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Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida por quaisquer meios sem permissão por escrito dos
editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.
Dedicamos estes contos a todas as leitoras que acompanharam o início da nossa jornada
no Wattpad, quando a Aline escrevia livros com títulos em inglês, a Maina usava hífen no
lugar do travessão, todos os personagens da Kell tinham beijos roubados e a Dulci usava
palavras robustas fora do contexto. Obrigada a vocês que suportaram os bugs da plataforma
e nos apoiaram quando tudo era mato — e mato alto que precisava de muita poda. Se estamos
aqui hoje, é porque vocês acreditaram.
“Prometam, ó mulheres de Jerusalém,
pelas gazelas e corças selvagens,
que não despertarão o amor antes do tempo.”
Precisamos começar esta nota dizendo que escrever este livro foi um
desafio e tanto para nós. Primeiro, porque foi idealizado por longos anos
antes de ser concretizado. Segundo, porque sendo nós quatro autoras de
livros grandes e com pouca — ou nenhuma — experiência com contos,
escrever com um limite determinado de palavras foi um obstáculo a ser
vencido. Tivemos que fazer algumas concessões, é verdade. Inicialmente, a
meta seria 10 mil palavras. Quando começamos a escrever, entramos em
comum acordo de que poderíamos aumentar para 12 mil. Depois de perceber
que precisávamos de mais, subimos para 15 mil. Então, após pensar,
repensar e analisar, fechamos em 18 mil palavras cada conto. Não mais.
E aí entrou a parte mais difícil: desenvolver uma história com essa
limitação. Mas, no fim, conseguimos bater a meta sem precisar aumentá-la
outra vez.
Por isso, querida leitora — ou querido leitor —, se você está acostumada
com nossos enredos grandes, esteja ciente de que fizemos muito esforço para
incluir todos os elementos necessários para desenvolver as histórias com o
espaço limitado. São contos. Curtos. Como tal, é claro, foca-se no principal,
enxugando todo o possível para alcançar nosso objetivo.
Não é a primeira vez que trabalhamos juntas. Possuímos 2 romances
escritos em conjunto no Wattpad, mais voltados para o humor, contudo
queríamos fazer algo mais sério. Após algumas conversas, decidimos
escrever contos individuais para preservar o estilo e particularidades de cada
autora. Com o objetivo de escrever voltadas à temática principal dos nossos
livros, românticas como somos, precisava ter romance. E, lógico, seria de
cortejo, afinal, não é atoa que somos conhecidas como Côrte Queens.
No vasto mundo literário, repleto de amores líquidos, onde conteúdos
eróticos são superestimados e os tipos de relacionamentos recreativos não
refletem princípios cristãos, nossa proposta com “Meu enredo de amor” é
resgatar valores muitas vezes desprezados pela geração atual. Tópicos como
romance com propósito, defraudação, desilusão amorosa, guardar o coração,
espera em Deus, paixões da mocidade, entre outros, estão presentes nos
quatro contos deste livro: Resgate de um coração, Missão do amor, Meu
amor Real e Acordes do coração.
Que este livro seja uma benção em sua vida e você termine com o coração
quentinho.
Eram quase dez horas do dia seguinte quando o médico de plantão assinou
a minha alta hospitalar. Os exames não haviam constatado nada que me
fizesse ficar internada, mas, por precaução, acharam por bem que eu
permanecesse em observação na enfermaria naquela noite.
Saí para a manhã ensolarada, o céu estava claro e limpo, como se a
tempestade do dia anterior não tivesse ocorrido. Respirei fundo e olhei para
os lados, procurando me orientar. Não tinha nenhum dos meus pertences
comigo e Fernando não havia ido ao hospital como prometido. Eu estava em
um lugar estranho, sem amigos, família ou conhecidos. Tudo que eu possuía
tinha ficado no carro e nem sabia onde ele poderia estar naquele momento.
A gravidade da situação chegou até mim como um soco no estômago e o
desespero tomou conta de cada célula do meu corpo frágil. Por que acreditei
que um estranho cumpriria a sua promessa? Fernando poderia ser um
oportunista e naquela hora todos os meus bens poderiam estar a quilômetro
de distância dali.
Fiquei tão iludida por sua beleza e cuidado que não me certifiquei em
deixar tudo em segurança. Lágrimas de desespero já inundavam os meus
olhos quando senti uma mão apertar o meu ombro. Assustada, por não
esperar o toque, virei de súbito para trás em um salto.
Um soluço ficou preso na minha garganta ao avistar Fernando a apenas
um passo de mim, vestido com um uniforme alaranjado e segurando um
boné da mesma cor. Sob a luz do sol, seus olhos pareciam ainda mais claros,
assim como o cabelo. Sua pose lembrava um super-herói me encarando,
como se esperasse que eu falasse primeiro, mas as palavras desapareceram.
Percebi que havia permanecido tempo demais calada quando ele deu um
sorriso tímido e encolheu os ombros.
— Perdão, te assustei?
— Sim, duas vezes! — fui logo expondo meus dilemas antes que ficasse
ainda mais constrangida.
— Duas?
— Você disse que viria ao hospital para me informar sobre meu carro e
meus pertences. Fiquei apavorada pensando que tinha perdido tudo. Eu… —
Um nó na minha garganta me impediu de prosseguir.
— Fui acionado assim que cheguei à cidade. Precisei trabalhar a noite
toda, mas passei por aqui. Não permitiram a minha entrada porque já havia
passado o horário da visita noturna e eles me informaram que você estava
medicada e dormindo. — Um suspiro escapou de seus lábios antes dele
continuar. — Como prometido, o seu carro foi guinchado e está na oficina.
Os seus pertences estão aqui comigo. Acabei de sair do plantão, desculpa se
te preocupei.
Trêmula, abracei meu próprio corpo.
— Eu não sabia o que pensar.
— Entendo, e não te culpo. Há muitas pessoas maldosas nesse mundo. —
Um olhar sério surgiu em seu rosto enquanto ele dava uma olhada ao redor.
— Mas eu não sou uma delas, Beatriz.
— Perdão por pensar que era.
Fernando assentiu, aceitando minhas desculpas, e indicou onde havia
estacionado.
— Você já comeu alguma coisa hoje?
— Sim, serviram café da manhã antes de me liberarem.
— Certo. — Ele esfregou a mão direita na lateral da calça. — Vou te levar
em casa, tudo bem?
Paramos ao lado do carro dele e me virei para olhá-lo.
— Me sinto mal por estar te incomodando.
— “Vidas alheias e riquezas salvar”, esse é o nosso lema. — Colocou o
boné na cabeça e apontou para o brasão da corporação do corpo de bombeiro
bordado em seu uniforme.
Meu coração pulou uma batida quando um sorriso tomou conta de seu
rosto.
— Sendo assim, eu aceito — respondi rápido demais. — Até porque você
é a minha única opção — acrescentei atropelando as palavras.
— Fico feliz em ser útil. — Se ele notou meu desconcerto, não
demonstrou. — A sua bolsa está aí no banco da frente, caso precise do
celular — disse abrindo a porta para mim.
— Obrigada.
— Aliás, sua mãe ligou, e eu atendi.
O olhei surpresa.
— Você atendeu meu celular?
— Não era justo deixá-la sem notícias suas.
Meu coração se apertou ao imaginar a agonia que ela teria passado.
Mamãe era superprotetora, e eu ainda não acreditava que ela havia, mesmo
contrariada, permitido minha mudança. Após todo o ocorrido, senti-me
culpada por não dar ouvidos às suas preocupações.
— Ela se assustou muito?
— Acho melhor retornar à ligação quanto antes, ela disse alguma coisa
sobre ter te avisado que os índios iriam te sequestrar. — Um brilho de
diversão atravessou seus olhos.
— Vou ter que ligar depois, meu celular está sem bateria.
Fernando tomou seu lugar atrás do volante e passei o endereço anotado
em um bloco de notas para colocar no GPS do seu celular. Fiquei
boquiaberta quando ele tirou do bolso um iPhone de última geração,
mostrando que as pessoas ali não eram tão atrasadas como eu imaginava que
seriam.
Durante o trajeto, observei tudo ao meu redor a fim de me localizar.
Vilhena não era nada do que eu esperava. Logo na esquina do hospital havia
um semáforo. Fernando virou à esquerda e seguiu por uma avenida
pavimentada de mão dupla. Tamanha foi a minha felicidade ao avistar um
supermercado enorme que minha empolgação foi notada pelo motorista.
— Aqui é como você esperava que fosse?
— Para falar a verdade, não. — Paramos em outro semáforo no qual um
grande fluxo de carros transitava.
Sem mata fechada, cipó, índios ou animais selvagens.
— Decepcionada por não ver nenhuma onça por aí? — Fernando segurou
o riso e me olhou de soslaio.
Ao perceber um sorriso se formando, mordi os lábios.
— Tudo que eu sabia sobre Rondônia era de ouvir falar.
O sinal abriu, e ele seguiu pela mesma avenida. Passamos por alguns
condomínios compostos por casas exuberantes. Mais adiante, um parque
ecológico ladeava ambos os lados da via, com muitas árvores e um lago
cortando-o ao meio. Muitos ciclistas transitavam na ciclovia paralela ao
parque. Famílias faziam piquenique sobre o gramado bem aparado, enquanto
as crianças corriam até a ponte branca sobre o ribeirinho. Não muito longe
dali o Instituto Federal se erguia em uma arquitetura ampla, muito diferente
do que eu esperava.
— Você vai trabalhar aqui, não é?
— Sim, escolhi morar nesse bairro para poder ficar mais perto.
Fernando virou à esquerda, como o GPS indicava. Ele pediu que eu
conferisse o endereço e depois coçou a base do nariz.
— Há algo errado?
Ele não respondeu, apenas dirigiu por mais alguns metros e parou em um
lugar deserto. As casas já haviam ficado para trás, tudo que se via eram
estacas no chão demarcando os limites de alguns terrenos baldios.
— Sinto em dizer isso, mas acho que você foi enganada. — Apontou para
o endereço informado.
Meu sangue gelou e tudo girou ao meu redor.
— Não é possível, eu vi fotos do lugar e o rapaz até fez uma
videochamada me mostrando a casa. Paguei dois meses de aluguel
adiantado!
— Como você pode ver, não há nada aqui. Esse provavelmente é um dos
novos bairros que estão loteando. A não ser que o endereço esteja errado.
— Não está, conferi duas vezes antes de te passar.
Eu não queria chorar na frente dele, mas as lágrimas já estavam perto
demais para serem evitadas.
Minhas economias estavam contadas para sobreviver apenas por um mês
até eu receber o meu primeiro salário. A viagem não foi barata, além disso,
eu já havia desembolsado dois meses de aluguel. Meu carro estava na oficina
e era bem provável que cobrariam um rim pelo conserto dele.
— O que vou fazer agora? — As lágrimas vieram mais pesadas.
Fernando me olhou com uma mistura de pena e comoção. Tentei esconder
meu choro direcionando minha atenção para a janela.
— Não se preocupe, eu conheço um lugar onde você pode ficar.
Balancei a cabeça com veemência, tentando me acalmar.
— Não vou poder pagar por nada.
Ele não respondeu, apenas deu partida no veículo, fazendo todo o
caminho de volta. Abalada demais para prestar atenção ao redor, dessa vez
era como se tudo lá fora passasse como um borrão. Não sei por quanto
tempo Fernando dirigiu e nem quais ruas ele havia tomado até pararmos em
frente a um prédio de seis andares. Ele acionou o controle preso no quebra
sol e o portão de metal se abriu.
— Tem um apartamento aqui que você pode ficar.
— Fernando, eu não posso pagar por nada além de um quarto de hotel
barato por alguns dias até ver o que fazer.
— Você não vai ficar num hotel barato. Aqui é seguro e o apartamento já
está mobiliado. Quanto ao aluguel, você paga quando puder.
“Ele está me levando para a casa dele?”
— Eu não vou ficar na sua casa! — protestei assim que o pensamento me
ocorreu.
— Não é a minha casa.
— Mas você tem o controle do portão.
— O meu pai possui alguns apartamentos para alugar aqui. Você pode
ficar em um deles.
— Mesmo assim, o aluguel deve ser caríssimo.
— Já disse para não se preocupar com isso.
— Olha só para esse lugar, eu nunca poderia pagar nem agora e nem
nunca!
— Você pode pagar o que pagaria no outro endereço.
— Não!
Ele me olhou com os músculos do queixo tensionados.
— Você não tem muita escolha no momento. Estou dizendo que você
pode ficar aqui pelo mesmo preço que pagaria no outro apartamento e pagar
quando puder. É tão difícil aceitar uma caridade?
— De onde venho, a gente sempre desconfia quando a esmola é muito
grande — contra-argumentei com agressividade.
Fernando abriu a boca, mas fechou logo em seguida. O desapontamento
que surgiu nos olhos dele fez meu coração encolher, mas me mantive firme.
Era muito bom para ser verdade toda aquela bondade para com uma
estranha. A cética dentro de mim não me deixava confiar após ter sofrido um
golpe.
— Com o tempo você irá perceber que a maioria das pessoas daqui são
solidárias. Sei que você não sabe nada sobre mim e acabou de descobrir que
foi enganada. Eu te entendo e no seu lugar também não acreditaria em outra
pessoa, mas você pode confiar em mim.
Relutante, e sem outra opção, aceitei ver o apartamento. Eu estava
exausta, chateada e precisava resolver toda aquela situação.
Subimos de elevador em completo silêncio até o último andar. Fernando
parou em frente a porta 15A e procurou a chave no chaveiro que havia
pegado no carro.
O lugar era uma espécie de loft claro, limpo, aconchegante e com móveis
que combinavam um com o outro. A sala, copa e cozinha eram interligadas.
Apenas a suíte tinha um espaço privado. Uma pequena sacada dava vista
para o pátio pelo qual havíamos entrado.
— O que achou?
— É ótimo aqui. Tem certeza de que seus pais não se importarão de eu
não dar nenhuma entrada no valor do aluguel?
— Administro os apartamentos, tenho carta-branca quanto a isso, não se
preocupe.
Suspirei, envergonhada e sem escolha.
— Então fico com ele.
— Ótimo! — Seu sorriso provocou uma descarga de adrenalina no meu
coração. — Vou buscar suas coisas.
— Eu te ajudo.
— Você acabou de sair do hospital, não pode se esforçar.
— Estou bem e é muita coisa para você trazer sozinho.
— Peço para alguém lá embaixo me ajudar. Sente-se aí e espera —
ordenou, apontando para o sofá.
Quando Fernando saiu, peguei o carregador do meu celular e o conectei à
tomada do quarto. Quase que imediatamente, um milhão de mensagens e
chamadas perdidas pintaram na tela do aparelho. Minha mãe beirava o
colapso nervoso ao atender a minha ligação.
— Por Deus, Bia! O que aconteceu com você? Eu já estava prestes a
embarcar em um avião para te procurar.
Relatei o ocorrido, deixando-a ainda mais aflita. Ela disse que era para eu
ir embora o quanto antes e esquecer de uma vez aquela ideia maluca de
morar sozinha em um estado tão longe dela. Com calma, fui contornando a
situação e dizendo que Rondônia, à primeira vista, era como todo e qualquer
estado. Não o fim do mundo que desenhavam nos grandes centros.
Quase uma hora depois, encerrei a ligação e voltei para a sala, todos os
meus pertences estavam lá. Sobre a mesa encontrei a chave do apartamento e
o cartão da oficina onde meu carro seria consertado. Em um folheto do corpo
de bombeiro havia dois números de telefone rabiscados. Ao lado de um dos
números estava escrito delivery e no outro, Fernando.
Eram cinco horas da manhã quando ouvi meu celular notificar uma nova
mensagem. Estava com tanto sono, que ignorei e voltei a dormir. Um tempo
depois, mais uma vez meu telefone apitou; várias vezes, na realidade.
Sonolenta, peguei o aparelho e abri o aplicativo notificado. Despertei de
imediato ao ver que as mensagens eram de Fernando, pedindo para eu
encontrá-lo no barco em dez minutos. Respondi que estava indo e pulei da
cama para me arrumar.
Meu coração parecia estar descontrolado e minhas mãos tremiam ao
escovar os dentes e vestir um moletom.
Fernando já estava no barco quando cheguei ao local combinado. Um
sorriso cativante iluminou seus lábios ao se levantar para me receber.
— Precisa de ajuda para descer? — Ofereceu, estendendo a mão para
mim. Parei no barranco e fitei sua mão, recordando de seu voto de
“castidade”. — Você pode segurar a minha mão se quiser. — Seu olhar era
intenso ao pronunciar as palavras. — Aliás, acho que ultrapassamos esse
ponto, já que te carreguei no colo duas vezes!
— Duas vezes?
— Como você acha que saiu do seu carro e foi parar dentro do meu no dia
do acidente? — Minhas bochechas queimaram, e eu podia jurar que estava
mais vermelha que um morango maduro. — Desculpa, não quis te
constranger.
— Tarde demais!
Dessa vez, o seu riso foi alto, parecia brotar de um lugar escondido, que
ele não revelava a muitas pessoas. Aceitei sua mão estendida e o toque em
sua pele foi eletrizante.
Quando eu lia sobre a tal descarga elétrica que percorria os braços dos
personagens nos romances, achava um exagero do escritor, porém, ao sentir
seus dedos envolverem os meus, uma sensação tão boa tomou conta de mim,
que dei razão a todos eles. Compreendi também o porquê de Fernando se
abster daquele simples toque que enchia o meu coração de expectativa.
— Aonde vamos?
— Ver o sol nascer.
Mirei seus olhos e estreitei os meus.
— Isso parece um pouco romântico demais, você não acha? — provoquei,
sentindo que tinha liberdade para isso.
— Tudo bem para mim, se é isso que parece para você — disse ele ao dar
partida no motor da voadeira.
A adolescente dentro de mim gritou sem acreditar no que meus ouvidos
haviam acabado de escutar. Ele estava, finalmente, se declarando? Minha
pele formigava, e eu mal me continha no meu lugar. Um milhão de
possibilidades agitava a minha mente, assim como o vento no meu cabelo.
Fernando parou o barco em certo ponto, bem no meio do rio Guaporé. Ele
parecia reflexivo, como sempre, e nada disse por um longo tempo. Também
fiquei em silêncio, esperando sua iniciativa, olhando para o ponto que ele
também mirava.
Não demorou, o sol emergiu por de trás das copas das árvores, colorindo o
horizonte e a água com raios dourados. Assim como no pôr do sol do dia
anterior, eu me emocionei com aquele espetáculo da natureza, não contendo
as lágrimas.
Fernando se mantinha quieto, então apenas aguardei que ele começasse a
se declarar. Porém, nada aconteceu.
— Obrigada por isso — falei, não suportando mais. — Acho que nunca
tinha visto o sol nascer antes. Foi lindo.
— Que bom que gostou. Eu precisava me desculpar adequadamente após
ter feito você cair. Aquele tombo poderia ter sido bem sério. “Então era
disso que se tratava? Apenas um pedido adequado de desculpas? Sem
declaração de sentimentos nem nada?” — Precisamos voltar agora. O
pessoal quer tentar pescar alguma coisa antes de irmos embora.
O entusiasmo escapou do meu coração como o ar de um pneu furado, mas
forcei um sorriso para que ele não notasse.
Fizemos o caminho de volta e, vez por outra, eu o olhava de relance,
buscando ler o que se passava naquela cabeça e semblante indecifrável. Por
fim, desisti de tentar e comecei a apreciar a paisagem ao redor.
Quando chegamos à casa, todos ainda dormiam. Dentro de mim, uma
desolação igual tomava conta, deixando-me exausta. Gostar do Fernando era
como estar numa roda gigante. Uma hora eu estava lá em cima, criando
expectativas e sonhando com um futuro promissor entre nós, para no
momento seguinte estar lá embaixo, vendo todos os meus planos frustrados.
Deitei-me na cama e cobri minha cabeça com o cobertor, deixando aquela
sensação ruim sair com uma longa coleção de lágrimas até que adormeci.
Horas depois, despertei com o barulho de uma forte chuva no telhado e
um dos carros sendo ligado na garagem ao lado da janela. O quarto estava
vazio e a bagagem das garotas não estava mais lá. Ao sair do quarto,
encontrei Fernando e Raysa na cozinha.
— Cadê todo mundo?
— Lúcio precisa voltar agora devido ao trabalho — Raysa informou
fechando o zíper da sua mochila. — Vou voltar com ele e o restante do
pessoal, você não se importa de ir sozinha com o Fernando, não é?
Ela sorriu e alternou o olhar entre mim e ele.
— Não — respondi, desanimada. No mínimo, faríamos todo o trajeto,
cada um ocupado com seus pensamentos.
No carro, eu decidi que iria seguir o exemplo de Fernando e ficaria quieta
no meu canto. Se ele quisesse algum tipo de conversa, teria que tomar a
iniciativa dessa vez.
— Espero que não se importe, mas preciso passar em um lugar no
caminho — disse ele quando deixamos a pequena cidade de Pimenteiras
para trás.
— Tudo bem, eu não tenho nenhum compromisso à minha espera.
— Ótimo. — Fernando apontou para o som do carro. — Se quiser colocar
uma música, fique à vontade. Tem um pendrive no porta-luvas.
Como eu sabia que o silêncio seria nossa companheira de viagem, liguei o
som. Um sertanejo gospel explodiu pelos alto-falantes, fazendo-me olhar
surpresa para ele, batucando os dedos no volante. Eu tentei não rir ou
comentar sobre seu gosto musical, mas quando ele começou a cantar “Oh,
oh, oh, eu vou levando paz e amor. Oh, oh, oh, foi esse Deus que me
salvou[4]”, não aguentei e rompi em uma gargalhada.
— Ah! Vai me dizer que não gosta desse estilo de música? — Ele revidou
em tom de implicância. — Isso é poesia pura!
— Não é não. Poesia são as músicas do Projeto Sola, Marcela Taís, entre
outros. Não isso! — Apontei para o som, indignada.
— Essas são legaizinhas também. Mas são músicas assim que me
representam.
E lá estava o Fernando, leve e divertido outra vez, me confundindo. Nesse
clima descontraído, seguimos viagem, um rebatendo o gosto musical um do
outro. Em determinada altura da rodovia, Fernando tomou um caminho de
cascalho. Passamos por duas curvas, uma ponte e uma porteira aberta. Após
percorrer alguns metros por uma estrada estreita, uma casa ladeada por rosas
coloridas despontou ao pé de um alto monte.
— Que lindo aqui. Onde estamos?
Fernando desligou o carro e a música parou. Ele olhou para mim, seus
olhos ficaram mais penetrantes quando deu um sorriso torto.
— Na casa dos meus pais. — Meu sangue gelou, meu coração acelerou,
minhas mãos começaram a suar sem eu saber por que, até ele ficar sério de
novo. — Eu queria te apresentar para eles.
Quase 5 horas de uma longa viagem de ônibus fez meu corpo vibrar de
alegria quando entramos na casa da tia Lídia, a quase 300km da nossa casa.
Na verdade, ela não era minha tia de sangue, era irmã do pai do Leo, mas eu
acabei adotando o título para mim também, uma vez que a simpatia e
carinho dela criavam um caminho de adoção para novos sobrinhos — e ela
mesma havia solicitado para eu me referir a ela assim.
Fomos acolhidos com uma mesa farta de café da tarde, com delícias bem
típicas da culinária mineira. Nos sentamos à mesa com Tia Lídia e Ana, uma
adolescente de 13 anos, filha dela.
— E como vai sua mãe? — Lídia perguntou com aquele jeito que
demonstrava interesse genuíno, não apenas cordialidade. — A última vez
que nos encontramos foi há muitos anos, desde então tive poucas notícias.
— Ela está bem, graças a Deus. Tem trabalhado bastante.
— E você? Ainda está envolvida com o abrigo da Elisa? Leo contou que
tem recebido muitas crianças. Vi umas fotos suas em algum trabalho com
elas na internet, não foi?
— Sim — respondi tentando conter o entusiasmo. — Vou todas as tardes,
exceto nos fins de semana. Eu ajudo como posso, mas confesso que meu
trabalho preferido é no berçário.
Eu amava ficar com os bebês e oferecer meu tempo para cuidar deles. A
pior parte era que às vezes me apegava a algum e precisava me despedir
depois, quando eles partiam. Foi preciso aprender a lidar com minhas
emoções e confiar nos planos de Deus enquanto ofertava meu tempo com
trabalho voluntário no abrigo coordenado por minha tia Elisa. Havia sido ela
quem despertou em mim aquela chama em relação a missões, o desejo de
seguir os mesmos passos e dedicar minha vida ao Senhor em tempo integral,
ainda que isso significasse abrir mão do casamento, como tinha acontecido
com ela.
— Tia — Leo interrompeu nossa conversa, sem cerimônias, depois de
lamber um dedo sujo com cobertura de chocolate —, o soldado Franco já
chegou?
— Não — foi Ana quem respondeu. — Aquele lesado marcou um
compromisso para à noite, se esqueceu de que mamãe pediu para estar aqui
hoje.
— Ana, isso são modos de falar do seu irmão? — Tia Lídia a repreendeu e
sorriu para o sobrinho. — Graças a Deus ele conseguiu um tempo para
participar do Projeto com a gente, irá nos encontrar já no distrito de Ipitinga.
— Mamãe está emocionada porque o filho preferido dela chega amanhã.
— Não seja boba, Ana. Não tem essa de filho preferido — tia Lídia
ralhou. — Mas, sim, estou feliz. A última vez que Tito veio foi nas férias e
sinto falta dele, mesmo estando muito feliz com o caminho escolhido por
ele.
Franco, cujo nome na verdade é Tito, era o primo mais velho de Leo. Nosso
único contato foi numa festa de aniversário do nosso primo em comum
quando eu ainda era uma bebê espevitada e ele uma criança quieta. Sabia,
por relatos posteriores, que ele serviu ao exército e atualmente era
missionário. Aliás, para meu deleite, havia cursado a escola de missões que
eu tanto ansiava, no Instituto Jim Elliot. Além da curiosidade para conhecer
o tão amado e falado Franco, eu queria fazer algumas perguntas em busca de
tentar encontrar uma luz para meu futuro.
Na manhã seguinte, Leo foi obrigado a me ouvir falar mais uma vez sobre
meus romances cristão preferidos. Ana e mais três meninas estavam muito
interessadas em conhecer as histórias de amor por trás de cada livro indicado
por uma leitora assídua do gênero. Meu primo aproveitou para fazer graça,
uma vez que ele já tinha me ouvido falar sobre esse assunto dezenas de
vezes.
— Sabe o que é o melhor de tudo? Eles são romances puros como
Napáuria sempre sonhou! — Leo forçou a voz para parecer uma garota
empolgada. — Entendem? Existem príncipes encantados que também
pensam como a doida da minha prima!
— Ah, não enche, Leo. — Joguei um pedacinho do meu pão nele. — Só
porque você pensa diferente, não significa que tem direito de zombar das
minhas decisões. — Ignorei a risada dele e me voltei para as meninas. — E,
sim, tem príncipes, fazendeiros e soldados também. Todos são personagens
incríveis com quem eu me casaria num piscar de olhos.
Mais tarde, quando lavávamos os nossos pratos, Ana se aproximou e deu a
entender que gostaria de compartilhar algo privado.
— Você poderia indicar esses livros para o Tito. Sabe, ele me paga para
ler livros cristãos, e eu adoraria incluir alguns romances na minha lista.
— Se você quiser ler, pode fazer isso mesmo sem receber recompensa
financeira do seu irmão. Não?
— Poder eu até poderia, mas ele e minha mãe não confiam nas minhas
escolhas. Temem que eu leia livros com conteúdo inapropriado. — Ela
cruzou os braços em frente ao peito e a feição era de uma adolescente
frustrada. — Não vão acreditar em mim se eu pedir.
— E você quer que eu interceda por você?
— Sim. — O olhar se tornou esperançoso. — Se você contar para ele que
leu e o assunto do livro, talvez ele até me dê de presente. Não sei se sabe,
mas meu irmão também pensa com você.
— Como eu? — Franzi a testa sem entender ao que ela se referia.
— Isso, esse negócio de não beijar, namorar para casar e tal — ela
respondeu e as bochechas ficaram um pouco coradas.
Não pude esconder a surpresa. Era a primeira vez que conhecia um rapaz,
assim de perto, com esses princípios. Embora tivesse repetido diversas vezes
para meu inconsciente que deveria haver alguém no mundo com o mesmo
pensamento, na verdade, toda a minha expectativa girava em torno de que o
rapaz certo aceitaria minhas condições, pois eu não renunciaria a elas. Seria
como Dylan[7], ele precisou levar umas bibliadas do Carlton[8] e receber
muitos conselhos para abrir os seus olhos.
— Você tem certeza disso? — Me esforcei para não parecer tão
interessada.
— Tenho — ela confirmou balançando a cabeça.
— Bem, vou ver o que posso fazer por você.
O sorriso de Ana se abriu e ela me abraçou. Depois saiu, saltitando igual
uma criança feliz.
Após terminar de lavar meu prato, peguei minha Bíblia e segui para o
local onde teríamos uma reunião. Escolhi um lugar na frente e fiquei
observando a equipe de louvor passar o som, no aguardo de Leo para me
fazer companhia. Ao meu lado, duas meninas que eu não conhecia
conversavam animadas e o tom de voz não foi baixo o suficiente para
esconder dos meus ouvidos o assunto de terceiros.
— Ele quem vai pregar hoje, tenho certeza. Ouvi tia Lídia dizendo na hora
do café.
— Ele é um sonho de consumo! Eu bem que gostaria de ser a felizarda,
mas sou muito nova para ele.
— Claro que não! — a outra replicou. — Ele tem 23 anos. São só três
anos de diferença.
Abaixei a cabeça e sorri. Lembrei-me de como as mulheres podem saltar
bem rápido de um pequeno gesto de gentileza para planos de casamento. Eu
mesma havia me iludido, o fato de um garoto denominado cristão ter se
interessado por mim e declarado esse amor me pareceu um sinal de que tinha
encontrado a pessoa certa. No final, minha expectativa se transformou em
um grande coração partido, regado por mágoas. E eu nem poderia me isentar
da culpa, havia dado espaço para a paixão e me envolvido com a desculpa de
buscar a vontade de Deus, quando, na verdade, apenas alimentava algo sem
futuro.
Uma pontada de tristeza cutucou meu coração e eu suspirei. Eu aprendi a
lição, apesar de tudo. Faria diferente na próxima oportunidade. Já tinha
deixado meu coração solto o suficiente para se apaixonar dezenas de vezes.
Eu estava convicta de que o guardaria a partir de então. Meu foco seria o
Senhor.
Ainda pensando em minhas resoluções, uma voz grave ressoou no
microfone, interrompendo minhas divagações. Franco convocava toda a
turma para assumir seus lugares para dar início à reunião. Com uma Bíblia
na mão e um esboço em um papel, ficou claro quem traria a mensagem
naquela manhã. Era ele o crush das meninas ao meu lado.
Quando fizemos contato visual ele sorriu e, não sei por que, estremeci por
dentro.
Os dois dias seguidos do Projeto poderiam ser descritos com poucas
palavras: muito trabalho e Franco. Trabalho porque não paramos um
segundo sequer. Eram devocionais, momentos de oração, reuniões e cultos, e
serviços que envolviam evangelismos, visitas e manutenção. Quanto a
Franco, apesar da minha expectativa de conversar com ele em algum
momento sobre o Instituto de missões, nós não trocamos mais do que
algumas palavras de cortesia, grande parte na companhia da família dele —
exceto o momento em que ele fez uma brincadeira sobre o secador
exterminador de cachos. Mas, ainda assim, Franco parecia estar em tudo.
Era impossível não notar a presença dele, fosse pregando, orando, liderando
grupos, carregando caixas, servindo como podia e até dançando — sim, ele
dançava, com passos atrasados, muito atrasados, mas dançava. Sem
mencionar as centenas de vezes em que o nome dele estava na boca das
pessoas. Era “Franco isso, Franco aquilo, Franco é incrível, Franco me
ajudou, Franco resolve, fale com o Franco”... Ele preenchia todo o espaço.
O fim de semana também aumentou ainda mais meu desejo de dedicar ao
menos parte da minha juventude para servir ao Senhor em tempo integral,
começando pela escola missionária na qual eu me capacitaria. Estava
convicta de que Deus havia me enviado para aquele lugar para encontrar
meu caminho. Talvez, enfim, minhas orações estivessem sendo respondidas.
E foi com esse sentimento que fechei o zíper da minha mala, pronta para
deixar o distrito a caminho da casa de tia Lídia, onde permaneceria mais uns
dias antes de pegar o ônibus de volta para minha realidade.
— Ei, Napáuria — Leo me chamou assim que coloquei os pés no salão
onde estava sendo organizada a partida. Obedeci às ordens das mãos dele me
chamando para perto. — Tia Lídia pediu para avisar que você vai com o
Tito.
Ergui as sobrancelhas e ia abrir a boca para perguntar o motivo da
mudança, mas o próprio Franco apareceu com um molho de chaves na mão.
— Ei, parece que vou ser seu motorista — ele brincou e apontou para o
portão. — Minha mãe te escalou como minha companheira de viagem.
Não sei por que, mas a informação ameaçou minhas bochechas a
alcançarem um tom a mais de vermelho. Assenti com a cabeça, me despedi
do meu primo e segui atrás do rapaz. Ele ainda parou duas vezes para falar
com alguém antes de chegarmos à caminhonete. A pedido, entreguei minha
mala para ele, que a colocou na traseira, ao lado de cadeiras, panelas,
mantimentos e tantas outras coisas mais. As portas se fecharam e ficamos
isolados dentro do automóvel, embalados pelo som da música que tocava
baixinho no som.
Sertanejo? E gospel? É sério isso?
Eu não era a pessoa mais sociável do mundo, mas também não era tímida
a ponto de não conseguir falar. Eu poderia zombar do péssimo gosto musical
dele, por exemplo. Porém alguma coisa estranha me forçou a ficar quieta até
ele começar um diálogo amigável.
— Então acho que temos uma hora pela frente e podemos aproveitar para
ter aquela conversa. — Ele deu a partida no carro.
— Seria ótimo — respondi sentindo o ânimo voltar. — Eu gostaria muito
de saber sobre seu tempo no Instituto, principalmente.
Franco sorriu e fez que sim com a cabeça. Ele olhou pelos retrovisores e
fez o carro iniciar a jornada.
— Antes de eu começar a contar, posso perguntar o motivo do seu
interesse? Você pretende fazer o curso?
— Sim! — respondi com convicção. Então, parei, refleti por um segundo
e me corrigi. — Quer dizer, não sei ainda. Eu quero muito, mas não me
decidi.
Ele não disse nada e senti necessidade de dar continuidade na conversa.
— Há alguns anos eu passei a pensar na possibilidade de fazer missões.
Tudo começou com minha tia, que dedica os dias dela coordenando um
abrigo. Minha frequência por lá e o exemplo de vida dela despertaram algo
aqui dentro. — Apontei para meu coração. — Depois conheci um
missionário que me apresentou o Instituto Jim Elliot e várias biografias de
cristãos que dedicaram suas vidas a Deus. Eu passei a fazer pesquisas e
pensar de maneira séria na possibilidade de me formar no Ensino Médio e
entrar para o Instituto. Mas não é uma decisão simples, não quando algumas
pessoas esperam de você algo diferente, como uma faculdade ou um
emprego “de verdade”.
Sem pensar, deixei o suspiro de frustração encontrar um espaço de saída
entre meus lábios.
— Há decisões tão difíceis a se tomar. Às vezes, eu só queria que Deus
mandasse um sinal, ou a resposta bem clara, sabe? Algumas escolhas
demandam renúncias e isso torna a responsabilidade maior — falei.
— Entendo. Você se sente perdida sem saber qual o melhor caminho e
tudo o que quer é uma solução que não dependa só da sua decisão. Uma
intervenção divina seria bem-vinda.
Abri um sorriso largo e ele me olhou por um instante antes de voltar o
olhar para a estrada.
— É exatamente isso! Uma intervenção divina... — Eu ri mais uma vez.
— Seria bastante propícia.
— Eu passei por isso. E não, não houve nenhum sinal sobrenatural para
me orientar, só pessoas sábias me aconselhando. Eu precisei fazer minha
escolha. Mas, olha — ele fez uma pausa e sorriu —, não me arrependo dela,
ainda que às vezes me peguei pensando como teria sido minha vida. É bem
provável que estaria batendo continências até hoje.
— Continências?
Sem tirar os olhos da estrada, Franco levou a mão até o pescoço, pegou
uma espécie de colar e passou pela cabeça, retirando-o. Ele me entregou um
cordão de metal com uma plaquinha de identificação com alguns dizeres.
Lembrei-me de Dylan Fox, mas era o nome do Franco que estava gravado
em letras de forma no metal.
— Franco, Tito. 2 Timóteo 4:7.
— “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé”. Fiz essa
plaquinha para me lembrar que ser um soldado de Cristo, combater o
combate da fé e seguir a carreira como um cristão é o meu principal alvo.
Franco passou a me contar sobre seu amor pelo Exército. Como, desde
criança sonhava com o dia em que vestiria uma farda e serviria ao país.
Quando a adolescência chegou, o sonho de infância se tornou um alvo, a
busca dele pelo futuro. Mas foi também na adolescência quando ele teve um
encontro real com Cristo e compreendeu com verdade em seu coração todas
as coisas ensinadas por seus pais. E, proporcionalmente ao seu amor pelo
Exército, cresceu seu amor por Deus.
— E foi ali que aprendi o primeiro significado de renúncia para o Senhor.
— Ele apertou os lábios diante de uma lembrança desconfortável. — Eu
mantinha um relacionamento que desagradava a Cristo e estava bem longe
dos padrões de pureza para um cristão. A princípio, tentei mudar o modo
como era conduzido o namoro, mas a garota não quis colaborar. Ela não
aceitou bem a ideia de impormos certos limites. Aliado a isso, comecei a
entender o motivo de meus pais serem contra nossa união. Embora ela
frequentasse a igreja, não tinha um coração em Cristo. — Ele riu. — Bem,
como eu também não tinha até a maravilhosa graça me encontrar.
— Posso imaginar o final da história. Você rompeu com ela.
— Isso. E tomei a decisão de nunca mais me relacionar de forma tão
leviana como fiz. Eu era muito novo, nem deveria estar namorando. A partir
de então, passei a esperar pela moça com quem pretendo me casar. Mas
ainda acho que vai demorar um pouco, no momento quero reservar toda a
minha atenção para o Senhor. Talvez daqui uns cinco anos, quem sabe?
— Nisso estamos bem alinhados. Eu sofri uma decepção amorosa há
pouco tempo e entendi que não é hora de me preocupar com isso.
Casamento, no caso, só daqui uns cinco anos também.
— Uma decepção amorosa costuma deixar marcas — ele disse num tom
que não soube identificar se falava sério ou brincava.
— Ah, deixa. Ainda mais em uma romântica como eu. Eu estava bem
iludida, assumo. Pensei ter encontrado um Príncipe Alexander e ele estava
mais para um Ewan[9] imaturo com belas palavras e uma atitude de moleque.
— Meu olhar se repousou num ponto à frente e minha mente vagou para o
dia em que a ficha caiu e eu percebi a furada na qual estava me metendo ao
buscar uma resposta quando os sinais estavam claros bem na minha frente.
— Acho que eu deveria parar de ler romances, eles só me iludem e eu nunca
vou encontrar um rapaz como meus mocinhos preferidos — desabafei mais
para mim mesma.
— Você não vai me dizer que nenhum homem presta e que todos são
iguais, como as feministas, né? — ele perguntou, forçando uma indignação
em meio ao sorriso.
Eu ri.
— Estava bem perto de dizer algo parecido, mas vou mudar o discurso.
Sei que existem homens bons, as exceções por aí. É só que está cada dia
mais difícil encontrar um rapaz piedoso, sabe?
Uma gargalhada explodiu e o som da risada dele me impediu até mesmo
de ouvir a música tocando. Fui contagiada pelo momento e ri também,
embora não soubesse o motivo.
— Você acabou de me ofender! — Ele limpou a lateral dos olhos úmidos.
— Desculpa por não fazer parte da exceção e não ser como um personagem
piedoso dos seus romances.
— Não foi isso que quis dizer! — protestei, mas acabei fazendo a gente rir
ainda mais. Quando nos acalmamos, quis corrigir as coisas. — Você até se
parece com um, sabia? O Dylan era soldado, assim como você! Ele também
mudou a visão sobre relacionamentos ao se converter. Aposto como você ia
gostar de ler o romance dele. — Ergui um dos ombros com falsa indiferença.
— Essa é uma experiência que não tenho vontade de vivenciar. Mas fico
lisonjeado por você me comparar a ele.
— Vamos voltar ao assunto de missões. Você estava falando sobre
renúncia.
— Sim, é verdade. Como você, também tive contato com missões através
de um amigo da minha família. Ele era da nossa igreja e havia sido enviado
ao campo e gostava muito de missões com povos indígenas. Não sei como
aconteceu, mas de repente eu passei a pensar no meu futuro assim. E aí, tive
uma grande luta de interesses.
Franco contou como ficou dividido entre o sonho antigo e o novo desejo.
E piorou quando ao se alistar, foi convocado a prestar o serviço militar
obrigatório. Ele se apaixonou ainda mais e esqueceu por um tempo sua outra
opção.
— Eu amava tudo que era relacionado ao Exército e queria muito
continuar em uma carreira militar. Passei a pesquisar todos os caminhos e
opções que eu tinha e estava decidido. Até abrir um e-mail desse amigo
missionário com o testemunho de uma conversão. Aquilo mexeu comigo e
eu me vi numa encruzilhada. E estive nesse ponto onde você está, de
precisar tomar uma decisão.
Houve silêncio. Cada um envolvido em seus próprios pensamentos. Olhei
para a plaquinha de identificação que eu ainda segurava e li outra vez os
dizeres.
— Em relação a você, acho que tenho uma vantagem. Não tenho nenhum
grande sonho. Eu não estaria abrindo mão de nada que me é valioso para
fazer missões — declarei. — Mas me conte, pelo presente já sei qual foi sua
escolha do passado. Como foi ir para o Instituto e o que você faz agora? Ana
já me deu alguns spoilers, disse que você tem ajudado uma igreja aqui
mesmo em Minas. Mas não me importo de saber tudo.
Ele sorriu. Aquele tipo de sorriso que invade os olhos. Que denuncia a
afeição.
— Com muito prazer!
E foi assim que o trajeto se tornou curto até a casa de Tia Lídia, com
tantos assuntos em comum entre nós a compartilhar.
— Napáuria!
Abri os olhos com relutância e encontrei Ana parada em frente à minha
cama. Ainda desnorteada pelo sono, encarei a menina e murmurei alguma
coisa.
— Tito pediu para eu acordar você. Vem, não demora, ele está esperando
na cozinha.
Assim que ela me deixou, sentei-me na cama e esfreguei os olhos. Peguei
o celular na mesinha ao lado e precisei olhar duas vezes para ter certeza das
horas. Eram 5h30 da manhã. O que Franco queria comigo tão cedo?
Com as pernas pesadas, me levantei. Em frente ao espelho, conferi se
minha calça de moletom e blusa larga me deixavam ao menos apresentável e
prendi os cachos rebeldes. Passando as mãos no cabelo para tentar abaixar o
frizz, desci as escadas a caminho da cozinha, de onde vinha som de
cochichos. Avistei Ana, Leo e Franco, todos animados, como se não fosse
madrugada.
— O que aconteceu? — perguntei depois de bocejar.
— Vamos caminhar. Ana quis ir junto, pensei que talvez você também
desejasse se unir à gente — Franco me entregou uma caneca cheia de café.
— Vamos pegar um caminho aqui perto, uma estrada com muito verde ao
redor.
— Vamos, Napáuria! Vai ser divertido!
Caminhar era, de longe, minha atividade física preferida. Avaliei a
empolgação dos meus companheiros, todos com roupas leves e tênis no pé.
Bebi um gole do líquido quente para despertar enquanto pensava no assunto.
Não seria nada mal me exercitar um pouco. E eu estava gostando muito da
companhia de Franco, não dava para negar. As conversas com ele eram
sempre interessantes e há tempos não me sentia tão bem perto de um amigo.
— O que é preciso para a aventura? — Me rendi à ideia.
— Uma roupa e sapatos confortáveis. Só isso. Estou providenciando a
água — Franco respondeu.
Tomei o resto do café junto com a torrada que me foi oferecida. Depois,
voltei para o quarto, troquei minha roupa e ajeitei melhor meu cabelo. Em
alguns minutos estava me unindo à turma e partimos rumo à nossa trilha.
Seguimos pelas ruas quase desertas da cidade, com um ou outro
trabalhador indo para a labuta diária. Ana estava muito animada e falava
comigo sem parar, enquanto Leo e Franco conversavam sobre futebol.
Depois de quinze minutos, nós entramos numa via que terminava numa rua
de terra. A princípio, havia alguns sítios ao lado, mas, com o tempo, a
estrada era ladeada apenas de árvores.
— Que lugar lindo! — declarei após constatar que o esforço estava
valendo a pena.
— Espere mais um pouco porque vamos parar para descansar em um
lugar sensacional — Franco declarou.
Fiquei esperando o tal lugar chegar. Na próxima curva, talvez. Quem sabe
logo ali na frente? Então desviamos do caminho principal e pensei estar
próxima do nosso destino, porém, após subir um largo trecho bastante
inclinado, indo para o lado da mata, comecei a desconfiar de que ainda
estávamos longe.
— Falta muito? — perguntei para Franco após observar que Ana estava
calada, talvez poupando esforços ao falar. Eu mesma já estava ofegante,
cansada, com os pés doendo e pensando em todo o caminho de volta.
— Para o nosso lugar de descanso? Não, estamos próximos.
Assenti e continuei concentrada no chão cheio de pedras e buracos. Ana
pediu uma pausa para tomar água, mas o irmão a incentivou a continuar
porque o nosso ponto de descanso era logo ali. E, de fato, após uma curva,
um riacho com água transparente corria em meio a pedras, formando uma
espécie de cachoeira. Havia um espaço limpo perto da margem e nós nos
sentamos ali. Minhas pernas agradeceram pela pausa e o corpo ficou
satisfeito com a hidratação fornecida pela água. Tito se sentou ao meu lado e
me ofereceu uma maçã. Depois, tirou ovos cozidos e colocou no meio da
nossa roda, incentivando-nos a comer para repor as energias. Aceitei e, com
calma, apreciei a vista enquanto descascava o alimento para comê-lo ao ar
livre.
A conversa fluiu e Franco passou a relatar alguns casos que ocorreram
com ele quando prestou serviço militar. Era nítido o quanto ele amava o
assunto. Os olhos brilhavam e a expressão se abria enquanto relatava.
— Uma vez estávamos fazendo uma inspeção, algo que acontece de
tempos em tempos no quartel. Éramos divididos em grupos. Naquela
ocasião, o assunto era primeiros socorros. Houve uma simulação de um
acidente e a vítima foi ferida na cabeça. O sargento perguntou ao rapaz do
meu lado qual procedimento deveria ser feito. Ele não sabia responder, então
eu dei a dica em voz baixa: “um torniquete[10] no pescoço”. — Franco soltou
uma gargalhada.
— Um torniquete no pescoço? — indaguei abismada com a ideia absurda.
— Vocês queriam salvar a vida do ferido ou matá-lo mais rápido?
— Mas você não sabe o pior! O rapaz acreditou que eu estava falando
sério e repetiu em voz alta. O sargento ficou uma fera. — Ele tomou ar para
controlar o riso. — E eu fiquei de castigo porque não aguentei e gargalhei
muito.
O grupo todo se contorceu de tanto rir. Leo achou a atitude do primo
genial.
— Bons tempos aquele — Franco disse. — Nunca me esquecerei da
expressão do sargento.
— Qual foi o castigo? — Ana quis saber.
— Fiquei duas horas extras limpando a cozinha. Mas depois dessa aprendi
minha lição. — Ele piscou para mim.
Ana avistou uma árvore a alguns metros e perguntou se eram goiabas
penduradas nos galhos. Franco assentiu e atraído pelas frutas, ele e Leo
foram catar algumas no pé. Não sei como, mas o diálogo entre mim e a
menina acabou entrando num assunto que eu não esperava.
— Tem várias meninas da igreja que são loucas com meu irmão — Ana
disse, referindo-se ao sucesso de Tito entre as mulheres. — Já ouvi minha
mãe comentar sobre a paixão de anos da Letícia. Tem também a Gabriela e a
Maria. Eu suspeito que a Michele também gosta dele.
Sem querer meus olhos foram atraídos para o homem pendurado no galho
da goiabeira. Ele não era o tipo popular, como Dylan de Orei por você, um
dos meus livros preferidos. Tá, ele até tinha um certo charme, como havia
reparado no dia anterior, mas não era nenhum tipo modelo ou conquistador,
algo assim. Era atencioso, sim, isso é verdade. Porém, nada demais. Talvez
fosse exatamente a postura de seriedade que atraísse as meninas. Quem sabe,
talvez, a falta de rapazes solteiros na igreja?
— E ele não tem interesse em nenhuma garota? — perguntei sem entender
de onde vinha meu interesse no assunto.
— Não sei. — Ana deu de ombros. — Acho que não. Ele estava de
conversa com uma moça há um tempo, mas não deu em nada.
Uma moça? Quem seria? Será que eu havia conhecido? Mas por que eu
estava pensando nisso?
— Ele é um cara difícil, então — concluí e Ana riu.
— É um irmão chato e exigente, isso sim
— Como bons irmãos mais velhos costumam ser.
Os rapazes retornaram com as camisas cheias de goiabas. Mas, para a
minha infelicidade, estavam todas recheadas de bichos. Não que eles se
importassem. Franco e Leo comeram, garantindo que bicho de goiaba,
goiaba é, e que era pura proteína.
Eca!
— Acho melhor partirmos, há um bom caminho pela frente. — Franco se
levantou e estendeu a mão para mim, me ajudando a levantar.
— Espera! Bom caminho? A gente vai andar muito ainda?
— Passamos um pouco mais da metade — ele falou com naturalidade.
— Metade? — Me afastei e arregalei os olhos. — Como assim, um pouco
mais da metade? Quanto é? Qual a distância?
— São 12 quilômetros de casa até o ponto final. De lá pegaremos um
ônibus para voltar.
Minha boca se abriu. Eu ia falar de imediato, mas precisei de um tempo
para processar a informação.
— 12 quilômetros! 12 quilômetros? — Coloquei as duas mãos na cabeça.
— Você está louco? Como me chama para uma caminhada de 12
quilômetros sem me avisar antes? É preciso preparo físico para fazer uma
atividade assim! No mínimo um preparo emocional. Não sei se reparou, mas
eu não sou uma atleta!
Franco me encarou sem saber o que responder. Leo já estava rindo e Ana
um pouco assustada.
— Não é tão ruim assim. Você tem se saído bem. Logo vamos chegar e...
— Melhor voltarmos!
— Não sei se você entendeu, mas passamos da metade, — Leo achou
graça do meu drama. — Voltar se torna um caminho mais longo do que se
continuarmos.
— Ai, estou perdida! Meus pés doem, estou cansada e com fome. Ovos
cozidos, maçã e goiabas bichadas não são o tipo de alimento que uma
sedentária como eu precisa diante de tanto esforço! E estamos aqui nesse
caminho que não chega nenhum carro! Quem vai me resgatar se eu não
conseguir mais andar?
Franco deu um passo à frente, me deu as costas e ergueu as mãos em cima
dos ombros.
— Vem, eu te carrego!
Olhei para ele parado naquela posição pronto para me pegar nas costas.
Depois para Ana que continuava assustada e para Leo, um pouco curioso em
como a trama ia se desenrolar.
— Você está zoando comigo — falei.
— Claro que não! — ele garantiu. — Já fiz esforço pior do que levar uma
dama cansada nas costas.
Vendo a seriedade com que ele ofereceu a ajuda — ainda que fosse
ridícula a proposta —, me acalmei, catei alguns dos nossos pertences e
comecei a caminhar em direção à estrada. Logo os três me seguiram, mas
Franco passou a andar ao meu lado, enquanto Leo e Ana iam à frente,
conversando sobre a série preferida deles. Aos poucos a tensão passou e
comecei a pensar positivo. Se conseguisse chegar ao destino, teria uma
história e tanto para contar. Não é qualquer um que faz uma caminhada de
12 quilômetros numa espécie de estrada estreita e malconservada.
— Desculpa, não pensei em explicar nosso trajeto.
— Ah, tudo bem. Agora já estamos aqui, melhor aproveitar o passeio.
Bom que me ajuda a perder uns quilos, estou muito fora de forma.
— Você parece ótima para mim — ele falou com sinceridade.
Sem saber como responder ao elogio, apenas sorri.
Talvez a consciência de Franco tenha ficado pesada, pois, a partir de
então, ele não saiu do meu lado. Puxava conversa, falava sobre o ambiente e
até me contou sobre o sonho antigo de fazer parte do Batalhão de Infantaria
de Selva.
— Eu aprendi muito sobre sobrevivência, principalmente no mato. Por
isso gosto tanto de caminhar ao ar livre, rodeado da natureza. Sempre amei
acampar, viver com o pouco. Se eu pudesse, teria minha vida toda dentro de
uma mochila.
— Eu nunca acampei, acredita? É meu sonho! Mas não precisa ser tão
radical, aceito alguns confortos da vida moderna.
— Sério? Precisamos resolver isso. Se me der uma chance, posso tentar
organizar algo do tipo. Eu ia gostar de te fazer companhia. Podemos juntar
uma turma, tem um lugar muito bacana aqui perto, ótimo para quem nunca
acampou.
Ele estava interessado em acampar comigo? Mesmo depois da minha
demonstração como uma garota mimada incapaz de encarar uma caminhada
longa no meio do mato? Eu deveria ficar impressionada?
— Se é um convite, eu aceito. Já estou empolgada!
— Prometo não colocar nenhuma caminhada longa na agenda — ele
brincou.
— Agradeço!
Após um momento de silêncio, ele me olhou com um sorrisinho
brincalhão. Depois, focou num ponto à frente.
— Você gosta de ler, então? Falou várias vezes sobre algum livro ou
personagem super precioso aos seus olhos.
— Sim, eu gosto muito de ler. E sim, tenho vários personagens que me
inspiram. Você deveria experimentar ler antes de zombar deles. —
Aproveitei a nossa proximidade para esbarrar meu ombro no dele. — Talvez
se surpreenda.
— Então me conte algo sobre eles.
— Sobre os livros? Ou sobre os personagens?
— Sobre o que você quiser. Sou todo ouvidos. — Ao perceber meu olhar,
ergueu as duas mãos. — O que? É um interesse sincero. Quero conhecer
você melhor.
Me conhecer melhor? O que ele queria dizer com isso?
Pare, Napáuria! Não deixe sua mente vagar para lugares perigosos! Não
seja uma jovem emocionada que vê romance em tudo. Ele só quer ser seu
amigo, como você quer ser amiga dele. Nem tudo é sobre questões do
coração. Isso! Somos irmãos em Cristo e nada mais.
— Bem, prepare-se! Você entrou em terreno perigoso, agora precisará me
ouvir falar sem parar.
— Não será um esforço — respondeu e alguma coisa no olhar dele
parecia dizer mais do que as palavras.
Irmãos em Cristo, Napáuria! Irmãos em Cristo!
Fazia meia hora que eu estava deitada na cama mirando o teto. As mãos
cruzadas em cima da barriga, os pés já calçados quase tocando o chão. Malas
fechadas, cobertas dobradas. Tudo pronto para partir. A ansiedade me fez
despertar bem antes da hora e fiquei a refletir sobre os últimos dias.
Quanta coisa poderia acontecer em um espaço de tempo de uma semana!
Quantas respostas podemos encontrar quando Deus dirige nossa vida! Havia
chegado na casa da tia Lídia cheia de dúvidas e anseios e estava prestes a ir
embora convicta e decidida sobre os próximos passos. Seguiria o plano e
faria minha matrícula na escola de Missões. A cada minuto de conversa com
Franco sobre o assunto, mais eu ansiava por viver experiências parecidas
com a dele. Eu pretendia gastar meu tempo de solteira para conhecer mais ao
Senhor e me dedicar à obra Dele.
Virei meu corpo de lado e apoiei a cabeça em cima do meu braço. Meus
olhos foram atraídos pelo pequeno porta-retrato com a foto da família e meu
coração transbordou. Como se tornaram especiais para mim! Como os dias
hospedada naquela casa me fizeram bem! Eu não esperava ser recebida com
tanto amor e criar vínculos familiares com os parentes do meu primo. Mas
ali estava eu, triste porque a distância entre nossas casas nos separava por
algumas horas de viagem, até mesmo de Franco, que morava um pouco mais
perto.
Conferi o horário no celular e constatei que já estava na hora. Juntei todos
os meus pertences em um canto antes de sair do quarto. Desci as escadas e o
cheiro do café me convidou a ir até a cozinha. Ao entrar lá, encontrei apenas
tia Lídia coando o café e Franco sentado à mesa com uma Bíblia aberta nas
mãos. Foi ele quem notou minha presença primeiro. Ergueu a cabeça e
sorriu. Por um instante enxerguei um traço de afeição atravessar seu olhar e
isso me desestabilizou, mas por pouco tempo, pois logo voltei à razão.
— Bom dia — anunciei minha chegada para tia Lídia.
— Bom dia, minha querida. Sente-se, já vou servir a mesa.
Obedeci a ordem e puxei a cadeira de frente para Franco. Ele voltou a sua
atenção para um trecho das Escrituras e de repente passou a ler um versículo
em voz alta.
— “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e
desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?”. — Ele fez uma pausa e me
encarou com o semblante divertido. — Acredita nisso? Que o coração é
enganoso?
— Claro, ué. Está na Bíblia, como poderia negar?
Satisfeito com minha resposta, voltou a ler. Fiquei pensativa, tentando
entender de onde havia saído aquela conversa estranha, que terminou como
acabou, sem nenhuma explicação.
Tia Lídia colocava a mesa quando o marido entrou. Com gentileza, deixou
um beijo no rosto da esposa, se sentou à mesa e puxou conversa comigo
sobre a minha família. Pouco depois, Leo apareceu com a cara amassada de
quem acordou a poucos minutos e mal tinha penteado os cabelos. Franco,
por fim, fechou a Bíblia e a deixou de lado, servindo-se de café.
— Vou levar vocês para a rodoviária — informou. — E de lá já vou pegar
meu caminho também.
— A casa vai ficar tão vazia e silenciosa — tia Lídia murmurou
lamentosa. — Além disso, Ana vai sentir falta de vocês.
— Aquela irmã desnaturada! Preferiu ficar dormindo a vir se despedir! —
Franco fez uma careta e misturou o açúcar no café.
— Ela é só uma adolescente, Tito. Deixe de implicância. Ainda é cedo, ela
vai descer antes de vocês partirem. Me fez prometer que eu a acordaria, mas
não é para abraçar você não — a mulher disse e terminou me encarando.
— Para você ver, mãe. Napáuria mal chegou e já está conquistando
corações. — Franco cruzou os braços em frente ao corpo e me desafiou com
o olhar.
Sem saber como reagir e sentindo ter liberdade entre a família, dei de
ombros.
— É meu charme natural. O que eu posso fazer?
— Convencida — Leo declarou e soltou uma risada.
Mais tarde, como dito, Ana apareceu bocejando. Ainda vestia o pijama
rosa. A despedida foi regada de palavras carinhosas e votos de felicidade.
Recebi mais de uma vez o convite para retornar em qualquer momento e um
pedido para estarmos presente no próximo Projeto.
Sentei-me no banco do passageiro na parte de trás do automóvel e Leo foi
ao lado do primo motorista, tagarelando sem parar sobre pesca, algo que os
dois gostavam muito. Chegamos na rodoviária e ainda faltavam alguns
minutos para o embarque. Leo quis ir ao banheiro, deixando-me a sós com
Franco.
— Sabe, tenho uma pergunta a fazer — falei e curioso ele me encarou. —
Por que algumas pessoas te chamam de Tito e outras de Franco? Quero
dizer, sei que são seu nome e sobrenome, mas deve ter uma explicação para
sua dupla nomeação.
— Tem sim. — Ele sorriu e colocou uma das mãos no bolso da calça
jeans. — Franco acabou virando uma espécie de apelido porque era o nome
que eu usava quando servi. Todos me conheciam por Franco no quartel e
depois disso o nome pegou. Mas minha família ainda me chama de Tito,
como sempre foi.
— E como você prefere que eu te chame?
Os lábios dele se curvaram ligeiramente. Ele ergueu as sobrancelhas e
fixou o olhar dentro do meu, mudou o peso do corpo de uma perna para a
outra e alargou o sorriso.
— Como você preferir. Tito costuma ser um nome mais usado pelos
íntimos, mas não me sentirei ofendido se você passar a me chamar assim.
— Tito, então.
Leo retornou e chegou a hora da despedida. Ele abraçou o primo primeiro
e deu espaço para eu fazer o mesmo. De uma forma amigável, eu e Tito nos
abraçamos pela primeira vez.
— Gostei muito de conhecer você — ele falou baixinho enquanto ainda
estávamos próximos. — Espero poder manter contato.
— Você tem meu número de celular — respondi e me despedi pela última
vez.
Entrei no ônibus e me sentei no lugar indicado na passagem. A sensação
do quanto eu gostava de Tito me invadiu e o sorriso involuntário brincou no
meu rosto.
Ele era um bom amigo. Um homem diferente de todos que eu havia
conhecido. Era como os mocinhos cristãos literários que eu pensava serem
apenas frutos da imaginação das autoras. Um exemplo e um sinal de que eu
não deveria perder as esperanças.
Bem que eu gostaria de encontrar um rapaz como ele quando chegar
minha hora!
Meu celular apitou pela manhã. Era uma mensagem de Tito. Imaginei que
ele estivesse dando um “bom dia”, como vinha fazendo nos últimos dias.
Abri o aplicativo de mensagens já com um sorriso estampado nos lábios.
Tito: “Viu o vídeo que te mandei”
Eu: “Não, onde você mandou?”
Tito: “Não?”
Eu: “Brincadeira, vi sim!”
Tito: “Aff, não suporto essa joça. Vou te ligar.”
Meu sorriso se alargou e aguardei o celular dar um toque para atender o
telefone. Minha mãe, lendo do outro lado da varanda, ergueu o olhar quando
ouviu minha voz dizer “alô”.
— Tenho cinco minutos para falar. Viu como está puxado o trabalho hoje?
Passei a manhã toda em cima de um telhado com o sol assando minha pele
— Tito disse do outro lado da linha.
— Coitadinho — brinquei.
— E tem gente achando que ser um missionário local é fácil. — Ele riu.
— Mas não foi para isso que te liguei. Tenho algo importante para falar.
Fiz silêncio ao perceber como ele estava sério ao dizer a última frase.
— Está me ouvindo, Napáuria?
— Claro!
Ele esperou alguns segundos, só para me deixar ansiosa.
— Um avião cai entre a fronteira do México e Estados Unidos. Onde se
enterra os sobreviventes? — perguntou com tom preocupante.
— Quê? — indaguei confusa.
— Diga logo! Meu tempo está acabando!
— Eu não sei!
— E desde quando a gente enterra sobreviventes? — Ele soltou uma
gargalhada. — Ligo para você mais tarde. Tenha um bom dia!
— Tito! Você tem sorte de eu ser uma boa amiga, porque se não, sequer o
atenderia...
— Até mais!
E desligou a chamada. Comecei a rir da situação. Era sério que ele tinha
me ligado só para me contar uma piada? Mandei uma figurinha por
mensagem e balancei a cabeça achando graça do que tinha acontecido.
Quando levantei o olhar, mamãe me analisava com aquela expressão de
repreensão materna, mas cheia de compaixão.
— Era o Tito — falei sem saber como reagir à forma como ela me
estudava.
— Deu para perceber — respondeu e abaixou a cabeça, focando no livro
que tinha nas mãos.
A pausa seguida do levantar de uma sobrancelha significava que um
sermão estava sendo elaborado, com todo toque de uma bela lição de moral,
coisa própria das mães.
— Minha filha — começou com calma e me encarou —, será que você
não está fazendo o Tito pensar que quer ser apenas a amiga dele?
Arregalei os olhos e entrei na defensiva.
— Mas é o que nós somos! — declarei com ênfase. — Apenas amigos.
— Sei. — Pela expressão ela deixou claro que não acreditava na minha
sentença. — Um amigo que liga, rigorosamente, todos os dias? E manda
muitas mensagens e passa horas conversando?
— E o que tem demais? — Cruzei os braços e respirei fundo.
— Na minha época, chamávamos isso de um rapaz cortejando uma garota.
— Mãe!
— Minha querida, desejo sua felicidade. Ele é um bom rapaz e pelo que
ouvi sobre ele nos últimos dias, ficaria muito contente em tê-lo como genro.
— Mãe! — protestei e levantei as duas mãos. — Você está imaginando
coisas.
Ela moveu a cabeça em negativa.
— Filha, ouça sua mãe. Ele está muito interessado em você, ou não
inventaria desculpas para te ligar sempre. Acredite em mim, sou uma mulher
vivida, sei quando as coisas estão adiantadas entre dois supostos “amigos”.
Ela voltou a encarar o livro e eu passei a refletir no que ela dizia. Será que
existia a possibilidade de Tito me olhar com outros olhos?
— Só cuide para não dar a entender que você não tem interesse, caso
esteja interessada. — Ela se voltou a mim outra vez. — Você está?
Considerei a pergunta e fiz uma breve inspeção de meus sentimentos.
Não, eu não estava apaixonada. O que sentia por Tito era bem diferente do
que um dia havia sentido por Sérgio, por exemplo. Interagir com Franco me
fazia bem, era verdade. Eu amava conversar com ele e meu coração se
enchia de alegria ao ouvir a voz dele. Mas não, não era aquela obsessão,
aquela emoção dependente, a paixão. Eu só gostava dele e não tinha
considerado a ideia de que pudesse haver algo além de amizade entre nós.
— Não sei... Quero dizer, seria louca se dissesse que não pensei no quanto
será sortuda a mulher a quem ele escolher para casar. Acho que isso é
interesse, não é?
— E por que essa mulher não pode ser você?
— Porque eu sou muito nova, sei lá. — Ergui meu ombro esquerdo
analisando boas desculpas para dar. — Você sabe do meu propósito de me
casar em no máximo um ano. Eu estou me formando no Ensino Médio!
— E daí? Conheço várias mulheres que se casaram com sua idade e tem
casamentos sólidos há anos. Pode ser difícil por causa de sua mocidade?
Talvez. Mas você sabe tanto quanto eu que sua idade atual não seria um
impedimento. Tito também é um rapaz maduro, um homem. Ele saberia lidar
com você. Além do mais, ainda teria um ano para se preparar melhor.
Desarmada com a postura cheia de incentivo de minha mãe, procurei uma
razão mais precisa, entretanto, nada vinha à minha mente, exceto o quanto
Tito era um homem maduro e incrível demais para eu ousar conceber ser
escolhida por ele.
— Ele é muita areia para meu caminhãozinho — declarei, por fim, sem
pensar uma maneira melhor para expressar meus sentimentos.
Mamãe gargalhou ao me ouvir usar a gíria que aprendi com ela.
— Napáuria! Olhe para você! É jovem, sim, mas é uma mulher, não mais
uma menina. Uma linda mulher, cheia de atributos. E o principal, tem
buscado ser uma mulher piedosa. Tito seria bobo se não observasse isso em
você.
Suspirei. Ergui meus joelhos e repousei a cabeça ali, começando a pensar
na possibilidade de ela estar certa.
— Mãe, você está colocando minhocas na minha cabeça. Não quero me
envolver emocionalmente com um rapaz outra vez, a não ser que seja algo
concreto.
— Talvez seja esse o motivo de ele ainda não dizer nada. Está esperando
ter a certeza do que quer para te oferecer a segurança de um compromisso.
Meus pensamentos começaram a viajar para lugares dos quais eu não
gostaria que eles visitassem. Mas lá estava eu, tentando imaginar qual seria
minha resposta se ele me dissesse algo. Então nossas conversas foram
clareando minha mente. Tínhamos tanto em comum, me refiro às coisas
mais importantes, como a cosmovisão em relação a relacionamento,
casamento, filhos, família, teologia, missões... Quanto mais analisava, mais
desesperada ficava, com medo de agir de maneira imprudente de novo.
— O que eu faço agora, mãe? — perguntei e joguei meu corpo para trás.
— Primeiro, ore a respeito disso. Deus pode direcionar você e suas
emoções. Segundo, pare de usar a palavra “amiga” com ele e responda o
interesse. Quando encontrar uma brecha, deixe-o entender que você está
aberta a algo. Por favor, não o mantenha naquele negócio... — Ela estalou
um dos dedos e franziu a testa. — Como é mesmo o nome? Que você me
disse outro dia? Zone... Zione...
— Friendzone, mãe.
— Isso! Não o coloque de molho nesse lugar aí.
Friendzone. Será que eu estava mesmo mantendo ele lá com medo de me
apaixonar e sofrer de novo? De repente, uma vontade absurda de orar me fez
levantar.
— Acho que vou para o meu quarto. Preciso pensar nisso, orar e me
acalmar. Segunda começam as últimas provas, minha formatura está
chegando. Não é hora de me perder em um romance.
Minha mãe assentiu e voltou a ler, deixando-me livre para partir. Subi as
escadas com o coração um pouco acelerado. Quando fechei a porta do quarto
e me deitei na cama pronta para orar, pensei que talvez fosse tarde demais
para não pensar em romance.
— Ian não vem para o café da tarde também? — Suelen perguntou para
Jéssica enquanto nós três, após mais um dia corrido, arrumávamos a mesa na
varanda.
Eu estava quieta, ainda refletindo sobre minha conversa com mamãe na
madrugada e todas as instruções dadas por ela sobre como remediar minha
situação com meu amigo, por isso não me importei com o claro interesse de
Suelen, perguntando a cada minuto sobre onde os garotos estavam.
Na verdade, eu até partilhava um pouco da mesma aflição e cheguei a me
perguntar se o fato de Ian ter passado a tarde toda com os homens da minha
família, ajudando nisso ou naquilo, não era uma forma dele evitar minha
companhia. Bem, isso não faria a menor diferença, pois eu estava
determinada a consertar meus erros.
— Os rapazes devem chegar antes dessa chuva que está vindo — mamãe
informou, entrando toda sorridente trazendo consigo um bolo de milho
fresquinho. Em seguida, parou ao meu lado e cochichou: — Não perca
tempo. Assim que seu príncipe chegar, chame ele para conversar.
Meu príncipe?
Mamãe às vezes ia longe demais.
— Mamãe, por favor — respondi entre dentes e, quando notei o olhar
curioso das duas moças, tratei de disfarçar, me ocupando em cortar as fatias
do bolo.
Depois disso ninguém disse mais nada e, aos poucos, as mulheres mais
velhas, que antes se dedicavam a fazer ajustes em alguns vestidos no quarto
de costura, foram tomando lugares à mesa.
Nos acomodamos, oramos juntas e o falatório típico de muitas damas
reunidas tomou conta do ambiente. Ora ou outra, eu até opinava sobre algum
assunto, mas meus pensamentos estavam longe.
No momento em que meu irmão mais novo surgiu na estrada correndo
para nos avisar da chegada dos outros rapazes, voltei a ficar alerta. Minhas
mãos começaram a suar e achei aquele um bom momento para repassar
mentalmente meu discurso de reconciliação com Ian.
Minutos depois, mesmo distante, eu o avistei na estrada, caminhando ao
lado do meu pai. Isso foi o bastante para o meu coração disparar.
O que havia de errado comigo? A presença do meu amigo nunca me
deixou nervosa antes e agora eu parecia prestes a infartar.
Por alguns segundos me distraí, vendo os homens se acomodarem nos
espaços vagos e senti um frio na barriga ao notar que os dois últimos lugares
disponíveis eram um ao lado de Jéssica, o qual Gustavo ocupou e o outro de
Suelen.
Ian subiu as escadas da varanda e olhou ao redor, como se estivesse em
busca de algo.
Quando nossos olhos se encontraram, minha primeira reação foi desviar
para baixo, observando meu prato.
— Posso me sentar ao seu lado? — Ian perguntou instantes depois,
parando perto de mim. Antes que eu pudesse dizer sim ou não, meus pais
foram rápidos em mobilizar a família em se mover para o lado no banco.
— Tem certeza? — Cocei a cabeça, pois o rosto neutro dele não me dizia
se ainda estava com raiva de mim ou não.
Ele assentiu e se acomodou ao meu lado.
Novamente, meu corpo reagiu a presença dele de forma estranha e não
havia nada de romântico naquelas borboletas em meu estômago, me
causando um sério enjoo.
Certo! Eu precisava resolver aquela situação, antes que a ansiedade me
matasse de uma vez.
— Ian — chamei enquanto ele se servia com café. O rosto dele virou em
direção ao meu e o simples fato de poder contemplar os olhos dele de perto,
me deixou desnorteada.
— Sim? — Ele ergueu as sobrancelhas quando demorei para responder.
— É, minha tia fez aqueles bolinhos de abobrinha que você gostou ontem.
Quase não sobraram, mas guardei alguns para te dar. — Usei meu garfo e
coloquei todos os meus bolinhos no prato dele. — Coma tudo.
Ian piscou algumas vezes, olhou para a sua comida, depois para mim e
então esboçou um sorrisinho.
— Minha mãe costuma colocar comida no meu prato assim, mesmo se
não quero comer — ele contou com bom-humor. — Ela afirma que me
engordar é sua forma de demonstrar amor.
— Eu sei. Já a vi fazendo isso — comentei, tamborilando os dedos na
mesa. — Por isso, quis fazer igual.
— Oh. — Me olhou confuso. — Obrigado por pensar em mim. — Ele
colocou a mão no bolso do moletom, tirou de lá meu chocolate favorito e,
com discrição, colocou em minha mão. — Também pensei em você na ida
ao mercadão mais cedo.
Aquele gesto, embora fosse corriqueiro da parte dele, me deixou muito
feliz.
— Obrigada. Isso significa que não está mais chateado comigo, por
ontem? — sondei com cautela. Eu não queria ter trazido o assunto à tona de
forma tão repentina, mas não me contive. Precisava saber o que ele estava
pensando.
— Se tem alguém que deveria estar chateado aqui, é você, Jubs. —
Expirou. — Passei dos limites ontem e peço perdão por isso.
— Não, Ian. Eu sei que te magoei e me arrependo muito disso.
— Fica tranquila. — Ele deu alguns toquinhos na minha cabeça. — Eu
pensei muito e entendi que não devo te pressionar daquela maneira. Isso não
vai mudar a forma como você me vê e está tudo bem. Prometo não te
incomodar mais com esse assunto.
Engoli em seco e senti o ar faltando em meus pulmões.
Aquelas palavras significavam que minha atitude o fez recuar em suas
intenções comigo?
Por um momento, fiquei sem saber como reagir ou o quê responder.
Eu deveria pedir que ele tocasse sim no assunto? Que continuasse a
insistir?
— Com licença, eu vou lavar a louça — foi tudo o que consegui
expressar.
Eu me ergui para sair da mesa e, quando me virei, dei de cara com minha
mãe, com aquela cara de “o que você está fazendo?”.
Meu desejo era abraçá-la e contar que os temores dela se tornaram reais.
Minhas atitudes tão ariscas me fizeram perder a chance de ter um homem
incrível como marido e, talvez, até como amigo.
Mamãe segurou minha mão, como se pudesse ler meus pensamentos, e
sorriu.
— Ian, querido, pode me fazer um favor?
— Claro, dona Ana — ele respondeu, já se levantando.
— Minha mãe me deu alguns tecidos que estão guardados em uma caixa
lá no barracão perto do lago. Você pode ir buscar para mim? Vou ensinar a
Júlia a fazer seus próprios vestidos — ela pediu toda sorridente. — Não é
muito pesada, mas você pode usar a bicicleta do tio Jairo para trazer.
— Certo, vou lá agora. Onde fica o barracão?
— É um pouco longe, então Júlia vai com você. Ela amava se esconder lá
quando era pequena. — Mamãe me olhou de soslaio. — Se apressem para ir
antes da chuva. Os tecidos não podem molhar.
Ian assentiu e saiu andando em direção ao meu tio Jairo, conforme a
instrução recebida.
Em sua ausência, mamãe me puxou de canto e eu achei por bem deixar
tudo claro.
— Não adianta mais, mamãe — sussurrei. — Ele desistiu de mim.
— Pare de besteira. — Ela tocou meu rosto. — Preste atenção, converse
com ele e abra seu coração. Não estou dizendo para se confessar ou tomar
iniciativa de declarar seu amor por ele, mas, com a amizade de vocês, tenho
certeza de que pode ser sincera. Lembra do que eu lhe disse ontem sobre a
maioria dos homens?
— Se não tiverem certeza de que são correspondidos, provavelmente vão
recuar — repeti o discurso dela. — Vou seguir o seu conselho.
— Ótimo, ele vem aí. Deus te guie, minha filha — desejou e eu sussurrei
um “amém”.
Recebi Ian de volta com um sorriso e nós, após nos despedirmos de
mamãe, deixamos a varanda. Fomos juntos até os fundos do casarão e
esperei meu amigo trazer as bicicletas guardadas no armazém.
— Seu tio me disse que as outras bicicletas estão quebradas, então você
vai comigo na garupa — ele instruiu sorridente, subindo na bike. — Como
nos velhos tempos.
Ian tinha razão. Nos velhos tempos, quando eu era uma menina pentelha,
ele sempre me dava uma carona em sua bike porque eu tinha medo de descer
a ladeira de nossas casas com a minha. Naquela época, eu confiava nele e
sabia que poderia me guiar, independente de quão perigoso fosse o caminho.
Eu deveria ter me lembrado disso antes.
Meu amigo fez um sinal, e, um pouco constrangida, me acomodei na
garupa, sentando com as pernas para um lado só, já que estava de vestido.
Ele começou a pedalar, guiado por minhas direções. Tudo foi muito
tranquilo nos primeiros metros. O clima de fim de tarde parecia fechado, e o
vento, ao mesmo tempo em que desgrenhava meu cabelo e balançava as
copas das árvores ao nosso redor, também trazia aquele aroma fresco e a
sensação de paz.
Quando o terreno ficou mais íngreme e um declive surgiu, fiquei com
medo de estar me segurando nas barras de metal na garupa. Tentei ficar
imóvel, mas Ian fez uma curva mais acentuada, quase me derrubando, então
abracei seu abdômen com bastante força, fazendo-o rir.
— Desculpa! — exclamei e ameacei soltá-lo, mas ele não deixou.
— Está tudo bem. Se está com medo, pode se segurar em mim, não vou te
deixar cair. Você estará segura ao meu lado — ele garantiu e, por alguma
razão, senti que suas palavras não tinham apenas relação com nosso passeio
de bicicleta. — Sempre.
— Eu confio em você — pronunciei devagar, pedindo ao Senhor que
dirigisse minhas palavras. — Andar de bicicleta era uma das minhas coisas
favoritas no mundo, mas, certa vez, quando Gustavo me levou para andar
naquele parque perto de casa, eu caí e me machuquei muito, lembra?
— Sim. — Ele balançou a cabeça. — Você ralou toda a sua perna. Eu até
fui à sua casa, com aquele estoque infinito de ervas medicinais preparados
pela minha mãe.
— Pois é. Depois daquilo acreditei que nunca mais seria capaz de andar
de bicicleta novamente. — Sorri, na esperança de que ele entendesse meu
recado. — Eu me achei muito burra por ter caído daquela maneira. Quebrei
minha bike e meus pais acharam melhor não me deixarem comprar outra até
que eu estivesse bem novamente. — Parei de falar alguns segundos para
indicar a ele que já nos aproximávamos do barracão. — Mas você sempre
esteve lá por mim. Até me ajudou a andar de novo quando levamos sua mãe
naquela exposição no Ibirapuera. Eu apenas nunca notei. — Suspirei e
segurei o moletom dele, sentindo as primeiras gotas de chuva caírem,
embaçando meus óculos. — Só agora vejo como fui abençoada por ter você
como meu melhor amigo, embora tenha percebido tarde demais.
— Tarde demais? — Eu o ouvi rir após frear a bicicleta e descer, me
ajudando a fazer o mesmo depois. — Você, por acaso, vai se mudar para
outro país e eu não estou sabendo?
— Não, mas sei que depois de tanto tempo tentando provar seu valor
como meu amigo, já deve estar cansado de esperar que eu te entenda. Deve
ter cansado de mim, aliás — falei e protegi meu rosto dos pingos grossos de
chuva. — Qualquer um cansaria.
Ele segurou minha mão e não se importou com a chuva, começando a nos
ensopar.
— Acho que temos proximidade o bastante para eu dizer que não sou
qualquer um na sua vida, Júlia — declarou sério, fazendo meu coração errar
algumas batidas. — Por que eu me cansaria da minha amiga favorita?
Independentemente do que aconteça, sua amizade é preciosa para mim.
Seremos amigos para sempre.
Amigos para sempre?
Sério?
Estávamos de mãos dadas, debaixo da chuva, em um clima perfeito para
uma declaração de amor e tudo o que ele queria era manter a amizade?
Não acredito que estava de fato começando a me iludir por ele!
Bufei.
O amor é terrível!
— Argh! Você é tão frustrante — declarei irritada e saí correndo para me
abrigar no barracão.
Ian e eu ficamos ilhados no barracão, graças a chuva caindo há pelo
menos meia hora, sem parar.
O momento que deveria ter sido dedicado a uma conversa franca entre
nós, se tornou algo tenso, incômodo e chato, pelo menos para mim e meu
orgulho ferido.
Eu não podia acreditar que depois de chorar a madrugada toda e passar o
dia ansiosa para ouvir, receber e retribuir os sentimentos daquele garoto,
tudo o que ele queria de mim era amizade eterna.
Ah! Como fui tonta!
Tudo bem, que eu não era ingrata a ponto de desprezar seu amor fraterno.
Ainda era amor. Mas será que me iludi sozinha e vi sinais de interesse onde
não havia?
Bem, minha mãe também viu esses sinais, não é? Então a culpa não era
toda minha.
Espera.
E se Ian estivesse me defraudando?
Se esse fosse o caso, diferente de como agi com Gustavo, ao invés de me
acabar em lágrimas, eu lhe daria uma surra e ainda o entregaria para sua
mãe. Dona Graça era um amor comigo, mas podia ser bem assustadora se o
assunto fosse o caráter de seus três filhos.
Estava decidido. Se eu visse mais uma atitude ambígua ou ouvisse
palavras românticas de Ian, eu soltaria os cachorros para cima dele.
— Até quando vai ficar toda emburrada comigo aí no frio? Você está
molhada, entra logo — Ian gritou de dentro do barracão enquanto eu estava
parada na porta, me tremendo e contando os segundos para sair daquele
lugar.
— Eu não estou emburrada com você — expliquei impaciente. A verdade
é que, além daquela sensação de ter sido tapeada, eu também estava
morrendo de vergonha de encarar aquele garoto depois de criar mil cenas
fantasiosas em minha cabeça, sobre como ele se declararia para mim. — Só
quero voltar logo para a casa.
— Sei — murmurou e o ouvi se movimentando pelo piso de madeira, até
parar ao meu lado. — E esse bico? — Ele apertou meu queixo, me fazendo
repreendê-lo, afastando sua mão. — Nem parece a garotinha simpática dessa
foto aqui. A legenda aqui atrás diz: “Júlia, 05 anos, feliz por encontrar um
príncipe encantado no ribeirão”.
Virei para o lado e arregalei meus olhos ao me deparar com uma
fotografia antiga minha, fantasiada com um longo vestido e uma coroa no
topo do meu coque apertado, tal como uma princesa. Meu sorriso ia de
orelha a orelha e meus braços estavam estendidos, mostrando ao meu pai o
seu futuro genro, um sapo cururu gigante com quem decidi me casar, depois
de usar o meu poder para transformá-lo em príncipe.
— Que vergonha! Devolve isso aqui — implorei e corri atrás de Ian, me
esforçando para tentar pegar meu bem de volta, sem sucesso. — Quem
mandou você ficar bisbilhotando as caixas, hein?
— Fiquei entediado com o seu tratamento de silêncio e, mexendo nas
relíquias guardadas aqui, encontrei um jeito de te fazer falar — ele
respondeu, rindo ao se desviar de mim, ziguezagueando pelos espaços livres
do barracão. — Júlia, por favor, me diga, você deu seu primeiro beijo em um
sapo?
Ele gargalhava enquanto fazia mil piadas sobre meu “noivo”.
— Ian, eu não beijei sapo algum! Eu vou te matar! Me dê isso aqui!
— Eu devolvo. — Esticou o braço o mais alto que pôde enquanto eu
pulava feito uma cabrita. Quanta humilhação! — Mas só se você me contar o
que fiz para te deixar tão irritada.
— Como você é chato! — Bufei e, desistindo daquele garoto, parei de
pular, dei as costas para ele e fui até o sofá velho, me jogando ali. Fazer uma
jovem pouco ativa como eu se exercitar tanto, era mesmo uma tortura. —
Estou brava porque poderia estar me dedicando a cuidar do meu cabelo e
pele para ficar bonita e não parecer uma ogra no casamento amanhã, mas
estou aqui, ensopada, cansada e sendo provocada por um bocó inconsistente!
Ian deu risada e veio se aconchegar perto de mim, colocando a foto em
cima da minha testa.
— Em primeiro lugar, você não vai parecer uma ogra. É a única menina
que eu conheço capaz de ficar linda de todo jeito. Ainda mais com essas
sardas fofas no seu rosto — elogiou, apertando minhas bochechas, o que fez
meu coração disparar. Precisei até desviar o rosto para não dar na cara o meu
rubor. — E depois, por que eu sou inconsistente?
Dei uma risada debochada.
— Você ainda pergunta? Por conta disso! — Apontei para nós dois. —
Um rapaz decidido a ser amigo para sempre de uma moça, não deveria
enchê-la de elogios assim, não acha?
— Sim, a não ser que esse rapaz tenha decidido acabar com essa amizade.
— O quê? — Olhei indignada. — Está vendo? Como pode ir de “Somos
BFFs, oba!” para “Estou decidido a acabar com essa amizade”? Isso é ser
inconsistente e ouso te acusar de estar brincando comigo e os meus
sentimentos.
Ele arregalou os olhos.
— Brincando? — Cruzou os braços, indignado. — Se me deixasse acabar
minhas frases, não me interrompesse ou saísse andando antes do meu
discurso triunfal, talvez você não tivesse uma impressão tão absurda do meu
caráter.
— Não é absurda. Pode negar que esteve estranho comigo durante esses
dias? Uma hora me tratava com carinho, depois se irritava comigo e me
evitava. Você é doido? — questionei, com raiva. — Pelo bem da minha
sanidade mental, seja claro comigo!
— Eu estou tentando, mas você é difícil! — rebateu e eu abri a boca para
respondê-lo, sem sucesso. — Poxa vida! Li aqueles livros românticos para
inspirar meu lado poeta adormecido e dizer o quanto eu te amo, e que não
quero mais ser só seu amigo e que não posso conceber uma vida sem ter
você ao meu lado como minha esposa. Mas não consigo porque a minha
princesa, ao contrário do seu livro favorito, só sabe reclamar e me ofender o
tempo todo! Saiba, dona Júlia, que quem está perdendo a sanidade sou eu, e
a culpa é sua!
Quando ele se calou, estava ofegante, e eu, chocada.
Era assim que um pedido de casamento deveria soar? Como uma briga de
galos?
— O quê?
— Ainda não entendeu? Amo você, de todo o meu coração! Quero
caminhar com Deus ao seu lado e estou te pedindo em casamento. É isso
mesmo — ele me interrompeu dessa vez. — Agora ouse me chamar de
inconsistente!
Não consegui dizer nada por cerca de um minuto.
Não era que eu não correspondesse aos sentimentos dele, mas é que nunca
fui pedida em casamento antes e, bem, não esperava que isso acontecesse
durante um embate verbal em um barracão empoeirado e cheio de
quinquilharias, com o mundo desabando em chuva lá fora.
Meus preciosos sonhos românticos, adquiridos após anos de leituras de
romances incríveis, tomaram uma surra da tirana realidade, e isso me
assustou.
— Mas… — cocei a cabeça, ainda em estado de torpor — cadê as flores?
A música brega? O clima romântico?
Ian riu da minha cena dramática.
— Preciso providenciar uma farda vermelha e uma coroa também? Só
assim serei aceito?
— Quem você pensa que eu sou, seu bobo? Não me iludo mais sonhando
em encontrar um príncipe Edwin. Na verdade, minhas expectativas nunca
foram tão altas, prova disso é esse sapo que tentei beijar — expliquei e Ian
continuava a rir. — Não que você seja um sapo. Está mais para um príncipe
de baixa renda e eu amo isso, até porque também não sou nenhuma princesa.
— Uni os lábios. — Eu aceito seu pedido de casamento, ainda que estivesse
esperando algo diferente disso.
— Misericórdia! Você deve ser a primeira pessoa do mundo a ofender um
homem enquanto aceita se casar com ele — ele comentou, reflexivo, e,
alguns segundos depois, se levantou, sem me dar a chance de me desculpar
por ter atrapalhado os planos dele. — Isso não pode ficar assim!
— Isso o quê?
— Como vou encarar nossos filhos, suas amigas ou seus pais depois de
você contar quão antirromântico fui em declarar meu amor a você. — Ele
fez uma pose, como se fosse um super-herói prestes a sair em uma missão
arriscada. — Espere aqui, minha nobre princesa!
Em seguida, ele partiu correndo em direção a porta e saiu na chuva, me
deixando confusa.
Ian era mesmo doido e me fez ficar sem conseguir parar de sorrir.
Senti a emoção tomar conta de mim quando a ficha caiu e me dei conta
que eu estava errada sobre as atitudes de Ian. Ele não estava me
defraudando, isso era um alívio. Sua clareza, ainda que floreada com certa
impaciência, em colocar todas as cartas na mesa, me deixaram encantada.
Olhei aquela foto boba em minhas mãos e lembrei como aquela garotinha
orava sempre com seus pais, antes de dormir, para encontrar um verdadeiro
príncipe. Um homem cuja nobreza estivesse em seu coração e fosse um
verdadeiro filho do Rei dos Reis.
Ian, ainda que tivesse feito um pedido meio capenga, era esse homem. E
estava disposto a me oferecer muito mais do que palavras e gestos
românticos, ele queria caminhar com Deus, sendo auxiliado por mim.
Isso era muito mais do que eu poderia pedir ou merecer. Muito melhor do
que o enredo de qualquer livro em minha estante. Era minha história de amor
e estava longe de acabar.
— Jubs, fecha os olhos! — Ian gritou lá de fora.
— O que você está aprontando? — investiguei.
— Apenas feche os olhos de uma vez e só abra quando eu mandar!
Dei uma risadinha e resolvi obedecê-lo.
— Pronto, mandão!
Sem ver mais nada, eu fui sendo consumida pela curiosidade enquanto
ouvia a intensa movimentação e o mexer de objetos de um canto para o
outro.
Os barulhos ficaram mais altos e próximos a mim. De repente, uma
música antiga e romântica, daqueles Flashbacks dos anos 80, começou a
tocar e eu sorri.
O que ele estava aprontando?
— Minha querida, olhe nos olhos do seu amado — Ian pediu, forçando
uma voz bem grave e eloquente, como um daqueles locutores de rádio.
A cena com a qual me deparei, foi um homem ajoelhado. Seus cabelos
estavam ensopados, tal como o tecido de algodão vermelho no qual estava
enrolado. Ele usava uma coroa improvisada com aquelas correntes douradas,
usadas para enrolar nas árvores de Natal e em suas mãos havia um buquê
não muito organizado com diversas flores coloridas.
— O que é tudo isso? — questionei, sem conseguir me conter de rir. Ian
era muito bobo.
— Júlia Maria Bragança — ele tomou minha mão e suspirou —, você é
uma amiga maravilhosa, companheira e aquela por quem orei durante vários
anos. Como descreveria todo o amor que tenho guardado por você? Como
expressaria a admiração por ver quão boa filha e serva de Deus você é?
Além disso, é linda, meiga e cheia de histórias hilárias, que sempre alegram
meu dia.
— Não precisa exagerar — sussurrei e ele fez cara de bravo, me
mandando ficar quieta, com um “shii”. — Desculpe.
— Eu me lembro do exato momento em que você ganhou meu coração foi
há dois anos, quando comecei a trabalhar com seu pai. — Ele acariciou
minha mão com o polegar. — Minha mãe ficou muito doente por um tempo,
mas estávamos apertados financeiramente, por isso meus irmãos e eu não
tínhamos tempo para mais nada, além de trabalhar. Você também tinha uma
rotina apertada, mas, ainda assim, sempre dava um jeito de acompanhar a
mamãe em suas consultas e exames.
— Sua mãe sempre foi um doce comigo, Ian. Eu não fazia mais do que
minha obrigação ao cuidar dela e dar uma força para o meu amigo —
comentei, admirada com a boa memória dele. — Além disso, fiz o mínimo
perto de tudo o que você já fez por mim.
— Não se subestime, boba. — Ele suspirou. — Foi depois disso que
comecei a reparar em você e todas as suas qualidades, defeitos e sonhos.
Tudo. Queria saber de tudo a seu respeito.
Senti as bochechas esquentando.
— Quanto mais o tempo passava, mais certa minha decisão de formar
uma família com você ficava, embora eu não passe de um bocó aos seus
olhos. — Ele riu e eu também. — Orei, busquei direção com nossos pais e
líderes, e esperei até ter certeza de que você sentia o mesmo por mim, até
pedi ao Senhor para te livrar dos seus medos e inseguranças, que visse meu
desejo sincero de cuidar do seu coração e ele me atendeu. Hoje, com a
benção do Senhor, quero pedir sua mão em casamento. Você aceita?
Meu sorriso genuíno e minha reação imediata foi abraçá-lo.
— Agora sim, você se superou! — Dei batidas nas costas dele e me
afastei rápido. — Sim, eu aceito você, meu príncipe-sapo!
— Eu estava aqui pensando — Ian começou durante a nossa caminhada
de volta ao casarão. Já estava escuro quando parou de chover e o céu se
transformou, deixando aquele aspecto cinza e revelando suas milhares de
estrelas. Contamos com a lua para iluminar nosso caminho e a lanterna do
meu celular —, agora que temos um relacionamento, podemos andar de
mãos dadas, não é?
Olhei para ele, admirada. Como alguém podia ser tão fofo?
— Claro que não — respondi de supetão, recebendo um olhar inquisitivo
dele. — Como vamos dar as mãos se você está carregando essa caixa?
— É verdade. Poxa! Sabia que não devíamos ter deixado a bicicleta para
trás. — Uniu os lábios, refletiu um pouco, mas logo seu sorriso se abriu. —
Já sei. Você pode segurar no meu braço, como as damas daqueles filmes
antigos faziam com seus pares.
Dei uma risadinha e deslizei para o lado dele, encaixando meu braço ao
seu. Tocá-lo agora era diferente. Eu me via ansiosa pelo simples fato de
perceber o quanto ele apreciava minha presença, demonstrando felicidade
genuína com um gesto simples como aquele.
— Senhor, como é bom se apaixonar pela garota certa! — ele exclamou
exagerado, olhando para o céu. — Valeu, meu Pai!
Ah! Ele tinha razão! Como era bom, fácil e rápido se apaixonar, mas
melhor ainda quando isso acontecia no momento e com a pessoa certa!
Talvez pela paixão ser algo tão repentino, meus pais sempre me alertaram
a firmar bem minhas convicções sobre teologia, relacionamentos em
santidade e expectativas para a vida em um futuro lar, antes de cair de
amores por um rapaz. Isso porque depois de se apaixonar, era muito difícil
tomar decisões cem por cento racionais. Agora, se o fundamento da fé
possuía raízes profundas no coração, as emoções momentâneas não nos
levavam tão facilmente.
Por conhecer Ian muito bem e saber de todas as nossas crenças em
comum, me dei a liberdade de deixar a paixão florescer, sem parar de vigiar
e orar, é claro, afinal, nossa jornada até o matrimônio deveria ser pura, não
por mera barganha com Deus, ou em busca de sermos abençoados, mas
porque obedecer ao nosso Senhor era igual a amá-lo, isso significava negar
nossa carne e honrá-lo, sabendo que Ele, em sua onisciência, estava sempre
ao nosso lado.
— O que foi? Por que está me olhando assim? — Ian questionou,
erguendo as sobrancelhas.
— Estou descobrindo agora que meu amor por você é como minha fome,
não para de crescer — brinquei e ele piscou algumas vezes, antes de cair na
gargalhada. — Desculpa, isso soou romântico na minha cabeça.
Ele balançou a cabeça.
— Pelo amor de Deus, hein, Júlia? Pensei que com tantos romances lidos
você seria mais hábil com as palavras. — Soltou um suspiro dramático. —
Acabei de ter minhas expectativas frustradas.
Franzi os olhos para ele e aproveitei nossa proximidade para cutucar o
braço.
— Besteira! — Revirei os olhos. — Você assistiu a saga Star Wars
milhares de vezes e, que eu saiba, não se tornou nenhum Jedi[23], não é?
— É justo, espertinha — admitiu impressionado e, enquanto ficamos em
silêncio por alguns segundos, meu estômago roncou alto. O romantismo em
mim era uma farsa, mas a fome era muito real. — Que tal se eu preparar
aquele macarrão que você gosta ao chegarmos? Podemos dar a notícia para
todos e logo em seguida derrotar esse dragão escandaloso vivendo aí dentro
da sua pança.
Dei risada, mas antes de aceitar a tentadora proposta dele, algo me veio à
mente.
— Quero contar a todos logo, mas, pensando bem, não é melhor
esperarmos até amanhã depois do casamento?
— E por que faríamos isso? — Ele me olhou desconfiado.
— Não sei se você percebeu, mas minha família é muito escandalosa. —
Mordi o lábio. — Eles amam comemorar qualquer coisa. Sério! Eles deram
uma festa quando perdi meu primeiro dente de leite. Agora imagine só
quando souberem do nosso namoro? Vamos virar o centro das atenções.
Jéssica e Gustavo podem não gostar disso. É o momento deles.
Ian não respondeu de imediato, seu rosto denunciava hesitação com meu
plano.
— Só até amanhã, não é? — ele sondou e eu confirmei. — Tudo bem,
que assim seja, mas não aguento nem um dia a mais. Assim como não se
pode esconder uma cidade edificada sobre o monte, eu também não posso
mais esconder o quanto eu te amo. Preciso expressar para o mundo.
Fiz uma careta e nós dois caímos na risada com aquela frase.
— Que brega! Precisamos trabalhar nossas declarações de amor antes que
alguém nos ouça — declarei e ele concordou comigo.
Alguns metros depois chegamos ao casarão. Logo na entrada ficou claro
que tomamos uma boa decisão em adiar nosso anúncio especial, pois a
família Bragança experimentava o verdadeiro caos.
Muitos parentes de Gustavo haviam chegado, lotando o ambiente.
Entramos e, à primeira vista, ninguém nem se deu conta da nossa presença.
Os novos convidados estavam concentrados em se instalarem, já alguns dos
meus parentes corriam de um lado para o outro, feito baratas tontas.
— Céus! Que bagunça é essa? — Ian questionou, tão confuso quanto eu.
— Não sei. Meu pai vem aí, vamos descobrir logo. — Apontei com o
queixo para a escada, de onde papai descia às pressas, vindo ao nosso
encontro. — Será que está bravo com a nossa demora?
— Não, acho que não. Ele sabia muito bem onde estávamos e porque
demoramos.
— E aquela cara de quem chupou um limão azedo? — Ergui as
sobrancelhas, mas Ian deu de ombros.
— Ainda bem que chegaram! — Ele expirou ao parar em nossa frente.
— Desculpa a demora, Sr. Antônio. — Ian tomou a frente. — Choveu por
tanto tempo que nós ficamos ilhados no barracão e só conseguimos sair
agora.
— Eu sei, filho. Não estou chateado com isso — ele comentou e coçou
sua barba. — É que uma coisa chata aconteceu na ausência de vocês dois.
Franzi o cenho e já me preocupei.
— Já sei! Alguém se feriu na cozinha outra vez? Falei para o tio Gaspar
que a faca estava muito afiada, mas ele não me ouviu.
— Foi muito pior do que um ferimento com faca — comentou papai
mantendo o suspense. — Venham comigo, eu conto no caminho. Precisamos
ir rápido ou sua mãe vai arrumar uma confusão grande com sua tia Beth. —
Ele me puxou e durante o trajeto, voltou sua atenção para Ian. — Resolveu
aquele problema no carro do caseiro?
Meu amigo, quer dizer, agora namorado, riu e eu fiquei boiando, como
sempre ficava quando o assunto eram carros.
— Sim, usei a técnica que o senhor me ensinou e a lata-velha ficou
zangada, mas logo abraçou minha disposição de ser seu mecânico exclusivo
— ele falou com seriedade enquanto subíamos as escadas, porém a
brincadeira entre os dois estava na cara. — Precisei ter paciência.
Lancei um olhar questionador para Ian. Por algum motivo suspeitei que eu
era a lata-velha em questão. Ainda bem que não tive tempo de confirmar.
— Vou adorar ouvir como resolveu seu problema — papai respondeu e
parou no corredor, antes de chegar ao primeiro quarto. — Daqui para frente,
os homens estão proibidos.
Franzi o cenho e, antes que eu pudesse perguntar, ouvi soando, um pouco
distante, o lamento de alguém: “Por que comigo, Senhor? Isso não deveria
ter acontecido”.
Senti um desespero ao constatar que a voz pertencia a Jéssica. Ela parecia
muito abalada.
Será que Gustavo havia feito algo para magoá-la às vésperas da
cerimônia?
Pedi licença aos rapazes e apressei meus passos até chegar ao último
quarto do andar. O burburinho era alto e se misturava com o choro de minha
prima.
Quando girei a maçaneta e empurrei a porta, anunciando minha chegada,
o silêncio imperou. Observei o quarto abarrotado de mulheres até descobrir
qual era a causa daquela situação. E não foi nada difícil.
— Oh, não! — exclamei ao ver a pobre noiva ajoelhada diante de uma
arara, segurando a barra de seu vestido branco de seda, com uma marca
gigantesca de ferro bem visível na altura do umbigo. — Que tragédia
aconteceu aqui?
Ao ouvir minha voz, Jéssica saltou e correu para me abraçar,
— Graças a Deus! Você precisa me ajudar, Jubs! — ela implorou, sem se
importar com as broncas que eu levava das minhas tias e avó por ter
demorado tanto.
Eu não sabia qual era a minha culpa naquela situação ou porque estava
sendo repreendida se nem toquei no vestido, mas me mantive calma.
— Fui inventar de ajudar e quis passar o vestido por conta própria, mas
queimei tudo e agora eu, eu, eu... — Jess caiu em mais uma série de um
choro copioso. — Por favor, me ajude!
Antes de ficar ainda mais confusa, mamãe surgiu em meu campo de visão
e trazia em suas mãos uma caixa branca que eu bem conhecia.
— Filha — ela começou, mas nem precisou me explicar, eu já havia
entendido tudo.
Jéssica e eu éramos as únicas mulheres entre o bando de primos homens
de nossa família. Desde pequenas, havia uma disputa entre nós duas sobre
quem ficaria com o vestido de noiva de nossa avó. Ele não era brega, nem
feio como era comum entre essas relíquias de família. Pelo contrário, parecia
um daqueles modelos chiques e retrôs de capa de revista. Ambas queríamos
essa parte da herança, mas a vovó nunca o prometeu para nenhuma de nós.
Isso apenas mudou em nossa adolescência, quando Jess se rebelou e botou
na cabeça que não iria se casar. Ela então abriu mão do vestido, e eu, que
não era boba, a fiz prometer junto a nossa avó que somente eu poderia me
casar com aquela peça.
— Podemos consertar o vestido da Jéssica usando esse aqui ou também
reformá-lo para ficar do agrado dela — mamãe explicou com paciência
enquanto eu só observava. — Não deixei tocarem nele, até ter certeza de que
você daria autorização, pois ele é seu. A vovó te deu.
Engoli em seco e pensei bastante antes de responder. Se fosse no dia
anterior, eu teria cedido sem pensar duas vezes, mas tudo havia mudado
naquela tarde. Com Ian ao meu lado, o casamento parecia uma realidade
mais concreta para mim.
— Responda, menina — mandou tia Beth irritada, mas não me ofendi. Ela
devia estar desesperada por sua filha. — Não é como se você fosse se casar
em breve. Deixe logo sua prima usar.
— Não fale assim com ela, Beth. — mamãe me defendeu. — Deus pode
muito bem mandar um bom rapaz para ela se casar amanhã mesmo. Tome
tempo para pensar, querida.
E segui o conselho, refletindo um pouco.
Aquele vestido foi só mais uma das minhas muitas ilusões. Para mim, o
homem perfeito precisava ter todas as qualidades de um príncipe, mas Ian
veio para provar o seu valor, ainda que não fosse um nobre. Antes de estudar
a bíblia, eu também acreditava no matrimônio como o meu “felizes para
sempre”, mas esse castelo de areia se desfez para dar lugar a minha casinha
construída na Rocha. Cristo foi quem me mostrou a verdadeira felicidade
eterna. E por fim, o mais importante na celebração de casamento não era
nada externo, como roupas, banquetes ou futilidades, mas sim o momento
em que dois filhos de Deus iniciavam uma família da aliança, se tornando
um perante o Dono da Festa.
Lembrar disso me deixou mais tranquila para abrir mão das minhas
bobagens de adolescente.
— Ora essa! — Coloquei as mãos na cintura. — Não deviam ter esperado
por mim. Ainda que eu me case em breve, essa noiva não pode se casar
amanhã sem um vestido de noiva. Vamos ao trabalho!
O alívio tomou conta das senhoras que se prontificaram a agir. Até eu me
dispus ajudar. Ao passar pela mamãe recebi um olhar orgulhoso dela e soube
que tomei a decisão certa, não só de ceder o vestido, como também de
aceitar seus conselhos sobre tudo.
Graças ao Senhor e à astúcia de minha mãe, eu seria a próxima noiva da
família!
4 meses depois
— Você vai ficar bem, minha filha? — Mamãe perguntou pela milésima
vez, antes de eu passar pelo embarque.
— Eu vou, mãe. Essa viagem veio em boa hora. Fiquei muito tempo
estagnada e mudar os ares me fará bem.
— Lyra, você tomou uma decisão muito radical ao sair da Orquestra e se
mudar para um interior. Entendo suas motivações, mas acho que pode se
arrepender. — Mamãe tinha um sulco no meio da testa revelando sua
preocupação.
— A tia Iracema está doente e precisou viajar. Não posso negar um favor
para uma pessoa que está passando por uma situação tão difícil. Não tem
ninguém que fique na loja dela, e ela precisará de dinheiro para o tratamento.
Vai ser bom ajudar. E, claro, eu não precisarei mais ver a cara do André. —
Passei a mão no rosto, já cansada de tudo aquilo. Nos dias anteriores
havíamos esgotado esse assunto, ao menos eu achava. — Bom, se eu quebrar
a cara já vai ser mais um aprendizado.
— Ai, Lyra! — Mamãe deu um tapinha no meu ombro. — Você às vezes
me ofende com essas suas falar. Só estou cuidando de você, sua ingrata!
— Desculpa, mãe. Mas é verdade. Confie em Deus que vai dar tudo certo.
Isso foi até uma resposta de oração. — Ela me olhou com uma desconfiança
e dei um sorriso sapeca. — Claro, não a doença da titia.
Ela me abraçou mais uma vez antes de eu partir.
— Sua ferinha, sentirei tanto sua falta. Até desse seu enjoo. — Ela beijou
minha testa e me olhou com a face um pouco úmida. — Ah, já ia
esquecendo! Sua prima, Vitória, mandou um presente e disse que por causa
de uma prova não ia poder se despedir. — Tirou da bolsa um livro. — Ela
falou que tem música na obra e talvez você gostasse de uma boa literatura
para servir de companheira durante todo esse trajeto de viagem.
— A Vi é legal. É provável que eu leia. — Tomei o livro na mão e a
abracei mais uma vez. — Amo a senhora! E se cuide. Logo estarei de volta.
— Vou me cuidar. — Ela me deu mais uns beijos.
Caminhei para meu portão de embarque e sentei para esperar a chamada.
Pensei nos meses que antecederam a viagem. Nos dois primeiros meses, a
raiva, irritação e ódio era para todos os homens do mundo. Conversei com a
mamãe e não aguentei, chorei. Aquele foi meu período de luto. Fiz tantas
indagações a Deus. Nos últimos dois meses, comecei a querer ocupar a
cabeça. Fui convidada para tocar em casamentos, o que não ajudou muito a
minha situação. Entretanto, fui para uns passeios da igreja, e a cada
mensagem me sentia fortalecida, principalmente sobre o Senhor quebrar
nossos planos se isso muitas vezes fosse um ídolo. E era certo, Deus não
permitiria nada e nem ninguém tomar o lugar dele no trono do nosso
coração.
Admiti minhas muitas falhas. Meu relacionamento com André tomou
proporções de importância que acabei colocando Deus de lado. Nós
frequentávamos a igreja, porém André não era tão compromissado quanto
esperado para um cristão, e passei por cima disso ao fingir não ver. Depois
que tudo estava muito claro, pedi perdão a Deus pelos meus pecados.
A viagem veio em boa hora, apesar da triste situação. Estava cansada de
Manaus e precisava de novos ares. Ri ao pensar nas vezes que cogitei não ir
só para mostrar a André minha força inabalável diante de tudo aquilo. Em
certo momento, viver aquela fortaleza me cansou e decidi não querer mais
mostrar nada para ninguém, iria para Itaituba.
Meus pensamentos foram interrompidos com a chamada do embarque.
Quando já estava acomodada no assento, tomei o livro “Do silêncio a
canção”, da autora Aline Moretho.
Um nome chique! Gostei.
A capa era bonitinha e parecia promover uma estória fofa. Era o ideal para
ocupar meus pensamentos. Me surpreendi, pois após os três primeiros
capítulos já estava envolvida. Julguei ser somente um romance água com
açúcar, mas a situação da Ester começava a despertar umas sensações em
mim, uma delas eram:
Menina, por que você se envolve com um músico? Você é musicista,
deveria saber que esses são os da pior espécie!
André que o diga! Ele daria direitinho para ser esse Ítalo!
Será que ele e o André eram parentes? Estava achando que sim!
Cafajeste!
O flerte era típico dos músicos. O que um homem com instrumento na
mão faz, não é? E as românticas acham isso a coisa mais linda. Afinal, a
música é uma conquistadora de primeira, convenhamos! Nem consigo contar
quantas vezes vi os meninos da Orquestra dando em cima das meninas. E as
“inocentes” se achando sortudas por terem um músico atrás delas. Quanta
burrice! Mal sabiam o futuro que as esperava. Pior foi ter sido uma delas,
para minha completa humilhação. Mas essa página já foi virada.
Fui lendo e me envolvendo cada vez mais, e, sim, admito que meu
coração ainda fragilizado foi fisgado pelo Pr. Tiago.
Que homem lindo, meu Deus! Como a doida da Esther não olha para ele?
Ao mesmo tempo em que me sentia anestesiada de amor pelo jovem
pastor, uma tristeza me abatia na alma por saber que era quase impossível
encontrar um homem daquele na vida real.
Meu melodrama foi interrompido pelo aviso do pouso.
Desci em Santarém e, sem demora, parti para o porto onde pegaria uma
lancha para Itaituba. Continuei a leitura assim que a viagem pelo Rio
Tapajós começou. Quis chorar em certos momentos. A Ester também sofreu.
Enxuguei minhas lágrimas que escorriam por debaixo dos óculos escuros,
ainda bem que estava com ele.
Eu te entendo, amiga. Compartilho sua dor!
E após devorar aquele livro, que não era somente um clichê, mas uma
verdadeira aula de teologia sobre romance, senti minha alma farta. Fui
exortada através do relacionamento dos protagonistas, pois percebi como
havia regido a minha relação com André com muitas liberdades, e não
deveria ter sido assim.
Fiz marcações no livro para que pudesse estudar mais sobre cortejo cristão
e o que, de fato, a bíblia falava sobre. Fiz da natureza minha testemunha de
nunca mais dar meus beijos, toques e carinhos a não ser ao meu marido, se é
que teria um. Guardaria meu corpo e coração. Seria um romance para a
glória dEle.
O sol nem havia raiado no horizonte quando meu celular começou a tocar,
e ao atender, bêbada de sono, ouvi aquele timbre agudo cantarolando:
— “Parabéns pra você nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos
de vida!” Ah, minha filha, volta logo para casa. Quero você aqui comigo de
novo. Saudade até da sua chatice! — Essa dona Ivana tinha suas maneiras
peculiares de manifestar seu amor.
— Mês que vem já retorno, mãe. Titia está bem melhor! — Sentei na
cama e esfreguei o olho enquanto balbuciava.
Aquela constatação possuía uma mistura de alegria, por rever minha mãe,
e tristeza, por me afastar de certo alguém.
— Obrigada pelos parabéns, mamãe. Sinto muito sua falta — disse com
certa melancolia.
— Está tudo bem, filha? — Sua voz passou a ficar preocupada.
— Não, não. Só queria... Só queria...
O que realmente eu desejava?
— Queria o quê?
— Nem eu sei. — Passei as mãos no cabelo. — Porém, com toda a
certeza, comer seu bolinho hoje.
— Oh, filha! Logo estaremos juntas de novo e farei seu bolo de limão
preferido.
— Eu sei. — Não entendia, mas uma vontade de chorar socou forte meu
peito. — Amo muito a senhora, mamãe! Desculpa por nem sempre falar
isso.
— Você é mais fechada, Lyra, mas sei o quanto me ama e a todos a sua
volta, só que não sabe demonstrar muito — falou a que me conhecia tão
bem. — Deveria mostrar mais o coração.
Repousei a cabeça no encosto da cama.
— Apesar do temor, até gostaria, mas não sei se seria correspondida. —
Suspirei ao apresentar meu medo.
— Se o Senhor Deus quiser, nada pode impedir.
— Esse é o problema: ele não me diz se quer ou não. — Murchei os
ombros. — Aff! Só queria poder fechar o coração! Por que ele não me
obedece?
Só pude ouvir a alta gargalhada!
— É tão piadista, minha filha. Desde quando coração tem juízo? —
Mamãe tinha prazer em zombar de mim. — Estarei orando por você. Agora
vou te deixar dormir. Um beijinho.
Ela desligou e me deitei novamente, pensando no porquê de querer chorar.
Encontrei dentro de mim a carência, em especial naquele dia que não teria
minha família perto e, verdade seja dita, a saudade de Matias tinha me
afetado. Ele partiu por duas semanas e o abençoado nem possuía rede social
para acompanhar alguma coisa. Por que Matias era tão das antigas?
Você gosta dele, Lyra.
Por que permiti que isso acontecesse comigo? Joguei um travesseio no
meu rosto. Ain! Só para sofrer por alguém que não está nem aí para mim e
que irá embora, porque, assim como o sol nasce todas as manhãs, Matias
passaria naquele mestrado.
Preciso superar essa paixonite!
Me revirei na cama.
O dia foi calmo e agradeci por Abby e sua família demostrarem seu amor
naquele 07 de março ao fazer um bolinho e bater os parabéns. Foi melhor do
que pensei. Para finalizar a comemoração, eu e minha amiga fomos na Orla
e, antes que pudéssemos nos sentar num dos bancos, senti uma mão cobrindo
meus olhos. Tateei os braços do indivíduo que fez isso, e não queria
confirmar que era quem eu havia imaginado. Logo a mão foi retirada e me
depararei com o dono dos meus muitos pensamentos nos últimos dias.
— Matias! O que faz aqui? — indaguei sem acreditar.
— Bom, eu moro nesta cidade, não é? Nada mais normal. — Ele caçoou
de mim.
— Você sabe o que quis dizer. — Cruzei os braços.
— Sei, mocinha. Ei, Abby — ele inclinou a cabeça para o lado —,
roubarei sua amiga por um tempo, tudo bem?
— De onde você saiu, homem? — Abby estava tão incrédula quanto eu.
— Mulher tudo quer saber, meu pai! — Matias pôs a mão na testa. —
Depois respondo. Por hora, vou roubá-la de você.
Ela deu de ombro.
— Vamos! — Segurou a minha mão. — Meu carro está logo ali. —
Acenou com a cabeça.
Nos afastamos de Abby e, antes de entrar no carro, perguntei:
— Para onde vai me levar, seu maluco?
— Vai saber logo.
Entramos no carro, Matias deu partida e não falou muito no trajeto porque
logo chegamos àquela praia do encontro dos jovens. Ele saiu do veículo e
correu para abrir minha porta, num ato muito cavalheiresco. Aquele homem
não podia fazer essas coisas comigo, não. Somente o agradeci. Após isso,
pegou uma cesta no porta-malas.
— Já sabe o que pretendo fazer, não é? — Ele sorriu e começou a
caminhar para a praia, comigo ao lado.
— Planejou um piquenique? — Olhei para os lados.
— O que está procurando? — perguntou, rindo.
— Os outros jovens chegarem.
— Não vem ninguém. Será apenas nós dois — Matias disse num meio
sorriso, e meu coração ameaçou desfalecer.
— É sério?
— Está vendo mais alguém aqui? — Ele abriu os braços. — Talvez um
espírito?
— Engraçadinho! — Semicerrei o olhar.
O segui até um lugar embaixo de uma das árvores e estendemos o pano
azul no chão. Nos sentamos na beirada para o tecido não voar e colocamos a
cesta no meio.
— Soube que hoje é o aniversário de uma menina da minha igreja — ele
começou a falar enquanto tirava as coisas da cesta. — Quis preparar algo
para comemorar com ela.
Não, não pode ser verdade! Calma, Lyra!
— Como soube a data do meu aniversário? — Fiz de tudo para minha voz
não parecer afetada.
— Por ser presbítero, tenho acesso aos dados dos membros da igreja. É
sério, obtenho alguns poderes como os pastores, se é que me entende. —
Deu uma piscadela e o meu coração aqueceu.
— Não esqueceu do pastor Tiago? — Deitei um pouco mais no pano e
sorri.
— Como poderia, se você me rebaixou por causa dele? Nunca vou
esquecer! — Fez uma expressão de bravo.
— Não o rebaixei! Só disse que eram diferentes. — Quis defender meu
personagem literário preferido.
— Certeza que ele não fez um piquenique para a mocinha dele. Fez? —
Me olhou como quem estivesse me desafiando.
— Não lembro disso. — Mordi o lábio e desviei o olhar.
— Ah! É difícil eu errar! — Comemorou sua vitória.
Ele terminou de pôr os lenços do lado de fora, e observei como tinha
muitas iguarias apetitosas ali. Matias se demonstrava um excelente
planejador de surpresa.
— Mas, brincadeiras à parte, de verdade queria celebrar com você, Lyra.
— Seu olhar passou de diversão para um brilho de seriedade.
Lembrei de quando ele não quis ir no aniversário de Laís, mas se importou
tanto com o meu. Então eu poderia, sim, ser especial para ele, não podia?
— Por quê?
Ele estalou a língua no céu da boca.
— O que posso dizer? — Ele dobrou a manga de sua camisa e fez um uma
cara de pensativo. — Ah! Eu gosto de estar com você — confessou, sério.
— Sabe, Lyra, tenho orado muito neste último mês. — Sua declaração me
deixou numa enrascada. — Mas... — Levantou o dedo indicador. — Antes
quero te dar o seu presente.
Ele cortou totalmente o rumo da conversa; pisquei algumas vezes antes de
me situar.
— Outra coisa além disso? — Apontei para tudo na toalha e o local em si.
— Já volto!
Matias saiu, apressado, e minha imaginação foi ágil para pensar em
variados presentes como: anel, anel e anel de novo.
Lyra, não seja tão emocionada!
Não, não, não! Precisava me controlar. Deveria ser racional naquela
situação, assim como havia aprendido, nada de se deixar levar por algo não
concreto. Respirei fundo e fingi passividade.
— Poderia fechar os olhos, por favor. — A voz de Matias ressoou mais
distante. — E não ouse se virar para cá.
— Quanto mistério! — Ri. — Tá certo!
Obedeci ao seu pedido e senti a movimentação dele se aproximando.
— Agora pode abrir!
Fiquei paralisada. Não podia acreditar no que estava vendo!
— Você o consertou?
— Levei há um Luthier lá no Paraná.
Diante de mim estava aquele violão de 1984 novinho em folha!
— Está me dando o violão do seu pai? E sua mãe? — Pisquei algumas
vezes. Minha voz pesada denunciou a emoção que estava sentindo naquele
momento. — Não posso aceitar um presente tão pessoal assim. É de família.
— Para começo de conversa, minha mãe amou a sugestão de dar a você.
— Ele voltou a se sentar e deu leves batinhas no instrumento. — Um bom
violão para uma excelente violonista. Em segundo lugar, é pessoal porque
desejo que seja assim. Bem pessoal! — Matias tinha um tom mais grave e,
com sincera curiosidade, indagou: — Gostou?
— Eu nem sei como expressar o quanto amei. — Tomei o violão nas mãos
e apreciei aquela obra prima. Em seguida, o fitei, incrédula. — Matias, isso
tem um valor emocional, não podemos negar. — Fui direta ao ponto.
— É claro que tem. — Sua expressão era séria. — Quando vi você
tocando, lá na loja na sua tia, se lembra que disse sobre precisar ouvir aquela
música?
Apenas assenti.
— Era a música preferida do meu pai. Estava numa semana difícil e fui
comprar o capo porque queria tocá-la um pouco, diferente de só colocar para
ouvir. Mas vê-la naquela posição, dedilhando todos aqueles acordes com
tamanha maestria e numa intensidade sútil e gloriosa, soube que nunca
tocaria daquele jeito. — Ele mirou o rio a nossa frente. — Lá estava um
consolo. Deus ouviu minha tristeza e mandou você. — Virou-se para mim
com um brilho diferente no olhar.
Naquela altura, estava emocionada e não tinha como negar.
— Eu? Uma resposta de Deus para alguém? — Não queria, mas uma
lágrima rolou na minha face.
— Talvez mais do que imagina. — Ele estendeu a mão na minha direção
e, com o polegar, enxugou aquela lágrima. — Não precisa dizer nada, mas
poderia tocá-la novamente. Você toca para eu ouvir?
Como negaria um pedido daquele?
Posicionei o violão nas coxas, afinei as cordas, pus o capo concedido por
ele e dedilhei toda aquela composição florida de sutileza e drama. Matias se
deitou sobre o pano, cruzou os braços e os pôs debaixo da cabeça,
apreciando a música representante de uma relação de amizade entre pai e
filho. Ao terminar, ele continuava de olhos fechado, e só consegui
contemplar sua beleza serena.
Eu gosto de você, Matias. Gosto de todo coração!
Seria impossível não me apaixonar por aquele homem tão piedoso e
amigo. Só pude fechar os olhos e engolir em seco as palavras de amor que
desejavam escapulir dos meus lábios.
— Obrigado!
Abri os olhos e assenti. Precisava mudar o rumo dos meus pensamentos,
então falei:
— Você tem uma bela família, Matias. — Deitei o violão na toalha. —
Uma vez, conversando com sua mãe, ela falou sobre o casamento abençoado
com seu pai. Queria que meus pais tivessem tido essa sorte, mas eles se
separaram na minha infância — relatei um pouco do meu passado.
Ele se sentou e me encarou.
— Não é próxima de seu pai?
— Sou. Conversamos sempre que dá. Na infância, ele procurou ser
presente e, na adolescência, me aconselhava. Mas nunca é igual a tê-lo
presente todos os dias. — Senti um engasgo. Talvez, se papai estivesse mais
presente, não teria tanta carência para encontrar um amor.
— As experiências dos nossos nos ajudam a escolher com mais sabedoria
o que queremos ou não — ele disse, e concordei.
— Falhei, como sabe bem, mas tenho fé que um dia posso me casar no
Senhor. — Virei o rosto para o rio. — Quero um casamento de parceria,
sabendo que meu marido vai me amar em qualquer circunstância. —
Respirei fundo. — Estaremos junto na embarcação, seja com as águas
turbulentas ou calmas. — Voltei a olhar para ele e vi como prestava atenção
em mim.
Aquelas palavras foram as mais sinceras compartilhadas com alguém. Era
um real desejo do meu coração. Naqueles três meses que passei em Itaituba
aprendi tanto sobre relacionamento através dos livros que li, das conversas
com mulheres tão sábias como dona Solange e dona Iris, tendo seus
casamentos como um exemplo.
Contemplando-o parado ali, sabia que ele cumpria todos os requisitos de
piedade masculina. Sem certezas de nada, permanecia aquela sensação de
frustração. Algo tão perto e tão longe ao mesmo tempo!
— Casamento pode ser uma dádiva ou um fracasso — pronunciou. —
Portando, devemos escolher bem!
— Pensa em se casar?
— Com toda certeza. — Ele bateu as mãos para tirar a poeira e se serviu
de um biscoito de coco. — Já com 30 anos, não tenho sonhos de um grande
romance, mas o Senhor parece ter me concedido algo equilibrado.
— Concedeu? — Uma mistura de decepção e incredulidade perfurou meu
coração.
Ele mordeu o biscoito e sorriu.
— Como diz as escrituras, tudo tem seu tempo debaixo do sol.
Bufei frustrada. Naquela altura despertou a curiosidade para saber qual era
o segundo valor emocional do presente, mas não queria forçá-lo a nada.
— Como foi sua viagem? — Mudei o assunto e peguei um pedaço de
torta.
— Muita boa. — Ele riu e me passou uma colher. — Acho que passei.
— Você vai para o Paraná, e eu voltarei para Manaus. — Não dava para
negar a frustração na minha voz.
— Voltará? — Sua expressão mudou.
— Minha tia retornará, então não terei mais nada aqui. — Dei de ombros.
— Estou orando ainda para ver qual é o próximo passo, mas nada recebi.
Ele engoliu uma uva.
— Acho que a voz dEle está prestes a romper o silêncio!
Um mês depois.
Somos gratas a Deus, ao nosso Senhor Jesus Cristo, que nos inspira
diariamente e nos abençoa através da escrita.
A Clys, pela revisão e leitura crítica, além do apoio de sempre. Você faz
parte desse projeto tanto quanto nós.
Às leitoras que fizeram a leitura beta no Wattpad em tempo recorde. E a
todos os leitores que acreditam no nosso trabalho.
Agradecemos umas às outras pela amizade e cumplicidade entre nós
quatro, é sempre um prazer trabalharmos juntas.
E ainda agradecemos:
Dulci: Agradeço ao Senhor Deus, pois escrever esse conto foi como um
vento novo na minha vida. Por fim, a toda minha família: sem seu apoio à
minha escrita, eu não estaria aqui.
Conheça as autoras dos contos
Kell Carvalho é Cristã, esposa, mãe de duas meninas e funcionária
pública. Começou sua jornada pela escrita no Wattpad, no início de 2017.
Desde então, dedicou-se a escrever Romances Cristãos conservadores que
agradaram rapidamente a leitoras de diferentes idades, tornando-a uma autora
conhecida na plataforma. “Orei por você” foi a primeira obra com a qual ela se
aventurou a tomar novos rumos, expandindo, assim, seu trabalho. Conhecida
como “Clichê Queen”, Kell faz jus ao título escrevendo estórias envoltas em
amor, fé e temor a Deus.
Instagram: @livrosdakell
Wattpad: @kells2carvalho
Nascida e vivendo em Minas, Maina Mattos começou a escrever e publicar
seus livros na plataforma Wattpad em 2017 e não parou mais. Entre fraldas,
brinquedos e uma casa para administrar, ela aproveita qualquer oportunidade
na correria do dia-a-dia para fazer aquilo que tanto ama: escrever.
Mãe de quatro, casada com seu primeiro e único amor, escritora de romances
cristãos, com mais de um milhão de páginas lidas na Amazon, foi influenciada
pelas autoras Jane Austen e Elizabeth Elliot.
Ama criar enredos românticos que falem sobre Cristo e a maioria de seus
romances são de cortejo.
Instagram: @mainamattos
Wattpad: @mainamattos
Aline Moretho é uma jovem paulista, que desde nova se encantou com o
mundo dos livros. Em 2015 descobriu sua nova paixão: escrever romances.
Porém, apenas em 2018 compreendeu que seu dom, ainda em processo de
aperfeiçoamento, deveria ser dedicado ao Senhor.
Hoje, Aline tem visto a bondade do Senhor e se alegrado com as bênçãos
trazidas através da escrita e espera poder se dedicar a esse trabalho por muitos
anos.
Instagram: @alinemoretho
Wattpad: @alinemoretho
Dulci Veríssimo é uma manauara de coração e alma. Formada em música,
mestranda em educação, com um toque de literatura na veia, descobriu a escrita
após o desejo de conciliar romance de época e um musical. Assim nasceu o
primeiro enredo de seu livro, "Amor e Graça", em 2016, e postou a primeira
versão de sua obra em 2017 no Wattpad.
Influenciada por suas romancistas favoritas, como Janette Oke, Stephanie
Grace Whitson e Jane Austen, procura apresentar obras que realmente
edifiquem e encorajem os irmãos na fé e na esperança da glória!
Instagram: @dulciverissimo
Wattpad: @dulciverissimo
Conheça outras obras das autoras
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