Ava Reid - Juniper & Thorn
Ava Reid - Juniper & Thorn
Ava Reid - Juniper & Thorn
apetites insaciáveis.
Marlinchen e suas duas irmãs vivem com seu pai bruxo em uma cidade
que muda da magia para a indústria. Como as últimas bruxas verdadeiras de
Oblya, ela e suas irmãs são pouco mais do que uma armadilha turística, pois
tratam seus clientes com remédios arcaicos e os seduzem com encanto
nostálgico. Marlinchen passa seus dias adivinhando segredos em troca de
rublos e tentando aplacar seu pai tirânico e xenófobo, que mantém suas filhas
aprisionadas do mundo exterior. Mas à noite, Marlinchen e suas irmãs se
esgueiram para desfrutar das comodidades da cidade e se divertir com suas
emoções, particularmente o recém estabelecido teatro de balé, onde
Marlinchen encontra um bailarino que rapidamente captura seu coração.
em frente ao espelho.
1 O kopek é ou foi uma moeda ou unidade monetária de vários países da Europa Oriental,
intimamente associados à economia da Rússia. Geralmente é a menor denominação dentro de um sistema
monetário; 100 kopeks valem 1 rublo.
um amplo afresco, pintado do azul pálido do céu no início da primavera.
Sátiros, que se pareciam notavelmente com Indrik, perseguiam ninfas de peito
nu por ela, e homens corpulentos descansavam nas margens do rio, vestindo
nada além de coroas de louros. Um rubor pinicou meu rosto.
No tempo que passei olhando para o teto, quase perdi Rose e Undine. Eu
segui a brilhante pérola da cabeça loira de Undine e as alcancei enquanto elas
deslizavam em seus assentos. Minha garganta estava seca com
constrangimento ansioso.
— Acho que eles a reconheceram — eu disse a Undine em um sussurro.
— o atendente da bilheteria, os homens na fila...
— Bem, é claro que eles me reconheceriam — Undine disse rapidamente.
— mas eles não vão contar a Papa. Eles sabem que nunca mais me veriam se o
fizessem.
Do meu outro lado, Rose soltou um suspiro baixo e risonho. Ela era
minha aliada em exasperação com a vaidade de Undine, e ela mostrou seu
desgosto mais abertamente do que eu jamais ousei. Por sorte, Undine
geralmente estava muito preocupada consigo mesma para notar.
Mais sussurros começaram. A voz de uma mulher de cabelos grisalhos
na fila atrás passou pela minha orelha.
— Dizem que a caixa torácica dele estava amassada como um teto
afundado. Dizem que seus olhos foram arrancados e substituídos por caroços
de ameixa.
Eu virei minha cabeça, e imediatamente Undine deu um tapa no meu
braço. O efeito foi tão instantâneo que pensei que meu corpo havia se punido;
quem mais além de mim poderia estar tão em sintonia com minhas próprias
aberrações? Os olhos azuis de Undine eram finos.
— Não — ela rosnou. — É rude espionar, especialmente aqui. Você
realmente não sabe nada sobre o mundo, não é, Marlinchen?
Eu não sabia dizer se por aqui ela se referia ao teatro de balé, ou se ela se
referia a Oblya como um todo, a enorme extensão cinzenta da cidade fora dos
muros do nosso jardim. No teatro, fomos cercadas pelos homens e mulheres
de a cúria superior, colorida como frutas cristalizadas em suas sedas e cetins;
lá fora, nas ruas, estávamos cercadas por trabalhadores do dia bêbados, com
seus rostos magros de raposa e seus lábios soltos e gordos. Não sabia o que era
pior. Eu levantei meus ombros e afundei no meu assento. Rose estava
folheando um panfleto, cada página gravada em ouro.
— Eles estão fazendo Bogatyr Ivan— disse Rose. — Eles devem fazer isso
todas as noites. Se Papa soubesse disso, teria um de seus ataques.
Encolhi-me com o pensamento. Bogatyr Ivan era o balé mais famoso de
Oblya, e era uma versão corrompida de uma das histórias do códex de nosso
pai, transfigurada pela influência de Rodinya e corroída pelo tempo. O titular
Ivan passara de guerreiro da estepe a santo, e sua noiva passara de filha do
chefe a Czarina, e várias outras pequenas mudanças que transformaram a
história em outra coisa, algo que mal era reconhecível para mim.
Mas agradava aos Oblyanos e, mais importante, aos Rodinyanos. Esses
recém-chegados chegaram agitando as bandeiras do czar, falando de coisas
como urbanização e urbanismo, ou então sob os emblemas de empresas privadas
que espremiam cada gota dos trabalhadores diários de Oblya e depois
desapareciam, apenas para serem substituídos por outros homens, sob
emblemas diferentes, mas com o mesmo objetivo de sangrar a cidade. Eles
eram a razão pela qual o porto de Oblya fervilhava com o comércio do leste, e
a razão pela qual nossas ruas eram dispostas tão ordenadamente quanto os
raios das rodas. Eu não pensei muito neles, exceto que quando eles chegaram
ao nosso portão, nosso pai nos instruiu a ignorá-los até que fossem embora.
Mas agora o teatro estava lotado para ver uma entrada de Rodinyanos
enfeitar o palco. Olhei por cima do ombro de Rose para o panfleto, procurando
por seu nome, como se pudesse captar algo importante do arranjo particular
das letras. Seu dedo subiu e desceu a página, percorrendo sua biografia.
— Dizem que ele é o dançarino principal mais jovem de qualquer
companhia de balé Rodinyana — disse ela. — Apenas vinte e um. Isso é tão
triste, não é?
— Por que é triste?
— Porque — ela disse — o que você faz quando tem vinte e um anos e já
alcançou tudo que a maioria das pessoas só pode sonhar? Você tem o resto de
sua vida pela frente, mas nenhum outro lugar para ir.
Senti pena, de alguma forma, por ter perguntado.
Antes que eu pudesse dizer outra palavra, a orquestra cantou suas notas
iniciais e as cortinas de veludo se abriram e os sussurros ao meu redor ficaram
em silêncio, todos os olhos atraídos para a única luz no palco, redonda como
uma camada de gelo. Os violoncelos cantavam languidamente sob o trinado
de flautas e oboés.
Nunca tinha visto Bogatyr Ivan com minhas irmãs antes, então eu não
podia prever os crescendo e decrescendo e quando a tarola tocava ou quando
a harpa acrescentava sua voz sensual. A cada batida desconhecida, eu sentia
algo me puxando como uma corda, meus ossos chacoalhando, meu sangue
cantando. Eu conhecia a forma vaga da história, mas a música acrescentava
algo novo a ela, algo que a tornava quase grande demais para meus olhos
segurarem. As primeiras bailarinas voaram pelo palco, como neve em seu tule
branco. Dançarinos de vermelho correram atrás delas; eram as chamas
animadas do Dragão-Czar.
As bailarinas desmaiaram dramaticamente. Eu sabia pela história no
códex de Papa que elas eram os espíritos do gelo, da pura geada virginal, da
terra de Oblya antes que os conquistadores viessem para queimá-la e destruí-
la. Vestido de preto, o Dragão-Czar fingiu rir enquanto os violoncelos
zumbiam gravemente. Eu sabia também que eventualmente Ivan entraria,
desajeitado e sem espada, apenas um filho de fazendeiro e um camponês até
se tornar um guerreiro, e, nesta versão, como a sinopse do panfleto me disse,
um santo. Não havia santos na versão de Papa da história, mas sempre havia
Ivan.
Embora eu tivesse passado tantos anos conjurando uma imagem de Ivan
em minha mente, não estava preparada para vê-lo agora: cabelo preto
esvoaçando, peito nu onde seu casaco surrado se separava. Assim que ele
estava lá sob as luzes, era impossível olhar para qualquer outro lugar. Era
impossível não seguir seu caminho pelo palco. Em sua presença, os homens-
chamas murcharam como rosas cortadas. As mulheres da neve se mexeram,
rostos prateados brilhando com esperança nascente. Ele tropeçou por elas até
o Dragão-Czar; até mesmo sua agitação era graciosa.
O Dragão-Czar empinou-se, como se fosse derrubá-lo, e então a bela
Czarina dançou entre eles, suplicando ao pai, enquanto Ivan recuava e as
mulheres da neve sorriam. O Dragão-Czar saiu do palco com seus homens-
chamas, deixando Ivan e a Czarina circulando um ao outro como lobos
hesitantes.
A camisa surrada de Ivan caiu de seus ombros, e naquele momento eu
senti como se toda a plateia estivesse segurando a mesma respiração longa.
Sevastyan Rezkin estava tão adorável sob a luz lívida das velas que tive que
me forçar a exalar.
Meus olhos traçaram os músculos delicadamente tensos para baixo de
seu abdômen e ao longo de suas coxas. Ele pegou a mão da Czarina e a beijou.
Seus movimentos pareciam desajeitados ao lado dos dele, como se ela estivesse
contando os passos em sua cabeça. Os passos de Sevastyan eram tão fluidos
quanto um derramamento de água, como se ele não pudesse imaginar se
mover de outra maneira. Ele levantou a perna da Czarina. Seus dedos
acariciaram ao longo de seu rosto.
Senti-me como uma voyeur, como um intruso grosseiro testemunhando
um terno milagre que não era para meus olhos. Senti o mesmo quando vi as
gaivotas e os corvos-marinhos arquearem-se do píer sobre o nosso telhado,
envergonhados do meu próprio corpo pesado e incapaz de voar.
Seu joelho separou as coxas da Czarina, e eu corei tão profusamente que
sabia que Undine zombaria de mim por isso, se ela estivesse olhando. Mas
todos os rostos no teatro estavam voltados para Sevastyan. Ele era o farol de
uma centena de olhares sem piscar.
O que quer que o pretendente da minha irmã tivesse pago pelos
ingressos, eu teria pago o dobro. Triplo. Pela primeira vez comecei a entender
o desejo imprudente de Undine e Rose, a emoção da possibilidade que as tirava
de suas camas à noite, ignorando as terríveis advertências de nosso pai.
Meus dedos se fecharam em punhos em minhas saias, e eu não os abri
até o ato final, quando Ivan emergiu como um santo. Sevastyan estava com o
peito nu novamente, vestindo apenas meias nuas finas que ele parecia ter sido
colocado, por toda a modéstia que lhe proporcionavam. Seu peito estava
folheado a ouro, espirais de tinta dourada que rastejavam por sua garganta e
espiralavam em suas bochechas. Até seus cílios foram punhais com pérolas
falsas. Sobre os ombros, ele usava um manto alado, penas brancas eriçadas com
seus giros e saltos.
Eu não conseguia entender como ele abria as pernas tanto, ou como
pulava tão alto, ou como não desmoronou com o estremecimento de inércia
quando ele aterrissou novamente. Quando a música chegou ao fim e Sevastyan
e a Czarina se curvaram, metade do teatro se levantou de uma vez, estrondosa
de aplausos. Várias das mulheres ao meu redor estavam chorando, kohl
rastreando seus rostos rosados.
— Eu te disse. — Undine falou enquanto me puxava para fora do meu
assento. Até sua voz estava ofegante, ela piscava muito rápido. — Valeu a
pena, não foi?
Mas as cortinas se fecharam, apagando Sevastyan de vista, e me senti
como se tivesse ficado sem âncora, à deriva no mar de vozes. O barulho estava
me pressionando e o calor de todos os corpos quentes estava fazendo minha
cabeça girar. O ar tinha um gosto azedo com tantas palavras tituladas. E mais
uma vez eu mal conseguia respirar, como se alguma mão quente e invisível
estivesse se fechando ao redor da minha garganta.
Rostos passaram por mim. Eu não conseguia distinguir os lobos das
ovelhas.
— Eu tenho que ir — eu consegui, puxando minha mão do aperto de
Undine. Minha voz soava como se tivesse sido torcido de pano molhado. —
tenho que sair daqui.
Rose fez um protesto distorcido quando passei por ela, mas não parei.
Meus passos caíram desajeitados no tapete vermelho. Eu podia ouvir o
farfalhar da seda enquanto os membros da plateia se arrastavam de seus
assentos, embora uma névoa tivesse caído sobre meus olhos e tudo parecesse
tão turvo quanto a grama coberta de orvalho da manhã. Por algum dom de
instinto louco e maníaco, encontrei uma porta lateral à esquerda do palco e
entrei por ela, ofegante enquanto caía na fria noite azul.
O alívio parecia o rompimento de um fio. Recostei-me na lateral do
prédio, minha testa úmida de suor frio. Meu cabelo se soltou da fita rosa de
Rose e caiu em mechas por todo o meu rosto. Eu a escovei de volta o melhor
que pude, as pontas dos dedos zumbindo.
O beco se estendia para cada lado de mim, sem limites e preto. No alto,
as estrelas estavam cobertas de fumaça, e a única luz vazava pelas janelas do
teatro de balé, um filme amarelo-pálido. Apenas me ocorreu ter medo quando
a porta se abriu e outra pessoa saiu cambaleando.
O homem estava curvado, um braço dobrado sobre o abdômen. Com a
outra mão, ele se apoiou na parede, se afastou de mim, tossindo e cuspindo.
— Você está bem? — Era tudo que eu conseguia pensar em dizer.
Cambaleando, minha mente ainda confusa com seu pânico, eu escolhi meu
caminho em direção a ele e me inclinei para examinar seu rosto. — Senhor,
você está doente?
Ele vomitou, salpicando os paralelepípedos e a bainha da minha saia. Eu
estava tão acostumada com a visão, o som e o cheiro de vômito que não vacilei.
Em vez disso, inclinei-me para mais perto, apertando os olhos para o rosto do
homem no escuro.
— Senhor, por favor — eu disse. — você está doente. Não sou curandeira,
mas posso buscar minha irmã...
Ele limpou a boca com as costas da mão e olhou para mim. A curva de
sua bochecha pegou a luz, e eu congelei como um coelho no meio de um salto.
Eu estava olhando para os olhos azuis enevoados de Sevastyan Rezkin.
Uma blusa de seda branca tinha sido puxada ao acaso sobre seus ombros,
mas estava aberta no peito. Eu podia ver a tinta dourada descascando de sua
pele, de suas bochechas, manchando onde ele esfregou em sua boca. Uma
única pena branca caiu de seu cabelo preto.
Murmurei algo que era ininteligível, mesmo para meus próprios
ouvidos. Sevastyan segurou meu olhar, os olhos vacilantes. Os brancos deles
estavam rachados com vermelho. Lembrei-me de suas aterrissagens suaves e
graciosas, a maneira como suas coxas ficaram tensas sob a meia-calça, a
maneira como seus quadris se apertaram contra os da czarina, e meu rosto
ficou terrivelmente quente.
Seus cílios tremulavam com suas pérolas falsas, uma sombra com franjas
sobre suas maçãs do rosto afiadas. Sua pele era tão pálida e imaculada quanto
o cabo de marfim do pente de minha mãe, alisado por tanto tempo passado
nas mãos minhas ou de minhas irmãs. Pensar nisso só me fez corar ainda mais.
Mesmo agora, orvalhado de suor e cheirando a vômito, ele era tão bonito
que eu não conseguia desviar o olhar.
Antes que qualquer um de nós pudesse falar, a porta se abriu novamente.
Outro dançarino, de cabelos cor de areia, ainda vestindo sua blusa e meia-calça
vermelho-fogo, irrompeu e suspirou. Sua respiração era uma nuvem branca no
frio. Ele olhou entre Sevastyan e eu e cruzou os braços sobre o peito.
— Vamos, Sevas — ele disse cansado. — Derkach está procurando por
você.
Sevastyan se levantou, estremecendo e segurando seu lado.
— Lyoshka — ele murmurou. — Meu herói.
Suspirando novamente, o outro dançarino o pegou pelo braço e começou
a conduzi-lo em direção à porta. O andar de Sevastyan era instável; todos os
seus passos foram bruscamente para a esquerda.
— Espere! — eu disse. Minha voz soou muito alta, discordante como o
grito de uma gaivota. — Você não pode... ele está muito doente.
O outro dançarino, Aleksei, fez uma pausa e se virou. Os cantos de sua
boca tremeram, e eu não sabia dizer se ele queria sorrir ou franzir a testa.
— Ele não está doente — disse ele. — Bem, suponho que esteja, mas não
há nada que você ou eu possamos fazer por ele, senhorita. Em uma hora, ele
vomitará mais meio litro de vodca e depois adormecerá, e seu corpo o punirá
pela manhã.
Com isso, ele levou Sevastyan pela porta, e ambos desapareceram
quando ela se fechou. Vários momentos se passaram antes que eu pudesse me
mover novamente, minha própria barriga se revirando como roupa em uma
tina.
Undine fez uma careta e deu um tapa no meu braço quando as encontrei;
Rose suspirou e alisou os cachos do meu rosto. Não contei a nenhuma delas
sobre meu encontro com Sevastyan, ainda mal conseguia me convencer de que
era real.
Enquanto descíamos a rua Kanatchikov, preparei meu olhar para a
bainha manchada do meu vestido, o dedo do pé salpicado do meu sapato.
Minha mente continuava voltando para o rosto úmido e brilhante de Sevastyan
e seus olhos azuis brilhantes e trêmulos. Os brancos deles estavam partidos
como rachaduras na porcelana de Papa. Não conseguia entender como ele
conseguiu dançar assim depois de meio litro de vodca; talvez Aleksei tivesse
exagerado. Eu nunca tinha tomado um gole de vodca. Talvez um litro não fosse
quase nada, apenas um pequeno borrão nos cantos de sua visão.
Eu disse isso a mim mesma, mas realmente não acreditei. Quando
chegamos ao portão, ele se destrancou para nós com tanta facilidade, sem um
som, que fiquei surpresa. Era como uma boca carente, ansiosa para nos engolir
de volta. O duende havia parado de choramingar. Indrik ainda dormia. Os
corvos sem olhos não se mexeram de seu poleiro.
Minha mente deveria estar girando como uma bússola, o medo me
deixando maníaca e sem amarras. No entanto, a caminhada de volta pelo
jardim passou por mim quase inconsciente. Eu estava focada apenas em
Sevastyan. Todos os outros pensamentos foram momentaneamente
despejados. Era como se eu tivesse esquecido como sentir medo.
Era essa a magia que continuava tirando minhas irmãs de casa? Naquele
momento, parecia quase tão forte quanto o feitiço de Papa. A cidade era uma
canção que sussurrava incessantemente em meu ouvido, e se minha mente
fosse uma bússola, o rosto de Sevastyan era o norte verdadeiro.
De volta ao meu quarto, tirei meu vestido e desamarrei meu espartilho,
dedos trêmulos. Tirei todas as folhas mortas e caules de trigo de meus lençóis
e os enfiei embaixo da cama, onde o monstro roncava baixinho. Quando estava
dormindo assim, eu não conseguia ver os ovais vermelhos de seus olhos.
Dizem que seus olhos foram arrancados e substituídos por caroços de ameixa.
Meus dentes se juntaram com um clique audível. Histórias lúgubres
sobre as prensas de moedas, nada mais. Que eu poderia me permitir acreditar;
as garantias de Rose eram tão fáceis de engolir quanto a água fria da corrente.
Os únicos monstros que restaram em Oblya viviam aqui, debaixo da minha
cama ou no nosso jardim, e nenhum deles tinham qualquer desejo por carne
humana. Todos esses tipos de monstros morreram há muito tempo.
Subi na cama e puxei a colcha até o queixo. Eu esperava que meus
membros ficassem pesados de exaustão depois de nossa estada noturna, um
alívio sólido e pesado baixando minhas pálpebras. No entanto, minhas pernas
estavam leves e deliciosamente frias com a lembrança do ar frio lá fora.
Eu não pude dormir. Só conseguia pensar em Sevastyan, seu peito nu
pintado de ouro. Minha mente vagou de volta pelo jardim, pelas ruas escuras,
e no beco novamente, para onde eu tinha encarado seu rosto suado na luz
pálida.
Eu pensei nele, e meus dedos deslizaram entre minhas coxas. Enquanto
me acariciava, mordi meu travesseiro com força, para não correr o risco de
fazer barulho.
Capítulo 2
Pedaços de luz caíram no meu rosto como folhas mortas. Eu me levantei
bem a tempo de ouvir o bater das garras do monstro contra as tábuas do piso
enquanto ele saía correndo de debaixo da minha cama. Avistei a ponta de sua
cauda espinhosa antes que ela desaparecesse no corredor.
O relógio bateu às sete. Tirei minhas cobertas. Um talo de trigo caiu do
meu cabelo. Partículas de poeira flutuavam através dos raios de sol
entrelaçados, iluminando a fina película cinza que cobria meu espelho e minha
penteadeira, e o cabo branco como osso do pente de minha mãe. Meus sapatos
cor-de-rosa espiavam como gatinhos cegos pela fresta da porta do meu guarda-
roupa, os saltos cheios de sujeira. Acima deles, um lampejo de seda cor de
amora, os cadarços caídos e desabotoados do meu espartilho. A emoção de
algo solto em mim, uma memória libertada: o peito banhado a ouro de
Sevastyan. Enrubescendo, fechei a porta do guarda-roupa com força, lacrando
meu vestido e sapatos e a evidência de nossa noite de folia lá dentro.
Tinha meia hora para levar o café da manhã para meu pai, menos tempo
do que o normal. Eu tinha dormido com indulgência demais, sonhando com
Ivan e a Czarina. Eu nem tinha ousado me colocar em seu corpo; só tinha
assistido enquanto eles giravam e giravam, como as figuras em uma caixa de
música, como Ivan e a princesa do meu conto de fadas favorito de Papa.
Vesti meu roupão e corri descalça escada abaixo, meus passos ecoando
vagamente. Meus olhos seguiram o caminho do monstro, o sulco que sua
cauda havia traçado no tapete grosso. Imaginei que já tivesse encontrado seu
lugar sob o zimbro. Ele se levantou cedo, assim como nossos corvos sem olhos.
Eu não sabia se a serpente de fogo dormia, você só podia vê-la com o canto do
olho, e sempre que se virava para olhar de frente, ela desaparecia. Metade das
vezes você a confundiria com uma fita preta que alguém deixou cair na grama.
Mesmo sem o elixir de Rose, Indrik dormiu a maior parte do dia, seus roncos
farfalhando ramos de lavanda. O duende ainda estava trancado no galpão.
A própria Undine dormiria por mais três horas pelo menos; não víamos
clientes aos domingos. Rose acordava com o som do clamor descontente de
nosso pai, mas nem sempre descia. Até então, a casa era minha, todos os vinte
cômodos se ramificando ao meu redor como o dossel de um enorme carvalho.
Eu poderia ter andado de um lado para o outro com os olhos fechados,
tateando o corrimão de mogno polido, os dedos correndo pelos abajures com
franjas.
Onde Rose e Undine eram donas do jardim, a cozinha e a sala de estar
adjacentes eram meu domínio. Os potes de cobre pendurados tilintavam como
sinos de vento acima da minha cabeça. Como eu já tinha aberto a massa para
varenyky2 ontem à noite, enfarinhei as mãos e a cortei em diamantes perfeitos.
Uma bandeja de carne moída, congelada e pálida, estava esfriando na
geladeira. Não me lembrava de ter feito o recheio, mas devo ter – ninguém
mais entrou na cozinha, exceto eu e nosso monstro de rabo espinhoso,
farejando migalhas no balcão ou lambendo a gordura da panela com sua longa
língua farpada.
Enquanto o varenyky fervia, cortei dois pedaços gordos de pão preto e
os untei com manteiga. Cortei duas cebolas, olhos ardendo, e as dourei com o
varenyky. Havia três potes pesados de repolho em conserva, então peguei uma
colher de um e adicionei ao prato, manchando a borda da minha manga de
roxo. Coloquei creme azedo ao lado do varenyky e servi um copo de leite.
2 É um prato típico ucraniano feito de massa fresca com recheio. A pronúncia do nome ucraniano é:
varénêkê.
Quando terminei, enfiei a colher na boca. Eu podia sentir a riqueza suave
do creme e a mordida azeda do repolho, e por baixo a fumaça persistente de
cebola e manteiga dourada. Eu lambia e lambia até que tudo que podia provar
era metal tingido de ferrugem.
Levei a bandeja para a sala de estar e a coloquei sobre a mesa de nogueira.
Suas quatro pernas de ferro terminavam em cascos; sempre me lembrava de
Indrik quando ele se agachava na grama, mordiscando indignado a grama de
sálvia de Rose. Limpei a umidade da minha testa e soltei um suspiro.
Acima, o candelabro estremeceu como folhas de salgueiro na brisa, e a
madeira gemeu com os passos de meu pai.
Ele desceu as escadas, ainda em seu roupão. Seus pés estavam enfiados
em sapatilhas de veludo. As mãos de Papa me fizeram pensar em aranhas
brancas, seus dedos magros apertando com força o corrimão. O cinto de seu
roupão estava enrolado duas vezes ao redor dele, como os marinheiros no
porto amarravam suas velas ao mastro com um pedaço de corda, para que seus
navios não fossem torcidos de um lado para o outro pelo vento.
Papa deu um beijo de boca seca na minha testa e se sentou no sofá. Ele
examinou a bandeja com sua habitual miséria resignada. As bolsas sob seus
olhos eram azuis e gordas como a bolsa de uma mulher rica.
— Obrigado, Marlinchen — disse ele.
— Claro, Papa.
Ele sempre me agradecia, então como eu poderia invejar alguma coisa
dele? Pelas horas que ele tirou de mim enquanto eu lavava pratos na cozinha
e colocava vinagre em potes de repolho. Ao contrário das minhas irmãs, que
puxaram a nossa mãe, eu podia ver espelhos nebulosos das minhas feições nas
dele. O comprimento de nossos narizes, certamente, com suas pontes baixas e
declives dramáticos, o tom distintamente pálido de nossa pele e a ligeira
inclinação para cima em nossos olhos castanhos pálidos.
Disseram que meu pai tinha sido bonito, uma vez, mas sua maldição o
havia esculpido como uma escultura de Lubok3. Agora havia algo
distintamente desumano nele, uma falsidade de madeira em seus raros
sorrisos.
— Da próxima vez, você deve colocar queijo no varenyky — disse Papa.
— E ameixas. Temos ameixas?
Eu endureci. Dizem que seus olhos foram arrancados e substituídos por caroços
de ameixa.
— Você quer dizer as ameixas âmbar pretas?
— Não, claro que não; não seja estúpida. Você não é estúpida,
Marlinchen. Não quero comer ameixas envenenadas, mesmo que elas não me
matem. Também temos uma ameixeira roxa.
— Certo. — Eu pisquei. — Eu posso fazer conservas de ameixa.
— Vou comê-los com mlyntsi.
Meu pai lambeu a lâmina de sua faca. Sentei-me em frente a ele, punhos
enrolados no colo, observando a comida desaparecer. Manchas dela estavam
presas em sua barba. Era uma relíquia de dias anteriores, antes que o Conselho
dos bruxos fosse dissolvido. Uma vez que era aprovado para sua licença do
conselho, você obtinha um novo título e algum recurso arbitrariamente digno
que significava que nunca poderia esconder seu status. Titka Whiskers tinha
olhos amarelos de gato e pálpebras que se fechavam verticalmente, como
puxar uma longa cortina sobre uma janela. Meu pai tinha uma barba de índigo
3 Lubok é uma gravura popular russa, caracterizada por gráficos e narrativas simples derivados da
literatura, histórias religiosas e contos populares. As impressões de Lubok foram usadas como decoração em
casas e pousadas.
profundo. Ele a manteve por muito tempo porque escondia a barriga de suas
bochechas, que estavam flácidas e distendidas desde os primeiros dias de sua
maldição: quando ele enchia o rosto de rodas de queijo e pães velhos, pensando
que poderia saciar aquela fome sem fundo.
Agora cabia a mim manter meu pai alimentado. Mas não importa o
quanto ele comesse, sua barriga ainda doía no final. E nada poderia evitar sua
magreza também, os ossos do pulso empurrados contra a pele como bolhas de
ar na massa de bolo. Pensar nisso me fez sentir tão terrivelmente triste que
minha própria barriga roncou em solidariedade. Eu comeria o resto do pão
preto e repolho quando meu pai terminasse.
Enquanto meu pai comia, uma luz esverdeada pingava do jardim,
peneirada pela rede de folhas e galhos. Domingos eram meus dias favoritos,
quando a casa estava quieta e vazia, só minhas irmãs e eu fazendo nosso
trabalho em silêncio, e sem clientes na porta. Não que eles tivessem sido um
grande incômodo recentemente. Nosso fluxo de visitantes estava diminuindo
ultimamente, tanto que até eu tinha notado, e Rose e Undine sussurravam
sobre isso, mas nenhuma de nós ousava tocar no assunto com nosso pai.
Depois do que ele havia feito para ganhar nosso monopólio da feitiçaria em
Oblya, parecia cruel sugerir que seu sacrifício talvez estivesse começando a se
esgotar.
Eu disse a mim mesma para não me preocupar com isso. Minhas irmãs
eram mais inteligentes e bonitas do que eu, e Papa era um homem de negócios
astuto. Eles inventariam uma maneira de devolver nossos clientes para nós.
Se o Conselho dos bruxos ainda existisse, Undine teria sido oficialmente
chamada de bruxa da água, embora ela não fosse muito boa. Ela podia ver o
futuro olhando para sua piscina premonitória ou nas costas polidas de nossos
pratos de prata. (Claro, Rose e eu gostávamos de brincar, a adivinhação de
Undine envolvia olhar sem parar para seu próprio reflexo). Suas previsões
eram tão confusas quanto a água estagnada de um lago, mas ela tinha mais
clientes do que Rose e eu juntas, mesmo agora. Enquanto Undine olhava e
olhava para sua piscina premonitória, seus clientes olhavam e olhavam para
ela.
Eles nunca a tocaram, no entanto. Ela era como a primeira neve de um
inverno, e ninguém queria ser responsável por estragar sua perfeição de
marfim.
Eu não podia culpar muito Undine. Em todas as histórias as irmãs mais
velhas eram más, e Undine ainda era menos má do que a maioria. Era apenas
seu direito de nascença dominar cruelmente sua beleza sobre mim.
Rose teria sido chamada de herbanária, e sua magia era boa. Ela fazia
cataplasmas curativos que funcionavam melhor para feridas do que
sanguessugas ou sangrias, e ela podia até remendar misturas de ervas que o
deixavam tonto de alegria por uma hora, ou, se escorregasse na sopa de um
inimigo, o deixaria louco o suficiente para arrancar seu cabelo até que o veneno
diminuísse.
Ela cobrava punhados gordos de rublos por elas e só os dava a clientes
em quem podia confiar, geralmente mulheres irritadas com maridos com cara
de beliscão. Rose também era linda, com seus longos cabelos negros que se
transformavam iridescente à luz do sol, e seus profundos olhos violeta. Mas
ela geralmente estava coberta de sujeira e cheirando a absinto ou hortelã, e
sempre carregava consigo um par de tesouras de jardinagem, suas lâminas
brilhando em seu quadril. Então os homens também não se atreviam a tocá-la.
Houve uma briga no jardim, e galhos nus bateram na janela como algo
pedindo para entrar. Levantei-me e espiei através das pétalas brancas de nossa
pereira em flor. Havia um de nossos corvos sem olhos bicando uma pera verde,
mais ou menos no formato de uma lágrima caída. Lá estava o duende
arranhando a porta do galpão. E havia dois homens sacudindo o portão.
— Papa — eu disse enquanto meu rosto empalidecia de medo — tem
alguém lá fora.
— Mais inspetores terrestres de Rodinya, provavelmente. — Meu pai
arrancou um pedaço de pão com manteiga, mastigou e engoliu. — Ou
missionários. Ignore-os e eles irão embora.
De tal distância, eu não conseguia distinguir os rostos dos homens, mas
eles não usavam as vestes marrons dos Filhos e Filhas devotos, ou as insígnias
vermelhas dos enviados do czar. Um dos homens me viu olhando e tirou do
bolso uma sacola, bem apertada com um cordão. Ele a segurou e a sacudiu. Eu
podia ver as formas vagas de moedas se acotovelando lá dentro.
— Eles têm dinheiro. — eu disse.
Instantaneamente meu pai saltou de seu assento. Perguntei-me se eles
poderiam ser clientes de Undine, tão determinados a vê-la que eles ofereceriam
o dobro do que ela normalmente cobrava. Eu sabia que não eram de Rose –
apenas as mulheres vinham a Rose com um desespero tão prematuro. Meu pai
passou por mim e olhou pela janela, estreitando os olhos.
Depois de um momento, ele disse: — Vamos deixá-los entrar.
— Papa — falei, o pânico subindo na minha garganta — eu não estou
vestida...
Mas ele já estava caminhando em direção à porta, deixando seu prato
meio comido. Tudo o que eu conseguia pensar enquanto o seguia era que, um
ano atrás, ele nunca deixaria um cliente passar pelo nosso portão no domingo,
não importa o quanto implorassem e suplicassem, e até teria gritado para eles
de nossa varanda que se eles continuassem a chocalhar os transformaria em
aranhas.
Da janela, observei meu pai falar com os homens através do portão
trancado. Abracei meu roupão em volta de mim, dolorosamente consciente de
que meu cabelo estava tão emaranhado quanto uma sarça, cachos caindo sobre
meu rosto, e que eu cheirava a óleo de cozinha e cebola. Para crédito do meu
pai, ele não se importava com o que meus clientes pensavam sobre minha
aparência. Se quisessem ver alguém bonito, eles seriam condescendentes com
minhas irmãs.
Um dos homens passou o saco de rublos pelas grades. O outro recuou,
as mãos nos bolsos do paletó, cabeça baixa. Ele tinha cabelos pretos e parecia
muito pálido.
O portão se abriu e os dois homens seguiram meu pai pelo caminho do
jardim. Os arranhões do duende ficaram furiosos. Corri para a porta, o coração
batendo tão forte quanto passos no chão de mármore. Disse a mim mesma que
quem quer que fosse, pelo menos não era o Dr. Bakay. Eu teria conhecido sua
silhueta curvada e seu cabelo prateado em qualquer lugar.
Quando a porta se abriu, minha respiração se estabilizou. Meu pai estava
na soleira com os dois homens. O mais velho era louro, com o cabelo espesso
com gel, como se para compensar a magreza, e ele tinha a aparência alegre de
um cavalo de carruagem, ansiedade no brilho de seus olhos cinzentos.
O outro homem era um Sevastyan Rezkin austero e sem brilho. Eu
engasguei com o ar.
— Olá — disse o homem alegre. — Sou Ihor Derkach.
Esperei que as palavras viessem, mas elas só ficaram quebradiças e não
ditas na minha língua como açúcar queimado. Meu pai tossiu de
aborrecimento, a pele solta de suas bochechas esvoaçando, e cruzou a soleira.
— Esta é minha filha Marlinchen — disse Papa. — Como pode ver, ela é
quieta e discreta. Se você valoriza um segredo guardado, ela é a bruxa para
você.
— Excelente — disse Derkach. — Gostaríamos de começar
imediatamente.
Sevastyan estava olhando para o chão, mas ao cutucar Derkach ele olhou
para cima. Nossos olhos se encontraram por um breve momento, mas nesse
momento eu vi o lampejo de reconhecimento, e sob ele algo mais estranho e
inesperado: medo. Ele se foi novamente antes que eu pudesse pensar sobre
isso.
Talvez ele tivesse medo de bruxas. Rodinianos eram supersticiosos.
Enquanto o observava caminhar em direção à sala de estar, quase desatei a
chorar com o terrível absurdo de tudo isso: Sevastyan Rezkin andando de um
lado para o outro, empoleirado em minha chaise longue, a apenas quatro
passos da cozinha, onde cantarolava canções sem palavras para mim mesma
enquanto eu batia ovos para mlyntsi. Meu desejo noturno furtivo de alguma
forma o chamou aqui? Descarto o pensamento de uma vez. Eu não tinha esse
tipo de magia.
Não, isso foi apenas uma coincidência de sorte terrível, e agora tudo pode
estar arruinado.
Papa recostou-se no sofá e dirigiu Sevastyan para a poltrona. Sua voz
soava distante e amortecida, do jeito que soava quando eu segurava minha
cabeça debaixo d'água no banho.
Derkach estava tagarelando animadamente. Papa tinha voltado para sua
comida. Fiquei ali estupidamente, tentando impedir que as lágrimas brotassem
dos meus olhos, e então Papa disse em voz alta, rudemente:
— Marlinchen, não seja rude. Ofereça um refresco ao nosso hóspede.
Dei-me uma sacudida viva, como se fosse um cachorro com pulgas.
Tentei não olhar para Sevastyan. Enquanto eu falava, até as palavras familiares
pareciam cinzas na minha língua.
— Gostaria de beber alguma coisa, Sr. Derkach? Temos kvass4 de amora.
— Não, obrigado, minha querida. — Ele me deu um sorriso de lábios
apertados e estimulante. — Diga-me, que tipo de bruxaria você pratica? É uma
adivinha? Uma bruxa-sebe? Uma frenologista?
Eu endureci. Meu desfiladeiro subiu. Poderia ter vomitado ali mesmo no
tapete, mas o olhar rápido e cortante de Papa me forçou a murmurar:
— Não, senhor.
— Levei Sevas a um frenologista aqui em Oblya, mas ele não me deu
muita ajuda. Ele me disse que os cérebros do Yehuli foram adaptados para
capitalismo... bem, você só precisa olhar para as ruas deles para deduzir isso.
Seus negócios estão prosperando! De qualquer forma, espero que você possa
ter sucesso onde outros médicos falharam e diagnosticar a aflição de Sevas.
Eu mal conseguia ouvi-lo por causa do fluxo de sangue da água da
nascente em meus ouvidos. Dolorosamente, me virei para Sevastyan. Ele
estava relaxado na poltrona, uma expressão petulantemente indignada no
rosto. Havia sombras sob seus olhos, mas ele não parecia particularmente
doente. Lembrei-me de como ele parecia na noite passada no beco, vômito
escorrendo de seu queixo. Aleksei me garantiu que ele ficaria bem pela manhã.
Perguntei-me se era possível que Derkach não soubesse que tinha bebido meio
litro de vodca.
— E o que o tem afligido? — Perguntei a Derkach, incapaz de me dirigir
diretamente a Sevastyan.
4 É uma bebida nacional russa, lembra a cerveja — mais exatamente a cerveja produzida nos
primórdios — e também se parece com sidra.
Derkach se inclinou sobre a mesa e deu um tapinha no joelho de
Sevastyan. Sevastyan ficou tenso instantaneamente, e houve um momento de
silêncio quando seus ombros se ergueram sob a jaqueta preta. O tempo
avançou novamente, e Sevastyan olhou para mim, mechas de cabelo escuro
caindo em sua testa.
— Não há muito a dizer, Sra. Vashchenko — disse ele. Sua voz era baixa,
nivelada, e ele segurou meu olhar. — Eu estive, ahn, adoecendo depois das
minhas performances recentes. Aconteceu algumas vezes em Askoldir, mas
tem sido mais frequente desde que cheguei a Oblya.
Ouvir meu nome em seus lábios me fez corar profusamente. Não pude
evitar. Ele poderia de alguma forma sentir, quando olhou para mim, que eu
tinha me dado prazer na noite passada enquanto segurava seu rosto em minha
mente? Era insuportável contemplar. Ainda mais insuportável perceber que
ele me conhecia, me reconhecia e a qualquer momento poderia me revelar.
Rezei a todos os deuses que me lembro do códex de Papa por algo que o
detivesse, que o teto desmoronasse e me enterrasse, que Indrik acordasse e
começasse suas lamentações ensurdecedoras, que um dos corvos sem olhos
voasse pela janela e a quebre.
Nada aconteceu. Minhas orações eram sempre desajeitadas e gaguejantes
e, além disso, nossos deuses não tinham poder na Oblya capitalista.
Com grande dificuldade, limpei a garganta.
— E quanto tempo faz desde que você veio de Askoldir?
— Seis meses — disse Sevastyan. Seu olhar cintilou para Derkach. A mão
do outro homem ainda estava em seu joelho.
— Sim, isso mesmo — disse Derkach. — Dê ou tire algumas semanas.
Havia algo excessivamente brilhante e falso no sorriso de Derkach. Isso
me lembrou das estatuetas de porcelana de Undine, com seus implacáveis
sorrisos angelicais. Todas foram realocadas em meu quarto desde que ela se
declarou velha demais para brincar com bonecas.
— Qual é a sua relação? — As palavras inundaram meus lábios antes que
eu pudesse detê-las. — Com Sevastyan, quero dizer.
— Eu sou seu treinador. — Derkach respondeu, o peito estufando com
orgulho. — Tenho sido desde que Sevas tinha doze anos. Fui eu quem garantiu
sua posição como dançarino principal no teatro de balé de Oblya.
Abruptamente a sala ficou em silêncio. Meu pai tirou o garfo da boca no
meio da mordida, e uma escuridão tomou conta de seu rosto. O sulco familiar
entre sua testa e a respiração afiada que assobiava entre seus dentes me fez
congelar de medo. Fiquei tão imóvel quanto os coelhos do nosso jardim, bem
antes de nosso monstro de cauda espinhosa atacar suas gargantas.
— Você é um dançarino — Papa disse. As sílabas saíram dele como
sangue pingando no chão.
— Ora, é claro — disse Derkach. — O mais jovem dançarino principal
que o balé de Oblya já viu.
Fiz um barulho estrangulado que ninguém parecia ouvir. De todas as
coisas que Papa detestava na capitalista Oblya, ele detestava nada mais do que
o teatro de balé. Reclamava mais contra o teatro do que contra os marinheiros
mercantes Ionik, que, segundo ele, trouxeram consigo o fedor de peixe do leste,
e mais do que contra os Yehuli, que, segundo ele, pretendiam drenar a cidade
de suas riquezas da mesma forma que um upyr5 sugava o sangue de mulheres
virgens. Ele odiava as fábricas de algodão e os trabalhadores, e as fábricas que
sopravam fumaça preta no céu de pele de foca. Mas ele odiava mais o teatro
de balé.
6 Bogatyr ou Vityaz é como são conhecidos os heróis eslavos descrito nos velhos poemas épicos eslavos
chamados de “Bylinas”. São equivalentes aos cavaleiros errantes da literatura da Europa Ocidental.
7 Russalka ou rusalka, é uma ninfa da água na mitologia Eslava, porém, para os russos, ucranianos e
bielo-russos, ela é muitas vezes tratada como uma sereia.
8 Lechie ou Leshy, é um espírito florestal da mitologia eslava, que protege os animais selvagens e as
florestas. Ele é, aproximadamente, ao análogo do homem selvagem da Europa Ocidental e os Basajaun do País
Basco.
você rezava em quatro direções para agradar o domovoy9 que morava no
armário.
Rose e Undine pararam no meio da escada, sentindo o perigo. Poderia
ouvir o início da raiva de Papa em qualquer lugar da casa, como água fervida
gritando dentro de sua panela.
Papa deu um aceno frágil, que foi o melhor que eu poderia esperar.
Minha resposta não o agradou, mas não o irritou ainda mais. Ele se virou para
minhas irmãs nas escadas.
— E vocês, garotas preguiçosas, garotas ingratas, garotas miseráveis, o
que estavam fazendo dormindo de manhã enquanto sua irmã trabalhava? —
Ele sacudiu sua bolsa de rublos; parecia o ranger de dentes de ferro. — Vocês
acham que me traz alegria pegar esse ouro contaminado dos cofres do teatro
de balé de Oblya? Vocês não devem me achar melhor do que um agiota Yehuli,
engolindo rublos sem se importar de onde vieram, quando eles poderiam estar
cobertos de veneno e sujeira? Devo rastejar sobre minhas mãos e joelhos sobre
as pedras do calçamento em busca de kopeks caídos? Devo polir as botas do
czar com minha língua? É isso que minhas próprias filhas me pediriam?
— Papa, por favor... — Undine começou, segurando o colar de pérolas
em sua garganta. Era um de nossa mãe.
— Silêncio. — Papa ergueu a mão. — Não fiz o suficiente por vocês,
minhas filhas vaidosas e ingratas, para mantê-las em sedas finas com suas
barrigas cheias? Eu peguei a maldição de Titka Whiskers por vocês, aquela
bruxa feia e ciumenta. Criei minhas filhas para não serem melhores? Devo
10 Kumys é um leite de égua acidificado e fermentado, muito apreciado em toda a região da Ásia
Central. Também é assim chamado quando preparada a partir do leite de camelo ou de mula.
— Muito obrigado, Sra. Vashchenko. — disse Fedir. Isso foi depois de eu
ter beliscado os dois lóbulos de suas orelhas e forjado uma visão em que o bater
de sua cabeça era apenas o resultado de seu colega de apartamento jogando
uma caneca nele enquanto ele dormia, e não de fato o presságio de uma febre
mortal, e também em que ele ganhava os próximos três jogos de dominó em
seu café favorito Ionik.
— Todos os outros médicos em Oblya cobram muito pelo seu trabalho, e
a maioria parou de atender a porta quando me vê pela caixa de correio. O Dr.
Bakay, da rua Nikolayev, mediu minha cabeça e me disse que eu tinha a
circunferência do crânio de alguém um pouco simples.
Não duvidei inteiramente do diagnóstico do Dr. Bakay, mas mesmo
assim meu estômago se apertou.
— Você pode vir me ver sempre que quiser, mas talvez da próxima vez,
para economizar seu dinheiro, deve tentar esperar para ver se algo está
realmente errado.
— Mas e se eu chegar muito tarde? — perguntou Fedir. Sua testa franziu
miseravelmente quando eu levantei minhas mãos de seus ombros.
— E se, quando eu chegar, não houver nada que possa ser feito?
— Então eu irei até você. — disse, ignorando a forma do meu pai na
soleira, alto e estreito como a primeira letra de uma frase. — Basta chamar por
mim, e eu irei.
Quando Fedir se foi, Papa varreu a sala, murmurando outro feitiço de
limpeza. Senti o peso de sua magia e sua raiva cair sobre mim, um manto frio,
e puxei a fita em volta do meu pulso. Estava escondida sob a manga do meu
vestido, mas ainda assim eu temia que um feitiço de nariz afiado pudesse
farejá-la.
Havia um certo tipo de salamandra que vivia em riachos de corrente
suave com configurações particulares de pedras de rio. Os tritões passavam a
vida inteira na mesma água, engrossando com musgo e mofo, e se uma única
pedra fosse sacudida para fora do lugar, eles morreriam. Papa era assim. Ele
podia sentir o menor dos distúrbios, uma fratura de um fio de cabelo em um
busto de mármore, uma dívida não paga, e ele o consertava e reassentava
imediatamente. Mesmo um segredo poderia deslocar as pedras no leito do
riacho de Papa.
— Você deveria se lavar, Marlinchen. — disse brevemente. Ele ainda não
havia me perdoado por Sevastyan e Derkach, apesar da quantia exorbitante de
dinheiro que eles pagaram. Cada hora desde sua visita tinha sido envolta em
sua fúria fria e silenciosa como um barbante em torno de salsichas. —, a sujeira
de nossos clientes está com você, e não acredito que o homem Ionik só tenha
alergia a camarão. Faça um banho no andar de cima. E então desça, e eu vou
checar você e suas irmãs.
Um sentimento ruim ferveu em mim, como o último pedaço de gordura
em uma panela.
— Papa...
— Vá, Marlinchen.
E assim fiz, subindo as escadas. Eu só tinha chegado ao patamar do
segundo andar quando encontrei Undine saindo de seu quarto. Tropecei para
trás, emitindo um ruído de choque. Eu a tinha visto pela última vez no jardim,
sentada ao lado de sua piscina premonitória, com uma cliente cujo rosto estava
virado. Suas pernas estavam esticadas como galhos de bétula nus e seu vestido
azul estava puxado até o joelho. A aba do chapéu da cliente estava inclinada
para baixo, traçando uma linha sobre a curva de sua panturrilha. A vários
metros de distância, Indrik olhava tristemente e comia um gole de chicória.
Havia um estranho mau humor em seus olhos negros que me irritava.
Agora Undine se ergueu com uma respiração afiada, seus olhos azuis
fogo frio.
— Saia do meu caminho. — ela cuspiu.
Eu abaixei minha cabeça e murmurei “desculpe”, mas minha irmã mais
velha não se mexeu.
— Isso é tudo culpa sua. — ela disse. — Meu último cliente tentou me
dar ingressos para o balé – caros, assentos de orquestra. Eu disse a ele que não
podia. Por sua causa.
A raiva gélida em sua voz me lembrou Papa.
— Eu não queria fazer nada.
— Eu deveria saber que você não era confiável. Você tem vinte e três anos
e ainda está tremendo de desejo pelo primeiro rosto bonito que vê? Rose e eu
nunca deveríamos tê-la levado. Você arruinou tudo para nós.
E então ela passou por mim, seu ombro batendo no meu com tanta força
que eu tropecei para trás, agarrando o corrimão para não cair nos degraus.
Ouvi minha irmã descer as escadas, engolindo minha respiração. A culpa
me espetou como espinhos. Ela estava certa; eu tinha feito isso, e agora
nenhuma de nós veria Bogatyr Ivan novamente. Essa história seria como todas
as outras que ficaram pesadas na minha barriga como um punhado de
sementes, estragando, incapazes de florescer.
Mordendo o lábio contra as lágrimas, entrei no banheiro e tranquei a
porta. Lá estava a banheira de porcelana, como uma ostra cortada ao meio, e o
espelho que brilhava tão bronzeado quanto um kopek molhado. Lentamente,
desabotoei meu vestido e o deixei cair no chão. O espelho parecia me olhar
com os olhos estreitos, e meu reflexo ondulou como água prestes a ferver.
Enquanto a banheira enchia, observei-me dobrar para torcer os
puxadores, para pegar meu vestido caído do chão, minha barriga dobrando,
meus seios balançando. A primeira vez que vi minhas irmãs se vestindo para
o balé, não consegui deixar de olhar para as linhas perfeitas de seus corpos e a
brancura imaculada de sua pele. Seus seios pareciam educados de alguma
forma, discretos; certamente eles nunca seriam rudes o suficiente para dividir
a costura de um corpete. Seus ombros eram finos, suas barrigas macias e
planas. Sempre imaginei que elas poderiam ser facilmente guardadas em um
guarda-roupa como um vestido branco engomado, enfiadas entre uma dúzia
de outros idênticos. Seu olhar percorreriam seus corpos; não havia penhascos
para se agarrar, nenhuma fenda para cair.
Eu sempre pensei no meu corpo como algo que precisava ser atacado e
brigado, apedrejado, imobilizado e machucado até a submissão, depois
amarrado como uma galinha e amarrado em um espartilho de barbatana de
baleia. Na minha infância desejei seios bem-educados e uma barriga prestativa,
cabelos dourados e olhos violetas. Procurei por feitiços que soprassem magia
em meu desejo. Meus olhos eram da cor de chá fraco e meu cabelo também,
oscilando sem entusiasmo entre loiro e castanho. Tirada com a minha pele, que
tinha um tom amarelado doentio, parecia que estava presa em uma fotografia
tipo estanho, em tom sépia e sem sorrir.
Mas eu só encontrei feitiços que poderiam drenar a beleza de seus alvos
como sangue de um animal de barriga cortada, e todos prometiam algum tipo
de acerto de contas horrível para seu conjurador ciumento, furúnculos
horríveis ou serem transformados em sapos.
A magia sempre foi assim: tinha partes inferiores feias. Querer qualquer
coisa era uma armadilha.
Na maioria dos dias eu não conseguia nem saciar minha própria fome. A
plenitude da minha barriga era insuportável, mas com dois dedos espetados
na minha garganta eu poderia fazer tudo desaparecer, voltando minha
indulgência como um disco riscado, desfazendo-o e me tornando limpa e vazia
e nova novamente.
Puxei a fita no meu pulso, nó sujo ainda segurando firme. No meu outro
pulso estava a pulseira de encanto da minha mãe. Eu a soltei quando entrei na
banheira, segurando-a acima da água espumante. Os encantos chacoalharam
como um saco de sortes a serem lançados. Uma vez que eu estava submersa
até a garganta, girei os botões e deixei meu corpo flutuar, meio suspenso. Meu
cabelo flutuava ao meu redor em tufos de destroços cor de areia.
Eu podia sentir a sujeira saindo de mim, o esmalte de cebola e óleo de
cozinha, as névoas assustadoras de Fedir Holovaty. Ainda segurando a
pulseira de encanto da minha mãe com uma mão, esfreguei entre as minhas
pernas até minha pele doer, desejando poder lavar a memória de Sevastyan de
mim também. Todo o meu desejo condenado e tolo. Meu corpo transformou a
água do banho em um cinza transparente.
Acariciei a pulseira da minha mãe, a corrente deixando marcas em meus
dedos úmidos. Havia oito amuletos e eu conhecia todos eles apenas pelo tato:
a pequena ampulheta cheia de areia rosa de verdade, a bicicleta em miniatura
com rodas que realmente giravam, a baleia do tamanho de um dedal com uma
boca que se abria em uma dobradiça, o sino que realmente tocava. Havia uma
caixa dourada dentro da qual uma nota de papel estava dobrada cem vezes,
cabendo tão bem que eu não conseguia retirá-la, mesmo que eu tivesse ousado
o suficiente para tentar. Eu não sabia o que o bilhete dizia, se dizia alguma
coisa. Havia um apito que cantava baixinho quando você soprava nele, e uma
coruja com pequenas pérolas nos olhos. Havia um livro que se abria e tinha os
nomes de minhas irmãs e meu gravados em suas páginas douradas, junto com
os anos de nosso nascimento. Coloquei o bracelete sobre meu rosto, a corrente
estendendo-se da minha testa até a curva do meu nariz, passando pelo arco
dos meus lábios, o último pingente pendurado na minha boca.
Eu forcei a pequena trava aberta com a minha língua. Eu provei todos os
nossos três nomes, picante e afiado como um pedaço de carne sangrenta. Esse
era o sabor do ouro molhado.
Logo eu estava limpa e minhas mãos estavam podando. Saí da banheira
e me sequei e observei a água escorrer, a água turva espiralando para baixo.
No meio do caminho, os canos fizeram um protesto engasgado, e a água parou
de circular.
Parei de enxugar meu cabelo. Ajoelhei-me ao lado da banheira e
mergulhei minha mão na água borbulhante. Quando o puxei novamente, havia
um pequeno monte de areia preta na palma da minha mão.
Uma respiração irregular saiu de mim. Eu não conseguia entender como
os canos tinham cuspido a areia em mim. Poderia ter sido arrancado da minha
pele, lavado do meu cabelo? Eu não ia ao calçadão há anos, muito antes de
nossa mãe morrer. Às vezes eu podia ouvir as buzinas do rebocador no jardim,
ou sentir o cheiro do ar salgado entrando pela minha janela à noite, ou ver as
gaivotas circulando a torre de madeira podre de nossa casa.
E então o pânico me atingiu como um fósforo. O que Papa pensaria se o
encontrasse? Ele saberia que tínhamos ido embora e estaria certo, mesmo que
minhas irmãs e eu nunca tivéssemos ousado vagar até a costa em nossas saídas
clandestinas. Ele inventaria alguma punição ainda pior do que já havia feito, e
eu não conseguia nem imaginar o que seria, e isso, o desconhecimento, me
aterrorizava até a medula.
Apressadamente, peguei toda a areia e a fechei dentro do estojo
compacto que estava na beira da pia. Dentro dele se misturaria com o pó
branco do rosto de nossa mãe e arranharia o pequeno espelho manchado de
ferrugem, mas pelo menos estava escondido. Fechei meu dedo ao redor do
compacto, sentindo suas saliências. Era inconfundivelmente pesado agora,
como o pedaço de obsidiana polida que Papa usava como peso de papel.
O medo era um pulso alado em minha barriga. Havia pedras do rio se
movendo sobre mim.
Como se convocado, os passos de Papa ecoaram pelo chão. Eu sabia que
ele estava andando pelo saguão, seguindo sua rota superficial do relógio de
pêndulo até a soleira da sala de estar, depois de volta. Coloquei minhas roupas
e a pulseira de encantos da minha mãe e corri para o meu quarto. Meus
pensamentos estavam dispersos como folhas. Abri meu guarda-roupa e enfiei
o compacto dentro de um dos meus sapatos de cetim.
Um par de olhos vermelhos piscou para mim debaixo da cama. Penteei
freneticamente meu cabelo molhado enquanto descia as escadas novamente.
Undine já estava empoleirada na chaise longue, seu rosto pálido e
abatido. Quando me viu, seu olhar se estreitou como uma lâmina de faca. A
cabeça de Papa girou, os olhos me prendendo na parede.
— Vá buscar sua outra irmã, — Papa disse — e faça isso rapidamente.
A corrente de ar já está esfriando.
Eu balancei a cabeça e sem palavras fui para a despensa, meu coração
batendo na minha garganta. O cheiro de manjericão estava vazando por uma
fresta da porta. O peso desse novo segredo era como um vestido ensopado;
senti-o agarrado a mim a cada passo.
Rose estava curvada sobre a mesa, faca de açougueiro na mão, cortando
os galhos de arruda. Quando me ouviu, ela se virou sem largar a faca e disse:
— Papa nos quer, não é?
— Sim. — consegui dizer, não confiando em mim mesma com mais
palavras. O segredo estava picando minha língua como uma pitada de páprica.
— O que há de errado, Marlinchen? — Rose veio até mim, franzindo a
testa. — Você não tem nada para se preocupar com a corrente de ar... Tem?
— Não! — Eu disse, o calor subindo em minhas bochechas. — Não, claro
que não.
Minha objeção foi muito veemente. A testa de Rose franziu.
— Você me diria primeiro, não é? Antes de Papa, é claro, mas também
antes de Undine.
— Eu nunca diria a Undine nada que não tivesse orgulho de falar em voz
alta — eu disse, e Rose finalmente sorriu, os olhos violetas de nossa mãe se
enchendo de afeição. Ela colocou a faca na mesa, deu um tapinha nas minhas
bochechas e me seguiu pelo corredor.
Papa estava inclinado sobre Undine agora, segurando o frasco tampado
em seu punho. Quando criança, minha irmã mais velha era a que chorava mais
alto e por mais tempo, a que protestava em lágrimas contra toda injustiça
percebida. Os anos haviam sangrado a maior parte dessa petulância dela, mas
ainda havia uma clara indignação até mesmo em seus silêncios. Sua fúria se
elevou em vapores, como vapor subindo de água fervida. Meu ombro ainda
doía onde ela me empurrou.
— Abra a boca, Undine — Papa disse.
Seus lábios rosados se separaram, os olhos vacilando com raiva. Ele
derramou um pouco do líquido vermelho-preto em sua língua, e ela fechou a
boca e engoliu.
Segundos passaram por nós, o relógio de pêndulo mantendo seus
Tempo. Quando o ponteiro dos minutos deu um círculo completo, Papa deu
um breve aceno de cabeça, e Undine soltou um suspiro e se levantou e saiu da
sala imediatamente. Quando ela passou por mim sem palavras, vi que seus
lábios e língua estavam tingidos de um vermelho berrante.
— Agora você, Rosenrot. — Papa acenou para ela em direção a ele.
Eu o observei derramar um gole da poção em sua boca, sentindo meu
cabelo úmido escorrer pelo meu pescoço e cair no tapete. A mancha escura de
água cresceu e cresceu. Rose lambeu os lábios vermelhos.
Depois de outro momento, nosso pai assentiu.
— Bom. Você pode ir.
Ela foi, e éramos apenas Papa e eu. As abas de suas bochechas
estremeceram sob sua barba. Quando me aproximei dele, pude sentir em seu
hálito o cheiro do café da manhã que preparei para ele: mlyntsi com requeijão
e seis ovos cozidos, kasha11 com manteiga e o último de nosso kvass de amora.
Meu próprio estômago vazio começou a revirar.
Ele segurou meu queixo e inclinou minha cabeça para trás e disse: — Eu
confio em você, Marlinchen. Você acima de tudo.
A corrente de ar tinha o mesmo sabor de todas as vezes, como enxofre e
cinzas, como a ponta de um cachimbo de tabaco se a lambesse. Lágrimas se
acumularam em meus olhos enquanto engoli, mas Papa não percebeu e fiquei
muito feliz, porque desta vez eu estava com mais medo do que nunca.
A poção de Papa era um teste para ver se mantivemos nossas coxas sem
sangue, nossas virgindades intactas. Sempre tomava cuidado quando me
tocava para nunca deixar meus dedos deslizarem muito para dentro, para
nunca quebrar o que Papa queria intacto. Ele também nos contou o que
11 Kasha é um prato de cereais cozidos, muito popular na Rússia e países vizinhos. Os cereais, que
podem ser simples, como arroz ou painço, ou preparados como semolina ou flocos de aveia, são fervidos em
leite, por vezes misturado com água.
aconteceria se bebêssemos a poção quando estivéssemos arruinadas: nós a
vomitaríamos junto com nossos fígados, e então ele nos mostraria nossos
próprios órgãos nus como prova de nossa decepção, prova de que éramos
filhas ingratas e debochadas que manchariam o nome Vashchenko.
Papa mediu sua própria virtude por nossas virtudes; nosso patronímico,
disse ele, não poderia ser nobre e limpo se houvesse partes enegrecidas e
pútridas. Eu sabia que um único galho podre mataria uma árvore inteira, então
ele estava certo sobre isso.
Mas eu não sabia o alcance de seu feitiço, quantas mentiras a poção
poderia me arrastar. Isso nunca me fez cuspir meus outros segredos antes, mas
nenhum jamais floresceu tão rápido e brilhante em minha mente, como
calêndulas em flor.
O relógio marcava seu ritmo implacavelmente constante.
Finalmente, Papa me soltou. Levei a mão à boca e limpei; meus dedos
ficaram manchados, como se estivessem com sangue. Minha bochecha doeu
onde suas unhas tinham cavado seus pequenos buracos. Minha fita ainda
estava no meu pulso, meu compacto ainda estava dentro do meu sapato, e
Sevastyan ainda estava seguro no cofre da minha mente. Meu estômago
embrulhou, mas nada ameaçou voltar, muito menos os órgãos. Eu quase
estremeci no chão de alívio.
— Você sabe por que eu tenho que fazer isso, Marlinchen, não sabe? —
Papa perguntou, devolvendo o frasco vazio ao bolso.
Outra armadilha colocada aos meus pés.
— Sim, Papa.
— A cidade tirou muito de mim. O czar me obrigou a leiloar minhas
terras para comerciantes estrangeiros e mercadores ardilosos, e vê-los
construir apartamentos, fábricas e bancos municipais sobre elas. Eu tive que
assistir a czarista atrair estrangeiros para Oblya como um pastor chamando seu
rebanho. Eu tive que vê-los rasgar a bela estepe... você sabe o que eles
costumavam dizer sobre Oblya? Que era o lugar onde dois oceanos se
encontravam: havia o próprio mar, e depois a estepe, e as carroças cobertas que
o navegavam eram como navios com velas brancas. Mataram um oceano
inteiro, Marlinchen. E há tantas pequenas mortes também. Quando as fábricas
de fiação de algodão arrancaram as pastagens, levaram consigo as últimas
raposas da estepe. Nós, do Conselho de bruxos, costumávamos fazer tantos
feitiços com a pele, olhos ou dentes de uma raposa da estepe. Eu até usei sua
cauda uma vez para um ritual de limpeza, quando falei sobre ela, a cauda voou
e varreu a sujeira das lareiras e abajures!
Todos tínhamos visto o rabo de raposa de Papa. Eu ainda a usava todo
domingo para limpar a sala de estar. Mas não ousei lembrá-lo disso. Eu ainda
estava pendurada em seu poço de espinhos.
— Mas o pior de tudo é o quanto eles amam. — A mão de Papa estava
nem meu rosto novamente, polegar acariciando minha bochecha. — Você
pensaria que esta cidade estava sempre de férias, com a forma como o ar
noturno está sempre cheio de música e risadas e a fumaça do tabaco flutuando
dos cafés. Os trabalhadores tropeçam bêbados de albergues para antros de jogo
com sorrisos vertiginosos em seus rostos. Tenho que ouvir a alegria deles em
cinco idiomas. E o teatro de balé, o teatro de balé miserável. Quantos rublos
gastaram para erguer aquela monstruosidade, para atrair artistas de toda
Rodinya, para vesti-los com penas e ouro? Perdi tanto, Marlinchen, você
entende isso. O mínimo que eles podem fazer é não dançar sobre as cinzas de
tudo isso.
— Sim, Papa — eu sussurrei.
Ele agarrou meu rosto novamente, segurando-o mais apertado do que
antes, e então beijou minha testa suavemente.
— Você sempre foi uma filha doce e obediente, melhor que suas irmãs.
Às vezes acho que sua mãe a fez apenas para cuidar de mim quando ela se foi.
Então você entende que eu tenho que mantê-la segura, e manter os ratos longe
da porta. Eles podem se esgueirar pelas frestas; homens Yehuli, dançarinos de
balé, o pior de toda esta cidade degradada. Mas o feitiço que lancei é bom. Se
alguém do teatro tentar cruzar o limiar, eles se transformarão em uma massa
de víboras, assim como aquela bruxa infernal Titka Whiskers. Eu nem os
comeria, Marlinchen. — Ele se inclinou para perto. — Isso me faria mal ao
estômago.
Por fim, baixou a mão. Esperei e esperei, sem respirar, para ter certeza de
que todas as adagas nas minhas costas estavam embainhadas, para ter certeza
de que não havia aço em seu sorriso. Eu sabia que tinha sido liberada quando
Papa se virou e caminhou em direção ao saguão, mas não corri para o meu
quarto até não poder mais ouvir seus passos no chão.
E assim, com os cabelos soltos nos ombros, fui preparar o jantar do Papa:
o fígado de galinha com cebola e salsa douradas e um pouco de vinho
apimentado, porque achei que poderia fazê-lo adormecer mais rápido ou
dormir mais. Derramá-lo sobre o frango fez a panela chiar com vapor e
gotículas de gordura saltaram para mim e parecia a coisa mais perigosa que eu
já tinha feito.
O tempo todo eu estava respirando superficialmente, imaginando se
estava derramando meu segredo com o vinho. E se Papa pudesse provar meu
engano como um crescimento de podridão ao colocar a comida na língua?
Servi o fígado com kvass, meus dedos tremendo. Quando levantei a bandeja,
estava quase insuportavelmente pesada, e minhas pernas estavam queimando
quando cheguei ao Papa na sala de estar.
— Obrigado, Marlinchen — ele disse, como sempre fazia, e pegou seu
garfo. Fechei os olhos quando ele deu sua primeira mordida.
No silêncio, ouvi-o mastigar e molhar os lábios. Eu o ouvi beber o kvass
e depois colocar o copo de volta na mesa de pés fendidos. Eu não abri meus
olhos novamente até que ele perguntou:
— Tem mais pão?
Piscando, olhei para seu prato. Minha mentira estava lá, como pedaços
de casca de ovo, ou um fio de cabelo, mas ele havia comido sem perceber.
— Sim. — Consegui e então fui para a cozinha para cortar mais pão preto
com manteiga.
Finalmente, o jantar acabou e Papa foi dormir. O céu era da cor do sangue
jorrando sob um prego. Eu comi duas fatias do pão preto e cada mordida doía
para engolir.
No andar de cima, Rose estava esperando no meu quarto. Ela lutou com
meu cabelo por quase meia hora antes de conseguir prender metade dele em
uma rede precária de tranças que parecia um monte de espinhas de peixe
empilhadas em um prato. O resto enrolado nas minhas costas, pesado como
uma toalha de mesa. Peguei meu vestido rosa de novo, e meus sapatos sujos, e
apertei minha pulseira de ouro. No outro pulso eu usava minha fita rosa,
aquela que Sevas havia devolvido para mim.
Rose me ajudou a amarrar meu espartilho, e dentro do meu corpete, bem
entre meus seios, ela colocou o compacto de concha de mamãe.
— Destrua isso, Marlinchen. — ela disse, segurando meu queixo em sua
mão. — Não seja egoísta.
Eu balancei a cabeça, incapaz de falar. O metal já estava começando a
esquentar contra minha pele.
— Você vai ter que levar isso também, ou então você não será capaz de
encontrar o caminho de casa. — Rose empurrou para mim um sachê do
tamanho de um punho fechado, o cordão bem apertado. — Solte um deles a
cada poucos passos, e então siga a trilha de volta. Frutas de zimbro deixam as
manchas mais negras. — Ela amarrou o sachê no meu pulso com uma fita
vermelha. — E isso também. — Ela pegou um pequeno frasco e amarrou este
com uma segunda fita em volta do meu pescoço. — É uma tintura para
bravura. Tudo que você precisa fazer é cheirá-lo.
Sua bondade me atingiu com uma guinada tão vertiginosa que eu não
pude deixar de me inclinar para frente e abraçá-la, o sachê pressionado entre
nossas clavículas. Respirei o cheiro de erva-cidreira e alecrim, e um cheiro de
hortelã que veio como se fosse uma reflexão tardia. Quando a soltei, eu já podia
sentir o gosto de sua queimação no fundo da minha garganta, como uma
lufada de ar quente, e então, quando atingiu minha barriga, acalmou toda a
agitação nervosa. Eu me senti como depois de vomitar: tudo limpo e vazio, e
minha mente afiada e clara como vidro.
— Obrigada. — sussurrei.
Rose beijou minhas duas bochechas.
— Volte às três badaladas do relógio, Marlinchen e lembre-se: nada em
suas mãos ou bolsos.
Eu balancei a cabeça.
— Uma noite — ela disse, sua voz grave agora. — Uma noite para
satisfazer esse desejo tolo, e depois nada mais.
Eu entendi que ela não quis dizer isso com crueldade, mas tudo que
conseguia pensar era em como eu havia alimentado nossa vaca leiteira com
suas ameixas açucaradas favoritas antes de matá-la para o jantar de Papa e
esperava que pelo menos ela ainda pudesse sentir o gosto do doce em sua
língua quando cortamos sua garganta.
Sem a tintura de minha irmã, eu poderia ter mais medo de cruzar a
soleira, da porta se fechar atrás de mim, do feitiço de Papa enchendo o ar. Eu
estava com medo, também, que Undine pudesse me ver sair, embora não fosse
tanto o medo de suas palavras maldosas ou seus tapas pungentes. Era de que
ela pudesse tirar a areia preta de mim e usá-la para si mesma. A areia preta era
o único segredo que eu já tive. A única coisa que pertencia a mim e só a mim.
As canções de ninar cantadas dos grilos guiaram minha corrida pelo
jardim, através das raízes e trepadeiras emaranhadas. Abri o portão
enferrujado e me joguei na rua, e quando ele se fechou atrás de mim, pude
ouvir o trinco de metal cantar.
Eu tinha feito isso. Eu tinha partido, e agora as estradas negras de Oblya
se estendiam à minha frente como rolos de seda desenrolados. Respirei a erva-
cidreira e abri o sachê em volta do meu pulso, deixando a primeira das bagas
de Rose cair sobre os paralelepípedos. Aterrissou bem na sombra gradeada de
nossa cerca.
Meus primeiros e segundos passos foram tão leves que mal senti o chão
sob mim. E então, antes que eu percebesse, estava no final da nossa rua e
virando na esquina principal que levava ao teatro.
Poças de luz de lamparina cobriam a rua como rublos caídos. Vitrines
brilhantes e cafés com toldos verdes passavam por mim, cuspindo fumaça de
tabaco e risos. Homens em grupos de quatro ou cinco galopavam pela estrada,
seus rostos brilhantes e úmidos, seus olhos brilhando com a ânsia de um
cavaleiro, de um ainda não-bogatyr, em seu primeiro passeio.
Desviei-me cuidadosamente deles, mas eles nem pareciam me notar. A
música tocava de portas abertas e janelas rachadas do segundo andar. Apenas
na rua Kanatchikov, contei quatro idiomas. Se não fosse pela tintura de Rose,
eu poderia ter congelado lá, palavras estrangeiras pingando em meus ouvidos,
tentando determinar quais consoantes e sons de vogais significavam perigo.
Mas eu tinha a magia dela, e mais, tinha um objetivo definido na minha
frente, e apenas uma noite para provar o doce que minha língua queria, para
preencher a fome dolorida em minha barriga. Então, mantive um passo rápido
no saguão, perdendo uma baga de zimbro a cada três passos.
Por fim, havia o teatro, que circundava a praça como um belo bracelete,
sua fachada branca tão brilhante quanto um osso de galinha cozido. A fonte
borbulhava alegremente para ninguém; cheguei tarde demais e a multidão se
foi, as portas se fecharam. Mesmo respirando a tintura, senti um pouco de
pânico se soltar em mim e deslizar pelos entalhes da minha espinha.
Rapidamente andei pelo pátio, passando pela fonte, direto para o teatro,
e então virei pelo beco à esquerda. Os paralelepípedos estavam escorregadios
e empoçados com a luz oleosa, apenas o suficiente para eu ver a porta ao lado
do edifício. Minha memória pintou silhuetas na parede: lá estava Sevastyan,
curvado e vomitando, e eu agachada ao lado dele, os dois rostos negros e sem
feições. Pisquei e nossos bonecos de sombra desapareceram, e eu estava
olhando apenas para a porta fechada pela qual Sevas e Aleksei haviam
passado.
Eu tinha decidido esperar do lado de fora e estava praticando o que diria,
mesmo sabendo que havia uma boa chance de minhas palavras se dissolverem
na minha boca como um cubo de açúcar. Então, sem pensar que funcionaria,
tentei a maçaneta.
A porta se abriu facilmente. Dei um pequeno suspiro de choque e pulei
para trás, e pela fresta vazou uma luz dourada impressionante e a onda de
música orquestral. Com muito cuidado, atravessei a soleira, banhando apenas
a ponta do meu sapato e depois o resto de mim naquele calor âmbar.
As cortinas de veludo carmesim ondularam. Eu estava meio camuflada
na sombra do camarote, onde o gradonalchik de Oblya, o chefe da cidade,
vigiava a aba de seu bigode abundante. Depois de uma batida, me abaixei mais
atrás de um dos pilares de mármore. Deste ponto de vista, eu podia ver apenas
uma lasca do palco, apenas a madeira brilhante como mel e os chinelos brancos
das donzelas da neve.
Então vieram os oboés e os tambores rosnando e lá estava Ivan,
passeando até o Dragão-Czar. Mesmo sabendo como tudo terminaria, que o
Dragão-Czar morreria, prendi a respiração e meu coração batia como kopeks
em uma lata. Espiei por trás do pilar, me esticando na ponta dos pés.
O peito nu de Sevastyan estava brilhando, seus ombros enrolados e
prontos. Nunca me senti tão corada com a violência luxuriosa de tudo isso, não
quando eu estava sentada com os punhos cerrados entre minhas duas irmãs
ou mais tarde naquela noite. Nunca antes um calor tão intenso subiu em
minhas bochechas enquanto eu assistia a lâmina de Ivan golpear rápido como
uma língua e o Dragão-Czar desmoronar como um pinheiro negro atingido
por um raio.
Mordendo meus dedos, desejei mais sangue do que apenas o tecido de
rubi espalhado sobre a falsa ferida do czar. Eu queria ver o Ivan com uma
espada grossa com sangue real, a viscosidade e o brilho das cerejas cozidas.
Queria sentir o cheiro úmido de cobre no ar. Aquele anseio febril me puxou no
tempo, como se eu fosse uma marionete em uma corda. O resto do espetáculo
passou por mim sem perceber: os beijos mímicos de Ivan e da Czarina, a
Celebração das Donzelas da Neve e a ereção de Oblya propriamente dita, o
horizonte pintado rolando atrás deles e todas as flautas trinando alegremente.
Finalmente, tirei o nó do dedo mastigado da boca.
Quando as cortinas se fecharam, minhas bochechas ainda estavam
queimando e não conseguia ouvir nada além do pulso maníaco do meu
próprio sangue. Mas ver o público se levantar me acordou; eu seria pisoteada
se não me movesse, e de repente me lembrei do metal pesado entre meus seios.
Virei-me para a porta, mas a multidão já estava pressionando.
O pânico sacudiu meus dentes. Eu não conseguia sentir o cheiro da
tintura de Rose. Ah, pensei quando o cotovelo afiado de uma mulher me
acertou nas costelas. Eu cometi um erro grave.
E então o som do meu nome arqueou-se acima do calor e do barulho.
Virei-me e vi Sevastyan trotando pelos degraus que levavam para fora do
palco, e pensei que o tinha imaginado dizendo Marlinchen até que a multidão
se abrisse para ele e ele estivesse bem na minha frente.
Ele ainda estava pintado de ouro e vestindo seu manto de penas, e seu
peito ainda estava arfando, mas não havia confusão de vodca em seu olhar,
nada entre seus olhos e os meus. Eu me senti estranhamente nua então, embora
ele fosse o único com os seios nus. Senti-me encarado até a medula, olhado de
uma forma que as pessoas só olhavam para minhas irmãs. Era como se alguém
estivesse pescando moedas em uma fonte e finalmente tivesse fechado os
dedos em torno daquela que era eu.
Com as bochechas rosadas, eu desenterrava as palavras do fundo da
minha barriga.
— Eu preciso te contar uma coisa.
— Não consigo ouvir nada quando estamos aqui. — disse Sevastyan. Já
três mulheres tinham parado para olhar para ele, suas bocas destrancadas e
abertas. — Venha comigo.
Ele se virou, e eu estava tão entorpecida com o choque que não pude
fazer nada além de segui-lo através da multidão em declínio. Perfume e
fumaça de tabaco tornaram o ar nebuloso, e o cheiro da erva-cidreira de Rose
ficou cada vez mais fraco. Comecei a pular como um coelho ouvindo um galho
estalar, e com uma contração de instinto de pânico, estendi a mão e agarrei a
capa de penas de Sevastyan.
Ele olhou para mim, piscando de surpresa, e eu o soltei novamente com
um rubor vicioso. Mas ele leu o medo em meu rosto tão calmamente quanto
um corretor lê o preço do trigo no relatório semanal da bolsa, e então pegou
minha mão na dele.
Eu esperava que ele não pudesse ouvir o barulho abafado que fiz
enquanto me conduzia pelos degraus, e atrás da cortina fechada, para um
corredor estreito ladeado por pequenas portas. Ele parou na frente do que dizia
seu nome e abriu, então me puxou para dentro atrás dele.
No momento em que consegui tirar minha mão, minhas palmas estavam
escorregadias. Um pouco dele estava se infiltrando em mim, como pequenos
brotos verdes. Eu vi por trás das minhas pálpebras a mancha de uma memória
transparente e breve: a fivela do cinto de alguém brilhando. Uma película de
suor gelou minha testa. Se eu fosse tocada por tempo suficiente, segurada com
força suficiente, minha magia se agitava e me mostrava coisas, não importa o
quanto eu apertasse meus dentes contra ela.
Era uma sensação horrível, tirar segredos como sangue, sem a pessoa
nem saber que a agulha estava nela.
— Eu nunca tive uma garota que me fez parecer tão repugnante antes. —
disse Sevastyan.
Estávamos no mesmo camarim que eu tinha visto na minha primeira
visão, o espelho boudoir lançando nossos reflexos de volta para nós.
— O quê?
— Você me soltou tão rápido que pensei que poderia estar machucando
sua mão, mas agora me pergunto se você me acha repugnante.
— Não, eu...
— E você estava tão ansiosa para me tirar de sua casa naquele dia, você
e seu pai. Não posso deixar de concluir que seu estômago se revira só de me
ver. Eu sei que não causei a melhor das primeiras impressões, vomitando em
seu sapato em um beco semi-iluminado, mas...
— Não — eu consegui dizer, quase tropeçando em apenas uma palavra,
bochechas furiosamente quentes. — Eu não acho você repugnante. Eu não
queria que você fosse, mas meu pai ficou furioso. Você não sabe como são as
raivas dele. E desta vez, foi a minha magia que me afastou. Não quero drenar
seus segredos de você.
Sevas apenas olhou para mim, uma alegria brilhante em seus olhos azuis.
Ele afrouxou o manto de penas e o deixou cair aos seus pés.
— Bem, eu estou feliz em saber que não repudio você.
Se ele soubesse o que realmente estava passando pela minha mente
quando eu estava com ele na despensa de Rose, ele me expulsaria do teatro por
obscenidade. O pensamento só aprofundou meu rubor.
Sevas começou a mexer na tinta dourada em seus ombros e peito, a laca
descascando como ferrugem. Onde um pouco dela se desprendeu, pude ver o
início de tinta preta, símbolos rabiscados ao longo da linha de sua clavícula,
descendo pelo antebraço, nas costas da mão. Apertei os olhos para eles, por um
momento todo o meu pânico afobado desaparecendo, e perguntei:
— O que são elas?
— Bênçãos. — disse ele, e passou o polegar sobre a omoplata. — Algumas
delas, pelo menos. Minha mãe queria que eu levasse uma cópia do livro
sagrado comigo quando eu viesse para Oblya, então disse a ela que me
comprometeria e, em vez disso, colocaria suas orações favoritas em mim.
Quando voltei da loja de tatuagem, ela jogou o livro na minha cabeça.
Eu podia reconhecer as cartas das vitrines do bairro Yehuli.
— Por que…
— Porque o tatuador era um homem Rodinyano que errou nossa palavra
para o céu? — Um sorriso puxou um canto de sua boca. — Não, estou apenas
brincando. Mais provavelmente porque meu povo tem proibições de pintar
sua pele. Mas quase não há nada na vida que valha a pena fazer que não deixe
alguém com raiva. Eles dizem que não vão enterrá-lo em um de nossos
cemitérios, mas por que deveria me importar com o que acontece com meu
corpo depois que eu morrer? Cozinhe meu coração e fígado se tiver um desejo
especial pela carne dos homens Yehuli, embora eu ache que seria um pouco
louco com todos os meus anos de dança.
Enquanto falava, puxou uma blusa branca pela cabeça e abotoou-a no
pescoço. Eu não pude evitar que minha boca se abrisse um pouco, tentando
equilibrar o humor em sua voz e o brilho de brincadeira em seu olhar enquanto
ele falava dessas coisas sangrentas. Vi a espada de madeira de Ivan atravessada
no boudoir; de tão perto, parecia ainda mais obviamente um adereço, a pintura
prateada não oferecendo nada da luminância do aço real. Sevastyan passou os
dedos pelo cabelo, desgrenhando-o com intenção cuidadosa.
Então ele começou a tirar as meias.
— Espere — engasguei. — Eu posso ir...
Ele olhou para cima, sobrancelhas arqueadas.
— Eu não tenho muito de minha modéstia para preservar, Sra.
Vashchenko, então não deixe por minha conta. Mas se é sua propriedade que
você está preocupada, sinta-se à vontade para dar meia-volta.
Eu fiz, meu rosto tão quente quanto um fogão. De costas para ele,
sussurrei:
— Marlinchen.
— Marlinchen. — disse ele. Sua voz soava estranha quando eu não
conseguia ver seu rosto, de alguma forma mais quieta, mais parecida com o de
um menino do que de um homem. — Eu não esqueci. Mas desde que comecei
a me perguntar se me desprezava, pensei que poderia preferir que eu me
dirigisse a você com alguma formalidade.
— Não. — eu disse, ainda olhando com a máxima concentração para a
parede. — Existem três Sra. Vashchenkos, e apenas uma delas sou eu. Sempre
que ouço, sempre acho que alguém está perguntando pelas minhas irmãs.
Ouvi Sevas respirar fundo.
— Você pode se virar agora, se quiser.
Com as bochechas ainda queimando, me virei. Sevas agora estava
vestindo calças pretas, sua meia-calça cor de pele enrolada e abandonada em
seu boudoir. Olhando para ele, a bela linha de sua boca, o azul claro e brilhante
de seus olhos, todo pensamento racional fluiu de mim.
— Estou realmente feliz em ver seu rosto novamente, Marlinchen —
disse ele. — Eu não tinha certeza de que o veria.
A suavidade e incerteza em sua voz trouxeram uma lembrança: a mão de
Derkach se fechando sobre seu joelho. Isso me lembrou que eu tinha vindo ao
teatro com um propósito. Respirei, provando a erva-cidreira da tintura de Rose
e deixando a coragem vazar em meu estômago, e disse:
— Eu realmente tenho algo para lhe dizer.
Sevas assumiu um olhar solene.
— Prossiga.
De repente, minhas palavras coagularam como creme ruim. Ele pensaria
que eu era uma tola, talvez uma louca, uma bruxa com seus modos do Antigo
Mundo, uma escrava da loucura carcomida por traças de seu pai. Isso é o que
os outros Oblyans pensavam de nós, quando eles não estavam olhando para
baixo dos vestidos de minhas irmãs, e até mesmo às vezes quando estavam.
Sua curiosidade degradante os atraiu para a nossa porta, uma magia que às
vezes parecia ainda mais poderosa do que o medo que meu pai tentava incutir
neles.
Para as mulheres, éramos histórias de festa, fios girados entre rostos
próximos. Para os homens, éramos conquistas imaginadas, uma paisagem
onírica onde eles representavam suas fantasias mais perversas, aquelas que
nunca infligiriam as suas doces e coradas esposas mortais. Perguntaram a mim
e a minhas irmãs se fornicamos com nosso pai, ou uma com a outra, e o
pensamento pareceu deixá-las perversamente excitadas. Eu tinha visto tantos
bigodes ficarem úmidos de suor enquanto os homens separavam minha
resposta com os dentes, mordendo os pedaços luxuriosos. Se eu corasse, era
tão bom quanto uma confissão e mais pano para seus sonhos vulgares.
Às vezes, eu pensava em lhes dizer o que eles queriam ouvir, recitando
todos os detalhes de mau gosto que eu já podia ver passando por trás de seus
olhos. Às vezes, pensava em contar a eles o que realmente acontecia depois que
eu me arrastava para a cama à noite: como eu me imaginava cortando meus
mamilos com a tesoura de jardinagem de Rose, dois cortes perfeitos para que
caíssem como pétalas de flores, sem sangue e cor-de-rosa. Imaginava-me
puxando a faixa de carne branca ao redor da minha unha, descascando-a em
espirais como casca de batata, até que toda a minha mão estivesse enluvada
em vermelho. Caí sobre mim uma pequena violência atrás da outra, dentro do
bunker seguro da minha mente. Concluí que provavelmente também os
excitaria; às vezes até me sentia escorregadia sob os lençóis.
Mas Sevas não estava olhando para longe de mim, embora certamente
tivesse passado muito tempo desde que ele disse uma palavra, e meu rosto
devia estar vermelho e miserável. Pensei na maneira como ele falou sobre tal
coisas horríveis sem vacilar, e encontrei dentro de mim coragem para falar
também.
— Meu pai é um grande bruxo. — disse finalmente. — Ele pode encher
o ar com uma névoa tão fria que faz você congelar e tremer enquanto sua mente
fica preta de terror. Ele pode abrir seus lábios e ver as mentiras se acumulando
em sua língua antes mesmo que você as tenha dito em voz alta. Ele pode
construir paredes de vidro que você não pode ver, mas que nunca quebram, e
buracos no chão que você não percebe até cair neles. Mas ele gosta mais de
transformações. Quando Oblya era mais velho, ou mais novo, seus clientes lhe
pagavam sacas inteiras de rublos para transformar seus relógios de bolso em
relógios de água ou suas caixas de música em pássaros canoros. Ele até
transformou minha mãe em um pássaro, por acidente. Mas porque os
Rodinyanos vieram e começaram a transformar lamparinas a gás em elétricas
e transformar campos em fábricas, meu pai não vê mais clientes, apenas
minhas irmãs e eu. Ele diz que agora Oblya não tem apetite por seu tipo de
magia, e então ele odeia todos os Rodinyanos, e o teatro de balé ainda mais.
Ele ficou tão bravo quando você chegou que enfeitiçou a casa inteira, para que
ninguém do teatro pudesse cruzar a soleira novamente ou então seriam
transformados em uma massa de cobras pretas. Da última vez que uma bruxa
se transformou em víboras na nossa porta, meu pai as comeu. E como eu lhe
dei o elixir errado, tive medo de que você voltasse, sem saber da maldição, e
talvez eu nem percebesse até estar sentada no jardim e uma cobra preta
deslizando sobre meu sapato.
Eu estava tão sem fôlego quando terminei que tive que colocar a mão
contra a parede para me equilibrar. Sevas piscou uma vez, os lábios se
separando, e eu pensei que ele estava se preparando para rir de mim em seu
camarim. Depois que outro momento se passou, ele disse:
— Obrigado
— Pelo que?
— Por me avisar. — falou ele. — Por me tratar em tudo. Se seu pai é tão
poderoso e cruel como diz, foi gentil da sua parte não me mandar embora. —
Seu olhar subiu e desceu por mim, e então eu vi as pontas de suas orelhas
ficarem rosadas como o amanhecer. — Ele não deve saber que você está aqui
agora, no teatro de balé repugnante com seu dançarino principal mais
repugnante.
O medo me amarrou como um jugo, e nem mesmo a tintura de Rose foi
suficiente para detê-lo.
— Não, ele não sabe. Mas ele não é cruel; só se importa tanto com suas
filhas que o aterroriza, o pensamento de algo acontecer conosco.
Eu estava com muito medo de dizer mais, como se falar em voz alta
pudesse imbuir as palavras com uma magia que as tornaria reais. Às vezes, eu
me perguntava se meu pai mataria minhas irmãs e a mim, em vez de nos
perder para o mundo. Eu considerava, não raramente, que estaríamos mais
seguras em cinzas e em urnas.
— Então, agora que eu disse a você — continuei, minha voz vacilando —
e agora você sabe que nunca mais pode voltar. Posso lhe dar o elixir certo para
que Derkach não fique bravo. Minha irmã tem rascunhos para manter os lábios
dos homens longe da bebida...
— Eu não sou um idiota completamente sem esperança, sabe — disse
Sevas, e ele acenou para a garrafa de vidro sob o boudoir, ainda com alguns
dedos cheios de líquido claro. — Você ficará feliz em saber que não toquei em
nenhuma vodca desde que fui vê-la, e não apenas porque Derkach está mais
atento do que de costume. Não posso dizer que tenho muita experiência com
feitiçaria, mas não achei que respirar o cheiro de borragem impediria que meio
litro de vodca voltasse. E eu não queria levar Derkach irritadiço à sua porta e
irritar ainda mais seu pai.
Vários outros momentos se passaram antes que eu percebesse que ele
tinha me feito uma gentileza. Assim como eu não queria visitar a raiva de
Derkach sobre ele, ele não queria visitar a raiva de meu pai sobre mim.
Nós nos encaramos do outro lado do vestiário quente e estreito, ele quase
uma cabeça mais alto do que eu, nossas sobrancelhas molhadas de suor, meus
cabelos de bebê enrolados nas tranças cuidadosas de Rose. Tudo parecia
dourado e brilhante, como a luz do sol através de um pote de kvass, e a casa
do meu pai parecia tremendamente distante. Até o ar tinha um sabor doce e
meu desejo enrolou seus longos tentáculos para fora da minha barriga,
florescendo na luz e no calor.
Sevastyan abriu a boca, e minha respiração ficou presa enquanto eu
esperava por ele falar. E então houve um ruído arrastado seguido pela porta
se abrindo.
Era o outro dançarino, Aleksei, sua bochecha direita manchada com tinta
laranja ardente. Quando me viu, deu uma risadinha baixinha e disse: — Taisia
vai te estrangular com as meias dela.
— Não é assim. — Sevas disse, mas as pontas de suas orelhas ainda
estavam visivelmente rosadas. — Embora ela tenha me visto me despir.
— Eu me virei! — protestei. Sevastyan estava sorrindo agora, e Aleksei
estava rindo, alguma piada acontecendo no espaço ao meu redor, e mesmo que
se tornasse vapor entre meus dedos, não senti nenhuma borda afiada em seus
sorrisos. Nenhuma maldade tampada em seus olhos. Senti-me acolhida no
riso. Eu não conseguia me lembrar da última vez que fiz parte de algo tão
quente.
— Devemos sair daqui antes que Taisia comece a gritar e Derkach comece
a repreender. — disse Aleksei. Seu olhar se desviou vagamente para a minha
metade do camarim; se ele me reconheceu como uma garota Vashchenko, uma
bruxa, não fez menção a isso. — Sua, ah, amiga vem conosco?
Meu coração deu um pulo, e mesmo assim descobri que não conseguia
falar. Seria tolice ir, egoísta, tentar as horas que Papa dormiu, testar a paciência
de Rose. Ela devia que estar andando de um lado para o outro agora,
esperando que eu voltasse para casa. Senti que tinha que fazer um protesto
superficial, mesmo que isso fizesse meu estômago encolher como uma violeta
murcha.
— Eu não posso. — falei baixinho. — Meu pai...
Aleksei virou-se para Sevastyan com um olhar de grande consternação.
— Por favor, me diga que você não escolheu outra garota cujo pai pode
atirar com precisão.
— Ele era um veterano meio surdo do Exército Imperial Rodiniano e
possuía uma pederneira enferrujada. Sempre o drama com você, Lyosha. E
não, melhor ainda. O pai dela é um bruxo que deseja me transformar em uma
massa de cobras negras.
— Pensei que os bruxos em Oblya seguiam o caminho das rodas de fiar
— Aleksei disse, embora ele não parecesse particularmente incomodado com
a existência de um bruxo, ou com a perspectiva de seu amigo se tornar uma
massa de víboras. Seu sotaque, notei, era Rodinyano também. Todos os bruxos
em Rodinya tinham ido ainda mais longe.
— Seria apenas minha sorte, atrair a ira do último bruxo de Oblya —
disse Sevas, enquanto abotoava seu casaco. Ele se virou para mim. — Mas se o
seu pai bruxo não sabe que você saiu, qual seria o mal em ficar fora um pouco
mais?
Com isso, as palavras de Rose vagaram pela minha mente. Você deve
retornar às três badaladas do relógio, antes que o amanhecer levante as pálpebras de
Papa. Podia ser no máximo onze horas agora, e tantas horas se estenderam
entre mim e Papa acordar. Mas havia mil perigos que esperavam pelo caminho,
nas ruas de Oblya ou nos corredores de nossa casa, onde Papa poderia acordar
cedo, faminto, e passar pelo meu quarto vazio.
No entanto, nada disso parecia importar agora, todos os meus protestos
imaginados desaparecendo como fumaça. Rose me deu uma noite para
satisfazer meu desejo mais inebriante e tolo, quando mais eu teria essa chance
espalhada diante de mim como uma mesa cheia de guloseimas? Senti o cheiro
da erva-cidreira e do alecrim e a nota aguda de hortelã e ela desceu pela minha
garganta e endureceu na minha barriga, dando-me a coragem que minha irmã
havia prometido. Com ele estava o desejo entre minhas coxas, e quando eu
olhei para Sevastyan ele olhou para mim de volta.
A sala inteira ficou maravilhosamente nebulosa, como se tudo fosse um
sonho acordado. Se fosse realmente um sonho, era o mais doce que já tive, e eu
ainda não queria que acabasse.
Encontrei-me seguindo a curva do sorriso afiado e brilhante de Sevas,
meus próprios lábios se abrindo quando perguntei: — Para onde estamos
indo?
Capítulo 5
Oblya à noite estava tão cheia de cor e barulho que eu não sabia como
tinha tido medo dela.
Casais felizes de mãos dadas sob o brilho dos postes de luz. Os toldos
das vitrines estavam virados para cima nos cantos, como sorrisos. Bondes e
carruagens passavam ruidosamente, e os cavalos que os puxavam eram
alegremente enormes, como ursos de circo com colarinhos de babados.
Passamos pelos cafés e restaurantes da rua Kanatchikov e não me preocupei
mais com a possibilidade de as palavras estrangeiras me prenderem como
anzóis. Tantos olhos passaram por mim, mas nenhum permaneceu com
suspeita ou malícia. Calculei que devia ajudar o fato de estar entre Sevas e
Aleksei, que estavam me puxando pela rua, rindo em fiapos de fumaça pálida,
embora eu mal pudesse sentir o frio.
Oblya era assim todas as noites? Perguntei-me. Enquanto eu pressionava
meu rosto contra meu travesseiro e um bando de coisas sangrentas se aninhava
em minha mente, a cidade estava acordada e brilhante do lado de fora da
minha janela, arfando com uma vida que era incognoscível para mim?
Uma vez eu peguei uma grande pedra do nosso jardim e vi o que
pareciam ser centenas de pequenas criaturas se movendo e se contorcendo por
baixo, pequenas cobras com barrigas vermelhas e insetos compridos com mil
pernas em forma de foice, piolhos, percevejos e besouros com conchas
iridescentes. Fiquei com tanto medo que corri para dentro e me escondi no
andar de cima do meu quarto, e não fui ao jardim por quase um ano depois.
Não que tivesse tanto medo de cobras de barriga vermelha e centopeias;
elas eram inofensivas, eu sabia disso. Eu estava com mais medo de que cada
vez que andava pelo jardim, eu estava pisando em centenas de seres vivos sem
nem perceber.
E agora, vendo toda a alegria e júbilo diante de mim, fiquei igualmente
com medo de colidir com isso. Oblya não era um perigo para mim, mas senti,
por um momento de alongamento, que meu toque era feio e ruinoso. O que esta
cidade importava para uma bruxa de rosto simples com cabelos muito
compridos e apenas carnificina atrás de seus olhos?
Mas de alguma forma, os pensamentos se desprenderam de mim. Eu não
sabia se era a tintura de Rose ou simplesmente por que Sevas estava tão perto,
o calor de nossos corpos se misturando na fenda do espaço entre meu braço e
o dele. Ele me levou a uma taverna com janelas escuras e estreitas e dois
lampiões a gás gotejando em ambos os lados da porta, que estava aberta e
vazando fumaça preta.
Por um momento eu me encolhi, o peito se contraindo com um pavor
impreciso, e Sevas disse:
— A coisa mais perigosa lá dentro é a vodca. Ouvi dizer que uma vez fez
um homem ficar cego.
Aleksei riu e deslizou pela porta, desaparecendo na multidão de pessoas.
Ainda hesitei na soleira, pensando nas histórias de Papa sobre tavernas cheias
de estrangeiros que se tornavam bebedores de sangue depois do pôr-do-sol.
Mas ele não estava muito certo sobre os homens Yehuli, não muito certo sobre
algumas outras coisas também, então me preparei com uma lufada de erva-
cidreira e segui Sevas para dentro.
A taverna estava mais iluminada do que eu esperava, com um espaço
inteiro no centro para dançar. Sob meus pés, o chão estava pegajoso. A parede
esquerda estava brilhando do chão ao teto com licor em garrafas, verdes,
marrons e brancas, algumas transparentes e com tons de joias e outras foscas
como vidro marinho. Havia mulheres lá dentro também, o que me pegou de
surpresa. Olhei para seus cachos de tabaco enrolados e seus lábios pintados, o
ruge brilhante em suas bochechas, a maneira como elas dedilhavam seus
cachimbos finos e os levavam à boca carmesim. Olhando para elas, eu me
sentia cada vez mais como uma criança sob os pés. Essas mulheres riam
delicadamente, coquetes, como se estivessem derramando enxames de
pequenas borboletas de suas bocas.
Sevas me levou até o bar, a madeira parecendo escorregadia na luz
âmbar. Antes que eu pudesse impedi-lo, ele pediu dois copos de vodca. Ele
deve ter visto meu rosto empalidecer.
— Você não tem que beber. — ele disse. — Mas é rude deixar uma
senhora sentar-se de mãos vazias em uma taverna. Todos os outros clientes
pensariam tão mal de mim se eu não comprasse para você algo que minha
reputação nunca se recuperaria disso.
Eu não poderia dizer se era outra brincadeira. Olhei em volta para ver se
havia outras mulheres sem bebidas nas mãos, mas nossos copos chegaram logo
depois e Sevas ergueu o dele no ar e me disse:
— Também é rude não brindar — então peguei o meu também, e nossos
copos tilintaram com um som como sinos prateados.
Ele bebeu, e segurei o copo no meu rosto e dei uma cheirada duvidosa.
Cheirava pior do que qualquer uma das poções de Papa. Cheirava como eu
costumava esfregar os anéis de sabão da nossa banheira. Talvez tivesse o
mesmo tipo de magia que as maçãs em nosso jardim, ou um dos elixires
borbulhantes de Rose: talvez fosse tão doce quanto pêssego kompot12 se
pudesse fechar o nariz contra o cheiro horrível. Tentei o menor dos goles, e
queimou tanto minha garganta que comecei a tossir e cuspir.
Sevas se inclinou para frente com grande preocupação.
— Por favor, me diga que eu não matei você. Há algumas histórias que
ouvi onde as bruxas queimam com o sabor da vodca.
— Eu não sou esse tipo de bruxa. — falei. Minha língua parecia confusa
e grossa, mas minha mente se lembrava das histórias sobre as quais ele estava
falando. Esses tipos de bruxas eram bruxas da floresta há muito extintas que
davam abrigo a meninas com madrastas cruéis, com a condição de que
realizassem todo tipo de tarefas tediosas e miseráveis. — Como você aguenta
beber tanto disso?
— Fica mais fácil a cada gole. — disse ele. — Como qualquer coisa,
realmente. Se você fizer isso por tempo suficiente, para de doer. Então outras
coisas param de doer. Achei que ia morrer na primeira vez que fiz um grand
jeté13. Esse é o grande salto em que suas pernas estão esticadas o máximo
possível para ambos os lados. Achei que o interior das minhas coxas nunca
cessaria de doer; pensei que nunca conseguiria ficar alto o suficiente, ou ficar
no ar por tempo suficiente. Mas o balé é um esporte de desgaste. Os melhores
instrutores são generais de guerra. Você tem que bater no seu corpo até que ele
te obedeça. E isso — disse ele, erguendo o copo — ajuda.
Tive que me impedir de dizer a ele que muitas vezes eu pensava no meu
corpo da mesma maneira: grosseiro, merecedor de rebaixamento.
12 Kompot é uma bebida não-alcoólica originária da Rússia, mas popular na Europa de Leste, que se
prepara cozendo frutos, frescos ou secos, em um grande volume de água. Comumente, adicionam-se passas,
mel ou açúcar ao gosto como adoçantes adicionais. É servida quente ou fria, dependendo da estação.
13 No grand jeté, o bailarino atira a perna com energia, sempre esticada e com os pés fora do chão,
num lindo salto, dando a sensação de que ele está flutuando no ar.
— Para o público, sabe, você parece tão gracioso e livre quanto uma ave
marinha. Parece a coisa mais fácil do mundo.
— Claro que sim. Essa é a marca de um bom dançarino. Assim como a
marca de um bom bebedor é aquele que engole vodca sem estremecer, com um
sorriso no rosto. — Sevas esvaziou o resto de seu copo e sorriu para mim por
cima da borda. — Você nunca experimentou antes?
— Não. — disse. — Meu pai não nos deixava. Ele diz que a bebida é o
refúgio de homens de mente fraca com algo que querem esquecer.
Sevas colocou a mão no peito.
— Nunca fui tão completamente eviscerado por um homem que conheci
apenas uma vez. Isso é feitiçaria dele, fazer avaliações tão cortantes de caráter?
— Ele está errado sobre isso. — Mesmo tão longe de nossa casa, me deu
um pouco de medo, dizer uma coisa dessas. — Ninguém com uma mente fraca
poderia dançar do jeito que você dança, e bêbado além disso.
— Você se importa se eu contar isso a Derkach? — A boca de Sevas estava
sorrindo, mas havia um estranho tremor em seus olhos, vivo como o vento
através das folhas mortas. — Ele compartilha as preocupações de seu pai. Ele
acha que sou incorrigível, e desde que cheguei a Oblya tem sido ainda pior.
Mas não posso evitar que existam duas vezes mais tavernas aqui do que em
Askoldir.
Pensei no que Rose disse: que ele tinha toda a vida pela frente e não tinha
para onde ir.
— Você ficou feliz em deixar Askoldir?
Sevas deu de ombros.
— Deixei minha família lá, minha mãe. Mas eu não tinha visto muitos
deles desde que eu era jovem de qualquer maneira. Quando você mostra
alguma premissa como dançarino, as companhias de balé o pegam e o colocam
com um treinador e o fazem passar longas horas no estúdio e o levam em
passeios pelo país. Como disse Derkach, estou sob seus cuidados desde os doze
anos de idade.
Sua voz caiu, como se algo fosse chutado por um grande lance de
escadas. O silêncio se estendeu entre nós; Sevas pediu outra bebida. Lembrei-
me do olhar da mão de Derkach em seu joelho e queria dizer algo sobre isso,
mas Sevas já estava sorrindo novamente e me perguntando:
— Mas você conhece um dos maiores benefícios da vodca?
Eu balancei minha cabeça.
— Bem, — ele disse, fazendo uma pausa para esvaziar a vodca no meu
copo e, em seguida, colocando-a no balcão novamente — isso dá coragem, ou
despreocupação, para fazer coisas como dançar em tavernas.
Ele já havia pegado minha mão e começado a me levar para a pista antes
que eu percebesse o que ele queria dizer.
— Ah, não — eu disse. — Por favor, eu não sei como...
— Marlinchen, — disse Sevas, com um pouco de impaciência — você está
com o bailarino principal da companhia de balé Oblyana. Ninguém vai notar
seus erros.
— Ou talvez eles só serão jogados em um alívio severo por sua graça e
segurança. — Meu rosto estava queimando.
Sevas considerou isso.
— Um meio-termo. — disse ele.
E então ele colocou um braço em volta da minha cintura e me puxou para
frente, para que meus pés ficassem em cima dos dele. Nossos corpos estavam
quase nivelados, nossas mãos direitas unidas. Meu coração disparou; não
havia outro lugar para eu colocar meu braço esquerdo, exceto para descansá-
lo em seu ombro.
Começamos a balançar, um pouco instáveis, e minhas unhas cravaram
no tecido de seu casaco. Onde nossos dedos estavam entrelaçados, senti minha
palma ficar escorregadia, minha pele zumbindo com a magia florescente. Seus
pensamentos e memórias começaram a se infiltrar em mim como o lento fio de
água, apenas lampejos de cor atrás das minhas pálpebras, e rapidamente soltei:
— Se continuarmos tocando a pele nua, vou saber todos os seus segredos.
— Eu não tenho nenhum segredo. — disse Sevas. — Pelo menos, nenhum
que eu me importaria que você soubesse.
Meu rubor só se aprofundou. A música saltava e vibrava, animada
demais para nosso balanço desajeitado, mas como eu poderia me importar com
uma coisa dessas agora? Nossas mãos estavam entrelaçadas; nossos corpos
perto demais. Senti o cheiro dele, pegando a leve nota de bebida em seu hálito,
e os aromas persistentes do teatro de balé: tinta acrílica e suor seco e nylon,
todas as coisas que ele tinha amarrado para transformá-lo em Ivan.
Sevas se moveu mais rápido e eu tropecei um pouco, cambaleando para
trás. Ele me pegou antes que eu caísse.
— Desculpe, — disse — sou uma péssima parceira.
— Não se desculpe por nada — falou com uma convicção tão firme que
eu não tinha certeza se ele estava realmente me dizendo essas coisas, e não
alguma outra garota por cima do meu ombro. — Esta é a dança mais agradável
que tive em anos.
Fiz uma careta em perplexidade.
— Certamente você deve apreciar os aplausos e a adoração e a bela
czarina.
— Oh, Taisia me detesta até a medula. — Sevas disse com uma risada. —
Ela diz que odeia beijar alguém que cheira a álcool e tem uma dúzia de
perfumes de outras garotas que permanecem nele, mesmo que seja apenas
fingimento.
Ciúme deu um nó na minha barriga, mas eu mordi meu lábio e fiquei
quieta.
— E além disso, — Sevas continuou — esta é a primeira vez em muito
tempo que eu consigo dançar em um lugar que eu escolhi, com uma parceira
do meu gosto, sem desempenhar o mesmo papel na mesma história insípida.
— Você não gosta de Bogatyr Ivan?
— O que há para gostar? É um conto de fadas para crianças e uma
doutrina para homens zelosamente patriotas. Além disso, como alguém pode
se divertir quando o final é tão óbvio? Claro que o Dragon-Czar cairá. Claro que
Ivan vai ganhar a mão da Czarina.
— Eu gosto — arrisquei, surpresa com minha própria ousadia. — Isso
me lembra uma história que minha mãe costumava me contar, antes de morrer.
— Antes de se tornar um pássaro.
— Sim. Havia um Ivan e uma Czarina nessa história também.
— E teve um final feliz?
— Teve — eu disse, e meu peito se apertou de repente, como se meu
corpo tivesse se dado conta de todas as cordas que o prendiam. A concha
compacta entre meus seios, as frutas de zimbro e a pulseira de berloques em
volta dos meus pulsos, a memória das palavras de Rose envolvendo meu
cérebro como fios intermináveis: retorne às três badaladas do relógio, antes que o
amanhecer levante as pálpebras de Papa. Nada em suas mãos ou bolsos. Não seja
egoísta. Eu estava tão enredada em todas elas que me senti como um inseto
preso em uma teia de aranha retorcida e rosnante.
— Bem, — disse Sevas — você terá que me contar um dia.
Outra sacudida na minha barriga, as cordas apertando ainda mais.
— Talvez.
Sevas deu uma risada suave.
— Você é tão inescrutável, Marlinchen. Acho que você gosta de me
enfeitiçar.
E isso também me fez rir, inesperado e genuíno.
— Ninguém nunca disse uma coisa dessas. Nunca consegui guardar um
segredo ou contar uma mentira.
— Mas você escapou da casa de seu pai bruxo para vir aqui. — Sevas
arqueou uma sobrancelha. — Certamente isso envolveu algum subterfúgio.
Minhas bochechas coraram.
— Bem, então você é meu primeiro segredo, minha primeira mentira.
Isso te agrada?
— Só se isso te agradar.
Eu estava corando tão furiosamente que não conseguia mais encontrar
seus olhos, e a proximidade de seu corpo era tão inebriante que eu tinha certeza
de que faria alguma coisa maníaca, lasciva e animal se não conseguisse me
afastar dele. Meu olhar pegou algo branco no chão.
Em um piscar de olhos eu consegui me soltar do aperto de Sevas, me
abaixei e peguei. Era uma pena branca, lisa e brilhante com um leve pincel de
tinta dourada.
— Aqui, — peguei. — isso deve ser seu. De sua capa.
A boca de Sevas caiu aberta. Poderia dizer que meu comportamento
estranho o estava deixando perplexo, mas eu não estava fazendo isso de
propósito. Estava apenas tentando mantê-lo a salvo dos pensamentos
estranhos e extravagantes em minha mente, dos desejos que nos condenariam,
mesmo que fossem apenas meus.
— Por que você não a guarda? — Sevas sugeriu. — Você pode usá-la em
uma de suas poções de bruxa.
— Eu te disse, eu não sou esse tipo de bruxa.
— Fique com ela de qualquer maneira. — disse Sevas. — Se você se
encontrar em apuros financeiros, tenho certeza de que há mulheres em Oblya
que pagariam uma quantia desconcertante de rublos por uma pena que uma
vez tocou a pele de Sevastyan Rezkin.
Ele disse tudo sem um traço de presunção ou orgulho. A pena estava
quente ao toque, como se sua carne tivesse derramado algum calor nela, como
se ainda guardasse a memória de estar sob aquelas luzes sufocantes do palco.
Com uma pressa imprudente de desejo, enfiei a pena no bolso do meu vestido.
— Conheço uma história sobre um lindo pássaro que era a inveja de
todas as outras aves. — falei. — Todos o detestavam por sua beleza, mas ele só
queria o amor deles. Então, deu uma de suas belas penas para cada um deles,
até que ficou completamente careca.
— Acho que gosto mais dessa história do que de Bogatyr Ivan.
Minha testa franziu.
— Mas por quê?
— Porque pelo menos está mais perto da verdade. As pessoas são
ressentidas, cruéis e desejosas. — Sevas balançou a cabeça levemente, como se
quisesse se livrar dos pensamentos. Eu vi uma pequena metamorfose nele
então: uma mudança da realidade bruta e desagradável para o mundo dos
sonhos sorridente e indulgente. De Sevas a Ivan, um vislumbre de travessura
em seus olhos. — Você já deu um passeio pelo calçadão?
— Não. Não desde que minha mãe era viva. Meu pai...
— Deixe-me adivinhar, ele critica o próprio mar. Mas seu pai não está
aqui. Então deixe-me mostrar a você.
Houve outro período de silêncio, um longo momento como uma
respiração presa. Atrás de mim, o riso de uma mulher ondulou o ar como o
sussurro de pequenas asas.
— Você não pode. — eu disse finalmente, mesmo quando a erva-cidreira
flutuava em meu nariz e a hortelã ressecava minha garganta. Eu estava
pensando no ar salgado e na areia preta, todas as coisas que me revelariam sem
que Papa sequer precisasse de uma poção. — É longe daqui, e eu preciso voltar
para casa...
— Não é nem meia-noite, Marlinchen. — Ele se inclinou para mais perto
e, de repente, senti o metal entre meus seios queimar como uma bala, todos os
estilhaços se abrindo para fora. Senti-me quase morrendo, e havia chumbo em
minhas veias; como ele poderia estar tão perto de mim? Ele não estava com
medo de que o que quer que eu fosse pegasse?
Puxei minha mão sobre meu peito, como se para cobrir a ferida, mas
Sevas não se afastou, e disse:
— De que adianta sair furtivamente de debaixo do nariz de seu pai se
apenas para correr de volta antes mesmo de você ver sua própria cidade?
— Não é realmente minha cidade. A família Vashchenko vive aqui desde
antes de Oblya, quando havia apenas a estepe que corria direto para o mar sem
nada para impedi-lo. Antes que a terra fosse feita em pedaços e cada cicatriz
recebesse um nome como Rua Kanatchikov. Oblya é uma intrusa grosseira no
lugar que sempre conhecemos.
— E eu sou um intruso sobre a intrusão? — Sevas arqueou uma
sobrancelha. — Você não precisa arrastar sua história familiar como um velho
cachorro morto.
— Isso é fácil o suficiente para você dizer, sua família está a centenas de
quilômetros de distância. — Minha respiração ficou presa em minha própria
maldade.
— Não é nada fácil. — Sevas disse baixinho, e finalmente se afastou de
mim, erguendo-se a toda a sua altura e esfregando um pouco da tinta dourada
molhada de suor que permaneceu em sua bochecha. — Você acha que deixei
tudo nas favelas de Askoldir? Dr. Bakay me diz que a história vive nos planos
do meu crânio e na protuberância da minha testa. Não conheço nenhuma
cirurgia que possa extirpar um século. É quanto tempo minha família vive em
Rodinya, mais ou menos alguns anos. Mas sei que, se pudesse, rasparia esses
anos como lascas de osso.
Ele manteve a voz baixa, mas mesmo assim eu senti que era uma onda
que vinha em um paredão, suas palavras sólidas e imóveis. O que eu sabia de
qualquer história além da minha, e mesmo daquela nebulosa, meio lembrada?
Havia um mundo inteiro espalhando suas raízes fora da casa de meu pai, e
carvalhos tão velhos quanto os do nosso jardim. Cresci com suas palavras e as
histórias do códex, mas eu realmente sabia alguma coisa?
E então havia o nome do Dr. Bakay em sua boca, o que poderia ter me
feito vomitar se não fosse pela lufada da tintura de Rose.
— Desculpe — falei envergonhada. — Não temos nenhum livro de
história em nossa casa. Nenhum livro, além do códex de meu pai.
Sevas deu uma risada curta, e seus olhos brilharam novamente, como se
tudo tivesse sido esquecido.
— Essas foram as palavras menos cruéis que já ouvi falar sobre o assunto;
confie em mim, não há nada para se desculpar. Mas você realmente nunca leu
um livro, um livro de verdade?
— Não sei o que você quer dizer — eu disse, ainda me sentindo
mortificada. — Papa... o códex do meu pai tem muitas histórias e feitiços, e
receitas de poções. — Tinha cheiro de musgo úmido e era tão antigo quanto
Indrik afirmava ser. — Eu gosto das histórias em que cisnes se transformam
em donzelas para que possam se casar com príncipes.
— Agora eu vejo por que você ama Bogatyr Ivan. — ele disse com apenas
um leve sorriso. — Heróis triunfantes, o mal banido, coroas conquistadas e
votos de casamento cantados. Há tantos livros como esse que você poderia
passar a vida inteira lendo, assim como vou interpretar Ivan todas as noites até
ficar velho e feio demais para isso, provavelmente por volta dos trinta anos.
A ideia de ele ficar feio era tão impensável quanto um feitiço para
transformar ferro em ouro, a mais impossível de todas as alquimias
impossíveis. No entanto, a previsão de Rose permaneceu.
— E o que você vai fazer depois?
— Não dou muita atenção a isso. Posso muito bem estar morto antes que
esse dia chegue. Eu tento viver cada noite como se a morte estivesse
cavalgando para mim na primeira hora do amanhecer, então terei muitos
poucos arrependimentos quando ela finalmente aparecer na porta da taverna.
— Ele olhou para a soleira, como se realmente achasse que poderia ver uma
figura vestida de preto ali. No códex de Papa, a Morte era um homem com
folhas de salgueiro no lugar das mãos e orelhas caídas tão grandes que você
podia se dobrar nelas e adormecer profundamente. — Acho que me
arrependeria profundamente se morresse de madrugada sabendo que faz
tanto tempo que você não vê o oceano. Você não vai deixar um intruso rude
lhe mostrar seu próprio mar?
E egoisticamente, como uma donzela coberta de penas, eu deixei.
Acima, a lua estava pálida como o rosto de uma mulher em um alfinete
de camafeu, seu reflexo tão brilhante e sólido que parecia que um barco de
dragagem poderia tirá-la da água. A costa preta se amontoou e achatou, como
a faixa de um vestido. Correndo ao lado dela, o calçadão ainda estava
movimentado mesmo tão tarde da noite, cravejado de pavilhões de telhado
plano tocando música de órgão e barracas que vendiam copos altos de
espumantes de kumys. Um pouco adiante no calçadão estava a coroa branca
do carrossel, e até onde eu conseguia enxergar, as lâmpadas elétricas
queimavam como brasas vivas.
Casais passavam por nós: mulheres com vestidos com mangas enormes
e anquinhas ainda mais enormes, e homens com cartolas que pareciam cada
uma mais alta que a outra, como se estivessem em uma competição privada,
tentando superar um ao outro em altura. Mesmo com meu vestido datado e
com meu cabelo emaranhado pelo vento, quase todo solto das tranças de Rose,
me enchia de um calor muito agradável saber que esses estranhos olhavam
para Sevas e para mim como se fôssemos outro casal, com vidas comuns à
nossa frente e atrás.
Tentei não pensar na donzela da neve que o beijou, nas outras mulheres
perfumadas de quem ele havia falado, ou na mão de Derkach em seu joelho.
No fundo eu sabia, mesmo na neblina deste sonho acordado, que Sevas nunca
me imaginaria do jeito que eu o imaginava, com um desejo tão fútil. Mas ainda
assim fiquei toda quente quando ele riu, corando até o oco da minha garganta.
A maré negra batia na costa mais negra, com um som como centenas de
serpentes irritadas, e de repente me lembrei de algo.
— Você já leu as prensas de moedas? — Perguntei a ele, treinando meus
olhos nas línguas de espuma que desapareciam.
— Claro — disse ele. — Elas são sempre boas para rir. Ontem mesmo li
uma história lasciva sobre a esposa do gradonalchik e seu relacionamento
indecoroso com um carteiro. Por que pergunta?
— Ouvi uma história. — Comentei, diminuindo o passo — De que dois
homens foram encontrados mortos no calçadão. Acho que foi nas prensas de
moedas. Eles disseram que os homens estavam se, seus corações e fígados, e
que tinham caroços de ameixa onde seus olhos estavam.
Sevas lançou seu olhar em direção ao mar, e então se voltou para mim.
— Foram encontrados dois homens mortos aqui não muito tempo atrás,
e é claro que as prensas de moedas estavam em movimento, imprimindo
histórias sobre um monstro. Eles só pensavam assim porque os corpos foram
tão completamente massacrados que não poderia ter sido um homem que fez
isso. Eu li que seus corações e fígados se foram. A polícia da cidade vasculhou
todo o litoral e encontrou uma matilha de cães vadios vivendo sob o calçadão
com sangue no focinho. Eles foram todos abatidos, mas as prensas de moedas
nunca publicarão uma história sobre isso. É engraçado, não é, o quanto a cidade
está salivando para imaginar um monstro no meio dela? Suponho que, com
todos, exceto um de seus bruxos extintos, e com suas únicas bruxas doces e
gentis, eles precisam de algo mais para saciar seu desejo de violência.
Senti meu coração gaguejar torto.
— Às vezes acho que meus clientes gostariam que eu fosse mais perversa.
— Talvez você devesse considerar isso como uma oportunidade de
negócios, é claro. Alimente-os com rascunhos de olho de salamandra e
gargalhe sobre o seu caldeirão. Transforme seus amantes rejeitados em porcos.
A noção de que eu tinha amantes, rejeitados ou não, era tão absurda que
sufoquei uma risada, mesmo quando Sevas levantou a sobrancelha.
— Papa é quem faz as transformações, não eu. E não haveria porcos.
Sevas deu um aceno rápido, e pensei que podia ver as pontas de suas
orelhas rosando novamente, embora talvez eu tivesse imaginado isso. Paramos
em uma das barracas e compramos dois copos de kumys, frios e doces.
Ocorreu-me que nunca tinha comido ou bebido nada fora da casa do meu pai.
Por dentro, quando eu comia, geralmente ficava arrasada com pânico,
imaginando quando e onde eu iria vomitar depois. Os kumys caíram tão
facilmente quanto a água. A música do órgão voou como uma gaivota pelo ar.
Ao longe, o carrossel cortava com lâminas de luz laranja, lançando-as
sobre a água, tão ousadas como faróis. Perguntei-me o quão profundo era, e
quantas coisas estranhas estavam à deriva em suas ondas. Perguntei-me o que
havia do outro lado.
Sevas havia parado de andar e colocado uma mão na grade de ferro,
olhando para o mar como se fosse um capitão com olhos de mau tempo no
leme de seu navio. Naquele momento pude imaginá-lo um marinheiro tão
facilmente quanto um bogatyr, ao mesmo tempo arrojado e corajoso.
— É como você se lembra? — ele me perguntou, muito suavemente.
Era isso? Eu conseguia me lembrar do vento no meu cabelo e do cheiro
de sal no meu nariz. Podia até me lembrar da areia sob meus pés descalços, do
jeito que ela cedia embaixo de mim. Mas tal coisa teria sido impossível, mesmo
antes de minha mãe partir, eu nunca teria permissão para brincar descalça na
areia.
Uma estranha lembrança me habitava; possuía-me como um fantasma.
Eu estava de pé na praia sob uma lâmina de luar prateado. Até os lampiões a
gás haviam se apagado. Havia um gosto de cobre na minha língua. Havia a
respiração ofegante de outra pessoa, alta e próxima o suficiente para abafar até
mesmo o movimento incessante da maré.
— Marlinchen? — A voz de Sevas me tirou do estupor. A memória se foi,
um balão com um fio cortado.
— Eu... eu não sei — confessei. Limpei as mãos na saia. Elas estavam
manchadas e úmidas, embora com algo mais pesado que suor. — Quando
criança, eu tinha medo de tudo. Da última vez que estive aqui, acho que me
escondi nas saias da minha mãe ou chorei em seu ombro. Pelo menos, é assim
que minha irmã conta.
— Qual irmã?
— A mais velha — eu disse. — Undine. Ela é muito má. Todas as irmãs
mais velhas são.
Sua boca se curvou no canto.
— Quem disse isso?
Eu pisquei para ele.
— Você tem irmãos ou irmãs?
— Não — disse ele. — Sou o único filho da minha mãe. Mas na minha
ausência ela começou a alimentar sete gatos de rua e todos os pássaros que
pousam em sua varanda.
Sorri um pouco, imaginando. Ele me perguntou sobre Undine, e por que
ela era tão má. Contei a ele como ela pegou minhas fitas e minhas pérolas e
depois fingi que sempre foram dela. Contei a ele como ela me deu um tapa por
ser estúpida, por ter medo, por ser sagaz, por ser rude, por não falar, por falar
demais. Ele me perguntou sobre minha outra irmã e eu disse a ele que ela era
gentil, e ainda melhor de ter do que uma mãe, porque as mães ou eram más ou
estavam mortas. Ele franziu a testa e me disse que sua mãe não era nenhuma
das duas. Eu disse que nunca tinha lido sobre as mães dos meninos Yehuli, e
ele riu e me disse que a maioria era bastante voluntariosa, mas sempre amava
muito seus filhos. Navios flutuavam no porto como cavalos em seus postes de
amarração, velas chicoteando suavemente.
— Conte-me essa história do códex de seu pai, — Sevas pediu. — sobre
a mulher-cisne e o bogatyr. Talvez haja algo que eu possa incorporar na minha
performance.
— Começa há muito tempo, pelo menos dois mil anos. — O calçadão
estava chegando ao fim, tábuas de madeira erodindo em areia preta. — Quase
todas as histórias começam com um casal feliz: um homem rico e sua bela e
piedosa esposa. Se eles têm filhas, geralmente é um sinal de que algo vai dar
errado. As filhas costumam passar mal nas histórias, principalmente se forem
três ou mais. Acho que esta é a minha história favorita porque tudo dá certo,
quando tudo está dito e feito. E não é tão ruim ser um pássaro, se puder
encontrar alguém para te beijar e transformar de volta em uma garota. O
problema da minha mãe era que todos os bogatyrs se foram.
Eu estava sem fôlego no final da minha narrativa, e me ocorreu que eu
não conseguia me lembrar da última vez que havia falado tanto, a última vez
que alguém me permitiu falar tanto. Um rubor tomou conta do meu rosto. Eu
tinha revelado tanto de mim mesma, pisando no abismo dos meus desejos mais
sombrios e profundos.
— Não é verdade — Sevas protestou, um sorriso com covinhas apenas
em sua bochecha esquerda. — Eu interpreto um bogatyr todas as noites, um
intruso rude que eu sou.
— Com uma espada de madeira. E um Dragão-Czar que respira chamas
de papel. — Envolta em fumaça, a lua agora parecia uma das toalhinhas de
renda da minha mãe, manchada com velhos derramamentos de chá. — Eu a
alimentei da minha mão por tantos anos, depois que minhas irmãs esqueceram
que ela ainda estava lá em sua gaiola e ninguém se aventurou até o terceiro
andar de nossa casa além de mim.
Olhei para fora novamente, além da areia preta para o mar, e depois de
um momento algo apertou meu peito.
— Sevas, que horas são?
— Não sei.
Ele franziu a testa. Eu não tinha certeza do que esperava que dissesse; ele
não era do tipo que carregava meticulosamente um relógio de bolso. Nós dois
nos viramos, a vários passos de onde terminava o calçadão, e começamos a
subir na direção oposta. Sevas parou diante do casal mais próximo, um homem
alto e magro com um bigode enorme e sua companheira de cabelos ruivos, e
perguntou: — Senhor, você tem hora?
O homem abriu a aba do paletó e tirou o relógio, pendurado em sua
corrente de ouro como o pêndulo de nosso relógio de pêndulo.
— Um quarto para as três, senhor. Você não é...
Não esperei para saber se era eu que ele reconhecia, ou Sevas. Eu já estava
correndo pelo calçadão, o vento pegando seus dedos no meu cabelo. Mal notei
o copo de kumys escorregando da minha mão e se estilhaçando, um cosmos
de leite frio escorrendo pelas ripas de madeira.
Não tinha ido muito longe quando percebi que tinha esquecido
completamente as frutas de zimbro de Rose, esqueci de deixar um rastro que
me ajudaria a encontrar o caminho de volta para casa. Mas, novamente, eu
tinha esquecido tanto nessas últimas horas, não tinha? Minha mão foi para o
sachê amarrado no meu pulso, cheio e inútil, vazando suco preto nas pregas
do meu vestido.
Ao longe, o carrossel girava e girava, e as lâmpadas a gás eram tão
brilhantes que cozinhavam meus olhos como ovos. Pela frescura úmida dos
cílios, vi casais passarem, afastando-se de mim; eu estava ofegante e curvada
na cintura, a bile subindo na minha garganta.
Desejei que Undine estivesse ali para me bater no rosto. Desejei Rose
estivesse ali para alisar os cachos da minha testa e me dizer que eu estaria
segura, que tudo ficaria bem, e que ela me perdoaria. O cheiro de erva-cidreira
tinha vazado de sua tintura, e agora eu só podia sentir o gosto da hortelã, como
engolir um punhado de urtigas. Eu fechei meus olhos.
Quando os abri novamente, o rosto de Sevas estava ondulando na minha
frente.
— Marlinchen, o que há de errado?
— Eu tenho que ir para casa. — consegui dizer, as palavras espremidas
para fora de mim como o ar através do fole da chaminé. — Eu disse à minha
irmã que voltaria às três horas do relógio, antes que o amanhecer levantasse as
pálpebras de Papa. Eu deveria deixar um rastro, mas não deixei, e agora não
consigo encontrar meu caminho...
Levantei meus dedos manchados, como se fossem prova de alguma
coisa. Os lábios de Sevastyan se apertaram em uma linha pálida, e ele disse:
— Eu vou te levar de volta. Não se preocupe. Não tenha medo. Não é tão
longe quanto você pensa.
A ponta do meu nariz estava queimando.
— Eu não sei nenhum dos nomes das ruas.
— Eu sei — disse ele. — Eu andei por elas, quatro vezes mais bêbado do
que estou agora. Tudo vai ficar bem. Venha comigo.
Havia algo na minha garganta do tamanho de uma pedra de moinho,
mas eu envolvi meus braços em volta de mim e segui Sevas pelo calçadão. A
rua ao longo dela estava quase vazia, repleta de cervejarias e pousadas com
vitrines pretas que anunciavam uma cama por dois rublos. Em uma das portas,
uma mulher estava apenas meio vestida, expondo um dos seios à luz fria das
estrelas. Desviei o olhar, o estômago revirando.
Na esquina da rua havia uma carruagem puxada por dois cavalos
enormes, fumaça branca saindo de suas narinas. O homem no banco do
motorista se inclinou, deu um sorriso entre dentes e disse:
— Meio rublo por uma hora, um rublo por três. — Eu poderia dizer que
ele era Ionik pelo som de suas consoantes, como pistolas engatilhadas.
— Um quarto de hora é tudo que precisamos — disse Sevas, embora ele
pressionasse uma moeda de ouro na palma aberta do homem.
O homem saltou de seu assento e abriu a porta da carruagem, e olhei
para a boca negra dele e senti o mesmo pavor nebuloso que sentira olhando
pela soleira da taverna. Papa nos avisou que as carruagens tinham sua própria
magia: uma vez que você aceitasse uma carona, não poderia sair até que o
cocheiro deixasse. Você cedia o poder de suas pernas para carregá-la assim que
entrava.
Isso era uma magia poderosa de fato. Eu teria menos medo de subir nas
costas de um dragão de sete cabeças. Mas Sevas não hesitou. Ele empurrou-se
para o primeiro degrau e estendeu a mão.
Só uma bruxa não o teria levado. Uma bruxa de verdade, como Titka
Whiskers, ou as várias bruxas extintas da floresta que cuidavam de meninas
sem mãe. Ainda não eram três, e eu ainda era uma donzela de cabelos de penas
sob a lua de maçã descascada, então entrelacei nossos dedos e deixei que ele
me puxasse para dentro da carruagem atrás de si.
A porta se fechou, e nossos corpos estavam próximos no banco, e então
ouvi o cocheiro subir e esporear seus cavalos e descemos pelas ruas de Oblya,
os vidros das janelas embaçando com nossa respiração.
— Por que você foi tão gentil comigo? — Perguntei. Não pude evitar o
quão miserável eu soava, como um cão chicoteado, meu sonho escapando de
mim como neve derretendo na luz do sol. — Você poderia ter me deixado sair
do teatro, depois que eu lhe disse tudo o que você precisava saber.
— E você poderia ter me deixado virar uma massa de cobras pretas na
sua porta — ele disse — Eu não preciso de uma dívida de vida para me obrigar
a levar uma garota para uma taverna, ou caminhar com ela pela praia. Não
posso aproveitar essas coisas sem a maldição de um bruxo pairando sobre
mim? Eu disse que queria ver seu rosto na multidão. Estou feliz que vi. — Ele
hesitou. — Quero ver de novo.
Todo o ar na carruagem parecia endurecer como raízes de árvores no frio.
Eu podia ver o rubor vermelho descendo pela minha garganta, sobre a fenda
dos meus seios, até a concha de ouro pressionada entre eles. A lembrança disso
doeu, como um banho de água fervente sobre o gelo, e fez meu corpo inteiro
chiar. Eu queria pressionar as palmas das mãos nos olhos e chorar.
A janela estava tão embaçada que tive de esfregar um círculo turvo no
vidro para ver através dela enquanto a carruagem nos conduzia pelo que
reconheci como Rua Kanatchikov. Eu podia ver os cavalos trotando, ofegando
sua fumaça pálida. Mais ao longe podia ver a casa de meu pai, nossa torre de
madeira apodrecida vestindo um xale cinza de nuvens. Não consegui olhar
para Sevas.
Quando a carruagem finalmente parou do lado de fora do nosso portão,
eu estava pensando que nem mesmo Papa poderia ter conseguido uma
transformação como esta: transformar uma bruxa de rosto comum em uma
garota mortal corada, e depois voltar de novo pela badalada greve do relógio
às três. Toda a magia de Papa tinha uma direção singular: não se podia fazer
uma flor desabrochar. Observei meu próprio rosto na janela murchar, florescer
e murchar novamente no espaço de segundos, uma metamorfose trêmula:
bruxa, cisne, garota. Bruxa-cisne-garota.
A porta da carruagem se abriu e as três desapareceram.
Saí da carruagem, instável em minhas próprias pernas, e Sevas me seguiu
logo atrás. À sombra de nossa cerca estava minha primeira fruta de zimbro
caída, gorda e tensa de suco. As palavras de Rose atravessaram minha mente:
não seja egoísta.
— Acho que pode ser um ou dois minutos depois das três. — disse Sevas.
— Vai ficar tudo bem?
Minha voz secou na minha garganta. Quando consegui falar, foi apenas
em um sussurro.
— Eu nunca terminei de contar a você... filhos únicos são sempre heróis.
As coisas sempre terminam bem para eles. Elas devem terminar bem para você.
Agora era sua respiração que se espalhava branca no frio.
— Quem disse isso?
Com dificuldade, eu engoli.
— Eu tenho que ir.
E então me virei e destravei o portão e corri para o jardim sem olhar para
trás.
A noite abriu suas asas negras e voou. Eu estava em uma cama de jacintos
roxos, tão imóvel como se meus próprios pés tivessem criado raízes, como se
eu só tivesse estado neste lugar, nada diante de mim ou atrás. Do outro lado
do jardim, nosso duende deu um gemido abafado, as unhas se arrastando a
porta do galpão onde ele estava preso, onde estava preso por horas na
escuridão, nem mesmo sabendo que o dia havia se transformado em noite e
estava prestes a sangrar em dia novamente.
Você deve retornar às três badaladas do relógio, antes que o amanhecer levante
as pálpebras de Papa. Sevas estava certo. Eu não conseguia ouvir o gongo do
nosso relógio de pêndulo, o que significava que as três horas já haviam
passado. Então essa foi uma promessa para minha irmã, quebrada.
Você não deve trazer mais nada de volta com você. Suas mãos e bolsos devem
estar tão vazios quanto quando você saiu. Deixei meus dedos passarem pelas
dobras da minha saia até encontrar a pena de Sevas, fina e ainda quente. Mais
uma promessa quebrada.
Você deve pegar a areia preta e destruí-la. Use-a para sair uma vez e nunca mais.
Na segurança do veludo escuro, tirei o pó compacto dos meus seios.
Estava marmoreado e úmido de suor, quente como uma bala que acabava de
ser disparada.
Livrei-me nos jacintos, tomando cuidado para não enrugar suas pétalas,
e abri a porta do galpão. O duende saiu correndo para o jardim, um único olho
piscando loucamente enquanto se ajustava à luz fantasmagórica das estrelas,
abre-fecha-abre-fecha e quase tropeça em sua própria barba. Atravessou a
grama de trigo e desapareceu.
Havia magia no número três, talvez magia ruim, mas eu não me
importei. O que era mais uma promessa quebrada? Arrumei minhas saias e
fiquei de quatro na terra e enterrei o compacto bem na base do zimbro.
Capítulo 6
Aqui está a história que eu não contei à Sevas.
É verdade que começa com um casal feliz: um homem rico e sua bela e
piedosa esposa. Neste caso, o homem rico era um rei (um czar) e sua esposa
era uma rainha (czarina). Eles governavam um domínio de amplas planícies e
altas montanhas. O povo os amava, e a terra era fértil, e muitas coisas podiam
crescer, exceto no ventre da czarina. Não importa quantas vezes seu marido
derramasse sua semente nela, nada criaria raízes. Seu corpo era estéril como
um saleiro.
E como ela não sabia que era ruim ser mãe em uma história (e não sabia
que estava em uma história), a czarina foi para o jardim, para a neve, e
descascou uma maçã. Enquanto estava descascando, ela cortou o dedo e uma
gota de sangue caiu na neve.
Imediatamente seu sangue desapareceu, e então a neve disse:
— Estou com fome há tanto tempo. Se você me alimentar, posso lhe dar
a única coisa que seu coração deseja.
— Eu quero um filho. — disse a czarina.
— Alimente-me. — disse a neve.
Então a czarina cortou todos os quatro dedos e o polegar e deixou seu
sangue cair e a neve o comeu avidamente. Naquela noite, seu marido a levou
para dentro e beijou seus dedos cortados e colocou sua semente nela
novamente, e ela adormeceu sorrindo.
Na manhã seguinte, quando acordou, a czarina olhou para o pátio
coberto de neve e viu que uma árvore branca havia florescido no lugar onde
ela sangrara, alta e cheia como qualquer outro carvalho antigo. Ela correu para
fora.
A árvore estava florescendo com frutas vermelho-vivas, tão doces que a
czarina não se conteve: ela colocou uma na boca. Ele explodiu em sua língua e
ela engoliu todo o seu suco, e então suas coxas ficaram escorregadias com um
raio de prazer e ela sentiu algo se mexer finalmente em seu útero.
A neve derreteu e a barriga da czarina cresceu. Em nove meses, ela deu
à luz uma menina, com lábios brilhantes e cabelos cor de gelo. E, porque esta é
uma história, a czarina deu uma olhada na filha, sorriu e morreu.
Entre suas pernas havia um jorro de sangue cor de rubi. O czar a limpou
e pegou sua filha e a abraçou. A neve voltou e cobriu a terra fértil. Os pássaros
pousaram nos galhos da árvore branca e comeram todas as frutas. A filha
desabrochou em uma bela czarina, a garota mais bonita em todos os domínios
de seu pai, e ela era tão gentil e piedosa quanto sua mãe morta (se uma mãe
está morta, ela pode ser gentil).
Quando ela completou dezesseis anos, o czar decidiu que era hora de sua
filha se casar. Rumores de sua beleza já haviam se espalhado por toda parte,
além de sua terra de vastas planícies e altas montanhas, para outros reinos
onde o sol brilha apenas uma hora por dia. Homens vieram de todas as partes
para buscar a mão da czarina e, quando a encontraram, ficaram ainda mais
encantados com seus lindos cabelos brancos e seus lindos lábios vermelhos e
seus lindos olhos negros.
O czar deixou cada pretendente passar uma noite com sua filha, onde
eles conversaram e se divertiram, e no final não foi um homem rico por quem
ela se apaixonou, ou mesmo o príncipe do reino onde o sol brilha por apenas
uma hora um dia. Era um guerreiro chamado Ivan, um bogatyr que era filho
de um simples fazendeiro. O czar decidiu casá-los imediatamente.
No dia de seu casamento, uma neve feroz veio e cobriu toda a terra de
branco. Ivan e a czarina casaram-se felizes e foram para seus aposentos para
passar a noite. Mas quando Ivan começou a tirar o vestido de noiva de sua
noiva, descobriu por baixo que a czarina não era uma mulher, mas um cisne,
com penas brancas e olhos negros e um bico vermelho-sangue. Houve um
grande uivo de neve e o cisne bateu as asas e voou pela janela e desapareceu.
Ivan correu até a janela atrás dela e ouviu a neve falar.
— Sua única noiva é minha filha, e a czarina do Reino do Inverno —
dizia. — Agora que se casou com ela, você também é meu filho, e um pai tem
o direito de matar seus filhos e comê-los, se assim o desejar.
E então houve outro grande uivo e a neve entrou pela janela e quase o
enterrou. Ivan se libertou e foi até o czar e contou-lhe o que havia acontecido.
— Sua esposa deve ter se deitado com Ded Moroz14, Vovô Frost, o czar
do Reino do Inverno. Ela pegou sua semente e deu à luz uma filha de gelo e
magia amarga. Se eu quiser me reunir com meu amor, devo viajar para o Reino
do Inverno e derrotar Ded Moroz em batalha.
O czar chorou com a notícia, mas ainda amava a menina que criara como
sua. Ele enxugou as lágrimas e disse a Ivan:
— Eu lhe darei uma espada.
E assim Ivan partiu para encontrar o Reino do Inverno, mas a neve caía
densa e seu cavalo morreu bem embaixo dele, ainda na sela. Ivan parou para
passar a noite e acendeu uma fogueira, cozinhou e comeu seu cavalo.
Ele estava se abrigando sob uma árvore branca alta quando viu um
pássaro branco voar do céu e pousar diante dele. Ivan piscou e o cisne voltou
a ser a czarina, sua noiva. Sua pele nua era da cor de pura geada e seus olhos
14 Ded Moroz é um avatar do papai Noel, secularizado na URSS sob o regime comunista. Ele existe
desde 1945 em outros países da Europa Oriental no período comunista.
eram negros como bagas de zimbro e seus mamilos eram rosados e
endurecidos pelo frio.
— Meu amor. — disse ele. — Venha para casa comigo.
— Estou com tanta fome. — disse ela.
— Não tenho comida. — disse Ivan.
— Alimente-me — ela sussurrou através de seus lábios pálidos.
Então Ivan pegou sua espada e cortou sua própria garganta. Seu sangue
caiu na neve. A czarina se agachou sobre ele e comeu seus músculos e esmagou
seus ossos e engoliu sua pele inteira. Quando não havia mais nada de Ivan, ela
se transformou em um cisne e voou para as altas montanhas.
Lá ela encontrou a cabeça de Ded Moroz, larga como um penhasco, sua
barba vasta e pálida e feita de neve. Seus dedos eram as colinas cobertas de
gelo e suas longas, longas pernas abertas bem sob o palácio do czar, e onde sua
semente se derramava, árvores brancas com frutas vermelhas cresciam.
— Papa, — ela disse — vamos nos banquetear com o meu casamento.
Meu coração está cheio e meu marido está na minha barriga.
E assim Ded Moroz brotou uma árvore de ébano com frutas enormes e
gordas, pretas como hematomas.
— Aqui está meu coração, filha — disse Ded Moroz — e está cheio.
E então o cisne que era a czarina cuspiu todos os pedaços de Ivan que ela
havia comido: seus pedaços de músculo e pedaços de osso e a pele que ela
engoliu inteira. Ela soprou nele sua própria magia amarga - a magia da czarina
do inverno - e seu corpo se recompôs e ele se tornou um homem novamente.
Ele ergueu sua espada ensanguentada e cortou o coração de Ded Moroz,
e por toda a terra do czar houve um grande uivo de vento, e então a neve
derreteu e as planícies ficaram verdes embaixo dela. Todas as árvores brancas
morreram e as frutas vermelhas caíram, moles com a podridão. A fruta preta
caiu na neve, a última barba de Ded Moroz.
— Meu amor — disse Ivan. — Volte para mim.
E então ele beijou o cisne em seu bico vermelho-sangue e ela se tornou
uma mulher novamente. A czarina disse que estava arrependida, muito
arrependida, pelo que havia feito, e que só estivera sob o feitiço de Ded Moroz.
Ivan a perdoou, e ele a pegou e eles se abraçaram.
Ambos estavam ansiosos para voltar ao palácio do czar, para celebrar e
consumar seus votos, mas ambos também estavam com muita fome, então
primeiro se sentaram na neve derretida e comeram.
15 Repolho recheado na Ucrânia, que significa literalmente “pombinhos”. Os recheios variam muito e
podem ser sem carne ou conter qualquer combinação de carne, vegetais e grãos.
salpicado de sal também, então antes de Papa acordar eu abri a torneira da
banheira e deixei a água correr.
A areia preta tinha saído do meu cabelo, a cor da fuligem da chaminé.
Mordi o lábio em um grito e tropecei para trás, observando-a circular pelo ralo.
Esperei e esperei, como se me equilibrasse na ponta de uma lâmina, mas a
banheira o chupou e não o cuspiu novamente.
De repente, a mesma memória me habitou: meus pés contra a areia macia
e sugadora, a respiração apertada e difícil, a umidade pesada e escorregadia
em minha mão. As mãos pareciam minhas próprias mãos e não. Havia uma
força desconhecida nelas, uma destreza, e quando fechei os olhos uma névoa
vermelha caiu sobre mim. Tudo parecia um estranho sonho sombrio. Outra
coisa, como a areia preta, que eu não conseguia explicar.
Quando abri os olhos de novo, tudo havia desaparecido, mas senti um
pavor profundo e arrepiante, como carne sendo esculpida em osso.
Eu não tinha tempo para medo. No piso de ladrilhos brancos, uma faixa
rosada de luz caiu como uma faca caída. Trancei meu cabelo úmido e desci
correndo as escadas em meu roupão, o monstro de rabo espinhoso lutando em
meus calcanhares. Fui até a cozinha e coloquei a chaleira no fogo. No saguão,
o relógio de pêndulo soou sete horas.
A água guinchou dentro da chaleira, e eu a despejei em duas xícaras de
chá. Minhas mãos, embora trêmulas, pareciam como sempre: a velha marca de
queimadura marcada na palma da minha mão e os nós dos dedos pontilhados
com pequenos arranhões onde meus dentes cortavam a pele quando eu enfiava
meus dedos na garganta.
A mais impossível de todas as coisas impossíveis acontecera na noite
anterior: saí de casa sozinha e voltei igual. Minha mentira não me transformou.
Oblya não tinha me manchado. Os estrangeiros não me violentaram, as
carruagens não me pisotearam, a música de rua não me fez sangrar pelos
ouvidos. Eu tinha passado por Undine e não fui pega. Desobedeci a Rose e não
senti meu estômago revirar em protesto.
Talvez, ocorreu-me, eu tivesse passado pela transformação mais
aterrorizante de todas. Talvez eu tivesse me tornado uma garota que não se
importava em mentir para o pai ou trair as irmãs. Pensei no compacto que
havia enterrado debaixo da árvore, mas o pensamento foi expulso da minha
mente em um instante. Eu podia ouvir os passos de Papa na escada.
Respirando com muita regularidade, fui até a geladeira. Minhas mãos
cheias de cicatrizes levantaram a tampa. Estava vazia.
Não, isso não poderia ser. Fechei a tampa e abri de novo, como se fosse
uma caixa de música e pudesse reiniciar a música, recomeçar do começo. Mas
ainda não havia nada dentro.
Eu não conseguia entender. Eu tinha cozinhado um fígado de galinha
com cebolas douradas para papai ontem à noite, e foi bem antes de domingo,
que era dia de compras, quando meu pai saiu para a cidade e voltou com toda
a carne e legumes que precisávamos para a semana. A geladeira estava cheia
de recheio de varenyky e os potes cheios até a borda com repolho em conserva
e peixe branco.
Deixei a tampa deslizar e me levantei e examinei as prateleiras. Havia
apenas frascos de ervas, a maioria vazios, e cascas de cebola que cobriam o
chão do armário como folhagem de outono. Uma barata deslizou a centímetros
dos meus dedos. Fechei a porta do armário.
E então o medo se espalhou profundo e frio em mim, como um lago no
inverno. Papa tinha ido para a sala de estar; ouvi as tábuas do piso gemendo
sob seu peso e a seda de seu roupão raspando nas almofadas de veludo do
sofá. A chaleira no fogão ficou em silêncio, e a água que coloquei nas xícaras
estava apenas morna.
Meus pés descalços estavam dormentes contra o azulejo quando cruzei a
soleira da cozinha, até onde Papa estava sentado, sem nada além de minhas
próprias mãos trêmulas e vazias.
— Marlinchen. — chamou ele. As bolsas sob seus olhos eram
excepcionalmente roxas e gordas. — Onde está meu café da manhã?
— Não há nada. — eu consegui dizer, as palavras espremidas através do
pequeno espaço na minha garganta fechando. — A geladeira e os armários
estão vazios. Toda a comida acabou.
Observei a fúria crescer em Papa, acorrentada atrás de seus olhos e presa
nos nós dos dedos brancos de seus punhos cerrados. Seu corpo inteiro tremeu
como um espírito preso em uma lamparina. Ele se levantou e chegou perto de
mim, tão perto que eu podia sentir o cheiro azedo do sono ainda em seu hálito
e ver cada cabelo eriçado de sua barba, canudos de índigo que não continham
nada da luz do sol da manhã amanteigada, que engolia tudo em um azul fosco
e impiedoso.
Fechei os olhos e me preparei para a bolha de ar que seus gritos
visitariam em meu rosto. Mas tudo o que veio foi um sussurro.
— Estou com tanta fome, Marlinchen. — ele disse, sua voz terrivelmente
suave. — Sinto como se houvesse uma cobra na minha barriga que come a
comida que cai na minha garganta. Sinto que faz cem anos desde a última vez
que coloquei uma mordida em qualquer coisa na minha língua. Mal consigo
me lembrar do sabor de varenyky de porco ou creme azedo ou kvass de amora.
A maldição tem seus dentes na minha mente, não apenas no meu estômago.
Mastigou todas as partes de mim que lembram como é sentir o cheio. Como é
estar saciado. Dói, Marlinchen. Isso dói.
Eu abri meus olhos. Lágrimas escorriam pelos cílios curtos de papai, que
eram tão azuis quanto sua barba, mas mais finos, delineados pela luz do sol
que fazia suas lágrimas parecerem orvalho da manhã na grama de trigo. Levou
outro momento, o relógio do vovô marcando cada segundo insuportável, antes
que eu entendesse.
— Você comeu tudo? — Eu gritei. — Tudo na geladeira e nos armários...
Antes que eu pudesse terminar, e em um movimento rápido e
ininterrupto, a mão de papai estava no meu queixo, as unhas cravadas em
minhas bochechas. Engoli em seco quando seu polegar empurrou com força
contra minha garganta, ouvindo meu próprio pulso batendo sob sua pele.
— Minha própria filha seria tão cruel comigo? — ele rosnou. — Devo
contar a você como eu fiquei em cima da pia e comi o recheio frio de varenyky
em meus punhos nus? Devo pintar tal imagem em sua mente? Devo lhe contar
como quebrei os copos de repolho e peixe branco e os lambi até os cacos? Seria
outra maldição, ter que confessar tais coisas tão abertamente à luz da manhã.
Certamente você não deseja me amaldiçoar assim. Você não é esse tipo de
bruxa.
Foi o que ele fez, então, enquanto eu dançava com Sevas na taverna,
enquanto caminhávamos pelo calçadão. Como eu tinha rido e fingido ser uma
garota comum, ou uma donzela cisne com penas no cabelo, alheia às cordas
que me prendiam, meu pai estava aqui, devorando tudo ao seu alcance.
— Sinto muito, Papa. — sussurrei. — Eu não sabia.
No entanto, como eu poderia saber? Durante anos eu cozinhei para ele
as mesmas três refeições, e elas o haviam saciado o suficiente, e ele não
precisou invadir minhas reservas em um pânico desesperado à meia-noite.
Tive sorte de ele não ter passado pelo meu quarto em seu desejo febril. Mas,
de alguma forma, senti que meu passeio havia causado isso. Eu tinha um
segredo agora, e embora Papa não o tivesse descoberto pessoalmente, ele
deslocou as pedras do leito do riacho.
Sempre me disseram que minha magia não tinha esse tipo de poder: o
poder de fazer ou mudar ou transformar. E, no entanto, de alguma maneira
sorrateira e sinuosa, havia feito isso com Papa; eu o tinha feito sofrer.
— A maldição cresceu comigo, Marlinchen — Papa disse, sua voz ainda
baixa. — A cada ruga que se forma no meu rosto ou a cada cabelo prateado
que encontro na minha barba, há outra pontada de fome na minha barriga.
Titka Whiskers era realmente uma serpente de mulher. Seu veneno ainda está
quente em minhas veias.
Suas mãos ainda estavam em meu rosto, mas meu coração deu um puxão
horrível de culpa, de pena. O que quer que Papa tenha feito, seja qual for a
maneira como nos fez viver, esse era um destino que ele não merecia. Tanta
agonia, e tudo o que tive que fazer para aliviar um pouco foi um pouco de
trabalho na cozinha. Teria sido extraordinariamente cruel da minha parte
recusar. Eu teria sido a mais malvada de todas as filhas, em todas as histórias,
escritas e reais. Undine já havia escolhido a crueldade, e Rose havia escolhido
a inteligência. O que mais me restava além de bondade? As terceiras filhas
sempre ficavam com a última escolha de tudo.
— Vou ao mercado. — informei a Papa. — Apenas me dê alguns rublos,
e eu irei. Vou buscar os cortes de carne mais gordurosos, as galinhas maiores,
as frutas mais maduras...
Mas antes que eu pudesse terminar, Papa já estava respirando, o ar
assobiando pelo nariz de uma forma que meu corpo lembrava como perigo.
— Você não é uma tola, Marlinchen. — ele disse — Mas às vezes você
persevera em se comportar como uma. Não temos rublos; esse é o problema de
tudo. Você e suas irmãs não trabalham duro o suficiente e recebem mais do
que sua parte. Eu sei o que você faz, querida filha, no jardim quando pensa que
ninguém está olhando. Come a comida e a vomita novamente. Enquanto seu
pai passa fome, você enterra sua comida desperdiçada debaixo da amoreira de
Rose? É para me insultar? Para zombar da minha maldição? Você me odeia
tanto?
Todo o meu corpo ficou escorregadio com um suor frio. Como ele sabia?
Que feitiço de olhos aguçados ele lançou para me observar quando seus olhos
reais não podiam? Comecei a dizer alguma coisa, a pedir desculpas, mas meus
lábios não se moviam e minha garganta estava incrivelmente apertada e eu
ainda podia sentir meu pulso acelerando sob seus dedos.
— Nunca mais, Marlinchen, você está me ouvindo? — ele murmurou
contra minha garganta. — Tudo o que você come, você come.
— Sim, Papa. — choraminguei, mal capaz de falar além de seu aperto de
aço. — Eu sinto muito. Eu nunca vou fazer isso de novo.
Por fim, ele me soltou, mas eu fiquei imóvel, com medo de me mexer,
com medo de cair em um buraco que não podia ver. Papa estendeu a mão
novamente e eu me encolhi, embora fosse apenas para ele apertar a ponte do
nariz entre o indicador e o polegar. As bolsas roxas sob seus olhos pulsaram.
— Vá buscar suas irmãs. — ele disse.
E assim eu fiz, despertando primeiro Undine, que me deu um tapa forte
com seu travesseiro, e então Rose, que acordou com tal sobressalto que era
como se eu tivesse derramado água gelada em suas costas. Nós três descemos
as escadas em nossas camisolas e roupões, abraçando nossos braços em volta
de nós mesmas, tentando respirar o mais silenciosamente possível. Papa andou
de um lado para o outro na sala de estar. O relógio do avô tiquetaqueava no
ritmo de seus passos.
— Filhas gananciosas, filhas egoístas, filhas ingratas — disse ele, olhando
para o chão. — Não é suficiente que eu desperdice com essa maldição infernal,
não é suficiente que eu construa esta casa sobre suas cabeças e plante o jardim
que as envolvem e a cerca que as mantém seguras. Agora não consigo nem
comer. Digam-me, filhas, vocês se alegrarão quando me encontrarem, morto
de fome, na minha cama? Vão se divertir com minha pilha de ossos e pele, rir
enquanto jogam meu corpo em sua sepultura precoce? — Ele fez um som
irônico no fundo de sua garganta. — O que sua mãe pensaria das meninas que
ela criou no peito?
Ele não costumava invocar o nome de Mama, mas sempre era uma magia
poderosa quando o fazia. Uma mortalha de frio terrível caiu sobre nós três,
minhas irmãs e eu, e eu não conseguia me mover ou falar pela rapidez e
amargura que rastejou por minhas veias. Lágrimas se acumularam, molhadas
e gordas, nos cantos dos meus olhos, como um desenho de sangue.
— Então não temos rublos agora. — Foi Rose quem finalmente ousou
falar, Rose a mais inteligente e imperturbável de todas nós. Papa deu um aceno
silencioso, afiado e furioso, e eu me assustei com isso; Derkach não tinha
acabado de nos dar um grande saco de moedas? Rose não estava lá, mas isso
quer dizer que já se foi? — Ainda há muito que podemos fazer — ela
continuou. — Podemos ir à gráfica e mandar fazer panfletos para divulgar
nossos serviços e depois pendurá-los pela cidade. Podemos cobrar a todos os
nossos clientes alguns kopeks a mais; a maioria deles não vai se importar. E
enquanto isso, podemos vender algumas de nossas coisas para pagar a comida
e as taxas de impressão.
A cabeça de Papa se ergueu.
— Você quer que eu penhore nossos pertences como uma mosca
lamentável que precisa de sua próxima dose?
— Só as coisas de que não precisamos, as que temos pouco uso. — disse
Rose. Sua voz era firme, seu rosto plácido mesmo quando a saliva voava da
boca de Papa e se estendia como teias de aranha pelo tapete. — Algumas de
nossas jóias, talvez. Uma lâmpada ou duas. Só precisamos de um pouco para
nos manter até que nossos clientes voltem.
Ouvi Undine fazer um pequeno barulho de protesto, mas ela não falou.
Papa parou de andar. No saguão, o relógio do vovô soou nove vezes.
— Tudo bem. — disse ele. — Tudo bem então. Trarei o mais violento dos
mercadores de Oblya à nossa porta.
16 Kalach é um pão tradicional da Europa Oriental, geralmente servido durante várias refeições
ritualísticas. O nome se origina da palavra protoeslavo kolo que significa “círculo” ou “roda”.
Mas o corretor que comprou minha pulseira ainda estava lá, examinando
um de nossos bustos de mármore com tremendo interesse. Quando viu Papa,
foi até ele e disse:
— Você tem mais algum dos pertences de sua esposa para vender? Aliás,
sinto muito pela sua perda. Talvez ganhar uma bela soma alivie um pouco sua
dor. Eu tenho alguns compradores que, acho, estariam bastante interessados
em bugigangas anteriormente possuídas por uma mãe de bruxas.
Eu podia ouvir o bracelete de pingentes de Mama tilintando baixinho em
seu bolso. Papa olhou com ar de falcão entre o corretor e eu. A barriga de sua
bochecha estava ondulando do jeito que fazia quando ele mastigava o interior
de sua boca.
— Sua mãe tinha algumas outras coisas, não tinha? Coisas de mulher,
principalmente. Lembro-me de um compacto de ouro em forma de concha.
Meu sangue esfriou tão rápido que pensei por um momento que Papa
estava usando mais de sua magia em mim. Mas não havia brilho de feitiço no
ar; era apenas a minha própria mentira revirando na minha barriga como um
cadáver em um rio, agitado de um lado para outro pela corrente, inchado e
sujo. Abri a boca, mas tudo o que saiu foi ar sufocado.
Os segundos passaram por mim, o relógio do vovô marcando seu tempo.
E então, finalmente, algo veio à tona em mim, uma ideia precipitada que eu
esperava que pudesse distraí-lo da pergunta do corretor.
— Papai, acabei de me lembrar. — eu disse. — Já tem comida aqui. Eu
posso cozinhar um monstro para você.
Não teria funcionado se meu pai já não estivesse ansioso para ver o
corretor partir. Papa disse ao homem que não, obrigado, e o pressionou em
direção à porta e a fechou assim que ele passou. Ele era o último de nossos
visitantes, e a casa estava novamente silenciosa, vazia de magia, e limpa como
uma galinha para assar.
Fiquei ali no saguão, tentando ver todos os lugares onde Papa havia feito
buracos no chão ou colocado fios para tropeçar, tentando respirar
superficialmente para não apertar o laço em volta da minha garganta. Segurei-
me e mantive meus lábios tensos, Rose e até mesmo Undine igualmente
imóveis, todas nós fazendo nossa própria aritmética silenciosa.
Tínhamos vendido o suficiente para deixar Papa feliz? Será que
conversamos muito livremente com os visitantes e o deixamos zangado? Eu
tinha certeza de que havia um transferidor, ou algum feitiço desonesto, que
poderia medir a curva particular de um sorriso. Certamente havia uma
resposta concreta que poderia nos absolver como meramente polidas, ou nos
condenar como descaradamente promíscuas.
Papa pigarreou ruidosamente.
— Bem, Marlinchen. — disse ele. — Eu estou com fome.
O alívio mais amargo desceu pela minha espinha. Balancei a cabeça e
empurrei a porta, só soltando minha respiração quando ela se fechou
novamente atrás de mim. O dia tinha crescido bastante tarde, a tarde
penetrando no crepúsculo, o vento soprando pétalas brancas e penugem de
dente-de-leão. Nuvens raivosas eram rabiscadas no céu. Examinei o jardim
com olhos lacrimejantes, tentando engolir a pedra dura na minha garganta. Sob
o zimbro, a terra ainda estava intacta, plana e inócua como na noite anterior
em que enterrei minha areia preta ali.
Fiquei ali enquanto ousei, a raiva de Papa era uma ferida feia que
sangrava com muito pouco estímulo, considerando minhas opções. Indrik
estava fora de questão, é claro, e eu não achava que teria tempo para procurar
a serpente de fogo, embora Papa tivesse um bom apetite por cobras. Os corvos
sem olhos também seriam muito difíceis de capturar; eles grasnavam e se
afastavam de mim enquanto eu me arrastava pelo tronco da bétula. E não acho
que poderia suportar matar o doce duende choroso.
Minha outra opção não era uma opção: revelar Sevas, me revelar.
Qualquer coisa para distrair Papa. Mas eu preferia morrer a fazer isso, se meu
fígado fosse arrancado e o visse sangrar entre os dedos de Papa.
Com o canto do olho, vi o monstro de rabo espinhoso andando pelo
parapeito da janela, os olhos estreitados em talhos vermelhos. Estendi minha
mão e acenei para ele como se fosse um gato de rua, e ele veio em minha
direção e deu uma lambida vigorosa na palma da minha mão.
Sua língua farpada deixou uma faixa de pequenos cortes na minha pele,
mas antes que pudesse fugir, eu me joguei para frente e o agarrei pela nuca.
Desci correndo os degraus e contornei o exterior da casa e a arrastei para
os aposentos da empregada em desuso enquanto o monstro assobiava, cuspia
e arranhava minhas saias. Pedaços de seda rosa ficaram presos nos carrapichos
de sua cauda enquanto eu lutava com ela no cepo de açougueiro.
Agora havia apenas a questão de como matá-lo. Eu havia torcido o
pescoço de galinhas vivas muitas vezes, mas o monstro de cauda espinhosa
tinha escamas estranhas na garganta e uma placa de armadura resistente nas
costas. Segurei-o plano e me contorcendo na madeira com uma mão enquanto
eu contemplava minhas opções, e então com a outra eu peguei nossa faca maior
e mais afiada.
Suas garras arranharam o interior do meu pulso e eu dei um pequeno
bufo de dor, lágrimas apertando os cantos dos meus olhos. Então peguei a faca
e cortei um longo corte em sua barriga macia, o sangue seguindo minha lâmina
em uma fita limpa até transbordar, desdobrando e desdobrando como um
novelo de seda vermelha. Ele fervilhava sobre minha faca e encharcava o bloco
de açougueiro e pingava no chão, respingos rítmicos que marcavam a hora,
bem como o ponteiro dos segundos do nosso relógio de pêndulo.
Eu cometi um erro, não conseguindo algo para pegar todo o sangue -
mais tarde eu sabia que passaria horas esfregando o chão, e dias ainda
encontrando calafetagem preta sob minhas unhas. O monstro de cauda
espinhosa apenas ganiu enquanto morria, caudas chicoteando, garras
afundando na madeira com uma finalidade silenciosa. Eu tinha dado uma
morte lenta e ruim.
Undine teria zombado de mim por chorar por um monstro, mas eu fiz de
qualquer maneira. Minhas lágrimas caíram na fenda de sua barriga. Não era
mais uma barriga, apenas uma ferida ainda apertada. Quando finalmente o
monstro ficou quieto, removi suas garras gentilmente do bloco de açougueiro
e o virei para começar a esfolá-lo.
Foi difícil apenas com minha faca de cozinha; parecia ficar sem corte e
sem graça dentro da pele dura do monstro. Enfiei duas lâminas em sua
garganta e retirei a pele ali. Seus olhos saltaram do crânio, vermelhos e
redondos como cerejas. A maior parte do sangue já havia drenado, e a bainha
do meu vestido estava encharcada. A densa suavidade em minhas palmas era
de alguma forma familiar, mas eu ignorei a memória de pontadas e me
concentrei no monstro que estava diante de mim. Tinha dois corações, voando
atrás do esterno como uma borboleta presa. Cortei o tendão da catedral de sua
caixa torácica e cortei seu estômago.
Pele e órgãos removidos, finalmente eu tinha cortado toda a carne que
pude, pedaços rosados e molhados que pareciam de alguma forma já
mastigados. Não era muito, mas esperava que fosse suficiente para saciar
papai, por enquanto. Joguei tudo em uma panela com óleo e espalhei as ervas
que encontrei nos potes meio vazios.
O tempo todo eu não pensei em nada além do compacto de concha de
Mama enterrado sob o zimbro. Eu queria me enrolar ao redor dele como um
gato ao redor de sua ninhada. Queria colocá-lo de volta na fenda dos meus
seios e deixá-lo aquecer novamente com o calor do meu corpo. Se pudesse tê-
lo forçado pela minha garganta, eu o teria feito. Não havia lugar mais seguro
para isso do que dentro do meu estômago como um caroço de pêssego
engolido. Ocorreu-me muito abruptamente que eu estava com fome.
Servi a comida de Papa para ele em uma travessa e despejei água da pia.
Meu pulso esquerdo parecia tão lúgubre sem a pulseira de encanto de Mama.
Eu já sentia falta de seu peso companheiro, e pensar nele tilintando e tilintando
no bolso do corretor me deu vontade de chorar novamente.
Papa estava sentado na chaise longue, inclinado para a frente, os
cotovelos apoiados nos joelhos com a aparência de um animal prestes a dar um
solavanco.
— Oh, Marlinchen. — disse ele quando coloquei a bandeja na frente dele.
— Você é a melhor e mais gentil de todas as minhas filhas. Sinto muito pelas
coisas da sua mãe. Você sabe que eu não queria vendê-las, mas dificilmente
tínhamos escolha. Amanhã irei ao mercado comprar a galinha mais gorda que
encontrar, ainda emplumada e bicando. As frutas mais maduras e os peixes
mais frescos. Aqui, tome um gole deste kvass.
Havia um copo de algo tão preto quanto piche na mesa de pés fendidos.
— O que é isso? Achei que não tínhamos nada para comer.
— Encontrei no porão. Você deve ter feito. Não se lembra?
Eu tinha feito muitas coisas ao longo dos anos, incluindo kvass, que se
manteve para sempre. Não me lembrava deste em particular, embora achasse
que me lembraria: era tão escuro e de aparência grossa. No entanto, eu estava
com tanta fome que meus joelhos estavam tremendo e minha visão ficou
embaçada nas bordas, então eu simplesmente assenti.
Sentei-me ao lado de Papa na beira da chaise longue, nossos braços se
tocando. Ele me deu um beijo no topo da minha cabeça e colocou o copo na
minha mão.
Estava frio e cheirava a nada, mas talvez fosse minha própria mente, meu
próprio medo e exaustão ondulando em um feitiço que fazia tudo parecer cinza
e vazio. Talvez meu corpo soubesse que eu não seria capaz de vomitar mais
tarde, e isso estava me fazendo uma gentileza fazendo-o parecer silfo e vazio,
nada que ficasse na minha barriga com um peso insuportável.
Agora eu contava minhas horas como varenyky em um prato, cada uma
embrulhada cuidadosamente em massa. Das sete às oito, eu tinha ouvido os
gritos de Papa. Das oito às nove, eu tinha acordado minhas irmãs de suas
camas. Das nove às dez, tinha arrumado a casa em preparação para os
visitantes. Das dez às onze, tinha falado com um skupshchik. Das onze às doze,
eu tinha falado com outro. Do meio-dia para a uma, não falava com ninguém
e observava minhas irmãs e tentava não chorar. De uma a duas, tinha vendido
todas as bonecas de porcelana velhas de Undine. Das duas às três, vendi a
pulseira de berloques da mamãe. Das três às quatro, eu tinha matado e
massacrado o monstro.
Lá fora, o céu estava preto e fechado com nuvens de tempestade, o corte
vermelho do pôr-do-sol sangrando levemente. O portão gemeu ao vento, o
trinco de metal se abrindo com um tinido. O zimbro parecia impassível como
uma lápide, imperturbável. Sob a sujeira estava o compacto e dentro do
compacto estava a areia preta e em cada grão dessa areia estava Sevas, meu
primeiro segredo, minha primeira mentira, seguro como a morte. Levei o copo
à boca e bebi.
Capítulo 7
Acordei com o som da água da chuva pingando dos beirais. A
tempestade veio e se foi enquanto eu dormia, e desenraizou nossas mudas
como agulhas tiradas de uma almofada de alfinetes e samambaias sopradas na
minha janela. Esfreguei a condensação de mármore no vidro e espiei, os olhos
examinando o jardim devastado até encontrar o zimbro. Era tão ereto e alto
quanto o mastro de um navio, imperturbável, frutas pretas brilhando como se
houvesse um animal de mil olhos escondido em sua folhagem raquítica.
Exalei meu alívio, embaçando o vidro novamente. Foi quando percebi
que havia uma mancha de água no meu travesseiro. Toquei a nuca. Parecia
estranhamente úmido, meu cabelo encharcado. Talvez algo tivesse vazado
pelo telhado; não sabia de que outra forma eu poderia ter me molhado.
Levantei-me na cama, cambaleante, e verifiquei se havia rachaduras no teto.
Nenhuma fratura na linha do cabelo, nada.
Desci novamente, sentindo-me tola e perturbada. Eu queria perguntar às
minhas irmãs se elas também acordaram úmidas, mas Undine ainda estava
com raiva de mim e ainda lamentava a perda das pérolas de Mama, e sabia que
Rose iria apenas suspirar e me repreender pelo meu medo e estranheza.
Sentada na minha cama, outra memória estranha me habitava. Era fina e
vaga desta vez, como os vestígios de um sonho. No sonho eu estava
encharcada de água; acima de mim, o céu negro estava bifurcado com
relâmpagos, e havia paralelepípedos duros sob meus pés. Talvez, meu eu dos
sonhos, tivesse me carregado para fora da cama e voltado para as ruas de
Oblya novamente. No entanto, como meus desejos sonhadores podem deixar
alguma marca em meu eu desperto?
Enquanto eu olhava pela janela novamente, a porta do galpão do jardim
se abriu e Indrik saiu cambaleando, o duende em seus calcanhares. Ele parecia
quase tão desanimado quanto na manhã em que veio até nós; por dias depois,
o céu ribombou com trovões artificiais. Senti pena dele quando tirou
carrapichos do casaco, e mais pena do duende quando ele limpou o olho
grande em uma folha solta de ruibarbo.
Ouvi Papa se levantando da cama, então vesti meu roupão e desci
correndo.
Fazia muito tempo que eu não via a geladeira tão cheia, recheada quase
a ponto de estourar com pacotes de papel duro e branco; potes de creme azedo
que caíram uns sobre os outros quando abri a tampa; carpas inteiras com a
cabeça e os olhos ainda intactos. Lá estava o frango que ele havia prometido,
embora já estivesse depenado e cheio de espinhas, e maçãs vermelhas e
redondas sem hematomas. Vasculhei os pacotes de papel pardo e as frutas
soltas até encontrar, estranhamente, um recipiente de vidro com recheio de
varenyky que não me lembrava de ter feito.
Fiquei feliz, porém, por finalmente poder preparar um café da manhã
adequado para Papa. Certamente ele não poderia ficar com raiva de mim ou
de minhas irmãs quando havia um prato cheio em sua frente e ele estava
sentado em um saco cheio de rublos. Fiz a massa e enrolei bem fina, depois
fritei o recheio com cebola e óleo. Coloquei seu varenyky no prato com muito
cuidado, deixando cair uma colher de creme de leite fresco ao lado deles, e
outra colher de repolho roxo em conserva com ele. Eu o serviria a ele e ele
sorriria e me agradeceria e beijaria minhas bochechas, e então imprimiríamos
os panfletos e mais clientes viriam e nada mais de Mama precisaria ser
vendido.
Não consegui encontrar o kvass de amora que Papa e eu havíamos
bebido ontem à noite, então servi-lhe um copo de água. Enquanto eu arrumava
tudo na bandeja, vi um destroço de pelo e pele e sangue seco no cepo de
açougueiro, o que restava do monstro que eu havia matado.
Uma sensação de mal estar sacudiu minha barriga, como alguém
cutucando uma fruta madura demais em um galho caído.
No rescaldo seguro da tempestade e na carcaça silenciosa e eviscerada de
nossa casa, eu me permiti pensar em Sevas novamente. Ele interpretaria Ivan
esta noite, vestido de penas e pintado de ouro, seguindo os mesmos passos
várias vezes, tentando fazer com que cada sorriso parecesse novo e cada
tropeço parecesse terrível.
Com o ritmo implacável do bordado, uma ideia me espicaçava: eu poderia
sair de novo.
A areia preta estava enterrada em segurança sob o zimbro, e eu já havia
provado que não haveria nenhuma transformação horrível à meia-noite,
nenhum feitiço furtivo no jardim ou quaisquer perigos intransponíveis nas
ruas de Oblya. Eu menti para Papa e ele não provou em seu fígado ou kvass;
seria tão terrível testar minha sorte uma segunda vez?
As histórias tendiam a dar três chances para esse tipo de coisa. Três noites
de folia antes de sua carruagem se transformar em uma cabaça. Três perguntas
para fazer ao lobo antes que ele mostrasse os dentes. Três mordidas de uma
maçã antes de comer o veneno nela. Eu poderia distribuir minhas três chances
com cuidado, saboreando-as como caramelos; eu poderia chupá-las e cuspi-las
novamente na minha mão. Até a imaginação disso era emocionante e tinha um
sabor doce.
Levei a bandeja de Papa para a sala de estar e a coloquei sobre a mesa de
pés fendidos diante dele.
— Obrigado, Marlinchen. — agradeceu ele. As bolsas sob seus olhos
pareciam menores do que há algum tempo, e eram um tom lavado de lavanda.
Ele deve ter dormido bem sabendo que a geladeira finalmente estava cheia.
Seu elogio e sua fácil aquiescência me fizeram amolecer.
— Obrigada por ir ao mercado. Havia muita comida na cozinha.
— Sim, mas teremos que ter cuidado. Você e suas irmãs não podem
comer muito. As mulheres precisam de menos para saciar-se do que os
homens, e nenhuma de vocês é amaldiçoada. Se estiverem com fome entre o
almoço e o jantar, comam algumas frutas da horta.
Ele olhou pela janela, mas não pareceu notar os danos que a tempestade
havia causado em sua propriedade, gavinhas de videira ainda chicoteando
frouxamente na brisa escassa como o rabo de um cachorro muito velho.
Eu não estava com muita fome, o que foi uma surpresa. Normalmente,
eu observava Papa comer com inveja miserável e culpada, desejando poder me
permitir comidas tão ricas e depois me castigando por meus próprios desejos
feios e indecentes. Agora, me sentia muito pouco ao ouvir os sons de Papa
comendo, e quando olhei para o jardim, minha mente se encheu como os cofres
de uma taverna com pensamentos de Sevas e vodca e o calçadão à noite.
Eu tinha o compacto. Eu tinha a pena. Tinha, talvez o mais importante
de tudo, a memória que me assegurava que era possível escapar e voltar sem
consequências. Três segredos, três mentiras. Três e três e três, como diziam as
histórias. Certamente, eu não poderia estar fazendo algo tão terrivelmente
errado se estivesse seguindo tão de perto os éditos dos contos no códex.
Minha visão ficou vidrada e quase não percebi o homem descendo a rua
em direção à nossa casa até que ele parou bem no portão e começou a
chacoalhá-lo com vigor desesperado. Por um momento pensei que poderia ser
Derkach de novo, mas esse homem era jovem e tinha o olhar esguio e faminto
de tantos trabalhadores diários de Oblya. Não o reconheci como nenhum dos
meus clientes, ou de Rose, ou de Undine. Eu nunca o tinha visto antes.
Depois de mais alguns momentos de barulho fútil no portão trancado, o
homem começou a gritar.
Papa se levantou de seu assento e se juntou a mim na janela. Uma
respiração perigosa emplumada contra minha bochecha.
— Marlinchen, quem é esse?
— Eu não sei — eu disse, com um nó no estômago. — Ele não é um dos
meus.
— Parece que ele pode estar bravo. Muitos dos jovens de Oblya estão
hoje em dia, levados à loucura pelo carrossel giratório de casas de prazer,
antros de jogo e tavernas de dois rublos. Se ele não sair logo, terei que lançar
um feitiço.
Até onde eu sabia, Papa não havia erguido um novo esqueleto de magia
sobre a casa; estávamos expostos como um caranguejo sem a concha, o que só
deixava Papa mais malvado e raivoso.
Mas não vi nenhum brilho de loucura nos olhos do homem, apenas uma
angústia fervorosa que espremeu uma gota de pena de mim. Uma mentira
precipitada e imprudente subiu na minha garganta, e antes que eu pudesse
parar, disse:
— Acho que o reconheço, afinal. Ele é um dos meus clientes. Ele terá
dinheiro para mim.
O olhar de Papa mudou de um jeito que era quase mágico, de um jeito
que quase me fez cuspir minha mentira como um gole de leite estragado. Mas
ele apenas disse:
— Vamos sair e ver esse seu cliente.
Juntos, e deixando seu prato pela metade, abrimos a porta e saímos para
o jardim devastado. O gnomo correu até mim chorando e Papa fez um barulho
de censura tão mordaz que senti mais pena do que nunca, e mal resisti à
vontade de pegar o duende em meus braços. O que tinha feito de errado?
Meus pés descalços afundaram na terra molhada, e pétalas de flores
esmagadas grudaram em meus tornozelos. Quando nos viu chegando, o
homem parou de chacoalhar e ficou apenas olhando, os olhos úmidos e
brilhantes.
Agora eu sabia, sem sombra de dúvida, que nunca o tinha visto antes, e
provei a terrível bile da minha decepção.
— Os jovens desta cidade não têm senso de cortesia — Papa cuspiu. —
Mal passa do amanhecer, garoto. Por que você está chacoalhando nosso portão
como um cachorro em seu canil?
— Por favor, senhor. — disse ele. — Meu nome é Nikolos Ioannou. Niko.
Eu sou um colega de apartamento de Fedir, Fedir Holovaty. Ele me disse que
é um de seus clientes regulares. Sra. Vashchenko, quero dizer.
Ele era Ionik, quase desejei ter percebido antes de sair para encontrá-lo.
Iria irritar Papa ainda mais.
A raiva de Papa o exalou como fumaça de tabaco, oleosa e quente.
— E que necessidade você tem dos serviços dela?
O rosto de Niko empalideceu.
— Eu não, senhor. É Fedir. Ele está terrivelmente doente, e nenhum
médico na cidade vai vê-lo. Ele disse que eles não acreditam nele, que ele está
muito doente. Mas ele está, Sra. Vashchenko, eu juro. Ele está vomitando há
horas, e todo o nosso apartamento cheira a morte. Ele me disse que você é a
única que iria vê-lo, disse que você o prometeu que viria se ele chamasse.
Respirei fundo, sentindo-me apenas confusa e assustada. Papa falou
antes que eu pudesse.
— Minhas filhas não trabalham de graça. E elas não saem de casa. Se seu
amigo está precisando tanto da ajuda de Marlinchen, diga-lhe para vir aqui ele
mesmo, e com um saco de rublos na mão.
— Mas ele está muito doente para vir. Ele não consegue nem andar. —
Mechas de cabelo cor de trigo espreitavam por baixo do boné de Niko, suor
grudando-as em sua testa. Havia um leve tom cinza em sua pele, uma
aparência marmorizada como leite velho, e pelo jeito que seu corpo tremia, me
perguntei se ele já não tinha pegado o que Fedir tinha. — Por favor, Sr.
Vashchenko. Senhor. Posso lhe dar o dinheiro que tenho agora, e mais quando
sua filha chegar ao nosso apartamento. Eu não... Fedir é meu amigo. Não posso
vê-lo morrer.
Uma onda de culpa tão terrível tomou conta de mim que comecei a
tremer também, inalando quente e rápido. Eu tinha prometido a Fedir que iria
tratá-lo, não importa a doença. Tinha prometido que iria até ele. Eu disse: —
Papa, precisamos do dinheiro. Nós precisamos.
Papa olhou entre Niko e eu, a cabeça balançando para frente e para trás
com tanta força que suas bochechas bateram e o vento eriçou sua barba e ele
parecia tão malvado quanto um cão de caça, tentando decidir onde primeiro
fechar os dentes.
Eu tinha sobrevivido a essa fúria de mandíbula rápida antes, ficando
quieta até que diminuísse, e de alguma forma Niko parecia sentir também que
apenas o silêncio e a quietude nos salvariam. Ele enrolou as mãos dos nós dos
dedos brancos em torno das barras do portão e nós dois prendemos a
respiração até que o rubor de raiva sumiu do rosto de Papa e, finalmente, ele
disse, com uma voz áspera como água negra quebrando sobre rochas:
— É melhor que haja rublos esperando por nós quando chegarmos lá,
garoto.
Em uma hora, eu tinha me vestido e feito o que pude para domar meu
cabelo e peguei uma amostra de cada erva que consegui encontrar no depósito
de Rose. Também roubei o compêndio da mesa dela. Mesmo não sendo uma
herbalista, ainda era uma bruxa e esperava que talvez pudesse imbuir os
tônicos e elixires com um pouco da minha própria magia para fazê-los
funcionar.
Era apenas isso: uma esperança. Minha magia era apenas para mostrar;
não era para fazer , mudar ou transformar. Mas havia prometido ir a Fedir e
sabia que não suportaria se ele morresse sem que eu tentasse tudo o que
pudesse para salvá-lo.
Eu não saía para a cidade com Papa desde antes de minha mãe morrer,
quando ele levou minhas irmãs e eu consigo para o mercado, ou para as lojas
especializadas, ou para ver Titka Whiskers e algumas das outras bruxas e
bruxos em Oblya. Principalmente ele estava julgando sua competição, mas
Titka Whiskers sempre nos dava quadrados de bolo de mel para comer e me
deixava puxar seus enormes cílios pretos, que eram tão grossos quanto penas
de corvo, forçando seus olhos de gato a abrir e fechar e abrir e fechar, repetidas
vezes até me cansar e adormecer enrolada em seu colo.
Minha mãe não gostava de Titka Whiskers. Ela disse que queria que suas
filhas fossem esposas de médicos, não bruxos. Queria nos treinar para fazer
piqueniques e almoços, não para fazer cataplasmas para micose ou ver
fortunas no fundo de nossas xícaras de chá. Mas nenhum homem respeitável
em Oblya se casaria com uma bruxa, mesmo uma bela. Minhas irmãs e eu
éramos apenas sua fantasia noturna furtiva; vivíamos dentro de suas cabeças,
não ao lado delas em seus leitos conjugais.
A ideia de suas filhas se casarem com médicos era bastante palatável para
meu pai, e quando ele descobriu que éramos bruxas, inicialmente ele se
desesperou com nossas perspectivas. Então, percebeu que poderia usar nossa
magia e então Mama morreu e nenhuma de nós saiu de casa, então não havia
homens para conhecer de qualquer maneira.
Agora Niko nos levou pela rua Kanatchikov, na direção oposta do teatro
de balé. A tempestade deixara tudo úmido e abafado; senti como se estivesse
sendo espremida por um punho de ar. Meus cabelos já estavam encaracolados
de sua tênue ondulação. De dia, as ruas estavam mais movimentadas até
mesmo do que à noite, com bondes e carruagens patinando sobre os
paralelepípedos como escaravelhos e vendedores de kumys empurrando seus
carrinhos e corretores em confortáveis ternos pretos, caminhando
furiosamente em direção à bolsa de valores.
Eu não tinha ido a nenhuma dessas ruas durante o dia antes, pelo menos
não em muito tempo, mas havia algo imensamente familiar na maneira como
os paralelepípedos rolavam sob meus pés. Como se meu corpo se lembrasse
de algo que minha mente não lembrava.
À medida que avançávamos, nos deparamos com mendigos e bêbados,
encostados nas laterais dos prédios ou amontoados ao longo de becos como
mofo, rostos pálidos e suados. Vi Papa enrolar o lábio quando passamos por
um deles, a garrafa escura ainda presa frouxamente entre o indicador e o
polegar do homem. A magia brotou de Papa como pelos nos pelos de um
cachorro, e foi só porque Niko acelerou então que meu pai não perdeu seu
feitiço. O bêbado rolou e pressionou o rosto contra os paralelepípedos.
Nesta parte de Oblya, onde eu nunca tinha estado, os prédios eram como
casas de cartas meio tombadas. Os toldos foram batidos pelo vento e
amarelados com o tempo. As janelas estavam cheias de moscas pretas mortas
e manchadas de marcas de mãos que permaneciam como graxa em uma forma
de torta. Os varais frouxos se cruzavam acima de nossas cabeças, cortando o
céu cinza em lascas. Fumaça gordurosa saía das sacadas do segundo andar e
cães vadios mancavam pela estrada, farejando montes de lixo.
E ao nosso redor havia jovens, trabalhadores diurnos, embora isso me
chocasse mais do que tudo como eles pareciam não estar fazendo nenhum
trabalho. Estavam sentados na varanda e alguns deles estavam fumando e
alguns tinham jogos de dominó desgastados ou garrafas de vodca meio vazias,
mas a maioria estava apenas sentada lá e olhando, seus dentes pretos como
tabaco. Acelerei meu passo e alcancei Niko, mesmo quando Papa fez uma
careta e fez uma carranca, e perguntou em um sussurro: — Por que eles estão
apenas sentados aqui?
— Não há trabalho para eles hoje. — disse Niko. — A maioria de nós não
tem empregos regulares, sabe. Podemos ir às fábricas e lojas e perguntar aos
capatazes e proprietários se precisam de alguma coisa, mas na maioria das
vezes eles não precisam, ou alguém chegou lá primeiro. E sem emprego
significa sem dinheiro e, claro, nada para comer.
Os olhos de um homem se cravaram em mim, afiados e brilhantes como
pontas de facas de cozinha. Ele se inclinou e sussurrou algo para outro homem
ao lado dele, e ambos sorriram como gatos saciados. Um pouco de suor gelou
na minha nuca, e então Papa me agarrou pelo pulso e me conduziu.
Niko nos levou a uma pequena mercearia com letras Ionik em dourado
ao longo de suas janelas de vidro e um toldo verde que caía e murchava como
uma das bochechas de Papa. Lá dentro, curvado atrás do balcão, havia uma
bolota de um homem com três tufos precisos de cabelo preto: um sobre cada
uma de suas orelhas e outro no topo de sua cabeça redonda. Ele esticou o
pescoço lentamente na direção de Niko, como um cachorro muito gordo
rolando, e no momento em que o viu começou um discurso abafado, palavras
inaudíveis por trás do vidro manchado de graxa.
O rosto de Niko ficou pálido, e ele se apressou até a porta lateral do
prédio, tirou sua chave e a girou, então acenou para Papa e eu entrarmos.
O corredor estava escuro e quente e tinha o cheiro úmido e mofado de
roupa suja por muito tempo na pia. Papa se enrijeceu, os ombros em volta das
orelhas, e latiu:
— Estou perdendo a paciência, rapaz. Por uma viagem pelas favelas
purulentas, você nos deve cinco rublos, e isso antes mesmo de minha filha ver
seu paciente.
— Estamos quase lá. — Niko murmurou, seu rosto ainda sem sangue.
Ele nos levou até a escada estreita, meus joelhos começando a ficar fracos
debaixo de mim e a respiração de Papa ficando mais pesada e mais quente
contra meu pescoço. Talvez eu tivesse cometido um erro grave.
Chegamos a outra pequena porta, e Niko começou a tirar sua chave
novamente, mas antes que pudesse colocá-la na fechadura, a porta se abriu
diante dele. Na soleira estava um homem de cabelos pretos com olhos azuis e
um olhar tão escarpado e bonito que eu o reconheci imediatamente, mesmo
semicerrando os olhos na penumbra.
Sevas.
Ele me viu por cima do ombro de Niko e sua boca se abriu uma vez, sem
palavras, depois fechou novamente. O rosto de Papa estava a centímetros do
meu, mas eu nem olhei para ele; poderia dizer pela dificuldade em sua
respiração que ele reconheceu Sevas também. O silêncio caiu sobre a escada
escura.
— Mova-se, Sevas. — disse Niko. — Eu trouxe a bruxa e seu pai.
Ainda olhando para mim sem expressão, Sevas deu um passo para o lado
e deixou Niko passar. Eu o segui mais devagar, cada passo gemendo sob meu
peso, o tempo todo sentindo a pressão de uma centena de punhais nas minhas
costas.
Quando cheguei ao patamar, parei, meu estômago revirando, e mesmo
sabendo que Papa estava lá com suas facas, sussurrei para Sevas: — Eu não
sabia... como eu poderia saber...
— Marlinchen. — A voz de Papa era como um banho de água fria. — Se
você me deixar em pé nestas escadas mais um momento, vou transformá-la em
uma anchova e a estripar eu mesmo.
Muito rapidamente entrei no apartamento, um vermelho febril subindo
em minhas bochechas. Todo o apartamento era apenas um quarto com três
leitos e uma única janela suja. Imediatamente pude sentir o cheiro de bile e
sangue, ambos tão fortes que meus olhos ficaram ferozes com água e tive que
colocar a mão na boca.
Fedir estava deitado em um dos catres, com o peito nu e imóvel, com
crostas nos cantos dos lábios. Havia um balde no chão ao lado dele e ainda
mais respingado na madeira. Um monte de imundos trapos fora usado para
limpar, e a ele, e agora estavam espalhados pelo apartamento como uma carpa
encalhada. Meus dedos se curvaram ao redor da lombada do compêndio da
herbalista, toda a sala se inclinando e arfando.
Começou a cristalizar em mim que eu realmente tinha cometido um erro
grave.
Papa me salvou de falar. Ele passou direto por Sevas e foi até Niko.
— Antes que minha filha faça um pingo de trabalho, quero ver se você
tem os rublos. Dez por vir até as favelas e mais vinte pela cura de seu amigo.
— Lá fora você disse cinco!
— Eu ficaria feliz em me despedir novamente se o preço não lhe agradar.
Mas, como disse, nenhum outro médico na cidade vai vê-lo, e seu amigo não
parece ter tempo de sobra para sua pechincha.
O rosto de Niko corou. Ele foi até um dos pequenos armários e tirou um
saco de moedas. Rebelde, ele contou dez rublos. Pensei nos homens que tinha
visto lá fora na varanda, a desesperança cinzenta e vazia em seus rostos, e pude
sentir algo apertando meu coração como um pedaço de fio de cobre.
Papa pegou as moedas e as enfiou no bolso, esticando-o mal, do jeito que
às vezes via suas bochechas incharem quando comia rápido demais. Sevas
estava tão perto de mim que eu podia sentir o ar endurecendo entre nós, e
enquanto meu pai discutia com Niko sobre o resto, finalmente me virei para
olhar para ele.
Eu não o via em tal estado desde aquela primeira noite no beco, e isso
talvez fosse ainda mais desarmante. Os olhos de Sevas estavam
excepcionalmente vermelhos e seu cabelo estava caindo sobre a testa sem
nenhum desleixo deliberado usual. Acima de suas maçãs do rosto pontiagudas
havia duas contusões insones, como borrões de tinta violeta. E eu podia dizer
pela tensão em seus ombros e a rapidez com que seu peito subia e descia, que
ele tinha sido mantido acordado naquelas noites pelo pânico, pelo terror. Um
gole desceu por sua garganta.
— Marlinchen. — disse ele, e mesmo agora ouvir meu nome em seus
lábios me fez estremecer. — Por favor. Não sei se há muito que você pode fazer
por ele, com sua magia ou não, mas deve tentar. Fedir é meu amigo. Ele é um
bom homem. Ele não merece morrer... como se a morte tivesse algum cuidado
com quem a merece.
Ele riu, mas era um som cru, raspado.
— Claro que vou tentar. — Meus olhos estavam turvos com o cheiro do
vômito de Fedir. — Papa vai me matar se eu não fizer isso.
— Eu não deixaria isso acontecer.
— Você não seria capaz de detê-lo. — eu disse, embora reprimisse um
sorriso ao pensar que ele tentaria. — Você realmente mora aqui? Presumi que
morasse com o Sr. Derkach...
Parei quando o rosto de Sevas se fechou.
— Não, eu não moro com Derkach. Não mais.
— Marlinchen. — Papa latiu. — Pare de falar com esse garoto e venha
aqui antes que este homem se afogue em sua própria doença.
Ele deve ter feito um acordo com Niko. Tentando não inalar pelo nariz,
atravessei o apartamento e me ajoelhei ao lado da cama de Fedir. Seus olhos
estavam fechados e ele estava imóvel como a morte, mas quando me inclinei
sobre sua boca pude sentir um leve sussurro de ar contra minha bochecha.
Meu alívio veio e foi tão rápido quanto um fósforo apagado. Eu nunca
tinha visto um homem tão doente antes, e mesmo que pudesse discernir o que
o afligia, não sabia se poderia curá-lo. Minha magia não era boa para isso. Mas
Papa estava olhando para mim com lâminas atrás dos olhos e Niko estava com
a cabeça entre as mãos e o lábio inferior de Sevas estava tão terrivelmente
mastigado que eu vi pequenas manchas pretas de sangue seco nele, então olhei
para eles e perguntei:
— Quando ele começou a apresentar sintomas?
— Ele chegou em casa ontem à noite e pensamos que ele estivesse
bebendo. — Niko olhou para mim através das lacunas em seus dedos, a voz
baixa. — Ele continuou indo pelo corredor até o banheiro, uma vez por hora e
depois duas vezes por hora, e então, eventualmente, ele não conseguia se
mover de seu leito. Trouxemos-lhe um balde para que não tivesse que sair, e
ele nos manteve acordados a noite inteira com sua ânsia de vômito. Pela
manhã, ele mal conseguia falar, exceto para nos dizer para não chamarmos
nenhum dos médicos em Oblya. Só você.
Deixei escapar um suspiro trêmulo, quase uma risada se tivesse ousado.
Eu não era nada perto de um médico e tudo o que eu tinha era uma bolsa de
ervas e o compêndio da minha irmã. Ainda assim, engoli o medo crescente na
minha garganta e disse: — E algum de vocês começou a adoecer com alguma
coisa?
— Não. — disse Niko, e Sevas balançou a cabeça. — Seja o que for com
que ele esteja doente, acho que não está passando
Isso, pelo menos, era uma boa sorte. Deixei meus dedos se abrirem e me
preparei para pegar o rosto de Fedir em minhas mãos, mas antes que eu
pudesse, ele começou a tossir e gaguejar, borbulhando vômito entre os lábios.
O pânico desceu pela minha espinha e tentei colocá-lo na posição sentada
para que não engasgasse, mas sua pele estava tão úmida e pegajosa que não
consegui encontrar apoio e seu corpo estava tão mole e pesado que não
consegui. Eu o levantei de qualquer maneira, e quando o fluxo de pânico se
transformou em gelo em minha barriga, Sevas se ajoelhou ao meu lado e me
ajudou a empurrar Fedir para cima.
Juntos, seguramos Fedir pelos ombros enquanto ele se inclinava sobre o
balde e estava ruidosa e violentamente vomitando.
— Eu o peguei. — Sevas disse calmamente enquanto começava a esfregar
um círculo lento contra a parte inferior das costas de seu amigo. —, você pode
soltá-lo, Marlinchen.
Então eu fiz, dedos tremendo horrivelmente. A respiração de Papa ficou
alta e perigosa e eu sabia que era porque Sevas tinha sido muito amigável
comigo dizendo meu nome e, por sua estimativa, fui mais do que amigável em
troca.
Eu não podia mais sorrir para ele, não com Papa no quarto. Esperei até
que Fedir terminasse de vomitar e então disse com voz aguda:
— Você não está recebendo nada por ajudar.
Os olhos de Sevas dispararam entre meu pai e eu, então ele deu um aceno
rápido e se levantou novamente. Ele sabia que minha maldade era apenas por
causa de Papa, e um arrepio de desejo e medo subiu pela minha espinha com
aquele entendimento silencioso entre nós.
Uma vez que Fedir estava deitado novamente, os cílios tremulando
fracamente, eu poderia beliscar o lóbulo de sua orelha entre o dedo indicador
e o polegar e segurar minha outra mão ao longo da linha de sua mandíbula.
A visão penetrou em mim como se alguém tivesse quebrado um ovo
cozido e deixado a gema escorrer pelos meus olhos. O apartamento foi aberto,
e eu estava nas ruas de Oblya à noite, tudo parecendo escorregadio no escuro.
Minhas mãos estavam ásperas com calos amarelos e percebi imediatamente
que agora eram as mãos de Fedir. Havia uma dor tremenda correndo da parte
de trás dos meus joelhos até as omoplatas – a dor, presumi, de um longo dia
de trabalho e dias mais longos sem o suficiente para comer. A estrada que se
estendia à minha frente estava repleta de rostos brilhantes e sorridentes, os
rostos de outros jovens que pareciam borzoi17 adolescentes enquanto desciam
a rua, todos cotovelos e pernas desengonçadas.
Fui atrás deles, vacilante em minhas próprias pernas, e havia uma
neblina que fazia tudo parecer tão úmido quanto a manhã depois de uma
tempestade. Todos nós fomos rindo por um beco e depois por uma porta em
uma taverna, que percebi imediatamente que era um estabelecimento mais
pobre do que aquele em que eu estivera com Sevas, porque havia apenas
lamparinas a óleo enegrecidas dentro e nenhuma mulher rindo delicadamente.
No bar, pedimos vodca em copos sujos e bebemos tudo sem parar para
respirar. E então, quando minha visão – como a visão de Fedir – ficou mais
turva e próxima, tropecei no banheiro e me inclinei sobre a pia e abri a torneira.
A água derramou na minha boca e eu engoli. Depois da vodca, não tinha gosto
de nada.
A escuridão se fechou ao meu redor, e quando consegui abrir meus olhos
novamente eu estava de volta ao apartamento, ainda ajoelhada sobre o corpo
de Fedir. Arrepios subiram em meus braços enquanto a visão diminuía, e tirei
minha mão de sua mandíbula e soltei o lóbulo de sua orelha. Era rosa brilhante
e inchado onde meus dedos haviam pressionado com tanta força.
Sevas estava me observando com uma espécie de preocupação contida,
embora o olhar de Papa o impedisse de falar. Quando consegui acalmar meu
coração descompassado, eu disse:
— Ele foi a uma taverna ontem à noite e bebeu água da pia. Algum de
vocês já...
Antes que eu pudesse terminar, Niko soltou um gemido.
17 Borzoi é uma raça canina oriunda da Rússia. Conhecido desde a Idade Média russa, foi a raça
preferida dos nobres para caçadas e corridas.
— Ah, Fedir, seu maldito idiota. Todo mundo sabe que os banheiros das
tavernas são tão limpos quanto como a ponta de uma vassoura de varredor de
rua. Você também pode lamber os paralelepípedos. Há algo na água que o
deixou doente.
Eu tinha ouvido rumores sobre doenças que poderia pegar bebendo água
suja, e alguns anos antes de eu nascer, houve uma enxurrada de mortes que
Papa contou alegremente, porque as favelas foram expurgadas de quase um
terço de seus moradores. Agora eu sentia meu próprio estômago revirar.
Enquanto eu afastava mechas de cabelo úmido de suor da minha testa,
houve uma batida na porta.
Todos nós ficamos quietos, e eu podia ouvir apenas o som de Fedir
gemendo baixinho. Houve outra batida na porta, mais urgente desta vez.
Comecei a falar, mas Niko colocou um dedo nos lábios, os olhos vidrados de
pânico.
Depois que as batidas cessaram novamente, ele sussurrou:
— É o senhorio. Estamos com duas semanas de aluguel atrasados.
Papa deu um bufo de raiva.
— Rapaz, ele sabe que você está aqui dentro. Cheira a morte aqui e estou
perdendo a paciência com toda essa empreitada. O trabalho da minha filha já
está custando mais rublos do que você pode gastar.
Quando Niko abriu a boca para responder, uma voz veio do outro lado
da porta.
— Sevastyan, se você não abrir eu vou trazer o Grande Inspetor e seus
homens para quebrar sua fechadura.
Não era o senhorio. Era Derkach.
A pouca cor havia sido drenada do rosto de Sevas. Sem falar, ele
caminhou lentamente pelo apartamento e parou com a mão na maçaneta. Eu
podia ver seu peito inchar com a respiração presa. Depois de um momento, ele
abriu a porta apenas o suficiente para espiar, os nós dos dedos
embranquecendo ao redor da maçaneta, mas antes que Sevas pudesse dizer
uma palavra, Derkach enfiou o pé na fenda fina como uma faca e entrou no
apartamento.
Ele mal parou para observar a cena antes de se virar para Sevas.
— Você está absolutamente louco? O treino começou há uma hora e
nenhum dos outros dançarinos pode começar sem seu Ivan. Seria uma coisa se
este fosse o primeiro treino que você perdeu, ou mesmo o segundo ou o
terceiro, mas desde que veio para Oblya, você perdeu mais do que estava lá, e
isso sem levar em consideração quantas vezes correu para o beco depois um
show para vomitar. Encontrei a vodca em seu camarim; não pense que pode
mentir para mim sobre o ar do mar por mais tempo.
Quando Derkach parou para inalar, por fim seu olhar percorreu o
pequeno apartamento. Ele viu Fedir esparramado em sua cama e eu ajoelhada
ao lado dele e meu pai parado acima de nós dois e Niko caído contra a parede,
o rosto nas mãos. Sevas estava olhando para o chão. Derkach virou-se para ele
e disse:
— Que diabos está acontecendo aqui?
— Fedir está doente — Sevas murmurou — Meu colega de apartamento.
Eu tinha que ficar aqui e ajudar.
Os lábios de Derkach ficaram finos e brancos. Sua voz estava muito baixa
quando disse:
— E o que eu avisei que aconteceria, Sevas, se você saísse de debaixo do
meu teto? Eu lhe disse que a única hospedagem que poderia pagar seria nas
favelas, divididas entre trabalhadores sem mais de um rublo em seus nomes
em qualquer dia. E se você adoecer com a doença do seu pobre colega de
apartamento? O que a companhia fará sem seu Ivan e o que sua mãe pensará
quando eu lhe disser que tive que enterrar seu único filho em Oblya?
— Não está contaminando. — Fiquei tão surpresa ao me ouvir falar que
corei imediatamente, da testa ao queixo. — A doença de Fedir, quero dizer.
Sevastyan vai ficar bem.
— Sra. Vashchenko — disse Derkach, e quando olhou para mim seus
olhos se estreitaram como se eu fosse algo imperceptivelmente pequeno —
aprecio sua preocupação, mas sou eu quem é pago para se preocupar com
Sevas. Por favor, volte ao seu trabalho e deixe-me aos meus cuidados.
Minhas bochechas estavam queimando. Sevas ainda não havia levantado
os olhos do chão.
Fedir tossiu novamente, e com dedos trêmulos eu abri o compêndio da
herborista. O pergaminho era fino como casca de cebola, e a caligrafia de Rose
estava manchada e minúscula, como se cem aranhas tivessem sido espremidas
na página. Algumas notas foram acompanhadas de amostras prensadas de
ervas ou pétalas de flores; outras eram meramente ilustradas com desenhos de
minha irmã, que eram tão difíceis de discernir quanto sua caligrafia.
Folheei as páginas com deliberação mortificada, tentando fazer parecer
que estava procurando por algo específico. Na verdade, eu não tinha ideia por
onde começar. Teria tido a mesma sorte se tivesse sido escrito em Ionik. Atrás
de mim, Derkach estava falando com Sevas em um tom abafado.
Quando ousei olhar por cima do ombro, vi que ele tinha uma mão
segurando a nuca de Sevas. Reconheci o gesto: ternura e crueldade ao mesmo
tempo. A voz de Derkach era baixa de um jeito que às vezes era de Papa, de
um jeito que significava perigo. Eu não conhecia bem Derkach e não conseguia
entender mais do que algumas palavras, flutuando na superfície como
manchas de creme branco em borscht18, mas sabia que elas também
significavam perigo.
Ouvi teatro e ensaio e show e dinheiro. Ouvi ingrato e insolente e descuidado.
Ouvi bêbado e indecente. Ouvi meu nome.
Minha cabeça se ergueu, mas a voz de Papa enrolou seu próprio torno
em volta da minha garganta.
— O que está esperando? Você realmente quer me manter por mais
tempo neste apartamento miserável?
Com o rosto quente, voltei ao livro. Na primeira página havia um índice,
que eu conseguia ler principalmente. Mas só porque sabia que as palavras não
significavam que eu pudesse entender o que elas significavam todas juntas.
Havia duas seções, uma para Doenças do Corpo e outra para Doenças da Mente.
Em Doenças do Corpo encontrei mais de uma dúzia de subtítulos: Doenças da Pele
e Doenças do Fígado e Doenças da Gengiva.
Fedir gemeu, seu peito azul-branco arfando. Virei para a página marcada
Doenças do Estômago.
Tive que segurar o livro contra a escassa luz do sol que entrava pela única
janela suja, agachada. Eu mal podia dizer onde uma palavra terminava e a
outra começava, mas mesmo assim consegui separá-las, minhas perspectivas
não melhoraram. Tudo foi escrito como se fosse um enigma; eu não conseguia
entender por que minha cuidadosa e inteligente irmã não organizou melhor
seu livro. Talvez ela não quisesse que mais ninguém pudesse lê-lo.
Pressionei meu polegar na página com tanta força que minha unha
rasgou uma pequena fenda no pergaminho, tomando o tempo para engolir
18 O borsch é uma sopa original da Ucrânia que é tradicional em diversos países do Leste Europeu
como a Ucrânia, Polônia, Rússia, Romênia, entre outros. A sopa é, normalmente, preparada com beterrava que
lhe dá uma forte coloração vermelha.
cada palavra enquanto eu avançava, virando-as na minha língua como se
estivessem chupando doces.
Se o paciente tiver cabelos claros e olhos grisalhos, use o dobro da dose e verifique
o Apêndice I–II.
Se for domingo e houver um período de chuva, use apenas ervas que foram
cortadas duas vezes no caule.
Se você estiver com raiva ao tratar o paciente, lamba seu polegar antes de
administrar a dose.
A umidade estava se acumulando nos cantos dos meus olhos e meu
estômago estava tão apertado quanto um botão de flor. Enquanto eu percorria
a página, a voz de Derkach ficou mais alta e flutuou em minha direção.
— ... depois de tudo o que fiz por você, Sevas, a um grande custo pessoal,
o mínimo que você poderia fazer em troca é não me fazer parecer um maldito
idiota. Eu sou tolo para você? Eu sou?
— Não — disse Sevas. Eu nunca o tinha ouvido soar tão intimidado. —
Eu sinto muito.
Meu coração deu uma guinada horrível de dor, como se eu fosse a única
que tinha sido repreendida. Papa se aproximou de mim até ficar na bainha do
meu vestido, a ponta brilhante de sua bota amassando a seda rosa. Eu não
conseguia me lembrar se Fedir tinha olhos cinzas, então tive que prender a
respiração, me aproximar e abrir uma de suas pálpebras para verificar. Seus
lábios estavam brancos como osso e rachando como gesso velho.
Ocorreu-me, de repente, que se Fedir tivesse consumido veneno, ele
vomitara o suficiente para que tudo fosse expelido. Se ele morresse de alguma
coisa agora, seria apenas uma sede terrível.
Voltei para o índice e examinei os itens listados em Doenças da Mente.
Lembrei de Papa dizendo que a maldição de Titka Whiskers também tinha seus
dentes em sua cabeça, que tinha mastigado todas as partes dele que lembravam
como era estar cheio.
Virei para outra página do compêndio de Rose, então olhei para Niko e
perguntei:
— Você tem água aqui? Água boa?
— Sim, senhora — disse ele. — Do banheiro ao fundo do corredor.
— Vá buscar um pouco, por favor. O quanto conseguir.
Niko assentiu e saiu, e eu olhei para o livro em concentração franzida,
tentando fechar meus ouvidos ao som da voz de Derkach.
Quando me atrevi a olhar para cima novamente, ele estava acariciando
suavemente a bochecha de Sevas. Eu me senti tão doente quanto Fedir.
Em outro momento, Niko voltou com um balde cheio de água. Abri a
sacola de ervas que havia tirado de Rose e vasculhei até encontrar as de que
precisava – tomilho, erva-mate e papoulas esmagadas – tudo para tratar
homens que precisavam ser convencidos de sua própria doença e da potência
de sua cura. A negação era, afinal, uma doença da mente.
— Você vai me ajudar a levantá-lo?
Niko se agachou ao meu lado e empurrou Fedir para uma posição
sentada. Enquanto ele fazia isso, eu gentilmente separei seus lábios e coloquei
a mistura de ervas em sua língua. Então belisquei seu nariz e cobri sua boca
com minha mão até que ele engasgou, tossiu e engoliu. Deixei minhas mãos
caírem para os lados. Fedir gemeu, a cabeça pendendo, o queixo batendo no
peito.
Segundos se arrastaram, como lixo preso em uma rede marítima. Com o
canto do olho, vi os lábios de Derkach se moverem contra a concha da orelha
de Sevas, e desviei o olhar, corando, e então, por fim, Fedir disse:
— Estou com tanta sede.
Alívio se abriu em mim, tão quente e doce que eu sorri e até ri.
— Aqui — eu disse, enquanto Niko empurrava o balde na minha direção.
Coloquei água em minhas mãos e as levantei para sua boca. —, beba.
E ele fez, fez e fez. Ele lambeu a água das minhas mãos como um
cachorrinho e depois chorou como uma criança, e eu senti meus próprios olhos
tornar-se nebuloso quando ele se inclinou sobre o balde e pegou a água, gotas
caindo por seus lábios e pelas ranhuras de seu peito, espirrando na cama e no
chão. Um pouco de cor retornou ao rosto de Fedir, apenas dois círculos rosados
como rouge aplicados com pouca atenção.
Eu sentei e observei Fedir beber até que, acima de nós, Papa pigarreou.
— Você me deve quarenta rublos pelo trabalho da minha filha — disse
ele.
A mandíbula de Niko ficou frouxa.
— Mas nós concordamos em trinta... por favor, senhor! Isso é mais do
que ganhei nas últimas três semanas e o dobro do que devo de aluguel ao Sr.
Papadopoulos. Tenho trabalho agendado amanhã em uma das gráficas da rua
Kanatchikov, mas levarei algum tempo para conseguir o dinheiro.
O sangue em minhas veias virou gelo. Niko cometera um erro grave, e
agora todos sofreríamos a raiva de Papa, a raiva do grande bruxo Zmiy
Vashchenko. As palavras de um feitiço já estavam subindo em sua garganta e
a magia estava se elevando em ondas de frio, uma névoa fria se espalhando
por todo o pequeno apartamento. Meus dentes começaram a bater tão forte
que doeu, e eu mordi minha própria língua e provei uma explosão de sangue
acobreado.
Do outro lado do quarto, os lábios de Sevas também estavam sangrando,
as crostas se abriram e se tornaram novas. Havia uma marca vermelha onde a
mão de Derkach descansava em sua nuca.
— Minha filha não trabalha de graça, garoto — Papa rosnou — e eu não
confio na escória de Ionik para pagar suas dívidas, especialmente quando eles
não podem pagar o aluguel! Eu deveria ligar para o Grande Inspetor; deveria
ter seus homens vindo e queimando toda esta favela abandonada. Estou
relutante em desperdiçar mais feitiços com você, mas deve haver uma punição
adequada para seu engano de língua de prata, por todas as lágrimas falsas que
derramou e toda a simpatia que despertou na mente simples de minha filha.
Não, acho que sei o que devo fazer. Acho que vou transformá-lo em uma pega-
de-bico-amarelo. Eles cantam músicas bonitas também.
— Papa, não! — Eu gritei, e não podia acreditar na veemência em minha
voz, minha ousadia. Era como se um pouco da garota que dançou com Sevas
na taverna tivesse vazado para mim. — Não é melhor ter a promessa de
dinheiro no futuro do que nada? Não temos utilidade para uma pega-de-bico-
amarelo, mas um homem pode trabalhar e nos pagar com o tempo.
Papa deu um passo em direção a Niko e então parou. Quando se virou
para mim, seus olhos estavam piscando, como se duas luzes brilhantes
estivessem brilhando dentro de sua cabeça.
— Isso não é apenas uma questão de dinheiro — disse ele. — Para seu
coração bondoso e generoso, você sempre foi principalmente de cabeça oca,
Marlinchen. Não é culpa sua, mas é por isso que eu te protegi do mundo, te
protegi de gente como esses homens aqui, embriagados e vigaristas, pouco
melhores do que os bêbados que vimos desmaiados na estrada. Eles estão a um
mero dia de trabalho, ou a falta dele, longe de serem eles próprios mendigos.
Você vê este e sente pena porque é mole de coração. Mas mais destes homens
virão e descerão sobre esta cidade como uma matilha de cães sobre uma mula
morta, e por isso devemos nos manter firmes contra a maré. Oblya não perderá
um único dia de trabalho. Se houver algo, isso significa mais trabalho para o
resto.
E então ele levantou a mão, Niko se encolhendo, e eu me levantei,
puxando minha saia debaixo das botas de Papa. Ele cambaleou para trás, quase
colidindo com Sevas e Derkach, mas se segurando contra a parede.
Quando finalmente se endireitou, o rosto tão roxo quanto a barba, Papa
apenas disse:
— Marlinchen, você cometeu um grande erro.
Antes que eu pudesse sequer recuar, Sevas se colocou entre nós. Havia
sangue manchado nas costas de sua mão.
— Sr. Vashchenko — ele disse, parecendo mais abatido do que eu jamais
o ouvira, e ainda mal erguendo os olhos do chão — não há necessidade de você
usar sua magia aqui. Eu posso pagar. Posso pagar o dobro.
O brilhante rubor violeta brilhou com a interrupção de Sevas, mas
enquanto Papa considerava suas palavras, seu rosto esfriou novamente. Em
um tom gelado, ele disse:
— Oitenta, então.
Sevas assentiu e então olhou para Derkach com uma sobrancelha
franzida e olhos suplicantes. Suspirando, Derkach tirou um saco de moedas do
bolso e jogou todas para Papa. Sem falar, Papa arrancou a bolsa dele.
Olhei para Sevas, incapaz de convocar qualquer palavra. Havia a sombra
fria da magia de Papa, ainda penetrando como ar úmido de inverno em meus
ossos. Havia meu próprio terror, também, tantas imaginações horríveis se
soltando em minha mente: O que Sevas havia oferecido a Derkach, para ganhar
sua fácil aquiescência?
Eu mesma havia feito inúmeras trocas como essa, promessas que
manteria como segurar uma frigideira fumegante em minhas mãos nuas,
morder o lábio enquanto queimava, dívidas que só venceriam quando todos
os outros tivessem ido e a casa estivesse vazia e eu estivesse deitada enrolada
na minha cama.
Nossos olhares se encontraram, e Sevas me deu um sorriso torto e
trêmulo.
— Pronto — disse Derkach, depois que Papa contou todas as suas
moedas e as guardou no bolso cheio de tumor — agora que tudo foi resolvido,
podemos nos despedir. No futuro, Sra. Vashchenko, prefiro não a ver
novamente no teatro de balé. Desde sua visita esta semana, Sevas tem estado
mais desatento do que nunca. Por favor, ele já tem problemas suficientes para
manter a mente no trabalho.
Meu coração acelerou no silêncio. Eu sabia, sabia que não tinha pegado o
cartão do homem, tanto quanto sabia que tinha dado a ele o bracelete de
encanto de Mama. Tentei suavizar minha memória como uma toalha de mesa
branca para que eu pudesse ver qualquer mancha ou respingo, mas tudo era
marfim e imaculado, e nem mesmo enrolado nas bordas. O corretor tinha ido
e vindo sem deixar nada para trás.
As possibilidades floresceram em minha mente: talvez Papa o tivesse
perseguido e pegado seu cartão. Talvez eles já tivessem se conhecido antes, há
muito tempo, e esquecido os rostos um do outro. Mas todos os meus
raciocínios imaginados pareciam murchar sob escrutínio.
Eu estava cheia de incerteza gelada, como a lama que se acumulava nas
esquinas no inverno. Apressadamente, enfiei o cartão no bolso do meu roupão
ao lado do bracelete e desci as escadas.
Quando papai voltou para casa, o céu estava escurecendo para a cor de
um pêssego machucado e ele nos disse que havia colocado seus cartazes por
toda a cidade. Rose e Undine usaram agulha e linha e um pouco de feitiço para
consertar seus vestidos, e ambas eram tão bonitas que faria seus olhos se
encherem de lágrimas ao olhar para elas. Undine usava seu vestido azul pavão
e Rose usava um escarlate profundo; elas me lembravam pequenos bombons
com joias que vinham dentro de latas de bronze, exceto que os olhos de Undine
eram perigosos e o sorriso de Rose parecia malvado.
Eu tinha escolhido meu vestido menos arruinado, um vestido rosa pálido
que era muito justo na cintura e tinha um dos ossos do espartilho quebrado.
Undine estava certa; pouco importava como eu parecia. Papa passou por mim
sem nem mesmo olhar. Ele estava de pé com os braços cruzados sobre a barriga
distendida, olhando pela janela.
A pulseira de encanto estava enrolada no meu bolso e o cartão estava
bem dobrado e enfiado entre meus seios. Senti como se removesse qualquer
um de minha pessoa, eles desapareceriam, como se houvesse algum feitiço
lançado sobre a casa que destruiria instantaneamente qualquer coisa que Papa
quisesse manter escondido. Mas eu podia sentir os dois ali, o peso da pulseira
e do papel cutucando minha pele, a tinta se misturando ao meu suor.
Eu queria puxá-lo para fora e segurá-lo para ele e exigir a verdade.
Queria vê-lo gaguejar e corar e tentar explicar. A coragem crescia em mim a
cada momento que passava, coragem e fome insaciável. Todo o meu medo e
bom senso mais uma vez esquecidos, o que eu tinha a perder agora? Papa
ficaria furioso no momento em que entrasse em seu quarto e visse a ruína que
fiz nele. Eu poderia muito bem tentar comer a verdade dele também.
Não era apenas o cartão ou a pulseira de encanto ou o recheio estranho
que aparecera na geladeira no mesmo dia em que Mama desapareceu. Era cada
grito que eu tinha engolido por tantos anos. Se eu abrisse minha boca agora,
esses gritos sairiam de mim sem nenhuma maneira de detê-los.
E talvez as paredes ao meu redor finalmente começassem a mostrar
pequenas rachaduras. Se havia poder em guardar um segredo, certamente
havia poder em revelá-lo também.
Mas eu não conseguia lidar com a façanha de uma coisa tão grande, não
importa o meu coração disparado. Pensei em Sevas e apertei meu punho com
tanta força que minha junta se abriu e sangrou.
Nós quatro ficamos em silêncio por um longo tempo, o relógio do vovô
marcando os segundos. Abri minha boca e depois a fechei novamente, a pele
gelada com antecipação nervosa. E então, antes que qualquer um de nós
pudesse falar, Papa ergueu a mão e apontou para a janela, na direção do
portão.
— Olhem.
Um trio de homens estava correndo pela estrada. Seus rostos molhados
de suor eram cortados pela metade pelo ângulo do pôr-do-sol, um lado pintado
em um laranja brilhante; o outro lado pálido como um ovo. Os olhos tocados
pela luz brilhavam como kopeks em uma fonte, brilhantes, mas turvos, presos
pela água.
Trabalhadores diurnos – eu poderia dizer pela forma como a fome e o
trabalho haviam esculpido suas bochechas de menino. Eles pararam em frente
ao portão e enrolaram seus dedos ossudos ao redor dele, apertando os punhos
entre as barras.
O sorriso de Papa era exuberante.
— E eles são apenas os primeiros de muitos — disse, olhando para
minhas irmãs e para mim. — Aumentem sua carranca. Esses podem muito bem
ser seus futuros maridos na porta.
Undine fez um som irônico e enojado no fundo de sua garganta, e os
olhos de Rose se fecharam brevemente. A raiva baixa e borbulhante em mim
aumentou e eu peguei o papel dobrado dentro do meu corpete, mas quando o
fiz, Papa falou novamente.
— Bem, Marlinchen. — Ele estufou o peito como uma pomba acasalada
e me agarrou com firmeza pelos ombros e me girou em direção à janela, tudo
enquanto minha mente vacilava com protestos mudos. — Talvez eu estivesse
errado. Afinal, um homem veio atrás de você.
Espiei através do vidro, por cima das cabeças dos trabalhadores que
chacoalhavam o portão. Havia um homem que tinha cabelos grisalhos e
ombros altos e estreitos, observando com interesse morno enquanto os
pretendentes brigavam. Um barulho saiu de mim, mas era sem palavras,
sufocado. Senti como se alguém tivesse enfiado minha cabeça em uma
banheira de água fria, tudo subitamente abafado e embaçado.
Quando a neblina clareou novamente, eu quase ri da minha própria
ousadia estúpida, minha própria convicção condenada. A garota de um
segundo atrás que acreditava que não tinha mais nada a perder – ela era uma
tola, e eu a odiava. Minha garganta se fechou em incrementos lentos e
doloridos enquanto eu observava um dos trabalhadores abrir o portão. Ele
caminhou para o jardim, seguido por seus companheiros.
E o Dr. Bakay caminhou despreocupadamente atrás deles.
Capítulo 9
Aqui está o que sei sobre o Dr. Bakay.
Ele foi educado em uma faculdade de medicina em Askoldir e era
médico, o que significava que ele tratava apenas as doenças do corpo, e apenas
as partes do corpo que você podia sentir e ver, pois os cirurgiões cuidavam do
resto. Ele carregava em sua bolsa de médico minúsculos frascos pretos de
láudano e potes de sanguessugas, arsênico em urnas de porcelana. Ele escrevia
receitas em tiras de papel ásperas que se enrolavam em seus dedos como a
língua de um gato, e se você fosse a uma farmácia e visse a assinatura do Dr.
Bakay e o roteiro em loop, o farmacêutico sorria enquanto lhe entregava uma
lata de cereja – comprimidos de ópio com sabor. Todos eles gostavam tanto do
Dr. Bakay que gostavam de seus clientes por associação.
Os remédios do Dr. Bakay não eram como os de Rose; eles não se
importavam se você estava um pouco melancólico quando os dispensava; eles
não funcionavam de forma diferente dependendo de onde a lua estava em seu
ciclo; eles não necessitavam do toque preciso e hereditário de uma bruxa. Eles
funcionavam se a maré estava alta ou baixa, se você estava com raiva ou
solitário, se o coelho cuja pata você cortou tinha corrido no sentido horário em
torno de uma bétula, se seus olhos eram cinzas, verdes ou azuis. Eram magia
excepcionalmente boa, e era apenas o charme e a beleza de Rose que a
permitiam competir.
E então veio uma nova moda, varrida do Oeste como por uma brisa
muito forte, ou uma corrente particularmente propícia. Os marinheiros o
dragaram de suas redes junto com esturjões e trutas. Frenologia, era chamada
por nossos colegas ocidentais mais sábios, e embora seus métodos fossem
complexos e só pudessem ser praticados por médicos, seus resultados eram
simples o suficiente para que até mesmo os trabalhadores mal alfabetizados de
Oblya pudessem entendê-la quando abrissem as prensas de moedas. Você
podia comprar um diagrama do cérebro por apenas um kopeks, e era dividido
em seções como o desenho de um açougueiro, indicando os vinte e sete Órgãos
da Mente.
Havia um órgão para a Cautelaria e outro para a Benevolência, órgãos
para a Linguagem, a Sintonia e o Tempo. Como se viu, muitas pessoas queriam
que a topografia de seu cérebro fosse mapeada por um profissional! Quando o
Dr. Bakay se tornou o primeiro médico em Oblya a começar a praticar essa
nova disciplina, até os trabalhadores guardavam seus kopeks em latas de café
para que ele elaborasse um atlas de suas mentes.
Eles poderiam ter vindo para mim ou Undine por muito mais barato.
Mas isso significava encontrar-se com bruxas. O Dr. Bakay era
respeitável e lhes dizia por que eram pobres e, como se viu, não era uma
questão de circunstância infeliz. Talvez seu terceiro órgão fosse muito pequeno
e, portanto, você não teve atenção suficiente para ficar acordado durante seu
turno na linha de montagem. Talvez seu órgão de Aprovação fosse grande
demais e você não suportasse trabalhar em um trabalho braçal que não lhe
desse elogios suficientes. De qualquer forma, havia pouco que pudesse fazer a
não ser resignar-se à sua posição na vida, ou então tentar superar o augúrio
desesperado de sua própria mente.
Alguns tiveram um prognóstico muito melhor do que outros. As mentes
dos homens de Yehuli, disse a maioria dos frenologistas, estavam bem
adaptadas ao capitalismo – seus vigésimos e vigésimos-quartos órgãos eram
enormes! Era por isso que o gradonalchik teve que elaborar algumas leis para
restringir suas atividades, já que tinham tanta vantagem sobre o resto. Por
exemplo, ele proibiu Yehuli de residir em certas áreas da cidade, de trabalhar
aos domingos e de comprar terras. Certa vez, vi uma placa na porta de uma
casa de banho: NÃO SÃO PERMITIDOS CÃES OU YEHULI. Eu não sabia se isso era
uma das proclamações do gradonalchik, ou simplesmente a preferência do
dono do balneário.
Enquanto isso, o Dr. Bakay desbastou nossos clientes da maneira que os
desenvolvedores de terras desnudaram camada após camada de solo de estepe
para o plantio de trigo. Eu tinha dezesseis anos e Papa estava com tanta raiva
que falou apenas palavras curtas e afiadas, e chutou nosso pobre duende por
vingança.
E então um dia o Dr. Bakay chegou ao nosso portão, seu bigode prateado
voltado para cima como um sorriso. Eu estava com medo de que Papa lançasse
um feitiço para transformá-lo em um porco de trufas ou uma coruja com
chifres, mas antes que ele pudesse invocar sua magia, o Dr. Bakay levantou um
saco de rublos e o sacudiu. O Dr. Bakay era tão inteligente que sabia, mesmo
sem conhecê-lo, o que estava acontecendo com meu pai.
Papa abriu a porta, resmungando o tempo todo, e deixou o Dr. Bakay
entrar em nosso saguão. Ele cheirava limpo e agradável, como sabão carbólico.
Ele tirou o chapéu e segurou-o nas mãos, tão decoroso e dócil como um homem
de um terço de sua idade, e não vacilou quando Papa mostrou os dentes para
ele.
— Eu não deixo nenhum homem entrar em minha casa de graça — Papa
rosnou.
— Sim, claro — disse o Dr. Bakay, e então entregou seu saco de rublos
como se não fosse nada. Ele ainda estava olhando para mim. — Venho tanto
como um colega praticante de medicina quanto, simplesmente, como um
homem de curiosidade insaciável. Alguns de meus clientes falaram do grande
bruxo Zmiy Vashchenko e suas três filhas muito talentosas. Um homem me
disse que sua filha Rose curou sua dor de dente por metade do que eu cobro, e
apenas com um punhado de ervas. Outro me disse que sua filha Undine previu
sua mão de pôquer vencedora e tudo o que ela pediu foram cinco rublos. Eu
posso pagar o que você quiser, Sr. Vashchenko, permita-me saciar minha
curiosidade com uma de suas filhas.
Papa fez alguns sons ásperos e crepitantes enquanto fingia considerar,
mas eu sabia que ele tinha se decidido no momento em que o Dr. Bakay lhe
passou o dinheiro. Ele colocou a bolsa inteira no bolso fundo de seu roupão,
então olhou ao redor vagamente, como se tivesse esquecido a arquitetura de
sua própria casa. Por fim, ele deu um suspiro e disse:
— Minhas outras filhas estão ocupadas. Mas você pode falar com
Marlinchen.
Undine tinha um cliente em sua piscina premonitória e Rose estava em
sua despensa, apertando os olhos sobre os talos de lavanda cortados. Dr. Bakay
deu um aceno de cabeça e, finalmente, seus olhos pousaram em mim. Eles eram
quentes e marrons, a luz saltando neles como peixes correndo pela água turva.
Ele me olhou de cima a baixo, da ponta do meu sapato até a coroa crespa do
meu cabelo, e disse:
— É muito bom conhecê-la, Marlinchen.
Devo ter balbuciado minha própria saudação, mas não posso dizer que
me lembro. Na verdade, não me lembrava de tantas coisas que aconteceram
durante minhas sessões com o Dr. Bakay. Alguns fatos vieram à tona, como
coisas mortas inundadas pela maré: a curva particular de seu polegar, os
cabelos grisalhos eriçados nas costas da mão, o modo como um dente deslizava
sobre o lábio inferior quando ele sorria. Todo o resto afundou e desapareceu.
Papa nos levou para a sala de estar e se acomodou em sua chaise. Fui
sentar no sofá, mas o Dr. Bakay disse:
— Espere um momento. Você se importaria de ficar de pé, por favor?
— Oh. — eu disse, ou algo igualmente estúpido e fraco — Tudo bem.
— Seu dom é para a divindade da carne, está correto? — Dr. Bakay
perguntou. Eu balancei a cabeça. Ele estava muito perto de mim, tão perto que
alguns fios soltos do meu cabelo ficaram presos em seus lábios e ele não
percebeu, ou então não se incomodou em tirá-los. — É claro que, como médico,
que estuda o Corpo, tenho um interesse vital em saber como um talento como
esse se manifesta e reflete na anatomia do sujeito. Em vez disso, como a
anatomia de uma bruxa difere daquela das mulheres mortais? Em outras
palavras, Marlinchen, acho que deve haver algo único em seu corpo, para fazer
um presente funcionar como meus clientes descreveram.
Minhas bochechas estavam começando a ficar rosadas. Papa não estava
realmente ouvindo; percebi que sua atenção tinha ido para os rublos no bolso
e considerando o que faria com eles e como poderia conseguir mais. Seu dedo
esfregou aquela ondulação de tecido enquanto seu olhar se dirigia para o teto.
Dr. Bakay pressionou as costas da mão na minha testa.
— Hum — disse ele. — A temperatura do seu corpo não parece anormal.
— Eu acho que sou muito comum. — eu disse, com uma risada nervosa.
— Além de ser uma bruxa.
Os olhos do Dr. Bakay se enrugaram quando ele sorriu.
— Eu conheci muitas garotas comuns. Não posso dizer que você é uma
delas.
E então, eu acho, ele me perguntou o que eu mais gostava de comer. Eu
disse a ele varenyky de porco. Ele me perguntou se eu gostava de cozinhar,
costurar ou jogar dominó. Ele me perguntou se minhas irmãs eram gentis ou
más. Ele me perguntou o que eu achava dos novos postes elétricos, dos bondes,
do museu de arte da rua Rybakov.
Se Papa tivesse estivesse prestando atenção, as perguntas do Dr. Bakay o
teriam enfurecido; ele teria expulsado o médico de casa e isso seria o fim de
tudo. Mas ele não estava prestando atenção e a cada pergunta eu me sentia
afrouxando como um laço atado, desfeito e alisado enquanto o Dr. Bakay
falava.
— Você já considerou que sua bruxaria está necessariamente ligada à sua
feminilidade?
Devo ter piscado para ele em terrível confusão. Minhas irmãs eram
mulheres, certamente, cintura estreita e quadris largos, seus corpos crescendo
para se parecerem cada vez mais com o de nossa mãe a cada dia que passava.
Mas eu ainda me sentia principalmente como uma criança, como uma garota,
apenas começando a preencher meus vestidos. Calor rastejou sobre minhas
bochechas quando respondi:
— Eu não sei. Nunca pensei muito nisso.
— Bem, eu daria peso substancial à teoria. A frenologia nos diz que
homens e mulheres têm Mentes muito diferentes... os 14º e 18º órgãos das
mulheres são muito maiores que os dos homens, indicando que elas têm graus
muito maiores de Veneração e Esperança, e seus 15º órgãos são positivamente
minúsculos, sugerindo muito pouco propensão para a firmeza. E assim deve
seguir-se que podemos mapear outros Órgãos do Corpo usando métodos
semelhantes. Talvez o mais frutífero, eu acho, sejam os Órgãos pertencentes
exclusivamente às mulheres.
Eu não tinha percebido que ele tinha começado a desamarrar meu
espartilho. Fiquei tão chocada e tudo o que saiu de mim foi um pequeno som,
não exatamente um suspiro, apenas um gorjeio como um pardal ao vento. Meu
corpete solto caiu na minha frente e eu rapidamente joguei meus braços em
volta de mim, cobrindo meus seios. Minha garganta estava começando a ficar
terrivelmente apertada, cada respiração quente, áspera e curta. Olhei para
Papa.
Meu pai ainda estava reclinado na chaise, mas seus olhos voltaram para
mim. Procurei em seu rosto qualquer indicação de desagrado, qualquer
protesto incipiente. Seu lábio inferior se contraiu; um músculo se contraiu em
sua mandíbula. Seu bolso era enorme com os rublos do Dr. Bakay. E então ele
disse:
— Marlinchen, abaixe os braços.
Esse foi o momento em que me soltei de mim mesma, um cavalo cortado
de seu poste de amarração. Meu corpo passou por seus movimentos, mas
minha mente estava alijada de massa, deixada à deriva em águas escuras e
agitadas. Baixei os braços para os lados, os punhos se fechando, enquanto o Dr.
Bakay movia a mão sobre meu seio esquerdo. Ele a apertou com ternura,
depois o segurou, como se avaliasse seu peso. Com o dedo indicador e o
polegar, ele beliscou meu mamilo.
— Papa — eu disse, meu olhar nublado com lágrimas.
— Silêncio — disse ele. — Deixe o médico fazer o trabalho dele.
Normalmente ele cobra dezenas de rublos por esse tipo de avaliação, e aqui
está ele nos pagando pelo privilégio. Não é mesmo?
— Claro — disse o Dr. Bakay. — Estou grato por poder testar os métodos
de frenologia em uma bruxa pela primeira vez. Tenho certeza de que há um
grande número de revistas médicas que ficariam felizes em publicar as
descobertas.
Mas ele não estava fazendo nenhuma anotação em seu diário de bordo
ou em seu receituário grosso.
A partir de então ele falou animadamente com Papa, sobre a cor e o
tamanho específicos dos meus mamilos, sobre o peso e a forma dos meus seios.
Ele acariciou meus mamilos até ficarem duros e me pediu para descrever a
sensação.
Não me lembro do que lhe disse. Eu estava olhando para a parede
distante, olhos fixos no local onde o papel damasco estava descascando,
expondo o reboco amarelado por baixo. Finalmente, o Dr. Bakay se ergueu até
a altura máxima, ombros estreitos rolando.
— Muito obrigado pela oportunidade — ele disse, e então Papa também
se levantou. Enquanto eu estava puxando meu espartilho de volta sobre meus
seios, o Dr. Bakay apertou a mão de Papa. Ele arrumou sua maleta de médico,
seus minúsculos frascos pretos de láudano e potes de sanguessugas, seu
arsênico em urnas de porcelana. Antes de passar pela porta e sair para o jardim,
ele me deu um aceno alegre, piscando um olho castanho.
Fiquei no saguão enquanto o relógio do vovô fazia sua rotação medida,
pensando em nada além de papel de parede descascado. O sol refletiu no
cabelo prateado do Dr. Bakay quando ele abriu o portão. Comecei a pensar na
protuberância de tecido que tinha visto quando olhei para baixo, a
protuberância sob os botões escuros de sua calça.
Eu deveria saber, pela maneira como Papa havia tocado seus rublos, que
ele daria boas-vindas ao Dr. Bakay em nossa casa novamente, e ele o fez. Várias
semanas depois, o médico estava de volta com sua maleta preta e mais teorias,
um prognóstico diferente, um novo conjunto de perguntas e um arsenal de
métodos inteligentes.
Nas primeiras vezes, Papa sentou-se em sua chaise e ficou olhando
preguiçosamente, tagarelando alegremente enquanto o Dr. Bakay abria meu
espartilho com precisão cirúrgica. Eventualmente, ele se cansou de falar e
assistir, e então Papa nos deixou sozinhos na sala de estar com a porta fechada.
Eu memorizei o padrão de damasco do papel de parede, contando cada
espiral e flor enquanto o Dr. Bakay me perguntava se havia algum homem para
quem eu tivesse olhos. Não me lembro do que lhe disse, apenas que o fez sorrir
e fazer um círculo suave sobre meu mamilo esquerdo, como se fosse um
amuleto para polir.
Uma vez ele quis ver se a natureza dos órgãos era afetada pela vigília,
então ele me deu uma poção para dormir e eu me deitei no sofá, minha visão
embaçada e depois ficando selvagemente preta. Quando acordei, meu
espartilho havia sumido e o Dr. Bakay estava sentado ao meu lado. Ele estava
respirando com dificuldade; através dos meus cílios eu vi o subir e descer
cambaleando de seu peito e o orvalho de suor em sua testa, e ao por último a
dobra amarrotada de suas calças. Sua mão se moveu sob a faixa de seu cinto
afrouxado com um movimento de agarrar e sacudir. Fechei os olhos e fingi
estar dormindo novamente. Mais tarde, quando se levantou para sair, tentou
apenas vagamente esconder a mancha úmida em suas calças.
A última vez, ele queria testar o que estava dentro da minha pele. Eu
tinha dezessete anos e inconfundivelmente uma mulher agora, meus seios
florescendo sob suas mãos. Dr. Bakay pegou uma pequena lâmina e cortou
duas feridas sorridentes sob cada um dos meus mamilos, o sangue jorrando
em pérolas vermelhas. Ele pegou meu sangue em frascos claros; observei cada
gota deslizar languidamente pelo vidro e formar uma poça no fundo, com meio
dedo de altura.
Ele fechou os frascos e os enfiou cuidadosamente na maleta de médico,
bem ao lado da urna de porcelana com arsênico. Depois disse a Papa que tinha
tudo o que precisava e entregou seu último saco de rublos. O rosto de Papa
estava inexpressivo e estúpido como um presunto cozido, mas ele pegou os
rublos e os segurou em seu punho, o saco rolando e balançando com o peso
deles.
Dr. Bakay tirou o chapéu para nós e passou pela porta. Observei
enquanto ele abria o portão, a luz do sol grudada na prata de seu cabelo. Puxei
meus braços sobre meu peito e senti uma pontada de dor, feridas gêmeas
gritando como se eu estivesse chupando uma coisa com dentes muito afiados.
Na verdade, nunca entendi por que o Dr. Bakay parou de vir à nossa casa.
Talvez ele tenha esgotado toda a sua curiosidade médica, ou talvez meu corpo
em transformação o tenha esgotado.
Rapidamente, porém, descobri que pouco importava se ele voltasse ou
não. Meus sonhos eram tumultuosos com seu rosto, mãos e a barriga de suas
calças. De Papa com seus rublos e os dois homens apertando as mãos. Às vezes
eu acordava dos sonhos com uma umidade entre as pernas e tinha que correr
até a cozinha e comer um pão preto inteiro com manteiga e kvass de morango
e dezessete varenyky de porco. Pensar no Dr. Bakay sempre me dava tanta
fome.
Andei sem rumo pelas ruas de Oblya até a noite, doente de adrenalina
não gasta. Antes eu teria ficado petrificada por me encontrar sozinha na
cidade, mas ninguém, exceto mendigos de queixo caído, tentaram falar
comigo. Os trabalhadores que antes me aterrorizavam eram agora, eu sabia,
cães desdentados como Sobaka. Os corretores e comerciantes estavam
ocupados com seu trabalho e eu parecia apenas mais uma vagabunda azarada,
talvez uma operária que machucou a mão e não podia mais trabalhar em uma
máquina, ou talvez uma mulher grávida do filho de um marinheiro que a
deixou para águas mais promissoras.
A noite tomou a cidade com um vestido preto opulento, as vitrines das
lojas brilhando como lantejoulas. Foi quando os homens e mulheres da alta
cultura começaram a chegar de suas dachas à beira-mar, de suas casas de cor
creme. Eles desceram a rua Kanatchikov como um bom vinho derramado,
vestidos em tons de joias brilhando. Eu me pressionei contra a lateral de uma
mercearia Yehuli, a boca secando enquanto observava. A risada deles cobriu o
ar com uma fumaça pálida.
Todo esse tempo eu não tinha considerado o que eu poderia fazer. Não
me permiti vasculhar minhas escassas perspectivas, nem pensar em Papa. Mas
quando o céu escureceu e o ar ficou impiedosamente frio, o pânico começou a
revirar meu estômago como veneno engolido. Eu não tinha dinheiro, nenhum
lugar para ir, e sem a emoção inebriante e quente das minhas saídas anteriores,
meu vestido parecia fino como papel. Minha pele arrepiou e minha respiração
ficou nublada quando exalei.
Meu primeiro instinto foi pensar em minhas irmãs mais inteligentes e no
que poderiam fazer. Mas Rose e Undine nunca teriam se encontrado em tal
situação. Elas não teriam sabedoria para falar comigo. E como poderiam? Elas
nunca foram feitas para sangrar de seus seios.
Os homens e mulheres continuavam passando por mim, sorrindo seus
sorrisos brilhantes como pérolas. Eu não conhecia muito bem a cidade, mas
conhecia a rua Kanatchikov como uma veia nas costas da minha mão. Eles
estavam indo em direção ao teatro de balé. Possibilidade picou em mim.
Sem considerar mais, caí no passo ao lado deles. Certamente, eu seria
identificada imediatamente, com meu cabelo despenteado e meu vestido
rasgado, e, é claro que eu não tinha ingresso. Mas segui a rua movimentada
mesmo assim, até ela nos levar para a praça com sua grande fonte dourada e o
teatro como um bracelete brilhante feito de osso.
Parei então, apertando o peito. O fluxo de homens e mulheres continuou
passando por mim, a água do rio se dividindo em torno de uma rocha.
Observei-os entrar, um após o outro, mulheres untadas de pele de raposa e
homens com bigodes untados, até que todos foram embora e as portas duplas
foram fechadas atrás deles. Fiquei ali por tanto tempo que meus dedos ficaram
dormentes de frio e a ferida na minha junta se abriu novamente, sangue
vazando nos paralelepípedos. Fiquei lá por tanto tempo que certamente o
show estava quase no fim, e então, com um ímpeto de coragem irresponsável,
caminhei pelo beco semi-iluminado.
Parei na porta, abrindo e fechando meus dedos gelados. Talvez estivesse
trancada desta vez. Talvez houvesse um porteiro esperando para me jogar de
volta. Mas o que tinha sido a minha vida estava em ruínas atrás de mim e o Dr.
Bakay estava empoleirado na chaise longue da sala de estar, rindo tão alto com
Papa que todos os dentes deles brilhavam em suas bocas.
Girei a maçaneta e empurrei a porta, entrando no teatro de balé.
Pela onda da música, percebi imediatamente que o show havia chegado
ao clímax. O interior do teatro era tão brilhante e dourado quanto um favo de
mel, e os violinos estavam tocando alarmados. Eu rastejei para frente, ainda
escondida na sombra do pilar branco e frio, até que pude ver o palco.
Os homens-chamas estavam pulando e girando. As donzelas da neve
estavam sorrindo e se encolhendo. E no centro de tudo isso estava Ivan, sem
camisa e vestindo seu manto emplumado, espada de madeira arqueada sobre
o risonho Dragão-Czar.
Toda vez que o via, era como a primeira vez, quando eu mal conseguia
respirar de tão lindo que ele era. Mas agora meu olhar procurou por buracos
de sangue seco em seus lábios, por uma marca vermelha na parte de trás de
sua garganta. Procurei o rosto de Sevas escondido em algum lugar por trás da
careta heróica de Ivan, como uma forma borrada sob o gelo.
Mal percebi que estava me aproximando cada vez mais do palco até que
senti meus olhos lacrimejarem sob o brilho das luzes. Sevas mergulhou sua
espada na barriga do Dragão-Czar (na verdade entre o peito e o braço; desse
ângulo pude ver a perfeita falsidade de sua morte), e os violoncelos gorjearam
e os homens-chamas murcharam e as mulheres da neve se levantaram como
bolas de chantilly em uma massa, tudo macio e branco. A Czarina saiu pulando
pelo palco, na direção de Sevas, e eu sabia que era o momento do beijo mímico.
Mas antes que ela o alcançasse, Sevas se virou e, de alguma forma, seus
olhos me encontraram. Seus lábios se separaram, e toda a falsa vitória de Ivan
se esvaiu dele.
Assim que a Czarina se preparou para pular em seus braços, Sevas
abandonou sua pose de dançarino e caminhou para o centro do palco, e então
pulou dele, ainda segurando sua espada de madeira. Seu rosto estava
luminoso com admiração, maxilar tenso com determinação.
Os violinos pararam tão de repente que foi como se suas cordas tivessem
se arrebentado e a tarola sumiu como um batimento cardíaco cada vez menor.
Murmúrios se ergueram da multidão, e então gritos de fúria rejeitada, mas eu
mal os ouvi. Sevas caminhou pelo corredor em minha direção e eu me movi
em direção a ele, como se estivesse em uma névoa, como se estivesse em um
sonho acordado.
Quando finalmente nos encontramos, ele jogou os braços em volta de
mim, e os membros da plateia se levantaram, uivando para nós como lobos.
Capítulo 10
Assim que Sevas me soltou, a multidão se levantou e quase o arrastou
para longe de mim. Levou quase um quarto de hora para os porteiros forçarem
todos de volta aos seus lugares, e mesmo assim alguns já haviam invadido a
bilheteria, exigindo reembolso. As cortinas se fecharam rapidamente sobre o
palco, apagando as aturdidas donzelas da neve e o Dragão-Czar boquiaberto e
sem expressão. Travei os olhos brevemente com a Czarina antes que
desaparecesse, e minha respiração ficou presa com quão maléfica ela me
encarou.
Quando os candelabros voltaram a piscar, pude ver melhor todas as
expressões indignadas dos membros da plateia, os olhares duros e afiados que
me cortaram como foices. Encolhi-me contra o peito de Sevas, ainda nu e
pintado de ouro e ofegante. Um homem de terno de veludo correu para o palco
e começou a fazer garantias, pedindo desculpas com a habilidade de um
mágico de rua.
Foi Aleksei, não Derkach, que finalmente abriu caminho entre a multidão
e agarrou Sevas, puxando-o para os bastidores, e eu junto com eles.
Ele arrastou Sevas e eu para uma sala com espelhos nas quatro paredes,
nossos reflexos dobraram e depois dobraram novamente, como se
estivéssemos dentro de um caleidoscópio. Eu parecia feia e de cabelos
desgrenhados; Sevas parecia pálido e bonito; Aleksei parecia furioso. Ele
começou a tirar sua jaqueta vermelha, bordada com suas chamas fingidas, e
disse:
— O que você estava pensando? Vocês dois ficaram loucos?
Não consegui convocar uma resposta. Sevas passou a mão pelo cabelo e
simplesmente disse:
— Talvez sim.
Aleksei soltou um longo suspiro.
— Por que você sempre piora as coisas para si mesmo, Sevas? Você nunca
consegue manter a cabeça baixa e a boca fechada. Derkach já estava lívido; Não
consigo imaginar o que ele vai fazer agora.
— Não importa o que eu faça, — Sevas disse, mas seus olhos estavam
correndo para o espelho, seguindo seu próprio reflexo. A linha de seu próprio
cotovelo dobrado. — Derkach está sempre com raiva.
— Bem, isso é uma atitude bastante juvenil, não é? E isso reflete mal no
resto de nós também. O resto da companhia... eles vão cortar nossos salários
para pagar os reembolsos dos ingressos, você sabe.
— Eu sei. — Sevas disse miseravelmente. Ele olhou para mim e mordeu
o lábio. — Marlinchen, você tem que ir.
Pensei nos dedos de Derkach enrolados em sua nuca e no Dr. Bakay no
vestíbulo, conversando alegremente com meu pai.
— Não tenho para onde ir.
O silêncio caiu sobre a sala espelhada, irregular e desagradável, como
uma caixa de música de repente interrompendo sua música.
Sevas deu um breve aceno de cabeça, como se esperasse pouco mais, e
Aleksei suspirou com o cansaço de uma mãe atormentada.
— Sinto muito — disse, embora não estivesse claro se ele estava falando
comigo ou com Sevas. — Eu não posso protegê-lo de sua própria tolice.
— Você fez um trabalho louvável até agora, Lyosha. — Se o sorriso de
Sevas era torto e extenuante; eu podia ver o grande esforço que levou para
curvar seus lábios. — Eu não o culpo por ficar exausto disso.
A boca de Aleksei ficou pálida e apertada, mas então ele colocou a mão
sobre o ombro de Sevas. Ele o segurou ali por um momento, sem dizer nada,
enquanto Sevas olhava para ele por baixo de seus cílios grossos e escuros,
alguma comunicação muda acontecendo entre eles que eu não conseguia
entender. O olhar de Aleksei piscou brevemente para mim, então voltou para
Sevas novamente.
Perguntei-me se ele achava que era tudo culpa minha. Muito
provavelmente era. Não tinha considerado o que poderia acontecer se deixasse
Sevas me ver; nem tinha considerado o que Derkach tinha alertado a mim e às
minhas irmãs para ficarmos longe do teatro de balé. Eu só tinha sido fria,
estúpida e desesperada.
Os lábios de Aleksei se separaram, mas antes que pudesse falar, a porta
se abriu atrás dele.
Era Derkach, é claro, e com ele o homem de terno de veludo que tentara
acalmar a multidão irritada. Ele tinha um bigode extravagante, uma vez
aparado, mas agora caído nos cantos, e sua testa estava toda coberta de suor.
Ele levou um lenço à testa e começou a enxugá-lo enquanto Derkach dizia:
— Aleksei, fora.
Suas palavras atingiram o ar como duas flechas disparadas. Aleksei
deixou sua mão cair do ombro de Sevas e então se arrastou em direção à porta,
desaparecendo pela soleira com apenas um último olhar impotente por cima
do ombro.
Em sua ausência, Sevas se endireitou, com o peito inchado.
— Você pode ficar zangado comigo mais tarde — disse ele.
Os olhos de Derkach embaçaram. Ele atravessou a sala em duas passadas
longas e rápidas, parando com não mais de uma polegada entre o rosto de
Sevas e o seu.
— Vou ficar zangado com você agora, e mais tarde, e sempre que eu
quiser.
— Agora, agora, Ihor — disse o homem de terno de veludo, dobrando o
lenço em um pequeno triângulo e colocando-o de volta no bolso do peito. — A
raiva não nos levará a lugar nenhum; já são meia centena membros da plateia
irritados prontos para derrubar minha porta. Eles vão querer reembolsos, é
claro, mas talvez possamos...
— Com licença, Sr. Kovalchyk. — Derkach interrompeu friamente —
Mas Sevas é minha responsabilidade. Você pode ser o gerente da companhia,
mas é minha prerrogativa cuidar de Sevas e puni-lo como achar melhor.
O Sr. Kovalchyk olhou para ele com a boca larga como uma truta em
forma de gancho.
— Bem, Sevastyan é meu encargo no que diz respeito à sua dança, e são
os cofres do meu teatro que são esvaziados para pagar seus dois salários.
Certamente deve haver consequências apropriadas para seu comportamento;
estamos alegremente de acordo aí. Mas já vi muitos dançarinos principais
desmoronarem sobre si mesmos porque seus superiores exigiam o impossível.
Nós dois também devemos concordar que Sevas é valioso demais para ser
perdido.
Sevas não disse nada. Seu olhar baixou para o chão enquanto Derkach e
o Sr. Kovalchyk brigavam como dois especuladores sobre o mesmo pedaço de
terra, sem se importar com nada, exceto que poderiam cultivá-lo e cultivá-lo
até que o solo se esgotasse. Um sentimento horrível tomou conta de mim, e eu
não queria nada mais do que pegar sua mão, do jeito que ele pegou a minha e
me puxou para dentro da carruagem com ele, para levá-lo para longe deste
lugar. Mas a culpa me desamarrou daquela fantasia de desejo.
— É minha culpa. — falei com pressa, o estômago apertando
dolorosamente. — Eu o fiz perder o foco; não deveria ter vindo de jeito
nenhum...
Eu parei, murchando sob o olhar cruel de Derkach. Mas o Sr. Kovalchyk
apenas piscou para mim, seu rosto suado e estúpido.
— E quem é você exatamente?
— Uma das filhas de Zmiy Vashchenko — disse Derkach, apertando o
maxilar. — O bruxo que mora na Rua Rybakov. Eu a avisei e as suas irmãs para
ficarem longe do teatro, pois era evidente que Sevas achava sua presença uma
distração
O Sr. Kovalchyk franziu a testa, o bigode tremendo, e me olhou de cima
a baixo com um escrutínio confuso. Ele deve estar pensando em como eu
poderia ter sido uma distração para Sevas, com minha aparência simples,
minha feiura normal. Até eu mesma mal podia acreditar. Mas lembrei com
fervorosa clareza a sensação de seus braços ao redor da minha cintura, cada
cume e sulco de seu peito nu pressionando contra mim através do meu vestido.
Eu corei profundamente só de pensar nisso.
Por fim, o Sr. Kovalchyk disse:
— Não importa se ela é uma bruxa ou uma garota ou um pombo
particularmente atraente. Se a presença dela é um prejuízo para Sevas,
devemos retirá-la.
O medo tomou conta de mim por um breve momento, como um
espartilho feito de aço frio. Eu estava me preparando para balbuciar uma
resposta, mas antes que pudesse, Sevas ergueu os olhos do chão e disse:
— Não.
Derkach levantou uma sobrancelha pálida.
— O que foi isso, Sevas?
— Não, — disse Sevas, finalmente encontrando o olhar de Derkach. —
ela não vai a lugar nenhum. Eu quero que ela fique. Você é quem deve ir
embora.
Uma risada baixa retumbou da garganta de Derkach, e seus olhos
brilharam com diversão.
— Sevas, por favor. Tantos anos se passaram e você ainda se comporta
como a criança que era quando nos conhecemos, doze anos e petulante,
protestando contra todas as pequenas regras apenas por causa disso. É
decepcionante o quão pouco aprendeu. Você sempre teve uma propensão para
o impossível. Venha para casa comigo e podemos deixar esse mau
comportamento para trás. Muito melhor do que o apartamento imundo nas
favelas pelo qual você pagou muitos rublos.
Então essa foi a promessa que Sevas fez para diminuir a ira de meu pai,
ele foi morar com Derkach novamente. Havia tantas coisas horríveis vagando
pela minha mente, os mesmos pensamentos que eu tinha todas as noites antes
de adormecer: aquelas pequenas violências imaginadas. Imaginei Derkach
cortando os mamilos de Sevas com uma tesoura de jardinagem, dois cortes
perfeitos para que caíssem como pétalas de flores, sem sangue e cor-de-rosa.
Eu o imaginei puxando a faixa branca de carne ao redor da unha de Sevas,
descascando-a em espirais como casca de batata, até que toda a sua mão
estivesse enluvada em vermelho. Meu estômago revirou. Lembrei-me de como
eu tinha visto o rosto de Derkach flutuar quando Sevas pegou minha mão,
aquele pensamento profundamente submerso se infiltrando em mim como
água escura. Um ruído gaguejado de protesto escapou de meus lábios, mas
ninguém estava prestando atenção em mim o suficiente para ouvi-lo.
— Eu gostei daquele apartamento — disse Sevas. — E de meus
companheiros de apartamento, e de viver nas favelas. Foi onde você me
encontrou, de qualquer forma, nos guetos de Askoldir. Prefiro isso mil vezes
do que viver debaixo do seu campanário, como uma pomba empalhada.
Derkach apenas balançou a cabeça, rindo novamente.
— Ah, Sevas. Sevastyan. Estas pequenas rebeliões já duraram o
suficiente. Você pode se enganar pensando que teria gostado desse tipo de
vida; uma vida de miséria abandonada, dividindo um apartamento de um
quarto entre três homens e engolindo mais vodca do que pão, mas a verdade é
que você não poderia ter sobrevivido a ela. Você é muito delicado, muito
precioso, muito carente. E você dificilmente poderia ter esperado algo melhor
nas favelas de Askoldir, se eu não o tivesse encontrado. O que os meninos dos
guetos Yehuli têm que esperar? Trabalhos de varredor de rua e pedras jogadas
pelas janelas? Eu o absolvi desse destino horrível e lhe dei a posição mais
invejável de qualquer dançarino em todo o Império Rodinyano: dançarino
principal da companhia de balé de Oblya. — Ele fungou. — Não pedirei
gratidão servil, mas pedirei obediência. Venha comigo agora, Sevas.
Eu tinha visto Sevas usar o rosto de Ivan antes, sua carranca séria de
guerreiro e depois seu sorriso resplandecente de santo, e o tinha visto segurar
aquele sorriso infalível, aquele que fazia parecer que nada poderia tocá-lo,
aquele que fazia você se perguntar se seus joelhos parariam de tremer. Agora
ele usava um disfarce de bela raiva, seus olhos como duas lascas de vidro
fumegante do mar, e me aterrorizava pensar que isso estava vivendo nele o
tempo todo, acorrentado sob suas roupas mentirosas de bogatyr.
Sevas arrancou o manto de penas de suas costas, a penugem branca
flutuando como neve chutada. Ele ergueu a espada de Ivan e a arremessou
contra a parede oposta; atingiu o espelho e o estilhaçou, pedaços duros e
brilhantes constelando o ar parado.
Antes que qualquer um de nós pudesse falar, ele saltou para a frente,
perseguindo a espada de Ivan, e a pegou novamente e bateu o cabo dela contra
o espelho, uma e outra e outra vez. Todo o vidro se partiu ainda mais, com o
som de um colar de pérolas se partindo e se espalhando pelo piso de madeira.
— Sevas, pare com isso! — O Sr. Kovalchyk gritou. Havia vidro
quebrado brilhando em seu bigode.
Derkach cambaleou em direção a ele, agarrando Sevas pelos ombros.
Pude ver sua pele ficar vermelha em dez lugares onde os dedos de Derkach
pressionaram. Os olhos de Derkach estavam vidrados com sua fúria e havia
uma faixa de sangue em sua bochecha, apenas beijando o canto de sua boca.
Eu não tinha percebido que estava sangrando também até que coloquei minha
mão contra minha própria bochecha e minha palma saiu manchada.
— O que você vai fazer comigo? — Sevas exigiu, e seus lábios se
curvaram em um sorriso selvagem, o primo perverso do sorriso que sempre
me deixava fraca nos joelhos. — Ninguém vai pagar para ver um Ivan com um
olho roxo ou manco. Golpeie-me se quiser, Sr. Derkach, mas certifique-se de
não deixar uma marca.
Por um momento, realmente pensei que ele iria. Eu até engasguei:
— Não! — mas tudo o que Derkach fez foi cravar as unhas ainda mais
nos ombros nus de Sevas e dar-lhe uma sacudida rápida e cruel.
Sevas largou a espada de Ivan, o peito arfando. Derkach o soltou,
deixando um pequeno jorro de sangue nos cortes em forma de meia-lua que
ele havia feito. Seu peito estava subindo e descendo também, com cada
inspiração árdua, e então ele cuspiu no vidro quebrado aos pés de Sevas.
— Não me traria maior prazer — Derkach disse rouco — vê-lo tentar
sobreviver uma semana, um dia, até mesmo uma hora sem mim. Você foi
mimado e assentado e não sabe nada de um mundo além do teatro, onde
dançar bem é o suficiente para fazer todos o adorarem. O resto do mundo não
é tão gentil com os garotos Yehuli, não importa quão bonitos sejam seus rostos
ou seus sorrisos tímidos. Eu fiz pouco mais nestes últimos nove anos do que
tentar protegê-lo disso, e tudo o que você me deu em troca foi seu rancor e
ódio. Então, lhe dou as boas-vindas para tentar viver esta grande vida que você
imaginou para si mesmo fora do teatro, livre de meus cuidados opressivos,
apenas lembre-se, Sevas, eu sempre te amei.
Com isso, ele se inclinou para frente e tomou o rosto do Sevas em suas
mãos e o beijou, bem na boca. Eu mal conseguia respirar pela dor horrível e
ardente que a visão me provocava. Derkach soltou Sevas e se virou para a
porta. Os olhos do Sr. Kovalchyk dispararam entre eles, e depois para mim,
parecendo que ele tinha sido empurrado para trás por um vento
excepcionalmente forte. Sua mandíbula destravou como a de uma boneca de
madeira.
Depois de vários momentos, ele limpou a garganta e disse:
— Sevastyan, vou deixá-lo à sua mercê por enquanto. Espero que pela
manhã possamos chegar a um acordo que seja tolerável para todas as partes.
Parecia uma coisa tão absurda de se dizer, histericamente razoável, como
se houvesse algum sentido nos espelhos quebrados e no beijo de Derkach,
ainda queimando no rosto de Sevas como uma brasa viva. Coloquei meus
braços em volta de mim, a pele de repente formigando com um frio
inexplicável, e observei enquanto o Sr. Kovalchyk se esgueirava pela soleira
escancarada. Ele caminhou cuidadosamente para trás com as mãos para cima,
como se estivesse tentando fugir de um urso bravo, como se estivesse tentando
não o irritar ainda mais.
A porta se fechou atrás dele, deixando Sevas e eu sozinhos no silêncio
extraordinariamente alto.
Fiquei quieta enquanto pude suportar, olhando para Sevas enquanto ele
olhava, por sua vez, para a porta fechada. Então a culpa ferveu em mim e eu
não aguentei.
— Sinto muito — murmurei. — Eu nunca deveria ter vindo aqui.
Finalmente Sevas se virou, seus olhos azuis brilhando sombriamente.
Procurei evidências do beijo de Derkach, uma marca deixada por aquela
ternura cruel, e encontrei apenas o sorriso trêmulo de Sevas. O grande esforço
daquele sorriso me agarrou e se fechou sobre meu coração como um punho
cerrado.
Eu queria limpar tudo o que tornava seu sorriso tão difícil de erguer.
Queria fazer uma transformação impossível, queria que toda a dor
desabrochasse, todo o vidro se quebrasse, todas as feridas se fechassem e a pele
se renovasse. Eu queria chorar, e desta vez as lágrimas vieram facilmente,
esquentando os cantos dos meus olhos.
— Oh não, — Sevas disse, caminhando em minha direção. — não suporto
assistir a uma mulher chorar por minha conta. A menos que eu a tenha levado
a novos níveis de êxtase.
Mas sua brincadeira caiu lentamente no chão na minha frente, como uma
pena branca caída. Eu quase nem corei. Sevas chegou perto o suficiente para
que eu pudesse ver os lugares onde a tinta dourada estava descascando de seu
peito, o início de suas tatuagens pretas saindo por baixo. Percebi depois de um
momento que suas sapatilhas estavam todas picadas com cacos de vidro,
marcas vermelhas florescendo no cetim pálido como os botões de papoula mais
tenros e novos. Tive a vontade febril de me ajoelhar e tirar suas sapatilhas e
tirar o vidro e lamber o sangue de sua pele até ficar limpa.
— Seus pés — eu consegui dizer, esperando que minhas imaginações
lascivas não tivessem, de alguma forma, rabiscado em meu rosto. — Isso é
minha culpa, tudo isso.
— Você não me forçou a pular do palco. Você não me forçou a quebrar
os espelhos. — Sevas se aproximou ainda mais, até que senti o sussurro de sua
respiração na minha bochecha. — E você não forçou Derkach a ser seu eu
comum e horrível. Ele quase não precisa de estímulo para se tornar malvado e
monstruoso.
— Ele te beijou. — Até as palavras soavam vazias e feias, dispostas como
uma porca morta no cepo de um açougueiro.
— Ele é conhecido por fazer isso. — Um músculo se contraiu na
mandíbula de Sevas, o sorriso diminuindo. — Isso e muito mais, mas não
desde que eu era criança. Acho que o deixa mais zangado do que qualquer
coisa saber que não o desejo, que ele me repugna. Os dançarinos não devem
amar ninguém mais do que seus treinadores e renunciar a todos os outros
vínculos como distração ociosa. Derkach deve ser meu pai, meu mestre e meu
amante, e não devo querer mais ninguém.
Pensei em minha mãe-pássaro em sua gaiola dourada. Lembrei-me de
como a tinha alimentado com a palma da minha mão e sussurrei meus
segredos através de suas barras e cantarolei para mim mesma enquanto
limpava seus excrementos. Lembrei-me de quão desesperada e feliz eu havia
administrado a ela e me perguntei se tinha mais do que um pouco da maldade
de Papa em mim, afinal. Eu amara minha mãe mais quando ela estava fechada
e segura, quando a minha era a única mão que a cuidava.
Foi com uma onda de ácido crescente que eu disse:
— Acho que não está certo. E mesmo que seja, Derkach está atrasado
demais. Oblya já está apaixonada por você.
Sevas exalou uma risada sem humor.
— E quanto tempo durará seu afeto? Não muito mais do que leva para
se recuperar de uma noite de bebedeira, eu esperava, ou para dissolver uma
barra de sabonete de lavanda. Quando eu tiver trinta anos, o balé terá acabado
comigo. Estarei acabado e feio e haverá um novo rapaz para lhes aguçar o
apetite. Eu poderia morrer antes disso, quando meu rosto ainda for bonito e
meus sorrisos ainda forem tímidos.
— Você nunca poderia ser feio. — eu disse, o calor enrolando na minha
barriga. — E, além disso, não é tão ruim.
— O que não é?
— Ser feio. Eu costumava pensar que era uma maldição, que minhas
irmãs eram bonitas e eu não, mas não mais. Agora, acho que há algumas
vantagens em ser simples.
Sevas franziu a testa tão profundamente que esculpiu vincos em suas
bochechas.
— E quem disse que você é simples?
Eu quase ri, porque por onde começaria a nomear todos eles?
— Undine, é claro, e Papa, e Mama antes que fosse um pássaro, e às vezes
Rose quando ela está de mau humor, metade de nossos clientes – mesmo que
eles não digam com a boca, dizem com os olhos, e Dr. Bakay...
— Ah — disse Sevas. — Dr. Bakay me disse que o sexto órgão da minha
mente era duas vezes maior que o de um homem normal, e que o sexto órgão
da mente é o que mede a Destrutividade. — Ele olhou ao redor para o
emaranhado de vidro quebrado no chão e os espelhos cheios de rachaduras. —
Que endosso retumbante da frenologia que acabei de dar. Eu não sabia que
seus serviços também incluíam avaliar a simplicidade ou a beleza dos rostos
das mulheres.
Meu peito doeu. Parte de mim não queria dizer mais nada sobre o Dr.
Bakay, nunca, até que seu rosto fosse lavado da minha mente como água suja
descendo o ralo. Mas havia outra parte de mim que queria gritar seu nome
pelos corredores vazios para que eu pudesse ouvir o modo como ecoava.
Queria sussurrar no ouvido de cada pessoa que conhecia; queria queimá-lo em
mim como uma marca. Eu queria, acima de tudo, que alguém roubasse de mim
o fardo miserável e terrível disso, e explicasse com precisão o quão miserável
e terrível era. Queria que alguém escrevesse isso como uma história no códex
de Papa para que eu pudesse saber que lição havia a ser aprendida.
— Ele me disse que eu era quieta como um rato — eu disse, finalmente.
— E ele gostava disso em mim. Ele nunca mediu os Órgãos da Minha Mente,
mas avaliou todas as coisas que me faziam uma mulher, quando eu era apenas
uma menina, e disse que era porque ele queria entender as bruxas. — E lá
estava, a pura dissecação da minha vida: menina, mulher, bruxa. Três
pequenas coisas que eram fáceis de engolir. — Dr. Bakay não era um bruxo,
mas mesmo assim fazia uma boa magia. Deveria ter visto a maneira como me
tornei uma mulher sob suas mãos.
Sevas ficou tenso. Eu podia ver o cordão de músculo estirando em sua
garganta, as lâminas de seus ombros pressionando para cima e perto. Ele disse:
— Isso não está certo, e isso não é mágica. A magia é o primeiro gole de
um bom vinho que embaça as bordas da sua visão. A magia é a brisa fresca do
calçadão à noite e a música de órgão no ar. Magia é conseguir um grand jeté e
quase ficar surdo com os aplausos da multidão. A magia é o brilho baixo das
luzes da taverna e a garota que você está cortejando se inclinando para que
possa beijá-la.
Enquanto ele falava, senti um sentimento inominável borbulhar em mim,
algo ainda mais cruel do que a dor. Suas palavras eram tão amáveis, mas
estranhas; ele poderia muito bem estar falando em sua língua Yehuli. Eu não
queria chorar de novo depois de ouvir o quanto isso o afligiu, mas senti
lágrimas se acumularem ao longo da linha dos meus cílios, e o rosto de Sevas
nadou diante dos meus olhos.
— Eu nunca provei vinho — eu disse, em torno da coisa quente na minha
garganta. — Só uma vez fui ao calçadão à noite e ouvi a música do órgão; a
única vez que entrei em uma taverna foi naquela noite com vocês. E eu nunca
fui beijada. Só conheço a velha magia do que este lugar era antes do czar fincar
sua bandeira aqui. Antes havia postes elétricos em todas as ruas e prensas
rotativas tiquetaqueando nas lojas de cópias do porão. Se o czar nunca tivesse
vindo, eu seria melhor por isso. Poderia ter fugido para a cabana de uma bruxa
da floresta... elas abrigavam meninas com famílias cruéis e tudo o que pediam
em troca é que você separasse grãos de milho podre do bom e sementes de
papoula do solo. Eu nunca precisaria vir aqui e estragar tudo para você. Sevas,
o que vou fazer?
— Você não arruinou nada que valha a pena substituir — disse ele
bruscamente. — Eu poderia ter ficado no palco e terminado minha
performance como um bom menino, como o dócil fantoche de Derkach, como
o perfeito Ivan de Kovalchyk. Mas estou tão cansado, Marlinchen. Eu
interpreto Ivan desde os doze anos de idade. Quantas vezes mais posso matar
o Dragão-Czar? Talvez uma noite eu o deixe me matar em vez disso. Apenas
pela emoção de algo novo.
E então a coisa mais surpreendente aconteceu: Sevas colocou as mãos
sobre os olhos e começou a chorar. Seus ombros tremiam com seus soluços e
tudo que eu podia fazer era olhar e olhar enquanto ele caía no chão, puxando
os joelhos contra o peito.
Eu nunca tinha visto um homem chorar antes. Senti como se eu mesma
pudesse morrer, só de assistir. Eu não achava que poderia suportar viver em
um mundo que pudesse fazê-lo chorar assim, tão lamentavelmente quanto
uma criança. Mesmo com a minha mente em espasmo em torno do
pensamento, eu me encontrei ajoelhada ao lado dele.
— Por favor, Sevas. — sussurrei. — Não quero vê-lo morrer.
Ele deu um gemido abafado e seus braços levantaram para circundar
minha cintura. Eu mal pensei no que estava fazendo quando levantei meus
próprios braços e juntei sua cabeça no meu peito. Sua bochecha estava corada
contra a pele nua do meu seio, logo acima de onde terminava a linha
esfarrapada do meu espartilho. Segurei-o ali com a firmeza feroz de uma mãe-
urso embalando seu filhote, de um mercador segurando sua mercadoria mais
preciosa.
Em vários momentos seus soluços diminuíram, os ombros parando. Meu
coração estava batendo tão rápido e torto que me perguntei se poderia se
desgastar até os ossos como um velho cão de corrida. Sevas virou a cabeça e,
muito brevemente, pressionou os lábios na fenda dos meus seios.
Eu quase caí. Minhas mãos caíram para os ombros de Sevas e ele ergueu
o olhar, olhando para mim por baixo dos cílios escuros. O branco de seus olhos
estava manchado de vermelho, mas ainda assim ele era tão bonito que eu mal
podia suportar olhar para ele.
— Você me disse que nunca foi beijada — disse ele. — É uma boa magia,
sabe. Talvez a melhor.
— Eu não poderia dizer de uma forma ou de outra.
Minha pele estava tão quente e eu podia ver um rubor rosa brilhante se
espalhando da minha testa pela minha clavícula em espelho após espelho.
Sevas sorriu, com o charme imprudente do homem com quem passei
pelo calçadão naquela noite impossível.
— Deixe-me mostrar a você — disse ele.
E então ele passou um braço em volta da minha cintura e trouxe a outra
mão para a parte de trás da minha cabeça, rosnando com um punhado do meu
cabelo selvagem. Ele me puxou para si e me beijou tão profundamente, tão
implacavelmente, que pensei que iria desmaiar antes que terminasse. Sua
língua separou meus lábios com insistência gentil.
Minhas próprias mãos foram para seu rosto, sua garganta, seu peito,
tocando todos os lugares que apareceram em minhas febris fantasias noturnas,
e ainda me senti quase surpresa que não havia laço para me empurrar de volta
para o mundo cinzento acordado. Atrás das minhas pálpebras, tudo estava
florescendo quente e vermelho.
Quando finalmente ele se afastou, eu disse sem fôlego:
— Se isso fosse magia de verdade, eu já teria me transformado em outra
coisa.
— Talvez eu não tenha me esforçado o suficiente — ele disse, e então me
derrubou embaixo dele. Meu cabelo se espalhou pelo chão, misturando-se com
cacos de vidro. Ele me beijou resolutamente na boca, e então arrastou seus
lábios obstinadamente pelo meu queixo, ao longo da linha do meu queixo, pela
minha garganta. Todo o tempo eu não podia fazer nada além de suspirar e
ofegar, meus braços travando ao redor de seu pescoço para puxá-lo cada vez
mais perto e mais perto.
— Eu me sinto diferente agora. — eu disse fracamente, na próxima vez
que ele me deu permissão para falar. — Talvez seja uma boa magia, afinal.
Sevas sorriu, e foi tão lindo que meu coração se partiu um pouco, do jeito
que o coração de uma centena de outras garotas certamente se partiu quando
ele olhou para elas assim.
— O que você acha que é agora?
Ocorreu-me então que talvez essa fosse minha magia: que o segredo que
eu tinha guardado em minha barriga sem cuspi-lo de volta e a mentira que
contei repetidas vezes para manter o segredo seguro estavam agora
manifestos.
— Uma garota recém-beijada, — eu disse. — uma mulher, talvez.
Eu podia sentir a pressão de algo duro e rígido contra a minha coxa, e
meu vestido estava dobrado sobre o meu joelho. Corri minha mão ao longo do
peito de Sevas, ao longo de todas as espirais de músculo e os planos de osso,
sua pele esticada sobre eles. Tudo estava entrelaçado, duro e forte.
Quando alcancei a inclinação de seu abdômen e a protuberância de seu
osso do quadril, Sevas estremeceu, e através de seus lábios entreabertos veio
um gemido suave.
— Você quer me atormentar? — ele perguntou.
Eu estava leve como partículas de poeira flutuando por um raio de sol,
leve como o ar. Peguei a mão de Sevas na minha e a guiei até a base das minhas
costas, onde começavam os laços do meu espartilho.
— Tire isso. — eu disse, e então lembrando das lições de etiqueta da
minha governanta, acrescentei: — por favor.
Os dedos de Sevas arranharam os cadarços, mas ele não encontrou muito
apoio. Ele exalou pelo nariz, os lábios franzindo com uma pequena carranca, e
finalmente rolei sobre minha barriga, apoiando-me nos cotovelos. A respiração
de Sevas ficou um pouco presa com a minha ousadia e me senti tão feliz em
ouvir isso, feliz que pela primeira vez eu era a pessoa que o havia perturbado.
Olhei por cima do ombro, através dos fios soltos do meu cabelo
irreparavelmente despenteado, e vi a forma de sua dureza através da meia-
calça. Isso me emocionou ainda mais, tanto que nem me importei com o jeito
que ele rasgou os cadarços do meu espartilho como um animal selvagem,
mangas e abaixando minhas saias, nem mesmo a forma como o piso de
madeira gelava meus seios e fazia meus mamilos se contraírem de frio.
Ele beijou seu caminho através dos meus ombros, descendo pelas minhas
costas, sobre o meu traseiro, e chupou o doce lugar entre minhas coxas. Eu
choraminguei e então ele me virou, deslizando entre minhas pernas. Enquanto
ele se mantinha ali acima de mim, disse:
— Marlinchen...
— Não, — eu disse. — não pare, ou você vai ser um mentiroso, um
trapaceiro...
Ele riu.
— Quem disse isso?
— Eu disse.
As transformações eram uma magia inconstante e perigosa, e cada feitiço
vinha com um custo alto e terrível. Uma vez que você se transformava em uma
coisa, você não poderia mais ser o que era antes. Um gato transformado em
vaso de gato, perdia os bigodes e a língua rosada. Uma carruagem
transformada em cabaça, perdia as rodas e as janelas de vidro. E uma vez que
você se torna uma mulher, desistia de todas as armadilhas da juventude, de
todas as suas preciosas recompensas.
Eu sabia que uma vez que terminasse com isso, não poderia mais esperar
ser resgatada de uma torre ou beijada para acordar do meu sono amaldiçoado.
Os príncipes não vinham pelas mulheres; eles só vinham para as meninas com
a virgindade intacta e imaculada, abrindo-as como flores esperando para
serem colhidas. Eu estava me extirpando de metade das histórias do códex de
Papa, e, talvez, isso devesse ter me apavorado. Mas só senti um puxão de
desejo na parte inferior da minha barriga, e entre minhas pernas eu estava
quase embaraçosamente escorregadia.
Sevas tirou sua meia-calça e então ele estava ajoelhado ali, em cima de
mim, nu. Bebi ao vê-lo como se fosse o mais doce kvass: a tinta dourada ainda
manchada em suas bochechas e garganta, as tatuagens rabiscadas sobre seus
ombros e as costas de sua mão, os músculos ondulantes de seu peito, a dureza
tensa contra seu estômago.
Ele me beijou novamente com um desespero terno, golpeando dois
dedos dentro de mim. Eu estremeci e mordi seu lábio, forte o suficiente para
sentir o gosto de sal do sangue. Sevas desceu sua boca pela minha garganta e
sobre meus seios, gentilmente circulando meu mamilo com sua língua. Seu
toque era tão macio, tão doce, que eu quase podia esquecer que a faca do Dr.
Bakay já esteve ali.
Finalmente ele entrou em mim, e uma trança ardente de dor e prazer se
entrelaçou em minha virgindade quebrada até minha espinha. Doeu, e então
não doeu, e então doeu de novo, e às vezes era tão bom que eu desejava que
ele nunca parasse. Quando a dor voltou, não pude evitar; solucei baixinho,
abafando o som contra seu ombro.
Sevas parou imediatamente, piscando para mim em alarme, e disse:
— Eu disse que não posso suportar fazer uma mulher chorar.
Senti pena de tê-lo chateado e não queria que parasse. Sevas trouxe uma
mão para cobrir minha bochecha, o polegar roçando meus lábios, e uma vez
que estava lá eu senti a vontade de prová-lo, então levei dois de seus dedos em
minha boca.
Ele soltou um longo suspiro trêmulo e começou a se mover novamente,
lentamente no início e depois alongando suas estocadas até que eu pudesse
sentir o quão forte seu coração estava batendo em nossos peitos adjacentes.
Com cada pontada de dor eu mordi seus dedos, mãos em punhos contra suas
costas.
— Você sabe o que eu faria com todo mundo que já te chamou de cara
simples? — Sevas ofegou, os lábios roçando a concha da minha orelha. — Eu
os mataria.
Eu ri, e isso fez algo estranho no lugar onde nossos corpos estavam
conectados, empurrando nós dois. Tirei seus dedos da minha boca.
— Com sua espada de madeira?
— Acho que você está tirando sarro de mim.
Não demorou muito para que ele terminasse com um gemido,
derramando-se dentro de mim. Sevas desmoronou como um castelo de cartas,
respirando com dificuldade em meu cabelo, contra minha garganta. Fechei os
olhos e senti os segundos se arrastarem enquanto ele se amolecia dentro de
mim, e quando finalmente se afastou, abri meus olhos e virei minha cabeça
para olhar nossos reflexos.
Lá estava meu corpo nu e meus seios macios e pesados, cortados em
pedaços irregulares pelo espelho rachado. Lá estavam os olhos de Sevas,
úmidos, azuis e brilhantes, e o peito subindo e descendo enormemente, como
se algo muito grande estivesse tentando sair de sua pele. Os dedos que estavam
na minha boca estavam cheios de pequenas feridas, na forma de meus
pequenos incisivos afiados, assim como o corte no meu dedo.
Beijei seus dedos cortados, como se pedisse desculpas. Sevas limpou a
bagunça de sangue nas minhas coxas, manchando as palmas das mãos da cor
de kvass azedo. Já me sentia terrivelmente vazia sem ele dentro de mim.
Desejei poder pegá-lo ali, mantê-lo ali, engoli-lo inteiro.
Capítulo 11
Não havia janelas na sala espelhada, então só acordei quando senti o piso
de madeira pressionando com força contra meu quadril e algo pinicando meu
couro cabeludo. Sentei-me e sacudi os cacos de vidro do meu cabelo. Sevas
rolou de costas, jogando uma mão sobre os olhos, embora estivesse tão escuro
como sempre. Seus lábios estavam maravilhosamente inchados e me fez corar
só de olhar para ele, ainda sem roupa, nossas pernas nuas emaranhadas como
um nexo extraordinário de raízes de árvores.
Eu poderia ter olhado para ele desse jeito para sempre, e talvez ficado
enrolada ali com ele, se não fosse a dor na minha lateral e o pulsar de algo
rasgado entre minhas coxas. Dei-lhe um leve cutucão no ombro e Sevas gemeu,
os cílios estremecendo.
No momento em que ele se afundou dentro de mim, uma visão explodiu
no interior das minhas pálpebras, pintando tudo em cores lúgubres. Eu vi as
mãos de Derkach, enormes e peludas, e o brilho de um cinto prateado. Foi tão
horrível que mordi o lábio de Sevas e esperei que, enquanto ele sangrava, a
memória fosse drenada de nós dois.
E então eu queria apenas me derramar no espaço que a memória havia
deixado nele, como açúcar no chá preto, diluindo-o e tornando-o doce. Eu o
beijei de volta tão forte quanto ele me beijou, e a cada momento que ele
empurrava em mim, o rosto de Derkach desaparecia de nossas mentes. Agora
eu via a mancha do meu sangue em suas palmas, escurecida com as horas para
uma cor quase preta. Eu quase pensei em lambê-lo, para ver o gosto da minha
virgindade rompida – tinha que ser tão inebriante e bom como vinho de mel
para fazer Papa querer guardá-la como um cão ofegante – mas imaginei que
isso o perturbaria. Em vez disso, empurrei Sevas novamente, com mais força
desta vez, e soltando um suspiro cansado, ele finalmente abriu os olhos.
— Marlinchen — disse ele. Seu olhar viajou lentamente sobre mim, sobre
o cabelo que estava enrolado cobrindo meus seios. Ontem à noite eu não tinha
sentido vergonha deles, sua suavidade e peso, mas agora sentia, e estava feliz
que eles estivessem escondidos. — Sinto muito por fazer você sangrar.
Eu não estava nada arrependida, mas não disse isso a ele. Em vez disso,
peguei meu vestido, rasgado quase irremediavelmente, todos os laços do
espartilho rasgados espalhados sobre o vidro quebrado. Enquanto tentava
alisar as pregas da saia, senti-me como um fantasma voltando ao seu corpo, só
que eu era tanto o corpo quanto o fantasma. As palavras do fantasma
borbulharam em mim.
— Eu tenho que ir para casa.
Sevas se apoiou nos cotovelos, torcendo a boca inchada.
— O que?
Quando corri ontem à noite, enfiando o pó compacto na fenda dos meus
seios, quando me afastei das mãos estendidas de Papa, a magia do meu
segredo guardado há muito tempo quebrando esse feitiço, eu não tinha
pensado em voltar. Só pensei em fugir dos dragões na porta.
Mas agora eu sabia que teria que voltar. Sabia disso em minha medula e
sangue. Eu pertencia àquela casa como uma das bonecas de porcelana de
Undine ou o relógio de pêndulo ou o último vaso de gato de Papa. Isso me deu
à luz em toda a minha estranheza feia e selvagem, e por isso teria que me levar
de volta. Apenas...
Minha respiração ficou presa no meu peito, como um alfinete na bainha
de um vestido. Um filme veio sobre meus olhos, o medo tornando minha visão
leitosa como vidro marmoreado.
Sevas sentou-se com um sobressalto de alarme, empurrando-se de
joelhos ao meu lado, enquanto eu estava arquejando e ofegando e tentando não
chorar. Qualquer que seja a magia impossível que existiu nesta sala espelhada
na noite passada se foi, secou, incendiou. A mão de Sevas pairou acima do meu
ombro, como se estivesse com medo de me tocar, e o absurdo disso quase me
fez rir; sua palma ainda estava emaranhada com meu sangue. Foi só então que
consegui dizer: — Meu pai terá meu fígado, pelo que fiz.
— Seu fígado? — A testa de Sevas franziu com linhas duras e profundas.
— Marlinchen, por favor, você terá que explicar o funcionamento da mente do
bruxo.
Então contei a ele sobre a poção de Papa, aquela poção preta de gosto vil
que ele despejava goela abaixo toda semana ou sempre que achava que podia
sentir o cheiro de uma mentira sobre nós. Contei-lhe como ele guardava nossas
virgindades como um senhor ciumento guardava suas terras mais férteis, para
que só ele pudesse plantar ali.
No momento em que terminei, meus dentes estavam batendo como se eu
tivesse sido agarrado por um súbito ataque de frio, e Sevas agarrou meus
braços, espalhando meu próprio sangue na dobra do meu cotovelo.
— Por que você não me contou? — ele perguntou, a voz subindo na
última sílaba, alta e fina com desespero. — Eu não teria feito isso se soubesse.
Inalei bruscamente.
— Talvez você devesse ter considerado a terrível bagunça que isso faria,
acoplar-se com uma bruxa de cara simples.
Foi a única vez que eu vi Sevas corar. Ele soltou meus braços e disse:
— Eu não escolho minhas conquistas como uma mulher comprando
chapéus, imaginando como cada uma vai me fazer parecer quando me enfeitar
na frente dos meus amigos. É tão absurdo pensar que eu era apenas um homem
tolo, como tantos outros, que desejava uma mulher que talvez não devesse? É
a história mais antiga que existe, homens querendo coisas que os matam.
— Eu não te mataria. — falei, mas as palavras pareciam pesadas e vazias.
— É só Papa que tentaria.
— Eu prefiro deixá-lo tentar do que interpretar Ivan mais uma vez —
disse Sevas, e mesmo quando ele tentou um sorriso, eu pude ver a tristeza
confusa em seus olhos. — Um Dragão-Czar ou um bruxo em sua mansão: qual
é a diferença, realmente?
A diferença era que Papa não respirava chamas de papel. Sua magia era
tão real quanto as penas brancas de minha mãe-pássaro ou as cobras negras do
jardim, tão real quanto o terror que se enrolava no fundo da minha barriga. Eu
descansei minha palma contra o chão de madeira para me equilibrar, então
comecei a colocar meu vestido.
Sevas me observou em silêncio, os olhos traçando a inclinação dos meus
seios, as curvas das minhas panturrilhas e coxas, parecendo extasiado. Eu tinha
visto a prova de seu desejo; eu o senti rígido dentro de mim, e ainda assim era
quase impossível acreditar que ele me queria tão desesperadamente quanto eu
o queria. Sevas vestiu sua meia-calça novamente e varreu seu manto de penas,
sacudindo os cacos de vidro.
O compacto de Mama estava no chão, em uma cama de cacos brilhantes.
Fechei meus dedos ao redor dele e o puxei para meu peito, o metal frio contra
minha pele febril. Ontem à noite, quando Sevas arrancou meu espartilho, o
compacto caiu no chão, derramando um pouco de sua areia preta. Esperei que
ele me perguntasse sobre isso, e seu olhar foi para ele brevemente,
curiosamente, mas então ele apenas se virou e me beijou novamente, com o
desespero de um homem prestes a morrer. Segurei essa memória no espaço
negro da minha mente e lambi meus lábios, sentindo o gosto dele.
— Eu não sei o que fazer. — comentei. Lágrimas estavam se acumulando
novamente nos cantos dos meus olhos. — Papa terá meu fígado e não posso
impedi-lo. Há quinze homens estranhos em minha casa, e isso sem contar o Dr.
Bakay. Ele está rindo com o Papa na chaise. Ambas as minhas irmãs me odeiam
por manter meu segredo, por contar minha mentira. E me arruinei para nunca
mais estar em uma boa história novamente.
Meu coração batia como uma janela aberta na chuva. Sevas veio até mim
e segurou meu rosto em suas mãos, com muita firmeza, e disse:
— Eu sei sobre os homens. Os cartazes de seu pai estavam por toda parte
e então as prensas de centavo os imprimiram na primeira página. Você disse
que ele quer proteger suas virtudes, mas agora ele quer você casada com
qualquer um dos solteiros desesperados de Oblya que possam resolver o
enigma de seu bruxo.
— Minhas irmãs — eu disse suavemente, olhando para ele através dos
cílios molhados. — O homem que descobre a verdade pode ter sua escolha, e
nenhum homem de mente sã me escolheria quando pudesse se casar com Rose
ou Undine.
Sevas franziu os lábios.
— De todas as coisas que o Dr. Bakay disse sobre mim, ele nunca sugeriu
que eu não tivesse a mente sã.
— Fale com franqueza. — Meu estômago mergulhou como uma gaivota.
— Que necessidade você tem de uma esposa-bruxa de cara simples? Você deve
saber que as bruxas tendem a se tornar mais perversas quando se tornam
esposas. Eu poderia crescer um segundo conjunto de dentes. Poderia comer
meu marido.
— Você deve parar de se chamar de cara simples — Sevas disse
severamente. — Eu não penso em mulheres sem rosto do jeito que penso em
você. E você já tem dentes afiados. — Ele me mostrou seus dedos, cortados por
toda parte com minhas marcas de mordida. — Se eu a tomasse como esposa,
não me importaria de ser beliscado em nosso leito conjugal.
Meu rosto estava terrivelmente quente.
— Você não pode realmente querer dizer que quer estar na competição
do Papa.
— E você não acha que eu poderia sobreviver? — Ele ergueu uma
sobrancelha. — Qual é o enigma de seu bruxo, afinal? Dr. Bakay disse que meu
Órgão para Inteligência era excepcionalmente grande.
— Não é um enigma que a inteligência possa resolver. — Mas algo estava
girando em minha mente. — Ele quer saber como consegui escapar de seu
feitiço. Para vir ao teatro.
— Seu segredo — disse Sevas. — Você nunca me disse como.
Abri o compacto, meus dedos tremendo. A areia preta ainda estava lá,
cheirando levemente a salmoura e maresia, tão impossível como sempre foi,
mas agora imbuída da estranha nova magia que eu não sabia que possuía.
— Isso saiu de mim no banho. O feitiço de Papa era que nenhum de nós
podia sair de casa sem a areia preta das praias de Oblya.
— Ela saiu no banho? — Sevas franziu a testa. — Mas você me disse que
nunca visitou a praia até aquela primeira noite comigo. Como poderia ter
chegado lá?
Eu tinha colocado o pensamento fora da minha mente por tanto tempo
que voltar a ele agora fez meu estômago embrulhar. Só conseguia explicar do
jeito que Papa sempre fazia, quando havia uma pergunta que era como uma
queda íngreme da beira de um penhasco, quando não havia nada além de um
abismo negro em vez de uma resposta.
— Magia — eu disse. A palavra parecia de alguma forma mais fraca na
minha boca do que na de Papa.
— De quem é a magia? Sua?
Isso, na verdade, eu ainda não sabia. Se meu desejo pudesse ser
transmutado em poder real, certamente eu teria sido capaz de alterar o curso
de minha vida muito mais cedo. Talvez me disseram para não querer nada
além da felicidade de Papa, e isso sufocou qualquer magia minha. Ou talvez
eu nunca tenha desejado tanto nada quanto queria Sevas. Eu apenas corei e
não respondi.
Algo mais havia escapado com o compacto. Um quadrado de papel,
dobrado uma vez. Inclinei-me para onde ele tinha caído no chão e a peguei.
Alguns cacos de vidro estavam presos no papel e furaram a ponta do meu
polegar quando abri.
A tinta estava borrada com água, mas eu ainda podia ver que estava
escrito FISHEROVICH & SYMYRENKO 3454 VOROBYEV STREET.
Com um raio de conhecimento, talvez até de esperteza, fechei o compacto
e estendi o papel para Sevas sem dizer nada.
Ele franziu a testa, franzindo a testa enquanto tentava lê-lo.
— O que é isso, Marlinchen?
Então contei a ele sobre como havíamos vendido todas as nossas coisas,
as pérolas e o bracelete de encanto de Mama, e como esse corretor veio tentar
comprar alguma mágica de nós. Ele queria coisas como espíritos engarrafados
e amuletos assombrados e bonecas que se levantavam e se moviam por
vontade própria. Eu supunha que essa era a visão capitalista da magia, que era
algo que podia ser embalado e vendido com cuidado. Era o que estes criadores
e corretores queriam fazer com Oblya, afinal de contas: queriam embrulhar a
cidade em musselina e barbante como uma barra de sabão de lavanda.
Queriam trancá-la dentro de uma caixa de rapé esmaltada de pérola para o
czar acariciar como quisesse. Bem, não tínhamos nenhum espírito engarrafado
ou amuletos assombrados, e as ervas de Rose se tornaram comuns nas mãos
de homens mortais.
— Mas o bracelete de encanto da Mama voltou para mim — eu disse
rapidamente. — talvez... talvez meu desejo tenha magia afinal. O corretor
pagou muito por isso.
— Muito — Sevas repetiu lentamente. — quanto?
— Não sei exatamente. Mas eram mais rublos do que eu poderia receber
de meus clientes em um mês. Talvez o suficiente para alugar um apartamento
nas favelas. — Minhas bochechas estavam rosadas quando as palavras saíram.
Mesmo tão longe da casa de Papa, falar parecia traição. — E ainda há algo que
ainda não foi vendido. Um espelho; minha mãe tinha um espelho.
— Um espelho?
— Um espelho mágico, um que nunca mente. Se você olhar para ele, ele
lhe dirá a verdade, não importa se lhe agrada ou não. Se não fosse este corretor,
sei que haveria um ou outro que nos compraria.
— Mas o espelho não está aqui. — Os lábios de Sevas se estreitaram. —
Nem a pulseira.
Não, eles não estavam. Peguei o cartão de volta de Sevas, sentindo aquele
raio de astúcia se dissipar. Se eu realmente tivesse pensado em fugir, teria
trazido algo comigo quando saí – a pulseira, rublos roubados, até mesmo
apenas um casaco para quando o dia se tornasse noite –, mas eu tinha sido
imprudente e desesperada.
— Você não deveria ter se incomodado comigo, — eu disse. — a única
coisa que eu trouxe aqui para você é sangue e ruína e muito vidro quebrado.
Se a poção de Papa me matar, será apenas por minha própria tolice, e não por
sua culpa. Sevas, você deve me deixar sair daqui sozinha e extirpar todos os
pensamentos sobre mim de sua mente.
Sevas respirou fundo, afastando-se de mim. Seus olhos ficaram
incandescentes e por um momento, me perguntei se ele poderia pegar a espada
de Ivan novamente. Mas ele apenas cerrou os punhos, ainda escuros com meu
sangue, e disse: — Marlinchen, você não entende? Prefiro morrer a interpretar
Ivan novamente. Prefiro me jogar do cais e cair no mar do que colocar aquela
tinta dourada. Prefiro ficar sem vodca a girar para Kovalchyk mais uma vez. E
prefiro me incendiar a voltar para Derkach.
Sua voz sumiu no final, baixa e trêmula, e seu olhar caiu para o chão.
Olhei para ele com um aperto no peito, observando uma metamorfose
espetacular e terrível. Eu tinha visto o manto de penas de Sevas do Ivan e o
sorriso resplandecente de bogatyr; eu o tinha visto sorrir como um homem que
sabia como isso fazia as mulheres desmaiar, que sabia naquele momento que
era intocável. Eu o sentira me beijar com o desejo ardente de um asceta diante
do altar.
Agora só via isso: um menino que tinha pavor de ficar sozinho.
Eu fui falar, mas ele pegou meu rosto em suas mãos novamente, dedos
mordidos roçando meus lábios. Ainda assim, fiquei com os joelhos fracos com
o jeito que ele olhou para mim, como se nunca quisesse olhar para mais nada.
— Se eu te beijar de novo — ele disse, boca tão perto da minha — você
vai se transformar em uma garota que acredita em mim?
— Você não está sendo justo. — protestei. — Você planeja beijar seu
caminho para sair de qualquer situação?
— Apenas aqueles com mulheres envolvidas. — Ele fez uma pausa. —
Eu não tenho medo da raiva de seu pai. Tenho medo de sua gentileza.
— O que?
Sevas olhou para baixo.
— Até mesmo Derkach era capaz de bondade. Você o ouviu dizer que
me ama. Qualquer predador pode optar por sorrir sem dentes. Temo que seu
pai escolha tratá-la com ternura se você voltar e então eu nunca vou conseguir
arrancar os dentes de você.
Meu coração despencou. Ele estava certo. Papa poderia ser terno. Por
todo o medo que sua magia colocou em mim, minha cama em casa ainda era o
lugar mais macio que já conheci. Embora os momentos de bondade de Papa
fossem tão raros, tão escassos, eles inflaram tanto em minha mente que às vezes
obliteraram todo o resto.
— Eu desejo — Sevas disse calmamente, como se pudesse ver dentro da
minha mente — que eu poderia te dar um lugar mais suave para cair. Mas você
está certa; só tenho uma espada de madeira e um punhado de rublos e um
rosto que fica mais velho, mais feio e menos útil a cada momento que passa.
Por mais que ele desejasse um lugar suave para mim, eu desejava o
mesmo para ele. Lembrei-me da visão que ele derramou em mim e agora eu
queria beijá-lo novamente, para tornar o espaço entre ele e Derkach vasto e
longo. Queria dar a ele o presente de horas, para recolhê-los em meu avental
como maçãs frescas e despejá-los em seu colo. Queria alimentá-lo com horas
livres da podridão negra e coagulada de Derkach.
Eu não sabia se os beijos poderiam fazer tal coisa, mas Sevas estava certo;
eles eram realmente uma magia muito boa. Então, com um tremor de ousadia,
pressionei meus lábios diretamente nos dele, dedos circulando seus pulsos.
Sevas segurou meu rosto e chupou minha língua em sua boca e não soltou até
que nós dois precisássemos desesperadamente respirar.
— Vou me endurecer contra a gentileza de Papa — sussurrei — se você
conseguir resolver o enigma que não é um enigma e roubar o espelho debaixo
do nariz dele.
— Eu prometo, — ele disse — serei o ladrão de espelho mais astuto que
você já viu. Além disso — acrescentou — sou bom com espelhos.
Dei um pequeno sorriso, mesmo quando sua promessa me puxou como
um brinquedo de madeira em uma corda, para o camarim de Sevas, onde ele
vestiu suas roupas e me olhei no espelho de seu boudoir, tentando rastrear
minha própria metamorfose. Havia um hematoma na minha garganta no
formato da boca de Sevas, e meu cabelo estava bagunçado com o movimento
de suas mãos. Papa notaria tudo isso quando ele olhasse para mim, prova do
sangue derramado entre minhas coxas? O velho medo emergiu como um
naufrágio dragado do mar. Se ele suspeitasse do meu crime e forçasse a poção
na minha garganta, não havia nada que Sevas ou eu pudéssemos fazer sobre
isso. E se a própria presença de Sevas o incitava a uma fúria vingativa, que
poder eu tinha para impedir que Papa o transformasse em um cuspidor de
cobras negras aos meus pés?
Assisti Sevas vestir seu casaco e só pude me sentir preenchida com temor.
Ele se preocupara com a bondade de Papa, mas a raiva de Papa era uma coisa
agitada e turbulenta, sempre mudando de forma. Ele poderia se enrolar em
torno de mim como uma serpente ou me agarrar em suas mandíbulas como
um lobo.
Eu teria que ser inteligente o suficiente para escapar de sua raiva e cruel
o suficiente para me afastar de sua bondade. Meu problema era que eu tinha
passado toda a minha vida ouvindo que não era nenhuma das duas, apenas
uma terceira filha de cara simples cuja magia era apenas para ver, não fazer,
mudar ou transformar.
Eu estava sendo inteligente agora, com meu plano, ou era apenas a magia
de Papa trabalhando em mim de longe, lentamente me puxando de volta para
o jardim, para a casa, para a sala de estar onde ele e o Dr. Bakay estavam
conversando como velhos amigos?
Sevas pegou minha mão. Ele me conduziu pelo labirinto de vestiários,
olhando com determinação para a frente. Fiquei feliz que seu aperto não me
deu uma escolha no assunto, porque senão eu teria ficado lá, congelada, o
espelho me segurando no lugar.
Vozes ondularam a cortina de veludo, apenas sussurros no início, muito
baixos para serem entendidos, e depois subindo para um coro de gritos. Sevas
parou abruptamente.
— É Kovalchyk.
— Existe outra saída?
— Não. Teremos que passar.
Houve mais gritos, e então um som como um grande número de
pedregulhos caindo ao lado de uma montanha. Metal chiou contra metal, e
Sevas respirou fundo. Em outro momento, ele abriu a cortina com a palma da
mão e me puxou por ela atrás dele.
Kovalchyk estava no centro do palco sob os holofotes, enxugando a testa
com o mesmo lenço úmido da noite anterior. Havia quatro homens reunidos
ao redor dele, trabalhadores pela aparência de seus rostos magros, e uma série
de dançarinos ficando de costas. Procurei e procurei, mas Aleksei não estava
entre eles, e também não vi Derkach. Quando o Sr. Kovalchyk notou Sevas e
eu parados ali, ele virou-se levemente nos calcanhares, meio como um
dançarino, os olhos ficando enormes.
— Sevastyan... — ele começou.
— Você pode tirar o dinheiro dos espelhos do que era meu salário —
Sevas interrompeu. — Eu me demito.
O Sr. Kovalchyk apenas ficou boquiaberto para ele, a boca abrindo e
fechando e abrindo novamente, como um brinquedo de corda preso em seu
estúpido laço.
— Vou fingir que não ouvi essas palavras saírem de seus lábios, Sevas.
Você pode falar com o Sr. Derkach sobre isso quando ele chegar aqui. Por
enquanto tenho problemas mais urgentes para atender.
Ele nem pareceu me notar, apesar de toda a dor que ele deu a Sevas sobre
minha presença na noite passada. Os dançarinos começaram a sussurrar, vozes
tão suaves e baixas como o vento através das folhas de salgueiro, e um deles
apontou para cima. Puxei meu olhar para o teto, e Sevas também. As vigas
estavam escuras e eu tive que olhar através de espirais de poeira, mas então vi:
amontoado entre as vigas de metal, membros estendidos como uma estrela de
quatro pontas, estava o cadáver de um homem cujos olhos haviam sido
arrancados de seu crânio.
Com uma pressa ardente, todo o fôlego se esvaiu de mim.
E então meus olhos estavam faltando, uma névoa caindo em minha visão
que me tirou da sala em pequenos incrementos agonizantes, como um
exorcismo lento e latejante. Observei através do filme enquanto os
trabalhadores diurnos desciam o corpo com um elaborado sistema de corda e
roldana, dançarinos olhando e rindo em suas meias. Um gole duro fez tique-
taque na garganta de Sevas. O corpo caiu no palco como um grande pássaro
morto, e o cheiro que subia dele quase me fez vomitar.
— Ele deve estar morto há quase uma semana, talvez mais — disse um
dos trabalhadores diários, apertando o nariz. — Olha como está podre.
Uma semana. O que eu estava fazendo uma semana atrás? Meus dias se
misturaram, mecanicamente e quase idênticos. Eu estava servindo chá de Papa
ou moendo carne no recheio enquanto alguém, alguma coisa, abateu os
homens de Oblya como um falcão arrebatando sua presa. Enquanto a carne
deste homem estava coagulando em seus ossos.
A lembrança da voz de Papa me atingiu de repente: Oblya não sentirá falta
de um único trabalhador. No mínimo, isso significa mais trabalho para o resto.
— Como poderíamos ter passado tanto tempo sem nos darmos conta? —
O Sr. Kovalchyk exigiu, cobrindo o próprio nariz com o lenço.
O trabalhador deu de ombros.
— Muito alto para cheirar. Muito brilhante, quando todas as luzes estão
acesas.
Onde os olhos do homem estavam, havia apenas dois pequenos buracos,
abrindo para uma escuridão oleosa. Seu peito havia sido esfolado quase
precisamente, a caixa torácica e o esterno divididos em seus centros como o
corpete de um vestido rasgado em um momento de grande êxtase, e sob ele
havia o rosa da carne e dos músculos. Mas dentro de seu esterno não havia
nada, nenhum coração vermelho murcho, e sua caixa torácica estava sem
cartilagem e sangue, parecendo tão branca quanto presas de taxidermia
montadas sobre a lareira de algum conquistador. O fígado estava ausente, a
grinalda lisa de intestinos havia desaparecido, e até o estômago havia sido
aberto e esvaziado. Tudo estava limpo como uma tigela de porcelana branca.
Isso me lembrou de como eu havia esfolado o monstro, esculpindo suas
entranhas. Tinha vindo até mim com tanta facilidade, como se tal carnificina
fosse tão natural quanto respirar. Fechei os olhos com força e prendi a
respiração até ficar tonta, até que quando os abri novamente minha visão
estava piscando com estrelas falsas.
Dois ferimentos perfeitos sorriam acima dos joelhos do morto, como se
alguém tivesse usado uma faca para golpeá-lo para que ele não conseguisse
escapar. Pelo menos, foi o que o Grande Inspetor disse quando chegou, com
seis de seus homens vestidos de preto a reboque.
— Uma semana ou mais. — proclamou, cutucando o corpo com a ponta
de sua bota. — É difícil dizer nesta fase, antes que possamos levá-lo ao nosso
agente funerário. Senhor, vou precisar de uma lista de todos que estiveram
neste teatro nas últimas duas semanas: dançarinos, trabalhadores, gerentes. E
vou precisar ver o registro das compras de ingressos.
— Mas quem era ele? — Pressionei, mesmo que uma parte de mim já
soubesse. A voz de Papa voltou para mim novamente. No mínimo, isso significa
mais trabalho para o resto. Ele era qualquer homem. Era um homem que ninguém
sentiria falta.
— Oh — disse Kovalchyk, piscando sob sua testa suada. — Algum
trabalhador ou outro. Nós os contratamos ao preço de mercado para limpar o
chão.
O Grande Inspetor assentiu severamente e perguntou se o homem tinha
família, mas não pude ouvir a resposta do Sr. Kovalchyk por causa do sangue
correndo em meus ouvidos. Só o ouvi rir, e que pergunta absurda era. Homens
como Niko e Fedir, e, até mesmo Sevas, não tinham família a não ser um ao
outro. O Grande Inspetor fez algumas anotações em seu bloco. Eu o observei
através daquela névoa fantasmagórica enquanto a mão de Sevas pressionava
as minhas costas, pensando em tudo que Papa havia me dito sobre o homem
diante de mim e seus executores vestidos de preto.
Como ele era Oblyano, e não Yehuli ou Ionik ou Merzani, Papa não podia
dizer corretamente se ele tinha chifres escondidos em seu cabelo ou peixes
prateados rastejando sobre seu paletó, mas, ainda assim, ele disse que o
Grande Inspetor era um demônio de homem, e tão perigoso quanto uma
serpente enrolada sob uma rocha. Ele parecia mais um corvo, em seu longo
casaco escuro, muito alto e com um nariz que se projetava magnificamente
sobre o bigode. Quando ele falou, sua boca fez um movimento de estalo, como
se seus lábios estivessem cheios de um elástico tenso.
Ele fez seus homens enrolarem o corpo em um lençol e enrolá-lo em um
grande saco, que todos os seis juntos ergueram em direção à porta. Ao
colocarem o corpo sobre os ombros, duas pequenas coisas caíram do lençol.
Observei-as bater no chão, escuras e sulcadas e cada uma do tamanho de
uma bola de gude: caroços de ameixa.
— Quero o teatro fechado por enquanto — disse o Grande Inspetor. —
Ninguém entra ou sai. Meus homens precisarão conduzir uma investigação, e
isso levará dias.
A mandíbula do Sr. Kovalchyk ficou frouxa. Ele pintou a testa.
— Você acha que... senhor, é possível... Eu li uma história nas prensas de
centavo... era um monstro?
De repente, o rosto de pássaro do Grande Inspetor ficou pálido de raiva.
— Não me fale mais nada sobre prensas de centavo ou monstros. Já é
difícil investigar a morte de um homem sem que todos em Oblya estejam
espumando pela boca para que eu execute um vilão imaginário. Não fale mais
sobre este assunto, Sr. Kovalchyk, e não deixe escapar a ninguém o estado em
que o corpo foi encontrado. Não vou tolerar outra turba à minha porta.
Eu ainda tinha o cartão do corretor e as pontas duras do papel
pressionavam cruelmente meus seios. Meu segredo, ou o segredo de Papa,
uma suspeita que eu não conseguia nem mesmo falar em voz alta. O Sr.
Kovalchyk fechou a boca e se virou, corando furiosamente. Os dançarinos se
aglomeraram juntos, sussurros correndo em seu pequeno círculo apertado, e
eu tinha certeza de que, não importa o que o Grande Inspetor decretasse, as
prensas de centavo ouviriam sobre isso hoje à noite.
Os trabalhadores foram embora e Sevas me guiou para fora do palco,
pelo longo corredor e pela porta. A luz do sol se derramava sobre nós como
manteiga derretida quente. Por fim, ele se virou para mim e disse:
— Marlinchen.
— Por favor. — disse. — Eu não quero falar sobre o homem morto.
Eu estava pensando em frutas. Estava pensando nos corações que
faltavam e nos pequenos pedaços de carne moídos que faziam o recheio de
varenyky. De repente, eu queria amassar o cartão e lançá-lo ao vento, e não
deixar que sua magia ruim se infiltrasse em mim ainda mais. Eu queria
arrancar as ideias que ele havia plantado em minha mente.
Sevas assentiu, a mão escorregando das minhas costas. E então descemos
juntos a rua Kanatchikov, o chão rolando lentamente sob nossos pés, em
direção à casa de meu pai.
19 Kasha é um prato de cereais cozidos, muito popular na Rússia e países vizinhos. Os cereais, que
podem ser simples, como arroz ou painço, ou preparados como semolina ou flocos de aveia, são fervidos em
leite, por vezes misturados com água, a quantidade de líquido determina, em parte, a consistência do kasha.
— Minha querida suplicante, este homem está a colocando em perigo?
— Indrik perguntou, bufando novamente com indignação ainda maior. —
Você gostaria que eu o derrubasse com um raio precisamente apontado?
— Não, obrigada — eu disse enquanto Sevas empalidecia. —, Indrik,
onde estão minhas irmãs?
Tive medo de que Papa as punisse em meu lugar, mas guardei esse medo
como um brinco no fundo de uma caixa de joias, e só agora ele se soltou
novamente, brilhando. E se eu já as tivesse arruinado? Comecei a sentir que o
plano que fiz era tolo e condenado, e como eu conseguiria chegar ao terceiro
andar e pegar o espelho de Mama, e mesmo que o fizesse, poderia encontrar
um corretor para vendê-lo, e se Papa me descobrisse antes disso?
Houve um som de trituração quando Rose saiu de trás da ameixeira
preta. Seu cabelo estava solto e atado com urzes e suas mãos e pulsos estavam
imundos até o cotovelo e ela parecia exatamente do jeito que eu me lembrava
dela.
Achei que ela ficaria brava. Mas, para minha grande surpresa, havia
lágrimas rolando por seu rosto, e ela veio em minha direção e me envolveu e
beijou minha têmpora e alisou os cachos crespos da minha testa. Ela cheirava
a terra e kvass de cereja azeda. Quando finalmente me soltou, ela enxugou as
lágrimas de seus olhos violeta e eu me senti um diabinho, uma canalha, por
fazer minha doce irmã chorar.
— Marlinchen — disse ela sem fôlego. — Eu estava com tanto medo que
você não voltasse.
Minha garganta se contraiu.
— Eu precisei.
Seu olhar disparou por cima do meu ombro, para onde Sevas estava. Seus
olhos se estreitaram. Eu vi Sevas passar a mão pelo cabelo, bagunçando-o
intencionalmente, e começar a erguer seu sorriso tímido e sedutor. Eu queria
dizer a ele para não se incomodar, que seria como tentar tirar sangue de uma
pedra. Nunca conheci ninguém mais resistente a ser encantada do que Rose, e
ela olhava para a maioria dos homens com desdém, como se eles não fossem
nada melhor do que os esquilos e outras pragas que ameaçavam seu jardim.
Ele não se intimidou.
— Meu nome é Sevastyan — disse, sorrindo brilhantemente, e estendeu
a mão. — Sevastyan Rezkin.
Rose deu-lhe um olhar severo.
— Este aqui não vai durar muito.
O sorriso de Sevas diminuiu, só um pouco.
— Sou menos frágil do que pareço.
Cavei um prego no corte na minha junta.
— O que Papa fez? Enquanto isso? E todos os homens...
— Bem, ele estava furioso, é claro. — Ouvi a ponta de culpa em sua voz,
e senti como se tivesse me agarrado contra a lateral do balcão, um golpe rápido
e forte na barriga. — Então ele ficou furioso por várias horas e transformou
uma das botas de couro dos homens em um cachorro preto latindo e o matou.
Dr. Bakay tentou acalmá-lo, mas Papa resiste a ser acalmado.
Sevas não estava mais sorrindo. Um vento forte atravessou o jardim,
sacudindo grandes pétalas cor-de-rosa soltas da planta de begônia e quase
explodindo minha saia junto com ela. Apressei-me a puxá-la para baixo
novamente, me perguntando se Rose tinha visto o sangue seco nas minhas
coxas, ou se notou o hematoma na minha garganta na forma da boca de Sevas,
ou se notou que meu espartilho havia sumido, abandonado àquela sala de
vidro quebrada. A magia dela era boa o suficiente para sentir a maneira como
eu havia mudado?
— Foi tolice trazer este homem de volta aqui — disse Rose bruscamente.
— Não acha que Papa vai se lembrar de como você desmaiou por ele naquela
primeira vez? Você não se lembra de sua promessa de transformá-lo em uma
massa de cobras negras na porta?
Quase todas as minhas certezas e bravatas coalharam sob o olhar
inteligente da minha irmã. Com dificuldade, eu disse:
— Os feitiços de Papa foram desfeitos, para deixar passar os
trabalhadores.
Mas a expressão de Rose não mudou.
— Você realmente acha que pode enganá-lo, Marlinchen? Uma noite fora
não a fez uma bruxa poderosa. No mínimo, você é menos esperta agora do que
quando saiu. Este dançarino acabou de infectá-la com sua imprudência.
Recuei, mas antes que eu pudesse responder, Sevas disse:
— Talvez você a tenha infectado com sua tristeza e pessimismo. — Eu
nunca tinha ouvido ninguém falar com Rose desse jeito. — Eu também não sou
tão idiota quanto pareço.
Eu nunca tinha ouvido sua voz tão fria antes, também. Senti-me um
pouco como quando o vi matar o Dragão-Czar pela primeira vez, cheio de uma
estranha sede de sangue.
— Vão em frente, vocês dois, — Rose falou. — Papa está esperando. E ele
está com fome. É tudo o que conseguiu falar desde que você partiu. Como o
estômago dele está se comendo na sua ausência.
Outro golpe duro na barriga. Fui arrastada pelo jardim como se por um
vento muito forte, pisoteando samambaias e penugem de dente-de-leão que
grudava no solo úmido como um espalhamento de neve suja. Rose foi
liderando o caminho, seus passos rápidos e seguros, seu olhar para frente e
conhecedor. Sevas agarrou minha mão e a apertou.
Mas assim que minha irmã abriu a porta e entrei, senti a névoa da magia
de Papa cair sobre mim de uma forma que nunca havia sentido antes. Lá estava
o relógio de pêndulo, sua sombra marcando o piso de madeira. Lá estava a
escada que subia até o segundo andar como a língua de um dragão vermelho
gordo. Havia o corredor que levava à cozinha, e a sala de estar à nossa direita,
e todos os homens com seus rostos tristes de cão pendurados sobre nossos
móveis.
Lá estava o Dr. Bakay, sentindo o crânio de um homem, fita métrica
amarela cortando a cabeça do homem ao meio. Havia a lufada de ar quente e
fedorenta da cozinha. Lá estava Undine na escada, linda e malvada.
E, então, lá estava Papa, parado na entrada do corredor, alto, estreito e
pálido, sua camisa branca e seu rosto brilhante como um osso. Ele nem
apareceu para ver Sevas, ou Rose. Seu olhar era como uma pistola engatilhada
e estava apontada apenas para mim.
O relógio do vovô bateu às três. Papa falou uma palavra que soou como
um feitiço, embora eu não pudesse ter certeza. Não foi gentil nem cruel. Era
simplesmente uma roda entrando em seu sulco. Tudo que eu sabia então era
que estava caindo no tempo, anos se abrindo em um abismo negro que me
engoliu inteira. Quando me cuspiram, eu tinha dezesseis anos novamente, as
mãos do Dr. Bakay em meus seios em crescimento; eu tinha treze anos,
comendo minha mãe-pássaro no jantar; tinha onze anos e Papa estava me
arrastando escada abaixo até o saguão para que eu pudesse prever a sorte de
homens com luxúria nos olhos. Tinha nove anos e ficava acordada à noite
enquanto os passos de Papa faziam a madeira doer e gemer.
Era uma magia tão incrível que moveu meu corpo para mim, e atravessei
o vestíbulo em direção à Papa. Se eu permiti que a imprudência de Sevas me
infectasse, isso deixaria buracos para a fome de Papa se infiltrar em mim
também. Meu estômago roncou tão alto que todos devem ter ouvido, Sevas e
Dr. Bakay e os trabalhadores e minhas lindas irmãs, que me olhavam com ódio.
Ajoelhei-me aos pés de Papa e me abaixei até meu nariz roçar o chão.
Pressionei meus lábios na ponta de sua bota. Eu me perguntei o que ele tinha
feito com o cachorro preto, e então me perguntei se restaria algum para mim.
Contra o couro de seu sapato, sussurrei:
— Desculpe, desculpe, desculpe. Nunca mais te deixarei.
Capítulo 12
Eis o que aconteceu quando voltei.
Papai deu às boas-vindas a Sevas na casa sem nem mesmo uma carranca;
era como se a cena em seu apartamento tivesse sido esquecida. Ele até pegou
o casaco de Sevas e o pendurou. Levantei-me, corando e tremendo com o
refluxo da magia de Papa, deixando-a sangrar enquanto o mundo estremecia
de volta. Os trabalhadores na sala de estar murmuravam como corvos.
Dr. Bakay pegou a mão de Sevas e apertou-a, comentando sobre a
firmeza de seu aperto e como isso se relacionava com seu décimo quinto Órgão,
o Órgão para Firmeza, que ele havia medido anteriormente. Sevas segurou a
mão do Dr. Bakay com tanta força que parecia que pretendia machucá-lo.
Quando finalmente o soltou, os nós dos dedos de Sevas estavam brancos.
Undine desceu as escadas, visivelmente puxando o decote de seu vestido
para baixo. Ela passou por mim e sorriu para Sevas e perguntou se ele gostaria
de um tour pela casa. Sevas sorriu de volta para ela, e como eu poderia culpá-
lo?
Mas ele recusou a oferta dela, e eu senti uma pontada perversa de
satisfação ao ver a forma como o rosto dela se enrugou como a lista de compras
da semana passada. Sua boca franziu e ela foi embora para o jardim. Rose ficou
ali na sombra do relógio de pêndulo e revirou os olhos com um suspiro.
Papa disse:
— Bem, Marlinchen? Eu estou com fome.
Eu podia ver as bolsas sob seus olhos, azuis e gordas, e as cavidades
dramáticas de suas maçãs do rosto, como se alguém tivesse levado um bisturi
para ele. Isso me encheu de uma terrível pena e culpa, tão superficial que era
como se eu tivesse sido feita para isso, uma máquina de dispensar sofrimento.
Naquele momento, esqueci minha própria fome corrosiva, caroços de
ameixa, corações e fígados perdidos. Quase me esqueci do cartão enfiado entre
meus seios e o compacto no bolso de Sevas e a pulseira de encanto no andar de
cima e o espelho que sempre fica no terceiro andar. Havia uma poderosa magia
amnésica percorrendo toda a casa, uma corrente silenciosa que me varreu, pela
sala de estar e pela cozinha.
Pratos sujos estavam empilhados precariamente na pia e o bloco de
açougueiro estava encharcado de sangue. As lâminas das facas estavam
marmoreadas com graxa e os garfos estavam coagulados com gordura e
cartilagem. Quem tinha feito tanta bagunça na minha ausência? Poderiam ter
sido os trabalhadores? Nenhum deles parecia ousado o suficiente.
Deve ter sido Papa, embora eu mal pudesse imaginá-lo prendendo o
cachorro preto guinchando no bloco de açougueiro e cortando sua barriga.
Papa não foi feito para essas violências cotidianas. Eu era sua lâmina contra o
banal e o grotesco. Eu massacrava monstros e esfregava meus dedos em carne
viva, esfregando seu sangue. Ele não.
Abri a torneira e deixei a água quente correr sobre tudo, o vapor se
nublando na frente do meu rosto.
Não percebi que Sevas tinha me seguido até a cozinha até que ouvi algo
cair no chão. Virei-me e o vi se curvar para pegar uma colher caída e colocá-la
no maldito bloco de açougueiro, depois sorrir beatificamente como se nada
tivesse acontecido.
— Você não deveria estar aqui, — eu disse. — Papa vai desconfiar.
Sevas colocou uma mão no balcão, sua voz baixa.
— Diga-me que foi tudo um ardil inteligente, uma falsa promessa.
Ajoelhada na frente de seu pai.
— É claro. — Minhas bochechas aqueceram. — Eu estava tentando ser
convincente.
Sevas assentiu. Ele acreditou em mim, poderia dizer, ou pelo menos ele
queria. Eu queria desesperadamente acreditar em mim mesma. Era melhor do
que a alternativa: que o fantasma da garota que eu era ainda assombrasse esses
corredores, e me possuísse sempre que meu corpo doía como uma ferida que
a deixaria entrar. Talvez ela nunca me deixasse ir.
Por um momento, não houve nenhum ardil, apenas a magia de Papa e o
relógio do pêndulo, como sempre. Eu tinha que me lembrar do plano, do
espelho, ou então me perderia em casa novamente.
— E cozinhar para seu pai vai convencê-lo ainda mais? — perguntou
Sevas.
— Eu tenho que fingir que tudo está como deveria estar, — eu disse —
ou então ele vai saber. Mas primeiro eu tenho que lavar.
— Posso ajudar — disse Sevas, e sem esperar minha resposta começou a
juntar uma braçada de pratos sujos.
Ver Sevas limpar minha cozinha parecia absurdo, mais íntimo e intrusivo
até do que ele empurrando com força dentro de mim. Senti como se ele pudesse
ver toda a minha vida disposta na disposição dos pratos, nas xícaras de chá
usadas, no monte de restos de ossos de galinha.
Ele pegou um pano molhado e limpou o balcão com uma ternura
surpreendente, da mesma forma que acariciou meu mamilo com a língua.
Fiquei extasiada ao vê-lo trabalhar, e até mesmo excitada, tanto que mal notei
a pia enchendo e enchendo diante de mim, água imunda lambendo a borda,
muito perto de transbordar e cair no chão.
Apressadamente, fechei a torneira, depois olhei para Sevas e disse:
— Você não precisa fazer o trabalho.
Ele arqueou uma sobrancelha.
— E se isso me agradar?
— Por que isso te agradaria?
— Porque há algo útil que posso fazer além de dançar — disse ele. —
Mesmo que esteja esfregando pratos. Talvez eu encontre trabalho no
restaurante assim que sairmos daqui. Não pode ser pior do que o teatro.
Olhei para baixo e mordi meu lábio.
— Há uma história no códex de Papa — eu disse. — É sobre um rei e uma
rainha...
— Esse é Ivan e a Czarina?
— Não, — eu disse. — embora a rainha morra neste também. Mas antes
de morrer, ela faz o marido prometer que só se casará com alguém que seja
igual em beleza a ela. Ele promete tal coisa. Mas a única pessoa igual em beleza
é a própria princesa. Então o rei decide se casar com sua filha.
— Acho que não gosto dessa história — disse Sevas. No maldito bloco
do açougueiro, nossas mãos estavam próximas.
Eu continuei mesmo assim.
— Para ficar feia, a princesa corta o braço e o seio. Seu pai não quer mais
nada com ela depois disso.
Lembrei-me de como tinha massacrado aquele pobre monstro. Lembrei-
me de como seu sangue havia encharcado minhas saias. Eu o havia matado
para manter meu segredo. Talvez essa fosse a mágica de tudo. Sevas pensaria
que eu era algo digno de ser salvo se soubesse que eu tinha dado ao monstro
uma morte tão lenta e ruim, cozinhado e servido ao meu pai?
Perguntei-me se ele me trataria com tanta ternura se soubesse como eu
lambi a colher que usei para servir a carne do monstro, e até mesmo comi um
pedacinho dela antes de levar o prato para Papa. Aquela mordida pousou
suavemente no meu estômago, solitária como um passarinho caído de seu
galho.
— Se um braço decepado é o que é preciso para libertá-la... — Sevas fez
uma pausa, levando a mão à boca. Eu podia ver onde minhas marcas de
mordida ainda circulavam seus dedos. — Você não seria feia, não para mim.
Antes que eu pudesse responder, a pia gorgolejou. Percebi então que a
água não estava drenando. Arregaçando a manga, enfiei a mão naquela água
oleosa e no ralo até meus dedos se fecharem em torno de algo grande e duro.
Levei várias tentativas para arrancá-lo, e quando finalmente consegui,
cambaleei alguns passos para trás, tonta com o esforço.
Sevas veio até mim e nós dois olhamos para a coisa na minha mão. Era
um longo osso de costela, curvando-se como uma concha esculpida, ainda
cheio de tendões e grande demais para ter pertencido a uma galinha.
— Marlinchen... — Sevas começou quando eu segurei o osso com tanta
força em meu punho que pensei que poderia esmagá-lo em pó.
— Ah, — eu disse. — Papa deve ter matado um porco.
Nenhum de nós falou. A água circulou pelo ralo. Por fim, Sevas disse,
em voz baixa:
— Devemos levar o espelho esta noite.
— Não — eu disse apressadamente. — Papa protegeu o terceiro andar
com feitiços. Eu tenho que falar com ele. Tenho que saber qual é a magia e
como quebrá-la.
Sevas assentiu uma vez, lentamente.
— Mas você deve ser cautelosa, Marlinchen. Desconfie de suas garras e
seus sorrisos desdentados.
— Eu sei. — disse. — mas agora precisamos comer.
Eu estava muito faminta.
Cozinhei varenyky com sobras de recheio, o suficiente para Papa, todos
os homens e minhas irmãs, e fiz dois potes de geleia de ameixa. As ameixas do
nosso jardim estavam maduras como hematomas, pulsando com o risco de
apodrecer. Eu me perguntava sobre as pedras dentro delas.
Não havia kvass, então bebemos água, todos sentados ao redor da
grande mesa de ébano. Eu não conseguia me lembrar da última vez que
comemos aqui. Ou comemos juntos, quanto mais com convidados. Observar
Sevas comer a comida que eu preparei me encheu de uma sensação
indescritível, em algum lugar entre anseio e tristeza. Eu queria beijar o traço
de creme azedo de sua boca e a careta de seu rosto.
Comi também, vorazmente, mesmo sabendo que não poderia vomitar
depois. Mas quando tudo terminou, a comida ficou na minha barriga sem se
agitar com culpa. Mais, agora eu tinha ainda mais motivos para mantê-la baixa:
sabia que Sevas não iria gostar se descobrisse que eu estava passando mal no
jardim. Ele já estava olhando entre o Dr. Bakay e eu a cada mordida, o olhar
varrendo a longa mesa como uma foice.
Papa comeu porções duplas e, quando terminou, seu estômago estava
inchado sobre a barra da calça. Não consegui olhar para ele; eu estava com
medo do que o brilho de sua magia poderia fazer. Talvez isso me empurraria
para cima da mesa e me faria me prostrar na frente dele, membros abertos
como uma galinha cortada na barriga. Às vezes, antes de dormir à noite, eu me
imaginava deitada nesta mesma mesa, nua, enquanto todos os meus clientes
cortavam pequenos pedaços de mim com garfos e facas. Às vezes, eu
imaginava que Papa arrancava meus olhos e os comia.
Agora eu só conseguia pensar no osso curvo que encontrei, a costela de
alguma criatura grande. Grande demais até para um porco, embora eu não
pudesse deixar esse pensamento se instalar em mim como fermento no fundo
de uma jarra de kvass. Em vez disso, levantei-me e recolhi os pratos, contando
o som de cada um enquanto batiam nos outros. Três para minhas irmãs e para
mim, um para Sevas, um para Papa, um para o Dr. Bakay, um para cada um
dos quinze homens...
Deveria ser vinte e um, mas quando voltei para a cozinha percebi que
tinha trazido apenas vinte. Espiei ao virar da esquina, de volta à sala de jantar,
estreitando os olhos enquanto tentava me concentrar nos rostos de cada
trabalhador. Sentindo-me culpada, percebi que todos eles haviam se
confundido para mim, que eu não havia falado com nenhum deles, exceto um.
Sobaka. Ele não estava em lugar algum para ser visto.
Quase abri a boca para perguntar, mas o conhecimento já estava se
calcificando em mim, a semente de um segredo que eu não poderia falar até
que florescesse. Voltei para a pia sem palavras. Lavei a gordura de estranhos
de nossas xícaras, tigelas e pratos.
Eu estava com medo de como Papa havia falado pouco durante a
refeição, e até sorriu para os homens e Sevas, seus dentes amarelos de lobo. Eu
estava com medo de como o Dr. Bakay tinha seus papéis espalhados por todo
o quartinho nos aposentos dos empregados abandonados. Ele estava
mantendo um registro das formas e tamanhos dos crânios dos homens e
adivinhando seus futuros de acordo. Perguntei-me se ele pediria para medir a
cabeça de Sevas novamente, e o pensamento me fez querer envolver meus
próprios dedos em volta da minha garganta e pressionar com força até que
houvesse estrelas atrás das minhas pálpebras.
Por fim, o crepúsculo cobriu o céu como uma maré cheia de óleo
derramado, sem estrelas e completo. Deixei Sevas na sala de estar com os
outros homens, depois de mais garantias de que eu ficaria bem, depois de mais
promessas que tinham gosto de água morna da torneira. Subi para o meu
quarto.
Tudo estava como eu tinha deixado, os vestidos espalhados por todo o
chão, minha cama uma ruína desfeita. A pena branca no meu boudoir. A
pulseira de encanto brilhando debaixo da cama. Caí de joelhos e a pesquei,
tirando a poeira da pequena coruja com pérolas nos olhos.
Eu tinha a pulseira e o cartão, tinha o osso estranho e grande da pia e
estava tentando juntar todos eles, para transformá-los em algo que pudesse
manejar como uma lâmina ou trocar com contas de cerâmica, mas antes que eu
pudesse entender, ouvi as tábuas do assoalho rangerem atrás de mim.
Papa empurrou a porta apenas uma fresta e se esgueirou como se fosse
uma faca tentando serrar um pedaço de cartilagem de um osso de galinha. Seu
estômago ainda estava distendido, e pensei, eu fiz isso. Eu o enchi. Quem disse
que minha magia era só para mostrar?
Seu poder estava crepitando no ar como tiros distantes, mas eu ainda não
senti vontade de rastejar ou ajoelhar. Ficamos ali em perfeito silêncio por vários
momentos até que disse:
— Papa, estamos com falta de um trabalhador.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— E o que te dá tanta certeza disso?
— Contei os pratos no jantar. Havia vinte quando deveria haver vinte e
um.
Meu pai só fez um som rouco.
— Oh, eu mandei um dos meninos embora depois que ele tentou se
esgueirar para o terceiro andar.
Meu coração deu uma guinada em duas direções, como sapos pulando
do mesmo lírio. Eu poderia tê-lo acusado de mentir. Poderia ter mostrado o
cartão e a pulseira de Mama; poderia ter cuspido o segredo meio
desabrochado. Ou eu poderia aproveitar a oportunidade para perguntar:
— Que feitiço você lançou sobre a porta do terceiro andar?
— Isso não é nada para você se preocupar, — Papa disse. — sente-se,
Marlinchen.
Outro salto do meu coração, este irregular e doloroso.
— Você vai me punir, Papa?
Eu nunca tinha perguntado a ele uma coisa tão sem rodeios antes.
Apenas tentei escapar silenciosamente das armadilhas que ele colocou no chão,
não me contorcer contra as adagas que pressionava em minhas costas. No
entanto, essa ousadia não era de Rose ou Undine; era minha. Era a ousadia da
garota que dançou em uma taverna e deixou um dançarino passar entre suas
coxas. Seu fantasma me habitou por um momento, e senti meu peito inchar.
Por um longo tempo Papa não respondeu. Por fim, disse:
— Eu sabia que você voltaria para mim.
— Bem — eu disse, ainda com muita ousadia, — você é um bruxo.
— Não por causa disso. Um pai conhece sua filha como uma árvore
conhece todos os seus galhos, como uma serpente decorou o padrão de
escamas em sua barriga. Esse é o seu próprio tipo de magia, o tipo hereditário,
o tipo que não pode ser aprendido ou ensinado.
Mas você não me conhece, Papa, pensei. Você conhece a garota que lhe prepara
o jantar em silêncio obediente. Não conhece a garota que sangrou sua virgindade em
uma sala cheia de espelhos e que sentiu apenas um prazer amargo e sombrio ao lembrar
de suas proibições contra isso. Não tive a ousadia de dizer isso.
Houve outro período de silêncio.
— Sabe o que eu pensei quando você nasceu? — Papa perguntou, os
olhos saltando para mim no escuro. — Eu me desesperei, na verdade, porque
adivinhei que você não seria adorável como suas irmãs. Eu não sabia então que
utilidade uma filha sem rosto poderia ser para mim. Agora eu entendo. Esta
competição tornou-se mais aparente do que nunca. Se você comer ameixas
pretas, Marlinchen, eu nunca vou deixá-la provar o veneno. Se você se banhar
nua em riachos, será sem jamais atrair o olhar devasso de um caçador. Vou me
certificar de que todos os ursos que você encontrar sejam amigáveis e dóceis, e
nunca homens disfarçados. Nunca vou deixá-la ser vítima da banalidade do
mundo. Eu nunca vou deixá-la se apaixonar.
Você falhou nisso, Papa, pensei, mas as palavras ficaram presas na minha
garganta.
Com uma mão, ele estendeu a mão e segurou meu crânio, desenhando
seu polegar ao longo da minha nuca, como se estivesse fazendo a leitura de um
frenologista. Percebi que havia algo em sua outra mão, um copo cheio até a
borda com um líquido turvo. Não era kvass; estávamos sem kvass.
— E quanto ao Dr. Bakay? — Eu perguntei, meu coração ainda acelerado,
o fantasma da garota corajosa ainda me possuindo. Eu poderia tirar o cartão a
qualquer momento. Poderia arremessar o bracelete de encanto nele com tanta
força que atingiria seu rosto e doeria.
— E ele? Ele é um bruxo à sua maneira. Eu sei que você é um pouco
simplória, Marlinchen, mas você não consegue ver? Esse foi o meu feitiço para
mantê-la segura. Nos velhos tempos de Oblya, antes que fosse Oblya e fosse
apenas uma estepe que corria para o mar sem nada para detê-la, tínhamos um
chefe que fazia suas próprias leis. Ele punia os criminosos duramente, mas
nunca os matava. Se roubavam, ele pegava suas mãos. Se estupravam, ele os
castrava. Para ofensas menores, talvez só precise abrir uma orelha, um olho ou
um dedo mindinho. Nenhum desses homens jamais infringiu uma lei de novo
– era como ensinar ao seu cachorro a ferroada do chicote. Mas o melhor de
tudo, ninguém mais contrataria esses homens, e suas esposas não os tocariam,
e seus filhos se encolheram quando os vissem. Eles não podiam andar para
comprar pão sem que todos soubessem que estavam estragados, que estavam
apodrecidos como ameixas podres. Eles não suportavam os olhares e os
insultos, então ficavam em suas casas, escondidos da crueldade do mundo.
Suas palavras caíram na minha barriga como granizo na neve, lavando o
jantar que eu tinha guardado. Fiquei com frio, frio demais para que o fantasma
da garota corajosa me habitasse, e ela fugiu, deixando-me sozinha comigo
mesma. Agora eu estava com tanta fome, tão terrivelmente faminta, como se
não tivesse comido desde o meu berço.
Todo esse tempo eu culpei os rublos e apenas os rublos. Eu tinha deixado
a ganância de Papa absolvê-lo. Mas ele queria mais do que dinheiro, afinal.
Papa tinha deixado o Dr. Bakay cortar minha perna para que eu só pudesse
mancar por esta casa, da cozinha à sala de estar e ao meu quarto, como um
cachorro manco. Ele mesmo havia amarrado o torniquete.
Um gemido saiu da minha boca. Eu tinha dezessete anos de novo e sabia
como a lâmina do médico se parecia contra o meu peito.
E então uma transformação fantástica começou a acontecer diante de
mim. Onde estivera o rosto de Papa, agora havia apenas um crânio, carne e
músculo arrancados. Nas cavidades de seus olhos havia dois caroços de
ameixa. Sua mandíbula foi encaixada com o osso da costela de alguma criatura
grande. Ele segurava entre os dentes o cartão do corretor e seu cabelo se
transformara em penas brancas de rabo. Sufoquei um grito, e abruptamente a
metamorfose aterrorizante reverteu. Eu estava mais uma vez olhando para um
homem, um bruxo, meu pai.
Não é verdade, eu disse a mim mesma. Papa ama você e amava mamãe e não
pretendia transformá-la em um pássaro ou comê-la. Ele só queria nos manter a salvo
do mundo.
Papa me olhou de forma estranha, como se pudesse ver o tumulto em
minha mente.
— Você está com sede, Marlinchen?
De repente, minha garganta estava seca.
— Sim — eu disse. —, estou com tanta sede, Papa.
— Aqui — disse ele, segurando o copo para mim. O líquido escuro
borbulhou como um caldeirão. — Beba.
Por um momento pensei, com uma onda de pânico, que era a poção que
ele usaria para testar nossa pureza, mas logo vi que não era. Era o mesmo suco
preto que tinha visto antes, deixado para mim na cozinha, oferecido a mim por
Papa enquanto eu mancava ao redor dele na sala de estar. Não tinha gosto
amargo como a poção; tinha um gosto doce.
Nenhum luar derramado pela minha janela. Eu não estava pensando em
Sevas, no espelho, no cartão, no bracelete, em Sobaka ou no corretor
desaparecido ou no homem que foi encontrado morto no teatro. Estava apenas
pensando em como saciar a sede terrível. Eu coloquei o suco em meus lábios e
engoli.
Acordei na manhã seguinte com uma dor de cabeça espetacular, o sol
lançando fitas de luz sobre meus olhos. Eu pisquei a poeira dos meus cílios e
sentei, o que fez tudo no meu estômago sacudir como uma caixa de jóias cheia.
Minha conversa com Papa parecia tão nebulosa e meio lembrada quanto
um sonho. Talvez isso fosse tudo o que tinha sido. Eu estava deitada aqui na
cama, o lugar mais macio em que já me deitei, e meu corpo se lembrou do
conforto e se enrolou na memória como um caranguejo em sua concha.
Mas então o relógio de pêndulo bateu às seis, e minha roda caiu em seu
sulco. Levantei-me, vesti meu roupão e desci. Tudo estava quieto e silencioso.
Os homens dormiam na sala de estar, debruçados sobre os móveis, como se
alguém tivesse espalhado um cesto de roupa suja. Sevas estava deitado perto
da chaise, a cabeça apoiada em seus próprios braços dobrados. Ele parecia
lindo e tranquilo.
Eu não queria correr o risco de acordá-los enquanto fazia meu caminho
para a cozinha, então, em vez disso, abri a porta da frente e entrei no jardim.
Estava agradavelmente fresco, o outono começando a iluminar a folhagem
como uma fogueira, os verdes transformando-se em amarelo, laranja e
marrom. O céu era do azul terno e pulsante de um dedo congelado. Minha
cabeça doeu muito.
Algo me fez querer colher o resto das ameixas antes que apodrecessem.
Talvez eu pudesse fazer kvass com elas. Talvez isso agradasse à Papa. O jardim
estava estranhamente silencioso, os corvos sem olhos ainda cochilando em
seus galhos, o duende em lugar nenhum.
Com o canto do olho, vi algo preto brilhar na grama de trigo. A princípio
pensei que fosse uma fita caída, mas quando as nuvens se dissiparam e o sol
brilhou através das árvores em um ângulo perfeito, parecia uma língua de
fogo. A serpente de fogo. Pisquei novamente, e ela se foi.
A ameixeira estava atrás do galpão, passando pelas plantações de ervas
de Rose, e meio escondida em um anel de flores de sálvia de um azul vívido
que crescia quase na altura da cintura. Quando a luz do sol os refletia, eles
eram tão brilhantes quanto os fios energizados. Passei por eles, juntando
carrapichos em minha camisola, mas parei apenas quando ouvi um estranho
som ofegante.
Respirações curtas e afiadas que cortaram o ar como milhares de
pequenos dardos lançados. Por um momento pensei que devia ser um truque,
que era apenas o vento preso em algum espaço pequeno, e com cada rajada
tentando escapar. Mas então ouvi um grunhido trabalhoso e o segui pelos
fundos do galpão, como se estivesse em transe.
Undine estava de joelhos na terra, vestido azul dobrado sobre seu
traseiro, seu cabelo derramando sobre o chão como um lento derramar de
vinho de mel. Ela estava arfante e ofegante, suas bochechas esplendidamente
rosadas, e um de seus seios soltou de seu espartilho de modo que balançava
com o peso de um pêndulo. Seu mamilo roçou o chão. Indrik estava agachado
atrás dela, as mãos apoiadas em seus quadris, no cio. Seu pelo de bode estava
todo despenteado e seu rabo balançava a cada estocada.
Não foi nem o mero fato disso que me chocou, mas a violência, ele se
apoiava em minha irmã com fervor determinado, mas absolutamente nenhum
calor. Não havia nada da dolorida gentileza que senti quando Sevas se moveu
dentro de mim. Pareceram horas que eu fiquei ali, observando, mas não pode
ter passado mais do que alguns momentos antes de Undine me ver e gritar e
Indrik sair dela e tropeçar para trás, ainda duro e brilhante.
— Sua idiota! — Undine gritou, levantando-se. Suas saias caíram para
trás, mas seu seio ainda estava pendurado no topo de seu espartilho, e caiu
com cada movimento dela. — O que você está fazendo aqui?
— Eu queria colher as ameixas. — Minha voz soava tão obscura e
distante, era como se pertencesse a outra pessoa. Minha irmã estava olhando
para mim com tanto veneno em seus olhos que continuei, apressada:
— Undine, eu juro, não vou contar à Papa...
Ela riu, um som alto e agudo que assustou os corvos sem olhos de seu
poleiro.
— Diga à Papa se quiser, ou não. Pouco importa para mim. Ele é um tolo.
Faz sete anos desde que sua filha se acasalou com um monstro em seu próprio
jardim e ele nunca levantou a cabeça do prato por tempo suficiente para
perceber.
Minha boca estava aberta como a de uma carpa morta. Suas palavras
caíram sobre mim, mas não deixaram marcas; eu não conseguia entender.
Indrik bufou de indignação, mas fiquei surpresa que não contestou a
descrição de Undine dele como um monstro. O que quer que Indrik gostasse
de se gabar, os deuses no códex de Papa não se casavam assim com mulheres
mortais; eles nem se casavam assim com bruxas. Viravam cisnes e deixavam
suas consortes com três ovos em uma cesta de vime; eles se transformavam em
chuvas de luz dourada e se derramavam sobre donzelas presas em torres.
Nunca foi algo tão bruto, tão áspero, tão mundanamente humano.
A dor na minha cabeça se transformou em uma dor branca cegante atrás
dos meus olhos, e só quando clareou de novo eu fui capaz de dizer: — Mas as
poções de Papa...
Undine fez um ruído cortante na parte de trás de sua garganta, e então
cuspiu na terra na minha frente.
— Você é muito mais simplória do que eu jamais imaginei, Marlinchen.
Você realmente acha que as poções de Papa têm alguma magia de verdade?
Ele nem é um herbalista! Você nem deve saber que Rose leva suas clientes ao
galpão do jardim ou à despensa e faz o mesmo com elas, todas aquelas
mulheres que vêm até ela com desespero nos olhos. Mas é claro que a magia
mais estúpida de Papa funcionou em você de qualquer maneira, ele a
convenceu de que era real. Você adormeceu à noite preocupada que uma de
nós pudesse tossir nossos fígados?
Ela riu de novo, alto e terrivelmente.
— Claro, você nunca se preocuparia tanto consigo mesma! Marlinchen
de rosto simples e bom coração nunca sonharia em desafiar o querido Papa,
nem ela jamais pegaria o olhar lascivo de um homem ou mulher.
Não era mais cruel do que qualquer coisa que eu tinha ouvido dela antes,
mas agora suas palavras ardiam em minha barriga como a ponta preta de um
fósforo. Todos esses anos Rose e Undine sabiam que as poções de Papa não
funcionavam, mas elas me deixaram continuar acreditando que eram reais.
Elas se divertiam com suas rebeliões furtivas enquanto eu matava galinhas e
pior para Papa, enquanto eu dobrava a roupa dele e esfregava o chão e as
paredes até que a casa inteira brilhasse como se fosse um amuleto. Elas
poderiam ter me contado a verdade, mas por que elas... eu cozinhava todas as
refeições delas também.
Minha cabeça ainda estava latejando e minha boca estava seca, mas eu
me lembrei do jeito que Undine passou por mim para bater seus cílios em
Sevas, e um pouco da minha própria crueldade floresceu.
— Você não sabe tudo, — eu disse a ela, cada palavra tremendo como
uma corda dedilhada. — você não sabe que quando fugi, eu fui ao teatro de
balé, e quando ele me viu lá Sevas parou de dançar e pulou do palco e me
pegou em seus braços. Então ele se uniu a mim ali mesmo no teatro, em uma
sala cheia de espelhos quebrados, e depois disse que voltaria para a casa de
Papa e disputaria minha mão.
Eu disse tudo com pressa, e ouvi-la em voz alta soou melhor do que
minha história favorita no códex de Papa, melhor do que o cisne-czarina e Ivan.
Parecia melhor do que qualquer sonho que eu poderia ter conjurado em minha
própria mente, onde eu era uma garota mortal corada resgatada por um
valente bogatyr. O melhor de tudo foi o meu segredo que o tornou assim, a
magia da minha pequena rebelião.
Quase nem me ocorreu que o rosto de Undine estava escurecendo,
virando o tom de uma ameixa quase apodrecendo. Mas então ela cambaleou
para frente, um seio balançando, e me pegou pela garganta. Suas mãos
pressionaram com força até que as lágrimas se acumulassem nos cantos dos
meus olhos e minha respiração só pudesse sair em ofegos curtos e quentes.
— Você não merece isso. — ela sussurrou no meu ouvido. — Você é a mais
feia e estúpida de todas nós, eu nunca vi um rosto mais simples ou uma mente
mais estúpida do que a sua. E o pior de tudo, você é como um cachorro que
adora as chicotadas. Você se curva a cada palavra de Papa e sorri enquanto ele
enfia a faca em seu peito. Que direito você tem de ser resgatada? O dançarino
foi um tolo por vir. Você prefere sentar mansamente aos pés de Papa e lamber
suas botas do que fugir com um homem bonito. Você é muito covarde. Você
não vai embora com ele de qualquer maneira.
Minha visão estava começando a se estreitar e minha garganta queimava
com a pressão. Estendi a mão e agarrei o rosto de Undine, desenhando três
linhas de sangue em sua bochecha.
Ela me soltou e cambaleou para longe, ombros levantando como um par
de asas que estavam prontas para se desdobrar entre as lâminas de suas costas.
Então ela rosnou.
— Talvez eu diga a verdade à Papa antes que você tenha a chance. Você
está melhor morta para ele do que suja.
Antes que ela pudesse me alcançar novamente, me virei e me joguei entre
as flores de sálvia e a grama de trigo, quase tropeçando enquanto subia as
escadas para a casa. Meu coração batia tão alto e furiosamente que eu podia
contar cada batida torta, e minha cabeça doía como um ovo prestes a eclodir.
Empurrei meu caminho para dentro e caí de joelhos no saguão, assim que
o relógio do vovô soou sete horas. Eu podia ouvir as vozes sonolentas dos
trabalhadores na sala de estar, bocejando como gatos velhos. Preocupei-me
com o som de passos no patamar do segundo andar, imaginando se Papa já
havia acordado. Ele ficaria com raiva. Ele iria querer seu café da manhã.
Mas quando me levantei, tremendo, fiquei de pé, foi apenas Sevas que vi
na minha frente, seus olhos azuis ferozes e brilhantes de preocupação. À luz
do sol da manhã, ele parecia bonito demais para ser tocado. A dor e o horror
fizeram meus próprios olhos lacrimejarem.
— Marlinchen — disse ele, pegando meu rosto em suas mãos. — O que
aconteceu? É seu pai?
No começo eu queria contar a ele o que tinha acabado de acontecer, mas
não consegui falar. Depois de vários momentos, percebi a futilidade de dizer
qualquer coisa. Minhas palavras eram muito horríveis e feias para seus
ouvidos. Pior ainda, esta casa era horrível demais para mantê-lo escondido em
sua barriga; não merecia uma refeição tão doce.
— Não — eu consegui. — Não consegui nada dele ontem à noite; peço
desculpas. E agora eu caí no jardim.
— Tudo bem, — Sevas disse suavemente. — temos tempo para tentar
novamente.
Um pequeno sulco surgiu de repente entre suas sobrancelhas. Ele soltou
meu rosto, mas seu olhar não deixou o meu. Ele penetrou em mim, terno e
desejoso, como se seu lindo olhar sozinho pudesse arrancar mais palavras da
minha garganta. Depois de outra batida, eu o vi estremecer, o olhar baixando
para o chão.
— O que há de errado? — Perguntei. Eu poderia ter rido de uma reversão
tão rápida e limpa se minha cabeça não estivesse ainda zumbindo com a
ameaça de Undine.
— Não é nada. — Sevas disse, tentando um sorriso de dor. Pelo menos o
humor também não passou despercebido para ele. — São apenas meus pés.
Normalmente, depois de um show, alguém os trata, mas desta última vez eu
estava um pouco preocupado.
— Ah — eu disse. Era tão perfeitamente mundano que lavou todo o meu
horror profundo e agitado. — deixe-me ver.
Eu o puxei para a sala de jantar e puxei uma das cadeiras para que ele
pudesse se sentar, enquanto me ajoelhava na frente dele. Ele o fez, e então
começou a tirar as botas, chupando o lábio inferior em sua boca. Quando
finalmente ele se livrou delas, olhei para baixo, alarmada com a visão de seus
pés descalços diante de mim.
Deviam ser a única coisa feia nele, os dedos dos pés mutilados e nodosos
como os pedacinhos de galhos de bétula que cortamos para tirar a sorte, os
calcanhares ásperos e calejados, e metade das unhas enegrecidas com o jorrar
de sangue velho. Eu não era uma curandeira e nem conseguia pensar por onde
começar. Um único curativo imundo estava se soltando de seu tornozelo
esquerdo.
Sevas se inclinou, bufando uma risada, e disse:
— Eu não a culparia por se desapaixonar. Se o público pudesse ver os
pés de seu Ivan, vomitariam.
Meu rosto ficou magnificamente quente.
— É uma coisa boa que eu seja uma bruxa, então, e não uma garota
mortal corada. Posso embrulhar seus cortes e trazer um dos elixires de Rose
para a dor.
Os lábios de Sevas se curvaram levemente nos cantos.
— Sabe, esta é a primeira vez em anos que passo um único dia sem
dançar. Se eu ficar fora do teatro por tempo suficiente, me pergunto se meus
pés começarão a parecer com os de um homem normal.
— Você me disse uma vez que quando você dança, tem que bater em seu
corpo até que o obedeça — eu disse. Meu dedo roçou o tendão de seu
tornozelo, empurrando para fora através de sua pele, e ele estremeceu. —
Talvez você devesse tratá-lo com gentileza em vez disso.
Sevas abaixou a cabeça para que nossos olhos ficassem quase no mesmo
nível.
— Você vai ter que me mostrar como.
Senti uma onda rápida e desesperada de afeto, tão completa que pude
esquecer a dor latejante atrás da minha têmpora ou a dor na garganta dos
dedos da minha irmã. Inclinei-me e beijei seu tornozelo, depois até a
panturrilha, até meu queixo descansar em seu joelho. Sevas deu um gemido
suave e isso me fez ficar escorregadia entre as minhas pernas só de ouvir. Ele
segurou meu rosto por um breve momento e, em seguida, arrastou a mão pela
minha garganta, pela minha clavícula e sobre o meu peito.
Desta vez eu estremeci, e quando seu polegar roçou meu mamilo através
do meu vestido eu pensei abruptamente em Undine e Indrik e no olhar de seus
seios empurrando com cada uma de suas estocadas.
Afastei-me de Sevas e disse:
— Você me deixaria de joelhos no chão? Você me aceitaria sem qualquer
ternura? Seria tudo o que eu merecia, sendo uma bruxa de cara simples com
uma mente embotada...
Sevas respirou fundo rapidamente.
— Como você pode perguntar isso? Se eu tiver você, será como um
homem tem uma mulher, um marido e sua esposa. Você sonha com Bogatyr
Ivan quando me beija? Gostaria que eu entrasse em você segurando uma
espada de madeira? Eu não gostaria que nenhuma história ficasse entre nós
como um terceiro corpo em nosso leito conjugal. Quando toco seu peito estou
tocando o peito de Marlinchen Vashchenko, não uma bruxa, não uma garota-
cisne, não uma adivinha de carne, não uma terceira filha. Nem mesmo eu sou
luxurioso o suficiente para satisfazer cinco mulheres ao mesmo tempo.
Suas palavras me deixaram corando ainda mais profundamente.
— Vou arrancar o segredo de Papa, eu juro. Vou descobrir como quebrar
o feitiço dele e então venderemos o espelho de Mama e você nunca mais terá
que dançar.
— Eu gostaria disso, Marlinchen — disse ele, e se inclinou para me beijar.
Eu me empurrei para encontrar seus lábios, mas quando o fiz, um
espantoso raio de dor atravessou meu crânio. Minha visão punhalada com
minúsculas agulhas de luz branca. Por um momento, eu não podia ver nada,
ouvir nada, não sentir nada, exceto as mãos de Sevas em meus ombros
enquanto ele deslizava para fora da cadeira e se ajoelhava ao meu lado. Minha
cabeça rolou para trás e quando ela virou para frente novamente, eu vi seus
olhos azuis arregalados com desespero em pânico.
— Minha cabeça — eu falei. Havia saliva acumulada na minha língua
que doía demais para engolir, e um pouco dela escorria pelos meus lábios. —
Acho que preciso me deitar.
Ocorreu-me, de repente e terrivelmente, que eu não tinha contado a ele
sobre a ameaça de Undine. Mas quando tentei falar de novo, houve outro golpe
de dor branca vertiginosa.
Sevas me ajudou a ficar de pé e quase me carregou para o saguão,
subindo as escadas. Seus lábios se moviam e eu sabia que ele estava falando,
que talvez estivesse até me fazendo perguntas, mas parecia que meus ouvidos
estavam cheios de algodão. Ele me levou para o meu quarto e eu desabei na
minha cama, tudo afiado, brilhante e pungente.
O algodão se dissolveu apenas o suficiente para ouvi-lo dizer que ia
buscar minha irmã, que ia encontrar Rose. Tentei murmurar algo de volta, mas
não consegui dizer se minha boca conseguiu formar as palavras ou não.
Pensei em Undine no jardim, seu cabelo derramado na terra, sua mão
enrolada em volta da minha garganta. Pensei em como eu tinha colocado meu
segredo em sua língua como uma doce fruta vermelha, o jeito que tinha dado
a ela uma faca para cortar Sevas e eu.
Estendi a mão para o braço de Sevas enquanto ele fugia do quarto, mas
então a luz branca me afogou e não vi mais nada.
Eu mal tive que tocar a porta da escada do terceiro andar antes que ela
se abrisse, madeira velha rangendo. Se Papa realmente tinha colocado algum
tipo de encantamento sobre ela, eu a atravessei com facilidade, como se não
fosse mais do que um véu de teias de aranha.
A escada estava escura, mas eu tateei a parede com uma mão, e a voz da
serpente em minha mente foi um guia melhor do que qualquer castiçal poderia
ter sido. Mais dois degraus até o topo. Há uma tábua de assoalho solta aqui; cuidado
para não tropeçar. Você está tão perto, Marlinchen.
Fiz uma pausa para recuperar o fôlego, e mais adiante no corredor havia
um quadrado de luz branca gradeada pelo chão, cortada em dois pedaços pela
sombra de uma porta aberta. A serpente não precisou me dizer para ir até ela.
A última vez que estive no terceiro andar, minha mãe era um pássaro em
sua gaiola. Os dez anos que se passaram entre antes e agora se acumularam
em mim como neve; me sentia velha como uma idosa e jovem como uma
criança, antes que meus seios brotassem. Eu me sentia tanto como a garota que
cuidara tão meticulosamente de sua mãe-pássaro e também como a garota que
a havia comido. Eu me sentia tanto uma bruxa de poder indeterminado quanto
uma mortal que dançava nas tavernas e sangrava entre as pernas.
Parei na soleira e olhei para minha silhueta nua ao luar. Bem ali, diante
de mim estava a gaiola de minha mãe, a porta dourada escancarada, e o
espelho que nunca mente, com o lençol branco por cima. A serpente de fogo
soltou meu mamilo e deslizou até meu ombro, onde se enrolou no meu pescoço
como um colar de pérolas. Algumas gotas de sangue se acumularam nas
pequenas feridas que seus dentes haviam deixado.
Eu não tinha ouvido ninguém vir atrás de mim até que a voz de Sevas
flutuou em meu ouvido. Ele estava de pé ao meu lado na soleira, nossa
respiração misturando-se em nuvens brancas.
— Marlinchen, o que você está fazendo aqui?
— Como você me achou?
— Segui você. A porta estava aberta. — Ele não mencionou a cobra, mas
seu olhar subiu e desceu meu corpo nu com uma amálgama de desejo
desesperado e medo confuso. — O que seu pai fez?
Eu já estava atravessando a sala, passando pela jaula vazia de minha mãe,
de pé diante do lençol branco e do que estava escondido embaixo dele.
— Este é o espelho que nunca mente. A única coisa nesta casa que contará
a verdade em vez de uma história, mesmo que não goste do que vê. — Fiz uma
pausa, a cabeça da cobra descansando na cavidade da minha garganta. —
Fique aqui comigo e olhe.
Sevas balançou a cabeça, sorrindo levemente.
— Estou com medo.
— Com medo de quê?
— Tenho medo de ser feio — ele disse, não mais sorrindo.
Meu próprio coração se encheu de terna afeição.
— Isso é impossível.
Ele suspirou, então atravessou a sala para se juntar a mim. Seus ombros
estavam tensos do jeito que estavam quando interpretava Ivan, quando ele se
preparou para matar o Dragão-Czar. Estavam tensos como se ele ainda usasse
seu manto de penas. Eu me perguntei se era disso que realmente tinha medo:
de ver Ivan olhando para ele.
Exalando minha própria respiração, peguei sua mão e entrelacei nossos
dedos. Então, com a outra mão, peguei o lençol branco que cobria o espelho.
Eu também estava assustada, tão assustada quanto uma garotinha que
via silhuetas com chifres pintadas contra a parede do quarto à noite, tão
assustada quanto uma jovem que ouvia os homens perguntando por ela
enquanto se encolhia sob as cobertas. Mas alguma transformação aconteceu
dentro de mim, onde ninguém podia ver.
Arranquei o lençol com um floreio, deixando-o cair no chão, tão sem
corpo quanto um vestido jogado do varal. O aperto de Sevas na minha mão
aumentou, e eu o ouvi gaguejar meu nome.
No espelho, observei minha própria metamorfose trêmula enquanto
meu reflexo se deformava, encolhia e desabrochava, tudo em questão de
segundos. Observei escamas pretas modelando minha barriga nua e cobrindo
meus seios mordidos. Eu vi meus lábios se separarem, mais avermelhados do
que vermelhos, minha língua bifurcada chicoteando sobre fileiras de dentes
afiados como lâminas. Assisti a verdade se desdobrar diante de mim, assim
como as asas que se espalharam pelas minhas costas.
Capítulo 14
Eu tinha me preparado para Sevas soltar minha mão. Para ele tropeçar,
para gritar. Em seu lado do espelho, seu reflexo estava inalterado, exceto que
suas roupas haviam sumido. Faixas pálidas de tecido cicatricial envolviam
seus braços e pernas como fitas brancas, e havia cortes levantados por todo o
peito, como se cada um dos golpes do Dragão-Czar tivesse acertado. Até seu
rosto tinha a evidência de feridas antigas, mas ele ainda era tão bonito que fez
minha respiração parar ao olhar para ele.
Deixei meus dedos ficarem frouxos, antecipando o momento em que se
afastaria do meu alcance. Mas ele só me segurou mais forte e mais rápido,
como se eu fosse uma tábua de salvação jogada para ele em águas agitadas.
Virei-me para olhar em seus olhos; no espelho, minha cabeça monstruosa virou
também.
— Vá, — eu disse a ele — corra.
— Não. — ele respondeu.
— Eu vou te comer — avisei, minha voz um sussurro.
— Você já tentou. — Ele levou seus dedos mordidos à minha boca,
mostrando os pequenos cortes que eu tinha deixado. — Convido você a tentar
novamente.
Engasguei em descrença.
— Você seria um tolo se ficasse. Os dois homens no calçadão, o do teatro,
o corretor que veio à nossa casa... minha própria irmã. Todos eles mortos por
mim e comidos pelo meu pai. Abri-os pela barriga e arranquei seus corações e
fígados para servir no prato de Papa. Eu poderia arrancar seu coração. Eu
mesma poderia comê-lo. Você anseia tanto por sua própria morte horrível?
— Já morri mil vezes — disse Sevas. — Cruelmente, nas mãos do Dragão-
Czar. Gentilmente, na cama de Derkach. Se isso é o que sou na verdade, um
homem feito de nada além de feridas, por que eu deveria temer uma coisa
dessas agora? Não há companheira mais perfeita para mim do que aquela que
usa minha própria mortalidade em volta do pescoço como uma joia.
Enquanto falava, ele levantou a mão e roçou a cavidade da minha
clavícula, bem onde a cabeça da serpente descansava, como um amuleto de
ônix precioso.
— Eu não acredito em você. — disse. — Que tipo de homem se importa
tão pouco com o sangue de inocentes derramado? Que tipo de homem se casa
com uma mulher com dentes tão afiados?
— Eu— disse Sevas. Seus olhos azuis eram tão brilhantes, banhados pelo
luar. — Poderia passar o resto dos meus dias provando isso para você. Tenho
a paciência e a coragem de sete mil Ivans.
Seu reflexo no espelho alcançou a ponta da minha asa, e eu senti um
arrepio fantasma passar por mim, uma sensação desencarnada que era tão
fraca que pensei ter imaginado.
Eu era uma mulher dentro do corpo de um monstro, ou era um monstro
dentro do corpo de uma mulher? Eu tinha me perguntado a mesma coisa de
minha mãe-pássaro, quando ela foi transformada pela primeira vez. Ela ainda
tinha um coração e uma mente de mulher dentro de todos aqueles ossos
delicados e sob todas aquelas penas brancas? As poções de Papa haviam
cortado um espaço negro em minha mente onde deveriam estar as memórias
de meus assassinatos, mas isso não era suficiente para me absolver. Aqueles
homens, aquele corretor e minha irmã ainda estavam todos mortos por minha
mão, mesmo que tivesse sido guiado pela magia de Papa.
Lágrimas brotaram em meus olhos, e quando elas caíram, a serpente de
fogo abriu sua boca e as lambeu de minhas bochechas.
— Não — sussurrei. — Eu não vou deixar você tirar suas mortes de mim.
Seu amor não pode me tornar menos monstro.
Sevas soltou um suspiro.
— Eu não presumiria que meu amor pudesse fazer uma coisa dessas.
Gostaria de tê-la como você é, nada menos.
Novamente, eu disse:
— Eu não acredito em você.
— O espelho diz a verdade?
— Sim — eu disse, apenas um sussurro.
— Então veja.
Um grande tremor passou por ele, e seu peito inchou. Ele se ergueu em
toda sua altura, assumindo a gloriosa postura de bogatyr de Ivan, ombros
erguidos.
E então ele deu um punho áspero no meu cabelo, envolvendo os cachos
selvagens e soltos em torno de seus dedos esbranquiçados, e puxou meu rosto
para o dele e me beijou. Ele me beijou com tanta força que quase doeu, e eu
choraminguei em sua boca, mas ele não me soltou. Coloquei meus braços ao
redor de seu pescoço e ele me agarrou pela cintura e a serpente se moveu entre
nós, e, no espelho eu vi um homem terrivelmente cheio de cicatrizes,
terrivelmente lindo abraçando um monstro.
Sua mão desceu pela minha barriga e eu abri minhas coxas para ele,
gemendo contra seus lábios. Desabotoei o botão de sua calça tão rapidamente
que quase a rasguei. Ele levantou meus quadris e me segurou contra o espelho,
a serpente deslizando da minha garganta para a dele, e então ele me penetrou
sem hesitação, sem contrição.
Por cima do meu ombro eu podia ver a cabeça do meu monstro caindo
para trás, a boca aberta com prazer perturbado, seios escamosos balançando.
Minhas asas estavam amassadas contra o vidro. Os cantos dos olhos de Sevas
foram puxados para baixo por linhas serpenteantes de tecido cicatricial, mas o
resto de seu rosto estava enterrado no meu cabelo. Por fim, ele parou dentro
de mim com um gemido, e minhas pernas deslizaram de volta para o chão, nós
dois ofegantes e arfantes.
Sevas se afastou, respirando com dificuldade. Em vez disso, a serpente
havia se enrolado em sua garganta, brilhando como um colar de joias pretas.
O espelho estava embaçado com o calor de nossos corpos, ambos os nossos
reflexos obscurecidos. Eu só podia vê-lo parado ali na límpida luz do luar, a
centímetros da jaula escancarada de minha mãe.
Algo se partiu dentro de mim, como um copo deslizando da mesa e se
estilhaçando. Estendi a mão para Sevas novamente enquanto meu cabelo caía
sobre meu peito mordido.
— Você não vê? — ele perguntou, sua voz rouca e baixa. — Você pode
pegar meu coração e meu fígado; cortar minha barriga e comer o que está
dentro. Prefiro suportar isso do que perdê-la para aqueles que a chamam de
cara simples, que a fazem ajoelhar-se e beijar seus pés. Não me deixe sozinho.
Não me deixe lamber minhas feridas como um cachorro antes de ser
sacrificado. Não olhe para a verdade sobre mim e depois desvie o olhar. Por
favor, Marlinchen.
Eu quase ri.
— Você prefere que eu coma seu coração do que desviar o olhar com
nojo?
— Claro — ele respirou. — Toda vez.
Então dei um passo em direção a ele e peguei seu rosto em minhas mãos,
passando meu polegar em seus lábios. Ele estremeceu sob meu toque, cílios
pintando uma sombra de penas em sua bochecha alta e fina. Tentei durante o
máximo de tempo possível não pestanejar, olhá-lo até sua medula, até a
verdade sobre ele. A serpente subiu por sua garganta, apertando seu corpo ao
redor dele como um torno. Quando vi seu pulso pulsando entre as espirais do
músculo, arranquei a serpente dele e a deixei enrolar em meu pulso.
— Talvez — eu disse — essa história possa ter um final feliz.
O canto de seu lábio se ergueu em um lindo sorriso torto.
— Quem disse isso?
— Eu disse.
20 Gusli é o mais antigo instrumento dedilhado de múltiplas cordas eslavo oriental, pertencente à
família das cítaras, devido às cordas serem paralelas à sua ressonância.
— Você... você é uma bruxa, não é? Você deve saber de alguma maneira
de matar essas criaturas horríveis!
Eu pensava que balas e revólveres iriam matá-los; nunca imaginei que
mesmo o poder do Grande Inspetor e de seus homens poderia não ser
suficiente. Talvez mesmo o machado mais brilhante e afiado não pudesse
derrubar um carvalho que tivesse crescido cem anos de força.
Olhei impotente entre Sevas e Rose enquanto Papa se agachava sobre o
corpo de Derkach e começava a rasgar seu peito com dentes longos e afiados.
O sangue jorrou em grossas cordas pelo chão, caindo na sombra do relógio de
pêndulo.
E então Rose avançou, destampando o frasco em suas mãos. Restava um
dedo de líquido prateado e, enquanto o Dr. Bakay avançava, ela arremessou o
frasco nele. Gotas da poção caíram sobre ele como água da chuva, e ele deu um
uivo angustiado. Imediatamente suas escamas negras começaram a
empalidecer e tornar-se cinzentas, e seu terrível e monstruoso corpo ficou
flácido.
Quando seus ombros caíram e seu peito se curvou, cinco pistolas
engatilharam e dispararam. Houve uma explosão extraordinária de fumaça de
arma quando quase meia dúzia de balas atingiram seu coração. Aço e
estilhaços se abriram como um nexo de veias negras, e o Dr. Bakay caiu no
chão.
Senti como se tivesse acabado de ver um grande pilar de pedra se
despedaçar; senti como se estivesse olhando para os destroços colossais de algo
grande demais para compreender, como assistir a um enorme navio de guerra
ser submergido por uma tempestade e afundar irremediavelmente sob as
ondas. Lágrimas foram arrancadas de meus olhos. As asas nas costas do Dr.
Bakay encolheram como tulipas murchas. Quando as escamas voltaram à pele,
pude ver seu peito nu e peludo, os botões de seus mamilos e o sangue que
brotou entre eles, da cor de uma ameixa madura.
Um soluço rasgou da minha garganta e Sevas encaixou seu braço
confortavelmente em volta da minha cintura, me puxando contra ele enquanto
eu chorava as lágrimas mais desconcertantes.
O Grande Inspetor deu uma risada maníaca e gorjeada enquanto seus
homens cutucavam o corpo do Dr. Bakay com as pontas das botas.
— Sua mulher brilhante — disse ele. — Sua bruxa maravilhosa.
Rose estava respirando com dificuldade, com as mãos nos joelhos.
— Eu não tenho mais da poção.
Até o bigode do Grande Inspetor parecia cair enquanto ouvíamos Papa
mastigando a carne de Derkach.
— Você não pode fazer mais?
— Requer as penas de um pássaro que fez seu ninho nos galhos de um
salgueiro e deve ser envelhecido com suco de sabugueiro por sete horas e um
quarto. A menos que você consiga segurar o monstro por tanto tempo, acho
que devemos encontrar outra arma.
Papa agora estava devorando o fígado de Derkach, os ossos de sua caixa
torácica quase despidos de toda a carne e cartilagem e brilhando como os
chifres de um veado morto. Um pedaço vermelho de músculo pendia de suas
mandíbulas e, com um som horrível, ele o chupou em sua boca e o engoliu
inteiro. Observei a forma enquanto descia por sua garganta, e então Papa
empurrou o chão com suas mãos em garra, asas negras batendo.
— Não! — o Grande Inspetor gritou enquanto Papa se arrastava em
direção à porta aberta. — Não deixe escapar para a cidade!
Um dos homens disparou para a frente e fechou a porta antes que Papa
conseguisse passar. O monstro que era meu pai assobiou, mordendo com a
língua bifurcada. Rápido como um sopro, ele agarrou o homem e então ergueu
os dois no ar, voando em direção ao patamar do segundo andar.
Ele se empoleirou no parapeito, e o homem do Grande Inspetor gritou e
gritou até que Papa o silenciou arrancando seu coração. Ele comeu como se
fosse um pedaço de fruta muito doce, sangue manchando seus lábios e dentes
como suco.
Mais algumas balas inúteis voaram, perfurando o peito de Papa, mas
deixando para trás apenas fiapos de fumaça roxa, como se o metal se
transformasse em névoa ao tocar sua pele. Ele largou o corpo flácido do
homem sobre a grade e ele caiu no chão diante de nós, seu peito uma cavidade
aberta, um abismo que continha apenas a ausência de seus órgãos.
Soube imediatamente o que estávamos fazendo de errado, porque eu
sabia como todas as histórias em seu códex terminavam. Embora eu tivesse
feito dele um monstro, por baixo daquelas escamas e asas ele ainda era um
bruxo, com o poder do Antigo Mundo fervendo em seu sangue. Era o mesmo
poder que o havia protegido da banalidade do mundo por tanto tempo, a
magia hereditária que nos isolava da ira dos teares de algodão e trabalhadores,
da fumaça do tabaco e dos marinheiros lascivos. Achei que o Grande Inspetor
teria poder suficiente para superá-lo, mas estava errado.
Se Papa fosse morrer, não seria pelos homens e suas armas. Ele teria que
morrer como um bruxo.
Nossa casa estava impregnada de magia do Antigo Mundo, mas não
tínhamos armas. Afinal, Papa era um bruxo, não um bogatyr ou mesmo um
rei. Mas enquanto Papa assobiava e batia as asas, fui subitamente dominada
por uma determinação feroz e impensada.
Afastei-me de Sevas e corri pela sala de estar até a cozinha, onde desabei
contra o bloco de açougueiro, respirando com dificuldade. Agarrei a maior e
mais comprida faca que tínhamos, aquela que eu tinha usado para matar e
entalhar o monstro de cauda espinhosa.
Sevas estava lá comigo na cozinha antes que eu pudesse correr de volta
para o saguão, e ele se plantou na soleira, bloqueando meu caminho.
— Você tem o olhar de alguém que está prestes a fazer algo muito
corajoso e muito estúpido — disse ele.
— Por favor, Sevas — eu disse, olhando para seu lindo rosto e sentindo
meu peito inchar com uma afeição terrível e dolorosa. —, transformei meu pai
em um monstro. Eu devo ser a única a matá-lo.
Sevas agarrou meus pulsos em suas mãos e os segurou com força, com
tanta força que a faca quase escorregou dos meus dedos.
— Ele vai comê-la.
— Ele não vai. Se seu coração ainda pode bater e sua mente ainda pode
pensar, ele não vai. Ele me ama.
Era um amor miserável, e nada parecido com o que senti quando Sevas
chorou em meu peito, mas eu sabia que era amor porque era poderoso.
Também me transformou em um monstro, me transfigurou através de sua
magia astuta. O que mais, então, poderia ser?
— Marlichen. — A voz de Sevas tinha o som de alguém rasgando um
vestido nas costuras. — Eu não suportaria fazer guerra com este mundo
horrível sozinho.
Eu quase vacilei quando vi seus olhos azuis brilharem com água, mas em
vez disso, eu respirei e gentilmente me livrei de suas garras. Sem deixá-lo ver
as lágrimas pinicando em meus próprios olhos, passei por ele e fugi para o
saguão, no momento em que Papa desceu do parapeito e fechou seu punho
com garras ao redor da garganta de um dos homens.
O Grande Inspetor se jogou atrás de Rose, chorando. A casa inteira fedia
a sangue e fumaça de arma, e quando inalei pude sentir o sabor acobreado das
mortes desses homens, tudo através de minha própria orquestração.
Eu tinha me tornado uma feiticeira muito poderosa, de fato.
— Papa! — gritei, segurando a faca de cozinha nas minhas costas. — Você
deve deixá-lo ir!
A cabeça monstruosa de meu pai virou em um ângulo impossível, e ele
derrubou o homem do Grande Inspetor. Exatamente como eu esperava, ele se
lançou em minha direção e, ao se aproximar, tentei discernir algo de Papa
naqueles olhos negros e profundos; procurei um lampejo de humanidade
mundana. Com meu último pedaço de esperança desesperada e mutilada,
procurei por amor. Procurei o amor em que acreditei por tanto tempo, o amor
que tornou o suco preto de Papa tão fácil de engolir.
Ele tinha a frente da minha camisola rosnando em sua garra antes que eu
pudesse encontrá-lo.
Estávamos tão perto agora que nossos narizes quase se tocavam, os
narizes que eram quase idênticos quando Papa ainda era humano. Eu poderia
estar olhando direto para o espelho que nunca mente, observando meu próprio
reflexo monstruoso. A magia sempre envolve seu lançador; esse era o axioma
mais simples e o mais honesto. Aqui, olhando abertamente para a verdade de
tudo isso, eu era a filha do meu pai.
O pensamento me encheu de uma dor tão terrível e dilacerante que fiquei
mole nos braços de Papa, minha faca caindo no chão, enquanto ele envolvia
seus dedos em garra em volta da minha garganta. Minha respiração
desacelerou sob a pressão crescente de seu aperto, e minha visão ondulou
sombriamente nas bordas.
E então, através da névoa da minha quase morte, vi uma lâmina brilhar.
Minha faca caída parecia longa e lasciva como uma espada na mão do Sevas, e
quando ele a mergulhou na barriga escaldada de Papa, por um momento,
pensei que tinha recuado do mundo desperto e estava meramente observando
a memória de Ivan e o espetáculo do Dragão-Czar no interior de minhas
pálpebras. Sevas torceu a faca cruelmente e depois a puxou novamente, e meu
pai deu um grito tão lamentoso e miserável que eu sabia que o que tinha visto
era verdade.
Seu aperto na minha garganta afrouxou e eu caí no chão entre a seda
arruinada da minha camisola. Papa desmoronou diante de mim, suas escamas
ficando cinzentas e desaparecendo, suas asas encolhendo e depois
descamando como as cascas de insetos mortos.
Sevas estava acima dele, segurando uma faca manchada de sangue. Eu
assisti sua própria transformação ocorrer então, murchando e florescendo e
murchando novamente no espaço de segundos, Sevas e então Ivan e então o
homem com cicatrizes, todos os momentos entre eles comprimidos em um
círculo plano.
Quando pisquei de novo, porém, ele era Sevas, apenas Sevas, e comecei
a chorar por quão absoluta e impotente eu o amava.
Ele deixou a faca escorregar para o chão, toda a sua mão enluvada no
sangue do meu pai. O Grande Inspetor espiou por trás das costas de Rose e
piscou furiosamente. Papa estava deitado à sombra do relógio de pêndulo,
fetal e nu, enrolado em torno de si como uma cobra cuja grande pedra achatada
acabava de ser virada.
Rose começou a chorar também, mas havia um sorriso ardendo sob a
umidade de suas lágrimas. Os homens sobreviventes pegaram suas pistolas e
estremeceram diante dos ferimentos. Olhei para baixo e muito gentilmente
peguei a mão manchada de sangue de Sevas.
O relógio do vovô soou, mas não ouvi a hora. Eu estava descansando
minha cabeça no ombro de Sevas, e ele estava beijando com ternura simples e
familiar, e o momento se prolongou, como se o próprio tempo não tivesse mais
poder aqui.
Capítulo 15
E assim, no final, eis o que aconteceu com todos nós.
O Grande Inspetor limpou a poeira e enxugou o vômito do queixo. Ele
disse com uma voz rouca e relutante que talvez houvesse um monstro afinal.
Dois, na verdade. Ele teria gostado de tirar daguerreótipos deles enquanto
ainda estavam vivos para provar isso, mas tudo o que restava agora era uma
grande quantidade de sangue e rolos pálidos de pele derramada espalhados
pelo nosso vestíbulo como palha de trigo soprada.
Mostrei-lhe o osso da costela que encontrara na pia, e Rose o levou ao
lugar do jardim onde meu pai enterrou o que restava do pobre Sobaka. Mostrei
a ele o cartão do corretor que eu tinha escondido no meu corpete e, quando ele
e seus homens subiram para o terceiro andar, encontraram o cadáver dissecado
do corretor enfiado em um dos armários, cheio de larvas e cheio de moscas
pretas. Seu coração e fígado, é claro, se foram.
O Grande Inspetor vomitou novamente, e um de seus homens lhe
ofereceu um lenço para o queixo.
Ele me deu a recompensa por levá-lo ao monstro, trezentos rublos, e eu
dividi em três partes, entre mim, Rose e Sevas. Em minhas mãos, as moedas
pareciam leves como penas brancas.
O Grande Inspetor trouxe de volta mais homens para embrulhar todos
os corpos e, quando se foram, eu me ajoelhei e esfreguei o sangue do chão, do
relógio de pêndulo, da longa faca de cozinha. As sombras eram vastas e negras
quando terminei, e as janelas eram grades de luz azul.
No dia seguinte, todas as prensas de centavos imprimiram alguma
variação da mesma história: havia dois monstros na casa de Zmiy Vashchenko,
e um deles era ele. Não dizia nada sobre frutas de zimbro ou suco preto ou
varenyky suspeito. Mencionava suas filhas bruxas, que viveram com ele todo
esse tempo e finalmente ajudaram a acabar com seus modos assassinos – tão
corajosas e fortes, essas versões de Rose e eu éramos!
Não mencionou que aquelas duas filhas já haviam sido três, e eu tive uma
pequena emoção de prazer, depois um longo ataque de culpa, sabendo o
quanto Undine teria odiado ser ignorada, mesmo na morte.
Oblyanos começaram a deixar buquês de crisântemos e flores de protea
coradas em nossa porta, junto com sabonetes de lavanda prensados, caixas de
rapé esmaltadas, ovos de avestruz escavados e pintados de azul. Rose levou as
flores para seu depósito e as cortou em pedaços. Sevas lavou-se com o sabonete
de lavanda. Coloquei meus novos rublos nas caixas de rapé, e todos nós nos
divertimos muito jogando os ovos de avestruz do patamar do segundo andar
no chão abaixo, vendo quem quebrava mais espetacularmente.
Finalmente vieram os corretores e os pequenos compradores, os
agrimensores e os corretores de imóveis, todos com esquemas capitalistas atrás
de seus olhos. Mostramos-lhes a casa e deixamos que acariciassem o que
quisessem: os retratos de Vashchenkos mortos nas paredes e as últimas
lamparinas de Papa e o espelho que nunca mente. Conseguimos um bom
dinheiro por isso, e os corretores da Fisherovich & Symyrenko não pareciam
se importar que um de seus afiliados estivesse se deteriorando no armário do
terceiro andar há menos de uma semana.
Indrik ficou de mau humor quando eles levaram o espelho, a lâmpada e
mais três vasos, mas nós o acalmamos com elogios e carinhos atrás da orelha.
O duende chorou e chorou até que eu o peguei e balancei contra meu peito, e
então ele adormeceu em meus braços.
Fiquei surpresa que chegamos a ter muitas ofertas ansiosas e
competitivas pela casa, e Rose mediou o leilão com o olho atento do clima de
uma ave marinha. No final, foi vendido para um homem Yehuli de uma grande
empresa de pesquisa, que a queria apenas para a terra embaixo. Ele ia ter toda
a casa nivelada para que pudesse construir novos apartamentos ou talvez um
hospital.
A princípio, a perspectiva me encheu de terror; eu estava imaginando
um esqueleto de magia que havia sido colocado sob a casa como uma rede de
raízes de árvores e, uma vez descoberto, transformaria todos os trabalhadores
e o comprador Yehuli em lagartos ou sapos. Não parecia muito diferente de
Papa fazer uma coisa dessas.
Na verdade, no momento em que assinamos nossa reivindicação da casa
e do jardim, eu esperava que alguma transformação espetacular acontecesse;
no mínimo, esperava que um vento forte chegasse ou o céu escurecesse acima
ou o chão tremesse sob nossos pés. Mas vi apenas o homem Yehuli piscando
para mim através de seus óculos, e a tinta da caneta sangrando no meu polegar.
Assim que a escritura foi assinada, os corvos sem olhos fugiram de nossa
pereira florida e nunca mais voltaram. Eu não tinha visto a serpente de fogo
desde que a dei de mamar naquela noite no jardim, e nunca mais a veria; se
tivesse fugido, não percebi que estava partindo.
Fiquei preocupada com o destino de Indrik, mas não por muito tempo:
um circo ambulante o contratou imediatamente e lhe deu sua própria tenda de
seda e veludo, onde ele entreteria admiradores e céticos por dez rublos cada.
Eu vi um daguerreótipo dele em um jornal muitos anos depois, seu peito
brilhando com óleo de linhaça, seus bolsos pesados de ouro.
Eu me preocupei mais com o duende. Não tinha coragem para vida de
circo e se escondia em minhas saias sempre que os compradores e gerentes
vinham correndo como cães necrófagos. Então eu o peguei e o segurei e não o
larguei quando saímos do jardim pela última vez.
Atrás de nós, muitos trabalhadores já haviam descido, gritando em pelo
menos duas línguas estrangeiras, machados balançando com força trêmula
contra o tronco do zimbro.
Tínhamos tanto ouro que Oblya parecia se abrir à nossa frente como uma
rara e bela orquídea. Só vi minha irmã mais uma vez depois que saímos de casa
com nossos rublos pesando nos bolsos. Ela alugou um apartamento em cima
de uma cafeteria e plantou ervas nas jardineiras. Ela cheirava a um tipo
diferente de perfume, e havia sapato de um estranho debaixo da cama, um
casaco que não era dela pendurado na parte de trás da porta.
Ela comeu balas de geléia Merzani e me disse que seus elixires e misturas
de ervas vendiam tão bem quanto antes, talvez ainda melhor agora que não
era esbofeteada desta e daquela forma pelos tempestuosos modelos de
negócios de nosso pai. Ela tinha feito muito para convencer seus clientes de
que suas poções funcionavam por causa da ciência, não capricho e magia, e na
maioria das vezes, eles acreditavam nela.
Quando eu estava na porta, me despedindo, Rose segurou minha mão
com força.
— Durmo com as janelas abertas todas as noites para que eu possa sentir
o frio e imaginar como deve ter sido para você, forçada a se tornar uma coisa
assassina a sangue frio. Você vai me perdoar, Marlinchen? Por favor?
Removi seu aperto e não respondi. Eu não queria que a última coisa que
minha irmã ouvisse de mim fosse uma mentira.
E quanto a Sevas e eu? Alugamos juntos um apartamento perto do
calçadão, com duas janelas grandes e brilhantes que davam para o porto e o
mar que se estendia. Acordava quando o sol acariciou suavemente minhas
pálpebras, e não por causa do gongo de um relógio de pêndulo. Ensinei a Sevas
a maneira correta de dobrar a massa para varenyky e como saber quando o
kvass na jarra terminava de fermentar.
Fumávamos narguilés em cafés Merzani e jogávamos dominó em casas
de jogo. Eu era muito ruim em ambos, e no final da noite estava sempre
tossindo e sem rublos. Admiramos as dachas ao longo da costa e tomamos
banhos de argila no sanatório. Bebíamos kumys no calçadão e vodca nas
tavernas. Dançávamos meio sóbrios na rua, sob a luz do lampião, Sevas
enfiando os pés sob os meus para poder me ensinar os passos de uma valsa.
Comprei vestidos com anquinhas da moda e cortei o cabelo em um salão.
O duende morava conosco, em uma cama feita de musgo e penas brancas de
gaivota que guardávamos debaixo da mesa da cozinha. Sevas alimentou-o com
restos de sua mão e eu acorrentei a geladeira para evitar que ele destruísse
nossos vegetais. Fiz 24 anos e Sevas me levou a um restaurante na rua
Kanatchikov que servia um creme Ionik regado com calda; sonhei com o sabor
e o cheiro dele por semanas depois.
Mas ainda havia alguma magia vestigial trabalhando dentro de nós,
milhares de pequenas transformações sempre acontecendo sob nossa pele e
dentro de nossas mentes. Algumas noites eu acordava encharcada de suor
gelado, rostos monstruosos marcados no interior das minhas pálpebras, as
sombras em nossas paredes lembrando as silhuetas de garras e dentes.
Naquelas noites, Sevas me segurava em nossa cama, até que a pressão quente
de seu corpo contra o meu me embalava em um sono tênue.
Outras noites eu acordava ofegante com a lembrança de mãos estranhas
em meus seios e não suportava ser tocada, então Sevas pegava seu travesseiro
da cama e se deitava no chão ao meu lado, enchendo o quarto iluminado pela
lua com suas respirações suaves e tagarelice sem rumo. Adormeci ao som dele
balbuciando sobre o alto preço das abobrinhas.
E depois havia as noites em que era Sevas quem acordava com os olhos
arregalados e chorando, e eu o abraçava e acariciava seus cabelos até que seus
ombros parassem de estremecer. Outras noites ele também não suportava
sentir outro corpo quente ao lado dele, então eu me enrolava no chão com
nosso duende e recitava rimas infantis de Oblya, parando apenas quando ouvi
Sevas começar a roncar.
Havia, é claro, as noites em que eu precisava senti-lo abraçar-me e ele
recuava até mesmo ao roçar dos meus dedos, mas ainda assim, em algum lugar
no espaço negro desses desejos conflitantes, nos encontrávamos.
O outono congelou no inverno, e o inverno se abriu na primavera.
Nenhum de nós voltou ao teatro de balé; nem nos aventuramos muito
longe na rua Rybakov. Às vezes, eu ouvia sussurros nos cafés: que o dançarino
principal mais famoso de Rodinya havia desistido no auge de sua carreira e
agora o teatro estava quebrado e desordenado; que o bruxo da rua Rybakov
havia morrido e agora sua mansão e seu jardim estavam sendo transformados
em orfanato ou enfermaria. Às vezes, até sussurravam sobre sua filha bruxa,
como ela era corajosa e forte! Cerrei o punho ao redor da borda da mesa e a
ferida na minha junta estava tão velha agora que não sangrava.
Sevas encontrou Aleksei para o chá e eles riram de suas memórias
compartilhadas de Kovalchyk, de Taisia, até mesmo de Derkach, em dias bons.
Nos dias ruins, seu rosto se fechava com a simples menção do teatro de balé,
ou quando ele avistava uma cabeça de cabelos louros meticulosamente
gelificados. A massa de calos em seus calcanhares amoleceu e seus pés
começaram a se assemelhar aos de um homem normal.
Quando ele entrava em mim, não pensava em Ivan. Enquanto ele se
derramava, Sevas sussurrava Marlinchen, Marlinchen, Marlinchen no meu
cabelo.