido. Eu já fiz tudo o que queria.
Tive uma esposa linda e perfeita, que amou o filho, os netos, a nora e a mim
mais do que tudo antes de partir. Triunfei, saí de uma família pobre e me
inseri com honra na alta sociedade, tornei meu nome respeitado e dei uma
vida confortável aos meus familiares. — Seu olhar é sério, e embora ele
seja o tipo de pessoa que exala narcisismo, ainda é interessante ver o quanto
não titubeia para falar. Isaque não pensa ou planeja o que dizer, apenas
parece ter as palavras na ponta da língua. — Eu dei o meu sangue para
colocar cada tijolo do meu império no lugar. E, um dia, isto aqui vai parar
nas mãos do meu filho com síndrome de Peter Pan. Ou nas do Harry. E
agora chegamos ao ponto que importa nesta conversa, querida...
“O Harry sempre quis chamar minha atenção. Ele me mostrava
todos os desenhos que fazia, entrava em mil e uma atividades, falava sem
parar. Mas eu estava velho e cansado para ter paciência com uma criança,
afinal, eu ainda tinha os meus negócios para cuidar. Com o tempo, ele
deixou de tentar me agradar, e acho que foi para o extremo oposto. Encheu-
se de piercings, fez amigos baderneiros, besteira em cima de besteira... Até
que eu resolvi enfiar aquele delinquente no exército. E nem assim o
moleque tomou jeito. Harry foi reformado por insanidade, e eu não sei em
qual falcatrua se envolveu, mas sei que meu neto não tem nenhuma
desordem mental. Ele é o problema. Insubordinado, desrespeitoso...
— Ele não é nada disso! — Droga! Minhas unhas, mesmo no
sabugo, ainda tentam se enfiar no maldito couro caro desta poltrona. — Ele
é doce. E amoroso. Eu não sei que Harry o senhor conheceu, mas garanto
que não é o mesmo homem com quem estou.
Eu poderia não defender o Harry, aproveitar o clima e descer a lenha
nele, meter pás de cal em cima de sua má reputação. Mas, como eu disse, só
uma pessoa vai foder o coração do Harry. E não vai ser o homem à minha
frente.
— Não fique brava, Branca. — Sua voz sai tão calma que me
assusta. Pessoas que nunca perdem a compostura são as mais perigosas.
Embora eu também seja um veneno letal, sou do tipo que explode, que
deixa claro que posso ser perigosa. Esse velho... ele fala sem nem tremer o
rosto. Tem poucas expressões faciais. — Entendo que esteja apaixonada.
Porém, tenho o dever de alertar a senhorita. Se quer se casar com ele, saiba
no que está se metendo. Eu me pergunto se ele mudou nesses últimos sete
anos. Harry saiu de casa porque eu o deserdei. Na hora da raiva, eu decidi
que ele não merecia um mísero tostão da minha fortuna. Mas se ele saiu
daqui um moleque e, longe de casa, tornou-se um homem, poderei morrer
feliz. Caso contrário, ele nunca mais terá conserto.
O quê? O velho o deserdou? Eu sempre achei que o Harry, por ser
neto desse homem, tivesse enjoado de ter uma vida de mauricinho e
decidido brincar de bad boy. Que tinha escolhido, por birra, viver apenas
como body piercer.
— Por que o deserdou?
— Harry desrespeitou seus oficiais do exército propositalmente, e
junto aos amigos que fez por lá, foi expulso. Eu já tive muita dor de cabeça
com esse garoto. Pensei que... — E só agora seus olhos parecem ter algum
tipo de emoção. — Que se ele servisse ao país, se aprendesse a viver sob
regras rígidas, um dia voltaria para casa e veria que eu nunca quis o seu
mal. Que, mesmo que eu não tenha sabido amá-lo ou sido gentil, como
minha esposa, eu o amei do único jeito que aprendi.
Droga! Enquanto os olhos dele marejam e toda a casca de homem
rude se desfaz diante dos meus olhos, eu me pergunto quão mole eu fiquei
por desejar que Harry estivesse aqui para ouvir isso.
Acho que, assim como eu, o Harry nunca conheceu o amor vindo de
uma figura paterna. Talvez, indo contra toda a imagem que eu tenho do meu
maior rival, ele tenha mais em comum comigo do que ousei imaginar. Mas
duvido que Harry tenha visitado o inferno como eu fiz compulsoriamente,
que tenha sido quebrado, da carne aos ossos, e, por fim, tenha tido a alma
desintegrada.
Ser o objeto de rejeição de um pai talvez seja melhor do que ser a
sua obsessão.
— Por que não diz isso tudo a ele? — Fujo dos pensamentos, do
altar de pedra surgindo novamente diante dos meus olhos, da agonia e do
último grito do Daniel, que até hoje me faz querer morrer.
Eu preciso apagar as lembranças, ou vou desmoronar bem aqui!
— Sou incapaz. Eu tenho mágoa de coisas que aconteceram e que
eu nunca revelo a ninguém. Coisas que ele fez e eu levarei comigo para o
túmulo. Quem sabe um dia ele te conte...
O homem à minha frente não faz ideia de que está falando com a
maior prejudicada pelos atos do Harry. Que eu sou a garota arruinada pela
bomba que ele soltou no meu peito. Eu sei do que o Isaque está falando,
pois é a maior razão do meu corpo inteiro clamar por vingança. De eu
silenciar a garotinha que mora dentro de mim, que parece estar se
apaixonando e que se acha uma princesa. Que ficou encantada com aquele
anel, pois quer ver significado nele. Que quer beijar o Harry e sentir o gosto
de sua língua. Mas nem essa garota vai me fazer desistir de vê-lo sangrar
pelos olhos como eu sangrei.
— Então, vai deixar tudo para o seu filho?
— Pense... Um dia, meu filho também vai morrer. Quem é o seu
único herdeiro direto?
Se Harry não tem mais irmãos, só pode ser ele. Então, o meu
querido “noivo” acredita que foi deserdado, mas não passou de uma
pegadinha? De um jeito ou de outro, Harry herdará tudo isso um dia. Um
império cairá de bandeja em seu colo.
Eu sempre achei que ele tinha tudo na mão, que, inclusive, recebia
mesada do vovô. Mas quando passei a investigá-lo a fundo, vi o meu
equívoco. Então, pensei que havia recusado grana do Isaque apenas por ser
um mimado. Mas o fato é que Harry recebe apenas a pensão do exército,
pois foi reformado por conta de uma depressão crônica. Pelo que Isaque
disse, ele não acredita nessa história, e sim que foi tudo armação. Será?
Será que, com tudo o que passou, Harry realmente não teve essa doença?
Agora, eu quero descobrir, arrancar isso dele. Não porque eu ache que terá
alguma serventia, mas porque estou curiosa.
Harry tem camadas demais. Nem de longe é superficial, como
julguei. Ele sabe o que é dor. Mas... eu, eu sei o que é morrer e ainda assim
ter de andar pela Terra como se estivesse viva.
— Seu filho nunca amou os meninos? — Resolvo perguntar, para
fugir novamente dos pensamentos intrusivos. E também para entender mais
sobre o Harry, sobre a sua relação com esse seu pai de merda.
— Nunca. Não esteve aqui para vê-los dar seus primeiros passos.
Nunca quis saber sobre a escola, seus feitos... Sempre foi indiferente. Harry
uma vez me perguntou por que o pai não o amava. Eu não soube responder.
— Então, ele cresceu achando que o pai e o avô o rejeitavam... —
Meus pensamentos escapam pelos lábios. Tento montar as partes do quebra-
cabeça mais difícil que eu já vi na vida, o quebra-cabeça formado por um
garoto alto, cheio de piercings e um sorriso de matar.
— Talvez meu filho tenha aprendido a não demonstrar amor
comigo. Mas a falta de cuidado, eu não sei a quem puxou. Eu sou
amargurado com a rebeldia e a ingratidão do Harry, mas sempre estive aqui
quando ele precisava. E ainda estarei. Ele só precisa vir até mim, sempre
irei ajudá-lo. Sempre foi assim.
— Mas o senhor o obrigou a entrar para o exército e o deserdou.
Eu odeio o Harry, e a coisa mais contraditória do mundo é sair em
sua defesa. Mas se eu precisar fazer isso para que esse homem empreste a
porra do dinheiro que roubei ao Harry, eu o farei.
O destino está olhando para mim e rindo. O diabo que espeta minha
bunda e clama por vingança deve me chamar de vilãzinha de araque. Mas
eu não ligo. Estou agindo como eu acredito que preciso agir.
Esse velho empresta a grana, o Harry fica feliz e se apaixona mais
por mim, dando-me a abertura que eu preciso para pegar seu coração em
minhas mãos.
— Eu o deixei se virar para aprender a ser homem. E ele sempre
soube o caminho de casa. Se tivesse precisado, teria voltado!
— Acho que gostaria de saber que o Harry é uma pessoa honesta.
Ele trabalha de segunda a sábado ao lado de amigos que ama. Construiu
laços duradouros com esses rapazes, que, pelo que sei, são homens de bem,
casados, e que gostam dele de verdade. O Harry está aqui porque tem um
sonho. Por favor, se realmente o ama, não pisoteie isso.
— Estou um pouco cansado, querida — avisa, estendendo a mão
para que eu o ajude a se levantar. Quando consegue, ele me encara dentro
dos olhos, com seu queixo idêntico ao de Harry me chamando atenção. Eu
não deixo de reparar nas manchas escuras, arredondadas e salpicadas ao
redor de seu nariz achatado e largo. — Gostei da senhorita. Espero que
coloque aquele garoto no rumo certo. E sobre esse tal sonho, confesso que
estou muito curioso, mas conversarei com ele domingo. E fique tranquila,
se for algo que me passe seriedade, vou ajudá-lo. Agora, boa noite! Preciso
me recolher. Depois vou querer bater mais um papo com você, para saber
como foi que conheceu o meu garoto.
Quando Edna surge para ajudar o avô de Harry a se retirar, eu ainda
fico sentada por um bom tempo, processando tudo o que acabei de saber.
Isaque possivelmente emprestará o dinheiro ao neto, e embora seja uma
pessoa metida e com uma autoestima elevada, ele não me parece tão ruim
assim. Talvez, para o Harry, Isaque seja grande, poderoso e forte. Para mim,
é apenas um idoso cansado de viver e que nasceu em uma época com
valores diferentes. Acho que esse povo não entendia bem que amor não é
algo escasso, que, quanto mais se dá, mais se perde. Amor é um poço que, a
cada vez que você tira água e mata a sede de alguém digno, ele volta a
encher. Não teria feito falta Isaque demonstrar amor aos netos. Talvez, se
ele o tivesse feito, Harry tão teria cometido aquela merda que me faz odiá-
lo.
Giro sobre o assento e olho ao redor. Embora eu não veja Harry,
meu sangue incendeia quando vejo a Aurora batendo papo com um grupo
de pessoas. O tanto de ódio que eu senti vendo o Harry a girando no ar,
como se ela fosse muito importante para ele, não dá para medir.
Ela é bonita, mas daquele jeito irritante e doce que me faz parecer
uma megera. É estranho a ver pessoalmente; nas fotos de seu Instagram,
Aurora não parece tão baixinha.
Desde que comecei a stalkear o Harry, vi mensagens dela chegando
em seu Instagram. Algumas eram querendo marcar para vê-lo, e outras
sobre sentir saudade. E eu sempre apaguei todas. Eu não sabia que ela era
amiga do Harry, achei que fosse só uma ficante. E eu costumo, sempre que
tenho tempo livre, apagar mensagens de mulheres lá antes que ele veja,
exceto as das amigas do condomínio em frente ao nosso prédio.
Odeio pensar em mulheres no meu caminho quando se trata de
querer o Harry para mim. Eu fico com muita raiva de tudo que atrapalhe os
meus planos. Amanda é um exemplo. Eu fiquei com tanto ódio de saber que
ela é ficante do Harry que hackeei seu Instagram, e farei isso com todos os
que ela criar. Morri de ódio ao ver que ela comenta em todas as fotos dele
com “meu gostoso” ou “meu lindão”. Enquanto eu tiver tempo livre, vou
garantir que não acesse mais essa rede para ficar mandando merdas para
ele. E... droga! Parece que a minha cabeça vai explodir quando eu penso
nisso. Em Amanda ser ficante dele há meses e eu não saber.
Enquanto eu me levanto e começo a andar pelo salão para procurar
por Harry, relembro o quanto amei provocá-lo dando sutilmente em cima de
sua tampinha. Esse apelido de merda que ele deu à Aurora é ridículo.
Harry vai aprender na marra que, se me fizer ciúmes, eu acabo com
a sua graça dando em cima da mulher que for o pivô da minha raiva. E,
assim, igualamos. Harry vai se sentir tão frustrado quanto eu me sinto
quando ele me expõe a essas situações. E, neste segundo, olho para dentro
de mim e berro para a garota que eu quero morta: “EU NÃO GOSTO
DELE!”. Essa porra de ciúme é apenas medo de que ferrem meus planos.
Quando vejo Harry já sem o blazer diante da mesa de bebidas,
virando duas taças de champanhe ao mesmo tempo, percebo que terei de ser
sua babá.
— Harry? — chamo, segurando seu antebraço. Ele me olha com um
sorriso tão largo que seus olhos parecem os de um samurai, bem
puxadinhos. — Está doido? Por que está enchendo a cara aqui?
Tomo as taças de sua mão, e durante a tarefa de as colocar sobre a
mesa, sinto-o pegando em meu quadril, encostando-se inteiro em meu
corpo. É irritante esse poder todo que ele tem de me deixar excitada e
incerta. Eu... tremo na base assim que ele me toca. E tenho medo desse
desejo. É desejo, que faz minha barriga esquentar e meus mamilos se
tornarem pequenas pedras. Eu não sou uma garota bobinha, conheço bem o
meu corpo, e Harry tem influência sobre ele.
— Faz papel de noiva esta noite e senta no meu pau? — Harry
sussurra em meu ouvido, soprando seu hálito cheirando a álcool em mim e
alisando a minha barriga. — Eu nunca te pedi nada, Branquinha...
Reviro os olhos para a sua voz, que está arrastada, e quando eu me
viro, só para dar de cara com o seu sorriso se tornando ainda mais
magnético, por causa da bebida, vistorio ao redor para ver se tem gente
prestando atenção em nós. Preciso tirá-lo daqui quanto antes, porque, se ele
der um vexame, pode acabar com os planos do avô lhe dar o montante que
precisa.
— Quanto você bebeu? — Envolvo uma de suas mãos e começo a
puxá-lo para fora do salão.
— Umas dez taças. É de graça... tem que aproveitar. — Harry
consegue soltar sua mão da minha para pousar seu braço em meu ombro
esquerdo. Ele não está podre de bêbado, pois ao menos consegue andar
direito, sem bambear. Mas quem correr os olhos por ele, conseguirá ver que
se excedeu. — É o melhor jeito de afogar as mágoas quando o seu avô fica
sete anos sem te ver e, quando você vem até ele, o velho te trata feito uma
barata...
Ao menos Harry não está resistindo, caminhando comigo pelas
escadarias, depois entrando direitinho no quarto. Quando eu fecho a porta
atrás de mim, ele vai até a cama e se joga de barriga para cima, encarando o
teto. Aproveito para trancar a porta, rezando para que Edna não tenha o
visto nesse estado.
— Branca? — Harry chama, enquanto sigo parada diante da porta,
dando um jeito de tirar meus saltos e finalmente poder respirar por
conseguir plantar os pés no carpete. — Deita comigo?
— Não vamos transar, Harry! — aviso logo, cortando seu pedido
idiota. Não é porque minha boceta enxarca quando ele me toca que eu vou
dar para ele, ainda mais estando embriagado. — Você precisa de um banho,
uma boa dose de café e uma noite de sono. Imagina só se o seu avô souber
que você encheu a cara?
— O que você disse a ele? — Depois de perguntar, Harry rasteja
como consegue para se deitar sobre alguns travesseiros enormes. Seu rosto
está bem triste, e por mais que eu o deteste, que queira que ele pague, ainda
sou idiota por sentir pena de sua relação de merda com a sua única figura
paterna.
Vou até a cama e retiro seus sapatos e meias. Ele não reluta quando
eu me ajoelho ao seu lado para retirar sua blusa, pois está brilhando de suor.
Eu me viro para colocá-la apoiada sobre o nicho de CDs ao lado da cama,
mas Harry me puxa, e eu caio com tudo em cima dele. Metade do corpo
para fora da cama, mas a outra metade está em cima de seu peito.
— Acho que a única coisa boa nessa situação de merda é você.
Maluca para um caralho, ciumenta e linda. Será que você é um prêmio pela
minha maior derrota?
Por que sinto vontade de chorar?
Não é o que eu mais quero ouvir? Que de algum jeito ele já gosta de
mim? Ou essas palavras são apenas efeito do álcool? A garota boba aqui
dentro dança e rodopia de alegria, pois acha que ele poderia ser um príncipe
encantado. Tem a beleza de um. Mas seu beijo não poderia limpar o veneno
correndo em minhas veias. Na verdade, ele é uma boa parte da razão de eu
ser cruel assim.
Harry não pode e não vai me fazer gostar dele. Eu não posso lhe dar
poder sobre o meu coração. E ele tem emocionado demais a Branca
bobinha. É a merda de um sinal de perigo. Mesmo assim, eu subo
completamente na cama e me deito ao seu lado, bem na beirada. Ainda
pouso a cabeça em seu peito e inspiro seu cheiro: limão, suor e uma pitada
de champanhe. Perfeito pra caralho! Gosto quando ele me abraça, e fico em
cima dele por alguns segundos. Respirando fundo, eu me lembro de que
ainda preciso respondê-lo.
Começo a falar, narrando todos os detalhes da minha conversa com
o senhor Isaque; inclusive, sobre a parte em que ele disse que ama o Harry.
Eu tenho tragédias familiares demais para querer ficar feliz vendo a
rachadura na relação dele com o casca-grossa do avô. Por isso, eu não
minto, apenas deixo sair.
— É incrível como ele me culpa. Culpa a minha carência... Eu era
apenas a porra de um garoto rejeitado pelo pai. Eu não tive amor que não
fosse da minha mãe e da minha avó. Mas minha mãe se foi, e no ano
seguinte minha avó morreu de ataque cardíaco. Eu só tinha a ele e ao
Henrique. Custava meu avô me dar um pouco de atenção?
Sua voz falha e ele chora.
Eu quero achar graça da sua dor. A Veneno sedenta por vingança
quer. Mas... Branca... a garota ainda está “na luz”, ela ainda sente a dor
dele, vê-se nele. Ainda quer confortá-lo.
— Acho que ele não recebeu amor do pai, Harry. Por isso não soube
dar isso a você.
— Não justifica, caralho! — Ele engasga com seus soluços, seu
corpo treme, balançando-me também. Eu aliso seu peito suado, olhando de
perto os piercings de argola em seus mamilos. Ele tem uma tatuagem no
peito direito. É Henrique que está escrito ali, combinando com a aliança
reluzindo em seu pescoço. — Eu sou fodido, fui rejeitado duas vezes pelas
figuras paternas que tive, mas serei a porra do melhor pai do mundo. Eu
estarei lá pelo meu filho, eu o amarei e darei o afeto que não recebi.
Engulo o choro preso dentro de mim, com os olhos doendo,
querendo derrubar a porra das lágrimas empedradas neles. Mas apenas
aperto os lábios e sinto pena disso.
Eu conseguiria ser mãe... depois de tudo o que vivi? Eu... teria
sanidade para cuidar, educar e zelar por uma criança? A menina aqui dentro
sonha com isso, em ter filhos com o seu príncipe encantado. Em brincar de
boneca, ver filmes de princesas e ensinar todas as músicas que sabe de cor.
Mas a mulher arruinada... essa só é capaz de lembrar que perdeu um filho
que jamais quis ter e que sangrou a ponto de jamais pensar em engravidar
de novo.
Essa Branca só se lembra do Vale, que dizia que crianças tinham de
servir a Deus por meio do sexo.
Essa não vai se recuperar jamais.
“E há um velho sentado no trono
dizendo que eu provavelmente
não deveria ser tão má.”
Halsey, Castle.

Enquanto eu me olho no espelho do banheiro, vejo que minha franja


está comprida. Ela está caindo sobre os meus olhos, e a minha mamãe não
quer cortar. Outro dia, ela me obrigou a colocar para trás com um grampo.
Ficou horrível, e os meninos bobocas disseram que eu tenho uma testa
enorme enquanto brincávamos de pique-esconde. Eu fiquei triste, porque
quero ter cabelo de princesa, então arranquei o grampo. E quando eu
cheguei em casa sem ele, a mamãe beliscou meu braço. Eu chorei por
horas, não só pela franja, mas porque ela nunca tinha me batido.
Eu gosto da minha franjinha, e a minha mãe também gostava. Faço
bico para a minha cara me encarando de volta no espelho e, irritada, resolvo
ir atrás da minha mãe. Ela está no quarto dos meus irmãos, sentada na cama
de baixo de um dos beliches de ferro enquanto dobra uma pilha de roupas.
Seu cabelo está meio bagunçado. Ela quase não o penteia mais. Parece que
não gosta mais do seu cabelo, assim como não gosta mais da minha franja.
Eu pedi para que me deixasse desembaraçar para ela. Já tenho dez anos,
poxa! Sou quase uma mocinha, já sei pentear. Mas mamãe gritou para eu
sair de perto dela.
Chorei de novo, tanto, mas tanto, que meus olhos doeram.
Será que ela não me ama mais?
O que eu fiz para ela não querer mais dormir comigo ou não me
contar mais histórias de princesas?
Mamãe está magra. Será que está doente? Desde a noite da fogueira,
quando o papai a chamou para falar sobre a iniciação deste ano, ela não
come direito. Seus vestidos que chegam até os pés estão mais largos do que
nunca. Eu perguntei ao Ivan se ele sabia o que a mamãe tinha, mas ele me
disse para não fazer perguntas a ninguém, nem ao nosso pai, pois papai
anda mais bravo que o normal, e é bom eu não o irritar perguntando sobre a
mamãe.
Outro dia, eu estava brincando de pique-esconde com os meus
amiguinhos, então me escondi embaixo de um dos bancos da igreja, e lá
ouvi os adultos fofocando sobre um ritual de iniciação que está chegando.
E, pelo que eu entendi, não era para ter um agora. Uma das tias da escola
disse que só quando meninos e meninas fazem treze anos é que são
iniciados. Mas não tem ninguém nessa idade este ano. Fiquei curiosa. Será
que é um novo tipo de ritual? O que vai acontecer?
— Mamãe? — chamo bem baixinho, morrendo de medo de ela
gritar comigo ou me beliscar. Por isso, fico um pouco longe.
Tem um pouco de vento entrando pela janela de madeira ao lado
dela, empurrando as cortinas brancas e fazendo com que seus cabelos em pé
balancem. Ela tem manchas feias embaixo dos olhos, parece os pandas dos
livros da escola.
— Cadê a droga do grampo que te mandei usar? — ela grita,
ficando vermelha ao me encarar.
— Eu não quero usar grampos. É coisa de velha. Eu quero cortar a
minha franja de princesa!
— Pare de falar bobagens! Seu pai está impaciente, Branca. Se ele
te pegar com essa franja solta...
— Eu não ligo! Eu já tenho de ler bíblia, bíblia, bíblia o dia todo. Se
eu não puder ter a minha franjinha, não vou ler mais!
— Como é?
A voz dura atrás de mim faz o rosto da mamãe ficar branco, como se
ela tivesse jogado farinha para fazer pão nele. Ela se levanta, engolindo
como se estivesse bebendo água. Meus olhos se abrem muito, e quando eu
me viro, vejo o papai me encarando.
Ele é tão alto... E com o rosto vermelho assim, faz com que meu
corpo trema inteiro. Eu não perco tempo e corro para me esconder atrás da
mamãe.
— Branca não sabe o que diz, marido. É só uma criança. — A voz
da mamãe está tremendo. Ela vai chorar. E é culpa minha se o papai a
deixar machucada. — Eu mesma a punirei, se o senhor deixar.
— Não me venha com desculpas, mulher! — Ele fala tão alto que
parece que até as ripas de madeira branca das paredes estão tremendo de
medo. — Eu disse a você, Ema, disse para não colocar essas bobagens de
princesa na cabeça da minha filha! Agora, olha o que causou! Ela está
blasfemando, zombando de ler a palavra de Deus. E isso é inadmissível!
Estou encolhida, escondendo o rosto no quadril da mamãe. Sinto
vontade de fazer xixi, e quando coloco os olhos para fora, vejo papai
retirando o cinto. O mesmo que arrancou sangue das minhas costas.
— Mamãe, não o deixe me castigar! — grito, agarrando-me a ela,
abraçando-a com força.
— Esqueça a minha filha, James! Eu já te disse, ela é minha filha!
— mamãe grita, engasgando-se com o choro, mas me pega no colo. Eu me
agarro em seu pescoço quase com a mesma força com que ela me abraça. E
choro, porque sei que o papai vai bater nela, porque mulheres não devem
gritar com o marido. Deus não se agrada disso, e papai é o portador da
palavra Dele. — Deixe-a comigo, eu a ensino! — mamãe implora.
— Você a ensina? Olha como a tornou indisciplinada e mimada. Por
isso esse ritual é para ela, pois está na hora de Branca aprender seu papel
neste mundo. E você, esposa, terei o prazer de lembrá-la adequadamente do
seu!
— Não!
Eu não sei quem grita mais alto, mamãe ou eu. Só sinto as mãos do
papai me arrancando dos braços da minha mãe. Ele me atira longe, e
quando eu caio de lado no chão, sinto meu tornozelo queimando. Eu grito
de dor, de medo, enquanto o papai castiga a mamãe diante dos meus olhos.
Esse barulho... parece que ele está quebrando a mamãe. Ele vai matar a
minha mãe. São muitas pancadas. Eu quero correr até lá, não deixar que ele
faça isso. Tento levantar, mas dói tanto... Papai só para quando a mamãe
dorme, quando a mamãe está com sangue escorrendo pelo nariz e deitada
no chão.
— Não machuca a minha mamãe! — grito. — Papai do céu não
deve gostar de maridos que machucam as mamães de suas filhas!
— Cale-se, pequena blasfemadora! Se essa mulher amaldiçoada é
incapaz de te educar para o teu real dever no Vale, assumirei a tarefa eu
mesmo!
Eu tento rastejar para a parede mais perto, para me encolher, quando
meu pai me pega no colo. Eu grito pela mamãe durante todo o trajeto até o
quarto do castigo. Está chovendo agora, e sei que papai do céu está
chorando. Não é possível que Ele goste do que o meu pai faz com a gente.
E se Deus gosta, eu não vou gostar Dele.
Estou com muita dor no tornozelo, pois estou me debatendo e
gritando. Enquanto estamos indo para o quarto escuro onde vou apanhar,
vejo os adultos se amontando para ver o que está acontecendo. Eles devem
ter ouvido a gente gritar. E me olham feio, o que me deixa triste. O único
rosto que me deixa mais calma é o de Ivan, surgindo com uma enxada na
mão, a camisa e as calças sujas por causa do trabalho de capinar o Vale.
— Meu pai, o que houve? — ele pergunta, correndo até onde
estamos.
Papai não responde, e sei que meu irmão quer me defender, mas ele
também não pode, pois defender alguém da sala do castigo é desobediência,
e homens são punidos de formas mais severas.
Quando chegamos ao quarto que fede a xixi e sofrimento, ele me
joga no chão lamacento. Meu pai bate a porta dupla de madeira atrás de si,
fechando-a com uma ripa.
Eu tento rastejar até ficar com as costas contra uma parede úmida.
Eu queria que meus irmãos viessem me ajudar, mas sei que eles não podem.
Que os tios usam aquelas armas de caçar nos homens que se voltam contra
as regras do Vale. Que os abatem como se fossem animais. Eu mesma já os
vi fazendo isso com um dos adolescentes que, dias depois do seu ritual de
iniciação, chegou muito perto dos muros, contaminou-se pelo diabo e
tentou fugir do Vale. Por isso, sei que ninguém vai me ajudar. Eu só tenho o
papai do céu agora.
Então, eu rezo baixinho, fechando os olhos e tremendo. Sinto o xixi
escorrer por minha calcinha e molhar o meu vestido. Estou com tanto
medo...
— Tire a roupa! — papai ordena.
Abraço os meus joelhos e escondo o rosto neles.
— Mamãe diz que eu nunca devo tirar a roupa, nem na frente do
papai — interrompo a oração para dizer.
— Aquela mulher está tocada pelo demônio! Eu sou a palavra de
Deus, não ela! Tire logo essa roupa!
Eu sei que é mentira, pois a mamãe jamais saiu dos portões. Ela
nunca foi tocada pelo anjo caído. Só o papai é quem poderia ser
contaminado assim, pois foi ele quem saiu.
Eu me abraço ainda mais, mas sou interrompida. Facilmente papai
arranca o meu vestido, rasgando-o em pedaços. Eu me enrolo em meu
corpo, soluçando enquanto o sinto puxar meu cabelo e me arrastar para o
meio do quarto. Dói. Eu grito, engasgando enquanto soluço.
— Papai, por favor! — imploro. Mas apenas ouço o barulho horrível
e conhecido do cinto dele cortando o ar, para cortar também a minha pele.
Eu tento me afastar, rastejar como dá, com as costas queimando.
Mas não consigo, meu tornozelo dói muito. E meu pai não para, ele me
acerta muitas vezes, principalmente nas costas, mas também em qualquer
lugar onde consegue pegar.
— Para! — grito, sacudindo-me no chão de barro. — Papai, eu não
vou mais usar franja! Por favor...
— Repita: “Princesas não existem e devo obedecer às ordens do
meu pai”.
— Prin... princesas não existem... — É muito triste dizer isso, mas
dói menos do que o meu corpo. Dentro de mim, eu sei que elas existem, e
que ele é alguma espécie de “bruxa má”. É cruel como o Capitão Gancho,
malvado como a madrasta da Branca de Neve... Então, eu sou uma princesa.
— E devo obedecer às ordens do meu pai.
Quando termino de dizer, espero por mais cintadas, mas elas não
vêm. Eu fico deitada de lado, com os olhos pesados e doendo, o corpo todo
ardendo. Papai está de pé, encarando-me de cima.
Ele é tão mau.
Eu o odeio.
E quero que o papai queime para purificar a maldade dentro dele.
— Sua mãe falhou na sua educação. Está na hora de você aprender
que veio ao mundo para mim, e assim servir aos planos do Pai maior, pois
já passou da hora de aprender os seus deveres.
Eu não entendo o que ele está dizendo, menos ainda quando abaixa
suas calças e vejo algo muito feio saindo dali. Mamãe não vai gostar, e isso
me deixa com medo. Eu não entendo, mas sei que é errado. Que papai não
deveria ficar nu na minha frente. Eu nunca vi ninguém pelado, nem mamãe
ou os meus irmãos. Eu tento me afastar, mas minhas costas queimam
quando eu me sento. Quando arrisco olhar, vejo o sangue escorrendo delas e
manchando a minha calcinha. Nenhum castigo que tive foi assim. Está tudo
diferente.
— Quero a minha mamãe — sussurro, não olhando mais para o meu
pai.
— Primeiro, você vai começar os seus deveres e demonstrar amor a
Deus. — Papai fica de joelhos diante de mim. Eu tremo mais do que já fui
capaz de tremer quando ele coloca minha mão na coisa saindo do meio das
suas pernas. — Beije-o, então você será uma boa “Criança de Deus”.
Eu não quero beijar isso. Papai nunca me pediu nem um beijo no
rosto.
Tudo aqui é estranho e errado.
E acho que Deus não está aqui. E, se está, acho que não se importa
comigo ou com o quanto eu me sinto sozinha. Por que o papai está fazendo
isso com a minha boca e segurando o meu cabelo assim? Eu não gosto, mas
ele parece gostar.
Eu não entendo e quero sair daqui. Mas não importa o quanto eu
tente empurrá-lo, ele não se afasta.
Quero a mamãe.
Acho que princesas não existem.
Deus também não, porque estou pedindo que Ele me ajude, que faça
o papai parar, mas nada acontece.
“Quando você me toca, você me leva para o céu.
Quando você me segura, meu corpo é uma arma.
Se você acha que pode me salvar, me derrubar e me domar,
Aqui está sua chance de fazer algum dano.”
Savage, Bahari.

Acordei há cerca de uma hora, com a garganta seca, uma baita de


dor de cabeça e a garota mais linda que eu já vi deitada de conchinha
comigo. É incrível como ela continua cheirando bem, mesmo que esteja
suada, pois está muito quente aqui dentro. E eu me recuso a me afastar dela.
Branca dorme toda encolhida, parecendo fazer meu corpo de
concha. Quando eu tentei sair da cama, para não ficar com meu pau duro
contra a sua bunda gostosa, ela enganchou as mãos em meus braços e
choramingou. Quem, em sã consciência, conseguiria resistir a isso e
levantar? Eu não consigo querer sair daqui. Até já dormi com mulheres,
mas não me lembro de ter gostado tanto de uma conchinha quanto agora.
E... porra! Que noite foi essa? Eu fiquei muito puto com tudo o que
rolou com o meu avô, mas não esperava que ele fosse contar tanta coisa à
Branca. Achei que iria investigá-la até o último fio de cabelo, porém, nem
de longe sonhei que faria uma sessão de terapia com ela.
Enquanto fungo esse cabelo sedoso e perfumado, com o rosto
colado na parte de trás de sua cabeça, eu me lembro de suas palavras.
Branca me contou que meu avô esperava pelo meu entendimento, quando
eu saísse do exército, de que ele me ama do seu jeito. Qual foi a lógica
dele? Um dia acordou e pensou “vou enfiar meu neto no exército, depois
esperar que ele volte sorrindo e me diga um obrigado”?
Eu não vou mentir, meu coração palpitou quando ela me contou que
ele confessou me amar. E isso... dói. Eu sempre quis ouvir essas palavras.
Sonhei em saber que ele gosta de mim tanto quanto eu gosto dele. Mas
Isaque é tóxico demais para um dia ter a decência de dizer algo que vá me
deixar feliz.
Porra, ele está morrendo! E preferiu contar à minha suposta noiva,
que acabou de conhecer, em vez de dizer a mim?! Eu não sei como agir
diante disso tudo. E não quero chorar sobre o seu caixão. Como também
não quero perdê-lo. Eu já perdi demais... Eu perdi tudo! Se ele se for, eu
não terei mais ninguém. Já não tenho pai. Jaime é apenas o meio pelo qual
eu vim ao mundo. Embora meu avô e eu não nos falemos, e estejamos
brigados por todos esses anos, eu sei que ele é meu verdadeiro pai. E acho
que ele também sabe disso.
— Você está me apertando... — A voz sonolenta me desperta dos
meus pensamentos.
— Desculpa! — Envergonhado, afrouxo o braço que envolve sua
barriga. — Bom dia, gata!
Branca se espreguiça, esticando os braços no alto da cabeça,
realmente parecendo uma gatinha manhosa. Sua bunda se mexe, roça mais
contra mim, fazendo minha pica latejar e desaparecer os pensamentos
tristes, como se jamais estivessem estado aqui, corroendo a minha mente.
Porra... se eu foder essa garota, ela vai ter sorte se eu não a quebrar
ao meio. Eu não sei que tipo de bruxa ela é, mas Branca tem alguma coisa,
algo que me deixa interessado, cheio de tesão. E, às vezes, raiva. Mas o
tesão ainda é maior.
— Bom dia... — Ela quase mia, depois se vira de frente para mim e
me abraça, deixando-me chocado. Eu me lembro vagamente de que ontem,
depois de conversarmos um pouco, ela me enfiou embaixo do chuveiro, de
cueca e tudo. Então, Branca me secou e me fez vestir uma samba-canção.
Quando eu me deitei na cama para dormir, apaguei. Aí, acordei com ela
assim, grudada em mim. — Acredita que eu tive um sonho bom essa noite?
Sonhei que estava no parque com o Dan, andando de roda-gigante. Ele
ganhou um urso enorme para mim no tiro ao alvo. — Ela boceja, e, sendo
implicante, eu trato de tirar o braço que estava em volta dela para enfiar o
indicador em sua boca. — Eca! Eu não escovei os dentes! — grunhe, depois
me soca de leve no peito. — Quantos anos você tem?
— Falando desse jeito sobre sonhos bons, faz parecer que nunca
teve um — comento. — E são vinte e cinco aninhos sendo um gostoso.
Ok, minha idade mental deve ter dezoito anos. Vai ficar nisso para
sempre, e estou de boa assim.
— Eu quase não tenho algo diferente de pesadelos desde os meus
dez anos de idade. — Sua voz é triste, e sua frase me deixa pensativo.
Fico chateado quando ela se esgueira para longe de mim, e mesmo
que eu ainda esteja refletindo sobre o que acaba de dizer, fico hipnotizado
pelo tamanho de sua bunda. Cara, isso é um monumento. Grande, redondo,
engolindo boa parte do short de dormir rosa-pálido. A polpa está de fora, e,
porra, estou molhando a merda da minha cueca. Vou ter que tocar uma, não
vai ter jeito.
Branca entra no banheiro, e posso a ouvir escovando os dentes. Eu
acho que nem sonhei essa noite. Eu me lembro de fechar os olhos e... abri-
los e já ser de manhã.
— Hoje tem festa na piscina. Olhei o cronograma antes de deitar
para dormir. Começa com um brunch[9], e está programada para ir até o fim
da tarde. A noite fica livre para descanso. — Ela está com a boca cheia de
pasta de dente, falando de um jeito estranho, e ainda assim eu a acho
perfeita. Caralho, não é possível que eu esteja gostando dela. Logo dela?! A
maluca é culpada pela morte do meu hamster, fez um ménage na minha
frente, já cuspiu na minha cara... Eu sou mesmo um trouxa! — Então, já
vou me arrumar para irmos até lá.

Estamos deitados em uma espreguiçadeira branca que parece mais


uma namoradeira, lado a lado. Branca está tomando uma taça de mimosa, e
isso me faz lembrar minhas amigas. São viciadas nessa porra. Estou
tomando uma água de coco, não sou nem doido de me encher de álcool
depois do porre de ontem.
Comemos algumas coisas das mesas espalhadas pela varanda da
casa, depois nos deitamos aqui para tomar sol. Tem um samba tocando
pelos alto-falantes dispostos ao redor da piscina, que, por sinal, está lotada
com os bajuladores do meu avô.
O mais irritante é ver os olhares de merda que os caras dão à
Branca. Eu perguntei se ela não tinha a porra de um biquíni menor para
enfiar no rabo quando a vi com um conjunto vermelho lá no quarto, e a
desgraçada riu, abriu a mala, pegou um ainda menor, branco, quase um
fiapo, entrou no banheiro e o vestiu. Puto, eu saí do quarto e a larguei lá. E
quando chegou aqui, atrás de mim, com uma saída de praia translúcida e tão
clara quanto o biquíni, todos os olhares foram até ela. Eu fiquei irado, mas
quando vi as duas tranças finas caindo nas laterais de seu rosto e se
misturando ao restante dos fios soltos, nem reclamei. Achei Branca tão fofa
com esse penteado. E abaixei totalmente a guarda quando ela se aproximou
com um sorrisão e fez carinho na minha bochecha. E não estou com ciúme,
é só... estressante ver esses caras me tirando de otário. Sabem que ela está
comigo, porra! Estou tendo de encarar uma meia dúzia a cada minuto, até
que desviem, ou sou capaz de meter a porrada.
— Vai ficar de cara feia pra mim por conta de um biquíni?
— Você sabe que precisamos passar uma boa impressão —
resmungo, descendo mais alguns goles da água de coco. — E no meio desse
bando da alta sociedade, acha que esse biquíni passa?
— Eu não tenho culpa se tem machistas aqui. O biquíni vai
continuar enfiado no meu rabo pelo tempo que eu quiser — revida,
sorvendo profundamente a bebida da taça, fazendo um barulho alto, para
me irritar. Cerro os cílios para ela, que mira minha sunga branca e sorri. —
E eu notei seu pau bem duro marcando essa sunguinha quando me viu. Você
amou, que eu sei!
— Amaria mais se você desfilasse assim pra mim dentro do quarto,
não aqui.
— É mesmo? Então, você é o tipo que esconde a beleza da sua
mulher no quarto, mas torce o pescoço para ver outras com o rabo de fora
por aí? Toma vergonha, Harry! Esta gatinha aqui não foi feita para ficar
escondida. Eu sou um artefato para ser contemplado.
Ela morde os lábios, contendo o riso, porque meu maxilar está
trincando de pensar nessa merda. Essa diaba sabe que me irrita. Que me
deixa com ciúmes falando essas besteiras. Eu me preparo para abrir a boca,
mas sou sugado por uma aura pesada pairando do outro lado da piscina.
Meu avô, que ainda não me chamou para conversar, está sentado embaixo
de um pergolado de madeira tão branco quanto o restante da pintura da
casa, fumando charuto e tomando chope enquanto ri com Mauro, o pai da
Aurora. Um homem alto, malhado e em forma para a idade que tem. É o
melhor amigo do meu avô. Os dois se conhecem há muitos anos e são
parceiros de negócios. Mas não é o tórax flácido do meu avô de fora que me
chama atenção, é o filho da puta que está entre Mauro e ele, Cristian
Marquez, que, por sinal, pega-me no flagra o encarando, e ainda sorri e
acena para mim.
Arrombado!
— Caralho! — praguejo, desacreditado que meu avô esteja metido
com aquele homem.
— O quê? — Branca, que estava deitada contra o encosto da
espreguiçadeira, senta-se na hora e segue meu olhar. — Conta! Quem são
aqueles?
— O loiro com bronzeamento artificial é o pai da Aurora, Mauro.
Mas ele não é o problema. — Minha voz sai ácida. — É o outro, o de
cabelos brancos, usando camiseta clara e bermudinha florida. É o Cristian
Marquez.
— O ex-prefeito da cidade? — Ela chega a deitar a cabeça de lado,
analisando-o com atenção. E ele não desvia o olhar de nós, interessado
demais para o meu gosto. — Não era ele que vivia aparecendo na TV, com
escândalos de corrupção e polêmicas envolvendo amantes?
— Esse mesmo. Ele é o pai do meu melhor amigo. Eu não fazia
ideia de que conhecia o meu avô.
— Ué, se ele é pai do seu melhor amigo, faz sentido, né?
— Não! — Deito-me de lado, deixando de fuzilar o merdinha do
Cristian e olhando para algo realmente bom de encarar, a garota com
carinha de bêbada e olhar curioso me fitando com interesse. — Eu conheci
o filho dele no exército, o Josiah. Anos depois, descobrimos que crescemos
aqui, no mesmo condomínio. Fomos para o exército obrigados pelos dois,
meu avô e esse filho da puta do Cristian.
— Seu avô me disse que você fez alguma falcatrua para sair do
exército. Então, Harryzinho, eu realmente fiquei curiosa sobre isso... — Ela
termina sua taça, que já é a terceira. Branca se vira, e enquanto se estica
para pousá-la em uma mesinha de madeira redonda do outro lado, sua
bunda bonita me deixa duro. De novo. A história da punheta fica cada vez
mais tentadora. — Como foi isso?
Respiro fundo. Como contar a ela que aquele corrupto do outro lado
da piscina foi quem me ajudou com essa porra toda? E por que meu avô
está metido com esse cara? Cristian é muito perigoso, não é um bom amigo,
tampouco confiável. Ele acaba com qualquer um que entre em seu caminho
ou não dance de acordo com a música que resolva tocar.
E mesmo que eu tenha problemas com o meu avô, não quero
desgraçado nenhum fazendo mal a ele. Ou gente perigosa assim ao seu
redor.
Olhando para Branca, começo a falar:
— Entrei na escola de sargentos aos dezessete anos, e lá conheci de
cara o Josiah, o Bill e um outro amigo que já se foi. Nós nunca gostamos
daquela porra. Nós não nos encaixávamos. E acho que foi isso que nos
uniu. Josiah estava lá por uma chantagem do pai, e ficou um ano naquela
escola comigo. Chegou um momento em que não fazia mais sentido aceitar
a chantagem do Cristian, por isso Josiah armou um plano para ser expulso.
E como eu já não aguentava mais aquilo tudo, embarquei com ele e os
outros dois na empreitada. Foi simples, começamos a descumprir regras
básicas, como não usar a roupa adequada, cumprir os horários ou bater
continência. Apanhamos, ficamos na cadeia do exército, e, por fim,
acabamos dando de cara com uma expulsão. — Até um pouco
envergonhado, olho para o Cristian, que, feito um maluco de merda, não
para de nos encarar. — Foi o pai do Josiah quem conseguiu que fôssemos
reformados, pois a expulsão do filho não pegaria bem para a sua imagem, e
na época ele ainda era o prefeito da cidade. Só o Bill, meu outro amigo, foi
expulso, porque socou a cara de um oficial. Josiah e eu recebemos nossas
pensões até hoje.
— Uau! — Branca está me encarando, as sobrancelhas elevadas e os
olhos brilhando. Sua boca, antes formando um “o” bem redondo, agora se
abre em um sorriso zombeteiro. — Então seu avô estava certo, você fez
mesmo uma falcatrua!
— Não por vontade minha. Por mim, estaria feliz em ser expulso e
rir da cara do meu avô. Foi esse corrupto de merda que agiu para que eu
fosse reformado.
— E nem é cômodo receber sua pensão todo mês, né?
Olho feio para Branca, mas quando abro a boca para responder,
Aurora surge saltitante diante de nós. Seu maiô é tão rosa que quase agride
os olhos. Ela colocou uns bagulhos – parece uma cordinha – da mesma cor
em algumas partes do cabelo, que chega abaixo dos ombros, quase do
mesmo comprimento que o de Branca.
— Oi, pessoal! — cumprimenta, sentando-se na beirada da nossa
espreguiçadeira. — Olha que delícia de sol! — Quando sorri e olha para
cima, parece um anjo, com as feições iluminadas e as bochechas se
tornando rosadas. — Como vocês estão?
— Estamos ótimos! — Branca fala antes de mim. Totalmente
enciumada, aproxima-se para se enfiar embaixo do meu braço. — E você,
curtindo a festa?
Eu até pretendia responder, mas com essa doida possessiva já
alisando o meu peito, resolvo ficar calado. Ela passeia a mão pelo meu
mamilo direito, o que me deixa puto, pois acabo de lembrar que precisei
remover os piercings para esta festa.
— Ah, eu amo festas na piscina. Mas vocês estão bem secos, não
vão dar um mergulho? — Aurora pergunta. Olhando-me de lado, continua:
— O Harry amava piscina. A gente gostava de brincar de quem ficava mais
tempo embaixo d’água.
— E você sempre perdia. — Eu não consigo me conter, lembrando-
me de nossas brincadeiras.
— Ah, foi assim que demos o nosso primeiro beijo, lembra? Eu
estava fingindo engasgar, e você foi me salvar, e, seja lá como, terminamos
dando um beijo nojento e babado.
— Para, vai?! Depois a gente melhorou muito.
Aurora ri, achando graça da lembrança.
Embora meu comentário tenha sido sem maldade, a raiva de Branca
parece ter cheiro de fumaça. E quando eu olho para ela, seu rosto pegando
fogo é a causa do cheiro. É coisa de outro mundo ver o quanto ela consegue
mudar rápido de semblante e forçar um sorriso falso para a minha amiga.
— Olha amor, que coincidência... — Branca diz, olhando para mim.
— Foi assim mesmo que eu beijei uma garota pela primeira vez, acredita?
— Sei que é mentira só pelo seu tom de voz. — Mergulhamos juntas, e,
quando levantamos, já estávamos enroscadas e bem babadas em outro lugar,
se é que me entende... Desde então, eu nunca mais parei de beijar garotas.
Acho tão bom!
Por que Branca está tentando foder com a minha mente? Eu nem fiz
nada! Foi apenas um comentário bobo, eu não tenho o menor interesse em
Aurora. Éramos novos, muita coisa mudou.
E me irrita ver os olhos de Aurora brilhando, correndo de Branca
para mim, parecendo entender que as palavras de merda da minha “noiva”
são um anúncio, quase um convite para se pegarem.
— Então, vocês têm um relacionamento aberto? — A loira lambe os
lábios e percorre a Branca da cabeça aos pés, demorando muito em
inspecionar os seios, parecendo perceber a marca dos piercings nos
mamilos. — Eu também adoro beijar garotas — diz, toda sorrisos à Branca.
Antes que a mandada abra a boca para falar merda, eu interrompo
logo:
— Não! Temos uma relação muito fechada! — Tento não rosnar,
com dificuldade. — Desculpa, Aurora, mas lembrei que preciso fazer uma
ligação no meu quarto. — Quando eu me levanto, aproveito para encarar a
safada que finge ser minha noiva. — Vem, amor. Depois eu quero conversar
com você.
— Amei o nosso papo, Aurora — Branca diz enquanto se levanta.
Eu quase massacro os dentes de tanto que os trinco, vendo-a lamber a boca
e encarar o rosto da loira. — Daríamos ótimas amigas.
Saio andando, sentindo que minhas pegadas poderiam abrir fendas
no chão enquanto sigo o trajeto até o meu quarto. Essa garota está querendo
me irritar, foder com a minha mente, criar a porra de um ninho em meu
cérebro dando em cima da Aurora na maior cara de pau.
Sinto Branca caminhando atrás de mim, rindo de modo debochado.
E quando chegamos ao corredor do meu quarto, sentindo-a se aproximar,
viro-me com tudo, sentindo o sangue queimando minhas veias, descendo
fervendo até a minha pica.
— O que você está fazendo, porra? — rosno, empurrando-a contra a
parede. Seguro seu pescoço, odiando a maneira como seu semblante vai de
assustado para completamente debochado em segundos. — Dando em cima
da minha amiga na maior caradura?
Meu coração está batendo tão forte que parece amplificar o som dos
batimentos para berrar em meus ouvidos. A raiva espeta a minha pele como
se fosse uma agulha fina, fazendo-a arder em cada pedaço do meu ser. Mas
Branca não está menos nervosa, sinto a veia de seu pescoço pulsando
freneticamente sob a minha mão.
— Vou te ensinar as regras deste jogo, Harryzinho. — Sua voz é
pura sedução. Branca desliza o indicador pela minha boca e vai descendo
pelo queixo, arrepiando-me ao traçar caminho pelo meu pescoço. — Toda
vez que você me fizer sentir ciúmes, seja propositalmente ou por acidente,
eu darei em cima da puta que estiver causando isso.
Pisco tantas vezes que parece até que tem areia em meus olhos. Eu
nunca ouvi algo tão absurdo. Essa garota é mesmo doida.
— É mesmo? E se a mulher em questão só curtir homens, quão
frustrada você vai ficar ao saber que eu vou socar isto aqui nela até cansar?
— Rendendo-me ao seu joguinho idiota, pego sua mão, que já estava na
altura do meu peito, e a levo até a minha sunga. Solto seu pescoço apenas
para puxar o tecido e enfiar sua mão lá dentro. Eu a envolvo ao redor da
minha pica, que ruge, que dói, que quer meter no ponto mais fundo da
boceta dessa safada. Branca me olha horrorizada, e posso sentir sua mão
tremendo ao redor do meu pau. Sorrio de canto, adorando ver que ela não é
a única a saber jogar por aqui. — Eu não vou pensar duas vezes antes de
foder gostoso a Aurora se voltar a dar em cima dela!
Seus olhos faíscam um ódio que grita o quanto ela quer me matar.
Branca segura meu pau com força, mas não causa dor. Na verdade, ele vibra
de tesão. Ela está puta! E, perdendo a compostura, fica na porta dos pés
descalços e olha em meus olhos.
— Faça isso e eu juro que armo um barraco!
O curioso é que Branca não solta o meu pau. Em vez disso, move a
mão e, quase de maneira imperceptível, punheta minha pica. Ela engole em
seco ao perceber o que fez, porque minha cara denunciou que eu gostei do
movimento.
— Acontece, amor... — Toco seu rosto, tirando uma mecha de
cabelo que começa a grudar em sua bochecha suada, aproveitando para
fazer um leve carinho. E mesmo que agora ela tenha o potencial de explodir
a casa inteira, de tanta raiva, fecha os olhos e parece curtir o gesto. — Que
agora temos um problema aqui: estou duro pra caralho e cheio de tesão por
você. Vai resolver isso... ou eu realmente terei que ir atrás de outra?
Branca vira o rosto, tenta fugir do meu toque, mas não solta o meu
pau.
— Se você...
Antes que conclua a sua frase, eu chuto o balde e meto a mão na sua
bunda, puxando-a com tudo contra mim. Com a outra mão, agarro uma
porção de cabelo sobre a sua nuca, finalmente me jogando nas águas
sinuosas que compõem essa mulher, mergulhando em sua boca.
Ela nem tenta fingir resistência. Com a mesma sede que eu, Branca
se lança no beijo, mata sua sede em minha língua. Nossas salivas se
misturam aos gemidos que damos. Eu deslizo a mão por baixo de sua saída
de praia, agarro a pele quente de seu rabo e aperto como tanto desejei fazer,
a ponto de marcá-la com meus dedos. Sinto meu pau ainda mais molhado
que o nosso beijo, e quando ela resolve masturbá-lo, movendo a mão da
base até a cabeça enquanto sugo sua língua, eu gemo em sua boca:
— Gostosa do caralho! — Ela soluça quando eu puxo mais forte o
seu cabelo. — Tá sentindo o quanto mexe comigo? O quanto meu pau está
a ponto de explodir por você?
— Harry... — Branca suspira em minha boca e não para de esticar a
pele do meu pau, subindo e descendo em uma tortura gostosa demais.
Sorrio, soltando seu corpo para retirar a saída de praia, apenas
desfazendo o laço do pescoço que a segurava e a vendo deslizar por seu
corpo até encontrar o chão. Depois, levo uma mão até o laço do biquíni em
sua nuca, desfazendo-o. Quando a peça despenca em sua barriga, eu me
afasto o suficiente para contemplar seus seios. E... porra, eu nunca vi mais
perfeitos! Médios, durinhos, de mamilos rosados, e esses piercings
barbell[10] atravessando cada um me faria gozar só de os encarar.
— Olha esses peitos, Branca! — Ela suspira quando eu me
concentro em apertar os dois. — Parecem feitos pra mim!
Levo minha boca até seus seios, hipnotizado com os piercings. Eu
lambo um a um, amando o modo como ela treme e aperta mais o meu pau
em sua mão pequena. Quando finalmente sugo um deles, sinto que poderia
fazer isso por horas. Eu mamo seu peito, sugando com força, voltando a
apertar seu rabo, que é outra perfeição da natureza. Minha boca produz
estalidos conforme a sucção falha. Meu pau baba como se morresse de
fome, mas minha boca está amando se alimentar nesses peitos gostosos.
— Ai... — Branca punheta meu pau, geme, contorce o corpo contra
a minha boca. Eu só paro de sugar com força quando ela choraminga mais
alto. — Por que fez isso?
Meus olhos estão pesados de prazer quando eu vislumbro a mancha
roxa ao redor de seu mamilo esquerdo. Bato na base de seu peito com a
palma da mão, amando vê-la dar um pulinho de susto.
— O quê? O chupão?
— Não! — Branca solta meu pau e me empurra no peito com tanta
força que eu chego a cambalear. Ela está ofegando, com a boca inchada, os
cabelos bagunçados e o rosto vermelho de tesão, fechando com chave de
ouro a delícia que é este momento. — Por que me obrigou a fazer isso? —
Eu ainda não entendo, mas quando ela se ajoelha, engole em seco, puxa a
minha sunga com tudo para baixo e encara meu pau, completamente
hipnotizada, é que cai a ficha de sua pergunta. — Não tem como tocar em
algo tão gostoso e não querer provar, Harry!
— Então, não fique só na prova, pode o engolir inteiro. E depois...
— Eu me curvo e puxo seu cabelo na altura da nuca, forçando sua cabeça a
tombar para trás. Esse olhar... caralho! Esse olhar da Branca é de quem está
chapada, e a droga que causou isso tem um nome: desejo. Ela quer muito
me chupar. E, esfomeado, eu a beijo como se estivesse quase em inanição,
aguando ao observar o banquete perfeito que eu tanto quis provar. —
Depois você tem que beber tudo o que ele soltar na sua boca.
— Acha mesmo que eu sou o tipo de mulher que desperdiça? — Sua
pergunta retórica é seguida de um olhar cheio de desafio.
Quando levanto, estou sorrindo. Ela tem mesmo cara de que vai me
dar um chá de boceta tão bem dado que fará tudo o que vier depois parecer
sem gosto, mesmo para um viciado em mulheres como eu.
Branca olha para o meu membro, realmente o admira, segurando-o
pela base e encostando a cabeça em minha barriga para encarar o piercing
no freio da minha pica. Parecendo ainda mais seduzida, leva a língua até ele
e o lambe. Eu chego a ficar na ponta dos pés. Sinto a porra do sangue correr
por cada pedaço do meu corpo. Estou pegando fogo, nem a temperatura de
um vulcão chegaria perto do calor em minhas veias.
Branca suga o piercing, lambe, mordisca a bolinha em um dos lados,
gemendo enquanto faz isso tudo. O jeito como inspira o meu cheiro, como
arfa, é tão único. Eu nunca vi uma mina venerar o meu pau como ela está
fazendo.
— Eu nem te chupei e você já está tremendo assim? — provoca,
pousando a mão direita em minha coxa e passando a língua no topo do meu
pau.
Branca lambe sem pressa a umidade ali, olhando-me com a cara de
safada que só ela tem, provocando-me, sabendo que esse olhar por cima
pode acabar comigo. Aliso sua bochecha corada quando ela finalmente
resolve engolir a cabeça. A pressão que coloca na primeira sugada já me faz
tombar a cabeça para trás. Ela suga, e suga... Forte, gostoso, fazendo-me
soltar a porra de um sibilo enquanto ela punheta o meu pau com uma
pressão intensa. Quando ouso olhar para baixo, a safada está com os olhos
grudados em mim, sem timidez, quase me atravessando com essa encarada
cheia de desejo.
— Cara, eu já te acho linda... Mas com meu pau na sua boca, você
fica realmente uma ninfa.
Ela ri, sem soltar o meu membro, e parecendo querer me presentear
pelo elogio, mergulha no meu pau. Branca move a língua enquanto me
mama, subindo e descendo e me chupando com maestria.
Preciso engolir em seco para não xingar bem alto a cada vez que
meu pau vibra com a delícia que é o boquete de Branca, inchando mais
ainda dentro de sua boca. Ela só me tira da boca para cuspir sobre o meu
pau, e parecendo esfomeada, volta a me chupar com força e maceta minha
pica com a mão.
Ela geme enquanto o engole, e quando eu penso em me empurrar
mais fundo em sua boca e sufocá-la, a diaba faz isso sozinha. Mergulha tão
fundo que eu sinto a ponta do meu pau em sua garganta.
— Porra... Branca... — gemo, tomando seu cabelo em minha mão
como uma rédea, sentindo o primeiro impulso forte de gozo chegando.
Branca se afasta depois de alguns segundos, tirando-me da boca e
frustrando-me, com o curso de um rio saindo de sua boca e indo parar em
seus seios, formado por baba. É lindo ver a cara dela toda molhada por
conta do boquete, e, doido de desejo, eu me abaixo e a beijo de novo. Sinto
o gosto do meu pau em sua língua quando a engulo, o cheiro dele em seu
rosto, e, enlouquecido, penso que gostaria de vê-la coberta por meu cheiro
por muito tempo.
— Esse pau é tão gostoso! — fala entre meus lábios, com uma voz
manhosa, quando eu começo a me afastar.
— Você é que é gostosa... — elogio, deixando um tapinha leve em
sua bochecha. — Mas eu gosto de gozar de um jeito diferente, linda.
— Diferente como?
Eu tenho a sua atenção, mas é difícil me concentrar com ela
voltando a masturbar o meu pau do jeito foda que só ela sabe fazer.
— Assim... — Eu puxo sua cabeça contra o meu pau, gostando do
sorriso safado que ela me dá quando já o engole com tudo. Porém, eu não a
deixo trabalhar. — Agora, eu faço o trabalho, Branquinha.
Devagar, começo a foder a sua boca, arremetendo para dentro,
enquanto seguro sua cabeça com as duas mãos. Ela alisa minhas coxas,
parecendo curtir o meu corpo enquanto me aperta do mesmo jeito que eu fiz
em seu rabo. Branca tenta fazer pressão, sugar meu pau enquanto meto em
sua boca, mas quando eu acelero os movimentos, ela entende que não tem
como. Eu vou forte e fraco, rápido e devagar, até alcançar o fundo de sua
garganta. Seguro sua cabeça, deixando meu pau parado e a impedindo de
respirar, até que engasgue, que tussa, e com o pau vibrando e o corpo
entorpecido de tesão, saio com tudo e a deixo respirar. Esse som dela
tossindo, toda molhada, encarando-me com medo e desejo... tudo isso me
deixa maluco. Deixo que ela se recomponha, mas por poucos segundos,
antes de me enfiar de novo e voltar a meter em sua boca.
Meu pau vibra com mais força, esquenta inteiro, e sou eu quem mal
respira agora. Meu gozo chega forte, doloroso, e gemendo para dentro, para
que ninguém nos ouça, eu me derramo inteiro em sua boca. Estou puxando
seu cabelo com força, e enquanto ela tosse e engasga com a minha porra,
choraminga.
Com o último espasmo, que leva embora a derradeira gota da minha
porra, eu saio de sua boca. É uma obra de arte essa Branca de joelhos, com
porra escorrendo do queixo, lágrimas salpicando os olhos e uma cara de
quem teve a boca muito bem fodida.
Enquanto ela luta para respirar direito, engolindo minha porra e ao
mesmo tempo tentando limpar a boca, eu me abaixo e a puxo com tudo para
cima.
— Harry...
— Shhhh! — Viro-a de costas para mim, puxo minha sunga e a
visto. Pego sua saída de praia e vou a empurrando para frente, até, por fim,
chegarmos ao meu quarto. — Já metemos o louco fodendo no corredor, mas
a jogada final será aqui dentro.
— Eu... — Branca nem tem tempo de falar, porque, depois de jogar
a saída de praia no chão, eu já a levo direto para a cama.
São precisos poucos movimentos para tirar a sua calcinha e depois a
fazer se deitar de costas no colchão. De pé diante dela, olhando para a sua
boceta rosada, pequena e toda molhada de tesão, sinto meu pau acordando,
como se não tivesse acabado de gozar.
Branca me encara, parecendo trêmula; se de frio ou medo, não dá
para saber. Eu quero beijá-la novamente. Nosso beijo encaixa, combina de
um jeito perfeito, mas é sua boceta que merece a minha atenção agora. Por
isso, eu me ajoelho diante dela, olhando para o clitóris lindo que ela tem.
Pequeno, mas perfeito para carregar uma joia. Os lábios rosados, a trilha
bem fina de pelos escuros acima do clitóris. Essa boceta é meu tamanho
certo. E quando eu desço a boca até ela, quando inspiro esse cheiro do
caralho que poderia grudar em mim para sempre e eu adoraria, sei que
poderia bater uma até gozar diante desse paraíso.
— Você tem a boceta mais linda do mundo, Branca! — elogio,
segurando suas coxas e a puxando ainda mais para a beirada da cama.
Branca se apoia nos cotovelos, levantando a cabeça para ver o que
vou fazer. E quando eu traço minha língua por toda a sua boceta, do topo
até o seu cuzinho apertado, suspirando com o tesão que esse gosto doce me
provoca, ela dá um sorrisinho misturado a um gemido.
Sugo e engulo toda a umidade que ela está soltando, e quando já
está mais seca, subo até seu clitóris e começo a chupar. Branca despenca na
cama, liberta um gemido, contorce o corpo quando eu rodeio minha língua
sobre ele, quando o torturo com movimentos leves.
O gemido dela é perfeito. Manhoso, arrastado, no volume certo para
me fazer querer levantar e meter dentro dela pelo resto do dia. Mas eu me
contento em apenas deslizar meu dedo do meio dentro dela. É apertada,
macia, e... porra... como eu queria que fosse o meu pau aqui!
Eu movo o dedo e a língua na mesma medida, amando que, quanto
mais eu a estimulo, mais molhada ela fica. Branca treme, e quando eu olho
para cima e a vejo bagunçar o próprio cabelo, de tanto tesão, tenho certeza
de que essa imagem vai grudar feito uma tatuagem bem no meio do meu
cérebro.
Deslizo mais um dedo para dentro de sua boceta molhada, e só tiro a
boca para a substituir por uma massagem com a outra mão em seu clitóris.
Agora, coloco o terceiro dedo e bombo bem forte dentro dela, nunca
deixando de estimular o seu clitóris. Eu sei o que estou buscando dentro
dela, o que quero e é minha especialidade.
Branca enlouquece. Começa a gemer mais alto, e sei que todos os
quartos do corredor podem ouvi-la. Neste segundo, é o que menos importa.
É essa carne macia e molhada enforcando meus dedos que me interessa, a
pressão que começa a expulsá-los é a magia aqui.
— Harry... porra... vou gozar...
E realmente goza. Na verdade, ela esguicha quando eu tiro os meus
dedos, com um jato molhando a porra toda, a cama, o chão, meus joelhos. O
cheiro de seu gozo inunda o ambiente, bem como seus gritos.
Estou sorrindo, observando a garota que pensei odiar tremer, toda
vermelha, agarrando o lençol e berrando meu nome enquanto goza...
“Em segundo lugar, não me diga o
que acha que eu poderia ser. Sou eu que
estou na vela. Sou o mestre do meu mar.”
Believer, Imagine Dragons.

Já faz alguns minutos que Branca está deitada, ofegando enquanto


tenta voltar para este mundo. Do jeito que gozou forte e inundou tudo, é até
compreensível que esteja cansada assim. Estou sentado na beira da cama,
alisando um dos seus pezinhos lindos. São pequenos, com unhas pintadas
de vermelho, e tem uma tornozeleira cheia de minúsculas coroas prateadas
ao redor do tornozelo direito.
— Preciso de um banho — ela murmura, forçando-se a levantar.
Eu a ajudo, e quando Branca está de pé, eu me enfio atrás dela e a
agarro pela cintura, depois vou andando junto a ela para o banho. É claro
que vamos terminar isso, pois meus planos são me enterrar nela e sentir a
maciez de sua boceta o mais fundo que eu puder.
Branca se livra do biquíni que ainda estava preso acima da barriga, e
eu trato de atirar minha sunga longe pelo piso claro e marmorizado.
Inteiramente nus, eu ligo o chuveiro e nos enfio embaixo da água morna,
amando ver quão perfeita Branca fica toda molhada. Seus cabelos se tornam
tão escuros que parecem pretos. Seus olhos intensos parecem selvagens
agora, porém, submissos, como se ela estivesse receosa de alguma coisa.
— Vamos continuar o que começamos lá fora? — peço, segurando
seu quadril e me inclinando para beijá-la.
Branca está bem molinha, e chega a subir os braços para apoiar os
pulsos em meu pescoço em câmera lenta, entregando-se à minha boca. Ela
fica na ponta dos pés para me beijar, gemendo baixinho, sugando a minha
língua, fazendo meu peito ferver. Uma das suas mãos sobe e se engancha
feito uma garra acima da minha nuca.
Enquanto eu levo uma mão para apertar sua bunda, penso no quanto
parece errado gostar tanto deste beijo. E eu gosto. Eu poderia beijá-la por
eras, e, ainda assim, acho que o sabor continuaria deste jeito: com gosto de
droga, capaz de viciar cada parte minha. Uma droga doce, macia e que...
porra, eu poderia querer só para mim.
Dou poucos passos até que ela esteja contra o azulejo branco, com
fome o suficiente para já erguer uma das pernas, apoiando-a em meu
antebraço e deixando-a na posição perfeita para eu comer sua boceta.
Quando eu pego meu pau com a outra mão e começo a encaixar em sua
entrada, Branca grita:
— Espera! — Seus olhos arregalados poderiam até ser os de uma
virgem, de tão assustados. Eu consigo ver a incerteza neles, algo como
medo é o que grita ali. Minhas sobrancelhas se unem quando eu vejo seu
peito subindo e descendo muito rápido. — Eu não quero transar agora.
É como levar um tapa na cara. Estou tão perto de provar a
sobremesa... e quando chega a hora de, finalmente, eu me enterrar ali, ela
nega.
— Por quê? — Eu não solto sua perna, nem retiro o meu pau da
frente de sua boceta.
Branca olha para tudo, para os azulejos, para a corrente em meu
pescoço, para o meu pau... Menos para o meu rosto. Está tímida? Com
medo? Eu acabei de socar meus dedos em sua boceta até forçar seu gozo,
que vergonha é essa?
— Apenas não estou com vontade agora.
— Vai dizer que eu fui tão bom que já ficou esgotada? — brinco,
para tentar aliviar o clima, pensando em dizer mais alguma coisa. Mas o
jeito como se lança para mim e me abraça desfaz qualquer fio de
pensamento. Deixo sua perna cair e envolvo minhas mãos ao redor de sua
cintura. Branca me aperta mais forte. Sem salto, ela fica tão baixa, com a
cabeça batendo em meu peito. Eu não entendo essa timidez logo agora, mas
se ela não quer, não tem o que fazer. — Quando estiver a fim, meu pau e eu
estamos aqui, ok? — A brincadeira é toda cheia de verdade.
Branca ri, afastando-se de mim.
— Tá. Mas agora me deixe tomar banho sozinha, por favor. Vou
encher a banheira para descansar um pouco. — Ela se vira para pegar um
sabonete no nicho de mármore ao nosso lado, mas, antes que consiga, eu
me estico e o roubo, pegando-o primeiro.
Enquanto ela bufa, dou risada, lavando o meu membro e a
encarando.
— Espera que eu saia com o pau mal lavado?
Branca fica me encarando de braços cruzados, parada perto do
blindex do amplo box do chuveiro, vendo como eu me lavo de um jeito
obsceno, só para a irritar, punhetando meu pau devagar. Eu nem estou
sentindo prazer, mas é divertido a ver cerrar os olhos para mim, ficando
brava. Quando me canso, eu me enxáguo e finalmente a deixo sozinha para
se lavar.
Eu me seco do lado de fora, olhando para Branca de soslaio, que
fica de costas para mim, envergonhada de se esfregar na minha frente. Eu
me enrolo na toalha e finalmente volto para o quarto. Depois de vestir a
cueca, vasculho o guarda-roupa, em busca de algo confortável para passar o
restante do dia jogando o meu antigo videogame. Não tem nada para fazer
aqui, e eu não estou nem um pouco a fim de voltar para a festa. Ou de sair
de perto da Branca.
Algumas batidas à porta me surpreendem. Pego a primeira coisa que
vejo pela frente – uma calça caqui – e vou vestindo, atrapalhado, até chegar
à porta. Mas eu só a abro depois de, enfim, conseguir fechar o zíper.
Eu me espanto ao ver Edna diante de mim, usando uma saída de
praia longa e amarela, os cabelos presos em um coque e ainda de óculos
escuros. Seu sorriso amplo se exibe antes de ela falar:
— Seu avô gostaria de vê-lo agora, Harry.
Meu coração entra em disparada, eu sinto que poderia até desmaiar.
Será que ele sabe o que Branca e eu fizemos no corredor? Será que está
puto? Que vai me mandar sair da casa dele agora?
— Agora... tipo... neste momento? — pergunto, lutando para não
gaguejar.
— Sim. Aguardarei aqui fora enquanto se veste.
Ela nem espera que eu diga algo, apenas se vira de costas e se
afasta. Meio sem jeito, eu fecho a porta, mas não perco tempo, visto-me
com pressa, com um turbilhão de pensamentos afundando em minha mente.
Ele disse que só me veria amanhã. E estava tomando cerveja na
piscina quando eu saí de lá. Agora quer me ver? Bom, se não for sobre a
Branca me mamando no corredor, ou o escândalo que ela fez ao gozar,
talvez isso seja até bom. Se meu avô estiver bêbado, pode ser mais fácil
conversar com ele. Ou mais difícil.
— Que cara de assustado é essa? — Branca pergunta, com uma
toalha clara ao redor da cabeça e outra ao redor do corpo. — Aconteceu
alguma coisa?
— Meu avô quer me ver.
Ela planeja dizer algo, com os olhos abertos de espanto, mas eu
preciso ir logo, ou terei um treco de tanta ansiedade. Apenas dou alguns
passos até ela, roubo um selinho forte de sua boca e me permito sair do
quarto.
O trajeto até o escritório do meu avô é feito em silêncio, e deixo
Edna me guiar pelas escadarias, como se eu não soubesse o caminho,
depois atravessar alguns cômodos no andar de baixo, até, por fim, chegar ao
escritório.
Eu não gosto deste ambiente, é sério demais. Sentado nesta poltrona,
onde a única coisa que me separa do meu avô é uma robusta mesa de centro
feita de cerejeira, eu me sinto o pirralho que, por muitas vezes, tomou
broncas neste mesmo lugar.
Meu avô, embora esteja com o pé na cova, fuma um charuto,
encarando-me de cima para baixo, completamente relaxado em um sofá de
couro marrom. É sempre difícil ler a sua expressão. Seu blazer azul-escuro
elegante combina perfeitamente com a calça caqui. Isaque é mais uma peça
sofisticada combinando com os móveis caros ao nosso redor.
Pelo modo como está vestido, ele se retirou da festa pouco depois de
mim. E se estava se arrumando em seu quarto, deve ter ouvido Branca e eu
transando. Pior, ele poderia ter nos pegado em flagrante. Isso faz meu rosto
ferver.
— Adorei sua noiva — quebra o silêncio, engasgando com a fumaça
do fumo e fazendo força para se recompor ao me encarar. Quando
consegue, fala: — Branca é uma moça muito interessante. Bonita. E ainda
virou uma leoa para te defender. Como se conheceram mesmo?
É só ele mencionar o nome da Branca que o flash dela toda trêmula
para esguichar gozo por tudo pisca por trás dos meus olhos. Foi bom pra
caralho.
A ansiedade de ter de encarar meu avô me consome, e eu queria
muito poder fumar um baseado. Mas o cheiro se espalharia pela casa, e o
homem sentado à minha frente saberia que eu ainda fumo, o que contaria
pontos negativos contra mim. Eu só vou poder fumar um quando estiver em
casa.
Quando eu penso nisso tudo, no caos que estou vivendo por causa
de uma maldita hacker, desejo que ela sofra. Que meu dinheiro caia em seu
colo como uma maldição. Eu não gosto de desejar mal a ninguém, mas não
sou um otário. Ela merece o meu ódio, o meu rancor. E se eu posso odiar
alguém neste mundo, é essa filha da puta.
— Em uma balada — conto a mentira que acordei com Branca. —
Depois, saímos algumas vezes e acabamos nos apaixonando. Ela agora
mora no loft em frente ao meu.
— Na mesma rua? — Ele parece interessado, seu tom de voz até
fica mais gentil.
— No mesmo prédio. Os nossos apartamentos são literalmente um
em frente ao outro — complemento, e embora seus olhos demonstrem que
está gostando do assunto, eu ainda sinto um frio na barriga. E, feito um
bobo, espero a cada segundo que sua boca profira um insulto, sua maior
especialidade.
— Sabe, ainda há pouco eu tive uma boa conversa com Cristian
Marquez. Ele é o pai do seu melhor amigo, algo que descobri há pouco
tempo.
Cada palavra saída de seus lábios me faz gelar. Cristian é muito
intrometido, vigia a vida do Josiah de maneira obcecada. E sabe tudo sobre
nós, os amigos dele. Até quando o Bill começou a ficar com a Maria, ele já
sabia de tudo, até que eram primos. E o Bill é só a porra do amigo do
Josiah. Arrisco dizer que o Cristian tem vigias nos observando. Bill acredita
que é porque, embora ele seja um pau no cu, ainda ama e se preocupa com
o filho. A minha teoria é que esse corrupto é um psicopata, sempre
desejando estar no controle de tudo.
A pergunta que batuca na minha mente é apenas uma: o que o
arrombado falou para o meu avô?
— Eu não sabia que eram amigos.
— Ah, nós nos conhecemos pelo condomínio. Cristian é um homem
interessante. E sabe o que é mais interessante? — Agora ele se estica para
pegar o copo de cristal com água que sua assistente pessoal acaba de
colocar à sua frente. — Ele me disse que não sabia que você estava noivo.
Contou que está sempre por dentro dos detalhes da vida do filho mais novo,
e que você costuma estar sozinho nas reuniões com os amigos. Apontei a
Branca a ele quando os vi do outro lado da piscina, e Cristian me contou
que nunca viu fotos dela nos relatórios dos seguranças do Josiah.
Porra, as minhas desconfianças sempre estiveram certas! Ele
realmente coloca pessoas para vigiar o filho. E por que aquele merdinha
está se metendo na minha vida? Por que falar essa porra ao meu avô?
E agora?
Embora eu esteja tremendo na base, a ponto de suar frio, meu
cérebro tenta encontrar uma desculpa, algo que aplaque essa desconfiança
dançando no sorriso dele, quase o anúncio de um xeque-mate.
E se isto é uma armadilha?
E se ele já sabe da porra toda, justamente por causa do Cristian, e
agora está me testando? Ele não teria como saber que eu fui roubado pela
hacker. Isso... eu acho que não. Mas pode sim saber que eu não tenho uma
noiva.
Eu já estou fodido, já perdi a grana, as minhas fichas são manter a
mentira bem contada:
— A Branca trabalha com design gráfico, ou seja, fica muito em
casa. Ela é mais caseira do que eu, não costuma sair tanto.
— Ah, geralmente é assim mesmo, são as mulheres com
personalidades opostas que nos conquistam. — Eu não sei decifrar a sua
voz. Sinto-me como se estivesse andando em corda bamba, lutando para me
equilibrar. Um passo em falso e... bum! Ele me desmascara. — Ela não se
dá com a esposa dos seus amigos?
— Se dá, sim. A Branca só é mais na dela mesmo.
— Entendo. E... conte-me: o que o traz de volta, depois de sete
anos? — pergunta. Mas quando eu respiro fundo para responder, ele tira um
de seus espinhos para me espetar: — Deixe-me chutar... Dinheiro!
Seus olhos castanhos se cerram e seus lábios grossos entortam em
um sorriso amargo. Branca falou do meu avô como se ele fosse apenas um
velhinho solitário, amargurado e cansado da vida. Para mim, ele sempre foi
assim, um poço azedo pronto para me magoar. Embora ele não tenha
mentido, pois seu palpite foi certeiro.
— Preciso de uma quantia emprestada para investir em um negócio
com os meus amigos.
De repente, o ar-condicionado central parece soprar o vento direto
em minha espinha, fazendo-me arrepiar e cruzar os braços. Eu não tive
tempo de pensar em vestir algo além da blusa branca para combinar com a
calça caqui. Pela primeira vez na vida, eu desejo estar usando um blazer.
— Que negócio? O tal estúdio de tatuagem?
Suas sobrancelhas se elevam, e ele parece mais interessado, até
apruma a postura e me fita no fundo dos olhos.
— Sim. Josiah e Bill...
— Bill é o todo tatuado, o careca?
— Como sabe disso?
Meu avô nunca os viu, não teria como saber que o Bill chegou a
raspar a cabeça por um tempo. Ele sabe que são os caras do exército, mas
não chegou a conhecê-los.
— Eu tenho um Instagram. Às vezes, peço para a Edna abrir o seu
para eu olhar. — Pisco tanto que me pergunto se não estou tendo um
derrame ocular. Ele me stalkeia no Instagram?! — Você tem bom gosto
para fotos. E daria um bom pai, se tomasse juízo. As fotos com a filha do
Josiah são as melhores.
Eu não entendo o sorriso se formando em meus lábios. Mas gosto
disso, de ele ter me feito sorrir.
Sou um carente do caralho, até um elogio pequeno já me deixa feliz.
— A Julinha é uma fofa e me adora. Ela me obriga a tomar chá com
as suas bonecas.
— Sim, eu percebi. E ela daria uma boa cirurgiã, adora desmembrar
as coitadas. — Agora dou uma boa risada. Realmente, as bonecas da Júlia
são assustadoras, mas nada que estrague as fotos. — Sabe, garoto, eu fico
feliz em ver que se manteve nesse círculo de amigos por tantos anos, que
esteja noivo, e que apareça aqui com um plano de negócios. Não é um ramo
que eu considere muito promissor, mas não deixa de ser um negócio. — E
aqui estão, as belas e famosas alfinetadas. — Quando saiu desta casa,
pensei que nunca mais tivesse conserto. — Engulo em seco, tentando não
me lembrar disso, piscando para conter as lágrimas e aplacar a raiva. Eu sei
que errei. Que fui imprudente. Mas... eu estava ferido, também tinha
perdido muito, e não precisava que ele me demonizasse, que enfiasse o
dedo em minhas feridas e as abrisse mais. Se percebendo a confusão que
está causando dentro de mim ou não, ele raspa a garganta e muda de
assunto: — Conte-me mais. Então, é um plano de negócios?
— Sim. Uma franquia. Josiah e Bill estão expandindo a marca
Ravina para uma rede de estúdios e artigos para tatuagens. Com uma certa
quantia, eu consigo entrar na sociedade com uma porcentagem pequena.
— Que interessante. E acha que isso traria retorno financeiro?
Passamos quase uma hora conversando sobre cada detalhe da
expansão do Ravina, desde o tempo que levaria para eu recuperar o
investimento até quanto a renda extra poderia me dar uma vida mais
confortável no futuro.
Diferente do que imaginei, meu avô não tripudiou da ideia nem por
um segundo, muito pelo contrário, demonstrou bastante interesse. Inclusive,
eu vi um brilho em seus olhos que pensei nunca mais ser possível estar lá.
Não depois da morte da vovó. Ele só brilhava quando a olhava. Depois que
ela partiu, foi como se a alma dele tivesse sido enterrada com o corpo dela.
— Estou chocado, Harry. É realmente um negócio interessante.
— E posso te devolver a quantia aos poucos, no prazo que falei que
começarei a receber os lucros.
— Eu não preciso desse dinheiro. Enquanto estou piscando para
você, tem cinquenta mil entrando na minha conta. — Ele dá um tapinha no
ar, pousando seu charuto em um enorme cinzeiro. Em nenhum momento ele
falou sobre o câncer. E com certeza tem ciência de que eu sei, de que a
Branca me contou tudo. Embora eu queira romper as nossas barreiras e
perguntar, e dizer que eu me importo, sei que demonstrar sentimento pode o
fazer voltar a ser insuportável, e então acabarmos com esse clima mais
“amistoso”. — Você sabe que um dia vai herdar isso tudo, não é?
Respiro fundo e o encaro por cima dos olhos, lembrando-me dele
descendo as escadarias atrás de mim enquanto, com apenas uma mochila
nas costas, eu corria para fora desta casa, com ele berrando que eu nunca
estaria em seu testamento. Que eu era a sua maior decepção.
— Não é algo com que eu me importe. — Tento não ser rude ao
dizer, afinal, preciso da porra da grana. — Ainda tem o Jaime para se
importar com isso. Eu quero construir as coisas do meu jeito, e se me
emprestar o dinheiro, eu o devolverei, como disse antes.
Ele sorri, parecendo satisfeito ao usar sua bengala para se levantar.
Enquanto passa por mim, para por alguns segundos e olha para baixo, para
o meu rosto. Eu não vou fingir que meus olhos não se enchem de lágrimas
quando ele pousa a mão em meu ombro de modo gentil.
— Estou orgulhoso, Harry! Você se saiu melhor do que eu esperava
estando longe de casa. — Meu queixo treme quando eu vejo algo novo em
seu olhar, uma emoção genuína. — Pedirei à Edna que transfira a quantia. E
não se preocupe em devolver. Mesmo que você não faça questão, um dia,
isso tudo será seu e dos seus filhos. E, por favor, não deixe aquela bela
moça escapar!
É tudo o que diz antes de ir. Eu ouço a porta batendo, e quando fico
sozinho neste escritório, finalmente me permito chorar.
É um choro de alívio.
Alívio porque eu vou ter a grana para realizar o meu sonho, e alívio
porque... sim, ele ainda parece gostar de mim. E por mais raiva e revolta
que eu tenha, eu amo esse velho pra caralho! Mas não me iludo, nós não
seremos mais próximos que isso. E, talvez, quando eu for embora, daqui a
algumas horas, nós nem nos falemos mais por algum tempo.
Acho que a rachadura em nossa relação é profunda demais para
algum remendo. Mas ao menos ela deixou de doer por alguns momentos.
“Nós poderíamos viver por mil anos,
mas se eu machucar você,
eu faria vinho de suas lágrimas.”
Never Tear Us Apart, Bishop Briggs.

Enquanto coloco minhas coisas de volta na mala, ainda sinto o beijo


fantasma do Harry sobre a minha boca. É sinistro como sou capaz de
perceber seu toque, a pressão de seus lábios contra os meus, mesmo que já
faça alguns minutos que ele voltou sorrindo para o quarto e me encheu de
beijos, contando que o avô aceitou emprestar o dinheiro. Harry estava
eufórico, e disse que pediu à Edna que transferisse a quantia para a conta do
Josiah, para garantir que a Veneno não soubesse, caso estivesse de olho na
conta dele para roubá-lo novamente. Inclusive, ele está com o plano de usar
uma conta no nome do Bill para guardar as coisas referentes ao negócio.
Harry confia em mim, tanto que me contou seus planos. E eu me senti tão
suja. Não era esse o gosto da minha vingança. Ela deveria ser um azedume
com uma pitada doce, não apenas tão amarga de descer por minha garganta.
Ou afiada, a ponto de causar dor.
Eu não entendo esse nó na minha mente, porque, desde que
dormimos de conchinha, tenho ficado tão insegura com o que estou
fazendo. Só descobrir que ele não é um mauricinho, que foi rejeitado pelo
pai e teve problemas com o avô, não deveria me causar tanta empatia. Harry
me arrancou pessoas que eu amava. Ele ainda causou aquela porra toda. É
por isso que... que... eu não posso gostar tanto de dormir com ele. Ou de
abraçá-lo. Eu não posso ficar impressionada com o quanto o nosso beijo se
encaixa.
Harry quase me fodeu no banheiro. E por muito pouco eu não
deixei. Eu quis. Muito. E como não querer? Aquele pau enorme, com a
cabeça roliça e gigante, veias incontáveis e, nossa, grosso a ponto de minha
boca doer para se ajustar. Se pudesse, eu beberia a porra dele de canudo.
Droga, eu queria que ele me atravessasse, que me fodesse até me
causar dor, para eu odiá-lo ainda mais. Mas nem isso eu consegui pedir para
o Harry fazer. Eu só me blindei. Porque amei beijá-lo, porque amei o modo
como me fez gozar. Sou uma safada, já transei com tantas pessoas que
sequer posso contar, e nunca jorrei feito uma cachoeira. Achava que
squirting nem existia. Que era um mito. Se ele fez aquilo só com o dedo,
imagino o que pode fazer com o pau...
Enquanto fecho a minha mala, eu não consigo deixar de pensar
sobre como me segurar quando estiver doida querendo transar, agora que
sei o quanto ele é gostoso, o quanto consegue me satisfazer, e o pau perfeito
que tem. É só eu ficar triste ou entediada e vou querer correr para a sua
porta e deixar que ele saiba a minha maior sujeira, a dor da minha
existência, o resquício fodido que ter sido abusada pelo pai deixou em mim.
“Você foi estimulada sexualmente muito cedo, Branca. Algumas
pessoas que sofrem abusos na infância crescem e se fecham para o contato
sexual, mas uma pequena parcela pode ser como você. Pode crescer e não
conseguir regular os impulsos sexuais.”
A voz da psiquiatra roda e roda e roda dentro da minha mente.
Quase como uma espiral.
Aquele desgraçado que um dia eu chamei de pai me destruiu.
Ele destruiu a minha mãe, os meus irmãos e incontáveis crianças no
Vale onde o demônio andava pela Terra. E olha só o que sou hoje, no que eu
me transformei. Sou tão imunda e suja quanto seus toques indesejados
sobre mim. Viciada em sexo. Obcecada por uma vingança e muito confusa
em relação ao homem que eu preciso odiar.
Pensei que poderia ser um pouco mais forte, que não sentiria tanto
ciúme do Harry. Sei que em partes isso é por eu não querer pedras no meu
caminho, mas também me pergunto se a minha carência está vindo à tona,
se estou me apegando a alguém a quem quero destruir.
No fim, a minha vingança até pode machucá-lo. Quando eu revelar
que sou a Veneno e tudo o que ele fez na minha vida, posso até ferir seu
coração, mas se eu deixar a Branca apagar a garota venenosa e me
apaixonar, estarei tão arruinada quando tudo acabar quanto o Harry. Eu vou
me punir, beber do mesmo veneno que sirvo a ele. E eu não sei mais se
consigo concluir meu plano de destruí-lo sem acabar doida por ele.
Harry é lindo, cheiroso, e mexe comigo. Esses dois dias jogaram
essa verdade na minha cara de maneira tão forte que eu ainda sinto o
impacto em minha pele. E se ter passado tempo demais obcecada por ele
por si só tenha me feito criar algo? Confundir as coisas? Pensar que ele me
deve tanto que sempre foi meu? Eu sei que ele não me pertence. Que ele é
uma pessoa. Que quando tudo isso tiver um fim, ele vai encontrar um jeito
de seguir em frente, mesmo quebrado, por minha culpa. Mesmo merecendo
cada fratura que deixarei em sua alma. Mas... e eu? Eu realmente consigo
segurar as pontas do tsunami que estou levantando? E se meus irmãos
descobrirem quem ele é? Se quiserem fazer justiça com as próprias mãos?
Se não entenderem que eu sou a única que pode fazer isso, e do meu jeito?
Rafael é tão caótico... Ele vai querer destruir o Harry de verdade.
Matá-lo. Ou, no mínimo, quebrá-lo inteiro. E quão louca eu sou por pensar
que, se algum dos meus irmãos tocar no Harry, eu darei na cara de cada
um?
Ele é só meu!
E ninguém vai machucá-lo, porra!
Eu vou fazer isso, mas sem que um único fio de cabelo dele seja
arrancado. Mas, ao mesmo tempo, eu não consigo fingir que não ando
sentindo uma certa culpa. Eu não achei que beijá-lo, assim como dormir
abraçada ou desvendar essa camada dele com o avô, iria trazer algo assim à
tona. Uma humanidade que eu pensei não existir em mim quando se trata
do Harry.
— Já arrumou tudo, linda?
Droga! Agora ele também me chama de linda. E é tão fofo! Ele não
deveria ser tão doce. O Harry que eu criei na minha mente por um ano era
um monstro. Mas esse aqui parece tão humano, tão... normal. E parece até
ter soterrado a raiva que sentiu de mim pela morte do ratinho.
— Sim. — Quando puxo a mala de cima da cama para pousá-la no
chão, eu me envergonho, ficando com as bochechas quentes ao me lembrar
de que tive de usar as toalhas de banho para limpar meu gozo do chão. —
Que bom que conseguimos resolver o seu problema e voltar para casa um
dia antes.
— Porra, graças a Deus! Eu não aguento mais ficar aqui.
Dá para ver que é difícil para ele ficar nesta casa. Acho que é andar
no meio de todos os seus fantasmas. Seria, para mim, como voltar ao Vale.
E isso doeria muito.
Harry está usando jeans, uma blusa de mangas preta, e, se chutando
o balde ou não, já colocou o piercing da sobrancelha no lugar. Agora que já
está com o dinheiro na mão dos amigos, parece mais leve.
Que merda!
Eu não posso me enganar, acabei me arrependendo de roubar sua
grana. Eu poderia só ter tentado seduzi-lo, irritá-lo o matando nos jogos. No
fim, roubá-lo não valeu de nada, só me deixou com pena e me fez descobrir
um lado dele tão perto do meu que me fez criar uma conexão. E eu não
precisava disso. Eu não precisava ter algo para me deixar mais vulnerável e
cheia de empatia por ele.
— Bora lá buscar o poodle no petshop! Quer dizer, no
estacionamento. — Harry ri, pegando a minha mala.
Como ele terminou de guardar tudo antes de mim, já pediu a um
funcionário para levar a dele para o carro. Sendo mais uma vez fofo para
caralho, ele pega a minha frasqueira e a prende na mala, depois começa a
arrastá-la pelo chão. Mas nem se preserva, apertando a minha bunda por
cima do macaquinho solto e florido em tons de azul e saindo na minha
frente. Isso me esquenta, faz com que eu arfe e, como sempre, fique meio
incerta. Eu posso ficar bem segura a uma certa distância, mas quando ele
me toca, meus escudos despencam e eu amoleço. Eu não sei se é porque
tenho um certo medo de tudo o que ele é, mas eu recuo, deixo Harry tomar
o controle quando está perto de mim.
— Eu não me lembro de ter dado permissão para me apalpar quando
bem entender. — Finjo estar irritada.
Na verdade, eu gosto de ver que ele está a fim de mim, a ponto de
não resistir a me apertar.
— Acho que tenho licença poética para pegar na bunda perfeita da
minha mulher.
— Sua mulher? — Dou uma risada. — Ser sua noiva não me faz sua
mulher, a menos que moremos juntos.
Entro na zoação enquanto saímos do quarto, mas assim que
dobramos o corredor, Isaque está deixando seus aposentos. Ele abre um
largo sorriso ao me ver, deixando a nós dois paralisados, sem saber se
devemos esperá-lo ou apenas ir embora.
— Se moram de frente um para outro, já é quase morar juntos, não
é? — meu suposto sogro diz, deixando claro que nos ouviu. — Pensei que
fossem ficar até amanhã.
Seu rosto exibe uma emoção estranha enquanto ele caminha devagar
até nós. Parece decepção. Ou tristeza.
— Branca tem trabalho acumulado, achei que não precisaríamos
mais ficar, então resolvi ir logo, para ela não se atrasar nos prazos com seus
clientes.
A mentira desliza tão fácil pelos lábios grossos de Harry que até eu
poderia acreditar. Isaque comprime a boca, e quando chega até mim, abre os
braços e sorri. Meio tímida, eu o abraço para nos despedirmos, sentindo o
cheiro forte de seu perfume amadeirado misturado a charuto e cerveja.
— Coloque um bom cabresto nesse garoto! — aconselha ao me
soltar. E por mais incrível que pareça, eu gosto dele. — Quando se casarem,
eu quero estar lá. Darei a festa de presente, caso eu ainda esteja vivo. Então,
é melhor que se casem logo, pois, como dá para perceber, não me resta
muito tempo.
Olho para Harry, para a emoção genuína em seu rosto, uma mistura
complexa de felicidade e surpresa. Ele quer tanto ser amado. E mesmo que
o noivado seja de mentira, fica muito nítido que a oferta do avô atinge sua
parte mais profunda.
Harry parece alguém tão bom e sensível, então, como pode ser o
meu vilão? Por que ele tinha de destruir a minha vida quando eu finalmente
estava perto de ser feliz? Será que as suas atitudes impensadas também
destruíram outras vidas? Tem mais alguém vagando pelo mundo com uma
parte a menos por culpa dele?
E se eu perguntar a ele, se... um dia citar a história que o avô dele
mesmo me contou sobre o que Harry fez de errado? Se eu ouvir a sua
versão?
Mas se ele contar uma mentira, distorcer os fatos e se eximir da
culpa bem diante da minha cara, eu posso ficar tão brava que serei capaz de
arruinar tudo. Acabar com o plano antes da hora ao socar a cara dele, berrar
e me descontrolar.
— Obrigado, vô! Espero que se cuide.
Eles trocam um olhar longo e profundo, e parece que muitas coisas
são ditas só por esse gesto. Isaque estende a mão para o Harry, que solta o
puxador da mala para apertá-la.
E eu não esperava que isso fosse além, que o avô o puxaria para um
abraço, que Harry soluçaria no ombro dele. E... meus olhos marejam. É tão
bonito ver os dois se abraçarem. Eles demoram no gesto carinhoso, mas,
quando se soltam, Isaque já está se virando de costas, a caminho de seu
quarto, parecendo que veio até aqui apenas porque nos ouviu saindo. É
nítido que ele tira o lenço do bolso da calça e limpa os olhos, tão nítido
quanto meu coração doendo por ver que existe amor entre os dois, um amor
dolorido, fraturado, mas... ainda... amor.
— Me adicionem no Instagram. Gosto de ver as fotos.
É a última coisa que fala, por cima do ombro, antes de fechar a porta
atrás de si. Harry só me puxa para ele, gruda minha cabeça em seu peito e
me abraça. Eu não queria ser assim, queria ser apenas durona, mas não fujo
de seu abraço. Eu gosto, alimento-me de carinho. E acho que nós dois
precisamos de carinho na mesma proporção. Por isso, eu fico aqui, agarrada
a ele, como se eu não fosse uma verdadeira cobra pronta para o picar a
qualquer hora.
— Obrigado, Branquinha! — Sua voz está emocionada, suas mãos
acariciam minhas costas. — Você ter vindo comigo fez tudo isso acontecer.
E, então, é como ser engolida pela sensação de culpa por ser uma
vilã, quando, na verdade, ele é o único falso mocinho aqui. Eu quero
resgatar apenas o ódio, aquele que me moveu quando eu o vi na Vermute há
um ano. O ódio que me fez perceber que o Harry nunca foi uma miragem.
Aquele ódio que me trouxe mais vida e a sede de envenená-lo também. Mas
agora eu só me sinto má. Eu só me vejo diferente da princesa que eu sempre
quis ser, e a maldita franja que uso todos os dias para me lembrar da minha
mãe, do quanto ela tentou me proteger da maldade do mundo, faz com que
eu pareça uma impostora.
Eu sou suja.
E má.
E tão ruim quanto todos os vilões que passaram pela minha vida.
E não importa o quanto o Harry tenha sido errado quando me
destruiu, agora acho que realmente sou tão ruim quanto ele.
E não foi o que eu sempre quis?
Engolindo o choro contra o seu peito, sinto meu corpo inteiro
arrepiar quando penso mais à frente, daqui a dois meses, o prazo para isso
tudo acabar. Quando eu o quebrar ao meio e me quebrar também.
Como vou viver com tanta culpa dentro de mim?
— Vamos lá, hora de partir. — Sua voz é quase um sopro.
E tão rápido como me abraçou, ele me deixa para trás. Seguindo
lentamente atrás dele, sinto tanta coisa dentro de mim, tanta confusão. Eu
estava tão certa de tudo, tão... obstinada. E agora Harry simplesmente criou
uma raiz em mim, atacou o meu sistema, como um vírus, deixando-me
vulnerável.
Isso foi mais rápido do que ousei sonhar que seria.
Ele já está se multiplicando dentro de mim, mas não tem como eu o
contaminar se não me contaminar também.
E deixando aquela maldita cena vir à tona, o dia em que os nossos
mundos colidiram, com o vidro se quebrando, rasgando a minha pele e me
rasgando por dentro, eu aceito que volte com tudo diante dos meus olhos.
Enquanto Harry desce as escadarias, eu o vejo sete anos atrás.
Em meio à chuva.
Feito um fantasma.
E só assim eu me permito voltar a sentir raiva.
Eu me permito lembrar que... tudo bem, eu posso ser uma vilã, mas
só porque foi ele quem começou. Foi ele quem se meteu na minha vida. E
esse é o preço que nós dois pagaremos juntos, arruinados para sempre!
Tento limpar meus pensamentos enquanto o sigo para finalmente
virarmos a página da grana, que não, eu não vou devolver. Sou a porra de
uma ladra, e não importa que eu me sinta uma espécie de Robin Hood,
roubando dos arrombados que julgo serem merecedores. A diferença é que
eu sou uma filha da puta nada nobre e fico com o dinheiro para mim. Para o
meu vício em compras e os meus investimentos para o futuro. Para a
Branca doce poder viver e virar a página chamada Harry.
A volta para casa foi tranquila. Deixei o Harry colocar sua playlist
no carro, então foi uma confusão de ele cantando rock, pagode e funk a
plenos pulmões.
Harry está feliz.
E ficou me zoando porque eu odeio dirigir. Eu tenho o poodle
apenas porque queria ser habilitada e ter o meu carro, ser independente dos
meus irmãos. Mas, agora, morando perto de tudo o que preciso, eu não
dirijo nunca. E como a Tijuca tem a porra de um trânsito infernal, deixo o
poodle estacionado na rua a maior parte do tempo, preferindo ir de Uber a
me irritar e xingar alguns arrombados no engarrafamento.
Quando estacionamos diante do nosso prédio, Harry desce do carro
primeiro. Enquanto eu o ouço abrindo o porta-malas, respiro fundo e tento
evitar que os pensamentos de como vamos ficar daqui para a frente me
tomem.
Ele me quer.
E eu o quero também.
Mesmo que eu seja filha da puta demais e queira destruí-lo na
mesma proporção que quero beijá-lo e sentar nele até gozar.
Em um salto de coragem, saio do carro e vou até ele para ajudar a
pegar as malas. Quando Harry fecha a porta do bagageiro, encara-me de um
jeito intenso, com uma cor amarela faiscando por trás de seus olhos. Fogo.
Fome. E não demora nada para que a rasa distância entre nós seja superada
com alguns passos.
Uma mão possessiva no meu maxilar me empurra contra a traseira
do carro, e em segundos estou encurralada por ele, olhando para cima, com
a alma confusa e o corpo em chamas. Esse cheiro perfeito, essa mão
imensa, essa dureza no meio de sua calça já encostando em minha barriga,
tudo é um coquetel que desce pelo meu corpo, amontando-se em minha
calcinha, inundando-a.
Eu sou amaldiçoada.
Até quando a vida me obriga a ter um novo inimigo, algo dá errado,
porque quando eu deveria apenas jogar com ele, vejo-me perdida em seu
próprio jogo de me seduzir, pois esse toque é sedução o suficiente.
Harry nem abriu a boca, apenas está me encarando, com uma mão
fechada como uma algema na lateral do meu quadril e a outra me
prendendo pelo queixo, descendo só para se engalfinhar em meu pescoço.
— Branca, Branca... você está fodendo com a minha mente. — As
palavras são sopradas contra o meu rosto, com seu hálito gostoso de
chiclete de canela. — Você se lembra da sua proposta de dois meses?
Movo a tensão presa em minha garganta engolindo em seco. Pisco
para o seu rosto, lembrando como a visão dele no meio das minhas pernas,
com sua pele brilhando de suor, foi quase uma miragem do paraíso. Pouso
as mãos em seu peito enquanto pergunto:
— De fingir para os meus irmãos?
E essa voz fina, quase não saindo?
Que porra está rolando comigo, cara?
Isso está muito errado.
Eu não estou dissimulando, eu realmente estou afetada para um
caralho.
— Sim. A gente vai fazer uma coisa, se ainda quiser que eu finja...
— Meu coração acelera. Agora que conseguiu o dinheiro, será que ele vai
me obrigar a engolir que tenha a tal ficante? Ou vai dar um jeito de fazer
uma proposta absurda só para me chutar? Eu já sinto a explosão começando
a acontecer dentro de mim ao cogitar essa hipótese, uma raiva tão intensa
que eu quero empurrá-lo bem longe. Mas Harry abre a boca e continua: —
Eu sigo os dois meses, mas como seu ficante. Ficante de verdade e de forma
exclusiva, sem você sair trepando com casais por aí ou se agarrando com
piriguetes na academia.
Piriguete?! Rá! Eu não consigo me segurar, rindo com força.
— Eu nunca imaginei um piriguete nessa sua boca deliciosa! Isso é
tão coisa de garotinha enciumada... — Eu me inclino e mordo sua boca,
mas apenas o lábio inferior, soltando aos poucos e me afastando, só para
provocar. — E vai parar de ficar com a sua mulherzinha?
Agora eu o encaro com firmeza, atravessando seu olhar com o meu.
Harry quer ficar comigo, exigindo fidelidade. É quase um namoro.
Ele gostou de mim a esse ponto. E era exatamente o que eu queria!
Agora tem uma ciranda entre meu lado vadia, chamado Veneno, e a
Branca, a emocionada que, enquanto se apaixona pelo inimigo, é
sentenciada a sofrer quando tudo isso tiver seu fim.
— Eu paro, mas só se você cumprir o trato. Porque... — Agora ele
aperta o meu pescoço, e, cacete, diferente de sentir medo, eu quase gozo só
com isso. Meus seios estão pesados, doendo, desejando outro chupão, para
combinar com o primeiro que ele deixou em seu quarto. — Se me trair, eu
juro que conto para o seu irmão que terminei contigo porque me meteu
chifre!
Sorrio, amando esse ciúme. Amando esse lado possessivo do
Harryzinho. Rendendo-me ao clima gostoso, subo minhas mãos para
repousar os pulsos em sua nuca, doida para dar um beijo nele.
— E se você ousar me enganar, se sequer flertar com outra mulher,
além de quebrar a sua moto inteira, eu ainda vou atrás do meu sogro e conto
tudo!
— Então, está feito! Só ficamos um com o outro. E quando
subirmos, eu vou te foder gostoso, e dessa vez você não vai fugir...
O que sai de sua boca não são palavras, são chamas que queimam a
minha pele, e eu não sei se dessa vez conseguirei negar.
— Harry?! — uma voz animada o chama.
E nem temos tempo de nos desgrudar ou olhar, pois uma loira
baixinha, grávida e saltitante surge ao nosso lado. Ela está com um
macaquinho bem parecido com o meu, só que amarelo. Seu cabelo está
preso em dois coques, um de cada lado da cabeça. Ela tem tatuagens nas
pernas e um piercing maneiro no septo. Acho que essa é a Isabela, uma de
suas amigas que mora aqui na frente.
Ela move o pirulito de uma bochecha para a outra, e sem o tirar da
boca, pousa um pulso no ombro de Harry quando ele dá um passo para
longe de mim e sou obrigada a soltá-lo.
— E aí, Isa, dando uma volta?
— Fui à sorveteria da esquina com as minhas bostinhas. — Sua voz
é sensual, bonita de ouvir, e quando volta seus olhos castanhos para mim,
eles parecem animados e gentis. — Não vai apresentar a namorada? Ana e
Maria estão doidas por isso.
É só ela citar as outras duas, que surgem atrás dela. A de cabelo liso
está chupando um picolé, já a de madeixas cacheadas está com uma
casquinha de sorvete na mão.
— E cadê o seu sorvete? — Harry pergunta, metendo a mão em um
dos coques dela e o desfazendo.
Isabela fica vermelha de raiva e por pouco não acerta um soco no
braço dele, que desvia imediatamente.
— Cuzão! — O xingamento escapa pelos dentes trincados. —
Agora vou ter que prender de novo! E já tomei meu picolé, antes delas. Tá o
maior calor!
— Implicar com você é mais forte do que eu, Ruivinha.
— Ruivinha? — pergunto, mais porque não consigo segurar.
— Ah, eu tinha o cabelo vermelho. E como você já deve ter
percebido, colocar apelidos nos outros é o hobby favorito do Harry. E já que
ele quer esconder você de nós, deixa que a gente se apresenta. — Gosto da
animação dela, do jeito como me segura pelos ombros e me dá dois
beijinhos, um em cada bochecha. É um pouco embaraçoso, mas ainda assim
eu sorrio. — Sou a Isabela, e aquelas são Ana... — Aponta para a de cabelo
cacheado. — E Maria.
As duas acenam, mas a de cabelo liso me olha com mais
curiosidade. E só por isso eu diria que ela é mais desconfiada. Embora seu
sorriso ainda seja doce e genuíno.
— Eu sou a Branca. E não somos namorados — corrijo,
estranhamente sentindo-me tímida.
Elas são amigas dele.
Lembro que cheguei a pensar em me aproximar e roubá-las para
mim. Parece mais um delírio agora, pois com tudo o que o Harry falou dos
garotos no exército, a sociedade com o estúdio e todas as fotos e mensagens
que trocam, eles me chutariam assim que descobrissem quem eu sou e o
quanto quero ferrar com seu amigo.
— Mas é minha ficante! Ficante exclusiva! — A frase é dita para
mim, com uma intensidade gritante, quase um lembrete de que sou dele. —
E de verdade!
Eu não sei por quanto tempo nos encaramos, quase nos comendo à
distância, mas ouço alguns pigarros quando uma voz nos chama atenção:
— Eita! — Ana fala, com covinhas se afundando nas bochechas e os
olhos cor de mel brilhando. — Eu não acredito!
Ela chega a dar pulinhos animados enquanto segura o braço da
Maria.
— Foi o anel? Ele fez vocês se apaixonarem mais?
A voz da Maria é fofinha, combina com seu rosto de garotinha, e
parece até pecado que esteja grávida, porque, sinceramente, essa menina
parece ter uns quinze anos. Ela lembra a mim mesma no passado. Mas essa
memória... eu tranco bem fundo, porque se ela chegar agora, eu posso sair
correndo neste instante para me trancar no meu mundo e me isolar, e vai
saber quanto tempo eu demoraria para conseguir sair do meu casulo.
Eu não posso fazer isso.
Mas posso conhecer mais sobre o Harry se me aproximar das
meninas. E eu não quero magoá-las, apenas as conhecer. Sempre que eu
fuxicava a conversa deles no WhatsApp do Harry, sentia o buraco escuro e
doloroso dentro de mim, a solidão, a falta de ter vivido coisas tão simples
como ter uma amiga com quem contar, alguém além do Dan. Mas eu fui
quebrada demais, nunca consegui ser normal quando saí do Vale, pois
sempre me blindei e não deixei as pessoas me alcançarem verdadeiramente.
É tão fodido nunca ter tido uma amiga.
Eu poderia gostar de ter uma.
— O anel foi fofo — resolvo confessar, olhando para ele enfeitando
o meu dedo. E quando tudo acabar, eu não vou deixar o Harry tomá-lo de
mim. Eu não sei se um dia serei limpa o suficiente para conhecer outra
pessoa, para me apaixonar e ganhar um anel de verdade, sem mentiras por
trás de tudo. Então, este é meu, da princesa que mora aqui dentro. — Mas o
Harry acaba de dizer que quer ficar comigo mesmo depois de todo esse caos
do noivado de mentira, que, pelo visto, vocês já sabem em detalhes.
— E tu acha que a gente ia perder essa fofoca? — indaga Isabela,
alisando a barriguinha.
Ela é uma tampinha, tão baixinha que me faz sentir bem alta.
— Que droga... — Ana faz bico enquanto olha para o celular. —
Vou ter que deixar vocês sozinhos. Preciso ir pegar a minha filha com a avó.
— Ela fica fofa fazendo essa cara, pois seu rosto é todo redondo, e a boca
grossa a faz parecer uma boneca. — Branca, vamos fazer uma noite das
garotas na próxima sexta. Queremos você lá, ok? Pego seu número com o
Harry para confirmar.
Uma noite de garotas? Como eu sempre vi nos filmes e sempre
desejei ter?
E se eu esquecesse a minha vingança só por uma noite? E se eu me
permitisse conhecer o que é ter amigas? E se, por um dia, eu fingisse que
não sou envenenada, que sou uma garota comum?
Eu deveria recusar, mas tem um lado infantil em mim querendo
viver isso. É a pontada de coragem que move a resposta, enquanto meu
sorriso é largo como de uma criança:
— Eu adoraria!
“Minha mente presa num ciclo.
Eu olho para fora e encaro.
É como se tivesse parado de respirar,
mas tivesse acordada.”
Million Reasons, Lady Gaga.

Enquanto entramos no prédio, o sorriso não deixa o meu rosto.


Estou animada com a possibilidade da noite das garotas. Adentramos o
elevador, e eu me sinto leve, pensando em como será esse evento enquanto
Harry aperta o botão para o nosso andar.
Assistiremos a filmes?
Usaremos pijama?
Ou só iremos comer e falar sobre a vida?
— Você está quase brilhando. Esse sorrisinho aí é por mim?
Eu olho para Harry por cima dos olhos, gostando de como ele me
encurrala contra a parede do elevador. Da temperatura que sua pele emana,
causando reações quando encosta na minha. Sua mão desliza para a polpa
da minha bunda, que ele aperta como se já fosse sua, sem pudor algum. E
quando desliza, devagar, seus lábios sobre os meus, esfregando-os de um
lado para o outro, eu agarro sua blusa na altura dos flancos. Fecho os olhos,
sentindo arrepios na espinha, como se fosse uma garotinha, suspirando em
seus lábios de tanto que esse homem mexe comigo.
— Estou animada com a noite das garotas, por isso estou sorrindo.
Harry afasta o rosto um pouquinho, deixando-me chateada, pois eu
já esperava que ele me afogasse novamente em sua saliva gostosa. Harry
faz um bico tão fofo que, se eu não o odiasse tanto, poderia me render à
paixão agora mesmo.
— E eu achando que era o meu charme...
— Seu charme me deixa queimando. Não prefere assim?
— Hum... — Leva o rosto até meu pescoço e inspira meu cheiro
com tanta vontade que parece que morrerá se não fizer isso. E minha
calcinha já está afogada em umidade só com isso. — Gosto quando brilha,
me lembra de sua bocetinha reluzindo depois que você me chupou.
Eu já sinto o corpo acender com as coisas safadas rodando em
minha mente, e no segundo em que estou descendo minha mão para pegar
com tudo o seu pau, as portas se abrem e o cheiro inconfundível de
patchouli surge como um vendaval. Imediatamente, subo a mão para o
quadril de Harry, que gela quando gira o rosto para o lado e dá de cara com
Rafael, o mais zangado de todos os meus irmãos.
Ele trucida com os olhos as mãos de Harry fincadas na minha
bunda, e, raspando a garganta, meu ficante se afasta de mim. Tem uma veia
saltando no pescoço do meu irmão, quase explodindo para vazar o ódio que
toma seu sangue.
Eu não sei para que esse ciúme todo. Ele pensa que somos
namorados, então, esperava o quê? Que o Harry fosse me tratar como se eu
fosse uma virgenzinha? Não era ele que estava emocionado com o meu
relacionamento? Ou Rafael apenas gosta da ideia de eu ter alguém, para
evitar que eu me arrisque por aí caçando uma trepada?
Bom, ele chamou o Harry de cunhado, e por mais que antes fosse
mentira, o garoto todo sem graça e coçando a cabeça ao meu lado está a
meio caminho de ser. Então, meu irmão teria que ter gostado um pouco do
Harry para chamá-lo assim.
— Não voltariam só amanhã?
Ele não se retira da frente da porta do elevador, muito menos nos
deixa sair. Está mais corado, como se tivesse ido à praia. Isso é coisa do
Dan. Meus irmãos são verdadeiros Grumpy x Sunshine. Rafael não gosta
muito de festas, baladas ou de ir à praia. Mas o Dan, ele é um raiozinho de
sol. Ama rebolar até o chão, fuma comigo, adora uma tarde na praia lendo
na areia... Com certeza aproveitou a sexta-feira ensolarada e arrastou o
Rafael para pegar uma cor.
— O Harry precisou vir antes, vai assinar uns papéis da sociedade
dele com os amigos. — Eu o uso como desculpa, assim como ele me usou
como argumento para o avô para poder ir embora um dia antes.
— Ah, sociedade... De que mesmo?
Rafael passa a ponta do indicador pela tatuagem com o apelido bobo
que eu dei a ele quando éramos pequenos: Grumpy. E por mais durão que
ele seja, tem tanto significado em algumas de suas ações. Tipo, o Rafael
mora com o Dan, deixa que ele coloque decorações coloridas pela casa, deu
a Nagini para mim, para ajudar o meu emocional, e cuidou de todos nós
quando perdemos o nosso chão.
Sei que ele me ama. E, porra, eu também amo esse grande pé no
saco.
— Um estúdio de tatuagem — Harry responde. — Vamos abrir uma
rede de franquias e patentear alguns produtos.
— Uau, maneiro! — Rafael parece mais interessado agora,
finalmente nos dando passagem ao sair da porra do caminho. — Você tatua,
também?
— Não, meu lance são os piercings.
— Faz sentido — diz meu irmão, com um esboço de sorriso se
formando nos lábios.
E realmente faz. Com todos os furos que o Harry ostenta pelo corpo,
ele é quase um mostruário ambulante da sua profissão. E meus mamilos já
endurecem quando eu me lembro do piercing no pau dele, do quanto a joia
gelada estava gostosa dentro da minha boca, roçando contra a minha língua
enquanto eu o chupava. E a menos que eu queira começar a suar na frente
do meu irmão, preciso expulsar essas lembranças.
— O Dan está lá em casa? Por isso você está aqui? — pergunto,
referindo-me ao fato de ele estar no meu andar. — Porque, se me lembro
bem, você estava com os nossos outros irmãos na casa da Barra.
— Dan estava se sentindo sozinho e me pediu para voltar logo. Hoje
ele fez o almoço na sua casa, porque estava cuidando do terrário da Nagini,
então, eu vim comer e estou indo minerar.
Meu rosto fica quase roxo vendo o idiota falar do trabalho na frente
do Harry, e sei que fez isso só para me irritar.
— Você trabalha numa mina? Se tu fosse um pouco mais baixinho,
eu acharia que a Branquinha é mesmo a Branca de Neve — Harry comenta.
Sua brincadeira inocente é fofa, mas ele não faz ideia do gatilho que
isso desperta em nós. Suas palavras passeiam em minha mente entre flashs
da minha mãe me contando histórias de ninar sobre princesas, até o dia em
que meu pai meteu seu pau imundo na minha boca após me obrigar a dizer
que princesas não existem.
Sei que estou deixando um ponto de interrogação na cabeça de
Harry, mas tudo o que eu faço é pegar minha mala e a arrastar para fora do
elevador, com os olhos marejados e o coração sangrando. E por nenhum só
segundo eu olho para ele. Quando entro em casa e bato a porta atrás de
mim, eu não me importo com o que ele vai pensar.
Eu só quero fugir desses pensamentos de merda, e olhar para a cara
do Harry depois dessas lembranças não vai me permitir isso. Se eu encarar
a confusão em seu rosto logo agora, vou odiá-lo ainda mais, tacar na cara
dele o que ele me fez na frente do Rafael.
“Eba! Já chegou!”
A frase de Daniel é dita no mesmo instante em que interrompe a
tarefa de fechar o terrário da Nagini. Ele bate palminhas, animado, e me
encara.
Embora não goste de cobras, Dan é tão prestativo que aceita cuidar
da minha quando eu não consigo o fazer. Adoro seu rosto vermelhinho por
causa do sol, mas não consigo sorrir para ele.
Agora, tudo o que faço é me lembrar do seu grito desesperado de
anos atrás, o grito que anunciava que sua mente arrebentava, que uma parte
de seu corpo se desligaria para proteger sua sanidade. E esse grito dói em
cada pedaço que restou do meu coração.
Depois desse dia, Daniel nunca mais falou. Ele já foi a vários
médicos, porque o Rafael não se contentava com a resposta de que apenas
terapia poderia ajudá-lo voltar a falar. A verdade é que, embora a terapia o
ajude a lidar com as suas emoções, eu não sei se ainda tenho esperanças de
que um dia consiga fazê-lo voltar ao normal.
A real é que somos fodidos e destruídos. Quando saímos do Vale,
após tudo dar errado em nossos planos, Rafael recebeu uma oferta do seu
chefe para participar de lavagem de dinheiro. E foi assim que tudo começou
e nós nos enfiamos nessas paradas erradas.
Ivan, meu irmão mais velho e que eu tanto amava, havia morrido.
Ele era o nosso mestre, aquele que, mesmo ferrado pelas circunstâncias da
vida, ainda nos guiava por um caminho bom, para que conseguíssemos nos
levantar de um jeito honesto. Mas quando ele se foi, toda a chance que
ainda tínhamos de tentar sermos pessoas normais foi enterrada com seu
corpo.
Já não tínhamos fé em Deus, muito menos na vida.
E o que somos hoje é apenas o que sobrou para nós.
Sei que Rafael, o cabeça do esquema, pode acabar preso um dia,
assim como os outros. E até eu. Mas espero sair a tempo. Quando eu for
embora do país, arrastarei o Daniel comigo. Então, viveremos de modo
limpo e deixaremos essa merda toda para trás.
Embora eu ame todos os meus irmãos, Rafael e Dan são a minha
maior conexão. Daniel, por ser meu confidente; e o Rafa, porque é meu
verdadeiro e único pai.
Dan estala os dedos na frente do meu rosto, despertando-me dos
meus pensamentos. Eu só me enfio embaixo dos seus braços, sentindo o
toque gelado da Nagini – que já aproveitou a tampa meio aberta do terrário
para fugir – enquanto ela se enrola em meu tornozelo.
— Eu te amo tanto... — sussurro em seu ouvido.
“O que houve, princesa? O Harry magoou você?”
Dan me afasta só para conseguir gesticular a pergunta.
Se ele soubesse quem o Harry é...
Espero que não fique chateado comigo por eu esconder isso dele.
Ou por eu estar à beira de me apaixonar pelo homem que nos tirou tanto.
Respiro fundo e, afastando-me dele, pego o seu maço de cigarro em
cima da mesa. Enquanto acendo o fumo, começo a contar sobre tudo o que
aconteceu na casa do avô do Harry.

Eu já troquei de roupa tantas vezes...


Vesti macaquinho, short jeans, e acabei optando por um vestido de
brim verde-militar. Não é muito curto e tem uma fileira de botões na frente,
na cor marrom. Eu acho que assim fico vestida de maneira casual, já que,
pelas mensagens que troquei com a Ana ao longo da semana, será uma
noite simples, com salgadinhos e bebidas sem álcool, afinal, estão todas
grávidas.
Evitei o Harry a semana inteira, pois minha mente acabou viajando
por momentos demais do meu passado, e volta e meia eu sentia o vidro
cortando a minha pele, o que me lembrava do ódio que tenho dele. Eu não
queria arriscar vê-lo e acabar o tratando mal. Embora, ignorar suas
mensagens ou respondê-las apenas com “estou estranha porque estou
menstruada, gosto de ficar mais na minha nesses dias” tenha sido uma
maneira de rejeitá-lo.
Eu sei que é uma desculpa bosta, mesmo que eu tenha mesmo ficado
menstruada esta semana. Ao menos consegui aproveitar os dias mais
tranquilos para aprimorar um novo trojan[11], zerar o jogo Assassins Creed
Origins, e conversar no grupo chamado “Só as garotas”, onde Ana, Isa e
Maria me adicionaram.
Falamos muito sobre as séries que gostamos de assistir, cronograma
de tratamento para os cabelos e outros assuntos do universo feminino. O
único momento em que eu me senti sobrando na conversa foi quando elas
passaram a falar sobre a melhor posição para transar quando se está grávida.
É claro que isso me trouxe gatilhos da minha própria gravidez, onde não
houve prazer algum enquanto o desgraçado que tinha me engravidado me
fodia.
Fora esse momento da conversa, eu adorei as nossas interações, e
fiquei muito chocada ao perceber como as três são simpáticas. E mesmo
que eu tenha de encarar o Harry agora, ainda estou animada para viver essa
nova experiência, a noite em que poderei ser uma garota normal, em que a
Branca poderá sobrepor a Veneno.
Passo um pouco de máscara para cílios, e quando me olho no
espelho, acho que estou aceitável. Passei uma base leve na face para cobrir
as olheiras – resultado das últimas noites, que foram mal dormidas, por
causa dos pesadelos com a noite do ritual – e um pouco de gloss incolor nos
lábios.
Recebi uma mensagem do Harry hoje cedo, onde ele disse que me
encontraria na porta do prédio às sete da noite, pois estaria voltando do
trabalho. Pelo que entendi, os garotos também terão a noite deles, tomando
cerveja e jogando videogame. Pego uma bolsa porta-celular preta e a jogo
sobre um ombro, e enquanto saio de casa, giro o anel que Harry me deu em
meu anelar.
Por que estou assim, feito uma putinha ansiosa e indecisa? Eu tenho
tudo o que queria quando comecei essa vingança. Ele está gostando de
mim, é meu ficante, e ainda me quer apenas para si, sem dividir. Estou no
seu espaço, conhecendo os seus amigos. Então, por que eu fugi dele?
É realmente o medo de o tratar mal, pelo gatilho... ou são as outras
coisas além do meu veneno? Essa merda de carência que me fez querer me
enfiar em sua cama no meio da madrugada, para testar se dormir com ele
novamente afastaria meus pesadelos, como nos clichês românticos que eu
amo assistir.
Harry é o meu carma.
Minha maior obsessão.
E algo no fundo do meu ser sussurra que também será a minha
ruína.
E se o nosso destino for mesmo arruinar o coração um do outro, um
destino tão certo do qual não há fuga, talvez eu não devesse ao menos curtir
esses dois meses? Só me entregar a boas fodas, a noites legais? Sei que, no
fim, meu lado doce não tem chance contra a minha sede de vingança. Eu
vou arruiná-lo quando chegar a hora. Vou picá-lo, como a cobra que sou.
Então, envenenar tudo em seu sistema. Serei seu maior vírus. Mas, até lá,
eu não deveria apenas me entregar ao sentimento crescendo dentro de mim?
Enquanto desço as escadarias, pois o elevador parou de vez, penso
que é uma ironia da vida que ele seja tão perfeito, com um pau em que eu
quero muito sentar, uma boca que me beija tão bem, e dedos capazes de me
enlouquecer. Não deveria ser assim. Seria mais fácil se ele fosse feio, se não
soubesse usar os dedos ou se tivesse um pau prejudicado. Mas esse combo
perfeito de um deus esquecido pela mitologia, apagado pelos outros, que
tiveram inveja de sua beleza, é apenas a vida querendo me foder mais uma
vez.
E não decepcionando em nada, ele está me esperando na frente do
prédio, recostado contra a sua moto, com todos os seus piercings nos
devidos lugares. A lua está cheia hoje, tão ampla e brilhosa acima de nós
quanto o sorriso largo que o Harry está dando a mim.
A cada passo vacilante que me leva até ele, meu coração encontra
um novo jeito de bater mais rápido. E quando estou dentro da névoa
formada pelo seu perfume, Harry enlaça minha cintura com um braço, e não
é preciso qualquer palavra para ele dizer que sentiu saudade quando agarra
a minha nuca com a outra mão, sua língua invadindo a minha boca já fala
por si. Eu fecho os olhos, amando sentir a dureza do piercing na sua língua
rondando a minha. Arfo em seus lábios, percebendo o seu pau já duro
contra o meu umbigo. Harry morde o meu lábio inferior, descendo a mão
das minhas costas para deixar o apertão que está virando rotina em minha
bunda. Gemo, querendo que ele faça isso quando não houver tecido para
atrapalhar. E chutando a porra do balde que carrega o meu juízo, enfio as
mãos em seu rosto, fico na ponta dos pés e o beijo com fome. Eu sugo sua
língua, rosno contra ela em uma valsa maluca entre desejo e raiva, enfio a
ponta das unhas que já nem tenho em suas bochechas, querendo atravessá-
lo com meu toque, sentindo calor em cada pedaço de pele quando ele puxa
o meu cabelo, quando afasta a minha boca só para mordiscar, sugar e
lamber a pele do meu pescoço.
“Só viva a jornada”, essa é a frase que ronda a minha mente,
querendo que eu esqueça a vingança até a hora do xeque-mate.
— Tenham modos! — A voz da dona Isaura nos tira completamente
do nosso mundinho vermelho, da cor do inferno e do fogo que nutrimos um
pelo outro. — Se querem se agarrar, que o façam num local apropriado!
Quando ela passa por nós, cerrando os cílios e com um semblante de
raiva, nós nos afastamos. Assim que ouvimos a síndica batendo o portão de
ferro do nosso prédio, nós não conseguimos conter a gargalhada.
— Chata pra caralho! — Harry diz, mas seus olhos brilhantes já me
fazem querer voltar a me atracar a ele. — Hoje não deu para fugir de mim,
né, Branquinha? Estava me evitando por quê? Medo de se apaixonar?
— Eu não estava te evitando — minto, corando feito uma garotinha
de colegial quando ele pega minha mão, entrelaça os nossos dedos e
começa a me puxar para caminhar com ele em direção ao condomínio.
Seu coturno faz barulho no asfalto quando cruzamos a avenida. E
pensando nisso, eu me pergunto como pode ele ficar ainda mais sexy
quando está todo de preto. Essa touca, a calça rasgada escura, a regata toda
cavada... Ele é um grandíssimo gostoso!
— Sentiu saudades de mim, gata?
Meu sorriso sai tão fácil com ele. Acho que é quase uma batalha
perdida eu não me apaixonar.
— Um pouco — admito, cerrando os lábios de vergonha enquanto
Harry me guia até a guarita de segurança do condomínio.
— Fugiu de mim porque não queria me dar menstruada? Saiba que
eu não ligo. Na verdade, amo ver meu pau todo vermelho. E você toda
manhosa e sentando nele faria tudo ser bem mais gostoso.
Harry é um safado!
Após me jogar num tanque de lava e me deixar boquiaberta com
essa safadeza que disse, ele me dá as costas e vai falar com o segurança,
mas seu sorrisinho torto, de quem sabe que me fez cruzar as pernas de
tesão, não me passa despercebido.
Depois de algumas palavras com o homem de semblante alegre e
cabelos grisalhos, a catraca é liberada para acessarmos o condomínio. E
conforme vamos andando pelas ruas, juntinhos, feito um casal de
namorados, eu me pergunto quão legal deve ser ter uma família e morar em
um local tão calmo e bem cuidado como este.
— É chique, né?
— Sim. Tenho planos de juntar grana para um dia comprar um
terreno aqui. — É fofo o tom sonhador em sua voz, e eu chego a olhar para
o lado, por cima do ombro, para o seu rosto contendo um sorriso. — É claro
que eu não teria grana para construir uma mansão, mas acho que daria para
vender o meu loft e fazer uma casa pequena. Mas são planos para quando eu
quiser ter uma família...
Eu acho que ele esquece, ou quer esquecer, que um dia herdará uma
fortuna e poderá ter a maior casa deste lugar, se assim desejar.
Então, enquanto ouvimos crianças gritando e gargalhando no
parquinho ao nosso lado, imagino Harry no futuro, com filhos e uma esposa
perfeita, boa, sem veneno correndo nas veias.
Eu não sinto raiva.
Na verdade, meus ombros despencam com o meu olhar.
Ele vai continuar vivendo quando eu destruir seu coração, e, um dia,
vai remontá-lo.
Espero que eu também consiga remontar o meu.
— E você quer ter uma família? Filhos? — As perguntas escorrem
pela minha boca.
— Acho que sim. Eu nunca pensei em me casar e tal, mas acho que
quero ter um moleque um dia. Ou uma garotinha. E você, Branquinha,
quer?
Faz uma semana que estamos ficando e já estamos perguntando
coisas assim um ao outro. Será que é isso que casais conversam quando
estão se conhecendo? Eu não faço a menor ideia, nunca cheguei a esse
estágio.
— Eu tenho um lado sonhador que, como você viu, ama músicas de
princesas e sonha em se casar vestida como uma. Tenho uma imagem na
mente do meu vestido de casamento, com mangas bufantes e uma saia
encorpada, tão brilhante quanto as estrelas.
Eu sei que estou parecendo uma boba, porque meus olhos reluzem e
minha mente viaja quando penso nisso. Em ser leve. Em... viver as coisas
que às vezes eu me permito sonhar.
— E filhos?
É aí que ele me pega. Eu não deveria contar, mas sim ficar quieta e
passar por cima da lembrança, porém, quando paramos diante de uma casa
branca e muito elegante, deixo a confissão escapar por meus lábios:
— Eu já engravidei uma vez e perdi o bebê. E foi tão feio, tão...
ruim, que desejei não poder engravidar nunca mais. Agora, tantos anos
depois, penso que talvez um dia eu fosse gostar de tentar ter um filho.
A mão de Harry desliza para longe da minha, a cor de seu rosto
some, deixando-o quase transparente. Tem um sentimento de pena tão forte
em seu rosto, junto a vincos profundos entre as sobrancelhas, mostrando a
confusão em sua cabeça.
— Você tem vinte anos... Se foram tantos anos antes, quantos anos
você tinha?
Antes que o número doze escorra por meus lábios, o portão da casa
se abre, e no segundo seguinte, Ana surge de mãos dadas com a garotinha
de cabelos castanhos com rajadas douradas da foto do perfil de Harry.
— Você é namorada do meu tio? — a menina pergunta, e está a
coisinha mais fofa do mundo vestida como a Elsa, de Frozen. Ela tem um
dos cantos da boca sujo do que parece ser chocolate.
— E você, é a princesa Elsa? — Fujo de sua pergunta, abaixando-
me para segurar uma de suas trancinhas. — Está igualzinha a ela!
— A mamãe é a princesa Ana, e eu sou a princesa Júlia. Mas a
mamãe me deixa me vestir de rainha Elsa. — Ela me corrige com muita
educação, deixando claro que a Elsa é uma rainha. Sinto vontade de apertá-
la, pelo tamanho da sua fofura.
Sorrio, amando sua inocência, sendo impossível não pensar no
quanto eu teria amado ter uma roupa de princesa quando era criança, em
vez daquela mortalha que era o vestido de linho branco do Vale.
— Esta é a minha filha, e ela estava muito ansiosa para finalmente
te conhecer. E que bom que você veio! — Ana fala, dando-me dois
beijinhos na bochecha quando eu me ergo. — Vamos entrar. E que cara é
essa, Harry?
Arrisco uma olhadela para ele, que ainda está parado a alguns
passos de distância, atônito e sem tirar os olhos de mim. Mesmo sem ter
dito quase nada, eu sei que revelar sobre a minha gravidez o chocou.
Respirando fundo, vou até ele, fico na ponta dos pés e dou um beijo em seu
rosto. Roço meu queixo em seu cavanhaque ralo antes de ir ao seu ouvido e
sussurrar:
— Na hora certa, eu te conto tudo. Por agora, só esquece. — Seguro
seus ombros e lhe dou um selinho.
E é só quando sinto sua postura amolecendo que eu me afasto.
Vou contar tudo a ele, na hora certa, porque não existe caminho para
atirar a verdade em seu peito como se fosse uma bala sem atravessar as
lembranças do Vale. Está tudo entrelaçado, assim como os nossos caminhos
desde a merda que ele fez há sete anos.
Ana está com um sorrisinho fofo enquanto nos encara, segurando o
portão social de sua casa para que nós dois entremos. Júlia já correu para
dentro, gritando algo parecido com “o titio chegou com a namorada”.
Passeio pelo caminho de pedras rodeado de plantas bem cuidadas e
com uma iluminação por baixo, fazendo tudo parecer chique. Uma imensa
porta de madeira é aberta, dando a visão de uma sala com decoração clean
repleta de amigos do Harry. A cena faz as fotos de seu Instagram ganharem
vida diante dos meus olhos.
Ana nos pede para tirar os calçados antes de entrarmos, e enquanto
retiro minhas rasteirinhas, eu não deixo de encarar a casa, ou as paredes
bem altas e claras, os quadros monocromáticos aqui e ali, móveis
planejados encaixando-se perfeitamente em cada pedaço do ambiente. E
quando eu entro, vejo que parece um pouco a casa dos meus irmãos.
Isabela está sentada ao lado de um homem jovem, que creio ser seu
marido. Ele tem algumas tatuagens, mas nada comparado ao cara que gira a
Júlia no ar, pois esse é uma montanha de músculos e tatuado dos pés à
cabeça. Os olhos de um verde vívido e idênticos aos de Júlia deixam claro
que ele é o pai da menina. E... minha nossa, que homem bonito! Todos os
amigos do Harry são. Parecem esculpidos por algum deus do Olimpo.
Estão todos vestidos de maneira mais composta que as meninas,
como se tivessem chegado do trabalho.
— Pessoal, o Harry chegou com a namorada — Ana fala,
atravessando o tapete felpudo cinza da sala para se enfiar embaixo do braço
do marido, que acaba de colocar a filha no chão.
Harry coça o queixo, parando ao meu lado. Ainda sinto uma
estranheza em seu corpo, fruto da informação pesada que eu atirei em seu
colo como se não fosse nada. Mas ele sorri, olhando para mim, e mesmo
que eu não possa ler o que se passa em sua mente, percebo que ele me puxa
para a sua frente, para me exibir realmente como sua. Harry me abraça,
atravessando o braço por cima dos meus peitos para segurar o meu ombro.
— Esta é a Branca, que, embora seja minha mina, não é minha
namorada. — Meu rosto fica roxo de vergonha, pois todos os olhares
piscando ao redor da sala pairam sobre mim. Tímida, dou um leve aceno
com a mão. — As meninas, você já conhece, então, aquele ali com a Maria
é o Bill, o marido dela. E meu sócio lá no Ravina.
O grandalhão sentado em uma poltrona clara acena para mim,
olhando-me bem rápido e já se concentrando em alisar a barriga da esposa,
que está em seu colo. Maria me dá um sorriso doce, que eu devolvo na
mesma proporção.
Reparo que estão com a cor das roupas combinando. Maria, com um
vestidinho cinza rodado; Bill, com uma polo na mesma tonalidade, e que
até combina com a sua calça jeans.
— Ah, eu sou a Isa, e este aqui é o meu amor, o Nate. — Ela faz
uma voz fina ao chamar minha atenção, alisando o ombro do marido por
cima da camisa branca, que está dobrada na altura dos cotovelos. E são
casados, pois a aliança grossa nos anelares esquerdos de cada um chega a
refletir as luzes do lustre caro acima de nossas cabeças. — Mas você já me
conhece...
— Prazer em conhecê-la de novo! — brinco, gostando da piscadinha
que ela me dá.
— Seja bem-vinda, Branca! — Nate sorri sem mostrar os dentes,
acenando com a mão.
Retribuo com outro aceno e um meio sorriso, enquanto Isabela se
levanta, abaixando a bainha do short jeans curto. Sua regata rosa está bem
apertada, dando um vislumbre da barriguinha redondinha que a deixa ainda
mais fofa.
— E por último, Josiah, marido da Ana — Harry fala, apontando
para o homem que já estava pegando um dos controles do Xbox no painel
ripado cinza onde fica a imensa televisão.
— E seu sócio — ele complementa, acenando de longe para mim.
Está de preto da cabeça aos pés, com uma calça parecida com a do Harry,
mas sem rasgos. — É um prazer conhecê-la, Branca. Pode me chamar de
Jow.
— O prazer é meu, Jow. — Aceno.
— Agora, meninos, podem encher o cu de vocês de cerveja para nos
fazer inveja, porque vamos tomar o nosso suquinho, comer e fofocar lá na
cozinha — diz Isabela, e sem eu esperar, vem até mim, enlaça minha mão
na sua e já começa a me puxar para a cozinha.
Harry parece relutar um pouquinho em me soltar, mas com um
sorriso doce na face, ele me deixa ir com a Isabela. Os garotos nem perdem
tempo, pois já posso ouvi-los brigando para ver quem vai escolher o jogo da
noite.
Sobre o piso de porcelanato claro, caminhamos juntas. Enquanto
sinto cheiro de bala de uva na respiração de Isabela, ouço Maria
cochichando com a Ana atrás de nós, algo sobre estar com fome.
Já na cozinha de conceito aberto toda planejada entre tons de branco
e madeira amendoada, porém, afastada o suficiente da sala, para que
tenhamos mais privacidade, uma mesa redonda no canto suporta vários
aperitivos em pequenos potes redondos.
— Então, Branca, a gente não pode beber, como eu disse na
mensagem, mas caso você queira, tem a cerveja dos garotos — Ana fala,
servindo um copo de suco de laranja para si.
— Vou ficar no suco com vocês — digo, sentando-me em uma das
cadeiras amendoadas. Júlia se senta ao meu lado, sorrindo de um jeito
travesso enquanto lambe a região entre o nariz e o lábio superior. O rosto
dela parece muito com o da mãe, redondo e com covinhas marcando as
bochechas. É só no olhar que ela puxou ao pai. — Quantos anos você tem,
princesa Júlia?
— Eu vou fazer cinco daqui a pouco. A mamãe vai fazer uma festa
da Frozen para mim. Você está convidada.
Dou uma gargalhada com a seriedade do convite, percebendo que o
que ela estava lambendo era um filete transparente que escorria de suas
narinas. Ana ri, chegando por trás da filha de supetão com um guardanapo
de papel e limpando à força o seu nariz. A criança choraminga e vira o
rosto.
— Olha, a tia Branca tá vendo você lambendo melequinha! Tem que
deixar a mamãe limpar! — Ana ralha.
Júlia, após ser contrariada, cruza os braços e faz um bico enorme,
para depois descer da cadeira.
— Vou falar para o papai que você disse que eu lambi meleca.
Ela vai pisando duro reclamar da mãe. E, nossa, ela é tão fofa que é
impossível eu não me apaixonar.
— A gente fica nove meses com a criança na barriga para irem fazer
fofoca para o pai até quando estamos cuidando... — reclama Ana, em meio
a gargalhadas.
— Deixe a menina. Quando subirmos para fofocar, ela vai correr
atrás de nós, para se sentir parte da noite das garotas — Isabela sugere,
enfiando um salgadinho na boca. — Fique à vontade para comer, Branca —
fala de boca cheia.
— Ou não. A Júlia tem adorado quando eles a deixam jogar um
pouco — discorda Maria, sentando-se do outro lado da mesa, ao lado de
Isabela.
— Vocês combinaram de engravidar juntas? — pergunto,
lembrando-me de que Ana também está grávida.
— Acredita que não? — Maria é quem fala agora, fazendo uma
pausa dramática para mastigar um pedaço de sanduíche de atum. — Eu
engravidei por acidente mesmo, porque meu marido não queria ter filhos. A
Ana vinha tentando havia algum tempo, mas não conseguia. E a Isa...
— Eu meti o louco! Parei com a pílula porque inventei que estava
na hora de ter um filho. Só contei ao Nate. Duas semanas depois, eu já
estava com um mini revoltado crescendo aqui dentro.
— Mini revoltado? — indago.
— Ah, o Nate e eu somos uma loucura. Temos uma personalidade
difícil, por isso apelidamos o nosso baby de mini revoltado. — Ela se estica
sobre o tampo da mesa para alcançar o pote de pipoca, que eu trato de
empurrar até ela. — Mas foi o destino que quis as bostinhas grávidas juntas.
Mas... sabe, a gente pensa em combinar uma gravidez no futuro, porque eu
quero ter dois filhos. E o Josiah quer mais filhos, mesmo tendo acabado de
descobrir que tem gêmeos na barriga da Ana.
Enquanto eu pego um sanduíche para mim, olho na direção da Ana.
Ou seja, ela já vai ser mãe de três, e ainda terá mais?
— Primeiro, meus parabéns, Ana! Presente em dose dupla. — É
bonito ver a alegria no rosto dela com as minhas palavras. Pelo que Isabela
acabou de contar, ela vinha tentando engravidar, e ter logo dois de tacada
deve ser incrível. — E por que bostinhas? É a segunda vez que ouço vocês
se chamando assim.
Elas se encaram, e tem tanto amor na troca de olhares das três. Ana,
que está sentada ao meu lado, estica os braços por cima da mesa, e quando
Maria e Isabela seguram as mãos dela, meus olhos marejam, porque, seja lá
o que esse apelido signifique para elas, parece algo realmente importante.
— Isabela e eu nos conhecemos na escola — Ana começa, e se pela
gravidez ou apenas pelas lembranças, eu não sei, mas sua voz está
embargada e emotiva. — Eu estava escrevendo coisas no meu caderno
sobre querer morrer. A Isa se sentou ao meu lado e disse que também
queria, então perguntou se podia ser minha amiga. — As duas choram e se
olham com muita profundidade. Eu acho que só vi amor assim no modo
como o Dan olha para mim. — E eu perguntei se ela queria mesmo ser
amiga de uma bostinha.
— Eu revidei que era outra. E, desde então, nós nos chamamos
assim. — Isa limpa uma lágrima, depois solta a Ana e puxa a Maria para
um abraço. — Alguns anos depois, a vida colocou esta branquela aqui no
nosso caminho. Que, toda lascada emocionalmente, como a Ana e eu, era a
candidata perfeita para a terceira bostinha.
— Que lindo! — sussurro, com os olhos brilhando e o coração
quentinho.
Eu queria ser normal assim. Conseguir confiar nas pessoas, no amor
delas. É tão cristalino quanto água a maneira como essas mulheres se
amam. Elas parecem até irmãs...
— Ainda temos lugar para mais uma bostinha. — A voz de Ana é
gentil, e ela está sorrindo ao se jogar um pouquinho para o lado e encostar o
ombro no meu. Se ela soubesse o poder que essas palavras tem quando
entram em mim... Oferecer-me um lugar entre elas quando mal me
conhecem deixa claro quão boas de coração as três são. E quão filha da puta
eu seria se as magoasse? Eu nunca faria isso. Não com elas. Mas... e se
magoar o Harry for, por si só, um jeito de as ferir? — Mas sem pressão!
— Então, conte pra gente: vocês já transaram?
Eu engasgo, de verdade, com o suco que estava bebendo para aliviar
a secura na garganta pelo peso dos meus pensamentos. A Isabela é
totalmente sem filtro, isso já ficou bem claro. Seu cabelo está solto, feito
uma cortina loira ao redor de seu rosto. E rindo da minha reação, chega a
ser meigo, pois ela fica com cara de garotinha quando gargalha.
— Isabela?! — Ana reclama, dando tapinhas nas minhas costas. —
Era para enrolar mais antes de perguntar!
— Eu falei que não era legal sair inquerindo essas coisas logo de
cara... — Maria diz, jogando alguns amendoins boca adentro.
— Então, vocês combinaram de me perguntar?
— É claro! O Harry nunca namorou. Estamos felizes por ele
desencalhar. E morrendo de curiosidade — Ana conta, e quando eu fito seu
rosto, as covinhas profundas em suas bochechas anunciam o sorriso. — As
que vimos com ele por aí nunca vieram para a noite das garotas. Você é
claramente um lance mais sério, por isso foi convidada.
Meu coração esquenta a ponto de doer, e, pela primeira vez em
tantos anos, eu sinto vontade de deixar alguém entrar. Quero derrubar as
paredes do meu casulo e realmente mostrar a Branca. Então, eu realmente
deixo. Solto os meus grilhões. Apago a minha vingança. E, por uma noite,
eu me permito ser a garotinha sonhadora a tomar a luz.
— Sabe, eu não tenho amigas, e ter sido convidada para esta noite
me deixou muito feliz. — Eu tento conter meus olhos de marejarem. E
embora eu também sinta carinho pelas duas mulheres do outro lado da
mesa, é com a Ana, por alguma razão, que eu me sinto mais segura. — E,
bom... nós não transamos. — Quando olho ao redor, vejo o biquinho de
decepção das meninas. — Mas nos chupamos.
Agora sim elas se animam! Isabela chega a dar tapinhas animados
no tampo da mesa, fazendo-me rir e esconder o rosto como se tivesse
quinze anos.
— Ele está com carinha de apaixonado... — Maria ri de modo
sugestivo, cruzando as mãos abaixo do queixo e com os olhos cheios de luz.
Ela claramente é a mais romântica das bostinhas. — Eu nunca o vi assim.
Isso faz algumas borboletas bobas se agitarem dentro de mim, em
um bater de asas alegre que faz meu coração doer. E embora a frase “eu sou
uma fraude” se acenda em neon e pisque diante dos meus olhos, eu limpo a
mente ao me lembrar de que hoje serei apenas eu, sem veneno algum.
— E por que você não tem amigas?
Eu não preciso pensar muito para responder à Isabela:
— Eu passei por muita coisa na infância que me fez perder a fé nas
pessoas. Então, eu me isolo. Só confio no meu irmão para me abrir de
verdade, o Dan.
— Você criou uma armadura ao seu redor e não deixa ninguém te
acessar, é isso?
Pisco para a compreensão dançando nos olhos castanhos da loira,
tentando entender como ela usou as exatas palavras para descrever o meu
comportamento.
— Sim — sussurro. Eu não consigo mais prestar atenção na farra
dos garotos na sala, falando alto sobre a surra que o Harry deu em Nate no
Mortal Kombate. — É exatamente isso.
— Eu sei como é ser quebrada em partes tão pequenas que só te
resta se encher de espinhos e sair espetando até quem te ama, por medo de
ser machucada outra vez. Sou uma bostinha... — Isabela fala, e seus olhos
marejados, junto ao sorriso compreensivo, tocam meu coração muito fundo.
— Meu padrasto abusava de mim. Mas e você, o que resultou na sua
armadura?
São perguntas tão retas que mostram que, com essa garota, não
existe meio-termo. Ela vai direto ao ponto.
— Se eu contar, prometem que não contarão ao Harry?
Elas assentem, e parecem prestes a falar todas ao mesmo tempo,
mas é Ana quem toma a palavra:
— A gente não vai deixar nada sair daqui, pode ficar tranquila!
Mesmo que eu tenha a opção de fugir da pergunta de Isabela, a
resposta escalando a minha garganta tem uma força imparável, porque eu
sempre desejei ter alguém com quem pudesse me abrir.
— Eu nasci em uma seita religiosa, no interior do Rio de Janeiro.
Era uma fazenda enorme, rodeada por muros altos que nos impediam de ter
qualquer contato com o mundo exterior. — O olhar chocado das garotas
deveria ser o suficiente para que eu parasse, para que eu guardasse as
confissões dentro de mim. Mas eu sou tão solitária, tendo somente o Dan
para conversar, que deixo uma confissão atrás da outra escapar de mim: —
Era uma comunidade religiosa conhecida como Vale. Meu pai era o grande
profeta, por ser descendente direto do fundador, e era aquele que ditava as
regras do lugar. Por dez anos, eu vivi como uma criança normal, indo à
escola que tinha lá dentro, brincando e sendo feliz. — Eu posso ver Maria e
Isabela segurando as mãos uma da outra, como se tentassem se dar forças
para encarar o meu relato. — Eu não entendia que os muros enormes e as
regras de nunca sair, porque do lado de fora havia um mundo dominado
pelo demônio, era uma arma para prender as pessoas lá dentro. Ou que tudo
pioraria, a ponto de eu desejar estar morta quando ainda era uma criança.
“Mulheres viviam enclausuradas, sem qualquer direito, à mercê dos
homens, de maneira a parecer que estávamos perdidos no passado, há
centenas de anos, onde a mulher que ousasse tentar sair de lá era
literalmente queimada na fogueira.
Os homens que se rebelavam contra aquele sistema eram
assassinados a tiros. Quando pequena, eu pensava que o pior que poderia
me acontecer eram as surras de cinto que eu levava do meu pai ou de outros
adultos quando aprontava. Ou noites no escuro no quarto do castigo. Ou ler
a bíblia até que cada palavra estivesse impressa em meus neurônios. Mas
um dia meu pai decidiu que enfiar seu pau na minha boca seria uma boa
ideia. Eu passei meses sendo molestada com esses toques, com a boca dele
em mim. Porém, foi quando eu completei onze anos que o meu inferno
começou.”
O queixo de Ana está tremendo quando ela alisa o meu ombro,
querendo me trazer algum conforto. Respirando bem fundo, resolvo
prosseguir:
— Um dia, a minha mãe, debulhada em lágrimas, fez uma trança no
meu cabelo, daquelas que só mulheres adultas usavam no Vale. Eu deveria
ter entendido que aquilo era um sinal. Era o dia da minha iniciação, um
ritual que eu não tinha a menor ideia do que iria acontecer, pois o que
ocorria nele era mantido em segredo das crianças, que só descobriam do
que se tratava quando estavam na idade para participar dele e entrar no grau
dos adultos.
Faço uma pausa, sentindo o coração sangrando, e embora eu ouça
alguns soluços das meninas, a minha mente está longe. Estou vendo o altar
de pedra, as velas ao redor da sala, os adultos vestidos com roupas
transparentes e com as partes íntimas à mostra.
— Você não precisa continuar contando se te faz mal, Branca. —
Ana alisa meu ombro, e por um breve segundo minha visão volta, foca nela,
em seu rosto, de onde a pena transborda. — Acho que entendemos o que
aconteceu...
— Eu preciso falar. — Minha garganta está embargada, a ponto de a
voz sair estrangulada. — Eu nunca contei nada a ninguém, e pela primeira
vez sinto confiança para fazer isso.
— Então, diz. Alivie esse peso — Isabela aconselha, limpando uma
lágrima do rosto.
— Para ser iniciada no primeiro grau das mulheres do Vale, era
necessário que a menina tivesse treze anos. Mas meu pai decidiu que onze
anos era ótimo para mim, e quando, três semanas antes do ritual, eu
menstruei, a fazenda inteira comemorou, como se Deus abençoasse que ele
mudasse as regras para me tornar uma mulher adulta antes da hora.
“Eu não entendia nada, e a minha mãe estava doente, para piorar.
Ela não falava, não comia, fazia tudo de maneira robótica. Hoje, eu sei que
minha mãe estava traumatizada, porque não conseguia impedir o meu pai
de fazer o que pretendia comigo. Mas, naquela época, eu pensava que a
surra pesada que meu pai havia dado nela, por ela ter me defendido de um
castigo, tinha a deixado doente.
No dia do ritual, eles me levaram para uma sala que eu nunca havia
entrado, nos fundos da igreja. Os adultos estavam com roupas transparentes,
e os meus irmãos mais velhos estavam todos presentes, com cara de choro,
como se soubessem o que me aguardava, e que não era nada bom. Eu não
entendia o que estava acontecendo, muito menos o trecho da bíblia que meu
pai, que estava inteiramente nu, leu para os presentes. Falava sobre crianças
e a forma de amar a Deus.
E foi recitando a bíblia que meu pai me deitou naquele altar e me
estuprou. Foi assim que meu irmão, o Daniel, gritou de medo, vendo-me
chorar, clamar por socorro. Ele entrou escondido na sala, porque não havia
sido iniciado ainda, pois a regra de ser iniciado antes dos treze servia
apenas para mim. Dan só tinha doze anos, e foi obrigado a me ver sangrar
como se estivesse morrendo.
E eu realmente morri.
Eu morri um pouco a cada dia depois dali, quando percebi que meu
pai estava me machucando e que ninguém naquele lugar me defenderia.
Que não importava quantas vezes eu gritasse para Deus que me matasse,
que me tirasse daquele sofrimento, não havia socorro para mim.
Naquele dia, Daniel ficou traumatizado a ponto de nunca mais voltar
a falar.
Para piorar, semanas depois, a minha mãe tentou se enforcar com
uma corda no galho de uma árvore. Fomos Rafael e eu quem a tiramos de
lá, e por sorte ninguém viu, ou ela teria sido queimada, que era o destino
das mulheres tocadas pelo demônio. Era assim que suicidas eram vistos no
Vale, pessoas contaminadas pelo capeta.
Minha vida, minha mente, minha alma... tudo ruiu.
Em um dia, eu era doce, uma princesa. Então, no outro, eu era vista
como a segunda esposa do meu pai. Eu via as reuniões dos adultos, onde
eles trepavam no meio das árvores durante a madrugada, onde meus irmãos
eram obrigados a foder mulheres mais velhas, participando de orgias em
nome de Deus.
Depois de o Daniel ser iniciado, eu o vi muitas vezes sendo surrado
até suas costas inflamarem, porque ele nunca ficava duro para que as
malditas velhas daquele lugar o estuprassem.
E quando pensei que não poderia piorar, eu descobri que estava
grávida.
Que, na minha barriga, crescia um filho, mas também um irmão.”
— Meu Deus! — Maria segura o rosto e chora copiosamente. —
Sinto muito! Como eles puderam fazer isso com vocês? Vocês eram
crianças... Ele era seu pai... Seu pai de sangue?
— Sim. — E eu tenho a porra do rosto dele. Minha mãe e eu éramos
as únicas mulheres do Vale exclusivas do meu pai, afinal, ele era o líder,
enquanto as outras eram compartilhadas nas cerimônias de “amor a Deus”.
Tudo naquela porra era podre. Eles diziam que o sexo era um meio de servir
ao Criador. — Ele era um monstro, usava o nome de Deus e uma crença de
que o fim do mundo estava próximo para que abusassem das crianças,
espancassem suas mulheres e fizessem orgias imundas.
— E o seu bebê? — Ana está assustada, alisando a barriga enquanto
pergunta.
Droga! É tão pesado contar isso tudo em um momento como este...
— Vocês estão grávidas, é melhor eu não falar dessa parte.
— Pode contar, a gente aguenta. E nós três temos um passado
fodido, sabemos a importância de falar sobre isso para poder se libertar —
Isabela diz, mas parece até com medo quando eu começo a falar:
— Um dia, minha mãe, que estava cada vez mais longe da realidade,
me deu uma maçã. Ela quase nunca me queria por perto, às vezes me
empurrava, gritava comigo, e eu achava que ela tinha ciúmes do meu pai
me tomar como sua esposa. Naquele ponto da vida, eu já não tinha
inocência alguma, já entendia como tudo funcionava. Afinal, de maneira
compulsória, eu virei adulta antes da hora. — Engulo em seco, lembrando-
me do quanto aquela fase foi terrível. Do quanto eu queria que tudo
acabasse. Mas como tinha uma criança que se mexia dentro de mim, uma
vida, que por mais que eu não conseguisse amar, eu não odiava a ponto de
desejar que morresse, eu me obrigava a aguentar, a viver um dia após o
outro. — Eu pensei que ela estivesse se lembrando das histórias que me
contava para dormir, porque eu amava a da Branca de Neve, e que estava
tentando se conectar comigo de novo. Eu fiquei tão feliz por ela tentar se
aproximar de mim, tão emocionada, que eu comi. E por mais trágico que
possa ser, minha mãe me deu uma maçã que continha veneno. Mas não era
para mim, era para o meu filho.
“Meia hora depois de comer aquilo, eu passei mal. Sangrei por dias
e perdi o bebê. Enquanto o Vale inteiro chorava, eu experimentava uma
mistura de tristeza e alívio, porque era como se eu me livrasse de um
pedaço imundo que o meu pai havia colocado dentro de mim. Mas foi
pensando nisso que eu chorei, chorei a ponto de ter uma enxaqueca, o ponto
de ficar seca, tão estéril de lágrimas que, desde então, eu nunca mais
consegui chorar.
A minha mãe jamais se desculpou por causar a morte do meu bebê,
e embora não conversasse comigo, cuidou de mim após o aborto. Quando
eu me recuperei, contei ao meu irmão mais velho, Ivan, o que a nossa mãe
havia feito, e temendo que a matassem, eu não disse a mais ninguém. Ivan
confessou, mesmo com medo de que eu o odiasse, que fora ele quem trouxe
o abortivo para dentro do Vale, a pedido de nossa mãe. E desde aquele dia,
ele passou a aplicar uma injeção na minha perna, para que eu não
engravidasse mais.
Eu não sei dizer se senti raiva da minha mãe. Ela me livrou de
carregar aquela criança, de ter um filho que eu não queria, mas aquela
criança ainda era minha. Meus sentimentos ao redor disso são confusos
demais.
Ivan e ela estavam havia meses planejando a nossa fuga daquele
lugar, para que saíssemos de lá antes de eu fazer treze anos. Mas meu pai,
como se tivesse pressentido, havia adiantado o meu ritual em dois anos,
acabando com as chances de eles fugirem comigo.
Meu pai dizia que eu havia nascido para ele, para lhe dar uma
linhagem pura, do seu próprio sangue. Ele era imundo em tantos níveis...
Pregava ensinamentos deturpados para alimentar sua sede de prazer e poder.
Ivan era quem podia sair do Vale com meu pai, e de algum modo ele
conseguia contrabandear itens para dentro da fazenda.
O Vale era financiado por pessoas poderosas, que até hoje não
descobrimos quem são. Era por isso que minha mãe, por baixo dos panos,
traçava um plano com o Ivan para que fugíssemos, mas de maneira segura,
de um jeito que, quando saíssemos, não nos encontrassem. Eles estavam
juntando sedativos para um dia fazer todo mundo dormir, assim poderíamos
fugir. Mas ela enlouqueceu quando meu pai passou a abusar de mim, e o
plano ficou todo bagunçado.
Ela era uma vítima, sabe? Minha mãe se apaixonou pelo meu pai
nos Estados Unidos, e quando a polícia começou a investigá-los por lá, eles
fugiram para cá. Ela nunca conseguiu sair do Vale, e poucas vezes falou
sobre isso comigo. Ela conversava mais com o Ivan, que era o seu braço
direito no plano de fuga.
Mas com minha mãe depressiva demais, o Ivan teve de ir fazendo
tudo sozinho, juntando os remédios, roubando dinheiro... Até que, um dia, a
polícia conseguiu invadir o Vale e finalmente fomos libertados daquele
inferno.”
Eu mal as conheço, mas as três são tão gentis que eu senti vontade e
segurança de narrar a minha história. Eu só omito a pior parte: o destino de
alguns habitantes daquela seita maldita, pincelando o que aconteceu com
alguns responsáveis por ele depois da invasão da polícia.
Só contarei cada detalhe ao Harry, porque ele precisa entender tudo
o que eu sou e como foi que ele conseguiu tornar a chance de um recomeço
feliz em algo impossível.
Eu não entendo de imediato o que a Ana está fazendo, mas após se
livrar de algumas lágrimas, ela se vira para mim, pega um guardanapo de
papel e limpa o gloss da minha boca com o dorso da mão, só para aplicar
uma camada de batom vermelho sobre eles.
— Este é o nosso batom da sorte. Usamos quando estamos tristes,
então fingimos que ele é mágico e vai nos deixar feliz — Ana conta,
limpando a lágrima... a lágrima absurda escorrendo pela minha bochecha.
Eu não chorava havia anos.
Eu estava oca.
Por que estou chorando agora?
Talvez, encontrar tanta gentileza em meninas que um dia vão me
odiar doa. Doa de verdade. Ou esta lágrima é apenas de libertação? Por eu,
usando as minhas palavras, poder contar a alguém o que vivi?
Eu não sei ao certo porque estou chorando. É uma lágrima solitária,
não acompanhada de soluços. Mas ela saiu, ela caiu. E ainda que eu esteja
triste por saber que a minha amizade com essas meninas terá o mesmo
prazo de validade que o meu relacionamento com o Harry, esse choro ainda
conseguiu me trazer um senso de libertação.
Então, eu não sou apenas uma serpente.
Eu choro.
— Você nunca contou isso a ninguém? Tipo, a alguém que não fosse
um de seus irmãos? — Maria cerra os lábios após perguntar, e eu nego com
um balançar de cabeça. — Então, escolheu as pessoas certas! Nós te
entendemos. E eu, mais do que qualquer uma aqui, sei que a religião pode
curar e salvar pessoas, mas, em alguns casos, é usada para destruir, para
dominar. Eu sinto muito que você tenha passado por tudo isso. E esse batom
na sua boca significa que a Ana a oficializou como nossa sem a sua
permissão.
Eu sorrio, revirando os olhos, limpando outra maldita lágrima. Sou
tão carente de coisas básicas, como ter amigas ou me sentir compreendida,
que o choro preso por anos saiu aqui, com elas.
É pesado ver que me faltam coisas tão pequenas...
Ana sorri para mim e faz carinho no meu rosto.
— Sei que fazia tempo que você não chorava, mas agora você
precisa sorrir. O batom é mágico, lembra?
Então, eu sorrio, largamente, a ponto de meu peito balançar com a
gargalhada feliz e envergonhada.
E quando ela passa o mesmo batom em si, depois o entrega às outras
duas, que fazem a mesma coisa, eu vejo que as deixei tristes.
— Sinto muito por deixá-las tristes — murmuro, ficando chateada.
Elas estão grávidas, eu as fiz chorar!
— Para com isso! Não deixou nada! A gente vai é se apaixonar e
grudar em você igual carrapato! — Isabela fala, fazendo uma dancinha com
os ombros. — E vamos te chamar para tudo o que fizermos. Eu só não vou
me convidar pra ir à tua casa porque morro de medo de cobra.
Eu gargalho alto, dando-me conta de que a fama da Nagini já foi
repassada para elas. Céus, eu poderia abraçar essas meninas! Se alguém me
dissesse que eu me abriria assim para três grávidas que nem conheço, que
eu choraria com a atenção que elas estão me dando, eu riria bem na cara.
— Acho que não existiria outra candidata mais perfeita para ser a
quarta bostinha. Então, se você quiser ser nossa amiga, vamos amá-la como
uma irmã. Porque você, de nós quatro, é a mais fodida.
— Obrigada, Ana. Eu me sinto lisonjeada com o título de a mais
fodida das bostinhas.
Então, nós rimos.
E isso camufla um pouco a dor das lembranças.
E quando subimos para o quarto, ficamos ouvindo Lana Del Rey e
cantando a plenos pulmões, dividindo chocolates enquanto intercalamos em
conversar sobre sonhos, as profissões das garotas e dicas de produtos de
beleza.
E pela primeira vez na minha vida inteira, eu me sinto parte de algo.
Eu me sinto normal.
Mesmo que eu saiba que, no fundo da minha alma, tudo o que sou é
uma enorme fraude.
“E você diz que não é merecedora.
Fica presa em suas falhas, mas,
a meu ver, você é perfeita como você é.”
Conversations In The Dark, John Legend.

Foi uma noite diferente, mas muito incrível. É sempre divertido


passar o tempo com os meus amigos, jogando, bebendo e rindo para
caralho. Eu fico leve, totalmente longe da saudade absurda que costumo
sentir do meu irmão. Ou da culpa que carrego por tudo o que aconteceu.
Pensei que eu nunca fosse trazer uma garota com a qual realmente
tenho algo, e ver o quanto ela ficou feliz com isso tornou tudo especial.
Branca está com a boca pintada de vermelho, caminhando pelo
condomínio de mãos dadas comigo. Ela não sabe, mas enquanto eu estava
indo buscar mais cerveja para os caras, acabei, por acidente, ouvindo as
garotas falarem que ela era a mais fodida das bostinhas. Sei bem que
Isabela, Ana e Maria apelidam-se assim porque possuem passados
traumáticos. Se elas consideraram a Branquinha como a mais ferrada, é
porque passou por algo muito fodido.
Embora seja lindo ver o quanto as minhas amigas aceitaram e
abraçaram a mulher por quem estou totalmente mexido, a ponto de usarem
o batom da sorte nela, eu não consigo parar de pensar na história de que ela
já engravidou. E a conversa que eu tive com o Rafael no corredor, no dia
em que voltamos da casa do meu avô e depois que a Branca nos deu as
costas, não sai da minha mente.
Passei a semana inteira com aquela porra na cabeça, pensando em
como as peças se encaixavam, e tudo o que eu já tinha visto sobre a Branca
começou a fazer mais sentido.
Rafael, daquele jeito meio marrento e fechado dele, disse que queria
conversar comigo. Ele me contou, lá no corredor mesmo, que todos eles
passaram por coisas muito pesadas quando eram crianças. Sem me dar
muitos detalhes, Rafael parecia estar defendendo a irmã por ela ter saído
correndo do nada. Ele disse que a Branca nunca teve um namorado, que ela
ainda iria se acostumar com o nosso relacionamento. E acabou falando
sobre a irmã ter um vício em sexo, como se eu já soubesse, provavelmente
por pensar que estamos juntos há mais tempo. Tipo, ele virou e falou: “Esse
vício que a faz sair por aí transando com qualquer um quando está triste
surgiu quando ela era adolescente. Eu cuidei dela desde os seus treze anos,
quando meus irmãos e eu passamos a ter somente uns aos outros. Mas eu
nunca consegui tirar isso dela, nem a obrigando a se tratar, então, tenha
paciência. Sei que ela deve dizer que eu pego no pé dela e tudo mais...”. E
eu só fiquei lá, parado feito uma estátua, com ele me contando que a minha
mina é ninfomaníaca.
Eu pensei nisso de maneira obsessiva todos esses dias. Rafael me
contou que Branca chegou a começar um tratamento no passado, e mesmo
que não tenha me dito ao certo quando esse problema começou, eu sei que
foi cedo.
Será que foi assim que ela acabou grávida?
Seja lá como for, eu não fujo das pessoas que gosto quando vejo que
elas têm um problema, eu estendo a mão e me lanço junto no abismo. E eu
já gosto dessa doida. Ela me ajudou com o meu avô, por isso, vou conversar
com ela, contar que sei de tudo e pedir que me deixe ajudá-la.
Se dermos certo, Branca terá de se tratar emocionalmente. Não será
uma opção. Ela VAI se cuidar! E se não funcionarmos como casal, eu ainda
serei seu amigo e estarei lá para pegar no pé dela até que a única opção que
tenha seja aceitar um tratamento. Mas nós precisamos dar certo, porque,
porra, eu durmo e acordo pensando nela. Branca domina meus
pensamentos, ela se infiltrou na minha cabeça e não sai por nada. Eu quase
ouço sussurros do vento recitando o nome dela como se fosse um poema.
Eu nunca fiquei assim por ninguém.
Sempre gostei de ser bicho solto, de foder com várias.
Depois que a Branca aceitou ficar comigo, eu liguei para a Amanda
e terminei com ela. E durante a semana inteira, eu bati punheta enquanto me
lembrava da Branca mamando o meu pau.
Eu sei... estou fodido... já me apaixonei.
— Vamos dar uma volta no condomínio antes de voltarmos para
casa? — Branca pede, andando tão leve e sorridente que parece pisar em
nuvens.
— Você não para de sorrir. Estou feliz que tenha se dado bem com
as minhas amigas.
— Elas são incríveis. — Branca chega a olhar para cima, com os
olhos reluzentes encarando o céu noturno. A leve brisa da madrugada
agitando sua franja a faz parecer um anjo. — As meninas me convidaram
para caminhar com elas aqui no condomínio, todos os dias, na parte da
manhã.
— E você vai vir?
— É claro! Elas disseram que eu sou uma bostinha. — Branca está
fazendo uma voz baixa e fina, voz que só mulher apaixonada faz. E embora
eu não tenha me apaixonado antes, já vi garotas doidas por mim. E Branca
está dando todos os sinais de estar na minha! — Eu nunca tive amigas,
porque sou muito fechada, mas, estranhamente, gostei das três e me senti
bem recebida.
Eu fico em silêncio, pensando que ainda estamos apenas ficando e
as meninas, três emocionadas, já abraçaram esse pedaço de confusão de
mãos dadas comigo. Se eu pisar em falso e magoar a Branca, é capaz de as
três chutarem o meu rabo para bem longe.
Enquanto passamos ao lado de uma quadra de futebol, noto que,
como já são duas da manhã, está tudo meio apagado. O condomínio dorme,
o céu estrelado acima de nós é nossa única companhia.
Branca puxa sua mão entrelaçada à minha, e, quando dou por mim,
ela está me guiando para uma pequena área coberta por telhas de cerâmica
na lateral da quadra, onde, mais ao fundo, ficam dois banheiros. Ela me
prensa contra uma mureta, e quando pousa os pulsos em minha nuca,
percebo que pretende me dar uns pegas proibidos.
— O que está querendo, linda? — Branca morde o lábio inferior,
mas não me deixa pensar muito, pois já fica de joelhos e começa a abrir a
minha calça. Eu não vou fingir que não estou duro feito pedra, já
esquentando com esse olhar por cima, cheio de promessa de que vai me dar
um boquete capaz de me levar aos céus. Ou ao inferno. E eu não sei qual
das duas opções é melhor. — Porra... logo aqui?
— Dogging — É o que sai de seus lábios enquanto minha calça e
cueca são abaixadas ao mesmo tempo.
Olho ao redor, para ver se não tem ninguém nas proximidades. Está
um verdadeiro breu aqui. Uma única luz amarela e fraca da quadra, um
pouco longe, é o que me permite ver bem a silhueta da mulher linda já
masturbando o meu pau diante de mim, que incha ainda mais em sua mão.
— O quê? — pergunto, jogando a cabeça para trás e fechando os
olhos, sentindo Branca metendo a língua na costura do meu saco enquanto
bate uma punheta gostosa para mim.
— Dogging... é o nome do meu fetiche. — Agora ela está subindo
uma trilha com a língua pelo meu pau, arrepiando-me inteiro, fazendo-o
balançar em sua mão quente. — Eu gozo só de pensar em transar em locais
abertos, proibidos, com o perigo de sermos pegos a qualquer momento. —
Agora a filha da puta engole o meu pau, sugando com a pressão que fecha
com chave de ouro o seu boquete perfeito. Ela vai e vem na minha pica, e,
não resistindo, eu já agarro o seu cabelo, sentindo a curva macia dos fios
em meus dedos. Deixando-a imóvel, começo a foder sua boca.
— Você é mesmo uma grande safada — rosno baixinho. — Como
se sente comigo te fodendo assim num lugar errado? — Soco mais fundo,
enlouquecendo com o barulho molhado do meu pênis encontrando a sua
garganta. — Imagina se nos pegarem bem na hora em que eu estiver
enchendo a sua boca com a minha porra? — Ela abre as pernas e, como a
putinha que é, mete a mão no meio delas e começa a se tocar, massageando
a boceta por cima da calcinha. Está gostando de como eu entro no jogo para
alimentar o seu fetiche. Eu me sinto queimando, inteiramente arrepiado,
vibrando de prazer. E fodo mais, indo e voltando, dando margem para que
ela respire, suspire, para depois voltar a fazê-la engasgar. Eu gosto da baba
escorrendo pelo seu queixo, do seu olhar de puro prazer enquanto eu
massacro os seus lábios, porém, já estou cansado de enrolar. — Mas... acho
que seria mais gostoso se nos flagrassem enquanto eu estivesse socando na
sua bocetinha.
Tiro meu pau de sua boca e, segurando os seus ombros, puxo Branca
com cuidado para cima. Ela me encara de um jeito tão gostoso que minha
única opção é beijá-la. E quando eu o faço, sentindo o meu gosto em sua
face, amando a maneira como a baba no rosto dela molha também o meu
queixo, enfio a mão por baixo do seu vestido e aperto a carne gostosa e dura
desse rabo perfeito que ela tem. Branca geme contra mim, e em um só giro,
eu a coloco sentada na mureta onde antes eu me apoiava.
Enfiando-me entre suas pernas, não é preciso força alguma para
abrir, com apenas um puxão, a fileira de botões no topo de seu vestido,
exibindo o par de seios lindos que essa diaba tem. Ela está sem sutiã, o que
me dá a visão perfeita desses mamilos, já duros, chamando meus lábios. E
como eu “resisto a tudo, menos às tentações”[12], já meto um deles na boca.
Eu mamo tão forte que ela geme e se contorce, segurando a minha cabeça e
empurrando mais o peito contra mim.
Branca cheira bem. E, cacete, como a sua pele está quente!
— Porra, Harry, me morde! — Ela segura meus ombros, mas seu
pedido me faz dar uma boa risada. — Não ri, filho da mãe, apenas morde a
porra do meu peito!
E nem precisa pedir de novo, pois já meto os dentes, amando o jeito
como ela choraminga, ou como sua carne macia se molda à minha boca.
Gemo entre a mordida, sentindo meu pau rugindo, clamando para se enfiar
dentro dela. Quando eu me afasto, aprecio a marca dos dentes na região ao
redor do mamilo.
Os olhos de Branca estão marejados, e respirando pela boca,
completamente ofegante, ela poderia me fazer gozar enquanto eu bato uma
só a admirando.
Eu até penso em meter nela sem camisinha, mas como não sei se a
Branca toma remédio e o Bill me contou que a Maria engravidou tomando
injeção, eu não vou arriscar. Abaixo-me, pegando a mochila que joguei no
chão quando ela me encurralou e caçando nos bolsos uma camisinha.
Quando encontro um pacotinho solitário, eu me encaixo no meio das coxas
grossas de Branca.
Os olhos dela estão caídos, derrubados pelo desejo, e enquanto eu
encapo o meu pau, ela mesma puxa a calcinha vermelha rendada para o
lado, fazendo-me ver sua bocetinha, que, de tão molhada, brilha como as
estrelas. Branca, cheia de atitude, abre os lábios da boceta para mim,
encarando-me com a cara de cadela que só ela tem. Eu enlouqueço,
dividido entre olhar para o seu rosto e para o tesão que é vê-la abrindo a
boceta para receber o meu pau.
— Você é deliciosa pra cacete! Acho que Deus a fez pensando em
mim.
— Porra, não fala em Deus agora. É o diabo quem está rindo ao me
ver me abrir para você me massacrar.
Eu rio, só parando para apreciar a delícia que sinto quando meto a
cabeça do meu pau em sua boceta apertada. Fecho os olhos, sentindo cada
pedaço dela enquanto vou abrindo caminho. Branca estremece conforme eu
vou mais fundo, sentindo sua carne macia doida para enforcar a minha pica.
— Ainda bem que sabe, linda... — murmuro, entrando tão
profundamente que ela é obrigada a soltar as mãos dos lábios da boceta para
segurar meus ombros. — Que eu vou massacrar você. Eu vou te foder tanto,
e tão fundo, e tão bem, que você nunca mais vai pensar em correr atrás de
um pau que não seja o meu!
Então, eu meto, sentindo a minha pica batendo em seu útero,
gostando do modo como o seu gemido é quase um choramingo. E quando
ela me abraça forte, com as pernas abertas ao meu redor, barra os gemidos
mais altos mordendo a minha blusa. Porque eu vou fundo, porque eu vou
forte, porque, de uma maneira bem doida, sei que ela gosta que eu meta
assim.
Subo mais o vestido, a ponto de o tecido se enrolar em sua barriga,
segurando as bandas de sua bunda enquanto soco o meu pau lentamente,
mas com investidas que doem até em mim, porque ela é apertada para
cacete.
— Harry... — solta um gemido entredentes, molhando a minha
camisa conforme mordisca o tecido. — Mais forte, porra!
Branca é mesmo uma safada que nasceu para mim.
Então, eu obedeço. Eu fodo bem duro, eu meto com força. Mas a
forço me soltar, porque quero chupar seus peitos gostosos enquanto fodo
essa boceta que está ensopando o meu saco.
Ela me aperta, sua carne moendo o meu pau, fazendo-me ter
espasmos de prazer enquanto sugo o bico do seu peito. Eu o mordo, mastigo
entre os dentes. E, porra, acabo metendo um chupão com a intensidade do
prazer que estou sentindo.
Eu não me contenho, solto sua bunda para agarrar o seu cabelo. Eu
os prendo em um rabo de cavalo e os puxo como uma rédea para trás,
exibindo seu pescoço lindo, beijando, lambendo e, por fim, deixando um
chupão enorme e roxo nele, para que ela se lembre do que estamos fazendo,
para que me escolha quando quiser transar, sabendo o que posso oferecer.
— Vou gozar... — Branca geme um aviso arrastado, segurando a
minha cabeça enquanto eu subo para morder sua orelha. Eu não diminuo o
ritmo, com o coração disparado, o pau sacudindo com choques de prazer.
Continuo arremetendo gostoso, até que sua boceta me enforca com tanta
força que não me resta nada além de esporrar com tudo dentro dela,
gemendo baixinho em seu ouvido, enquanto minha garota quase acorda o
condomínio todo berrando o meu nome, tremendo o corpo inteiro contra
mim.
Meu pau estremece enquanto eu me esvazio na camisinha, enquanto
puxo seu cabelo a ponto de ela choramingar entre o seu gozo. Branca quase
chora, berrando. E quando, aos poucos, vai parando de tremer, diminuindo
o volume dos gemidos, sinto que termino de gozar.
Eu a abraço, tão suado quanto ela, tão contaminado com a sua
loucura quanto ela.
Ofegantes e satisfeitos, nós nos seguramos um ao outro enquanto
tentamos nos recompor. E quando conseguimos respirar em um ritmo
melhor, saio de sua boceta perfeita, embora eu quisesse mesmo era poder
morar ali dentro, fodendo e gozando até não restar uma só gota de porra no
meu saco.
— Agora sim acho que podemos ser pegos — confesso entre risos,
tirando uma mecha suada de cabelo que estava grudada em sua bochecha.
— Você deve ter acordado o condomínio inteiro.
Branca está arfando, olhando-me com olhos reluzentes e a cara toda
vermelha. Eu já vi olhares assim para mim antes, mas costumava fugir
deles. Tem sentimento nesses olhos grandes e escuros. Branca está
apaixonada, e parece saber disso quando alisa a minha bochecha com
carinho. Fecho os olhos por breves segundos, sentindo o toque, gostando
dele. Quando os abro novamente, seu sorrisinho de lábios cerrados é mais
um elemento a me seduzir.
Eu sempre corri de relacionamentos sérios, e mesmo que ainda sinta
aquela voz fantasma dizendo que essa maluca vai foder a minha vida, eu
não sinto a menor vontade de correr dos sentimentos dela. Na verdade, eu
sei que já estou fodido, apaixonado por uma mulher infinitamente mais
complicada do que ousei sonhar.
Pego sua mão do meu rosto, puxo até minha boca e beijo a palma,
depois a deixo cair ao lado de seu corpo enquanto a retiro da mureta para
colocá-la de pé. Acerto sua calcinha no lugar e ajeito seu vestido direitinho,
para ninguém ver o que é só meu, olhando para baixo, incapaz de fugir das
coisas flutuando em seu olhar. Às vezes, parece que Branca tem medo de
gostar de mim, pois embora exista um fascínio intenso na maneira como me
olha, ainda tem uma dose de receio ali também.
— Está com medo de se apaixonar por mim? — pergunto, tirando a
camisinha do meu pau e dando um nó.
Subo a cueca e as calças do jeito que dá, querendo olhar ao redor
para caçar uma lixeira, mas incapaz de desgrudar do rosto perfeito da
mulher que eu quero para mim.
— Sim, estou morrendo de medo — Branca responde, e quando
abaixa os olhos, meu coração se aperta. Eu quero falar com ela, tentar
entender isso, mas quando enxergo uma lixeira a poucos passos, corro até lá
e descarto a camisinha. Volto até Branca e, perdendo-me em seu rosto,
surpreendo-me com uma lágrima fina escorrendo dali. — Sabe quantos
anos fazia que eu não conseguia chorar? — Então, vem outra lágrima, mais
grossa, acompanhada de um pequeno soluço. Eu nego, balançando a cabeça
e secando suas bochechas. Mas não adianta, mais lágrimas caem. Ela segura
minha blusa na altura do peito, olhando-me com tanta dor que eu me
arrependo de ter perguntado. — Oito anos, Harry. E eu não imaginei que
choraria por suas amigas gostarem de mim, ou por medo do que você está
causando aqui dentro. Que eu choraria por coisas ligadas a você!
— Por que todo esse medo? É de que eu não retribua seus
sentimentos?
Ela nega com a cabeça, cerrando os lábios enquanto começa a
fechar os botões do vestido. Como alguém fica oito anos sem chorar? O que
aconteceu com ela? Eu quero perguntar, quero entender tudo sobre a única
mulher que me fez querer realmente ter algo sério, mas sei que não é o
momento.
Tem tantas coisas...
Se Branca perdeu um bebê e não chora há oito anos, significa que
ela tinha doze quando chorou pela última vez. A menos que não tenha
chorado ao perder o filho... Ela era uma criança quando engravidou.
Por que o irmão dela não me disse nada sobre isso? O Rafael me
contou sobre o problema dela, mas não falou sobre a gravidez. Será que a
Branca se tornou viciada em sexo ainda tão pequena? Ele disse
adolescência... Mas doze anos é criança, porra!
Meu Deus!
Eu quero abraçá-la, mas quando tento, Branca não deixa. Ela se
desvencilha.
— Você não entende, e sou egoísta demais para explicar agora, pois
estou sofrendo muito por estar me apaixonando! Porque você é tão lindo, e
eu sonhei tanto em encontrar alguém como você... que me olha como se eu
tivesse valor, que não me afasta mesmo sabendo que eu sou uma vadia que
trepa com pessoas que nem conhece, que se excita em transar em locais
abertos... Você não corre. Você ainda está aqui, fazendo meu peito arder
com tudo isso. Eu não quero me apaixonar, isso vai doer muito.
— Eu já estou apaixonado por você. Não irei a lugar nenhum,
Branquinha. Não tem por que doer se me deixar entrar.
— Porra, Harry... — Ela soca o meu peito, e achando que está brava,
dou um passo para trás. Eu não estou entendendo nada, e me confunde mais
ainda o fato de ela me puxar para si e me abraçar, forte, com sofrimento,
chorando em meu peito e cravando a sentença de que é a mulher mais doida
que eu já conheci. E sou mais louco ainda por estar perdido por ela. — Só
me leva pra casa e me fode, me fode pra doer. E depois dorme comigo,
porque eu não quero ter pesadelos esta noite.
— Não. Vamos conversar agora, eu preciso confessar que já sei de
tudo! — Branca enrijece em meu peito. Quando ela se afasta para encarar
meu rosto, está pálida. Seus olhos se arregalam muito, ela pisca sem parar.
Achando que vai desmaiar, eu a seguro pelos ombros e continuo falando: —
Sei que você tem compulsão sexual, Branca. O Rafael me contou no
sábado, quando você nos abandonou no corredor. — Branca respira alto,
parecendo aliviada, amolecendo os ombros sob as minhas mãos. Eu me
pergunto o que ela pensou que eu soubesse para ficar apavorada assim. Tem
mais coisa aí! — Não precisa esconder isso de mim, porque eu não me
importo. Eu quero te ajudar, quero ficar contigo. E não me importa a porra
dos dois meses do acordo, eu quero muito mais tempo com você, do jeito
que for, desde que seja fiel a mim. Eu quero que quando você estiver doida
para transar, seja o meu pau que você busque. Invada a minha casa e monte
em mim, no meu pau, na minha cara, me use para isso. Pode ir até o meu
trabalho a hora que for, e eu estarei lá para você. Só não me afasta, me
deixa ajudar. — Seu queixo treme. Branca se joga contra mim e me abraça
tão forte, soluçando, que eu vejo quão quebrada é a garota por quem estou
apaixonado. Seu cheiro delicado me consome quando eu afundo o nariz no
topo de sua cabeça. Ela está tremendo, e enquanto suspiro, digo: — Eu
posso te dar algo muito mais bonito que um anel, Branca. Você só precisa
não me afastar.
— Isso é o carma, Harry. Nós somos o carma um do outro, e um dia
você vai sentir nojo de mim.
— Eu nunca vou sentir nojo de você.
— Você vai. E vai me odiar e me afastar quando descobrir que eu
sou imunda.
— Eu juro pelas pessoas que mais amo que sempre estarei aqui para
te ajudar, para cuidar de você até que esteja curada desse problema.
— Não jure, por favor. — Ela coloca o indicador na minha boca.
— Já era, Branca. Você já entrou no meu coração. E está muito
fodida, porque agora eu vou fazer de tudo para nunca mais sair do seu!
“Fale, vamos conversar no escuro.”
Conversations In The Dark, John Legend.

Minha vida está uma confusão, e meus planos já nem existem mais,
porque a cada vez que eu me envolvo com o Harry, mais sem rumo eu
pareço ficar. É como se agora eu fosse muito mais Branca do que sou capaz
de ser Veneno.
Eu me apaixonei pelas amigas dele, que mal conheço e que me
fizeram chorar com a bondade e o carinho com que me receberam.
Eu me apaixonei pelo homem que tem sido o foco de todo o meu
ódio.
E foi tão rápido.
Foi tão intenso.
Tão forte quanto o chupão que eu ostento no pescoço, uma marca
dele que ficarei obcecada, olhando no espelho quando ele não estiver por
perto, venerando seu toque marcado em mim.
É como se eu tivesse olhado para um penhasco e, bem na beiradinha
do abismo, resolvido pular. Eu sei que a queda vai me destruir, mas até
chegar ao chão, ainda tem um trajeto. Ele vai passar como um piscar de
olhos, mas só vai doer quando eu estiver lá embaixo. Agora, eu posso só
fechar os olhos e aproveitar a sensação lenta e trágica da queda.
Agora, eu posso curtir as nossas mãos dadas enquanto entramos em
sua casa, ou sentir minha barriga dando voltas quando eu me lembro dele
dizendo que está apaixonado por mim enquanto, já descalços, nós nos
sentamos no sofá e eu aninho minhas costas em seu peito. Ele me abraça
forte, e suas palavras tão claras e intensas de que fará de tudo para não sair
do meu coração reverberam dentro de mim, como um eco, potente,
infiltrando-se em meus ossos.
Isso tudo é tão injusto...
Eu sou uma pessoa toda corrompida, que qualquer um poderia abrir,
olhar em minhas entranhas e sentir nojo. Mas não o Harry, porque, diferente
de tudo o que pensei, ele não é assim. Ele sabe que eu sou viciada em sexo,
pela fofoca do Rafael, e mesmo assim não correu de mim. Ao contrário,
Harry foi um fofo e deixou claro que me quer, mesmo eu sendo tão suja. E
naquele segundo, eu quis beijá-lo, quis que ele não fosse o meu maior
inimigo. Eu quis que ele não fosse a pessoa que arruinou a mim e aos meus
irmãos. Porque, agora que estou tão perto, vejo que ele não parece ser o
monstro que eu alimentei por um ano inteiro dentro da minha mente, cheio
de presas e um poder maligno de destruição. Na minha cabeça, o Harry era
um vilão tão forte que não me restava nada diferente de me tornar sua igual
para derrotá-lo. Na verdade, ele só parece um garoto comum, com uma vida
comum, e infinitamente mais doce do que ousei imaginar.
Harry me beija como se me venerasse. E sorri para mim com os
olhos puxadinhos mais lindos do mundo. Então, como não me apaixonar?
Como não abaixar os meus escudos e ser só a garota tola que sonha em
conhecer um príncipe? E por que essa vida maldita tinha de fazer o Harry
ter todos os predicados de um? Ele parece um príncipe, então, por que me
destruiu?
Eu pensei que já havia sido arruinada o suficiente para não
conseguirem me quebrar um pouco mais. Porém, quando eu olhar nos olhos
do Harry e contar quem sou, eu realmente me desmontarei de vez.
E isso vai doer, porque eu já estou terrivelmente rendida por ele.
Não é mais uma questão de impedir a minha carência de falar mais alto. É
que esse homem é completamente apaixonante, tão passível de ser amado
que até uma serpente cheia de veneno como eu se apaixonou.
Os répteis nunca precisaram desenvolver habilidades emocionais
durante a evolução, diferente dos mamíferos, por exemplo. E aqui estou,
uma cobra que não deveria sentir nada, mas que está completamente
apaixonada, indo contra a sua natureza endurecida.
Respiro fundo, e quando olho para cima, por cima do ombro, Harry
está me fitando, com seu sorriso torto especialista em molhar calcinha no
rosto.
— É gostoso estar apaixonado — ele fala, mais uma vez fazendo
meu coração ferver. Irônico mesmo é eu concordar. A sensação de me
apaixonar é realmente boa. Mas eu me sinto tão má ao vê-lo expor que
gosta de mim, nem parece que era tudo o que eu mais queria quando
comecei essa merda. Mas não tem mais volta. Está feito. Estamos a um
passo da destruição total. — Eu quero saber tudo sobre você, Branquinha.
Então, comece me contando por que trabalha como designer.
E esse apelido? Deus! Ele poderia me chamar assim a vida inteira e
eu jamais enjoaria.
— Eu sou apaixonada por tecnologia, quase uma Geek[13]. Amo tudo
relacionado a isso, troco de telefone a cada nova edição de iPhone — conto,
sendo bem sincera. Quando saí do Vale, fiquei obcecada com todo e
qualquer eletrônico que encontrava em meu caminho, e diferente do Dan,
que no começo morria de medo dos barulhos da televisão, eu me apaixonei
de cara. — Eu só entrei na escola com quatorze anos, por algumas questões
da minha infância que eu te conto um dia, pois ainda não estou pronta para
falar sobre isso. — Raspo a garganta. — Então, fiz algumas provas e entrei
na classe de acordo com a minha idade, porque meu conhecimento permitia.
E foi lá que eu passei a ter mais acesso a computadores e me apaixonar de
vez por eles. Quando eu me formei no Ensino Médio, pensei em cursar TI
na faculdade, justamente por me dar bem com essas coisas, mas eu não
queria ficar enclausurada trabalhando diretamente para um chefe. Eu
sempre amei ficar no Photoshop fazendo edições de fotos, por isso comecei
a pegar trabalhos como designer para alguns conhecidos dos meus irmãos.
— E não há mentira alguma nisso, eu realmente faço, às vezes, esses
trabalhos. E gosto muito, porque me dou super bem com o Photoshop. —
Então, acabei me profissionalizando.
— Você podia fazer as artes digitais do Ravina. Depois manda seu
portfólio pra mim, pra eu mostrar aos meus amigos.
Assinto balançando a cabeça, e embora a culpa me corroa feito um
ácido, dilacerando a minha pele, por tê-lo roubado, ainda acho fofo ver o
quanto ele confia em mim para querer que eu faça as artes do seu negócio.
Um dia, eu vou trabalhar só com isso, fazendo artes para empresas e
perfis na internet, o que nunca me deixará rica, mas me permitirá viver bem
até fora do país. É a coisa mais limpa que eu sei fazer para ganhar dinheiro.
— E você, como se sente agora, que é um empresário?
É impossível não me sentir uma cadela quando eu me lembro de que
tentei atrapalhar isso, ou o quanto o Harry vai me odiar quando descobrir. E
eu sei que todo esse ódio foi o que eu vim buscar quando me comprometi a
destruí-lo. Eu só não imaginava que no meio do caminho tropeçaria em um
sentimento tão puro, a ponto de desejar que ele apenas me ame, que, um
dia, entenda o meu ódio e me desculpe pelo que eu fiz. Que... possamos
ficar bem. E mesmo apaixonada, eu não sei se sou capaz de perdoá-lo.
Harry me arrancou muito. E a menos que tenha uma desculpa convincente
para a grande merda que fez, eu não sei se conseguiria passar por cima de
tudo para ficarmos juntos de verdade.
É uma utopia desejar isso agora, um relacionamento real com ele.
Eu não sou criança, sei que é apenas a pura, poética e fodida destruição que
nos aguarda.
— Estou muito feliz por me sentir mais parte do Ravina agora.
Obrigado, de novo, por ter me ajudado com o meu avô. E tem mais, estou
gostando do que estou tendo com você. — Merda! Ele é tão fofo! Eu giro
meu corpo no sofá, monto de frente em seu colo, grudo em seu pescoço e,
como a vadia carente que sou, abraço-o apertado. — Imagino que seja um
assunto difícil para você, mas eu queria perguntar algumas coisas, caso se
sinta bem para responder...
Inspiro bem fundo, e quando exalo, tentando ficar mais leve, vejo
que é impossível aliviar a carga dentro de mim. Eu nunca me apaixonei, e
por que imaginei que, quando acontecesse, seria algo ao contrário de
caótico? A minha vida sempre foi um emaranhado de problemas, não seria
diferente agora.
— Pode perguntar, amor. — Deito a cabeça em seu ombro, sentindo
que poderia sobreviver só me alimentando de seu cheiro.
— Amor? — Sinto seu sorrisinho espantado. — Acho que posso me
acostumar com você me chamando assim... — Sorrio, com as bochechas
esquentando de vergonha, porque a maneira carinhosa com a qual o chamei
só escapou, feito uma fugitiva, e eu sequer percebi. — Sobre o que o Rafael
me contou, o vício em sexo, como isso começou?
Brinco com a aliança em seu colar, sentindo suas mãos passeando
pelo meu quadril. Harry está bem duro contra a minha calcinha, mas
entendo que deve ser difícil não ficar, pois esta posição nos deixa bem
encaixados. E por mais que o assunto seja sério, estamos cheios de tesão um
pelo outro. Eu sei que sou gostosa e que minha calcinha ainda está molhada,
porque, depois que gozei, Harry a colocou no lugar. Como eu ainda nem
tomei banho, ela está ensopada com os resquícios da nossa safadeza no
condomínio de seus amigos.
Porra, eu nem acredito que transamos para valer, e daquele jeito, no
meio do condomínio. Céus, nem em mil anos eu imaginaria que transar com
ele seria tão gostoso!
Enquanto a minha mente divaga sobre o que fizemos, eu me lembro
de que não o respondi. Mas ainda não posso contar ao Harry os detalhes da
seita. Se eu falar do Vale, será uma sequência de pensamentos que
terminará no exato momento em que os nossos mundos colidiram. Em que
ele entrou na minha vida sem permissão e, feito um fantasma, assombrou-
me por anos.
Beijo seu pescoço, buscando no calor de sua pele algo capaz de
aplacar a raiva que estala em meus ossos, que arde em minha pele quando
eu me lembro do dia em que o vi, em que percebi que ele era real, não um
fruto da minha imaginação, como Rafael gritou para mim por tantos anos.
Arrasto meu nariz em sua pele, aliso os músculos comportados de
seus braços e, só quando me sinto calma o suficiente, longe o bastante dos
pensamentos raivosos, consigo dizer:
— Tem coisas que eu ainda não posso contar. Um dia, direi tudo a
você, mas, agora, falarei apenas de quando percebi que algo estava errado
comigo. Na verdade, não fui eu quem percebeu primeiro, foi o Rafael. —
Eu me afasto um pouco, erguendo o corpo e entrelaçando as mãos atrás de
sua nuca, olhando em seus olhos para prosseguir. Harry está com uma
carinha de sono, afinal, além de ter bebido com os amigos, já é madrugada.
— Eu fiz sexo muito cedo, e por agora é o que você precisa saber sobre o
meu vício. Quando nos mudamos para uma casa na Barra da Tijuca, eu
comecei a sair com os adolescentes do meu condomínio. Eu não ligava se
eram meninos ou meninas, só queria gozar, por isso nunca ficava apenas
nos beijos. Eu fazia sexo mesmo, e acabei malfalada. É óbvio que os
murmúrios sobre a garota que transava com qualquer um chegou aos meus
irmãos, e um dia o Rafael me pegou no flagra com um garoto. — Embora o
rosto de Harry esteja sério, suas carícias em meu corpo evidenciam que
deseja me confortar. — Ele me obrigou a ir a uma psiquiatra, e então veio o
diagnóstico de que eu estava com uma compulsão sexual. Eu não conseguia
lidar com qualquer emoção negativa, como raiva, ansiedade, tristeza... Eu
compensava, e ainda compenso, com sexo. Posso transar inúmeras vezes e
nunca fico satisfeita. Para piorar, como é sempre com estranhos, eu me sinto
muito culpada depois. Só com você, por mais clichê que possa parecer, é
que foi... diferente. Foi novo e bom de verdade. Não foi doloroso.
E eu sei que não me sentir suja quando entrego meu corpo a ele é
mais um ponto que me faz gostar tanto do Harry.
É como tirar um peso do meu peito poder falar sobre isso. Embora
eu tenha contado do Vale às meninas, eu não falei sobre a ninfomania, mas
sei que, se nos virmos todos os dias, e elas sendo tão legais, acabarei
confidenciando isso também.
— Você pode me contar aos poucos, quando se sentir confortável,
Branquinha. E eu nunca sentiria nojo de você por isso, como você disse
ainda há pouco, lá no La Grassa. — Sua voz é tão carregada de
compreensão que me derrete inteira. — E devo ser um viciado também,
estou sempre comendo desconhecidas por aí.
— Estava! — corrijo, fechando o semblante e sentindo raiva só de
pensar nisso. — Você é só meu agora!
— Fica tranquila. Embora todas me queiram, agora eu realmente
sou todinho seu!
Dou uma boa risada, amando como ele consegue trazer leveza a um
momento tão pesado como este. Eu não aguento essa fofura dele, por isso
encho sua cara linda de beijos, muitos beijos, um atrás do outro, pelo rosto
inteiro, com o coração quentinho, explodindo com esse sentimento novo e
arrebatador que faz meu peito bater de um jeito muito mais forte.
— Eu cheguei a fazer um tratamento, mas acabei cansando, por não
ver resultados.
— Por que não tenta voltar? Eu gostaria que você fizesse isso... —
Harry segura meu queixo agora, e com a outra não, coloca uma mecha de
cabelo atrás da minha orelha. Seu olhar é cuidadoso, e se eu pudesse ver
meu próprio rosto agora, estaria nítido que estou hipnotizada por esse
homem. — Sei que acabamos de ficar juntos, mas como prometi, vou te
ajudar com isso até te ver melhorar. Depois do que o seu irmão me contou,
eu dei uma pesquisada no assunto. Encontrei uma médica na internet muito
bem avaliada e especialista nesse problema. — Ele dá um jeito de enfiar a
mão no bolso da calça, erguendo-me um pouquinho de seu colo, e pega o
celular. — Estou enviando o contato dela para o seu WhatsApp.
Deito a testa em seu ombro e sopro o ar pela boca, enquanto ele
termina de mexer no telefone e o coloca no assento ao nosso lado. Sinto que
devo mesmo fazer isso, deixar a minha ira um pouco de lado e me tratar,
cuidar da minha cabeça, antes que isso me coloque em situações muito
piores.
O medo do Rafael sempre foi de que eu acabasse machucada, sendo
estuprada, ou coisas mais graves enquanto eu me metia em situações para
transar. E quando o Harry e eu terminarmos, sei que me lançarei no fundo
do poço. Talvez eu devesse ter uma médica, uma psicóloga, profissionais
para me ampararem quando tudo ruir de vez entre nós.
Se eu não o tivesse deixado entrar, talvez não fosse sofrer tanto.
Agora, já não tem como voltar atrás. Harry já me invadiu, já está em cada
célula minha, com seu charme me ganhando de dentro, infiltrando-se em
meu coração.
— Ok! Vou marcar uma consulta com ela. — Ergo a cabeça e fito
profundamente seus olhos. — Você pode ir comigo?
Sei que soa patético pedir isso a ele, mas... acho que vou me sentir
mais segura e ter coragem de comparecer, do contrário, vou acabar fugindo
e desmarcando em cima da hora.
— É claro que sim! É só me avisar antes, que eu desmarco o que for
para ir contigo.
Deito a cabeça em seu ombro novamente, e não sei por quanto
tempo ficamos em silêncio após a conversa. Mas suas mãos nas minhas
costas, escalando em uma carícia tão limpa, tão lenta e doce até o meu
cabelo, deixam-me tão calma, tão tranquila, que o sono chega com tudo e
eu durmo no colo do homem que agora já não sei se odeio, nos braços do
homem que me confunde inteira.
“Não posso voltar para casa sozinha de novo.
Preciso de alguém para aliviar a dor.”
Habits (Stay High), Tove Lo.

Eu acabei de fazer mais uma caminhada no condomínio com as


meninas, e nunca imaginei que ter amigas fosse algo tão bom. Eu me
pergunto como passei tanto tempo sem saber o que é isso. Elas são muito
fofas, e por mais que se conheçam há bem mais tempo, já me incluem em
tudo o que planejam e me contam detalhes de suas vidas, ao mesmo passo
que tentam saber tudo sobre a minha.
E meu coração sangra, ele se aperta como se estivesse sendo
prensado quando eu lembro que, mesmo que eu adore o que está rolando
entre mim e o Harry, isso ainda vai acabar em chamas, em dor para todos os
lados.
Elas vão me odiar.
Vão me achar uma falsa.
E tudo o que eu não estou sendo com elas é falsa.
Estou sendo eu, dando o meu coração, amando cada uma delas.
Mesmo porque, não tem como não amar aquele trio de garotas quebradas e
tão amorosas. Embora, desde a noite das garotas, eu venha sendo apenas a
Branca, sei que, no fim, talvez eu mereça que elas me afastem ao
descobrirem que eu também sou a Veneno e o que fiz com o Harry. Será o
preço a pagar por eu ter escolhido a vingança como minha maior aliada.
Depois da caminhada, onde elas começaram a alinhar os detalhes da
festa de aniversário surpresa que farão para a mãe da Maria, eu vim para
casa e tomei um banho rápido. Agora, estou descendo para encontrar o
Harry, aqui na frente do prédio, para irmos juntos até o consultório da
médica que ele me indicou.
Faz quase uma semana que a minha rotina mudou completamente;
além de eu ter três amigas, ainda durmo com o Harry todas as noites.
É tão estranho e errado venerar adormecer fazendo o corpo dele de
cobertor... Eu amo o modo como ele me abraça, beija a minha cabeça e me
chama de Branquinha ao me desejar bons sonhos. E tem a porra de cinco
dias que ele faz isso.
Nós não estipulamos uma rotina, ela só foi acontecendo. No dia
seguinte ao que eu dormi na casa dele pela primeira vez, Harry chegou do
trabalho e eu levei o jantar para ele, então transamos e dormimos juntos. Já
no domingo, depois do café da manhã, fomos à praia como um casal de
namorados.
Jantamos juntos todas as noites, transamos, dormimos agarrados
como a droga de um casal, depois acordamos aos beijos e fodemos para
começar bem o dia. E eu, feito uma boba, fico desejando que isso nunca
acabe, mesmo sabendo que vai terminar em dor. Mesmo gritando comigo
mesma que eu me enfiei nessa para o destruir, não para me apegar a ele e
querer viver algo sério, um romance real.
Quando saio do prédio, encontro um Harry sorridente segurando um
par de capacetes, parado em frente à sua moto. Enquanto eu me aproximo,
minhas sobrancelhas se chocam assim que eu reparo que um deles é rosa,
enquanto o outro é preto. Harry apoia ambos no assento da moto, virando-
se de frente para mim.
— Oi, Branquinha! — Já me puxa para um beijo na boca.
— Oi! — Sorrio contra os seus lábios.
Eu não o deixo enfiar a língua em minha boca, cessando o beijo ao
abraçá-lo apertado, porque estou ansiosa demais para a consulta.
Estou suando frio, nervosa, e mesmo durante a caminhada matinal
com as meninas, a todo o segundo minha mente se dispersava para este
momento, para a consulta, onde vou começar a travar uma guerra contra
essa compulsão doentia que anda regendo a minha vida. Mesmo que eu já
tenha tentado me tratar no passado, desta vez estou indo por vontade
própria, e espero que dê certo.
— Comprei um capacete para quando você for andar na princesa
comigo. — Sua voz está alegre, e seus olhos estão tão cálidos que me
desmontam. É fofo que Harry tenha comprado um capacete para mim. —
Agora, eu tenho duas princesas.
Reviro os olhos, sorrindo para ele. E sem conseguir me segurar, eu o
puxo para mim e dou uma série de estalinhos na sua boca gostosa.
— Obrigada! — Eu o beijo novamente, desta vez, mais demorado,
mas sem abrir os lábios. — Você é um fofo!
— Me agradeça com uma mamada mais tarde — diz, virando-se
para pegar o capacete e me entregar.
Reviro os olhos para a sua putaria, dando um tapinha em seu ombro
antes de aceitar o objeto. Ele se senta na moto, e depois de deslizar o
capacete sobre a minha cabeça, tentando não ficar ainda mais doida por ele
após esse presente fofo, subo atrás dele na princesa e abraço sua cintura.
Quando Harry dá partida na moto, minha mente viaja, e a cada nova
rua por onde ele pilota, mais longe eu vou. É impossível não ficar ansiosa
quando estou abraçando este homem, seja porque ele é gostoso e eu fico
com vontade de transar, seja por eu acabar criando teorias, cenários onde
ele vai descobrir quem sou.
Ele vai chorar quando eu revelar quem sou?
Vai me pedir desculpas?
Ou ele vai explicar algo que eu ainda não sei?
Vai me odiar e me xingar?
E enquanto ainda estou com essas coisas na mente, Harry estaciona
em uma vaga para motos diante do prédio espelhado e de muitos andares,
que fica na esquina de uma avenida movimentada.
Quando desço da moto, o vento leve cortando a rua levanta a barra
de babados do meu vestido preto, e Harry já olha para as minhas coxas e
lambe os lábios grossos. Ele é um safado...
Harry para de me encarar enquanto prende o seu capacete na moto,
certamente para que não roubem, então entrego o meu para que faça o
mesmo. Assim que termina, ele dá a volta na moto e me puxa para si. É
incrível como minha pele já se acostumou com a dele, é impossível eu não
me agarrar nele, deitando a bochecha em seu peito.
Por que eu gosto de buscar carinho no homem que jurei arruinar? É
como se eu me traísse! Mas desde quando eu me respeito? Eu não acho que
exista algum amor-próprio dentro de mim. Meu corpo e minha alma foram
tão desrespeitados que eu acabei aprendendo que não mereço respeito nem
de mim mesma. Então, eu me autossabotar me apaixonando pelo Harry não
deveria ser uma surpresa.
— Nervosa? — pergunta, olhando-me de cima com atenção e
fazendo carinho em minhas costas, sem demonstrar esforço algum para sair
do meu abraço.
Outra coisa perfeita em Harry: ele gosta de carinho na mesma
proporção que eu. Ele pode ficar horas comigo deitada em seu peito,
cheirando o meu cabelo, sem querer sair, só mudando de posição quando eu
me canso.
— Um pouco. Mas vamos subir logo, antes que eu desista.
— Gosto do seu abraço — ele fala, depois beija de um jeito
demorado a minha testa, por cima da franja. — E vai dar tudo certo na
consulta.
Harry ainda reluta um pouco para me soltar, com o vento leve
passeando pela rua soprando o seu cheiro perfeito contra o meu rosto, um
cheiro que parece uma substância meticulosamente combinada para me
viciar.
Entrelaçamos as mãos enquanto seguimos para dentro, e a cada
novo passo que damos, mais meu corpo começa a disparar sinais de
desespero. Eu posso sentir a ansiedade rastejando feito um animal
peçonhento por meu corpo, fazendo-me começar a ofegar, a suar frio, a
sentir que as vozes ao redor estão mais distantes. Subir de elevador até o
décimo andar é uma tortura tão grande que parece que, na verdade, estou
descendo e o que me aguarda é o inferno, de tanto medo.
Caminhamos pelo amplo corredor de portas brancas e paramos
diante da porta do consultório da psiquiatra que vai me atender. Antes que
eu possa apertar o interfone, Harry me vira pelos ombros e me coloca de
frente para ele. Segurando o meu rosto com as duas mãos, e com os olhos
meio apreensivos, ele diz:
— Pense nisso como uma luta. Você vai brigar com um boss[14] de
videogame, e não se amedronte pelo tamanho desse monstro, você é forte
pra caralho e vai conseguir derrotá-lo! — Meus olhos se enchem de
lágrimas, e como a manteiga derretida que eu virei, já sinto uma delas
escorrendo pela bochecha. Rapidamente esse garoto perfeito já a limpa,
dando-me seu sorriso branco que eu tanto acho incrível. Nos últimos dias,
temos jogado videogame juntos. Eu até tentei dar uma de noobzinha[15] que
não sabia jogar, com a paranoia absurda de que ele iria me desmascarar
como Veneno se eu mostrasse minhas habilidades. Mas eu não aguentei e
dei uma surra nele no Mortal Kombat. Harry só riu. E, diferente do que eu
pensei, ele não pareceu me associar à Veneno apenas por isso. Harry só
apertou meu coração dizendo que eu realmente fui feita para ele, porque era
o combo perfeito eu jogar videogame. — E se você não conseguir sozinha,
ainda tem o seu namorado para derrotar isso com você.
— Puff... — Finjo tripudiar, embora meu coração esteja
completamente perdido na tarefa de bater, por causa de sua frase. Eu posso
sentir muitas borboletas rodando em espiral na minha barriga, sobrevoando
a palavra “namorado”. — Você não é meu namorado.
— Mas posso ser. É só você me pedir em namoro.
Uma risada rasteja pela minha boca, driblando meu nervosismo,
enquanto dou um soquinho em seu ombro por cima da regata cinza. Harry
gargalha, puxa meu corpo para si e me amassa em um abraço de urso tão
cheio de carinho que eu sinto vontade de mandá-lo parar de se esforçar,
porque nem precisa, pois embora eu ainda não tenha dito a ele com todas as
letras, já estou apaixonada.
E condenada.
E completamente perdida no plano de odiá-lo.
— Vou guardar o meu pedido para um momento adequado —
brinco, mas tenho de esconder a tristeza em minha voz. Eu não vou pedir
Harry em namoro, só tornaria tudo pior dentro de mim quando
terminarmos. A minha vingança já está completamente alicerçada sem ter
algo sério assim entre nós. Ele só precisa descobrir quem eu sou, o que eu já
fiz com ele, e saber que era eu a garota lá naquele dia, há sete anos. Isso já
vai deixá-lo partido ao meio, como eu fiquei naquela madrugada chuvosa.
— Vamos entrar logo.
Aperto a campainha, e poucos segundos se passam até uma
assistente baixinha, de cabelos loiros, rosto redondo e sorridente abrir a
porta para nós.
A cada passo que eu dou pela pequena recepção, as paredes claras
parecem se fechar mais ao meu redor, quase me esmagando, tamanha é a
minha ansiedade. Harry se senta em um sofá cinza acolchoado, enquanto eu
me aproximo do balcão de madeira cinzento para me identificar. A televisão
pequena, em frente ao sofá que Harry está, narra uma fofoca de celebridade,
e eu tamborilo os dedos no tampo de vidro do balcão, esperando a
recepcionista me entregar um papel.
Alguns minutos são necessários para que eu preencha minha ficha
de paciente, e quando tento pagar a consulta, Harry faz uma graça enorme
para que ele mesmo pague para mim. Vendo que discutir não adianta, eu o
deixo desembolsar a quantia.
Ficantes normais dão presentes; o meu... paga a minha consulta com
o psiquiatra.
Foi só mais um jeito de Harry esfregar na minha cara o quanto ele
seria perfeito para mim, o homem ideal, se eu não soubesse o que ele
aprontou aos dezoito anos, se eu não soubesse o que ele fez e ainda saiu
ileso...
Eu varro os pensamentos, ignoro completamente a raiva queimando
por baixo da minha pele, porque, quando entro no consultório da médica de
pele negra, cabelos crespos e cheios se avolumando ao redor de um rosto
longo, minhas pernas estão bambas.
Sorrindo, ela me aponta uma dupla de cadeiras de estofado cinza,
robustas e com aparência cara. Eu me sento em uma delas, quicando o pé
sobre o piso de porcelanato branco, observando a médica se sentar do outro
lado de sua mesa de tampo de vidro. Ao nosso lado, tem uma ampla vidraça
que nos dá a vista perfeita para o Cristo Redentor, tão gigante e de braços
abertos para a Cidade Maravilhosa.
Quando ela me pergunta no que pode me ajudar, tudo o que penso é
que estou enfrentando o meu maior boss agora, e que qualquer passo em
falso pode me fazer desistir da luta.

A consulta durou uma hora, e durante os precisos sessenta minutos,


eu perdi a conta de quantas vezes chorei. Embora eu tenha contado às
meninas sobre o que passei, falar com a médica foi infinitamente mais
difícil. Primeiro, porque eu não posso falar da seita, é uma regra minha e
dos meus irmãos nunca falarmos sobre isso com médicos e psicólogos,
porque fugimos de pessoas perigosas que financiavam o Vale.
Eu contei às meninas porque, de um modo muito surreal, senti que
elas eram confiáveis, que aquilo não me colocaria em risco. Mas com a
médica, cada palavra era um pedaço de arame farpado que eu puxava, que
subia rasgando a minha garganta até sair pela boca.
Dei muitos detalhes, disse que fui abusada pelo meu pai aos onze
anos, que desde a adolescência passei a apresentar um comportamento
exageradamente sexual, e sobre como eu sou hoje em dia.
Sei que preciso disso, que não dá mais para vagar pela Terra como
um corpo sem alma, deixando qualquer um me usar, buscando sentir
alguma coisa, mas dos meus jeitos errados.
É tão doloroso expor a minha podridão, falar de toda a sujeira que
eu já fui capaz de buscar para satisfazer o meu vício. E mesmo que a
médica tenha sido extremamente humana ao tentar fazer eu me sentir bem,
revisitar tantas coisas pesadas que eu vivi me fez ter de correr para o
banheiro de sua sala e vomitar, o que foi só mais uma maneira humilhante
de fechar com chave de ouro a minha primeira sessão. Ela me deu água,
ofereceu um copinho de enxaguante bucal e esperou até eu me recompor.
O que eu não posso negar é que, de certo modo, buscar ajuda me
trouxe alívio. É como ter um caminho traçado, um plano para viver melhor.
Ela me disse que eu realmente fecho critério para diagnóstico de
transtorno de comportamento sexual compulsivo, mas que isso tem cura, e,
se eu aderir direitinho ao tratamento que ela propôs, conseguirei ter uma
vida normal.
A primeira coisa que ela fez foi passar um remédio para diminuir a
minha libido, mas garantiu que eu não vou ficar frígida, e que se eu sentir
que perdi todo o desejo, a ponto de me fazer mal, ela pode me passar outro
medicamento, para equilibrar. Ela também me receitou um remédio para
diminuir a ansiedade e me encaminhou para uma terapia cognitivo
comportamental, onde vou me reeducar psicologicamente e aprender a lidar
com os meus sentimentos, porque é a falta de habilidade para conseguir
lidar com as emoções negativas que me faz correr para procurar compensar
com sexo.
Eu sei que preciso disso, desse tratamento, mas enquanto saio do
consultório de mãos dadas com um Harry com cara de curioso, ainda estou
sentindo angústia por tudo isso.
É horrível que, tendo passado por tudo o que eu fui obrigada a
passar, ainda ficou essa sequela, essa compulsão maldita. É tão injusto... E
mesmo sabendo que eu dei a vingança adequada ao homem que destruiu o
meu corpo, a minha mente e o meu coração, viver do jeito que eu vivo me
parece muito errado. Eu não era uma pessoa ruim, era só uma criança, não
merecia passar por tudo aquilo. E não mereço viver tão arruinada.
Eu quero melhorar.
Quero viver como uma garota normal.
Mas... até lá... ainda vai demorar.
Agora, enquanto sinto todo esse turbilhão de dor, todo esse peso, eu
só quero compensar do jeito que consigo.
Ainda sou uma viciada, porque nenhuma cura é instantânea.
— Quer conversar? — Harry pergunta, apertando o botão do
elevador.
Solto sua mão e olho para o lado, para o seu rosto perfeito e
confuso. Consigo ver em sua face a compreensão, vejo que Harry sabe o
quanto essa consulta me machucou, mesmo tendo sido para o meu bem. E
sabendo que ele vai me entender, eu não penso duas vezes antes de cobrar
que ele cumpra a sua promessa...
— Sei que você quer saber como foi, e vou resumir com uma
palavra: necessário. — Eu o puxo pela mão para longe do elevador, e
quando vejo o ponto de interrogação se formando em neon em seu rosto,
sinto-me imunda. E quando o arrasto para a escadaria de emergência,
quando atravessamos a porta corta-fogo, sei que estou apenas cedendo ao
meu vício. — Mas nenhuma cura é imediata, e estou tão abalada com a
consulta que preciso me aliviar do único jeito que sei. Então, desculpe-me,
lindo, mas você prometeu que me ajudaria com isso...
No meio da escadaria cheirando a tinta fresca, sinto minha alma tão
sem luz quanto este local. Quando eu me abaixo na frente dele, olhando
para cima, sei que não tem nada de erótico nisso. Harry parece preocupado,
e embora eu devesse ficar chateada, vê-lo com medo de sermos pegos só
alimenta a minha perversão. Embora o meu lado safada goste disso, de
pensar que alguém pode nos flagrar, do perigo correndo em minhas veias e
inundando a minha calcinha, se este momento tivesse cheiro, ele poderia ser
definido de uma única forma: sofrimento.
Abaixo a sua calça, depois sua boxer preta, então coloco seu pau
para fora, que não está mole, mas também não está duro. Eu gosto do cheiro
dele, de homem, de suor e um pouquinho de sabonete.
— Pode me usar toda vez que precisar, Branca. — Sua voz é calma,
meio arrastada, parecendo que ele já está com tesão. — Sei que isso dói em
você, mas sempre vou sentir prazer quando te foder, por mais egoísta que
possa parecer.
Eu ouço a sua voz, e não deveria ser assim, mas estou excitada com
o que ele diz, e meu gemido sujo por adorar o gosto de seu pau ainda
sobrepõe suas palavras. Sempre que eu o chupo, é com fome, com vontade,
engolindo o mais fundo que consigo enquanto massageio seu saco imenso.
Ele endurece tão fácil, apontando feito um mastro para o fundo da
minha boca, e quando eu sufoco, não deixo de pensar no quanto é bom ficar
sem ar se a recompensa é este pau gotejando na minha garganta.
— Cacete... — xingo, tirando-o da boca para descer com a língua
em direção ao seu saco, para sugar cada bola. Harry fica na ponta dos pés,
já segurando o meu cabelo, e quando espio por cima dos olhos, ele está
mordendo a boca e fazendo a cara de safado que me deixa insana. — Eu
posso chupar seu pau por horas, mas... agora... — Eu me levanto, ouvindo-o
reclamar, tão baixo que é quase inaudível. — Deita no chão, que vou sentar
no seu pau!
— Tô sem camisinha. Ia comprar agora, na volta para casa. — Sua
voz está mole de prazer, e ele não se mexe, porque tem tanto medo de que
eu tenha um bebê que não vai me comer sem camisinha, de jeito nenhum.
Outro dia, ficamos sem, e eu sugeri que ele me fodesse, mas tirasse na hora
e gozasse fora, e Harry preferiu sair para comprar a arriscar. Disse que tem
medo de me engravidar só de pensar nisso. — Eu posso te chupar, amor,
para te aliviar.
Chego a fechar os olhos com o carinho que ele faz em minha
bochecha, mas não vou deixar de transar com Harry por isso. Não agora,
porque estou doida, porque a necessidade parece rugir em cada célula
minha, pedindo por isso, a ponto de eu mal conseguir pensar.
Eu só preciso, e isso é mais forte do que a minha capacidade de
pensar de maneira sã.
— Então, deita do mesmo jeito, porque eu vou sentar com o cu!
Harry toma um susto com as minhas palavras, mas seus olhos estão
inflamados, pegando fogo em coro com o meu corpo. Ele parece meio
incerto, mas mesmo assim se deita no chão empoeirado, olhando-me com
fascínio.
— Não tem como negar um pedido desses... — Ele lambe os lábios,
pouco se lixando por se sujar nesse chão, subindo os braços e deitando a
parte de trás da cabeça sobre as mãos.
— Safado do caralho!
Eu nem preciso de muitos movimentos para me livrar da calcinha, e
como se estivesse possessa, encaixar-me de frente em cima dele. Pego seu
pau e o resvalo na umidade da minha boceta. Harry tem os olhos brilhando,
cheios de tesão e expectativa. Ele inclina a cabeça para ver o movimento
que eu faço para encaixar seu pau na minha bunda.
Deixo o pé direito plantado no chão, e com a outra perna, eu me
apoio sobre o joelho. Fico do jeito exato para fazer o pedido:
— Agora, fode o meu rabo sem pena nenhuma enquanto masturba a
minha boceta, porque só vamos sair daqui depois que eu gozar!
Sua pele linda está brilhando de suor, e depois do meu pedido, Harry
me olha com uma mistura de choque e encanto. Enquanto ele segura a
lateral esquerda da minha bunda, eu abro a banda direita, sentindo-o pousar
três dedos no meu clitóris.
Seus olhos se cerram quando ele começa a me invadir. E dói um
pouco, o que me faz choramingar e trincar os dentes, mas ele vai mexendo a
mão, estimulando o meu clitóris enquanto entra mais fundo.
Eu pedi que ele socasse para machucar, para me punir enquanto me
satisfaz, mas Harry é tão incrível que não está fazendo isso. Ele está indo
aos poucos, soltando ruídos másculos enquanto vai lentamente se enfiando
até o talo.
Como a vadia que sou, estou encharcada, pingando nele enquanto
começa a entrar e sair do meu cu. Ele vai acelerando, fazendo-me jogar a
cabeça para trás enquanto fode o meu rabo mais rápido.
— Que porra de cu gostoso, Branca! — elogia, dando um tapão bem
forte na lateral da minha bunda, assustando-me e ao mesmo tempo
arrancando-me um gemido. Ele aperta a carne da minha bunda e depois a
balança, parecendo um bicho, quando, por fim, resolve obedecer ao meu
pedido, fodendo meu cu sem dó, massacrando como se quisesse o rasgar.
Eu gemo mais forte, com sua mão intensificando os movimentos ao me
masturbar. — É forte assim que você quer, sua safada?
Eu só consigo sibilar uma concordância, gemendo de dor e prazer
com Harry me fodendo como se quisesse me destruir. Sinto meu ventre
pegando fogo, e feito um vulcão, entro em erupção com um gozo bem forte,
doloroso, ouvindo Harry gemer o meu nome enquanto enche o meu cu de
porra.
Eu me contorço, desequilibrando-me, e tombo de frente em cima
dele, só não despencando contra o seu peito porque uso as mãos para me
segurar nele, e de joelhos, acabo, por acidente, deslizando mais fundo ainda
em sua pica. Eu arqueio a coluna, tremo e enfio as unhas em seu peito,
tentando lidar com a explosão acontecendo em minha boceta. Harry morde
a boca para não gemer alto, com o pau vibrando dentro de mim enquanto
goza.
E quando terminamos, eu me deito em cima dele, como se não
estivéssemos cometendo um crime, que, se nos pegassem, poderíamos até ir
em cana.
Eu quero descansar, mas a vontade dele é só beijar a minha boca
enquanto amolece dentro da minha bunda, puxando minha cabeça para cima
e quase me fazendo quebrar a coluna para ficar na posição exata para que
ele engula a minha língua.
— Mesmo quando estiver curada, ainda vou gostar de comer o teu
cu em um local proibido.
Sei que isso tudo foi errado, que eu estava querendo lidar com o
meu sofrimento, mas transar com ele é sempre tão bom... E, desta vez, eu
não me sinto imunda, pois embora eu tenha dado de comer ao meu vício, o
que acabamos de fazer foi bom para caralho.
E só me resta aproveitar o que temos antes que o fogo domine tudo,
quando ele misturar a Branca e a Veneno. Mesmo quando eu me curar,
Harry ainda vai me odiar, a ponto de me querer o mais distante possível de
sua vida.
“Eu sinto como se estivesse me afogando.
(...) Você está me puxando para baixo.”
I Feel Like I'm Drowning, Two Feet.

Faz uma semana que a Branca se consultou com a psiquiatra.


Aquele dia foi meio sinistro. Embora eu tivesse pesquisado sobre a sua
compulsão, eu não fazia ideia de como seria viver o momento do seu vício
ativado. No começo, fiquei meio assustado quando ela me puxou para a
escadaria de incêndio, mas preciso confessar que comer o cu da Branca pela
primeira vez foi do caralho. Eu só chutei a porra do balde, deixei qualquer
receio de nos pegarem trepando ali e me entreguei à delícia que foi meter
naquele rabo apertado. Eu amo a bunda da Branquinha, o formato tão
perfeitamente redondo e imenso. Realizei a vontade que eu tinha desde que
transamos na quadra do La Grassa.
Naquela noite, quando ela me contou sobre o seu fetiche, não foi o
vício falando, pois ela estava feliz, e, pelo que entendi, Branca tem gatilho
com emoções ruins, são elas que disparam a sua necessidade de sexo.
Porém, naquela quadra, ela só queria transar comigo por uma vontade
limpa, e ficou bem nítido em seu rosto a diferença quando é o vício falando.
Os olhos de Branca ficam sombrios, meio vidrados, e até sua voz muda,
mostrando um peso absurdo.
Depois da sessão com a médica, ela anda mais confiante. Já está
tomando os remédios e já fez a primeira consulta com uma psicóloga.
Branca me contou que ficou com medo de o remédio tirar totalmente a sua
libido, a ponto de ela não querer mais fazer sexo comigo. Mas até agora não
mudou nada, ela sempre quer me dar.
E já são muitos dias com ela dormindo comigo, espalhando coisas
suas pela minha casa, chamando-me de amor e beijando-me o tempo todo.
Branca costuma me agarrar como se temesse que eu vá embora a qualquer
segundo, e acho que isso é mais uma das coisas que me deixa apaixonado.
Eu ainda não consigo entrar na casa dela. Odeio aquela maldita
cobra. Mas sei que, para ficarmos juntos, em algum momento terei de aturar
aquele animal. Mas... se... um dia ficarmos juntos para valer, a ponto de
termos uma criança, a Branca precisará se livrar daquele bicho. Como vou
confiar do meu filho ficar perto daquela serpente assassina de hamsters? Sei
que minha mente vai longe quando eu penso nisso, porque nem estamos
namorando, mas sempre acabo pensando que terei de entrar na casa dela
logo, logo.
É o fim de tarde de uma quarta-feira, e estou ansioso para voltar
para casa e ficar com a Branca, ansioso de um jeito tão doido que nem
parece que eu passei a manhã inteira fodendo sua boceta e a beijando até
minha boca doer.
No fim de semana acontecerá a festa surpresa que as meninas estão
organizando para a mãe da Maria, e nesse dia eu pretendo pedir a Branca
em namoro. Comprei um anel maneirinho para ela, um oficial para o nosso
relacionamento. É claro que precisei parcelar em muitas vezes no cartão de
crédito, porque é de ouro branco e tem um diamante no topo.
Estou ansioso pensando nisso, quero ver a carinha dela de
felicidade. Enquanto entro na copa do Ravina Tattoo, vejo Josiah meio
emburrado, entregando uma quantia em dinheiro ao Bill.
— Tomar no cu! Eu tinha dito duas semanas, primeiro! — ele
reclama, bagunçando o cabelo após entregar o par de notas.
— Você quis trocar por um mês, seu otário. Eu falei três semanas,
então, cheguei mais perto! — Bill se gaba, com um cigarro aceso
pendurado nos lábios enquanto admira as duas notas de cem.
— Se eu soubesse, teria apostado junto — brinco, lembrando-me de
que eles apostaram sobre o tempo que eu iria demorar para me apaixonar
pela Branca.
— Tu nunca ia apostar que ficaria de quatro por sua Branquinha
rápido assim! — Josiah resmunga, sentando-se no barril de latão e cruzando
os braços sobre a regata preta. — Já aboliu a camisinha?
Reviro os olhos, e os dois começam a rir.
— Eu não vou dar mole, porra! Tá doido? Mal comecei a ficar com
ela! Se eu tirar a capa, capaz de meter logo dois moleques dentro dela de
uma vez.
Eles gargalham da minha cara, o que me deixa puto. E não vou falar
que o cuzinho dela, eu como sem nada. Tem coisas que eu não preciso
expor assim. Eu não sei se é ciúme ou algum senso de cuidado, mas não
gosto de falar muito sobre as coisas que faço com a minha mina. Da
camisinha, eu não vejo problema em abrir para eles. Quando era com outras
mulheres, eu falava abertamente sobre tudo, mas como a Branca é minha, é
diferente.
— Caralho, Bill, tu traumatizou o Harry. — Josiah dá um tapa no
ombro do Bill, um tapa forte, que faz meu outro amigo olhar para ele com
um rosto tão assassino que, se eu fosse o Jow, já teria virado a esquina, de
tanto que teria corrido.
— Brinca com essa porra não! — ele me aconselha, apertando as
abas do boné branco, que combina com sua blusa da mesma cor. Com o
cigarro pendurado entre os dedos, continua: — Tu tá certo, mano. Vocês
mal se conhecem, tem que curtir esse comecinho sem pensar em fazer logo
um filho. Eu já entendi que a minha filha, a Luz, veio porque precisava ser
assim. — O olhar dele é uma mistura de dor e um certo brilho. Dá para ver
que, embora atormentado por fantasmas antigos, ele já ama o bebê no
ventre da esposa. — Eu morro de medo, cara. Tenho horror de dar tudo
errado de novo, mas a Maria tá tão feliz... Ela fica horas olhando as roupas
da bebê, alisando a barriga. Às vezes, fica em voz alta sonhando como vai
ser o rostinho dela. Esse lado da gravidez da minha esposa é lindo, mas se
eu puder te aconselhar, tu tá mesmo certo em se prevenir. Ter um filho é
possuir um coração fora do corpo, e tudo o que acontecer com ele é
responsabilidade tua.
Eu sei por que ele está me dizendo tudo isso. Bill tem um trauma do
caralho com essas paradas, e no final, ele tem razão. O único motivo de eu
usar camisinha com a Branquinha é este, o medo de meter um bebê nela.
Naquele dia, na casa do meu avô, eu quase meti nela no banheiro sem nada,
mas porque eu estava tão doido de tesão que nem pensei nas consequências.
A Branca não costuma transar sem proteção, e me confessou que,
depois de muitos anos usando camisinha, só confiou em fazer no pelo[16]
comigo.
Eu não contei a nenhum deles sobre seu vício em sexo, que já a vi
pegando um casal e a garota na academia. Embora todos eles sejam meus
amigos, tem coisas que só dizem respeito a mim e à Branca. Coisas apenas
entre nós dois, porque agora ela é minha mina, então, os problemas dela
também são meus.
Porra, olha como eu sou emocionado! Eu achava que nunca iria
parar com mulher nenhuma, e agora estou completamente rendido por um
poço de confusão em forma de mulher.
Às vezes, eu fico pensando no que ela me disse sobre querer se
casar com um vestido de mangas bufantes, saia encorpada e tão brilhante
quanto as estrelas. Por que eu me peguei pensando nisso por tantas noites?
Nós mal ficamos juntos, mas acho que gostaria de a ver vestida assim.
Vestida assim para mim.
Estou feliz por Branca ter ido à consulta, por estar se cuidando.
Agora, colocou um implante contraceptivo no braço, mas nem assim eu
consigo confiar em transar com ela sem camisinha, porque ficou claro que
ela só adotou essa contracepção porque quer transar comigo sem nada
atrapalhando. Acho que eu desbloqueei uma nova fobia: medo de
engravidar a Branca. Eu não sei se é pelo trauma do Bill com a Maria ou
por saber que ela já perdeu um filho.
Branca fica fazendo piadinhas comigo, dizendo que daqui a pouco
eu vou ter medo de respirar perto dela e acabar colocando gêmeos em sua
barriga. Eu quero ser pai, mas não agora. Quero curtir muito a vida ainda,
porra.
— Josiah, um homem deixou isto aqui para você. — Serginho entra
na sala, com seu moletom roxo imenso o engolindo por inteiro. — Disse
que foi o seu pai quem mandou.
O ambiente cai em um silêncio mórbido.
Os olhos de Josiah são um misto de espanto e raiva quando ele pega
o envelope pardo e grosso da mão do nosso assistente. É incrível como eu
me arrepio da cabeça aos pés quando meu amigo passa por mim carregando
o envelope.
Eu sou muito supersticioso, por isso acredito que arrepios desse
porte são presságios de coisa ruim. E vindo do Cristian Marquez, não
poderia ser nada de bom.
Bill está impassível, mas sua postura ereta mostra que ele também
está apreensivo.
Josiah, nervoso, não diz uma palavra enquanto tira um bolo de
folhas A4 de dentro do compartimento de papel. Meu coração dispara
enquanto eu o observo, imaginando se é alguma nova chantagem que o
merdinha corrupto resolveu fazer com meu amigo.
As sobrancelhas marcadas de Josiah se estreitam em confusão
enquanto ele analisa as páginas, e então suas pupilas se dilatam, ele começa
a ofegar, virando uma página atrás da outra.
Eu já estou sentindo minha garganta se fechar, ansioso, querendo
que ele abra logo a porra da boca e conte que merda seu pai aprontou, mas
quando ele paira seus olhos sobre mim, tão cheios de dor e confusão, é aí
que meu coração enlouquece.
— O que foi, porra? — pergunto, já sentindo uma gota de suor
dançando em minha testa. Nem mesmo a minha regata fresca é capaz de me
impedir de transpirar tanto, e já imagino as marcas de suor se amontoando
pelo tecido branco.
— Caralho, Harry... — Josiah está apavorado agora, engolindo em
seco enquanto dá uma última olhada na página antes de me entregar a pilha
de papéis. — Sinto muito!
É sobre o meu avô, porra! O Cristian está aprontando algo com o
meu coroa, por isso estava na festa dele, tenho certeza. E, apavorado,
ansioso, quase vomitando, eu agarro os papéis de uma vez.
Colado na primeira folha tem um grande post-it amarelo com algo
escrito à mão:
“Filho, eu sempre vou me preocupar com qualquer elemento de
perigo perto de você, da minha nora e dos meus netos. Espero que este
relatório tenha serventia e que você decida não ter pessoas assim por
perto.”
Quem é o elemento de perigo que esse arrombado está falando? Eu?
Mato nem mosca, porra!
Minha testa quase cria uma fenda de tanto que eu a cerro, e quando
olho para a primeira página, vejo uma foto do Rafael, irmão mais velho da
Branca.
A minha pressão despenca e eu caio sentado no sofá de couro. A
cada nova informação que encontro nas páginas em minhas mãos, mais
chocado eu fico. É um relatório completo que deixa claro ligações dos
irmãos da Branca, até os que eu ainda não conheço, com golpes de
colarinho branco, bem como esquemas de lavagem de dinheiro. Mas não é
isso que me deixa chocado, que se foda que façam merdas desse naipe,
desde que ela não esteja envolvida, porque eu sei que uma pessoa boa ainda
pode ter uma família de merda.
Quando chego às últimas folhas, é como ser jogado em um lago bem
fundo com pedras nos bolsos.
São as palavras ao redor da foto da garota que estou aprendendo a
amar que me afogam, que me afundam a ponto de meus pulmões
queimarem. Meus olhos se inundam, minha cabeça dói tanto que parece
prestes a explodir.
Ao lado da foto dela, vejo prints e mais prints com as ligações de
um esquema de lavagem de dinheiro a envolvendo, mas é a sugestão do
nome dela ligado a uma cibercriminosa, que atua sob o pseudônimo de
Veneno, que me quebra ao meio.
São provas retiradas de um relatório da inteligência do Cristian, e eu
sei que ele tem os meios de conseguir isso; pessoas de dentro da
Inteligência do Governo Federal, especialistas em obter dados sigilosos...
Ele usa esses meios para conseguir armas contra os seus maiores inimigos,
e preocupado com um novo integrante na nossa tribo, investigou a vida da
Branca inteira.
Então, o homem que sempre me enojou fez o favor de esfregar na
minha cara que a Branca está brincando comigo? Eu pensei que ela fosse
uma princesa feita para mim, mas, na verdade, ela é o meu maior veneno...
— O que foi? — Bill pergunta, e com uma lágrima caindo pela
bochecha, entrego o relatório a ele.
Eu deixo as lágrimas rolarem, descendo até chegarem ao meu
pescoço.
Ela brincou comigo.
E me roubou.
Dormiu na minha cama e me fez ficar apaixonado.
Por quê?
Branca é uma psicopata? Não é possível que seja. Eu conheci uma
psicopata no passado, a prima do Josiah, e ela nunca teve brilho nos olhos.
Seu olhar era oco, até seu sorriso era enrijecido, sem alma alguma.
— A Branca é a hacker que roubou tua grana? — Bill pergunta,
engolindo em seco, como se também tentasse digerir essa merda inteira. —
Não faz sentido, cara! Por que ela te roubaria e depois te ajudaria a
conseguir o dinheiro de volta? Bandidos do colarinho branco não têm
empatia com suas vítimas. Ela teria que ser muito amadora pra isso, mas
por todas essas movimentações de dinheiro que ela fez com seus roubos
virtuais, parece bem profissional...
— Ela brincou comigo. — Eu tento não ser um merda, um fraco,
mas solto a porra de um soluço imbecil. — Que desgraçada! — xingo, mas
minha voz ainda está frágil. — Um ano inteiro me perseguindo em jogos,
depois indo morar do meu lado... Ela se enfiou na minha cama, se enfiou na
porra do meu coração... Pra quê?
— E esse lance de seita? — pergunta Josiah, e seus olhos agora
demonstram confusão. — Será que eles realmente são as tais crianças da
matéria de jornal anexada? Os oito que teriam fugido com a mãe e nunca
foram encontrados?
Ele se refere a uma antiga matéria de jornal; de sete anos atrás, para
ser mais preciso. Pego de novo o relatório com o Bill, folheio até voltar à
página do jornal, então leio com atenção. Fala sobre uma seita que cultuava
a pedofilia, no interior do Rio de Janeiro, e que foi invadida pela polícia.
Adultos foram presos, acusados de abuso sexual infantil, cárcere privado e
diversos outros crimes. A prisão em maioria foi de mulheres, porque os
homens teriam sido mortos horas antes de a polícia chegar. A notícia relata
ainda que uma mãe e oito filhos teriam conseguido fugir.
Então, as peças vão se encaixando bem diante dos meus olhos. Eu
vejo, como se estivesse acontecendo agora, flashs do Rafael me falando
sobre todos eles terem passado por traumas quando crianças, a Branca
tendo engravidado tão nova, o vício em sexo, o irmão mudo, que ela me
disse ontem ser em decorrência de um trauma...
Puta que pariu!
O Cristian descobre tudo quando quer.
— Vai falar com ela! — aconselha Josiah, quase entredentes. —
Coloca a Branca contra a parede, e se tiver problemas com os irmãos dela,
me chama, que eu mesmo vou até o meu pai pra gente pegar cada um deles!
A voz de Josiah é de raiva. Eu sei que, neste segundo, ele odeia a
Branca, porque jamais iria sugerir ir até o pai para pedir algo assim. E eu?
O que sinto por ela, sabendo que me arruinou, que roubou a minha grana,
que se divertiu às minhas custas enquanto me seduzia?
Será que Branca riu ao me ver desesperado por causa do dinheiro?
Que achou engraçado me ver dizer que estava apaixonado?
E quais são as outras mentiras que a Veneno me contou?
— Quer que eu vá junto? — Bill pergunta, vendo que eu me viro,
com os papéis em punho, em direção à saída da copa. — Eu posso ficar do
lado de fora, para impedir que você perca a cabeça ao falar com ela. Ou
com os irmãos.
— Eu não vou perder a cabeça. Não sou assim... — digo, mas sem
ter certeza se não quebrarei a casa dela inteira, dependendo do que ela me
disser. — Mas eu vou lá agora, preciso entender por que aquela maldita
brincou comigo desse jeito.
Sem dizer mais uma palavra, saio do Ravina, e com a cabeça quente,
eu nem tenho coragem de pegar a minha moto. Aceno para um táxi que se
aproxima pela via, e enquanto eu me sento no banco de trás, tudo o que
penso é que não sei se estou preparado para ver meu coração sangrar ainda
mais.
“Eu estava de pé. Você estava lá.
Dois mundos colidiram.
E eles nunca poderiam nos separar.”
Never Tear Us Apart, Bishop Briggs.

Meu braço ainda está meio sensível, por causa do implante


contraceptivo que coloquei. E só me concentrei em ter um método
contraceptivo porque espero muito que o Harry queira transar comigo sem
camisinha, pois quero o sentir por inteiro antes de tudo acabar. Eu só não
imaginava que meu braço doeria assim, até desmarquei a caminhada de
hoje cedo com as garotas, mas pela primeira vez elas vieram aqui em casa.
Eu mal acreditei quando as vi, e que se importam tanto com a minha
presença que até cancelaram a caminhada e vieram ficar comigo.
Trouxeram brownie e me deram um suéter lindo de presente, para eu usar
nas noites das garotas. É branco e tem um emoji de cocô marrom na frente.
Embaixo, está escrito em um bordado lindo: “4º bostinha”. Foi tão fofo que
meus olhos marejaram.
Ana e Maria ficaram curiosas, dando batidinhas no vidro do terrário
da Nagini, e antipática que só, a minha cobra se escondeu em uma pilha de
folhas e cagou para elas. Isabela não olhou nem na direção da cobra, porque
tem medo. Mas foi muito legal, ficamos apertadinhas na cama, assistindo
comédia romântica no meu projetor, comendo brownie e conversando.
Foi hoje que eu tive coragem de contar a elas sobre o meu
diagnóstico e como tem sido o tratamento. Eu falei sobre o apoio do Harry,
sobre como ele é fofo e sobre sua promessa linda de sempre estar lá para me
ajudar com isso. E sei que meus olhos brilharam, que deixei claro o quanto
estou apaixonada. Eu só escondi a dor, a parte em que lembro que ele será
incapaz de cumprir sua promessa, mas que a culpa disso é minha, que eu
entrei na vida dele com a intenção de o partir ao meio.
Elas me confortaram ao saber do meu vício, e cada uma, a seu jeito,
demonstrou o quanto gosta de mim. E todas me animaram dizendo que o
processo de terapia vai dar certo. É tão mágico me sentir querida assim, ver
que elas se importam comigo.
Acabei de preparar o jantar e estou me arrumando, porque daqui a
pouco o Harry vai chegar do trabalho, e ele ama quando eu levo comida ao
seu apartamento.
Enquanto estou colocando a salada na geladeira, Dan entra em
minha casa. Eu olho para ele, secando as mãos em um pano de prato, depois
pendurando-o no balcão da cozinha. Dan está usando um pijama fofo do
Bob Esponja, mas vai direto para o banheiro. Quando sai, aponta para o
frasco do clareador de olheiras que eu roubei dele.
“Ladra! Compre um para você!”, reclama, mas está rindo.
— Já vai? — pergunto, sorrindo enquanto ele já está abrindo a porta
da minha casa, mas quando ela se escancara e mostra que o Harry está do
outro lado, meu irmão e eu tomamos um susto. Acho que ele estava prestes
a bater para avisar que chegou. Quando eu me recupero do pequeno choque,
resolvo dizer: — Oi, amor!
Sorrindo, espero Daniel sair, para enfim poder chegar até ele, ficar
na ponta dos pés e, segurando seus ombros, dar um selinho em sua boca.
Harry está com o rosto estranho, um pouco sério. Quando me segura pelo
quadril, ignorando totalmente o Daniel, ele me puxa com força contra o seu
corpo e me beija de língua. É um beijo possessivo, intenso, e tão longo que
me deixa sem ar. Quando me solta, entra direto em minha casa, mas para a
alguns passos da porta e se vira para nós dois.
— Boa noite, Dan! — cumprimenta, depois acena, fazendo-me
notar algumas manchas que parecem ser água em sua regata branca.
Harry tira a touca cinza, coça um pouco os cabelos crespos e curtos,
então, recoloca o acessório. Que estranho! Ele nunca quer entrar aqui,
porque odeia a Nagini.
Daniel acena para ele com um sorriso no rosto, depois começa a
gesticular para mim.
“Boa noite, maninha. Ou melhor, boa foda!”
Minhas bochechas coram com a sua piadinha, ainda bem que o
Harry não é capaz de entender.
Quando Daniel nos dá as costas, eu percebo que o comportamento
do Harry realmente não está normal. Quando fecho a porta da minha casa
atrás de mim, reparo no rosto do meu ficante. Seus olhos estão
avermelhados, a boca, mais inchada que o comum. Parece que ele chorou...
Será que aconteceu algo com o Isaque? Ou foi algum problema com
os amigos no Ravina?
— Tudo bem, lindo? — pergunto, cruzando os braços, com uma
brisa gelada entrando pela janela acima da cama e arrepiando meu corpo
inteiro.
Como estou usando apenas uma saia jeans curta, com uma regata
preta simples acompanhando, sinto vontade de pegar um cardigan para me
agasalhar um pouco, mas são as mãos dele se movendo, formando gestos
em Libras, que faz o chão parecer se abrir, sugando-me quando eu entendo
o que ele está dizendo...
“Oi, amor... Ou melhor, Veneno!”
Meu coração ribomba com tanta força que meus ouvidos doem por
ouvir cada batimento alto e desesperado.
Merda!
Caminho para trás até minhas costas colidirem contra a porta de
entrada, e ver o Harry se movendo com passos duros até mim me apavora.
Seu olhar está possesso, cheio de promessas de ódio, jogando lanças contra
mim. E quando ele me alcança, segura meu pescoço com força, prendendo-
me no lugar. Harry inclina o corpo para ficar com o rosto na frente do meu.
Até a temperatura de sua mão está diferente, inflamada pela fúria, quase
queimando em minha pele. Ele sopra o ar pelas narinas com tanta vontade
que parece até um bicho. Neste momento, não é o Harry que eu conheço
aqui. É outra coisa. Outra pessoa. Alguém que me olha como se me odiasse.
— Calma! — peço, porque eu não sei o que dizer.
Em todos os cenários que imaginei, era eu quem me revelava. Mas
nos últimos dias, apaixonada, completamente à mercê do sentimento forte
que estou nutrindo por ele, eu passei a desejar que esse momento nem
chegasse.
Agora Harry aperta o meu pescoço, mas mesmo que seja de leve, eu
ainda sinto o medo se multiplicando em alta velocidade pelas minhas
células, dominando o meu corpo a ponto de eu quase entrar em pane.
Como ele descobriu?
Harry sabe Libras e nunca me contou, provavelmente amando ver as
minhas interações com o meu irmão. Será que ele viu o Daniel falando com
o Rafael no elevador? Porque eu tenho certeza de que nunca falei sobre ser
a Veneno na frente dele.
Então, como ele soube quem sou eu?
— Calma? — Ele ri, mas não há nada de divertido em sua voz. —
Como eu posso ter calma, quando descobri que a mulher por quem estou
apaixonado, que tem dormido na minha cama e eu enfiei no meio dos meus
amigos, que me chama de amor, tem me feito de otário por todas essas
semanas? — Ele parece um produto do meu veneno, amargo, cheio de
ressentimento. E meu coração range de dor, porque eu sei que agora não
tem mais volta. Estamos dançando no meio da nossa ruína. Uma lágrima
vergonhosa escorre pela minha bochecha, resultado do luto que eu já sinto
pelo relacionamento que tivemos e acaba de ser sentenciado à morte. Pela
relação que, embora forjada em cima de uma mentira, produziu sentimentos
verdadeiros. Ele rosna, segura meu rosto, e com a mão tremendo, usa um
dedo para limpar a minha lágrima. — Engole o choro, Veneno! Cobras não
choram! É por isso que você ficou seca por tantos anos! — Isso dói. Vai no
fundo do meu coração. Não foi assim que eu imaginei. Era eu quem o
conduziria a lágrimas nos meus planos, mas, apaixonada, fraca, tudo o que
faço é chorar ainda mais. — Fala, filha da puta, por que fez isso comigo?
Eu me encolho com a força do seu grito. O rastro do seu dedão
ainda arde sobre a minha bochecha, onde limpou a lágrima. E sua frase
sobre eu não chorar foi só a primeira lança que ele meteu no meu peito, pois
sei que tem muito mais de onde essa veio. Mas eu não posso reclamar,
agora é a minha vez de começar a golpear seu coração, porque não tem
saída. Estamos em uma via de mão única, e o destino final é a destruição
total.
— Por uma vingança que você merecia! — É difícil engolir o soluço
na minha garganta para conseguir dizer. — Você arruinou a chance de eu ter
uma vida nova, e não me restou nada diferente de fazer você pagar!
Harry se afasta, rindo, esfregando as mãos na calça jeans, na altura
das coxas. Ele dá muitos passos para trás, segura a cabeça e lambe a boca,
para depois cerrar os lábios. Parece estar se contendo, se segurando. Será
que é para não dar na minha cara? Reviro os olhos para o meu pensamento.
Harry jamais me bateria. Mas eu sei que palavras podem ter o peso de uma
porrada, e é assim que ele vai me atingir.
— Você é maluca a esse ponto? — Sua voz demonstra que ele está
com nojo de mim, e com os olhos marejados, olha para cima. — Eu nem te
conhecia, Branca. Como posso ter tirado algo de você?
Eu grito, de raiva, de ódio, então lhe dou as costas e soco a porta da
minha casa, a ponto de minhas mãos berrarem de dor. Chuto a madeira até
meus pés doerem, sendo, sim, maluca para caralho. Quando eu me viro para
o Harry, com o sangue fervendo, a ponto de eu me perguntar se não está
transformando minhas veias em cinzas, colo as costas na porta para evitar
que eu avance em cima dele.
Que raiva!
Como ele pode dizer isso?
Maldito!
E mesmo apaixonada, eu ainda quero atirar tudo na cara dele,
porque, sim, ele merece, e a menos que ele me despedace, que me quebre
ao meio ao explicar aquela merda e prove que não é o monstro
inconsequente que eu acredito, eu ainda vou odiá-lo.
Porém, ainda tem uma sombra parada atrás de mim, é o medo
sussurrando em meu ouvido que, talvez, o resultado disso tudo seja pior. Eu
posso descobrir agora que o julguei errado, então não me restará outro
caminho que não seja me destruir, que não seja eu mesma me odiar por
perder esse homem.
Como eu posso estar no meio da linha entre ser a vilã e a vítima
desta história?
— Há sete anos, você me destruiu, e por isso eu vou te contar como
tudo começou, até que entenda onde foi que arrancou algo tão importante
de mim.
Sua postura era de puro desdém, mas quando eu menciono as
palavras “sete anos”, seu rosto inteiro empalidece. Segurando o choro,
Harry puxa uma cadeira e se senta, depois apoia o braço na mesa e pousa o
queixo na mão.
— Vai... pode começar.
Eu deslizo para o chão, as costas arrastando pela porta, e quando
abraço meus joelhos, começo a contar, pela segunda vez em pouquíssimo
tempo, sobre o Vale, repetindo em voz alta todas as sombras que compõe o
meu passado. Minha mente vai se distanciando a cada novo detalhe que eu
revelo, sobre como era o lugar, meus primeiros anos lá, até mesmo sobre a
minha franja de princesa. Ele precisa entender como foi que a Branca, a
menina que queria ser uma princesa, tornou-se um veneno. Harry está me
olhando sério, parecendo uma víbora, e mesmo que em alguns segundos
pareça chocado, como eu ainda não abordei os abusos, ele ainda está com
uma skin [17]raivosa.
— Estou sem paciência, Branca! — Harry me corta, quicando a
perna no chão. — Eu já entendi que você cresceu na porra de uma seita
maluca, e sinto muito por seja lá que merda tenha rolado na sua vida. Mas
eu não entendo como isso tem a ver comigo, ou como justifica tu ser uma
ladra, uma stalker de merda, que invadiu a minha...
— Eu vou chegar até você, se me deixar falar. — Minha voz está
fraca, porque, embora eu tenha sonhado tanto com este momento, vivê-lo é
mil vezes pior. — Posso continuar?
Harry morde o lábio inferior, revira os olhos e faz um sinal com a
mão para que eu prossiga. Eu continuo, desta vez abordando a primeira vez
que meu pai abusou de mim, na sala do castigo. O rosto de Harry muda
inteiramente, suas sobrancelhas despencam junto ao seu olhar, e a pena ali
me mata. Mas nem isso me para, eu falo sobre o ritual de iniciação, e então
esse garoto desmorona, ele chora de soluçar, segurando a cabeça ao me
ouvir contar sobre a dor que eu senti enquanto meu pai me rasgava, e as
pessoas ao redor nos assistiam admiradas, em vez de me ajudar. Ele
esconde o rosto, quase tapa os ouvidos quando eu chego na parte da minha
gravidez, da perda do meu bebê.
— Sinto muito, Branca... Caralho... — Ele soluça. Harry é tão
doce... Como pode ainda sentir dor por mim, quando sabe que eu o ferrei?
— Ele era teu pai. Como pôde fazer isso contigo?
— Não precisa sentir — aviso, e a minha voz é tão emotiva quanto a
de um cadáver seria quando digo: — Eu o matei. Ele pagou pelo que fez
comigo, com a minha mãe e com incontáveis crianças naquele inferno. —
Os olhos de Harry quase saltam para fora, e antes que ele corra para longe
de mim, eu resolvo explicar: — Aos treze anos, eu já estava cansada de ser
estuprada, cansada de presenciar minha mãe apanhar, exausta de ver meus
irmãos sendo obrigados a foder aquelas imundas. Meu irmão mais velho, o
Ivan, que também era o que eu mais admirava, estava planejando uma fuga
para nós e nossa mãe. Nenhum dos meus irmãos gostava daquilo, mas
sobreviviam àquele antro de podridão do jeito que podiam. Eu não
aguentava mais esperar por uma fuga. — Tenho toda a atenção do Harry
agora, e ele não está mais se apoiando na mesa, está todo ereto na cadeira,
como se estivesse assustado com o que estou narrando. — Sempre
aconteciam reuniões mensais dos homens, os responsáveis pelo Vale.
“Eram os chefes das famílias. Eles se reuniam dentro da igreja, e, a
portas fechadas, conversavam sobre a gestão do lugar. Eu estava desvairada,
porque não aguentava mais aquela vida, então peguei um dos galões de
gasolina do depósito, que eles usavam para abastecer as caminhonetes para
as saídas para o mundo depois dos muros, e fiz uma trilha de combustível
ao redor da igreja. Como as mulheres estavam, em sua maioria, reunidas na
cozinha, dividindo as tarefas da semana, ninguém tentou me parar, porque
ninguém viu o que eu estava fazendo.
Você não faz ideia do quanto eu fiquei feliz quando escancarei as
portas da igreja, quando eu vi os olhares daqueles demônios sentados nos
bancos se voltando para mim. Mas só um deles realmente me importava, o
do homem parado no púlpito, o que eu chamava de pai. Foi olhando nos
olhos dele que eu gritei: “Só o fogo pode curar uma contaminação pelo
diabo, e vocês todos estão contaminados!”. Então, joguei o isqueiro aceso
na trilha de combustível diante da porta.”
— Meu Deus... — Harry tapa a boca, olhando-me com horror.
— Eu sempre achei que as janelas pequenas e estreitas da igreja
eram um absurdo, deixavam tudo abafado, sabe? Mas, naquele dia,
enquanto eu os via por trás da dança que as chamas faziam enquanto
consumiam a madeira velha da igreja, correndo e tentando atravessar os
buracos das janelas, eu ri. Eu amei quem construiu aquela porra, assim
garantia que nenhum demônio escapasse da purificação. — Respiro
aliviada, lembrando-me do cheiro da madeira queimada, dos gritos
desesperados, das tosses, de suas esposas surgindo e gritando por seus
maridos, que morriam em chamas, como as mulheres que tentaram fugir
daquela porra e foram jogadas por eles na fogueira. Fico feliz para caralho
quando me lembro disso. — Agora me diz, Harry... você acha que eu fiz
errado em queimar aqueles pedófilos?
— Acho que foi necessário... — Ele precisa engolir em seco para
prosseguir: — Mas continue falando. Vocês fugiram depois disso?
Embora sua voz saia sobrecarregada, pelo peso da minha história,
sei que ele não está realmente interessado, que deseja que eu chegue logo à
parte em que ele entra em cena, mas vou contar no meu tempo. Esperei um
ano inteiro para poder contar, então, ele vai ouvir tudo!
— Meus irmãos, que já tinham algumas coisas no esquema para
quando executassem o nosso plano de fuga, não deixaram que as mulheres
apagassem o fogo. — Sinto como se estivesse lá agora, parada no meio
daquela memória, observando tudo feito um fantasma. — Ivan e Rafael
pegaram armas e as ameaçaram, as pedófilas safadas que faziam parte
daquela merda. Eles as obrigaram a ir para o refeitório do Vale, amarraram
todas elas, enquanto minha mãe e meus outros irmãos colocavam as
crianças na pequena escola, para então chamarem a polícia.
“Eu fiquei sentada no chão encarando o fogo, cantando a música da
Branca de Neve enquanto desfazia a minha trança, o maldito penteado que
dizia que eu era uma das mulheres do Vale. Eu só pensava que a Branca de
Neve deveria ter queimado a Rainha Má, porque eu queimei a porra do rei!
Meus irmãos apagaram o fogo da igreja antes de chamarem a
polícia, mas eu nem liguei. Os homens já estavam todos mortos. O Vale
estava livre da sua maior contaminação. Minha mãe estava mais desperta,
parecendo voltar à vida ao ver que a nossa sonhada fuga estava
acontecendo, que seu maior pesadelo em forma de homem jazia morto.
Minha mãe parecia... feliz. E quando fomos para o carro que nos tiraria
daquele inferno, ela me colocou na parte da frente da picape, no colo dela.
Meus outros irmãos se amontoaram no banco de trás.
Ivan havia deixado as crianças seguras, fechadas dentro da escola, e
uma das mulheres, que vinha dizendo para a minha mãe que queria fugir
com o seu filho, foi quem ficou com elas lá dentro, aguardando a polícia.
Ficamos com uma das caminhonetes, com o dinheiro dos cofres do
Vale na caçamba. Esperamos no alto de uma colina, que meu irmão já
conhecia, onde havia uma rota segura para fugirmos assim que
garantíssemos a presença da polícia no Vale. E foram horas até o primeiro
carro de polícia aparecer, com sirenes e mais sirenes o seguindo.”
— É tudo tão assustador... — Harry fala, parecendo chocado.
Ele está focado em mim, cheio de curiosidade e, ao mesmo tempo,
horror. Eu sei que o Vale é um pesadelo, que qualquer pessoa que soubesse
da minha história a acharia digna de um roteiro de terror.
— Ivan dirigiu por uma estrada escondida por horas até o local
indicado pela minha mãe. Era um hotel de beira de estrada, ao lado de um
posto de gasolina. Já não era mais no interior do Rio de Janeiro, mas na
região serrana.
“Minha mãe conhecia um homem chamado Edgar, que quase
desmaiou ao vê-la. Eu o ouvi dizendo que achavam que ela estava morta.
Ele era um conhecido dos pais dela, dono de uma rede de postos de
combustíveis, e foi quem nos ajudou desde então. Como eu disse, minha
mãe era brasileira, nascida aqui no Rio, e encontrou o demônio do meu pai
fora do país.”
— Vocês trocaram de nome? — Harry pergunta. Sua voz está fraca,
seu rosto, completamente abatido pelo peso disso tudo. — Eu me refiro a
documentos falsos...
— Por quê? Vai nos denunciar? — Minha voz é tão capaz de furá-lo
quanto a ponta de uma faca.
— Responde, porra! — ele rosna, e eu entendo o seu ódio. Até
agora, tudo o que contei foi sobre o meu passado de merda, mas, na cabeça
dele, provavelmente a maior pergunta é onde ele entra nessa história. — Tu
roubou sessenta mil reais da minha conta, desgraçada! Se eu tiver que te
denunciar, vai ser por essa porra. Estou pouco me lixando para os teus
irmãos golpistas, a única que me interessa é você!
Eu gelo completamente, porque não pretendia contar a ele sobre o
que meus irmãos fazem. Meu plano era pular tranquilamente essa parte.
— O que você sabe sobre os meus irmãos?
— Eu sei de tudo! Assim como descobri que você é uma
cibercriminosa procurada. Pensou que não deixasse rastros? A mesma
pessoa que me contou que você é a Veneno, também me entregou uma
matéria de jornal antiga sobre o Vale, que cita uma mãe que teria fugido
com oito filhos.
Minha pele está fria, parece que eu caí num buraco no gelo, com a
água gelada furando-me feito farpas.
Droga, nos descobriram! Se o Harry está sabendo, a polícia já deve
estar na nossa cola...
— Merda! — Coço a cabeça. — O Dan! Preciso mandá-lo fugir. Ele
não tá metido nesses esquemas.
Eu me levanto, cambaleando, segurando-me na porta e pensando
que o Dan não merece ser preso. Ele não tem nada a ver com essa merda. É
puro e doce, o mais inocente de todos nós. Enfio a mão na maçaneta, com
lágrimas nos olhos, e até minha vingança, a maneira como eu quero tirar
tudo a limpo, torna-se pequena diante do quanto o Daniel importa para
mim.
— Não! — Harry empurra a porta por cima da minha cabeça, e com
um puxão forte no meu braço, vira-me de frente para ele. — Você não vai
sair até me explicar essa porra toda, Veneno!
É impactante ouvi-lo me chamar assim, e, neste instante, eu odeio
esse apelido.
— O Dan, Harry... O Daniel é inocente. Ele não pode ser preso
pelos erros dos irmãos! — Eu choro, tento empurrá-lo, mas suas mãos são
severas nos meus antebraços. — Tá doendo! Me solta!
— Escuta bem... — Harry afrouxa o toque, e eu respiro com o alívio
do seu aperto atenuando a pressão. Tenho dificuldade de focar minha visão,
mas quando consigo, seu olhar sobre mim é um poço escuro e cheio de
ódio. — Eu ainda não te denunciei! Mas vou pensar se farei isso depois de
saber por que tu me perseguiu, se infiltrou na minha tribo e fingiu gostar de
mim enquanto me roubava. Então, começa logo a falar!
Ele troca de lugar comigo, pairando diante da porta e me impedindo
de sair. E sabendo que não tem outro caminho, eu luto para colocar a cabeça
no lugar, porque preciso tirar tudo a limpo agora. E quando consigo, volto a
contar:
— Esse amigo da minha mãe fez novas identidades para nós, mas
mantivemos os nossos primeiros nomes. Ficamos um mês morando no hotel
dele. No começo, tudo era estranho. Era um mundo novo, cheio de coisas
diferentes. Até andar dentro de um carro havia sido diferente. Nós não
entendíamos o barulho dos carros correndo na via, da bomba de gasolina
funcionando no posto, ou dos estrondos dos fogos de artifício.
“Daniel morria de medo de televisão, e quebrou a que tinha em
nosso quarto quando viu que as pessoas se mexiam lá dentro. Ele demorou
muito até entender essas coisas, como o toque do telefone, que o interruptor
acendia a luz do quarto... Mas eu fiquei encantada com os desenhos e com a
experiência de assistir aos filmes das histórias de ninar que a minha mãe me
contava, e muito curiosa sobre como aquele troço preto que eu apertava
fazia as imagens mudarem na tela. E foi mexendo no controle remoto da
TV que eu fui me apaixonando por tecnologia.
Eu passava horas e horas vendo filmes de princesas, e minha mãe
até cortou a minha franja de novo. Ela também cortou meus cabelos, na
altura dos ombros, como o da nossa princesa favorita. Pegávamos sol,
íamos de carro até a sorveteria, comprávamos livros... E eu até ganhei um
diadema de princesa do seu Edgar.
Tudo estava mudando. A minha mãe sorria mais, havia arrumado os
dentes, quebrados pelas surras do meu pai. Ela cortou o cabelo nos ombros
e fez mechas loiras. Até pintamos as unhas juntas pela primeira vez e
passamos a amar usar batom rosa.
É claro que meus irmãos e eu éramos crianças desajustadas, e seu
Edgar, que era muito bom com a minha mãe, porque a tinha visto nascer,
orientava a todos nós para que só tentássemos entrar na escola quando
estivéssemos mais integrados na sociedade. Ele era a única pessoa que a
minha mãe tinha, pois não possuía irmãos, e seus pais já haviam morrido.
Minha mãe resolveu focar em nos adaptar ao mundo, porque não
sabíamos quase nada. E ela foi nos reeducando, ensinando sobre como era a
vida e desfazendo cada ensinamento deturpado do meu pai.
E ela voltou a me contar histórias para dormir...”
Agora minha voz falha, eu me sento no chão, abraço as pernas e
deixo a dor sair em formato de lágrimas, com soluços altos que fazem
minha garganta queimar. Eu choro de saudade... Choro porque essa vida de
merda ainda foi mais baixa. Ainda me tirou muito mais.
— O que aconteceu com ela?
E quando eu subo o olhar para o Harry, eu quero sentir raiva, mas
tudo o que me toma é dor. É tão contraditório, porque eu achava que estaria
gritando quando contasse isso tudo, deixando a raiva que eu nutri por esse
homem em primeiro plano. Mas tudo aqui machuca... a raiva é secundária
agora.
— Com uma quantia que minha mãe deu a ele, Edgar conseguiu
uma casa para nós na cidade ao lado. Ele também ofereceu emprego aos
meus irmãos mais velhos, em sua rede de postos de gasolina. — Minha voz
vai falhando quando eu começo a me lembrar do quanto aquela nova fase
era boa. Era uma nova vida. Um recomeço. — Fomos preparando tudo para
a mudança, e demorou até que a casa estivesse mobiliada. Estávamos
eufóricos, pois finalmente teríamos uma casa, um lar, como uma família
normal deveria ter.
“Ficamos ansiosos com a casa nova, porque tinha uma piscina de
fibra no quintal, e uma árvore grande com um balanço. Daniel adorava os
dois, e quando chegou o dia da mudança, ele e os outros quiseram ir
primeiro para a casa. Então, eu fiquei de ir por último, com a minha mãe,
porque não cabia mais ninguém no carro.
Era fim de noite, e estava chuvoso quando Ivan fez a última viagem
até o hotel, para buscar minha mãe e a mim. Eu adorava andar no banco da
frente, porque dava para ver tudo do mundo que eu estava amando
conhecer.
Eu gostava de andar de carro à noite com meu irmão e a minha
mãezinha, gostava de dizer que as luzes das casas pareciam estrelas. E os
dois eram as pessoas que eu mais admirava no mundo. Ver minha mãe
normal, vivendo... aquilo me deixava pisando nas nuvens. Ivan era meu
amigo, eu sempre fui muito apegada a ele. Eu amava a sua calma, o seu
jeito carinhoso comigo...
Minha mãe foi sentada no banco de trás. Ela ficou no meio,
enfiando o rosto entre os bancos da frente, empolgada e conversando com a
gente sobre montarmos uma árvore de Natal no fim do ano, e disse ainda
que, no ano seguinte, tentaria nos colocar na escola.
A estrada estava calma, e embora alguns salpicos engraçados de
chuva caíssem nos vidros do carro, Ivan disse que estava tranquilo de
dirigir, pois não havia outros veículos na estrada sinuosa. Mas foi nesse
exato segundo que eu senti o mundo chacoalhar, o carro girando na pista.
De início, tudo o que eu vi foi uma luz alta, e eu me senti rodando,
flutuando no ar, para depois despencar com tudo, com cacos de vidro
perfurando a minha pele e doendo a ponto de me desesperar. Mas eu sequer
conseguia me mexer, porque meu corpo inteiro doía.
Eu não entendi como o Ivan, em um segundo, estava dirigindo ao
meu lado, e, no outro, tinha sido arremessado pelo vidro do carro. Seu
corpo estava todo quebrado na estrada à minha frente, imóvel. Minha mãe
estava deitada de lado em cima do painel do carro, encarando-me, embora
sem vida alguma, com sangue escorrendo dos olhos abertos.”
Faço uma pausa e olho para cima.
— Foi ali que os nossos mundos colidiram, Harry.
Seu rosto demonstra tanta coisa... As expressões vão de espanto a
medo em segundos, os olhos se arregalando, a boca se entreabrindo antes de
ele dizer:
— Não! — Harry nega, agora se ajoelhando na minha frente, com o
desespero sendo o elemento mais presente em seu rosto.
Eu acho que a compreensão começa a chegar para ele.
— Foi ali que você matou a minha mãe e o meu irmão!
“Porque eu perdi o jogo,
é impossível eu me rebaixar mais,
porque sua dor está tomando conta.”
Lost The Game, Two Feet.

De joelhos na frente de Branca, com a mente presa no maior trauma


da minha vida, eu me pergunto se isso tudo é real, e não apenas um
pesadelo ferrado zoando com a minha cara.
Não é possível.
É realmente um sonho ruim.
Essa garota, toda fodida, chorando com o rosto escondido entre os
joelhos, não pode fazer parte da família... da família em que eu bati de
frente no acidente que levou embora o meu irmão.
Eu estava no regime de internato da escola de sargentos havia
quase um ano, quando nos cansamos e resolvemos sair daquela merda.
Josiah e Bill seguiam suas vidas após termos sido reformados do exército, e
eu aproveitei para finalmente matar a saudade do meu irmão.
Meu avô estava com Henrique em sua casa na serra, e me evitava
após saber que eu tinha aprontado alguma para ser reformado. Ele estava
passando o fim de semana em uma mansão de madeira no meio das
árvores, em um condomínio caro com gente tão podre de rica quanto ele.
Henrique sempre fora o preferido do nosso avô, que via em mim o
inconsequente que havia puxado ao pai. Meu irmão, na frente de Isaque,
costumava agir do modo que meu avô esperava, aceitando ser sufocado,
mas, pelas costas do velho, era Henrique quem metia o louco, fumando
maconha ou bebendo para caralho quando saía com seus amigos do curso
de inglês. Embora sua personalidade fosse calma, ele guardava muito suas
emoções, e extravasava assim, fumando ou bebendo.
Eu cheguei na casa de campo naquela noite, e depois de deixar
minhas coisas no quarto que compartilhava com o meu irmão, eu o
encontrei na sala, jogando videogame. Eu nunca vou me esquecer do
sorriso triste e apagado costumeiramente presente naquele rosto redondo e
moreno.
Quando eu me sentei ao seu lado, Henrique me disse que estava
chateado, seus olhos até marejaram. Ele estava namorando uma menina
virtualmente havia meses, e me contou que ela tinha terminado com ele
quando se encontraram pessoalmente, dando uma desculpa para ir embora
correndo, e depois o bloqueou.
Sua personalidade introvertida o atrapalhava para conhecer
mulheres pessoalmente, e eu sempre tentava levantar a bola dele,
apresentar garotas que conhecia, mas ele morria de vergonha e ficava em
silêncio a maior parte do tempo.
Para melhorar o seu humor, eu fui com ele a um puteiro naquela
noite, afinal, Henrique queria perder a virgindade, mas não conseguia se
soltar com as garotas. Então, tomou coragem e me pediu para que eu fosse
com ele a um. Meu irmão sabia que eu estava acostumado a procurar fodas
em baladas, mas que, às vezes, eu passava em prostíbulos quando queria
uma trepada profissional.
Quando chegamos ao prédio amplo, de dois andares, todo preto por
fora, Henrique estava suando frio. Eu tentei acalmá-lo, disse que podíamos
voltar para casa, se ele quisesse. Mas meu irmão, mesmo ansioso, não
queria desistir de transar pela primeira vez naquela noite.
Ele já tinha vinte anos, e eu entendia a sua urgência de querer saber
o que era transar. E eu tinha certeza de que ele nunca mais iria querer ficar
sem sexo depois daquilo.
Para mim, não foi o menor esforço trepar com uma das minas
daquele lugar, que era uma boate conhecida na região por ter mulheres
bonitas a um preço salgado. Eu fodi uma morena muito linda no segundo
andar, em uma das suítes simples, porém, limpas, e que me montou com o
cu do jeito que eu gostava. Quando eu terminei, tive de esperar por duas
horas que meu irmão terminasse com a garota que ele havia escolhido.
Aproveitei para tomar uma cerveja no bar, e no ambiente escuro, de
luzes vermelhas e fumaça artificial, com uma infinidade de mulheres me
alisando a todo o momento, querendo conseguir uma hora comigo no
quarto, para consolidar sua renda da noite, eu pensei em beber mais,
afinal, o lugar era bem perto de casa. Eu poderia tomar um fardo e ficar de
pé numa boa, mas, ainda assim, só fiquei na primeira lata, pois dirigiria na
volta e não queria ter problemas. Mesmo que fosse uma cidade pequena,
pacata, e naquela hora da noite não tivesse muita gente pela rua, eu preferi
maneirar.
Quando meu irmão desceu as escadarias de volta para o salão,
estava com um sorrisão de orelha a orelha, os olhos com uma felicidade
genuína, que eu raramente via, enquanto ajustava seu conjunto moletom
cinza no corpo. Ele bagunçava a cabeleira cacheada, prendendo os cachos
densos em um coque no topo da cabeça. Eu amava implicar com ele por
isso, chamando-o de samurai.
Henrique se sentou no bar comigo, e eu pude ver a mulher que ele
havia escolhido, uma bem pequeninha, de cabelos tingidos de um vermelho
vivo, dizendo a uma outra garota que estava toda assada depois de ter dado
para ele.
Eu ri. E me senti orgulhoso por ver o moleque, que, embora fosse
mais velho do que eu, parecia mais novo, finalmente perdendo o cabaço.
Henrique quis beber, e isso nem me surpreendeu; era só estar longe
dos olhos do nosso avô, e ele ficava mais solto. Eu pedi uma cerveja para o
meu irmão, que depois foi pedindo uma atrás da outra. Ele ria, dizia que
queria foder todos os dias, porque era mil vezes melhor do que bater uma
em seu quarto. Falava que não queria cursar Direito, como o nosso avô
exigia, mais sim ser um programador de jogos, como sempre sonhara. Que
iria chegar em casa e dizer ao nosso avô, a plenos pulmões, que iria seguir
os seus sonhos.
Foi quando vimos o segurança do meu avô perambulando pela
boate que resolvemos, juntos, pagar a conta e meter o pé, antes que ele nos
visse. Provavelmente, meu avô havia o mandado nos seguir, como amava
fazer.
E foi exatamente o que fizemos, despistando o Gomes, um camarada
alto, fortão e que ainda não tinha chegado aos trinta. Eu soube que meu
avô dava a ele a função de ficar na nossa cola.
Conseguimos sair da boate enquanto o Gomes perambulava pelo
salão, e rindo para caralho, nós nos enfiamos no carro. O plano era dirigir
para casa, mas quando eu virei duas ruas e vi o Golf preto do Gomes nos
seguindo, Henrique começou a gritar: “Bora, Harry, despista ele!”.
Eu ri e entrei na sua brincadeira, acelerei um pouco mais. No meio
da madrugada, não havia uma só alma viva perambulando além de nós.
Segui por ruas e ruas, sempre com o cara na nossa cola. Meu conversível
corria à beça, e era possível até ouvir o barulho das rodas cantando pneu
no asfalto quando eu resolvi pegar a avenida, e depois uma estrada, para
seguir um atalho por outro bairro.
Na minha cabeça, eu o despistaria e depois surgiríamos em casa,
adorando dar um perdido no segurança do nosso coroa. Mas Henrique
estava bem mais bêbado do que eu, e vendo que o puto do Gomes ainda
estava em nosso encalço, ele tirou o cinto de segurança e começou a se
jogar em cima de mim, para desligar o farol do carro. Eu o mandei parar, e
bem rápido acendi o farol. Mas foi nesse segundo que, na estrada sinuosa,
eu tive uma colisão frontal com um carro que vinha na contramão.
Foi tudo tão rápido...
Meu carro capotou.
Eu nunca vou esquecer a sensação de estar rodopiando no ar.
O mundo perdeu o som, como em um filme mudo.
E, de repente, tudo se apagou.
Eu me lembro de ter acordado em uma cama de hospital, com uma
tala na cabeça. Tudo doía, abrir os olhos, mexer a boca, levantar o braço.
De início, eu não entendi como havia ido parar naquele quarto de paredes
brancas, ou porque estava de camisola e com uma porra doendo no meu
pau. Lembro que subi o lençol e vi uma sonda urinária.
Uma enfermeira surgiu quando me viu tentando arrancar o acesso
do meu braço, e eu a bombardeei com perguntas grogues e fracas, eu
queria saber onde estava o meu irmão, porque os flashs do acidente
estavam chegando aos poucos.
Ela me disse que estavam ligando para o meu acompanhante, que
havia saído para almoçar. Contou que eu estava lá havia três dias, pois eu
tinha sofrido um acidente de carro e acabado com um traumatismo
craniano.
Meu avô surgiu no quarto poucos minutos depois, e embora seus
olhos parecessem esperançosos por eu estar acordado, jaziam opacos,
cheirando a luto. Eu já tinha visto aquele olhar antes. Duas vezes. Quando
havia perdido a minha mãe e, depois, a minha avó.
Ele me contou que o Henrique estava morto, e embora tenha
tentado dizer isso de uma maneira sutil, eu surtei, gritei, inconformado, e
precisei ser sedado. Fiquei no hospital por dias, até estar bem para voltar
para casa.
A minha vida estava apagada, sem cor alguma, porque eu havia
perdido o meu irmão por minha irresponsabilidade. Dia após dia, a culpa
me consumia, e volta e meia eu pensava se ainda tinha sentido seguir
vivendo.
Um dia, em meio à penumbra que era existir daquele jeito, eu me
lembrei do outro carro e me perguntei sobre a pessoa dentro dele. Eu
queria saber como estava, se havia conseguido sobreviver, pois meu avô
nada dissera.
O impacto do acidente foi tão rápido que a única coisa que eu vi foi
o farol do veículo, nada mais. Não tinha como saber quem era o motorista
ali, ou se havia mais pessoas. Então, eu fui atrás do meu avô. Ele me
evitava, vindo me ver apenas para ter certeza de que eu estava bem.
E como eu estaria bem? A morte havia batido na minha porta, mas
me rejeitara, assim como todo mundo ao meu redor fazia. Não satisfeita,
resolvera levar alguém que eu amava e me deixar feito um morto-vivo,
existindo com um pedaço da alma esburacado.
Quando eu o inquiri sobre o outro carro, meu avô me contou que
havia uma família lá, mas que todos tinham sobrevivido. Eu perguntei por
que a polícia não havia pegado o meu depoimento, e, sem paciência, ele
gritou que era para eu esquecer aquela merda e agradecer pela sorte de
não ter ido em cana, porque eu merecia. Berrou na minha cara, enquanto
virava a mesa de seu escritório, que eu havia levado o meu irmão a um
puteiro e o embebedado, que eu havia o corrompido e levado de encontro à
morte. Que eu havia arrancado o Henrique dele.
Foi uma sequência de ofensas mútuas, que culminou com meu avô
dizendo que a porta da rua era serventia da casa. Então, eu joguei uma
mochila nas costas e, enquanto descia as escadarias rumo à casa de
Josiah, eu ouvi que estaria completamente enterrado para ele se cruzasse a
porta de saída, e que eu nunca veria um tostão de sua grana.
E com a culpa pela morte do meu irmão, eu decidi viver do único
jeito que me seria possível: sozinho.
Eu nem sei por quanto tempo fiquei preso nas lembranças, mas
quase consegui sentir cada memória rondando o acidente me atravessar. E
não é possível que a Branca estivesse naquele carro. O meu avô me disse
que estavam todos vivos, mas como eu fiquei ferrado numa cama de
hospital e não me lembro de porra nenhuma, como saber se ele me disse a
verdade?
— Você não tem como ter estado no meu acidente... — falo, mas,
neste segundo, eu não tenho certeza de nada. Tento segurar o rosto dela, que
faz força para continuar o escondendo no meio dos joelhos. — Meu avô me
garantiu que a família no outro carro havia sobrevivido.
— Como você pode meter essa, Harry? — Quando sobe o rosto,
tudo o que vejo nela é dor, mágoa e alguma raiva. Seus olhos injetados
mostram que não acredita em mim. — Eu rastejei para fora do carro, e só
sobrevivi porque era a única com a porra do cinto de segurança. Eu vi o seu
conversível, com seu irmão jogado a metros de distância e usando um
conjunto de moletom cinza inteiramente ensanguentado, o corpo quase ao
lado do de Ivan. — O queixo dela treme, e meu coração é esmagado. — Em
meio à chuva, eu vi quando um carro se aproximou da área do acidente.
Mas eu estava em choque, não conseguia dizer nada, apenas fiquei deitada
de lado no asfalto molhado, ouvindo um homem de voz jovem, trajando
terno, falar ao telefone enquanto media a pulsação do motorista do outro
carro, a porra da sua pulsação!
“Ele dizia que vocês estavam bêbados, que haviam apagado as luzes
do carro para fugir dele, e pedia orientações a alguém do outro lado da linha
sobre como agir. Depois de desligar o telefone, ele caminhou pela cena do
acidente e checou os corpos. Quando chegou até mim, ele se apavorou ao
ver que eu estava viva. Eu vi quando outro homem, que saiu do mesmo
carro que ele, tirou você de dentro do seu conversível, depois o colocou no
dele e partiu.
Eu jamais esqueci seu rosto, Harry.
Fui socorrida, quebrei uma perna, fiquei com o corpo todo cortado
pelo vidro do carro. Mas nada doía mais que o meu coração. A dor de ver
que as duas pessoas mais importantes que eu tinha estavam mortas, e não
poder fazer nada, era insuportável. Eu nasci na ruína, e quando saí dela,
você foi lá e me jogou de volta no fundo do poço!”
Cada palavra dela entra no meu corpo como uma bala, esburacando-
me.
Ela estava lá...
São detalhes demais. A roupa do Henrique, o conversível, o
segurança que provavelmente ligou para o meu avô...
— Sinto muito! — Eu tento segurá-la, mas ela novamente se
esquiva de mim. — Eu não sabia, Branca!
Meus olhos escorrem, a dor vai me dominando, afundando-me e
destruindo-me.
É por esse motivo que Branca fez aquilo tudo comigo, que tentou
me ferrar. Ela me odeia. Ela me culpa. Mas foi um acidente! Diferente do
quanto ela quis e conseguiu me ferir, o que eu fiz não foi intencional. Eu
jamais imaginaria que o Henrique apagaria o farol do carro logo numa
curva, porra! E embora fosse o meu carro o que estava apagado... era o da
família de Branca que estava na contramão.
Mesmo que nada do que ela fez comigo seja justificável, eu sei que
a batida dos nossos carros a arruinou. Só que isso também tomou algo de
mim.
Se eles estivessem na pista certa...
Se o meu carro estivesse aceso...
São tantos “se”.
Eu nunca mais fui o mesmo depois daquela noite, e, depois de hoje,
talvez seja impossível eu conseguir me remontar. É como se meu peito
estivesse tão estilhaçado que eu sinto que meu coração jamais será capaz de
funcionar direito.
— Eu disse à polícia sobre você. Enquanto meus irmãos choravam a
morte do Ivan e da nossa mãe, eu tinha de contrapor o seu segurança,
porque só podia ser alguém da sua família, e era o mesmo que estava na
cena do acidente e que chamou o socorro para mim. — Branca olha dentro
dos meus olhos, sondando a dor exposta em meu rosto. — Ele me
desmentia, dizia que não havia mais ninguém ali, que a única pessoa no
acidente era o Henrique. Ele me fazia parecer louca. Ou em choque pelo
trauma. E talvez por eu ser quase uma criança, a minha palavra valesse
menos do que a do vendido do seu funcionário.
Minha mente está ruindo, minha cabeça vai explodir em dor, e a
frase do meu avô sobre eu ser um assassino se mistura às palavras de
Branca.
Bill e Josiah, que sabem do acidente, sempre me dizem que foi
apenas isso, um acidente. Uma fatalidade, e que eu não devo carregar essa
culpa. Embora eu sempre esconda deles o quanto choro no banho pensando
nisso, ou que seguro a aliança do meu irmão – a única coisa que sobrou dele
e que meu avô me entregou quando eu voltei do hospital – e me sinto
culpado. Eu me desfaço um pouco a cada dia com a culpa que carrego por
ter perdido meu irmão, que eu tanto amava, daquele jeito.
Meu coração está batendo de maneira desesperada, eu sinto minha
garganta se fechando, a testa inundada de suor, e minha mente rodopia. Eu
não sei como agir, que caralho devo dizer ou fazer.
Eu sei que Branca me ferrou, que me roubou e quis se vingar de
mim, mas agora tudo o que ela fez perdeu o foco, porque não foi ela a
responsável pela morte de alguém que eu amava. Não era ela no volante
daquele maldito carro na mão errada, na porra da pista única, onde eu
estava do lado certo.
— Meu avô sempre me disse que a sua família tinha sobrevivido. —
Eu a seguro pelos ombros, e desta vez ela não se afasta. — Estou dizendo a
verdade, Branca.
— Por que você fugiu? Por que nunca deu um depoimento? — O
rosto dela está muito vermelho, e a boca treme em meio ao choro enquanto
ela fala. — Por que saiu impune?
— Eu fiquei internado por dias, tive um traumatismo craniano. Meu
avô foi quem resolveu tudo, e eu sequer pude ir me despedir do corpo do
meu irmão. — Agora, estou soluçando, com a dor da culpa misturando-se à
saudade que sinto de Henrique. — Quando eu o inquiri sobre a pessoa do
outro carro, ele mentiu, disse que estavam todos vivos.
Branca cerra os olhos, não parece acreditar em mim, e a cada
segundo que sua expressão muda, ela vai parecendo mais brava.
E quem não estaria?
Ela acha que eu fugi da cena do crime, que eu me omiti.
— Você estava bêbado? — Ela não tira minhas mãos dos seus
ombros. Na verdade, Branca me olha tão profundamente que sei que espera
que eu diga o contrário. — Nos relatórios do acidente, estava escrito que o
Henrique tinha um volume alto de álcool no sangue, afinal, acreditavam que
era ele dirigindo o carro. Mas e você, quanto bebeu antes de terminar de
arruinar a minha vida?
Branca já me odeia. Quer me destruir. E tentou com força. E no jogo
dela, eu realmente perdi. Eu entrei nesta casa me sentindo injustiçado, e,
agora, descubro que sou o motorista do carro que arrancou a mãe dela, que
ela acredita que fui eu quem terminou de foder a mente dela.
Mas eu não fujo das minhas merdas. Se eu soubesse que alguém
havia morrido, provavelmente teria dado a cara a tapa, ido depor. Eu não
me acovardaria. E já estava tão condenado, carregando os grilhões da minha
própria culpa, que se eu tivesse de ir em cana, seria apenas um bônus da
merda inteira.
— Sim — finalmente respondo. E então ela afasta minhas mãos,
balançando a cabeça. Agora Branca chora com força, e esse choro alto
parece uma linha tracejada no chão, um limite, um fim definitivo para
qualquer empatia que estivesse tentando ter por mim. Ela assina a sentença
da minha culpa. — Eu havia bebido com o Henrique, mas bebi só uma lata.
— Uma lata que te fez bater na porra do meu carro, seu imbecil! —
Ela me dá um soco no peito.
Embora eu ainda sinta raiva por saber o quanto ela foi capaz de ser
má em nome de sua vingança, e ainda que eu esteja cheio de perguntas e
completamente fodido com todas essas descobertas, eu preciso contar a ela
sobre como foi que as coisas acontecerem, o meu lado da história.
— Me deixa contar a minha versão — peço, precisando usar uma
certa força para segurar as mãos dela.
— Pra quê? — ela grita, com gotas de saliva escapando pela boca.
— Pra mentir bem na minha cara? — Sua risada é seca. — Eu ainda tive
esperanças de que você me destruísse ao mostrar que não era culpado, que
tivesse uma desculpa plausível, que me fizesse sentir que sou uma vaca
tentando me vingar de um inocente. Mas agora você está pisoteando no
amor que eu comecei a nutrir por você, mentindo bem na minha cara,
justificando o injustificável!
“O amor que eu comecei a nutrir por você...”
Então, Branca está dizendo que nem tudo foi uma mentira? Em
meio a essa vingança burra, ela se apaixonou? E como acreditar em
sentimentos que saem da boca de alguém capaz de produzir tanto veneno?
Cobras sempre foram vistas como sinal de falsidade.
E mesmo que eu consiga ver tantas notas de dor no rosto da Branca,
acho que eu precisaria morrer e nascer de novo para ver nela algo diferente
de uma grande mentirosa, capaz de dissimular, de seduzir, de brincar
comigo.
— Você também justifica o injustificável, porra! Você teve o sangue
frio de uma pessoa ruim, e intencionalmente me arruinou para me punir,
quando, se sabia do acidente, poderia ter me jogado contra a parede, ter
buscado suas respostas no momento que me encontrou, mas preferiu ser
uma ladra de merda, uma sem caráter! — Eu chuto o balde, trago a raiva
para o primeiro plano ao jogar isso na cara dela, e quando solto suas mãos,
deixo que ela me bata, que me arranhe o pescoço, que agarre a minha blusa
e grite na minha cara feito louca, até que, por fim, ela se canse e desmorone
no meu peito. Que, exausta, rasteje para se sentar de frente em cima de
mim. E quando essa maldita o faz, tão destruído quanto ela, eu a abraço,
porque é o que me sobra. Porque meus sentimentos por essa mulher estão
embaralhados. — Me deixa contar a porra da minha versão, porque, se eu
me lembro bem, eu também perdi o meu irmão naquela merda! Eu também
fui despedaçado!
E quem de nós dois está certo nessa história?
Aos olhos dela, eu fugi da minha responsabilidade no acidente. Aos
meus, se ela me encontrou, poderia ter jogado limpo, ter cuspido na minha
cara a merda inteira, e então tentaríamos entender isso. Eu encontraria um
jeito de mostrar à Branca que ela está errada. Que eu não fugi de nada. Mas
eu fui arrancado e enganado, assim como ela.
Mas se sou culpado, vou responder por isso. E embora eu realmente
sinta culpa, porque deveria ter apenas ido para casa, e não ter fugido do
segurança, eu não sou esse assassino que ela está pintando.
Eu não sou o único responsável por essa merda.
Eu bebi, sim, mas eles estavam na contramão. Era uma estrada de
mão única. A minha mão! Todas as placas da via estavam viradas para mim.
O carro foi apagado pelo meu irmão por breves segundos, mas eram eles no
lugar errado.
E isso é um fato!
— Pode falar... mas duvido que algo me faça deixar de vê-lo como o
grande culpado nisso tudo.
Respiro fundo, sentindo raiva, e ao mesmo tempo pena dela.
Sentindo culpa no mesmo segundo em que me sinto injustiçado.
Eu começo a contar a ela sobre aquela noite, detalhe por detalhe,
sem esconder nada, ouvindo seus ruídos enojados por eu falar sobre ir a um
puteiro com o meu irmão. Sinto na ponta da língua a vontade de dizer que
ela não é nenhuma puritana para ficar me julgando, afinal, ela trepou com
um casal na porra da balada. Mas engulo o ciúme, a raiva eterna que
carregarei comigo por ter presenciado aquela merda. E me concentrando em
apenas narrar os fatos, explico sobre a estrada, sobre o carro dela estar na
contramão, e como isso ocasionou em uma colisão frontal.
— Eu não preciso mentir, Branca! Posso te levar até aquela estrada
agora, e tu verá que estou falando a verdade!
Ela deita a cabeça de lado no meu peito, parecendo ofegante,
parecendo cansada.
— Agora que você disse isso, sobre as placas estarem viradas para
você, a recordação está chegando. — A voz dela está distante, como se sua
mente viajasse para o passado. — Estou me lembrando de que achei
estranho ver que as placas estavam todas ao contrário. Mas eu não sabia
dirigir, tinha treze anos, e passei a vida longe do mundo aqui fora, não tinha
como entender que era uma contramão. — A voz dela sai baixa. — Mas
isso não muda o fato de que você bebeu e apagou o carro. Se meu irmão
tivesse visto as luzes, teria desviado.
Reviro os olhos.
— Não tinha tempo hábil para desviar, Branca! Era uma estrada, os
carros não dirigiam a menos de 100km/h. Diminuíam um pouco nas curvas,
mas nada que impedisse aquela tragédia. Fora que você disse que era a
única usando cinto! Se não fosse comigo, vocês teriam colidido com outra
pessoa!
— Você não tem como saber, porra! — ela rosna. — E nada muda o
fato de que você fugiu daquela merda toda, que me pintaram de louca por
anos, Harry! Que eu o vi nos meus pesadelos por muito tempo, arruinada,
achando que estava maluca.
Eu vou explicar a ela sobre o meu avô, mas de um jeito que Branca
entenda de uma vez por todas que eu jamais fugiria, que eu não sou a porra
de um moleque. Contudo, agora, preciso pegar o gancho do que ela está
dizendo para entender outra coisa...
— Como você me encontrou?
Branca respira fundo, e eu não consigo deixar de pensar no quanto
ela é confusa. E no seu poder de me confundir também. Estou com raiva,
mas a quero aqui, abraçada a mim, porque, de certo modo, ela ainda me
conforta em meio a toda essa dor.
— Depois da morte da nossa mãe, o Rafael se tornou o responsável
por nós. Estávamos ferrados, Harry. — Ela me aperta ainda mais forte, e eu
sei que o jeito como está se mexendo em cima de mim, balançando-se em
cima do meu pau, é porque está tentando compensar a dor sentindo alguma
coisa. E mesmo sabendo que nós dois já éramos, eu ainda a deixo fazer isso.
Sua doença nunca foi uma mentira, Branca realmente sofre com essa merda.
Por isso, permito que se esfregue em mim, mas provavelmente não vai sair
nada daqui. Minha pica está mole, como se eu tivesse cem anos, não deve
subir por nada. — Com o tempo, ele ficou cada vez mais revoltado, embora
fosse responsável e cuidasse de mim e dos outros irmãos. Eu estava
morrendo de medo de viver sem a minha mãe, e acabava falando de você o
tempo todo, que o assassino dela e do Ivan estava vivo e à solta. — Branca,
percebendo que eu não vou endurecer, pega minha mão e a leva para baixo
de sua saia. Ela afasta o rosto do meu peito e me olha nos olhos. Tem
vergonha, medo e uma necessidade ali. São os olhos vidrados que eu vi
naquela escadaria. E, com pena, ainda apaixonado, incapaz de quebrar a
promessa de ajudá-la com essa merda, eu deixo que leve meus dedos até
sua calcinha. Então, eu tomo a frente. Eu os enfio por baixo do tecido, com
Branca segurando os meus bíceps e fechando os olhos enquanto eu tateio
sua boceta, que está mais seca do que úmida. — Eu falava que tinha medo
de você, porque via seu rosto em meus sonhos. Meu irmão gritava que você
não existia. — Ela geme quando eu enfio um dedo dentro dela, tentando
deixá-la mais molhada para masturbá-la. Meu peito esquenta, quase
adquirindo a temperatura dessa carne macia ao redor do meu dedo. — Que
eu havia te imaginado, delirado, porque tinha me machucado no acidente.
— Deita! — ordeno.
Eu não quero, mas acabo endurecendo ao tirar meu dedo, para ver
Branca puxando a calcinha pelas pernas, com uma lágrima escorrendo dos
olhos enquanto se abre para mim.
Vou chupar a Branca e arrancar a porra de um orgasmo dela. Isso é
mórbido e deprimente, mas ainda prefiro o fazer a me sentir culpado por
entender que ela vai correr para baixo de um estranho ou de uma mulher
qualquer, porque não controla esse vício de merda ainda.
Enquanto abocanho sua boceta, voltando a meter o dedo dentro dela,
suspirando por ao menos fazer algo que vai me relaxar neste momento.
— Ah... porra... — Branca geme, contorcendo-se e arqueando as
costas. — Com o tempo, as nossas reservas de dinheiro acabaram. Então,
Rafael precisou aprender todos os esquemas errados do Edgar, que
claramente era metido com essas coisas de golpes, lavagem de dinheiro e
falsificação de documentos. E foi assim que a nossa vida desan...
desandou... Ah! — Ela geme mais alto quando eu começo a socar os dedos
mais fundo, três de uma vez. — Desandou totalmente. — A voz dela é
carregada de emoções diferentes, raiva, tristeza, resignação, e finalizada
com gemidos sujos. — Eu fiquei viciada em sexo, meus irmãos
desenvolveram problemas emocionais, que iam de depressão à ansiedade.
— Eu mordisco um dos lábios da boceta dela, sentindo o quanto somos
imundos, falando da porra dos traumas do passado enquanto eu a chupo
como se ela não fosse uma maldita que quer me comer vivo. — Eu passei a
roubar caras na internet. E, um dia, há um ano, eu estava na Vermute com
uma garota que tinha uma galera conhecida no camarote. E foi então que eu
te vi. — Mordo mais forte o outro lado, duvidando se não vamos terminar
isto aqui comigo a partindo ao meio enquanto a fodo pela última vez. —
Você estava sorrindo, conversando com os seus amigos... E era tão real
quanto os meus piores sonhos. Então, não me restou nada diferente de me
tornar o seu pior pesadelo, Harry. — Agora ela tem raiva na voz, e eu, mais
puto ainda, chuto o balde, abandonando qualquer senso crítico enquanto
meto a mão no decote da regata fina dela, rasgando-a com ódio.
Eu me levanto e fico inteiramente nu. De cima, vejo Branca me
olhando com desejo enquanto tira os frangalhos da camiseta e depois dá um
jeito de chutar a saia para longe, quase aguando ao encarar meu pau, com os
peitos incríveis subindo e descendo por causa de sua respiração
desesperada. Eu só me abaixo quando ela se deita de costas novamente,
ignorando os sinais de merda na minha cabeça, que gritam “camisinha”. De
joelhos, eu apenas me enterro nesse diabo em forma de mulher. Ela geme,
arregalando os olhos com a força com que entrei, de uma só vez, para
machucar, para doer. Então, eu soco com toda a força do mundo, sentindo
as unhas dela se enterrando nos meus braços.
— Fala... — Estoco bem forte. — Filha da puta... — Tiro o pau de
uma vez, só para meter com mais ódio. — Quero que me conte cada
detalhe... — Ela solta um som engasgado, e eu tenho dúvida se é choro ou
gemido. — E enquanto tu fode o meu coração, eu vou te destruir aqui,
embaixo de mim, e pela última vez! — Eu me abaixo e mordo a porra do
antebraço esquerdo dela, com raiva, querendo arrancar sua pele para aplacar
a minha fúria, ouvindo um grito tão alto que parece até pecado eu me
excitar e ficar mais duro ainda. Solto seu braço antes de sentir o sangue
jorrar dos furos. — E depois, quando acabar, eu vou te provar que jamais
teria fugido ou me omitido! Que fizeram isso sem que eu soubesse! Então,
me conta, desgraçada, conta o que tu fez!
Eu dobro as pernas dela, apoiando seus joelhos quase na linha do
seu queixo, no ângulo perfeito para me enterrar até o talo em sua carne
apertada e amaldiçoada. Branca está com o rosto vermelho enquanto eu
belisco um dos seus seios, sentindo seu piercing sendo espremido entre os
meus dedos, amando descontar minha raiva nesta porra de foda. E...
caralho, como ela é quente! Como é apertada!
— Eu te segui... — Branca choraminga, enquanto invisto com força,
comprimindo os lábios de dor. — E te stalkeei inteiro. Descobri cada
detalhe da sua vida. — Dou um tapa bem forte na lateral de sua bunda, que
reverbera pelo ambiente, chegando a fazer eco, com meu pau vibrando o
mais forte que já fez quando o urro de dor dela quase estremece as paredes.
E engolindo o orgulho, Branca se recompõe e continua a falar, com
dificuldade: — Então, comecei a te perseguir nos jogos, só pra te irritar. Eu
invadi teu celular e todas as tuas contas, li cada uma das tuas conversas e
descobri o teu maior sonho. Foi depois disso que eu me aproximei, pra te
destruir de dentro, pra te fazer me amar e depois te contar quem eu sou e o
que tu fez comigo. — Ela agora geme, lambe os lábios, e me irrita ao
parecer bem perto de gozar, revirando os olhos de tesão. Para a punir, eu me
abaixo e mordo seu lábio inferior, travando suas palavras e lutando para não
gostar do sabor deles. Eu meto, e meto, e meto, tendo de fazer força para
conter a vontade de a enforcar. Quando solto sua boca, porque ela
choraminga bem alto, dou-lhe um tempo para respirar, saindo e entrando
mais devagar dentro dela, vendo-a chupar o sangue da ferida que eu deixei
em seu lábio. Com cara de choro, ela geme baixinho antes de continuar a
falar: — Pra jogar na tua cara que tu podia ter saído impune ao ter matado o
Ivan e a minha mãe, mas que eu te assombraria pra sempre!
— Sabe o que vai te assombrar pra sempre, Veneno? — sussurro,
puxando-a para cima e levantando-a em meu colo. Branca, morrendo de
medo, está apertando a boceta envolvendo o meu pau com a mesma força
com que seus braços envolvem o meu pescoço. E quando eu me aproximo
da cama dela, a maldita cobra nos encarando de dentro do terrário faz meu
sangue borbulhar, queimar em minhas veias, não me deixando alternativa
que não seja descontar nessa mulher maldita. — Tu saber que eu estive a
um pequeno passo de amá-la... — Agora são os meus olhos se enchendo de
lágrimas quando eu a deito sobre os lençóis claros, quando eu a coloco na
posição de frango assado. — E que, por uma infantilidade sua, por escolher
uma vingança burra que tinha tudo para dar errado... — Aperto os quadris
dela com tanta força que sei que a estou deixando toda roxa enquanto meto
como se quisesse atravessar o útero dela. — Tu condenou o que poderíamos
ter sido. E vai ver que estava errada, que eu não fugi, que não escolhi o que
foi feito, e vai se arrepender por ter me odiado quando tudo o que te dei foi
o meu coração. — Chego a enfiar a ponta das unhas e rasgar a pele dela
enquanto a fodo, e feito um demônio, cada gemido, cada soluço e
choramingo dela me alimenta, aumenta a minha raiva. Solto um gemido
longo, tendo de fechar os olhos para conter a vontade de gozar. — Quando
eu estava pronto pra te entregar a minha vida, louco por ti, a ponto de
pensar num futuro contigo, coisa que eu nunca fiz com mulher nenhuma,
sua filha da puta!
Branca pode ter perdido muito, mas ficou doente com esse ódio.
Envenenou a nós dois, e enquanto ela chora, fazendo uma cara louca
de dor e prazer, eu a fodo no ponto certo, pelo tempo certo, com o pau
queimando, e a alma também. Eu meto com ódio, mas do jeito exato para
tirar o pau e ela esguichar com força, gozando feito uma cadela, berrando,
convulsionando.
— Como se sente agora? Tu conseguiu. Tu me destruiu de dentro,
Branca. Eu perdi o game.
— Harry...
Branca engasga, soluçando, com os joelhos batendo um no outro
enquanto uma poça se forma no lençol embaixo da sua bunda. Tem um
curso molhado pigando da sua boceta rosa, inundando o cu apertado, que
parece me encarar e pedir para ser machucado também.
Eu não quero ouvir a voz dela. Irritado, abaixo suas pernas, e mal a
deixando se recuperar, com a pele inteira pegando fogo, eu monto em cima
do peito dela e faço força para enfiar meu pau na sua boca. Branca demora,
grogue por seu orgasmo insano, mas abre os lábios para mim. Ela tenta
chupar, mas desiste de sugar a cabeça, porque sabe que eu vou foder. E sem
decepcioná-la, é o que faço, meto na boca dela até atolar meu pau na sua
garganta, enquanto puxo com força um tufo de cabelo no topo de sua
cabeça. Eu a vejo desesperada, tentando respirar, com os olhos cerrados e o
rosto todo vermelho. E mesmo com raiva, nem na hora da foda eu teria
coragem de marcar a cara perfeita que essa demônia tem com um tapa, por
isso a raiva é descontada em seu cabelo. A porra do cabelo lindo pelo qual
eu sou apaixonado e serei obrigado a esquecer.
Eu nem me reconheço neste minuto, estou doido de ódio, apenas
metendo, e metendo, e metendo, até gozar na sua boca. E temendo que ela
morra engasgada com a minha porra, puxo o pau para fora e saio
derramando gozo na cara dela inteira.
Nessa cara bonita.
Nessa cara de uma perfeita mentirosa.
Quando eu termino, rolo para o lado dela. Eu me ajoelho na cama e
vejo o estrago que fiz. Branca está coberta de marcas roxas, tossindo, toda
molhada do seu esguicho e com a cara degradada pelo meu gozo.
Precisando respirar, precisando de descanso por breves momentos,
eu me deito ao lado dela, que se vira com dificuldade para olhar para mim.
É uma obra de arte bizarra ver suas lágrimas se misturando à porra quando
descem por sua bochecha.
— Arruinada, Harry! — Branca choraminga, e embora haja algo
selvagem para mim em seu rosto, ainda tem dor demais ali. — Eu me sinto
completamente destruída!
— Então, estamos juntos até na ruína. E tem razão, serei
eternamente assombrado por você. — Eu me sento na cama, dobro os
joelhos e apoio os pulsos neles. — Não existe mais nada entre nós além de
um laço de dor. — Eu vejo o impacto que minha frase tem dentro dela pela
dor absurda que se forma em seu rosto, ela nem consegue barrar o queixo
de tremer. Mas o que Branca esperava? Que não fôssemos terminar, depois
de toda essa merda? — Vá tomar um banho e se arrumar, porque vou te
levar à casa do meu avô agora e vou provar que não sou um mentiroso ou
um moleque que fugiria dos meus problemas!
“(...)toda vez que você vai,
é como uma faca que corta diretamente
através da minha alma.
Só o amor pode machucar assim.”
Only Love Can Hurt Like This, Paloma Faith.

É a primeira vez que eu faço sexo com Harry e me sinto imunda


depois.
Estou completamente dolorida, do corpo à alma.
Arruinada por ele e pela vingança que eu arquitetei.
Harry está na minha frente, de pé diante da cama, tomando um copo
d’água e me encarando com raiva. Ele já se enfiou no meu banheiro, tomou
banho e vestiu a mesma roupa. Agora, está esperando que eu me
recomponha da surra em formato de foda que me deu.
Ele está impaciente, quer que eu me levante e me arrume para irmos
até a casa do Isaque. E eu tento, com a mente doendo por tudo o que
aconteceu e o que acabamos de fazer. Mas quando eu me levanto, minhas
pernas, tomadas por câimbras, por causa do squirting, obrigam-me a me
sentar novamente.
Como a minha vingança parece imbecil agora...
Eu imaginei muitas coisas para este momento, menos que ele me
foderia de um jeito que, cada toque e cada palavra sua me quebrassem em
pedaços.
E se Harry estiver falando a verdade? Se formos até o avô dele, e
Isaque me provar que o neto é inocente, que não fugiu, como eu pensei? Se
estávamos na contramão, como a minha lembrança, agora nítida, das placas
“de costas” para o nosso carro me mostram, a culpa do acidente foi nossa.
Uma lata de cerveja...
Henrique apagando o farol...
Meu irmão na contramão...
Quem é o verdadeiro culpado?
Ou não existem culpados, mas apenas uma fatalidade, uma birra do
destino, que queria, de algum jeito, tomar algo de nós dois, e então unir
nossas vidas, para que eu nos destruísse anos depois?
E eu sou tão suja por querer vingar a morte da minha mãe e do meu
irmão de alguém que todos os indícios diziam que fugiu da cena do crime
para não responder por suas responsabilidades?
Estou errada?
Devo aceitar que me vinguei de um inocente?
Isso vai acabar comigo!
Ao mesmo tempo que eu não quero o destino autodestrutivo que me
aguarda se eu confirmar que perdi o homem da minha vida porque quis ver
nele um monstro, quando eu podia ter feito tudo diferente, eu também
espero que ele seja inocente. E também preciso saber se me apaixonei por
Harry porque ele merecia o meu amor, porque merecia os meus sentimentos
bons, e não porque eu fiquei obcecada por essa vingança.
E por quanto tempo eu menti para mim mesma, dizendo que era
tudo pela vingança, que o meu ciúme, o sexo e os beijos eram porque eu
queria arruiná-lo? A verdade é que, já faz algum tempo, eu percebi que ele
não era, nem de longe, o demônio cheio de garras que eu criei na minha
cabeça. Que, na verdade, Harry tinha todos os predicados do príncipe que
eu sempre sonhei para mim. Eu só fechei os olhos para os meus
sentimentos, tentei fingir que não estavam ali.
— Vamos, Branca! Eu não quero esperar mais. — Harry pousa o
copo na mesa de cabeceira e segura meus braços com gentileza, ajudando-
me a me levantar. Mas quando seus dedos resvalam na mordida dolorida
que deixou em meu braço, um gemido entrecortado escorrega pela minha
língua. — Desculpa!
Mesmo com toda a raiva que ele está sentindo de mim, ainda é
gentil, ainda se importa, e isso me quebra. É um soco no estômago ver que
Harry é o oposto de tudo o que eu imaginei quando o vi naquela balada, há
um ano.
Ele passa um braço pelas minhas costas, sustentando-me ao segurar
minha cintura, e assim me ajuda a ir para o banheiro. É deprimente não
conseguir andar por causa de uma ejaculação, mas eu já estou
profundamente humilhada, isto é apenas a cereja no topo do bolo da minha
queda.
Harry me coloca embaixo do chuveiro, e me apoiando com uma
mão do jeito que dá no azulejo ao meu lado, lavo o gozo do meu rosto com
o sabonete líquido que ele despeja em minha mão. Depois, dou um jeito de
lavar minhas partes íntimas doloridas, sentindo os hematomas ardendo em
contato com a água.
Quando olho para baixo, já com firmeza nas pernas, noto a mão
tatuada de Harry na lateral esquerda da minha bunda. É o contorno
perfeitamente arroxeado de seus dedos largos, e está doendo para um
caralho.
Tomo um banho bem porco após Harry me deixar sozinha no
banheiro, concentrando-me em lavar apenas onde há mais estrago. Depois
de me secar, coloco uma calcinha, que nem reparo no tamanho ou na cor,
visto um macaquinho jeans solto, para não apertar os hematomas, e com os
cabelos úmidos e sem pentear, pego minha bolsa e caminho para a porta,
sentindo Harry me seguindo.
— Cadê a chave do seu carro?
Trinco as sobrancelhas para o seu questionamento, tentando focar
em um só pensamento, porque as dúvidas sobre “onde está a moto dele?” e
“onde caralho eu enfiei a chave do poodle?” rondam a minha mente ao
mesmo tempo.
— E a sua moto? — Minha voz é um sopro tão fraco que nem eu a
ouço direito.
— Embora você me ache um mauricinho inconsequente, eu sei
quando não pilotar uma moto, quando pode ser mais perigoso do que andar
de carro.
Engulo em seco, sentindo o impacto de suas palavras. Dou meia-
volta e encontro a chave na mesa da cozinha, depois sigo para fora do loft.
Em silêncio, percorremos o caminho até o carro. Harry pega a chave
da minha mão, e quando eu deslizo para o banco do carona, sinto as coisas
desmoronando dentro de mim.
O trajeto pela estrada é feito em total silêncio, com cada um preso
em seu mundo interno. E toda vez que eu me arrisco a olhar para o rosto de
Harry, vejo raiva ali. Seu maxilar está trincado, e ele segura o volante com
uma força imensa.
“Não existe mais nada entre nós além de um laço de dor.”
Harry já deu um pé na minha bunda. Foi só nos meus delírios
infantis que algo entre nós sobreviveria depois que ele descobrisse quem eu
sou. Confesso que ultimamente cheguei a cogitar abandonar a minha
vingança em nome do meu sentimento, do que estávamos criando juntos,
principalmente depois de o Harry querer cuidar de mim e me ajudar com o
meu vício. Foi ali que ele me ganhou de vez, que se infiltrou
completamente no meu coração. Eu pensei em fingir que nunca fui a
Veneno, para não o perder, mas sabia que era uma burrice, porque toda
mentira, uma hora, vem à tona. Agora, amarga e desperta, percebo que não
tinha jeito, o fim da estrada sempre foi este, um término que me jogará num
buraco escuro e sombrio do qual terei muita dificuldade de sair.
Eu sei que o Harry não quer falar comigo, e só o fato de querer me
levar até o avô já é meio caminho para a certeza de que ele não é o culpado
dessa merda toda cair sobre a minha cabeça. Ainda assim, eu preciso
perguntar:
— Como descobriu quem eu sou?
Minha voz está fraca, e eu me sinto patética por ter medo do modo
como ele vai falar comigo. Eu nem pareço a garota de um ano atrás,
obstinada na tarefa de destruí-lo.
— O pai do meu amigo é obcecado em invadir a privacidade dele.
— Sua voz soa apática. Finalmente chegamos ao condomínio do Isaque. O
segurança que conversava com o outro diante da guarita se aproxima de
nós, e Harry me olha como se eu fedesse, prosseguindo: — Foi o Cristian
Marquez, o político que estava na festa do meu avô, aquele que eu te
mostrei de longe. Ele tem pessoas ao seu dispor que desenterram até
defunto, e foi assim que escavou seus segredos, montou um relatório
completo e entregou ao Josiah.
E nada disso importa quando a única coisa que acende na minha
cabeça é o nome do Josiah.
Ana... Ele já deve ter contado a ela. As meninas vão me odiar. Isso
faz meus olhos arderem, meu coração se encolher na mesma medida que eu
afundo no banco e derrubo as barreiras que continham as lágrimas.
Sinto dor, porque vou perder as únicas amigas que tive, as que eu
aprendi a amar, que amaram a mulher falsa e mentirosa que eu sou. Eu
sabia que as perderia quando tudo desmoronasse entre mim e o Harry, mas
encarar isso, viver de verdade, é mil vezes mais doloroso.
Eu sinto espinhos se afundando no meu peito, rasgando a carne do
meu coração e tornando os batimentos mais lentos quando abro meu celular,
quando, enfim, vejo a mensagem no grupo “Só as garotas”.
E nem me importo com Harry conversando com o segurança,
pedindo para avisarem ao Isaque que ele está aqui. Tudo o que pisca por
trás dos meus olhos é a sequência de mensagens:
Ana: “Eu não acredito que foi capaz de fazer isso, Branca! Até a
nossa amizade era parte da sua obsessão pelo Harry?”
Isabela: “Não vou falar muito por escrito, porque vou te ver, pois
foi você quem se meteu na minha vida e no meu coração, vaca! E vai
aprender que não tem mais como sair! (Dezenas de emojis de raiva e
coração partido) Eu quero que você fale na minha cara se estava brincando
com a gente, com a amizade que entregamos a você! Então, me aguarde na
sua porta!”
Isabela saiu do grupo...
Maria: “Eu quero ouvir de você: se realmente nos considera suas
amigas, se não mentiu e fingiu gostar da gente, por que fez isso? Quero
entender você! E já te adianto: o Harry é um bom homem, não mereceu o
que você fez, seja lá por quê!”
Eu choro de soluçar, quebrando-me em tantos pedaços que ninguém
seria capaz de contar.
Se eu estava certa, vingando a família que foi arrancada de mim, por
que me sinto a vilã agora? Eu não sou uma princesa, nunca fui. Eu sou
ruim, e mirando no Harry, machuquei as garotas que só me deram amor.
Que me entregaram a porra de uma amizade limpa.
Eu tiro o cinto de segurança quando Harry acelera pelo condomínio,
após liberarem o acesso, e me encolho de lado no banco, olhando para as
casas perfeitas, com famílias perfeitas, como eu nunca terei.
Mulheres ferradas não sustentam famílias perfeitas.
Neste segundo, sinto que mereço qualquer praga e maldição do
destino. Que mereço que o Harry me humilhe e prove que eu escolhi uma
vingança imunda quando poderia ter feito como ele disse: colocá-lo contra a
parede naquela noite. Assim, eu teria evitado tudo isso.
Eu não queria ver ninguém agora, falar com pessoa alguma. Eu só
queria me afundar, deitar na minha cama com uma garrafa de tequila e
beber até ficar fora de órbita, sem sentir nada, só existindo...
— Coloca o cinto, Branca! — Harry ordena, e quando eu não
obedeço, quando me encolho ainda mais, ele para o carro e bufa. — Você,
mais do que ninguém, deveria entender a importância da porra de um cinto!
E tá chorando por quê? Não era esta merda que você queria?
— Eu não estou chorando por você! — Eu quero gritar, mas não
consigo, porque ainda vou chorar por ele. E muito. — Não agora. Neste
momento, estou mal por causa das garotas. Eu gosto delas, não fui falsa
com as três, Harry!
Ele fica em silêncio, ignorando-me enquanto desliga o carro e puxa
o freio de mão. Sei que Harry não vai sair daqui comigo sem cinto, então,
eu me sento direito e coloco a porra do cinto de segurança.
— Eu não estou nem aí pra como você vai fazer pra enfiar na cabeça
das garotas que é confiável depois de toda a merda que fez comigo, caso
ainda queira lutar por elas. — O tom de sua voz é tão afiado que poderia
fatiar a minha pele. Harry liga o carro, voltando a dirigir.
“Lutar por elas.”
Como ter coragem de olhar nos olhos das três depois de tudo? Ana e
Maria se mostraram dispostas a me ouvir. Isabela agiu, como era previsível,
explodindo. Ela é a mais caótica das três. E embora cada mensagem tenha
sido dolorosa, porque elas estão decepcionadas comigo, ao menos a Isa
disse que eu nunca mais vou sair da vida dela.
Quando adentramos a residência do Isaque, noto que não há
seguranças nos sondando desta vez, mas portões escancarados liberando o
nosso acesso. É o único detalhe diferente da outra vez em que estivemos
aqui. Um manobrista pega a chave do carro quando descemos. Edna surge
para nos receber, sorridente, mas se depara com um Harry apocalíptico e a
minha cara de choro.
Ela percebe que algo está errado, raspando a garganta e alisando o
vestido azul-escuro na altura do quadril.
— Onde o meu avô está? — Harry é direto.
— O senhor Isaque está descansando, Harry. Ele não teve bons dias
ultimamente...
A voz dela é baixa, mas quando pretende continuar falando, Harry a
interrompe:
— Em seu quarto?
— Sim, e...
Harry nem a deixa terminar de falar, sai pisando duro e a passos
rápidos para dentro da casa. Sabendo que a minha única opção é ir atrás
dele, vejo Edna chocada com o seu comportamento, mas apenas dou-lhe as
costas e o sigo, obrigando meu corpo pesado a apressar os passos.
Essa versão do Harry me assusta, e embora eu tenha virado uma
cobra destemida quando queria machucá-lo, agora me percebo pequena
diante da sua fúria. Afinal, ele tem bases sólidas para a sua raiva de mim,
enquanto eu alicercei a minha em suposições que estão prestes a cair por
terra.
Harry atravessa a imensa sala com pressa, irritado, e quando sobe as
escadarias, eu tento buscar alguma energia para falar:
— Ele está doente, Harry. — Seguro o corrimão, parando no
primeiro degrau. — Não pode sair atirando tudo em cima dele. Se o Isaque
passar mal, você vai se sentir culpado.
Sua risada de escárnio é prosseguida por uma olhada por cima do
ombro, e sem emoção alguma, ele cospe as palavras:
— E você se importa com o que eu sinto?
Foi só uma frase, mas poderia ter sido um tapa, pois o impacto é o
mesmo.
Recolho minha insignificância e continuo o seguindo, mas agora
com mais calma, pois embora Harry tenha escolhido ser gentil feito um
jumento, ainda parece estar considerando o que eu falei.
No corredor dos quartos, sou assolada pela memória do nosso
primeiro beijo, do gosto de sua língua me deixando doida, do jeito como
ódio e desejo se misturaram e foram abrindo caminho para o sentimento
fodido ardendo em meu peito, o sentimento prestes a me despedaçar.
Eu fico parada, observando Harry lentamente abrir a porta do quarto
do avô. Neste momento, sei que tem apenas um caminho para mim: ouvir o
que quer que Isaque tenha a dizer e que pode mudar tudo.
Olho para o teto do corredor, mas aceitando que mereço o que for
acontecer depois dessas revelações, diminuo a distância e atravesso a porta.
No quarto enorme, uma majestosa e imponente cama com dossel,
em uma madeira pesada marrom, rouba a cena no ambiente. Mas o homem
deitado do lado esquerdo dela tem uma aparência avessa ao esplendor da
decoração. Completamente debilitado, Isaque está fazendo nebulização,
com a ajuda de uma enfermeira. Está mais magro e abatido do que da
última vez que o vimos.
A profissional, uma mulher baixinha, com os cabelos tingidos de um
vermelho vivo presos em um coque, nos dá um pequeno sorriso e se retira,
com seu traje branco quase ofuscando as luzes pendendo do lustre imenso
acima da cama.
Parado sobre o carpete claro, Harry parece em choque ao encarar o
avô. Meu coração está pesado, e embora eu saiba que posso sair deste
quarto odiando o Isaque, se for ele o responsável por arrancar o Harry da
cena do acidente, neste minuto, eu sinto pena dele.
— Oi, Harry! — Isaque retira a máscara do rosto por breves
segundos, e após mais uma inspirada no aparelho, sorri de maneira gentil
para mim. — Branca, querida, estou feliz em vê-la novamente.
Harry caminha pelo quarto, olhando ao redor, e um semblante triste
faz morada em seu rosto. Senta-se numa poltrona robusta e clara, ao lado da
cama do avô, posicionada provavelmente para que a enfermeira fique ao
lado dele.
— Oi, vô. — A voz de Harry treme, e a ousada decisão com a qual
entrou no quarto parece ter evaporado. — Por que não está no hospital?
— Eu vou morrer, garoto. Médico nenhum pode evitar isso, então,
prefiro passar meus dias na minha casa, indo ao hospital apenas quando for
inevitável. — Após explicar, Isaque sonda o meu rosto; na sequência, desce
o olhar para o meu corpo, para as marcas roxas de apertão no meu braço, e,
depois, para a denúncia da mordida de seu neto. — O que houve, Branca?
Olho para baixo, evitando responder. Acho que qualquer um
pensaria que eu tomei uma coça, mas eu não posso dizer que foi uma surra
de pau.
— Estamos aqui por uma razão, vô... — Meu coração acelera à
medida que eu cruzo os braços, então, começo a hiperventilar. — Branca
entrou na minha vida para se vingar de mim.
Engulo em seco com o modo direto com que Harry lança as palavras
ao Isaque, e quando o idoso me olha com horror, sinto como se estivesse
nua, de tão exposta. Meus lábios se abrem, em choque, porque eu não
pensei que o Harry fosse ser tão detalhista. Olho para baixo, agora
estalando os dedos na frente do corpo, de tanta vergonha.
— Como assim? — indaga Isaque.
— Ela ficou comigo depois de me roubar sessenta mil reais, porque
é uma hacker. — A voz de Harry está cheia de raiva, e a cada segundo a
vontade de sair correndo daqui aumenta. Eu sei que mereço, que é tudo
verdade, mas, mesmo assim, o enjoo começa a se formar na minha barriga.
— Há um ano, Branca me viu em uma balada, então decidiu que se vingaria
de mim por algo que acha que eu arranquei dela. Ela se mudou para a frente
da minha casa, depois me roubou e... — Agora ele ri, como se tudo fosse
ridículo demais para conseguir se conter. — Depois ela me ajudou a fingir
para o senhor que era minha noiva, e assim conseguir entrar na porra do
meu coração. A Branca me fez ficar apaixonado para me arruinar de dentro,
como acha que eu fiz com ela.
— Que horror! — Isaque está mais pálido agora do que quando
entramos, e se antes tinha pavor em seu rosto, agora tem raiva. E parece
nem ligar para o fato de saber que fingimos para ele, estando mais ofendido
pelo que eu fiz com o seu Harry do que qualquer outra coisa. — Por que fez
isso com o meu neto? E por que essa criminosa está na minha casa? —
Agora sua voz sobe um tom. — Vou chamar a polícia!
Meu coração quase para, e as lágrimas já formam poças nos meus
olhos, doidas para me inundar inteira. Vejo o olhar de Harry se voltando
para mim, e de esguelha, com os ombros caídos, observo o brilho satisfeito
nele.
— Ela acha que eu matei sua mãe e seu irmão no acidente que
matou o Henrique. — Agora Isaque precisa recolocar o aparelho sobre o
nariz e a boca, ofegando. Harry se aproxima, parando na beira do assento,
meio assustado, querendo checar se o avô está bem. Mas Isaque se esquiva
da mão dele. Alisando o peito, tira a máscara e corre os olhos por nós dois.
Há terror neles. — E que eu fugi da cena do crime para não responder por
isso. Então, conte a nós dois, vô, porque ela achava que eu não existia, que
eu era uma criação da mente dela, visto que seu segurança, o Gomes, negou
que eu estivesse lá. Ou me explique: por que o senhor me disse que a
família havia sobrevivido e me deixou sem saber de nada por todos esses
anos?
Eu tenho medo do Isaque passar mal, porque fica ainda mais lívido.
Porém, provando que não está tão fraco assim, ele começa a se sentar, e
Harry prontamente o ajuda a se recostar contra a cabeceira preta e
acolchoada, dando-nos um vislumbre do pijama de seda preto. Os lençóis
brancos, com franjas pendendo do dossel, dão a tudo um ar clássico,
embora o que estamos vivendo defina mais este momento como uma
paisagem de horror.
— Você era a garota, então? — Seus olhos, caídos e enrugados,
marejam. — Tantos anos depois... e não esqueceu o rosto dele?
— O senhor esqueceria? — Busco a voz nas minhas entranhas para
conseguir dizer. — Esqueceria o rosto do responsável por matar a sua mãe?
O seu irmão? E que fugiu da cena do crime? Alguém que enfiaram na sua
cabeça que jamais existiu?
— O Harry não foi o único culpado, menina. — Agora sua voz se
torna áspera, e minha boca se abre, chocada, no mesmo segundo que a do
Harry, por vê-lo o defender. — Seu irmão dirigia na contramão de uma
estrada, na chuva. Tinha tudo para que um acidente acontecesse.
Então, o primeiro fato se confirma, o primeiro ato da peça
catastrófica se desenrolando bem diante dos meus olhos, a peça onde eu sou
a protagonista da minha própria ruína.
Eu vejo as coisas começarem a desmoronar dentro de mim. Porque,
embora eu queira pensar que ele ainda pode me contar uma grande mentira,
esse homem está à beira da morte, encurralado diante da descoberta que eu
encontrei o neto que escapou da responsabilidade pelo acidente, e tudo
começa a confirmar que eu fiz uma grande merda.
— E por que me tirou de lá, vô? Pretendia me deixar viver pra
sempre sem saber da família da Branca?
Eu olho para o Harry, para o rosto que aprendi a gostar, querendo
tapar os ouvidos quando Isaque começa a falar:
— Eu o protegi, Harry! Eu o salvei de ir preso, porque sabia que
você, tendo acabado de sair de um bordel, só podia estar bêbado. Então,
quando o Gomes me disse que o Henrique estava morto, mas que você
havia sobrevivido, eu fiz o que era preciso para livrar o neto que criei como
um filho de uma vida manchada por uma prisão. — Uma lágrima solitária
escapa pelo muro que ele tentava erguer em seu semblante. — Você é meu
filho, Harry! O único que me restou. Porque o Jaime nem conta como um.
Você é o filho rebelde que a vida jogou nos meus braços, e eu não o criei
para visitá-lo atrás das grades. Homicídio culposo também dá cadeia, e só
de você ter bebido, um pouco que fosse, poderiam presumir a sua culpa.
Até provar que eles estavam na contramão, até uma perícia do acidente sair,
você teria ido parar no xilindró[18].
Então, Harry não sabia mesmo. Ele não fugiu, mas foi tirado de lá e
enganado, como me contou lá em casa. Eu não consigo mais me segurar,
deixando o choro sair por soluços descontrolados e me virando para ele. Eu
quero pedir desculpas, quero falar com ele, mas Harry nem olha em minha
direção.
— Você deveria ter me deixado lá. Eu preferiria ter dormido noites
na cadeia até provar que estavam errados sobre a presunção de culpa, perder
a minha carteira, ser fichado, mas pelo menos teria provado, no fim das
contas, que a colisão frontal mostrava que vinham na contramão.
— E se não provasse? Se só você bêbado já presumisse que a culpa
era sua? Porque, sem testemunhas, além da Branca, poderiam dizer que
quem estava na contramão era você. — Isaque tosse um pouco, depois olha
para mim. — O Harry não mataria uma barata, menina. Não o trate como
um assassino, porque, diante dos fatos, se não colidissem, era mais provável
que vocês batessem em outro carro do que ele.
Agora Harry olha para mim. Seu olhar está tão carregado que
poderia furar a minha pele e me atravessar. Engolindo em seco, sinto o
turbilhão de pensamentos confundindo a minha mente.
Mais do que nunca, a certeza de que o acidente foi uma fatalidade
cai sobre mim. Eu sou dominada por uma culpa absurda. E, abraçando a
verdade, reconheço: eu me precipitei. Cega pelo ódio e corrompida por uma
sede louca de vingança. Embora tudo cooperasse para eu acreditar na culpa
do Harry, eu poderia ter feito diferente, ter sido menos impulsiva e tê-lo
chamado para uma conversa. Mas tudo o que eu aprendi é que problemas se
resolvem com fogo, que dor se paga com mais dor. Então, como agir de
modo diferente?
Seria melhor se eu tivesse surtado lá, quando o vi na Vermute pela
primeira vez, dado na cara dele, dito mil e uma coisas, mas ouvido isso tudo
lá. Assim, eu teria evitado toda essa dor.
Agora, encaro o fardo de ser a maior errada nessa história inteira. A
que prejudicou o Harry, que brincou com os seus sentimentos, que brincou
com os próprios sentimentos. Que, priorizando uma vingança, atirou-se de
um abismo por livre escolha, pensando que assim o levaria junto. Mas a
maior queda será a minha.
E eu aceito a minha condenação.
A sentença de que perdê-lo é a única opção.
A verdade é que eu jamais o tive.
Tudo o que construímos foi alicerçado sobre uma mentira, uma
vingança burra, onde o único resultado seria eu me machucar.
— Eu pensei que fosse ver vocês se casarem antes de morrer. — A
voz de Isaque agora treme, porque ele certamente está fazendo força para
engolir um soluço, e isso me faz querer me ajoelhar e me entregar à dor que
tudo isso está causando. Nem raiva desse homem eu consigo sentir, porque
ele protegeu o neto, algo que meus irmãos e eu faríamos uns pelos outros.
— Você é uma boa mentirosa, menina. Eu acreditei que gostasse dele.
— É porque eu gosto.
É a última coisa que eu digo antes de virar as costas e correr para
fora. E entregue à dor, eu desço as escadarias.
Já acabou. Ele já terminou comigo. E embora eu ainda precise me
desculpar por tudo, ainda precise devolver o seu dinheiro e aceitar que ele
me humilhe ainda mais, agora eu só quero fugir daqui.
Eu sei que o que me aguarda é uma jornada ainda pior de
autodestruição.
E quando eu chego diante do meu carro, doida para fugir das vozes
na minha mente, que gritam o quanto eu sou podre, o quanto eu fui ruim e
maluca, é que percebo que eu não estou com a chave.
Com a vista embaçada e a mente rodando, corro os olhos pela parte
frontal da casa, caçando o manobrista ou um funcionário para me devolvê-
la.
— Branca? — A voz de Harry soprando nas minhas costas mostra
que ele está perto demais. Eu estremeço, mas ergo o queixo. E me
preparando para que ele me despedace mais, eu me viro e fito seu olhar
nublado, que nem diz muita coisa. — É sério que você não tem nada pra
dizer depois disso tudo? Só vai meter o pé? Fingir que não acaba de
descobrir que fodeu a minha mente e o meu coração à toa?
— Eu jurei que estava certa, Harry! Fiquei cega com a minha
vingança, e quero muito o seu perdão. Mas também sei que nada que eu
disser vai desfazer as minhas merdas. — Ergo as mãos para segurar os
braços dele, mas Harry se afasta, dando um passo para trás, como se eu
estivesse com uma doença contagiosa. E mesmo sendo merecedora, eu
ainda sinto como se ele tivesse me dado uma tapa. — Passei um ano te
vendo com outros olhos, os de quem foi dilacerada por um garoto mimado,
bêbado e imprudente. — Ele está me olhando fixamente, coçando o queixo,
mas sem me dizer nada em sua expressão. — Você era o meu vilão, Harry.
E eu pensei que só me restava ser a sua, vingar a morte da minha mãe e do
meu irmão. Mas eu vi que estava errada. Eu me apaixonei, e isso não foi
mentira. — Sinto um desespero absurdo gritando dentro de mim para tocá-
lo, para segurá-lo, com a certeza de que eu nunca mais o farei. Mas entendo
que Harry me queira bem longe. — Eu me apaixonei por tudo em você!
Pelas suas piadas, pela sua bondade, por não ter fugido ao saber da minha
compulsão... E volta e meia eu me questionava como era possível que você
fosse o meu vilão, se tinha todos os predicados de um príncipe perfeito.
Então, me desculpa!
— Como eu posso acreditar em algo que sai da boca da mulher que
me roubou e ainda dormiu comigo? Que me viu chorar por isso e se
divertiu? — Ele ri, mas o que despenca do seu rosto é uma lágrima. — Eu
entendo a sua dor. E sinto muito, muito mesmo, pelas coisas horríveis que
você passou. E sinto ainda mais por saber que o acidente destruiu o seu
recomeço, mas nada disso justifica o quanto você foi perversa comigo. Eu
não sou um santo, mas não vou aceitar o rótulo de assassino quando não sou
um.
— Agora eu vejo que você não é... — Engulo um soluço. — Se eu
fui uma vilã na nossa história, eu fui mais para mim mesma. Porque agora
eu vou perder o homem que jurei odiar, mas que, na verdade, foi o único
que estive tão perto de amar. Mas eu mereço. Eu aceito que me odeie,
porque essa cova em que vou me deitar, fui eu mesma que cavei.
Harry segura a cabeça e dá uma volta perturbada na minha frente,
desmoronando, com um soluço escapando dos lábios.
— O que você vai fazer agora? — ele solta os braços ao lado do
corpo e pergunta, encarando-me. — Vai sair e trepar com alguém?
É um golpe baixo falar sobre isso, mas eu não posso reclamar. Eu o
envenenei, agora não posso esperar menos que ele tentando fazer o mesmo
comigo.
Eu ainda quero me apegar à raiva e ao ciúme evaporando do corpo
dele ao levantar a hipótese de que eu vá atrás de outra pessoa. Mas pode
apenas ser orgulho ferido, não quer dizer que ele ainda me queira.
— Vou para a casa dos meus irmãos, aqui perto. Quando chegar, vou
devolver o seu dinheiro. Depois, deitarei na cama e encherei a cara, para
poder pegar no sono e não trepar com ninguém. — Sou sincera nos meus
planos, porque, embora o vício esteja cantando em meus ouvidos feito uma
sereia, fazendo juras de que pode aliviar a dor rasgando o meu coração, eu
ainda quero me curar disso. E mesmo que neste segundo eu seja mais
imunda do que um dia já fui, eu não quero voltar atrás na decisão de me
tratar. — Mas, antes, eu vou chamar o Dan para me ajudar a juntar os meus
pedaços e não me deixar sair de casa.
Eu aceno para o manobrista quando o vejo ao longe.
— Eu não quero que dirija nesse estado! — Quando o manobrista
chega, Harry agradece e pega a minha chave com ele, sequer fazendo
menção de me entregá-la. — Vou pedir um Uber pra você. Depois, deixo o
poodle lá no prédio ou onde você quiser. Fala o endereço dos seus irmãos.
Olha como ele é doce...
Droga!
Olha o tanto que estou perdendo!
Meu Deus! Eu preciso chegar em casa, ou vou desmoronar na rua, e
isso não vai ser nada bom. Eu assinto para ele e passo o endereço,
observando-o digitar no celular.
Eu não consigo parar de olhar para ele, para cada traço de seu rosto,
pensando no quanto eu mereço sofrer por estar perdendo esse homem.
— O Uber está chegando à portaria, então, vou pedir para o
manobrista te deixar lá na frente. — Harry se vira para o funcionário, pede
que me leve até lá usando o poodle, e depois o traga de volta. Voltando-se
para mim, ele cerra os lábios, nem escondendo o choro. — Poderíamos ter
sido do caralho juntos, Branca! E você vai me assombrar pra sempre... —
Ele seca as bochechas, e quando me dá as costas, indo em direção à entrada
da casa, cospe as palavras por cima do ombro: — Meu único conforto é
saber que eu também vou te assombrar!
“Parece que estamos a oceanos de distância.
Há tanto espaço entre nós.”
Love In The Dark, Adele.

Faz dois dias que eu aprendi que ficar com o estômago doendo de
fome consegue tirar o meu foco do vício. Dan tem chorado no pé da minha
cama tentando me fazer comer, pois são quase 48 horas que eu não deixo
nada entrar. Mas ele não entende. Se eu abrandar esse buraco na minha
barriga, a minha dor vai me levar direto para onde eu não posso ir. Para
onde eu não quero ir.
Estou imunda, com o corpo apodrecendo na mesma intensidade com
que a minha alma está suja. Meus cabelos têm nós que eu sequer consigo
contar, e se tomei um banho desde que vi o Harry, foi muito.
Eu durmo quase o dia todo, e só consigo isso porque tomo um
sedativo controlado, que comprei de um farmacêutico duvidoso que me
vende sem receita.
No dia em que o Harry terminou comigo, cheguei à casa dos meus
irmãos e desmoronei no meio da sala, e acho que só chorei tão alto no dia
em que perdi o meu filho.
Quando a minha mãe e o Ivan morreram, eu não chorei. Eu não fui
capaz de derrubar uma só lágrima vendo seus corpos nos caixões, vendo pás
e mais pás de terra cobrindo-os para sempre. Pensei que já tinha sofrido a
ponto de minhas glândulas lacrimais atrofiarem.
Mas eu tenho chorado tanto que meus olhos estão inchados, com as
pálpebras doendo. Eu só não choro quando estou dormindo, e embora eu
tivesse pensado que teria pesadelos ruins, agora meu inconsciente resolveu
debochar de mim. Eu tenho sonhos lindos, onde sou feliz com o Harry,
onde ele me perdoou e vivemos uma história de amor. Às vezes, eu nos vejo
nos casando; em outras, estamos nos beijando, fazendo coisas de casal. Mas
quando eu acordo, a realidade é uma só: estou tendo meu destino merecido.
É deprimente a quantidade de vezes ao dia em que eu entro no
WhatsApp para ver se Harry me enviou algo, ou para olhar sua foto, ver se
está on-line, se postou algum status.
Eu enviei muitas mensagens a ele quando saí da casa do Isaque,
depois que mandei o print da devolução do seu dinheiro, e as reli mil vezes,
mas nenhuma delas foi respondida. A única coisa que o Harry fez foi
devolver os quarenta mil a mais que eu mandei para ele, como juros pelo
que fiz. Ele só devolveu o valor, não disse nada.
Embora Harry não tenha me bloqueado, é como se o tivesse feito. E
eu não posso reclamar, não tenho nem mesmo coragem de esperar que ele
volte comigo.
E todos os dias, eu afundo.
Afundo.
E afundo.
Sem qualquer esperança de um dia emergir.
Eu nunca pensei que amar doesse tanto, mas sei que só dói porque
eu quis assim, porque fui uma fodida de merda que achou que tudo era
resolvido com vingança, com revanche. Eu trucidei alguém que nem
merecia. Na verdade, alguém que seria a minha cura. Que já estava sendo.
O Rafael está vindo aqui hoje. Ele estava numa viagem, pois é outro
vingativo. Ele vive e respira para encontrar as pessoas que julga serem as
responsáveis pelas coisas que vivemos na infância, as pessoas que ele tem
medo de que nos encontrem e nos façam mal. Por isso, ele sempre diz que
os encontrará antes. Mas essa é a vingança dele, não me diz respeito,
porque eu já queimei quem mais merecia o meu ódio.
Samuel bate à porta, e sei que é ele só pelo cheiro suave do seu
perfume, um pouco amadeirado, mas que sempre rouba a cena onde quer
que ele vá.
Eu coloco a cabeça para fora da coberta felpuda branca, fitando seus
olhos cor de mel, seu rosto quase uma cópia da face do Daniel.
Meu irmão se enfia embaixo da coberta comigo, e sendo dengoso
que só, ele me puxa para deitar a cabeça em seu peito. Estou na casa deles
desde que saí do condomínio do Isaque, porque aqui é onde habita o meu
único mundo, o lugar que pode impedir que eu faça uma besteira.
Eu sabia que estava pulando do abismo com essa vingança, eu só
não imaginava que a queda pudesse me matar, e, de fato, ela quase mata. E
só não faço mesmo uma merda mais séria por causa deles, porque já
sofreram muito.
— Sabe que o Rafael vai querer pegar o cara, né? — Sua voz
melodiosa e calma me faz olhar para cima e ver a boca com resquício de
brilho labial incolor.
A namorada dele está pela casa, e embora eu odeie vê-la o beijando,
gosto dela. A Vitória faz bem a ele, porque o Samu não gosta de ficar
sozinho, e quando ela não está por perto, ele está sempre grudado em um
dos garotos. O Samu quer se casar com ela, mas tem medo de que a Vitória
descubra que ele está metido nos esquemas do Rafael.
Reflito sobre ele mencionar que o nosso irmão mais velho vai querer
pegar o Harry. Eu precisei contar tudo aos meus irmãos, porque, quando
cheguei aqui cheia de hematomas e chorando, dois deles, Adam e Elias,
pegaram de arma a soco-inglês e já queriam ir para o meu prédio, pensando
que o Harry tinha batido em mim. E quando eu contei tudo, eles ficaram
chocados, incrédulos com o que eu fiz. E pior, incrédulos por eu ter
encontrado o garoto que todos juravam ser um fantasma, uma criação da
minha mente. Diferente de como eu imagino que será a reação do Rafa, eles
entenderam a história e não pareceram ter raiva do Harry. Na verdade,
alguns dos meus irmãos ficaram chateados comigo, com o que eu fiz, com o
que eu escondi.
Dan me deu um sermão, chorou, disse que achou que eu confiasse
nele. Mas, no fim, ele me entendeu, e me aconselhou a me perdoar, a
entender que eu agi como as circunstâncias pediam. Que eu era
praticamente uma criança, traumatizada, em choque, que criei no Harry um
demônio, e depois agi do único jeito que sabia para resolver as coisas: com
vingança. Mas nenhuma de suas palavras farão com que eu me perdoe. A
sua passada de pano para mim é porque sou sua irmã, pois qualquer pessoa
consegue ver que eu fui uma filha da puta.
Eu entendo o peso do que fiz, e justo com o homem que me aceitou
com a minha sujeira e tudo, que me quis, que confiou em mim.
E mereço definhar de dor, assombrada para sempre com o peso do
futuro perfeito que eu mesma arruinei.
— Ele não é nem doido de querer fazer algo com o Harry! — Minha
voz endurece, e mesmo fraca, pela fome, eu ganho força ao pensar em
surtar se tocarem nele. — Vou ter um papo bem sério com o Rafael.
— Você não vai comer mesmo? Vai continuar assim?
Agora meu irmão faz cafuné na minha cabeça, enquanto eu percorro
a estampa do Homem Aranha na frente da sua blusa preta. Eles são todos
carinhosos comigo, afinal, eu sou a caçula. Embora eu seja infinitamente
mais ligada ao Rafa e ao Dan, também amo todos os outros.
— Não estou com fome.
Enquanto digo, Adam surge na porta do quarto carregando um copo
de vidro. Ele fica engraçado no meu quarto rosa, porque, todo de preto,
como o típico roqueiro que é, destoa de tudo. Ele se senta na borda da
minha cama branca de dossel, no quarto de princesa que fizeram para mim
aqui.
As paredes de um rosa pálido, o piso branco, os móveis claros com
detalhes em rosa, tudo faz parecer o quarto da Barbie, e eu adoro, é um bom
refúgio.
— Vai um suquinho, princesa? — pergunta Adam, com a voz
costumeiramente anasalada. Mas no segundo em que me oferta, espirra com
tudo em cima do copo. — Desculpa!
Seu cabelo castanho, um pouco mais claro que o meu, está
bagunçado, e com sua alergia emocional, um presentinho que o Vale deixou
para ele, Adam vive espirrando ou com o nariz escorrendo, quando não está
cheio de urticárias. Seu rosto longo é bonito, e o nariz reto e a barba rala e
castanha fecham com chave de ouro o quanto meu irmão é lindo.
Eu o ignoro, pois não quero suco de laranja, ainda mais cheio de
meleca.
E não consigo deixar de pensar no quanto o Vale fodeu a todos nós.
Eu tenho seis irmãos vivos, e enquanto o Daniel não fala, por ter
presenciado o meu ritual de iniciação, o João tem uma depressão crônica;
inclusive, está bem acima do peso por causa disso. Ele nunca sai de casa, é
o escudeiro fiel do Samuel, e quando não está dormindo, está jogando
videogame ou conversando com seus amigos virtuais. Por outro lado, os
mais novos, Elias e Adam, são os que menos parecem traumatizados. Elias
é extremamente animado e expansivo; onde chega, vira a alma do lugar,
chamando atenção pela simpatia e o sorriso fácil. Fora a sua beleza sem
igual, que atordoa as mulheres por onde passa. Ele nunca para com
nenhuma delas, e gosta da vida do crime, porque assim pode ter carros
velozes para os rachas que participa.
Adam é mais tranquilo, mas tem essa alergia toda quando fica muito
ansioso. Ele até tem uma vida social legal, e fica com uma garota de vez em
quando. Eu já a vi com as camisas dele pela casa várias vezes, e já senti
vontade de chutar a bunda bonita dela para fora daqui. Não que eu tenha
ciúme dos meus irmãos, mas eu a achava uma abusada por andar desse
jeito, como se a casa fosse dela. Na real, talvez eu tenha ciúme, sim. Eu
adoro a Vitória, namorada do Samu, mas de longe. Eu nunca deixei a minha
cunhada se aproximar muito de mim.
Adam e Samuel começam a falar sobre chamarem a minha
psicóloga aqui, para me ajudar e me fazer comer, porque sabem que agora
eu tenho uma, e abraçando mais o meu irmão, eu começo a me desconectar
do mundo, pensando que uma garrafa de tequila seria uma boa para foder
mais o meu estômago e o deixar doendo, para ofuscar ainda mais qualquer
vontade de trepar.
É a presença pesada surgindo na porta que nos faz silenciar. Usando
jeans e uma regata preta larga, Rafael guia seu corpo tatuado até a minha
cama. Ele me encara, e quando vê o meu estado, suas sobrancelhas se
erguem. Em choque, ele fita o terrário da Nagini, que está enrolada no galho
lá dentro, no canto do quarto, ao lado da porta do banheiro. Dan a trouxe
para cá, para cuidarmos dela e também na esperança de me animar. Rafael
parece juntar as peças e perceber que eu voltei para casa, e que isso
significa que eu terminei com o Harry. Ele trinca o maxilar ao notar minhas
olheiras e ver a marca amarelada dos apertões no meu braço, pois estou
usando uma das camisetas largas do João, a única coisa branca e leve em
mim agora, porque, se eu fosse uma cor, seria cinza.
— Que porra rolou? — ele pergunta, tirando um maço de cigarros
do bolso da frente.
Eu me levanto, erguendo a mão para que ele me dê um cigarro. Mas
Samu a abaixa, dizendo bem baixinho:
— Só vai fumar se comer!
Afundo de volta em seu peito, bufando.
— Ela tem uma baita história pra contar, cara! — Adam fala,
desistindo de me dar o suco e o bebendo, enquanto Rafael acende o fumo.
— E não quer comer. Está há 48 horas sem botar nada pra dentro. Nem o
Dan conseguiu fazer a nossa princesa se alimentar. E se o Dan não
conseguiu, ela só vai comer quando quiser...
— O que aquele pau no cu aprontou? — Rafael indaga e traga bem
fundo o cigarro. Seus olhos já estão longe, expelindo fumaça junto à que
solta pelas narinas, certamente pensando em vingança. — Vou lá, pra
termos uma conversinha de homem pra homem.
Meu corpo gela, e o sangue em baixas temperaturas parece congelar
minhas veias.
— Não! Se você chegar perto do Harry, se sonhar em fazer qualquer
coisa com ele depois do que eu te contar, ou jogar uma piada sequer, vai me
perder! Estou a um pequeno passo de desistir desta vida de merda, então,
faça algo com o homem que eu amo e me perca de vez! — Mesmo sem
forças, mesmo completamente esgotada, eu consigo gritar. E só então, com
as palavras deslizando pelos meus lábios, sem eu conseguir as conter, é que
eu me dou conta do que disse. Eu disse... que o amo! E embora eu queira
pensar mais sobre isso, ainda preciso conter essa fera que chamo de irmão.
— Senta na porra daquela poltrona! — Aponto para o estofado embaixo da
larga janela, adornada por cortinas brancas com estampa florida. — E
escuta tudo!
Nossos irmãos estão em silêncio, esperando Rafael explodir por eu
ter gritado com ele, porque, em nossa casa, ele é a autoridade. Rafael é o
responsável por todos nós, e eu sou a única que o peita, embora já tenha
tomado tapas nos braços e ficado de castigo por causa disso. Mas foram
palmadas tão leves que não matariam nem formigas.
Eu conto cada detalhe do que aconteceu, sobre a balada, a minha
vingança, os meus sentimentos crescendo, Harry me ajudando a me tratar, e,
por fim, sobre o nosso término e a descoberta da sua inocência.
Rafael está impassível, mas quando eu termino de falar, ele revira os
olhos.
— Como você é inocente... — Rafael me olha com raiva, mas vendo
meus olhos marejarem, a maneira como eu me agarro mais ao Samuel, em
como ele me abraça e beija a minha cabeça para me consolar, seu semblante
suaviza. E ele melhora o tom de voz quando continua: — É claro que você
ia se apaixonar. E olha pra você agora... arruinada. Você não é má, Branca,
não teria como sustentar essa vingança. — Ele termina o cigarro e,
irritando-me, apaga-o na minha cômoda branca e repleta de adesivos da
Hello Kitty, sujando a madeira. — E fica tranquila, nem tem por que eu
querer bater nele depois de descobrir isso tudo.
Eu respiro aliviada, ao menos não preciso me preocupar com a
segurança do Harry.
Meus irmãos conversam um pouco, depois tentam me convencer a
comer, e eu não cedo nem pela insistência e os puxões de orelha do Rafael.
Por fim, eles entram no consenso de que se eu não comer até o fim do dia,
ligarão para a minha psicóloga para ver o que fazem. Quando me deixam
sozinha, sou afogada, puxada para baixo, dançando no escuro com todas as
lembranças dos momentos bons que vivi com Harry.
E dói tanto.
Choro até que minhas pálpebras pesem e eu pegue no sono.

Sinto cócegas no rosto, mas sei que o peso no colchão ao meu lado é
do Daniel. Abro os olhos devagar, notando-o me encarar com preocupação,
com os olhos caídos e um semblante triste.
“Tem gente querendo te ver.”
— Quem?
Ele se levanta da cama, depois sai do quarto, e meu coração chega a
acelerar pensando no que sei ser impossível, pensando que é o Harry, que
veio responder às minhas mensagens pessoalmente.
Então, eu penso no quanto estou suja, fedorenta e decadente. Planejo
correr para o banheiro e tentar dar um jeito em mim, mas quando o trio de
garotas entra pela porta, eu afundo na cama.
Eu nunca contei as elas sobre esta casa, que meus irmãos moram
aqui, então, ou foi o Daniel ou o Harry que deu o endereço.
É uma mistura de alívio e tristeza ver o rosto das três. Ana, Maria e
Isabela têm reações diferentes quando me encaram, e o que eu estranho é
ver o Daniel voltando para o quarto, e sua cara de medo me chama atenção.
Ana parece triste; Maria, horrorizada com o meu estado. E Isa tem um
estranho semblante determinado.
Isabela está fofa em um vestido soltinho vermelho. Seus olhos me
percorrem, e antes que a raiva domine por inteiro as suas feições, a pena faz
uma breve aparição.
Ana e Maria trocam olhares assustados, o que me deixa ainda mais
confusa. Penso em dizer algo, mas Isabela puxa com tudo a coberta do meu
corpo, fazendo-me sentir frio. Meu coração quase salta da boca, tenho medo
de que ela bata em mim.
— Daniel nos pediu ajuda! — ela fala, cruzando os braços e me
encarando. Tem tanta força no rosto dessa mulher que eu me sinto até
pequena diante dela, embora a tampinha aqui seja ela. — Então, levanta
dessa porra e vai tomar um banho!
— Eu...
— Bora! — Isa pega meu antebraço e me tira da cama, e temendo
encostar em sua barriga se resistir, eu apenas obedeço quando ela me arrasta
para o banheiro. Meus olhos estão arregalados quando Isa me leva pelo
cômodo claro até o box, ou quando abre a água fria em cima da minha
cabeça. — Não vai ficar na porra da cama sentindo pena de si mesma! Fez
uma grande merda, então, levanta a porra da cabeça e lida com as
consequências!
Eu me abaixo no piso, abraço os joelhos e choro. Eu não tenho
forças, nem vontade, para me cuidar, para reagir, para fazer nada.
— Reagir pra quê? — Minha voz é quase um sussurro. — Eu fodi
com tudo, Isabela.
— E pra poder consertar, precisa estar viva! — Não ligando por se
molhar, ela se abaixa e, com força, arranca a minha blusa pela cabeça.
Eu sinto vergonha, tento cobrir meus seios, mas Isabela não parece
se incomodar. Sei o que ela está fazendo, está me dando um choque de
realidade, sendo dura na dose que eu preciso para que consiga escalar o
poço e sair do fundo.
Ela joga xampu no meu cabelo e, com paciência, começa a lavá-lo,
sendo gentil.
— Pegue esta escova, mas vá devagar — Maria fala, mas como
estou olhando para o chão, eu não a vejo. — Não machuca a Branca!
Eu gosto do que isso tudo significa, mesmo sentindo o coração tão
dolorido. Significa que elas gostam de mim, que se importam comigo.
Isabela enxágua o xampu, e no condicionador, começa a desfazer os
nós do meu cabelo com a escova. Eu quero tomar banho sozinha, mas estou
tão fraca que, mesmo sentada no chão do box, ainda sinto tontura. É só
quando ela termina de lavar o meu cabelo que me puxa para cima, entrega-
me um sabonete e se vira de costas. Eu vejo a Maria parada diante da porta
do banheiro, e, lá fora, consigo ver o Dan e Ana conversando. Ela fala, e ele
parece responder digitando no celular e virando a tela para que ela leia.
Eu me lavo direito, vendo a água suja escorrer de mim, depois
aproveito para escovar os dentes. E quando estou limpa o suficiente, Isabela
me entrega uma toalha. Estou lenta quando saio do box. Daniel, então, entra
no cômodo e me entrega um conjunto de baby-doll azul-claro. Depois de
vestida, volto para a cama, e então exalo o ar que parecia preso em meu
peito.
As meninas se amontoam ao meu redor, sentando-se na cama king, e
nem por um segundo deixam de me encarar. Rafael surge no quarto com
uma bandeja de comida. Meu estômago revira e eu fico enjoada só de olhar.
Embora com fome, eu não sinto vontade de me alimentar. Mas meu irmão,
parecendo ter combinado com o Dan de deixar a Isabela tomar a frente,
entrega a bandeja para ela.
— Você vai comer! E, depois, nós quatro vamos conversar sobre
tudo isso! — Isa diz, colocando a bandeja sobre o meu colo.
Isabela está toda molhada, e Daniel entrega a ela uma toalha e um
dos meus vestidos. Isa entra no closet, ao lado do terrário da Nagini, dando
vários pulinhos assustados quando nota a cobra, o que faz um sorriso torto e
quase inexistente se formar em meus lábios.
Quanto eu sondo o quarto, meus irmãos já se foram, deixando-me a
sós com as meninas. Maria alisa a barriga por cima do macacão nude, e
sentada à minha frente com as pernas dobradas ao lado do corpo, encara-me
cheia de expectativa.
Olho para a bandeja em meu colo, tem um prato de sopa e um copo
de suco.
Respirando fundo, eu pego a colher. Pelo longo período sem comer,
quando eu a mergulho no caldo, minha mão trêmula faz com que eu derrube
um pouco do líquido na bandeja.
— Se quiser, eu posso fazer aviãozinho — Ana brinca, dando uma
piscadinha de olho para mim, o que faz meus olhos marejarem. — A Júlia
come tudinho quando eu faço isso.
Maria dá uma risadinha fofa, e quando eu sorvo a primeira colher,
acabo rindo também.
— Foi o Dan quem pediu para vocês virem? — pergunto. — Foi
assim que descobriram onde eu estava?
Ana assente, então se arrasta para o travesseiro ao meu lado, onde
Samuel esteve deitado há pouco, quase pagando calcinha quando seu
vestido branco solto sobe um pouco.
Isabela volta para o quarto, o vestido curto e apertado em uma
malha preta lhe caiu muito bem. Ela engatinha pela cama e se senta ao lado
da Maria.
— Sinceramente, tu é uma vilã de araque! — Isabela diz, e Ana já
bufa, revirando os olhos para ela. — Cara, como pôde querer se vingar
sentando no pau dele? Tinha tudo para dar errado...
Uma lágrima escorre pelo meu rosto no mesmo instante que meus
ombros despencam. Eu não quero fazer bico, feito uma criança, mas faço
mesmo assim. Eu me sinto péssima por tudo, e só de mencionar o Harry... já
dói.
Eu sinto saudades. Nós nos víamos diariamente, e agora faz dois
dias que eu definho. É incrível como ninguém morreu, mas a sensação de
luto ainda paira dentro de mim pelo relacionamento que eu mesma
assassinei.
— Para, Isabela! Ela já está mal o suficiente! — Maria ralha,
virando-se de lado e olhando feio para a amiga. Mas seu rosto se suaviza
quando ela se volta para mim. — Estamos aqui porque gostamos de você,
Branca. Já ficamos sabendo de tudo, o Harry nos contou cada detalhe. E,
sinceramente, depois de conversar com o Daniel, tivemos a certeza de que
você não é uma pessoa ruim, só estava machucada.
— Vocês deveriam me odiar... — digo. — Eu entenderia.
— Nada disso! — Ana fala, alisando meus cabelos úmidos, depois
descendo o nó do indicador por minha franja de impostora. — Ser uma
bostinha é para sempre, gata.
— Achou que ia se livrar da gente? — Isabela levanta uma
sobrancelha. — Eu sou teu carma, Branquinha. Até depois que você morrer,
eu estarei lá, lembrando que foi você quem escolheu ser minha amiga. Não
sabe a merda em que se meteu...
Eu dou outra risada, desta vez, mostrando os dentes, com uma
lágrima descendo pelo nariz e entrando em minha boca, vendo a Maria
dando um tapinha no braço da loira, sem conseguir segurar o próprio riso.
Sorvo mais sopa, gostando de aliviar a fome e do quanto a presença
delas atenua, um pouquinho que seja, o buraco em meu peito. Quando
pouso a colher no prato, corro os olhos pelas três.
— Eu nunca fui falsa com vocês. — Sou sincera. Sinto meu coração
se apertar ao ver seus olhos cheios de expectativa para o que vou dizer. Os
olhos de Isa, mesmo ela sendo a mais durona, enchem-se de lágrimas. —
Eu nunca tive amigas, nunca confiei em garota nenhuma para me abrir. E eu
amei vocês tão rápido que sempre me sentia uma impostora ao pensar que
magoaria as três quando terminasse com o Harry. Porque eu não achei que
tivesse pelo mundo mais garotas ferradas como eu, de braços abertos para
mim, me oferecendo um amor genuíno. — Isa limpa a bochecha, tentando
endurecer a postura, mas não consegue, então desiste de brigar com as
lágrimas e as deixa rolar soltas. — Vocês não têm ideia do quanto eu fiquei
ansiosa quando me chamaram para a noite das garotas, porque ali eu fui
algo que nunca fui capaz de ser: uma garota normal. E eu me senti
pertencente, amada de volta.
— Que bom que não nos enganou. — Isabela alisa o meu pé, e eu
gosto quando ela, talvez sem nem perceber, começa a fazer massagem nele.
— Fiquei triste achando que você tinha brincado com a gente como fez com
o Harry.
— Eu não brinquei, Isa.
— Agora vejo que não — ela diz.
— Ficamos magoadas pelo que fez com o Harry, mas nem
precisamos dizer que ele não merecia, ele nos contou que você entendeu
isso — Ana fala, fazendo meu corpo todo doer. — E te perdoar, te querer
com a gente é possível, porque não precisamos escolher entre você e ele. O
Harry nos disse que não se importava se ainda quiséssemos ser suas amigas,
então ficamos aliviadas por ele não se opor a virmos aqui.
— Pensei que nem fossem mais querer olhar na minha cara. —
Suspiro ao me lembrar.
— Na verdade, ficamos incrédulas com tudo isso, mas queríamos te
ouvir. Tudo parecia surreal demais... — Maria fala. — E tivemos dúvidas se
não éramos parte da sua vingança, mas o Harry foi lá falar com todos nós.
Ele contou como passou a te enxergar depois da conversa que tiveram com
o avô dele, e que percebeu que você gostava realmente de nós.
Então, foi ele quem me ajudou a não perder as meninas?
Se inferno existe, meu lugar lá está bem garantido por ter feito mal a
ele.
— Eu o perdi. — Eu desmorono, e choro tanto que até a bandeja
balança e a sopa escapa pelas beiradas do prato. — Agora eu vejo que
sempre sonhei com um príncipe, mas perdi o meu, porque fui sua bruxa má.
— Os olhos das meninas despencam e um silêncio toma o quarto inteiro,
meus soluços são o único barulho. — Como ele está?
Elas se entreolham, mas é Maria quem quebra o silêncio:
— O Harry pediu que não falássemos dele com você.
Eu olho para baixo, triste, mas entendo, principalmente a lealdade
delas ao amigo.
— Ele tá fodido, igualzinho a você — Isabela fala, deixando Maria
e Ana boquiabertas. — Ah, o que é? — pergunta às garotas, apertando um
nó no meu pé que me faz gemer. — Eu não sou baú pra guardar segredo!
Ele tá triste, ficou sem comer, igual a você. Bebeu e foi lá pra casa dizer ao
Nate que você não prestava, que era uma bandida que tinha roubado o
coração dele.
Cara, eu amo essa garota!
E por que ouvir isso me deixa animada? Não saber que ele está
sofrendo, mas sim que sente algo ainda. Que não me varreu completamente
do seu coração.
— Meu Deus! Como você é fofoqueira! — Maria ralha, jogando as
mãos para o alto ao lado da cabeça e desistindo de brigar com a Isabela. —
Depois você se vira com ele!
— Então, já que a Isabela falou, eu preciso dizer que o Harry falou
que a ama. Mas ele estava bêbado. — Meu coração quase para quando eu
olho para a Ana. — Porém, quando acordou no sofá da minha sala, sóbrio,
disse que não tem mais volta. Que te quer bem, mas que vai lutar pra te
esquecer.
— Depois eu é que sou a inconveniente! — Isabela fuzila Ana com
os olhos. — Pra que contar essa parte? O plano não era juntar os dois,
depois de ver que a Branca realmente gosta dele?
— Ela parece arrependida mesmo, Ana... — Maria concorda com
Isabela. — Não era pra contar essa parte!
Ana olha para baixo, parecendo chateada por ter falado demais.
E mesmo sabendo que elas têm algum plano bobo para nos juntar,
eu ainda me sinto encolhendo, encarando a verdade que já imaginava. O
Harry não me querer é bem óbvio depois da merda que eu fiz. E eu poderia
gritar que vou lutar por ele, que vou atrás dele implorar o seu perdão, mas,
se fizesse isso, eu estaria mais perto da Veneno do que da Branca. E hoje eu
odeio a Veneno. Eu a quero morta, enterrada, porque percebi que tudo o que
fiz foi me arruinar quando coloquei essa vingança em primeiro plano.
— Ele nos pediu para te ajudar a cuidar da sua doença e não te
deixar afundar. Ele parece te amar mesmo, Branca. Estou orando muito pra
que isso tudo passe e vocês fiquem bem, porque mesmo que você tenha
feito tanta burrada, acho que gosta do Harry.
— Eu gosto, e isso é o pior de tudo, Maria. — Reviro os olhos. —
Seria bem mais fácil se eu tivesse quebrado a cara, descoberto que estava
errada, mas sem estar apaixonada. Esse sentimento todo arrebentando o
meu peito é o meu maior castigo.
— Talvez ele só precise de tempo para te perdoar — Ana fala. — O
Josiah aprontou muito no passado, e eu precisei me afastar dele até que, por
fim, ficássemos juntos.
— E somos incapazes de te julgar, Branca. Até os garotos, Bill e
Nate, deram uma passada de pano pra você. — Meus olhos quase saem das
órbitas ao ouvir Isabela terminar a frase. — Não fique surpresa, o Bill é
extremamente vingativo, e disse que no seu lugar nem teria planejado
vingança, teria dado cabo do Harry sem nem perguntar. — Engulo em seco,
com os olhos arregalados encarando a Maria, que cora de vergonha, mas
não nega que seu marido seja assim. — E o Nate, bom, a gente fez da vida
um do outro um verdadeiro inferno antes de ficarmos juntos, então, nem
temos como te apedrejar.
— E o Josiah? — pergunto, virando-me para a Ana.
Ela respira fundo, e depois de umedecer os lábios, responde:
— Ele é um rancorosinho, mas, com o tempo, vai parar de sentir
raiva de você.
Eu empurro a bandeja e a pouso sobre a minha mesa de cabeceira. E
como julgar o marido da Ana? É até bem surpreendente que os outros
tenham passado pano para mim, ou eu ter conseguido alguma empatia.
Isabela é quem me puxa para si, e quando dou por mim, elas estão
me dando um abraço grupal.
— É... sua coisinha venenosa... a gente te ama, e vamos juntar os
seus pedaços — Isabela diz. — Fora que deixamos os preparativos da festa
da tia Isaura nas mãos dos garotos para virmos até aqui te dar um choque de
realidade. — Ela me prensa de costas na cama, e eu morro de rir com os
beijinhos fofos e estalados que me dá na bochecha, enquanto as outras se
afastam aos sorrisos. É estranho sentir meu coração, que parecia apagado, a
ponto de quase desaparecer, ir ganhando cor, vida. — Então, vamos te
arrumar e te deixar bem bonita pra ir com a gente.
Quando Isabela se afasta, eu nego, balançando a cabeça.
— Não! Eu não estou preparada para ver o Harry. Nem tenho planos
de voltar para o meu apartamento.
— Bom, você pode ir à festa... — Ana se estica por cima de mim,
pegando o copo de suco na bandeja e, sentando-se ao meu lado, entregando-
me a bebida. — O Harry disse que não vai. Está na casa do avô.
É bom saber que ele está bem com o Isaque. E espero que isso dure
até os últimos dias do avô dele. É o único saldo positivo do caos que eu
levei para a vida dele. O Harry desmoronaria se o Isaque morresse com ele
longe.
Eu penso na festa. Talvez seja bom para mim. Talvez me ajude a
ficar tranquila. E se eu voltar para o meu apartamento, o Dan e as garotas
podem me ajudar a não abandonar o meu tratamento, a melhorar de vez.
— O que nos diz, vai à festa da minha mãezinha?
Sorrio para a Maria, acenando com a cabeça e amando vê-la bater
palmas.
Espero que elas não estejam mentindo para me enfiar com o Harry
no mesmo ambiente.
“É engraçado, você é quem está destruído,
Mas eu sou a única que precisava ser salva,
Porque quando você nunca vê a luz,
É difícil saber qual de nós está desabando.”
Stay, Rihanna.

Agora eu tenho um novo peso no pescoço, que escondo embaixo da


blusa, diferente da aliança do Henrique, da qual eu nunca precisei ter
vergonha. É um segundo pingente, a porra de um anel de compromisso.
É estranho eu não conseguir me livrar da joia que comprei para
pedir aquela mandada em namoro, porque, mesmo que eu nunca tenha dado
a ela, é como se fosse algo dela que eu ainda vou levar comigo.
E eu me sinto um trouxa.
Um idiota.
Por ainda sofrer, por ainda me sentir fodido e... porra, apaixonado.
Eu sei que com os dias essa merda no meu peito vai suavizar, mas
ainda dói, como no segundo em que eu descobri quem de fato a Branca era.
Quando ela foi embora da casa do meu avô, mesmo com o coração
sangrando, eu fui lá ficar com o meu velho. Vê-lo doente daquele jeito me
fez entender que não era mais tempo de guardar mágoa alguma, que eu
ficaria ao seu lado, ainda que ele não quisesse. Mas, diferente disso, ele
ficou com os olhos brilhando ao me ver retornar ao quarto, e conversamos
como dois amigos sobre tudo. Confesso que eu chorei um pouco contando
dos meus sentimentos pela Branca, do tanto que eu estava desolado. Foi
bom aliviar um pouco o meu peito naquela conversa. Depois, eu pedi ao
motorista do meu avô para deixar o carro da Branca na casa dos seus
irmãos.
Nesse mesmo dia, eu juntei tudo que tinha dela na minha casa –
roupas, produtos de cabelo... – e deixei em uma caixa na porta do Daniel. E
embora eu tente me livrar da sua presença, tem a droga do cheiro da
Branca, que não sai dos meus lençóis por nada. Eu já os lavei, e mesmo
com amaciante, o maldito cheiro de rosas sobreviveu para zoar da minha
cara sussurrando o nome dela.
Eu já chorei feito uma criança, já bebi, perturbei os meus amigos
falando dela, gritei meus sentimentos ao vento, e tive uma conversa com as
garotas. Mesmo decepcionado com a Branca, eu defendi que ela realmente
gosta das três, e disse que deveriam dar uma segunda chance à amizade
dela. Eu não precisava fazer isso, mas quando a olhei de esguelha naquele
carro e a vi chorando com as mensagens das garotas, percebi o quanto ela
aprendeu a amar aquelas três. Fora que eu preciso de mais gente em cima
dela, além do Daniel, para ajudá-la a se curar, para cuidar dela.
Sei que disse que a amava quando estava bêbado, mas até sóbrio eu
me pergunto se o que sinto não é mesmo amor. Como eu posso ainda me
preocupar tanto, querer vê-la curada e feliz? E, porra, eu me meti em uma
com o meu melhor amigo, implorando que ele fizesse o pai apagar qualquer
coisa sobre ela e os irmãos do sistema da polícia, e ele teve de apresentar a
filha ao corrupto. A Ana odeia o Cristian e nunca quis a Júlia perto dele,
mas o deixou, por dez minutos, conhecer a neta no parquinho do
condomínio, sob sua supervisão. Então, o maldito corrupto, que eu odeio,
pelo tanto que já infernizou o Josiah, deu um jeito de acabar com uma
investigação que já estava em curso contra o Rafael, e que citava a Branca.
E isso me tirou um peso imenso das costas.
Caralho, só faz dois dias que tudo desmoronou, mas parece que eu
já estou despedaçado há muito tempo, de tão forte que isso tudo é.
Eu estava certo quando dizia que jamais me apaixonaria, porque
sabia que poderia dar merda. E como eu sou um azarado da porra, quando
aconteceu, eu fiquei de quatro por uma maluca que queria comer o meu
fígado no café da manhã.
Estou terminando de arrumar a minha sala aqui no Ravina, porque
daqui a pouco é a festa da mãe da Maria. Eu nem queria ir àquela merda,
nem ânimo para isso eu tenho, mas os moleques encheram o meu saco,
disseram que vão tomar umas, conversar e o caralho, e que não seria o
mesmo sem mim. Sem contar que a Maria ficaria triste se eu não fosse.
Ouço Bill e Josiah gritando para mim da porta da frente que estamos
fechando mais cedo por causa do aniversário da velha chata lá do prédio.
Mas antes que eu vá atrás deles, sou sugado novamente para as mensagens
dela, que não são poucas. É quase um vício ler cada uma.
No dia em que terminamos, Branca me devolveu o dinheiro com
juros, mas como eu não sou nenhum filho da puta, devolvi o que não me
pertencia. E só então eu li a enxurrada de textos.
Volto ao que mais me marcou...
“Eu não sei ao certo quando foi que eu me apaixonei por você. Mas
acho que foi depois do nosso primeiro beijo, quando, muito tempo depois
dele, eu ainda te sentia nos meus lábios.
Eu sempre tive uma regra simples: nunca ficar com a mesma pessoa
mais de uma vez. E sabia que te beijar tantas vezes acabaria comigo, seria
um caminho sem volta para você contaminar o meu coração.
Eu não vou ficar implorando para te ter de volta, mas saiba que eu
não saí com ninguém e não vou fazer isso. É clichê dizer que eu não vou te
encontrar em ninguém por aí, mas é a mais pura verdade. Ninguém, nunca
mais, vai morar sob a minha pele como você fez.
E se um dia houver qualquer coisa que eu possa fazer para me
redimir, eu farei.”
Como eu queria conseguir dizer algo, mas é como se um muro se
erguesse diante de mim, para me travar, para proteger o meu coração. Estou
muito magoado, e, feito um fraco, com medo de Branca me ferrar mais uma
vez se eu chutar o balde e me render aos meus sentimentos. Está cedo para
pensar em falar com ela, porque a ferida ainda está aberta. Ela dói, lateja e
me destrói. Por agora, eu prefiro ficar na minha. Eu não a respondi, mas
também não a bloqueei. E sinto vergonha de mim mesmo quando me pego,
durante a noite, antes de conseguir dormir, olhando as fotos dela no
Instagram. Ou os poucos retratos que tiramos no dia que passamos juntos
na praia, depois jogando videogame lá em casa.
Guardo o celular no bolso e encontro os garotos do lado de fora do
Ravina. Bill fecha a porta do estúdio, e antes de ir para o seu Jeep, vira-se
para mim:
— Estava chorando de novo?
— Ah, vai tomar no rabo! — xingo, nem dando margem para a sua
gracinha.
No primeiro dia, eles não teceram comentários, mas agora já ficam
me irritando. Eu não sei que porra o Bill e o Nate têm tanto que defender a
mandada da Branca. Os dois, mais de uma vez, disseram que não podiam
julgá-la, porque o que ela fez é o tipo de coisa que eles fariam, só que pior.
E eu não duvido, são dois malucos. Mas eu sou o amigo deles, porra! Eles
deveriam agir como o Josiah, que está com ranço da Branca. Se bem que...
eu fico puto quando ouço o Josiah dizendo que não a quer por perto, que só
vai engolir porque as garotas gostam dela. Embora eu esteja bolado[19] com
isso tudo, ainda sou trouxa de achar que só eu posso falar mal ou ter raiva
dela.
Monto na princesa, e quando coloco o capacete, ouço outra piadinha
do Bill:
— Depois a Branca segue em frente e você vai ficar resmungando
feito um cão sem dono ao ver a garota com um namoradinho...
— Para de falar naquela que não deve ser mencionada e se mete na
tua vida, ô pau pequeno!
— Vira, que eu te mostro se é pequeno! — Ele ri, e quando eu
mando o dedo do meio, Bill entra em seu carro.
Ele deve ter combinado alguma coisa com as garotas e o Nate para
encher o meu saco desse jeito, porque todos eles andam soltando merdinhas
assim. Acho que deveriam ter limites. Faz dois dias que meu chão desabou,
e eles querendo que eu digira os acontecimentos na velocidade da luz.
Enquanto piloto pelas ruas, entre os carros dos moleques, com
Josiah e sua picape preta mais à frente e Bill atrás de mim, lembro-me do
meu avô. O velho não está bem, e eu prometi que passaria o fim de semana
com ele.
Vê-lo daquele jeito foi como um chute bem no meio do peito. No
fim das contas, eu nem consegui sentir raiva do que ele fez, porque foi para
me proteger. E não serei hipócrita, era o que eu faria por qualquer um que
amo. Na verdade, era como se ele estivesse fazendo carinho no garoto
carente dentro de mim, dizendo para aquele pirralho que ele sempre foi
amado, mesmo que do jeito doido do meu avô.
Porra, ele me chamou de filho!
Eu não vou e não quero ficar longe dele, porque, quando ele partir,
estarei oficialmente sozinho nesse mundo.
Não demora nada e eu já estou entrando pelos portões do La Grassa.
Costumeiramente, meu destino é a casa de algum dos garotos. Mas não
hoje. Hoje, eu piloto até um salão de festas rodeado por portas duplas
espelhadas, onde as garotas deveriam estar nos últimos detalhes da festa.
Mas elas pediram para que saíssemos mais cedo para recebermos algumas
paradas do buffet, porque iriam ver a Branca. O Daniel entrou em contato
com a Ana dizendo que ela está há dois dias sem comer, e isso me deixou
bem preocupado. Porém, fiquei mais tranquilo sabendo que as minhas
amigas iriam até lá.
Assim que entro no salão bem iluminado e com paredes em detalhes
de madeira avermelhada e tons de branco, vou direto para a mesa dos
docinhos. Tento pegar um brigadeiro, mas o Nate já se enfia na minha
frente. E embora esteja de boca cheia, fala na maior cara de pau:
— A Isabela disse para a gente não comer antes da hora! — ralha,
mas eu consigo ver o docinho na língua dele me dando tchau.
— E isso aí na tua boca é o quê, cuzão?
Ele ri, mas não libera o caminho. Eu gosto da blusa dele, é cinza,
com a estampa do Led Zeppelin. E a calça preta rasgada que está usando
parece uma das minhas. Na real, olhando bem, é minha!
— Aí, ladrão, pode ir devolvendo essa porra!
— Perdeu! Largou lá em casa ontem, depois que tomou banho
quando acordou do porre, e foi embora com uma das minhas — ele fala,
cheio de marra. — Só devolvo se tu devolver aquela minha blusa do
Metallica.
— Pode ficar com a calça, a blusa vale mais! — Dou de ombros,
ignorando o dedo do meio que ele me manda.
Aliso minha regata preta, pensando que pela primeira vez tem uma
estampa na frente. É um cubo mágico. Hoje eu acordei na bad e nem me
importei com o que estava vestindo. A calça é idêntica à do Nate, e os
coturnos foram a primeira coisa que vi perto da porta de saída.
— Tio Harry! — Júlia vem correndo. Está usando um vestidinho de
fada, tem asas nas costas e o caralho, tudo rosa. Linda como sempre,
girando o que parece uma varinha brilhosa e com uma estrela dourada na
ponta, dá pulinhos diante de mim. — A vovó disse pra você brincar
comigo!
Ela aponta para a mãe do Josiah, uma coroa elegante, com os
cabelos grisalhos cortados retinhos abaixo do queixo. Está usando um
vestido vermelho maneiro, falando algo com um funcionário que pendura
uma faixa escrito “Isaura” embaixo de um arco enorme de balões
oscilando entre rosa e branco. Se eu gostasse de velha, ela daria um caldo.
Mas eu jamais diria isso ao Jow, a menos que quisesse tomar um retão no
nariz.
— Ela não parece ter falado nada, sua pequena mentirosa! —
brinco, vendo-a rir e arregalar os olhos. — Mentir faz o nariz crescer!
— O meu está do mesmo tamanho. — Júlia dá de ombros.
Que abusada! Será que o Jow e a Ana viram que a sua Coisinha está
respondona assim?
— Quer brincar de que, Coisinha?
E, de repente, estou no canto do enorme salão, sentado no chão entre
as mesas redondas e enfeitadas em tons de bege e rosa claro, brincando de
Barbie. A Júlia pintou os olhos das bonecas com canetinha, e os cabelos
estão duros e cortados bem tortos. Essas bonecas são tão feias que até eu
sinto medo.
Entre todos nós da Tribo, Júlia gosta mais de brincar comigo. Acho
que é porque eu dublo as bonecas e ela morre de rir. E isso me faz pensar se
um dia eu terei uma menininha, o que me leva até a garota de franja, que
cresceu no inferno e então achou que precisava ser um demônio comigo
também.
Lembro-me da conversa que tivemos sobre eu pensar em ter filhos.
Embora não tenhamos ficado por muito tempo, foi intenso pra
caralho.
Como esquecer aquela mulher?
Quando eu penso nisso, parece impossível.

Algumas horas se passaram. Isaura ainda não chegou, Bill ficou de


buscá-la depois que a Maria voltar, porque ela ainda nem sabe da festa.
Eu brinquei de boneca, de pique-esconde e de inventar histórias de
contos de fadas que nem existem. E quando a Júlia cansou, finalmente me
deixou respirar.
Agora liberaram alguns salgados para nós, e já passaram duas
rodadas de chopp. Alguns convidados, tias da igreja, como a dona Isaura,
gente aqui do condomínio e moradores lá do prédio já se espalham pelas
mesas do salão.
Como aquela velha pode morar aqui há tão pouco tempo e já
conhecer essa gente toda?
Estou parado perto da porta, ouvindo Nate contar sobre uma treta
que rolou na faculdade em que ele é dono, mas quando ele para e olha por
cima do ombro, eu imagino que sejam as meninas, que já devem ter
voltado. Termino de engolir o chopp da tulipa e aproveito para descartar o
copo de vidro na bandeja de um garçom que passou bem a tempo.
Eu me viro, pensando em Branca, querendo perguntar às meninas
como ela está. Mas são os olhos dela, grandes e escuros, que tomam o meu
olhar totalmente.
Eu nem vejo mais nada, porque, neste segundo, ela é o foco
inteirinho da minha atenção. E eu não deveria, mas a vistorio dos pés à
cabeça. Está usando um jeans apertado escuro, com rasgos nos joelhos.
Traja um top preto, mostrando apenas uma parte do umbigo. Eu ainda
consigo ver algumas manchas amareladas dos meus apertões em seus
braços, e a da mordida ainda parece arroxeada.
Branca está hiperventilando, com os olhos arregalados, e mesmo
maquiada, eu ainda consigo ver seus olhos fundos. Ela parece assustada,
como se não esperasse me ver aqui.
Imagino que seu coração esteja batendo tão forte quanto o meu, que
parece prestes a explodir e deixar destroços por toda a parte. Mas o que vejo
na cabeça dela faz meu coração quase implodir, apertar, diminuir.
Ela escondeu a franja.
Prendeu-a para trás com a porra de um grampo.
Se eu não soubesse o que isso significa, seria apenas um penteado
diferente. Mas meus olhos esquentam com o meu sangue, e quando ela,
parecendo prender o choro, gira sobre os calcanhares e tenta se afastar, eu
dou dois passos e a seguro pelo cotovelo, chutando o balde, virando-a para
mim. É como se não existisse mundo ao nosso redor, apenas nós dois.
Estou fazendo o contrário do que combinei comigo mesmo: ficar
afastado, não me envolver.
Eu nem perco tempo, e parecendo que esse grampo é contaminado,
tiro-o com delicadeza de sua cabeça e solto sua franja. Branca está
tremendo sob o meu toque, olhando para os lados, respirando pela boca,
parecendo envergonhada.
Posso ouvi-la contando sobre a sua franja naquele dia, como se
fosse agora, que ela acreditava que a tornava uma princesa. E vê-la
esconder isso é saber que ela não se sente mais assim. Parece injusto,
porque foi por essa franja que os abusos do pai dela começaram. Não tem
como não doer vê-la agindo como foi obrigada a fazer naquele Vale
maldito.
— Não faz isso de esconder a sua franja — peço, penteando os fios
com os dedos e colocando-os no lugar, amando matar a saudade do quanto
eu gosto da textura deles. A real é que eu gosto de tudo nessa mulher. Eu
ainda sinto a raiva sussurrando merdas no meu ouvido, lembrando-me do
que ela fez, mas agora não é esse sentimento que fala mais alto. — Ela
sempre importou pra você.
E nem por um segundo Branca olha para mim.
— Franjas são para princesas, não para impostoras.
Eu sabia que era isso.
— Você é uma impostora agora? — pergunto, levantando seu
queixo, que ela tenta manter abaixado. Ainda assim, Branca não olha para
mim. Ela me evita, girando o olhar para todos os lados. — Olhe pra mim!
Depois de um instante, ela o faz. E tão perto, eu vejo um mundo
inteiro por trás dos seus olhos lindos, cheios de fumaça e dor. Mas é a
saudade que se evidencia quando ela me olha, investigando cada trecho do
meu rosto. Branca está tão arruinada quanto eu, e o modo como me encara é
quase como se me pedisse alguma coisa, mas sem dizer uma palavra.
Eu sei o que ela quer.
Branca quer outra chance.
E eu queria conseguir dar isso a ela... mas há tantas outras coisas por
trás do amor que sinto. Medo de que eu a perdoe e ela ainda me engane
quando bem entender... Medo de ela me foder de novo de algum jeito e me
jogar na lama, pisando nos meus sentimentos...
— Não — finalmente consegue responder.
— Então, seu argumento não tem sentido. — Seguro seus braços,
suspirando, não gostando do quanto parecem mais magros. — Não precisa
ir embora, Branca. Vai te fazer bem ficar com as garotas.
— Eu não vim atrás de você! — Ela parece desesperada para
justificar, os olhos já marejando. — Elas me disseram que você não viria,
que estava com o seu avô.
Eu reviro os olhos, e só então me dou conta de que estava alisando
seus braços, a pele quente que aprendi a amar.
— Estão tentando juntar a gente. — Engulo em seco, olhando para
esse rosto lindo e quase perdendo o eixo. Eu não posso ficar perto dela, tem
sentimento demais dentro de mim. — Pode ficar, eu vou para o meu avô
mesmo. Amanhã já é sábado, e eu prometi ficar com ele no fim de semana.
— Não! Este é o seu espaço, eu é que não tenho que estar aqui, e...
— Fica, Branca! Eu quero que fique com as meninas, que elas te
ajudem no seu processo de cura.
Uma lágrima rola por sua bochecha, não me deixando opção além
de a limpar. Essa porra dói dentro de mim, mas não tem o que fazer, eu
preciso ser forte e esquecer essa mulher.
— Você leu as mensagens? — ela pergunta.
Branca sabe que eu li. Na verdade, ela quer saber o que eu achei.
— Eu li, Branca. Mas preciso de tempo para me curar também. —
Limpo outra lágrima dela, sendo nocauteado pelo seu cheiro, pela sua voz,
por tudo nela. E sinto saudade. Sinto saudade desses lábios largos, grossos e
que ficam mais perfeitos quando se movem. Dessas sardas claras acima do
nariz, de beijar essa porra de franja. Mas eu preciso ser forte, preciso do
meu espaço. — Você não fez nenhuma besteira nesses dias, né?
Eu não deveria me importar, mas tem um lado inseguro que sussurra
na minha cabeça que ela vai me esquecer, que um dia vai ser feliz e usar a
porra do vestido com mangas bufantes para outro cara. Ou outra mulher.
— Se não comer e usar sedativo até durante o dia para conter os
danos for considerado besteira, eu fiz. — Eu afundo, quase me afogo em
tristeza imaginando-a assim. Eu já sabia da comida, mas do remédio, nem
imaginei. — Se quer saber se fui atrás de sexo, eu não fiz isso. Embora eu
não vá ficar te perseguindo ou implorando, eu ainda tenho uma esperança
infantil de que você me perdoe, Harry. E sei que ficar com alguém acabaria
de vez com essa hipótese.
Eu não deveria, mas indo contra a regra de ficar longe dela, eu a
puxo para mim e a abraço. Meio incerta, tremendo com o choro, Branca me
abraça de volta. Começa leve, mas depois se torna algo mais forte, mais
necessitado, cheio de dor.
Respiro aliviado ao ouvir essa merda. Mesmo machucado, mesmo
ficando com raiva e desolado quando me lembro de tudo, eu tenho ainda
mais certeza de que amo essa desgraça de mulher. E mesmo sabendo que
não vamos voltar, eu a quero bem, e ainda sinto ciúme. É muito ridículo o
jeito como eu fico feliz em saber que ela não quer acabar com alguma
chance futura entre nós dois. É claro que eu não espero a porra de um voto
de castidade da parte dela, mas espero que ela se cure. Por isso, eu digo:
— Eu queria te pedir uma coisa.
Branca suspira antes de responder:
— O que você quiser, Harry.
— Quero que continue seu tratamento até ficar estável, e que tente
levar uma vida longe de roubos virtuais e coisas ilícitas.
Um longo silêncio se estende, e depois ela ergue o rosto. Quando eu
olho para baixo, quase choco meu nariz no dela. Sinto, feito um pirralho, a
minha barriga esquentando de nervoso com esse contato todo.
— Se eu fizer essas coisas, você... — É doloroso pra caralho ver a
esperança no olhar dela. E não tem como duvidar agora, ela gosta de mim.
Ela está arrependida. Mas ainda não é o suficiente. — Vai me perdoar?
Vai... — Branca parece com vergonha de concluir a frase. — Voltar pra
mim?
Afasto suas mãos do meu corpo, seguro suas bochechas e olho
dentro dos seus olhos.
— Eu não sei se temos conserto, Branca. Isso foi sério demais. — É
ruim ver o queixo dela tremer de novo, mas eu continuo falando: — Eu
quero te perdoar, e ficarei feliz te vendo fazer essas coisas que pedi, mas
fazendo porque se ama o bastante para ver que merece uma vida limpa e
normal. — Ela balança a cabeça, como se não concordasse, como se não
merecesse. — Merece sim! Quero que viva de design, como fingia fazer. —
E preciso respirar muito fundo para conseguir dizer a próxima frase,
embora ainda saia entredentes: — Que transe quando realmente sentir
conexão com alguém. Então seremos, no mínimo, amigos quando isso
acontecer.
E mesmo triste, uma luz se acende nos olhos nublados de Branca,
alguma esperança. Sorrindo do jeito triste que sou especialista em fazer,
beijo sua franja por muito tempo, tempo demais. E quando me afasto, eu
quase, quase mesmo, cometo a burrada de a beijar na boca. Mas mesmo
querendo, eu não faço.
Ao ver Branca parecendo mais tranquila depois das minhas
palavras, depois do meu abraço, eu me sinto mais aliviado.
Talvez amar seja sobre isso, sobre não conseguir e não querer ver o
outro mal, mesmo quando os nossos caminhos não se conectam mais.
Quando eu me afasto dela, Branca permanece parada, encarando-me
do jeito mais profundo que consegue fazer. Olho ao redor, então vejo meus
amigos por perto. Bill disfarça, fingindo contar os cigarros dentro do maço,
e Nate, na cara de pau, finge ajudá-lo. As garotas começam a falar
aleatoriamente, como se não desse para ouvir a Maria falando de unha, a
Ana responder sobre a comida, e a Isabela dizer que precisa fazer xixi.
Eu reviro os olhos e, meio triste, resolvo ir embora. Sei que é pior
para nós dois ficarmos mais tempo no mesmo ambiente. Ainda tem mágoa,
sentimentos mal resolvidos que precisam de tempo.
E, de fato, tudo o que eu mais desejo é ver essa garota bem.
É impossível saber se um dia seremos algo de novo, embora eu
saiba que vou desmoronar se um dia a vir com outra pessoa.
Eu não vou negar que vai ser difícil esquecer essa mulher, mas se
for o melhor para nós dois, eu o farei.
“Pensei ter encontrado um caminho.
Pensei ter encontrado uma saída,
Mas você nunca se vai.”
Lovely, Billie Eilish.
“A cura dói.”
Essa foi a frase que eu ouvi da minha psicóloga na minha última
sessão, há alguns dias. E, de fato, ela machuca. Você precisa mergulhar bem
fundo no poço das suas dores, para, quando emergir, não estar doendo mais.
E todos os dias é como um mergulho.
Já faz uma semana desde que eu fui à festa da mãe da Maria com as
garotas. Naquele dia, as três me maquiaram e me ajudaram a escolher uma
roupa. Elas ficaram meio assustadas com as marcas no meu corpo, que
ainda estavam sumindo, resultado do sexo com o Harry. Sendo mais
precisa, a Maria nem ligou muito, a Isa foi a que mais reagiu às manchas,
dizendo que o Harry não tem cara de soca-forte[20]. Eu ri, depois expliquei
que ele estava bravo, e que, de fofo, o Harry só tem o sorriso, pois, no resto,
manda muito bem. A questão é que, depois de me arrumar, eu me encarei
no espelho e me vi ridícula, pensando nas histórias de princesas que minha
mãe me contava, onde todas eram boas. E sabendo que eu era uma vilã de
merda, subi a franja e a prendi com um grampo, por não ser digna daquela
franja. Naquele segundo, foi como mergulhar no passado, vendo-me no
espelho do Vale, com raiva por minha mãe estar escondendo a minha franja
com um grampo contra a minha vontade. As garotas precisaram refazer a
minha maquiagem quando eu me recompus.
Elas queriam que eu fosse à festa para me distrair, mas é óbvio que o
meu lado apaixonado tinha esperanças de vê-lo. Eu queria matar a saudade,
mesmo que depois doesse. E quando eu o vi, parado no meio daquele salão,
eu quis sair correndo. E tentei. Tive medo de Harry pensar que eu estava
indo atrás dele, que estava o perseguindo de novo. Então, Harry foi doce, e
fofo, e alimentou o meu lado encantada por ele mais uma vez.
Eu chorei todas as noites depois do nosso encontro, lembrando-me
de que ele entendia o que a franja significava para mim, do jeito que a
soltou, de como me abraçou e a beijou. Então, eu me lembrei do seu pedido.
Eu tenho uma esperança quase nula de que voltaremos, mas ainda
estou, por todos esses dias, esforçando-me, lutando para não ceder ao meu
vício, talvez enlouquecendo mais um pouquinho quando ele bate com tudo
nas horas de maior desespero. Porém, eu ando conseguindo, e com a
expectativa de que, um dia, essa compulsão nem exista mais, que eu
consiga ser normal. É por isso que eu continuo indo à terapia, tomando os
meus remédios, exercitando-me e cumprindo as sugestões das minhas
amigas, tudo na direção da minha cura.
E voltar para o meu apartamento, ver as garotas todos os dias, sentir-
me amada pelos meus irmãos, que se revezam para me dar carinho, com o
Rafael, feito um gavião, vindo toda noite checar se estou bem, é o que tem
me dado forças.
Eu não acesso mais a Deep Web para vender vírus, nem caço
homens filhos da puta para roubar. Na verdade, eu resolvi ocupar a mente
com um trabalho de verdade, e assim que enviei meu portifólio para uma
agência de design, quiseram me contratar. Agora, eu trabalho lá, e faço artes
profissionais para clientes com perfis na internet, o que me dá uma grana,
embora não chegue perto do que eu conseguia roubando.
Confesso que eu não me arrependo do trabalho que fiz como Veneno
na internet, porque aqueles homens mereciam. Mas eu parei, pelo homem
que ainda quero de volta, mesmo sem esperanças de conseguir, e porque eu
quero provar a mim mesma que consigo ser melhor. Eu só me arrependo do
que fiz com alguém que não merecia, o Harry.
Com o auxílio das meninas, eu fiz muitas coisas nos últimos dias.
Na segunda-feira, fiz duas horas de massagem relaxante com a Ana,
por sugestão dela, que disse que ajuda muito a lidar com a ansiedade. Nos
primeiros sessenta minutos, a minha mente ficou revivendo mil e uma
coisas, a ponto de eu querer gritar com a minha cabeça para fazer silêncio.
Mas na segunda hora, eu comecei a relaxar, a sentir a ansiedade ir sumindo
junto aos nós de tensão pelo meu corpo, e quase peguei no sono com a
música ambiente e o óleo sendo espalhado pela minha pele. O restante do
dia seguiu ainda mais calmo, e eu terminei a noite meditando, para depois
dormir com o Daniel, que é quem dorme comigo todos os dias.
E eu sonhei com o Harry. Mas isso já virou rotina, ele me persegue
acordada ou dormindo, lembrando-me do quanto perdi. E pensando em
perda, eu sequer sou capaz de jogar videogame, porque agora até isso me
lembra dele.
Na terça-feira, fomos a uma loja de vibradores, sugestão da Isabela,
para ajudar a me aliviar, já que o plano é ficar na seca sabe-se lá até quando.
Eu comprei quatro, de consolos a sugadores de clitóris. E eu não fiquei com
vergonha, porque fui com o meu trio de amigas perfeitas, e foi muito
engraçado ver a cara da vendedora, que depois me perguntou se eu iria
revender.
Na quarta-feira, testei alguns, mas foi tão sem graça quanto mastigar
um pedaço de papel. Porém, quando fechei os olhos, já exausta e brava por
não sentir a porra de uma fisgadinha sequer anunciando um gozo com o
vibrador, eu pensei nele, e quando me lembrei das coisas que fizemos
juntos, eu gozei de um jeito leve, de um jeito bom. Depois, eu chorei.
E todos os dias eu me lembrei dele. Pensei nele. Senti saudades dele.
Então, eu quis morrer por tudo o que fiz. Pelo jeito como estraguei tudo.
Embora eu fique curiosa e com medo de que Harry esteja
conhecendo outra pessoa, eu nunca mais invadi a privacidade dele
acessando suas redes sociais. Agora, isso me parece imundo, visto que eu
não tenho mais uma cortina de fumaça envenenada me cegando os olhos.
Mas pelo que as meninas me contaram, o Harry tem ficado com o avô, e
não anda saindo com ninguém.
Agora, estou terminando o meu almoço na mesa da cozinha, vendo
Daniel escrever em seu computador, usando um conjunto de moletom com
estampa em tie-dye. Enquanto rodo o garfo no macarrão, olho meu celular
com a outra mão.
Uma mensagem dispara no grupo das minhas amigas, e eu a abro na
hora quando vejo de relance o nome “Harry”.
Ana: “Gente, o avô do Harry está internado em estado grave.”
“Eu não tenho muita certeza de como
me sentir quanto a isso.
Algo no modo como você se mexe
me faz sentir como se eu não pudesse viver sem você.”
Stay, Rihanna.

Já faz três meses que eu não piso na minha casa. A última vez em
que estive lá, foi no dia em que saí da festa da Isaura. Depois que eu falei
com a Branca, fui para o meu apartamento, coloquei algumas roupas em
uma mala e segui para a casa do meu avô.
Ele nem havia me chamado para morar lá, mas além de não se opor,
abriu o maior sorrisão quando eu perguntei se, enquanto ainda juntava meus
pedaços após o termino com a Branca, podia ficar no meu antigo quarto.
A real é que eu entendi que não dava para me curar, para me livrar
de toda aquela dor, se ainda esbarrasse com ela toda hora pelo prédio. E eu
não queria que a Branca ficasse na casa dos irmãos. Embora isso não fosse
decisão minha, eu preferia que ela estivesse perto das minhas amigas, para
que as garotas a ajudassem a seguir na linha, junto ao Daniel. E fiquei feliz
ao ver que, vindo para o meu avô, ela voltou para o seu apartamento. Eu
soube que Branca não queria ficar lá, com medo de que eu pensasse que ela
estaria me perseguindo ou forçando uma convivência.
As meninas se revezam em me atualizar sobre como estão as coisas
com a Branca, e eu acho que ficar perto das garotas funcionou para ela. Eu
soube que o Daniel dorme todos os dias na casa dela, e que a Branca tem
feito algumas terapias diferentes e, até o momento, tem estado cada vez
melhor. E embora eu me morda de vontade, eu nunca pergunto se ela tem
planos de conhecer outra pessoa. Ou se já fez isso. Pensar nela com alguém
dói, mas eu não sou egoísta de esperar que ela não siga em frente, afinal, fui
eu quem terminou tudo.
Por outro lado, toda vez que estou doido querendo foder, eu me
puno pensando: “E se a gente voltar um dia... e eu for o único que trepou
com outra pessoa?”. Então, eu me lembro de como esses três meses foram
nublados. Eu tive dias em que só dormi depois de virar uma garrafa de
vodca. Tive momentos em que achei que fosse ficar louco, com tantas e
tantas imagens de um futuro onde tudo entre nós dois fosse diferente me
rondando, e fosse feliz, porque é foda como ela sempre pareceu perfeita
para mim, como tudo se encaixou, o nosso beijo, os nossos corpos, o jeito,
os gostos...
Mas eu acho que esse tempo tem sido necessário. Eu não sinto mais
uma só gota de raiva dela. Na verdade, o que sempre ronda as memórias da
nossa história é dor, algumas porções de tristeza e muita saudade. Acredito
que a saudade é o ingrediente mais forte nessa receita toda. A saudade é
tanta que nem parece que o nosso romance foi rápido, que durou tão pouco.
Mas a intensidade do que vivi com aquela mulher foi tão foda, tão gritante,
que eu sentia como se a conhecesse havia eras.
E não é que eu não sinta vontade de sair e comer alguém, porque,
talvez, eu acabe fazendo isso em breve, pois é cada punheta sem graça que
eu bato no banho para aliviar o saco... Só não é tão ruim quando eu deixo
que as memórias das nossas fodas me invadam, quando eu maceto meu pau
com a mão imaginando que é ela. São esses momentos que realmente têm
sabor, mas é só abrir os olhos, ver a minha porra escorrendo pelo ralo do
chuveiro, que eu sinto quão deprimente é ficar preso no fantasma dela.
Desde que eu voltei a morar com o meu avô, passamos a ter uma
relação diferente, uma que eu sempre sonhei em ter. Conversamos sobre
tudo, vemos filmes juntos, falamos das mulheres que meu avô já pegou, dos
lugares para onde viajou... E ele dá boas risadas das minhas merdas, que
agora eu posso contar com mais liberdade. Não existe mais julgamento com
os meus piercings, não tem mais sermões ou cara feia. Ele parece me
aceitar, e por duas vezes segurou meu ombro e chorou pedindo perdão,
dizendo que deveria ter sido um avô melhor para mim.
Vendo-o tão perto do seu fim, eu não quero guardar mágoa alguma.
Sinto tanto medo de perdê-lo que me obrigo a entender que ele não recebeu
amor paterno, por isso não soube dar.
Enquanto piloto pelas ruas da Cidade Maravilhosa, eu me recordo
do dia em que meu avô teve uma piora em sua doença. Faz duas semanas
que a saúde dele decaiu. Ele passou mal em casa, e sua enfermeira, Edna e
eu o levamos correndo para o hospital. Mesmo contra a sua vontade, e até
nos xingando, porque não queria de jeito algum, precisamos interná-lo. Ele
estava com um quadro de sepse, e os médicos nos disseram que a situação
era muito delicada. Embora houvesse um protocolo de tratamento com
medicamentos, só as transfusões de sangue poderiam de fato ajudá-lo
naquele momento.
Sinceramente, meu avô está num estágio tão avançado do câncer
que, quando desenvolveu uma infecção generalizada, eu tinha me resignado
de que sua hora havia chegado. Mas meus amigos inundaram as redes
sociais com pedidos de doação de sangue compatível com o dele. E
tratando-se de câncer terminal, os médicos não viam saída alguma para o
seu quadro.
É claro que meu avô está condenado, com metástase no fígado e
praticamente no corredor da morte, mas se eu puder ter um dia a mais que
seja ao lado dele, eu quero a porra desse dia.
Ao menos uma coisa boa aconteceu diante de todo aquele caos:
muitas doações de sangue, que são essenciais em quadros de choque
séptico, como foi o caso dele. Eu nunca soube quem eram todas aquelas
pessoas, mas com a quantidade gigante de doadores, uma semana depois,
ele foi tendo melhora.
Meu avô ainda está amarelo, magro, e sempre que eu me despeço
dele para ir para o Ravina trabalhar, tenho medo de que seja a última vez
que o verei.
Paro a princesa em uma vaga para motos no estacionamento amplo,
com fileiras e mais fileiras de carros ao nosso redor. Em seguida, dirijo-me
para a recepção do hospital enorme, que mais parece um prédio comercial
do centro da cidade.
Estou trazendo um DVD do filme Duna para assistirmos juntos.
Embora eu tenha dito a ele que tem ótimos streams para vermos o filme,
meu avô tem um grande apego a vê-los no aparelho, e me fez trazer o de
casa.
Notei que ele anda bem mais sorridente nos últimos dias, e mesmo
com a voz fraca e movimentos lentos, disse que tem jogado xadrez com
uma moça bonita do hospital. De início, pensei que fosse algum delírio
dele, por não ter visto ninguém, mas quando notei um tabuleiro pequeno no
canto do quarto dias atrás, percebi que era real, que alguma alma bondosa o
tem feito companhia quando eu não estou. E eu não tenho do que reclamar
da equipe que cuida dele, são todos bem de boa.
Fico na recepção pelo tempo suficiente de pegar meu adesivo de
acompanhante, e enquanto caminho pelo largo corredor branco, cheirando a
álcool e momentos tristes, paro diante da porta clara e ampla, que tem uma
identificação na frente com o nome dele, fora todos os outros adesivos, indo
de amarelo a vermelho, pregados nela, deixando bem claro que tem um
caso complicado lá dentro.
Ouço um risinho de mulher e, por fim, a voz do meu avô:
— Não vai ter pena de um velho com o pé na cova? — Ele tosse,
depois ri com vontade. — Vai mesmo me dar um xeque-mate?
E querendo ver quem é a tal moça bonita, abro a porta lentamente.
Eu quase deixo meu capacete cair quando vejo que é de fato uma moça
bonita. Linda pra caralho! E quando reparo no sorriso que ela está dando ao
meu avô, enquanto move a peça e ganha o jogo, lembro como é uma guerra
inteira lutar para esquecer isso, esse sorriso branco, com dentes lindos e
pequenos, ou a maneira como ela fica vermelha e seus olhos se enrugam e
ficam pequenininhos quando está entregue às risadas.
— Sim, seu chantagista! Eu vou!
Ela faz uma pequena dança com os ombros, rindo sem parar. Meu
avô ergue as mãos e segura a cabeça, com o rosto iluminado e feliz, dando-
se por vencido.
Não querendo ser visto, eu tento ser o mais silencioso possível ao
dar meia-volta, e quando consigo encostar a porta sem ser notado, paraliso
ao ouvir Branca se despedindo.
— Então, eu volto na segunda-feira — ela avisa. — Trarei um jogo
de cartas e um filme novo.
— Nunca vai contar a ele que somos amigos? — Isaque inquire, a
voz diminuindo.
Meu coração se aperta. Então, eles são amigos mesmo? Isso é fofo
pra caralho. Branca não odeia o meu avô. Eu jurava que ela fosse ter
alguma mágoa, pelo quanto mostrou que pode ser rancorosa.
Neste segundo, é difícil saber que porra sentir. Eu quero falar com
ela, mas ao mesmo tempo me manter distante, proteger a nós dois dando
seguimento ao modo como estamos conseguindo continuar com as nossas
vidas.
Eu prometi à Branca que ainda seremos amigos, e, se ela quiser,
quando meus sentimentos estiverem contidos o suficiente, eu tentarei me
aproximar. Mas fazer isso agora seria sucumbir, regredir, e, talvez, até nos
machucar.
— Não. É melhor assim.
Percebendo que ela está mesmo saindo, eu caminho bem rápido para
os fundos do corredor, na direção contrária aos elevadores, dobrando à
direita. É feião ter que colocar a cara para fora da parede para vê-la se
afastando, com medo de que me veja aqui. E eu não sei se é o tempo sem
ela, ou sem trepar, mas só de ver a sua bundona se mexendo naquele jeans
apertado, eu já fico duro feito pedra, com o pau doendo de vontade de ser
aliviado. Quando a vejo pegando o elevador, solto o ar que estava entalado
em meu peito.
Ela parece melhor.
Está mais bonita do que nunca.
Parece mais gordinha, um pouco de nada, mas está melhor do que
da última vez que eu a vi. Com o cabelo mais comprido, a franja linda
totalmente livre e exposta. E ainda tinha um sorriso no rosto quando pegou
o elevador.
Há quanto tempo Branca tem feito isso? Vindo fazer companhia ao
homem que ela deveria ver como culpado por me tirar da cena do acidente?
Por que ela gosta dele? Por que se dar ao trabalho de vir até aqui?
Espero meu pau amolecer, lutando com a saudade maluca de querer
senti-la, de me aproximar. Ouço uma voz na minha cabeça sussurrando para
eu esquecer tudo, para perdoá-la, para fazê-la minha de novo, se ela ainda
me quiser.
Sempre que me veem com cara de bunda, meus amigos me mandam
voltar para ela. Quando ouço uma música de corno, eu me sinto traído e
ferido. E nos pagodes com melodias de término rolando em nossos
encontros, eu choro feito um idiota.
É culpa do signo, com certeza. É uma maldição ser pisciano. Cada
dia é uma humilhação diferente sendo sensível para caralho.
A real é que eu ainda a quero, mas não sei o que fazer. E eu tenho
um vício novo, olhar seus stories.
Branca tem postado coisas sobre a sua vida no Instagram todos os
dias, como idas à academia, novas leituras, quando faz massagem ou até
quando está saindo do consultório da psicóloga. No começo, eu ficava
acanhado, pensava que ela veria que estou a estalkeando, mas, no fim,
chutei o balde. Embora eu tenha lutado para manter uma distância física,
ver as fotos dela, o que tem feito, aplaca um pouco a saudade.
E decidido a sanar as dúvidas sobre essa amizade com o meu avô,
finalmente entro no quarto. Gosto do quanto é amplo, porque quando
decido dormir aqui, eu não me sinto enclausurado. E as paredes de um tom
azul-claro aumentam a sensação de amplitude. Fora a vidraça grande nos
fundos do quarto, com a vista da folhagem de uma árvore, que faz tudo soar
mais calmo. E foi na cama de acompanhante abaixo dela que eu chorei, com
o meu avô no CTI. Mas, agora, gosto de focar nele aqui, nos momentos que
ainda temos juntos.
— Harry?! — Os olhos dele brilham quando me vê. Está usando um
cateter nasal para respirar. — Já chegou? Subiu de elevador?
Eu cerro os cílios para a sua pergunta, para a esperança misturada
com curiosidade em suas feições. A real é que ele quer mesmo saber se eu
esbarrei com ela, o meu carma em forma de mulher.
— Subi. Mas a Branca ainda estava aqui quando eu cheguei — falo,
e em vez de se assustar, ele ri. Eu nem consigo me irritar por meu avô ter
escondido de mim essa amizade.
Ele já me mandou tantas vezes ir atrás dela que eu até perdi as
contas.
Ama dizer que devo perdoá-la, porque ela é só uma menina confusa
e sofredora. E que ainda sonha que um dia nos casemos, porque somos um
casal bonito e mil e outras merdas.
Eu amo e odeio ouvir isso, que ele apoia que um dia a gente volte.
— Então conversaram?
Reviro os olhos, colocando meu capacete em cima do aparador
branco perto da porta, ao lado do aparelho de DVD. Acima dele, a televisão
está ligada, passando um noticiário no mudo.
— Não — respondo, falando a verdade, tirando o casaco de
moletom e ficando só de camiseta. Coloco-o junto ao capacete, pousando o
filme em cima do aparelho de DVD. Então, vou até a poltrona de couro
caramelo ao lado de sua cama. — Ainda não consegui ter coragem de me
aproximar.
— Está com medo da Branca? — Ele ri. — Ela é mesmo poderosa!
— O seu neto sou eu! — resmungo. — E desde quando ela tem
vindo aqui?
— Desde que trouxe os irmãos para me doar sangue — responde
meu avô, como se não fosse nada, colocando o tabuleiro em cima de um
aparador ao lado de seu leito. Está usando a camisola branca do hospital,
com algumas bolas amarelas pequenas estampando o tecido. — Nós
conversamos um pouco. Ela me contou coisas da sua infância e disse que
gostava de mim. A Branca nem precisava, garoto, mas gosta. E entende o
que eu fiz por você. Então, eu me afeiçoei a ela e nos tornamos bons
amigos. Na segunda vez que veio, eu perguntei se ela sabia jogar xadrez. —
Ele raspa a garganta bem alto, fazendo-me levantar para lhe dar um copo
d’água. — Desde então, ela vem algumas vezes na semana, me conta sobre
a sua vida, os planos futuros, e seus sentimentos. Eu gosto dela, falo para as
enfermeiras que é minha nora.
Eu nem sei o que pensar sobre essa porra toda. Ao mesmo tempo
que meus sentimentos acendem, que sinto vontade de dar uns beijos nela
por saber que tem feito o meu avô feliz, eu ainda tenho medo. Medo de tudo
o que rolou, de me precipitar se for atrás dela.
— Ela não é sua nora, vô.
— Mas não me custa nada fingir que é. E a Branca seria, se você
quisesse...
— Ela disse isso?
— Disse!
E quando eu vou continuar falando, ouço uma batida à porta. Ao
olhar por cima do ombro, vejo Aurora e seu pai chegando com um buquê de
flores.
“Leve-me pela noite.
Venha para o lado escuro.
Nós não precisamos da luz.
Nós vamos viver no lado escuro.”
Darkside, Alan Walker.

Meu braço ainda está meio dolorido. A enfermeira acabou errando


na hora de procurar a minha veia quando eu estava doando sangue no
hospital, então fiquei com essa dorzinha, mas deve melhorar em algumas
horas. Isaque nem precisa mais de doação, mas agora eu adquiri o hábito,
sabendo que pode salvar vidas.
Eu tenho dormido na casa dos meus irmãos quando volto do
hospital.
No dia em que a Ana postou no grupo que o Isaque estava em
estado grave e precisava de doação de sangue, eu pedi a todos os meus
irmãos para irem comigo doar também. Eles aceitaram de cara, sabendo que
salvariam uma vida. E depois da doação, passei no quarto para vê-lo. Eu
nem sei por que fiz isso, afinal, ele poderia ser hostil comigo, pelo que fiz
com o seu neto. Mas Isaque não foi. Na verdade, ele me viu na porta,
espiando-o, com medo de entrar, então me chamou. Conversamos um pouco
sobre tudo o que eu sentia pelo Harry, mas como ele estava mal e um pouco
indisposto, pediu para eu voltar no dia seguinte.
Isaque me perguntou muita coisa nessa segunda visita, quis saber
quando eu me apaixonei, por que me apaixonei, como minha vida ficou
quando perdi a minha mãe e se eu o odiava. Eu respondi apenas o que achei
necessário sobre o meu passado, pincelando sobre o Vale, sem dar muitos
detalhes. E quis enfatizar que eu nunca o odiei, que gostei dele desde o
começo, e que o que fez pelo Harry, eu faria para proteger os meus irmãos.
E foi depois desse dia que visitá-lo virou rotina.
É incrível como a amizade entre mim e o Isaque foi fluindo. Ele
ama ouvir minhas histórias, e eu nem acreditei quando se interessou por
minhas aventuras como hacker.
Eu percebi que ele não gosta de ficar sozinho no hospital, e morro
de dó como me olha triste quando estou indo embora. E em todas as vezes
ele me pergunta se o Harry me procurou, se conversamos, e fica cabisbaixo
quando eu nego. Acho fofo quando Isaque diz às enfermeiras que sou sua
nora, mesmo sendo uma mentira.
Pedi a ele muitas vezes que não contasse ao Harry que estou indo lá,
porque não estou fazendo isso para impressioná-lo, mas por gostar do
Isaque.
Agora, estou ao lado do Daniel, um pouco ansiosa quando
entregamos nossos ingressos para entrar na casa noturna movimentada que
escolhemos para curtir a noite, chamada Noctualia. É a primeira vez que
venho, mas Daniel já curtiu a noite por aqui várias vezes.
Minha psicóloga disse que não via problemas em virmos hoje, desde
que eu maneirasse na bebida. Ainda assim, estou um pouco nervosa. Então,
enquanto entramos na pista ampla e movimentada, com meu irmão já
remexendo seu corpo envolvo em jeans e blusa branca, sorrindo com o som
do funk tremendo as paredes altas e de um cinza bem escuro, repito para
mim mesma que posso me divertir.
Eu não vim buscar uma transa, meu plano para esta noite é
conseguir sair daqui sem ter pegado ninguém, o que será algo bom para
mim. Daniel me puxa para dançar com ele quando começa a tocar Veneno,
da Anitta, e isso me faz revirar os olhos. Mas eu cedo, ficando de costas
para ele e rebolando devagar até o chão. E mesmo sem ter bebido ainda, nós
nos jogamos nas danças, o que me anima e me deixa feliz.
Entre risadas e com o suor já escorrendo pelo corpo, caminhamos
até o bar, e quando chegamos, nós nos apoiamos contra um balcão amplo e
escuro, mas com algumas fitas de led pelas bordas em um tom arroxeado,
com garrafas e mais garrafas de destilados nas prateleiras de vidro atrás dos
barmen. Peço uma cerveja, e Dan me acompanha. Eu não quero beber
destilado, porque entra mais rápido na minha mente e me deixa doidona
fácil. Com cerveja, eu consigo controlar melhor os danos.
“Bora tirar uma selfie! Quero que aquele idiota do meu ex veja que
eu já o superei!”
Eu dou uma risada e, aproximando o copo de cerveja do rosto para
sair na foto, colo minhas costas no peito de Daniel enquanto ele tira a selfie
de nós dois. Meu irmão estava com um carinha que conheceu na academia,
mas descobriu uma traição, e o romance que ele dizia que duraria para
sempre acabou em farpas. Mas quem sou eu para julgar? O meu também
acabou assim, tanto que até hoje elas perfuram a minha pele e me lembram
do que eu perdi.
Vejo a notificação da postagem do Daniel no Instagram, então já
reposto nos meus stories. E pensar em stories já me lembra do Harry,
embora tudo o que eu queria esta noite era não pensar nele. Ando fugindo
da sua miragem, que me assombra a cada dia, nunca saindo da minha
mente.
Percebi que me curar significava deixá-lo ir. Entender que não tem
mais volta, mesmo que, todos os dias, eu sinta medo de acabar surtando e
perdendo o meu progresso no tratamento se o vir com outra, se o vir
seguindo a vida sem mim. Ele não é meu, eu sei disso. Mas ainda dói
imaginá-lo com outra garota, sendo feliz longe de mim. Mas como já se
passaram três meses, eu sei que não tem mais volta. Se o Harry me
quisesse, teria me procurado, teria me deixado entrar em sua vida
novamente.
Faz um tempo que eu posto aleatoriedades nos meus stories todos os
dias, e só faço isso porque ele não perde um. É, de um jeito infantil, uma
maneira de sentir que ele ainda pensa em mim.
A saga das postagens começou quando eu postei o trecho do livro
Costumava ser alguém que você amava, escrito pela Ana, que eu estava
lendo no kindle. Ele viu esse post, então eu fiz um teste e postei minha
caneca de café e o desenho que estava rodando no meu projetor. Minutos
depois, lá estava a carinha dele, a cara linda que eu sempre vou venerar,
marcando que ele viu.
Sei que é ridículo desejar que o Harry sinta ciúme ao saber que eu
vim aqui. Mas ainda sou humana, mesmo que tente evoluir todos os dias.
Estou terminando minha cerveja quando um carinha chega no
Daniel. Eles conversam, e eu fico só observando meu irmão flertar. É
sempre divertido, porque os caras tomam um susto quando ele precisa se
comunicar escrevendo no telefone para que eles leiam. Mas os que
resolvem não ser pau no cu e virar as costas assim que percebem que ele é
mudo, merecem sua atenção e seu sorriso sedutor.
Depois de entregar meu cartão de consumo para pegar outra cerveja
a um barman sorridente, que fica muito tempo olhando os meus peitos
apertados pelo sutiã de renda, por cima de uma blusa em tule preto
translúcido, giro no banco de madeira em que estou sentada e olho para a
pista.
Por ser meio de semana, não está muito cheia, o fluxo de pessoas
está moderado hoje. Gosto deste lugar. Tem um jogo de iluminação maneiro
sobre a pista de dança, e o teto é do caralho, com muitas luzes em formato
de lua cheia por sua extensão, emanando uma luz amarelada. Quando os
feixes coloridos dos refletores miram esses lustres, fica muito lindo.
Quando eu termino minha outra cerveja, tendo certeza de que
acabarei de vela, Daniel se vira para mim.
“Esse é o Carlos”, ele apresenta o carinha. Eu sorrio, acenando para
o marombado e o analisando de cima a baixo. Até que é bonito, com
cabelos escuros um pouco longos e rosto simétrico. Está vestido de um jeito
que chama atenção: calça branca apertada e uma camisa jeans justa nos
braços. “Ele disse que tem um casal de amigos no camarote lá em cima.
Está chamando a gente para subir com ele.”
Faço um joinha com a mão, aceitando, pensando que, se não tem
solteiros lá, não terá ninguém para dar em cima de mim, o que torna as
coisas menos desconfortáveis, visto que hoje eu só quero me divertir sem
sair com ninguém.
Quando seguimos até o camarote, subindo com o Carlos por uma
escadaria estreita de ferro pintada de dourado, penso que deveríamos ter
pegado um balde de cerveja.
O camarote é um dos mais bonitos que já vi. Com estofados de
couro marrom rodeando as paredes, luzes roxas em formato de círculo no
teto, e, na parede acima dos sofás, um longo painel de madeira cinza
exibindo um enorme letreiro em neon roxo. A frase “Coisas boas
acontecem aqui” roda um pouquinho na minha cabeça. Espero que
aconteçam mesmo. O que divide os ambientes são pequenas muretas,
separando os sofás e as mesinhas de madeira na frente deles.
Sigo meu irmão e seu aspirante a peguete, mas enquanto Carlos
parece confortável ao chegar ao último camarote, Daniel trava. Minhas
sobrancelhas se unem, e quando chego atrás dele, eu me preparo para
perguntar no seu ouvido o que houve, mas nem precisa. Eu consigo ver, tão
claro e nítido que nem parece que estamos neste camarote pouco iluminado.
Harry está sentado no sofá, tomando uma lata de cerveja enquanto fala algo
no ouvido de Aurora. Eu não deveria sentir meu coração estilhaçar. Ou me
sentir traída desse jeito. E por que merda eu me preocupo, mais uma vez,
com Harry pensar que o estou seguindo?
Como caralho eu saberia que o encontraria em uma balada na Barra
da Tijuca? E numa noite de quarta-feira?
Tento não deixar o fogo me consumir, querendo sair, querendo
queimar o mundo inteiro. Eu tento, luto contra o ciúme, contra a raiva,
contra a certeza de que ele já está seguindo em frente, e logo com essa vaca,
ridícula e... linda pra caramba.
Ela está com os cabelos soltos, usando uma saia preta curta em
malha, bem parecida com a minha. Seu top é vermelho e deixa o umbigo
com um piercing prateado à mostra.
Penso em ir embora, mas... quer saber? Reagir, ou viver, não
significa ser a Veneno. Eu já demonstrei que o amo seguindo a minha vida,
cumprindo o que me pediu: seguir com um trabalho honesto e buscar a
minha cura. Agora, eu posso continuar com a minha vida, e não me anular
inteiramente. E quando eu me sento na porra do sofá, apenas tento ser uma
adulta normal, afinal, quem me convidou para esta bosta de camarote foi o
Carlos. Eu não vou atrapalhar o Daniel de conhecê-lo ao ter uma crise e ir
embora. Tenho vinte e um anos – e passei o meu aniversário no meu
apartamento chorando embaixo das cobertas, só não foi mais deprimente
porque Ana e as garotas levaram bolo para mim, e Daniel, uma garrafa de
vodca –, eu não sou nenhuma adolescente para fazer uma cena sem ter nada
com o Harry.
Vou ficar por alguns minutos, depois, disfarçar e voltar lá para
baixo. Já que ele está seguindo em frente, acho que posso me permitir
conhecer alguém e conversar. Não sair transando, mas conhecer, trocar
telefone... Fazer de um jeito normal.
Eu preciso disso!
Talvez, o destino me jogar neste camarote com o Harry e a Aurora
seja apenas um chute no meu rabo para que eu siga com a minha vida.
Acabou, Branca!
Você perdeu o game!
Está na hora de entender isso!
— Oi, gente! — Carlos diz, gritando por cima do som. — Chamei
esses dois para curtirem com a gente. Esse é o Daniel... — Ele aponta para
o meu irmão, e o rosto horrorizado do Harry, tão lívido, quase me faz sorrir.
É divertido ele parecer com medo de me ver. — E a irmã dele, que eu ainda
não sei o nome.
Daniel gesticula para o Harry, dando oi em Libras, mas me olhando
com um pouquinho de medo, sem saber se vou sair correndo.
— Oi, Harry! — Dou um sorrisinho fraco. — E... oi, Aurora.
Cruzo as pernas, tentando não me apegar ao jeito como ele está me
olhando. Tem muitas coisas rondando a face dele. Curiosidade, receio, e
algo mais quente quando percorre o meu corpo.
Aurora abre um sorriso tão grande que me irrita. E eu não deveria
sentir raiva dela nessa coisa toda. Faz parecer que estou rivalizando com ela
à toa, mas, porra, eu sinto ciúme. Muito! Porque ela é linda! Não que eu não
seja, eu também sou. A questão é que ela é atraente e os dois estão solteiros.
E... talvez estejam ficando. Eles se conhecem há muito tempo.
Droga! Meus olhos marejam com esses pensamentos, mas eu me
distraio a tempo de não chorar quando Aurora se abaixa um pouco na minha
frente, puxando-me para um abraço.
Seu cheiro é muito doce, e seu cabelo roçando na minha cara
quando se afasta um pouquinho desperta a safada adormecida dentro de
mim, o que não é, nem de longe, algo bom.
É como despertar a droga de um monstro marinho adormecido, que
vai querer comê-la se continuar segurando a porra do meu cabelo como está
fazendo, inclinando-se para sussurrar no meu ouvido:
— Que saudade! — Ela parece animada, como se fôssemos amigas
de longa data que acabaram de se esbarrar. E, droga, eu sou mulher, percebo
sua seduçãozinha barata quando roça a droga dos peitos na minha cara
como se fosse um acidente. — Eu não sabia que viria — diz, olhando-me
por tempo demais nos olhos ao se afastar completamente. — Harry disse
que estão separados.
— Estamos mesmo — falo alto quando ela se senta ao meu lado.
Tento, a todo o instante, fugir do rosto dele, do corpo perfeito de Harry. Ele
está completamente relaxado no assento, trajando uma blusa de mangas
preta, uma calça apertada da mesma cor, e usando uma touca que combina
com tudo. Eu sinto tanta, tanta saudade que até a raiva e o ciúme acabam
ficando soterrados agora. — Eu não sabia que estariam aqui.
— Oi, Branca! — Harry se inclina para me estender a mão,
decidindo finalmente falar alguma coisa. Por meio minuto, eu fico
encarando seus dedos, querendo tocá-los, mas também com receio de fazer
isso. Porém, eu os aperto mesmo assim, sentindo a textura de sua pele
envolvendo a minha. E mesmo que sua mão emane tanto calor, é um gesto
frio, como se fôssemos dois estranhos. — Obrigado pelo que tem feito pelo
meu avô.
Vejo Daniel relaxando ao se sentar do outro lado do sofá, ao lado de
Carlos, e começando um papo ao pé do ouvido, e só então encaro Harry.
Então, ele sabe?
Eu fiz de tudo para não esbarrar com Harry lá, indo somente nos
horários em que estivesse no Ravina, para dar espaço a ele, para respeitá-lo.
Será que Isaque contou? Ele prometeu que não diria nada.
— Como você sabe? — pergunto.
— Eu te vi lá hoje cedo.
Eu nem tenho tempo de absorver suas palavras, pois aceito um copo
de cerveja que Aurora enfia na minha mão. Tem um balde lotado de latas na
mesinha no meio dos sofás, que formam um “u” ao redor dela.
Ela nem parece com ciúme dele. Se estão ficando, o natural não
seria ela ter ciúme de mim? Eu não escondo que voltaria se ele estalasse os
dedos. E, na minha cara, sei que tem um letreiro vibrante dizendo que
continuo apaixonada quando o encaro.
Aurora não está nem aí, mas quando ela se levanta para se sentar ao
lado dele, quando apoia a mão em sua coxa por cima da calça, meu sangue
ferve e eu sinto vontade de apertar o pescoço bonito dela. Eu não quero me
sentir assim, mas é incontrolável, e quando vejo um sorriso torto e
preguiçoso na boca dele enquanto certamente nota as faíscas nos meus
olhos, mais puta eu fico.
— De nada! — É um custo dizer. — Aurora... — Eu tento, de
coração, não deixar meu lado impulsiva e enciumada dominar. E sei que
não é a Veneno aqui agora, sou apenas eu, infantil e rejeitada, querendo
devolver a porra do ciúme para ele. — Conte da sua vida — grito por cima
do som, dando algumas bebericadas na cerveja. — Estudando?
Namorando? Ficando com alguém?
Ela fica animada, com o rosto de feições doces se expandindo em
um sorrisão. Mas é o sorriso de Harry, tão branco e vitorioso, que me irrita.
Preciso disfarçar e ir embora, deixar os dois fazerem o que
quiserem, como bons solteiros que são. Mas ele parece estar me desafiando,
gostando de me ver quase roxa de ciúme. Será um teste? Será que Harry
quer ver se eu posso agir como uma mulher normal? Mas quais partes são
minhas e quais eram da minha outra personalidade, a vingativa? Acho que
esse ciúme doentio é meu. Que vai me acompanhar para o túmulo, porque
quando o Harry se estica todo, quando lambe a porra da boca e encara os
meus peitos, mas não tira a maldita mão da Aurora da coxa dele, eu sinto
vontade de tacar fogo no mundo e... de sentar nele! De sentar nela! Nos
dois!
— Ah, eu estava saindo com uma menina, mas ela foi viajar e ficou
com outra garota. — Dá para sentir um tom magoado predominando em sua
voz. — Aí, vim pra cá e tentei pegar o Harry. Mas até agora ele não quis.
— Interessante... — É o que digo para não gritar um “você é sem
noção ou só se faz?”.
Mas quão louca eu seria de fizesse isso, quando não tenho nada com
ele?
— E você, Branca? — Harry pergunta, tomando a cerveja da mão de
Aurora e bebendo, depois de ter terminado a anterior em poucos goles. —
Como vai? Estudando, trabalhando...? Saindo com alguém?
Meus olhos faíscam ao vê-lo tomando a cerveja do copo dela.
E por breves minutos tenho relâmpagos mentais de tudo o que
aconteceu, do nosso término, dos últimos meses lutando para esquecê-lo.
Como pode, em poucos minutos, todo o meu sentimento se acender
com tudo?
E por que ele se importa se eu fiquei com alguém? Se está vindo a
baladas, deve estar pegando outras há um tempo. E... porra... ele veio com a
Aurora, que acaba de dizer que tentou ficar com ele na maior cara de pau.
— Consegui um emprego em uma agência de Design e tenho
trabalhado bastante. Ainda não estou estudando, mas pretendo fazer
faculdade no ano que vem. — Os olhos dele brilham com a resposta, e, por
tempo demais, a gente se encara. A maldita mão pequena e de esmalte rosa
ainda desliza pela perna de Harry, e não há menção alguma da parte dele de
tirá-la de lá. — Mas desde que terminamos, eu não peguei ninguém. Acho
que vou tirar a minha teia com a Aurora, se ela quiser. Soube que tem um
dark room dos bons aqui, privativo. Tem até uma cama!
Eu tentei impedir essa merda de escapar pela minha boca, mas,
escorregadia que só, a frase deslizou pelos meus lábios. Harry trinca o
maxilar na hora, e, se pudessem, seus olhos me fatiariam em pedaços, de
tão cortantes.
Agora eu sei que não é teste porra nenhuma. Ele está me
provocando.
Harry não me quer de volta, mas quer me irritar, quer me enciumar,
porque agora está alisando a mão de Aurora.
E seja lá que merda está rolando na cabeça da loira, ela está
mordendo os lábios inferiores e olhando para nós dois com o mesmo
interesse.
— Ela não pode ficar contigo! — Harry diz, puxando Aurora para
cima e a colocando em seu colo. Meu coração não aperta, ele quase
implode, doendo de tanto que encolhe. Dói ver isso. Mas Harry está me
irritando, muito, de propósito. Eu sei que já deveria ter corrido desta merda,
que vou me machucar por muitos dias me lembrando desta cena, de ele a
puxando para deitar de costas contra o seu peito, da mão dele agora se
arrastando pela coxa dela. — Porque vai ficar comigo!
E, neste momento, eu me levanto com tudo.
Realmente, vou correr daqui.
Eu vou, finalmente, deletar esse homem do meu sistema, apagá-lo
de vez!
— Espera! — grita Aurora, quando estou ignorando o olhar chocado
do meu irmão, que, pela boca vermelha, já estava se atracando com o
Carlos. Eu a ignoro, estou prestes a sair do nosso box de sofás, quando ela,
já de pé, vira-me pelos ombros. Eu a trucido com os olhos, com raiva dela,
com raiva dele. Mas Aurora é gentil, segura minha mão e me puxa até o
Harry. — Eu não sou boba! Entendi que tem algo mal resolvido entre vocês.
E não vou ficar nem com um, nem com o outro. Eu quero os dois!
— Não! — Harry fala, levantando-se, puto da vida enquanto me
lança um olhar nublado. — Nem fodendo!
Ele nem parece o cara que beijou a minha franja da última vez que
me viu.
E embora, nem de longe, eu faria uma vingança com ele novamente,
ainda tenho fogo nas veias, ainda quero pegar Aurora antes dele, já que
vamos terminar mesmo e ele vai esfregar a sua amiga de infância na minha
cara.
— Se você não quiser, eu quero! — aviso, e ignorando sua cara de
ódio, seguro a nuca de Aurora, inclino-me e a beijo com tudo.
E, porra, como é bom!
É bom agarrar seu cabelo e puxar com força enquanto massacro seus
lábios pequenos. Desconto a raiva enfiando a mão embaixo de sua saia e
apertando sua bunda, cravando as unhas em sua carne macia. Ela geme na
minha boca, rodando a língua com gosto de cerveja e bala contra a minha.
Eu nem deveria estar fazendo isso, mas estou tão molhada que tudo
o que quero agora é gozar na boca dela, depois riscar os dois da minha vida
para sempre. E no meio do beijo, sentindo suas mãos cheias de anéis se
enfiando embaixo da minha saia, sinto um puxão no meu cabelo.
E não é leve.
Tão pesado que dói.
É o Harry me tirando da boca da Aurora na base da força. Eu gemo,
e, cacete, isso me deixa tão, mas tão enxarcada. Ele está atrás de mim,
puxando-me pelo cabelo contra o seu peito. Em um segundo, estou ao lado
dele, e me irritando, quase me fazendo explodir feito um vulcão, Harry me
encara por um bom tempo, como se me avisasse que eu pedi por isso, então,
mergulha com tudo na boca da loira.
Eu sei que nem tenho que estar brava por vê-la espalmando as mãos
no peito dele, mas, com raiva, eu me meto no meio dos dois e a roubo de
novo para mim. Desta vez, porém, é bem pior. Com mais ciúmes, aperto
seus seios por cima do top, então mordo sua boca entre o beijo, e enquanto
meus dentes se afundam em sua carne, Aurora choraminga. Isso quase
alimenta um demônio em mim. Quando eu me afasto, ela está vermelha.
Penso que vai ficar brava por eu tê-la mordido, mas tem algo vermelho e
intenso nos olhos dela, olhando para nós dois, cheio de fome.
E quando meus olhos vão para o lado, para o meu irmão tapando a
boca enquanto assiste à cena, pela primeira vez sinto vergonha dele.
— Escuta bem... — Harry me gruda em seu peito, deslizando a mão
pela minha barriga com força. Isso faz o mundo sumir, o toque dele, o
cheiro dele... Droga! Eu até esqueço o meu nome, onde estamos, quem sou.
Nada mais existe. Só a gente. Só esse homem que me queima sempre que
toca em mim. — Foi você que começou esse jogo de irritar beijando a
Aurora, agora chega dessa porra!
— Eu? — quase grito, mas ainda estou mole com essa proximidade.
— Você foi quem abriu as portas do inferno tocando nela, agora queime,
porque vamos para a porra do dark room! — aviso, e tento sair do seu
abraço possessivo para ir até aquela safada de novo e a beijar inteira.
— Não vai transar com ela! — Harry rosna, apertando-me mais. —
Eu gosto de trepar com duas mulheres, mas, porra... não com você junto.
Ele só pode estar querendo me irritar ao extremo para falar algo
assim.
— Então, pode ser você, ela e mais uma, desde que não seja eu? —
Engulo em seco para não gritar, e com um tom ameno, continuo: — A
diversão fica só contigo?
Harry revira os olhos, mas não corrige a frase, o que faz minha pele
inteira coçar de ódio.
— Se tivermos mesmo que ir para o dark room com ela, sugiro que
a foda como se fosse morrer amanhã, porque é a última boceta que tu vai
chupar na tua vida, porra!
Eu não consigo processar o que estou ouvindo. Em um segundo,
estou vendo a Aurora me encarando como se quisesse me dar até que eu a
desmonte inteira, no outro, Harry está me virando de frente. Ele segura
minha cintura por cima da saia, então enfia a outra mão na minha nuca.
Nossos olhares se prendem um no outro, e uma era se esvai em um
segundo, com tanta coisa que é dita silenciosamente neste momento. Tem
sentimento e tesão nos olhos dele. Amor e raiva. E quando ele me beija, eu
chuto o balde. Eu choro por cima e também por baixo, com nossas línguas
se enroscando com força. É tanta intensidade que sinto o calor começando
dos pés e chegando até a minha cabeça. Eu ardo, lutando para acompanhar
o ritmo rápido de sua língua, os seus rosnados ensandecidos contra mim.
Harry quase me quebra, curvando-me com sua possessividade, quase
arrancando meu cabelo fora ao puxá-lo.
Seguro-me em seus braços, uma fina lágrima escorrendo por minha
bochecha, porque mesmo que seja um beijo cheio de raiva, eu senti falta
disso. De senti-lo, de prová-lo.
Harry me beija assim por tanto tempo que eu preciso afastá-lo para
conseguir respirar, mas quando o faço, ele segura meu rosto com as duas
mãos. É como se estivéssemos em outra dimensão, porque nenhum som
importa ou ecoa aqui, eu só ouço a sua voz...
— Eu só vou participar dessa merda porque estou vendo o quanto
você quer. Mas é a primeira e última vez, Branca!
Aurora, ouvindo o consentimento duvidoso na voz dele, enfia-se
entre nós, e brincando com o perigo ao irritar o Harry, aperta meu quadril e
me beija de novo. Eu a beijo de olho aberto, com um certo medinho do ódio
no olhar dele, que quase nos atravessa, de tanta fúria. E quando eu fecho os
olhos, sinto mais tesão ainda. Aurora é puxada, Harry a arranca de mim
pelos cabelos. E quando ela geme, faz cara de safada, rindo para mim.
Tenho vontade de bater na sua cara. Assim que Harry a solta, eu aceito a
mão dessa cretina, que me irrita e ao mesmo tempo me excita.
Sei que preciso disso, que além de querer o Harry, eu quero gozar na
boca dela enquanto bato na sua cara! Por um segundo, ainda penso em
desistir, mas meu lado safado está tão perto de se satisfazer, depois de tanto
tempo sem sexo algum, que eu não consigo.
Eu me recuso a olhar na direção do Daniel. Não é porque ele sabe de
tudo o que faço que eu vou gostar dele vendo alguma putaria minha. E eu
não sei o que a minha psicóloga vai achar disso tudo, mas o Harry é a
minha cura, sempre foi. E se for com ele, acho que me sinto mais segura.
Acho que depois deste episódio, não tem risco de recaída. A menos que,
quando terminar, ele me arrase em muitas línguas diferentes.
Dobramos o corredor nos fundos do camarote, onde uma placa em
neon vermelho indica o dark room. Um funcionário passa o valor do quarto
no cartão de consumo do Harry, e quando entramos no cômodo pequeno e
com iluminação vermelha, estou ofegante.
Aurora, sem uma sombra de timidez, já fica pelada, chutando o salto
plataforma sem nem ver onde vai parar. Ela faz isso tão rápido que Harry e
eu mal temos tempo de nos movimentar pelo quarto.
Eu olho para o seu corpo gostoso com a boca salivando, pensando
que nem sonhei que a minha noite terminaria assim. E embora Aurora seja a
materialização do meu ciúme andando pela Terra, ainda sou grata por ela
me dar uma noite com o Harry, e ele com certeza vai me foder com muita
raiva. Eu gosto disso, quando ele me pune, e fode e me faz gozar, tudo ao
mesmo tempo.
Então, nada melhor para demonstrar a minha gratidão do que fazer
Aurora gozar chorando neste quarto. Pensando nisso, deixo-a me beijar,
enquanto desço dos meus próprios saltos.
Estou suando, com o coração na velocidade perfeita para, em breve,
precisar de um desfibrilador. Ela começa tirando o meu sutiã, e o ar gelado
do ambiente endurece ainda mais os meus mamilos.
— Que seios lindos! — sussurra contra os meus lábios.
Aurora passa as mãos por cima do tule transparente, e tocando os
meus peitos, ela me deixa ainda mais quente ao acabar com a distância
entre nós. Enquanto ela tateia as mãos pelas minhas costas, até encontrar o
zíper da minha blusa, Harry me vira com uma força absurda para ele e me
fuzila totalmente com seu olhar desvairado. É tesão e raiva, tudo junto, uma
receita de gozo perfeito. Ele pega uma das minhas mãos e a leva ao seu pau,
e sem ter coragem de desviar do brilho assustador do seu olhar, abro o zíper
de sua calça.
Eu não sei se me excito mais com essas mãos pelas minhas costas,
tirando a minha blusa, com esse cheiro de mulher ao meu redor, ou com a
vontade que estou de sentar nele e matar a minha saudade.
Quando estou prestes a pegar seu pau gostoso, Aurora me vira para
ela. Eu já estou sem blusa, apenas de saia, com a boca dela sugando o meu
peito. Aliso seu cabelo, e com o tesão me consumindo, resolvo chutar
minha timidez para longe e tomar as rédeas, deixar minha fome falar mais
alto.
Enrolo seu cabelo na minha mão e a faço ficar de joelhos. Só é
preciso um movimento para afastar a minha calcinha e puxar sua boca até a
minha boceta.
Quero que ela me chupe, mas deixando claro que gosta muito do
que estou ofertando a ela, a garota me cheira e chega a suspirar, fazendo-me
fechar os olhos e gemer antes mesmo de ela colocar a língua na minha
boceta. E quando ela o faz... porra... é muito bom. Preciso fechar os olhos
para lidar com isto, com o quanto minhas pernas bambeiam com o jeito
certo em que ela oscila entre sugar meu clitóris e apenas passar a língua.
Quando eu abro os olhos, precisando suprimir um gemido para não
gritar, olhando de cima essa porra de mulher iluminada pela luz vermelha
me sugando inteira, engolindo todo e qualquer resquício de umidade da
minha boceta antes de voltar ao meu clitóris, eu me assusto ao ver Harry
subindo minha saia e a enrolando na barriga.
Aqui dentro não tem resquícios do som de lá de fora, e todos os
nossos sussurros e gemidos parecem até amplificados. Eu não sei de onde
Harry tira força, mas consegue rasgar minha calcinha de renda preta
delicada com facilidade, deixando o caminho livre para a sua amiga acabar
comigo.
— Isto é gostoso? — sussurra em meu pescoço, levando as mãos
para os meus seios. Eu me contorço, roçando minhas costas contra o seu
peito, com uma mão em sua coxa e a outra no cabelo de Aurora. Mas eu
grito quando ele aperta os bicos com força. — Porque eu tô puto de raiva!
— E cada palavra rosnada dele me faz chegar bem à beiradinha do abismo,
quase caindo e gozando com tudo. — O que me conforta aqui é saber que tu
vai sentir o mesmo que eu, porque esta é a tua despedida de solteira, mas
também é a minha!
Eu quero pensar no peso de sua frase, mas sinto um espasmo
absurdo no meu clitóris, que me arranca um gemido alto. Não dizendo mais
nada, Harry sai de trás de mim e puxa Aurora do meio das minhas pernas.
Mas ele a puxa para levar a boca dela direto ao seu pau. Então, noto sua
nudez, sua dureza, quando ela nem perde tempo e geme ao engolir o pau de
Harry. A porra do pau que deveria ser só meu.
E não importa o quanto estou atordoada com as suas palavras e o
que sugerem, ou com o quanto este momento está sendo prazeroso, Harry
também me queima. Isso me deixa doida de raiva, e sem conseguir me
conter, eu me ajoelho diante dele e a arranco com força do pau que deveria
ser apenas meu. Aurora geme, e em vez de se assustar, ri de mim. Isso me
deixa brava. Seguro seu cabelo e bato na sua cara. E não é de leve, mas nem
a faz sair do lugar. E em vez de segurar a bochecha, de ficar brava, ela
morde o lábio inferior, só para depois me beijar. E, merda, isso me desarma.
É o gosto da minha boceta e o gosto do pau de Harry dançando na língua
dela, que eu sugo com vontade enquanto belisco os peitos dela do jeito que
o Harry fez nos meus.
— Não fique com ciúmes, linda — sussurra em meu ouvido. —
Estou mais animada em ser chupada por você. Ele, eu provei no passado.
Fico vermelha de raiva, e ela ri mais largo, descendo beijos por meu
maxilar, depois indo mais para baixo, chegando até um dos meus seios e o
enfiando com tudo na boca.
Aurora masturba o pau de Harry com uma mão e, com a outra,
massageia a minha boceta. E quando eu olho para o Harry, ele ainda está
com raiva, mas agora fecha os olhos e geme baixo. Irritada por ver Aurora
dando prazer a ele, eu a empurro de leve para longe de mim, depois fico de
frente para ele. Agora, Harry abre os olhos, cheio de intensidade ao segurar
meu cabelo, parecendo ansioso para que eu faça o que planejo.
Poucos segundos se desenrolam até que eu esteja provando o seu
sabor, o gosto perfeito que eu tanto senti saudade, a sua cabeça enorme
deixando seu gosto salgado sobre a minha língua. É impossível não sentir
tantas coisas agora, sentindo-o vibrar na minha boca. Eu suspiro, chupo
com tanta vontade que pareço morta de fome.
Sendo irritante, e excitante, Aurora se enfia ao meu lado e começa a
chupar o saco dele. Harry olha para baixo, perfurando a nós duas com seus
olhos lindos, brilhando, parecendo um deus sombrio iluminado pela cor do
inferno. Eu o engulo até engasgar, até babar muito, e olhando para cima,
vejo Harry quase perdendo o equilíbrio de tesão, puxando nossos cabelos.
Seu gosto salgado desce pela minha garganta, e quando eu o puxo para fora,
uma onda de baba escorre da minha boca, pinga no pau dele e goteja pelos
meus seios.
Eu não sou gentil quando agarro a garota pelo cabelo e a puxo
contra o meu queixo.
— Agora, lambe essa baba e me deixe bem seca! — ordeno no
ouvido dela.
E, obediente, ela não decepciona. Lambe tudo, gemendo enquanto
faz isso. Aurora me chupa e engole tudo, do meu queixo e dos meus seios.
E quando mama um a um, massageia a minha boceta e me olha por cima
dos olhos.
— Ai... sua filha da puta! — gemo, sendo obrigada a afastar seus
dedos para não gozar antes da hora.
E quando ela se afasta, está rindo, sabendo que é gostosa, que está
me deixando doida.
Então, tudo enlouquece. Em um instante, ela lambia o meu peito, no
outro, estou deitada em uma cama redonda de couro vermelho, com o
quadril meio de lado e as costas contra o colchão. Harry está atrás de mim,
enfiando o pau com raiva dentro da minha boceta. Já Aurora, está montada
na minha cara, com sua boceta pequena e doce pingando na minha boca.
É tudo tão doido que Harry nem liga para camisinha, apenas me
fode, maltratando meu peito, enquanto dou o meu melhor com a língua na
boceta de sua amiga.
— Branca... vou gozar... — ela geme. E, nossa, gemidos são meu
fraco.
Seguro sua bunda e aperto, gemendo pelo impacto de ser fodida
com tanta pressão, sentindo Harry me alargando, fodendo o mais fundo que
pode, enquanto eu a chupo e sugo, enfiando a língua no meio da carne
molhada e apertada.
Aurora rebola na minha cara.
Harry me massacra com o pau.
E quando ela goza, gemendo bem fundo, eu quase me derramo na
pica dele, segurando-me muito, porque quero gozar com os dois me
fodendo juntos. Ela rebola, grita sem parar, e goza tanto que escorre pelo
meu queixo e quase tatua este momento na minha mente. É gostoso pra
caramba.
Quando Aurora termina, fraca, sai de cima de mim. E sem eu nem
precisar pedir, lambe tudo o que derrubou na minha cara, e finaliza me
beijando de um jeito mole e tão carinhoso que, se eu não fosse tão
possessiva, até gostaria de ficar com ela para nós. Mas sendo a ariana que
sou, ciumenta pra caralho, isso daria merda em longo prazo.
— Agora vem, Branca! Monta no meu pau, porque pela primeira
vez eu vou encher a sua boceta de porra! — Harry me puxa para ficar
sentada em cima dele. — E você, Aurora, vai beber o que escorrer da
boceta dela! — ordena. — Quica com vontade, Branquinha!
E ouvi-lo me chamar desse jeito já é estimulo suficiente. Eu planto
os pés na cama e agacho de costas em cima dele, sentando devagar. É do
caralho ver a Aurora ficar de quatro, lamber a minha boceta, por vezes
escorregando e lambendo a extensão do pau dele, enquanto eu sento nele,
sentindo cada veia tremeluzindo nesse pau, sentindo-o me preencher toda.
Eu sento devagar, porque quero sentir a língua dela, que observo se
movendo, junto ao seu olhar de tesão, capaz de me endoidecer. Mas Harry
fica impaciente e me dá um tapa tão forte na bunda que eu me pergunto se
não rasgou a pele.
— Harry?! — grito de dor.
— Senta forte, porra!
Eu não hesito mais, embora saiba que assim não vou gozar com os
dois, como queria. Quico com vontade em cima dele, com força, deixando
Aurora de lado e me concentrando em dar prazer a ele. Minhas vistas
embaçam de tanto tesão. Meus olhos se molham junto à minha boceta, e
quando eu me desmancho, gozo forte e chorando, sentindo minha boceta
apertando, latejando, e perco o equilíbrio, caindo de joelhos. Mas Harry não
tem pena, ele soca dentro de mim, forte, rápido, sem dó.
Meus olhos faíscam.
Meu coração dispara e parece querer escalar meu peito para sair na
boca.
E, então, eu sinto. É uma enxurrada quente me enchendo toda,
acompanhada de um gemido rouco.
Harry está gozando dentro de mim, pela primeira vez, socando forte
até me entregar sua última gota.
Ainda estou tremendo, suada, quase cega, quando ele me puxa
contra o seu peito enquanto tira o pau de mim. Ele abre as minhas pernas
em cima dele e, com um rugido, chama sua amiga:
— Agora, bebe tudo dela!
Estou fraca quando sinto a língua da Aurora, quando ela arranca e
limpa a porra dele de mim. Eu quero dizer que não é para limpar, mas é tão
bom quando ela vai subindo, quando chega ao meu clitóris e vai me
chupando mais, que eu amoleço. Mas Harry está bravo, talvez com ciúmes,
eu não sei. Agora, ele afasta o rosto de Aurora e me deita devagar ao seu
lado.
— Poxa, não vai deixar a Branca gozar pra mim? — Aurora
reclama.
Minha visão normaliza e eu vejo os olhos dela cintilando, parecendo
uma coisinha pidona, mas Harry está muito, muito puto. Eu conheço essa
cara dele, e ela também, por isso recua na cama quando ele se aproxima
dela e fala:
— Não! E nunca mais dê em cima da minha mulher! Essa foi a
primeira e a última vez!
“Esquente as coisas, estamos em fuga .
Vamos fazer amor esta noite.
Fazer as pazes, nos apaixonar, tentar.”
Dusk Till Dawn, ZAYN.

Estou tão puto que sinto que a minha cabeça vai explodir.
E, caralho, também estou com as bolas leves, como não ficavam há
um bom tempo. Soltei tanta porra dentro da Branca que a Aurora demorou
para conseguir sugar tudo.
Quando a Aurora chegou ao hospital, mais cedo, nós conversamos
um pouco sobre trivialidades, e depois eu fui para a casa do meu avô,
deixando a ela e o pai terem um tempo a sós com ele por lá, pois meu avô
disse que eu podia ir embora e voltar amanhã, afinal, seu amigo o faria
companhia esta noite.
Eu vim para esta merda de balada beber, porque precisava, porque
ver a Branca visitando o meu avô mais cedo, importando-se com ele,
acabou comigo. Eu afundei em saudade, lembrando-me do que vivemos.
Então, fiquei pensando se não estava na hora de ir atrás dela, encerrar a
distância e aceitar que eu a amo, que ninguém mais vai entrar no meu
coração.
E vim sozinho para cá, mas, por acaso, encontrei a Aurora e o
Carlos no bar. Ele é um carinha do condomínio, conhecido de longa data,
costumávamos sair para curtir quando éramos adolescentes. Carlos nos
chamou para o camarote, pois eu não comprei acesso a um. Pretendia ficar
pela pista mesmo, para o som alto da balada invadir a minha mente e
silenciar os pensamentos.
A Aurora queria me pegar de todo jeito, alisando o meu peito,
tentando sentar no meu colo... Mas eu estava resistindo, porque não queria
que ela confundisse as coisas, e quando eu falava em seu ouvido, por causa
do som alto, confessando que ainda gostava da Branca, que pretendia sair
do camarote e voltar para o bar, eu a vi. Pisquei, pensando que estava
doidão pelo cheiro do baseado da galera do camarote ao lado, vendo uma
miragem da Branca. Mas era real. E ela estava tão gostosa e perfeita...
Eu deveria ter ficado na minha, mas quis causar ciúmes nela quando
a notei ficando vermelha ao me ver conversando com a minha amiga,
nitidamente brava pela Aurora ser entrona e meter a mão na minha coxa. A
Branca fica fofa quando está brava, parece um cãozinho, tipo o Fofo[21], do
Hagrid. Eu só esqueci que ela é geniosa, que é tão ciumenta e possessiva
quanto eu quando se trata dela. E ver a diaba beijando a minha amiga foi
demais. Demais no sentindo mais doentio da palavra.
Eu senti raiva.
Ciúme.
E desespero.
Pensei: “Eu quero mesmo perdê-la? Saber que os beijos que
deveriam ser meus, os que tanto gosto e sinto falta, serão para outra
pessoa?”
O tormento foi tanto que a minha mente deu um nó ao ver a Branca
se enroscar com outra bem na minha cara. Mas eu pedi por isso, eu a
espetei, provoquei, sabendo que ela devolve desse jeito.
Então, não restou nada além de aceitar que eu a quero. Porra, eu
preciso dela, para mim, só para mim! E que... chega! Chega de distância,
chega de tempo para pensar. Eu já pensei o bastante!
Eu já a perdoei.
Já foi.
Estou contaminado.
Branca corre nas minhas veias, para nunca mais as deixar.
Agora, eu a quero, com fome, de verdade, para valer.
Por isso, eu me vesti com raiva, vendo minha amiga de infância com
cara de choro depois que eu lhe dei um fora quando tudo acabou. Mas a
Branca suavizou a situação, disse para a Aurora que ela era linda, que tinha
amado tudo, mas que nós dois precisávamos resolver algumas coisas. Por
fim, fazendo-me querer quebrar a balada inteira, Branca a beijou novamente
e fez carinho no rosto dela. Eu a puxei pelos cabelos e mordi sua boca, com
ódio, sussurrando um “chega, porra!”. Branca riu, vestiu-se rápido e me
seguiu para fora.
E mesmo com ciúmes, eu entendi que ela não queria que a garota se
sentisse usada, mas não liguei. Outras pessoas me considerariam um filho
da puta por isso, mas foi a Aurora que, vendo que as coisas entre mim e a
Branca não estavam bem resolvidas, disse que queria a nós dois. Ela
inflamou a porra toda, então, que lidasse com as minhas faíscas!
E desde a festa do meu avô, eu vi que ela estava a fim da Branca.
É óbvio que quando eu a puxei para o meu colo, foi apenas um blefe
para a Branca recuar na sua intenção de dar em cima da minha amiga, mas
tudo descaralhou[22] tão rápido que a única solução foi nos dar uma
despedida de solteiro caótica.
Agora, Branca me segue pela balada, e toda hora eu olho por cima
do ombro para ver se ela está mesmo atrás de mim.
A boate está bem mais cheia neste momento, e escura, com fumaça
artificial nublando o ambiente. Vendo uma rodinha de caras perto do balcão
de pagamento do consumo, próximo à saída, eu já a puxo para a minha
frente, para evitar sair no soco se alguém soltar piada para ela. Eu pago meu
cartão e o dela, depois seguimos para fora.
Eu não sei que porra primitiva é essa no meu peito, querendo marcar
território. É medo de perder? Ou apenas estou aceitando que não tem jeito,
que eu sou dela da mesma maneira desgraçada que ela é minha?
Parece ridículo esse medo todo de a perder por a ter visto beijando
outra, quando fui eu quem terminou tudo, quando ela sempre deixou claro
que me queria, tanto para mim quando para os outros. Ainda assim, eu só
vou ficar tranquilo quando conversarmos, quando definirmos as coisas e eu
ouvir da boca dela o que preciso.
Agora, o medo de Branca me fazer sofrer de novo está quase mudo,
quando a vontade de a ter, de me jogar com tudo nos meus sentimentos, é o
que sobrepõe qualquer barulho.
Eu não vim de moto, para evitar ter de deixá-la aqui e precisar voltar
para buscar amanhã. Por isso, pego um dos táxis no ponto aqui da frente.
Espero Branca entrar primeiro, na parte de trás, depois deslizo ao seu lado.
Ela parece se esquecer do cinto, e tudo o que preciso fazer, enquanto coloco
o meu, é encarar o plug ao lado dela de soslaio, então Branca já o coloca.
Passo o endereço da casa do meu avô ao motorista, e quando o carro
se movimenta, sinto o ar saindo com força pelo meu nariz.
Branca está me olhando, consigo ver pela visão periférica. E me
encara por tempo demais, mas eu não quero olhar para ela agora. Eu aceitei
aquela porra, dancei no ritmo da música daquela foda, mas ainda estou
puto. E não deixo de pensar que, por mais excitante que tenha sido e que eu
ame transar com duas mulheres, aquilo ali me irritou, e nem consegui dar o
meu melhor.
Demora cerca de vinte minutos para chegarmos ao condomínio do
meu avô, e o único momento em que Branca deixou de me encarar foi
quando mandou uma mensagem de áudio para o Dan avisando que estava
vindo para casa comigo.
Quando o táxi para diante da fonte em frente à mansão, um
segurança careca vistoria o carro enquanto descemos. Eu pago a corrida,
então o funcionário observa, bem sério, o veículo se afastar para sair da
propriedade.
Dou as costas à Branca e termino o trajeto, e quando entro em casa,
posso ouvir os saltos dela fazendo barulho contra o piso.
— Não vai falar comigo? — pergunta.
Eu paro no meio da sala, que está apagada. Respiro fundo antes de
me virar para ela. Um fio de luz entra pelas frestas das portas entreabertas
da varanda, iluminando de um jeito fraco e amarelado o rosto perfeito da
mulher que me dominou.
Ela entrou no meu corpo e me ganhou de dentro, como queria. E,
agora, o estrago já foi feito. Eu já vivo com o nome dela se multiplicando
pelas minhas células.
Dou um passo à frente, com o peito disparado, mas sei que a mais
nervosa aqui é ela. Branca engole em seco quando eu seguro o seu pulso e a
puxo comigo pela sala. Ela precisa andar rápido para me acompanhar, e,
quase correndo, subimos as escadarias até, por fim, chegarmos ao meu
quarto. Não tem conversa, porque eu só para quando estamos no meu
banheiro.
Então, eu respiro, solto sua mão, vou até o box do chuveiro e abro a
água morna. O barulho da água caindo esconde o estrondo que meu coração
está fazendo, quase berrando quando eu me viro para encará-la.
Quando eu a puxo para mim, Branca pisca, assustada, e fica pálida
quando, sem muita delicadeza, eu tiro a parte de cima de sua roupa, olhando
para os seus peitos durinhos. Fico com a boca inundando com esses
piercings nos mamilos me encarando, pedindo para eu chupar um a um.
Mas eu não faço isso. Na verdade, abaixo sua saia, e como já está sem a
calcinha, que eu rasguei na balada, mando que tire os saltos, e ela dá um
jeito de chutar os dois pelo chão.
Branca tem fogo nos olhos quando eu a puxo pelo pulso, e sem nem
ligar de tirar minha própria roupa, eu a enfio embaixo do chuveiro. Ela
pisca, não entendendo nada quando eu me viro de costas e pego um
sabonete líquido, quando o espalho nas minhas mãos e começo a esfregar
seu corpo.
Ela não faz ideia do quanto eu sinto urgência de a limpar, então,
quando começo a esfregar o lugar que mais me deixou puto por ter
presenciando alguém tocando, ela solta uma arfada. Se de susto ou tesão, é
difícil saber. Mas eu gosto de sentir meus dedos escorregando pelas dobras
de sua boceta.
— Eu vou te limpar! — aviso, olhando para baixo, para a mulher me
encarando por cima dos olhos, com gotas e mais gotas de água escorrendo
pelo seu corpo, deixando-me duro. Eu me molho também, mas não ligo. —
Você precisa entender que foi a última vez que o cheiro de outra pessoa, o
gosto de outra pessoa, ficou em você.
Branca não diz nada. Encurralada contra a parede, e eu a esfrego
inteira, o rosto, os lábios, os peitos, até descer para voltar a limpar melhor
sua boceta e o cu, então, sentir meu pau doendo de vez.
Depois de terminar, saio do box, deixando o chão do banheiro
encharcado, e na pia imensa de mármore, pego o frasco do meu enxaguante
bucal. Derramo um pouco na própria tampa e, já na sua frente, entrego a
ela.
— Limpe a boca!
Branca segura um sorriso, parecendo se divertir com a minha
atitude. Ela obedece, bochechando o líquido e, depois de um segundo,
afastando-se um pouco para cuspir no ralo. Eu posso ver a água do chuveiro
caindo e varrendo tudo. Meio sem paciência, eu já a puxo para a minha
frente novamente, tomando a tampinha de sua mão e a jogando longe, pelo
chão do banheiro.
E quando a percebo bem limpa, quando meu coração afrouxa um
pouco, porque aplaquei a necessidade urgente de tirar os resquícios de
Aurora do corpo da mulher que sempre deveria ter sido só minha, seguro
sua cintura e a puxo para mim.
Branca segura o tecido enxarcado da minha blusa e, por cima dos
olhos, encara-me com ansiedade.
Sem pressa, tracejo o dorso do indicador por essa cara de diaba dela,
tão doce e linda.
— Branquinha, Branquinha... — Ela amolece, fecha os olhos
quando ouve minhas palavras, a ponto de eu poder sentir suas pernas
fraquejando. Isso me faz querer tirar o pau e nos dar um segundo round de
sexo de reconciliação, um digno e só nosso. — O que você quer de mim?
Ela abre os olhos com tudo, encarando-me com vontade, e tem um
mundo de coisas, e sentimentos e promessas na cara dela. Levo a mão que
estava em seu rosto até os seus cabelos, vendo como são lindos, mesmo
molhados, matando a saudade de tocá-los.
— Eu quero você!
— Na balada, parecia que queria a Aurora... — provoco, já sentindo
o fogo começar a corroer minha pele, quase causando bolhas de
queimadura. — Dividir você foi excitante, mas não faz ideia do quanto foi
esmagador. — Deito minha testa na dela, sentindo-a respirar fundo, quase
engasgando com a própria respiração. Suas unhas estão enfiadas na minha
blusa, de tão nervosa que ela está. — Eu precisei te ver beijando outra
pessoa para entender que seus beijos deveriam ser apenas meus. — Agora,
deslizo meus lábios por cima dos dela, sentindo o peito doer. — Que
enlouqueço se viver uma vida onde te vejo sendo feliz longe de mim. — Eu
me afasto, para tatuar na mente o brilho em seus olhos, feito de lágrimas,
esperança e muita paixão. — Porque essas são as coisas que me
atormentam, que cantam na porra da minha cabeça que eram para nós dois.
Que você é perfeita pra mim!
Dou um meio sorriso, observando-a mordiscar o lábio inferior, sem
deixar, nem por um minuto, de me encarar. Eu rompo qualquer distância e a
beijo. É um beijo leve, delicado, mesmo que eu também queira ser mais
pesado, ser doidão e foder Branca aqui, contra essa parede.
Agora, chegou a hora de deixar tudo sair. De gritar o que estou
sentindo e definir de vez o que somos.
Não tem volta para o que sentimos.
Acho que desde que os nossos destinos se encontraram, da pior
maneira possível, jamais teve. E como um cara sensível que acredita em
destino, eu acho que ele brincou com a gente, que quis que fosse assim. E
agora, fodido demais para resistir a essa mulher, eu falo tudo o que sinto:
— Todo mundo diz que “a diferença entre o veneno e o remédio é a
dose”[23]. E quando descobri quem você era e o que tinha feito, eu quase
morri com a quantidade alta e tóxica que injetou nas minhas veias. — Os
olhos de Branca se apagam, ficam acinzentados, e posso ver algumas
lágrimas cintilando e se amontoando em seus cílios. Um “sinto muito”
começa a escapar pela boca dela, mas eu coloco meu indicador em cima dos
lábios gelados. — Mas consigo ver que o mesmo veneno que você me
servia, você também bebia. Que se matava aos poucos, sem enxergar outro
caminho. — Limpo a lágrima que escorre por sua bochecha, tentando se
camuflar com a água do chuveiro. — Você e eu aprendemos algo que
vamos levar para sempre: a vingança destrói quem a cobiça! — Ela assente,
fechando os olhos e respirando pela boca. — E quase, quase mesmo,
perdemos a chance de entender que a nossa maior tragédia também nos
colocou na vida um do outro. — Beijo sua bochecha, a infinidade de
lágrimas que ela derrama. E fico triste de a ver tremendo assim, mas tenho
que falar sobre isso antes de chegar ao que preciso, e com a minha alma,
dizer a ela: — Agora, eu te vejo como um remédio, Branca. Você, nesses
três meses, se curando sozinha, lutando por você, me mostrou que pode e
sabe curar. — Eu a puxo para um abraço apertado, sentindo a porra das
lágrimas se juntando no meu rosto e embargando a minha garganta. — Você
me deu suas doses mais altas pensando que eu merecia, mas, agora, você
também é a única substância capaz de me limpar, de refazer meu coração. E
eu tentei apagar meus sentimentos, mas já te amo tanto que não consigo
mais acreditar que serei feliz se não nos der outra chance. — Puxo seu rosto
para longe do meu peito, então seguro suas bochechas. — Eu quero todas as
coisas além do seu veneno, e prometo te dar as minhas coisas boas, se você
quiser. Então, porra, bora ser o remédio um do outro?
— Harry! — Ela dá um jeito de montar em cima de mim, enlaça as
pernas no meu quadril e me beija. Não é de língua, é uma sequência de
beijos curtos e estalados pela minha cara inteira. Estou fraco, abalado pelo
momento, mas ainda consigo sorrir enquanto ela se afasta para secar as
minhas lágrimas. — A dose que servi a mim mesma foi infinitamente mais
alta, mas foi a que te dei que mais me pune. — Ela está falando rápido, toda
emocionada. — Eu me matei todos os dias querendo te ferir pelo que
pensava que você havia feito, e quando descobri sua inocência, quase
consegui morrer de vez. — Branca segura o meu rosto, e quando me perco
em seus olhos, eu me pergunto como resisti a isso por tanto tempo. Eu
posso me viciar em olhar para ela, viver me alimentando desse rosto lindo
para sempre. — Se alguém aqui é cura, é você! Foi por você que eu aprendi
que também tenho valor, que posso lutar para cicatrizar as minhas feridas,
que posso gostar de estar viva. O único remédio que eu conheço tem nome:
Harry! Eu te amo, tanto, tanto que muitas vezes me pego pensando quando
foi que comecei a te amar assim.
Eu a prenso na parede, então aliso sua franja de princesa, e quando
Branca ri, quando uma covinha se afunda em sua bochecha, é o que ela de
fato parece.
— E quando foi?
— Eu não sei... — Ela rola os olhos de um lado para o outro,
pensando. — Talvez... quando não se afastou ao saber que eu era viciada
em sexo, quando me tratou como linda, quando prometeu me ajudar com a
compulsão. Ou a cada vez que você riu. — Ela apoia as mãos na minha
nuca. — A cada piada que fez. — Branca me beija na boca, e eu não recuo,
apenas começo a mexer minha língua contra a dela, com ela suspirando
entre os meus lábios. — A cada beijo que me deu.
Coloco minha testa sobre a sua franja, sentindo meu peito fervendo
e ao mesmo tempo... leve, como se um peso absurdo tivesse saído de cima
dele.
Segurando sua cintura, eu me preparo para definir ainda mais as
coisas:
— Quero que a gente se cure junto todos os dias. Quero deixar isso
tudo pra trás. — A esperança explode como fogos de artifício nos olhões de
Branca, que bate os cílios grandes sem parar. — Eu serei o seu remédio pra
sempre, se você deixar. Vou te dar uma cerimônia de casamento, onde vai
usar seu vestido de mangas bufantes, com a saia encorpada, brilhando como
as estrelas, se você quiser.
— Você se lembra do vestido! — O queixo dela treme.
— Nunca esqueci! Eu serei seu príncipe, Branca. Então, você quer
ser a minha princesa?
Porra! Acho que isso soou diferente para ela.
— Está me pedindo em casamento? — Branca quase grita, com um
olhão arregalado.
— Calma aí, Branquinha! — Eu rio.
— Não tem graça! — E tomo um tapinha no ombro quando ela
percebe que não era de casamento que eu estava falando.
Afastando-me dela, eu a pouso no chão, então tiro o cordão do meu
pescoço. Tento me concentrar em pegar o anel de compromisso dele, mas
também quero ver o olhar de fascínio dela para a joia. Eu recoloco meu
cordão antes de pegar a sua mão.
Meus sentimentos se embaralham, ficam ainda mais fortes quando
eu vejo o primeiro anel que dei a ela em seu anelar esquerdo.
— Nunca o tirou?
— Nunca! — Ela se perde em meu rosto, tão apaixonada que nem o
mais cético dos homens duvidaria disso. — Eu amo este anel.
— Então, este aqui é para você ser minha namorada. — Eu o deslizo
por seu anelar, para ficar junto ao primeiro, o que lhe dei pelo noivado
falso. — No futuro, vou te dar um de noivado, mas não sei se nesse dedo
vai caber os três juntos.
— Eu faço caber!
E neste instante, meu lado quinta série chega com tudo, eu abro o
maior sorrisão.
— Faz mesmo?
— Posso te mostrar que pode caber o que você quiser!
Porra! Eu esquento, adorando ver Branca lambendo a boca, já
planejando receber essa língua no meu pau a noite inteira.
— Então, Branquinha, você quer ser minha namorada?
— Mais do que tudo no mundo, Harry!
Eu tiro minha camisa, vendo-a me encarar com uma fome absurda, e
quando desço a parte de baixo de uma só vez, com o pau feito uma tora, de
tão duro, sorrindo para ela, eu digo:
— Agora sim eu vou te dar uma foda de reconciliação decente! Só
nós dois!
“Eles dizem que o mundo foi feito para dois.
Só vale a pena viver se alguém está amando você.
E, querido, agora você é amado.”
Video Games, Lana Del Rey.

Já faz um ano que Harry e eu estamos juntos.


Um ano que eu durmo agarrada a ele todas as noites, sendo chamada
de amor, princesa ou Branquinha.
Eu pensava que, com o tanto que já o amava, seria impossível sentir
meus sentimentos aumentarem, mas eles só crescem, a cada dia, tornando-
se mais fortes.
Fui pedida em noivado alguns meses depois que nos tornamos
namorados. Isaque ainda estava internado, porque ia e voltava do hospital,
tendo melhoras e pioras, uma atrás da outra. Harry enfeitou o quarto do avô
com balões vermelhos em formato de coração, em uma das minhas idas
para ver o Isaque, e, lá, ele me pediu em casamento de joelhos. Foi tão
lindo! Daquela vez, não foi anel de compromisso, mas uma aliança de prata,
combinando com a que eu deslizei pelo dedo dele.
Isaque se emocionou ao nos assistir, e eu sei que Harry só fez o
pedido no hospital porque queria a presença do avô.
Ele chorou com força, dizendo que estávamos tornando seus últimos
dias mais felizes. E como sonhava em nos ver casando, planejamos tudo
para que o nosso grande dia chegasse poucos meses depois, para que Isaque
estivesse presente.
Olho pela imensa janela do quarto. Acho que eu nunca vi uma noite
com tantas estrelas dançando pelo céu escuro, como a de hoje. Parecem
estar todas presentes para testemunhar o dia mais importante da minha vida.
Faz anos que a fé é algo nublado em mim, mas com tantos detalhes
precisos e perfeitos neste dia, eu me pergunto se o cara lá em cima decidiu
me reservar algo de bom para compensar os danos.
Para quem passou tantos anos carente de lágrimas, eu ando, mais do
que nunca, chorando à toa. Mas ouço de todo lado que hoje isso é liberado,
e a Isa falou que pode me perdoar, só por esta noite, se eu me transformar
em um pudim de lágrimas[24].
Quando eu me olho no espelho imenso do quarto finamente
decorado, é emocionante ver que estou do jeito que sonhei durante tantos
anos. Hoje, estou mesmo parecendo uma princesa. E a Branquinha criança
que mora dentro de mim pula de alegria quando o meu reflexo me encara
com um longo vestido branco feito pela Maria, em seu ateliê. A saia é
muito volumosa e encorpada, com uma sobreposição de tule, todo cheio de
brilho, e uma cauda com a borda rendada que se espalha pelo chão. As
mangas bufantes e caídas feitas de cetim começam nos antebraços,
ladeando o início do decote ombro a ombro, e terminam nos cotovelos. Eu
não uso nem véu, nem grinalda, porque acho feio. Um cinto de cetim separa
a parte de baixo do dorso, um corpete que, diferente da saia em tule, tem
bordados finos e pequenos em formato de flor, com pedras brilhantes como
pontos de luz no meio delas.
Ana está uma madrinha linda, envolta em um longo vestido de
chiffon rosa-queimado, com um decote um pouco mais avantajado. Seus
cabelos estão presos em uma trança longa que cai ao lado do peito. Ela
parece meio afobada, pois estava amamentando um dos gêmeos ainda há
pouco, deixando-o com a babá quando finalmente o bebê adormeceu.
Estacando ao meu lado, ela acerta a tiara prateada e brilhante no alto
da minha cabeça, um pouco depois do começo da minha franja. Eu sorrio
para o seu reflexo no espelho, para seus olhos claros cheios de orgulho ao
me fitar.
— Hoje você vai se tornar esposa, minha bostinha! — Ela segura de
lado o meu quadril. — Já está na hora de você entrar.
Eu tento não suar, mas é impossível. Ainda bem que a maquiagem
clara é à prova d’água. Atrás de mim, Ana segura a cauda do meu vestido
quando nos viramos para sair do quarto onde eu tive o meu dia de noiva.
No corredor estreito, de paredes claras e rodapés dourados do prédio
de dois andares onde estamos, Isabela fala com a babá de seu filho,
enquanto Maria deixa a pequena Luz, sua bebezinha, no colo da avó. A
babá da Ana está empurrando um carrinho de bebê duplo, onde os gêmeos
estão dormindo. Dona Isaura está usando um vestido azul-escuro que chega
até os joelhos, ostentando o coque costumeiro e apertado no topo da cabeça.
O meu dia da noiva foi, sem dúvidas, o menos silencioso da história,
pois todas as minhas madrinhas estão com bebês pequenos, e tivemos choro
de neném como música de fundo. Mas foi perfeito, como eu sempre sonhei,
porque tive maquiadora, massagista, e até a Maria ajustando detalhes do
meu vestido em cima da hora.
Depois de checarem bem os filhos, Isa e Maria explicam onde as
babás e a mãe da Maria devem se sentar para assistir ao casamento, depois
aproveitam para indicar o fim do corredor, onde tem uma rampa para
descerem com os carrinhos dos bebês, que dá em uma porta lateral do
prédio. E só quando terminam é que as duas se juntam a mim e à Ana.
Maria está com um longo vestido delicado em um tom de rosa
pálido, com mangas rendadas, mas os ombros de fora, e os cabelos lindos
presos em um rabo de cavalo alto.
Isabela, sempre ousada, está com um vestido que arrasta no chão,
aberto na lateral da perna, com o dorso em renda, de mangas, e os seios
bem comportados no decote singelo.
Os padrinhos estão no corredor ao lado, onde se arrumaram, junto
ao noivo, sem nos ver. Harry planejou cada detalhe da nossa cerimônia
comigo, para que fosse linda, como nos meus sonhos.
Sei que ele fez sua entrada sozinho, como ensaiamos tantas vezes. E
as meninas vão encontrar seus pares lá fora, para desfilarem pelo tapete
vermelho até o altar antes de mim, como manda a regra do cortejo de
casamento.
Estou tentando conter meu nervosismo quando desço as escadarias
no fim do corredor, enquanto vejo o homem parado diante de uma porta
dupla em uma madeira pesada, feita para imitar a de um castelo medieval.
Rafael está lindo usando um terno preto – e pela primeira vez não é
para aplicar um golpe. Ele sorri largo ao ver o meu vestido. Sei que não vai
chorar, mas coçar a cabeça do jeito desconcertado como ele está fazendo já
me mostra a sua emoção.
— Você está linda, Branca! — diz. — A nossa mãe teria ficado
doida vendo você parecendo uma princesa de verdade.
Isso faz a primeira lágrima escapar da contenção, ver que, assim
como eu, Rafael está sentindo a falta dela aqui, que seu coração também dói
e fica triste ao pensar nisso. E imagino que, lá fora, meus outros cinco
irmãos estejam com o mesmo pensamento.
Eu tentei não pensar nela o dia inteiro, mas, agora, é impossível não
sentir um pouco de tristeza por minha mãe não me ver vestida assim. Olho
para cima para tentar distrair meus pensamentos, quando Maria, sendo bem
fofa, pega um leque redondo pequeno de dentro de sua bolsinha, desdobra e
abana o meu rosto.
Isso corta o clima de tristeza, e até o Rafael ri do seu gesto.
— Por que estão rindo? — ela pergunta, bem concentrada, só
parando quando eu sinto meu rosto mais seco. — A missão de madrinha é
coisa séria!
— A maquiadora disse que eu podia dar algumas batidinhas para
secar, caso chorasse — revelo.
— Foi nessa que eu acabei com um buraco na cara no meu
casamento — Isabela fala. — Estou indo lá para fora, para fazer a entrada
com o Nate. — Ela me entrega o buquê de flores, que estava carregando
para mim, e sorri com vontade. — Segura esse coração! Estou vendo daqui
que ele está escalando a sua garganta.
Sinto o cheiro das flores amontoadas no buquê, rosas e astromélias
em tons rosê. Então, respondo:
— Está mesmo, quase o sinto sobre a minha língua.
— Eu orei muito para você ter este dia, para chegar o seu final feliz.
— Maria me abraça bem forte, e neste momento eu também agradeço a
quem estiver lá em cima por ter amigas tornando tudo ainda mais especial.
— E estou muito emocionada por poder presenciar este momento.
Maria está ainda mais bonita depois de ter se tornado mãe, com o
rosto mais sério, mas nem um pouco menos doce.
Ela também sai pela porta, e só a Aninha fica para trás, ainda
acertando minha cauda e a esticando atrás de mim.
— Bom, todo mundo já disse o que eu pensava. — Sorri, com os
olhos brilhando. As babás e dona Isaura também saem pela porta, e a Júlia
quase pisa na minha cauda, com Ana a amparando bem a tempo. Ela está
tão fofa vestida de daminha. E quis um coque cheio e largo, como o meu, e
seu vestido tem brilho na saia de tule, igualzinho também. Júlia chega a
derrubar algumas pétalas de rosas de sua cestinha no chão, e Ana a segura
pela mão. — Agora, atravessa esse tapete e casa com o homem da sua vida!
Eu preciso tirar a Júlia daqui, antes que não sobre uma só pétala na cesta.
Quando elas saem, somos apenas Rafael e eu.
Penso que, após sua longa encarada, ele vá dizer algo, mas apenas
me puxa para si e me abraça bem forte, e no meu ouvido, sussurra:
— Estou orgulhoso de você!
E não é preciso mais nada para me fazer desmanchar.
Eu já dei tanto desgosto ao meu irmão, já o fiz sentir tanta vergonha,
que ouvir isso dele me desmonta. Faz com que eu sinta que tudo o que
tenho feito para ser só uma garota normal tem valido a pena.
E já faz um ano que, de fato, eu sou apenas uma mulher normal.
Com uma vida comum e tranquila.
O que sempre me pareceu impossível.
Ouvir que Rafael tem orgulho de mim me faz ter certeza de que eu
não estou apenas no caminho certo, mas que jamais sairei dele.
— Obrigada por ter cuidado de mim. — Engulo alguns soluços para
conseguir continuar: — E por ter sido um pai incrível, quando nem era a
sua obrigação. Eu queria ter sido melhor pra você...
Então, eu o sinto vibrar sobre mim. Eu o ouço engolir o soluço, e
com a voz embargada, vem a frase que Rafael nunca disse, embora eu já
soubesse:
— Eu te amo, Branca! — Ele me aperta. — Muito! Você foi o que
conseguiu ser. E dói muito não ter conseguido te salvar antes de a
arruinarem naquele Vale maldito. Eu tentei... Todos nós tentamos.
— Já passou. A gente se salvou quando deu! — consolo e saio do
seu abraço, e vendo que até os mais durões choram, limpo as lágrimas que
pensei que jamais veria escorrendo pelas bochechas dele. — Agora, se
recompõe! Você precisa me casar! Porque, salva, eu já fui.
Ele sorri largamente e, revirando os olhos, lança um peteleco no
meu nariz. Meu coração está quente, feliz, quando esse garoto zangado dá
um passo para trás e me oferece o braço. E com o coração explodindo,
batendo com bem mais força, as portas se abrem com tudo e eu vejo que
não tem mais volta.
Agora, eu vou me chamar senhora Alencar!
No espaço amplo e aberto desta casa de festas, um longo tapete
vermelho me espera, e sob a luz da lua cheia, das estrelas fofoqueiras
espalhadas pelo céu para contar a minha história por aí, eu tento dar o meu
melhor sorriso.
Porque é o dia mais feliz da minha vida.
Mas ainda tem peças faltando nesse tabuleiro...
Um idoso chantagista que odiava perder no xadrez, que eu aprendi a
amar, que chorei quando se foi, dois meses atrás, sem ter tempo suficiente
para nos ver casando...
A mulher presa entre paredes formadas por pesadelos, tentando criar
sua filha em meio ao inferno, protegendo sua mente fazendo-a acreditar que
era uma princesa...
O irmão que fez de tudo para conseguir tirá-la de lá a tempo...
O cunhado que eu nunca poderei conhecer.
Mas mesmo com peças a menos, vamos movimentar o jogo, porque
a vida nunca para, e eu aprendi que a minha vida importa, que precisa ser
vivida, e que eu posso e mereço ser feliz.
Atrás de mim, tem uma fachada de castelo artificial, parecendo feita
de pedras, com ameias no topo e tudo, decorando o hotel onde minhas
madrinhas e eu nos hospedamos hoje cedo.
Harry fez questão que fosse aqui, uma casa de festas temática, toda
trabalhada para parecer um castelo imenso, com uma área verde e aberta
para casamentos ao ar livre, e um salão de festas gigante com pista de dança
ao fundo. Ele repetiu, por muitas vezes nos últimos meses, que também
havia passado a ser o sonho dele, um casamento como eu imaginei uma
vida inteira.
E colorindo uma página no conto da minha vida, eu atravesso o
tapete vermelho.
Uma breve brisa da noite desliza pelo meu corpo, parece correr por
trás de mim direto para o homem do outro lado do tapete, que está com a
mão fechada diante da boca, para travar os soluços, esperando para
finalmente se tornar meu marido.
Harry está lindo em seu terno off-white feito sob medida, com todos
os seus piercings no lugar, porque eu disse para ele não tirar nenhum.
Caminho sobre as rosas que a Júlia espalhou pelo tapete, antes da
minha entrada, ao som da canção Video Games, da Lana Del Rey, tocada
por um violinista. A música que muitas vezes ouvimos, dançando na sala de
seu apartamento, jogando nossos jogos no Xbox, e que acreditamos ter a
letra perfeita para nós dois.
Porque a verdade é apenas uma: “Só vale a pena viver se alguém
está amando você”![25]
O tapete vermelho é ladeado por um caminho de flores cor-de-rosa,
separando as cadeiras de tecido brancas. Os convidados diante delas
assistem à minha entrada, e seus olhares de admiração, emoção e fascínio
me deixam tímida. São poucas pessoas; entre elas, estão os meus chefes,
donos da agência em que trabalho, os funcionários da casa que era do
Isaque, que foi deixada de herança ao Harry e onde moramos agora, e
alguns funcionários da franquia do Ravina Tattoo. Mas é no altar que meu
mundo inteiro se concentra.
Nossos amigos estão parados ao redor do noivo e do juiz de paz.
Bill e Maria, Josiah e Ana, Nate e Isabela, meu irmão Samuel e sua
namorada Vitória. Os que não têm namorada, estão parados na primeira
fileira de cadeiras. Não tem um só dos meus irmãos que não chore. E eu sei
que, depois de tanto desespero e dor, é impossível não chorar de felicidade
agora.
Quando eu chego diante do homem que amo, ele me olha como se
fosse a primeira vez, com os olhos brilhando de amor e lágrimas, e precisa
engolir bastante para conter os soluços.
Rafael olha bem sério para o Harry. Desde o dia em que eu contei
tudo a ele sobre quem o meu noivo era, meu irmão nunca mais foi ao
prédio.
Eu chego a engolir a tensão arranhando a minha garganta, mas tudo
o que o Rafa faz é entregar minha mão ao Harry e, quase sem mexer a boca,
sussurrar:
— Cuide bem dela!
— Vou cuidar! — Harry garante.
Eles trocam um olhar demorado, como se selando uma promessa,
antes do meu irmão se virar e se afastar, indo se colocar ao lado de Bill.
Meu irmão e ele se encaram, sérios, de um jeito estranho. Parecem até dois
demônios se desafiando silenciosamente. Por fim, os dois olham para a
frente, fazendo o nervosismo em minha barriga diminuir um pouco.
O cheiro de Harry, tão cítrico e gostoso, é soprado pelo vento gelado
da noite direto para o meu rosto. E quando ele sorri e se inclina para o meu
pescoço, nem parece que já faz meses que estamos juntos, porque eu fico
acanhada.
— Você está linda, amor!
— E você está um verdadeiro príncipe! — sussurro, vendo o
celebrante, um oficial do cartório que vai consagrar a nossa união, fingir
ignorar quando Harry me deixa um beijo logo abaixo da orelha.
Maria é quem pega o meu buquê, piscando para mim, e neste
segundo eu vejo que tanto ela quanto as minhas duas amigas estão com os
olhos marejados. E pior, seus maridos também. Bill ainda está com o
queixo erguido, mantendo a pose, mas Nate e Josiah estão com lágrimas no
rosto. E seria o prato feito para Harry os zoar, mas como é ele o que mais
vai chorar esta noite, sei que não vai tecer comentários.
O juiz de paz começa a fazer um discurso que personalizou para o
nosso casamento, ouvindo a nossa história de amor e anotando tudo dias
atrás. Harry e eu ficamos de mãos dadas, ouvindo cada palavra, e a cada
segundo em que ele é certeiro falando sobre destino, sobre como alguns
casais enfrentam dor antes de conseguirem chegar ao final feliz, ou o
quanto é preciso ceder para viver algo com outra pessoa, apertamos a mão
um do outro.
Hora ou outra, nós nos encaramos, e é no sorriso largo e branco dele
onde eu gostaria de morar. Estou prestes a ver esse sorriso perfeito para
sempre, até ficarmos velhinhos, e isso me emociona tanto que eu queria
chutar o balde e beijá-lo agora, mas não posso.
Eu revejo a nossa trajetória dançando diante dos meus olhos, nossos
erros, acertos, cada ato dele que foi me arrancando sentimento,
contaminando o meu coração, tornando impossível não me apaixonar.
E quando chega o momento das alianças, o choro que eu ainda
conseguia prender vem com tudo. Quando olhamos para o começo do
tapete vermelho, encontramos Daniel, lindo em seu terno preto, com uma
rosa idêntica à do meu buquê no bolso de seu paletó, os cabelos alinhados e
um sorrisão, trazendo as alianças em uma almofada cor-de-rosa.
É tudo tão lindo que até parece mentira.
E quando ele para diante de nós, eu vislumbro seus olhos brilhando
com uma felicidade tão genuína que sinto vontade de o apertar inteiro, mas
ainda estou me casando, não posso quebrar o protocolo.
O juiz de paz aponta a almofada ao Harry, e quando ele pega a
aliança, noto o quanto está tremendo.
Eu estou suando, com o rosto molhado de lágrimas, mas meu sorriso
se recusa a morrer quando meu noivo pega minha mão esquerda.
— Hoje não tem óculos escuros... — Nate sussurra atrás de nós,
fazendo menção às histórias de que Harry sempre usava um nos casamentos
ou em momentos que sabia que choraria. — Ele está chorando pra geral ver.
Olha como fica lindão!
— Ah, cala a boca, pau no cu! — Harry revida, e neste instante, não
tem uma só alma que não fique surpresa com a sua explosão, mas é a risada
do Nate que desanda tudo. Enquanto o juiz de paz, um homem de meia-
idade, careca, usando um terno escuro, está com cara de enterro e odiando a
gafe do meu noivo, todos os nossos amigos estão rindo. Até a Júlia
gargalha, e se ela repetir o palavrão mais tarde, Josiah vai passar dois meses
com raiva do Harry. — Não vem estragar o meu momento, não! — Ele olha
para mim, ainda com o olhar de raiva para o amigo, mas quando se dá conta
de que está prestes a deslizar a aliança grossa de ouro maciço no meu anelar
esquerdo, arregala os olhos. Harry pega ar[26] muito fácil com essas zoeiras
dos garotos. — Já posso fazer os votos, padre?
— Juiz de paz! — O homem tosse ao corrigir. — E sim, pode.
Harry pega um cartão com Josiah, e parece tremer cada vez mais.
Merda! Eu amo tanto esse rosto dele! Sorrindo de nervoso, o amor da
minha vida raspa a garganta.
— Então, sob muros altos e tortuosos, uma princesa nasceu... — Ele
começa a ler, a voz tremendo mais que o corpo, e nem sabe que cada
palavra já faz carinho no meu coração. — Ela não sabia que, na verdade,
aqueles muros não eram os de um castelo, mas os de uma prisão, e que
estava sob uma terrível maldição. Quando conseguiu fugir de lá, com a
rainha e seus sete irmãos, um príncipe desajuizado acabou estragando o que
ela achava ser o seu “felizes para sempre”. — Eu faço bico, como uma
criança, e os soluços dos nossos amigos entregam que cada palavra dele é
intensa, é forte, e traduz a sensibilidade com que ele pensou nos seus votos.
— Ela odiou o príncipe. Pensou que ele quis a destruir, jurou que, na
verdade, ele era seu grande vilão. E querendo destruí-lo, ela acabou se
apaixonando. Tudo deu muito errado, porque os dois sofreram. Nessa
história, não houve um beijo para despertar a princesa, mas os dois, em
reinos distantes, magoados, sofrendo até entender que o destino havia os
unido de um jeito cruel, mas que daquilo ainda podia nascer algo bom. —
Agora Harry desvia o olhar do cartão, e encarando meus olhos embaçados
por lágrimas, continua: — Sei que meu beijo é tão bom quanto um beijo de
amor verdadeiro... — Agora eu sorrio, esse safado! — E que isso foi o que
quebrou a maldição que te envenenava, para depois fazermos do nosso
amor a cura que precisávamos. Eu sonhei em te ver com esse vestido,
Branca, roubando a luz das estrelas, como a princesa que você é. — Não
tem uma só pessoa sem soluçar, e até a porra do juiz está limpando uma
lágrima, tentando não perder a compostura. — Eu limpei seu sistema da
dor, e você limpou o meu, por isso, quero que sejamos a cura um do outro
para sempre. E agora, você se torna uma rainha, a do meu coração, na
saúde... — Ele desliza a aliança pelo meu dedo, e, porra, nem nos meus
sonhos mais lindos eu imaginei palavras tão perfeitas. Eu disse, ele tem
todos os predicados de um príncipe. — E na doença. No amor e na dor. Até
que a morte nos separe. — Então, Harry levanta a minha mão e a beija, até,
por fim, dizer: — Mas depois da morte, eu vou estar lá também, lembrando
a todos que tu é minha! Se tu descer, eu vou atrás, e se tu subir, eu quebro
as portas do céu pra ficar ao teu lado. Ninguém me impediria!
— Harry?! — Eu gargalho em meio ao choro.
— Eu tô falando sério!
Eu reviro os olhos, com um sorriso tão amplo que chega a doer.
— Agora, a noiva pode fazer seus votos — o juiz diz.
Eu não anotei nada, por isso, enquanto pego a aliança com Dan,
vendo meu irmão fazer um bico muito lindo de emoção, cada palavra que
planejei ronda a minha cabeça.
— Um beijo de amor verdadeiro... — começo, e, nossa, é difícil
falar com tantas borboletas na barriga, ainda mais apaixonada por esse
homem lindo! — Foi isso que me mostrou que eu estava diante do príncipe
com o qual sempre sonhei. Envenenada, eu tentei, com força, acabar com a
coisa mais bonita que a vida estava me dando. Eu pensei que ser uma
princesa me tornava fraca, então, tentei ser a rainha má. Acabar com tudo o
que me destruía na mesma dose. Mas há algum tempo, eu percebi que era
um erro. — Harry me encara com tanta intensidade que eu sinto seu olhar
em cada pedaço da minha pele, queimando, atravessando. — Você não veio
em um cavalo branco, mas, a cada dia, me mostrou que meu futuro mais
lindo estava em você. Eu me encantei pelas suas piadas, pela sua voz...
Céus, e pelo seu cheiro! — Ele ri de um jeito muito confiante, e sei que
agora está se achando um gostoso, não que esteja errado. Os votos dele
foram tão perfeitos que zeraram a vida, os meus estão até mixurucas, mas
vêm do coração. — A cada beijo seu, você me limpou, e quando eu te perdi,
quase morri. Mas foi você quem me trouxe de volta, quem me fez querer
viver, querer viver bem para você. Hoje, eu te entrego a minha vida, porque,
o meu coração, você já tem. Eu te entreguei a minha luta por uma cura, e
por você, eu consegui. — Vou deslizando o anel em seu dedo. — Eu te
darei os meus filhos, todos os meus anos de vida, meus melhores sorrisos e
minhas partes boas, as outras coisas, as mais bonitas. — Minha voz treme.
— Hoje, e para sempre, do jeito que for, estarei ao seu lado.
Eu beijo sua mão, amando o jeito fofo como treme a boca quando
chora.
E quando o juiz nos declara marido e mulher, nem precisa anunciar
o beijo final. Harry já me puxa, e me girando em seu colo de um jeito
dramático, meu marido me dá o beijo mais gostoso, intenso e molhado que
já me deu na vida.
Um beijo de conto de fadas.
De amor verdadeiro.
Hoje, e para sempre, eu quero os beijos do meu príncipe encantado!
Tiana pula em sua cama, sobre o edredom claro e com estampa de
ursinho, por isso, Branca já pega seu livro favorito na estante branca, no
canto do quarto, para lhe contar uma historinha antes de dormir. Seu quarto
é todo lindo, oscila entre rosa e branco, e até a caminha é de dossel.
Estamos morando na mansão que meu avô me deixou de herança.
Esta casa era o sonho dele, a materialização dos seus anos de trabalho, e
jamais a venderia. Eu sempre sonhei em morar no La Grassa, junto aos
meus amigos, mas aqui sinto a presença da família que amei e não está mais
presente, e eu quero criar a minha filha na casa onde cresci.
Estou diante da porta branca do meu antigo quarto, que eu reformei
inteiro só para receber a minha garotinha. Olho para a minha mulher se
preparando para colocar a nossa filha para finalmente sossegar.
Temos uma pequena hiperativa, deve ser o signo, é escorpiana. Aos
três anos de idade, ela já incendeia a casa. Fala alto, espalha brinquedo pela
porra toda, rabisca as paredes e me faz mais feliz do que nunca.
Com seus cabelos castanhos presos em duas trancinhas, Tiana
acompanha com os olhos o livro nas mãos da mãe, então já se enfia
embaixo do edredom, ansiosa para ouvir a história.
É incrível como colocamos no mundo uma miniatura de nós dois.
O nome dela é Tiana porque um dos significados é “semelhante ao
pai”, e, de fato, ela é a minha cara. Fora que Branca nem me deu opção,
tinha que ser nome de princesa, e depois da Branca de Neve, Tiana é sua
princesa favorita. Eu até fui obrigado a assistir A princesa e o Sapo. Tentei
fingir que não dormi, mas acordei com um beliscão, porque tinha que
assistir ao filme que dava nome à minha cria.
Ela herdou o meu cabelo crespo, e como a maioria das crianças,
odeia penteá-lo, mas Branca ama fazer penteados diferentes e vesti-la como
uma princesa. Minha esposa é uma mãe perfeita, como eu nunca duvidei
que seria. Ela brinca com a nossa filha, assiste aos desenhos, tenta dar uma
educação compreensiva e positiva, e quase nunca levanta a voz.
Eu tenho orgulho da mulher que me deu uma filha perfeita. Que, por
sinal, puxou ao meu sorriso e ao meu corpo de costas largas. Modéstia à
parte, eu nunca vi criança mais linda.
Já a personalidade... é inteira da mãe. Ela ama coisas de princesas, e
pode ouvir a mesma história milhares de vezes sem se cansar. E quando
bate o pé, fica até sem falar comigo se eu não a deixo ver os desenhos na
hora que quer, ou se eu a repreendo quando rabisca as paredes, mesmo
sabendo que não pode. Nessas horas, eu rio e digo: “puxou ao gênio da sua
mãe, sua mandadinha!”. É o apelido perfeito para a minha filha.
E pensar que eu morria de medo de ser pai, mas quando meus
amigos inventaram de ter filho na mesma época, para que crescessem juntos
e se tornassem amigos, como nós éramos, uma ideia que partiu do Nate, eu
decidi que estava na hora.
Eu jurava que seria um garoto, mas enquanto a barriga da Branca
crescia, ela dizia que sentia que havia uma garotinha lá dentro. E foi lindo
vê-la se abrir para a ideia de termos um filho, deixando de lado seus medos.
Ela disse, bem alto, que seus fantasmas não tinham mais o poder de
assombrá-la, porque queria viver tudo comigo. E Branca sempre fala que a
nossa filha é a melhor coisa que fizemos juntos. Mas não queremos mais
filhos, já temos um trabalho do caralho com a nossa princesinha.
E agora, eu vivo para ela, para contar histórias de ninar, para sentir
meu coração fora do peito. E até da porra da cobra às vezes penso que sou
pai, porque Nagini é tão importante para a Branca que não me sobrou
caminho, eu tive de aceitá-la na minha casa, na minha vida. Mas eu não a
deixo ficar solta pela casa. Às vezes, Branca e eu a levamos para ficar na
grama, lá fora, e a coisa venenosa ama se enroscar no meu pé.
Tiana, valente que só, vive querendo mexer na cobra, mas não
deixamos. A Branca já explicou para ela que não pode ficar dando tapinhas
no vidro do terrário, como estava se acostumando a fazer.
Depois de tantos anos achando que não tinha família, eu tenho uma
mais perfeita do que já sonhei, formada pela minha rainha, a nossa
princesinha, a cobra intrometida, que amava se roçar na barriga da Branca
quando estava grávida, e eu.
Branca se deita ao lado da nossa filha, e hoje estão combinando,
usando um vestido de princesa com saia amarela, mangas azuis e laço
vermelho na cabeça. Ela dá uma piscada de olho quando eu apago a luz do
quarto, depois acende o abajur amarelado e fraco ao lado da cama, então
começa a ler a história favorita das duas:
— “Há muito e muito tempo...” — Sua voz linda ecoa pelo quarto, e
do lado de fora do corredor, eu aproveito para ouvir o comecinho da
história. — “Bem no meio do inverno, quando os flocos de neve caíam do
céu, leves como plumas, uma rainha estava sentada costurando junto a uma
janela com esquadrias de ébano. Costurava distraída, olhando os flocos de
neve que caíam lá fora, e, por isso, espetou o dedo com a agulha e três
gotas de sangue caíram na neve...”[27]
E ouvindo minha esposa contar a história da Branca de Neve para a
nossa filha, olho para cima e agradeço ao destino por ter dado duas
princesas só para mim.

E viveram felizes para sempre.


Fim.
Escrever Veneno foi a coisa mais controversa da minha vida. Eu
pensei: “Bom, é o livro do Harry. Vai ser leve, porque ele é o meu raio de
sol”. Então, estourou uma bomba no meu colo cheia de veneno, e eu não
tive opção que não fosse segurar o rojão.
Eu já contei a algumas leitoras e profissionais que trabalham comigo
que os plots de Ódio e Pecado foram originados de notícias que vi na
televisão. No caso deste livro, assisti a um vídeo com o relato muito pesado
de uma brasileira que, aqui no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro,
cresceu em uma seita religiosa que cometia inúmeras atrocidades e as
justificava como uma maneira de demonstrar amor ao Criador.
É necessário ter estômago para conseguir ler a respeito disso, e,
mais ainda, ter emocional para escrever sobre o assunto. Durante a pesquisa
para desenvolver a personagem, eu me peguei diversas vezes sofrendo com
a dor da Branca, sentindo-a em cada osso do meu corpo.
O peso deste livro me derrubou no começo, porque só de me
conectar com certos relatos dela, eu sofri. Mas eu não imaginei que me
foderia no final, com tanta ansiedade, medo de ser insuficiente, de não dar
conta. Foram noites mal dormidas, paranoias a perder de vista... Mas, sendo
sincera: é um enredo muito meu, e mesmo com medo de que vocês
odiassem a Branca, eu dei o melhor que consegui ao criar essa garota.
Acredito que nenhum personagem nasce na minha cabeça à toa. A
Branca surgiu para mostrar a vocês que, enquanto em muitos casos a
religião pode ser um remédio, em outros, pode se tornar um veneno e deixar
um rastro enorme de destruição.
Eu não tenho o intuito de atacar fé alguma, mas quero, por meio do
meu trabalho, expor um lado muito sujo do ser humano, um lado que é
capaz de tudo para conseguir sexo e exercer poder sobre os outros.
A jornada do Vale não termina nesse livro, embora a série
Ravina tenha chegado ao fim. Esperem mais, porque, se na vida real esse
povo não tem o fim que merece, nos meus livros eles vão ter.
Agora, sendo mais leve, eu preciso falar sobre como escrever o
Harry foi intenso para mim. Ele é carismático e muito quebrado. Sempre
que fazia uma piada nos livros dos seus amigos, eu olhava para ele e sentia
aquela coisa, aquele sorriso nublado e afogado em dor. Eu amei o quanto
esse macho é safado, tanto que, nos outros livros, isso ficou bem claro para
os leitores. Mas o Harry também tem os predicados de um príncipe, e eu
tenho orgulho do personagem que criei, um que é genuinamente bom, que,
quando ama, ama para sempre, ama de verdade.
E a Branca? Ela é forte pra caramba, a mais ferrada da série inteira,
obstinada, acha que sabe o que quer. É sempre meu conforto escrever
mocinhas quebradas, porque eu me vejo nelas. No caso da Branca, creio
que este livro foi mais sobre o nascimento de uma vilã, sua queda e seu
renascimento.
Este livro era para ser mais sobre o Harry, mas acabou sendo sobre
uma garota que eu amei desde a primeira vez que ela soprou o nome Veneno
em meu ouvido, que tentou tomar o livro inteiro só para si, e que, acima de
tudo, eu sabia que seria do caralho do começo ao fim da história. E mesmo
que tenham leitores incapazes de gostar dela ou perdoá-la, eu a amo e passo
pano para tudo o que ela fez e o que ela foi. Não que eu concorde, mas
entendo que ela foi o que a vida a obrigou a ser.
Seja lá como Veneno e Outras Coisas tenha batido em você, se ele te
fez refletir um pouquinho sobre “cura” ou sobre como a vingança só destrói
quem a cobiça, eu já terei cumprido o meu papel em escrevê-lo.
Este foi o encerramento da Série Ravina, uma série que me trouxe
de volta à vida, que em menos de um ano jogou na minha cara que não
importa quantos caminhos eu tente seguir, eu nasci para isso, é o meu único
destino, e quando eu não tinha nada na minha vida além de dor e mais dor,
eu tive os livros, eu tive as palavras, onde eu podia colocar para fora o que
eu sentia sem que pudessem me repreender. Sei que meus livros são
intensos, e que até quando eu tento criar algo mais suave, acaba como este
livro aqui. Mas é assim que eu coloco as coisas para fora, com gente ferrada
que erra pra cacete antes de aprender e encontrar um final feliz.
O saldo da Série Ravina para mim é um ensinamento: o meu
trabalho existe apenas para quem respeita o que eu sou e o que eu escrevo, é
para essas pessoas que ele é feito, que eu me mato um pouquinho
escrevendo. E viver de um sonho tem seu preço, mas, esse, eu topo pagar
para sempre.
Com amor e meu coraçãozinho arruinado, Red! <3

Siga-me no Instagram e fique por dentro do meu trabalho:


@autoraredr
Eu sei que muitos leitores não leem agradecimentos, mas a gratidão
é algo importante de ser exercitado, por isso, vou de textão.
Eu vou, em primeiro lugar, e depois de muitos anos sem um pingo
de fé, agradecer ao Criador. Por muito tempo, eu pensei que não conseguiria
mais escrever, e em menos de um ano, eu me refiz. Às vezes, eu olho para o
céu e tento enxergar algo lá. E desta vez, vou agradecer por isso, porque, se
eu vivi tanta merda na minha vida para não ter algo lá em cima, eu vou ficar
muito puta quando morrer.
Em segundo, eu preciso muito agradecer à Adriana Mantovanelli,
que foi o meu braço direito nessa série. Foi quem segurou minha mão nessa
jornada, quem teve um olhar sensível para as páginas que eu entregava a
ela.
Acho que a nossa relação tem quebrado as paredes do “apenas
profissional” e se tornado uma amizade, ao nosso tempo, e isso é lindo.
Obrigada por tudo, Dri! E no que depender de mim, temos muitos anos de
trabalho pela frente, juntas!
Em terceiro, eu vou falar dessa ruiva, da Dresa Guerra, que foi quem
me deu um puxão de orelha com classe, com um “para de ser doida!”,
enquanto eu estava surtada e tirando paranoia do cu. Acho que eu nem teria
conseguido terminar este livro sem o seu tapa na cara.
E Bruna Gurgel, bora lá, você me salvou quando eu achei que ia dar
merda na entrega deste livro. Gratidão, mana!
Elane, você é luz, sempre lendo os capítulos e me mandando seus
áudios longos, que eu ouço na velocidade dois, mas não perco um.
Jéssica, meu amor, você é uma fofa! Obrigada pelo que tem feito lá
no Coisinhas, pois aquele grupo ganhou vida quando você entrou para
tomar conta. <3
Ah, minha bostinha, Raquel, já vai se acostumando a aparecer por
aqui. Gratidão por tudo, pelos conselhos, pelas dicas de músicas para as
playlists, e por essa amizade de milhões. Eu te amo!
E, por fim, vou agradecer à pessoa que pegou na minha mão e me
ajudou com o meu primeiro livro, tantos anos atrás, e que agora voltou para
o meu caminho com Veneno, Luhana Andreoli. Sei que eu não estava fácil
naquela época, deu para ver que melhorei anos luz, né? E obrigada, de
verdade, pelo trabalho por demanda com Veneno.

Para cada Coisinha da Red

Eu vivi muitos anos sem saber o que era ser amada, e a cada vez que
converso com vocês, que abro o grupo, eu me sinto muito querida.
Vocês são luz na minha vida e me motivam todos os dias a pensar
em escrever, a querer viver do meu sonho e focar só em vocês.
A cada nova leitora que se propõe a conhecer essa pequena who, que
enxerga a minha alma nessas páginas, minha eterna gratidão.
Eu sempre vou tentar transformar meu coração ferrado em algo bom
para vocês!
[1]
Jogo de multijogador on-line.
[2]
Profissional que trabalha colocando joias no corpo por meio de perfurações.
[3]
Gíria carioca para definir uma pessoa problemática ou estranha.
[4]
Também conhecido como vírus Cavalo de Troia, é um software criado para causar danos a
diferentes dispositivos eletrônicos.
[5]
É o crime de enganar uma pessoa por meios eletrônicos e, assim, conseguir informações
confidenciais para roubá-las.
[6]
Jogo de simulação da vida real produzido pela Maxis.
[7]
Monstro do folclore nórdico em formato de lula
[8]
O cyberstalkyng pode ser traduzido para uma perseguição em ambientes virtuais.
[9]
Refeição servida entre o café da manhã e o almoço.
[10]
Esse piercing é formado por uma haste reta de aço que atravessa a pele. Possui duas pequenas
bolas de aço, uma em cada extremidade.
[11]
Também conhecido como vírus Cavalo de Troia, é um software criado para causar danos a
diferentes dispositivos eletrônicos.

[12]
Oscar Wilde, O Leque de Lady Windermere.
[13]
Termo para definir os fãs de tecnologia.
[14]
É um inimigo mais poderoso no videogame, aquele que você enfrenta para passar de nível.
[15]
Iniciante no videogame.
[16]
Sem camisinha.
[17]
Seria uma gíria para definir uma “faceta”, uma “personalidade” diferente.
[18]
Cadeia.
[19]
Bravo.
[20]
Quem faz sexo de maneira bruta.
[21]
Cão gigante de três cabeças que aparece no livro Harry Potter e a Pedra Filosofal.
[22]
Desandou.
[23]
Frase atribuída ao médico e físico suíço-alemão Paracelso.
[24]
Apelido da Isabela para personagens de romance que choram à toa.
[25]
Video Games, Lana Del Rey.
[26]
Ficar bravo.
[27]
Trecho do conto Branca de Neve, Irmãos Grimm.

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