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Copyright © 2023 Kell Carvalho, Maina Mattos, Aline Moretho, Dulci Veríssimo

Revisão: Clys Oliveira


Ilustração da capa: Adácia Raquel
Montagem da capa e diagramação: Maina Mattos
Ilustrações dos personagens: Aline Moretho

Todos os direitos reservados

Nenhuma parte dessa obra pode ser reproduzida por quaisquer meios sem permissão por escrito dos
editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.
Dedicamos estes contos a todas as leitoras que acompanharam o início da nossa jornada
no Wattpad, quando a Aline escrevia livros com títulos em inglês, a Maina usava hífen no
lugar do travessão, todos os personagens da Kell tinham beijos roubados e a Dulci usava
palavras robustas fora do contexto. Obrigada a vocês que suportaram os bugs da plataforma
e nos apoiaram quando tudo era mato — e mato alto que precisava de muita poda. Se estamos
aqui hoje, é porque vocês acreditaram.
“Prometam, ó mulheres de Jerusalém,
pelas gazelas e corças selvagens,
que não despertarão o amor antes do tempo.”

Cânticos 2:7 NVT


Contents
Copyright
Dedication
Epigraph
Nota das autoras
Conto Resgate de um coração
Conto Missão do amor
Conto Meu amor real
Conto Acordes do coração
Nossos agradecimentos
Conheça as autoras dos contos
Conheça outras obras das autoras
Nota das autoras

Precisamos começar esta nota dizendo que escrever este livro foi um
desafio e tanto para nós. Primeiro, porque foi idealizado por longos anos
antes de ser concretizado. Segundo, porque sendo nós quatro autoras de
livros grandes e com pouca — ou nenhuma — experiência com contos,
escrever com um limite determinado de palavras foi um obstáculo a ser
vencido. Tivemos que fazer algumas concessões, é verdade. Inicialmente, a
meta seria 10 mil palavras. Quando começamos a escrever, entramos em
comum acordo de que poderíamos aumentar para 12 mil. Depois de perceber
que precisávamos de mais, subimos para 15 mil. Então, após pensar,
repensar e analisar, fechamos em 18 mil palavras cada conto. Não mais.
E aí entrou a parte mais difícil: desenvolver uma história com essa
limitação. Mas, no fim, conseguimos bater a meta sem precisar aumentá-la
outra vez.
Por isso, querida leitora — ou querido leitor —, se você está acostumada
com nossos enredos grandes, esteja ciente de que fizemos muito esforço para
incluir todos os elementos necessários para desenvolver as histórias com o
espaço limitado. São contos. Curtos. Como tal, é claro, foca-se no principal,
enxugando todo o possível para alcançar nosso objetivo.
Não é a primeira vez que trabalhamos juntas. Possuímos 2 romances
escritos em conjunto no Wattpad, mais voltados para o humor, contudo
queríamos fazer algo mais sério. Após algumas conversas, decidimos
escrever contos individuais para preservar o estilo e particularidades de cada
autora. Com o objetivo de escrever voltadas à temática principal dos nossos
livros, românticas como somos, precisava ter romance. E, lógico, seria de
cortejo, afinal, não é atoa que somos conhecidas como Côrte Queens.
No vasto mundo literário, repleto de amores líquidos, onde conteúdos
eróticos são superestimados e os tipos de relacionamentos recreativos não
refletem princípios cristãos, nossa proposta com “Meu enredo de amor” é
resgatar valores muitas vezes desprezados pela geração atual. Tópicos como
romance com propósito, defraudação, desilusão amorosa, guardar o coração,
espera em Deus, paixões da mocidade, entre outros, estão presentes nos
quatro contos deste livro: Resgate de um coração, Missão do amor, Meu
amor Real e Acordes do coração.
Que este livro seja uma benção em sua vida e você termine com o coração
quentinho.

Aline, Dulci, Kell e Maina


Conto Resgate de um coração
Eu sempre imaginei como a minha história de amor seria, e cada vez que
eu lia um romance, deixava a minha mente vagar pelo enredo, fantasiando
ser eu no lugar da protagonista. Como leitora voraz, aos vinte e cinco anos já
havia vivido, no mínimo, mil amores diferentes. No início, não filtrava
muito o que lia e encarei umas relações bem tóxicas, que mais me deixava
frustrada do que apaixonada. Até que descobri a ficção cristã através do livro
“Um Perfeito Encanto” da autora Dulci Verissimo. A partir desse dia minha
vida de leitora mudou, bem como o meu padrão de homem ideal. Tudo isso
graças ao Dr. Bernardi[1]. Fisicamente, ele não fazia o meu tipo. Nunca
gostei dos loiros de olhos azuis, mas seu caráter e a maneira como ele amou,
cuidou e respeitou Beatrice[2] ao longo de toda trama conquistou o meu
coração, fazendo-me desejar alguém com seus padrões e princípios. E assim
segui: sonhando e esperando.
Contudo, a vida não é só feita de romance e enquanto meu boy unção não
aparecia, precisei cuidar das outras áreas da minha existência. Concluí o
ensino médio, fiz faculdade de letras, pós-graduação em libras e em
educação especial, porém, após tudo isso, eu parecia não encaixar no
mercado de trabalho. Até que em uma noite, depois de um fatídico dia de
choro e frustração, uma amiga me enviou um link pelo WhatsApp dizendo
ser a oportunidade que eu procurava. O site do Instituto Federal de Rondônia
tomou conta da tela do meu notebook anunciando uma proposta mais que
tentadora: vagas para intérpretes de libras e um salário de encher os olhos e
os bolsos. Bastava preencher um curriculum disponível ali mesmo e esperar
ser selecionada. Quem fosse escolhido faria uma apresentação por
videoconferência e, se aprovado, a vaga seria dele.
Sabe quando você toma uma decisão no calor do momento, achando ser a
melhor coisa do mundo? Então, foi exatamente assim que aconteceu. Sem
nem ao menos ponderar os prós e contras, cliquei no link de inscrição e
enviei todos os meus dados. Algumas semanas mais tarde, recebi um e-mail
dizendo que eu havia sido selecionada. Participei de uma entrevista on-line,
simulei a tradução de uma aula e, para minha surpresa, fui escolhida para a
vaga.
Agora, mais calma, fico pensando se eu não fora a única, louca o
suficiente, a se candidatar. Quem, em sã consciência, aceitaria largar família
e amigos para trás a fim de ir embora para um lugar longe de tudo e de
todos? Bem, eu tive, e lá fui eu, após tomar todas as vacinas que meu braço
— e aquela outra parte do corpo — pôde suportar, rumo ao El dourado,
rumo a Rondônia.
O que eu sabia sobre esse pequeno estado brasileiro era apenas o que
ouvia falar: muito índio, pouca civilização, onça, bastante peixe para comer,
mosquito poderoso suficiente para matar um ser humano, florestas para
todos os lados e casas que flutuavam acima dos rios. E, sim, eu quis ir
mesmo assim. Em vez de comprar uma passagem de avião, optei por viajar
dirigindo meu carro, um Ford sedan de segunda mão que fora do meu pai
por anos, justo para poder trazer meus suprimentos. Apesar de ter
pesquisado no Google e visto que existiam supermercados na região, eu lá
tinha minhas suspeitas. Afinal, não se pôde acreditar em tudo que se lê na
internet!
O sol já se preparava no poente, jogando seus poucos feixes de luz sobre
uma imensa plantação de soja que se estendia a muitos quilômetros ao lado
da rodovia. A grande placa azul com letras brancas indicou a divisa entre os
estados de Mato Grosso e Rondônia. Apesar dos vários temores que me
rondavam por estar indo ao encontro do desconhecido, uma sensação boa de
independência tomou conta de mim. Troquei a marcha do carro e aumentei a
velocidade, adentrando ao território da cidade de Vilhena[3], o portal da
Amazônia.
O trânsito seria tranquilo se não fosse a infinidade de carretas que
trafegavam sem interrupção em ambos os sentidos. A paisagem não havia
mudado nos últimos quilômetros, mantendo-se ainda nas plantações de soja
que se estendia como um tapete verde por toda a planície, capturando minha
atenção por diversas vezes. Ao que tudo indicava, teria chovido por ali não
fazia muito tempo. Como a BR-364 não estava em uma boa condição, reduzi
a velocidade e desviei de um buraco enorme no meio da pista que eu
transitava. Foi quando, de repente, uma capivara surgiu, saindo da vegetação
e adentrou na estrada. Tudo aconteceu muito rápido. Tentei ao máximo
contornar o animal, mas na manobra, os pneus do meu carro aquaplanaram
na pista molhada, girando-o e o lançando para fora da rodovia.
Não sei quanto tempo fiquei apagada. Ao abrir os olhos, minha cabeça
doía e as vistas estavam desfocadas. Eu ainda conseguia ouvir o vai-e-vem
das carretas transitando na BR, mas era tudo muito distante. O capim
espetava as minhas costas, indicando que eu não estava no meu carro e a
sombra de um imenso guarda-chuva impedia que a garoa fina me molhasse.
Apertei os olhos e tentei me situar, recordando os últimos acontecimentos.
— Ei, você está bem?
Uma voz masculina me fez abri-los outra vez, mais focados que antes. O
rapaz vestia uma jaqueta jeans por cima de uma camiseta preta e, apesar de
marcante, sua expressão era gentil. Fiquei sem reação, pois ele era do jeito
que eu imaginava o Dr. Bernardi, do livro da Dulci Veríssimo. Pele branca
com uma tonalidade dourada, provavelmente bronzeada pelo sol, cabelos cor
de mel, olhos azuis como o mar, e pelo seu tronco parecia alto e forte.
Dada a minha falta de reação, ele se inclinou e apertou meu punho com a
feição concentrada.
— Seu pulso parece estar voltando ao normal. — Os olhos dele se
estreitaram de um modo sério. — Está bem forte, na verdade. — Sorriu,
parecendo aliviado.
Era lógico que meu pulso estava forte! Dr. Bernardi olhava para mim!
Meu coração mais que acelerou, estava prestes a sair pela boca. Tentei me
mexer, incomodada de repente com a situação, porém ele me impediu.
— Você não deve se mover até a ajuda chegar. Eu já te avaliei e parece
que não quebrou nada. É apenas protocolo.
— Quem é você? — silabei, lutando para formar uma frase.
— Meu nome é Fernando. Estava vindo logo atrás quando você saiu da
pista. Eu te tirei do carro por precaução, pois está vazando gasolina, o que
poderia causar uma explosão. — Arregalei os olhos, apavorada. Não podia
perder meus suprimentos! — Não se preocupe, eu sou bombeiro e me
certifiquei de que isso não ocorra.
Fernando conferiu a hora no relógio em seu pulso, não muito contente. A
chuva estava ficando mais intensa e nem sinal da ajuda chegar. As rajadas de
ventos aumentaram, então ele tirou a sua jaqueta e colocou sobre mim. Nada
do socorro aparecer.
— Droga! Você não pôde ficar aqui desse jeito, em breve o solo vai
encharcar e pela distância que estamos tudo indica que ainda vão demorar.
Fernando pediu que eu segurasse o guarda-chuva e em um movimento
rápido e ágil, me pegou no colo e correu rumo a seu carro parado no
acostamento. Minhas costas doeram quando ele me colocou com cuidado no
banco de trás e pediu para que eu me deitasse. Em seguida, sentou-se ao
volante e ligou o aquecedor do veículo.
— Você está bem? — perguntou virando-se para trás.
— Estou com frio.
— Tenho um cobertor lá atrás.
Ele saiu outra vez do veículo para a chuva torrencial que caia. Quando
voltou, sua camiseta estava encharcada, mas aquilo parecia não o incomodar.
Ele me cobriu e em poucos minutos eu já não tremia mais. O calor do
cobertor trouxe um sono avassalador.
— Você precisa ficar acordada, não sabemos se houve alguma contusão na
cabeça. — Notando que eu estava prestes a adormecer, Fernando me
advertiu, apontando para um corte que latejava na minha testa.
Resmunguei, lutando para manter as pálpebras abertas.
— Estou dirigindo a quase quatro dias, parando apenas para comer e
dormir quando a noite cai. Sinto-me exausta.
— Se importa se eu te perguntar de onde você está vindo?
— São Paulo.
— Fez todo o trajeto, sozinha? — Sua voz soou surpresa.
— Sim.
— Você é bem corajosa. São mais de dois mil quilômetros até aqui.
— A necessidade forja a coragem.
Fernando deixou uma risada baixinha escapar.
— Sim. — Ele ficou em silêncio por um tempo, e eu quase adormeci com
a quietude. — É sério, moça, você não pode dormir.
— Beatriz. Meu nome é Beatriz.
— Certo, Beatriz, você tem que ficar acordada até os socorristas
chegarem.
— Tudo bem, então vamos conversar. Esse silêncio e a chuva lá fora é um
convite e tanto para uma soneca.
— Por mim tudo bem. — Ele virou a cabeça para trás e me olhou de
relance. — O que te traz a Rondônia?
— Um emprego. Vou trabalhar como intérprete de libras no Instituto
Federal em Vilhena.
— Isso é muito legal.
— Eu sempre sonhei em trabalhar com libras desde a minha adolescência.
Mas só agora a oportunidade surgiu e ela foi tão tentadora, que não pensei
duas vezes antes de vir.
— Você vai gostar daqui, é um bom lugar para se viver.
— Pode até ser, mas aquela capivara que atravessou na frente do meu
carro não me deixou uma boa primeira impressão.
Fernando riu alto e sua risada preencheu todo o veículo, provocando uma
descarga elétrica no meu coração. Não conseguia entender o porquê de me
sentir tão à vontade na presença dele e o motivo de todas as sensações que
eu nunca havia sentido tão intensamente.
Após um longo período, as luzes vermelhas do giroflex da ambulância e
viatura dos bombeiros indicaram que o socorro havia chegado. Eu estava
bem, mas, ao mesmo tempo, era como se eu estivesse completamente
desorientada e não saberia dizer se era por conta do acidente ou pelos
sentimentos provocados por aquele desconhecido.
— Chegaram, graças a Deus.
Fernando saiu do carro e abriu a porta de trás para que pudessem me
retirar. Eu conseguiria andar sozinha, mas por conta do protocolo de
atendimento fui tratada como se todos os ossos do meu corpo estivessem
quebrados.
Ele me acompanhou ao lado da maca, segurando o guarda-chuva sobre
mim até que me colocassem na ambulância, entrando logo em seguida e,
assim como antes, se inclinou para poder falar comigo. Engoli em seco,
tentando não deixar transparecer como sua simples presença me deixava
desestabilizada.
— Assim que eu chegar na cidade, vou acionar um guincho para vir
buscar seu carro, tudo bem? — Eu assenti, ainda tentando entender de onde
vinha tanta prestatividade. — Há algum endereço que eu possa levar seus
pertences? Tem bastante coisa no seu veículo, não vai dar para ir para a
oficina assim.
“Oh, céus, meus suprimentos!”
— Não tenho certeza. O endereço está no meu celular, mas eu nem sei
onde está agora.
— Precisamos ir — informou o socorrista.
— Tudo bem. — Fernando se virou para ele. — Vocês vão levá-la para o
hospital regional?
— Sim, a não ser que ela tenha algum convênio.
— Eu não tenho — respondi com a garganta apertada.
Eu odiava os hospitais e queria minha mãe.
— Vou acertar tudo por aqui e te encontro no hospital, tudo bem? — ele
disse como se lesse os meus dilemas.
Um pouco cética, assenti aliviada.

Eram quase dez horas do dia seguinte quando o médico de plantão assinou
a minha alta hospitalar. Os exames não haviam constatado nada que me
fizesse ficar internada, mas, por precaução, acharam por bem que eu
permanecesse em observação na enfermaria naquela noite.
Saí para a manhã ensolarada, o céu estava claro e limpo, como se a
tempestade do dia anterior não tivesse ocorrido. Respirei fundo e olhei para
os lados, procurando me orientar. Não tinha nenhum dos meus pertences
comigo e Fernando não havia ido ao hospital como prometido. Eu estava em
um lugar estranho, sem amigos, família ou conhecidos. Tudo que eu possuía
tinha ficado no carro e nem sabia onde ele poderia estar naquele momento.
A gravidade da situação chegou até mim como um soco no estômago e o
desespero tomou conta de cada célula do meu corpo frágil. Por que acreditei
que um estranho cumpriria a sua promessa? Fernando poderia ser um
oportunista e naquela hora todos os meus bens poderiam estar a quilômetro
de distância dali.
Fiquei tão iludida por sua beleza e cuidado que não me certifiquei em
deixar tudo em segurança. Lágrimas de desespero já inundavam os meus
olhos quando senti uma mão apertar o meu ombro. Assustada, por não
esperar o toque, virei de súbito para trás em um salto.
Um soluço ficou preso na minha garganta ao avistar Fernando a apenas
um passo de mim, vestido com um uniforme alaranjado e segurando um
boné da mesma cor. Sob a luz do sol, seus olhos pareciam ainda mais claros,
assim como o cabelo. Sua pose lembrava um super-herói me encarando,
como se esperasse que eu falasse primeiro, mas as palavras desapareceram.
Percebi que havia permanecido tempo demais calada quando ele deu um
sorriso tímido e encolheu os ombros.
— Perdão, te assustei?
— Sim, duas vezes! — fui logo expondo meus dilemas antes que ficasse
ainda mais constrangida.
— Duas?
— Você disse que viria ao hospital para me informar sobre meu carro e
meus pertences. Fiquei apavorada pensando que tinha perdido tudo. Eu… —
Um nó na minha garganta me impediu de prosseguir.
— Fui acionado assim que cheguei à cidade. Precisei trabalhar a noite
toda, mas passei por aqui. Não permitiram a minha entrada porque já havia
passado o horário da visita noturna e eles me informaram que você estava
medicada e dormindo. — Um suspiro escapou de seus lábios antes dele
continuar. — Como prometido, o seu carro foi guinchado e está na oficina.
Os seus pertences estão aqui comigo. Acabei de sair do plantão, desculpa se
te preocupei.
Trêmula, abracei meu próprio corpo.
— Eu não sabia o que pensar.
— Entendo, e não te culpo. Há muitas pessoas maldosas nesse mundo. —
Um olhar sério surgiu em seu rosto enquanto ele dava uma olhada ao redor.
— Mas eu não sou uma delas, Beatriz.
— Perdão por pensar que era.
Fernando assentiu, aceitando minhas desculpas, e indicou onde havia
estacionado.
— Você já comeu alguma coisa hoje?
— Sim, serviram café da manhã antes de me liberarem.
— Certo. — Ele esfregou a mão direita na lateral da calça. — Vou te levar
em casa, tudo bem?
Paramos ao lado do carro dele e me virei para olhá-lo.
— Me sinto mal por estar te incomodando.
— “Vidas alheias e riquezas salvar”, esse é o nosso lema. — Colocou o
boné na cabeça e apontou para o brasão da corporação do corpo de bombeiro
bordado em seu uniforme.
Meu coração pulou uma batida quando um sorriso tomou conta de seu
rosto.
— Sendo assim, eu aceito — respondi rápido demais. — Até porque você
é a minha única opção — acrescentei atropelando as palavras.
— Fico feliz em ser útil. — Se ele notou meu desconcerto, não
demonstrou. — A sua bolsa está aí no banco da frente, caso precise do
celular — disse abrindo a porta para mim.
— Obrigada.
— Aliás, sua mãe ligou, e eu atendi.
O olhei surpresa.
— Você atendeu meu celular?
— Não era justo deixá-la sem notícias suas.
Meu coração se apertou ao imaginar a agonia que ela teria passado.
Mamãe era superprotetora, e eu ainda não acreditava que ela havia, mesmo
contrariada, permitido minha mudança. Após todo o ocorrido, senti-me
culpada por não dar ouvidos às suas preocupações.
— Ela se assustou muito?
— Acho melhor retornar à ligação quanto antes, ela disse alguma coisa
sobre ter te avisado que os índios iriam te sequestrar. — Um brilho de
diversão atravessou seus olhos.
— Vou ter que ligar depois, meu celular está sem bateria.
Fernando tomou seu lugar atrás do volante e passei o endereço anotado
em um bloco de notas para colocar no GPS do seu celular. Fiquei
boquiaberta quando ele tirou do bolso um iPhone de última geração,
mostrando que as pessoas ali não eram tão atrasadas como eu imaginava que
seriam.
Durante o trajeto, observei tudo ao meu redor a fim de me localizar.
Vilhena não era nada do que eu esperava. Logo na esquina do hospital havia
um semáforo. Fernando virou à esquerda e seguiu por uma avenida
pavimentada de mão dupla. Tamanha foi a minha felicidade ao avistar um
supermercado enorme que minha empolgação foi notada pelo motorista.
— Aqui é como você esperava que fosse?
— Para falar a verdade, não. — Paramos em outro semáforo no qual um
grande fluxo de carros transitava.
Sem mata fechada, cipó, índios ou animais selvagens.
— Decepcionada por não ver nenhuma onça por aí? — Fernando segurou
o riso e me olhou de soslaio.
Ao perceber um sorriso se formando, mordi os lábios.
— Tudo que eu sabia sobre Rondônia era de ouvir falar.
O sinal abriu, e ele seguiu pela mesma avenida. Passamos por alguns
condomínios compostos por casas exuberantes. Mais adiante, um parque
ecológico ladeava ambos os lados da via, com muitas árvores e um lago
cortando-o ao meio. Muitos ciclistas transitavam na ciclovia paralela ao
parque. Famílias faziam piquenique sobre o gramado bem aparado, enquanto
as crianças corriam até a ponte branca sobre o ribeirinho. Não muito longe
dali o Instituto Federal se erguia em uma arquitetura ampla, muito diferente
do que eu esperava.
— Você vai trabalhar aqui, não é?
— Sim, escolhi morar nesse bairro para poder ficar mais perto.
Fernando virou à esquerda, como o GPS indicava. Ele pediu que eu
conferisse o endereço e depois coçou a base do nariz.
— Há algo errado?
Ele não respondeu, apenas dirigiu por mais alguns metros e parou em um
lugar deserto. As casas já haviam ficado para trás, tudo que se via eram
estacas no chão demarcando os limites de alguns terrenos baldios.
— Sinto em dizer isso, mas acho que você foi enganada. — Apontou para
o endereço informado.
Meu sangue gelou e tudo girou ao meu redor.
— Não é possível, eu vi fotos do lugar e o rapaz até fez uma
videochamada me mostrando a casa. Paguei dois meses de aluguel
adiantado!
— Como você pode ver, não há nada aqui. Esse provavelmente é um dos
novos bairros que estão loteando. A não ser que o endereço esteja errado.
— Não está, conferi duas vezes antes de te passar.
Eu não queria chorar na frente dele, mas as lágrimas já estavam perto
demais para serem evitadas.
Minhas economias estavam contadas para sobreviver apenas por um mês
até eu receber o meu primeiro salário. A viagem não foi barata, além disso,
eu já havia desembolsado dois meses de aluguel. Meu carro estava na oficina
e era bem provável que cobrariam um rim pelo conserto dele.
— O que vou fazer agora? — As lágrimas vieram mais pesadas.
Fernando me olhou com uma mistura de pena e comoção. Tentei esconder
meu choro direcionando minha atenção para a janela.
— Não se preocupe, eu conheço um lugar onde você pode ficar.
Balancei a cabeça com veemência, tentando me acalmar.
— Não vou poder pagar por nada.
Ele não respondeu, apenas deu partida no veículo, fazendo todo o
caminho de volta. Abalada demais para prestar atenção ao redor, dessa vez
era como se tudo lá fora passasse como um borrão. Não sei por quanto
tempo Fernando dirigiu e nem quais ruas ele havia tomado até pararmos em
frente a um prédio de seis andares. Ele acionou o controle preso no quebra
sol e o portão de metal se abriu.
— Tem um apartamento aqui que você pode ficar.
— Fernando, eu não posso pagar por nada além de um quarto de hotel
barato por alguns dias até ver o que fazer.
— Você não vai ficar num hotel barato. Aqui é seguro e o apartamento já
está mobiliado. Quanto ao aluguel, você paga quando puder.
“Ele está me levando para a casa dele?”
— Eu não vou ficar na sua casa! — protestei assim que o pensamento me
ocorreu.
— Não é a minha casa.
— Mas você tem o controle do portão.
— O meu pai possui alguns apartamentos para alugar aqui. Você pode
ficar em um deles.
— Mesmo assim, o aluguel deve ser caríssimo.
— Já disse para não se preocupar com isso.
— Olha só para esse lugar, eu nunca poderia pagar nem agora e nem
nunca!
— Você pode pagar o que pagaria no outro endereço.
— Não!
Ele me olhou com os músculos do queixo tensionados.
— Você não tem muita escolha no momento. Estou dizendo que você
pode ficar aqui pelo mesmo preço que pagaria no outro apartamento e pagar
quando puder. É tão difícil aceitar uma caridade?
— De onde venho, a gente sempre desconfia quando a esmola é muito
grande — contra-argumentei com agressividade.
Fernando abriu a boca, mas fechou logo em seguida. O desapontamento
que surgiu nos olhos dele fez meu coração encolher, mas me mantive firme.
Era muito bom para ser verdade toda aquela bondade para com uma
estranha. A cética dentro de mim não me deixava confiar após ter sofrido um
golpe.
— Com o tempo você irá perceber que a maioria das pessoas daqui são
solidárias. Sei que você não sabe nada sobre mim e acabou de descobrir que
foi enganada. Eu te entendo e no seu lugar também não acreditaria em outra
pessoa, mas você pode confiar em mim.
Relutante, e sem outra opção, aceitei ver o apartamento. Eu estava
exausta, chateada e precisava resolver toda aquela situação.
Subimos de elevador em completo silêncio até o último andar. Fernando
parou em frente a porta 15A e procurou a chave no chaveiro que havia
pegado no carro.
O lugar era uma espécie de loft claro, limpo, aconchegante e com móveis
que combinavam um com o outro. A sala, copa e cozinha eram interligadas.
Apenas a suíte tinha um espaço privado. Uma pequena sacada dava vista
para o pátio pelo qual havíamos entrado.
— O que achou?
— É ótimo aqui. Tem certeza de que seus pais não se importarão de eu
não dar nenhuma entrada no valor do aluguel?
— Administro os apartamentos, tenho carta-branca quanto a isso, não se
preocupe.
Suspirei, envergonhada e sem escolha.
— Então fico com ele.
— Ótimo! — Seu sorriso provocou uma descarga de adrenalina no meu
coração. — Vou buscar suas coisas.
— Eu te ajudo.
— Você acabou de sair do hospital, não pode se esforçar.
— Estou bem e é muita coisa para você trazer sozinho.
— Peço para alguém lá embaixo me ajudar. Sente-se aí e espera —
ordenou, apontando para o sofá.
Quando Fernando saiu, peguei o carregador do meu celular e o conectei à
tomada do quarto. Quase que imediatamente, um milhão de mensagens e
chamadas perdidas pintaram na tela do aparelho. Minha mãe beirava o
colapso nervoso ao atender a minha ligação.
— Por Deus, Bia! O que aconteceu com você? Eu já estava prestes a
embarcar em um avião para te procurar.
Relatei o ocorrido, deixando-a ainda mais aflita. Ela disse que era para eu
ir embora o quanto antes e esquecer de uma vez aquela ideia maluca de
morar sozinha em um estado tão longe dela. Com calma, fui contornando a
situação e dizendo que Rondônia, à primeira vista, era como todo e qualquer
estado. Não o fim do mundo que desenhavam nos grandes centros.
Quase uma hora depois, encerrei a ligação e voltei para a sala, todos os
meus pertences estavam lá. Sobre a mesa encontrei a chave do apartamento e
o cartão da oficina onde meu carro seria consertado. Em um folheto do corpo
de bombeiro havia dois números de telefone rabiscados. Ao lado de um dos
números estava escrito delivery e no outro, Fernando.

Uma semana após eu me instalar no apartamento, a campainha tocou.


Pensando ser Fernando para tratar do contrato do aluguel, corri para o
quarto, troquei a blusa velha que eu usava e arrumei o cabelo, porém, quem
sorriu para mim quando abri a porta, foi uma moça simpática de imagem
despojada. Ela usava um macacão jeans e boné rosa-chá que deixava escapar
as pontas de seu cabelo Chanel.
— Oi, sou Raysa, sua vizinha. O Nando me avisou que temos uma
moradora nova no prédio e que eu deveria me apresentar. — Foi logo
falando, antes mesmo que eu terminasse de analisá-la.
Algo dentro de mim murchou ao ouvi-la se referir a ele com tamanha
intimidade. Eu pensei nele e no cuidado que teve comigo desde que me
socorreu do acidente até me deixar aquele bilhete com os números de
telefone. Toda aquela atenção afetuosa estava mexendo muito com meus
sentimentos. Em um surto de coragem, enviei uma mensagem agradecendo
por ter levado meus pertences até o apartamento. Ele demorou quase três
horas para responder, e quando o fez, apenas mandou um emoticon de
“joinha”. Então a moça à minha porta só significava uma coisa: ele era
comprometido e estava transferindo a responsabilidade de companhia para a
namorada.
— Sou Beatriz, mas pode me chamar de Bia. — Me apresentei, antes que
ela notasse os dilemas através do meu silêncio.
— Eu ia receber uma amiga e ela acabou desmarcando. Agora tenho uma
panela cheia de brigadeiro que não posso comer sozinha. Tudo bem se eu
dividir com você? Posso te ajudar a organizar a mudança se você não se
importar.
Fitei Raysa ponderando sua proposta. Não tinha nada além do meu
guarda-roupa para terminar de organizar, no entanto confesso que já estava
ficando maluca por não ter ninguém para conversar. Era estranha toda aquela
solicitude por parte de uma desconhecida, o que me fez lembrar Fernando e
toda sua ajuda, notando que essa talvez fosse uma peculiaridade dos
rondonienses.
— Por mim tudo bem.
Raysa sorriu empolgada e entrou no apartamento, fazendo-me agradecer,
horas depois, a Fernando, por solicitar que ela fosse até lá. A jovem emanava
uma energia tão contagiante, que era como se nos conhecêssemos desde a
infância. Pude perceber o quanto ela era uma mulher piedosa e nossa
conversa rondou por todos os aspectos das nossas vidas. Era fácil notar
como ela amava ao Senhor, mesmo não tendo me dito no primeiro momento
que era cristã, mas o brilho do Espírito Santo resplandecia em seu rosto. E a
melhor parte, Raysa e Fernando não tinham um relacionamento.
A tarde avançou sem percebermos que o sol já estava se pondo. Raysa
pulou da cadeira ao constatar o horário.
— Poxa vida! Estou atrasada para o ensaio do grupo de louvor. — Saiu
recolhendo a panela que levou com brigadeiro e calçando os chinelos de
dedo.
— Eu também fazia parte do louvor na minha igreja! — revelei
empolgada por descobrir mais uma coisa em comum entre nós.
— Que show! Você quer ir à igreja hoje comigo? Preciso chegar uma hora
antes, mas como você também canta, vai gostar de assistir ao ensaio da
banda.
Aceitei o convite e quarenta minutos mais tarde, seguimos no carro dela
rumo a igreja. Ao chegar, contemplei cada detalhe do lugar à medida que me
sentava em uma das cadeiras estofadas e minha nova melhor amiga ia tomar
sua posição no altar junto aos músicos que ali já estavam.
Aproveitando o tempo livre, peguei minha Bíblia e abri aleatoriamente
para poder ler um pouco antes de o culto começar. Foi quando uma voz
conhecida soou de repente, fazendo a pele do meu braço arrepiar.
— Desculpe o atraso, galera!
Fernando passou rápido pelo corredor sem notar a minha presença. Mas
seu perfume chegou até mim como um soco no estômago. Então ele era
cristão? Deus estava mesmo enviando meu Pedro Bernardi? Eufórica, o
observei cumprimentar os amigos e se posicionar atrás do teclado. Foi
quando nosso campo de visão se cruzou. Eu não queria ser pega o
observando, mas não me importei em desviar o olhar. O canto dos lábios
dele se levantou levemente ao me cumprimentar com um leve aceno de
cabeça.
Foi difícil prestar atenção no louvor no começo do culto. Meus olhos me
traiam e por várias vezes me peguei olhando para o Fernando. Obrigando-me
a acabar com tal comportamento, fechei os olhos e só os abri no fim do
louvor. No entanto outra tortura iniciou quando ele desceu do altar e se
sentou ao meu lado, tornando um calvário entender uma só palavra do
preletor da noite.
No final da pregação, o pastor solicitou que todos dessem as mãos, em
uma corrente de oração. Peguei a mão de Raysa, que se encontrava à minha
esquerda, e estendi a mão para Fernando à minha direita, mas ele não
retribuiu. Olhando-o de relance, percebi que estava de olhos fechados,
concentrado na sua oração. Recolhi a mão e fiz o mesmo, porém, tal atitude
por parte dele me incomodou.

O culto acabou e os jovens se aproximaram de mim com entusiasmo. Foi


gratificante ser recebida de forma tão calorosa pelos amigos em comum de
Fernando e Raysa. Eles decidiram esticar o bate-papo em uma pizzaria e lá
fomos nós. Fernando parecia ser o mais reservado do grupo, mas vez por
outra, fazia alguma brincadeira com o melhor amigo Lúcio. Raysa
contagiava a todos com suas gargalhadas extravagantes, que sempre me
levavam a rir com ela. Outras duas garotas, Alice e Camila, e mais um rapaz,
Rodrigo, faziam parte do grupo.
Na pizzaria, juntamos duas mesas e nos sentamos em volta delas. A
conversa era descontraída e todos buscavam sempre me incluir, fazendo-me
sentir aceita. Olhando para o rosto de cada um deles, um contentamento sem
tamanho tomou conta de mim, a ponto de eu ter que conter as lágrimas. Deus
estava cuidando de cada um dos meus temores ao colocá-los no meu
caminho.
Uma garçonete se aproximou e sem cerimônia alguma, tentou flertar com
Fernando, jogando uma piadinha vulgar ao anotar o seu pedido. Quando ela
saiu, Raysa cutucou o amigo com o cotovelo e começou a rir. Os rapazes
entraram na brincadeira e, Lúcio, o palhaço do grupo, apertou seu ombro.
— Se essa garota soubesse o que você pensa sobre o amor, não se
engraçaria para o seu lado, meu nobre.
Fernando o fuzilou com os olhos, em silêncio.
— O que você pensa sobre o amor, Nando? — Alice quis saber, curiosa
até demais.
— Para começar, ele não pega na mão de garotas, nem quando o pastor
pede durante a oração — Lúcio respondeu.
Camila arregalou os olhos, surpresa.
— Por que não?
— Fale sobre a sua filosofia, Nando! — Lúcio parecia estar se divertindo
ao expor o amigo.
Fernando parecia pensar antes de responder. Fiquei tentando decifrar
aquele homem. Antes que ele percebesse que eu o encarava, olhei para o
enfeite de flores sobre a mesa, mas em vez de ver o arranjo, foi a imagem de
Fernando tocando teclado que veio a minha mente. Ele estava invadindo o
meu subconsciente!
— Acredito que o amor tem mais a ver com uma escolha que requer
compromisso do que um sentimento — principiou ele, cauteloso. — Ao ter
compromisso de ambos os lados a relação funciona. Já a emoção acaba com
o tempo.
Alice se remexeu na cadeira, como se estivesse desconfortável.
— Do jeito que você fala, até parece que os sentimentos não são
importantes.
— Não é isso, mas em média, um casal fica apaixonado apenas por alguns
anos, tem casos que não passam de meses. A paixão é apenas uma reação
química, depois que passa, só resta o comprometimento. É por isso que o
amor é uma escolha. Decidir se relacionar significa olhar além da química,
porque então você ficará com a pessoa mesmo após todo o entusiasmo
inicial passar.
Camila bufou do outro lado da mesa, e eu olhei para ela.
— As pessoas não fazem essas avaliações antes de gostar de alguém. Eles
apenas se apaixonam e se casam. E isso é que torna tudo muito romântico!
— A maioria das pessoas não pondera que um dia os sentimentos vão
desaparecer. — Fernando deixou escapar um sorriso de escárnio. — E,
quando isso acontece, elas culpam o cônjuge. É por isso que há tantos
divórcios.
No meio do ping-pong da discussão, eu tentava acompanhar, fascinada, o
raciocínio do Fernando. Fazia sentindo suas ponderações. Cheguei a
recordar que, certa vez, havia lido um artigo destinado a jovens prestes a se
casar que falava sobre a importância da abnegação ao outro por toda a vida.
Na época, fiquei sonhando acordada e imaginando por onde andavam os
homens dispostos à magnificência daquele ato. Fernando seria um deles?
Empertiguei minha postura, decidida a descobrir aquilo naquela noite,
voltando minha atenção ao assunto.
— Eu até concordo com você — disse Lúcio. — Mas presumo que você
nunca se apaixonou.
— Já me apaixonei muitas vezes. — Fernando sorriu. — Entretanto, eu
nunca estive comprometido. É por isso que eu não namoro. Se não for para
ser para sempre, eu não quero perder o meu tempo.
A garotinha romântica dentro de mim deu um grito eufórico. Ele de fato
era aquele tipo de homem que por tantos anos idealizei. A discussão seguia,
então engoli meu frenesi interno para acompanhar.
— Suponho ser por isso também que você não dá as mãos para mulheres
quando ora. O menor toque pode levar a uma reação química que pode te
obrigar a fazer um compromisso por toda a vida. — Raysa concluiu.
Fernando apenas quicou os ombros em resposta.
— Você é bem criterioso. Analisa o romance do romance — disse Alice
com nítida decepção.
— O que é romance? — Fernando desafiou.
— Eu não quero ouvir sua opinião — disse ela bem-humorada. — Amo
romance e não vou deixar você estragar isso para mim.
— E qual a sua opinião, Beatriz? — Lúcio quis saber ao notar que eu
havia ficado de fora da conversa.
Engoli em seco e tentei não encarar Fernando.
— Julgo não ser tão criteriosa quanto o nosso colega. — Sorri nervosa. —
Ainda não aprendi a controlar minhas reações químicas. Eu até tento mandar
no meu coração, mas nem sempre tenho êxito.
— É sobre isso. — Lúcio me apoiou.
— No entanto, eu até concordo com o Fernando. — Arrisquei olhar para
ele. Seus olhos vieram ao encontro dos meus e ali ficaram. — Em um mundo
cheio de defraudação, o mais correto a se fazer é guardar o coração. —
Aquela frase era mais para mim, do que para qualquer outro naquela mesa,
pois conhecia minhas lutas diárias.
A comida chegou e o assunto mudou para terrenos menos profundos dessa
vez. Quando Raysa e eu chegamos de volta ao nosso prédio, já passava das
onze horas da noite e o estacionamento estava escuro e deserto. Notamos o
elevador prestes a se fechar, obrigando-nos a correr, em meio a risadas, para
tentar impedi-lo de subir sem nós e nos deixar sozinhas, à espera e no
relento. Por muito pouco não conseguimos entrar antes das portas se
fecharem. Raysa foi atingida por uma crise de riso, levando-me a rir com ela
como uma adolescente histérica.
Apenas após o elevador começar a subir, percebi que era Fernando que
estava dentro dele. Sem dizer nada, ele apenas se afastou, dando espaço para
nós. Fiquei sem entender o que fazia ali tão tarde. A porta abriu e Raysa saiu
no seu andar, deixando-nos sozinhos.
Mesmo morrendo de curiosidade, não questionei sua presença. Quando o
elevador parou no meu andar, ele saiu logo depois de mim. Caminhamos em
silêncio, um ao lado do outro, até que parei de frente a minha porta.
Fernando colocou a mão no bolso da calça jeans e retirou suas chaves e se
dirigiu à porta de frente a minha.
— Você mora aí? — perguntei surpresa.
— Sim. — Ele insinuou um sorriso. — Se precisar de alguma coisa, é só
avisar.
Assenti enquanto Fernando entrava em seu apartamento e fechava a porta
atrás de si, deixando-me estática no corredor.
Após o dia que Fernando foi até o meu apartamento para eu assinar o
contrato de aluguel, não o vi mais durante toda aquela semana subsequente à
mudança. As aulas no instituto federal haviam iniciado, obrigando-me a
passar longas horas mergulhada no trabalho, o que ajudou, de certa forma,
esfriar todo aquele sentimento por ele que vinha me consumindo.
Na terceira semana, passamos a nos encontrar no elevador. Às vezes, eu
estava indo para o trabalho e ele voltando do plantão noturno com o
semblante tão cansado que dava pena. Em outras ocasiões, eu estava
voltando no final do expediente e ele indo iniciar o dele, tão cheiroso que o
meu coração sempre descompassava, mas, nesses raros momentos, nosso
diálogo não passava de um “olá, como vai?”.
Na quarta semana, meu carro ficou pronto, e eu quase precisei vender um
rim para pagar o conserto. No entanto, nada disso importava, pois as
amizades que eu havia feito na igreja eram um bálsamo para mim e Raysa
uma dádiva ainda maior na minha vida, sempre aparecendo na minha porta
com uma panela de brigadeiro para jogarmos conversa fora. Os eventos com
os jovens me distraíam e os encontros do grupo pós-culto eram sempre um
momento agradável. Mesmo Fernando estando lá, era como se não estivesse,
dada a distância que ele mantinha entre nós dois, e aquilo me deixava cada
vez mais frustrada.
Nesse ritmo, os primeiros meses em Rondônia passaram entre altos e
baixos. Ora deprimida pela saudade da família, ora exultante com os novos
amigos, e deprimida de novo por nutrir tantos sentimentos por Fernando,
sendo que ele nem ao menos dava um vislumbre de esperança se possuía
algum interesse em mim.
No quinto mês, decidi que já estava na hora daquilo mudar. Liguei para
minha mãe e abri meu coração. Ela me deu alguns conselhos preciosos e
então passei a orar com fervor para Deus tirar aquele sentimento do meu
coração, assim como eu havia lido Bea fazer no meu livro preferido. Estava
na cara que Fernando não era o Dr. Bernardi e que ele não nutria nenhuma
paixão secreta por minha pessoa. Se assim fosse, já teria pelo menos tentado
se aproximar, mesmo que como o amigo, vizinho ou sei lá.
Julho chegou trazendo as férias escolares e horas de ociosidade. Coloquei
algumas leituras em dia, fiz duas faxinas no minúsculo loft e inventei de ter
aulas de culinária pelo Youtube. Eu era um desastre total na cozinha e por
muito pouco não coloquei fogo no prédio inteiro ao tentar assar um
rocambole de frango recheado. A fumaça estava tão densa no apartamento
que começou a escapar pela janela e por baixo da porta. Enquanto eu tentava
controlar a situação, a porta da sala estourou e Fernando entrou igual a um
furacão, arrastando-me para o corredor logo em seguida.
Quando constatou ser apenas um rocambole torrado o causador do
fumaceiro, ele me encarou com reprovação.
— Você quase me matou do coração, Beatriz! Estava tentando colocar
fogo no prédio?
Engoli em seco, morrendo de vergonha.
— Eu só queria comer rocambole de frango recheado no jantar —
respondi no automático.
Fernando controlou a respiração, mordeu os lábios por dentro e depois
fitou a porta arrombada. E então começou a rir. Fiquei sem entender nada,
em um momento ele estava furioso comigo, e no segundo seguinte estava
rindo sem controle.
Cruzei os braços até que ele parou de rir e enxugou os cantos dos olhos.
— Vou te levar para comer o tal rocambole de frango recheado. —
Deixando-me no corredor, Fernando saiu em direção ao seu apartamento. —
Partimos em uma hora — disse antes de fechar a porta.
“Ele acabou de me chamar para um encontro?”
Saindo do meu estupor, corri para o meu quarto para escolher o que usar.
Minha empolgação era tão grande, que fiquei andando de um lado para o
outro na frente do guarda-roupa até que liguei desesperada para Raysa. Em
dois minutos ela estava lá para me auxiliar.
— Deixa eu ver se entendi direito — disse ela da porta do banheiro,
enquanto eu tomava um banho para me livrar do cheiro de fumaça. — O
Fernando te convidou para um encontro?
— Não sei se posso chamar assim. — Eu estava me controlando para não
criar falsas esperanças.
— Você acha mesmo isso?
Saí vestida em um roupão e com uma toalha na cabeça, notando-a
pensativa.
— Como assim?
— Sei que até hoje nunca falamos de maneira aberta sobre isso, mas sou
observadora, Bia, e você sempre muda seu comportamento perto do
Fernando.
— O que você quer dizer? — desconversei.
— Não testa a minha inteligência! Vejo como você olha para ele, amiga.
Suspirei, sentando-me na cama.
— Está tão na cara assim?
— Transparente como um cristal.
— Pelo jeito não o suficiente para ele notar.
— Fernando é o que chamo de indecifrável. Nunca dá para saber o que se
passa dentro daquela cabecinha, e olha que crescemos praticamente
grudados um no outro. Ele é racional ao extremo. Nota-se isso com aquele
papo na pizzaria meses atrás, você lembra?
— Como poderia esquecer?
— Eu nunca o vi agir pela emoção. Tudo que ele faz é tão meticuloso que
dá até raiva às vezes. — Ela me encarou de um jeito que lembrou a minha
mãe me dando conselhos. — Não quero que crie tantas expectativas em
relação a ele para depois se decepcionar.
— Ele nunca se interessou por ninguém antes?
— Bem, teve uma única vez que ele demonstrou de forma bem sutil que
gostava de alguém. Após eu encher tanto a sua paciência, ele me contou
estar ponderando algumas coisas antes de falar com a garota. Ela também
gostava dele e não fazia questão nenhuma de esconder isso. No fim, a
coitada desistiu de esperar uma atitude e partiu para outra. Ela se casou há
dois anos e após isso ficou ainda mais difícil saber como funcionam as
emoções do Fernando.
Então o que ele tinha de racional eu tinha de emocional, duas pessoas
opostas. Enquanto eu sonhava com um romance arrebatador, ele analisava
cada atitude antes de tomar qualquer decisão. Ouvir tudo aquilo de Raysa foi
como se derramasse um balde de água fria na minha cabeça.
— Argh! Ele é tão difícil!
— Mas são homens como ele que valem a pena, Bia.
Ela foi embora, e eu terminei de me arrumar sem tanta empolgação como
antes. Quando saí para o corredor, Fernando já me aguardava. Frustrada,
olhei para a sua figura bem arrumada e cheirosa. Por que ele tinha que ser
tão bonito? Ajudaria muito mais se fosse apenas um cara comum. Mas de
comum ele não tinha nada. Indaguei sobre a porta que ele havia arrombado e
ele me garantiu que não teria problema ficar só encostada e que no outro dia
consertaria para mim. A paulista dentro de mim, mesmo não confiando por
completo na segurança dos meus pertences, o seguiu sem questionar.
Tentei ficar calada durante o trajeto, falando apenas o necessário até
chegarmos ao restaurante e pedirmos o bendito rocambole de frango
recheado. Tentei ao máximo parecer descontraída, mas nada deu certo. Então
decidi que tentaria ao menos entender o seu ponto de vista racional,
especulando como quem não quer nada.
— Você parece ter opiniões bem definidas sobre certos assuntos. —
Comecei um pouco desconfortável, sem querer transparecer minhas
intenções. — Qual a sua filosofia em relação à amizade entre um homem e
uma mulher?
Ele afastou seu prato vazio para o lado e entrelaçou as mãos sobre a mesa
com um sorriso rápido, claramente envergonhado.
— Esse tipo de amizade é um verdadeiro terreno minado. Para um homem
e uma mulher serem de fato apenas amigos, não pode haver nenhum outro
interesse oculto. Mesmo nesses casos, há riscos de que com a convivência as
coisas mudem. Acredito que uma certa distância deve ser estabelecida.
— Você e a Raysa são amigos de longa data.
Ele assentiu.
— Na verdade, eu a tenho como uma irmã. Sei que o que sinto por ela é
algo fraternal, assim como o que ela sente por mim também é.
— Entendo.
Antes que pudesse estender o assunto, Fernando levantou e tirou a carteira
do bolso.
— Vou pagar a conta.
Concordei desapontada pela conversa ter durado tão pouco e fui para fora
do restaurante esperar por ele, com teorias malucas em minha cabeça. Era
por esse motivo que ele ficava tão distante de mim? Eu era uma ameaça aos
seus sentimentos? Ele tinha medo de que as coisas evoluíssem entre nós,
caso nos tornássemos amigos? As perguntas ainda pairavam sem resposta
quando ele retornou.
— A noite está bem agradável, gostaria de fazer uma caminhada? —
Fernando apontou para uma pracinha próximo de onde estávamos.
Aceitei o convite de bom grado, determinada a prosseguir a nossa
conversa.
— Fernando, eu não quero ser invasiva, mas posso continuar te
perguntando algumas coisas? — Fui direto ao ponto. Precisava acabar com
aquela agonia dentro de mim, que ansiava entender aquele homem.
— Claro. — Ele concordou quando começamos a andar lado a lado.
— Acredito que todo relacionamento começa com a amizade primeiro. Se
você não for amigo da garota antes, como saberá como ela é realmente? Tem
coisas que descobrimos ao conviver com a outra pessoa.
— Há outras formas de conhecer alguém sem precisar ficar grudada nela o
tempo todo.
— Tipo, stalkeando?
Fernando sorriu e chutou um pedregulho na calçada.
— Não, observando.
— Para mim parece o mesmo. — Ele sorriu de novo, mas dessa vez de um
jeito um pouco mais divertido, o que fez acender a sensação de borboletas no
meu estômago. — E se você a interpretar de forma errada?
Fernando apontou para um dos bancos da praça e nos sentamos lá.
— É muito difícil esconder sua verdade por muito tempo. As pessoas até
conseguem por um tempo, mas uma hora ou outra, seu verdadeiro eu vem à
tona.
— É por isso que você ainda está solteiro? — Deixei escapar.
Ele contraiu os lábios e olhou para mim.
— Estou solteiro porque ainda não me sinto pronto para um compromisso.
— E o que é estar pronto para você?
Ele crispou os olhos, talvez pensando onde eu queria chegar com tantas
perguntas.
— Não tem um check list, se é isso que quer saber. Eu apenas quero me
sentir totalmente seguro de mim quando isso acontecer. Não é apenas sobre
mim, tem os sentimentos de outra pessoa envolvida. Acho desnecessário
ficar criando ilusões, pois isso pode trazer sérios problemas emocionais.
— Mas nem tudo pode ser ponderado tão meticulosamente. — Não sei de
onde veio tanta coragem, mas quando percebi as palavras já estavam
jorrando da minha boca de forma desenfreada. — Se tratando de
sentimentos, nunca há garantias. É claro que tudo tem que ser pensado, mas
não faz mal deixar as emoções ditarem um pouco as regras. Se analisarmos
tanto, talvez deixemos a pessoa certa ir embora.
Com a mesma velocidade que minhas palavras foram, a resposta dele
veio.
— No momento em que a garota certa aparecer, ela não vai embora ou
desistir só porque as coisas não acontecem no tempo dela — contra-
argumentou em tom agressivo. — Vai esperar com paciência até o momento
certo. Não é isso que diz em Eclesiastes três? Que há tempo para tudo? Há
tempo de amar, mas, sobretudo, há um tempo necessário de espera. E eu
acredito que quando o meu tempo de amar chegar, será porque eu soube
esperar e o mais importante, que ela também foi paciente o bastante para
esperar por mim.
Diante do exposto, fiquei sem reação, tomando aquilo como uma lição. Se
de fato eu gostasse dele, teria que começar a exercitar toda a minha
paciência e controlar, de uma vez por todas, as minhas emoções. Eu só
precisava decidir se eu estava disposta a tudo aquilo.

Na última semana de férias, antes de voltar a trabalhar, recebi um convite


para ir pescar com o nosso grupo de amigos da igreja. Passaríamos dois dias
no rio Guaporé e, no primeiro momento, a ideia me causou desagrado. Ter
que dormir em barracas, no calor e com mosquitos por todo lado, não me
deixava com boas perspectivas. Nunca havia pescado na vida, e não
conhecer para onde iríamos, me deixava desconfortável, sem falar que eles
disseram que já tinham visto onças por lá.
Porém, quando Fernando confirmou sua presença na programação, a
euforia que isso causou nos demais me fez querer participar também. Mesmo
não fazendo ideia do que me aguardava, aceitei depois o convite de Raysa,
animada como sempre, dizendo que eu não me arrependeria. Mas, confesso,
aceitei também porque era uma oportunidade única de estar mais perto do
Fernando. Após a conversa na praça, achei que ele iria me achar uma
intrometida e falaria ainda menos comigo. No entanto, nada foi como
imaginei. Quando voltamos, ele arrumou a minha porta arrombada, já que fiz
questão de frisar o quanto estava temerosa de dormir com ela apenas
encostada. A tarefa demorou cerca de duas horas e nesse tempo, a conversa
fluiu naturalmente, claro, com assuntos menos sérios dessa vez. Enquanto
ele trabalhava e sorria esporadicamente, me ocorreu que eu deveria tentar
entender seu modo de agir e não ficar julgando seu lado meticuloso,
silencioso e frio para comigo.
Seguindo as orientações de Raysa, fiz uma mochila com roupas adequadas
para repelir os mosquitos e os apetrechos que precisaria naqueles dias à beira
do rio. Ao chegar ao estacionamento do nosso prédio, local marcado para a
partida, pude constatar que eles levavam a sério o hobby. Lúcio e Fernando
tinham dois barcos a motor, chamado por eles de voadeiras, em cima de uma
carretinha atracada às suas caminhonetes. Além deles, Alice, Camila e
Rodrigo também já se encontravam lá.
— A Bia vem comigo, vocês se dividem aí para ver quem vai no meu
carro ou no do Fernando — disse Lúcio, se dirigindo ao grupo e tomando a
mochila das minhas mãos.
Eu não queria ir com ele. Há tempos vinha notando como Lúcio ficava se
engraçando para mim e temia por Fernando cogitar que eu estivesse
gostando de toda aquela atenção.
— Alice, Camila e Rodrigo vêm comigo e a Raysa faz companhia para a
Beatriz e Lúcio. — Fernando distribuiu o restante do grupo por conta
própria, parecendo não se importar com o que cada um queria.
Embarcamos nos respectivos carros e pegamos a rodovia em direção a
Pimenteiras, uma pequena cidade na divisa com a Bolívia, muito conhecida
na região por seu festival de praia de água doce e amantes da pescaria. A
viagem durou cerca de duas horas e ao chegar ao destino, fiquei encantada
com o charme da pequena cidade que se estendia ao lado do rio Guaporé.
Em sua margem, barcos, lanchas e outras embarcações das quais eu não
conhecia, pintava de colorido a pacata região. Seguimos pela rua principal
até um conglomerado de casinhas e estacionamos.
— Lar, doce lar. — Brincou Lúcio ao sair do veículo.
— Quem mora aqui? — perguntei a Raysa ao me juntar a ela fora do
carro.
— Esse é o nosso refúgio. Sempre alugamos quando a gente vem pescar.
Tem ar-condicionado, Wi-fi e é toda mobilada.
— E eu achando que iríamos dormir em barracas.
Raysa sorriu, colocando sua mochila nas costas e acenando para Fernando
com os outros que acabavam de parar perto de nós.
Com fome, todo o grupo se dirigiu a um pequeno restaurante na beira do
rio. O sol estava se preparando para se pôr, banhando o Guaporé com seus
raios dourados. Minha mãe era uma admiradora do pôr do sol e aquele era o
mais lindo que eu havia conseguido presenciar até então. Senti uma saudade
avassaladora tomar conta do meu coração enquanto a lembrança dela me
vinha à mente. Ela adoraria ver aquele espetáculo. Peguei meu celular e fiz
um pequeno vídeo para enviar mais tarde, à medida que os meus olhos eram
inundados por lágrimas.
Ainda absorta, senti uma mão forte apertar o meu ombro, desviando
minha atenção do poente.
— Está tudo bem aqui? — Lúcio se pôs ao meu lado, parecendo
preocupado.
— Sim! — Forcei um sorriso, mantendo as lágrimas escondidas pelos
óculos escuros. — Estava apenas vendo o pôr do sol.
Lúcio olhou em direção ao local onde os outros já se acomodavam em
volta da mesa e depois para mim.
— Você vem agora ou precisa de mais alguns minutos?
— Vou agora. — Dei uma última olhada para o céu e o segui.
Todos estavam distraídos com o celular. Havia uma cadeira vazia à direita
de Raysa, e uma outra, à esquerda de Fernando, na qual uma mochila
pousava sobre ela. Mesmo que meu desejo fosse poder me sentar perto dele,
fui em direção a minha amiga.
— Beatriz, guardei esse lugar para você. — Fui surpreendida por
Fernando indicando o assento enquanto retirava a mochila.
De imediato, as atenções se voltaram para nós. Lúcio parecia mais
surpreso do que os outros. Meu coração começou a bater em descontrole
quando Fernando sorriu, esperando que eu me movesse.
Antes que a situação ficasse mais constrangedora, dei a volta na mesa e
me sentei ao lado dele.
— Daqui dá para você continuar a ver o pôr do sol — justificou sua
atitude em me querer sentada ali.
Meu coração se derreteu, e eu já nem ligava em tentar controlar meus
sentimentos, como havia prometido a mim mesma que faria.
Após comermos, rodeados por uma atmosfera alegre entre brincadeiras e
provocações, colocamos os nossos barcos no rio e zarpamos em direção ao
local em que eles costumavam pescar. Já era noite, o melhor horário,
segundo meus companheiros, e tudo que se ouvia era som que vinha da mata
e da correnteza. A lua estava cheia e sua luz clareava de forma
impressionante o lugar.
Os barcos ficaram próximos, para podermos nos comunicar sem ter que
falar muito alto para não espantar os peixes. O grupo havia se dividido
conforme havíamos chegado até lá. Com isso, fiquei com Lúcio e Raysa.
— Você sabia que aqui tem jacaré, Bia? — informou Lúcio, em meio ao
silêncio.
— Não brinca com isso! — Estremeci, olhando para todos os lados em
busca de um.
— É sério — Raysa confirmou. — Da última vez que estivemos aqui, um
comeu o peixe que eu havia fisgado, com anzol e tudo, bem na nossa frente.
Não sei se ela falava sério, mas o medo tomou conta de mim.
— E só agora vocês me contam isso?
— Você não viria se a gente contasse.
— Não mesmo!
Um calafrio subiu pela minha espinha.
— Não se preocupe, eu te salvo caso algum te atacar — Lúcio disse e
Fernando riu lá do outro barco.
— Você nem sabe nadar. Como acha que fará isso? — Fernando inquiriu.
— Cala boca, super-homem. — Lúcio alfinetou, segurando o riso.
— Você sabia, Beatriz, que teve uma vez que ele caiu do barco tentando
puxar um peixe? Fui salvá-lo e quase que nós dois afogamos de tanto que ele
se debatia.
— Tinha um cardume de piranhas onde estávamos, e eu não queria ser
devorado por elas — Lúcio retrucou o amigo.
Os demais começaram a rir e senti alguma coisa puxar o meu anzol.
— Peguei alguma coisa! — gritei, pondo-me de pé para conseguir segurar
o molinete.
Deduzindo que eu não daria conta de trazer o peixe para fora. Lúcio se
posicionou ao meu lado, colocando sua mão sobre a minha, fazendo os
movimentos que precisava para liberar a linha e puxar de volta.
— O bicho é forte! — ele constatou quando não obteve sucesso em sua
tarefa.
— Será que fisguei um jacaré? — Bradei, apavorada, arrancando
gargalhadas de todo o grupo.
— Deve ser uma cachorra, para dar tanto trabalho assim!
— Existe peixe com esse nome?
— Aqui, sim! — Lúcio segurou mais firme o molinete.
Eu estava mais atrapalhando do que ajudando.
— Toma, faz isso sozinho.
— Não, você consegue tirar ele da água — ele protestou. — Ajudo você.
Após alguns minutos de luta, conseguimos finalmente trazer o peixe até a
proa do barco e constatamos que se tratava de um enorme pintado.
— Nada mal para uma “calça branca” — Fernando disse do outro barco,
observando a nossa movimentação.
— Uma, o quê?
— Significa pescadora de primeira viagem. — Raysa traduziu para mim.
— Obrigada, então. — Sorri de volta para ele sob a luz brilhante da lua.
Para minha surpresa, Fernando retribuiu o sorriso e não apenas meneou a
cabeça como sempre.
Com o coração a ponto de bater asas para fora do meu corpo, tentei pelas
próximas horas me concentrar na pescaria, mas para todo lado que eu olhava
era aquele sorriso que via. Algum tempo depois, como ninguém havia
pegado nenhum peixe, além de mim, decidimos voltar para a casa.

Alice entrou no quarto que as meninas iriam dividir e sorriu de forma


provocativa.
— Que bom que você ainda não tomou banho. Quem pesca, limpa o
próprio peixe. — Indicou a cozinha com o polegar. — Regras da pesca.
Eu nunca havia limpado um peixe na vida, mas assenti e obedeci. O
pintado estava sobre a bancada, ao lado da pia, e eu o encarei, mal
acreditando como havíamos conseguido tirá-lo da água sem arrebentar a fina
linha de pesca. Acho que fiquei tempo demais analisando como faria a
limpeza, que não vi Fernando se aproximar.
Quando me virei em sua direção, ele sorriu. Seus olhos brilharam sob a
luz do pêndulo que decorava o ambiente, suficiente para fazer meu coração
errar as batidas outra vez.
— Precisa de ajuda?
— Sim, por favor. Nunca fiz isso na vida — confessei.
Ele abriu uma gaveta e retirou de lá uma faca e um cutelo.
— Comece abrindo-o pela barriga para remover as vísceras. Corte a
cabeça e o rabo. Após isso, você divide todo ele em postas.
Não entendi nada do que disse e ele deve ter percebido minha confusão,
pois sorriu e pediu para que eu me afastasse antes de começar a executar o
serviço, narrando o que estava fazendo.
— Agora corte o rabo e cabeça fora. — Me estendeu o cutelo. — Só tome
cuidado com isso, pois é bem afiado.
Sem confiar muito que eu conseguiria, obedeci. O primeiro golpe não foi
suficiente, então ele me orientou a usar mais força. Respirei fundo e bati
mais forte do que era realmente necessário, fazendo a cabeça do peixe voar e
estalar no peito de Fernando, sujando sua camiseta.
— Ai, meu Deus! Me desculpa. — Soltei o cutelo na pia, morrendo de
vergonha. — Foi sem querer.
— Sem querer? — Fernando olhava para a sujeira e não dava para saber
se seu tom era de chateação. — Eu não acho que foi sem querer.
Quando levantou os olhos, vi neles uma faísca de diversão. Ele estendeu a
mão e pegou a mangueira móvel da pia e, antes que eu me desse conta,
ligou-a, apontando o jato de água para mim, molhando minha roupa e
cabelo.
— Desculpa, foi sem querer — disse ele em um tom desafiador.
Desacreditada e boquiaberta com o que ele havia acabado de fazer, agarrei
as vísceras do peixe espalhadas sobre a bancada.
— Não se atreva a fazer isso! — ele advertiu tarde demais.
Comecei a jogar tudo sobre Fernando, enquanto ele revidava com água.
Em meio a toda a confusão de água, vísceras, gritos e risadas, eu escorreguei
e caí de costas no piso. Fernando largou a mangueira e se abaixou para me
ajudar.
— Me desculpa, Bia, você se machucou? Acho que fui longe demais com
a brincadeira.
Ele acabou de me chamar de Bia? Todos me chamavam assim, menos ele.
Ouvir aquilo pela primeira vez reacendeu todo o frenesi em relação ao que
eu sentia por ele. Ali, em meio à água, com um cheiro horrível de buchada
de peixe e sob o olhar preocupado dele, eu soube com plena convicção que
eu queria ser a mulher paciente que o esperaria.

— O que vocês estão fazendo aí?


Fui despertada do meu estupor pela voz de Lúcio. Ao olhar para cima,
constatei Alice, Camila, Raysa e Rodrigo o acompanhando do outro lado da
bancada que dividia a cozinha do restante da casa.
Fernando me ajudou a levantar para eu não escorregar e cair de novo. O
silêncio era total. Quando ele encarou o grupo ninguém ousou fazer qualquer
tipo de piada.
— Vamos acender uma fogueira lá fora para tocar violão. — Rodrigo foi o
primeiro a se manifestar.
— Eu trouxe ingredientes para fazer uma moqueca, caso pegássemos um
pintado — disse Alice. — Vou buscar lá no quarto.
Ela saiu seguida por Camila, e Rodrigo puxou Lúcio para fora da casa.
Raysa passeava o olhar entre nós com certo divertimento.
— O que houve aqui?
— Escorreguei e caí.
— Antes disso. Pela euforia que presenciei, parecia estar acontecendo
uma guerra.
— Ela quem começou. — Fernando encostou-se na bancada e apontou
para mim com um sorriso lentamente tomando conta de seu rosto.
— Eu me desculpei e disse que foi sem querer, mas essa criança não se
deu por satisfeita.
Fernando inflou o peito pronto para revidar, porém, Raysa interveio.
— Ok, eu já entendi. Agora limpem essa bagunça. — Ela fez menção em
sair, mas retornou. — Pensando bem, eu limpo. Vão tomar banho. Os dois
estão fedendo — ordenou como se fosse uma mãe cuidadosa e autoritária.
— Sim, senhora. — Fernando saiu primeiro, indo para o quarto dos
meninos.
Antes que eu também me retirasse, minha amiga cruzou os braços com
um sorriso cheio de insinuações.
— Devo te dar os parabéns.
— Pelo quê?
— Você ainda me pergunta? Presenciei tudo o que aconteceu aqui. Nunca
vi meu amigo se divertindo tanto. Era quase inacreditável!
— Não aconteceu nada demais.
— Você ainda não entendeu, não é? — Olhei para ela confusa. — Deixa
para lá, você tem que perceber isso sozinha.
Com um floreio de mão, ela me enxotou da cozinha.
Enquanto tomava banho, percebi que um sorriso não saia dos meus lábios.
Se aquele era o verdadeiro Fernando, aquele que ele não deixava qualquer
pessoa ver, eu havia adorado. Sua risada alta ainda parecia chacoalhar algo
dentro de mim, vibrando todo o meu corpo.
Fechei os olhos e pedi para Deus segurar toda aquela euforia e não me
deixar subir muito alto em minhas ilusões, caso contrário, o tombo seria
desastroso, podendo quebrar parte do meu frágil coração. Não queria
alimentar falsas esperanças, mas estava cada vez mais difícil não criar
expectativas.
Após o banho, eu ainda não me sentia preparada para encarar Fernando.
Temia não saber como agir, por isso fiquei por algum tempo no quarto,
orando e pedindo sabedoria a Deus para guiar meus sentimentos, e aquele
momento foi precioso, pois senti aos poucos tudo se acertando dentro de
mim.
Ao sair, a casa estava vazia. O som de risadas e conversa alta soou do lado
de fora, então segui para lá. Todos estavam em volta da fogueira, sentados
em cadeiras de praia e comendo a moqueca que Alice havia feito com o
pintado que pesquei.
O único lugar vazio era vizinho a Lúcio dessa vez. Segui para lá tentando
não olhar para Fernando, mas com a sensação de que estava sendo
observada.
Raysa me serviu e comi em silêncio, apenas apreciando a companhia dos
meus amigos, a brisa suave que vinha do rio e o som de grilos e sapos ao
longe.
Fernando buscou um violão no carro para podermos cantar algumas
músicas depois do jantar. Eu estava do lado oposto da roda, fazendo-me ficar
de frente para ele, com a fogueira crepitando entre nós, sendo quase
impossível não notar como ele ficava ainda mais bonito sob a luz do fogo.
Raysa me pediu para cantar alguma música para eles, mas recusei. Todos ali
eram músicos talentosos, enquanto eu mal sabia fazer alguns acordes. Após
muita insistência, decidi cantar uma música autoral e Fernando me passou o
violão.
— Não riam de mim, por favor. Eu não toco muito bem.
Dedilhei as primeiras notas, até achar o tom certo.
— Essa é uma música que compus em um momento em que estava prestes
a tomar uma decisão importante. — Parei, sentindo-me estranha pela
vontade repentina de cantá-la, mesmo sabendo que não era tão boa. — Ela
não é grande coisa, mas gostaria que meditassem sobre a letra.
Cantei a primeira estrofe até chegar ao refrão, minha parte preferida:
“Não conseguimos saber se se trata de outra armadilha, pois o nosso
coração é enganoso. Você não pode saber. Mas precisamos decidir confiar
na vontade de Deus, se quer entrar por essa porta ou seguir o seu caminho.
A fé não oferece benefícios até que os peregrinos decidam entregar todo o
seu ser. Então decido entregar tudo o que é meu, oferto todo o meu
coração”.
Sem minha permissão, uma lágrima percorreu a minha bochecha ao
finalizar o último acorde. Meus amigos aplaudiram, inclusive Fernando, que
me olhava, pela primeira vez, de forma afetuosa.

Eram cinco horas da manhã quando ouvi meu celular notificar uma nova
mensagem. Estava com tanto sono, que ignorei e voltei a dormir. Um tempo
depois, mais uma vez meu telefone apitou; várias vezes, na realidade.
Sonolenta, peguei o aparelho e abri o aplicativo notificado. Despertei de
imediato ao ver que as mensagens eram de Fernando, pedindo para eu
encontrá-lo no barco em dez minutos. Respondi que estava indo e pulei da
cama para me arrumar.
Meu coração parecia estar descontrolado e minhas mãos tremiam ao
escovar os dentes e vestir um moletom.
Fernando já estava no barco quando cheguei ao local combinado. Um
sorriso cativante iluminou seus lábios ao se levantar para me receber.
— Precisa de ajuda para descer? — Ofereceu, estendendo a mão para
mim. Parei no barranco e fitei sua mão, recordando de seu voto de
“castidade”. — Você pode segurar a minha mão se quiser. — Seu olhar era
intenso ao pronunciar as palavras. — Aliás, acho que ultrapassamos esse
ponto, já que te carreguei no colo duas vezes!
— Duas vezes?
— Como você acha que saiu do seu carro e foi parar dentro do meu no dia
do acidente? — Minhas bochechas queimaram, e eu podia jurar que estava
mais vermelha que um morango maduro. — Desculpa, não quis te
constranger.
— Tarde demais!
Dessa vez, o seu riso foi alto, parecia brotar de um lugar escondido, que
ele não revelava a muitas pessoas. Aceitei sua mão estendida e o toque em
sua pele foi eletrizante.
Quando eu lia sobre a tal descarga elétrica que percorria os braços dos
personagens nos romances, achava um exagero do escritor, porém, ao sentir
seus dedos envolverem os meus, uma sensação tão boa tomou conta de mim,
que dei razão a todos eles. Compreendi também o porquê de Fernando se
abster daquele simples toque que enchia o meu coração de expectativa.
— Aonde vamos?
— Ver o sol nascer.
Mirei seus olhos e estreitei os meus.
— Isso parece um pouco romântico demais, você não acha? — provoquei,
sentindo que tinha liberdade para isso.
— Tudo bem para mim, se é isso que parece para você — disse ele ao dar
partida no motor da voadeira.
A adolescente dentro de mim gritou sem acreditar no que meus ouvidos
haviam acabado de escutar. Ele estava, finalmente, se declarando? Minha
pele formigava, e eu mal me continha no meu lugar. Um milhão de
possibilidades agitava a minha mente, assim como o vento no meu cabelo.
Fernando parou o barco em certo ponto, bem no meio do rio Guaporé. Ele
parecia reflexivo, como sempre, e nada disse por um longo tempo. Também
fiquei em silêncio, esperando sua iniciativa, olhando para o ponto que ele
também mirava.
Não demorou, o sol emergiu por de trás das copas das árvores, colorindo o
horizonte e a água com raios dourados. Assim como no pôr do sol do dia
anterior, eu me emocionei com aquele espetáculo da natureza, não contendo
as lágrimas.
Fernando se mantinha quieto, então apenas aguardei que ele começasse a
se declarar. Porém, nada aconteceu.
— Obrigada por isso — falei, não suportando mais. — Acho que nunca
tinha visto o sol nascer antes. Foi lindo.
— Que bom que gostou. Eu precisava me desculpar adequadamente após
ter feito você cair. Aquele tombo poderia ter sido bem sério. “Então era
disso que se tratava? Apenas um pedido adequado de desculpas? Sem
declaração de sentimentos nem nada?” — Precisamos voltar agora. O
pessoal quer tentar pescar alguma coisa antes de irmos embora.
O entusiasmo escapou do meu coração como o ar de um pneu furado, mas
forcei um sorriso para que ele não notasse.
Fizemos o caminho de volta e, vez por outra, eu o olhava de relance,
buscando ler o que se passava naquela cabeça e semblante indecifrável. Por
fim, desisti de tentar e comecei a apreciar a paisagem ao redor.
Quando chegamos à casa, todos ainda dormiam. Dentro de mim, uma
desolação igual tomava conta, deixando-me exausta. Gostar do Fernando era
como estar numa roda gigante. Uma hora eu estava lá em cima, criando
expectativas e sonhando com um futuro promissor entre nós, para no
momento seguinte estar lá embaixo, vendo todos os meus planos frustrados.
Deitei-me na cama e cobri minha cabeça com o cobertor, deixando aquela
sensação ruim sair com uma longa coleção de lágrimas até que adormeci.
Horas depois, despertei com o barulho de uma forte chuva no telhado e
um dos carros sendo ligado na garagem ao lado da janela. O quarto estava
vazio e a bagagem das garotas não estava mais lá. Ao sair do quarto,
encontrei Fernando e Raysa na cozinha.
— Cadê todo mundo?
— Lúcio precisa voltar agora devido ao trabalho — Raysa informou
fechando o zíper da sua mochila. — Vou voltar com ele e o restante do
pessoal, você não se importa de ir sozinha com o Fernando, não é?
Ela sorriu e alternou o olhar entre mim e ele.
— Não — respondi, desanimada. No mínimo, faríamos todo o trajeto,
cada um ocupado com seus pensamentos.
No carro, eu decidi que iria seguir o exemplo de Fernando e ficaria quieta
no meu canto. Se ele quisesse algum tipo de conversa, teria que tomar a
iniciativa dessa vez.
— Espero que não se importe, mas preciso passar em um lugar no
caminho — disse ele quando deixamos a pequena cidade de Pimenteiras
para trás.
— Tudo bem, eu não tenho nenhum compromisso à minha espera.
— Ótimo. — Fernando apontou para o som do carro. — Se quiser colocar
uma música, fique à vontade. Tem um pendrive no porta-luvas.
Como eu sabia que o silêncio seria nossa companheira de viagem, liguei o
som. Um sertanejo gospel explodiu pelos alto-falantes, fazendo-me olhar
surpresa para ele, batucando os dedos no volante. Eu tentei não rir ou
comentar sobre seu gosto musical, mas quando ele começou a cantar “Oh,
oh, oh, eu vou levando paz e amor. Oh, oh, oh, foi esse Deus que me
salvou[4]”, não aguentei e rompi em uma gargalhada.
— Ah! Vai me dizer que não gosta desse estilo de música? — Ele revidou
em tom de implicância. — Isso é poesia pura!
— Não é não. Poesia são as músicas do Projeto Sola, Marcela Taís, entre
outros. Não isso! — Apontei para o som, indignada.
— Essas são legaizinhas também. Mas são músicas assim que me
representam.
E lá estava o Fernando, leve e divertido outra vez, me confundindo. Nesse
clima descontraído, seguimos viagem, um rebatendo o gosto musical um do
outro. Em determinada altura da rodovia, Fernando tomou um caminho de
cascalho. Passamos por duas curvas, uma ponte e uma porteira aberta. Após
percorrer alguns metros por uma estrada estreita, uma casa ladeada por rosas
coloridas despontou ao pé de um alto monte.
— Que lindo aqui. Onde estamos?
Fernando desligou o carro e a música parou. Ele olhou para mim, seus
olhos ficaram mais penetrantes quando deu um sorriso torto.
— Na casa dos meus pais. — Meu sangue gelou, meu coração acelerou,
minhas mãos começaram a suar sem eu saber por que, até ele ficar sério de
novo. — Eu queria te apresentar para eles.

— Fernando! — Uma garotinha de uns dez anos correu em nossa direção


ao sairmos do carro. — Eu não acredito que você está aqui!
Ele se inclinou para recebê-la com um abraço, levantando-a no colo.
— Que saudade, minha princesa.
A menina deixou um beijo estalado no rosto dele e olhou para mim
quando Fernando a colocou de volta no chão.
— Quem é essa?
— Uma amiga. — Fernando sorriu para mim. — Seja educada e diga oi
para ela.
A menina ainda me observou por algum tempo e, em vez de me
cumprimentar, resolveu gritar:
— Mãe, o Fernando está aqui e trouxe uma namorada!
Senti o rubor tomar conta do meu rosto, mas Fernando achou divertida a
peraltice da irmã.
Uma mulher, muito jovem para ser a mãe deles, saiu de dentro da casa
secando as mãos no avental vermelho quadriculado.
— Filho! — Ela abriu os braços e esperou até ele subir os degraus e
alcançá-la na varanda. — Por que não avisou que estava vindo? — Ela me
olhou por cima do ombro dele quando o abraçou e nossos olhares se
cruzaram. — E que traria alguém com você… — Uma pitada de surpresa
pintou seu semblante antes dela sorrir para mim.
— Mãe, essa é a Beatriz.
Fiquei esperando ele dizer que eu era uma amiga ou algo do tipo, mas
Fernando não acrescentou nada mais.
— Meu Deus, que linda! — Ela estendeu os braços para mim,
envolvendo-me em um abraço caloroso.
— Beatriz, essa é a minha mãe, Isaura. E aquela pequena ali é a minha
irmã Nina.
— É um prazer conhecê-las — cumprimentei, tentando soar tranquila,
mas só Deus sabia como estava o meu interior.
Houve um breve silêncio após as apresentações, como se as duas
esperassem que ele explicasse minha presença.
— Cadê o pai?
Se ele estava desconcertado com a situação tanto quanto eu, não deixou
transparecer.
— Está no rio, consertando a draga. Aquela coisa velha vive estragando,
mas seu pai se recusa a trocar o motor ou chamar um técnico para fazer um
serviço mais profissional.
— Vamos até lá, então. Assim a Beatriz conhece o sítio. — Fernando
parecia mais à vontade do que em todos os momentos que eu o havia visto.
— Tudo bem se a gente almoçar aqui com vocês?
— Que pergunta mais boba, menino. É lógico que são bem-vindos para o
almoço. Vou aumentar a água do feijão.
— Vou com eles, mãe. — Nina se pôs ao lado do irmão, segurando sua
mão. — Não é legal esses dois andando sozinhos por aí no meio do mato.
Fernando riu e eu ruborizei de novo. Se aquilo acontecesse toda vez que a
menina abrisse a boca, eu teria sérios problemas em breve. Saímos em
direção a um caminho de cascalho que se estendia em uma trilha no meio de
um bosque.
Nina começou a tagarelar sobre a escola, como se quisesse a atenção do
irmão só para ela. Eu ri do ciúme evidente em seus olhos todas as vezes que
me olhava de relance.
Alguns metros depois, podia-se ouvir um barulho estridente de motor.
Saímos para uma clareira coberta de areia, destampando em um largo rio
com diversos maquinários às margens.
Fernando colocou dois dedos na boca e assobiou alto. Um senhor grisalho,
cópia fiel do rapaz ao meu lado, saiu de trás de uma geringonça que tinha um
tubo largo que a ligava ao rio e sorriu, vindo em nossa direção.
Com a mesma empolgação de Isaura e Nina, ele abraçou o filho.
— Papai, essa é a namo… — Antes que Nina terminasse a frase,
Fernando abraçou a irmã por trás e tapou a boca dela com a mão.
— Essa é a Beatriz. — Ele me apresentou. — E esse é o meu pai, Josias.
— É um prazer conhecê-lo, senhor — o cumprimentei com um aperto de
mão.
Ainda sorrindo, ele olhou para o filho e assim como Isaura, parecia
esperar ele dizer algo a mais.
— Nina, por que você não mostra tudo por aqui para a Beatriz, enquanto
converso com o papai?
Ela sorriu de um jeito sapeca quando Fernando se inclinou e cochichou
algo em seu ouvido.
— Tudo bem.
Segui a menina saltitante, com uma energia de dar inveja. Quando
estávamos longe o bastante, ela começou a tagarelar.
— Sabia que você é a primeira garota que o meu irmão traz aqui?
— Sério?
— Sim, ele nunca namorou antes.
— Mas eu não sou a namorada dele.
Nina parou de andar e se virou para mim com os olhos semicerrados
devido à claridade.
— Então por que você está aqui? Ele disse uma vez que só traria uma
garota para nossa casa quando ela fosse sua namorada.
As borboletas no meu estômago se agitaram.
— É mesmo? E o que mais ele disse?
Ela deu de ombros e voltou a andar.
— Acho que só isso. O Fernando não é de falar muito, sobretudo da vida
pessoal dele.
— Sei disso… — Pensei alto.
— Mas e você, gosta dele?
Ri do rumo que a minha conversa com aquela menina de dez anos estava
tomando.
— Claro que gosto, ele é meu amigo. A gente gosta dos amigos.
— Então por que você ficou tão vermelha quando falei que você era a
namorada dele?
— Eu não fiquei vermelha.
— Vermelha como um pimentão. — Ela soltou uma gargalhada gostosa,
levando-me a rir com ela.
— Vamos falar de outra coisa — sugeri para poder sair daquele assunto
embaraçoso. — O que é todo esse equipamento? — Apontei para os
maquinários perto do rio.
— Retiramos areia do rio e fornecemos para os depósitos das cidades
vizinhas.
— Que interessante, eu nunca havia visto nada assim. É bem legal.
— Por falar em coisa legal, você quer ver minha biblioteca? O Fernando
me disse que você é professora e poderia gostar de conhecer.
— Você tem uma biblioteca? — Ela concordou com a cabeça, orgulhosa.
— Eu adoraria ver.
Nina pegou a minha mão e saiu me puxando de volta para a casa. Isaura
arrumava a mesa quando entramos. Ela sorriu da empolgação da filha ao
avisar onde me levaria.
A biblioteca era no quarto de Nina e consistia em duas paredes do cômodo
completamente coberto de livros, o sonho de qualquer leitora.
— Uau! São todos seus?
— Sim, e eu já li todos eles.
— Isso é impressionante.
— O Fernando me obrigou a ler alguns, é bem verdade, mas a maioria li
por vontade própria.
— Ele parece ser um bom irmão. — Aproveitei para sondar um pouco.
— Ele era um chato quando morava aqui, mas agora que está longe sinto
saudade. Mas ele me liga todos os dias e, às vezes, até me ajuda com o dever
de matemática por videochamadas.
Meu coração se derreteu. Por trás daqueles muros existia um homem
meigo e afetuoso, levando-me lá para cima da roda gigante das emoções
outra vez.
— Meninas — Isaura entrou no quarto —, o almoço está servido. Vá lavar
as mãos, mocinha. — Apontou para a filha.
Nina saiu, deixando-me a sós com a mãe. A senhora olhou para mim e
pude ver um milhão de perguntas girando em volta dela.
— Você e meu filho se conhecem há muito tempo? — ela principiou com
cautela.
— Há quase sete meses. Eu morava em São Paulo e me mudei para
trabalhar em Rondônia. Assim que cheguei, me envolvi em um acidente e foi
quando o conheci. Ele me ajudou muito desde então. — Minhas mãos
voltaram a suar, obrigando-me a escondê-las no bolso de trás da calça jeans.
— Fernando tem um coração de ouro mesmo. Fico feliz que ele enfim
encontrou alguém para…
— Não é nada disso, senhora — a interrompi. — Nós não somos
namorados, apenas amigos.
Ela sorriu, parecendo se divertir com meu constrangimento.
— Como eu disse, estou feliz por ele. Agora venha, todos já estão
esperando.
Segui Isaura para a cozinha, onde Fernando e o pai conversavam à mesa.
Quando notou que nos aproximávamos, a conversa cessou e Fernando
indicou a cadeira ao seu lado para que eu me sentasse. Nina chegou saltitante
e ocupou o outro lado dizendo que iria orar dando graças pelo almoço.
— Senhor Jesus — começou sua prece e todos fecharam os olhos —,
graças te damos por esse alimento. Provê para os órfãos e viúvas e nunca
deixe faltar em nossa mesa. Te damos graças pela visita do meu irmão e da
Beatriz — ela fez uma pausa quase dramática —, sua futura namorada. Que
eles decidam logo que se amam e...
— Amém! — Josias interrompeu a oração da filha. — Me desculpe por
isso, Beatriz. E você, mocinha — apontou o dedo para Nina com uma
expressão severa. — Se comporte ou vai comer sozinha no seu quarto.
— Ai, só estava querendo dar uma forcinha — ela retrucou fazendo
careta.
Fernando sorriu e olhou para mim como um pedido de desculpas. Fiquei
me perguntando o porquê de ele nunca rebater as palavras da irmã. Olhando-
o assim, era como se ele até estivesse gostando das insinuações, mas se
tratando do senhor indecifrável, nunca dava para saber realmente.
O almoço seguiu sem nenhum outro comentário constrangedor por parte
de Nina, que agora estava muito ocupada em colocar o irmão a par de todas
as novidades da casa. Segundo ela, Josias havia fechado um contrato com
uma loja de material de construção e a nova demanda exigiu a contratação
de mais dois ajudantes. Depois ela contou que Isaura a estava ensinando a
costurar e que já tinha feito seu primeiro vestido. E assim, Nina pulou de um
assunto para o outro até finalizarmos o almoço.
Ajudei Isaura a retirar a mesa e lavar as louças sob protestos dela. Minha
mãe havia me ensinado desde cedo que era muita falta de educação não se
oferecer para tal serviço após comer na casa de alguém e por fim ela
concordou.
Reunimos na sala após a cozinha estar limpa e Nina veio do quarto
equilibrando alguns álbuns de fotos em seus braços.
— Ah não, Nina, pode guardar isso aí. — Fernando reclamou ao ver a
irmã preste a me entregar o primeiro.
— Eu adoraria ver. — Alcancei o álbum antes dele, cheia de curiosidade
para ver como ele era ao longo dos anos.
Fernando coçou a nuca, derrotado, e se sentou ao meu lado no sofá,
deixando-me entre ele a irmã. Era a primeira vez que estávamos tão
próximos e aquilo agitou tudo dentro de mim. Seu perfume maravilhoso me
torturava sempre que se mexia e o aroma chegava até mim.
Nina tinha um comentário engraçado para cada foto do irmão. Algumas
vezes, Isaura contava a história por trás da fotografia, e assim passamos uma
tarde regada a risadas, vergonha alheia e uma sensação de lar que me
inundava a todo instante. Ao ver a interação e o respeito mútuo entre
Fernando e sua família meu coração se aqueceu, fazendo-o ganhar mais
alguns pontos na escala da minha paixonite por ele.
Já estava prestes a escurecer quando Fernando e eu despedimos de sua
família.
— Foi um grande prazer te conhecer, Beatriz. — Isaura me abraçou,
demorando-se um pouco no afago. — Cuide bem do meu menino —
sussurrou no meu ouvido antes de me soltar.
Eu não sabia o que dizer, então sorri e assenti. Nina já foi menos discreta,
falando em alto e bom som que ela queria ser dama de honra do nosso
casamento. Josias apertou a minha mão e desejou um bom retorno,
garantindo que eu era muito bem-vinda para voltar.
Quando pegamos a rodovia principal em direção a nossa cidade, Fernando
diminuiu o volume da música que tocava e me olhou de relance.
— Peço desculpas pelas piadas inconvenientes da Nina.
— Ela é um amor — respondi sincera.
— Sim, ela é. Mas também é espevitada além da conta.
— Graças a Nina, fiz descobertas bem interessantes hoje. Foi divertido
conhecer seu passado, cowboy. — Indiquei o sertanejo tocando ao fundo.
Seus lábios se contraíram ao segurar o riso.
— E você, tem irmãos? — ele quis saber. — Me fale um pouco sobre sua
família.
Nas quase duas horas de viagens que tínhamos pela frente, contei sobre
meus familiares, algumas das minhas experiências ao longo da vida, boas e
ruins. Ele me ouviu com atenção, fazendo perguntas e rindo em certos
momentos. Fernando não precisou dizer com palavras, mas era evidente que
as coisas entre nós haviam mudado de nível.

Um mês inteiro se passou desde a viagem de pesca e a visita à casa dos


pais do Fernando, e nossa amizade pareceu não avançar após esse ponto
como eu havia imaginado que aconteceria. Era frustrante ter criado tantas
expectativas naquele final de semana e logo após tudo voltar como antes,
com encontros esporádicos no elevador guiado por assuntos triviais, reuniões
entre os amigos da igreja em que ele parecia fazer questão em se manter
longe de mim, entre outras situações.
Até que em um belo dia, tudo mudou.
— Bia, você ainda está no trabalho? — disse Lúcio ao telefone enquanto
eu recolhia meu material no final do expediente. — Preciso de um grande
favor.
— Estou indo para casa agora, se eu puder ajudar.
— O favor é para o Fernando, na verdade. Ele fez uma endoscopia e eu
estou aqui com ele, mas surgiu uma emergência no trabalho e terei que
correr para lá agora. Você poderia me substituir e levá-lo para casa?
— Não tem mais ninguém que pode fazer isso? — perguntei me agitando.
— O Rodrigo não está na cidade e a Raysa não atendeu ao telefone. Só
consegui pensar em você. Não sei se percebeu, mas nosso nobre amigo não é
muito popular.
Suspirei ao imaginar o que ele pensaria sobre isso.
— Tudo bem para ele se for eu?
Lúcio riu do outro lado da linha.
— Acho que não fará muita diferença, ele está chapado devido ao
sedativo.
Como não tinha alternativa, aceitei.
— Tudo bem, eu vou.
— Maravilha! Te passo o endereço por mensagem.
Senti uma compaixão enorme do Fernando, ele estava doente? O
pensamento me estremeceu. Corri para o estacionamento e segui para o
endereço informado. Chegando lá, um rapaz me conduziu até a enfermaria
onde Fernando me aguardava.
— Ele está bem? — perguntei aflita, vendo-o deitado sobre uma das
camas.
— Sim, apenas um pouco grogue por conta do efeito do sedativo. Ele
deverá falar algumas coisas sem sentido também, mas o lado bom é não se
lembrará de nada depois — disse o jovem com certo divertimento, como se
já tivesse presenciado muita coisa engraçada por ali. — Se precisar, posso
auxiliar você e levá-lo para o carro.
Aceitei a oferta e me aproximei da cama. Fernando estava com os olhos
abertos e fitava o teto. Ao notar a minha presença, abriu um largo sorriso,
aquele que fazia meu coração acelerar.
— Oi, você! — ele disse mais alto que o necessário.
Sorri de volta ao notar sua empolgação quase que infantil.
— Olá, vou te levar para casa.
— Tudo bem. — Ele se sentou e o rapaz que me acompanhava pegou em
seu braço para ajudá-lo, mas Fernando se esquivou. — Eu não preciso de
ajuda, consigo andar sozinho — falou um pouco arrastado.
O enfermeiro ignorou o pedido, conduzindo-o até o meu carro sob
protestos do paciente.
— Prontinho.
O jovem se afastou e após fechar a porta do veículo com Fernando lá
dentro, sorriu para mim.
— Ei! — Fernando abaixou o vidro e pôs a cabeça para fora da janela, o
encarando. — Não é cortês dar em cima de uma moça comprometida.
— Fernando! — o adverti, morrendo de vergonha.
O jovem continuou a sorrir, pouco se importando.
— Como eu disse, ele vai agir estranho por um tempinho.
Notando a agitação do meu paciente, precisei colocar o cinto de segurança
nele, o que foi um sacrifício e tanto, já que ele não parava quieto.
— Você precisa ficar parado para eu afivelar o cinto.
Fernando obedeceu e em um movimento inesperado, tocou uma mecha do
meu cabelo e o esfregou entre seus dedos.
— Você é muito bonita, sabia?
Mesmo que estivesse ciente de que era o sedativo falando, eu gostei de
ouvir.
— Vamos para casa, Dom Juan.
Liguei o carro e assim que o coloquei em movimento, Fernando voltou a
falar.
— Gosto muito de você, Bia.
Apertei o volante e um suspiro trêmulo escapou dos meus lábios. Aquilo
era tudo que esperava ouvir por todo aquele tempo, mas nunca imaginei que
seria nessas circunstâncias. Mas, para o meu pobre coração apaixonado, já
era muita coisa.
— Eu também gosto muito de você — disse ciente que ele não se
lembraria daquela conversa depois.
— Eu sei. — Ele sorriu e virou a cabeça para me olhar.
Como a clínica ficava a poucas quadras do nosso prédio, chegamos em
cinco minutos. Foi difícil tirar Fernando do carro e, quando finalmente
consegui, ele jogou o braço sobre meus ombros em um abraço lateral, o que
tornou mais fácil para ele caminhar.
Fernando reclamou de tontura no elevador e cambaleou até o sofá quando
abri a porta do seu apartamento com a chave que ele me entregou após quase
cinco minutos tentando tirá-la do bolso.
— Você vai ficar bem aqui sozinho? — perguntei quando ele recostou sua
cabeça em uma almofada e apertou os olhos.
— Senta-se aqui. — Fernando apontou para o espaço vago ao seu lado. —
Quero conversar.
Tombando a cabeça e olhando em minha direção, deixou escapar outro
sorriso encantador.
— Você não está em condições de falar, precisa descansar.
— Tenho que dizer tudo o que está aqui dentro antes que me sufoque. —
Bateu o punho fechado sobre o peito.
Trêmula, caminhei até o sofá e me sentei ao seu lado.
— Estou te ouvindo.
Antes de iniciar suas confissões, ele respirou fundo e sua expressão ficou
mais séria.
— Eu tinha dezessete anos quando tive o meu primeiro amor — ele
iniciou com a voz um pouco arrastada. — Ela era linda, inteligente e parecia
gostar de mim também. Em um acampamento da igreja fomos assistir a um
filme. Ela se sentou ao meu lado e segurou a minha mão. Ficamos assim até
que o filme terminou e aquilo encheu meu coração de expectativa, ansiando
por mais momentos como aquele. — Ele suspirou e fez uma careta, como se
tivesse com dor e confuso. — Eu decidi que queria ficar mais próximo dela
até eu ter a idade ideal para firmarmos um compromisso sério. Parecia que
nossos sentimentos e propósitos estavam alinhados, mas eu me enganei.
Descobri que ela pretendia me usar para fazer ciúmes em quem estava
realmente interessada. — Ele sorriu sem humor. — É por isso que eu não
gosto de segurar a mão de garotas. Nunca!
— É compreensível — falei cheia de empatia e pena.
— Depois dessa garota teve outra, mas dessa vez fui cauteloso ao
extremo. — Soltando uma lufada de ar, acrescentou: — Tão cauteloso que
ela desistiu de esperar por mim.
Ele ficou um tempo em silêncio e senti que precisava dizer algo.
— Talvez ela não fosse a pessoa certa para você também.
— Acredito que sim — sua voz dúbia soou grave. — Após essas
decepções eu decidi que fecharia meu coração. — Ele riu alto, como se
aquilo fosse algo muito engraçado. — Então você apareceu. — O ar ficou
preso e meu coração parecia que iria explodir no peito. — Você apareceu
para me torturar. Por que você me tortura tanto, Bia? — Fernando
aproximou o rosto dele do meu, fitando meus olhos com intensidade. — É
difícil respirar direito perto de você, eu quero segurar a sua mão, te apertar
entre os meus braços e nunca mais te soltar.
Era a coisa mais romântica que alguém já havia me dito e foi difícil conter
a emoção. As lágrimas inundaram meus olhos sem que eu conseguisse
contê-las.
— Não chore! — Ele examinou os meus olhos e, com um toque suave de
polegar, enxugou meu rosto.
— Você poderia falar essas coisas para mim estando consciente — disse
frustrada.
— Eu não posso me declarar ainda. — Fernando sorriu, embora os lábios
inferiores e o queixo tremessem. — Eu quase estraguei tudo na pescaria. Te
levei para ver o sol nascer com essa intenção, mas não seria certo. Estaria
fazendo as coisas sem direcionamento dos meus pais e isso é muito
importante para mim. Por isso eu não disse nada, e sei que esperava que eu
dissesse, me desculpe.
Esse ponto era importante para mim também, então sorri para ele,
compreendendo suas atitudes naquele dia.
— Tudo bem.
— Meus pais te aprovaram, sabia? — Ele me empurrou de leve no ombro,
voltando a apoiar a cabeça na almofada. — Só que ainda falta outra coisa,
mas não vou te contar o que é. Você só precisa ter um pouco mais de
paciência comigo. — Mostrou-me um pequeno espaço entre seu polegar e o
indicador.
— Estou sendo mais paciente que consigo ser. — Suspirei.
— Continue, você está se saindo bem. — Fernando estendeu o braço e
segurou a minha mão. — Não desista de mim como as outras, Bia. Seja
aquela que resgatará o meu coração. Caso contrário, estarei condenado para
sempre a uma vida solitária.
Envolvi sua mão entre as minhas. Meu coração parecia que não cabia no
meu peito diante de tal alegação. Eu nunca havia parado para pensar em suas
lutas, me concentrei apenas no quanto eu gostaria que as coisas
acontecessem no meu tempo, esquecendo que havia um caminho a percorrer
até o momento certo onde ambos estivessem seguros e prontos para iniciar
uma caminhada juntos.
— Eu não vou desistir. — Acho que foi a frase mais convicta que havia
saído da minha boca até então.
Ele sorriu contente com minha resposta, então esperei que ele dissesse
mais alguma coisa romântica.
— Estou com sede. Nunca falei tanto na minha vida!
Foi a minha vez de rir e ir até a cozinha. Quando retornei com um copo de
água, ele estava dormindo deitado no sofá. Deixei a bebida na mesinha de
centro e saí do apartamento sem fazer barulho.

Já passava das oito horas da noite, e eu não havia ouvido nenhuma


movimentação de Fernando. Pedi um caldo pelo delivery e assim que
chegou, me encaminhei para lá.
Ele atendeu quando bati na porta. Seus cabelos estavam molhados e o
cheiro de loção pós-barba que vinha dele era maravilhoso. Limpei a
garganta, procurando disfarçar que eu estava reparando nele.
— Pedi alguma coisa para você comer. Sente-se melhor?
Ele pareceu confuso.
— Estou bem…
Fiquei me perguntando se ele realmente não se lembrava de nada. Estendi
o pote de caldo de frango e ele aceitou reticente.
— Se precisar de alguma coisa, é só me chamar.
Virei para ir embora, mas ele interrompeu.
— Você já jantou? — Fernando me analisou. Seus olhos pareciam ter uma
expressão mais terna do que antes. — Acho que tem muita comida aqui.
— Sim, eu já comi. — Sondei-o mais uma vez, esperando que ele falasse
alguma coisa, mas Fernando ficou em silêncio. Senti que deveria dizer a ele
que eu sabia sobre o exame e que eu o havia ajudado a chegar até em casa.
— Você não se recorda mesmo de nada? Lúcio teve uma emergência no
trabalho, então eu o substituí.
Sua expressão deu sinais de desespero.
— O que eu fiz? — Seu olhar ficou perdido, como se tentasse buscar por
memórias.
— Fique tranquilo, você foi um ótimo paciente.
— Por que tenho a sensação de que você está mentindo só para eu me
sentir melhor? — Ele parecia preocupado de verdade. — Fala logo o que fiz,
Bia?
“Bia”
Não pude deixar de sorrir.
— Não é nada do que você tenha que se envergonhar.
Ele tampou o rosto com a mão livre.
— Então fiz besteira mesmo.
— Bom apetite, vizinho. — Voltei para o meu apartamento deixando-o
intrigado.
— Volta aqui, agora, Bia! — o escutei antes de dar um adeusinho e fechar
a minha porta.
“Bia”
Eu não sabia o que era pior: estar ciente dos sentimentos de Fernando por
mim ou viver no completo escuro sobre suas intenções como antes. Foi
difícil agir naturalmente perto dele, pois cada vez que eu o via notava, de
forma sútil, o que não enxergava antes. Ele se mantinha afastado, como um
mecanismo de defesa contra qualquer ilusão que pudesse ferir seu coração
mais uma vez.
Compreendi que seus atos eram todos bem pensados a fim de evitar
qualquer defraudação de ambos os lados. Sem dúvidas ele era meu Pedro
Bernardi, cauteloso, cuidadoso, responsável, e que assim como o
personagem, trazia uma carga emocional ruim de seu passado. Porém,
sabendo o que sabia agora, eu o esperaria com ainda mais paciência, assim
como ele havia me pedido, certa de que valeria a pena.
O sol não havia aparecido durante todo aquele dia, mesmo que estivesse
no auge do período de seca em Rondônia. Poeira e fumaça pairavam no ar
devido às queimadas na região comuns naquela época do ano.
Mais cedo havia circulado nas redes sociais e aplicativos de mensagens
sobre um foco de incêndio localizado em uma área de reserva florestal e que
os bombeiros já estavam se deslocando para controlar a situação. Meu
coração se apertou, pois naquele dia me encontrei com Fernando no elevador
quando nos encaminhávamos para o trabalho. Ele parecia contente e nossa
conversa foi mais do que um simples “olá, como vai?” naquela manhã.
Fernando estava brincalhão como na pescaria e seus olhos pareciam
finalmente querer me dizer algo.
Durante todo o dia, informações de como o fogo avançava com rapidez
em direção a uma aldeia eram publicadas com frequência. Os índios foram
evacuados em sua maioria, mas muitos ainda se recusavam a sair de suas
ocas.
Era angustiante saber que alguém que eu amava estava arriscando sua
vida no olho de toda aquela situação e não poder fazer nada a respeito. Com
o coração mais apertado a cada instante, passei a orar incessantemente para
que tudo acabasse bem e que Fernando voltasse em segurança para casa.
Quando ele não retornou no horário que eu sempre o escutava abrir a
porta de seu apartamento, liguei para Raysa.
— Isso é normal por aqui nessa época do ano, amiga, fique tranquila. No
mínimo, ele dobrou o plantão para poder ajudar a controlar o fogo. Ouvi
dizer que bombeiros de todo o estado estão se deslocando para o local. Ele
deve aparecer em breve — disse ela, soando positiva.
Contudo, ele não apareceu e a aflição aumentou. A noite caiu e a
escuridão do lado de fora parecia sufocar algo dentro de mim, deixando-me
temerosa e pensando no pior.
Sem conseguir dormir, decidi que faria uma vigília de oração por todos
que estavam trabalhando, pelos índios que corriam o risco de perder suas
moradias e fazendeiros que tinham suas plantações em perigo.
Quase meia-noite, ouvi passos no corredor, abri a porta ansiando por ver
Fernando, no entanto, era Raysa quem se aproximava.
— O que aconteceu? — perguntei ao notar o quanto ela estava séria.
— Um bombeiro se feriu.
— Meu Deus, o Fernando? — Minhas pernas perderam a força e fui
obrigada a me segurar em algo.
— Não divulgaram o nome, apenas postaram um vídeo feito lá do local.
Estou com tanto medo, Bia. E se for ele?
Ela começou a chorar e por mais que eu tentasse consolá-la, pensamentos
negativos tomavam conta de mim, levando-me a chorar com ela.
Raysa se uniu a mim na vigília de oração e conforme as horas avançavam
madrugada adentro novas notícias inundavam os nossos telefones, mas em
nenhuma delas, nos levava a saber se o nosso amigo estava bem.
Um novo dia já estava quase nascendo quando despertei com o barulho de
alguém abrindo a porta do apartamento da frente. Raysa dormia no meu
quarto, e eu escolhi ficar no sofá para notar qualquer movimentação. Corri
para lá com a garganta apertada, ciente do meu estado deplorável.
Um grande fardo foi arrancado de cima de mim quando Fernando se virou
para a minha porta sendo aberta abruptamente. Resquícios de fumaça preta
impregnaram em seu uniforme e no cabelo loiro. Seus olhos claros estavam
vermelhos e o rosto denunciava que ele havia chorado.
— Graças a Deus, você está bem. — Dei um passo em sua direção, mas
parei de repente ao perceber que estava prestes a abraçá-lo para ter certeza
de que ele era real e não apenas uma miragem.
As lágrimas de alívio não se continham nos meus olhos, molhando todo o
meu rosto.
Seu olhar me analisou como se também fosse atingido por uma emoção
sem precedentes. Ele abriu os braços e deixou as lágrimas correrem sobre o
seu rosto também.
— Vem aqui. — Me convidou em meio a um soluço.
Corri para os seus braços sem esperar um segundo convite, aninhando-me
em seu pescoço quando ele apertou a minha cintura.
— Eu senti tanto medo — Fernando sussurrou no meu ouvido com a voz
entrecortada. — Achei que não teria a chance de dizer o quanto amo você.
Ao som de sua confissão, apertei ainda mais o nosso abraço. Minhas
lamentações se tornaram sem sentido de repente, ao constatar o caminho que
havíamos trilhado até ali. O seu jeito calado e introspectivo nada mais era do
que cautela, prudência e sensatez. Talvez se tivesse se deixado levar pela
mesma emoção que eu sentia, não teríamos chegado tão longe, e eu o amava
por isso. Éramos opostos que se completavam perfeitamente.
Afastei-me e tentei enxugar seu rosto com minhas mãos. Fernando piscou
os olhos e neles pude ver seu coração.
— Você está aqui agora, Graças a Deus. Orei tanto para que Ele te
guardasse e o trouxesse em segurança para mim — declarei e um sorriso
desenhou seus lábios trêmulos.
— Isso quer dizer que você também me ama?
— Acho que desde o dia que abri os meus olhos naquele acidente e você
estava me protegendo da chuva.
Suas sobrancelhas se ergueram em surpresa.
— Mas você não me conhecia, nem sabia se eu era uma boa pessoa.
— Você era o Dr. Bernardi, não tinha como dar errado. — Eu estava tão
feliz que um sorriso bobo havia sido tatuado nos meus lábios.
— Quem?
— Não importa. Ele é só um personagem literário. Você é real, está vivo e
acabou de dizer que ama, é isso que importa.
Ele sorriu não muito convencido da minha resposta e segurou a minha
mão.
— Me desculpe por demorar tanto a fazer isso. Eu precisava saber se você
não era como as outras, entende?
— E eu não sou?
Ele já tinha me dito isso, mas eu queria ouvir de um Fernando consciente
e não de um dopado de sedativo.
— Não. — Ele olhou brevemente para as nossas mãos dadas e a acariciou
com o polegar. — Você é a pessoa que almejei durante todos esses anos —
os nossos olhos se encontraram e neles vi um poço de sinceridade —,
paciente o bastante para me esperar, estar pronto e convicto do que quero e
se essa é também a vontade de Deus.
— E o que você quer? — o instiguei a falar para que não restasse dúvida
de que aquilo era real.
— Passar o resto dos meus dias ao seu lado, pois tenho certeza de que
chegou o meu tempo de amar. — Um brilho divertido surgiu em seu rosto.
— Na verdade, eu soube disso durante a nossa guerra de água em
Pimenteiras, porém eu ainda me encontrava temeroso. Sua música disse que
não temos garantias, mas que tínhamos que decidir confiar em Deus porque
a fé não oferece benefícios até que os peregrinos decidam crer que Sua
vontade é boa, perfeita e agradável. Então decidi que estava na hora de
deixar Deus guiar esse âmbito da minha vida e parar de ser tão meticuloso e
analítico, caso contrário, meu ceticismo não me permitiria experimentar
qualquer experiência amorosa na vida. — Ele fitou meus olhos com
franqueza. — Beatriz, eu escolho entrar em um relacionamento com você e
agora entendo que o amor é mais que uma escolha lógica. Lutei contra esse
sentimento, mas eu não consigo mais negar.
Eu sabia que a emoção entalada na minha garganta impediria que as
palavras saíssem firmes, mas, ainda assim, me declarei.
— Eu também sinto o mesmo por você, Fernando. E eu escolho trilhar
esse caminho ao seu lado, com todo o meu coração.
Eu tinha plena convicção da minha decisão, pois Fernando havia se
mostrado um homem íntegro e segundo o coração de Deus. Ali, no meio do
corredor entre as portas dos nossos apartamentos, era como se um brilho
invisível nos envolvesse com fé e esperança de longos anos de amor e
companheirismo vindouros.
— Ainda bem, senão eu teria que ligar outra vez para os seus pais e dizer
que não fui digno do seu amor.
— Meus pais? — perguntei em choque.
— Você acha que me declararia sem antes falar com eles?
Dei um gritinho histérico.
— Ain, você é mesmo o Dr. Bernardi!
— Pare de ficar me comparando com esse cara.
— Ownt, até nisso você se parece com ele. Dr. Bernardi odiava o amor da
Bea pelo Sr. Darcy.
— De orgulho e preconceito? — Fernando parecia estar se esforçando
para acompanhar meu raciocínio.
— Você leu orgulho e preconceito?
— Só porque uma professora me obrigou no ensino médio.
Suspirei, encantada, e ele sorriu.
— Mas, falando sério agora, você realmente falou com meus pais? — Ele
assentiu. — Como?
— Bem, eu salvei o número da sua mãe quando atendi o seu telefone na
noite que você passou no hospital após o acidente, caso houvesse uma
emergência. — Um brilho travesso surgiu em seus olhos.
— Você deve ter quebrado algumas leis com essa atitude.
Fernando quicou os ombros.
— Mas usei para o bem, então acho que estou perdoado.
— Como foi?
— Sua mãe se lembrou de mim quando entrei em contato pela primeira
vez. — Era lógico que minha mãe sabia quem ele era, já que me ouviu
reclamar ao telefone inúmeras vezes dos sentimentos que eu achava não ser
correspondido. Mas não o interrompi, deixando-o falar. — Depois os meus
pais ligaram para eles também e aí fizemos duas chamadas de vídeos até eles
terem certeza de que eu era confiável.
— Eles não me disseram nada!
— Eu não queria que você soubesse ainda, então pedi segredo. Meu plano
era ligar para eles com você para podermos conversar os quatro e acertar
tudo. — Ele suspirou e seu sorriso sumiu. — Ontem eu vi a morte diante dos
meus olhos e graças a um colega que se feriu no meu lugar, estou aqui. Não
queria perder mais um minuto sequer sem dizer o que sentia e como já tinha
a benção dos nossos pais, aqui estou eu, chorando igual a um bebê, todo
sentimentaloide.
Sorri, achando fofa a sua cara de choro.
— Eu te amo — falei pela primeira vez aquela frase já impregnada no
meu coração a tanto tempo.
Ele levou minha mão aos seus lábios e deixou um beijo terno sobre os
meus dedos.
— Então casa comigo?
Sorri entre lágrimas, vendo como Deus era maravilhoso. Nem em meus
sonhos mais loucos de leitora voraz de romances clichês e água com açúcar,
eu poderia imaginar como o Senhor escreveria a minha história de amor. É
bem verdade que sofri como as mocinhas, criando perceptivas e Ele as
frustrando. Porém foi um caminho necessário, que eu trilharia outra vez se
preciso, para ter o que Deus havia reservado ao concluir essa jornada.
— Sim, Fernando, eu me caso com você — respondi, finalmente pronta
para o meu “felizes para sempre”.
Se Fernando tinha um coração a ser resgatado, eu precisava ser moldada
para tal proeza. No final, tanto ele quanto eu fomos salvos: ele do seu
coração trancado, e o meu que vagava sem rédeas por aí, mas que conforme
a boa e perfeita vontade do C dos céus e da terra, foi guiado um para o outro
e dali em diante para Sua glória.
Conto Missão do amor
— Você é esquisita, Napáuria.
Embora a palavra “esquisita” soasse como uma ofensa, partindo de Leo,
meu primo, eu sabia que se tratava de uma brincadeira. E, na verdade, ele
não estava errado. Comparada às meninas da nossa turma, eu era esquisita,
sim. Já havia me conformado com o rótulo.
No auge dos meus 18 anos, estava prestes a me formar no Ensino Médio e
meu futuro não passava de um borrão diante dos meus olhos. Enquanto
alguns colegas tinham a cabeça cheia com o Enem e a faculdade, eu sequer
tinha decidido qual curso faria, e talvez isso tenha influenciado o meu mal
desempenho — ou desinteresse — com a prova. Havia também aquelas
garotas cujo único pensamento era o baile de formatura, tão perto, mas tão
distante para mim. E no meio do fuzuê de conversas sobre vestidos super
decotados, saltos altos, maquiagem forte e namorados, eu me sentia
totalmente deslocada. Talvez esse fora o motivo que me forçou a ter como
companhia três rapazes nos últimos anos da escola. No mínimo eu não
precisava lidar com papos sobre beijos e outras coisas mais. Eles ao menos
me respeitavam. E dentre os três, um era Leo, meu parente de sangue e
irmão na fé.
— Elisabeth Elliot disse uma vez que “se seu objetivo é a pureza do
coração, esteja preparado para ser visto como alguém esquisito”. Você não
me ofendeu, Leo. Ser chamada de esquisita é quase um elogio. — Dei um
soquinho no ombro dele. — Tem quase o mesmo efeito de ser chamada de
puritana ou santinha. São todos bons adjetivos mascarados de insulto.
Embora a sentença tenha sido encarada de modo divertido entre nós, na
real, eu não achava tão cômico assim. Eu já tinha me acostumado, claro.
Mas não posso negar as lutas vividas durante a adolescência e todos seus
desafios, sendo a garota careta que não ficava, era BV[5] e tinha uma ideia
maluca de não beijar o namorado quando ele aparecesse. Isso sem mencionar
a parte das orações por alguém cujo nome eu sequer sabia. Não que saísse
por aí contando a todo mundo sobre meus princípios, mas não é preciso falar
muito para dizer certas coisas.
— Tudo bem, então, puritana. Eu te encontro amanhã no ponto de ônibus.
— Leo se despediu e foi se afastando. — Não se esqueça de levar seus fones
de ouvido.
Eu ia dizer mais uma vez para ele comprar os próprios fones de ouvido,
mas ele não ofereceu oportunidade. Deu as costas e saiu correndo rumo a
casa dele.

Quase 5 horas de uma longa viagem de ônibus fez meu corpo vibrar de
alegria quando entramos na casa da tia Lídia, a quase 300km da nossa casa.
Na verdade, ela não era minha tia de sangue, era irmã do pai do Leo, mas eu
acabei adotando o título para mim também, uma vez que a simpatia e
carinho dela criavam um caminho de adoção para novos sobrinhos — e ela
mesma havia solicitado para eu me referir a ela assim.
Fomos acolhidos com uma mesa farta de café da tarde, com delícias bem
típicas da culinária mineira. Nos sentamos à mesa com Tia Lídia e Ana, uma
adolescente de 13 anos, filha dela.
— E como vai sua mãe? — Lídia perguntou com aquele jeito que
demonstrava interesse genuíno, não apenas cordialidade. — A última vez
que nos encontramos foi há muitos anos, desde então tive poucas notícias.
— Ela está bem, graças a Deus. Tem trabalhado bastante.
— E você? Ainda está envolvida com o abrigo da Elisa? Leo contou que
tem recebido muitas crianças. Vi umas fotos suas em algum trabalho com
elas na internet, não foi?
— Sim — respondi tentando conter o entusiasmo. — Vou todas as tardes,
exceto nos fins de semana. Eu ajudo como posso, mas confesso que meu
trabalho preferido é no berçário.
Eu amava ficar com os bebês e oferecer meu tempo para cuidar deles. A
pior parte era que às vezes me apegava a algum e precisava me despedir
depois, quando eles partiam. Foi preciso aprender a lidar com minhas
emoções e confiar nos planos de Deus enquanto ofertava meu tempo com
trabalho voluntário no abrigo coordenado por minha tia Elisa. Havia sido ela
quem despertou em mim aquela chama em relação a missões, o desejo de
seguir os mesmos passos e dedicar minha vida ao Senhor em tempo integral,
ainda que isso significasse abrir mão do casamento, como tinha acontecido
com ela.
— Tia — Leo interrompeu nossa conversa, sem cerimônias, depois de
lamber um dedo sujo com cobertura de chocolate —, o soldado Franco já
chegou?
— Não — foi Ana quem respondeu. — Aquele lesado marcou um
compromisso para à noite, se esqueceu de que mamãe pediu para estar aqui
hoje.
— Ana, isso são modos de falar do seu irmão? — Tia Lídia a repreendeu e
sorriu para o sobrinho. — Graças a Deus ele conseguiu um tempo para
participar do Projeto com a gente, irá nos encontrar já no distrito de Ipitinga.
— Mamãe está emocionada porque o filho preferido dela chega amanhã.
— Não seja boba, Ana. Não tem essa de filho preferido — tia Lídia
ralhou. — Mas, sim, estou feliz. A última vez que Tito veio foi nas férias e
sinto falta dele, mesmo estando muito feliz com o caminho escolhido por
ele.
Franco, cujo nome na verdade é Tito, era o primo mais velho de Leo. Nosso
único contato foi numa festa de aniversário do nosso primo em comum
quando eu ainda era uma bebê espevitada e ele uma criança quieta. Sabia,
por relatos posteriores, que ele serviu ao exército e atualmente era
missionário. Aliás, para meu deleite, havia cursado a escola de missões que
eu tanto ansiava, no Instituto Jim Elliot. Além da curiosidade para conhecer
o tão amado e falado Franco, eu queria fazer algumas perguntas em busca de
tentar encontrar uma luz para meu futuro.

Já era tarde da noite, eu me refugiava na sala da família. Como de


costume, lia a Bíblia antes de me deitar, após orar a Deus para pedir direção
sobre meu futuro. Ouvi o barulho de alguém entrando no cômodo.
— Aceita um suco de maracujá? — Tia Lídia se aproximou com o andar
calmo e estendeu o copo em minha direção. Aceitei o mimo e agradeci o
gesto acolhedor. — Você deve estar cansada. Leo já está no mais profundo
sono.
— Sim, estou exausta — confessei e tomei um gole do suco. — O dia foi
bem puxado.
Sentindo-se convidada pelo meu sorriso, ela se sentou ao meu lado no
sofá.
— Além de terem feito uma longa viagem, não pararam nenhum minuto
desde quando chegaram, ajudando com os preparativos para amanhã. — Ela
abriu um sorriso satisfatório. — Me alegra ver a força da juventude,
principalmente quando está se dedicando a servir ao Senhor.
Sem saber o que responder, apreciei um pouco mais o sabor do suco,
enquanto minha mente voava até aquele ponto de indecisão à minha frente.
Com um tato materno, Lídia pareceu ler o caminho dos meus pensamentos.
— Algo te perturba?
Ergui a cabeça de súbito e encontrei no olhar dela um convite para
desabafar. Ponderei por apenas alguns segundos e cheguei à conclusão de
que tinha ali ao meu lado a pessoa ideal com quem poderia compartilhar
meus dilemas.
— Me formo esse ano, como você já deve saber. Mas não faço a mínima
ideia do caminho a seguir. Todos parecem ter um plano traçado. Leo, por
exemplo, está convicto de seu futuro na engenharia. Já eu, não. Eu não sei o
que quero fazer da minha vida. Eu sequer tenho uma faculdade dos sonhos!
Baixei o olhar, sentindo a conhecida frustração retornar. A verdade é que
eu tinha um sonho, mas ele não tinha a ver com carreira profissional e sim
com um desejo ardente de poder dedicar anos de serviço ao Senhor.
— Entendo — ela disse apenas isso e tocou em minha mão.
Estimulada pelo contato, continuei a relatar meu drama interior.
— Eu sei o que eu quero, mas não sei se é o mesmo que o meu pai quer.
Ele vive falando em como eu deveria me dedicar aos estudos para poder ter
um bom emprego e ser bem-sucedida. Já minha mãe apoia minha escolha,
mas não me estimula muito. A verdade é que estou numa encruzilhada e não
sei discernir qual caminho tomar. Preciso de uma direção, não consigo achar
uma resposta para meu impasse.
— Você já pensou que um casamento poderia ser uma dessas soluções?
Eu tinha sua idade quando fiquei noiva.
Assustada com o comentário tão fora da órbita, dei uma risadinha.
— Não consigo pensar em casamento por agora. Eu tenho só 18 anos e a
maioria dos rapazes que conheço tem a mesma idade e, sinceramente, tia,
isso não me estimula muito a pensar em um relacionamento amoroso no
momento.
— E qual seria o problema com os rapazes de 18 anos?
— São meninos imaturos. — Dei de ombros.
— Você sabe que a idade não define exatamente a maturidade de alguém,
não é? Conheço rapazes de 30 com a cabeça de 15.
— Eu sei. Mas tenho estabelecido um padrão sobre o homem com quem
desejo me casar e todos os meninos que conheço estão bem longe de
alcançá-lo.
— Um padrão, é?
— Sim, um homem que se encaixa nos meus rigorosos critérios de
masculinidade e piedade.
— E ter 18 anos não faz parte desses critérios? — Ela deu um sorriso.
— Não. — Neguei com a cabeça. Depois, lembrei-me de Leo e o quanto
eu o considerava um rapaz piedoso, apesar de, aos meus olhos, não estar
pronto para um relacionamento. — Sei que existem exceções, mas os
meninos que conheço da minha idade são isso: meninos. Estão longe de ter
maturidade e capacidade de sustentar e prover um lar. — Com agilidade um
pensamento me invadiu e antes de parecer soberba, eu ri e quis desfazer
qualquer má impressão. — Não que eu me considere uma menina madura,
estou longe de alcançar esse patamar. Por isso, tenho um longo caminho
antes de encontrar a pessoa certa.
— E como seria o homem certo? — Ela insistiu no assunto.
Um príncipe como o Alexander[6], claro!
— Um homem que ame a Deus acima de tudo, porque se ele amar a Deus,
ele buscará mudar qualquer comportamento pecaminoso por causa do
Senhor. Terá como exemplo Cristo. E um homem de verdade, não um
menino moleque que só deseja um namoro recreativo e brincar com meus
sentimentos.
Se a parte final denunciou minha amargura, tia Lídia não demonstrou ter
entendido. Ela estalou a língua e franziu a testa.
— Sua teoria está linda, de verdade. Idealizar um molde de homem
bíblico é primordial, quanto a isso, não tenho nada a dizer. Mas sabe que na
prática, quando falamos de relacionamento as coisas podem sair bem
diferentes do esperado, não é?
Dei um sorriso sem humor. Sabia melhor do que ninguém como isso era
verdade. Há poucos meses, eu, defensora de uma teoria tão bela, havia me
envolvido emocionalmente com um rapaz bem longe do meu referencial de
homem piedoso. Talvez fosse por isso que os meninos da minha idade
estavam distantes da minha lista de marido ideal.
Percebendo que sua fala surtiu efeito, ela deu dois tapinhas de leve em
minha mão.
— Você está certa na parte de não rebaixar o seu padrão. Uma garota
cristã não deve esperar menos do que um homem cujo coração seja dedicado
ao Senhor e esteja disposta a amá-la como Cristo amou a igreja, dando sua
vida por ela. Apenas cuide para que seus ideais secundários não te impeçam
de enxergar algo à sua frente, como um presente Divino. Às vezes,
encontramos o amor onde e quando menos esperamos. Vou orar por você,
para Deus direcioná-la sobre seu futuro. E no que precisar, estarei aqui.
Sem entender como a conversa sobre meu futuro havia acabado num
conselho sobre vida amorosa, eu agradeci a atenção de tia Lídia. De alguma
maneira estranha, pensar que Deus cuidava dos meus interesses e poderia
intervir em minha vida em meio às minhas dúvidas, me fez relaxar. Após se
despedir, ela me deixou sozinha e eu voltei meu coração ao Senhor. Terminei
orando pelo meu futuro marido, daquela vez com um ânimo redobrado,
como se ele estivesse mais próximo, provavelmente motivada pelo teor da
nossa conversa.

O primeiro dia do Projeto foi de intensas emoções. Além de conhecer


muita gente nova, inclusive garotas cristãs com quem descobri vários gostos
em comum, os trabalhos de evangelismo, manutenção do local onde ficamos
hospedados e trabalhos sociais me deixaram exausta. Meu corpo desejava
por um banho ao final do dia e meu cabelo só não se encontrava num estado
pior do que uma juba de leão porque eu havia “domado” os cachos num
coque alto.
Já era tarde da noite quando consegui um lugar na fila do banho, mas
acabei lavando os cabelos mesmo perto da hora de dormir. Minha
consciência pesou ao lembrar das mil e uma recomendações de minha mãe,
entre elas estava justamente a de não dormir de cabelo molhado, ainda que
eu não me importasse com isso. Quando Ana me sugeriu usar o secador de
cabelos de uma das garotas, aceitei, aliviada. Porém, ao ver a condição do
aparelho, fiquei apreensiva.
— Esse negócio não vai explodir, Aninha? — Torci o nariz ao analisar
uma espécie de objeto que parecia ter feito parte da guerra no Iraque.
— Não, fica tranquila! A aparência é ruim, mas ele é superpotente. A Sara
sempre o leva para os acampamentos e todo mundo usa. Nunca tivemos
nenhum acidente.
Mas sempre há uma primeira vez, e fui eu a felizarda a protagonizar o
episódio. Enquanto secava os fios, tentando definir os cachos, me distraí
com a conversa divertida da Ana, até que senti um tranco no meu cabelo,
seguido de um som estranho. Para meu completo horror, vi uma grande
mecha presa na parte de trás do secador. No instinto, tirei o fio da tomada e
tentei desenrolar meu cabelo de lá.
— Está preso! — constatei desesperada. — Ana, ai! Meu cabelo!
A menina até procurou me ajudar, mas ao se dar conta da confusão de fios
emaranhados dentro do secador, saiu correndo em busca de ajuda. Ela não
demorou muito para voltar, o que foi ótimo, pois eu já estava sentindo o
choro aflito entalado na garganta. Mas me recompus quando um homem
entrou ao lado dela.
— Então foi aqui que aconteceu um acidente envolvendo uma donzela?
— ele perguntou com um pouco de diversão na voz.
— Meu cabelo ficou preso — respondi segurando o secador ao lado, de
modo que a explicação acabou sendo desnecessária.
— Olha lá, Titi, se tem como abrir o secador.
Titi. Tito. Franco. Então era o primo do Leo, irmão da Ana e filho da tia
Lídia. Sem querer, fiz uma rápida análise. Eu esperava um rapaz mais
jovem, embora não tivesse certeza da idade. Ele era alto, tinha um porte
forte, cabelos espessos e um cavanhaque no rosto que dava a ele um aspecto
ainda mais senhoril. Os óculos assentavam bem em seu rosto, combinando
com o nariz avantajado. Não era um homem que eu classificaria como lindo,
mas também estava longe de ser feio. Uma beleza comum, talvez?
— Deixa eu dar uma olhada. Com licença.
Ele pegou o secador na mão e avaliou a situação. Não conseguia ver o
rosto dele, até porque eu olhava para o outro lado, morrendo de vergonha.
Depois de sentir alguns puxões no cabelo, ele suspirou.
— Não tem jeito, vai ter que cortar.
— O que? — Virei-me de súbito com os olhos arregalados. — Tem
certeza? Não dá para desmontar e tirar o cabelo? Olha só, é uma mecha bem
na frente. Vai dar uma falha imensa.
— Infelizmente, não. Está preso de um modo que te restam apenas duas
opções: ou corta, ou assume um novo visual com esse acessório estranho
pendurado na cabeça — referiu-se ao secador.
Ele estava sério, mas os olhos sorriam. Soltei um murmúrio de
lamentação. Franco pediu à irmã para providenciar uma tesoura e Ana correu
para atender ao pedido. Eu não disse nenhuma palavra, estava atormentada
demais com a ideia de estragar meu cabelo. O rapaz ainda deu mais uma
analisada, mas balançou a cabeça em negativa. Quando Ana chegou,
entregou a tesoura para ele.
— Posso cortar? — ele perguntou.
— Se não tem outro jeito. — Dei de ombros, tentando ser indiferente ao
que estava acontecendo.
— Não se preocupe, vou cortar o mínimo possível — ele disse e abriu a
tesoura sobre a mecha presa. — Não é tão difícil. Vou fazer um ótimo
serviço, tenho experiência, trabalhei por um bom tempo em pet shop tosando
cachorros.
Antes que eu pudesse processar a referência, ouvi o barulho do corte e
senti os cachos caírem sobre meu ombro.
— Você está me comparando a um cachorro? — perguntei atônita e fui
conferir o estrago com as mãos.
Uma gargalhada espontânea soou agradável aos meus ouvidos,
contagiando meus lábios, que sorriram também. Tito ainda tinha os olhos
brilhantes quando colocou o secador a uma boa distância da minha cabeça.
— Então você é a Napáuria — ele perguntou e fiquei satisfeita por ele ter
acertado a pronúncia do meu nome. Muita gente demorava bastante para
aprender a falar direito. — A prima do meu primo. — Ele estendeu a mão.
— Isso faz você o que de mim?
Aceitei a mão e nos cumprimentamos com um leve balanço.
— A prima do seu primo.
— É justo — ele concordou e soltou minha mão. Depois, cruzou os braços
em frente ao peito. — E então? O que está achando do Projeto? Claro,
vamos desconsiderar o sério acidente de agora a pouco.
A fala me levou a passar a mão no cabelo mais uma vez, apenas para
descobrir o tamanho da brecha que o corte improvisado causou. Para meu
alívio, não parecia grave.
— Estou gostando muito. Atendeu as minhas expectativas. — Pensei por
um minuto se já era hora de descarregar minhas dúvidas sobre a vida de
missionário, mas pelo olhar cansado dele, imaginei que não.
— Leo me disse que você tem interesse em missões.
— Isso. — Soltei o cabelo e sorri. — Ficaria muito feliz se pudesse
compartilhar comigo algumas experiências.
— Claro! Podemos conversar sobre isso amanhã. — Ele conferiu as horas
num relógio de pulso. — Já está tarde. Vou deixar vocês descansarem.
Ele deu mais uma dica de segurança com secadores de cabelo num tom de
brincadeira. Depois, orientou Ana a devolver a tesoura para o dono. Ele
colocou a mão sobre a cabeça dela, que retribuiu com um abraço.
— Você me deve dez reais — ela cobrou. — Li o livro que você me deu.
Pode perguntar para a mamãe.
— Hum. — Franco retirou a carteira do bolso e abriu em busca de uma
nota. — Você leu e aprendeu algo, ou só queria o dinheiro?
— Eu aprendi, pode fazer suas perguntas! — a menina respondeu e
estendeu a mão em busca do prêmio.
— Vamos conferir isso depois. — Ele entregou a ela uma nota.
Após se despedir outra vez, se retirou, deixando Ana e eu — com uns
cachos a menos na cabeça.

Na manhã seguinte, Leo foi obrigado a me ouvir falar mais uma vez sobre
meus romances cristão preferidos. Ana e mais três meninas estavam muito
interessadas em conhecer as histórias de amor por trás de cada livro indicado
por uma leitora assídua do gênero. Meu primo aproveitou para fazer graça,
uma vez que ele já tinha me ouvido falar sobre esse assunto dezenas de
vezes.
— Sabe o que é o melhor de tudo? Eles são romances puros como
Napáuria sempre sonhou! — Leo forçou a voz para parecer uma garota
empolgada. — Entendem? Existem príncipes encantados que também
pensam como a doida da minha prima!
— Ah, não enche, Leo. — Joguei um pedacinho do meu pão nele. — Só
porque você pensa diferente, não significa que tem direito de zombar das
minhas decisões. — Ignorei a risada dele e me voltei para as meninas. — E,
sim, tem príncipes, fazendeiros e soldados também. Todos são personagens
incríveis com quem eu me casaria num piscar de olhos.
Mais tarde, quando lavávamos os nossos pratos, Ana se aproximou e deu a
entender que gostaria de compartilhar algo privado.
— Você poderia indicar esses livros para o Tito. Sabe, ele me paga para
ler livros cristãos, e eu adoraria incluir alguns romances na minha lista.
— Se você quiser ler, pode fazer isso mesmo sem receber recompensa
financeira do seu irmão. Não?
— Poder eu até poderia, mas ele e minha mãe não confiam nas minhas
escolhas. Temem que eu leia livros com conteúdo inapropriado. — Ela
cruzou os braços em frente ao peito e a feição era de uma adolescente
frustrada. — Não vão acreditar em mim se eu pedir.
— E você quer que eu interceda por você?
— Sim. — O olhar se tornou esperançoso. — Se você contar para ele que
leu e o assunto do livro, talvez ele até me dê de presente. Não sei se sabe,
mas meu irmão também pensa com você.
— Como eu? — Franzi a testa sem entender ao que ela se referia.
— Isso, esse negócio de não beijar, namorar para casar e tal — ela
respondeu e as bochechas ficaram um pouco coradas.
Não pude esconder a surpresa. Era a primeira vez que conhecia um rapaz,
assim de perto, com esses princípios. Embora tivesse repetido diversas vezes
para meu inconsciente que deveria haver alguém no mundo com o mesmo
pensamento, na verdade, toda a minha expectativa girava em torno de que o
rapaz certo aceitaria minhas condições, pois eu não renunciaria a elas. Seria
como Dylan[7], ele precisou levar umas bibliadas do Carlton[8] e receber
muitos conselhos para abrir os seus olhos.
— Você tem certeza disso? — Me esforcei para não parecer tão
interessada.
— Tenho — ela confirmou balançando a cabeça.
— Bem, vou ver o que posso fazer por você.
O sorriso de Ana se abriu e ela me abraçou. Depois saiu, saltitando igual
uma criança feliz.
Após terminar de lavar meu prato, peguei minha Bíblia e segui para o
local onde teríamos uma reunião. Escolhi um lugar na frente e fiquei
observando a equipe de louvor passar o som, no aguardo de Leo para me
fazer companhia. Ao meu lado, duas meninas que eu não conhecia
conversavam animadas e o tom de voz não foi baixo o suficiente para
esconder dos meus ouvidos o assunto de terceiros.
— Ele quem vai pregar hoje, tenho certeza. Ouvi tia Lídia dizendo na hora
do café.
— Ele é um sonho de consumo! Eu bem que gostaria de ser a felizarda,
mas sou muito nova para ele.
— Claro que não! — a outra replicou. — Ele tem 23 anos. São só três
anos de diferença.
Abaixei a cabeça e sorri. Lembrei-me de como as mulheres podem saltar
bem rápido de um pequeno gesto de gentileza para planos de casamento. Eu
mesma havia me iludido, o fato de um garoto denominado cristão ter se
interessado por mim e declarado esse amor me pareceu um sinal de que tinha
encontrado a pessoa certa. No final, minha expectativa se transformou em
um grande coração partido, regado por mágoas. E eu nem poderia me isentar
da culpa, havia dado espaço para a paixão e me envolvido com a desculpa de
buscar a vontade de Deus, quando, na verdade, apenas alimentava algo sem
futuro.
Uma pontada de tristeza cutucou meu coração e eu suspirei. Eu aprendi a
lição, apesar de tudo. Faria diferente na próxima oportunidade. Já tinha
deixado meu coração solto o suficiente para se apaixonar dezenas de vezes.
Eu estava convicta de que o guardaria a partir de então. Meu foco seria o
Senhor.
Ainda pensando em minhas resoluções, uma voz grave ressoou no
microfone, interrompendo minhas divagações. Franco convocava toda a
turma para assumir seus lugares para dar início à reunião. Com uma Bíblia
na mão e um esboço em um papel, ficou claro quem traria a mensagem
naquela manhã. Era ele o crush das meninas ao meu lado.
Quando fizemos contato visual ele sorriu e, não sei por que, estremeci por
dentro.
Os dois dias seguidos do Projeto poderiam ser descritos com poucas
palavras: muito trabalho e Franco. Trabalho porque não paramos um
segundo sequer. Eram devocionais, momentos de oração, reuniões e cultos, e
serviços que envolviam evangelismos, visitas e manutenção. Quanto a
Franco, apesar da minha expectativa de conversar com ele em algum
momento sobre o Instituto de missões, nós não trocamos mais do que
algumas palavras de cortesia, grande parte na companhia da família dele —
exceto o momento em que ele fez uma brincadeira sobre o secador
exterminador de cachos. Mas, ainda assim, Franco parecia estar em tudo.
Era impossível não notar a presença dele, fosse pregando, orando, liderando
grupos, carregando caixas, servindo como podia e até dançando — sim, ele
dançava, com passos atrasados, muito atrasados, mas dançava. Sem
mencionar as centenas de vezes em que o nome dele estava na boca das
pessoas. Era “Franco isso, Franco aquilo, Franco é incrível, Franco me
ajudou, Franco resolve, fale com o Franco”... Ele preenchia todo o espaço.
O fim de semana também aumentou ainda mais meu desejo de dedicar ao
menos parte da minha juventude para servir ao Senhor em tempo integral,
começando pela escola missionária na qual eu me capacitaria. Estava
convicta de que Deus havia me enviado para aquele lugar para encontrar
meu caminho. Talvez, enfim, minhas orações estivessem sendo respondidas.
E foi com esse sentimento que fechei o zíper da minha mala, pronta para
deixar o distrito a caminho da casa de tia Lídia, onde permaneceria mais uns
dias antes de pegar o ônibus de volta para minha realidade.
— Ei, Napáuria — Leo me chamou assim que coloquei os pés no salão
onde estava sendo organizada a partida. Obedeci às ordens das mãos dele me
chamando para perto. — Tia Lídia pediu para avisar que você vai com o
Tito.
Ergui as sobrancelhas e ia abrir a boca para perguntar o motivo da
mudança, mas o próprio Franco apareceu com um molho de chaves na mão.
— Ei, parece que vou ser seu motorista — ele brincou e apontou para o
portão. — Minha mãe te escalou como minha companheira de viagem.
Não sei por que, mas a informação ameaçou minhas bochechas a
alcançarem um tom a mais de vermelho. Assenti com a cabeça, me despedi
do meu primo e segui atrás do rapaz. Ele ainda parou duas vezes para falar
com alguém antes de chegarmos à caminhonete. A pedido, entreguei minha
mala para ele, que a colocou na traseira, ao lado de cadeiras, panelas,
mantimentos e tantas outras coisas mais. As portas se fecharam e ficamos
isolados dentro do automóvel, embalados pelo som da música que tocava
baixinho no som.
Sertanejo? E gospel? É sério isso?
Eu não era a pessoa mais sociável do mundo, mas também não era tímida
a ponto de não conseguir falar. Eu poderia zombar do péssimo gosto musical
dele, por exemplo. Porém alguma coisa estranha me forçou a ficar quieta até
ele começar um diálogo amigável.
— Então acho que temos uma hora pela frente e podemos aproveitar para
ter aquela conversa. — Ele deu a partida no carro.
— Seria ótimo — respondi sentindo o ânimo voltar. — Eu gostaria muito
de saber sobre seu tempo no Instituto, principalmente.
Franco sorriu e fez que sim com a cabeça. Ele olhou pelos retrovisores e
fez o carro iniciar a jornada.
— Antes de eu começar a contar, posso perguntar o motivo do seu
interesse? Você pretende fazer o curso?
— Sim! — respondi com convicção. Então, parei, refleti por um segundo
e me corrigi. — Quer dizer, não sei ainda. Eu quero muito, mas não me
decidi.
Ele não disse nada e senti necessidade de dar continuidade na conversa.
— Há alguns anos eu passei a pensar na possibilidade de fazer missões.
Tudo começou com minha tia, que dedica os dias dela coordenando um
abrigo. Minha frequência por lá e o exemplo de vida dela despertaram algo
aqui dentro. — Apontei para meu coração. — Depois conheci um
missionário que me apresentou o Instituto Jim Elliot e várias biografias de
cristãos que dedicaram suas vidas a Deus. Eu passei a fazer pesquisas e
pensar de maneira séria na possibilidade de me formar no Ensino Médio e
entrar para o Instituto. Mas não é uma decisão simples, não quando algumas
pessoas esperam de você algo diferente, como uma faculdade ou um
emprego “de verdade”.
Sem pensar, deixei o suspiro de frustração encontrar um espaço de saída
entre meus lábios.
— Há decisões tão difíceis a se tomar. Às vezes, eu só queria que Deus
mandasse um sinal, ou a resposta bem clara, sabe? Algumas escolhas
demandam renúncias e isso torna a responsabilidade maior — falei.
— Entendo. Você se sente perdida sem saber qual o melhor caminho e
tudo o que quer é uma solução que não dependa só da sua decisão. Uma
intervenção divina seria bem-vinda.
Abri um sorriso largo e ele me olhou por um instante antes de voltar o
olhar para a estrada.
— É exatamente isso! Uma intervenção divina... — Eu ri mais uma vez.
— Seria bastante propícia.
— Eu passei por isso. E não, não houve nenhum sinal sobrenatural para
me orientar, só pessoas sábias me aconselhando. Eu precisei fazer minha
escolha. Mas, olha — ele fez uma pausa e sorriu —, não me arrependo dela,
ainda que às vezes me peguei pensando como teria sido minha vida. É bem
provável que estaria batendo continências até hoje.
— Continências?
Sem tirar os olhos da estrada, Franco levou a mão até o pescoço, pegou
uma espécie de colar e passou pela cabeça, retirando-o. Ele me entregou um
cordão de metal com uma plaquinha de identificação com alguns dizeres.
Lembrei-me de Dylan Fox, mas era o nome do Franco que estava gravado
em letras de forma no metal.
— Franco, Tito. 2 Timóteo 4:7.
— “Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé”. Fiz essa
plaquinha para me lembrar que ser um soldado de Cristo, combater o
combate da fé e seguir a carreira como um cristão é o meu principal alvo.
Franco passou a me contar sobre seu amor pelo Exército. Como, desde
criança sonhava com o dia em que vestiria uma farda e serviria ao país.
Quando a adolescência chegou, o sonho de infância se tornou um alvo, a
busca dele pelo futuro. Mas foi também na adolescência quando ele teve um
encontro real com Cristo e compreendeu com verdade em seu coração todas
as coisas ensinadas por seus pais. E, proporcionalmente ao seu amor pelo
Exército, cresceu seu amor por Deus.
— E foi ali que aprendi o primeiro significado de renúncia para o Senhor.
— Ele apertou os lábios diante de uma lembrança desconfortável. — Eu
mantinha um relacionamento que desagradava a Cristo e estava bem longe
dos padrões de pureza para um cristão. A princípio, tentei mudar o modo
como era conduzido o namoro, mas a garota não quis colaborar. Ela não
aceitou bem a ideia de impormos certos limites. Aliado a isso, comecei a
entender o motivo de meus pais serem contra nossa união. Embora ela
frequentasse a igreja, não tinha um coração em Cristo. — Ele riu. — Bem,
como eu também não tinha até a maravilhosa graça me encontrar.
— Posso imaginar o final da história. Você rompeu com ela.
— Isso. E tomei a decisão de nunca mais me relacionar de forma tão
leviana como fiz. Eu era muito novo, nem deveria estar namorando. A partir
de então, passei a esperar pela moça com quem pretendo me casar. Mas
ainda acho que vai demorar um pouco, no momento quero reservar toda a
minha atenção para o Senhor. Talvez daqui uns cinco anos, quem sabe?
— Nisso estamos bem alinhados. Eu sofri uma decepção amorosa há
pouco tempo e entendi que não é hora de me preocupar com isso.
Casamento, no caso, só daqui uns cinco anos também.
— Uma decepção amorosa costuma deixar marcas — ele disse num tom
que não soube identificar se falava sério ou brincava.
— Ah, deixa. Ainda mais em uma romântica como eu. Eu estava bem
iludida, assumo. Pensei ter encontrado um Príncipe Alexander e ele estava
mais para um Ewan[9] imaturo com belas palavras e uma atitude de moleque.
— Meu olhar se repousou num ponto à frente e minha mente vagou para o
dia em que a ficha caiu e eu percebi a furada na qual estava me metendo ao
buscar uma resposta quando os sinais estavam claros bem na minha frente.
— Acho que eu deveria parar de ler romances, eles só me iludem e eu nunca
vou encontrar um rapaz como meus mocinhos preferidos — desabafei mais
para mim mesma.
— Você não vai me dizer que nenhum homem presta e que todos são
iguais, como as feministas, né? — ele perguntou, forçando uma indignação
em meio ao sorriso.
Eu ri.
— Estava bem perto de dizer algo parecido, mas vou mudar o discurso.
Sei que existem homens bons, as exceções por aí. É só que está cada dia
mais difícil encontrar um rapaz piedoso, sabe?
Uma gargalhada explodiu e o som da risada dele me impediu até mesmo
de ouvir a música tocando. Fui contagiada pelo momento e ri também,
embora não soubesse o motivo.
— Você acabou de me ofender! — Ele limpou a lateral dos olhos úmidos.
— Desculpa por não fazer parte da exceção e não ser como um personagem
piedoso dos seus romances.
— Não foi isso que quis dizer! — protestei, mas acabei fazendo a gente rir
ainda mais. Quando nos acalmamos, quis corrigir as coisas. — Você até se
parece com um, sabia? O Dylan era soldado, assim como você! Ele também
mudou a visão sobre relacionamentos ao se converter. Aposto como você ia
gostar de ler o romance dele. — Ergui um dos ombros com falsa indiferença.
— Essa é uma experiência que não tenho vontade de vivenciar. Mas fico
lisonjeado por você me comparar a ele.
— Vamos voltar ao assunto de missões. Você estava falando sobre
renúncia.
— Sim, é verdade. Como você, também tive contato com missões através
de um amigo da minha família. Ele era da nossa igreja e havia sido enviado
ao campo e gostava muito de missões com povos indígenas. Não sei como
aconteceu, mas de repente eu passei a pensar no meu futuro assim. E aí, tive
uma grande luta de interesses.
Franco contou como ficou dividido entre o sonho antigo e o novo desejo.
E piorou quando ao se alistar, foi convocado a prestar o serviço militar
obrigatório. Ele se apaixonou ainda mais e esqueceu por um tempo sua outra
opção.
— Eu amava tudo que era relacionado ao Exército e queria muito
continuar em uma carreira militar. Passei a pesquisar todos os caminhos e
opções que eu tinha e estava decidido. Até abrir um e-mail desse amigo
missionário com o testemunho de uma conversão. Aquilo mexeu comigo e
eu me vi numa encruzilhada. E estive nesse ponto onde você está, de
precisar tomar uma decisão.
Houve silêncio. Cada um envolvido em seus próprios pensamentos. Olhei
para a plaquinha de identificação que eu ainda segurava e li outra vez os
dizeres.
— Em relação a você, acho que tenho uma vantagem. Não tenho nenhum
grande sonho. Eu não estaria abrindo mão de nada que me é valioso para
fazer missões — declarei. — Mas me conte, pelo presente já sei qual foi sua
escolha do passado. Como foi ir para o Instituto e o que você faz agora? Ana
já me deu alguns spoilers, disse que você tem ajudado uma igreja aqui
mesmo em Minas. Mas não me importo de saber tudo.
Ele sorriu. Aquele tipo de sorriso que invade os olhos. Que denuncia a
afeição.
— Com muito prazer!
E foi assim que o trajeto se tornou curto até a casa de Tia Lídia, com
tantos assuntos em comum entre nós a compartilhar.

Na manhã seguinte, acordei um pouco mais tarde do que deveria. Estava


exausta e as noites de sono em um colchonete fino não se comparavam ao
delicioso descanso na cama de colchão de molas preparada para mim no
quarto de hóspedes da casa de Tia Lídia. Depois de me arrumar, desci as
escadas temendo ter sido deixada para trás, já que o local estava silencioso.
Ao chegar no primeiro piso, porém, ouvi as vozes de duas pessoas em uma
conversa contida. Sem saber se deveria me aproximar e interromper o
momento, diminui a velocidade dos meus passos.
— Estou feliz que tenha decidido ficar mais uns dias, filho. — Era a voz
carinhosa da Tia Lídia.
— Mas não é pelo motivo que você está pensando — Franco respondeu.
— Não tem nada a ver com a sua insinuação.
— Eu sei que não. Aliás, apenas te dei uma dica, mas estou ciente de
como você conduz sua vida à parte dos meus conselhos.
Tito riu.
— Sem drama, mãe. — Houve uma pausa. — Mas, se te importa saber, eu
os considerei, sim.
Eu estava quase na porta da cozinha onde os dois conversavam. Ficou
claro que aquela era uma conversa pessoal e eu não queria chegar tão de
repente. Voltei alguns passos, fiz barulho com os pés antes de entrar no local
e ser recebida por dois rostos sorridentes e o cheiro delicioso de café e bolo.
— Cadê todo mundo? Estou muito atrasada? — perguntei para esconder o
constrangimento que ameaçou despontar nas minhas bochechas.
— Não, não. — Tia Lídia me tranquilizou abanando as mãos. — Rogério
saiu mais cedo e levou a Ana para ensaiar. Leo quis ir junto. Vamos ir com o
Tito.
Voltei-me ao rapaz sentado, se servindo de um pedaço de bolo. Quando
nosso olhar se cruzou, arrisquei oferecer um sorriso que foi bem acolhido
por ele. Era impressionante como em um dia havíamos nos aproximado
tanto. O bate-papo no caminho abriu espaço para outras oportunidades em
que tratamos de assuntos mais sérios, como também de coisas triviais, como
gostos pessoais. Franco era simpático e acolhedor, conduzia fácil uma
conversa por qualquer tema e isso despertou minha admiração e me fez
pensar em como Ana era sortuda por ter um irmão mais velho, diferente de
mim, a do meio de três irmãs.
— Venha se sentar — Tia Lídia chamou.
Tomei o café da manhã muito bem acompanhada. Era impossível não se
sentir querida naquela casa. O modo como a mulher agia e servia a todos
despertou o meu desejo de ser assim quando chegasse o dia em que eu teria
um lar para cuidar.
Depois fomos para a Igreja, onde nos encontramos com o restante da
família. Ao término, fui informada de que o almoço seria na casa da avó do
Leo, da Ana e do Franco.
— Não se assuste, a minha avó perdeu a noção de discrição há tempos. A
cabeça dela não é mais a mesma e costuma falar algumas coisas bem
inconveniente — Franco me informou baixinho ao atravessarmos o portão
da casa. — Além de não escutar muito bem.
A senhora a quem ele se referia estava acomodada no sofá da sala de estar
e expressou de maneira aberta sua alegria por ver os netos a quem ela
considerou “dois desnaturados que não se importam em visitar uma velha
com o pé na cova”. Depois, mandou eles se sentarem ao lado dela e contar o
que estavam fazendo da vida, enquanto Tia Lídia e Rogério foram para a
cozinha seguidos por Ana que implorava por um copo de refrigerante. Os
rapazes precisavam falar alto e vez ou outra repetir alguma frase para ela
conseguir entender.
— Você está muito bonito, Tito. — Ela deu alguns tapinhas carinhosos na
mão dele. — E as namoradinhas? Eu falei para a sua mãe que quero carregar
uns bisnetos no colo antes de ir para a cova.
— Não tem namoradinhas, vó — Franco respondeu rindo e precisou
repetir mais alto para ela entender.
— Ah, como não? Um rapaz boa pinta como você, no meu tempo já
estaria na boca de espera para se casar. — Depois, ela se voltou para Leo. —
Você também, aposto que está de olho em algum brotinho na sua cidade.
Leo deu uma gargalhada.
— Só se for uma pizza brotinho de calabresa — respondeu e a senhora
não entendeu a piada. — Ainda não, mas eu bem desejo arrumar uma
namorada, mas minhas pretendentes não me querem.
— Como não? Um partidão como você! O segredo é convidar as
mocinhas para o baile e levar elas para dançar. Foi assim que seu avô me
conquistou.
Aí ela entrou num silêncio nostálgico e só então pareceu notar minha
presença no canto da sala.
— E você, quem é?
— Sou a Napáuria.
— Ela é minha prima, vó. Filha da Tia Joana e do Tio Alan — Leo
explicou.
— Hum... — Ela me avaliou de cima a baixo. Voltou-se para o Tito e,
achando que falava baixo, aconselhou: — Você pode convidar ela para o
baile. Não vai querer morrer solteirão.
O vermelho irradiou da minha bochecha para todo o meu rosto. Eu não
sabia o que dizer, tampouco como me comportar, principalmente porque
Franco não desviou o olhar de mim enquanto ria da sugestão da avó.
— Acho que vou fazer isso — ele respondeu brincando e deixou a avó
satisfeita.
Para a minha sorte, Rogério interrompeu o assunto para chamar a família
para o almoço. Já à mesa, ninguém conseguiu evitar as risadas com as
diretas da avó, que dessa vez manteve os assuntos românticos bem distante
da conversa.
Já era tarde da noite. Depois do culto a família estava reunida na sala,
aguardando a pizza ficar pronta para o jantar. Ana e Leo jogavam
videogame, tia Lídia conversava com o marido questões da igreja, e Franco
se sentou ao meu lado para me fazer companhia.
— Sinto muito pela minha avó, ela deixou você constrangida hoje.
— Imagina! Ela é muito simpática e engraçada. Aliás, você se parece com
ela.
— Isso significa que eu sou simpático e engraçado?
— E direto também.
Franco cruzou os braços.
— É uma boa análise. Acho que sou assim mesmo.
Nós rimos e continuamos a conversa sobre nossas personalidades.
Compartilhei com ele como eu era tímida num primeiro momento, mas isso
passava quando conhecia melhor a pessoa.
Tia Lídia recebeu uma mensagem avisando que a pizza estava pronta para
ser retirada, então ela e o marido saíram para buscar nosso jantar. Franco se
ofereceu para preparar a mesa e eu o acompanhei até a cozinha. Depois de
estender uma toalha sobre a mesa e colocar os pratos, copos e talheres, nos
sentamos nas banquetas perto da pia para comentar sobre a história de Jim e
Elisabeth Elliot.
O telefone de Franco tocou. Ele retirou do bolso e visualizou a tela do
celular, abrindo um sorriso. Estávamos perto o suficiente para que eu
conseguisse ler o nome e ver a foto aparecendo no visor. Meu coração
congelou por um instante. Havia 6 meses desde que tinha visto aquele rosto
pela última vez. E por que raios ele estava fazendo uma chamada para o
Tito?
— Me dá licença um minuto — Franco pediu e atendeu ao telefone. Uma
chamada de vídeo. — Fala, Sérgião!
— E aí, soldado Ryan? Tô esperando você me mandar o vídeo da música
que prometeu e nada. Tive que ligar, pois, se depender de você, teria que
aguardar deitado e dormindo.
A voz do Sérgio era inconfundível para mim. Havíamos conversado por
centenas de horas pelo telefone, quando ele dizia coisas lindas e românticas,
prometendo uma vida a dois e um futuro com um casal de filhos numa
casinha na praia, ainda que não houvesse qualquer compromisso além da
desculpa de estarmos orando para buscar a vontade de Deus. Como eu havia
me iludido e deixado meu coração e sentimentos enganosos ditarem minha
conduta, mesmo sabendo o perigo no qual eu estava entrando, numa zona de
relacionamento sem rótulo com a ausência do conhecimento dos meus pais!
Fui iludida pela ideia de que era tudo a distância, não havia nenhum tipo de
contato físico, por isso, o modo como ele agia não era perigoso, estávamos
apenas esperando a confirmação de Deus para namorar.
A amargura do arrependimento fez minha boca ficar seca. Eu não sentia
mais nada por ele, sequer havia algum interesse. Podia enxergar com clareza
meu erro e a falta de respeito com o qual Sérgio me tratou. De todos os
homens do mundo, ele era o último com quem eu me relacionaria. Porém,
ouvi-lo outra vez fez com que sentimentos confusos viessem à tona, como se
a ligação do passado ainda estivesse lá, mesmo depois de toda minha
lamentação e pedido de perdão ao Senhor.
Ah, coração! Por que eu não soube guardá-lo? Seria tão mais leve se
você tivesse se mantido fechado apenas para o cara certo!
— Ih, irmão! Esqueci mesmo! Eu tô aqui na casa dos meus pais. —
Franco mexeu o celular e eu percebi tarde demais o movimento. Ao girar a
tela para mostrar o ambiente, eu apareci. — Vou ficar a semana toda.
— Ué, tem uma garota aí com você? — Sérgio perguntou. Se ele me
reconheceu, não deu a entender. — O soldado Ryan foi abatido?
Tito riu alto e negou com a cabeça. Eu estava decidida a me levantar e
correr como uma covarde, mas ele apontou a câmera direto para mim, sendo
impossível escapar do lamentável encontro. Não soube reagir, fiquei estática
e muda como uma estátua.
— A prima do meu primo. Veio passar um tempo com a gente — Franco
disse colocando uma parte da cabeça dele na minha frente.
— Ei, Napáuria? — Sérgio falou com naturalidade, como se estivesse
revendo uma amiga antiga, e não a garota para quem ele se declarou,
defraudou e depois rejeitou. Aquilo só piorou meu estado. — Quanto tempo!
Apertei os lábios e ergui uma das mãos.
— Oi, Sérgio. — Minha voz saiu como se eu estivesse de luto, muito
embora não tivesse forçado isso.
— Ué, vocês se conhecem? — Para meu alívio, Franco voltou a tela do
celular para ele.
— Sim, uma velha amiga. Espero que você esteja bem! — Sérgio falou
num tom mais alto, como se eu estivesse longe.
Franco virou o rosto em minha direção e deve ter percebido algo, porque
ele logo desviou o assunto, se levantou, foi para a porta que dava para a
varanda e voltou a conversar com Sérgio sobre o tal vídeo que ele deveria
enviar.
Minha alegria anterior murchou aos poucos. Revivi a tristeza ao precisar
lidar outra vez com o passado. Eu deveria ter superado, afinal, o fato de
Sérgio nunca mais ter respondido minhas mensagens e ligações fora um
livramento, uma resposta de Deus às minhas orações. Principalmente quando
eu soube que ele continuava atirando para todos os lados enquanto dizia que
me amava. Mas, ainda assim, a culpa e a vergonha costumavam trazer à tona
a rejeição vivida.
Franco desligou o telefone e se voltou para mim com a expressão de
curiosidade.
— Está tudo bem?
— Está sim — tentei soar divertida, mas acho que falhei.
— Tem certeza?
O que aconteceria se eu falasse a verdade?
— De onde você conhece o Sérgio? Vocês são muito amigos?
Franco voltou a se sentar e apoiou o celular em cima da bancada da pia.
— Eu morei por um tempo na cidade dele e ele foi muito receptivo
comigo na igreja. Me ajudou financeiramente quando precisei, sempre me
convidava para almoçar. É um bom rapaz.
— Deve ser… se não tem uma garota envolvida — desabafei e me
arrependi logo em seguida.
— É, acho que ele tem um probleminha relacionado às mulheres. Eu já o
repreendi algumas vezes e tento fazê-lo enxergar a seriedade do assunto. —
Franco crispou os olhos. — Vocês tiveram algo?
— Está tão na cara assim? — Suspirei e esfreguei as mãos no rosto.
Depois, apoiei o queixo em uma das mãos e o cotovelo na bancada. — Não
namoramos e graças a Deus não houve envolvimento físico. O conheci numa
viagem e depois nossa interação foi toda virtual. Acho que posso nomear o
que tivemos como defraudação. E uma moça não sai muito bem quando
passa por uma experiência dessas.
— Sinto muito. Era sobre ele que você estava falando ontem? É recente?
— É. — Ergui meu corpo para tentar encerrar o assunto. — Mas ficou no
passado. Acho que aprendi minha lição. Não vou deixar um cara me enrolar
outra vez. Quando chegar a hora, ele vai ter que ser muito claro sobre as
intenções dele, e não só com palavras. Serei bem mais cuidadosa.
Franco abriu um sorriso e ficamos em silêncio por um tempo. Então ele
mudou a postura e relaxou os ombros. Por que eu não tinha reparado ainda
como ele era bonito de perfil? O nariz grande até combinava com o rosto e o
cavanhaque.
— Entendo o que você diz. As emoções são um lugar muito instável para
se brincar, sem ter certeza do que quer. Quando chegar a minha vez, eu não
vou pedir a escolhida em namoro, mas em casamento. Quero deixar claro a
ela minhas intenções, pois pretendo me relacionar apenas com a mulher a
quem desejo que caminhe junto comigo na missão de formar uma família.
Que Deus me dê graça para manter meu propósito e acertar nisso.
— Amém!
Eu sorri ao pensar no quanto seria sortuda a felizarda.

— Napáuria!
Abri os olhos com relutância e encontrei Ana parada em frente à minha
cama. Ainda desnorteada pelo sono, encarei a menina e murmurei alguma
coisa.
— Tito pediu para eu acordar você. Vem, não demora, ele está esperando
na cozinha.
Assim que ela me deixou, sentei-me na cama e esfreguei os olhos. Peguei
o celular na mesinha ao lado e precisei olhar duas vezes para ter certeza das
horas. Eram 5h30 da manhã. O que Franco queria comigo tão cedo?
Com as pernas pesadas, me levantei. Em frente ao espelho, conferi se
minha calça de moletom e blusa larga me deixavam ao menos apresentável e
prendi os cachos rebeldes. Passando as mãos no cabelo para tentar abaixar o
frizz, desci as escadas a caminho da cozinha, de onde vinha som de
cochichos. Avistei Ana, Leo e Franco, todos animados, como se não fosse
madrugada.
— O que aconteceu? — perguntei depois de bocejar.
— Vamos caminhar. Ana quis ir junto, pensei que talvez você também
desejasse se unir à gente — Franco me entregou uma caneca cheia de café.
— Vamos pegar um caminho aqui perto, uma estrada com muito verde ao
redor.
— Vamos, Napáuria! Vai ser divertido!
Caminhar era, de longe, minha atividade física preferida. Avaliei a
empolgação dos meus companheiros, todos com roupas leves e tênis no pé.
Bebi um gole do líquido quente para despertar enquanto pensava no assunto.
Não seria nada mal me exercitar um pouco. E eu estava gostando muito da
companhia de Franco, não dava para negar. As conversas com ele eram
sempre interessantes e há tempos não me sentia tão bem perto de um amigo.
— O que é preciso para a aventura? — Me rendi à ideia.
— Uma roupa e sapatos confortáveis. Só isso. Estou providenciando a
água — Franco respondeu.
Tomei o resto do café junto com a torrada que me foi oferecida. Depois,
voltei para o quarto, troquei minha roupa e ajeitei melhor meu cabelo. Em
alguns minutos estava me unindo à turma e partimos rumo à nossa trilha.
Seguimos pelas ruas quase desertas da cidade, com um ou outro
trabalhador indo para a labuta diária. Ana estava muito animada e falava
comigo sem parar, enquanto Leo e Franco conversavam sobre futebol.
Depois de quinze minutos, nós entramos numa via que terminava numa rua
de terra. A princípio, havia alguns sítios ao lado, mas, com o tempo, a
estrada era ladeada apenas de árvores.
— Que lugar lindo! — declarei após constatar que o esforço estava
valendo a pena.
— Espere mais um pouco porque vamos parar para descansar em um
lugar sensacional — Franco declarou.
Fiquei esperando o tal lugar chegar. Na próxima curva, talvez. Quem sabe
logo ali na frente? Então desviamos do caminho principal e pensei estar
próxima do nosso destino, porém, após subir um largo trecho bastante
inclinado, indo para o lado da mata, comecei a desconfiar de que ainda
estávamos longe.
— Falta muito? — perguntei para Franco após observar que Ana estava
calada, talvez poupando esforços ao falar. Eu mesma já estava ofegante,
cansada, com os pés doendo e pensando em todo o caminho de volta.
— Para o nosso lugar de descanso? Não, estamos próximos.
Assenti e continuei concentrada no chão cheio de pedras e buracos. Ana
pediu uma pausa para tomar água, mas o irmão a incentivou a continuar
porque o nosso ponto de descanso era logo ali. E, de fato, após uma curva,
um riacho com água transparente corria em meio a pedras, formando uma
espécie de cachoeira. Havia um espaço limpo perto da margem e nós nos
sentamos ali. Minhas pernas agradeceram pela pausa e o corpo ficou
satisfeito com a hidratação fornecida pela água. Tito se sentou ao meu lado e
me ofereceu uma maçã. Depois, tirou ovos cozidos e colocou no meio da
nossa roda, incentivando-nos a comer para repor as energias. Aceitei e, com
calma, apreciei a vista enquanto descascava o alimento para comê-lo ao ar
livre.
A conversa fluiu e Franco passou a relatar alguns casos que ocorreram
com ele quando prestou serviço militar. Era nítido o quanto ele amava o
assunto. Os olhos brilhavam e a expressão se abria enquanto relatava.
— Uma vez estávamos fazendo uma inspeção, algo que acontece de
tempos em tempos no quartel. Éramos divididos em grupos. Naquela
ocasião, o assunto era primeiros socorros. Houve uma simulação de um
acidente e a vítima foi ferida na cabeça. O sargento perguntou ao rapaz do
meu lado qual procedimento deveria ser feito. Ele não sabia responder, então
eu dei a dica em voz baixa: “um torniquete[10] no pescoço”. — Franco soltou
uma gargalhada.
— Um torniquete no pescoço? — indaguei abismada com a ideia absurda.
— Vocês queriam salvar a vida do ferido ou matá-lo mais rápido?
— Mas você não sabe o pior! O rapaz acreditou que eu estava falando
sério e repetiu em voz alta. O sargento ficou uma fera. — Ele tomou ar para
controlar o riso. — E eu fiquei de castigo porque não aguentei e gargalhei
muito.
O grupo todo se contorceu de tanto rir. Leo achou a atitude do primo
genial.
— Bons tempos aquele — Franco disse. — Nunca me esquecerei da
expressão do sargento.
— Qual foi o castigo? — Ana quis saber.
— Fiquei duas horas extras limpando a cozinha. Mas depois dessa aprendi
minha lição. — Ele piscou para mim.
Ana avistou uma árvore a alguns metros e perguntou se eram goiabas
penduradas nos galhos. Franco assentiu e atraído pelas frutas, ele e Leo
foram catar algumas no pé. Não sei como, mas o diálogo entre mim e a
menina acabou entrando num assunto que eu não esperava.
— Tem várias meninas da igreja que são loucas com meu irmão — Ana
disse, referindo-se ao sucesso de Tito entre as mulheres. — Já ouvi minha
mãe comentar sobre a paixão de anos da Letícia. Tem também a Gabriela e a
Maria. Eu suspeito que a Michele também gosta dele.
Sem querer meus olhos foram atraídos para o homem pendurado no galho
da goiabeira. Ele não era o tipo popular, como Dylan de Orei por você, um
dos meus livros preferidos. Tá, ele até tinha um certo charme, como havia
reparado no dia anterior, mas não era nenhum tipo modelo ou conquistador,
algo assim. Era atencioso, sim, isso é verdade. Porém, nada demais. Talvez
fosse exatamente a postura de seriedade que atraísse as meninas. Quem sabe,
talvez, a falta de rapazes solteiros na igreja?
— E ele não tem interesse em nenhuma garota? — perguntei sem entender
de onde vinha meu interesse no assunto.
— Não sei. — Ana deu de ombros. — Acho que não. Ele estava de
conversa com uma moça há um tempo, mas não deu em nada.
Uma moça? Quem seria? Será que eu havia conhecido? Mas por que eu
estava pensando nisso?
— Ele é um cara difícil, então — concluí e Ana riu.
— É um irmão chato e exigente, isso sim
— Como bons irmãos mais velhos costumam ser.
Os rapazes retornaram com as camisas cheias de goiabas. Mas, para a
minha infelicidade, estavam todas recheadas de bichos. Não que eles se
importassem. Franco e Leo comeram, garantindo que bicho de goiaba,
goiaba é, e que era pura proteína.
Eca!
— Acho melhor partirmos, há um bom caminho pela frente. — Franco se
levantou e estendeu a mão para mim, me ajudando a levantar.
— Espera! Bom caminho? A gente vai andar muito ainda?
— Passamos um pouco mais da metade — ele falou com naturalidade.
— Metade? — Me afastei e arregalei os olhos. — Como assim, um pouco
mais da metade? Quanto é? Qual a distância?
— São 12 quilômetros de casa até o ponto final. De lá pegaremos um
ônibus para voltar.
Minha boca se abriu. Eu ia falar de imediato, mas precisei de um tempo
para processar a informação.
— 12 quilômetros! 12 quilômetros? — Coloquei as duas mãos na cabeça.
— Você está louco? Como me chama para uma caminhada de 12
quilômetros sem me avisar antes? É preciso preparo físico para fazer uma
atividade assim! No mínimo um preparo emocional. Não sei se reparou, mas
eu não sou uma atleta!
Franco me encarou sem saber o que responder. Leo já estava rindo e Ana
um pouco assustada.
— Não é tão ruim assim. Você tem se saído bem. Logo vamos chegar e...
— Melhor voltarmos!
— Não sei se você entendeu, mas passamos da metade, — Leo achou
graça do meu drama. — Voltar se torna um caminho mais longo do que se
continuarmos.
— Ai, estou perdida! Meus pés doem, estou cansada e com fome. Ovos
cozidos, maçã e goiabas bichadas não são o tipo de alimento que uma
sedentária como eu precisa diante de tanto esforço! E estamos aqui nesse
caminho que não chega nenhum carro! Quem vai me resgatar se eu não
conseguir mais andar?
Franco deu um passo à frente, me deu as costas e ergueu as mãos em cima
dos ombros.
— Vem, eu te carrego!
Olhei para ele parado naquela posição pronto para me pegar nas costas.
Depois para Ana que continuava assustada e para Leo, um pouco curioso em
como a trama ia se desenrolar.
— Você está zoando comigo — falei.
— Claro que não! — ele garantiu. — Já fiz esforço pior do que levar uma
dama cansada nas costas.
Vendo a seriedade com que ele ofereceu a ajuda — ainda que fosse
ridícula a proposta —, me acalmei, catei alguns dos nossos pertences e
comecei a caminhar em direção à estrada. Logo os três me seguiram, mas
Franco passou a andar ao meu lado, enquanto Leo e Ana iam à frente,
conversando sobre a série preferida deles. Aos poucos a tensão passou e
comecei a pensar positivo. Se conseguisse chegar ao destino, teria uma
história e tanto para contar. Não é qualquer um que faz uma caminhada de
12 quilômetros numa espécie de estrada estreita e malconservada.
— Desculpa, não pensei em explicar nosso trajeto.
— Ah, tudo bem. Agora já estamos aqui, melhor aproveitar o passeio.
Bom que me ajuda a perder uns quilos, estou muito fora de forma.
— Você parece ótima para mim — ele falou com sinceridade.
Sem saber como responder ao elogio, apenas sorri.
Talvez a consciência de Franco tenha ficado pesada, pois, a partir de
então, ele não saiu do meu lado. Puxava conversa, falava sobre o ambiente e
até me contou sobre o sonho antigo de fazer parte do Batalhão de Infantaria
de Selva.
— Eu aprendi muito sobre sobrevivência, principalmente no mato. Por
isso gosto tanto de caminhar ao ar livre, rodeado da natureza. Sempre amei
acampar, viver com o pouco. Se eu pudesse, teria minha vida toda dentro de
uma mochila.
— Eu nunca acampei, acredita? É meu sonho! Mas não precisa ser tão
radical, aceito alguns confortos da vida moderna.
— Sério? Precisamos resolver isso. Se me der uma chance, posso tentar
organizar algo do tipo. Eu ia gostar de te fazer companhia. Podemos juntar
uma turma, tem um lugar muito bacana aqui perto, ótimo para quem nunca
acampou.
Ele estava interessado em acampar comigo? Mesmo depois da minha
demonstração como uma garota mimada incapaz de encarar uma caminhada
longa no meio do mato? Eu deveria ficar impressionada?
— Se é um convite, eu aceito. Já estou empolgada!
— Prometo não colocar nenhuma caminhada longa na agenda — ele
brincou.
— Agradeço!
Após um momento de silêncio, ele me olhou com um sorrisinho
brincalhão. Depois, focou num ponto à frente.
— Você gosta de ler, então? Falou várias vezes sobre algum livro ou
personagem super precioso aos seus olhos.
— Sim, eu gosto muito de ler. E sim, tenho vários personagens que me
inspiram. Você deveria experimentar ler antes de zombar deles. —
Aproveitei a nossa proximidade para esbarrar meu ombro no dele. — Talvez
se surpreenda.
— Então me conte algo sobre eles.
— Sobre os livros? Ou sobre os personagens?
— Sobre o que você quiser. Sou todo ouvidos. — Ao perceber meu olhar,
ergueu as duas mãos. — O que? É um interesse sincero. Quero conhecer
você melhor.
Me conhecer melhor? O que ele queria dizer com isso?
Pare, Napáuria! Não deixe sua mente vagar para lugares perigosos! Não
seja uma jovem emocionada que vê romance em tudo. Ele só quer ser seu
amigo, como você quer ser amiga dele. Nem tudo é sobre questões do
coração. Isso! Somos irmãos em Cristo e nada mais.
— Bem, prepare-se! Você entrou em terreno perigoso, agora precisará me
ouvir falar sem parar.
— Não será um esforço — respondeu e alguma coisa no olhar dele
parecia dizer mais do que as palavras.
Irmãos em Cristo, Napáuria! Irmãos em Cristo!

Fazia meia hora que eu estava deitada na cama mirando o teto. As mãos
cruzadas em cima da barriga, os pés já calçados quase tocando o chão. Malas
fechadas, cobertas dobradas. Tudo pronto para partir. A ansiedade me fez
despertar bem antes da hora e fiquei a refletir sobre os últimos dias.
Quanta coisa poderia acontecer em um espaço de tempo de uma semana!
Quantas respostas podemos encontrar quando Deus dirige nossa vida! Havia
chegado na casa da tia Lídia cheia de dúvidas e anseios e estava prestes a ir
embora convicta e decidida sobre os próximos passos. Seguiria o plano e
faria minha matrícula na escola de Missões. A cada minuto de conversa com
Franco sobre o assunto, mais eu ansiava por viver experiências parecidas
com a dele. Eu pretendia gastar meu tempo de solteira para conhecer mais ao
Senhor e me dedicar à obra Dele.
Virei meu corpo de lado e apoiei a cabeça em cima do meu braço. Meus
olhos foram atraídos pelo pequeno porta-retrato com a foto da família e meu
coração transbordou. Como se tornaram especiais para mim! Como os dias
hospedada naquela casa me fizeram bem! Eu não esperava ser recebida com
tanto amor e criar vínculos familiares com os parentes do meu primo. Mas
ali estava eu, triste porque a distância entre nossas casas nos separava por
algumas horas de viagem, até mesmo de Franco, que morava um pouco mais
perto.
Conferi o horário no celular e constatei que já estava na hora. Juntei todos
os meus pertences em um canto antes de sair do quarto. Desci as escadas e o
cheiro do café me convidou a ir até a cozinha. Ao entrar lá, encontrei apenas
tia Lídia coando o café e Franco sentado à mesa com uma Bíblia aberta nas
mãos. Foi ele quem notou minha presença primeiro. Ergueu a cabeça e
sorriu. Por um instante enxerguei um traço de afeição atravessar seu olhar e
isso me desestabilizou, mas por pouco tempo, pois logo voltei à razão.
— Bom dia — anunciei minha chegada para tia Lídia.
— Bom dia, minha querida. Sente-se, já vou servir a mesa.
Obedeci a ordem e puxei a cadeira de frente para Franco. Ele voltou a sua
atenção para um trecho das Escrituras e de repente passou a ler um versículo
em voz alta.
— “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e
desesperadamente corrupto; quem o conhecerá?”. — Ele fez uma pausa e me
encarou com o semblante divertido. — Acredita nisso? Que o coração é
enganoso?
— Claro, ué. Está na Bíblia, como poderia negar?
Satisfeito com minha resposta, voltou a ler. Fiquei pensativa, tentando
entender de onde havia saído aquela conversa estranha, que terminou como
acabou, sem nenhuma explicação.
Tia Lídia colocava a mesa quando o marido entrou. Com gentileza, deixou
um beijo no rosto da esposa, se sentou à mesa e puxou conversa comigo
sobre a minha família. Pouco depois, Leo apareceu com a cara amassada de
quem acordou a poucos minutos e mal tinha penteado os cabelos. Franco,
por fim, fechou a Bíblia e a deixou de lado, servindo-se de café.
— Vou levar vocês para a rodoviária — informou. — E de lá já vou pegar
meu caminho também.
— A casa vai ficar tão vazia e silenciosa — tia Lídia murmurou
lamentosa. — Além disso, Ana vai sentir falta de vocês.
— Aquela irmã desnaturada! Preferiu ficar dormindo a vir se despedir! —
Franco fez uma careta e misturou o açúcar no café.
— Ela é só uma adolescente, Tito. Deixe de implicância. Ainda é cedo, ela
vai descer antes de vocês partirem. Me fez prometer que eu a acordaria, mas
não é para abraçar você não — a mulher disse e terminou me encarando.
— Para você ver, mãe. Napáuria mal chegou e já está conquistando
corações. — Franco cruzou os braços em frente ao corpo e me desafiou com
o olhar.
Sem saber como reagir e sentindo ter liberdade entre a família, dei de
ombros.
— É meu charme natural. O que eu posso fazer?
— Convencida — Leo declarou e soltou uma risada.
Mais tarde, como dito, Ana apareceu bocejando. Ainda vestia o pijama
rosa. A despedida foi regada de palavras carinhosas e votos de felicidade.
Recebi mais de uma vez o convite para retornar em qualquer momento e um
pedido para estarmos presente no próximo Projeto.
Sentei-me no banco do passageiro na parte de trás do automóvel e Leo foi
ao lado do primo motorista, tagarelando sem parar sobre pesca, algo que os
dois gostavam muito. Chegamos na rodoviária e ainda faltavam alguns
minutos para o embarque. Leo quis ir ao banheiro, deixando-me a sós com
Franco.
— Sabe, tenho uma pergunta a fazer — falei e curioso ele me encarou. —
Por que algumas pessoas te chamam de Tito e outras de Franco? Quero
dizer, sei que são seu nome e sobrenome, mas deve ter uma explicação para
sua dupla nomeação.
— Tem sim. — Ele sorriu e colocou uma das mãos no bolso da calça
jeans. — Franco acabou virando uma espécie de apelido porque era o nome
que eu usava quando servi. Todos me conheciam por Franco no quartel e
depois disso o nome pegou. Mas minha família ainda me chama de Tito,
como sempre foi.
— E como você prefere que eu te chame?
Os lábios dele se curvaram ligeiramente. Ele ergueu as sobrancelhas e
fixou o olhar dentro do meu, mudou o peso do corpo de uma perna para a
outra e alargou o sorriso.
— Como você preferir. Tito costuma ser um nome mais usado pelos
íntimos, mas não me sentirei ofendido se você passar a me chamar assim.
— Tito, então.
Leo retornou e chegou a hora da despedida. Ele abraçou o primo primeiro
e deu espaço para eu fazer o mesmo. De uma forma amigável, eu e Tito nos
abraçamos pela primeira vez.
— Gostei muito de conhecer você — ele falou baixinho enquanto ainda
estávamos próximos. — Espero poder manter contato.
— Você tem meu número de celular — respondi e me despedi pela última
vez.
Entrei no ônibus e me sentei no lugar indicado na passagem. A sensação
do quanto eu gostava de Tito me invadiu e o sorriso involuntário brincou no
meu rosto.
Ele era um bom amigo. Um homem diferente de todos que eu havia
conhecido. Era como os mocinhos cristãos literários que eu pensava serem
apenas frutos da imaginação das autoras. Um exemplo e um sinal de que eu
não deveria perder as esperanças.
Bem que eu gostaria de encontrar um rapaz como ele quando chegar
minha hora!

Meu celular apitou pela manhã. Era uma mensagem de Tito. Imaginei que
ele estivesse dando um “bom dia”, como vinha fazendo nos últimos dias.
Abri o aplicativo de mensagens já com um sorriso estampado nos lábios.
Tito: “Viu o vídeo que te mandei”
Eu: “Não, onde você mandou?”
Tito: “Não?”
Eu: “Brincadeira, vi sim!”
Tito: “Aff, não suporto essa joça. Vou te ligar.”
Meu sorriso se alargou e aguardei o celular dar um toque para atender o
telefone. Minha mãe, lendo do outro lado da varanda, ergueu o olhar quando
ouviu minha voz dizer “alô”.
— Tenho cinco minutos para falar. Viu como está puxado o trabalho hoje?
Passei a manhã toda em cima de um telhado com o sol assando minha pele
— Tito disse do outro lado da linha.
— Coitadinho — brinquei.
— E tem gente achando que ser um missionário local é fácil. — Ele riu.
— Mas não foi para isso que te liguei. Tenho algo importante para falar.
Fiz silêncio ao perceber como ele estava sério ao dizer a última frase.
— Está me ouvindo, Napáuria?
— Claro!
Ele esperou alguns segundos, só para me deixar ansiosa.
— Um avião cai entre a fronteira do México e Estados Unidos. Onde se
enterra os sobreviventes? — perguntou com tom preocupante.
— Quê? — indaguei confusa.
— Diga logo! Meu tempo está acabando!
— Eu não sei!
— E desde quando a gente enterra sobreviventes? — Ele soltou uma
gargalhada. — Ligo para você mais tarde. Tenha um bom dia!
— Tito! Você tem sorte de eu ser uma boa amiga, porque se não, sequer o
atenderia...
— Até mais!
E desligou a chamada. Comecei a rir da situação. Era sério que ele tinha
me ligado só para me contar uma piada? Mandei uma figurinha por
mensagem e balancei a cabeça achando graça do que tinha acontecido.
Quando levantei o olhar, mamãe me analisava com aquela expressão de
repreensão materna, mas cheia de compaixão.
— Era o Tito — falei sem saber como reagir à forma como ela me
estudava.
— Deu para perceber — respondeu e abaixou a cabeça, focando no livro
que tinha nas mãos.
A pausa seguida do levantar de uma sobrancelha significava que um
sermão estava sendo elaborado, com todo toque de uma bela lição de moral,
coisa própria das mães.
— Minha filha — começou com calma e me encarou —, será que você
não está fazendo o Tito pensar que quer ser apenas a amiga dele?
Arregalei os olhos e entrei na defensiva.
— Mas é o que nós somos! — declarei com ênfase. — Apenas amigos.
— Sei. — Pela expressão ela deixou claro que não acreditava na minha
sentença. — Um amigo que liga, rigorosamente, todos os dias? E manda
muitas mensagens e passa horas conversando?
— E o que tem demais? — Cruzei os braços e respirei fundo.
— Na minha época, chamávamos isso de um rapaz cortejando uma garota.
— Mãe!
— Minha querida, desejo sua felicidade. Ele é um bom rapaz e pelo que
ouvi sobre ele nos últimos dias, ficaria muito contente em tê-lo como genro.
— Mãe! — protestei e levantei as duas mãos. — Você está imaginando
coisas.
Ela moveu a cabeça em negativa.
— Filha, ouça sua mãe. Ele está muito interessado em você, ou não
inventaria desculpas para te ligar sempre. Acredite em mim, sou uma mulher
vivida, sei quando as coisas estão adiantadas entre dois supostos “amigos”.
Ela voltou a encarar o livro e eu passei a refletir no que ela dizia. Será que
existia a possibilidade de Tito me olhar com outros olhos?
— Só cuide para não dar a entender que você não tem interesse, caso
esteja interessada. — Ela se voltou a mim outra vez. — Você está?
Considerei a pergunta e fiz uma breve inspeção de meus sentimentos.
Não, eu não estava apaixonada. O que sentia por Tito era bem diferente do
que um dia havia sentido por Sérgio, por exemplo. Interagir com Franco me
fazia bem, era verdade. Eu amava conversar com ele e meu coração se
enchia de alegria ao ouvir a voz dele. Mas não, não era aquela obsessão,
aquela emoção dependente, a paixão. Eu só gostava dele e não tinha
considerado a ideia de que pudesse haver algo além de amizade entre nós.
— Não sei... Quero dizer, seria louca se dissesse que não pensei no quanto
será sortuda a mulher a quem ele escolher para casar. Acho que isso é
interesse, não é?
— E por que essa mulher não pode ser você?
— Porque eu sou muito nova, sei lá. — Ergui meu ombro esquerdo
analisando boas desculpas para dar. — Você sabe do meu propósito de me
casar em no máximo um ano. Eu estou me formando no Ensino Médio!
— E daí? Conheço várias mulheres que se casaram com sua idade e tem
casamentos sólidos há anos. Pode ser difícil por causa de sua mocidade?
Talvez. Mas você sabe tanto quanto eu que sua idade atual não seria um
impedimento. Tito também é um rapaz maduro, um homem. Ele saberia lidar
com você. Além do mais, ainda teria um ano para se preparar melhor.
Desarmada com a postura cheia de incentivo de minha mãe, procurei uma
razão mais precisa, entretanto, nada vinha à minha mente, exceto o quanto
Tito era um homem maduro e incrível demais para eu ousar conceber ser
escolhida por ele.
— Ele é muita areia para meu caminhãozinho — declarei, por fim, sem
pensar uma maneira melhor para expressar meus sentimentos.
Mamãe gargalhou ao me ouvir usar a gíria que aprendi com ela.
— Napáuria! Olhe para você! É jovem, sim, mas é uma mulher, não mais
uma menina. Uma linda mulher, cheia de atributos. E o principal, tem
buscado ser uma mulher piedosa. Tito seria bobo se não observasse isso em
você.
Suspirei. Ergui meus joelhos e repousei a cabeça ali, começando a pensar
na possibilidade de ela estar certa.
— Mãe, você está colocando minhocas na minha cabeça. Não quero me
envolver emocionalmente com um rapaz outra vez, a não ser que seja algo
concreto.
— Talvez seja esse o motivo de ele ainda não dizer nada. Está esperando
ter a certeza do que quer para te oferecer a segurança de um compromisso.
Meus pensamentos começaram a viajar para lugares dos quais eu não
gostaria que eles visitassem. Mas lá estava eu, tentando imaginar qual seria
minha resposta se ele me dissesse algo. Então nossas conversas foram
clareando minha mente. Tínhamos tanto em comum, me refiro às coisas
mais importantes, como a cosmovisão em relação a relacionamento,
casamento, filhos, família, teologia, missões... Quanto mais analisava, mais
desesperada ficava, com medo de agir de maneira imprudente de novo.
— O que eu faço agora, mãe? — perguntei e joguei meu corpo para trás.
— Primeiro, ore a respeito disso. Deus pode direcionar você e suas
emoções. Segundo, pare de usar a palavra “amiga” com ele e responda o
interesse. Quando encontrar uma brecha, deixe-o entender que você está
aberta a algo. Por favor, não o mantenha naquele negócio... — Ela estalou
um dos dedos e franziu a testa. — Como é mesmo o nome? Que você me
disse outro dia? Zone... Zione...
— Friendzone, mãe.
— Isso! Não o coloque de molho nesse lugar aí.
Friendzone. Será que eu estava mesmo mantendo ele lá com medo de me
apaixonar e sofrer de novo? De repente, uma vontade absurda de orar me fez
levantar.
— Acho que vou para o meu quarto. Preciso pensar nisso, orar e me
acalmar. Segunda começam as últimas provas, minha formatura está
chegando. Não é hora de me perder em um romance.
Minha mãe assentiu e voltou a ler, deixando-me livre para partir. Subi as
escadas com o coração um pouco acelerado. Quando fechei a porta do quarto
e me deitei na cama pronta para orar, pensei que talvez fosse tarde demais
para não pensar em romance.

Quando vi o nome “Tito Fox” no visor do telefone, segurei o ar por um


minuto. A tarde tinha sido longa. Tentava me concentrar nos estudos, já que
queria terminar o Ensino Médio com boas notas e as provas finais valiam
bastante, porém, minha cabeça só queria refletir sobre a conversa com minha
mãe mais cedo.
Tive medo de não conseguir ser a mesma com ele, ou de afastá-lo sem
querer, mas me apavorava ainda mais a possibilidade de mantê-lo na zona
morna da amizade.
Puxei o ar e atendi, forçando a voz para soar natural e não nervosa.
— Alô?
— Então, está animada para sua formatura? Está chegando, não está?
Ouvir a voz dele trouxe paz ao meu coração. Eu não precisava me
preocupar, tudo se resolveria.
— E você? Vai vir?
— Talvez — ele respondeu. — Só se você prometer dançar comigo.
— Dançar o que? — perguntei já suspeitando da proposta.
— Será que tocam forró em festas assim?
— Nem nos seus sonhos! Esquece, melhor você ficar aí.
Lembrei da friendzone e me desesperei. Como demonstrar? Minha mãe
deveria ter me dado umas dicas mais práticas.
Pensa rápido, Napáuria!
— A verdade é que vou ficar muito feliz com sua presença — arrisquei,
sendo sincera.
Consegui ouvir a respiração dele do outro lado da linha.
— Bom saber disso. Tenho orado sobre minha ida, espero que dê tudo
certo.
— Eu também.
E então nossa conversa mudou de rumo. Contei a ele sobre os papéis da
inscrição da escola de Missões que já estavam comigo, mas que eu só iria
preencher após a formatura. Também o atualizei a respeito da minha decisão
de tirar férias do trabalho no abrigo, para poder me dedicar aos estudos. Ele
me contou dos trabalhos recentes na igreja e assim passamos mais de uma
hora conversando sem ver o tempo passar.

— Não acredito que terminei o Ensino Médio! — desabafei para Leo ao


meu lado.
Descer a rampa de acesso às salas superiores do prédio da escola pela
última vez me trouxe uma mistura de alívio e apreensão. Eu fechava um
ciclo para começar outro. O ambiente escolar vinha exercendo um papel
importante no meu cotidiano há anos e eu sempre soube que ele estaria ali,
até o dia em que deixaria de ser parte da minha obrigação diária para dar
espaço para um novo tempo. Faculdade? Missões? Casamento?
Sim, casamento passou a ser uma ideia a me atormentar, mesmo que eu
tivesse tentado evitá-la. Desde quando mamãe supôs sobre o interesse de
Franco, eu passei a sondar meu próprio coração e me dei conta de que não
teria dificuldade em aceitar uma proposta matrimonial se ela viesse, ainda
que me considerasse jovem demais — e a possibilidade um tanto absurda.
Leo fez algum comentário engraçado sobre nossa recém adquirida
liberdade antes de mencionar que a festa de formatura seria no dia seguinte.
E por algum motivo, pensar em Tito presente fez minha mente se desviar
para lembranças de nossas recentes conversas. Então, quando atravessamos
o portão da escola de acesso à rua, ponderei se meus pensamentos estavam
me enlouquecendo ou era o próprio Franco quem estava com os braços
cruzados, apoiado em um carro sorrindo para nós.
— Olha quem deu as caras! — Leo adiantou os passos para cumprimentar
o primo com toque de mãos e soquinhos. — Pensei que chegaria só amanhã.
— Consegui me adiantar — Tito falou e se virou para mim, que já estava
na frente dele. — Como vai, Napáuria?
Ele se aproximou e me abraçou. Era nosso segundo abraço e dessa vez eu
me perguntava internamente se o gesto significava algo a mais. Pensei que
ficaria muito constrangida, mas minha felicidade por estar com ele sobrepôs
qualquer outra emoção.
— Por que não contou que viria hoje? — perguntei e levei a mão até a
alça da mochila.
— Quis fazer uma surpresa. Aliás — ele deu um passo para o lado e
apontou para o carro —, vim te dar uma carona. Se importa se eu te levar em
casa?
— E deixar de fazer o trajeto a pé em pleno sol do meio-dia? Claro que
não me importo!
Leo assumiu o lugar do passageiro e eu me sentei no banco de trás do
automóvel. Minha casa não era longe, durante o curto trajeto ele conseguiu
contar apenas que havia chegado na cidade e ido direito para a porta da
escola, aguardando por cerca de meia hora até a gente aparecer. Ao
estacionar em frente ao meu destino, comecei a ficar nervosa. Porém sabia
que não deveria perder a oportunidade, por isso me enchi de coragem
quando Tito se virou para me encarar.
— Você quer entrar? Minha mãe gostaria muito de encontrar você — falei
evitando olhar para Leo, que parecia alheio ao quanto a amizade entre os
primos dele havia evoluído.
— Se o Leo não se importar.
Meu primo abriu a porta, deixando claro que não se importava.
Atravessamos o portão e fomos recebidos pelos latidos e pulos dos meus
dois cachorros. Franco parou para afagar a cabeça deles e eu entrei para
avisar a mamãe sobre as visitas imprevistas.
— Mãe! — gritei. — Cheguei e trouxe o Leo e o Tito comigo.
Minha mãe reteve logo a expressão de surpresa por ver Tito entrar pela
nossa porta. Após receber Leo, ela estendeu a mão em direção ao rapaz.
— Como é bom vê-lo — ela disse com um sorriso sincero. — A última
vez que nos encontramos você era um menino baixinho ainda.
Franco riu e depois respondeu às perguntas de minha mãe sobre a família
dele. Aproveitei a deixa para guardar minha mochila e tirar o uniforme
escolar. Àquela altura eu não queria parecer uma garotinha do Ensino
Médio. Coloquei um vestido, arrumei meus cachos e retornei para sala a
tempo de ouvir mamãe fazer um convite.
— Acho que acertei no menu hoje. Estou fazendo lasanha, minha
especialidade. Vocês ficam para o almoço?
— Eu não posso, tia — Leo respondeu. — Combinei com meus colegas
de jogar bola hoje. Nosso jeito de comemorar o fim da prisão escolar.
Reparei o olhar de Franco se voltar até mim, mas não ficou ali tempo o
suficiente para notar minha ansiedade para ouvir a resposta dele.
— Se Leo não achar ruim, eu aceito o convite. Eu não comuniquei a
minha tia que viria para o almoço, então acredito que ela não ficará
chateada.
Ficou resolvido que Franco daria uma carona para Leo e retornaria.
Quando eles partiram, mamãe passou a falar sem parar das primeiras
impressões dela enquanto preparávamos a comida.
— Ele é muito bonito, sim. Não sei de onde tirou que não é.
— Eu nunca disse que ele é feio, mãe. Só que não é aquele rapaz galã. Ele
é comum. Uma beleza simples e comum. — Dei de ombros, embora tivesse
achado ele muito bonito naquela manhã.
— E é educado. Atencioso também. Se ofereceu para levar o Leo. — Ela
mexeu o molho bolonhesa na panela. — Teremos tempo de conversar.
Duvido que ele parta logo após o almoço.
— Mãe! — repreendi, mas com um belo sorriso no rosto.
Ela experimentou um pouco do molho e aprovou o gosto. Abaixou o fogo
e se virou para mim.
— Tenho orado a Deus desde que vocês nasceram, pedindo ao Senhor
para preparar homens abençoados para vocês. Sua irmã foi agraciada com
um ótimo marido. E agora eu confio que Deus intervirá. Se for Tito o
escolhido, Ele fará acontecer de maneira natural.
— Eu sei — respondi, sentindo-me abraçada pelo discurso dela. —
Também tenho orado, mãe. Aliás, você sabe que eu oro pelo meu futuro
marido há muito tempo, mesmo não sabendo o nome ou conhecendo o rosto
dele. E peço a Deus para me dar sabedoria e trabalhar em meu coração para
tomar a decisão correta. Não quero cair em outra enrascada.
— Então vamos esperar para ver como o Senhor agirá em resposta às
nossas orações.
Não demorou para Tito voltar. Ele ficou na cozinha conversando com
minha mãe enquanto ela terminava de preparar o almoço. Quando a lasanha
foi para o forno, ela sugeriu mostrar a ele o álbum de fotografia da minha
infância, com a desculpa de que havia ali uma foto na qual, possivelmente,
ele estava presente. Mas a real intenção era me expor e apresentar um pouco
mais da minha história.
Por que será que as mães gostam tanto de fazer isso?
— Ah, aqui está! Foi o aniversário do Leo de 2 anos. Me lembro que
todos da família vieram. — Mamãe apontou para uma foto onde várias
crianças posavam ao redor de uma mesa. — Napáuria era uma bebê ainda,
tinha recém completado o segundo ano de vida. — Indicou com o dedo ela
me segurando no colo.
— Esse é você, Tito? — perguntei analisando o rosto de um garotinho
com seus 8 anos de idade. O olhar estava nos docinhos dispostos na mesa. —
O que havia de tão interessante nesses brigadeiros?
— Ora, são brigadeiros, por si só já são interessantes. — Ele riu. — Mas
acho que era algo relacionado a formigas. Se me lembro bem, havia algumas
delas passeando pela mesa.
— Foi a última vez que vocês dois se encontraram antes da viagem da
Napáuria — mamãe disse com um tom de insinuação que me fez querer dar
um beliscão nela.
Encontrei o olhar de Tito. Tentada a me desviar movida pelo efeito do
constrangimento, me mantive firme, e fiz uma leitura da expressão dele. Ele
não parecia incomodado, tampouco envergonhado. Estava gostando daquela
interação.
— Ah! Seu pai e sua irmã devem estar chegando. Vou terminar de
preparar o arroz. — Minha mãe se levantou e me entregou o álbum de fotos.
— Vocês dois fiquem aí conversando.
Sem o mínimo de discrição, ela saiu para a cozinha. Passei mais uma
página.
— Essa é você? — perguntou, se referindo a uma garotinha vestida de
Branca de Neve. Eu confirmei. — Tão lindinha! Você não tinha cachos?
— Não, na infância era isso daí, meio liso, meio ondulado, sem definição.
Mas acho que mamãe não sabia cuidar como pede um cabelo como o meu.
Eu já era adolescente quando eles tomaram forma.
— Tem alguma foto para eu ver?
— Tem sim — afirmei e fui atrás de outra pasta com fotografias mais
recentes. Voltei a me sentar e a abri. — Só não vale rir da minha terrível
aparência. Eu não sabia me vestir e era ainda mais gorda.
— O que? — Tito me encarou com um pouco de surpresa. — Concordo
que você não tem o corpo padrão dessas mulheres magrelas, mas também
está longe de ser gorda como diz. Sério, você é linda, Napáuria.
Prendi a respiração sem saber como responder ao elogio tão direto. Eu me
achava gordinha, sim. Talvez por ter partes do corpo mais grossas, como as
pernas, minha visão de mim mesma não era de uma garota atraente.
— E mesmo se fosse, se preocupar em excesso só com a beleza externa é
tolice, na minha opinião. A aparência física sofre mudanças com o decorrer
da vida. Vale se atentar principalmente ao caráter e piedade. Já diz o
Provérbio: “Enganosa é a beleza e vã a formosura, mas a mulher que teme
ao Senhor, essa sim será louvada”.[11]
Aqui eu já estava desfalecida por dentro. Mas me mantive firme por fora.
— Sobre isso, concordo com você. Vejo tantas meninas se importando só
com coisas secundárias quando pensam na imagem de um rapaz para casar.
Estão convictas ao desejar um homem de cabelo comprido, ou loiro, ou
forte, ou rico, americano, coreano, soldado, príncipe, ou que seja assim e
assado. Esquecem que esse homem deve ser um cristão de verdade, cumprir
seu papel como servo de Deus e mostrar os frutos dessa vida de piedade.
Isso é inegociável, o restante é questão de sorte e das lutas que estamos
dispostas a enfrentar. Eu não trocaria um homem cristão sincero por um
soldado americano lindo, mas bem longe do cristianismo verdadeiro.
Quando me dei conta do rumo da conversa, já era tarde. Mas Tito não se
incomodou. Nem um pouco.
— Mais uma vez pensamos da mesma maneira. Impressionante como
nossas convicções estão em sintonia em tantos assuntos. — Ele voltou a
atenção para as fotografias. Depois de um tempo olhando as fotos, soltou
uma frase sem contexto. — Não sei, mas não acho que estou enganado.
— O que?
Ele apenas sorriu em resposta.
Meu pai chegou no horário habitual acompanhado da minha irmã mais
nova, cujo colégio ficava ao lado do trabalho dele. Cumprimentou Tito sem
demonstrar algum interesse particular, o que me fez questionar se mamãe
havia mesmo falado sobre nossa amizade, ou ele não tinha se dado conta de
quem era a visita. Acontece que papai sempre foi mais reservado,
principalmente sobre assuntos sentimentais. Seu modo de demonstrar amor à
família era trabalhando duro para prover nossas necessidades.
Minha irmã, por outro lado, estava muito interessada em estar por dentro
dos acontecimentos. Já à mesa, ela não parava de analisar Tito, alternando o
olhar entre nós dois. Às vezes, sorria para mim. A atitude dela me deixou
tensa e, mais uma vez, lá estava eu, analisando meus sentimentos. O
interesse era óbvio, não tinha como negar. A expectativa de não saber se
algo aconteceria me deixava ansiosa, até porque eu já considerava a ideia
com bastante clareza. Tito era um rapaz por quem eu poderia me relacionar
com facilidade, mas, ainda assim, não havia aquele sentimento de paixão
sondando meu coração e mente. E isso, constatei, era muito bom.
— Então você é um missionário — papai introduziu a conversa. —
Napáuria também pretende entrar para o seu time, mas acho que ela já
contou, não é?
— Contou sim.
— E no momento você trabalha com o que? — papai continuou.
— Estou servindo numa igreja local. Sendo mais específico, trabalhando
na reforma do prédio durante o dia e auxiliando nos trabalhos da igreja. Aos
sábados eu participo de um grupo de evangelismo.
— E recebe por isso? Como se sustenta?
Mamãe permaneceu atenta ao que Franco responderia.
— A igreja dos meus pais contribui com uma oferta mensal, e os membros
de ambas as igrejas ajudam. Sempre estão me abençoando, cobrindo minhas
necessidades.
Não sei por que, mas aquela conversa soava como um verdadeiro
interrogatório.
— Hum — papai murmurou e comeu mais um pedaço da lasanha. Depois,
apoiou os cotovelos na mesa e cruzou as mãos na altura do rosto. — E você
acha que com essa vida é possível se casar?
Ok. Aquilo era um interrogatório. Então papai sabia mais do que eu
imaginava. De repente o queijo da lasanha me pareceu tão chamativo.
— Tenho duas opções, senhor, para quando chegar a hora. A primeira é
uma oferta de emprego na empresa de construção civil do meu tio. É um
bom salário, suficiente para sustentar um lar. A segunda é permanecer em
missões, caso seja do interesse dela também, com o apoio das nossas igrejas.
Eu tenho vivido a provisão de Deus e sei que se Ele tem sido fiel comigo,
será quando a situação mudar. Oro a Deus para me dar o entendimento
correto sobre o melhor caminho.
Eu já estava petrificada. Havia mesmo algo no ar, ou era fruto da minha
imaginação?
— Tenho certeza de que Ele fará isso — mamãe interrompeu o diálogo
dos dois homens. — Nós também conhecemos a realidade de quem depende
do sustento de Deus. Embora muitas mães pudessem ficar preocupadas, não
vejo nenhum problema se a Napáuria quiser se casar com um missionário
nessas condições.
Levantei o olhar devagar, tentando deixar claro para ela que tinha passado
dos limites, mas o sorriso materno me desarmou.
— Então — papai retomou a palavra — me conte onde você mora. Como
são as acomodações?
— Moro numa casa pastoral, ao lado da igreja. O pastor não quis ocupá-la
porque precisava de mais espaço. — Tito sorriu. — Ele tem seis crianças.
Então me cedeu o lugar. É uma casinha simples, mas grande o suficiente
para uma família pequena.
— Muito bom.
Aquele comentário me deu a impressão de que meu pai havia entregado os
pontos. Estaria eu imaginando coisas, ou uma possibilidade para o meu
futuro tinha sido discutido à mesa na hora do nosso almoço através de
mensagens subliminares?
Olhei para Tito e vi outra vez uma nota de afeição suavizando sua
expressão. No entanto, papai retornou com a conversa e dessa vez os tópicos
não me pareceram interessantes o suficiente para serem lembrados.
Em frente ao espelho, refleti como a minha perspectiva em relação à
formatura havia se transformado. Embora antes eu estivesse animada com o
baile — talvez até influenciada pelo maravilhoso buffet que seria servido —
a presença de Tito transformou a animação em ansiedade. Ele havia deixado
claro, embora não tão direto, que estava orando sobre o futuro do qual
aparentemente eu fazia parte. Eu agia da mesma forma, clamando a Deus
para não me deixar cometer alguma besteira se meu coração estivesse
inclinado para a direção errada de novo.
Não, Tito não era como Sérgio. Ele estava preocupado em fazer as coisas
certas e direito. Ele não se esquivava da responsabilidade. E meus pais
estavam envolvidos dessa vez, sem apresentar qualquer oposição.
Será que...
Sacudi a cabeça para não fantasiar nada. Eu não queria e não podia
alimentar uma paixão. Precisava ser racional e deixar meus sentimentos
seguros dentro dos limites pré-estabelecidos da amizade.
Mirei minha imagem no espelho e fiquei feliz porque me sentia bonita. Eu
sabia que não era nenhuma beldade, não era do tipo que chamava a atenção.
Mas mamãe tinha me ensinado que isso não importava, eu só precisava da
admiração de uma pessoa: daquele com quem eu construiria uma família. E,
pensando bem, me conhecendo como eu me conheço, era melhor assim.
Seria muito mais difícil lidar com as questões do coração se tivesse vários
rapazes demonstrando interesse ao longo da minha adolescência. Sérgio
tinha sido um trauma suficiente para eu ansiar nunca mais passar por aquilo.
E seria Tito o rapaz esperado?
Mais uma vez espantei o pensamento, entregando-o a Deus. Orei. Era o
que deveria ser feito. Orar e esperar. Só isso.
Minha mãe entrou no quarto para me chamar. Os olhos brilharam de
orgulho e a boca se encheu de elogios. Eu havia aceitado os conselhos dela e
fui ao salão fazer um penteado no meu cabelo cacheado. Não quis me
maquiar por lá, pois não gostava da ideia de rebocar minha cara e aumentar
meus cílios de maneira artificial. Preferi a ajuda da minha irmã mais velha,
que tinha uma mão boa para dar um retoque natural ao meu rosto. O vestido
preto e as sandálias de salto baixo foram comprados semanas antes, quando
mamãe saiu comigo para encontrarmos nossas vestimentas.
— Ah, Napáuria, como você está maravilhosa!
— Gostou? Mesmo?
— Mesmo! Tenho certeza de que todo mundo concordará comigo quando
ver você.
Entendi a indireta, mas não comentei. Ainda estava me agarrando à minha
resolução de manter a sanidade.
— Vamos, está todo mundo pronto.
Na sala, a família aguardava. Minha irmã mais velha e o marido, minha
irmã mais nova e meus pais. Todos vestidos como pedia o evento. Partimos
em dois carros até o salão no qual ocorreria a festa.
Minha família se acomodou em uma das mesas e guardou lugares para a
de Leo que não tinha chegado ainda. Fui chamada por algumas colegas para
tirar fotos e me desloquei até onde a turma estava se reunindo. Pouco a
pouco o local foi se enchendo, e os alunos se mantiveram juntos na lateral da
pista de dança. A alegria transbordava. Selfies e vídeos registravam o
momento, nosso último evento como turma escolar, sabendo que cada um
tomaria um rumo diferente dali para frente.
Leo apareceu ao meu lado e me elogiou. Agradeci e declarei o quanto ele
estava elegante com o terno escolhido exclusivamente para a data.
— A gente demorou porque a tia Lídia chegou atrasada. Teve um acidente
e a estrada ficou parada por um tempão. Era para terem chegado hoje cedo.
— Eles vieram? Ana também?
— Vieram sim! — respondeu apontando para a nossa mesa.
Todos estavam lá. Minha família, a do Leo e a de Tito. E foi Franco quem
procurei primeiro, e foi ele quem sorriu para mim. De terno, parecia ainda
mais bonito aos meus olhos naquela noite.
Eu tinha mesmo dito para mamãe que ele era comum?
Tia Lídia acenou e eu fiz igual. Queria ir até lá, porém, como a turma
estava reunida, temi transparecer demais meu interesse.
Passou um bom tempo até os alunos se dispersarem, cada qual para sua
família ou grupinhos. Aproveitei a companhia de Leo e fomos até nossa
mesa. Ana foi a primeira a me abraçar sem esconder a felicidade por me ver.
Tia Lídia foi a segunda e ela demorou um tempo me analisando com um
sorriso maternal. Por último, só depois do pai me cumprimentar, é que
Franco se levantou e estendeu a mão.
— Parabéns pela formatura! — ele disse.
— Obrigada.
Nós soltamos nossas mãos e ele aproveitou para parabenizar Leo também.
Quando fomos nos sentar, percebi que havia uma cadeira vaga bem ao lado
de Franco e suspeitei ter sido obra da minha mãe casamenteira.
— Os salgadinhos estão deliciosos. O buffet está maravilhoso. — Tito se
inclinou um pouco para o meu lado. A música alta do ambiente atrapalhava
nossa conversa. — Você está tomando algo? Quer que eu busque um
refrigerante para você?
— Ah, obrigada.
Ele se levantou e foi atrás de um garçom. Retornou com uma taça de Coca
e me deu. Apreciamos as delícias servidas e buscamos sobressair nossas
vozes diante do barulho para poder conversar. Vez ou outra havia olhares em
nossa direção, mas ninguém quis interromper nossa interação inicial. Tito,
porém, logo tratou de desfazer nosso diálogo, inserindo nossa família nas
conversas.
Foi um momento maravilhoso. Bem melhor do que eu havia esperado.
Nos divertimos noite adentro, nossa família unida, sem se preocupar com o
que acontecia ao nosso redor. Eu e as demais mulheres até nos arriscamos na
pista de dança quando o repertório era de músicas dos anos 80. E, na hora
em que os casais assumiram seus postos para dançarem a dois, senti uma
pontinha de frustração por não ter tido nenhum avanço em relação a Tito que
me proporcionasse um momento romântico como aquele.
Por fim, já cansada, havia desistido de esperar algum sinal de que Franco
diria algo. Até a hora em que eu estava voltando do banheiro e o encontrei
no meio do caminho.
— Ei, Napáuria — ele me chamou acenando com as mãos.
Meu coração acelerava à medida em que me aproximava dele. De repente,
me senti como a Jenny[12] no próprio baile, quando tudo começou no
romance dela. Quer dizer, não exatamente como ela. No meu caso, esperava
um desfecho diferente para a noite da minha formatura.
— Oi. — Parei e os olhos sorridentes dele queriam revelar algo.
— Eu preciso falar com você, mas aqui dentro está muito barulho — ele
quase gritou para que eu pudesse ouvi-lo. — Tem uma varanda ali em cima,
topa ir lá rapidinho? Eu avisei seus pais!
— Tá — respondi no instinto. Precisava controlar minhas emoções!
Nós dois subimos um lance de escadas lado a lado e em silêncio. Quer
dizer, ao som da música ambiente, que naquele momento tocava algo de
muito mau gosto na minha opinião. Depois, atravessamos uma porta e
saímos para uma varanda que circundava a parte superior do salão, com vista
para a rua. Havia alguns casais ali, uns dois homens conversando e uma
mulher mais velha fumando. Franco me levou para uma das extremidades
onde não havia ninguém.
— Está uma bela noite hoje. — Ele ergueu a cabeça e visualizou o céu
aberto salpicado de estrelas. — Deus é tão criativo. Observar a imensidão da
criação só me deixa mais perplexo do quanto o Senhor é grandioso. Ele faz
tudo tão perfeito, orquestra o mundo com tanta sabedoria. Ai de nós se não
fosse a graça Dele.
Fui atraída por aquelas palavras e analisei os pontinhos brilhantes no céu
negro. Não era atoa que a Bíblia diz que Os céus declaram a Glória de Deus
e o firmamento anuncia a obra de Suas mãos[13]. Os atributos de Deus
podem ser reconhecidos através da criação.
Ali fora, o tempo estava mais fresco. Um vento soprou balançando meus
cabelos e tocando minha pele. Esfreguei as mãos nos meus braços para me
aquecer.
— Você está com frio? — Tito perguntou.
— Um pouco.
— Quer que eu busque sua blusa?
— Eu não trouxe. Não tinha nenhuma que combinava com o vestido. Mas
não se preocupe, estou bem. Lá dentro está muito quente, senti a diferença
da temperatura, mas logo me acostumo.
Não convencido, ele tirou o paletó do terno e colocou em cima dos meus
ombros. De repente, me dei conta da situação. Eu estava mesmo com o
casaco de Tito me aquecendo? Como nas cenas românticas dos livros, havia
chegado a minha hora? Isso realmente acontecia na realidade?
— Acho que fica melhor assim.
— Obrigada.
Ainda sentindo a emoção do momento, enfiei os braços na manga do
paletó que, claro, ficou grande. Contudo, pareceu mais do que perfeito para
mim
— Acho que posso começar a falar.
Concordei com a cabeça e fui tomada por aquela prazerosa e angustiante
espera.
— Eu estou preocupado sobre como devo abordar o assunto. Você me
revelou que estava diante de uma encruzilhada sem saber qual caminho
tomar, para depois me dizer que havia escolhido a direção das missões.
Acontece que existe a possibilidade de eu apresentar uma outra via nessa
estrada, mas não sei se você está disposta a trilhá-la.
Eu ri.
— Tito, eu não estou entendendo nada. Por favor, sem rodeios. Diz o que
você quer.
— Eu quero que você se case comigo.
Eu estava esperando algo do tipo, mas não estava preparada para ouvir
aquilo. Tão direto. Arregalei os olhos e prendi o ar.
— É um pedido de casamento informal, na verdade. Eu deveria pedir em
namoro primeiro, só que eu te disse que faria isso quando encontrasse a
mulher certa. Eu não sei se fui claro o suficiente sobre minhas intenções com
você, tive medo de lhe dar esperanças antes de ter convicção, por isso não
disse nada, preferi manter nossa amizade. Só que... Eu tenho orado,
Napáuria, e essa é a verdade. Eu quero algo sério. Eu gosto mesmo de você.
Eu abri o meu maior sorriso.
— Eu também gosto mesmo de você.
Ele sorriu comigo.
— Eu sei que você pode precisar de um tempo para pensar e orar, não é
uma decisão simples a ser tomada, mas eu estou pronto para assumir os
riscos agora e aguardar.
— E você realmente acha que eu não tenho orado e pensado nisso? Eu não
preciso de tempo para saber qual resposta te dar. — Meu coração disparou.
— Mas eu também tenho minhas convicções e já fiz besteira por não ter
seguido elas no passado. Não posso te responder sem antes falar com meus
pais. Eu não vou dar um passo sem o consentimento deles.
Tito olhou para o céu. Tive medo de ele não ter entendido minha resposta
e ter parecido um fora, mas logo o temor se dissipou.
— Você já tinha deixado claro o suficiente sobre essa sua posição. Foi,
inclusive, uma das coisas que me chamou tanta atenção em você. — Ele
voltou a me olhar e, mesmo na escuridão da noite, eu podia ver os olhos dele
brilhando. — Eu já falei com eles e ambos me deram permissão para seguir
em frente.
— Sério? — Meu coração exultou de alegria.
Tito se virou e ficou de frente para mim. Arriscou pegar minha mão
direita e a segurou com firmeza.
— É isso, Napáuria. Estou pedindo você em namoro, mas também em
casamento.
Fiz a coisa que na hora me pareceu o mais sensato. Me rendi aos braços
dele. Me joguei na direção certa. Peguei o novo caminho que se abriu diante
da estrada da minha vida.
— Acho que isso é um sim — ele falou ainda abraçado comigo.
— É claro que é.
Não ficamos muito tempo abraçados. Ele se afastou e segurou minha mão.
Nos perdemos no olhar um do outro. Sorrisos bobos no rosto. As mãos
unidas e o coração saltitando.
— Espero que voltem a tocar alguma música legal. Preciso seguir o
conselho da minha avó e te convidar para dançar.
— É verdade. Fiquei a noite toda esperando por isso.
— Ficou?
— Claro!
— Vamos resolver isso, então.
Decidimos voltar para o salão. Eu bem queria descer de mãos dadas, mas
seria muito estranho sem antes anunciarmos para a nossa família. E um
pouco constrangedor também.
Para alegria de Tito e meu desespero, um forró começou a tocar bem na
hora que retornamos. Sorrindo, ele me guiou até a pista de dança.
— Eu não sei dançar forró — declarei, me divertindo com a sugestão dele.
— Nem eu.
Desajeitados, nós tivemos nossa primeira dança como um — quase oficial
— casal. A gente riu mais do que dançou e constatei como aquela seria uma
lembrança muito mais gostosa do que se tivesse sido uma valsa romântica.
Quando a música acabou, sugeri abandonar nossa carreira de dançarinos e
ele concordou. Demos a volta por trás da pista, pegando o caminho longe
das caixas de som. Ao invés de voltar para a mesa da nossa família, nos
sentamos em duas cadeiras perto do balcão dos doces. Só queríamos
aproveitar aquele momento a dois. Namorar era novo para mim.
— Você se lembra de quando eu disse sobre as coisas secundárias não
serem tão importantes? — perguntei e ele assentiu. — E que eu tenho um
livro de romance que eu amo? Bem, eu sempre gostei muito do fato de
Dylan ter sido um soldado. Era uma coisa secundária, mas parece que Deus
gosta de nos surpreender com isso também.
— Hum... Então quer dizer que sou seu Dylan? — ele brincou.
— É provável. Eu orei muito tempo por alguém, Tito, sem sequer saber o
nome. E parece que esse alguém é você. Eu orei por você. Minha oração
mudará de agora em diante. Tenho um nome e um rosto a quem me referir.
Ele segurou minha mão e entrelaçou nossos dedos. Virei-me de modo a
encará-lo. Meu coração exultou de felicidade. Aquele frio na barriga gostoso
se manifestou. O toque da mão dele na minha era tão distinto que eu não
queria desfazer o contato. Era assim quando Deus escrevia uma história
romântica? Seria aquele momento nosso prólogo? Eu viveria um romance
como dos livros, meu próprio enredo de amor?
Sentindo-me como as protagonistas das minhas preciosas histórias, não
escondi o sorriso. Tito me perguntou o que estava passando na minha
cabeça.
— Estava pensando sobre todos os crushes literários que já tive. Me
apaixonei por tantos deles. Eles elevaram o meu padrão do que esperar de
um homem, me fizeram aguardar por alguém como eles e sonhar com
momentos românticos e poéticos.
Ele crispou os olhos sem entender aonde eu queria chegar.
— Mas preciso confessar que assim é bem melhor. Superou minhas
expectativas. Você é um homem real e piedoso. Pode não ser um príncipe
encantado, nem um soldado americano popular, mas é o homem mais
incrível que conheço. Estou feliz, Tito. Muito feliz.
Eu mal podia esperar para ver como seriam os próximos capítulos do
nosso romance!
Conto Meu amor real
Certa vez, ouvi de uma tia que não havia nada mais incrível no mundo do
que estar apaixonada e viver o primeiro amor. Mas ela nunca mencionou
quão desagradável, terrível e constrangedor era ver sua paixão se tornar em
desilusão.
Quando experimentei ter minhas expectativas quebradas pela primeira
vez, tomei a decisão de guardar meu coração para o homem cristão certo.
O único problema era que os homens certos só pareciam existir em livros
de romance. Isso significava que minha vida amorosa estava fadada ao
fracasso, pois eu jamais encontraria alguém com os princípios semelhantes
aos meus. E se encontrasse, ele não teria olhos para mim.
— Tem alguém aí? Júlia? — Ouvi aquela voz familiar soando longe e me
assustei.
Meu plano era ficar sozinha e estudar para uma prova da faculdade, mas
não tinha cabeça para nada além das páginas do meu romance favorito. Por
isso, ao ouvir o som de um visitante inesperado se aproximar, resolvi me
esconder. Pulei para trás do sofá vermelho onde eu estava e me arrastei até
um espaço apertado ao lado de uma estante alta cheia de livros velhos
descartados no Muquifo, o nome dado ao esquecido quarto da bagunça em
minha casa, e encolhi meus joelhos contra o peito, fechando os olhos.
Não queria revelar meu estado vergonhoso para ninguém, especialmente
para Ian.
“Por favor, vá embora” implorei mentalmente. Eu só queria ficar sozinha
e lamentar minhas mágoas até estar bem outra vez, mas o barulho de passos
no piso de madeira, denunciavam que isso não aconteceria tão cedo.
— Céus! Alguém deveria limpar isso aqui. Nunca encontro nada —
reclamou meu hóspede indesejado. — Júlia, se está aí, me diga onde estão as
baterias de carro novas. Seu pai jurou ter guardado aqui nessa bagunça, mas,
sem uma boa limpeza, não vai dar para achar nada. — Ele fez uma pausa e
espiei a tempo de vê-lo pegar o livro rosa que esqueci sobre o sofá e
balançar a cabeça. Ah, não! — Quantas vezes ela deve ter lido isso aqui? —
Abriu na página marcada e repetiu um dos meus trechos favoritos de um
jeito pomposo: — “Era meu nome, junto com o dele, numa silenciosa
expressão de amor” [14] Por que fui dar um livro de realeza e príncipes de
presente para uma garota tão iludida? Farei bem para humanidade se doar
isso.
— Você não ousaria! — exclamei e, saltando do meu esconderijo, corri
para tentar pegar meu precioso livro de volta das mãos daquele garoto. Ian
amava me azucrinar assim.
— Então se escondeu da visita das suas tias para ficar aqui lendo? — ele
sondou e, se beneficiando de sua velocidade e altura, escondeu o livro nas
costas e resistiu em me entregá-lo. Fui obrigada a rodear ele, feito um
cachorrinho, até convencê-lo a ceder.
— Espero que não tenha sujado de graxa ou eu te mato — ameacei
enquanto virava o livro de ponta a ponta procurando marcas de dedos.
Graças a Deus, nada encontrei. — E não, não me escondi. Pedi licença para
sair. Estou precisando pensar sozinha.
Ele deu de ombros, se jogou no sofá e atirou os tênis dos pés para longe,
como se estivesse em casa. Notei que, ao invés de usar aquelas roupas
surradas para trabalhar com o meu pai na mecânica, ele trajava um conjunto
limpo de moletom preto. Talvez estivesse saindo do trabalho para ir a um
dos seus cursos técnicos ou para o instituto bíblico, no qual se dedicava a
aprender teologia com o nosso pastor. Apesar do seu tempo ser escasso, Ian
era um bom amigo e estava sempre por perto.
— Eu ia embora depois de pegar as baterias, mas a verdade é que
encontrei sua mãe, preocupada porque você fugiu para cá — ele começou
sério e eu mordi o lábio. — Ela me pediu para checar se estava tudo bem.
Por que mamãe queria envolver meu amigo em todos os dramas da minha
vida? Que vergonha.
— Até perguntei o que aconteceu, mas ela achou melhor deixá-la explicar
tudo — continuou e fez um sinal com a cabeça, apontando para o espaço
vago no sofá. — Por favor, meu consultório está aberto.
— Baterias, sei — murmurei e ele riu.
Expirei, hesitei um pouco, mas ocupei o lugar. A verdade é que mesmo
sendo muito amiga de Ian, nós tínhamos o cuidado de evitar conversar sobre
certo assuntos. Entretanto, imaginei que expor a situação e ouvir uma
opinião masculina poderia ser útil.
Levei alguns instantes para formular bem como contaria, pois não queria
soar como uma adolescente boba, sofrendo os mesmos dilemas do passado.
Talvez eu fosse de fato uma garota imatura, afinal tinha apenas 21 anos, mas
vinha lutando para amadurecer e não me orgulhava quando agia de forma tão
tola.
— Lembra do Gustavo? — comecei e no momento que pronunciei aquele
nome, Ian franziu os olhos. Depois disfarçou, tirando um daqueles cubos
mágicos do bolso de sua blusa. Era seu hobby favorito.
— Gustavo? Aquele missionário que ficava cheio de gracinhas para o seu
lado? — ele pontuou sem tirar os olhos do brinquedo e eu assenti. — Eu não
ia com a cara dele.
Ajustei meus óculos e cocei o nariz. Trazer aquele assunto à tona era tão
constrangedor, ainda mais com um garoto.
— Bem, ele vai se casar — completei em tom baixo. — Isso depois de ter
me dado um fora afirmando que Deus o chamou para ser celibatário.
Ian ergueu as sobrancelhas escuras e colocou o cubo já organizado sobre a
mesa. Nunca contei como meu “romance” havia terminado, até porque ser
rejeitada não era algo para se vangloriar.
— Sinto muito, Jubs — falou com pesar e agradeci pela compaixão dele.
— Pense pelo lado bom. Você não se casou com o homem errado e agora ele
não vai mais te perturbar ou tentar voltar para sua vida, como alguns bocós
fazem.
Expirei e joguei minha cabeça para trás.
— Ele vai voltar para minha vida pois, de todas as mulheres existentes
nesse universo criado por Deus, Gustavo escolheu se casar com a minha
prima, Jéssica! — exclamei e, sem que eu pudesse controlar, desatei a chorar
como uma criança. — Por que isso tinha que acontecer comigo?
— Jéssica? Aquela que se gabava de como nunca se casaria porque via o
casamento como uma instituição patriarcal falida?
— A própria. — Funguei. — Mamãe contou que Jéssica mudou muito
após conhecer o Gustavo. Ele foi trabalhar com o pastor da igreja dela ano
passado, se tornaram amigos e agora vão se casar. Oh, Deus! Que tragédia!
Tirei meus óculos e escondi o rosto, sentindo as lágrimas descendo sem
parar.
Ian não disse nada por algum tempo. Eu o senti se mexendo no sofá e
também percebi o calor, denunciando sua proximidade. Ele alcançou uma de
minhas mãos e colocou um lenço azul ali. Encarei o pano para não precisar
contemplar meu amigo.
— Está limpo, pode usar — garantiu, mas, vendo minha demora para
reagir, pegou o lenço novamente e começou a secar minhas lágrimas por
conta própria. No final, esfregou o pano na minha cara, só para provocar. —
Qual o motivo de tanta tristeza? Você tem sentimentos pelo Gustavo?
Eu sabia que ele pensaria isso, mas neguei, é claro.
— Não, Ian. Eu mal lembro da cara dele — expliquei inquieta e, dessa
vez, fui eu quem peguei o cubo mágico da mesa e comecei a bagunçá-lo. —
Mas é que... — mordi o lábio —, você sabe como fui tonta naquela época e
entreguei meu coração a ele como se fosse um Príncipe Edwin[15], mas, na
verdade, não passava de um Devon[16].
Ele riu diante da menção ao meu estimado exemplo de homem cristão,
mesmo que eu não estivesse brincando naquele momento.
— Sim. Eu me lembro bem. — Franziu o cenho. — Te vi preparando
docinhos para ele e se oferecendo para imprimir os estudos que ele dava na
igreja. Era bem prestativa.
— Ei! — Dei uma cotovelada nele. — Desde quando sua memória é boa
assim?
— Como se eu pudesse esquecer do dia que ouvi suas amigas na igreja
cogitando se eu aceitaria ou não ser o seu padrinho. — Ele segurou o riso
quando o olhei feio. — Desculpe.
Deixei meus ombros caírem. Ele tinha razão, eu fui estúpida.
— Tudo bem, sou culpada. Não me orgulho de ter agido assim. Para
piorar, compartilhamos muitas coisas íntimas juntos. Coisas que uma moça
não deve compartilhar com um rapaz solteiro. — Peguei meu amado livro e
bati com ele na minha cabeça. — Pensei mesmo que a gente se casaria e
viveria feliz para sempre. Até escolhemos o nome dos filhos!
Ian era meio insensível com meus dilemas, mas resolveu deixar sua pose
de durão de lado e tocou meu ombro.
— Tudo bem, o erro já aconteceu, você se arrependeu e Deus te perdoou.
Além disso, se na época ele tivesse agido como um homem cristão, não teria
te defraudado. — Ele arfou. — Você deveria parar de trazer o passado à tona
e focar no futuro sem Gustavos na sua vida, que tal?
— O futuro? Que parte você ouviu do “ele se casará com a minha prima
Jéssica”? — Bufei. — Você não está entendendo a gravidade, Ian. Fui
chamada pelo casal para ser madrinha. Madrinha do meu primeiro amor e
desilusão! Eles se casam em duas semanas e tanto eu quanto meus pais
vamos nos hospedar por três longos dias na chácara da família onde ocorrerá
o casamento. Haverá “Gustavos” para todos os lados, e eu não sei como vou
encará-lo depois desse tempo!
Ian inclinou o tronco para frente e mexeu em seu cabelo preto com as
mãos, até que tudo estivesse em uma completa bagunça.
— Quanto drama. — Ele voltou a postura normal e me olhou. — Você
não é obrigada a ir e se for, Gustavo verá o quanto você mudou e
amadureceu no Senhor. É quase outra Júlia.
Aquilo sim foi um consolo para mim e encheu meu coração de alívio,
embora não resolvesse o problema.
— Valeu pelas palavras, mas sou obrigada sim. Jéssica não me perdoaria
se eu não fosse. Nós crescemos juntas antes dela se mudar para a Serra do
Encanto, e eu não posso desprezar o convite assim, ficaria mal. — Deitei
minha cabeça no ombro dele. — Seria estranho se eu quisesse ter você ao
meu lado lá? Sabe, para me defender, caso algo constrangedor aconteça.
Ian se espantou um pouco e isso me deixou um pouco constrangida. Será
que passei dos limites?
— Quer mesmo que eu vá ao casamento com você? — perguntou com
cautela.
— Seria bom ter um amigo por perto. Mas não se sinta obrigado, você tem
suas tarefas, trabalho, estudos, igreja. Não posso te raptar por três dias por
puro capricho da minha parte. — Dei algumas batidas na mão dele. — Vou
dar um jeito de lidar com isso. Deus pode me auxiliar, então não se
preocupe.
— Quer ou não quer? — insistiu na pergunta anterior.
Eu me afastei de novo para encará-lo e vi aquele olhar. O olhar de alguém
que já tinha um plano traçado em sua mente.
— Seria incrível. — Sorri.
Ele se levantou, determinado.
— Então, se me der licença, vou falar com seus pais e ver se arrumo um
terno.
Duas semanas passaram voando.
Acordei naquela sexta-feira bem cedinho e sem acreditar que deixaria o
conforto do meu lar, além de perder três dias que eu poderia me dedicar aos
meus projetos na faculdade de design ou trabalhar em minhas encomendas
como ilustradora, mas tinha uma festa de casamento me esperando.
Em condições normais, eu estaria mais animada, pois amava ver amigos
se casando, mas não conseguia ficar calma, imaginando tudo o que poderia
dar errado em meu reencontro com Gustavo.
E se ele me falasse algo? E se trouxesse à tona as bobagens que lhe disse
quando estava apaixonada, exaltando-o como homem de Deus e o futuro pai
dos meus filhos?
Ah! Se eu pudesse voltar no tempo! Quantas coisas eu teria feito
diferente?
Meu consolo era saber que se algo desse errado, Ian estaria ao meu lado
para me lembrar o quanto, graças a Jesus, eu mudei e também ajudar, caso
eu pagasse algum mico e precisasse fugir.
“Tudo vai dar certo, se Deus permitir” disse para mim mesma antes de
sair de casa com minha família, porém os problemas me encontraram cedo.
— Não é possível que Ian vai furar comigo logo hoje. Como ele pôde não
ver minhas mensagens? Eu avisei que estaríamos cedo aqui — questionei,
impaciente, depois que a quinta das minhas ligações caiu na caixa postal. Já
o esperávamos a quarenta minutos. — Buzina de uma vez, papai.
— Docinho, são cinco e meia da manhã, não vou buzinar e correr o risco
de ter meu precioso carro atingido por uma pedra — papai contestou e
cruzou os braços, deitando a cabeça no encosto do banco. — Vamos esperar
mais um pouco.
— Esperar? — Mamãe, no banco do passageiro, bufou. Ela não era tão
paciente. — Precisamos ir logo. Prometi à vovó que chegaríamos antes do
café para ajudar com o preparo da comida.
Olhei para a fachada verde da casa do Ian, mas não vi nenhuma luz acesa
indicando haver alguém de pé naquela hora.
— Aquele bocó deve estar dormindo — murmurei e olhei inconformada
para os meus pais. — A gente precisava sair assim tão cedo? É o casamento
da Jéssica, não da Anne e do príncipe Edwin.
— Quem? — meus pais perguntaram ao mesmo tempo e eu arfei.
— Deixa pra lá. Eu vou dar um jeito.
Dito isso, empurrei a cabeça do meu irmão adormecido para longe do meu
ombro e abri a porta do carro.
Meu plano era encontrar alguma pedrinha para jogar contra a janela do
quarto do Ian, como ele fazia comigo na infância ao me chamar para a escola
dominical e eu demorava para sair. Parecia uma boa ideia, exceto pelo fato
de que eu era míope e tinha péssima mira, mas tudo bem, eu não me deixaria
abater por detalhes.
Em questão de um minuto localizei uma boa pedra, era pequena e não
faria nenhum estrago no vidro, caso eu não dominasse minha força. Ergui o
braço e já estava pronta para arremessar quando o portão automático abriu e
Ian passou andando carregando sua bagagem, como se nada tivesse
acontecido.
— Desculpa o atraso. Cheguei morto do trabalho ontem e esqueci de
checar o celular, por isso não vi o aviso da mudança no horário da nossa
saída — ele comentou em meio a um longo bocejo e se aproximou tranquilo.
Notei de cara, seu cabelo molhado, penteado para o lado e a fragrância do
perfume misturada com a menta do seu chiclete favorito. — Te fiz esperar
muito? Precisei me aprontar às pressas.
Então o bonito se atrasou porque se preocupou demais com a aparência?
Ele planejava ser o noivo, por acaso?
— Pensei que tivesse desistido de ir. — Coloquei as mãos na cintura. —
Poxa vida, Ian! Custava algo atender minha chamada? Estou tão ansiosa
agora. Meu estômago até começou a doer.
— Tem razão. Desculpa, Jubs. — Ele fez aquela cara de cão arrependido
só para me fazer sentir como uma carrasca. — Quer um chazinho? Posso
subir e pedir a rainha dos chás para preparar algo com o poder de amansar
uma onça como você.
A sugestão dele me fez rir um pouco, mas disfarcei, sustentando meu
drama por mais algum tempo.
— Sua mãe faz chás maravilhosos, de fato, mas a única forma do meu
estresse passar é encarar essa festa e voltar para casa rápido. — Expirei,
tentando trazer à tona a mulher cristã mansa que eu gostaria de ser. — Estou
uma pilha de nervos e precisava descontar em alguém. Desculpa por
escolher você.
— Tranquilo, já me acostumei com sua chatice. — Ele usou o braço livre
para bagunçar meu penteado. Meu cabelo preto chanel, tão temperamental
quanto eu, não estava em seus melhores dias. Ian, bagunçando-o, não
ajudava. — É sério. Você está bem? Eu não quis te estressar e agora estou
preocupado. Vai conseguir viajar se tiver uma daquelas crises de piriri[17]?
Arregalei os olhos e concluí que ter um amigo ciente dos seus desajustes
intestinais era pior do que ter um inimigo.
— Primeiro de tudo, eu não tenho piriri, sou uma dama. Segundo, você
precisa fingir não escutar minha mãe contando sobre minha saúde intestinal
— disfarcei, arrumando minha franja. — E não se preocupe comigo, estou
bem.
— Tem certeza? Não quer ir ao banheiro antes de...
— Ian — interrompi e apontei o indicador para o rosto dele —, se você
não for guardar suas tralhas no porta-malas logo, vai conhecer uma onça de
verdade. Rawr! — Fingi rosnar e ele deu risada, ainda mais quando resolvi
arrastá-lo puxando seu braço. — Anda, menino!
Ele ergueu uma das sobrancelhas.
— Você é uma garota bem estranha, sabia?
Dei de ombros.
— É de família. Você vai descobrir ao conhecer o restante dos Bragança.
— Misericórdia. — Estremeceu e tentou se soltar. — Eu acho que não vou
mais. Aprecio minha sanidade.
Eu me virei para ele e estreitei os olhos.
— Ah, é? Se não for como convidado, vai ser sequestrado. Você não tem
livre arbítrio aqui — provoquei e aproveitei a proximidade para cutucá-lo
várias vezes na altura das costelas, seu ponto fraco para cócegas. O efeito foi
imediato e ele, sempre ostentando sua pose de sério, logo estava rendido às
gargalhadas forçadas. — Ainda quer fugir?
Ian tentou se afastar de mim duas vezes, mas não conseguiu. Eu era bem
ágil se queria implicar com alguém.
— Para com isso, doida — ele suplicou rindo, se esforçando para me
impedir de alcançá-lo e só conseguiu porque deu sorte de agarrar minhas
duas mãos. — Chega, eu não vou fugir, tá bom? Nem se me oferecessem
toda a riqueza do mundo eu fugiria de você.
A forma séria como ele disse aquilo me assustou um pouco.
— Ótimo, pois se você fugisse, eu iria atrás como uma assombração —
gracejei, usando uma voz sombria e ele riu. — Sou assim com meus amigos.
Quero eles perto de mim até o fim.
— Esse é o meu plano. Estar do seu lado até o fim. — Ele tocou meu
queixo e eu me encolhi ao sentir cócegas. Ian era um fofo.
O clima era descontraído, mas isso acabou da forma mais constrangedora
possível.
— Vocês parecem namorados. Eca! — provocou Juninho, meu irmão
caçula, ao projetar seu corpo por uma das janelas abertas. No mesmo
instante, eu pulei para longe do meu amigo, sentindo minhas bochechas
arderem como nunca.
Para completar, papai resolveu esquecer toda a diplomacia com o sono
dos vizinhos, pois buzinou e ainda gritou:
— Hora de ir, casal!
Que mico!
Ian sorriu discreto em resposta ao meu pedido de desculpas e foi guardar
suas coisas, já eu corri até o carro e entrei.
— Papai, eu já não disse para não insinuar essas coisas? — briguei e olhei
para o meu irmão, erguendo o punho fechado de forma ameaçadora. — E
você, Antônio Júnior? Não estava dormindo, garoto?
— Acordei quando seu namoradinho chegou. — Ele me provocou
jogando beijos no ar e eu, como boa irmã mais velha, fiz questão de ensiná-
lo a me respeitar, apertando as bochechas dele até que pedisse clemência. —
Mãe! Olha a Júlia me batendo só porque falei do namorado dela!
— Ora, seu... Quantas vezes vou precisar dizer que Ian é só meu amigo e
nada mais? — Fiz careta para ele.
— E você pretende se casar com algum inimigo, por acaso? — mamãe
resolveu intervir, virando-se para me encarar. — Ian é um bom partido. É
cristão, trabalhador e se tornou um rapaz bonito, comparado ao garotinho
esquisito de olhos pequenos que você conheceu e achava horrível. Todas as
mulheres da igreja falam que ele se tornou um bom moço, principalmente as
solteiras. Deveria considerar ele, antes que outra acabe vendo o que você não
quer ver.
Arfei. Quanta pressão!
— Bem, eu também sei que Ian é um ótimo partido, mas não adianta
forçar a situação, como se estivessem nos colocando em um casamento
arranjado — contestei e mamãe apenas deu de ombros, encerrando a
discussão. — Vocês começaram cedo hoje, hein?
Não era a primeira vez que eu ouvia alguma insinuação sobre Ian e eu
sermos mais que amigos e, no geral, eu não me importava. Já cheguei a
considerá-lo como pretendente, mas foi estranho. Ele fugia um pouco do
padrão de homem que eu imaginava para mim. Embora fosse cristão, não
tinha grandes atributos aos meus olhos. Eu não gostava do seu jeito fechado
e esquecido, nem via toda a beleza exaltada pela minha mãe e as moças da
igreja. Ele não era tão alto quanto eu gostaria, tinha um nariz esquisito e
orelhas avantajadas. Aliás, a única coisa que me agradava era o seu sorriso,
ele tinha dentes lindos, mas não os mostrava toda hora.
Para piorar, aquele bom partido também era baterista em nossa igreja e,
por mais que ele não carregasse a fama de pegador que precedia alguns dos
membros do grupo de música, eu ficava receosa em me interessar por
alguém tão disputado entre as moças.
Mesmo com esses pontos contra Ian, sua companhia me cativava bastante.
Ele era o único amigo homem com quem eu me sentia totalmente à vontade.
Virei por alguns instantes a fim de observá-lo e, seguindo o conselho de
mamãe, procurei enxergar algo naquele rapaz além de um amigo. Senti um
frio na barriga e isso me assustou.
Não. Eu não podia me iludir de novo.
Quando ele entrou no carro e tomou um lugar ao meu lado foi esquisito.
Ele me encarou, fez uma careta, mas eu desviei o rosto. Quantas ideias
absurdas estavam passando pelo meu cérebro naquele momento?
Ian era meu amigo. Amigo. Apenas amigo. Nós crescemos juntos e
tínhamos grande carinho um pelo outro e isso bastava para mim.

Começamos nossa viagem, saindo da capital paulista e seguindo para o


interior, com destino a Serra do Encanto.
Viajar com a minha família era uma experiência gostosa. Nós
costumávamos cantar, ouvir músicas antigas, fazer brincadeiras esquisitas e
comer os deliciosos lanchinhos feitos por minha mãe, que sempre foi uma
cozinheira de mão cheia.
Pensei que Ian se sentiria como um intruso em nosso meio e isso deixaria
a situação meio tensa, mas logo ele e meu pai desataram a conversar sobre
carros, depois foram para tecnologia e por fim migraram para teologia,
assunto de muito interesse para ambos. Enquanto isso, mamãe combinava o
buffet com minha avó por ligação e Juninho resolveu ler um livro de
aventura, comentando tudo a cada trecho. Quanto a mim, ora trabalhava em
algumas encomendas no meu tablet, ora prestava atenção nas respostas
bíblicas de Ian, o que me levou a reparar em duas coisas: ele amava mesmo
ao Senhor e, olhando de perto, até que seu nariz não era tão feio assim.
Balancei a cabeça várias vezes.
Aquilo não estava certo. O que havia de errado comigo?
Para o meu próprio bem, resolvi ignorar aqueles dois até chegarmos na
chácara da minha avó, cerca de oito horas da manhã.
O lugar era muito lindo, arborizado e bem cuidado. Por gerações, nossa
família manteve a tradição de realizar muitas festas ali, fosse Natal, Ano
Novo, aniversários, chás de bebê e claro, casamentos.
Casamento.
Essa palavra me fez recordar do meu grande problema naquele fim de
semana.
Passamos pelos portões de madeira, entrando na chácara. Mantive meus
olhos atentos na estrada de terra, até ver de longe o casarão cuja estrutura foi
pensada para receber muitas pessoas.
Pude ver algumas de minhas tias zanzando na varanda, arrumando uma
grande mesa para o café da manhã e vovó Fátima, dando ordens a um dos
meus tios, deitado em uma rede. Sem dúvidas, deveria haver mais gente
dentro da casa, eu descobriria em breve.
Assim que o carro foi estacionado, mamãe já foi saindo, correndo para
ajudar as mulheres, papai foi em seguida, ansioso em busca de um banheiro
e Juninho zarpou assim que avistou um dos nossos primos de sua idade. Já
eu enrolei algum tempinho por ali, dando a desculpa de estar procurando um
carregador na minha mochila. Enquanto isso, vez ou outra, espiava pela
janela, procurando por dois rostos específicos.
Céus!
De onde vinha aquele nervosismo repentino?
— Podemos sair? Está calor aqui — sugeriu Ian, que preferiu me esperar
enquanto se abanava usando um panfleto.
Acenei com a cabeça.
— Certo, vamos.
Mas não consegui mover um músculo. Senti aquela dor de barriga chata
de quando se está nervoso e respirei fundo.
— Vai ficar tudo bem, Jubs — garantiu Ian e, talvez notando minha
hesitação, tocou minha mão. — Vou estar do seu lado, como prometi.
Toda aquela pressão dos meus pais mais cedo, mexeu com a minha
cabeça. Se antes aquele gesto teria me reconfortado, agora me deixou um
pouco incomodada. Será que Ian se sentia assim? Pressionado? Com medo
de me dar falsas esperanças?
De repente, ergui meus olhos na direção dos dele e vi algo diferente ali.
Era um olhar terno. Como nunca percebi isso antes?
— Ian, eu...
— Eu sabia que vocês dois acabariam namorando! E aí? Quando é o
casamento? — Ouvi da janela ao meu lado e isso me levou a soltar a mão de
Ian com força.
— Não estamos namorando. Parem de nos pressionar! — exclamei e pulei
no banco ao virar e descobrir quem havia sido o engraçadinho da vez. —
Gustavo!

— Como vai, Júlia? — Gustavo me cumprimentou com um sorriso aberto.


Abri a boca algumas vezes, mas as palavras não saíram. Eu não esperava
encontrá-lo tão cedo, ainda mais gritando daquele jeito. Tudo o que eu
precisava naquele instante era de um grande buraco, onde eu pudesse me
esconder do mundo, e com “mundo”, eu queria dizer Gustavo e sua simpatia.
“Certo, Júlia. Agora não há mais volta” pensei comigo mesma. “Você
deve encará-lo e acabar com qualquer clima ruim de uma vez por todas”.
Tomei uma grande rajada de ar e me forcei a sorrir.
— Vou muito bem, Gustavo — respondi gaguejando enquanto me
empenhava para disfarçar o suor se acumulando nas minhas mãos, as
enxugando em meu vestido xadrez. Que patético! — Quanto tempo!
— Sim, muito tempo. — Ele colocou as mãos na cintura e inclinou o
tronco para olhar o meu rosto mais de perto. — Você não mudou nada.
Cortou o cabelo, mas parece a mesma de cinco anos atrás.
Balancei a cabeça e desviei o olhar. Não queria ele me comparando com a
garota apaixonada de antes. Eu havia mudado muito, principalmente depois
de acatar conselhos de irmãs em Cristo mais velhas e ser instruída a me
debruçar no estudo das Escrituras. Só assim entendi meus erros ao me
envolver com Gustavo e o que o Senhor esperava de mim na área
sentimental. Por graça, tive a literatura ao meu lado e pude ver bons
exemplos na vida de personagens que eu admirava. Vivenciar essa dolorosa
experiência, me ajudou a crescer na fé e assumir o compromisso de não mais
me deixar levar pelas paixões do meu coração.
— E você mudou muito — comentei sincera.
Não sei o que havia acontecido com o Gustavo, mas ele estava bem
diferente. Não que tivesse ficado feio, embora já não ostentasse mais seu
longo cabelo loiro de surfista. Ele apenas só não era mais grande coisa aos
meus olhos e o encanto que me fazia mal conseguir respirar perto dele, havia
se dissipado de vez. Ainda bem!
— Pensei que a gente nunca fosse se ver novamente, mas olhe só onde
estamos — Gustavo prosseguiu a conversa. — Foi uma época conturbada
para nós, não?
“A tortura começou” lamentei.
— Eu costumo não pensar muito naquela época. — Ri sem graça. —
Apenas agradeço ao Senhor porque já não sou quem eu era.
— Sinto o mesmo. — Ele maneou a cabeça. — Eu não entendia na época,
mas graças a nossa história, pude conhecer a Jéssica, meu grande amor. E
claro, também ganhei uma prima! Deus transformou o mal em bem.
Eu não sabia o que era pior, o palerma trazer o passado à tona com tanta
naturalidade ou fazer tudo parecer como um infortúnio sem relevância, tal
como um resfriado.
Será que ele se lembrava da mensagem que me mandou antes de partir
sem dar adeus? Pois, eu lembrava muito bem e era assim:
“Júlia, você é uma moça bacana e merece alguém melhor. Não podemos
continuar, pois nesse tempo ao seu lado, o Senhor me mostrou que devo
seguir como celibatário”
O jeito espiritual dele de me dar um fora me marcou para sempre.
Respira, Júlia!
Eu precisava manter a calma e lembrar que eu já havia o perdoado antes e
não podia me abalar.
— Espero que faça a Jéssica feliz — desejei, sincera, esperando encerrar
nosso papo ali mesmo.
— Eu farei, prima. — Ele piscou. — E eu também espero vê-la feliz no
seu casamento em breve. Não é, Ian?
De onde ele havia tirado que eu me casaria eu não sabia, mas lembrar que
Ian ouviu a conversa me deu um pouco de vergonha. Será que me saí bem ou
pareci amargurada e aborrecida demais? Eu devia perguntar.
Olhei para o meu amigo e ele estava com um semblante estranho, parecia
um pouco tenso, talvez incomodado.
Será que havia se arrependido de aceitar o convite para estar ali?
— O que planeja fazer com esse violão nas suas costas, Gustavo? — Ian
mudou o assunto, o que foi ótimo para dissipar a tensão, e só aí, notei o
instrumento carregado pelo outro.
O noivo então desatou a falar da música que estava compondo para
homenagear a sua amada no dia do casamento. Entretanto, estava
desesperado, pois ficou sem criatividade para escrever as últimas estrofes.
— Vamos, eu te ajudo a terminar. Em nome dos velhos tempos. — Ian
deixou o carro e eu temi que estivesse ansioso para sair do meu lado. Aquilo
foi estranho. O que havia de errado com ele?
— Enquanto roubo seu amiguinho por algumas horas, por que você não
vai até o casarão cumprimentar a Jess? — Gustavo sugeriu e eu assenti,
vendo-os sair andando em seguida.
Vencer aquele primeiro encontro nada confortável, me deixou mais calma.
Agora sim, eu poderia relaxar, ignorar Gustavo e aproveitar os dias até a
festa. Antes disso, eu precisava confirmar se Jéssica também não se sentia
esquisita com minha presença ali.
Caminhando até a varanda, avistei Ian mais a frente, sendo apresentado
por Gustavo a minha família. Isso me fez orar ao Senhor e pedir que
ninguém implicasse com ele, incomodando-o para ter um relacionamento
amoroso comigo. Até mandei uma mensagem para o coitado, pedindo
desculpas adiantado, caso alguém o pressionasse com alguma brincadeirinha
e ele respondeu o seguinte:
Ian: “Tudo bem, Jubs. Se eu decidisse me casar com você,
hipoteticamente, com certeza não seria porque estou sendo pressionado por
brincadeirinhas e sim por ter visto minhas orações sendo respondidas e o
Senhor aprovando nosso relacionamento hipotético. Ainda assim, se te
incomoda brincarem com isso, vou pedir que não façam mais”.
Meu coração disparou e engoli em seco. Li aquelas linhas várias vezes,
tentando entender bem a mensagem.
O que aquilo significava? Casar comigo hipoteticamente?
Céus! Ian sabia mesmo como deixar uma amiga desconcertada.
Jubs: “Se suas admiradoras da igreja lerem sua mensagem, vão ficar com
raiva de mim”.
Depois pensei bem e temi ter parecido uma amiga ciumenta. Cogitei
apagar a mensagem, mas já havia sido visualizada, embora não respondida.
Eita.
Engoli em seco. Será que falei bobagem?
Que bagunça! Eu deveria falar com a minha mãe sobre isso, afinal, se ela
não tivesse começado com aquele papo de “Ian bom partido”, eu não estaria
pisando em ovos com ele agora.
Respirei fundo e decidi deixar o celular de lado, retomando meu objetivo
inicial de ir em busca de Jéssica.
Encontrá-la não foi difícil, pois assim que cheguei à varanda, sem que
tivesse chance de acenar para meus outros parentes, a linda garota ruiva veio
ao meu encontro e me apertou em seus braços.
— Você veio para o meu casamento! — Ela sorriu para mim com
animação, o que novamente me deixou aliviada. — Nossa! Que estranho
dizer isso. Nem acredito que vou mesmo casar!
— É um momento histórico na vida da Srta. Odeio-Casamentos —
brinquei e apertei a bochecha dela. — Espero que Gustavo seja bom para
você ou eu quebro o nariz dele.
Jéssica agradeceu e olhou triste em direção ao noivo, na outra extremidade
da varanda.
— Você não está ressentida comigo por conta daquela história entre vocês
dois? — ela perguntou preocupada.
Balancei a cabeça.
— É claro que não, Jess. — Toquei a mão dela. — A notícia me pegou de
surpresa, é verdade. Mas o passado já não tem mais importância. Eu desejo
felicidade no Senhor para vocês.
Jéssica deixou os ombros caírem como se tivesse tirado um peso dali e me
abraçou outra vez.
— Ufa! Agora sim posso aproveitar, sabendo que não magoei minha
prima favorita. — Ela deu tapinhas nas minhas costas e recuou, segurando
minha mão. — Venha! Temos muito o que fazer.
Eu a acompanhei para dentro do casarão e aproveitei para saudar o
restante da família, antes que mamãe me repreendesse por agir como uma
antissocial.
Em seguida, Jéssica trouxe uma caixa enorme e me atribuiu a tarefa de
embalar as lembrancinhas, também me pediu ajuda para revisar seus votos e
auxiliar sua mãe, tia Beth, a preparar os quartos para receber os hóspedes.
Perto da hora do almoço, minha avó Fátima me mandou arrumar a grande
mesa da varanda, dispondo os pratos, talheres e copos nos lugares
adequados.
Chegando na área externa, procurei por Ian e o encontrei conversando
com os noivos e mais uma moça jovem, a quem eu não conhecia. Ele parecia
bem confortável e até sorridente, dando mais atenção à garota, do que ao
restante do grupo.
Será que gostou dela, por isso estava sendo tão simpático?
Que sensação estranha.
— Está vendo só? — disse mamãe, chegando por trás de mim, me dando
um susto. — Eu não lhe disse que Ian logo encontraria uma boa moça?
Ergui as sobrancelhas e voltei minha atenção para a organização dos
pratos.
— A senhora acha mesmo que Ian se casaria com alguém que mal
conhece?
— Claro que sim. Eu conheci seu pai no casamento da sua tia Beth —
avisou. — E olha, ele também tinha uma amiga que o desprezava.
— Eu não desprezo o Ian.
— Acorde antes que seja tarde, Júlia!
Meu primeiro dia na chácara foi intenso.
A correria com os preparativos do casamento me deixou ocupada o
bastante para nem me dar conta da existência de Gustavo. Ainda era um
pouco incômodo recordar do meu passado com ele, mas decidi imitá-lo e
esquecer de vez todos os infortúnios entre nós. Sei que por ter resolvido essa
pendência eu deveria estar em paz para curtir aquelas curtas férias, mas
outro problema surgiu.
"Trazer Ian aqui foi um erro", foi o meu primeiro pensamento quando fui
chamada pelos noivos e alguns dos nossos primos jovens para relaxarmos
juntos no salão de jogos.
Graças a correria daquele dia eu estava doida para cair na cama. Porém,
como dormiria em paz sabendo que aquela Suelen, amiga da minha prima
com quem vi Ian conversando mais cedo, também estava no grupo?
Fiquei incomodada. E esse incômodo era um sentimento estranho para
mim, pois nunca me importei com Ian fazendo novas amizades, aliás, até
incentivava porque ele era um bicho do mato e precisava ser mais sociável.
Eu só não gostei de ver aquela moça agindo como se o conhecesse há muito
tempo. Por isso, assisti-los jogando xadrez, não foi uma visão agradável para
mim.
— Xeque-Mate! — Ian exclamou, derrubando o rei de Suelen no
tabuleiro. Ela riu da empolgação dele e pediu uma revanche.
Mais ao lado, Jéssica e eu jogávamos pebolim, relembrando nossa
infância. Eu era ótima nesse jogo, mas estava perdendo de lavada, já que
minha atenção havia se dissipado completamente.
— Eu sabia que esses dois nerds se dariam bem — Jéssica comentou
orgulhosa ao notar a fonte da minha distração. — Viu no almoço como eles
conversaram sobre Star Wars?
Expirei.
Mamãe implicaria comigo se soubesse como a aproximação entre os dois
se deu justamente por conta do presente de aniversário que dei a Ian, no
caso, uma camiseta cuja estampa era uma Fanart[18] de Star Wars desenhada
por mim.
— Eles se deram bem, é verdade — respondi neutra e desviei o olhar da
mesa de xadrez. — Ian deve estar feliz por encontrar alguém tão parecido.
Jéssica sorriu muito animada quando eu disse aquilo, deu a volta na mesa
e parou bem ao meu lado.
— Você podia dar uma força e falar bem da Suelen para ele. Acredite, ela
é uma boa moça — sussurrou enquanto empurrava seu cotovelo em direção
ao meu. — Convenci ela a vir passar esses três dias aqui, justamente para
ajudá-la a conhecer novos rapazes. Na nossa igreja, não há ninguém e…
bem, o Ian está solteiro, e ela também. Eles podiam unir as forças.
Mordi o lábio com força.
Imaginar Ian casado me causava desconforto. Isso porque, se ele fosse
abençoado com uma esposa, nossa amizade não seria mais a mesma. O seu
companheirismo seria destinado a outra pessoa e acabaríamos nos afastando.
Nessa hora, percebi que mamãe estava certa. Mais cedo ou mais tarde,
Ian, sendo o bom rapaz que era, encontraria alguém e o que seria de mim
sem ter ele ao meu lado?
"Ah, Senhor deixe meu amigo solteiro por mais alguns anos" pedi
angustiada, mas, logo em seguida, vendo-o rir de alguma coisa que aquela
bela moça nerd contou, me arrependi do meu egoísmo.
Onde eu estava com a cabeça?
— Pode deixar, vou sondar Ian e descobrir se ele gostou dela — declarei
com prontidão e Jéssica comemorou. Ela queria combinar alguma estratégia
comigo, mas minha cabeça estava cheia, então preferi encerrar a conversa
ali. — Depois resolvemos isso. Acho melhor eu ir dormir. Estou cansada.
Ela assentiu e após pedir licença, saí do salão, dando um breve boa noite a
todos.
Não levava muito tempo para chegar ao casarão, mas resolvi andar
devagar, aproveitando a solidão para pensar um pouco. Meus pensamentos,
no entanto, giravam em torno do possível futuro casal e isso me encheu de
agonia.
— O que há com você, garota? — murmurei, bagunçando meu próprio
cabelo. — Por que estou pensando em tantas bobagens? — Chutei algumas
pedras em meu caminho e olhei para cima. — Por favor, Senhor, coloque
algum juízo nessa minha cabeça oca!
— O que houve? — A voz inconfundível de Ian soou atrás de mim, me
assustando. Ao me virar para encará-lo, ele fez uma careta para a bagunça de
fios em minha cabeça e esticou o braço, me ajudando a domar aquela juba.
— O que é isso, garota? Está parecendo uma doida. Gustavo te falou algo?
Afastei a mão dele do meu rosto e voltei a caminhar.
— Eu só posso ser uma doida mesmo — murmurei. — Se veio por estar
preocupado comigo em relação ao meu novo primo, saiba que tudo foi
resolvido. — Cruzei meus braços quando bateu um vento mais forte. —
Devia voltar para sua amiga do xadrez, amante do Baby Yoda[19].
Ouvi a risadinha dele e me surpreendi no momento em que se colocou ao
meu lado, passando o braço por cima dos meus ombros. Meu coração
começou a batucar com a nossa proximidade e me senti um pouco
constrangida por reparar em como o perfume de Ian me agradou. Achei
melhor me afastar.
— Isso é sua forma de dizer que sentiu minha falta, Jubs? — ele sondou e
dei de ombros.
— E você nem sentiu a minha, certo? — Me virei na direção dele e o
espertinho apenas sorriu de maneira debochada. — Aliás, volta lá para o
xadrez. Sua nova amiga solteira não gostaria nada se te visse pendurado em
mim, como um carrapato. Sem dúvidas, julgaria todos os bateristas crentes
do mundo por sua causa.
— Não tenho nenhuma outra amiga solteira me julgando por ser baterista
nessa chácara — ele contou, colocando suas mãos nos bolsos da calça —,
além de você, é claro.
Ergui as sobrancelhas.
— Como não há, Ian? E quanto a Suelen? Jéssica afirmou que a trouxe
para cá a fim de ajudá-la a conhecer novos rapazes.
— Sério? Até onde sei, Suelen era namorada de um colega meu. — Coçou
o queixo. — Nos conhecemos em uma conferência há cerca de um ano e
pouco.
— Ora! Você sabe muito bem como alguns jovens cristãos não pensam
como nós, sobre encarar um relacionamento como algo sério, que leve ao
casamento. Se foi há tanto tempo, isso significa que ela poderia sim estar
solteira agora, não acha?
— Sei lá. — Deu de ombros — Não tive o menor interesse em saber da
vida amorosa dela. O fato é que eu a conhecia, por isso nos demos bem. Quis
te contar, mas você pareceu me ignorar durante a tarde toda porque estava
com ciúmes.
Soltei o ar todo de uma vez, como se tivesse me livrado de um fardo. Que
bom que ele não tinha interesse nela e a tratou como a namorada de um
amigo.
— Ciúmes? Eu? — Empinei o nariz. — Era mais uma preocupação como
amiga. Aliás, não te ignorei, apenas fiquei muito ocupada.
— Sei. — Ele me encarou e em um movimento rápido, tirou seu moletom
e o enrolou ao redor dos meus ombros. — Ah, e sim, senti sua falta e
gostaria de aproveitar algum tempo ao seu lado antes de irmos dormir, o que
acha?
Minhas bochechas queimaram e, disfarcei a vergonha, me ocupando em
vestir aquela blusa cheirosa.
— Você está diferente, Ian — comentei e ele desviou o olhar. — O que
está havendo?
— Nada demais, bobinha. — Uniu os lábios, constrangido, e brincou
comigo, puxando o capuz sobre minha cabeça. — Te contei que ajudei seu
tio a consertar a caminhonete do caseiro? — ele desviou o assunto. —
Durante o trabalho ambos me falaram de um gazebo próximo a horta, de
onde podemos ver as estrelas. Fiquei curioso. Quer ir comigo?
— Certo, mas vamos avisar papai antes.
— Já avisei — disse. — Seu irmão e primos mais novos estão brincando
no parquinho ali perto e seu pai está por lá para ficar de olho neles e em nós
dois também.
Assenti, tentando não transparecer o quanto meu coração se agitou com o
cuidado dele em cada um de seus passos em relação a mim.
Nós andamos lado a lado em direção ao gazebo e aproveitamos para
conversar sobre o nosso dia. Foi bom ouvi-lo relatar sobre o carinho com o
qual foi recebido por meus parentes, de quem, aliás, ouvi muitos elogios
acerca da simpatia e a disposição dele em servir a todos.
Nós passamos pelo parquinho, trocamos algumas palavras com meu pai
que tentou nos assombrar com seu famoso jargão: "O que eu não ver, Deus
verá", e subimos as escadas até encontrarmos aquela linda estrutura de
madeira cuja vista das estrelas e dos montes ao redor, sempre me tiravam o
fôlego e não por menos, na capital de São Paulo, onde morávamos só havia
fumaça e poluição.
— Leu a bíblia hoje? — Ian rompeu meus pensamentos e acendeu as
luzes enquanto eu admirava a vista.
— Meu plano era ler antes de dormir — informei enquanto dava uma
volta e ouvia meus passos rangendo na madeira.
— Te conheço, Júlia. Sei que você dormiria no primeiro versículo. — Ele
riu, me acompanhando com os olhos e tomou um lugar no banco-balança
que ali havia, tirando uma bíblia, daquelas pequenininhas, do bolso de sua
calça. — Vem, vamos ler juntos.
Fiquei nervosa.
Aquele não era um cenário romântico, eu disse a mim mesma. Todavia,
não havia nada mais tocante do que ser convidada por alguém para buscar ao
Senhor juntos. Até me lembrei dos momentos fofos entre Anne e Edwin
quando eles se uniam com aquele mesmo propósito.
— Claro. — Juntei minhas mãos suadas e me sentei perto dele, dando um
espaço pequeno entre nós. — Qual é sua leitura atual?
— Eclesiastes 3 — informou e deslizou até mim.
Fiquei impressionada mais uma vez e, enquanto o ouvia ler e explicar
sobre o tempo certo das coisas, foi impossível não pensar em Amor Real.
— Sempre que leio esse texto, fico emocionada lembrando como Deus
usou sua Palavra para mostrar a vontade Dele em relação ao futuro de Anne
e Edwin — comentei ao final de sua explicação e cocei a nuca com o olhar
que recebi. — Desculpa, não pude evitar.
— Está tudo bem. Também gosto dessa parte no livro um. A soberania de
Deus é enfatizada em tudo. Seja no governo de um reino, como Cibele, ou
na escolha de quem vamos nos casar. Há muito a se aprender com a história
do seu casal favorito. — Ele riu ao ver meu queixo caindo. — Sim, eu li os
livros por sua causa. Senti falta de guerras ou invasões alienígenas, confesso,
mas, no geral, a história é incrível e entendi os motivos por você ter se
encantado tanto com aquele príncipe.
— Uau! — Pisquei algumas vezes, incrédula. — Há anos tento te fazer ler
e você resiste, então por que decidiu fazer isso agora?
— Porque, em primeiro lugar, lembrei que fizemos uma aposta, e
segundo, porque um dia comecei a ler e não consegui parar — ele confessou
embaraçado. — E agora que ganhei a aposta, você me deve um desejo.
— O que você deseja? — Esbocei um sorriso. Eu estava tão encantada
que faria qualquer coisa para agradá-lo naquele instante. — Quer assistir
toda a saga de Star Wars comigo ou ir à Paulista comer aquelas comidas
apimentadas que você tanto ama?
— Nenhum dos dois. Você dorme no meio dos filmes que sugiro e tem
dor de barriga com comida apimentada — ele falou preocupado, mas não
pude evitar lançar um olhar feio em sua direção. — Eu vou te contar o meu
desejo durante o casamento dos seus primos. Ainda vou pensar bem no
momento ideal.
— Esse mistério todo é mesmo necessário? — sondei e ele afirmou com a
cabeça.
— Vai valer a pena, garanto. Estou me preparando para isso desde que
você me convidou para a viagem — ele explicou, mas isso me deixou
ansiosa.
Tive a impressão de que Ian estava demonstrando mais interesse em mim
do que o normal e cogitar isso me deixou muito temerosa.
Será que depois de Gustavo eu estava pronta para abrir meu coração outra
vez? Eu achava que não e antes de ver Ian criando falsas ilusões comigo,
pensei em um modo de afastá-lo.
— Já sei! — Forcei uma risadinha. — Vai me usar como correio elegante,
caso goste de alguma moça na festa, como fez naquele acampamento quando
tínhamos uns quinze anos. Pode deixar, farei com todo o prazer. Mas peço
que dê uma chance a Suelen. Tenho certeza de que ela está solteira também.
Os ombros dele caíram, ele ficou quieto por alguns segundos, o que me
deixou preocupada, e enfim, se levantou.
— Aonde vai? — perguntei ansiosa. — Nós nem oramos ainda.
— Preciso orar sozinho — ele respondeu impaciente e seguiu para as
escadas do gazebo.
Eu o segui e segurei o braço dele.
— Você está doido? Que reação é essa? — confrontei-o, sem entender
nada. Ele se manteve quieto, com a mandíbula cerrada. — Responde, Ian.
O olhar frio que me lançou em seguida me quebrou.
— Eu sei o que você está fazendo, Júlia, e é uma estupidez — ele acusou
e eu olhei para baixo, envergonhada. — A pior parte é que, enquanto admiro
como o Senhor te transformou, você ainda pensa em mim como aquele
garoto tolo de quinze anos. Pare de achar que sou como o Gustavo era! Pare
de ver em mim só um baterista sem temor ao Senhor ou consideração pelas
irmãs em Cristo! — aumentou o tom de voz e eu engoli em seco. Nunca o
ouvi sendo tão sério. — Gostaria que ao menos por um dia você me
enxergasse como homem de verdade.
Abri a boca para responder, mas ele não me deu chance e saiu andando,
me deixando para trás, confusa e desolada.

O relógio marcava três e meia da madrugada de sábado.


Todos dormiam na chácara, enquanto eu, vítima de um sério caso de
insônia, estava de pé, diante do fogão, mexendo o brigadeiro na panela sem
parar.
Foi impossível deitar na cama e dormir quando minha cabeça parecia que
explodiria a qualquer instante. Não consegui nem me concentrar para orar,
pois bastava começar e as palavras se perdiam no turbilhão de pensamentos
e tentativas de chorar sem fazer barulhos para não acordar meus pais,
dormindo no mesmo quarto.
Angustiada, decidi que só ficaria bem depois de me afogar em
carboidrato. Eu correria atrás do prejuízo depois, literalmente. Por isso, desci
para a cozinha, onde teria paz para pensar bem longe do ronco do papai.
Durante o preparo da receita, repassei mentalmente todos os meus passos
do dia anterior e me senti péssima ao chegar na parte em que ouvi “Gostaria
que você me enxergasse como homem de verdade”.
Só de repetir essas palavras, as lágrimas vieram.
Naquele momento, meu coração se dividiu entre achar que Ian exagerou
em sua reação e sofrer por machucá-lo, logo ele, que sempre esteve ao meu
lado.
Mas o que eu poderia fazer?
Ian estava agindo tão estranho, sendo ambíguo o tempo todo. Se estava
magoado ou incomodado, deveria ter falado antes e não explodido daquela
maneira.
Sequei minhas lágrimas com a gola do meu pijama e comecei a tossir
quando uma fumaça subiu da panela.
Levei um susto ao notar que, durante meus devaneios, o brigadeiro tinha
transbordado e feito a maior bagunça no fogão. Apaguei a chama, mas
consegui a proeza de queimar minha mão.
— Ótimo! Era tudo o que eu precisava! — exclamei irritada e com dor.
— Desse jeito vai acabar incendiando a casa, minha filha — disse minha
mãe, se aproximando e me levando até a pia para lavar a queimadura com
água corrente. Devo tê-la acordado, sem querer. — Mamãe cuida de você.
Enquanto a água batia contra minha pele quente, me senti ainda pior.
Aquilo só podia ser castigo.
— Eu só queria brigadeiro — expliquei com a voz embargada. — Mas
não mereço. Sou uma pessoa horrível e ganhar uma queimadura é minha
punição.
— Não seja tão dramática, menina. — Me lançou um daqueles olhares
feios e me conduziu até a bancada, onde tomei um lugar nos bancos de
madeira. Depois, ela foi à dispensa e retornou com um Kit Primeiros
Socorros. — Seu pai me disse que tentou conversar depois que deixou o
gazebo mais cedo, mas você não quis. Fiquei preocupada. Quer me contar o
que aconteceu?
Balancei a cabeça negativamente. Eu estava muito envergonhada para
contar qualquer coisa, mas também queria muito os conselhos dela.
Pedi a Deus uma direção e, enquanto ela estava concentrada em fazer um
curativo na minha mão, os versículos de Provérbios 1:8-9 me vieram à
mente:
“Ouça, meu filho, a instrução de seu pai e não despreze o ensino de sua
mãe. Eles serão um enfeite para a sua cabeça, um adorno para o seu
pescoço”.
Eu havia decorado esse texto depois de quebrar a cara e o coração com
Gustavo, por não buscar o conselho dos meus pais. Quis fazer tudo sozinha,
decidir por conta própria e no fim, foram eles quem me ajudaram a ficar bem
outra vez.
Desde então, prometi ao Senhor que buscaria a instrução daqueles a quem
Ele deu autoridade em minha vida para me guiar, ainda que isso significasse
ser repreendida ou machucada com a verdade.
No fim, respirei fundo e optei por dar todos os detalhes à mamãe daquela
crise e ela me ouviu sem abrir a boca.
— Ian me deu a entender que eu o desprezo e não o vejo como homem de
verdade. Mas ele está enganado, mamãe. — Fiz uma pausa, tomando ar em
meio às minhas lágrimas. — Ian não é só meu amigo, mas é um irmão para
mim também. Mesmo não expressando, sempre admirei sua fé, bondade e
firmeza de caráter. Como ele pôde falar que não o vejo assim?
— Coitado desse rapaz. Deve estar sofrendo e frustrado por conta da sua
lentidão em perceber as coisas. — Ela expirou, deixou a mesa por um
instante e voltou com o brigadeiro e duas colheres. — Está na cara que Ian
não quer mais ser seu amigo e muito menos, seu irmão.
— Não quer? Mas, não machuquei ele de propósito, mamãe! Sempre fiz o
meu melhor para ser uma boa amiga e agora ele simplesmente quer desistir
de tudo — contradisse magoada e dei uma colherada no doce, agradecendo
porque ainda estava uma delícia. — Ele se cansou de mim, é isso?
Mamãe bateu com a mão na testa.
— Puxou ao pai, com certeza — sussurrou, mas não baixo o bastante para
proteger meus sentimentos de seu sarcasmo. — Você sabe bem do que eu
estou falando, Julia. Se esse menino for mais claro quanto aos sinais que dá
sobre os sentimentos dele por você, vai precisar de um Outdoor.
Sentimentos por mim. Era estranho ouvir aquilo. Eu não queria acreditar.
— Será mesmo que ele tem sentimentos por mim, mamãe? Digo, há um
carinho mútuo entre nós, é verdade, mas sou tratada por ele como qualquer
outra moça da igreja. Embora sejamos próximos, nunca ouvi ou presenciei
nenhuma atitude dele que pudesse me iludir ou machucar.
— Ian não é um garoto qualquer, pois te respeita e não te iludiria,
bobinha. — Ela umedeceu os lábios. — Posso estar enganada, mas notei
como ele mudou depois de começar a trabalhar com o seu pai no início do
ano retrasado. Para mim, ele pareceu mais preocupado com você.
Era verdade. Ian sempre foi muito desligado e precisava ser importunado
para não esquecer de coisas importantes, como datas especiais e horários,
por exemplo. Nos últimos tempos, porém, ele estava mais atencioso. Além
de se lembrar dos eventos, sem que eu precisasse incomodá-lo, também fazia
questão de me levar para casa após os ensaios ou reuniões da mocidade, me
buscava no metrô quando eu tinha algum trabalho para fazer no centro da
cidade e sempre trazia meu chocolate favorito. Eu não via aquilo como
paixão, mas como um rapaz preocupado com a segurança da filha de seu
patrão.
Céus! Será que ela estava certa?
— Ai, mamãe, me desculpa, mas a senhora não está imaginando coisas?
— Cruzei os braços. — Nenhum garoto em plenas faculdades mentais se
apaixonou por mim — declarei e senti minha garganta fechando. — Gustavo
apenas me iludiu e todos os meus outros crushes [20]foram platônicos. Como
isso pode ser possível?
— E se Ian realmente não tiver os parafusos no lugar e desejar se casar
com você? Como se sentiria?
Balancei a cabeça.
Ian não era bem como eu idealizava um futuro marido. Mas ele era cristão
e mostrava amor ao Senhor, me levando a crer que se esforçaria para
cumprir seu papel quando se casasse.
Eu não conseguia pensar nele, sem admirar suas qualidades e seu jeito
fofo. Ao mesmo tempo, tinha algumas ressalvas, pois não me sentia segura
para me deixar levar por sentimentos como aquele.
Será que Ian era o homem certo para mim?
— Não sei. É estranho pensar nisso. — Olhei para baixo. — Meu maior
desejo é vê-lo feliz, sendo amado, inclusive com suas esquisitices. — Tentei
me imaginar casada com o Ian e foi bem agradável, confesso. Eu só não
podia admitir. — Como eu poderia fazê-lo feliz, se somos tão diferentes?
— E em que são tão diferentes?
— Tudo! — Movimentei as mãos. — Discutimos nos ensaios porque ele
gosta das mesmas músicas velhas. Sempre quer comer comida asiática, e eu,
pizza. Briga comigo por eu dormir durante os filmes Sci-Fi[21] chatos que ele
escolhe e ama. E, o pior de tudo, não suporta romances. — Cocei a cabeça.
— A senhora e o papai são sempre tão sintonizados. Quero viver algo assim
também e não casar com alguém apenas para ficar brigando por picuinha.
— Ah, entendi. — Ela cruzou os braços. — Olha, Júlia, já tivemos essa
conversa antes e não preciso dizer que seus pontos são superficiais, você
sabe disso. Pense um pouco, se fossem tão incompatíveis como diz, vocês
nem seriam amigos. O que te faz vê-lo como um irmão?
Nem precisei pensar muito para encontrar essa resposta.
— Ele ama a Cristo e é paciente para me explicar as doutrinas. Cuida de
mim durante a visita às outras igrejas e faz com que eu me sinta segura
quando tenho vergonha de conversar com quem não conheço. Além disso,
tenho vontade de contar tudo do meu dia para ele; se algo bom acontece, ele
comemora comigo, mas, se fico chateada, ele é o primeiro a me dar palavras
de consolo e sabedoria.
— Não acha isso o suficiente para superar as diferenças e picuinhas? Se
vocês dois amam a Cristo, como sei que amam, não fariam pequenos
sacrifícios? — ela questionou e, em seguida, deu um sorrisinho. — Seu pai,
quando casou comigo, era apaixonado por buchada de bode, era seu prato
favorito. Mas apenas o cheiro me fazia passar muito mal e nós brigávamos
quando ele inventava de fazer. No fim das contas, ele ficou sem comer por
muitos anos, por minha causa. Um dia, no entanto, em nosso aniversário de
casamento, eu quis agradá-lo e venci meu nojo, preparando uma panela farta
só para ele. Nunca vi aquele homem sorrir tanto, nem no nosso casamento.
Eu sabia que minha receita não era tão boa, mas, ainda assim, o gesto o
deixou feliz. Percebe meu ponto?
Fiz que sim com a cabeça.
Como eu poderia me esquecer daqueles sacrifícios exigidos pelo
casamento que, embora muitas vezes fossem pequenos, faziam grande
diferença.
Ian deu um grande exemplo disso ao ler meus livros favoritos apenas para
me agradar. Isso era um indício de que, se alguém deveria aprender a ceder e
se sacrificar, era eu e não ele.
— Sei que você deseja encontrar um homem cristão, provedor, bonito,
provavelmente de linhagem real, com um nome começando com a letra E.
— Ela me olhou de canto, o que me fez rir. — Porém, até onde sei, o
príncipe na sua história favorita já tem uma princesa. E Ian é um bom
pretendente, ainda que não tenha sangue real.
Suspirei.
Meu coração inseguro ainda possuía algumas dúvidas, mas senti algo
mudar dentro de mim.
— Ainda que a senhora estivesse certa e Ian tivesse sentimentos por mim
— comecei, coçando a cabeça —, depois da nossa discussão de hoje, ele
deve ter desistido.
— Se ele desistiu por conta de umas palavras impensadas suas, então não
é o rapaz a quem seu pai e eu admiramos e desejamos ver entrar para nossa
família — mamãe declarou séria. Era engraçado saber que meus pais
aprovaram um rapaz antes de mim. — Confie em mim, como Boaz[22], esse
rapaz não vai descansar enquanto não resolver essa questão.
Como Boaz?
A história desse casal na bíblia me lembrava que Deus era soberano e se
importava em guiar seus filhos e filhas uns aos outros, para a formação de
novas famílias, quando este era o desejo Dele.
Desde menina, eu orava para me casar com um homem como Boaz e
aguardava uma resposta.
Seria Ian essa resposta?
Casar com ele ainda era uma ideia um pouco esquisita, mas de modo
nenhum desagradável.
Meu coração disparou novamente e as entranhas se reviraram.
Não acredito que demorei tanto para perceber o óbvio.
— O que eu faço agora? — questionei e ela deu alguns tapinhas em meu
ombro.
— Não se preocupe, já lhe disse, mamãe vai ajudá-la.

— Ian não vem para o café da tarde também? — Suelen perguntou para
Jéssica enquanto nós três, após mais um dia corrido, arrumávamos a mesa na
varanda.
Eu estava quieta, ainda refletindo sobre minha conversa com mamãe na
madrugada e todas as instruções dadas por ela sobre como remediar minha
situação com meu amigo, por isso não me importei com o claro interesse de
Suelen, perguntando a cada minuto sobre onde os garotos estavam.
Na verdade, eu até partilhava um pouco da mesma aflição e cheguei a me
perguntar se o fato de Ian ter passado a tarde toda com os homens da minha
família, ajudando nisso ou naquilo, não era uma forma dele evitar minha
companhia. Bem, isso não faria a menor diferença, pois eu estava
determinada a consertar meus erros.
— Os rapazes devem chegar antes dessa chuva que está vindo — mamãe
informou, entrando toda sorridente trazendo consigo um bolo de milho
fresquinho. Em seguida, parou ao meu lado e cochichou: — Não perca
tempo. Assim que seu príncipe chegar, chame ele para conversar.
Meu príncipe?
Mamãe às vezes ia longe demais.
— Mamãe, por favor — respondi entre dentes e, quando notei o olhar
curioso das duas moças, tratei de disfarçar, me ocupando em cortar as fatias
do bolo.
Depois disso ninguém disse mais nada e, aos poucos, as mulheres mais
velhas, que antes se dedicavam a fazer ajustes em alguns vestidos no quarto
de costura, foram tomando lugares à mesa.
Nos acomodamos, oramos juntas e o falatório típico de muitas damas
reunidas tomou conta do ambiente. Ora ou outra, eu até opinava sobre algum
assunto, mas meus pensamentos estavam longe.
No momento em que meu irmão mais novo surgiu na estrada correndo
para nos avisar da chegada dos outros rapazes, voltei a ficar alerta. Minhas
mãos começaram a suar e achei aquele um bom momento para repassar
mentalmente meu discurso de reconciliação com Ian.
Minutos depois, mesmo distante, eu o avistei na estrada, caminhando ao
lado do meu pai. Isso foi o bastante para o meu coração disparar.
O que havia de errado comigo? A presença do meu amigo nunca me
deixou nervosa antes e agora eu parecia prestes a infartar.
Por alguns segundos me distraí, vendo os homens se acomodarem nos
espaços vagos e senti um frio na barriga ao notar que os dois últimos lugares
disponíveis eram um ao lado de Jéssica, o qual Gustavo ocupou e o outro de
Suelen.
Ian subiu as escadas da varanda e olhou ao redor, como se estivesse em
busca de algo.
Quando nossos olhos se encontraram, minha primeira reação foi desviar
para baixo, observando meu prato.
— Posso me sentar ao seu lado? — Ian perguntou instantes depois,
parando perto de mim. Antes que eu pudesse dizer sim ou não, meus pais
foram rápidos em mobilizar a família em se mover para o lado no banco.
— Tem certeza? — Cocei a cabeça, pois o rosto neutro dele não me dizia
se ainda estava com raiva de mim ou não.
Ele assentiu e se acomodou ao meu lado.
Novamente, meu corpo reagiu a presença dele de forma estranha e não
havia nada de romântico naquelas borboletas em meu estômago, me
causando um sério enjoo.
Certo! Eu precisava resolver aquela situação, antes que a ansiedade me
matasse de uma vez.
— Ian — chamei enquanto ele se servia com café. O rosto dele virou em
direção ao meu e o simples fato de poder contemplar os olhos dele de perto,
me deixou desnorteada.
— Sim? — Ele ergueu as sobrancelhas quando demorei para responder.
— É, minha tia fez aqueles bolinhos de abobrinha que você gostou ontem.
Quase não sobraram, mas guardei alguns para te dar. — Usei meu garfo e
coloquei todos os meus bolinhos no prato dele. — Coma tudo.
Ian piscou algumas vezes, olhou para a sua comida, depois para mim e
então esboçou um sorrisinho.
— Minha mãe costuma colocar comida no meu prato assim, mesmo se
não quero comer — ele contou com bom-humor. — Ela afirma que me
engordar é sua forma de demonstrar amor.
— Eu sei. Já a vi fazendo isso — comentei, tamborilando os dedos na
mesa. — Por isso, quis fazer igual.
— Oh. — Me olhou confuso. — Obrigado por pensar em mim. — Ele
colocou a mão no bolso do moletom, tirou de lá meu chocolate favorito e,
com discrição, colocou em minha mão. — Também pensei em você na ida
ao mercadão mais cedo.
Aquele gesto, embora fosse corriqueiro da parte dele, me deixou muito
feliz.
— Obrigada. Isso significa que não está mais chateado comigo, por
ontem? — sondei com cautela. Eu não queria ter trazido o assunto à tona de
forma tão repentina, mas não me contive. Precisava saber o que ele estava
pensando.
— Se tem alguém que deveria estar chateado aqui, é você, Jubs. —
Expirou. — Passei dos limites ontem e peço perdão por isso.
— Não, Ian. Eu sei que te magoei e me arrependo muito disso.
— Fica tranquila. — Ele deu alguns toquinhos na minha cabeça. — Eu
pensei muito e entendi que não devo te pressionar daquela maneira. Isso não
vai mudar a forma como você me vê e está tudo bem. Prometo não te
incomodar mais com esse assunto.
Engoli em seco e senti o ar faltando em meus pulmões.
Aquelas palavras significavam que minha atitude o fez recuar em suas
intenções comigo?
Por um momento, fiquei sem saber como reagir ou o quê responder.
Eu deveria pedir que ele tocasse sim no assunto? Que continuasse a
insistir?
— Com licença, eu vou lavar a louça — foi tudo o que consegui
expressar.
Eu me ergui para sair da mesa e, quando me virei, dei de cara com minha
mãe, com aquela cara de “o que você está fazendo?”.
Meu desejo era abraçá-la e contar que os temores dela se tornaram reais.
Minhas atitudes tão ariscas me fizeram perder a chance de ter um homem
incrível como marido e, talvez, até como amigo.
Mamãe segurou minha mão, como se pudesse ler meus pensamentos, e
sorriu.
— Ian, querido, pode me fazer um favor?
— Claro, dona Ana — ele respondeu, já se levantando.
— Minha mãe me deu alguns tecidos que estão guardados em uma caixa
lá no barracão perto do lago. Você pode ir buscar para mim? Vou ensinar a
Júlia a fazer seus próprios vestidos — ela pediu toda sorridente. — Não é
muito pesada, mas você pode usar a bicicleta do tio Jairo para trazer.
— Certo, vou lá agora. Onde fica o barracão?
— É um pouco longe, então Júlia vai com você. Ela amava se esconder lá
quando era pequena. — Mamãe me olhou de soslaio. — Se apressem para ir
antes da chuva. Os tecidos não podem molhar.
Ian assentiu e saiu andando em direção ao meu tio Jairo, conforme a
instrução recebida.
Em sua ausência, mamãe me puxou de canto e eu achei por bem deixar
tudo claro.
— Não adianta mais, mamãe — sussurrei. — Ele desistiu de mim.
— Pare de besteira. — Ela tocou meu rosto. — Preste atenção, converse
com ele e abra seu coração. Não estou dizendo para se confessar ou tomar
iniciativa de declarar seu amor por ele, mas, com a amizade de vocês, tenho
certeza de que pode ser sincera. Lembra do que eu lhe disse ontem sobre a
maioria dos homens?
— Se não tiverem certeza de que são correspondidos, provavelmente vão
recuar — repeti o discurso dela. — Vou seguir o seu conselho.
— Ótimo, ele vem aí. Deus te guie, minha filha — desejou e eu sussurrei
um “amém”.
Recebi Ian de volta com um sorriso e nós, após nos despedirmos de
mamãe, deixamos a varanda. Fomos juntos até os fundos do casarão e
esperei meu amigo trazer as bicicletas guardadas no armazém.
— Seu tio me disse que as outras bicicletas estão quebradas, então você
vai comigo na garupa — ele instruiu sorridente, subindo na bike. — Como
nos velhos tempos.
Ian tinha razão. Nos velhos tempos, quando eu era uma menina pentelha,
ele sempre me dava uma carona em sua bike porque eu tinha medo de descer
a ladeira de nossas casas com a minha. Naquela época, eu confiava nele e
sabia que poderia me guiar, independente de quão perigoso fosse o caminho.
Eu deveria ter me lembrado disso antes.
Meu amigo fez um sinal, e, um pouco constrangida, me acomodei na
garupa, sentando com as pernas para um lado só, já que estava de vestido.
Ele começou a pedalar, guiado por minhas direções. Tudo foi muito
tranquilo nos primeiros metros. O clima de fim de tarde parecia fechado, e o
vento, ao mesmo tempo em que desgrenhava meu cabelo e balançava as
copas das árvores ao nosso redor, também trazia aquele aroma fresco e a
sensação de paz.
Quando o terreno ficou mais íngreme e um declive surgiu, fiquei com
medo de estar me segurando nas barras de metal na garupa. Tentei ficar
imóvel, mas Ian fez uma curva mais acentuada, quase me derrubando, então
abracei seu abdômen com bastante força, fazendo-o rir.
— Desculpa! — exclamei e ameacei soltá-lo, mas ele não deixou.
— Está tudo bem. Se está com medo, pode se segurar em mim, não vou te
deixar cair. Você estará segura ao meu lado — ele garantiu e, por alguma
razão, senti que suas palavras não tinham apenas relação com nosso passeio
de bicicleta. — Sempre.
— Eu confio em você — pronunciei devagar, pedindo ao Senhor que
dirigisse minhas palavras. — Andar de bicicleta era uma das minhas coisas
favoritas no mundo, mas, certa vez, quando Gustavo me levou para andar
naquele parque perto de casa, eu caí e me machuquei muito, lembra?
— Sim. — Ele balançou a cabeça. — Você ralou toda a sua perna. Eu até
fui à sua casa, com aquele estoque infinito de ervas medicinais preparados
pela minha mãe.
— Pois é. Depois daquilo acreditei que nunca mais seria capaz de andar
de bicicleta novamente. — Sorri, na esperança de que ele entendesse meu
recado. — Eu me achei muito burra por ter caído daquela maneira. Quebrei
minha bike e meus pais acharam melhor não me deixarem comprar outra até
que eu estivesse bem novamente. — Parei de falar alguns segundos para
indicar a ele que já nos aproximávamos do barracão. — Mas você sempre
esteve lá por mim. Até me ajudou a andar de novo quando levamos sua mãe
naquela exposição no Ibirapuera. Eu apenas nunca notei. — Suspirei e
segurei o moletom dele, sentindo as primeiras gotas de chuva caírem,
embaçando meus óculos. — Só agora vejo como fui abençoada por ter você
como meu melhor amigo, embora tenha percebido tarde demais.
— Tarde demais? — Eu o ouvi rir após frear a bicicleta e descer, me
ajudando a fazer o mesmo depois. — Você, por acaso, vai se mudar para
outro país e eu não estou sabendo?
— Não, mas sei que depois de tanto tempo tentando provar seu valor
como meu amigo, já deve estar cansado de esperar que eu te entenda. Deve
ter cansado de mim, aliás — falei e protegi meu rosto dos pingos grossos de
chuva. — Qualquer um cansaria.
Ele segurou minha mão e não se importou com a chuva, começando a nos
ensopar.
— Acho que temos proximidade o bastante para eu dizer que não sou
qualquer um na sua vida, Júlia — declarou sério, fazendo meu coração errar
algumas batidas. — Por que eu me cansaria da minha amiga favorita?
Independentemente do que aconteça, sua amizade é preciosa para mim.
Seremos amigos para sempre.
Amigos para sempre?
Sério?
Estávamos de mãos dadas, debaixo da chuva, em um clima perfeito para
uma declaração de amor e tudo o que ele queria era manter a amizade?
Não acredito que estava de fato começando a me iludir por ele!
Bufei.
O amor é terrível!
— Argh! Você é tão frustrante — declarei irritada e saí correndo para me
abrigar no barracão.
Ian e eu ficamos ilhados no barracão, graças a chuva caindo há pelo
menos meia hora, sem parar.
O momento que deveria ter sido dedicado a uma conversa franca entre
nós, se tornou algo tenso, incômodo e chato, pelo menos para mim e meu
orgulho ferido.
Eu não podia acreditar que depois de chorar a madrugada toda e passar o
dia ansiosa para ouvir, receber e retribuir os sentimentos daquele garoto,
tudo o que ele queria de mim era amizade eterna.
Ah! Como fui tonta!
Tudo bem, que eu não era ingrata a ponto de desprezar seu amor fraterno.
Ainda era amor. Mas será que me iludi sozinha e vi sinais de interesse onde
não havia?
Bem, minha mãe também viu esses sinais, não é? Então a culpa não era
toda minha.
Espera.
E se Ian estivesse me defraudando?
Se esse fosse o caso, diferente de como agi com Gustavo, ao invés de me
acabar em lágrimas, eu lhe daria uma surra e ainda o entregaria para sua
mãe. Dona Graça era um amor comigo, mas podia ser bem assustadora se o
assunto fosse o caráter de seus três filhos.
Estava decidido. Se eu visse mais uma atitude ambígua ou ouvisse
palavras românticas de Ian, eu soltaria os cachorros para cima dele.
— Até quando vai ficar toda emburrada comigo aí no frio? Você está
molhada, entra logo — Ian gritou de dentro do barracão enquanto eu estava
parada na porta, me tremendo e contando os segundos para sair daquele
lugar.
— Eu não estou emburrada com você — expliquei impaciente. A verdade
é que, além daquela sensação de ter sido tapeada, eu também estava
morrendo de vergonha de encarar aquele garoto depois de criar mil cenas
fantasiosas em minha cabeça, sobre como ele se declararia para mim. — Só
quero voltar logo para a casa.
— Sei — murmurou e o ouvi se movimentando pelo piso de madeira, até
parar ao meu lado. — E esse bico? — Ele apertou meu queixo, me fazendo
repreendê-lo, afastando sua mão. — Nem parece a garotinha simpática dessa
foto aqui. A legenda aqui atrás diz: “Júlia, 05 anos, feliz por encontrar um
príncipe encantado no ribeirão”.
Virei para o lado e arregalei meus olhos ao me deparar com uma
fotografia antiga minha, fantasiada com um longo vestido e uma coroa no
topo do meu coque apertado, tal como uma princesa. Meu sorriso ia de
orelha a orelha e meus braços estavam estendidos, mostrando ao meu pai o
seu futuro genro, um sapo cururu gigante com quem decidi me casar, depois
de usar o meu poder para transformá-lo em príncipe.
— Que vergonha! Devolve isso aqui — implorei e corri atrás de Ian, me
esforçando para tentar pegar meu bem de volta, sem sucesso. — Quem
mandou você ficar bisbilhotando as caixas, hein?
— Fiquei entediado com o seu tratamento de silêncio e, mexendo nas
relíquias guardadas aqui, encontrei um jeito de te fazer falar — ele
respondeu, rindo ao se desviar de mim, ziguezagueando pelos espaços livres
do barracão. — Júlia, por favor, me diga, você deu seu primeiro beijo em um
sapo?
Ele gargalhava enquanto fazia mil piadas sobre meu “noivo”.
— Ian, eu não beijei sapo algum! Eu vou te matar! Me dê isso aqui!
— Eu devolvo. — Esticou o braço o mais alto que pôde enquanto eu
pulava feito uma cabrita. Quanta humilhação! — Mas só se você me contar o
que fiz para te deixar tão irritada.
— Como você é chato! — Bufei e, desistindo daquele garoto, parei de
pular, dei as costas para ele e fui até o sofá velho, me jogando ali. Fazer uma
jovem pouco ativa como eu se exercitar tanto, era mesmo uma tortura. —
Estou brava porque poderia estar me dedicando a cuidar do meu cabelo e
pele para ficar bonita e não parecer uma ogra no casamento amanhã, mas
estou aqui, ensopada, cansada e sendo provocada por um bocó inconsistente!
Ian deu risada e veio se aconchegar perto de mim, colocando a foto em
cima da minha testa.
— Em primeiro lugar, você não vai parecer uma ogra. É a única menina
que eu conheço capaz de ficar linda de todo jeito. Ainda mais com essas
sardas fofas no seu rosto — elogiou, apertando minhas bochechas, o que fez
meu coração disparar. Precisei até desviar o rosto para não dar na cara o meu
rubor. — E depois, por que eu sou inconsistente?
Dei uma risada debochada.
— Você ainda pergunta? Por conta disso! — Apontei para nós dois. —
Um rapaz decidido a ser amigo para sempre de uma moça, não deveria
enchê-la de elogios assim, não acha?
— Sim, a não ser que esse rapaz tenha decidido acabar com essa amizade.
— O quê? — Olhei indignada. — Está vendo? Como pode ir de “Somos
BFFs, oba!” para “Estou decidido a acabar com essa amizade”? Isso é ser
inconsistente e ouso te acusar de estar brincando comigo e os meus
sentimentos.
Ele arregalou os olhos.
— Brincando? — Cruzou os braços, indignado. — Se me deixasse acabar
minhas frases, não me interrompesse ou saísse andando antes do meu
discurso triunfal, talvez você não tivesse uma impressão tão absurda do meu
caráter.
— Não é absurda. Pode negar que esteve estranho comigo durante esses
dias? Uma hora me tratava com carinho, depois se irritava comigo e me
evitava. Você é doido? — questionei, com raiva. — Pelo bem da minha
sanidade mental, seja claro comigo!
— Eu estou tentando, mas você é difícil! — rebateu e eu abri a boca para
respondê-lo, sem sucesso. — Poxa vida! Li aqueles livros românticos para
inspirar meu lado poeta adormecido e dizer o quanto eu te amo, e que não
quero mais ser só seu amigo e que não posso conceber uma vida sem ter
você ao meu lado como minha esposa. Mas não consigo porque a minha
princesa, ao contrário do seu livro favorito, só sabe reclamar e me ofender o
tempo todo! Saiba, dona Júlia, que quem está perdendo a sanidade sou eu, e
a culpa é sua!
Quando ele se calou, estava ofegante, e eu, chocada.
Era assim que um pedido de casamento deveria soar? Como uma briga de
galos?
— O quê?
— Ainda não entendeu? Amo você, de todo o meu coração! Quero
caminhar com Deus ao seu lado e estou te pedindo em casamento. É isso
mesmo — ele me interrompeu dessa vez. — Agora ouse me chamar de
inconsistente!
Não consegui dizer nada por cerca de um minuto.
Não era que eu não correspondesse aos sentimentos dele, mas é que nunca
fui pedida em casamento antes e, bem, não esperava que isso acontecesse
durante um embate verbal em um barracão empoeirado e cheio de
quinquilharias, com o mundo desabando em chuva lá fora.
Meus preciosos sonhos românticos, adquiridos após anos de leituras de
romances incríveis, tomaram uma surra da tirana realidade, e isso me
assustou.
— Mas… — cocei a cabeça, ainda em estado de torpor — cadê as flores?
A música brega? O clima romântico?
Ian riu da minha cena dramática.
— Preciso providenciar uma farda vermelha e uma coroa também? Só
assim serei aceito?
— Quem você pensa que eu sou, seu bobo? Não me iludo mais sonhando
em encontrar um príncipe Edwin. Na verdade, minhas expectativas nunca
foram tão altas, prova disso é esse sapo que tentei beijar — expliquei e Ian
continuava a rir. — Não que você seja um sapo. Está mais para um príncipe
de baixa renda e eu amo isso, até porque também não sou nenhuma princesa.
— Uni os lábios. — Eu aceito seu pedido de casamento, ainda que estivesse
esperando algo diferente disso.
— Misericórdia! Você deve ser a primeira pessoa do mundo a ofender um
homem enquanto aceita se casar com ele — ele comentou, reflexivo, e,
alguns segundos depois, se levantou, sem me dar a chance de me desculpar
por ter atrapalhado os planos dele. — Isso não pode ficar assim!
— Isso o quê?
— Como vou encarar nossos filhos, suas amigas ou seus pais depois de
você contar quão antirromântico fui em declarar meu amor a você. — Ele
fez uma pose, como se fosse um super-herói prestes a sair em uma missão
arriscada. — Espere aqui, minha nobre princesa!
Em seguida, ele partiu correndo em direção a porta e saiu na chuva, me
deixando confusa.
Ian era mesmo doido e me fez ficar sem conseguir parar de sorrir.
Senti a emoção tomar conta de mim quando a ficha caiu e me dei conta
que eu estava errada sobre as atitudes de Ian. Ele não estava me
defraudando, isso era um alívio. Sua clareza, ainda que floreada com certa
impaciência, em colocar todas as cartas na mesa, me deixaram encantada.
Olhei aquela foto boba em minhas mãos e lembrei como aquela garotinha
orava sempre com seus pais, antes de dormir, para encontrar um verdadeiro
príncipe. Um homem cuja nobreza estivesse em seu coração e fosse um
verdadeiro filho do Rei dos Reis.
Ian, ainda que tivesse feito um pedido meio capenga, era esse homem. E
estava disposto a me oferecer muito mais do que palavras e gestos
românticos, ele queria caminhar com Deus, sendo auxiliado por mim.
Isso era muito mais do que eu poderia pedir ou merecer. Muito melhor do
que o enredo de qualquer livro em minha estante. Era minha história de amor
e estava longe de acabar.
— Jubs, fecha os olhos! — Ian gritou lá de fora.
— O que você está aprontando? — investiguei.
— Apenas feche os olhos de uma vez e só abra quando eu mandar!
Dei uma risadinha e resolvi obedecê-lo.
— Pronto, mandão!
Sem ver mais nada, eu fui sendo consumida pela curiosidade enquanto
ouvia a intensa movimentação e o mexer de objetos de um canto para o
outro.
Os barulhos ficaram mais altos e próximos a mim. De repente, uma
música antiga e romântica, daqueles Flashbacks dos anos 80, começou a
tocar e eu sorri.
O que ele estava aprontando?
— Minha querida, olhe nos olhos do seu amado — Ian pediu, forçando
uma voz bem grave e eloquente, como um daqueles locutores de rádio.
A cena com a qual me deparei, foi um homem ajoelhado. Seus cabelos
estavam ensopados, tal como o tecido de algodão vermelho no qual estava
enrolado. Ele usava uma coroa improvisada com aquelas correntes douradas,
usadas para enrolar nas árvores de Natal e em suas mãos havia um buquê
não muito organizado com diversas flores coloridas.
— O que é tudo isso? — questionei, sem conseguir me conter de rir. Ian
era muito bobo.
— Júlia Maria Bragança — ele tomou minha mão e suspirou —, você é
uma amiga maravilhosa, companheira e aquela por quem orei durante vários
anos. Como descreveria todo o amor que tenho guardado por você? Como
expressaria a admiração por ver quão boa filha e serva de Deus você é?
Além disso, é linda, meiga e cheia de histórias hilárias, que sempre alegram
meu dia.
— Não precisa exagerar — sussurrei e ele fez cara de bravo, me
mandando ficar quieta, com um “shii”. — Desculpe.
— Eu me lembro do exato momento em que você ganhou meu coração foi
há dois anos, quando comecei a trabalhar com seu pai. — Ele acariciou
minha mão com o polegar. — Minha mãe ficou muito doente por um tempo,
mas estávamos apertados financeiramente, por isso meus irmãos e eu não
tínhamos tempo para mais nada, além de trabalhar. Você também tinha uma
rotina apertada, mas, ainda assim, sempre dava um jeito de acompanhar a
mamãe em suas consultas e exames.
— Sua mãe sempre foi um doce comigo, Ian. Eu não fazia mais do que
minha obrigação ao cuidar dela e dar uma força para o meu amigo —
comentei, admirada com a boa memória dele. — Além disso, fiz o mínimo
perto de tudo o que você já fez por mim.
— Não se subestime, boba. — Ele suspirou. — Foi depois disso que
comecei a reparar em você e todas as suas qualidades, defeitos e sonhos.
Tudo. Queria saber de tudo a seu respeito.
Senti as bochechas esquentando.
— Quanto mais o tempo passava, mais certa minha decisão de formar
uma família com você ficava, embora eu não passe de um bocó aos seus
olhos. — Ele riu e eu também. — Orei, busquei direção com nossos pais e
líderes, e esperei até ter certeza de que você sentia o mesmo por mim, até
pedi ao Senhor para te livrar dos seus medos e inseguranças, que visse meu
desejo sincero de cuidar do seu coração e ele me atendeu. Hoje, com a
benção do Senhor, quero pedir sua mão em casamento. Você aceita?
Meu sorriso genuíno e minha reação imediata foi abraçá-lo.
— Agora sim, você se superou! — Dei batidas nas costas dele e me
afastei rápido. — Sim, eu aceito você, meu príncipe-sapo!
— Eu estava aqui pensando — Ian começou durante a nossa caminhada
de volta ao casarão. Já estava escuro quando parou de chover e o céu se
transformou, deixando aquele aspecto cinza e revelando suas milhares de
estrelas. Contamos com a lua para iluminar nosso caminho e a lanterna do
meu celular —, agora que temos um relacionamento, podemos andar de
mãos dadas, não é?
Olhei para ele, admirada. Como alguém podia ser tão fofo?
— Claro que não — respondi de supetão, recebendo um olhar inquisitivo
dele. — Como vamos dar as mãos se você está carregando essa caixa?
— É verdade. Poxa! Sabia que não devíamos ter deixado a bicicleta para
trás. — Uniu os lábios, refletiu um pouco, mas logo seu sorriso se abriu. —
Já sei. Você pode segurar no meu braço, como as damas daqueles filmes
antigos faziam com seus pares.
Dei uma risadinha e deslizei para o lado dele, encaixando meu braço ao
seu. Tocá-lo agora era diferente. Eu me via ansiosa pelo simples fato de
perceber o quanto ele apreciava minha presença, demonstrando felicidade
genuína com um gesto simples como aquele.
— Senhor, como é bom se apaixonar pela garota certa! — ele exclamou
exagerado, olhando para o céu. — Valeu, meu Pai!
Ah! Ele tinha razão! Como era bom, fácil e rápido se apaixonar, mas
melhor ainda quando isso acontecia no momento e com a pessoa certa!
Talvez pela paixão ser algo tão repentino, meus pais sempre me alertaram
a firmar bem minhas convicções sobre teologia, relacionamentos em
santidade e expectativas para a vida em um futuro lar, antes de cair de
amores por um rapaz. Isso porque depois de se apaixonar, era muito difícil
tomar decisões cem por cento racionais. Agora, se o fundamento da fé
possuía raízes profundas no coração, as emoções momentâneas não nos
levavam tão facilmente.
Por conhecer Ian muito bem e saber de todas as nossas crenças em
comum, me dei a liberdade de deixar a paixão florescer, sem parar de vigiar
e orar, é claro, afinal, nossa jornada até o matrimônio deveria ser pura, não
por mera barganha com Deus, ou em busca de sermos abençoados, mas
porque obedecer ao nosso Senhor era igual a amá-lo, isso significava negar
nossa carne e honrá-lo, sabendo que Ele, em sua onisciência, estava sempre
ao nosso lado.
— O que foi? Por que está me olhando assim? — Ian questionou,
erguendo as sobrancelhas.
— Estou descobrindo agora que meu amor por você é como minha fome,
não para de crescer — brinquei e ele piscou algumas vezes, antes de cair na
gargalhada. — Desculpa, isso soou romântico na minha cabeça.
Ele balançou a cabeça.
— Pelo amor de Deus, hein, Júlia? Pensei que com tantos romances lidos
você seria mais hábil com as palavras. — Soltou um suspiro dramático. —
Acabei de ter minhas expectativas frustradas.
Franzi os olhos para ele e aproveitei nossa proximidade para cutucar o
braço.
— Besteira! — Revirei os olhos. — Você assistiu a saga Star Wars
milhares de vezes e, que eu saiba, não se tornou nenhum Jedi[23], não é?
— É justo, espertinha — admitiu impressionado e, enquanto ficamos em
silêncio por alguns segundos, meu estômago roncou alto. O romantismo em
mim era uma farsa, mas a fome era muito real. — Que tal se eu preparar
aquele macarrão que você gosta ao chegarmos? Podemos dar a notícia para
todos e logo em seguida derrotar esse dragão escandaloso vivendo aí dentro
da sua pança.
Dei risada, mas antes de aceitar a tentadora proposta dele, algo me veio à
mente.
— Quero contar a todos logo, mas, pensando bem, não é melhor
esperarmos até amanhã depois do casamento?
— E por que faríamos isso? — Ele me olhou desconfiado.
— Não sei se você percebeu, mas minha família é muito escandalosa. —
Mordi o lábio. — Eles amam comemorar qualquer coisa. Sério! Eles deram
uma festa quando perdi meu primeiro dente de leite. Agora imagine só
quando souberem do nosso namoro? Vamos virar o centro das atenções.
Jéssica e Gustavo podem não gostar disso. É o momento deles.
Ian não respondeu de imediato, seu rosto denunciava hesitação com meu
plano.
— Só até amanhã, não é? — ele sondou e eu confirmei. — Tudo bem,
que assim seja, mas não aguento nem um dia a mais. Assim como não se
pode esconder uma cidade edificada sobre o monte, eu também não posso
mais esconder o quanto eu te amo. Preciso expressar para o mundo.
Fiz uma careta e nós dois caímos na risada com aquela frase.
— Que brega! Precisamos trabalhar nossas declarações de amor antes que
alguém nos ouça — declarei e ele concordou comigo.
Alguns metros depois chegamos ao casarão. Logo na entrada ficou claro
que tomamos uma boa decisão em adiar nosso anúncio especial, pois a
família Bragança experimentava o verdadeiro caos.
Muitos parentes de Gustavo haviam chegado, lotando o ambiente.
Entramos e, à primeira vista, ninguém nem se deu conta da nossa presença.
Os novos convidados estavam concentrados em se instalarem, já alguns dos
meus parentes corriam de um lado para o outro, feito baratas tontas.
— Céus! Que bagunça é essa? — Ian questionou, tão confuso quanto eu.
— Não sei. Meu pai vem aí, vamos descobrir logo. — Apontei com o
queixo para a escada, de onde papai descia às pressas, vindo ao nosso
encontro. — Será que está bravo com a nossa demora?
— Não, acho que não. Ele sabia muito bem onde estávamos e porque
demoramos.
— E aquela cara de quem chupou um limão azedo? — Ergui as
sobrancelhas, mas Ian deu de ombros.
— Ainda bem que chegaram! — Ele expirou ao parar em nossa frente.
— Desculpa a demora, Sr. Antônio. — Ian tomou a frente. — Choveu por
tanto tempo que nós ficamos ilhados no barracão e só conseguimos sair
agora.
— Eu sei, filho. Não estou chateado com isso — ele comentou e coçou
sua barba. — É que uma coisa chata aconteceu na ausência de vocês dois.
Franzi o cenho e já me preocupei.
— Já sei! Alguém se feriu na cozinha outra vez? Falei para o tio Gaspar
que a faca estava muito afiada, mas ele não me ouviu.
— Foi muito pior do que um ferimento com faca — comentou papai
mantendo o suspense. — Venham comigo, eu conto no caminho. Precisamos
ir rápido ou sua mãe vai arrumar uma confusão grande com sua tia Beth. —
Ele me puxou e durante o trajeto, voltou sua atenção para Ian. — Resolveu
aquele problema no carro do caseiro?
Meu amigo, quer dizer, agora namorado, riu e eu fiquei boiando, como
sempre ficava quando o assunto eram carros.
— Sim, usei a técnica que o senhor me ensinou e a lata-velha ficou
zangada, mas logo abraçou minha disposição de ser seu mecânico exclusivo
— ele falou com seriedade enquanto subíamos as escadas, porém a
brincadeira entre os dois estava na cara. — Precisei ter paciência.
Lancei um olhar questionador para Ian. Por algum motivo suspeitei que eu
era a lata-velha em questão. Ainda bem que não tive tempo de confirmar.
— Vou adorar ouvir como resolveu seu problema — papai respondeu e
parou no corredor, antes de chegar ao primeiro quarto. — Daqui para frente,
os homens estão proibidos.
Franzi o cenho e, antes que eu pudesse perguntar, ouvi soando, um pouco
distante, o lamento de alguém: “Por que comigo, Senhor? Isso não deveria
ter acontecido”.
Senti um desespero ao constatar que a voz pertencia a Jéssica. Ela parecia
muito abalada.
Será que Gustavo havia feito algo para magoá-la às vésperas da
cerimônia?
Pedi licença aos rapazes e apressei meus passos até chegar ao último
quarto do andar. O burburinho era alto e se misturava com o choro de minha
prima.
Quando girei a maçaneta e empurrei a porta, anunciando minha chegada,
o silêncio imperou. Observei o quarto abarrotado de mulheres até descobrir
qual era a causa daquela situação. E não foi nada difícil.
— Oh, não! — exclamei ao ver a pobre noiva ajoelhada diante de uma
arara, segurando a barra de seu vestido branco de seda, com uma marca
gigantesca de ferro bem visível na altura do umbigo. — Que tragédia
aconteceu aqui?
Ao ouvir minha voz, Jéssica saltou e correu para me abraçar,
— Graças a Deus! Você precisa me ajudar, Jubs! — ela implorou, sem se
importar com as broncas que eu levava das minhas tias e avó por ter
demorado tanto.
Eu não sabia qual era a minha culpa naquela situação ou porque estava
sendo repreendida se nem toquei no vestido, mas me mantive calma.
— Fui inventar de ajudar e quis passar o vestido por conta própria, mas
queimei tudo e agora eu, eu, eu... — Jess caiu em mais uma série de um
choro copioso. — Por favor, me ajude!
Antes de ficar ainda mais confusa, mamãe surgiu em meu campo de visão
e trazia em suas mãos uma caixa branca que eu bem conhecia.
— Filha — ela começou, mas nem precisou me explicar, eu já havia
entendido tudo.
Jéssica e eu éramos as únicas mulheres entre o bando de primos homens
de nossa família. Desde pequenas, havia uma disputa entre nós duas sobre
quem ficaria com o vestido de noiva de nossa avó. Ele não era brega, nem
feio como era comum entre essas relíquias de família. Pelo contrário, parecia
um daqueles modelos chiques e retrôs de capa de revista. Ambas queríamos
essa parte da herança, mas a vovó nunca o prometeu para nenhuma de nós.
Isso apenas mudou em nossa adolescência, quando Jess se rebelou e botou
na cabeça que não iria se casar. Ela então abriu mão do vestido, e eu, que
não era boba, a fiz prometer junto a nossa avó que somente eu poderia me
casar com aquela peça.
— Podemos consertar o vestido da Jéssica usando esse aqui ou também
reformá-lo para ficar do agrado dela — mamãe explicou com paciência
enquanto eu só observava. — Não deixei tocarem nele, até ter certeza de que
você daria autorização, pois ele é seu. A vovó te deu.
Engoli em seco e pensei bastante antes de responder. Se fosse no dia
anterior, eu teria cedido sem pensar duas vezes, mas tudo havia mudado
naquela tarde. Com Ian ao meu lado, o casamento parecia uma realidade
mais concreta para mim.
— Responda, menina — mandou tia Beth irritada, mas não me ofendi. Ela
devia estar desesperada por sua filha. — Não é como se você fosse se casar
em breve. Deixe logo sua prima usar.
— Não fale assim com ela, Beth. — mamãe me defendeu. — Deus pode
muito bem mandar um bom rapaz para ela se casar amanhã mesmo. Tome
tempo para pensar, querida.
E segui o conselho, refletindo um pouco.
Aquele vestido foi só mais uma das minhas muitas ilusões. Para mim, o
homem perfeito precisava ter todas as qualidades de um príncipe, mas Ian
veio para provar o seu valor, ainda que não fosse um nobre. Antes de estudar
a bíblia, eu também acreditava no matrimônio como o meu “felizes para
sempre”, mas esse castelo de areia se desfez para dar lugar a minha casinha
construída na Rocha. Cristo foi quem me mostrou a verdadeira felicidade
eterna. E por fim, o mais importante na celebração de casamento não era
nada externo, como roupas, banquetes ou futilidades, mas sim o momento
em que dois filhos de Deus iniciavam uma família da aliança, se tornando
um perante o Dono da Festa.
Lembrar disso me deixou mais tranquila para abrir mão das minhas
bobagens de adolescente.
— Ora essa! — Coloquei as mãos na cintura. — Não deviam ter esperado
por mim. Ainda que eu me case em breve, essa noiva não pode se casar
amanhã sem um vestido de noiva. Vamos ao trabalho!
O alívio tomou conta das senhoras que se prontificaram a agir. Até eu me
dispus ajudar. Ao passar pela mamãe recebi um olhar orgulhoso dela e soube
que tomei a decisão certa, não só de ceder o vestido, como também de
aceitar seus conselhos sobre tudo.
Graças ao Senhor e à astúcia de minha mãe, eu seria a próxima noiva da
família!

Sempre amei assistir aqueles filmes adolescentes, contando histórias de


protagonistas desajustadas e sofredoras, com um lindo final de superação.
Minha parte favorita, sem dúvidas, eram os famosos momentos de
“makeover[24]”*, ou, para ser clara, a patinha feia usando todos os recursos
cosméticos disponíveis e se transformando em um lindo cisne.
Era essa transformação que eu imaginava viver em todas as ocasiões
especiais, quando podia confiar o florescer da minha beleza em mãos
talentosas como as de minha tia Irene, a cabeleireira e maquiadora da
família.
Naquele dia agitado, eu não era a única cliente dela e havia pelo menos
uma dúzia de mulheres na minha frente, desejosas de receberem seus
próprios makeovers.
Além do meu papel de madrinha, também ajudei minha mãe e as outras
senhoras mais velhas com a organização até o último momento. Ou seja, se
não tive tempo nem de respirar, quem dirá me arrumar com calma.
Só consegui deixar meu posto e ir cuidar da minha aparência uma hora e
meia antes do casamento. Após o banho, tomei a péssima decisão de assumir
a responsabilidade pela minha transformação, afinal eu era uma ilustradora e
podia lidar com meu rosto, como se fosse uma tela em branco. Assim, me
tornaria uma responsabilidade a menos para minha fada madrinha.
Eu só me esqueci de um detalhe: automaquiagem não era o meu forte.
— Cruzes! Não foi esse resultado que eu imaginei — lamentei diante do
espelho, ao comparar meus resultados com o da blogueira famosa do
tutorial.
Minhas sobrancelhas estavam marcadas demais, as bochechas pareciam
dois tomates e o que dizer da sombra escura nos olhos, me deixando como
um panda?
O pior de tudo era que eu havia levado pelo menos quarenta minutos
naquela obra e não tinha muito tempo restante antes de Jéssica chegar do tal
“Dia da noiva”.
Frustrada, eu expirei, sentindo um pouco de inveja ao me lembrar quão
sortuda Anne Davies foi em Amor Real ao ganhar pessoas a sua disposição
para deixá-la bela no momento em que quisesse.
Como eu encontraria meu príncipe daquela forma?
Depois de muito lamentar, acabei decidindo que pediria socorro à
especialista. Talvez eu nem desse tanto trabalho a minha tia, pois ela só
precisaria consertar meus erros, não é?
Determinada, devolvi todos os meus cosméticos a necessaire e deixei o
banheiro, sem me esquecer de espiar o corredor e checar se havia alguém
para testemunhar o desastre estampado em minha cara.
Não vi ninguém, mas, ainda assim, achei melhor caminhar olhando para o
chão.
Meu quarto nunca pareceu tão distante, e o que estava ruim ficou pior
quando topei com meu irmão e alguns dos meus primos mais novos.
Crianças não perdoavam ninguém, por isso não fui poupada das gargalhadas,
nem das comparações com palhaços fugindo de circo. Tentei intimidá-los
com uma pose de indiferença, mas não funcionou e até desrespeitada eu fui.
— Ei, seus pivetes. Deixem minha garota em paz. — Uma voz grave soou
atrás de mim enquanto eu tentava dar alguns cascudos naqueles malcriados.
Parei no mesmo instante ao ouvi-lo. — Andem, vão dar comida para os
gansos no lago ou brincar de qualquer coisa que não seja perturbar uma
moça linda.
— Linda? — Juninho se acabou de rir. — O tio Jairo estava certo, a
paixão deixa qualquer um cego e burro.
Nessa hora eu cerrei o punho e o levantei, ameaçando meu irmão da forma
menos feminina possível, mas assustadora o bastante para fazê-lo sair em
disparada com o rabinho entre as pernas.
A raiva momentânea se dissipou, dando lugar a vergonha.
— O que aconteceu, princesa? — Ian perguntou, todo carinhoso, e eu teria
me derretido ali, se não tivesse me dado conta de que arruinei minha grande
cena de entrada, onde eu apareceria diante dele usando meu belo vestido
roxo e o deixaria ainda mais encantado por mim, como em um filme de
princesa.
Expirei. Minha vida estava mais para um filme de comédia e eu era a
piada, ou o palhaço, no caso.
— Olhe só para mim. — Eu finalmente me virei, revelando meu rosto. Ele
mordeu o lábio com muita força e puxou o ar, fazendo esforço para se
conter. — Pareço uma princesa para você?
— Há uma infinitude de princesas por aí, com certeza uma te representa
— ele comentou sério, mas deu para perceber a ironia em sua voz, o que me
fez franzir os olhos. — Se quiser, posso deixar meu terno de lado e assim
nós dois combinamos de fazer um cosplay de Shrek e Fiona[25].
— Muito engraçado! — Forcei o riso. — Estou tão feia assim? Eu tentei
ficar bonita para você, mas falhei.
Ele abriu um sorriso e coçou a nuca, como fazia quando estava
constrangido. Depois deu alguns passos até estar diante e colocou as mãos
em meus ombros.
— Você é linda de todo jeito. — Tocou meu queixo. — Mas se, como seu
namorado, posso opinar, sua beleza natural nem se compara a essas pinturas
exageradas.
Meu namorado.
Eu ainda não havia me acostumado com aqueles termos, mas achava tudo
muito encantador.
— Me acha linda mesmo? Sério? — sondei e meus olhinhos apaixonados
brilharam com a sua confirmação. — Nunca nenhum rapaz me disse isso
antes.
— Vou fazer questão de te lembrar isso todos os dias, dou minha palavra.
— Ele primeiro segurou minha mão e depositou um beijo ali, seguido por
outro na testa. — Não que a beleza seja o principal, mas aos meus olhos,
você será sempre bela.
Senti minhas bochechas esquentando e expirei. Ah! Como o amor era
incrível!
— É melhor você parar de me paparicar e ir logo se arrumar. — Dei um
sorrisinho tímido — Vamos entrar juntos, de mãos dadas. Que tal?
Expliquei para ele que eu já havia conversado com a Jéssica e Gustavo,
explicando a situação e pedindo que, se possível, mexesse um pouco nos
casais para que Ian, e não meu primo, entrasse comigo. Eles concordaram
com prontidão.
— Certo, então te encontro na entrada do casarão. Não demore, tenho algo
para te dar — disse e saiu em seguida, me deixando cheia de expectativas.
Apesar daquele encontro especial ter me animado, eu me assustei ao
checar a hora. Estava mais do que atrasada e seria um milagre chegar a
tempo, por isso precisava correr.
E lá fui eu.
Ao chegar ao quarto, minha tia já estava guardando seus materiais e não
havia mais nenhuma mulher na fila. Assim que me viu, ela fez uma cara de
decepção engraçada e me mandou ir lavar o rosto, pois, ao contrário da
minha previsão, nada naquela obra de arte se salvava. Eu, claro, atendi as
instruções dela e antes de deixá-la começar, informei que, dessa vez, eu
queria parecer o mais natural possível, seguindo o conselho do meu amado.
Graças a Deus e ao talento da titia, o momento do meu “makeover”, enfim
chegou. Ela, como uma boa fada madrinha, não só cuidou da maquiagem,
como também fez meu penteado e me ajudou a entrar no lindo vestido roxo,
feito sob medida para mim.
No final da produção, eu me olhei no espelho e admirei a imagem
refletida ali. Era tão bom não estar mais semelhante a uma palhaça e sim
com uma princesa. Entretanto, eu não queria parecer como uma princesinha
de conto de fadas bobo qualquer, por isso coloquei meus óculos.
— Agora sim! — Suspirei satisfeita. — Vestida assim, até me pareço
como uma amiga pessoal de Anne Davies.
Meus devaneios em voz alta acabaram quando mamãe entrou no quarto,
toda produzida. Ela me elogiou, é claro, mas não deixou de me dar bronca
pelo atraso, a noiva já estava chegando e só faltava eu no grupo das
madrinhas.
— Ian já está te esperando lá embaixo — ela contou, toda empolgada, e
não pude disfarçar meu semblante apaixonado. Ainda bem que meus pais já
sabiam de tudo, pois estava cada minuto mais difícil esconder meus
sentimentos.
Caminhamos juntas até às escadas. Ela me ajudou a descer, já que meu
vestido era longo e eu não queria me envolver em nenhum acidente. Nos
últimos degraus tive uma agradável surpresa. Ian apareceu para me buscar
ali mesmo e não na varanda.
— Agora vou te deixar com o seu príncipe. Não demore — ela brincou,
cumprimentou seu futuro genro e saiu.
Ele estava de fato muito bonito com seu cabelo muito bem penteado,
trajado em um terno preto alinhado e uma gravata que, por coincidência ou
não, era do tom do meu vestido.
Quando estávamos perto o bastante, Ian fez uma cena, colocando a mão
sobre o coração, fazendo uma cara de dor.
— Nossa, que menina linda! Acho que me apaixonei mais um pouquinho
— ele expressou alto e ainda bem que não havia mais ninguém ali para nos
ouvir ou eu morreria de vergonha.
— Você também está lindo — elogiei um pouco mais contida e, ao
terminar de descer, segurei sua mão, entrelaçando meus dedos aos dele. —
Precisamos correr, já estou muito atrasada.
Tentei sair andando, mas Ian fincou os pés no chão, me obrigando a voltar.
— Espera, me dê trinta segundos! — pediu, antes de, sem mais nem
menos, se colocar atrás de mim e afastar meus cabelos. Pouco depois senti
algo gelado tocar o meu pescoço e me dei conta do que era. — É um
presente simples, mas é de coração.
Após prender o fecho, ele me conduziu ao espelho mais próximo, onde
pude observar melhor o que eu havia ganhado. Tratava-se de um delicado
colar dourado, cujo pingente era um coração com uma coroa em cima.
— Edwin também deu um colar para Anne, não foi? — ele comentou
enquanto organizava meu cabelo. — Sei que não posso competir com ele,
mas posso tentar.
— Você é melhor do que qualquer personagem, Ian. É o meu príncipe. —
Encarei a imagem dele refletida no espelho e toquei o colar. Que grande
benção eu havia recebido! — Acabo de perceber que a realidade às vezes
pode ser tão doce quanto a ficção. Basta confiar que o Senhor se preocupa
em escrever cada página da minha história.
— Será a nossa história, daqui pra frente, meu amor — ele corrigiu e
depositou um beijo em minha bochecha, me fazendo sorrir.
Após isso, nós finalmente seguimos para a cerimônia de casamento.
Graças a Deus, tudo ocorreu da melhor forma possível. As damas de
honra entraram, seguidas pelas floristas e, por fim, nós os padrinhos e
madrinhas.
Como combinado, Ian esteve ao meu lado, segurando minha mão. Ao
contrário do que imaginei, nenhum dos meus parentes se mostraram
surpresos, mas vi alguns dos meus tios fazendo sinais para Ian, como se
estivessem comemorando uma vitória. Isso me fez suspeitar de que talvez
minha família já estivesse a par de tudo.
Tomamos assento e, em seguida, Jéssica entrou, deslumbrante. Comentei
com Ian sobre como o vestido da vovó ficou muito melhor nela do que teria
ficado em mim. Em resposta ele falou que sua mãe ainda guardava o seu
modelito de casamento, reservando-o para a noiva do filho que se casasse
primeiro. A boa notícia era que ele era o mais velho de dois irmãos
adolescentes e Ian tinha planos de se casar em, no máximo, um ano, tal
como eu.
Ouvir aquilo me levou a louvar ao Senhor mais uma vez. Embora, no
passado, Ele houvesse respondido minhas orações referentes a Gustavo com
um sonoro “não” e eu não tivesse entendido na época, agora tinha certeza de
que meu Pai sabia das minhas necessidades e sempre fazia o bem para mim.
E não digo isso, simplesmente porque fui encontrada pelo homem certo, pois
mesmo se Deus frustrasse nossos planos, eu deveria sempre confiar na
soberania Dele, independente das circunstâncias. Em tudo, eu devia dar
graças e naquele momento estava realmente grata por ter Ian na minha vida.
A cerimônia foi realizada e após a troca de votos, a música brega de
Gustavo e o “aceito”, a festa começou. Os convidados foram servidos e após
muita comilança e conversa boa, a pista de dança foi aberta. O novo casal
teve sua primeira valsa e, em seguida, o cerimonialista sugeriu que mais
convidados se juntassem à pista.
Eu, aproveitando a hora para matar minha fome com coxinhas, nem
pensava em dançar, até que Ian surgiu com sua ideia genial.
— Se lembra daquela aposta que ganhei por ler os livros? — ele
questionou e eu afirmei. — Bem, como prêmio eu desejo uma valsa com
você. Aceita?
Meu coração disparou. Dançar uma valsa com um garoto, que não fosse o
meu pai ou meu irmão, era o meu sonho de princesa. Por um momento, o
constrangimento de pensar em todos nos olhando quase me fez desistir, mas
ele insistiu e eu acabei aceitando.
— É claro — falei toda boba e fomos para a pista, onde dançamos,
olhando nos olhos, como se não houvesse mais ninguém ali. Foi perfeito!
Talvez esse fosse o momento ideal para dizer o famoso “e viveram felizes
para sempre”, mas aquela era só a primeira linha de uma longa e linda
história, pela qual eu orava ao Senhor, para passar ao lado do meu melhor
amigo.
Meu amor real.
Conto Acordes do coração
Meus dedos pareciam não querer formar aquele acorde. A ansiedade
estava me deixando com ânsia de vômito, tudo isso causado por aquelas
palavras de André: “Precisamos conversar depois do ensaio”.
O que ele queria me dizer?
Será que fiz algo de errado no sábado, quando fomos para o aniversário
do sobrinho dele? Meu Deus, me ajude a não pirar com milhares de
suposições.
Mas era certo que André estava distante há alguns dias, e isso piorava
minha situação.
Respira, Lyra. É só respirar.
— Por que vocês parecem estar no mundo da lua? Que grupo é esse, tão
desajustado? — Ricardo bufou, trazendo-me de volta a realidade. — Às
vezes penso em fazer um repertório mais sofisticado, mas ver a condição de
vocês dá um desgosto! — Nosso maestro estava tendo mais um de seus
acessos de arrogância.
Quase sempre era assim: nunca éramos bons o suficiente, sempre tinha
alguém melhor, fosse músico ou um grupo. Era triste. Ele se direcionou para
o rapaz de cabelo cacheado a minha frente e disse:
— Pablo, repete essa frase, pois você ainda tá errando esse SI BEMOL!
— Seu tom subiu algumas notas graves e a vermelhidão ficou evidente no
rosto branco e apático dele. Sem dúvida, a qualquer momento ele teria um
treco. Para que tanto estresse?
Mas antes das coisas ficarem difíceis para mim também, arrumei meus
dedos utilizando o mindinho e deu tudo certo. Aquele movimento ficaria
bem fácil e prático. Admito que ensaiei pouco aquela peça, por isso estava
ajustando os acordes ali, mas isso não era costumeiro. Logo minha mente
ficou focada como sempre.
— Agora vamos tocar a peça do início ao fim. — Ricardo pegou sua
batuta, bateu na estante, empinou o queixo e posicionou os braços para
começar a reger.
Era a nossa hora de fazer bonito.
Todos os quatro naipes se organizaram, eu fazia parte do terceiro, o
harmônico, e, antes de começar, fitei André, que dedicava sua atenção à
partitura e, em nenhum momento, voltou-se para mim. Isso partiu meu
coração. Era um hábito nosso: assim que entramos na orquestra de violão,
visualizamos um ao outro antes de tocar. Algo realmente sério aconteceu. Ao
menos esperava ser um problema que pudéssemos resolver.
— Eu vou dar um compasso em branco e vocês entram — o regente disse
e iniciou.
A sinfonia nº 5 de Beethoven começava com um movimento rápido, e
descreveria até como “feroz”, aquele drama. Refletia bem a minha alma
agitada e eufórica. Fechei meus olhos, querendo sentir apenas a adrenalina
extasiante daquela composição. Beethoven era meu compositor favorito,
justamente por saber exprimir na música as emoções inconstantes,
angustiantes, aceleradas e furtivas, uma bela forma de descrever suas dores e
dificuldades. A composição pedia força, velocidade e, no seu ápice,
silenciava-se como um espírito fugitivo que parava abruptamente. Era eu: a
ponto de romper pelos sentimentos desenfreados, mas extasiada pelo
lamento frio do silêncio das circunstâncias. Sentia-me lida por aquela
melodia. Ao dar um último acorde, eu estava tensa e com a respiração
ofegante.
Levantei o olhar e percebi o semblante de satisfação dos outros
violonistas. Ricardo não poderia reclamar depois da beleza daquela
interpretação. Ele tinha um brilho de orgulho no rosto, mas não diria isso por
nada. Tudo bem. Afinal, não era pelos elogios que trilhei o caminho da
música, mas, sim, por pura contemplação e regozijo. Era algo indescritível!
— Lembrem-se que nossa apresentação será na Sexta-Feira, às 20h, a no
Teatro Amazonas — declarou o estagiário de regência.
Guardei meu violão no case e o fechei, quando levantei André estava
parado na minha frente, extremamente sério.
— Vamos? — Ele apontou com a cabeça para a saída e assenti.
Nós andamos num silêncio incômodo. Eu precisava saber o motivo de
toda aquela mudança de comportamento.
— Podemos sentar numa das arquibancadas e conversar — ele disse,
evasivo.
Fomos para o terceiro degrau da arquibancada. O calor do sol misturado a
ansiedade fazia minha cabeça doer, só desejava colocar aquilo em pratos
limpos. Pusemos nossos violões ao lado e viramos um para o outro. Nada
disse, apenas esperei as devidas explicações.
— Lyra, eu sei que estamos juntos há dois anos. — Ele mexia as mãos
sem parar. — Você precisa saber que realmente me apaixonei pelo seu lado
musical, humor e bom coração...
Eu estreitei o cenho querendo saber qual intuito daquilo. Que raios de
conversa era aquela?
— Vivemos coisas lindas juntos e planejamos um futuro muito promissor.
— Ele cruzou os dedos e riu: — Se lembra quando dizíamos que seríamos
músicos e viajaríamos pelo mundo? — Soltou uma lufada de ar e os ombros
murcharam. — É engraçado como as coisas mudam e...
— Fala logo o que você tem para dizer. — Aquela ladainha começou a me
irritar. — Para de dar voltas.
— Você é sempre tão direta, Lyra. — André balançou a cabeça e entortou
os lábios. — Só não queria te magoar.
— Saiba que ao me ignorar, responder ou agir como se nada estivesse
incomodando, quer dizer, não se comportando de modo normal, já me
machucou bastante. Portanto, não preciso de palavras bonitas, mas que diga
o que há realmente. — De nervosa e ansiosa comecei a ficar irritada com
todo aquele papinho de “quando planejávamos o futuro”.
— Tudo bem. — Ele tomou uma postura mais rígida. — Cheguei a uma
decisão de que não podemos mais ficar juntos. Acredito que nossos
caminhos não combinam mais e nem nossas emoções — pronunciou sem
mais delongas.
Aquilo foi como uma adaga no meu coração o rasgando em milhares de
pedaços. Eu era apaixonada pelo André de todo coração. Queria chorar,
extravasar, gritar, mas as lagrimas não chegavam. Na verdade, algo prendia
minha garganta e queimava por dentro, como se meu espírito fosse lenha em
meio ao fogo das minhas emoções dolorosas e angustiadas. Só fiquei parada
o olhando, esperando mais alguma coisa, mas sem saber exatamente o que.
— Gosto de você, Lyra. Só não como antes — proferiu, com o olhar típico
de quem pede desculpas. — Poderíamos ser amigos.
Aquilo me ferveu mais por dentro.
— Você poderia ser um pouco mais original, não acha? Amigos? Sei! —
Suspirei. — É o que você deseja? Não vou impedi-lo de nada. — Me
levantei e peguei meu violão. — Não seremos amigos. Não seremos nada.
Espero que seja feliz. — Virei para sair dali.
— Lyra — ele segurou meu braço —, você não precisa ser tão radical.
— Não quero me prender a um passado que já ficou para trás. — Me
soltei dele e desci as escadas da arquibancada às pressas. Meu coração
estava tão acelerado que poderia ter um infarto a qualquer momento. Saí
andando em direção a minha parada do ônibus. Aquele lugar estava lotado, e
logo o transporte estaria até o tucupi[26] de gente.
“Oh, meu Deus! Preciso comprar um carro!”
Era nessas horas que me arrependia de querer seguir uma carreira artística.
Tinha acertado. O ônibus estava super lotado. Fui me espremendo entre as
pessoas e o violão acabou batendo na cabeça de alguns. Bufei. Mas respirei e
segui tentando andar naquele corredor minúsculo. E, para meu desgosto
maior, o instrumento se prendeu numa senhora e tive de fazer uma força para
puxá-lo.
— Leva logo meu braço! — A voz aguda dela ressoou, mas eu não queria
discutir com ninguém. Resolvi seguir, entretanto ela continuou: — Não sei
por que vocês ficam andando com esses troços dentro de um coletivo. Povo
sem noção! — reclamou para uma pessoa ao lado dela, mas com intuito de
eu ouvir.
Mirei para a enorme bolsa dela, que sem dúvida carregaria até uma casa, e
franzi a sobrancelha.
— Acho é pequena essa sua maleta aí, não é? — E virei a cara antes de
escutar a resposta, mas nada ouvi.
Apenas consegui um olhar mais feroz e, com certeza, pensamentos que
me fariam queimar no inferno. Entretanto, me organizei num pequeno
espaço ao lado da porta do meio. Quando, enfim, me estabeleci, meus
pensamentos voltaram a André e toda a nossa história. Nos conhecemos nas
apresentações musicais da faculdade. Ele estudava a noite, e eu de manhã,
mas ao nos encontrarmos foi como amor à primeira vista. Há tempos
esperava viver um romance tão profundo, e, ao conhecer André, achei que
minhas orações tinham sido respondidas. Foi perfeito por tanto tempo!
Olhei para o céu através da janela do ônibus e comecei a indagar: Por que
teve que acabar? Ele não foi uma resposta? Não era o melhor namorado?
Tínhamos planejados nos casar e ter filhos! Como o sentimento acaba
assim?
Ansiava chorar e gritar, mas, ao mesmo tempo, me sentia traída, furiosa e
com vontade de matá-lo. Esses homens eram mentirosos. Sem um pingo de
responsabilidade emocional. Não tinham firmeza. Uns completos moleques!

Todos os outros dias foram vividos de modo comum. Lancei todas as


nossas fotos numa pasta no drive de um antigo e-mail e apaguei o número
dele do meu telefone. Não queria nada mais que me ligasse ao André. Não
quis contar para minha mãe do nosso término naquele momento. Ela gostava
dele, porém, eu desejava ficar distante daquele assunto e, para ocupar a
mente, apenas ensaiava noite e dia. Nos ensaios da orquestra, interagia
somente o necessário e fingia indiferença com André; se ele cogitou alguma
aproximação, sem sombra de dúvida a minha frieza não o permitiu se
aproximar.
A sexta-feira da apresentação chegou. Eu estava me vestindo para sair
para o Teatro quando mamãe entrou no quarto e se sentou na cama, dizendo:
— Você está bonita, minha filha. — Sorri com a gentileza dela. — Esse
concerto vai ser lindo se comparado ao que você toca aqui todos os dias.
— Espero. — Suspirei num misto de alegria e tristeza.
— A sua tia Iracema ligou — comunicou e levantou para arrumar a
manga da minha roupa. — Disse que deseja falar contigo.
— Sobre o quê? — Arqueei a sobrancelha.
— Só falou que é importante. — Mamãe deu de ombros. — Pediu que
depois do concerto você ligasse para ela.
— Que estranho! Titia nunca foi muito de falar conosco. Depois de mudar
para Itaituba pareceu esquecer a existência da família — declarei, com os
pensamentos distantes. Não podia negar minha curiosidade.
— É para isso que família serve: ser lembrado no dia da dificuldade. —
Mamãe riu. — Agora vai, senão você se atrasará.
Parti e peguei um UBER para ir calmamente sem ninguém me
empurrando. Sem mencionar que, com aquele calor, eu estaria pior que
urubu morto quando chegasse na apresentação. Um dinheirinho a mais me
polparia de um constrangimento pelo mal cheiro.
Passamos as músicas e nos alinhamos. O pessoal da percussão estava
posicionado e, antes de qualquer coisa, fiz minha breve oração pedindo
graça para tudo aquilo. As cortinas se abriram e o Teatro Amazonas estava
lotado. O concerto era livre ao público e, com o investimento do Estado, a
parte cultural de Manaus crescia e se desenvolvia bem.
Enfim o nosso maestro entrou e fez uma reverencia ao público, expressou
umas palavras, aparentando ser a pessoa mais amável que existia. Bem diz o
ditado: só se conhece quando convive.
O espetáculo musical começou e a cada peça os espectadores batiam
palmas exultantes, empolgadas e eufóricas. Me concentrei em cada
composição, mas na música mais lenta e melancólica espiei André. Ele
estava lindo, não podia negar. Aqueles cabelos castanhos com umas mechas
loiras naturais me encantavam, as veias de suas mãos eram salientes, e eu
tinha um fascínio especial por aquilo. Que ódio! Por que tudo havia se
esvaziado como uma água escorrendo pelos meus dedos? Não podia
terminar assim! Decidi falar com ele, realmente dizer o que sentia. Precisava
de alguma forma mudar aquilo. Talvez pudesse reconquistá-lo.
Sim! Por que não pensou nisso antes, Lyra? Dois anos não seriam
esquecidos assim, não é?
O concerto foi esplêndido e terminou da maneira mais primorosa possível.
O maestro agradeceu e levantamos para reverenciar o público. Concluímos
tudo de modo perfeito, e quem dissesse ao contrário estava errado. Ao irmos
para a coxia, nos parabenizamos, tiramos fotos e tudo mais que acontece ao
final dessas apresentações. Mas eu tinha uma motivação: encontrar André
sozinho para falar com ele. Essa oportunidade chegou quando todos foram
encontrar suas famílias e amigos, e André ficou fechando seu case.
Era minha chance. Engoli em seco, querendo naquele ato fazer descer
meu orgulho que me dizia para não me submeter àquele ato humilhante.
Andei alguns passos e estava próxima dele quando ouvi:
— Meu amor, você foi o mais perfeito de todos! — Uma menina loira e
de olhos verdes pulou nos braços de André. Ele a recebeu com todo carinho
e se beijaram.
— Toquei para você. — Segurou na cintura dela. — Meus pensamentos
estavam contigo em todo momento — fez uma brega declaração de amor.
— Eu sei. Eu sei — falou convencida. — Agora vamos, o pessoal nos
espera para comer. — Ela segurou a mão dele e o puxou.
Meu espírito murchou e o corpo quase desabou. Não só pela decepção,
mas por toda enganação sofrida. Como eu era idiota! Por quanto tempo fui
traída? Meu Deus! Saí dali com passos duros pelo assoalho. Aqueles homens
não prestavam. Eram todos um bando de inúteis!

4 meses depois

— Você vai ficar bem, minha filha? — Mamãe perguntou pela milésima
vez, antes de eu passar pelo embarque.
— Eu vou, mãe. Essa viagem veio em boa hora. Fiquei muito tempo
estagnada e mudar os ares me fará bem.
— Lyra, você tomou uma decisão muito radical ao sair da Orquestra e se
mudar para um interior. Entendo suas motivações, mas acho que pode se
arrepender. — Mamãe tinha um sulco no meio da testa revelando sua
preocupação.
— A tia Iracema está doente e precisou viajar. Não posso negar um favor
para uma pessoa que está passando por uma situação tão difícil. Não tem
ninguém que fique na loja dela, e ela precisará de dinheiro para o tratamento.
Vai ser bom ajudar. E, claro, eu não precisarei mais ver a cara do André. —
Passei a mão no rosto, já cansada de tudo aquilo. Nos dias anteriores
havíamos esgotado esse assunto, ao menos eu achava. — Bom, se eu quebrar
a cara já vai ser mais um aprendizado.
— Ai, Lyra! — Mamãe deu um tapinha no meu ombro. — Você às vezes
me ofende com essas suas falar. Só estou cuidando de você, sua ingrata!
— Desculpa, mãe. Mas é verdade. Confie em Deus que vai dar tudo certo.
Isso foi até uma resposta de oração. — Ela me olhou com uma desconfiança
e dei um sorriso sapeca. — Claro, não a doença da titia.
Ela me abraçou mais uma vez antes de eu partir.
— Sua ferinha, sentirei tanto sua falta. Até desse seu enjoo. — Ela beijou
minha testa e me olhou com a face um pouco úmida. — Ah, já ia
esquecendo! Sua prima, Vitória, mandou um presente e disse que por causa
de uma prova não ia poder se despedir. — Tirou da bolsa um livro. — Ela
falou que tem música na obra e talvez você gostasse de uma boa literatura
para servir de companheira durante todo esse trajeto de viagem.
— A Vi é legal. É provável que eu leia. — Tomei o livro na mão e a
abracei mais uma vez. — Amo a senhora! E se cuide. Logo estarei de volta.
— Vou me cuidar. — Ela me deu mais uns beijos.
Caminhei para meu portão de embarque e sentei para esperar a chamada.
Pensei nos meses que antecederam a viagem. Nos dois primeiros meses, a
raiva, irritação e ódio era para todos os homens do mundo. Conversei com a
mamãe e não aguentei, chorei. Aquele foi meu período de luto. Fiz tantas
indagações a Deus. Nos últimos dois meses, comecei a querer ocupar a
cabeça. Fui convidada para tocar em casamentos, o que não ajudou muito a
minha situação. Entretanto, fui para uns passeios da igreja, e a cada
mensagem me sentia fortalecida, principalmente sobre o Senhor quebrar
nossos planos se isso muitas vezes fosse um ídolo. E era certo, Deus não
permitiria nada e nem ninguém tomar o lugar dele no trono do nosso
coração.
Admiti minhas muitas falhas. Meu relacionamento com André tomou
proporções de importância que acabei colocando Deus de lado. Nós
frequentávamos a igreja, porém André não era tão compromissado quanto
esperado para um cristão, e passei por cima disso ao fingir não ver. Depois
que tudo estava muito claro, pedi perdão a Deus pelos meus pecados.
A viagem veio em boa hora, apesar da triste situação. Estava cansada de
Manaus e precisava de novos ares. Ri ao pensar nas vezes que cogitei não ir
só para mostrar a André minha força inabalável diante de tudo aquilo. Em
certo momento, viver aquela fortaleza me cansou e decidi não querer mais
mostrar nada para ninguém, iria para Itaituba.
Meus pensamentos foram interrompidos com a chamada do embarque.
Quando já estava acomodada no assento, tomei o livro “Do silêncio a
canção”, da autora Aline Moretho.
Um nome chique! Gostei.
A capa era bonitinha e parecia promover uma estória fofa. Era o ideal para
ocupar meus pensamentos. Me surpreendi, pois após os três primeiros
capítulos já estava envolvida. Julguei ser somente um romance água com
açúcar, mas a situação da Ester começava a despertar umas sensações em
mim, uma delas eram:
Menina, por que você se envolve com um músico? Você é musicista,
deveria saber que esses são os da pior espécie!
André que o diga! Ele daria direitinho para ser esse Ítalo!
Será que ele e o André eram parentes? Estava achando que sim!
Cafajeste!
O flerte era típico dos músicos. O que um homem com instrumento na
mão faz, não é? E as românticas acham isso a coisa mais linda. Afinal, a
música é uma conquistadora de primeira, convenhamos! Nem consigo contar
quantas vezes vi os meninos da Orquestra dando em cima das meninas. E as
“inocentes” se achando sortudas por terem um músico atrás delas. Quanta
burrice! Mal sabiam o futuro que as esperava. Pior foi ter sido uma delas,
para minha completa humilhação. Mas essa página já foi virada.
Fui lendo e me envolvendo cada vez mais, e, sim, admito que meu
coração ainda fragilizado foi fisgado pelo Pr. Tiago.
Que homem lindo, meu Deus! Como a doida da Esther não olha para ele?
Ao mesmo tempo em que me sentia anestesiada de amor pelo jovem
pastor, uma tristeza me abatia na alma por saber que era quase impossível
encontrar um homem daquele na vida real.
Meu melodrama foi interrompido pelo aviso do pouso.
Desci em Santarém e, sem demora, parti para o porto onde pegaria uma
lancha para Itaituba. Continuei a leitura assim que a viagem pelo Rio
Tapajós começou. Quis chorar em certos momentos. A Ester também sofreu.
Enxuguei minhas lágrimas que escorriam por debaixo dos óculos escuros,
ainda bem que estava com ele.
Eu te entendo, amiga. Compartilho sua dor!
E após devorar aquele livro, que não era somente um clichê, mas uma
verdadeira aula de teologia sobre romance, senti minha alma farta. Fui
exortada através do relacionamento dos protagonistas, pois percebi como
havia regido a minha relação com André com muitas liberdades, e não
deveria ter sido assim.
Fiz marcações no livro para que pudesse estudar mais sobre cortejo cristão
e o que, de fato, a bíblia falava sobre. Fiz da natureza minha testemunha de
nunca mais dar meus beijos, toques e carinhos a não ser ao meu marido, se é
que teria um. Guardaria meu corpo e coração. Seria um romance para a
glória dEle.

Depois de um tempo, desci no porto de Itaituba. A pequena cidade não


parecia ser tão interiorana, possuía até um certo charme. Quando virei para
o rio, caiu a ficha sobre quão longe de casa eu estava; tive um misto de
temor e empolgação, contudo, independentemente do que aconteceria, seria
um período de aprendizagem.
Um mototáxi me levou para a casa da tia Iracema. Era certo, ela não está
lá, mas em São Paulo, para se tratar. Por uns meses, sua casa e loja de
música estariam sobre minha responsabilidade. Orava para que as coisas
ficassem bem para ela. A vizinha, dona Solange, me recebeu com toda
hospitalidade, me abraçando e fazendo-me sentir muito querida.
— Ainda bem que chegou, minha filha. Como foi a viagem? — perguntou
com a voz aguda e me ajudou com as malas.
— Foi bem, apesar de longa. — Sorri e entrei na casa, que era melhor do
que pensava.
— Sua tia estava tão mal, mas tenho fé na sua recuperação — falou com
certa emoção e respirou um pouco fundo, depois me guiou a um quarto
branco cuja parede do centro estava pintada de amarelo claro. O espaço era
mobiliado com uma cama, guarda-roupa e uma mesinha de estudo. — Ela
deixou tudo pronto, querida. Foi meu marido que pintou.
— Amei! — E de verdade achei uma beleza aquele espaço.
Na realidade, toda a casa era bonita. Possuía uma sala com um balcão ao
meio e, do outro lado, a cozinha, os quartos ao lado e o banheiro. Tudo bem
pintado em tons claros e com móveis antigos, porém bem conservados.
— Você acha que vai ficar bem sozinha? Tenho uma filha quase da sua
idade e acredito que podem ser boas amigas. Ela pode lhe apresentar a
cidade, e assim podem conversar.
Toda aquela dedicação até me constrangeu, pois eu era tão chata muitas
vezes. A receptividade dela era mais uma lição sobre o tipo de mulher que
precisava me tornar.
— Agradeço demais. Vai ser bom ter alguém para conversar.
— Quando ela chegar da faculdade vou pedir para vir chamá-la para o
almoço. — Ela tocou no meu braço e sorriu. — A loja de música fica do
outro lado da rua, aqui está a chave. — Balançou o pequeno chaveiro na
minha frente e fez cair na minha mão.
— Pretendo ir até lá agora e arrumar tudo para abrir.
— Tudo bem. Se estabeleça aqui que vou cuidar do almoço.
Assenti e nos despedimos. Deixei minhas coisas no quarto, larguei o tênis
no canto e pus uma sandália e uma bermudinha para ir à loja. Não era longe
de casa, mas ao abrir senti aquele ar quente. Os instrumentos precisavam de
uma limpeza e me deu dó vê-los “sofrendo” com aquele calor. Liguei o ar-
condicionado e verifiquei o que tinha atrás do balcão. Achei uma pasta de
partituras e encontrei uma música antiga, dos tempos da faculdade. Que
saudade! Sem hesitar, coloquei-a numa estante e peguei um dos violões
expostos, afinei as cordas, que precisavam ser trocadas, mas para tocar
sozinha bastaria.
Montei os acordes e não demorou para a memória trazer a lembrança de
como era tocada. Depois de meia-hora, iniciei-a. A música não era erudita,
mas havia uma emoção especial naquela composição cuja dinâmica era do
fortíssimo para o piano num conjunto de andamento allegro[27] e depois caía
num adagio[28]; o plissado do tocar despertava a alma e a fazia experimentar
a sensação de pertencimento quer estivesse perto ou longe.
Fechei os olhos e toquei a última frase melódica. De repente, escutei
palmas atrás de mim. Virei rápido e me deparei com um homem de barba,
alto, camisa de flanela quadriculada e calça jeans meio surrada, apoiado na
estante ao lado, olhando-me com certa “admiração”; talvez não fosse a
palavra ideal, mas não veio outra na mente.
— Posso ajudar? — perguntei com timidez.
— Há tempos não escutava uma música tocada com tanta verdade — ele
declarou com voz grave e fiquei um pouco ruborizada. — E achei que a loja
não fosse mais abrir. — Ele endireitou o corpo e deu um passo à frente.
— Minha tia precisou viajar, mas vou tomar conta por enquanto —
respondi. — Você quer comprar algo? É um músico também? — perguntei,
deixando o violão na cadeira e tomando uma postura de vendedora.
— Músico? Oh, não! — Negou com a cabeça e apontou para o violão. —
Nem me atreveria a dizer isso depois de ver você tocando. — Riu com seus
dentes bonitos à mostra, apesar de ter um levemente torto na parte inferior.
Todavia, aquilo dava um certo charme. — Apenas arranho umas cordas.
— Ah, sim! — Balancei a cabeça e uni as mãos frente ao corpo. — Quer
cordas, então?
— Na verdade, um capotraste, já que o meu quebrou. — Ele andou para o
meio da loja e fui para o balcão buscar o dispositivo. — Acho que tenho as
mãos muito pesadas.
— A sua mão parece ser leve — opinei.
— Você prestou atenção nela? — Ele levantou a mão no ar.
Comprimi os lábios, sabendo ter dado mancada. O homem achou que
fiquei reparando nele. Que loucura!
— Estou brincando com você. — Sorriu de novo. — Mas levarei isso em
conta, pois vindo de uma violonista tão boa.
Dei um sorriso seco.
— Aqui está. — Estendi a sacolinha com o capotraste e informei o preço.
Ele tirou o cartão e perguntou:
— Qual o seu nome?
— Sou a Lyra. — Peguei a máquina e ele passou o cartão.
O pagamento foi feito e o vi colocar o cartão no bolso da camisa.
— Sou o Matias. Obrigada, Lyra, por tudo.
— Só vendi um capo. — Dei de ombros com um sorriso de canto, afinal,
não havia nada demais naquilo.
— Falo da música. — Ele visualizou o violão que eu tinha tocado. —
Acho que precisava daquilo — Balançou a cabeça como se estivesse
afirmando algo. — Até mais.
Havia encerrado a ligação com a minha mãe quando vi uma jovem de
cabelo crespo, com uma blusa rosa e com um sorriso autêntico entrar na loja.
Antes que eu pudesse perguntar algo, ela declarou:
— Olá, sou a Abby. Minha mãe mandou chamá-la para almoçar. —
Apontou para a porta, como se mostrasse a família dela nos esperando.
— Ah, você é a filha da Solange.
— É isso. — Ela bateu as mãos nas coxas, olhou em volta e soltou um
suspiro de encanto.
— Parece que gosta de música, hein. — Sorri e sai de trás do balcão. Após
desligar o ar-condicionado, segui para perto dela.
— Me lembro de vir aqui quando pequena. A dona Iracema me deixava
usar um dos pedestais e microfone para cantar — falou com saudosismo. —
Espero que ela se recupere logo. Você teve notícias?
— Nada novo, mas parece que a cirurgia vai acontecer em poucos dias.
— Saímos da loja e tranquei a porta. — Descobriram duas válvulas
obstruídas no coração e terão que trocar.
Abby arregalou os olhos. Certeza pensou no quanto aquilo era arriscado.
— Creio que o Senhor cuidará dela. Temos que ter fé, não é? — Quis
passar segurança.
— Sim, sim. Vou continuar orando.
O almoço estava apetitoso: feijão, arroz e frango frito acompanhado de
uma saladinha de repolho e manga. Uma beleza só! Saciei a minha fome
como há tempos não fazia. Depois da refeição, permaneci na casa,
conversando. A família era numerosa, composta pela avó Gertrudes, dona
Solange e seu esposo Alfredo, que estava na hora de descanso do trabalho,
Abby e os dois irmãos de 10 anos, Elton e Denis, já se arrumando para ir à
escola.
Me senti parte da família, uma sensação estranha, pois sempre fomos
apenas eu e a mamãe. O restante dos familiares só víamos nas festas de final
de ano ou em algum aniversário, caso alguém se prestasse a comemorar.
Contei um pouco da minha vida, o que fez os olhos de Abby quase
pularem para fora da órbita quando ouviu sobre minha participação na
Orquestra de Violão. Pensei que seria chamada de doida por tê-la deixado,
mas ela controlou a língua. O papo estava excelente, mas precisava voltar
para casa. Antes de partir, Abby me convidou para conhecer a Orla, e aceitei.
Apesar de cansada, sabia que não seria bom desperdiçar uma amizade.
Ao retornar, senti a cama me convidando para aconchegar meu corpo
cansado ali, porém resisti. No entanto, assim que chegasse à noite me jogaria
sobre ela e dormiria como se não houvesse amanhã.
Troquei de roupa para uma bermudinha jeans e blusa branca para passear
na Orla. No início, Abby pareceu calada, diferente da menina de mais cedo,
então resolvi perguntar em vez de ficar imaginando suposições.
— Aconteceu alguma coisa para estar tão quieta?
— Ah! Me perdoa. — Ela mordeu os lábios e olhou para o lado. — Só
estou pensando em uma coisa.
— Sei que só nos conhecemos hoje, mas se quiser falar... — Toquei em
seu braço para demonstrar meu apoio. — Dou minha palavra que guardo
segredos. — Cruzei o dedo indicador e o médio.
Ela riu.
— Você parece ser um pouco fechada, mas legal. — Ela suspirou e
continuou: — há pouco tempo fui a um congresso e conheci um rapaz.
Alguns instantes atrás consegui o contato dele com sua mãe, mas isso
despertou minha ansiedade para chegar nele. — Abby uniu os dedos e
apertou os lábios, movimentos típicos de uma menina apaixonada.
Uma compaixão tomou conta de mim por vê-la enlaçada pela teia da
paixão. Não merecia receber um golpe forte daquele. Bom, se dependesse de
mim, não sofreria com aquilo. A gente virou uma esquina e mudei de
postura, a fim de dar um conselho.
— Entendo. — Respirei fundo. — Essas coisas sempre acontecem
conosco. Mas, se posso dizer algo, é que você ore para Deus tirar esse
sentimento e só permitir se apaixonar caso o rapaz já tenha se declarado e
bem perto do casamento. Até lá, nada é seguro. Os homens são muito
propensos a serem mentirosos, mudarem de ideia e nos trocarem por
qualquer outra “melhor opção” que conhecem, nos largando sem qualquer
pudor. — Eu estava um tanto ofegante ao final da minha sentença.
Notei que havíamos parado e os olhos castanhos de Abby estavam
arregalados.
— Nossa! Isso foi tão... — Ela parou, pensou um pouco e disse: —
Aconteceu algo com você, para falar assim?
Aquela pergunta remexeu um pouco as minhas entranhas.
— Tinha um leve tom de raiva na sua voz.
— Na minha voz? — Fiquei de frente para ela e comecei a andar de costas
para a rua. — Não tenho raiva. É a verdade desse mundo tenebroso.
— Lyra, é melhor você...
— Sabe, nem todo mundo tem coragem de dizer a verdade sobre os
homens e como eles podem ser os mais insensíveis. Só estou dizendo que
precisa ser vigilante para não cair em qualquer laço...
— Lyra, presta atenção! — Abby gritou.
Então caí dentro de um bueiro aberto. Não havia água e nem lama, mas,
em compensação, estava com a tampa de concreto quebrada, com hastes de
ferro voltadas para cima. Por muito pouco não perfurou uma das minhas
coxas.
— Meu Deus! — Abby correu até mim, apavorada, sem saber o que
poderia fazer.
O buraco era um pouco fundo e me impossibilitava de sair de lá sozinha.
— Espera que vou procurar alguém para ajudar. — Ela saiu correndo.
Procurei controlar minha respiração e passei as mãos sobre o cabelo,
pensando em como pude me colocar numa furada daquela.
Ai, Lyra, você e sua mania de cair.
É sério! Poderia escrever um livro só com as minhas quedas. Que raiva!
— Trouxe ajuda!
Para a minha completa surpresa e espanto, era o homem que tinha ido à
loja mais cedo. Ele perguntou se eu estava machucada e balancei a cabeça
em negativa. Nada além de uns pequenos arranhões. Logo uma corda foi
lançada para mim, a agarrei e fui escalando enquanto ele puxava. Ao chegar
na parte de cima, fui amparada com sua mão forte e grande, mas me desviei
daquele contato.
— Tem certeza que está bem? É melhor irmos no médico. Vai que
quebrou alguma coisa e não sabemos? Pelo amor de Deus! — Abby me
inundou com suas perguntas, me deixando um pouco confusa. Por um
momento, reparei como a menina estava muito nervosa sobre a minha
condição.
— Estou bem, Abby. Não se preocupe!
— Como não se preocupar? Você caiu dentro de um bueiro. Vamos voltar
para casa que é melhor
Encarei-a com surpresa. Não ia voltar para casa por causa de uma queda
besta.
— Não precisa. Calma, ok? — Desviei meu olhar dela e virei para o meu
“salvador”. — Obrigada, Matias.
— Lembrou de mim? — Ele deu um sorriso enquanto enrolava a corda.
— Fazer o quê? Eu tenho uma boa memória. — Dei de ombro.
— E deveria ter um senso melhor de direção. — Me encarou. — Como
pode ficar andando de costas?
— Como sabe disso? — Estreitei os olhos, chateada por ter minha
pequena falha exposta.
— Ah, eu estava saindo da escola. — Ele indicou o grande portão da
Escola Estadual. — Vi você conversando enquanto caminhava de costas. Já
esperava que um acidente podia acontecer.
Cruzei os braços e franzi o cenho.
— Foi um lapso da minha mente, mas não irá se repetir — falei com meu
orgulho um pouco ferido por levar uma reprimenda na frente dos outros.
— Valeu pela ajuda, Matias. — Abby ficou entre nós dois e estendeu a
mão para ele, que a segurou. — Desculpa por te atrasar, seja lá o que você
fosse fazer — Ela deu um sorriso torto e me encarou com uma expressão
estranha.
— Só estava indo para casa. — Antes de partir de vez, ele me olhou dos
pés a cabeça. — Fico feliz que não tenha sido nada grave.
— Eu também. Obrigada mais uma vez.
— Já que a Lyra não quer voltar para casa, e você não tem compromisso,
por que não vem com a gente até a Orla? Tomar um sorvete é bom. Está bem
quente! — Abby se abanou com a mão.
Olhei para ela querendo fuzilá-la. Como poderia convidar um
desconhecido assim? Abby precisava aprender algo sobre mim: não sou
aberta a todo mundo. Não para amizade. Mas ela parecia ser o completo
oposto.
— Se vocês não se importam. — Ele deu de ombros. — Só vou deixar a
corda no carro e já volto.
Ele partiu correndo para o outro lado da rua e entrou no estacionamento.
— Abby, como você o convida assim, sem mais nem menos? Conhece ele
de onde, pelo amor?
— O Matias? Ele é professor da escola dos meus irmãos.
— Professor de quê?
— De história! — exclamou como se fosse óbvio. — E é dos bons. Meus
irmãos odiavam essa matéria, mas agora amam. Só de fazer aqueles
curumins gostarem de uma disciplina o eleva ao top 1 dos professores. —
Ela brincou. Matias retornou, não me permitindo mais falar nada.
Voltamos a caminhar e Abby seguia entre nós. Eu estava encucada com
uma coincidência daquela. Que mundo pequeno!
— Lyra, você está tão calada. Será que falamos algo que te chateou? —
Ouvi a voz grave dele perguntar.
— Não, não. — Dei um sorriso. — Eu só...
O que eu diria? Que era esquisita?
— ...gosto de ouvir os outros falarem. — Foi uma resposta verdadeira,
afinal.
— Ah! Ela é disposta a aprender, que coisa boa! — disse num tom
divertido.
— A Lyra chegou hoje. — Abby passou as mãos nas minhas costas. —
Deve estar cansada. Podemos dar um desconto.
— Ah! — Ele não disse mais nada.
— Mayara! — Abby gritou e saiu correndo para abraçar uma menina que
encontrou no meio do caminho, nos deixando para trás.
Por um tempo, seguimos em silêncio até chegarmos na Orla.
— Vou levar você num ponto legal para ver o pôr do sol. — Matias sorriu
e indicou o caminho com a cabeça. — Veio fazer o que em Itaituba? — ele
me perguntou e colocou as mãos nos bolsos da calça.
— Como disse mais cedo, estou tomando conta da loja da minha tia. Ela
está doente e precisou ir para São Paulo para se tratar.
— Que triste! Espero que o Senhor Deus a cure — ele falou com
seriedade e me espantei ao se referir ao Senhor com respeito. A maioria das
pessoas não falava mais de Deus com temor.
— Tenho orado por isso. — Cruzei os braços e, com a curiosidade
batendo, indaguei: — Desculpe, mas você não tem cara nem sotaque daqui.
De onde é?
— Ah. — Ele riu. — Eu vim para cá porque passei no concurso. Sou do
Mato-Grosso.
— Sair de nossa terra não é fácil — falei e paramos diante de um cenário
fantástico. Experimentei aquele momento, e Matias pareceu usufruir do
mesmo. — Uma boa música combinaria com isso aqui.
— Da próxima vez você pode trazer seu violão. — Ele se virou para mim.
— Me candidato para fazer o esforço de ouvi-la tocar — disse com uma
seriedade zombeteira e não consegui segurar o sorriso.
Mas logo retornei a expressão anterior quando lembrei de André e das
vezes que pediu que tocasse para ele.
— Minha música é para mim.
— Não deveria ser. — Matias cruzou os braços. — Todo mundo deveria
ter a oportunidade de escutar uma boa musicista.
Não respondi.
— Ah, vocês estão aí! — Abby disse, ofegante.
— Você sumiu, mas eu não queria que a Lyra perdesse seu primeiro pôr
do sol. — Matias me olhou e sorriu.
— Cumpriu bem seu papel de acompanhante. — Abby tocou no ombro
dele e deu leves batidas. — Obrigada.
Nós três voltamos a andar, e respondia vagamente a conversa deles.
Depois das oito da noite voltei para casa e me lancei sobre a cama, pensando
em como Abby era legal. De repente, minha mente trouxe a visão de Matias,
sua mão me segurando e da postura firme dele ao vislumbrar aquela
paisagem. Virei-me para o outro lado, tentando mudar o rumo daqueles
pensamentos. Vi o livro da Aline na minha cabeceira e pensei:
Se você fosse o pastor Tiago, talvez eu pudesse... Não, Lyra, para!
Fechei os olhos e adormeci.

Não teve jeito, chegamos atrasadas no culto porque inventei de dormir


mais cinco minutos. O louvor já estava no meio e, com a cara mais lavada do
mundo, sentei num dos bancos de trás. Não pagaria o mico de desfilar pelo
corredor da igreja e ser alvo do olhar de todos. Ao me acomodar, reparei
como a igreja era simples: as cadeiras, um púlpito de madeira, com apenas
violão, teclado e os microfones para compor a cantoria. No entanto, me senti
em casa. Com a finalização da música, um senhor de cabelos grisalhos
tomou a vez, fazendo uma leitura bíblica e orando pelo pregador da manhã.
Orei um pouquinho mais e, ao levantar o olhar, tive um assombro, pois era
Matias ali na frente. Era ele o preletor da EBD? Como assim?
— Abby. — Mexi na minha amiga, que estava concentrada nas palavras
iniciais. — Por que você não me contou que o Matias era daqui?
— Não contei? — Ela me olhou com cenho franzido. — Vixe! Esqueci
desse detalhe. — Deu um sorriso sem graça, — Mas ele é, sim, e prega bem.
Vamos aproveitar.
Melhorei minha postura na cadeira e procurei prestar atenção no que ele
dizia. Naquele momento, ele pediu que abríssemos a bíblia no Salmos 1. Já
sabia de cor aquele capítulo, porém obedeci, e ele começou a exposição.
Fiquei chocada! Como podia articular tão bem um texto? Para cada versículo
trazia uma aplicação para a nossa vida real e, simplesmente, fiquei espantada
com tanto conhecimento prático e simples. Admito que só consegui admirar.
Deveria mesmo ser um excelente professor!
Já pensou ouvi-lo falar sobre Deus todos os dias? Quanto conhecimento
ele poderia conceder a uma pessoa!
Foram minhas primeiras impressões.
Pendi a cabeça para o lado e apoiei na palma da mão aberta e meus
pensamentos foram longe.
Seria bom ouvir aquela voz grave todos os dias!
E aquele sorriso? Meu Deus! Que sorriso bonito com uma covinha do
lado esquerdo.
E aquele olhar? Veja os cílios, como são longos?
Ele parece ser como o querido Pastor Tiago, não?
Foi aí que minha razão pareceu socar minhas idealizações.
Não, não, não! Pr. Tiago só no livro mesmo. Não existe homem com ele!
E então inquiri:
Será ele um pastor? Meu pai! Ele pode ser um pastor!
— Ai, Lyra, o que você está pensando? Acorda para a vida! — repreendi a
mim mesma.
— O quê? — Abby me olhou com estranheza.
— Hã? Não estou dizendo nada. Só pensando — respondi e fiz o esforço
de prestar toda a atenção na palavra. Todavia, não foi fácil quando o vi olhar
em minha direção. Pai do céu!
O culto finalizou. Uma benção, com certeza! Algumas pessoas vieram me
cumprimentar e falaram palavras afáveis sobre minha estadia em Itaituba.
Era uma igreja bem acolhedora. Mas não neguei uma leve frustração por ver
Matias conversando com um senhor sem ter a consideração de vir me saudar,
já que era uma visitante. Aquela atitude me deixou confusa, comparada a sua
antiga postura tão amigável quando nos vimos pela primeira vez. Mas não
me deixaria abater por aquilo. Cada um faz o que quiser da própria vida, não
é?
Lyra, sua orgulhosa!
Minha mente me condenou.
Estava prestes a sair do templo quando uma senhora de cabelos grisalhos,
curtos e vestido florido veio ao meu encontro, e logo me colocou entre seus
braços, consumindo todo o espaço entre nós, apertando-me com
empolgação. Foi um abraço bem estranho, mas bom também.
— Minha querida, seja bem-vinda a nossa pequena cidade. — Ela apertou
minhas bochechas. — Abby, você deveria ter apresentado sua amiga.
— Eu teria feito se tivéssemos chegado na hora. — Ela me indicou como
culpada.
— Infelizmente, perdia a hora.
A senhora cujo nome, no meio da conversa, descobri que era Iris, acabou
compreendendo minha falha e perguntou em seguida:
— Onde vai almoçar?
— Ah! É provável que eu faça maionese e arroz para comer com linguiça.
— Estava mesmo querendo aquela comida.
— Sozinha? Oh, não! Você virá para a minha casa e comerá em família. É
sua primeira semana aqui, não podemos fazer essa desfeita. Vamos, vamos!
— Ela foi me puxando para fora da igreja e convidou Abby também, que
após receber autorização dos pais, veio junto.
Nós duas seguimos com a senhora, que não parava de conversar e falar
como Itaituba era bom de se morar, apesar do calor. Fez todos os tipos de
perguntas sobre a minha vida, e nada pude fazer a não ser responder. Mesmo
com toda a empolgação, acabei gostando do jeitinho dela. Daquela forma,
mostrava o quanto prezava pela vida das pessoas. Uma verdadeira cristã.
Sua casa era simples, mas possuía um certo charme. Na sala tinha uma
estante que chamou minha atenção pela quantidade de livros e de objetos em
miniaturas de representações de cidades, parecidas com lembranças de
viagens. Cheguei mais perto e notei que eram livros de História sobre a
segunda guerra mundial, figuras importantes da sociedade, Filosofia,
Ciências Políticas, Sociologia, Antropologia e Teologia. Até senti minha
burrice pesar dentro de mim ao perceber quão pouco eu li na vida sobre
aquelas coisas.
Sendo sincera, julguei que a pessoa dona de todos aqueles títulos seria
culta, de pouca fala, e que corrigisse a todos. Deveria ser uma chatice
conversar com alguém tão instruído, pois estaria me vigiando para não falar
bobagem, e não poder falar livremente era algo terrível.
Mais adiante, reparei num antigo violão pendurado na parede e quis ir até
ele.
— Lyra, vamos! — Abby me chamou, então deixei de lado minha
intenção e a segui para a cozinha.
Sem precisar pedir, coloquei-me para ajudar dona Iris com a preparação
do almoço. Apesar dos muitos argumentos dela para não fazer nada, a
convenci com minha relutância em contribuir. Mamãe não me criou para
ficar de braços cruzados!
Conversávamos sobre a pregação quando ouvi o timbre do dito pregador
chegando na casa. Não podia ser! Senti um aperto no peito. Então vi aquele
homem alto na porta da cozinha, batendo os pés no tapete do lado de fora,
com umas sacolas na mão esquerda e um sorriso no rosto.
— Veja quem apareceu por aqui? — Matias entrou na cozinha.
Dei um sorriso amarelo e quis um buraco para me enfiar dentro. Aquilo
nem parecia mais coincidência, mas perseguição. Se eu estava na loja, lá
estava ele; se eu caísse, ele me salvava; se estava na igreja, ele pregava; se
estou na casa de uma senhora legal, ele aparecia. O que é isso? Eu hein!
— Eu que pergunto: Por que está aqui? — indaguei com nervosismo.
— Ah, não sei! — Ele colocou as sacolas sobre a mesa. — Talvez por que
eu more aqui? — Me olhou com um sorriso cínico nos lábios.
Só ouvi o engasgo de Abby ao meu lado. Aquela traidora! Podia ao menos
ter me avisado.
— Comprei tudo que pediu, mãe! — Ele deu um beijo no topo da cabeça
dela.
Mãe? Mas como o mundo pode ser tão pequeno?
— Sejam bem-vindas, meninas. Fiquem à vontade. Vou tomar um banho
porque o calor está demais! — Antes de partir roubou uma das rodelas de
cenoura que cortei, deu umas piscada e saiu.
Fiquei lá, paralisada, olhando para o legume.
Certo, vamos voltar o disco aqui. Qual probabilidade dessas coisas
acontecerem na vida dos outros? Desde que André terminou comigo, as
coisas pareciam se configurar de maneira anormal. Não é possível!
Todavia, não pude deixar de ser afetada ao vê-lo na porta da cozinha.
Olhei para lá novamente e reparei como deixou o tênis do lado de fora.
Matias parecia ser organizado, enquanto eu era o completo oposto. De
repente, minha imaginação voou para um universo paralelo em que eu estava
cortando a carne, ele chegava e me dava um beijinho no topo da cabeça.
Seria muito...
Seria nada! Volta, Lyra. Só volta!
— Voltando ao assunto, nosso novo presbítero é perfeito nas suas
exposições — Abby declarou.
Parei de cortar o alimento e a fitei, incrédula.
Matias é presbítero!
— Preciso dizer que meu filho estuda muito para cada exposição bíblica.
Tenho orgulho dele!
Estava espantada demais para formular qualquer frase e participar da
conversar. Fiquei tão pensativa quanto chocada com minhas descobertas.
Depois que a comida estava no fogo, dona Iris resolveu cuidar um pouco
do jardim dela, eu e a Abby fomos ajudar, mas plantas não eram o meu forte.
— Dona Iris, a senhora me permite ver aquele violão que está na sala? —
pedi.
— Sim, minha querida. Ele está bem velho porque era do meu falecido
marido. — Sua voz tinha um tom de emoção.
— Prometo que vou tomar cuidado. — O que era uma promessa nada fácil
de cumprir.
Saí do jardim caminhei rumo àquela belezura de antiguidade. Porém, ao
entrar na sala, me deparei com uma visão estupenda. Paralisei ao contemplar
aquele homem sentado numa poltrona, com as pernas cruzadas, cabelos
molhados, bermuda, blusa branca e óculos.
Meu Deus! Isso é um vislumbre da perfeição!
Nem em mil vidas poderia negar o quanto Matias estava lindo naquela sua
postura de estudioso. Os óculos em combinação com a barba acentuavam
ainda mais aquela beleza rústica dele. Minha memória trouxe a recordação
das vezes em que entrei na sala da casa do André e o via jogando vídeo
game; aquilo era decepcionante comparado a Matias naquela posição. E,
afinal, ele era um presbítero! Não um pastor, como o Tiago do livro, mas,
mesmo assim!
Lyra, se recomponha!
Com esforço, engoli em seco e segui até o violão Di Giorgio de 1984. Que
instrumento! Pena estar sem cordas e um pouco empoeirado.
— Imaginei que uma hora ou outra você viria paquerar esse bonitão, aí!
Tremi dos pés a cabeça ao escutar a voz de Matias tão perto, ele estava
atrás de mim, e pude contemplar melhor sua fisionomia masculina e linda.
— Ah, eu... É... Bom...
Por que eu estava gaguejando? Lyra, sua doida!
— Meu pai tocava pra mim quando era criança. — Ele cruzou os braços e
encostou na parede ao lado do violão. Só pude suspirar ao ver duas beldades
tão perto.
Acorda, mulher! Acorda!
Passei a mão no rosto e sorri sem graça. Por favor, que ele não visse
minha postura tão desconcertante.
— Seu pai teve sorte de comprar um violão desse. — Enfim, encontrei
minha voz. — Sabia que ele custa em torno de R$ 14.000,00? O fundo dele é
de Jacarandá iluminado. Uma madeira cara. Vocês têm uma relíquia aqui!
Matias observou bem o violão.
— Além de tocar bem, conhece tudo sobre o instrumento.
— O violão de uma violonista é como se fizesse parte do seu corpo.
Temos que cuidar bem de nós mesmos, não é? — Eu ri. — Meu professor
sempre dizia que o violão era uma extensão do nosso braço. Isso fixou em
mim.
— Meu pai tinha esse pensamento também — ele falou e tirou os óculos.
— Ele tratava muito bem dele. — Tocou no violão. — Com a sua morte, o
deixamos exposto aqui.
— Olha, se vocês quiserem conservar melhor a memória dele, aconselho a
tirarem da parede, pois o braço dele pode empenar mais do que já está —
disse e analisei o instrumento já sofrendo com o efeito do tempo e daquela
posição. — Deixá-lo dentro de um case e longe de calor ou frio é o melhor.
Matias ficou em silêncio. Me arrependi de ter dado opinião sem ter
permissão. Por que eu era tão direta?
— Interessante — foi o que respondeu.
Depois de uns segundos, ele abriu a boca para falar mais alguma coisa,
mas foi interrompido.
— Ah, vocês estão aí! Vamos comer! — disse Sra. Iris.
A mesa estava posta quando nos sentamos. Olhei para o lado e percebi um
ar desconfiado de Abby e semicerrei o olhar para ela. Matias se sentou no
centro da mesa e puxou uma oração. Do meu lugar, suspirei: era difícil ver
um homem com atitudes cristãs tão simples atualmente. Só pedi de Deus
graça!

— Larga de ser covarde, Lyra!


— Mamãe! — exclamei, ofendida.
— Você já está aí há 1 mês e meio e não se deu a chance nem de
conversar direito com o rapaz? Você é muito covarde!
Eu me sentei no banco atrás do balcão e orei para que ninguém entrasse na
loja e precisar ouvir o sermão de dona Ivana.
— Mamãe, eu não consigo! Quando eu penso sobre algo acontecer, logo
me vem as mentiras do André e aquele término. Sonhei tanto e planejei um
futuro só para ter tudo destruído. Não posso viver isso novamente —
declarei com a voz emocionada.
— Pelo que disse, o Matias tem uma postura diferente, não tem? É nisso
que deveria confiar. — Ela quis me trazer esperança. — Não pode julgar
todos os homens por causa de um. Não pode negar a si própria de amar por
medo. Deus não nos deu um espírito de temor!
Queria acreditar naquilo, porém as garras do medo logo me atingiam.
Matias, durante todo esse tempo, se demonstrou um verdadeiro homem em
sua postura. Seus estudos bíblicos mostravam como era conhecedor das
escrituras, isso me encantava cada vez mais. No entanto, André também era
da igreja. Lógico que não possuía nem metade da sabedoria de Matias, mas...
Só não conseguia ir além.
— Mãe, eu queria. É sério, mas não... — interrompi a ligação para fungar
o nariz e secar as lágrimas que desciam. — É melhor pensar que ele é igual a
todos os outros, ainda que sua conduta diga o contrário.
— Vamos fazer um acordo? — Fiquei desconfiada. Qual seria a trama de
mamãe?
— O que seria?
— Caso ocorra um próximo encontro e ele se aproximar, prometa se abrir
e conversar. Faça como por obediência a sua mãe.
Mirei a bateria que ficava exposta no meio da loja e soltei o ar.
— Está certo. Vou fazer pela senhora.
— Muito bem. Agora tenho que ir ver sua vó. Abraço e se cuida! — Ela
me dedicou mais umas palavras de encorajamento e desligou.
Continuei parada e absorvendo toda aquela conversa. Estaria sendo tão
radical a ponto de não dar nenhuma oportunidade para conversar? Talvez.
Cometia o pecado de julgar o caráter de Matias por algo que ele nem fez,
somente pelo meu trauma? Me perdoa, Deus. Desde aquela tarde na casa
dele pouco conversamos, apenas uns cumprimentos nos finais dos cultos.
Mas não podia negar como meus olhos sempre acabavam repousando nele.
No entanto, não via um grande esforço de sua parte para se aproximar de
mim.
Mas com essa sua carranca no rosto quem se aproximaria?
Minha mente me acusou e afundei a face no meio das palmas das mãos.
Ajude-me, ó Senhor!
Depois de um tempo, larguei meu lamento, fechei a loja e fui para casa.
Meu simples desejo era tomar um banho gelado e assistir alguma coisa
comendo pipoca, mas havia aceitado ir ao encontro dos jovens naquela noite,
que seria na prainha com direito a fogueira e tudo.
Abby, minha companheira de todas horas, foi pontual e seguimos para o
passeio.
Matias caminhava à minha frente, conversando com um dos rapazes, e me
vi sendo a única silenciosa em meio ao ruído de conversas das meninas. Elas
falavam sobre tantas coisas, mas não conseguia me concentrar por ter o
desafio de mamãe martelando em minha mente. Bom, se esta noite ele se
aproximasse, eu conversaria. E algo dentro de mim queria muito que ele
tivesse a iniciativa de chegar mais perto.
Finalmente chegamos à pequena praia de Itaituba. A paisagem noturna em
frente ao rio era linda. Os rapazes se organizaram para montar uma fogueira,
pois o vento fresquinho propiciou um pouco de frio. Ao sentarmos ao redor
do fogo, as meninas puxaram a canção que falava sobre como nossa pátria
não é aqui. Fechei meus olhos para meditar melhor naquela letra, pensando
no porquê de tanto sofrimento debaixo do sol quando, no fim, tudo se
reduzirá a nada, principalmente nossas emoções. Oh! Que Jesus me fizesse
olhar para o que é eterno.
O toque do violão acabou e abri os olhos. Fitei Matias e ele lia a bíblia,
como quase todas as vezes que o via. Admito que o achava cada vez mais
belo naquela posição.
— Lyra, por que não toca para nós? — ouvi a Andresa me pedir. Ela era
uma das líderes do louvor.
— Sim, Lyra, vamos lá! — outros pediram quase em coro.
Afirmei com a cabeça e me entregaram o violão.
O que eu posso tocar, meu pai?
De repente, me veio a mente um filme com o qual quase me acabei de
chorar ao assistir. E, claro, uma das canções da trilha sonora me tocou em
cheio e procurei aprender para tocá-la. Ajustei o capotraste na quarta casa,
fechei os olhos e comecei a dedilhar os acordes, aos poucos a canção
começava tomar forma nos meus lábios.

Todos esses pensamentos que desperdicei


Todos esses pensamentos eu temo
Mesmo quando esses pensamentos se desvanecem
Eu ainda sei que você está aqui
Meu coração está em você[29]

Só consegui sentir meu coração se encher de tamanha graça. Era como se


o mundo, com suas dificuldades, desaparecesse e eu pudesse descansar
livremente em Deus. Estava cansada de carregar aqueles temores sobre o
futuro e sobre os homens. Pois, ainda que muitos imprestáveis existissem, eu
podia confiar num Deus que cuidava de mim. Isso não aconteceu com
André? Foi doloroso, mas não era melhor do que viver um casamento com
uma pessoa sem caráter? Sem dúvida alguma, eu poderia confiar no zelo do
Senhor por mim e, assim, abrir meu coração mais uma vez. Ele cuidaria de
tudo.
Ao finalizar a canção, abri os olhos e me deparei com Matias fitando-me.
Percebi como todos estavam num estado de silêncio, então apenas engoli em
seco e devolvi o violão. Eles não quiseram cantar mais nada e a palavra com
Matias se iniciou. Ele pregou sobre a fidelidade de Deus apesar de nós não
sermos fiéis e, mais uma vez, senti meu coração se comprimir dentro do
peito. Aquela noite na praia foi de muita contrição.
Após todo esse momento, o pessoal colocou o queijo coalho no espetinho
e começou a assar e a conversar. Eu, por outro lado, levantei-me e caminhei
para mais perto da água, a fim de ver melhor as estrelas. Gostava demais da
paisagem noturna. Quando notei, Matias se aproximava.
— Você cantou com muita verdade aquela canção — ele declarou e
apertei os lábios.
— Só queria dar um culto verdadeiro a Deus!
— Acho que conseguiu. — Ele sorriu e sua covinha mais uma vez
apareceu.
Meu coração era fraco para aquele charme. Nós viramos para o rio e
ficamos em silêncio, contemplando aquele panorama.
— Às vezes queria poder contar as estrelas, ou ter uma moradia entre elas.
Ele soltou uma risada.
— Lembro que essa foi uma das visões que fez minha mãe sorrir após
chegar aqui. — Ele colocou a mão no bolso e respirou fundo.
— Quando falou que era do Mato-Grosso, achei que sua família morava
lá. — Segui o conselho da minha mãe e resolvi desenvolver uma conversar.
Também quis matar minha curiosidade.
— Há quatro anos vim para cá. Meus pais continuaram morando em
Cuiabá, mas meu pai teve um infarto fulminante e eu não pude deixar minha
mãe sozinha. Ela estava arrasada por perder seu companheiro de vida —
Matias contou e senti seu saudosismo na voz.
— Nossa! Eu sinto tanto por isso. — Uni as mãos. — Você foi muito
bondoso em negar um pouco da sua liberdade para cuidar de sua mãe.
A atitude de Matias me tocou, de verdade. Sem querer, eu o comparei
mais uma vez com André, que reclamava muitas vezes por morar com os
pais. Será que ele teria coragem de negar a si próprio e os prazeres de morar
sozinho para acolher uma mãe? Não podia afirmar isso. Mas reconheço que
esse cuidado de Matias o ressaltou aos meus olhos.
— As escrituras falam que devemos honrar nossos pais, não é? Minha
mãe é uma benção para mim, e a cuidarei até encontrar uma esposa para ter
um relacionamento tão duradouro quanto o dos meus pais.
— Quando se casar vai deixá-la? — Franzi o cenho.
— Não, mas vou conversar com minha senhora e encontraremos uma
solução juntos — ele disse com muita firmeza.
— “Minha senhora”. — Semicerrei os olhos. — Que palavreado
interessante para se nomear uma esposa.
— Espero que ela se sinta lisonjeada por isso.
— Seria besta se não ficasse — Sorri.
Voltei a olhar o rio, pensando sobre aquilo. Ele parecia bem certo sobre o
casamento, e não nego que fiquei curiosa para saber qual era o seu
pensamento sobre aquela instituição. Mas não tive coragem de perguntar,
não queria ir além.
— Ficou calada de repente. Será que falei algo que não gostou? — Ouvi
seu questionamento e o olhei, assustada.
— O quê? Não, não. Eu só sou assim, às vezes.
— Estranha?
— Um pouco, talvez. — Dei de ombros e ri.
Um vento fresco passeou entre nós e aquela breve experiência relaxante
foi cortada pelas inesperadas palavras de Matias:
— Sabe — fez uma pequena pausa, mas continuou quando o olhei —, na
primeira vez que nos encontramos, você estava tocando com tanta
intensidade que pude te ver de verdade, apesar de nem te conhecer. Hoje tive
essa mesma sensação. Quando você toca o violão mostra quem realmente é.
— Suas palavras possuíam profundidade, e aquilo pegou meu coração de
jeito. — Você parece que tem uma casca dura, Lyra. Mas seus sentimentos
expostos na música demonstram o quanto é bondosa e amorosa.
Tudo bem. Ali as lágrimas quiseram chegar. Por que ele estava dizendo
aquelas palavras?
— A música fala por você aquilo que talvez não consiga expor de maneira
mais natural.
— Eu nem sei o que dizer. — Passei a mão na face e virei para frente. —
Mas obrigada por isso — concluí, emocionada.
— Nossos pensamentos são confusos, não é? — Ele também voltou a
olhar a paisagem escura.
— Sim, e como! — Meu peito esquentou. — Devemos mesmo confiar
quando a bíblia fala que o coração é enganoso. Ele acaba afetando tudo.
Que rumo aquela conversa estava tomando?
— Concordo com você. E pode nos enfiar em muitas enrascadas. — Ele
olhou para mim de novo.
Assenti.
— Se eu pudesse voltar atrás, faria tudo diferente — eu disse com certo
lamento.
— Não podemos voltar atrás, mas, na força do Senhor, podemos fazer
diferente. As escrituras dizem que em Cristo tudo se fez novo, precisamos
descansar nisso. — Suas palavras eram ditas a mim, mas parecia dirigi-las ao
seu próprio coração.
— Se meu romantismo barato não tivesse me cegado, nunca teria me
envolvido com o André. — Arfei. — Oh, Senhor, tu sabes o quanto me
arrependo!
— André? — questionou.
Mordi os lábios e chutei umas pedrinhas antes de contá-lo sobre aquela
infeliz parte da minha vida.
— Meu ex-namorado. — Voltei-me para ele, que me encarava com
curiosidade. — Me relacionei por dois longos anos cheios de expectativa,
mas fui largada sem mais nem menos. — Abaixei a cabeça e, num fio de
voz, declarei: — os homens não deveriam brincar assim com as mulheres.
Não sabem o quanto suas ações nos machucam e geram dores que
carregamos por anos.
Depois de lançar minha mágoa, vi Matias fechar os olhos e os apertar com
a mão esquerda. Ao me olhar novamente, enxerguei dor em suas expressões,
como se ele tivesse sido o culpado por toda aquela desgraça na minha vida.
— Lyra, eu...
— Ei, vocês, venham aqui! — Rodolfo, um dos jovens, gritou para nós.
— Está tarde e ainda precisamos deixar as moças.
Nos olhamos e, antes que pudéssemos responder, outros correram até
onde estávamos. Assim, voltamos, com um profundo silêncio entre nós,
como se uma longa conversa tivesse ficada suspensa no ar.
No sábado de manhã, Abby passou em casa e me convenceu a deixar a
preguiça de lado para ir a um balneário, com promessas de água fresca e
descanso. E ela cumpriu sua palavra. É sério, que lugar mais lindo era aquela
Fonte Azul! Se assemelhava bastante com a Lagoa Azul de Presidente
Figueredo. Só consegui agradecer a Deus por me proporcionar aquele
momento.
— Ei, chegamos!
Virei para atrás e vi uma turma dos jovens da igreja se aproximar. Busquei
por Matias entre o grupo, mas ele não estava lá. Uma ponta de decepção
fincou raiz em mim, mas respirei fundo e conversei com parte do pessoal.
Após organizarmos nossas coisas embaixo de uma cobertura de palha,
peguei meus pertences e parti para o banheiro, a fim de me trocar.
Não demorou muito para colocar a vestimenta e passar o protetor solar,
depois dobrei minha roupa e coloquei na bolsa. Estava prestes a sair quando
meu coração deu um salto ao ver Matias parado perto da porta do banheiro,
acompanhado de Laís, uma das jovens da igreja. Ela possuía uma expressão
de nervosismo ao encará-lo, e eu me senti numa enrascada, pois, se saísse,
eles achariam que ouvi algo. Então apenas fiquei parada.
— Matias, estava querendo falar com você — a moça disse.
— E o que seria? — ele perguntou, colocando as mãos no bolso da
bermuda e dando uns passos para trás.
— Meu aniversário é amanhã e a mamãe vai fazer uma festa, queria te
convidar. — Laís colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e deu um
sorrisinho.
Revirei os olhos por conhecer bem aquela tática.
— Seria muito bom tê-lo entre nós. Ainda mais para poder levar uma
palavra tão abençoada.
— O pastor pode fazer isso, Laís. Já falou com ele? — A voz de Matias
estava mais rígida que o normal. Naquele momento, me condenei por estar
escutando uma conversa da qual não fazia parte.
— Ah! — Ela se fez de desentendida. — Não falei porque achei você
seria o indicado para o dia, já que minha família gosta tanto de suas
pregações — argumentou com uma voz mais aguda e suave.
— Sinto muito te decepcionar, mas não vou poder ir. Tenho as provas dos
meus alunos para corrigir. Fale com um dos irmãos. — Matias apontando
para onde estavam alguns deles.
— Mas amanhã é domingo. Não poderia corrigir em outro momento?
Algumas horas não matarão você — ela o retrucou.
Não vou negar que achei a justificativa válida. Para que estudar ou
trabalhar tanto?
Ele a fitou e soltou o ar.
— Simplesmente, não posso. — Ele arfou. — Mas te desejo um bom
aniversário. Fique na paz! — Sem dar chance a um novo argumento, partiu
para o outro lado.
Ao enxergar a cara de decepção da Laís meu coração se apiedou. Não
sabia as motivações reais de Matias, mas ele poderia ter sido mais cordial.
Não poderia? E, antes que ela se virasse e me visse, afastei-me da porta.
Com toda certeza, me odiaria se soubesse que alguém escutou aquilo. Entrei
numa das cabines do banheiro me sentindo uma verdadeira criminosa. Não
era nada legal ouvir as coisas que não são da minha conta.
Uns minutos depois, voltei para espiar e ao constatar que não tinha mais
ninguém do lado de fora do banheiro, saí de lá. Me aproximar do grupo e
meu coração se aqueceu ao ver Matias mais descontraído, rindo à vontade.
Estava belo com aquela roupa mais leve, longe das calças jeans e blusas de
botão. Pensei se teríamos oportunidade de conversar como da outra vez,
contudo, ao vê-lo tão cercado pelos rapazes, achei ser difícil.
Deixe minhas coisas na mesa e me sentei para conversar com Abby. Vez
ou outra eu olhava na sua direção dele, mas ainda não tinha me visto. Fiquei
desapontada. Olhei para Laís, do outro lado, que conversava com seu grupo,
e admirei sua força por permanecer no local onde um rapaz, de certo modo, a
dispensou. Se fosse eu, teria ido embora.
Naquele instante, questionei se Matias diria não para mim, caso eu pedisse
para ele ir a comemoração do meu aniversário.
E por acaso você é especial para ele?
Balancei a cabeça com a minha própria indagação. Matias não me trataria
de maneira diferente, apesar de ser sempre cordial todas as vezes que
trocávamos alguma conversa.
É só gentileza, Lyra. Somente isso!
Eu precisava me contentar e parar com aquelas loucuras. Quando voltei o
olhar na direção dele, senti o coração dar um salto no peito por ver como
aqueles olhos castanhos estavam repousados em mim. Ele sorriu e devolvi a
cortesia.
Me ajuda, Deus!
Após aquela troca de olhares, me recompus para participar melhor das
conversas.
Uma hora depois, deixei meu celular perto da borda de madeira da lagoa e
parti para mergulhar. Sentir meu corpo suado entrando em contato com a
água fresca fez minha alma se refrigerar e nadei com gosto. Depois, escolhi
um lugar mais sossegado, coloquei uma música e me sentei com as mãos
para trás, esticando o corpo. Olhei para o céu e apreciei aquele ventinho
gostoso passear por mim. A obra divina era uma dádiva mesmo.
— Esse vento engana. Daqui a pouco vai estar toda vermelha — Matias
declarou e eu arregalei os olhos para checar se realmente era o timbre dele. E
como era!
— Vale a pena ficar mais morena. — Sorri, e ele se acomodou ao meu
lado.
Reparei como Matias era bem reservado ao vestir um calção e blusa U.V
preta. Gostei daquilo.
— Largou os instrumentos, mas não a música.
— A música faz tudo ficar melhor, não acha? — Inspirei fundo e
continuei na minha posição anterior. — Dá um significado maior para as
coisas ao nosso redor.
— Não posso discordar. — Percebi que ele colocou as mãos para trás e
esticou o corpo também. — O que está ouvindo?
— Bethoveen. A sua célebre 9ª Sinfonia. — O olhei. — É meu
compositor favorito de todos os tempos.
— Quero saber o motivo dele ser seu número um. — Ele parecia mesmo
interessado.
— Ah! — Suspirei. O que falaria para demonstrar a importância dele para
mim? Pensei um pouco antes de responder. — Porque a mente dele ia além.
Você sabia que essa foi a primeira sinfonia composta a utilizar a voz humana
no mesmo grau de importância dos instrumentos? E isso influenciou a
outros. — Fiquei numa posição mais ereta e dobrei as pernas.
— Nossa! Ele era mesmo diferenciado.
— O melhor, ou pior, de tudo é que nessa época ele já estava totalmente
surdo. — Fechei o punho como se pudesse mostrar a força e aspiração
daquele músico. — Mas tinha um sonho tão grande de musicalizar o poema
Ode à Alegria que trabalhou até conseguir. É uma inspiração de
perseverança, pois fez o que os outros nem imaginavam. Uma mente genial.
Para mim, não existe compositor melhor.
— Seus olhos brilham ao falar dele — Matias deu um sorriso. — Quem
poderá competir com Beethoven no seu coração, não é?
Apertei os lábios e dei um riso tímido.
— Ele merece ser apreciado pelo que é. — Quiquei os ombros.
— É claro! — Matias assentiu. — Bom, ao menos a música dele pode ser
apreciada em todo lugar. Só por isso você está aqui. — Me encarou um
pouco. — Gostei dele.
— Não posso negar que é influência da Abby também. — Apoiei os
cotovelos em cima das coxas e entrelacei os dedos. — O jeito fofo dela tem
exercido poder sobre minhas vontades. Preciso ser mais vigilante.
Matias caiu na gargalhada.
— Mas não serei hipócrita e dizer que não gostei. Precisava desse
ambiente natural.
— Na segunda, como fomos a praia à noite não deu para aproveitar tanto
— ele declarou.
— Não importa, pois o que vivi ali foi o mais importante — disse com
sinceridade e enrolei o meu cabelo num coque. Devia estar parecendo a
Dory, toda molhada, ao contrário dele, que nunca perdia o charme.
Lyra, foca! Foca!
Matias ficou em silêncio. Seu modo de olhar demonstrava que sua mente
estava em turbilhões. Isso foi confirmado quando declarou:
— Lyra, aquela nossa conversa ficou na minha mente. — Me olhou, sério.
— Será que podemos voltar a ela?
— Não vou mentir, também pensei bastante nisso. — Balancei meus pés
na água e fixei meu olhar no movimento de vai e vem.
— Você disse que namorou um rapaz.
Ele não precisou acrescentar mais nada porque seu querer estava evidente.
— Sim, comecei a namorar com o André já perto de finalizar a faculdade.
Ele também é músico — informei. — No primeiro ano, conquistamos a
vitória de entrarmos na Orquestra de Violão. Sempre estávamos treinando,
participando de concertos e planejando um futuro de viajarmos por todo o
mundo com a nossa música — contei com uma sensação estranha no peito.
Não era raiva ou amargura, mas um simples sentimento de perda de tempo.
Como se aqueles anos tivessem sido desperdiçados.
— Ficaram quanto tempo juntos?
— Por dois anos. Este ano faríamos três, se há 5 meses ele, numa bela
tarde, não tivesse terminado tudo. — Soltei o ar. — E, para completar a
derrota, uma semana depois apareceu com uma nova pessoa. — Apertei o
lábio.
Sentia uma frustração imensa.
— Oh, como me arrependo! — Fechei os olhos e pus a mão no rosto. —
A minha raiva não é mais por ele, mas pela minha própria burrice de ter feito
tudo errado. Se, na minha carência, tivesse procurado conhecer a vontade do
Senhor para um relacionamento cristão, não teria essa mancha no meu
passado. — Minha fala refletia uma mistura de decepção e raiva.
— Se pudéssemos fazer diferente... — Matias meditou naquela frase. —
Sempre pensamos assim, contudo tenho aprendido algo importante.
— E o que seria? A culpa pelas besteiras do nosso passado tantas vezes
pesa nos ombros. — Quis derramar umas lágrimas.
Ele arrumou a postura e, ao olhar para a paisagem natural a frente, disse:
— Thomas Watson costumava dizer: “Não pense muito sobre as suas
perdas, antes pense sobre suas misericórdias”. — Ele se voltou para mim. —
Ou seja, a Providência de Deus tem seu lado claro e escuro, dizia ele.
Não consegui dizer nada, somente o mirei como dando oportunidade para
que continuasse seu discurso.
— Sei como é isso, Lyra. Falhei tanto no passado. — Deu um suspiro e
passou a mão entre os cabelos. — Não que tive um longo relacionamento,
mas porque eu era inconsequente com as meninas. — Matias parou e
respirou um pouco. — Naquela noite, ao ouvi-la dizer que os homens
deveriam ser mais cuidadosos com as moças, você estava certa. — Me fitou
com um brilho diferente nos olhos, de tristeza. — Vi a dor nos seus olhos,
assim como aconteceu com a Micaela.
Semicerrei os olhos para entender o rumo da conversa.
— Nos meus 21 anos, essa moça apareceu na minha vida, lá na igreja. —
Fez um movimento com as mãos para sinalizar o passado. — Começamos a
conversar, passávamos horas ao telefone, saíamos e nos sentávamos junto
nos cultos. Tudo isso era muito cômodo para mim. — Apontou para si. —
Entretanto, depois de uns meses, percebi uma nova forma dela se portar, e
foi aí que o pai dela perguntou quais eram as minhas intenções com a filha
dele. Intenções? — Matias passou a mãos sobre os fios molhados e arfou. —
Não tinha intenção nenhuma! E achava que a moça estava no mesmo ritmo
que eu, mas o romance tinha tomando conta do coração dela.
— Nossa! — Foi o que consegui expressar.
— O pai dela me falou tantas coisas. Utilizou palavras como “moleque
irresponsável”, “um babaca que não tinha cuidado sobre as próprias ações”.
— Ele balançou a cabeça. — Eu havia roubado o tempo de uma jovem
solteira, as boas palavras e consolos que uma mulher pode dar, mas sem
nenhum compromisso. E quando isso me foi pedido, não tive uma atitude.
Ele pegou uma das pedrinhas ao nosso redor e lançou na água. Não tinha
nada a acrescentar, apenas dei o tempo que ele parecia precisar. Matias
apertou os lábios e soltou uma lufada de ar.
— Pedi perdão a moça e sua família. Mas sei o quanto ela ficou ferida, e
isso me doeu. Meu pai também quase arrancou meu couro com tanto sermão.
Passei ler livros sobre relacionamentos e compreendi como os homens
podem simplesmente fazer algo romântico sem ter essa intenção.
Aquilo fez todo sentido do porquê agiu tão seco com a Laís.
— Às vezes, é melhor ser mais reservado do que dar uma má impressão
para a moça — declarou com firmeza.
— O lado bom da providência, não é?
Assentiu.
— Foi bem ruim o que vivi, mas o Senhor usou isso para me ensinar a ser
melhor do que era. Não posso querer a atenção de uma mulher se não estiver
disposto a ter algo com ela. — Virou-se para mim e pareceu estudar minhas
afeições. — Uma filha de Deus merece certezas!
Aquela declaração me fez prender o ar.
— Traumas do passado que nos fazem crescer — resumi tudo.
— E amém, por isso! Thomas Watson estava certo.
— Ele estava. — Mordi os lábios e entrelacei os dedos. — Você, de fato, é
um conhecedor da bíblia e mereceu ser um presbítero. Se fosse um pastor,
diria que era o Pr. Tiago na minha frente — gracejei.
— Quem? — Ele franziu o cenho.
— Meu personagem literário favorito, do livro “Do silêncio a canção”. —
Suspirei e voltei a mirar a paisagem natural. — Ele também teve um
passado, mas o Senhor o redimiu. As dores o fizeram um homem mais
piedoso. E você é assim, Matias — elogiei e quase infartei. — Só não é
pastor.
— Ah, sim! Eu me contento com minha posição inferior a do tal Tiago. —
Ele brincou e logo sua covinha apareceu.
Deus, pode me levar!
Aquele instante nos fez ficar mais perto um do outro e, talvez, pedia um
contato maior, mas Matias não dando vazão ao “clima” e se levantou.
— Vamos comer. Não sei você, mas eu estou morrendo de fome.
Pisquei várias vezes com seu assunto aleatório, porém, para não ficar com
uma cara de tapada, disse:
— Ah! É por isso que está ficando buchudinho! — Apontei para a barriga
dele e me ergui com sua ajuda. — Come demais!
— Não vou cair nessa. Eu malho todas as manhãs, mocinha. — Deu um
sorriso torto.
Não disse mais nada porque era capaz de declarar um elogio que ia me dar
vergonha depois.
— Ahan! Vou fingir que acredito! — Empinei o nariz e passei a sua
frente.
— Oh, Mulherzinha! — exclamou com zombaria e veio atrás de mim.

Meus cotovelos estavam apoiados sobre o balcão de vidro enquanto


minhas mãos sustentavam minha cabeça carregada de pensamentos sobre
Matias. Desde a nossa conversa no balneário, as ações dele fizeram mais
sentido para mim, como no trato mais cordial, porém distante. Não vou
negar que a dúvida penetrou em meu peito. Por vê-lo se aproximar para
conversar, julgaria que houvesse um interesse em mim, contudo os outros
momentos de meros cumprimentos e nada mais manifestava vontade zero.
Precisava entender tudo aquilo. Matias conhecia a defraudação e se propôs a
nunca mais ser um desse tipo, então, de certa forma, estava cuidando da sua
relação comigo. Mas suas atitudes me confundiam.
Só por ele falar e contar algumas coisas? Não poderia fazer isso como
um colega? Tenha dó, Lyra!
Tudo bem! Era o romance outra vez tomando espaço no meu coração e me
fazendo querer enxergar coisas onde não tinha. Meu Deus! Eu não poderia
ver toda e qualquer ação de cortesia como interesse romântico.
Você já caiu nessa antes, deveria ter aprendido, não é?
Fechei os olhos e soltei um grunhido de chateação. Por que eu era assim?
Acorda, mulher, vai lavar uma louça!
Resolvi voltar ao livro de contabilidade da loja, precisava passar os
resultados do mês para minha tia que, pela bondade divina, estava se
recuperando e logo voltaria para casa. Murchei ao me deparar com a
realidade de ter que retornar a Manaus e nunca mais ver o Matias. Balancei a
cabeça, não querendo me afetar por aquilo.
Você é mais forte que isso, Lyra. Para com o drama!
Voltei ao meu afazer quando ouvi a porta se abrindo e Abby entrou,
cabisbaixa. Seu cabelo crespo estava num nó e a roupa amassada. O que
teria acontecido?
— Abby, o que houve? — Saí de detrás do balcão e toquei no ombro dela.
— Uma desgraça! — Os olhos dela se encheram de lágrimas. — Orei
tanto e nada deu certo! Deus não ouve minhas orações!
— Por que diz isso? — Não estava entendendo nada.
— O rapaz lá da Conferência, lembra?
Assenti.
— Começou a namorar uma menina. De novo o padrão! Ela é toda de
cabelo liso, pele de porcelana e dos olhos verdes. Toda bonitona! — Abby se
sentou no banco da bateria e afundou o rosto entre as mãos. — Como eu sou
burra! — Bateu na testa. — Como poderia pensar que ele olharia para mim?
Não tem oração que possa competir com uma moça tão linda!
Ponderei que a hora da ação “cura para corações partidos” deveria entrar
em jogo. Talvez ouvir o sofrimento de outro me ajudaria a esquecer meus
próprios dilemas.
— Vamos numa sorveteria? — convidei. — Nada melhor do que encher a
cara de doce para ver se a decepção desce melhor! — Dei um sorriso
amarelo, e Abby concordou. Ainda bem, senão não saberia para o que
recorrer.
O estabelecimento não era longe. Escolhemos uma mesa e os sabores mais
regionais, como sorvetinho de tucumã. Uma dádiva! Depois que nos
servimos, ela declarou:
— Nunca vou conseguir o rapaz que quero. Eles não gostam de meninas
como eu, Lyra! — Abby derramou umas lágrimas, e eu sabia o quanto aquilo
doía.
— Meninas como você? — Arqueei a sobrancelha.
— Sim, morenas e de cabelo armado. Nunca! Nunca escolhem assim. —
Os olhos vermelhos expressavam a decepção da alma.
— Então é bom não ter nenhum deles como pretendente. Se escolhem
pela beleza, o que farão quando a formosura passar? — Comi mais um
pouco do meu sorvete.
— Pena que os rapazes não pensam assim. — Abby enxugou as lágrimas.
— Eles podem amadurecer — declarei e recebi um olhar com dúvida. —
É sério, realmente pode acontecer.
Lembrei do testemunho de Matias. Apesar da falha do passado, não era
um exemplo agora? E, como se fosse uma forma de comprovar minha teoria,
o próprio apareceu dentro daquela pequena sorveteria. Fiquei pasma com
tamanha coincidência. Ele nos encontrou e acenou, vindo na nossa direção.
— Como estão, meninas? — perguntou num sorriso. Que sorriso!
Retomando a minha lucidez, respondi, mas Abby apenas deu um suspiro
triste.
— Ela teve uma decepção — justifiquei o comportamento abatido de
minha amiga.
Matias se sentou ao nosso lado sem ninguém o autorizar, aquele enxerido.
Mas não posso ser hipócrita e dizer que não gostei.
— Decepção de quê? — Ele uniu a sobrancelha e a fitou. — Aconteceu
algo na sua família? Conte e tentaremos ajudar. — Fiquei admirada com a
maneira tão preocupada e generosa como se portou.
Era um encanto, de fato.
— Não foi isso. — Abby olhou para mim.
— Posso contar? — pedi e ela deu de ombros.
— Um rapaz... — contei toda a história.
— Mas que miserável! Ele te iludiu tão descaradamente? — Foi a
primeira vez que o vi irritado.
— Não! — Ela deu um suspiro triste. — Me iludi sozinha nas minhas
orações. Estou tão cansada de sempre fantasiar, mas nada nunca acontecer.
— Abby chorou um pouco mais. — Claro, os rapazes sempre vão escolher
as beldades.
Nós dois ouvimos o lamento, e Matias proferiu:
— Se me lembro bem, John Piper fala: “Uma mulher bonita é uma pessoa
e não um corpo” — recitou, e quem quis morrer de amores foi eu. Precisava
ser um charme e inteligente ainda por cima? Não, claro que não. Mas a nossa
humilhação tem que ser completa!
Ela só suspirou.
— Estou cansada de tudo isso. Não confio mais em nenhum homem! São
todos iguais, só veem o externo! — Sua fala foi regada de rancor. —
Desculpa, Matias, você não faz parte desse time, ou talvez faça. Vai saber!
Matias me encarou.
— Abby — segurei uma das suas mãos livres sobre a mesa, e ela olhou
para mim —, sabemos que a nossa geração está escassa de homens
responsáveis, principalmente com o coração das moças. Reconhecemos
também como erramos e nos iludimos rápido demais por conta da carência
do nosso coração. Falha deles, falha nossa.
Respirei fundo. Já tinha passado por aquele caminho de mágoa com os
homens, mas o Senhor tratou isso.
— Mas uma vez vi uma jovem que demorou anos para se casar dizer: “O
Senhor não desistiu dos homens”. Entendi como em todas as gerações existe
os bons e os maus, e a graça opera em cada tempo. Sempre haverá aqueles
que não se prostraram ao nosso século, que desejam ser diferentes e
carregam os princípios. São mais difíceis de achar? Com toda certeza.
Afinal, pedra preciosa não se vê em qualquer lugar.
Disse tudo aquilo de coração e só pude notar o quão profundo era o olhar
de Matias para mim.
— Bençãos preciosas não vêm fácil — declarei.
Por um instante, Matias pareceu recobrar a voz de novo e disse:
— Spurgeon, no seu devocional, diz que a oração é o prefácio da benção,
ela vai a frente, como se fosse a sombra. Ele também declara que se
recebêssemos as bençãos sem clamar por elas, poderíamos considerá-las
como coisas comuns, mas a oração torna nossas misericórdias mais
preciosas que diamantes — ele, com toda sua sabedoria, discursou e aquilo
serviu para mim.
Eu deveria era orar sobre tudo.
— Você é jovem, Abby. Tem só 19 anos e não 30, como eu. Construa uma
relação em oração e verá a benção de Deus. — Ele se virou um pouco para
mim antes de retomar o discurso. — A bíblia fala que nem um bem Deus
sonega aos que andam retamente. Se o casamento for bom para você, o
Senhor não o negará. Não é sobre seu corpo, vestimenta e tudo mais. Isso
tem o seu lugar, porém não é o mais importante, mas a vontade de Deus.
Ao fim, Abby estava emocionada, mas de um jeito diferente.
— Mesmo sem eu querer, Jesus me enviou o presbítero para me lançar
umas verdades em rosto. — Ela riu.
— Não é verdades lançadas em rosto, é apenas um consolo. Deus não
negará nenhum bem. Medite nisso! — ele complementou meu discurso com
perfeição, senti-me humilhada com meus pobres conselhos.
Entretanto, Abby não pareceu pensar assim. Ao terminar de comer seu
sorvete, limpou a mão com o lenço e disse:
— Vocês dois aconselham tão bem. Poderiam se casar e se tornar líderes
dos jovens — lançou sua opinião, tão clara como a água.
Nem saberia dizer qual foi minha expressão, mas o rubor estava evidente.
Matias ficou calado e parecia pensar.
— Eu, líder de alguma coisa? — retruquei. — Oh, não! Matias que é o
inteligente e sábio aqui. Só fui uma amiga.
— Nem pense nisso, suas palavras foram oportunas para uma jovem
decepcionada no amor. Devemos consolar com o mesmo consolo que
recebemos, e você fez isso — Matias proferiu, me deixando com o coração
em frangalhos.
Será que enxergava alguma sabedoria em mim? Porque eu só tinha meus
arrependimentos e, a julgar pelo meu relacionamento passado, não era muito
confiável para dar conselhos amorosos a uma moça, mas Deus nos usa
apesar de nós.
— Obrigada aos dois. Vou levar em consideração tudo isso. — Abby
sorriu. — Ainda bem que minha frustração foi antes de você viajar, Matias.
Seria uma grande perda não ouvir seus conselhos.
Opa! Viajar? Como assim? Para onde ele iria?
— Você vai viajar? — perguntei, como quem não queria nada.
— Sim, depois de amanhã. — Se virou para mim. — Vou fazer uma
seleção de mestrado no Paraná — explicou a motivação da viagem. —
Como já passou o tempo do meu estágio probatório, agora posso pedir uma
licença para uma pós, e quero tirar um tempo para estudar.
— Mais do que já estuda? — Fiquei pasma. Esse homem ia explodir o
cérebro uma hora ou outra. — Não pretende fazer outra coisa da vida?
Ele semicerrou o olhar para mim e, como se tivesse um sorriso escondido
no canto dos lábios, declarou.
— Para sua informação, dona Lyra, pretendo sim. — Parou e suspirou. —
Porém, tenho orado antes de tudo. Essa questão do estudo é uma
oportunidade e vamos se Deus abençoa. Está tudo nas mãos dele —
respondeu com muita convicção.
Fiquei curiosa sobre o motivo da oração. Se não fosse os estudos, o que
seria? Mas contive minha curiosidade.
— Bom, só posso desejar boa viagem e sorte na seleção — falei, mas
talvez um tom de decepção tivesse ficado nítido. Não vê-lo na igreja seria
triste.
Você deve ir à igreja por Deus, não pelo Matias!
Minha mente, que parecia ser outra pessoa dentro de mim, relembrou a
minha real motivação para ir aos cultos.
— Obrigada, mocinha! — Ele sorriu e aquela covinha aparente fez doer
um pouquinho mais meu coração. — Que tal mais uma rodada de sorvete?
Dessa vez eu pago.
— Se está disposto a isso, simbora!
— Melhor morrer de diabetes do que de coração partido — Abby disse, e
corremos para pedir outros sabores.

O sol nem havia raiado no horizonte quando meu celular começou a tocar,
e ao atender, bêbada de sono, ouvi aquele timbre agudo cantarolando:
— “Parabéns pra você nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos
de vida!” Ah, minha filha, volta logo para casa. Quero você aqui comigo de
novo. Saudade até da sua chatice! — Essa dona Ivana tinha suas maneiras
peculiares de manifestar seu amor.
— Mês que vem já retorno, mãe. Titia está bem melhor! — Sentei na
cama e esfreguei o olho enquanto balbuciava.
Aquela constatação possuía uma mistura de alegria, por rever minha mãe,
e tristeza, por me afastar de certo alguém.
— Obrigada pelos parabéns, mamãe. Sinto muito sua falta — disse com
certa melancolia.
— Está tudo bem, filha? — Sua voz passou a ficar preocupada.
— Não, não. Só queria... Só queria...
O que realmente eu desejava?
— Queria o quê?
— Nem eu sei. — Passei as mãos no cabelo. — Porém, com toda a
certeza, comer seu bolinho hoje.
— Oh, filha! Logo estaremos juntas de novo e farei seu bolo de limão
preferido.
— Eu sei. — Não entendia, mas uma vontade de chorar socou forte meu
peito. — Amo muito a senhora, mamãe! Desculpa por nem sempre falar
isso.
— Você é mais fechada, Lyra, mas sei o quanto me ama e a todos a sua
volta, só que não sabe demonstrar muito — falou a que me conhecia tão
bem. — Deveria mostrar mais o coração.
Repousei a cabeça no encosto da cama.
— Apesar do temor, até gostaria, mas não sei se seria correspondida. —
Suspirei ao apresentar meu medo.
— Se o Senhor Deus quiser, nada pode impedir.
— Esse é o problema: ele não me diz se quer ou não. — Murchei os
ombros. — Aff! Só queria poder fechar o coração! Por que ele não me
obedece?
Só pude ouvir a alta gargalhada!
— É tão piadista, minha filha. Desde quando coração tem juízo? —
Mamãe tinha prazer em zombar de mim. — Estarei orando por você. Agora
vou te deixar dormir. Um beijinho.
Ela desligou e me deitei novamente, pensando no porquê de querer chorar.
Encontrei dentro de mim a carência, em especial naquele dia que não teria
minha família perto e, verdade seja dita, a saudade de Matias tinha me
afetado. Ele partiu por duas semanas e o abençoado nem possuía rede social
para acompanhar alguma coisa. Por que Matias era tão das antigas?
Você gosta dele, Lyra.
Por que permiti que isso acontecesse comigo? Joguei um travesseio no
meu rosto. Ain! Só para sofrer por alguém que não está nem aí para mim e
que irá embora, porque, assim como o sol nasce todas as manhãs, Matias
passaria naquele mestrado.
Preciso superar essa paixonite!
Me revirei na cama.
O dia foi calmo e agradeci por Abby e sua família demostrarem seu amor
naquele 07 de março ao fazer um bolinho e bater os parabéns. Foi melhor do
que pensei. Para finalizar a comemoração, eu e minha amiga fomos na Orla
e, antes que pudéssemos nos sentar num dos bancos, senti uma mão cobrindo
meus olhos. Tateei os braços do indivíduo que fez isso, e não queria
confirmar que era quem eu havia imaginado. Logo a mão foi retirada e me
depararei com o dono dos meus muitos pensamentos nos últimos dias.
— Matias! O que faz aqui? — indaguei sem acreditar.
— Bom, eu moro nesta cidade, não é? Nada mais normal. — Ele caçoou
de mim.
— Você sabe o que quis dizer. — Cruzei os braços.
— Sei, mocinha. Ei, Abby — ele inclinou a cabeça para o lado —,
roubarei sua amiga por um tempo, tudo bem?
— De onde você saiu, homem? — Abby estava tão incrédula quanto eu.
— Mulher tudo quer saber, meu pai! — Matias pôs a mão na testa. —
Depois respondo. Por hora, vou roubá-la de você.
Ela deu de ombro.
— Vamos! — Segurou a minha mão. — Meu carro está logo ali. —
Acenou com a cabeça.
Nos afastamos de Abby e, antes de entrar no carro, perguntei:
— Para onde vai me levar, seu maluco?
— Vai saber logo.
Entramos no carro, Matias deu partida e não falou muito no trajeto porque
logo chegamos àquela praia do encontro dos jovens. Ele saiu do veículo e
correu para abrir minha porta, num ato muito cavalheiresco. Aquele homem
não podia fazer essas coisas comigo, não. Somente o agradeci. Após isso,
pegou uma cesta no porta-malas.
— Já sabe o que pretendo fazer, não é? — Ele sorriu e começou a
caminhar para a praia, comigo ao lado.
— Planejou um piquenique? — Olhei para os lados.
— O que está procurando? — perguntou, rindo.
— Os outros jovens chegarem.
— Não vem ninguém. Será apenas nós dois — Matias disse num meio
sorriso, e meu coração ameaçou desfalecer.
— É sério?
— Está vendo mais alguém aqui? — Ele abriu os braços. — Talvez um
espírito?
— Engraçadinho! — Semicerrei o olhar.
O segui até um lugar embaixo de uma das árvores e estendemos o pano
azul no chão. Nos sentamos na beirada para o tecido não voar e colocamos a
cesta no meio.
— Soube que hoje é o aniversário de uma menina da minha igreja — ele
começou a falar enquanto tirava as coisas da cesta. — Quis preparar algo
para comemorar com ela.
Não, não pode ser verdade! Calma, Lyra!
— Como soube a data do meu aniversário? — Fiz de tudo para minha voz
não parecer afetada.
— Por ser presbítero, tenho acesso aos dados dos membros da igreja. É
sério, obtenho alguns poderes como os pastores, se é que me entende. —
Deu uma piscadela e o meu coração aqueceu.
— Não esqueceu do pastor Tiago? — Deitei um pouco mais no pano e
sorri.
— Como poderia, se você me rebaixou por causa dele? Nunca vou
esquecer! — Fez uma expressão de bravo.
— Não o rebaixei! Só disse que eram diferentes. — Quis defender meu
personagem literário preferido.
— Certeza que ele não fez um piquenique para a mocinha dele. Fez? —
Me olhou como quem estivesse me desafiando.
— Não lembro disso. — Mordi o lábio e desviei o olhar.
— Ah! É difícil eu errar! — Comemorou sua vitória.
Ele terminou de pôr os lenços do lado de fora, e observei como tinha
muitas iguarias apetitosas ali. Matias se demonstrava um excelente
planejador de surpresa.
— Mas, brincadeiras à parte, de verdade queria celebrar com você, Lyra.
— Seu olhar passou de diversão para um brilho de seriedade.
Lembrei de quando ele não quis ir no aniversário de Laís, mas se importou
tanto com o meu. Então eu poderia, sim, ser especial para ele, não podia?
— Por quê?
Ele estalou a língua no céu da boca.
— O que posso dizer? — Ele dobrou a manga de sua camisa e fez um uma
cara de pensativo. — Ah! Eu gosto de estar com você — confessou, sério.
— Sabe, Lyra, tenho orado muito neste último mês. — Sua declaração me
deixou numa enrascada. — Mas... — Levantou o dedo indicador. — Antes
quero te dar o seu presente.
Ele cortou totalmente o rumo da conversa; pisquei algumas vezes antes de
me situar.
— Outra coisa além disso? — Apontei para tudo na toalha e o local em si.
— Já volto!
Matias saiu, apressado, e minha imaginação foi ágil para pensar em
variados presentes como: anel, anel e anel de novo.
Lyra, não seja tão emocionada!
Não, não, não! Precisava me controlar. Deveria ser racional naquela
situação, assim como havia aprendido, nada de se deixar levar por algo não
concreto. Respirei fundo e fingi passividade.
— Poderia fechar os olhos, por favor. — A voz de Matias ressoou mais
distante. — E não ouse se virar para cá.
— Quanto mistério! — Ri. — Tá certo!
Obedeci ao seu pedido e senti a movimentação dele se aproximando.
— Agora pode abrir!
Fiquei paralisada. Não podia acreditar no que estava vendo!
— Você o consertou?
— Levei há um Luthier lá no Paraná.
Diante de mim estava aquele violão de 1984 novinho em folha!
— Está me dando o violão do seu pai? E sua mãe? — Pisquei algumas
vezes. Minha voz pesada denunciou a emoção que estava sentindo naquele
momento. — Não posso aceitar um presente tão pessoal assim. É de família.
— Para começo de conversa, minha mãe amou a sugestão de dar a você.
— Ele voltou a se sentar e deu leves batinhas no instrumento. — Um bom
violão para uma excelente violonista. Em segundo lugar, é pessoal porque
desejo que seja assim. Bem pessoal! — Matias tinha um tom mais grave e,
com sincera curiosidade, indagou: — Gostou?
— Eu nem sei como expressar o quanto amei. — Tomei o violão nas mãos
e apreciei aquela obra prima. Em seguida, o fitei, incrédula. — Matias, isso
tem um valor emocional, não podemos negar. — Fui direta ao ponto.
— É claro que tem. — Sua expressão era séria. — Quando vi você
tocando, lá na loja na sua tia, se lembra que disse sobre precisar ouvir aquela
música?
Apenas assenti.
— Era a música preferida do meu pai. Estava numa semana difícil e fui
comprar o capo porque queria tocá-la um pouco, diferente de só colocar para
ouvir. Mas vê-la naquela posição, dedilhando todos aqueles acordes com
tamanha maestria e numa intensidade sútil e gloriosa, soube que nunca
tocaria daquele jeito. — Ele mirou o rio a nossa frente. — Lá estava um
consolo. Deus ouviu minha tristeza e mandou você. — Virou-se para mim
com um brilho diferente no olhar.
Naquela altura, estava emocionada e não tinha como negar.
— Eu? Uma resposta de Deus para alguém? — Não queria, mas uma
lágrima rolou na minha face.
— Talvez mais do que imagina. — Ele estendeu a mão na minha direção
e, com o polegar, enxugou aquela lágrima. — Não precisa dizer nada, mas
poderia tocá-la novamente. Você toca para eu ouvir?
Como negaria um pedido daquele?
Posicionei o violão nas coxas, afinei as cordas, pus o capo concedido por
ele e dedilhei toda aquela composição florida de sutileza e drama. Matias se
deitou sobre o pano, cruzou os braços e os pôs debaixo da cabeça,
apreciando a música representante de uma relação de amizade entre pai e
filho. Ao terminar, ele continuava de olhos fechado, e só consegui
contemplar sua beleza serena.
Eu gosto de você, Matias. Gosto de todo coração!
Seria impossível não me apaixonar por aquele homem tão piedoso e
amigo. Só pude fechar os olhos e engolir em seco as palavras de amor que
desejavam escapulir dos meus lábios.
— Obrigado!
Abri os olhos e assenti. Precisava mudar o rumo dos meus pensamentos,
então falei:
— Você tem uma bela família, Matias. — Deitei o violão na toalha. —
Uma vez, conversando com sua mãe, ela falou sobre o casamento abençoado
com seu pai. Queria que meus pais tivessem tido essa sorte, mas eles se
separaram na minha infância — relatei um pouco do meu passado.
Ele se sentou e me encarou.
— Não é próxima de seu pai?
— Sou. Conversamos sempre que dá. Na infância, ele procurou ser
presente e, na adolescência, me aconselhava. Mas nunca é igual a tê-lo
presente todos os dias. — Senti um engasgo. Talvez, se papai estivesse mais
presente, não teria tanta carência para encontrar um amor.
— As experiências dos nossos nos ajudam a escolher com mais sabedoria
o que queremos ou não — ele disse, e concordei.
— Falhei, como sabe bem, mas tenho fé que um dia posso me casar no
Senhor. — Virei o rosto para o rio. — Quero um casamento de parceria,
sabendo que meu marido vai me amar em qualquer circunstância. —
Respirei fundo. — Estaremos junto na embarcação, seja com as águas
turbulentas ou calmas. — Voltei a olhar para ele e vi como prestava atenção
em mim.
Aquelas palavras foram as mais sinceras compartilhadas com alguém. Era
um real desejo do meu coração. Naqueles três meses que passei em Itaituba
aprendi tanto sobre relacionamento através dos livros que li, das conversas
com mulheres tão sábias como dona Solange e dona Iris, tendo seus
casamentos como um exemplo.
Contemplando-o parado ali, sabia que ele cumpria todos os requisitos de
piedade masculina. Sem certezas de nada, permanecia aquela sensação de
frustração. Algo tão perto e tão longe ao mesmo tempo!
— Casamento pode ser uma dádiva ou um fracasso — pronunciou. —
Portando, devemos escolher bem!
— Pensa em se casar?
— Com toda certeza. — Ele bateu as mãos para tirar a poeira e se serviu
de um biscoito de coco. — Já com 30 anos, não tenho sonhos de um grande
romance, mas o Senhor parece ter me concedido algo equilibrado.
— Concedeu? — Uma mistura de decepção e incredulidade perfurou meu
coração.
Ele mordeu o biscoito e sorriu.
— Como diz as escrituras, tudo tem seu tempo debaixo do sol.
Bufei frustrada. Naquela altura despertou a curiosidade para saber qual era
o segundo valor emocional do presente, mas não queria forçá-lo a nada.
— Como foi sua viagem? — Mudei o assunto e peguei um pedaço de
torta.
— Muita boa. — Ele riu e me passou uma colher. — Acho que passei.
— Você vai para o Paraná, e eu voltarei para Manaus. — Não dava para
negar a frustração na minha voz.
— Voltará? — Sua expressão mudou.
— Minha tia retornará, então não terei mais nada aqui. — Dei de ombros.
— Estou orando ainda para ver qual é o próximo passo, mas nada recebi.
Ele engoliu uma uva.
— Acho que a voz dEle está prestes a romper o silêncio!

Um mês depois.

No começo da tarde de sábado, estava organizando um pouco das minhas


roupas quando ouvi o celular tocar. Era a tia Iracema, contando como se
sentia recuperada e voltaria para sua casa dentro de três dias. A natureza da
notícia me deixou contente, conversamos sobre tudo a respeito da casa e da
loja e, por fim, desejei uma boa viagem de retorno.
Após encerrar a ligação, sentei no chão do quarto, encostei as costas na
cama e fitei o violão do pai de Matias do outro lado, perto da parede. Me
lembrei daquele piquenique e todas as conversas que tivemos desde então,
Matias sempre muito cordial e cuidadoso comigo, no entanto nenhuma
palavra sobre um futuro. Por isso, passei a orar bastante a Deus para tirar
qualquer ilusão da minha mente, pois não lançaria meu coração num mar de
incertezas. Não mais.
E, como já estava prestes a voltar para casa, foquei em estudar violão para
alguns concursos de concertos. Aconteceria um em Campos do Jordão e
desejava participar, viajar com a minha música seria o ideal, no momento.
Planejei também visitar um abrigo para dispor aulas de violão para as
crianças, ser útil aos outros era uma boa ocupação. Tinha fé nas bençãos de
Deus nas tomadas de decisões.
— Bom Senhor, estou sem um destino específico, faço apenas o que
posso. Guia-me para algo que vá glorificar o teu nome. — Fiz minha breve
oração e levantei dali.
Organizei a casa, tomei um banho e escutei a voz de Abby na porta.
— Vamos?
— Sim, sim.
Naquela tarde, nossa igreja faria uma venda de feijoada, a fim de comprar
materiais para a construção das salas da EBD, pois as antigas não tinham
mais condições. Todas as mulheres se empenharam em cozinhar, e nós, os
mais jovens, éramos os responsáveis pelas entregas. Ao chegarmos no local,
encontramos uma aglomeração e logo fizemos a primeira entrega numa das
ruas mais perto. Era certo, sentiria falta do pessoal de Itaituba. Aquela
cidadezinha conquistou meu coração de muitas maneiras.
Ao voltarmos, enxerguei Matias entrando no salão com um fardo de arroz
nos ombros. Não quis me aproximar, estava na hora de não mais permitir
que aqueles pensamentos tomassem conta de mim. Sim, havia admitido que
gostava dele, mas serviu para algo? Bom, somente para ser mais sincera na
oração: “Deus, gosto do Matias, por favor, tire isso de mim”.
Ainda divagava nos meus pensamentos quando escutei dona Solange me
chamando para ir com ela até a cozinha. Ao entrar lá, encontrei o bendito
conversando com a mãe, mas sorriu ao me ver.
— Lyra, já soube da novidade? — Iris perguntou com alegria.
— Não. — Me aproximei mais um pouco, porém mantive distância. — O
que foi?
— Matias passou no mestrado e daqui duas semanas se muda para o
Paraná!
Aquela notícia não deveria me pegar desprevenida, contudo, não consegui
reagir bem. Ele iria embora de verdade!
— Nem acredito que perderemos por dois anos nosso presbítero favorito.
— A voz de Solange ressoou entristecida, e algumas das outras irmãs
manifestaram suas considerações.
— Parabéns! — consegui dizer. — Você viaja em duas semanas, e eu, em
três dias.
E um silêncio pairou sobre a cozinha. A expressão feliz de Matias se
tornou taciturna ao escutar minha notícia.
— Por que não nos avisou que estava partindo, Lyra? — Dona Solange
perguntou, espantada.
— Desse jeito só saberíamos com você já na lancha no meio do rio — Iris
manifestou sua repreensão.
— Ah, eu só soube hoje. Minha tia logo retorna — falei numa mistura de
tristeza e decepção.
Matias, que estava quieto, virou para a mãe e falou:
— Tem mais alguma entrega?
— Sim. — Ela mostrou o saco com as quentinhas e o endereço.
— Lyra, venha comigo. — Ele tomou a sacola na mão, tocou no ombro da
mãe e disse: — vamos demorar um pouco. Tudo bem?
Só percebi o sorriso de dona Iris brilhar no ar ao olhar do filho dela para
mim.
— O tempo que precisar.
— Vamos? — Ele tocou no meu braço e o acompanhei.
Em silêncio, entramos no carro. Ele dirigiu calado e fez a entrega. Logo
depois, desviou o veículo para uma praça perto da Orla. O lugar estava quase
vazio e Matias me guiou até um dos bancos.
— Lyra, quero te contar algo.
Nada respondi, apenas o olhei.
— Naquela viagem para o Paraná, me lembro de ligar para minha mãe e
conversar com ela sobre o que estava conhecendo ali. — Não entendi o rumo
da conversa, mas esperei a continuação. — Porém, quando desligava o
telefone, tinha uma forte vontade de ligar e conversar com você, tanto para
contar sobre algo, quanto para ouvir até uma repreensão das minhas breves
aventuras radicais.
Engoli em seco para não permitir que nenhuma emoção impedisse minha
atenção às suas palavras, mas ficou impossível quando, de maneira
inesperada, ele segurou minha mão e começou a acariciar o dorso com o
polegar. Senti o ar faltar.
— Se lembra sobre eu dizer que o presente tinha um valor emocional?
Assenti.
— Se recorda de dizer que estava orando?
— Sim — respondi num fio de voz.
— Você disse que vai viajar. — Me olhou de um jeito totalmente novo e
declarou: — Então é um bom momento para revelar que você é o motivo de
muitas das minhas orações.
Minha garganta criou um nó e uma emoção fora do meu domínio
começou a saltar dentro de mim. Aquilo estava mesmo acontecendo? Era um
sonho, só podia!
— Não queria dizer palavras vazias para você. — Ele se aproximou mais.
— Uma filha de Deus merece certeza, lembra? E a minha vontade é que
viagem comigo, como minha esposa. Convivi com você o suficiente para
saber que desejo compartilhar todos os meus dias em sua companhia.
As lágrimas só desceram e eu sentia o coração ameaçar explodir de
completa alegria.
— Lyra, falei como não desejava me aproximar mais de meninas, pelo
bem do coração delas, mas espero que tenha percebido, através das minhas
atitudes, meu interesse em você. — Ele tocou minha bochecha rosada de
emoção. — Diferente de tudo, você é a pessoa ideal para mim. Seu passado
a fez amadurecer, criar umas boas cascas, mas isso a fez saber esconder a
melhor parte para não dar a todos. Isso é bom, especial e único. E quero ser
o homem para o qual vai dedicar sua melhor parte.
— Matias, eu nem sei... — Naquele momento minha voz estava
embargada.
— Amo você, Lyra. — Ele envolveu minhas mãos na suas com firmeza.
— Agora minha pergunta é: deseja trilhar um caminho com esse professor
que, provavelmente, vai te chatear por estudar demais? Ah! E, com certeza,
pedir para estar sempre tocando, afinal, você fez um belo acorde no meu
coração.
Não queria, mas aquilo me fez desatar a rir. Que declaração era aquela?
— Seu bobo! Como se faz acordes no coração? — Sorri, com as lágrimas
escorrendo.
— O coração tem cordas, não sabia? E você tocou nelas aqui. — Apontou
para o peito e piscou para mim.
— Sua inteligência não te ajuda no romantismo. — Suspirei. — Mas tudo
bem, tocarei sempre para você. — Repousei a cabeça no ombro dele. — Não
nego que saber de sua partida me rasgou o coração. Conhecer um homem tão
bom e perdê-lo me doía mais do que ser deixada.
Ele me abraçou de lado e me senti acolhida, amada e respeitada. Com
Matias, sentia liberdade para mostrar meu lado mais frágil, ele não era um
homem qualquer.
— Ah! — Apertei os olhos. — Se soubesse que o Senhor tinha um
homem tão bom assim, teria confiado mais, e não tomado minhas próprias
decisões e quebrado a cara. Contudo, louvado seja Ele por suas
misericórdias. — Virei para Matias. — É o meu pastor Tiago.
— Ah! Não se esqueça que sou melhor. — Ele riu e beijou minha testa.
— Mas sabia? Ele fez o piquenique com a Esther — gracejei.
— Tenho certeza de que não deu um violão de família para ela. — Deu
uma piscada.
— Ah! — Coloquei a mão no coração. — Você sabia que não sairia da
família, não é?
— Um pouco. — Sorriu com graça.
— Oh! Você é o melhor para mim! — Segurei a mão dele. — Só de você
ter certeza de suas decisões, responsável com meu coração, meu amor por
você se torna imenso. Nem o merecia, mas agradeço ao Senhor por cuidar de
mim.
— Ele cuida dos seus. Pois eu também não merecia.
— Nem acredito quando falar com a mamãe — disse com empolgação
— Ela já sabe — ele falou e, assustada, me afastei dele. Vendo minha
incredulidade, ele disse: — Os registros, lembra? Quando soube o que queria
com você, conversei com a minha mãe, com a sua mãe e liguei para o seu
pai. Ele foi bem protetor.
— Matias! — O abracei. — Você é mais do que poderia sonhar. — Ergui
a cabeça de leve e sorri. — Mas eu não sou um sonho. Deseja me aturar para
o resto da vida?
— Tenho certeza da graça operante de Deus nos nossos corações. —
Beijou o topo da minha cabeça. — Assim, confio num bom futuro.
— Ai, meu Deus, foi-se embora meus planos de viajar com a música. —
Ri dos meus planos mais uma vez frustrados, mas a verdade era que recebi
um bem melhor.
— Você ia viajar para onde?
— Planejava umas coisas aí, porém os planos foram todos soterrados. —
Olhei pra ele. — Afinal, tenho um marido para acompanhar e não mais a
música.
— Fazer o que, se sou melhor, não é? — Ele brincou e dei um
empurrãozinho no seu ombro.
— Que convencido!
— Dona Iris sempre diz isso. Agora a minha senhora também dirá! — Ele
riu e eu também.
Agora contemplaria por toda a velhice aquela covinha.
Unimos as mãos e nos abraçamos.
— Eu amo você demais!
Assim, soube que, diferente das músicas já tocadas, o Senhor Deus era um
excelente compositor e regente para fazer arranjos não pensados e
planejados na limitada mente humana. É, Beethoven, o Criador ultrapassou
as suas sinfonias.
Nossos agradecimentos

Somos gratas a Deus, ao nosso Senhor Jesus Cristo, que nos inspira
diariamente e nos abençoa através da escrita.
A Clys, pela revisão e leitura crítica, além do apoio de sempre. Você faz
parte desse projeto tanto quanto nós.
Às leitoras que fizeram a leitura beta no Wattpad em tempo recorde. E a
todos os leitores que acreditam no nosso trabalho.
Agradecemos umas às outras pela amizade e cumplicidade entre nós
quatro, é sempre um prazer trabalharmos juntas.

E ainda agradecemos:

Kell: Ao meu esposo, Valdney, pelo companheirismo e apoio. A minhas


filhas, Esther e Helena: vocês são muito mais do que um dia imaginei.

Maina: Ao meu marido, Francisco, por ser minha inspiração para o


romance. Aos meus filhos, por serem meus fãs. A todos aqueles que um dia
testemunharam algo sobre como os meus livros abençoaram a vida deles.

Aline: À minha família e irmãos em Cristo, de quem recebi apoio e


carinho.

Dulci: Agradeço ao Senhor Deus, pois escrever esse conto foi como um
vento novo na minha vida. Por fim, a toda minha família: sem seu apoio à
minha escrita, eu não estaria aqui.
Conheça as autoras dos contos
Kell Carvalho é Cristã, esposa, mãe de duas meninas e funcionária
pública. Começou sua jornada pela escrita no Wattpad, no início de 2017.
Desde então, dedicou-se a escrever Romances Cristãos conservadores que
agradaram rapidamente a leitoras de diferentes idades, tornando-a uma autora
conhecida na plataforma. “Orei por você” foi a primeira obra com a qual ela se
aventurou a tomar novos rumos, expandindo, assim, seu trabalho. Conhecida
como “Clichê Queen”, Kell faz jus ao título escrevendo estórias envoltas em
amor, fé e temor a Deus.

Instagram: @livrosdakell
Wattpad: @kells2carvalho
Nascida e vivendo em Minas, Maina Mattos começou a escrever e publicar
seus livros na plataforma Wattpad em 2017 e não parou mais. Entre fraldas,
brinquedos e uma casa para administrar, ela aproveita qualquer oportunidade
na correria do dia-a-dia para fazer aquilo que tanto ama: escrever.
Mãe de quatro, casada com seu primeiro e único amor, escritora de romances
cristãos, com mais de um milhão de páginas lidas na Amazon, foi influenciada
pelas autoras Jane Austen e Elizabeth Elliot.
Ama criar enredos românticos que falem sobre Cristo e a maioria de seus
romances são de cortejo.

Instagram: @mainamattos
Wattpad: @mainamattos
Aline Moretho é uma jovem paulista, que desde nova se encantou com o
mundo dos livros. Em 2015 descobriu sua nova paixão: escrever romances.
Porém, apenas em 2018 compreendeu que seu dom, ainda em processo de
aperfeiçoamento, deveria ser dedicado ao Senhor.
Hoje, Aline tem visto a bondade do Senhor e se alegrado com as bênçãos
trazidas através da escrita e espera poder se dedicar a esse trabalho por muitos
anos.

Instagram: @alinemoretho
Wattpad: @alinemoretho
Dulci Veríssimo é uma manauara de coração e alma. Formada em música,
mestranda em educação, com um toque de literatura na veia, descobriu a escrita
após o desejo de conciliar romance de época e um musical. Assim nasceu o
primeiro enredo de seu livro, "Amor e Graça", em 2016, e postou a primeira
versão de sua obra em 2017 no Wattpad.
Influenciada por suas romancistas favoritas, como Janette Oke, Stephanie
Grace Whitson e Jane Austen, procura apresentar obras que realmente
edifiquem e encorajem os irmãos na fé e na esperança da glória!

Instagram: @dulciverissimo
Wattpad: @dulciverissimo
Conheça outras obras das autoras

Minha verdade – Kell Carvalho


Carol, 30 anos, colunista de aconselhamento em uma revista eletrônica,
vê-se em uma situação inusitada quando sua chefe lhe dá um ultimato: falar
sobre sua vida amorosa. A grande questão era que essa vida não existia e
Carol teria que confiar, que até a data estipulada, algo sobrenatural
aconteceria. O que a moça não cogitava é que seu final feliz estava mais
próximo do que imaginava.

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Orei por você – Kell Carvalho


As expectativas de Jenny Parker sempre foram as mais altas. Durante toda
a sua vida, tinha aprendido a esperar o melhor de seu Pai Celestial, mesmo
se o tempo de espera fosse como um longo salto no escuro. O que ela não
sabia era que os planos do Senhor para sua vida iam muito além do que ela
poderia imaginar. Há milhares de quilômetros de distância, Dylan Fox
provava dos terrores da guerra e de um turbilhão de emoções. Confuso com
as palavras de um colega de combate maluco e as constantes lembranças de
um par de olhos verdes, Dylan viu sua vida mudar de uma hora para outra de
uma forma sobrenatural. Entre lágrimas, joelhos dobrados, gravatas
coloridas e um discman velho, Jenny e Dylan descobririam que Deus é o
melhor escritor de romances de todos os tempos. Afinal, Ele é o próprio
Amor.

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Meu querido caipira – Maina Mattos


Lara é uma típica adolescente moderna da cidade grande, cujo rumo da
vida foi alterado quando foi obrigada a se mudar para a roça, no interior de
Minas Gerais. Na companhia do pai viúvo, morando na casa da avó, ela é
inserida num contexto completamente distante de sua realidade até então.
Shoppings, cinemas e tecnologia são substituídos por fazendas, fogão a
lenha e galinhas. Sentindo que estava perdendo o controle que acreditava ter
de sua própria vida, em meio à conturbada tentativa de adaptação, encontrou
na fazenda ao lado - e em certo jeca caipira - um incentivo para buscar sua
fé, perdida em meio à dores do passado. Uma história de amor e do encontro
verdadeiro com Aquele que age em nossa história através de sua
providência, muitas vezes incompreendida, se não vista com os olhos da fé.

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Amor Real Despertar - – Maina Mattos


“Eu nunca quis ser princesa!” - Anne Davies Anne é uma jovem mulher,
que se viu perdida do dia para a noite. A morte dos pais a obrigou a assumir
o papel de provedora e protetora de seu irmão Oliver. Sua vida se resumia à
livraria herdada de sua mãe e os cuidados com a educação de seu único
parente. Mais uma vez a vida lhe proporcionou uma reviravolta, obrigando-a
a viver no último lugar da terra que um dia ela pensou que viveria: no
palácio real da província de Kent. Os caminhos de Anne serão cruzados com
pessoas que assim como ela estão em busca dos propósitos de deus, levando-
os a questionar os planos que o senhor tem para cada um. E agora ela será
obrigada a tomar decisões muito mais importantes do que um dia pensou, ao
mesmo tempo em que precisa se preparar para a nova vida que lhe será
proposta. Prepare-se para esse romance cristão clichê, não tão clichê assim!

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Trilogia Amor Real – Maina Mattos


Anne Davies viu sua vida se transformar, como um enredo de seus livros
de romances. Entre reviravoltas da vida, acompanhamos o amadurecimento
da personagem em três livros que compõe a trilogia Amor Real. Uma
história contemporânea e cristã de realeza, com tudo que se têm direito:
reinos, príncipes, plebéia, bailes, coroas e amor.

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Do deserto ao jardim – Aline Moretho


Marissol Santino conheceu a rejeição desde cedo. Abandonada pelo pai e
com uma mãe que se importa mais com a carreira do que com a filha, não
demorou muito para se meter em encrencas. Como consequência de seus
atos de rebeldia, foi enviada para viver na roça, numa pequena comunidade
chamada Nova Canaã, sob os cuidados do homem cujo ressentimento dela a
impedia de amar. É lá que Sol descobre o quanto está perdida, vagando por
um deserto solitário e sombrio, e sedenta de água e de um novo caminho. Ela
busca, por seus próprios meios, sair do lugar escuro onde se encontra sua
alma. Contudo, apenas o Bom Pastor é capaz de levá-la às águas tranquilas
num jardim onde a alma dela poderá descansar tranquila.

Leia aqui

Amor e Graça – Dulci Veríssimo


Augustus Foss, em busca de descobrir a verdade sobre a morte da mãe,
parte para a cidade de Vilas-Boas, no interior de São Paulo.
Ana Muniz, ao perder a única família que tinha, fica sem nenhum
recurso para sobreviver em meio ao caos de sua vida.
Entre o vislumbre de uma donzela tocando piano e uma proposta de
casamento repentina, o caminho desses dois jovens se unem, levando-os a
trilharem um percurso de muitas incertezas e dilemas. Porém, se sobressai a
maior de todas as dúvidas: Eles permanecerão?
Essa jornada os ensinará sobre o significado do amor de Deus, amor ao
próximo, perdão e resgate, compreendendo ser pela Graça que podem
sempre recomeçar.
"Mas eu me lembrarei da aliança que fiz contigo nos dias da tua
mocidade e estabelecerei contigo uma aliança eterna". Ezequiel 16: 60.
[1] Mocinho protagonista do livro “Um Perfeito Encanto” de Dulci
Veríssimo (disponível no Wattpad)
[2] Mocinha protagonista do livro “Um Perfeito Encanto” de Dulci
Veríssimo (disponível no Wattpad)
[3] Vilhena é um município brasileiro do estado de Rondônia. Sua
população foi estimada em 104.517 habitantes, segundo dados de 2021 do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), sendo o quarto
município mais populoso de Rondônia.
[4] Música Paz e Amor (André e Felipe)
[5] Sigla usada para descrever quem nunca deu um beijo, nem mesmo
selinho.
[6] Personagem do livro “De repente Ester”, Kell Carvalho.
[7] Personagem do livro “Orei por você” da Kell Carvalho cuja trajetória
de redenção é narrada.
[8] Personagem cristão do livro “Orei por você” que aconselhou Dylan
sobre a vida amorosa.
[9] Personagens do livro “De repente Ester”, da Kell Carvalho. Alexander
é um príncipe piedoso e Ewan um rapaz que precisava amadurecer.
[10] Instrumento para deter temporariamente por compressão o fluxo
sanguíneo de um membro.
[11] Provérbios 31:30
[12] Protagonista do livro “Orei por você” da Kell Carvalho
[13] Salmos 19:1
[14] Trecho retirado de Amor Real 2- Reluzir. Maina Mattos
[15] Personagem de Amor Real – Maina Mattos
[16] Personagem de Amor Real – Maina Mattos
[17] Dor de Barriga.
[18] Arte criada por um fã, baseada em algum personagem de alguma
obra de ficção.
[19] Personagem icônico do seriado The Mandalorian, seu nome, na
verdade, é Grogu, mas sua aparência, semelhante ao do Mestre Yoda, de Star
Wars, lhe rendeu o apelido de Baby Yoda.
[20] Estar apaixonado ou se encantar por alguém.
[21] Ficção Científica
[22] Rute 3:18
[23] Personagens fictícios de Star Wars, que possuem a habilidade de
controlar a Força.
[24] Transformação
[25] Personagens do filme Shrek, 2001.
[26] Expressão amazonense para indicar sobrecarga.
[27] Andamento musical leve e ligeiro.
[28] Andamento musical lento.
[29] Música Right Here – Jeremy Camp (tradução livre)

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