The Beautiful - Renée Ahdieh

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TAMBÉM POR RENÉE AHDIEH

O Fogo Entre A Névoa


Smoke in the Sun

A Fúria & a Aurora


A Rosa & a Adaga
Para a cidade de Nova Orleans,
por me lembrar que existe mágica em toda esquina.

E para Victor, sempre.


CONTEÚDO

Também por Renée Ahdieh


Título
Dedicatória
Epígrafes
Mapa de Nova Orleans: o Quarteirão Francês

Hiver, 1872: Rua Royale


Não O Que Pareceu
Um Estudo de Contrastes
Para As Estrelas
Seu Nome É Marceline Béatrice Rousseau
Malvolio
Hiver, 1872: Avenida das Ursulinas
Um Toque de Violência
Hiver, 1872: Rua Saint Louis
A Corte Dos Leões
Toussaint
O Fantasma
Perguntas, Perguntas
Um Trapezista Em Uma Corda Bamba
Um De Nós
Hiver, 1872: Avenida das Ursulinas
Uma Silhueta Em Um Sonho
Uma Visita Surpresa
A Performance De Sua Vida
Uma Assassina Na Missa De Domingo
Hiver, 1872: Catedral de Saint Louis, Rei da França
Palavras São Armas
Champagne e Rosas
Conheça Seu Criador
Cuidado Com O Rougarou
A Hora da Bruxa
A Liberdade Solitára de Uma Rua Enevoada
O Retrato Assombrado
Hiver, 1872: Rua Bienville
Sonho De Uma Noite De Verão
Escuridão Encarnada
Tenha Cuidado
Hiver, 1872: Rua Bienville
O Travesso
Mil Pequenos Cortes
Hiver, 1872: Praça Jackson
Bela Queda
Dois Lados De Uma Mesma Moeda
Uma Libra de Carne
A última Unha
Muitos Caminhos Para a Felicidade
Amor Não É Amor
Epílogo

Agradecimento
Sobre a Autora
Ver o Mundo inteiro num Grão
Ver o Céu numa Flor Bravia
É ter o Infinito na mão
E a Eternidade num dia

De “Augúrios de Inocência”
por William Blake.
Tradução por Matheus Mavericco
J’ai voulu ce matin te rapporter des roses;

Mais j’en avais tant pris dans mes ceintures closes


Que les noeuds trop serrés n’ont pu les contenir.
Les noeuds ont éclaté. Les roses envolées.
Dans le vent, à la mer s’en sont toutes allées.
Elles ont suivi l’eau pour ne plus revenir.
La vague en a paru rouge et comme enflammée.
Ce soir, ma robe encore en est toute embaumée . . .

Respires-en sur moi l’odorant souvenir.

Eu queria te trazer rosas esta manhã;


Mas eu tinha levado muitas delas para os meus cintos fechados
Tantos que os nós apertados não os podiam conter.
Os nós se romperam. As rosas voaram
No vento, para o mar elas foram.
Elas seguiram a água, para nunca mais voltar.
Elas deixaram as ondas vermelhas, como se estivessem em chamas.
Hoje à noite, meu vestido ainda carrega seu perfume...

Sinta por mim, a memória perfumada

De “As Flores de Saadi”


por Marceline Desbordes-Valmore
Tradução por Paulo Renato Matioli
TRADUZIDO E REVISADO POR
WHITETHORNTECA
HIVER, 1872
RUA ROYALE
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

N ova Orleans é uma cidade governada pelos mortos.


Lembro-me do momento em que ouvi alguém dizer isso pela primeira
vez. O velho pretendia me assustar. Ele disse que houve um tempo em que
caixões saltaram do chão após uma forte chuva, e os mortos inundaram as
ruas da cidade. Ele alegou conhecer uma mulher Créole na Rua Dauphine
que poderia se comunicar com espíritos da vida após a morte.
Eu acredito em magia. Em uma cidade cheia de ilusionistas, é impossível
duvidar de sua existência. Mas eu não acreditei neste homem. Seja fiél, ele
avisou. Pois os infiéis estão sozinhos na morte, cegos e aterrorizados.
Eu fingi choque com as palavras dele. Na verdade, eu o achei divertido.
Ele era do tipo que assusta jovens almas errantes com histórias de uma
criatura sombria à espreita em nichos escuros. Mas também fiquei intrigado,
pois possuo uma alma jovem e errante. Desde a infância, escondi-a sob
roupas arrumadas e palavras polidas, mas ele persistiu em me atormentar.
Ele me chamou como uma Sereia, levando-me a arremessar toda a pretensão
contra as rochas e me render à minha verdadeira natureza.
Isso me levou aonde estou agora. Mas não sou ingrata. Pois trouxe duas
das minhas verdades mais profundas: sempre possuirei uma alma jovem e
errante, não importa minha idade.
E eu sempre serei a criatura sombria em nichos escuros, esperando...
Por você, meu amor. Por você.
JANVIER 1872
A BORDO DO ARAMIS

NÃO O QUE PARECEU

O Aramis estava suposto para chegar à primeira luz, como ele fez nos
sonhos de Celine.
Ela acordava sob um céu ensolarado, a salmoura do oceano serpenteando
pelo nariz, a cidade pairando no horizonte.
Cheio de promessa. E absolvição.
Em vez disso, o sino de bronze na proa do Aramis tocou na hora do
crepúsculo, a hora do dia em que sua amiga Pippa chamou de “a escuridão”.
Era – na mente de Celine – algo muito britânico a dizer.
Ela começou a coletar essas frases não muito tempo depois de conhecer
Pippa, quatro semanas atrás, quando os Aramis haviam atracado por dois
dias em Liverpool. Sua favorita até agora não era — provável. — Celine
não sabia porque eles eram importantes para ela na época. Talvez fosse
porque ela pensava que as Coisas Muito Britânicas a serviriam melhor na
América do que as Coisas Muito Francesas que ela costumava dizer.
No momento em que Celine ouviu o sino tocar, ela caminhou para o porto,
os passos leves de Pippa seguindo em seu rastro. Filetes de trevas escuras se
espalharam pelo céu, uma névoa fantasmagórica encobrindo a cidade
crescente. O ar ficou mais espesso quando as duas meninas ouviram a
represa de Aramis através das águas do Mississippi, aproximando-se de
Nova Orleans. Mais longe da vida que eles deixaram para trás.
Pippa fungou e esfregou o nariz. Naquele instante, ela parecia mais jovem
do que seus dezesseis anos. — Para todas as histórias, não é tão bonito
quanto eu pensei que seria.
— É exatamente o que eu pensei que seria. — disse Celine em um tom
tranquilizador.
— Não minta. — Pippa olhou de lado. — Não vai me fazer sentir melhor.
Um sorriso apareceu no rosto de Celine. — Talvez eu esteja mentindo para
mim tanto quanto eu estou mentindo para você.
— De qualquer forma, mentir é pecado.
— Então, é ser desagradável.
— Isso não está na Bíblia.
— Mas deveria estar.
Pippa tossiu, tentando mascarar sua diversão.
— Você é terrível. As irmãs do convento de Ursuline não saberão o que
fazer com você.
— Eles farão o mesmo que com todas as meninas solteiras que
desembarcam em Nova Orleans, levando consigo todas as suas posses
mundanas: encontrarão um marido para mim. — Celine se absteve de franzir
a testa. Esta tinha sido sua escolha. O melhor dos piores.
— Se você se mostrar mundana, elas a combinarão com o tolo mais feio da
cristandade. Definitivamente alguém com um nariz bulboso e uma barriga.
— Melhor um homem feio do que chato. E uma pança significa que ele
come bem, então… — Celine inclinou a cabeça para um lado.
— Realmente, Celine. — Pippa riu, seu sotaque de Yorkshire tecendo as
palavras como finas rendas Chantilly. — Você é a garota francesa mais
incorrigível que eu já conheci.
Celine sorriu para a amiga.
— Eu aposto que você não conheceu muitas garotas francesas.
— Pelo menos não que falasse inglês tão bem quanto você. Como se você
tivesse nascido para isso.
— Meu pai achou que era importante para mim aprender. — Celine
levantou um ombro, como se isso fosse tudo, em vez de menos da metade. À
menção de seu pai – um francês sério que estudara linguística em Oxford –
uma sombra ameaçava descer. Uma tristeza com um peso que Celine ainda
não suportava. Ela fixou um sorriso irônico no rosto.
Pippa cruzou os braços como se estivesse se abraçando. A preocupação se
acumulou sob a franja loira na testa enquanto as duas meninas continuavam
estudando a cidade à distância. Toda jovem a bordo ouvira as conversas
sussurradas. No mar, os mitos que haviam compartilhado sobre xícaras de
café amargo e ralo haviam ganhado vida própria.
Eles se misturaram às histórias do Velho Mundo para formar histórias mais
ricas e sombrias.
Nova Orleans era assombrada. Amaldiçoada por piratas. Cercada por
sulistas. Um último refúgio para aqueles que acreditavam em magia e
misticismo. Ora, houve até boatos de mulheres possuindo tanto poder e
influência quanto a de qualquer homem.
Celine riu disso. Como ela ousou ter esperança. Talvez Nova Orleans não
tenha sido o que parecia à primeira vista. Apropriadamente, ela também não.
E se algo podia ser dito sobre os jovens viajantes a bordo do Aramis, era
que a possibilidade de magia como esta – um mundo como esse – se tornará
uma coisa vital.
Especialmente para aqueles que desejavam abandonar o espectro de seu
passado. Para se tornar algo melhor e mais brilhante.
E especialmente para aqueles que queriam fugir.
Pippa e Celine observaram enquanto se aproximavam do desconhecido.
Para o futuro deles.
— Estou com medo. — disse Pippa suavemente.
Celine não respondeu. A noite havia penetrado na água, como uma mancha
escura na organza. Um marinheiro desalinhado equilibrou-se ao longo de
uma viga de madeira com toda a graça de um aéreo, enquanto acendia uma
lâmpada na proa do navio. Como se em resposta, línguas de fogo saltassem
para a vida através da água, tornando a cidade em tons ainda mais
terrivelmente verdes.
O sino do Aramis tocou mais uma vez, dizendo aos que estavam ao longo
do porto até onde o navio partira para viajar. Outros passageiros saíram do
convés, chegando ao lado de Celine e Pippa, resmungando em português e
espanhol, inglês e francês, alemão e holandês.
Moças que deram um salto de fé e deixaram suas pátrias em busca de
novas oportunidades.
Suas palavras se fundiram em uma cacofonia suave de som que, em
circunstâncias normais, acalmaria Celine.
Não mais.
Desde aquela noite fatídica entre as sedas do ateliê, Celine ansiava por um
silêncio confortável. Fazia semanas desde que ela se sentia segura na
presença de outras pessoas.
A salvo com o tumulto de seus próprios pensamentos. O mais próximo que
ela chegara de atravessar águas mais calmas estava na presença de Pippa.
Quando o navio se aproximou o suficiente para atracar, Pippa segurou
repentinamente o pulso de Celine para se acalmar. Celine engasgou. Recuou
com o toque inesperado. Como um jato de sangue atravessou seu rosto, o sal
manchando seus lábios.
— Celine? — Pippa perguntou, seus olhos azuis arregalados. — O que há
de errado?
Respirando pelo nariz para estabilizar seus batimentos cardíacos, Celine
passou as duas mãos pelos dedos frios de Pippa.
— Estou com medo também.
Um ESTUDO De CONTRASTES

V inte e três passageiros desembarcaram do Aramis, cada um carregando


um baú simples, cheio de seus pertences mundanos. Depois de consultar
o manifesto do navio, o oficial estacionado na alfândega os permitiu entrar
em solo americano. Uma hora depois, sete meninas embarcaram em um
equipamento humilde e seguiram pelas ruas escuras da cidade em direção ao
convento das Ursulinas. O resto tinha o futuro deles esperando nas docas.
A carroça ao ar livre rodopiou ao longo dos paralelepípedos. Ao redor
deles, os galhos pendiam pesados com flores coloridas. Cigarras e besouros
zumbiam nas sombras, sussurrando uma história assombrada. Uma brisa
tropical agitava-se através dos galhos de um carvalho vivo junto a uma
pequena praça. O calor de seu abraço parecia estranho contra a pele de
Celine, especialmente quando contrastado com o leve frio de uma noite de
final de janeiro.
Mas ela sabia que não devia reclamar. Do lado de fora de sua casa em
Paris, a neve provavelmente pontilhava as calçadas, e levaria semanas para
que ela pudesse vestir o confortável vestido de musselina que agora usava.
Celine lembrou-se de quando ela o modelou em junho do ano passado, a
partir dos restos de um elegante vestido de chá que ela havia projetado para
uma mulher rica conhecida por hospedar salões infames. Na época, Celine
imaginou participar de uma dessas reuniões e se misturar com os membros
mais chiques da sociedade parisiense. Ela os deslumbraria com seu amor
por Shakespeare e Voltaire. Ela usaria esse exato vestido, sua rica berinjela
matiz um contraste adorável contra sua pele clara, a saia cheia de babados e
babados elaborados. E ela penteava seus cachos pretos em uma massa no
topo de sua coroa, o último penteado para adornar as roupas da moda da
cidade.
Celine riu para si mesma, divertida com a lembrança da menina de
dezessete anos que costumava ser. As coisas que essa garota sonhava em
experimentar. As coisas que ela desejava ter e manter: entrar na sociedade
de moças elegantes que ela vestia para vestidos que descartariam dias
depois. Uma chance de se apaixonar por um jovem bonito que roubaria seu
coração com poesia e promessas.
Agora ela zombou da ideia.
Depois de semanas no mar – enfiada no fundo de um tronco de madeira – o
vestido amarrotado que Celine usava hoje à noite refletia a virada que sua
vida havia tomado. Não era adequado para a missa de domingo, muito menos
para um salão. Com o pensamento, Celine ajustou sua posição no assento de
madeira, o espartilho cavando as costelas. O osso da baleia beliscou seus
seios enquanto ela respirava fundo.
E foi recebida com um perfume tão delicioso que a deixou distraída.
Ela examinou a praça em busca de sua fonte. Na esquina oposta ao
carvalho, havia uma padaria ao ar livre que lembrava Celine de sua
boulangerie favorita no Boulevard du Montparnasse. O cheiro de massa frita
e açúcar derretendo lentamente flutuava através das folhas de magnólia
cerosa. Perto dali, um conjunto de persianas se fechavam e uma treliça
carregada de buganvílias rosadas tremia, as flores tremendo como se com
medo. Ou talvez em antecipação.
Deveria ter sido bonito de se ver. Mas o adorável quadro parecia tingido
com algo sinistro. Como se um dedo pálido tivesse deslizado por uma
cortina fechada, chamando-a para um abismo escuro.
A sabedoria disse a ela para dar atenção ao aviso. No entanto, Celine se
viu encantada. Quando ela olhou para as outras seis garotas na carroça –
sentadas quatro de um lado, três do outro – Celine captou uma extensão de
olhares de olhos arregalados, suas expressões um estudo de apreensão. Ou
talvez emoção? Como as buganvílias, era impossível ter certeza.
A carroça parou em uma esquina movimentada da rua, o grande cavalo de
tracção à sua frente jogando sua juba. Pessoas de todos os tipos de roupas –
dos ricos com suas correntes douradas aos humildes com seus lençóis puídos
– atravessavam a Rua Decatur, com os passos concentrados e apressados,
como se estivessem em missão. Pareceu incomum por um período do dia
marcado por finais, e não por princípios.
Como Pippa estava situada mais perto do motorista, ela se inclinou para
frente para se dirigir a ele.
— Há algo notório ocorrendo hoje à noite? Algo para explicar a multidão
reunida?
— O desfile. — respondeu o homem rude, sem se virar.
— Perdão?
Ele limpou a garganta.
— Há um desfile começando perto da Canal Street. Por causa da
temporada de carnaval.
— Um desfile de carnaval! — exclamou Pippa, virando-se para Celine.
Antonia – a jovem sentada à esquerda de Celine – olhou animada, com os
olhos escuros redondos e brilhantes, como os de uma coruja.
— Um carnaval? — Ela perguntou em português enquanto apontava para
os sons da folia distante.
Celine assentiu com um sorriso.
— É uma pena que não o veremos. — disse Pippa.
— Eu não me preocuparia, moça. — respondeu o motorista, sua língua
rolando sobre as palavras com uma pitada de rebarba irlandesa. — Haverá
muitos desfiles e celebrações durante todo o mês durante a temporada de
carnaval. Você verá um, com certeza. E apenas espere o baile de máscaras
no Mardi Gras. Será o melhor de todos.
— Ouvi falar sobre a temporada de carnaval de um amigo em Edimburgo,
— exclamou Anabel – uma ruiva esbelta com um atraente punhado de sardas
no nariz. — Toda a cidade de Nova Orleans toca na época anterior à
Quaresma com saraus, bailes e festas a fantasia por semanas a fio.
— Festas! — Os gêmeos da Alemanha repetiram assim que reconheceram
a palavra, um deles batendo palmas com prazer.
Seus rostos brilhantes atingiram Celine. Moveu algo atrás de seu coração.
Uma emoção que ela havia proibido de sentir desde os eventos daquela noite
terrível:
Esperança.
Ela chegou em uma cidade em meio a comemoração. Um com semanas de
festa por vir. A multidão estava cheia do mesmo espírito de antecipação que
ela viu nas meninas que agora compartilhavam seu destino. Talvez suas
expressões não precisassem ser de trepidação. Talvez a buganvília estivesse
simplesmente acordada em vez de tremer de preocupação.
Talvez Celine não tivesse que viver sua vida com medo do que poderia
acontecer amanhã.
Enquanto esperavam pelas ruas livres de pedestres que passavam, Celine
se inclinou para a frente, com o ânimo prestes a voar. Ela tentou pegar um
pouco de hera pendurada em uma intrincada grade de ferro forjado. O ruído
de passos à sua esquerda roubou sua atenção enquanto a multidão se
separava para permitir a passagem da carroça.
Não.
Não era para permitir que eles passassem.
Era para algo completamente diferente.
Lá – sob a névoa âmbar de uma lâmpada de gás – havia uma figura
solitária pronta para atravessar a Rua Decatur, um chapéu panamá puxado
para baixo na testa, encobrindo as feições.
Sem hesitar, o motorista concedeu ao homem deferência imediata,
inclinando a cabeça na direção da figura como se ele estivesse se
curvando... ou talvez mantendo os olhos desviados.
O homem atravessou a rua, passando da luz para a sombra e voltando,
deslizando de uma esquina para outra. Ele se mudou . . . estranhamente.
Como se o ar ao redor dele não fosse ar, mas água. Ou talvez fumaça. Seus
sapatos polidos atingiram os paralelepípedos em um ritmo cortante. Ele era
alto. Ombros largos. Apesar da silhueta noturna, Celine percebeu que seu
traje era feito de material requintado, por uma mão experiente.
Provavelmente Savile Row. Sua formação no ateliê de Madame de
Beauharnais – a melhor costureira de Paris – lhe dera uma atenção especial
a essas coisas.
Mas suas roupas não intrigaram Celine quase tanto quanto o que ele
conseguiu alcançar. Ele havia limpado a rua sem pronunciar uma única
palavra. Ele espalhou mulheres com guarda-sóis e crianças com beignets em
pó e homens com cartolas elegantes, sem olhar na direção deles.
Esse era o tipo de magia que ela desejava possuir.
Celine ansiava pela idéia de exercer tal poder, simplesmente pela
liberdade que isso lhe daria. Ela observou o homem se aproximar do meio-
fio, invejando o olhar, enchendo o coração, assumindo a esperança que ela
mal havia permitido comprar um minuto atrás.
Então ele olhou para cima. Os olhos dele encontraram os dela como se ela
o tivesse chamado, sem palavras.
Celine piscou.
Ele era mais jovem do que ela esperava. Não é muito mais velha que ela.
Dezenove ou vinte, talvez, não mais. Mais tarde, Celine tentaria se lembrar
de detalhes sobre ele. Mas era como se a lembrança daquele momento
tivesse ficado enevoada, como se o óleo passasse pela superfície do
espelho. A única coisa que ela lembrava com nitidez distinta eram os olhos
dele. Eles brilhavam na chama da lâmpada de gás como se estivessem
acesos por dentro.
Cinza escuro. Como o cano de uma arma.
Ele estreitou o olhar. Ele apontou o chapéu para ela. E foi embora.
— Oh, minhas estrelas. — Pippa respirou.
Murmúrios de assentimento – falados em várias línguas – ondulavam nas
fileiras de jovens sentadas. Eles se inclinaram um no outro, um ar de
excitação compartilhada passando por eles. Uma das gêmeas de Düsseldorf
disse algo em alemão que fez sua irmã rolar atrás das mãos.
Apenas Celine continuou encarando a figura que se afastava rapidamente,
seus olhos se estreitaram, como os dele. Como se estivesse incrédula.
Do que ela não sabia.
A carroça deles continuou em direção ao convento. Celine observou o
garoto desaparecer na escuridão, suas pernas longas e magras o carregando
durante a noite com uma confiança sobrenatural.
Ela se perguntou o que fez todos na passagem cederem a ele sem
questionar. Ansiava pela menor medida. Talvez se Celine fosse alguém que
exigisse tanto respeito, ela não teria sido forçada a deixar Paris. Mentir para
o pai dela.
Ou assassinar um homem.
PARA AS ESTRELAS

E u não deveria estar aqui.


Esse pensamento ecoou na cabeça de Noémie como um refrão sem
fim.
Estava escuro. Tarde. A água lambia o píer na beira do Vieux Carré, com o
som parado. Hipnótico.
Ela nunca deveria ter concordado em encontrar alguém neste lugar, não
importa a tentação. Noémie sabia melhor. Seus pais a ensinaram melhor. A
igreja a havia ensinado melhor. Ela colocou o leve xale de primavera nos
ombros e ajeitou a fita de seda rosa em volta do pescoço. Quando ela se
virou, seus fones de ouvido granados atingiram a pele sensível ao longo de
sua mandíbula.
Fones de ouvido e fitas de seda, em um píer no meio da noite?
O que ela estava pensando?
Eu não deveria estar aqui. Quem ela esperava impressionar com tais
sapatinhos?
Não esse tipo de homem, com certeza.
Qualquer jovem que pedisse para encontrá-la na calada da noite não era
um cavalheiro. Mas Noémie supôs que o tipo de mulher que concordava
também não era uma dama. Ela suspirou para si mesma. Martin, seu ex-
namorado, nunca a teria convidado para uma reunião clandestina, muito
tempo depois do pôr do sol.
Claro, Martin nunca fez sua pele formigar ou prender a respiração na
garganta.
Não como seu admirador misterioso.
Mas se ele não aparecesse logo, Noémie voltaria para casa, voltaria
sorrateiramente pelas plantas da mãe e entraria na janela do quarto antes que
alguém fosse mais sábio.
Noémie andava ao longo do cais, jurando às estrelas que essa era a última
chance que ela daria a ele. Sob as saias, os sapatos de salto batiam nas
tábuas de madeira deformadas, a agitação balançando no ritmo dos passos.
Uma brisa varreu a curva do rio, trazendo consigo o cheiro de peixe
estragado – remanescentes das capturas do dia.
Em um esforço para afastar o cheiro, ela pressionou um dedo nu sob o
nariz.
Eu não deveria estar aqui. O píer estava muito perto do covil da corte.
Essas ruas e tudo o que as cercava eram controladas por seus habitantes
sombrios. Não importa que eles rotineiramente doassem para a igreja. Não
importava que o Le Comte de Saint Germain tivesse assentos de caixa para a
ópera e estivesse com os melhores e mais brilhantes de Nova Orleans. A
Corte trouxe com eles o pior tipo de pessoa, aqueles sem escrúpulos.
E aqui Noémie estava, esperando sozinho no escuro, no meio de seu
domínio.
Ela tocou sua garganta, seus dedos roçando a seda macia lá. A cor de sua
fita – rosa pálido, como as pétalas de uma peônia – era toda a raiva agora. A
imperatriz Eugénie a havia introduzido na moda há pouco tempo. Agora,
inúmeras jovens de Nova Orleans estavam ansiosas para exibir seus longos
pescoços de cisne. Supostamente, os cavalheiros eram a favor.
Com um sorriso amargo, Noémie encarou a água para sua caminhada final
ao longo do píer.
Maldito admirador impressionante e todas as suas mentiras. Nenhuma
quantidade de palavras doces ou promessas cintilantes deveriam ter tirado
Noémie da segurança de sua casa.
Quando ela estava prestes a chegar ao fim do píer, o som de passos
sólidos ressoou atrás dela. Eles diminuíram a velocidade quando se
aproximaram, movendo-se no lazer de seu mestre.
Noémie não se virou imediatamente, querendo que ele soubesse que ela
estava com raiva.
— Você me deixou esperando por um longo tempo — disse ela, sua voz
melosa.
— Minhas sinceras desculpas, meu amor, — ele respirou por trás dela. —
Fiquei preso no jantar... mas eu saí antes da sobremesa.
Um sorriso apareceu nos lábios de Noémie, seu pulso acelerado. Ela se
virou devagar.
Ninguém estava lá. O píer parecia deserto.
Ela piscou. Seu coração pulou no peito. Noémie tinha sonhado a coisa
toda? Será que o vento lhe havia enganado?
— Onde você...
— Estou aqui, meu amor, — disse ele em seu ouvido, atrás dela mais uma
vez. Ela ofegou. Ele a pegou pela mão, seu toque frio e firme.
Tranquilizador. Um choque percorreu sua espinha enquanto ele mordiscava
seu lóbulo da orelha. Chocante. Provocante.
Martin nunca faria uma coisa dessas.
Ela estendeu a mão para acariciar seu rosto, a nuca dele abrasando sua
pele, o sangue subindo por suas veias. Ele beijou as pontas dos dedos.
Quando ela se afastou, suas mãos estavam quentes. Pegajoso. Molhado.
Manchado de vermelho brilhante.
— Je suis désolé, — ele murmurou um pedido de desculpas.
Um grito de horror começou a se acumular no peito de Noémie.
Sua garganta em forma de cisne foi arrancada antes que ela pudesse emitir
um som.
A última coisa que Noémie viu foram as estrelas piscando alegremente
acima.
SEU NOME É MARCELINE BÉATRICE ROUSSEAU

S ete meninas moravam no dormitório do convento das Ursulinas: Celine;


Pippa; os gêmeos de Düsseldorf, Marta e Maria; Anabel, a ruiva de
Edimburgo; Antonia de Lisboa; e Catherine de Liverpool.
A Igreja Católica havia patrocinado sua passagem para Nova Orleans e,
em troca, esperava-se que essas sete jovens ajudassem a administrar seu
hospital anexo, ensinassem as jovens que frequentavam a escola lá e
ajudassem em qualquer esforço para arrecadar fundos em nome da diocese .
Isto é, até que as irmãs do convento pudessem encontrar correspondências
adequadas para elas.
Para Celine, o dia seguinte à sua chegada foi marcado pela consternação.
Um dia marcado pelas escolhas dos outros.
Mais do que tudo, ela não queria que as irmãs a colocassem como
professora. Era uma posição tão orgulhosa, com tanta responsabilidade.
Celine nunca foi um modelo apropriado. Ela ria alto demais com piadas
obscenas e gostava de comer em eventos sociais nos quais as meninas eram
vistas em vez de saciadas. Ela nunca tinha entendido a noção. Dando-lhe as
costas por um pão de chocolate? Sacrilégio.
Mas tudo muito esperado.
Por esses motivos, Celine ficou aliviada ao saber que Catherine fora
governanta de uma família de quatro pessoas em Liverpool. A jovem de
óculos sorriu quando lhe disseram que essencialmente retomaria seus
deveres.
Celine não se importaria de ser colocada no hospital, mas Pippa informou
que Marta e Maria haviam ajudado uma parteira em Düsseldorf; assim, eles
foram recrutados lá junto com Antonia, especialista em ervas e outros
remédios naturais.
Logo Pippa, Anabel e Celine se viram em uma situação compartilhada.
Todas as três meninas se mostraram difíceis de colocar dentro das paredes
caiadas de branco, pois seus respectivos interesses não naturalmente
voltaram à vida no convento. Anabel possuía uma cabeça para figuras e um
talento para os negócios, nenhum dos quais era uma qualidade para admirar
em uma jovem mulher.
Pippa estudou história da arte a maior parte de sua vida e foi uma
violinista e pintora talentosa, mas a escola já tinha um professor
especializado em artes.
Embora ninguém pudesse negar que o trabalho de Celine com seda
desbotada e delicada renda Alençon era incomparável, isso não a favoreceu
aqui. Saber desenhar vestidos para a elite parisiense não estava exatamente
no topo da lista de conquistas de um convento.
Foi por isso que Pippa, Anabel e Celine estavam sentados à sombra da
Catedral de Saint Louis uma semana após sua chegada, vendendo seus
produtos sob um laço de folhas de carvalho na Jackson Square. Apesar do
adorável dia quente, Celine não pôde deixar de se sentir abandonada. Em
todo lugar que ela ia, a vida insistia em confiná-la.
Talvez ela merecesse. Seus pecados foram muitos, seus perdões, poucos.
Na esquina da praça mais distante de Celine, beignets eram servidos ao
lado de xícaras fumegantes de café au lait, o perfume uma mistura intoxicante
de manteiga, açúcar e chicória. À sua esquerda, as torres da catedral se
elevavam em um céu azul compensado pelo tipo de nuvens que Celine mais
amava, pois pareciam chiffon. À direita, havia uma fila de artistas,
comerciantes e fornecedores de mercadorias místicas, suas mercadorias
posicionadas ao longo dos dentes de ferro preto que cercavam o pátio da
catedral.
Celine queria passear pelas ruas e ler suas muitas ofertas. Admire as
atrações da cidade e saboreie essa nova chance de vida. Mas – como ela
percebeu na semana passada – as coisas que ela queria e as esperadas dela
eram como óleo e água na tigela de um padeiro.
No dia em que as outras meninas foram colocadas em seus respectivos
cargos, Pippa, Celine e Anabel foram instruídas a arrecadar dinheiro para a
expansão do orfanato da paróquia. Eles haviam dedicado a semana seguinte
à sua preparação.
Pippa pintou delicadas xícaras com vinhetas religiosas, como na época em
que Jesus transformou a água em vinho ou alimentou uma multidão de
milhares com nada além de sete pães e peixes. Anabel havia projetado seu
estande e inventado a melhor maneira de atrair pessoas para ele. E Celine
havia embelezado pequenos quadrados de linho prensado com uma orla
recortada que imitava as melhores rendas de bordados.
Desde sua chegada ao porto na semana passada, nenhum deles tinha
permissão para participar de um desfile. Em vez disso, todas as noites – uma
vez concluídas as tarefas designadas – eram instruídas a ler vésperas em voz
alta antes de se retirar para suas celas.
Sim. Seus quartos eram chamados de celas. Foi a razão pela qual Celine
costurou um conjunto atrevido de letras nas bordas de cada lenço que ela
havia formado.

GTTAN

Um aceno para sua tragédia shakespeariana favorita, Hamlet.


— Vá para um convento.
Celine estudou as cinco letras do roteiro escondidas nos complicados
redemoinhos de renda, um lampejo de alegria esquentando através dela.
Então ela olhou através da mesa de madeira precária, seu coração ficando
mais pesado a cada segundo que passava.
Isso era tudo que ela poderia esperar da vida?
Suas feições endureceram. Celine sentou-se ereta, o osso de baleia do
espartilho recuperando o fôlego, que se estendia sobre o peito. Ela deveria
estar agradecida por estar aqui. Grato por ter um lugar entre pessoas
decentes. Grato por outra chance na vida.
Determinação criou raízes dentro dela. Ela sorriu brilhantemente para um
possível patrono, que não reconheceu sua presença. Celine engoliu a
carranca iminente antes de voltar sua atenção para duas jovens criticando o
vidro de uma xícara de porcelana que Pippa havia completado dias antes.
— Adorável, você não acha? — A garota da esquerda murmurou para a
amiga.
A outra garota olhou distraidamente.
— Não é ruim, se você preferir esse tipo de coisa, — ela demorou,
colocando uma mecha de cabelo castanho rebelde sob seu chapéu de palha.
Sua voz diminuiu para um silêncio. — Mas você ouviu o que os
trabalhadores das docas descobriram no cais ontem de manhã?
A primeira garota assentiu uma vez. Richard me disse. O nome dela era
Nathalie ou Noémie, uma coisa ou outra. O desconforto estragou sua
expressão.
— Ele suspeita que A Corte possa ser responsável, já que isso aconteceu
perto do domínio deles.
Corte? Celine se perguntou. Tanto quanto ela sabia, nunca houve uma
monarquia americana.
— Como se um animal a tivesse atacado! — A morena estremeceu. —
Pobre alma, — ela provocou, embora seus olhos brilhavam com
pensamentos não ditos, — deixada apodrecer ao sol ao lado das capturas do
dia. Se A Corte teve algo a ver com isso, eles se tornaram ainda mais cruéis
do que antes. Não que isso importe. Eles vão conseguir o favor certo, como
sempre fazem.
Apesar do melhor julgamento de Celine, seu interesse foi despertado. Ela
esticou o pescoço em direção ao par.
A morena continuou, suas palavras sem fôlego.
— Richard contou o que aconteceu com a cabeça dela?
— N-não.
— Ouvi dizer que foi completamente separado do corpo da pobre jovem.
A primeira garota ofegou, uma mão com luvas de renda cobrindo a boca.
— Deus...
Com um aceno solene, a morena pegou um dos lenços bordados de Celine.
— Seu rosto estava quase irreconhecível. Seu pai teve que identificá-la
com base apenas nos fones de ouvido.
Com isso, Pippa pigarreou em uma tentativa inconfundível de dissuadir as
duas mulheres de continuarem uma conversa tão mesquinha. Uma carranca
cortou o rosto de Anabel, seu olhar ficando irritado.
— Senhoras, podemos ajudar? — Celine ofereceu ao casal de jovens
clientes um sorriso aguçado.
Os olhos da morena se estreitaram quando ela largou o lenço com um
movimento descuidado do pulso.
— Não, obrigada. Ela alcançou o cotovelo da amiga, passando o braço em
volta dele, afastando-os da mesa precária.
Uma vez que estavam além do alcance da voz, Anabel murmurou.
— Fofocando sobre um assassinato à sombra de uma igreja. — Ela
murmurou. — Eles não se importam em provocar os espíritos de maneira tão
impetuosa? Seu sotaque escocês se aprofundou com seu desdém, seus dedos
golpeando uma abelha gorda zunindo sobre sua testa.
Pippa suspirou e pegou a mão de Anabel, impedindo-a de golpear o inseto
que pairava.
— Aquela pobre garota. — Ela sentou-se ereta, suas pequenas
características reunidas. — Espero que o sofrimento dela não tenha sido
prolongado. Quem poderia fazer uma coisa dessas? Linhas se formaram entre
suas sobrancelhas. — Que tipo de monstro poderia levar uma vida humana
como essa?
Anabel assentiu com firmeza.
— Espero que o demônio responsável queime no inferno por toda a
eternidade. É a única justiça para um assassino.
Uma pitada de cor ameaçava rastejar no pescoço de Celine. Ela rolou os
ombros para trás, acalmando a tempestade no peito. Uma gota de suor se
acumulou na cavidade da garganta antes de deslizar entre os seios
enjaulados. — Eu concordo completamente, — disse ela fracamente. As
palavras pareciam cinzas em sua língua. Celine entrelaçou os dedos, rezando
pelo fim da discussão.
Felizmente, parecia que Pippa e Anabel estavam de acordo. O trio
recomeçou seus esforços para arrecadar dinheiro para a igreja com vigor
renovado, reunindo-se para cumprimentar outro grupo de possíveis clientes.
A maioria dos transeuntes fez uma pausa para considerar os potes de
geléia de maconha e geléia de pêra de limão que as meninas estacionadas na
cozinha

Depois de três horas de pouco sucesso, a tristeza de Celine se tornou uma


coisa com os dentes. Raios de sol continuavam a deslizar cada vez mais
perto, o calor se tornando opressivo, fazendo-a ansiar pelo conforto do
anoitecer. Até os galhos acima pareciam sobrecarregados pelo peso do ar
sensual, suas flores pareciam pálpebras, ficando mais pesadas e mais
adormecidas a cada momento que passava. Os cachos loiros de Pippa
começaram a emoldurar seu rosto como uma auréola úmida. Anabel apertou
a fita amarela em torno da testa e suspirou alto. Parecia que sua paciência
havia acabado também.
A esbelta escocesa torceu um cacho ruivo ao redor do dedo indicador e o
puxou com força, o nariz sardento enrugado.
— Och, é tão quente quanto o caldeirão de uma bruxa. E como devemos
encontrar rapazes elegíveis quando passamos todos os dias arrecadando
dinheiro e passamos todas as noites em oração?
Havia muitas coisas que Celine queria dizer em resposta. Ela escolheu a
opção menos ofensiva.
— Talvez fosse melhor se passássemos nossas noites levantando dinheiro.
— Seu alegre sarcasmo não conseguiu acalmar Anabel. A ruiva olhou para
ela com uma expressão confusa.
Mas sempre podia contar com Pippa para entender o sombrio senso de
humor de sua amiga. Ela lançou um olhar para Celine, seus lábios tremendo.
Então ela virou a cabeça graciosa para Anabel.
— Talvez encontrar um marido não deva ser nossa única preocupação?
— Sim, não deveria, mas vou lhe dizer, um jovem robusto seria uma boa
distração de todo esse monotonia.
— Ou ele pode piorar as coisas. Pippa ajustou a corrente delgada da cruz
dourada em volta do pescoço. — Na minha experiência, jovens fortes nem
sempre melhoram a empresa.
Celine lutou contra o desejo de sorrir. Esta foi precisamente a razão pela
qual ela e Pippa foram atraídas uma pela outra antes de zarpar. Nenhum
deles tinha ilusões quando se tratava do sexo oposto. É claro que Celine
queria saber por que Pippa não ansiava por encontrar um par, mas sabia que
não devia perguntar.
Uma loira pequena, com um rosto em forma de coração e olhos azuis
safira, Pippa chamou muita atenção onde quer que fosse. Os homens muitas
vezes inclinavam o chapéu para ela apreciativamente. Ainda mais
importante, ela possuía uma mente tão afiada quanto uma tacha. Deveria ter
sido o trabalho de um momento para ela encontrar o amor. Mas, em vez de se
estabelecer em sua terra natal, Pippa enfrentou a selva de um novo país, do
outro lado do Atlântico.
No dia em que se conheceram, isso parecera a Celine altamente curioso.
Mas ela manteve seus pensamentos para si mesma. Ela não tinha intenção de
participar da discussão que provavelmente se seguiria. Se ela perguntasse,
eles perguntariam em troca, e essas eram perguntas que Celine não queria
responder. Qualquer interesse em seu passado – além do mínimo – era algo a
ser evitado a todo custo.
Por várias razões.
Na tarde em que Celine embarcou no Aramis, não havia escapado ao seu
conhecimento de que todas as garotas a bordo eram de pele clara, a maioria
sem uma pitada de sangue estranho entre elas. Antonia – a garota de Portugal
– possuía uma tez que facilmente escurecia ao sol, mas até ela passara a
maior parte da jornada abaixo do convés para afastar qualquer sugestão de
cor.
Se eles soubessem de onde era a mãe de Celine. Se eles soubessem que
ela não era totalmente de herança anglo-saxônica...
Era um segredo que ela e o pai mantiveram desde o momento em que
chegaram a Paris, treze anos atrás, quando Celine mal tinha quatro anos.
Embora a França não fosse tão famosa por sua divisão racial como a
América havia sido nos últimos anos, ainda assim abrigava uma corrente de
tensão fervilhante. Um que muitas vezes implicava quão inadequado era para
as raças se misturarem. Essa noção se mostrou verdadeira em todo o mundo.
Em áreas além de Nova Orleans, havia até leis proibindo pessoas de cores
diferentes de se reunirem na mesma sala.
A mãe de Celine era do Oriente. Ao completar seu período em Oxford, seu
pai seguiu sua paixão pelas línguas até as costas do leste. Ele cruzou o
caminho com a mãe de Celine em uma pequena vila ao longo da costa sul de
uma península rochosa. Celine nunca soube onde, embora muitas vezes
perguntasse quando criança, apenas para ser rejeitada.
— Não importa quem você era — argumentara o pai dela. — Importa
quem você é.
Soou verdadeiro antes, agora então.
Como resultado, Celine sabia muito pouco sobre sua mãe. As lembranças
que ela teve de seus primeiros anos de vida ao longo de uma costa do
Extremo Oriente foram passageiras.
Eles passavam pelos pensamentos dela de vez em quando, mas nunca
tomavam forma completamente. Sua mãe era uma mulher que cheirava a óleo
de cártamo e dava frutos a cada noite e cantava para ela em uma memória
distante. Nada mais.
Mas se alguém olhasse atentamente – estudasse as feições de Celine com
um olhar experiente – talvez notasse as bordas de seus olhos virados para
cima. Os planos altos de suas maçãs do rosto e os fios grossos de cabelos
escuros. A pele que permaneceu clara no inverno, mas bronzeada com
facilidade ao sol do verão.
— Seu nome é Marceline Béatrice Rousseau. — dizia o pai sempre que
ela perguntava sobre a mãe, a sobrancelha severa. — Isso é tudo o que
alguém precisa saber sobre.
Celine havia moldado isso em um lema pelo qual viver. Não importava
que deixasse metade das páginas de seu livro vazias. Não importava nem um
pouco.
— Está à venda, mademoiselle? — Uma jovem perguntou em voz alta,
como se estivesse falando com um imbecil. Seus olhos castanhos claros
dispararam para um dos lenços bordados com rendas de Celine.
Assustada, Celine respondeu em um tom curto, as palavras caindo de seus
lábios antes que ela pudesse pegá-las.
— Eu espero que sim, ou então não tenho idéia do que diabos tenho feito
aqui nas últimas três horas.
À sua esquerda, ouviu Anabel suspirar e Pippa dar uma risadinha. Celine
fez uma careta, depois tentou sorrir enquanto inclinava a cabeça para cima,
apenas para ficar cega por um lampejo de sol.
Sem se deixar abater pela grosseria de Celine, a garota que estava do lado
oposto da mesa raquítica sorriu para ela. Um choque de desconforto passou
pelo estômago de Celine quando ela percebeu toda a amplitude da aparência
da jovem.
Em uma palavra, a garota parecia requintada. Suas feições eram como as
de uma boneca, sua cabeça morena alta e orgulhosa. Olhos da cor de mel
rico olhavam para Celine com avaliação constante. Em sua garganta, presa a
um laço de Valenciennes, havia uma camafeu deslumbrante de marfim,
cercada por rubis. Sobre o ombro, havia um delicado guarda-sol com uma
franja de pérolas, o cabo de pau-rosa gravado com uma flor de lis na boca
de um leão que rugia. Combinou bem com o corpete do estilo basco da
garota, embora todo o efeito tenha sido um pouco ultrapassado.
A garota deixou seus dedos enluvados roçarem nas bordas de um lenço.
— Este é um excelente trabalho.
— Obrigado. — Celine inclinou a cabeça.
— Me lembra algo que vi na última vez em que estive em Paris.
Era impossível perder a emoção no rosto de Pippa.
— Celine estudou com uma das principais estilistas de lá.
Celine apertou os lábios, amaldiçoando seu orgulho. Ela nunca deveria ter
compartilhado esse detalhe em particular com Pippa.
— Qual? — A garota levantou as sobrancelhas para Celine.
— Worth. — mentiu Celine.
— Ao longo da Rue de la Paix?
Celine engoliu em seco. Então assentiu. Já podia sentir o desejo de fugir
de sua pele, e ela nem havia revelado nada de significativo. Nada que a
ligasse aos eventos daquela noite fatídica no ateliê.
— É mesmo? — A garota disse. Seus traços delicados com convicção. —
Eu vou levá-los todos. — Ela acenou com a mão sobre os lenços, como se
estivesse lançando um feitiço.
— Tudo? — Anabel cuspiu, as pontas de sua fita amarela tremulando na
brisa pesada. — Bem, longe de mim dissuadi-la... O tempo e a maré não
esperam por nenhuma mulher, e tudo isso.
Enquanto Anabel recolhia os lenços no total, Celine olhou para a garota
diante deles, perplexa com a mudança repentina dos acontecimentos. Algo
sobre ela enervada Celine.
Como uma lembrança que ela deveria se lembrar. Uma palavra perdeu no
meio da frase. Um pensamento desvendando o ar. A jovem permitiu a leitura
de Celine, seu sorriso se ampliando a cada segundo que passava.
— Se você estudou com uma costureira, consegue desenhar vestidos? —
Perguntou a garota.
Mais uma vez, Celine assentiu.
— Mais oui, bien sûr. [1]
— Merveilleux! [2] — Ela se inclinou para mais perto, seus olhos
brilhando como calcedônia quente. — Eu tenho lutado com o meu modista
atual e estou precisando desesperadamente de uma fantasia para o baile de
máscaras no Mardi Gras no próximo mês. O Grão-Duque Russo será o
convidado especial deste ano e precisarei de algo memorável para marcar a
ocasião. Algo branco brilhante e uma reminiscência da corte francesa antes
da revolução, eu acredito. Ela torceu o nariz, como se estivesse prestes a
compartilhar um segredo delicioso. — Realmente, apesar de todo o ridículo
com a perseguição de suínos e o perfume, acho que foi um dos melhores
tempos para a moda feminina da história recente, panniers e tudo. — A
garota tamborilou com os dedos enluvados ao longo da borda da mesa de
madeira , sua cabeça inclinada em consideração. — Suponho que você
precisaria me medir para iniciar o processo?.
Outra retorta atrevida saiu dos lábios de Celine.
— Sim, mademoiselle. Isso seria sensato.
O centro dos olhos da garota brilhava como se ela pudesse ouvir os
pensamentos de Celine. Você é absolutamente encantadora. Como Bastien em
um vestido. Ela riu para si mesma.
— Aquele demônio malicioso.
Linhas de confusão se juntaram na testa de Celine. A jovem a estava
insultando ou elogiando?
— En tout cas [3] ... — A garota continuou, sua mão livre acenando no ar
como se quisesse dispersar a fumaça. — Seria possível você me encontrar
mais tarde esta noite?
Celine pensou rapidamente. No dia seguinte à chegada ao porto, a Madre
Superiora os advertiu sobre se aventurarem sozinhos na cidade à noite,
principalmente durante o carnaval.
Ela falou como se todos fossem cordeirinhos tolos, e o Vieux Carré nada
mais que um campo de caça para lobos. Sem mencionar o fato de uma morte
violenta ter ocorrido recentemente ao longo do píer próximo.
Diante de todos esses fatos, era improvável que a Madre Superiora
permitisse que Celine fosse embora.
Com essa percepção, veio uma surpreendente surpresa de decepção.
Embora Celine não se sentisse à vontade na presença dessa menina estranha
e disfarçada, ela ainda assim se sentia... intrigada. Mesmo um pouco
imprudente.
Quando a garota sentiu a relutância de Celine, seus lábios franziram com
desagrado.
— É claro que vou pagar-lhe generosamente.
Celine não duvidou. Apenas a camafeu de marfim valia uma fortuna. Mas
não era sobre o dinheiro. Era sobre a correção. Ela devia a si mesma essa
segunda chance. E enfurecer a madre superiora parecia imprudente.
Sinto muito, mademoiselle. Celine balançou a cabeça. — Só acho que não
seria possível.
A Madre Superiora não permitiria.
— Entendo. — Um longo suspiro passou pelos lábios da garota. — Esta
consciência, que faz de todos nós covardes.
— Perdão? — Os olhos de Celine se arregalaram. — Você está citando...
Shakespeare?
E Hamlet, ainda.
— O primeiro e único. — A garota sorriu. — Mas, infelizmente, devo
tomar meu caminho. Não há chance de você mudar de idéia? Você tem
apenas o nome do seu preço.
Um lampejo de diversão passou por Celine. Horas atrás, de um lugar de
insolência, ela sugeriu que seria melhor ganhar dinheiro sob a luz da lua.
Aqui estava uma oferta para fazê-lo. Um sem limite.
Naquele momento – ouvindo essa garota estranha citar Shakespeare e
atormentá-la com possibilidade – Celine percebeu que queria ir. Seriamente.
Foi a primeira vez na memória recente que sentiu essa centelha de
antecipação acender dentro dela. Ela queria criar algo e fazer parte do
mundo, em vez de apenas observá-lo. Ela já havia começado a imaginar
maneiras de criar os panniers de estilo barroco, de aros largos. Construir um
manteau com mangas de pagode pingando. Sua hesitação agora era um último
esforço para manter firme suas convicções.
Obedecer. Seja um modelo de humildade. Ganhe uma medida do perdão de
Deus.
— Se o dinheiro não te seduzir, — a garota se inclinou para mais perto, e
Celine sentiu um cheiro de óleo de neroli e água de rosas — Eu posso lhe
prometer uma aventura... uma caminhada através de um covil de leões.
Naquela. Foi isso.
Era como se a garota tivesse encontrado uma janela no canto mais escuro
do coração de Celine.
— Seria um prazer desenhar um vestido para você, mademoiselle, —
disse Celine. Assim que as palavras saíram de sua boca, seu pulso foi
acelerado.
— Estou emocionada. — Sorrindo, a garota retirou um cartão de cor bege
com caligrafia dourada no centro. O cartão mostrava um nome:

Jacques’
Por baixo, havia um endereço no coração de Vieux Carré, não muito longe
do convento.
— Venha aqui esta noite, por volta das oito horas, — continuou ela. —
Desconsidere a fila do lado de fora. Quando um homem bonito, com uma voz
como o pecado e um anel no ouvido direito, exigir saber o que você está
fazendo, diga-lhe para levá-lo a Odette, tout de suite[4]. — Ela pegou a mão
de Celine. Através do laço de sua luva, seu toque era frio.
Tranquilizante. Os olhos da garota se arregalaram por um instante, seu
aperto no começo. Ela inclinou a cabeça, um meio sorriso curvando seu
rosto de boneca.
— Foi um prazer conhecê-la, Celine, — disse ela calorosamente.
— Foi um prazer conhecê-la também... Odette.
Com outro sorriso simpatizante, a garota chamada Odette se afastou, o trem
de sua agitação deslizando em seu rastro. No instante seguinte, Anabel virou-
se para Celine.
— Acho que sou a última a cometer erros, Celine, mas não sei o que
aconteceu quando concordou em encontrar essa criatura Odette hoje à noite.
Você está doida? Você não pode deixar o convento depois do jantar. A
Madre Superiora proibiu-o expressamente. Ela disse que os acontecimentos
no bairro depois do pôr do sol...
— Promova o tipo de comportamento licencioso que não será tolerado sob
o teto dela. — concluiu Celine com uma voz cansada. — Eu sei. Eu estava
lá.
— Não há necessidade de ficar irritada. — Anabel soltou um forte cacho
vermelho do rosto. — Só estou preocupada com o que acontecerá se você
for pega.
— Eu pensei que você estava cansada de todo o barulho. — brincou
Pippa.
Celine sorriu, agradecida à amiga por desarmar a tensão.
— Pronta para conhecer um jovem cavalheiro forte.
— Na minha opinião, ele nem precisa ser jovem, — continuou Pippa.
— Ou um cavalheiro. — concluiu Celine.
— Och, você é terrível! — Cor inundando seu rosto, Anabel fez o sinal da
cruz. — O suficiente para me fazer levar para a igreja.
Celine fingiu ignorância, uma sobrancelha negra arqueando sua testa.
— Eu não tenho a menor idéia do que você está falando.
— Não seja a pequenina galinha que nunca despejou. Não comigo,
mademoiselle Rousseau. — Os olhos dela se voltaram para o peito de
Celine. — E certamente não com esse seio.
— O quê? — Celine piscou.
— Não se faça de inocente. — Disse Pippa com risadas.
— O que isso tem a ver com o meu... seio?
Pippa mordeu o lábio.
— Foi dito de brincadeira, querida. Você deve saber que tem uma figura
adorável. Ela bateu na mão de Celine como se fosse uma criança. O
movimento irritou os nervos de Celine. — Não leve a sério. Presentes foram
dados a você.
Presentes?
Eles pensaram que a figura dela era um presente? O ridículo disso quase
fez Celine cair na gargalhada. Houve um tempo em que ela apreciara seu
corpo por sua beleza e resiliência.
Mas esse tempo havia passado. O que ela não daria para ser ágil e magra
como Anabel. Os “presentes” sobre os quais essas garotas riram agora não
trouxeram Celine nada a não ser problemas.
E eles a deixaram longe de inocente.
Um rubor subiu nas bochechas de Celine. Queimou em sua pele, quente e
rápido, como se – mesmo de brincadeira – essas duas garotas pudessem ver
a verdade que ela trabalhava para esconder todos os dias de sua vida. O pior
de seu passado lavou sua memória. O sangue escorreu por sua visão, o
cheiro de cobre quente enchendo seu nariz, liberando a luz do ar.
Mas isso foi um absurdo. Como Pippa e Anabel sabem o que ela fez? Por
que ela fugiu de casa há cinco semanas? Celine lutou para acalmar seus
nervos.
Eles não. Ninguém faria isso. Contanto que ela não respirasse uma
palavra.
Seu nome é Marceline Béatrice Rousseau. Isso é tudo o que alguém
precisa saber sobre você.
— Eu nunca interpretaria inocentes, senhoras. — Celine piscou e sorriu
brilhantemente.
— Simplesmente não serviria.

[1] Sim, claro.


[2] Maravilhoso!
[3] De qualquer forma
[4] Imediatamente
MALVOLIO

A nabel traiu Celine no jantar, apenas uma hora depois de terem retornado
ao convento.
A Madre Superiora levou o trabalho de um instante para extrair a verdade
da garota de lábios soltos. Assim que Anabel disse às jovens reunidas que
os lenços bordados de Celine haviam sido comprados com o preço total de
uma só vez, a freira de olhos de falcão – com seu hábito perfeitamente
pressionado – procurou detalhes.
Infelizmente, Anabel provou ser uma péssima mentirosa. Por todas as
histórias que Celine ouvira sobre os escoceses, ela ficou profundamente
decepcionada por ter encontrado o único Highlander incapaz de contar uma
história.
Agora Celine estava presa revisando a paisagem no escritório da Madre
Superiora, o jantar de ensopado sem graça esfriando na mesa da cozinha. Ela
procurou no espaço por uma distração. Durante todo o tempo, ela tentou
inventar uma mentira crível por que deveria ter permissão para passear pela
cidade no anoitecer.
Foi tudo tão dramático. Tão desnecessário.
Por que todos que Celine encontrou insistiram em dizer-lhe como viver sua
vida?
Pippa sentou-se em um silêncio culpado nas proximidades, torcendo as
mãos como um personagem de uma história de advertência. Celine respirou
fundo, ciente de que não se podia contar com Philippa Montrose para apoiar
algo semelhante à perfídia. Pippa era simplesmente muito boa. Era uma
verdade universalmente reconhecida por todos os que residiam no convento,
até pelas próprias freiras:
Pippa Montrose era confiável e obediente. Nada como a impetuosa Celine
Rousseau.
De fato, por que Pippa foi convocada aqui? Ela não era culpada de
nenhuma irregularidade. A presença dela foi um esforço para destacar as
más ações de Celine? Ou talvez intimidar Pippa a traí-la também?
Com o olhar sombrio ao pensar, Celine examinou a sala. De um lado da
muralha, havia uma grande cruz de madeira que havia sido doada por uma
das famílias espanholas mais antigas de Nova Orleans, um tempo antes de os
franceses se apropriarem da cidade portuária. Além das persianas
parcialmente abertas, uma fenda da luz solar minguante banhava os confins
do convento de Ursuline.
Se apenas as janelas pudessem ser totalmente abertas, para permitir que a
vista do porto se infiltrasse nos pisos inclinados. Talvez enchesse esses
aposentos de vida com vida. No segundo dia, Celine tentou fazer isso
sozinha, mas foi castigada por dez minutos depois; as janelas do convento
caiado de branco eram sempre fechadas, em um esforço para manter a
atmosfera enclausurada.
Como se pudesse ser qualquer outra coisa.
A porta se abriu. Pippa sentou-se ereta no mesmo instante em que os
ombros de Celine caíram.
Mesmo antes de a Madre Superiora ultrapassar o limiar, a lã de seu hábito
preto encheu a sala com sua presença, cheirando a lanolina e a pomada
medicinal que ela usava todas as noites para as mãos rachadas.
A combinação era como um cão molhado em um palheiro.
Assim que a porta se fechou, as linhas em torno da boca da Madre
Superiora se aprofundaram. Ela parou para respirar, depois olhou para eles,
sua expressão severa. Um esforço óbvio para instilar uma sensação de mau
presságio, como um tirano da antiguidade.
Embora fosse inoportuno, um sorriso ameaçou tomar forma no rosto de
Celine. Tudo nessa situação era absurdo. Menos de cinco semanas atrás,
Celine havia sido aprendiz de uma das mais exigentes costureiras de Paris.
Uma mulher cujos gritos de raiva frequentes faziam os cristais tremerem em
seus candelabros. Um verdadeiro opressor, que rotineiramente rasgava o
trabalho de Celine em pedaços – diante de seus olhos – se um único ponto
estivesse fora do lugar.
E essa freira tirânica com mãos rachadas pensou que ela merecia medo?
Como Pippa diria, provavelmente não.
Um riso escapou da boca de Celine. Pippa mexeu na cadeira em resposta.
O que poderia ter causado o desgaste das mãos da Madre Superiora?
Talvez ela tenha trabalhado em algum ofício clandestino, profundamente nas
cavidades de sua cela. Um pintor, talvez. Ou um escultor. E se ela fosse
secretamente apaixonada por palavras à noite?
Melhor ainda, se ela escrevesse inteiramente em partes ou coisas ligadas a
duplo sentido, como Malvolio em Twelfth Night.
Seja pela minha vida, esta é a mão da minha dama, estes são os seus C's,
os U's e os T's, e assim ela faz ótimos P's.
Celine tossiu. Rugas de irritação se formaram na testa da Madre Superiora.
A idéia de que essa freira com um hábito engomado diria algo
desagradável fez Celine fixar os olhos no chão de pedra polida para não rir.
Pippa a cutucou novamente, desta vez com mais força. Embora sua amiga
não tenha dito nada, Celine percebeu que Pippa não estava nem um pouco
divertida com a situação deles.
Com razão. Nada sobre irritar a matrona do convento deve ser engraçado.
Essa mulher lhes dera um lugar para morar e trabalhar. Um meio pelo qual
encontrar seu caminho no Novo Mundo.
Apenas uma menina ingrata e problemática veria o contrário. Uma garota
exatamente como Celine.
Séria por esses pensamentos, Celine mordeu o interior de sua bochecha, a
sala ficando mais quente, suas estadas ficando mais apertadas.
— Espero que você se explique, mademoiselle Rousseau — começou a
Madre Superiora com uma voz fina e grave ao mesmo tempo.
Celine ficou calada, com os olhos baixos. Ela sabia que não deveria
começar oferecendo uma defesa. A Madre Superiora não os chamou aqui
com a intenção de ouvir; ela os chamou aqui com uma mente para ensinar.
Foi uma lição que Celine entendeu bem. Ela foi criada sobre isso.
— Esta jovem que você conheceu na praça, por que ela não vem ao
convento durante o dia ou consulta uma costureira local? — Perguntou a
Madre Superiora. — Se ela deseja contratá-lo para projetar roupas para ela,
parece apropriado que ela venha aqui, n'est-ce pas[1]?
Quando Celine ainda não respondeu, a Madre Superiora resmungou.
Inclinou-se para mais perto.
— Répondez-moi [2], mademoiselle Rousseau. Immédiatement [3]. — ela
sussurrou, seu tom misturado com aviso. — Ou você e Mademoiselle
Montrose vão se arrepender.
Diante da ameaça, Celine levantou a cabeça para encontrar o olhar da
Madre Superiora.
Ela lambeu os lábios para aguentar o tempo enquanto escolhia suas
próximas palavras.
— Je suis désolée, Mère Supérieure [4], — Celine pediu desculpas, ela
olhou para a direita, tentando decidir se envolvia ou não Pippa nessa
falsidade — Mas, infelizmente, seu modista não está familiarizado com o
estilo barroco de se vestir. Ela expressou urgência em precisar das roupas e
um horário que não parecia ser flexível durante o dia. Você vê... ela é
voluntária todas as tardes em uma organização de senhoras que tricota meias
para crianças.
Mesmo de perfil, Celine viu os olhos de Pippa se arregalarem de
consternação.
Era uma mentira abominável, com certeza. Formar Odette como um anjo
com um fraquinho por almas descalças estava entre os mais . . . histórias
coloridas que Celine havia contado em sua vida. Mas toda essa situação era
ridícula. E Celine gostava de prevalecer sobre os tiranos, mesmo com a
menor medida possível. Especialmente aqueles que ameaçavam seus amigos.
A carranca da Madre Superiora se suavizou, embora o resto de sua
expressão permanecesse duvidoso. Ela colocou as mãos atrás das costas e
começou a andar.
— Seja como for, não acho apropriado que você viaje pela cidade ao
anoitecer sem escolta. Uma jovem mulher não muito mais velha que você...
ontem pereceu ao longo das docas.
Na opinião de Celine, perecer era uma palavra bastante moderada por ser
rasgada em pedaços sob um céu estrelado.
A Madre Superiora fez uma pausa em oração silenciosa antes de retomar
sua palestra.
— Durante a temporada de carnaval, há muitos foliões nas ruas. O pecado
corre desenfreado, e não desejo que uma mente tão fraca e suscetível quanto
a sua seja atraída pelo perigo.
Embora Celine se irritasse com a leve, ela assentiu em concordância.
— Eu também não quero ser tentada por nada desfavorável. — Ela
pressionou a mão sobre o coração. — Mas acredito que essa jovem seja boa
e temente a Deus, Mère Supérieure. E o dinheiro que ela dará ao convento
pelo meu trabalho seria sem dúvida um grande benefício para todos nós. Ela
deixou claro – várias vezes – que o custo não era um objeto.
— Entendo. — A Madre Superiora virou-se para Pippa sem aviso prévio.
— Mademoiselle Montrose, — disse ela — Parece que você tem pouco a
oferecer sobre o assunto. O que você tem a dizer sobre esta situação?
Celine fechou os olhos, preparando-se para o que estava por vir. Ela não
culparia Pippa por dizer a verdade. Era simplesmente da natureza dela fazê-
lo. E quem poderia culpar Pippa por seguir sua inclinação natural.
Pippa limpou a garganta, apertando as mãos pequenas em punhos.
— Eu... acho a moça bastante digna de confiança e virtuosa também,
Madre Superiora. — disse ela lentamente. — É claro que suas preocupações
não são sem mérito, especialmente considerando o que aconteceu ao longo
das docas. Faria diferença se eu me oferecesse para acompanhá-la?
Poderíamos fazer as medições da dama juntos e seguir o nosso caminho. Não
acredito que sairíamos do convento por muito tempo. De fato, não vejo razão
para perdermos a oração da noite.
O tempo parou. Foi a vez de Celine arregalar os olhos com consternação.
Pippa Montrose se ofereceu para ajudar. Mentira por Celine. Para uma
freira.
— Tenho muitas dúvidas, mademoiselle Montrose — disse a Madre
Superiora depois de respirar. — Mas talvez se você estiver disposto a
fornecer escolta...
— Estou disposta a assumir total responsabilidade. — Pippa agarrou o
minúsculo crucifixo de ouro aninhado na cavidade da garganta. Ela deixou
cair a voz. Deixe-o encher de reverência. — E eu confio que Deus irá
conosco esta noite.
A Madre Superiora franziu o cenho novamente, os lábios se abrindo
lentamente. Sua atenção mudou de Pippa para Celine e voltou. Ela ficou em
pé. E tomou uma decisão.
— Muito bem — disse ela.
Uma onda de surpresa passou por Celine. A Madre Superiora mudou de
rumo muito rapidamente. Muito facilmente. A suspeita mordeu o estômago de
Celine. Ela olhou para Pippa de lado, mas sua amiga não olhou para ela.
— Obrigada Madre Superiora — murmurou Pippa. — Eu prometo que
tudo correrá como planejado.
— Claro. Desde que entenda, confio plenamente em você, mademoiselle
Montrose. Não me decepcione. — O sorriso da freira era perturbadoramente
beatífico. — Que a luz de Deus brilhe sobre vocês duas, minhas filhas.

[1] “Não é?”


[2] Responda-me;
[3] Imediatamente;
[4] Sinto muito, Madre Superiora.
HIVER, 1872
AVENIDA DAS URSULINAS
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

E u primeiro vislumbro minha próxima vítima quando ela passa sob a


chama de uma lâmpada de gás.
Os olhos dela brilham da maneira mais curiosa. Como se estivesse
nervosa ou em suspense. Talvez no meio de fazer algo ilícito.
A visão chama minha atenção, mesmo através da horda de corpos agitados,
um punhado deles transbordando de energia de outro mundo. Seu desconforto
parece estranhamente sedutor, pois é o oposto de performativo. Ela não
presta atenção a tudo ao seu redor, salve a tarefa em mãos. É um
empreendimento difícil para um mortal infeliz, mover-se sobre uma multidão
tão alegremente inconsciente. Tão invejavelmente afetado.
Multidões me fascinam. Eles fornecem a demônios como eu oportunidades
únicas.
Ocasiões a serem vistas e invisíveis na mesma respiração. Pois nem
sempre estamos – humanos e criaturas – atuando em algum grau?
Eu discordo.
O momento que mais gosto é quando começo a varrer as massas. Quando
pus os olhos no meu alvo pela primeira vez, e eles não sabem que estão
sendo vigiados. Eles agem sem pensar. Sorria sem agenda. Ria como se
nenhuma alma estivesse ouvindo.
Eu sei como isso deve soar. Parece... desconcertante. Eu estou ciente. Mas
sou por natureza desconcertante. Há momentos em que também posso me
deliciar. Eu falo muitas línguas. Eu viajei o mundo duas vezes. Eu posso
cantar a totalidade da Aida de Verdi sem a necessidade de partituras.
Não mereço um pouco de consideração por essas e muitas outras
conquistas?
Gostaria de pensar que sim, embora saiba que é impossível.
Os demônios não devem receber a indulgência dos homens. Assim diz o
homem, pelo menos.
Mas vou compartilhar um segredo. Nos meus anos, descobri que é
possível ser ao mesmo tempo desconcertante e agradável. O vinho pode ser
delicioso, embora atrapalhe a mente. Uma mãe pode amar e odiar seus filhos
no período da mesma tarde.
E um predador poderia se odiar, mesmo saboreando sua refeição da noite.
Entendo que meu comportamento pode ser interpretado como estranho.
Inadequado. Mas eu sou uma coisa estranha. Uma criatura nascida à parte
deste mundo.
Não se preocupe com a minha conta. Nunca fui um daqueles imortais que
gostam de brincar com a comida, nem gosto particularmente de perseguir
minha presa. Eu não estou procurando por suas fraquezas; pelo contrário,
estou entendendo a humanidade deles. Há algo... errado em tratar um ser
vivo como se ele existisse apenas para o meu próprio esporte.
Toda ação que realizo tem um propósito. É a característica que me
distingue de muitos seres do Outro Mundo.
Minhas convicções.
Sinto profundamente a perda de qualquer vida tomada. A matança na
semana passada ao longo do cais não me emocionou de forma alguma. Era
necessariamente horrível, de uma maneira que normalmente evito,
especialmente por uma morte tão indiscriminada. Eu trouxe o fim da garota
simplesmente para ver o que era possível. Para ver que tipo de atenção isso
chamaria. Infelizmente, não teve o efeito que eu esperava, pois meu inimigo
permanece acima do conhecimento das autoridades. Parece que uma
impressão mais duradoura deve ser deixada com minha próxima vítima. Um
ataque mais direto, à porta do meu inimigo.
Cada morte por vir será sentida ainda mais profundamente. Isso é de
importância primordial.
Pois, embora eu possa desprezar o derramamento de sangue, não sou
imune à atração da caçada. Uma amiga de infância costumava dizer que
sabia quando um animal havia morrido em agonia. Ela podia provar, e isso
arruinou a refeição para ela.
Acho que estou inclinado a concordar. Há também um certo fascínio em
saber o que acontecerá a seguir, antes que mais alguém o faça. Talvez seja o
resultado da minha educação não convencional. Ou talvez seja simplesmente
a natureza humana.
E eu era humano. Uma vez.
Uma parte de mim ainda quer ser.
Talvez seja isso que me atraia para a animação do bairro francês. Evitei
caçar nele por muitos anos, porque seus cantos continham lembranças que
não eram esquecidas logo.
Imagens de dor, perda e desgosto. Mas voltei ao meu antigo local depois
de muito tempo, pois tenho uma pontuação antiga para resolver. Uma
apresentação final para dar.
Sacro fremito di gloria / Tutta l’anima m’investe. [1]
Uma emoção sagrada de glória / Corre através do meu coração.
Talvez eu ainda seja humano, afinal.

[1] Sagrada emoção de glória / A alma inteira me investe.


Um TOQUE DE VIOLÊNCIA

C eline! — Pippa gritou quando Celine girou na multidão, seus passos


certos. Livres. — Mais devagar. Não há necessidade de se mover tão
rapidamente.
Celine parou, a excitação despertando em seu peito. A batida de um
tambor distante encontrou o choque de pratos. Logo depois, as trombetas
soaram no vibrante ar noturno.
Uma brisa sensual brincava com as pontas da fita de cetim preta em volta
da garganta, acariciando sua clavícula. Embora ela ficasse quieta, seu
coração alcançou a música, como se ela chamasse algo profundo em seus
ossos. Nunca deixou de surpreendê-la, como ela parecia prosperar sob a
cobertura da escuridão. Como ela se apaixonou mais pela lua todas as
noites.
Todas as noites – apesar das grossas paredes do convento – os dedos de
Celine batiam ao lado das melodias dos desfiles de carnaval que passavam.
Ritmos, timbres e crescentes de som que ela nunca ouvira capturaram sua
atenção, roubando seus pensamentos da palavra de Deus. Ela não estava
sozinha nisso. Os dedos de Antonia haviam congelado acima das páginas das
vésperas, sua mente paralisada também. Até Pippa sorriu com a música.
E aqui estavam elas agora, tendo a chance de se deleitar com o coração de
tudo.
O desfile se aproximou, a multidão ao redor deles se espalhando pelas
ruas laterais do Vieux Carré. Vendedores temporários começaram a enrolar
carrinhos de comida e bebida nos cantos, acrescentando camadas e mais
camadas às vistas, cheiros e sons que coletavam sobre o espaço: especiarias
e terra e o choque de metal contra pedra. Celine mudou com o mar de corpos
em movimento, arrastando Pippa em seu rastro. Quando dobraram a esquina,
um aroma delicioso – diferente de qualquer que Celine já conheceu –
permeava o ar.
— Cochon de lait! [1] — Gritou um homem com bigode coberto de
fuligem com um sotaque francês estranho. Ele pairava acima do que parecia
uma fera de ferro e fumaça preta do tamanho de um tronco grande. Quando
ele abriu a tampa, Celine viu carne assando acima de um espeto
improvisado, o aroma de madeira de noz-pecã e cana-de-açúcar flutuando
através dela. Ele derramou uma mistura que cheirava a manteiga derretida,
vinho branco, pimenta e alho picado por todo o cochon defumado. Um vapor
delicioso chiou das brasas fumegantes, tecendo através e ao redor delas.
Então, o homem de bigode enfiou um garfo grande em um lado da carne, e um
pedaço de cochon caiu do osso em um pedaço de pão à espera.
Imediatamente uma multidão formou uma fila ao redor do homem e sua
besta de ferro.
Celine desejou desesperadamente levar consigo uma única moeda. Uma
única chance de participar de algo de dar água na boca. Ela sabia que era
uma má idéia se aproximar da alegria do desfile que chegava, mas fazia tanto
tempo que esse tipo de alegria desenfreada se enraizava em seu coração. Ela
supôs que era assim, quando alguém era culpado de cometer atos indizíveis
como assassinato.
A alegria não vivia em um coração cheio de medo.
Pippa viu o olhar em seu rosto.
— Não podemos ficar aqui, Celine. — disse ela em um tom sombrio. —
Não podemos assistir ao desfile.
— Eu sei. — Celine inalou profundamente. — Só estou imaginando que
poderíamos. Foi o que fizemos. E foi glorioso.
Um sorriso simpático apareceu no rosto de Pippa.
— Eu quero ver também. Mas se a Madre Superiora descobrir que
desconsideramos seus desejos – que não fomos diretamente à nossa reunião
e voltamos imediatamente – ela nunca mais nos deixará aventurar-se na
cidade novamente.
— Claro. — Celine assentiu. Mas seus pés permaneceram fixos em um
ponto.
— Por favor — continuou Pippa, pegando sua mão. — A vida é muito
mais difícil quando aqueles que nos rodeiam não têm fé em nós.
Celine suspirou. Como sempre, Pippa não estava errada. No passado, a
inclinação de Celine pela imprudência havia se mostrado problemática.
Desastroso em pelo menos uma ocasião. A sensação de alegria que florescia
em seu peito apenas um momento antes murchava como uma rosa sob o sol
quente.
— Você está certa. — disse Celine suavemente. Lamentavelmente. Ela se
afastou da multidão e de todas as suas promessas deliciosas.
Pippa a abraçou quando começaram a andar na direção oposta.
— Eu simplesmente não tenho o mesmo senso de aventura que você.
— Eu não tenho certeza sobre isso. — Celine sorriu. — Você embarcou
em um navio navegando no desconhecido. — E mentiu por mim esta noite,
ela acrescentou sem palavras.
Era impossível sentir falta da nuvem negra que passava sobre as feições
de Pippa. A curiosidade esquentou através de Celine novamente. Foi a
primeira vez em cinco semanas que ela viu uma sombra descer no rosto de
Pippa quando confrontada com perguntas sobre seu passado.
Seria possível que Pippa também tivesse um segredo sombrio?
Parecia tão improvável.
— Não havia mais nada para mim em Liverpool — começou Pippa, como
se pudesse ler a mente de Celine. — exceto o bom nome da minha família e
um legado de dívidas. Meu pai... desperdiçou sua vida e nossa sorte em
jogos do infernos e nos braços de mulheres da rua.
— Ela estremeceu. — Era melhor eu sair e seguir meu próprio caminho.
Qualquer um que escutasse sentiria o quanto dói Pippa divulgar essas
verdades. Uma parte de Celine sentiu-se honrada por Pippa ter escolhido
confiar nela. Ela passou o braço com mais força ao redor do de Pippa, mas
não pôde ignorar o pavor que percorria seu estômago.
Pippa esperaria que Celine retornasse o gesto. Confiar nela com detalhes
do passado de Celine. Com certeza, Pippa olhou para Celine enquanto
desciam a Avenue des Ursulines.
Celine não precisava perguntar o porquê. Sua amiga esperou ansiosamente
que Celine oferecesse sua própria história de aflição.
Para compartilhar sua dolorosa verdade.
Mais do que tudo, Celine queria contar a Pippa o que havia acontecido.
Mas como Pippa – sua única amiga no Novo Mundo – a encararia se
soubesse que Celine havia matado um homem e fugido de Paris depois
disso? Pippa dissera ela mesma: que tipo de monstro tira a vida humana? Na
melhor das hipóteses, ela parava de olhar para Celine com os olhos de um
amigo. Na pior das hipóteses?
Celine estremeceu ao pensar.
O resultado seria o mesmo: ela não teria ninguém. Então Celine manteve
sua história, oferecendo a Pippa um encolher de ombros. Um sorriso
desdenhoso.
— Eu entendo completamente sobre querer fazer o seu próprio caminho —
disse ela. — Não havia mais nada para mim em Paris. Era melhor para mim
começar de novo em outro lugar também.
Pippa não disse nada. Por um tempo, ela não desviou o olhar de Celine.
Então ela assentiu, como se tivesse decidido deixar as coisas como estão.
Por enquanto.

As duas garotas desceram a Rua Royale, à procura de uma placa que dizia
'Jacques'.
Quando viraram uma esquina, passaram por uma estreita rua lateral que
cheirava suspeitamente a lixo. O beco estava apagado. Removido do reino
do povo civilizado.
Celine parou quando a sugestão de uma briga emanou de suas sombras. A
atingiu como um raio, a eletricidade chiando em sua pele. Um homem gritou,
implorando por sua vida em uma mistura gutural de francês e inglês. Suas
palavras foram seguidas pelo som de um punho contra a carne.
E se um assassinato estivesse ocorrendo a apenas alguns passos de onde
eles estavam?
Celine sabia que era mais prudente continuar seu curso. Permanecer
ambivalente.
Seguro.
Mas se um monstro tira uma vida, que tipo de criatura se recusa a salvar
uma?
Pippa puxou o braço de Celine. Celine a ignorou. Alguém estava sendo
espancado até a morte no beco, sem recurso. A parábola do bom samaritano
ecoou em seus ouvidos, advertindo-a a prestar atenção. Agir.
O homem gritou de novo e Celine deu um passo mais perto.
— Celine! — Pippa exclamou em um sussurro alto.
— Quem está aí? — Uma voz profunda chamou do centro obscuro do
beco.
Sem piscar um olho, Celine puxou Pippa em uma queda de sombras
próximas, seu coração batendo forte no peito. Ela olhou ao virar da esquina
– para o beco estreito – permitindo que sua visão se ajustasse à escuridão.
— Não deveríamos estar aqui — Pippa sussurrou no ouvido de Celine, os
olhos arregalados de terror, a respiração pesada. — Devemos sair às...
Celine pressionou um dedo na boca de Pippa e balançou a cabeça. Ela se
concentrou na cena que se desenrolava nas profundezas da pequena rua
lateral. Demorou um instante para formar um entendimento.
Um homem estava deitado de lado no meio de uma pilha de cascas de
frutas secas, suas palavras distorcidas, sua situação clara. Uma mão foi
levantada em súplica. Seus ombros tremiam incontrolavelmente.
Dois outros homens estavam de cada lado dessa pobre alma, apoiando-o
como um par de espectros adequados. Através da escuridão, o homem mais
baixo acendeu um charuto.
Um flash de luz do fogo brilhou sobre um conjunto de dentes brancos
perfeitos e o linho branqueado de suas mangas de camisa enroladas.
Mas não foi esse homem que chamou a atenção de Celine.
Era o mais alto, à sua direita, observando a violência se desenrolar como
se fosse simples entretenimento. Um show realizado no palco diante de um
público pagante.
No alto de sua cabeça, Celine reconheceu a inclinação de um chapéu
Panamá.
Talvez tenha sido uma coincidência. O garoto que ela vira naquela
primeira noite – aquele cuja memória ela lutara para conjurar dias depois –
não podia ser o único indivíduo em Nova Orleans com uma propensão a esse
estilo. Mas uma parte mais profunda e mais visceral de Celine a advertiu
para não colocar muita fé em coincidências.
— Por favor, Fantôme[2] — implorou o homem encolhido na lama. —
Pardonnez-moi [3]. — Sua voz tremia enquanto ele pedia perdão. Ele
estendeu a mão em direção à figura do chapéu Panamá. O que ele chamou de
fantasma. Um apelido adequado para uma criatura tão confortável nas
sombras.
— Desculpas não são nada sem reparações, Lévêque. — Fantôme disse
em um tom ricamente áspero, de costas para Celine, dificultando o
discernimento de seus traços. Mesmo nos movimentos mais sutis, ele se
comportou como muitos jovens de linhagem em Paris: sem se importar com o
mundo. Como se o próprio ar que ele respirava estivesse coberto de pó de
diamante.
Só o pensamento enfureceu Celine.
Continuando, ele disse:
— Você foi avisado do que aconteceria na próxima vez em que se
comportasse com tanto desrespeito. — Ele acenou com a cabeça para o
homem que fumava o charuto, que arregaçou as mangas da camisa para
começar de novo.
— Espere, espere, espere! — Disse o homem encolhido, sua voz ficando
mais alta a cada apelo. Ele passou o antebraço pelo rosto para afastar os
golpes que se aproximavam. — O que você quer? Você quer que eu peça
desculpas a ela? Vou me ajoelhar pelo perdão de mademoiselle Valmont. Eu
vou...
— Ah, Lévêque. Você não tem nada que eu, ou Mademoiselle Valmont,
queira. — Apoiando o ombro direito contra a parede de tijolos, ele acenou
com a cabeça novamente em direção ao seu compatriota com o charuto.
Como um trovão, um punho bateu no rosto do homem trêmulo. Enquanto o
espancamento continuava, o Fantasma pressionou os dedos na lateral da
garganta como se estivesse checando o próprio pulso, depois sacudiu um
pedaço de algodão imaginário do ombro.
O som de ossos quebrando pela noite, fazendo Celine estremecer.
Isso foi cruel. Desnecessário. Pavoroso.
Ela se moveu para parar a surra, mas Pippa segurou-a firmemente no
braço.
— Não interfira — disse ela. — Por favor. Homens violentos são
imprevisíveis.
Suas palavras deixaram Celine fria.
Claro que estavam. Ela sabia bem o que homens violentos eram capazes de
fazer. Sua mente relampejou para uma tarde de inverno no ateliê. Um jovem
rico que oferece trazer chá quente e um cobertor quente enquanto ela
trabalhava. A sensação de uma palma pegajosa no pescoço. Como isso a
chocou em sua devassidão não convidada. Como um toque rapidamente se
tornou doloroso. Unhas cravando em seu braço. Dedos rasgando seus
cabelos. Uma palma áspera ao redor do tornozelo.
Não.
Não.
Não.
Em seguida, o esmagamento de um candelabro contra o crânio.
O silêncio que se seguiu. O sangue que correu.
Celine ficou paralisada por essa repentina lavagem de memória. Naquele
momento, ela se tornou uma assassina. O próximo, uma fugitiva. Agora ela
vivia em um convento do outro lado do Atlântico, todas as noites
compartilhando a palavra de Deus com outras moças.
A ironia.
Pippa agarrou o antebraço de Celine.
— Celine?
Celine se livrou de seus pensamentos quando o homem com o charuto se
moveu para sair do beco, limpando as juntas ensanguentadas com um lenço
de seda. Pippa inalou bruscamente quando Celine entrou em seu caminho
sem pensar, impedindo-o de prosseguir, encontrando seus olhos encapuzados
com seu próprio olhar frio. Ele levantou uma sobrancelha para ela.
Mesmo sem a ajuda de uma lâmpada de gás, Celine podia ver sua
juventude óbvia e a costura fina em seu caro colete de damasco inglês. Uma
fina corrente de ouro pendia do pescoço dele, um monóculo pendurado no
centro. Sua pele de cobre não era marcada – na verdade, quase perfeita
demais – e seus cabelos eram uma massa de ondas escuras. Se Celine tinha
que adivinhar, provavelmente sua família era das Índias Orientais. Seus
olhos castanhos estavam cheios de interesse e não uma pequena quantidade
de admiração. Era quase como se ele a tivesse encontrado em um passeio
noturno por um jardim.
Este era – por todos os direitos – a aparência de um cavalheiro.
Os olhos do garoto vagaram por Celine, de cima a baixo. Ele deixou seu
olhar se voltar para Pippa, a quem enviou um sorriso lento. Então ele se
curvou antes de recuar, limpando o caminho estreito com um floreio.
E Celine foi recebida, cara a cara, com le Fantôme. As unhas de Pippa
cravaram na pele de Celine, provocando um tremor de medo. Outro choque
de consciência acalorada.
O Fantôme chegou mais perto, seus movimentos sem som. Ele estava
diante de Celine, suas feições ausentes de qualquer emoção discernível, o
conjunto de seus ombros fácil.
Forte. Embora ele não fosse muito mais alto que o garoto do monóculo, sua
presença ocupava infinitamente mais espaço. Ela podia entender por que o
motorista o havia rendido sem pensar. Celine parou de arregalar os olhos, de
abrir os lábios. Se ela visse esse garoto à luz do dia, seria forçada a admitir
uma verdade inatacável: O Fantôme era o jovem mais impressionante que
ela já tinha visto.
A pele acima da gravata estava bronzeada, os músculos do pescoço
presos. Ao longo de sua linha do queixo quadrado, havia a sugestão de barba
por fazer, sua sombra acentuando a elegante simetria de seus traços. Isso
trouxe à luz um nariz aristocrático, que contrastava com seus cílios grossos e
sobrancelha escura. Espanhol talvez? Norte-africano, talvez?
Independentemente disso, ele era uma mistura fascinante do Velho Mundo
ao lado do Novo.
Um pirata enfeitado em Savile Row.
Ele era... verdadeiramente bonito. Como um príncipe de um conto de fadas
sombrio.
Celine ficou lá um momento, as palavras falhando. Quando ela percebeu
que ele a deixara sem palavras – roubou o próprio fôlego de sua língua – a
indignação se enrolou em sua garganta.
Um vislumbre de diversão cintilou ao lado de seus lábios. Um ligeiro
recuo na bochecha direita. O gesto fedia a arrogância. Esse garoto sabia
muito bem como ele era. Sabia como exercer seu poder como um mestre de
armas.
Celine estreitou o olhar para ele.
Quando ele falou, seus olhos brilharam, concedendo a seus traços
cinzelados um olhar de ameaça.
— Como posso ajudá-la esta noite, mademoiselle? — ele disse em voz
baixa.
Como esse demônio claramente apreciava a visão dela, Celine decidiu
ignorá-lo e, em vez disso, virou-se para o lacaio que estava atrás dele, que
apoiou um pé na parede de tijolos enquanto inalava seu charuto.
— Faz você se orgulhar de vencer um homem indefeso, monsieur [4]? —
Ela perguntou em um tom frio.
— Nem um pouco. — disse o outro garoto com sotaque britânico, em torno
de uma expiração de fumaça azul pálida. — Mas isso me mantém flexível
para o ringue de boxe.
— Você se atreve a brincar com esse comportamento? — Celine exigiu. —
Você deveria ter vergonha.
O garoto do charuto riu.
— A adorável jovem poderia falar de forma diferente se soubesse o que
esse bastardo havia feito.
— Ele está desamparado. Você e seu… — Celine apontou um dedo na
direção do fantasma, ainda se recusando a reconhecê-lo. — Amigo tem toda
a vantagem. — Quando ela terminou de falar, o homem na lama olhou para
ela por trás das pálpebras inchadas. Então ele caiu de volta, seu peito
arfando de alívio.
— E se estivéssemos defendendo a honra de uma mulher? — O garoto
estendeu o cigarro, moendo-o sob os calcanhares.
A pergunta inesperada levou Celine de surpresa por um instante.
— Não há honra em derrotar um homem indefeso.
— Uma mulher sábia além dos anos — o Fantasma disse suavemente, um
sotaque estranho passando por seu discurso. Quando ele falou, uma onda de
gelo passou entre as omoplatas de Celine, provocando um arrepio na
espinha. — Mas não pense que sabe de tudo, mademoiselle. — continuou
ele.
Celine deslizou o olhar para ele, seu coração um baque baixo no peito. Ela
levantou o queixo.
— Eu sei o suficiente, monsieur.
— Então saiba disso: a verdade nem sempre é o que você vê. — Ele fez
uma pausa. — Agora se afaste. — Seus olhos de aço se estreitaram quase
imperceptivelmente. — Por favor.
Atrás dele, seu amigo riu.
— Enquanto eu vivo e respiro. — ele murmurou. — Sébastien Saint
Germain... atuando como parte de um cavalheiro, em vez de um desolador.
Em resposta, um músculo bateu na mandíbula do fantasma. O menor
indício de descontentamento. Ele olhou para o amigo, avisando-o sem
palavras. O garoto com o monóculo sorriu em resposta, o que pareceu
estranho a Celine, dadas as circunstâncias.
Quando um claramente superou o outro.
Não importa. O fantasma tinha um nome.
— Você não me comanda, Sébastien. — disse Celine, seu tom preciso. —
Eu desafio você a tentar.
Sébastien respirou com cuidado.
— Aceito seu desafio, mademoiselle. — Com um meio sorriso malicioso,
ele a segurou pela cintura e a moveu para um lado, levantando-a do chão
como se fosse mais leve que o ar.
Celine reagiu por impulso – o desejo de imobilizá-lo como ele a tinha.
Seus dedos dos pés, pendurados sobre os paralelepípedos – combinando
com ele ao nível dos olhos -, ela agarrou Sébastien pela gravata de seda.
Puxou com força, sua expressão determinada. Seus olhos se arregalaram de
surpresa, uma faísca de fogo queimando em suas profundezas. O recuo em
sua bochecha apareceu por menos de um instante.
Ele era... divertido?
Homem sem noção.
Ela apertou mais a gravata dele. Sentiu o vento fino do tecido entre os
dedos. Recusou-se a desviar o olhar, embora ele a segurasse no ar como um
fantoche em uma corda.
— Celine! — A voz de Pippa era estridente. Celine não precisava
adivinhar como sua amiga estava chocada. Pippa se aproximou, o pânico se
desenrolou de sua pele. — Desculpe-nos pela interrupção, senhor. —
Embora Pippa se dirigisse a Sébastien, seus olhos de metal nunca se
afastaram dos de Celine.
— Precisamos ir. — insistiu Pippa.
— Ponha-me no chão, monsieur Saint Germain — exigiu Celine. — De
uma vez só.
Para sua surpresa, Sébastien colocou-a de pé. Mas ele não tirou as palmas
das mãos da cintura dela, assim como Celine não renunciou ao seu aperto na
gravata. Mesmo através do espartilho, ela sentiu o toque do polegar dele
acima do quadril, a pressão dos dedos longos na parte inferior das costas.
Seu pulso batia forte no peito, seu ritmo rápido e fervente.
— Ela tem dentes — disse ele calmamente. — Mas ela também tem
garras?
— Existe apenas uma maneira de descobrir. — Ela quis dizer isso como
uma ameaça.
Ele tomou isso como um desafio.
O sorriso de Sébastien foi rápido. Não estudado. Incomum em um garoto
que obviamente se orgulhava do controle. A borda de suas feições aumentou,
levando Celine a suspeitar que ele não estava apenas divertido.
Era possível que ele estivesse intrigado?
Celine soltou a gravata, as costas da mão roçando um botão de obsidiana
enquanto deslizava sobre o colete. Embora estivesse longe da coisa mais
imprópria que ela fizera hoje à noite, o toque parecia ilícito. Roubado. Suas
bochechas esquentaram quando algo mudou em seu olhar.
— Bastien. — A voz de seu amigo cortou sua troca silenciosa. —
Devemos ir antes que alguém chame a polícia. — Ele avançou
propositadamente, uma palma se movendo para o ombro de Sébastien,
exigindo sua atenção.
Por um instante delicioso, Bastien ignorou. Então ele deslizou as mãos da
cintura de Celine, deu um passo para trás e inclinou o chapéu para ela. Com
horror, ela percebeu que o toque dele havia queimado sua pele. Essa poderia
ser a única explicação de por que o ar ao redor de sua cintura estava tão frio.
Quando ele passou por ela, o cheiro de bergamota e couro seguiu seu rastro.
Uma onda de emoções percorreu seu corpo. Celine se contentou com a
indignação, agarrando-a como uma tábua de salvação. Quando ela se virou
para garantir que tinha a última palavra, viu um brilho de prata em sua
periferia. Demorou menos do que um piscar de olhos para perceber sua
fonte.
O homem na lama havia libertado uma adaga da bota, com os traços de
cicatrizes ferozes ao luar.
Celine gritou em aviso, puxando Pippa para o lado. No mesmo instante,
Bastien girou, retirando um revólver de dentro do casaco, em um movimento
contínuo. Ele mirou – querendo atirar -, mas seu amigo se lançou para o
homem com a adaga, a mão direita envolvendo o pulso do homem.
Sem explicação, o homem caiu para a frente, como se de repente tivesse
adormecido, a adaga caindo no chão ao lado dele.
Tudo aconteceu tão rapidamente. Celine piscou uma vez. Duas vezes.
Pippa esforçou-se por respirar, os cachos loiros tremendo acima da testa.
— O que você fez? — Celine sussurrou para o garoto com o monóculo. —
Ele está... morto?
Os dois jovens tiveram uma conversa sem palavras.
— Ele está... dormindo — disse o garoto com o monóculo com cuidado,
como se tivesse decidido por uma versão da verdade. — Ele ficará muito
bem em uma hora, embora o palerma não mereça.
— Mas...
— Nós terminamos aqui. — disse Bastien, seu tom frio. Proibindo.
Celine olhou para ele.
— Você não é absolutamente...
— Minhas desculpas, mademoiselle. E para você, senhorita. — Ele se
curvou bruscamente para Pippa antes de se afastar. — Arjun? — Ele chamou
por cima do ombro. — Eu acredito que te devo uma bebida.
— Longe de mim recusar uma oferta tão generosa. — Arjun sorriu
ironicamente quando alcançou a adaga caída, jogando-a profundamente no
beco. Então ele se levantou e limpou as mãos mais uma vez. —
Especialmente de um cavalheiro tão estimado.
Celine mordeu nada quando começaram a se afastar, lutando para manter a
compostura, os punhos cerrados. Esse garoto amaldiçoado a roubara muito
nesses momentos. As palavras de seus lábios, o hálito de sua língua. Agora
ele pensou em dispensá-la como uma criança?
— Você não é um cavalheiro, monsieur Saint Germain. — disse Celine em
voz alta.
Ele parou. Pivotado em um salto polido.
— É isso que você pensa, Celine?
Celine ficou mais alta, os nós dos dedos ficando brancos. — Sim. Eu
penso isso.
Bastien se inclinou para mais perto. Um lampejo de luz do fogo pegou sua
corrente de relógio de ouro. No leão rugindo gravado em seu anel de sinete.
— Eu não dou a mínima.
Pippa ofegou, as duas mãos cobrindo a boca, os olhos arregalados que os
pires de chá.
Então Bastien continuou seu caminho, Arjun rindo baixinho. Quase com
pena.
A palavra sacudiu Celine. Ela nunca ouviu isso em voz alta. A vida
protegida que ela vivera em Paris a havia poupado de ser invadida por esse
tipo de conversa. Seu pai costumava comentar que os ouvidos femininos
eram delicados demais para essas coisas.
Mas Celine não sentiu como se seus ouvidos delicados tivessem sido
agredidos pela única sílaba. Bastien pode ter proferido uma palavra suja,
mas ele falou com ela como faria com um homem. Como igual. O sangue
correu por seu corpo, adrenalina alimentando seu caminho. O horror se
instalou na base de sua garganta, um nó se apertando lentamente.
Ela conhecia esse sentimento. Reconheceu. Ela sentiu quando o agressor
parou no chão do ateliê, o vermelho escorrendo da ferida no crânio dele, a
mão dela apertando os candelabros.
Celine sentiu... algo poderoso. Uma parte de algo maior que ela.
E ainda assim ela não sentiu um remorso por qualquer coisa que tinha
feito.
Era aterrorizante conhecer uma criatura tão negra se contorcendo sob a
pele de Celine.
Esse não era o comportamento de uma jovem piedosa, nem eram as
emoções de uma garota que deveria – com todos os direitos – estar buscando
perdão. Salvação de um Deus que ela não conhecia nem compreendia.
Celine piscou para clarear seus pensamentos. Assim como Pippa puxou
sua mão.
— Você está bem? — disse Pippa, seu tom incrédulo. — Eu não posso —
ela tentou. — Quero dizer, você pode acreditar no que ele disse para você?.
Celine assentiu, não confiando em si mesma para falar.
Não podia ter certeza de que o destino continuava colocando Sébastien
Saint Germain em seu caminho. Talvez tenha sido um teste. A penitência de
Deus por seu pecado mais grave, que um garoto envolto em trevas a forçaria
a ver a luz. Faça dela um bom samaritano.
Mas um medo maior espreitava profundamente em Celine. Passou a
corrente de sangue na medula de seus ossos.
Não importa para onde ela foi, o perigo seguiu.
E isso a horrorizou. Assim como a emocionou.

[1] Leitão, tipo de carne.


[2] Fantasma
[3] Perdoem-me
[4] Meu senhor.
HIVER, 1872
RUA SAINT LOUIS
NOVA ORLEANS

V islumbro seu perfil no cintilar de uma placa de metal brilhante.


Seu medo se reflete em mim, seus olhos brilhando.
Eu olho para longe. Isso me lembra a jovem da semana passada. Não gosto
de ver ninguém com medo, embora saiba que é um mal necessário. Pois, se
não compreendermos o medo, como poderemos zelar pela segurança?
Volto minha atenção para o prédio de três andares à minha frente, com suas
varandas enfeitadas de flores de hera e brotos crescendo. Gravado na placa
de latão no centro – em uma letra odiosamente elaborada – está o nome
Jacques’. Acima do nome há um símbolo que frequentemente vejo nos meus
sonhos. Um símbolo infame entre os círculos dos Caídos e da Irmandade.
Um restaurante abrange todo o primeiro andar da estrutura, com suas
lanternas a gás em chamas. Uma fila está dobrando a esquina. Alguém – sem
dúvida Kassamir – abriu as portas duplas, revelando uma multidão
sorridente e os sons de porcelana fina e cristal tilintante.
Funcionários agitam suas luvas brancas e jaquetas engomadas.
Por um momento, meus sentidos são inundados por essa sinfonia de
esplendor e decadência. É uma música que conheço bem, tanto nesta vida
como na minha anterior. Um sorriso se curva nos meus lábios.
É divertido que ela me levou até aqui, de todos os lugares.
Se esses pobres tolos soubessem o que se esconde acima deles, no fundo
de uma corte de leões. Se ao menos minha vítima soubesse. Então todos
entenderiam o que significa sentir o verdadeiro medo.
Quando olho para ela novamente, vejo um olhar de hesitação em seu rosto,
como se ela estivesse incerta sobre continuar. Os eventos recentes a
enervaram e isso me entristece. Eu esperava que ela fosse mais forte. Ela
começou a noite com esse objetivo, cada um de seus passos firmes.
Resoluta.
Talvez eu não devesse ser tão crítico. Esta não é uma cidade para todos.
É uma cobra nos juncos, bonita e mortal, mesmo enquanto dorme.
Além disso, sinto-me parcialmente culpado pelo medo dela. Eu poderia ter
vindo em seu auxílio. Levaria um momento para passar pelo beco e silenciar
essa insignificante ameaça.
Mas que propósito isso teria servido, além do risco de revelar minha
verdadeira natureza antes que chegasse a hora? Que eu saiba, minha vítima
ainda não estava em perigo real.
Pelo menos não do sobrinho de Le Comte de Saint Germain.
A amargura reveste minha língua.
Essa é uma promessa que não tenho forças para quebrar. Ainda não.
Não estamos prontos para a guerra que trará.
Meus pensamentos escurecem de uma maneira que eu não gosto, então
volto às minhas reflexões anteriores. É possível que Arjun Desai – o garoto
com o toque imobilizador – possa representar uma ameaça um dia, mas é
muito cedo para dizer. Seu conjunto de habilidades continua a me intrigar,
como aconteceu no dia em que eu o conheci. Sem dúvida, ele é um membro
digno de La Cour des Lions.
Outro sorriso se espalha pelo meu rosto. Me agrada que a sociedade de
mentalistas da nossa cidade – disfarçada como algo completamente diferente
– tenha conseguido recrutá-lo.
Deve contribuir para uma virada fascinante dos eventos.
Mas não posso permitir que essas coisas me distraiam mais do que já têm.
Não essa noite. Há muito em jogo para eu me perder nesses assuntos
incidentais.
Volto meu olhar para ela, a jovem que me levou para onde tudo começou,
sem saber.
Apropriadamente.
Ela faz uma pausa na entrada do Jacques’, repensando suas escolhas mais
uma vez.
Ah, mas é tarde demais, meu amor.
Não podemos mudar os erros do nosso passado. Eles vivem para que
possamos aprender, se tivermos a mesma sorte. Infelizmente, menina, sua
sorte partiu hoje à noite.
Eu sou a aranha. Montei armadilhas de seda. Eu assisto enquanto você
entra na minha teia.
Eu espero para atacar.
Mas não tenha medo. Eu prometo que nunca vou te esquecer.
A CORTE DOS LEÕES

C eline esperou Pippa se recompor do lado de fora do beco estreito.


Quando Celine percebeu que estava se comportando de maneira
estranha – imóvel, com os olhos sem piscar – começou a imitar os
movimentos de Pippa, endireitando a saia como se fosse tudo que precisava
ser resolvido.
Nunca deixou de surpreender Celine como as circunstâncias poderiam
mudar tão drasticamente na questão de um momento. Um segundo, todos os
nervos que terminavam em seu corpo estavam vivos, estalando com energia
invisível. No outro, tudo ficou silencioso e imóvel, como se ela estivesse
submersa em uma piscina de águas profundas.
— Celine? — Duas linhas se juntaram entre as sobrancelhas de Pippa.
Celine concluiu que Pippa lhe fez uma pergunta. Fiel à forma, Celine não
estava ouvindo.
Desde que Bastien e Arjun as deixaram para trás no beco – a poucos
passos do homem “adormecido” que brandira uma adaga para elas menos de
dez minutos antes – Pippa mantinha um fluxo constante de conversas
nervosas.
O foco de Celine estava em outro lugar. Perdido no delicioso
desconhecido.
— Você ouviu uma palavra do que eu disse? — Perguntou Pippa. Ela
levantou as saias e se aproximou de Celine, a preocupação vazando por suas
feições. — Eu perguntei se você ainda queria se encontrar com Odette.
— Claro. — respondeu Celine sem pensar.
O desânimo tocou as bordas dos lábios de Pippa e desapareceu em um
instante. — Oh.
— Você não deseja encontrá-la?
— Não é isso. — Pippa balançou a cabeça. — Estou apenas... incerta se é
o curso de ação mais sábio. — Seus olhos azuis se voltaram para Celine. —
Esta noite não foi como eu esperava. Achei melhor parar de testar o nosso
destino.
É claro que Pippa se sentiu desconfortável. A maioria das pessoas se
sentiria nervosa após os eventos desta noite. Uma garota como Pippa
gostaria de estar em outro lugar. Não, isso não estava certo. Ela gostaria de
estar em casa, segura em sua cama, com um cobertor macio e uma xícara de
chá quente. Melhor ainda, com uma mãe ou um amante para oferecer um
toque suave.
Celine exalou lentamente, uma realização sombria se instalando em seus
pensamentos.
As moças apropriadas certamente não se sentiriam tão animadas com a
ideia de perigo.
Nem estariam procurando a próxima chance de sentir o coração bater forte
nos ouvidos e o rosto corar como se estivessem perto demais da chama de
uma vela.
Mais uma prova de que algo foi quebrado dentro de Celine.
Respirando profundamente pelo nariz, Celine pegou a mão da amiga, seu
toque gentil.
Reconfortante.
— Sinto muito, Pippa. — disse ela. — Fiquei distraída com tudo o que
aconteceu. Claro que você não quer se encontrar com Odette hoje à noite
depois de... bem, tudo. Eu entendo completamente. Voltaremos
imediatamente ao convento. — Ela teve o cuidado de não demonstrar seu
desapontamento, embora o sentisse profundamente.
Sua amiga havia arriscado o suficiente esta noite por sua conta.
Quando Celine se moveu para refazer os passos, Pippa ficou atrás dela.
Celine se virou no lugar.
— Pippa?
Pippa torceu os lábios para um lado.
— Você realmente queria ir, não é? Você estava feliz hoje à noite, mais do
que eu já vi antes. Mais livre.
Celine pensou em mentir. Mas ela estava cansada disso. Tão cansada.
Ela simplesmente assentiu.
Uma luz quente encheu o olhar de Pippa.
— Foi como dar uma olhada em quem você realmente é. — disse ela
suavemente. — Me fez sentir como se fôssemos realmente amigas.
— Nós somos realmente amigas.
Pippa balançou a cabeça, mas não foi rude.
— Ainda não. Mas espero que sejamos. Quero tanto ser sua amiga, Celine.
Celine engoliu em seco, algo agarrando seu coração.
— Também quero ser sua amiga, Pippa. Muitíssimo.
Pippa assentiu. Então ela pegou suas saias mais uma vez, determinação
brilhando em seu rosto.
— Não devemos deixar Odette esperando.

A menos de dois quarteirões de distância, Celine e Pippa avistaram uma


placa de metal posicionada acima das finas portas duplas de um
estabelecimento bem iluminado.
Jacques estava escrito em uma caligrafia chique. Gravado acima do nome,
havia um símbolo familiar: uma flor de lis na boca de um leão rugindo. Ao
longe, o píer pairava ameaçadoramente, a água ao seu redor brilhando como
um mar de diamantes negros, pronta para engolir seus suplicantes de uma só
vez.
— Oh, — disse Pippa, compreendendo. — É um restaurante.
Uma onda de surpresa semelhante passou por Celine. Parece estranho
Odette direcioná-las para um restaurante, especialmente com a finalidade da
prova de um vestido.
Com base na longa fila que serpenteava pela frente, ficou claro que o
proprietário do Jacques sabia como capturar a atenção de uma multidão,
especialmente para uma segunda-feira à noite. Mas por fora, a estrutura em
si parecia bastante comum. Tijolo vermelho e persianas lacadas a preto
encerrando três andares. Lâmpadas de gás brilhando entre janelas altas e
estreitas. Os pisos de madeira polida manchados com uma cor clara de
caramelo.
Cortinas de damasco cor de vinho profundo caindo em cascata pelas
paredes.
No entanto, para Celine, algo sobre isso parecia… estranho. Como uma
moldura pendurada torta. Como se o restaurante tivesse dominado
obedientemente todos os detalhes do mundano, com a intenção de usá-los
como uma máscara. Escondendo o que, Celine só podia adivinhar.
Cada vez que a porta se abria, os cristais pendurados no lustre ao lado da
entrada tocavam alegremente como se estivessem dando as boas-vindas aos
recém-chegados.
Então as notas remanescentes ficam melancólicas. Um choque de sons
discordantes, a leve mudança para a tecla menor.
Para Celine, soou como um aviso silencioso. Ainda assim, todos na sala
continuavam sorrindo, alheios à ameaça invisível. Seu olhar deslizou pelos
rostos contentes dos incontáveis clientes do Jacques’.
Como foi que eles também não puderam sentir?
Talvez Celine estivesse enganada. Talvez essas observações tenham se
formado a partir de um lugar de desejo. Talvez ela tenha procurado provas
de que não era a única forçada a usar uma máscara. E ao fazer isso, ela
falsamente encontrou um espírito semelhante... em um restaurante.
Que ridículo. Ela se repreendeu. Que tipo de idiota compartilhava um
entendimento silencioso com uma estrutura de tijolo e argamassa? Celine se
comprometeu a deixar de lado suas preocupações, como uma pedra em seu
caminho.
Pippa tocou o ombro de Celine para chamar sua atenção.
— Devemos procurar o cavalheiro que Odette mencionou hoje mais cedo?
— Mais ouir[1]. Lidere o caminho. — Celine lançou um sorriso
enganosamente descuidado por cima do ombro.
Assim que as duas meninas cruzaram a entrada do Jacques – Pippa
parando com uma pontada de ansiedade – a pedra figurativa que Celine
havia deixado de lado rolou de volta em seu caminho. Ela deve estar louca,
vendo e sentindo as coisas que não são possíveis.
Mas mesmo no mais febril dos seus sonhos, seria impossível ignorar esta
verdade: Jacques é tudo, menos comum.
Não era sobre o que Celine via. Era sobre o que ela sentia .
Uma sensação estranha percorreu sua pele, formigando através de seu
sangue, criando raízes em seu núcleo. Algo enganchado em sua espinha,
atraindo-a com uma promessa não dita. Algo... sobrenatural.
Sim. Foi isso. Era como se ela tivesse entrado em outro reino. Não é o
céu. Não é o inferno. Mas em algum lugar no meio. Um espaço liminar,
abrangendo luz e escuridão. O que quer que fosse, Celine se sentiu
confortável lá.
Um cotovelo atingiu o braço direito de Celine, arrancando-a de suas
observações. O garçom que passou por elas ofereceu um olhar de desculpas,
suas feições severas ao longo de sua testa sardenta. Nas duas mãos, ele
equilibrava bandejas carregadas de pratos de prata reluzente. Celine
acompanhou seu progresso através do lugar enquanto dirigia Pippa para mais
perto de uma parede de painéis de madeira próxima da entrada, fora do
caminho da passarela principal.
Pippa olhou para o espaço com determinação.
— Você o vê?
Cativada pela cena que se desenrolava diante delas, Celine não respondeu.
Do outro lado da área de jantar aberta do restaurante – perto de um
conjunto de escadas curvas que desapareciam na escuridão das sombras – o
garçom sardento chamou a atenção de uma figura imponente parada ao lado
da porta giratória da cozinha. As lapelas de seda de seu casaco imaculado
brilhavam à luz das velas. Mesmo à distância, Celine o reconheceu como o
governante deste domínio culinário. Ele mantinha uma postura reta, com a
pele escura e o anel de ouro na orelha direita, contrastando com a camisa
branca como neve.
Então ele olhou para o garçom, voltando seus olhos negros rapidamente
para uma mesa mais próxima de Pippa e Celine. Seu olhar estava aguçado.
Reprovando.
Com um rubor se espalhando por suas bochechas, o jovem garçom
conduziu uma reviravolta astuciosa, girando de volta na direção da mesa.
Ele começou a distribuir pratos diante de seus quatro clientes, um dos quais
era um cavalheiro pálido de origem asiática, ostentando um bigode fino,
perfeitamente arrumado e uma camisa com uma gola simples. Ao lado dele,
estava um sujeito corpulento e branco, com manchas vermelhas no nariz e um
charuto em chamas. Do outro lado da mesa estava um homem com a pele da
cor de mogno, vestindo um colete espetacular de ouro e azul royal. Ao lado
dele, a versão amuada, mais jovem e menor de si mesmo.
Pareceu a Celine altamente incomum. Ela nunca tinha visto homens de
diferentes cores de pele ocupando o mesmo espaço em um restaurante
requintado.
A alta sociedade parisiense não era uma sociedade de companhia mista. A
Paris que Celine conhecia era cuidadosamente classificada, assim como seus
muitos arrondissements.
Quando criança, disseram a Celine para nunca atravessar as ruas estreitas
de Saint-Denis, assim que seus moradores emigrados demonstraram que eles
– e sua espécie – não pertenciam perto das deslumbrantes avenidas da Place
Vendôme. Ela se perguntou se a cena que ocorria hoje à noite no Jacques era
normal em uma cidade portuária como Nova Orleans, onde pessoas de todo
o mundo se reuniam.
Ela apostaria que não era. Certamente tinha sido a verdade para sua
própria família.
Desde cedo, Celine foi ensinada a agradecer a ausência da mãe da mesa de
jantar da família.
Tristeza brilhou em torno de seu coração. Ela a controlou. Presa
profundamente dentro de seu peito. Não adiantava insistir em assuntos que
ela não podia mudar. Firme em sua determinação, Celine olhou para Pippa
para ver se elas deveriam prosseguir.
Parecia que Pippa também havia sido varrida pela magia sobrenatural
daquele lugar. Ela assistiu extasiada enquanto o garçom de sardas terminava
de distribuir os pratos cobertos.
Então ele estalou os dedos de uma maneira dramática, e todas as cúpulas
de prata foram removidas em conjunto. O vapor perfumado soprou pelo ar,
flutuando em direção a Celine e Pippa como se fosse carregado por um vento
encantado. Pippa parou, seus olhos fechados.
— O que... é essa delícia? — ela perguntou a Celine.
Celine se inclinou para mais perto da mesa, espiando pela agitação do
restaurante movimentado.
A comida cheirava familiar – os mesmos aromas de manteiga e vinho, o
mesmo perfume de manjerona, tomilho e alecrim – que Celine cresceu
desfrutando em Paris. Mas algo mais se filtrou pelo ar. Especiarias que ela
não conseguiu identificar facilmente.
Eles a atormentaram. A atormentou. A intoxicou.
Os pratos recém-descobertos de porcelana de Limoges mantinham filetes
de linguado em cima de camas de arroz perfumado, terminando com um
molho semelhante a um beurre blanc, mas com um toque de tomate assado e
uma pitada de ervas doces. À direita do peixe escamoso havia uma terrina
de pommes de terre soufflées. As deliciosas batatas trufadas foram servidas
ao lado de uma intrincada pirâmide de aspargos assados, envoltos em molho
de trufas e depois guarnecidos com lascas finas de carne curada.
Na mesa mais próxima, uma mulher elegante, pingando pérolas, bebia de
seu copo de vinho tinto antes de morder um gougères almofadados, o aroma
salgado do queijo Gruyère misturando-se à rica fragrância da Borgonha.
Naquele momento, Celine não queria nada além de calçar os sapatos caros
dessa mulher, apenas por um instante. Afundar os dentes em algo decadente,
indiferente a tudo ao seu redor.
— Oh! — disse Pippa, assustada por uma repentina língua de fogo pulando
de outra mesa. Um maître d'hôtel de luvas brancas agitava o conteúdo de uma
panela pequena, com uma chama azul dançando em volta das bordas. A
mistura parecia ser um tipo estranho de fruta cremosa, coberta de montes de
açúcar mascavo, depois mergulhada em bourbon antes de ser incendiada. Um
delicioso perfume de caramelo quente ondulava no ar, incontáveis pares de
olhos flutuando em sua direção.
Isso foi além do injusto.
A alma de Celine gritou em protesto, suas lembranças do ensopado sem
sabor que ela consumira antes provocavam sua língua. O que aconteceria
com Celine se ela pedisse uma refeição agora e não pudesse pagar? Ela
seria forçada a lavar a louça a noite toda? Talvez colocar uma paliçada e
apodrecer com vegetais podres, como na época de Shakespeare?
Valeria a pena?
Resolução percorrida por ela. Em algum momento, Celine participaria de
uma refeição neste restaurante. Ela pode até atrair Pippa para se juntar a ela.
Talvez.
O estômago de Pippa roncou e um sorriso brincou nas bordas dos lábios
de Celine.
Nesse momento, a figura imponente posicionada perto da porta giratória da
cozinha voltou sua atenção para eles. Ele cortou os olhos, avaliando-os de
longe. Esse homem tinha que ser o indivíduo com a voz pecaminosa e o anel
na orelha direita que Odette mencionara em sua primeira reunião hoje cedo.
Antes que Celine pudesse se mover em sua direção, o homem mudou de
posição, caminhando em direção à frente do restaurante, onde Celine e Pippa
estavam. Ele se moveu com propósito, embora sua atenção permanecesse
afiada, procurando sinais de erros entre sua equipe, prontos para repreender
a qualquer momento. Enquanto andava pelo espaço, ele apontou para trás e
outro cavalheiro de libré entrou na posição ao lado da porta da cozinha.
Celine admirou sua postura. O respeito que ele ordenou. Menos de dez
anos atrás, homens com a cor de sua pele eram mantidos como escravos na
parte sul da América, obrigados a trabalhar em campos intermináveis sob um
sol escaldante. Celine sabia que ainda não eram vistos como iguais, muito
menos concedia posições de prestígio em restaurantes elegantes, dirigindo
homens brancos em jaquetas perfeitamente apertadas.
A visão desse homem de cor, dirigindo um estabelecimento como Celine,
de Jacques, encorajou uma maneira que ela não conseguia entender.
Ele parou diante delas, parando diretamente na frente de Celine. Os olhos
dela se arregalaram quando ele se elevou sobre ela, seu olhar um pouco
acolhedor. — Posso ajudá-la, mademoiselle? — Ele perguntou em um tom
levemente acentuado. — Se você deseja reservar uma mesa hoje à noite, é
melhor você entrar na fila em frente. — Sua voz a lembrou de uma
tempestade que se aproximava. Um estrondo distante, um turbilhão de
nuvens.
Embora Celine devesse ter se sentido incomodada com seu frio
desinteressante, ela não se sentiu afetada. Calma.
— Olá. — ela começou, seu tom inabalável. — Meu nome é Celine.
Ele lançou-lhe um olhar arqueado. E não disse mais nada.
— Disseram-me para desconsiderar a fila, — continuou Celine. — E pedir
para ser levada para Odette.
O olhar dele se suavizou.
— Minhas desculpas. — Uma luz afeiçoada entrou em seus olhos. — Você
deveria ter começado com isso, mademoiselle. — Ele estalou os dedos no
ar, e ao redor deles os corpos se moveram em concerto, abrindo caminho.
— Je m'appelle[2] Kassamir. — Ele se apresentou enquanto ajustava as
abotoaduras de ouro, suas superfícies brilhantes gravadas com o mesmo
símbolo de uma flor de lis na boca de um leão. — Eu sou responsável por
este restaurante. Como amigas de mademoiselle Valmont, você é muito bem-
vindo na casa de Jacques, e saiba que todos os meus funcionários estão aqui
para atender às suas necessidades. — Ele começou a conduzi-los em direção
à escada curva perto dos fundos.
— É um prazer, Kassamir. — respondeu Celine com um sorriso.
— É um prazer conhecê-lo, senhor... Kassamir. — ecoou Pippa, sua voz
parecendo o chiado de um rato.
Um sorriso apareceu no rosto de Kassamir.
— Por favor, me chame simplesmente de Kassamir, mademoiselle. Meu
sobrenome tem pouca importância, pois não é o que eu gostaria de usar.
Celine quis perguntar o que Kassamir quis dizer com isso, mas se deteve
após um olhar inadvertido por cima do ombro. A visão de Pippa marchando
corajosamente para a frente, apesar de suas preocupações anteriores, enviou
uma onda de culpa pela pele de Celine.
Mais uma vez, ela colocou Pippa em uma situação desconfortável. E uma
amiga na verdade verificaria seu companheiro com mais frequência.
O trio subiu a escada em curva, a ansiedade percorrendo Celine,
começando pelos dedos dos pés, subindo pela espinha. Ela quase tropeçou
quando os degraus se estreitaram quanto mais se aproximavam do topo.
A antecipação cravou em seu coração quando o medo atingiu sua garganta.
Foi uma sensação estranha, essa mistura de emoções. Durante o tempo que
Celine se lembrava, ela apreciava essa emoção em particular. Os meninos
que moravam na rua a chamavam de “une petite sotte" [3] quando ela se
equilibrou ao longo da borda da varanda com um único pé.
— Seu idiota. — gritaram lá de baixo, seguros e presunçosos em sua
superioridade. — Veux-tu mourir [4], Marceline Rousseau?
Eles não poderiam estar mais errados. Celine não queria morrer naquele
momento, assim como não queria morrer agora. De fato, foi o oposto
completo. Ela simplesmente queria se divertir com a emoção que sempre
acompanhava o perigo.
Essa chance de se sentir verdadeiramente viva.
Mas aqueles tiranos em seus bonés de lã gastos não estavam
completamente errados quando a chamaram de tola. Mesmo assim, ela sabia
que era o ponto máximo da tolice enfrentar o perigo tão abertamente.
Almejá-lo como uma fatia de bolo de chocolate quente.
Se a Madre Superiora estivesse presente agora, Celine sabia que iria
afastá-las deste lugar com toda a pressa. Sinais de perigo espreitavam por
toda parte, mesmo na bobina sinistra da grade de ferro forjado.
O segundo andar apareceu, e Celine vislumbrou uma multidão de lâmpadas
de gás desligadas, tornando a sala além em tons suaves. O ar ao redor deles
se condensou. Ficou mais frio, como se tivessem passado do dia para a noite
no espaço de uma única escada.
Eles se aproximaram do topo, Kassamir continuando a se mover em um
ritmo lento. Aqui, os corrimões eram feitos de latão reluzente, facetados por
todos os lados com uma flor de lis na boca de um leão que ruge.
Como se o símbolo tivesse seguido intencionalmente Celine o dia inteiro.
Ou talvez a levou a este lugar, sem palavras.
Algo começou a enrolar em seu estômago. Uma força invisível. Ele se
espalhou por seus membros como um estremecimento lento. Ao lado dela,
Pippa agarrou o braço de Celine, sem dúvida experimentando a mesma
sensação perturbadora. Aquela sensação de pairar acima do limiar entre
claro e escuro.
Kassamir virou-se para eles, seu olhar afiado aparecendo como se pudesse
perfurar sua alma.
— Bem-vinda à La Cour des Lions.
Bem-vinda à Corte dos Leões.
[1] Mas sim.
[2] Meu nome é;
[3] Um pouco tola
[4] Você quer morrer?
TOUSSAINT

A primeira coisa que Celine notou foi o som.


Ou melhor, a ausência disso.
No momento em que seus pés afundaram no tapete felpudo no topo da
escada, o barulho de baixo caiu para um silêncio. Como se estivesse sendo
abafado, como se um cobertor pesado tivesse sido puxado por todo o
segundo andar, afastando a possibilidade de bisbilhoteiros.
Mas isso era impossível. Como alguém poderia gerenciar uma coisa
dessas?
Celine deixou sua visão se ajustar lentamente à escuridão.
Uma luz fraca brilhava em torno de uma grande câmara retangular repleta
de mesas de madeira reluzentes. Ao redor das mesas, havia figuras sombrias
adornadas com sedas e pedras brilhantes, copos de cristal cortados
brilhando com cada um de seus movimentos.
Uma brisa leve temperou o ar, afastando o calor crescente de baixo. Os
pisos e as paredes com painéis estavam manchados de mogno escuro,
polidos para se parecer com a superfície de um espelho preto. Cortinas de
seda de um caro tom índigo, enfeitadas com borlas douradas, emolduravam
todas as janelas em arco. Uma espreguiçadeira comprida estava vazia no
centro da câmara, como um trono destinado a uma imperatriz ou uma deusa
da antiguidade.
O mesmo senso de uma realidade turva – de uma visão enevoada ao longo
de suas bordas – envolveu o espaço. Pontuando o barulho, houve o barulho
ocasional de dados de marfim em feltro, a agitação de cartões brilhantes
sendo embaralhados e ordenados, e ocasionalmente aplausos.
— É... um inferno. — disse Pippa, seu tom uma mistura de desconforto e
antecipação.
Celine inclinou a cabeça.
Realmente era. E não era.
Ela não podia ignorar a sensação de que estava olhando uma linda
máscara. Algum tipo de ilusão astuta. Que, se ela sacudisse a cabeça, sua
visão seria clara, deixando para trás nada além da verdade. Esse lugar era o
- tribunal - que as duas jovens mencionaram na Jackson Square naquela
tarde? Seus clientes com jóias poderiam ser responsáveis por um crime tão
sórdido?
À primeira vista, não parecia.
Mas as primeiras impressões eram conhecidas por enganar.
Sempre que Celine ouvia falar de infernos, eram retratados como covas de
iniqüidade.
Homens poderosos jogavam bebida, desperdiçando fortunas com o
lançamento de um dado.
Saias de luz em pó servindo seus produtos perfumados. Pele nua e licor
derramado, veludo exuberante e marfim fresco. Riqueza no auge de sua
devassidão.
A cena anterior a Celine não podia parecer mais civilizada. Em todos os
lugares que ela olhava, mulheres deslumbrantes e homens elegantes de todas
as cores de pele se reuniam como aparentemente iguais.
Como se isso não fosse uma visão incomum.
Nesse momento, um grito de triunfo surgiu na escuridão à direita deles,
logo além de um jogo de faro. O som chamou Celine em direção a uma mesa
oval de madeira brilhante, as vistas ao seu redor desenrolando-se como
pedaços de tecido, cativando-a com a possibilidade.
Roleta. Ela já ouvira falar desse jogo antes, mas nunca teve ocasião de
jogá-lo.
— Celine? — Atrás dela, Pippa segurou sua mão suplicante.
Celine parou e olhou a amiga por cima do ombro.
— O que você está fazendo? — Pippa perguntou em voz baixa.
A pergunta encorajou Celine. Concedeu-lhe um senso de propósito. Talvez
fosse o brilho dourado das lâmpadas de gás. Ou o aroma inebriante de
especiarias misturadas com charutos fumegantes. Fosse o que fosse, ela não
queria se esconder entre as sombras oscilantes.
Ela queria voar.
— Estou jogando roleta. — respondeu Celine, sua voz cheia de convicção.
Choque flutuou pelas feições de Pippa.
— O que?
Celine estava cansada de não fazer nada além de assistir. Cansado de usar
sua própria máscara e de ser um mero observador da vida.
— Você queria saber quem eu realmente sou. — Ela mordeu o lábio
inferior. — Sou uma garota que prefere experimentar a vida a vê-la passar
da minha janela.
Pippa exalou lentamente. Então assentiu enquanto soltava a mão de Celine.
Como uma mariposa em uma chama bruxuleante, Celine deslizou em
direção à luz âmbar em torno da mesa de roleta. Ela pairou ao longo das
bordas, sua pele formigando de consciência.
Um crupiê varreu uma pilha de chips de tartaruga, apresentando-os ao
vencedor recente.
Ele esperou que os jogadores fizessem suas novas apostas, depois segurou
uma pequena bola de marfim no alto antes de girar uma roda de números em
uma direção e largar a bola na outra. O tic, tic, tic da roda da roleta ficou
mais alto e mais rápido, até que cada som se misturou ao seguinte.
— Dezesseis vermelho! — Gritou o crupiê quando a bola de marfim
pousou em um quadrado vermelho chamado 16.
Do outro lado da mesa, um trio de companheiros – duas mulheres de pele
escura e um homem com uma tez polida – resmungou em francês um para o
outro antes de tentarem fazer outra aposta. Os anéis que douravam os dedos
das duas mulheres eram imensos pedaços irregulares de pedra bruta
incrustados em ouro puro.
Celine procurou um conjunto de dados descartados. Uma maneira de entrar
no jogo, apesar de sua falta de fortuna. Seu olhar pegou os rostos do trio, e
uma estranha percepção tomou conta de seu estômago. Todos eles eram
extraordinariamente atraentes. A pele deles parecia brilhar sob o calor da
lanterna elétrica nova e pendurada no alto, os centros dos olhos cheios de luz
lambente. Quando eles se moveram, o ar ao redor deles mudou como fumaça.
Celine piscou como se algo tivesse flutuado em sua visão, seus cílios
tremulando para clarear a visão, seus lábios se abrindo um pouco.
— Adorável. — uma voz masculina murmurou de sua esquerda, sua fala
grossa chamando sua atenção.
— Perdão? — Celine respondeu, virando-se.
— Você pode ser meu amuleto da boa sorte, minha beleza. — O cotovelo
do jovem roçou seu braço enquanto ele se inclinava para mais perto, suas
feições barbeadas astutas. Ele também era inexplicavelmente bonito, seu
rosto era como o de um anjo, sua expressão decididamente em desacordo
com os cachos querubins em cima de sua testa. Mais uma vez, Celine ficou
impressionada com a nitidez de seus olhos. Como o azul tocando seus
centros escuros parecia extraordinariamente intenso.
Desumano.
O pensamento assustou Celine. Ela o baniu com um movimento de cabeça,
restaurando os sentidos, para que ela não parecesse um simplório.
— Prefiro ser o meu amuleto de boa sorte, senhor. — Endireitando os
ombros, ela encontrou seu olhar apreciativo.
Ele rolou um conjunto de dados entre os dedos, seus cachos angelicais
caindo sobre a testa.
— Eu apostaria que você nunca jogou roleta.
— Você estaria apostando incorretamente, então. — mentiu Celine. Ela
estendeu a mão para os dados. — Eu posso ser o melhor jogador de roleta
que você já conheceu.
Ele riu.
— Eu posso provar seu engano, minha adorável mentirosa — ele
sussurrou.
— O quê? — Celine deixou cair a mão, dando um passo para trás,
desorientada por suas palavras.
— É doce na minha língua.
Mais uma vez, Celine deu um pequeno passo para trás, quase colidindo
com Pippa.
— Boone. — uma voz feminina alertou das sombras. — Não seja um
animal. Você já foi avisado.
O jovem colocou as duas mãos no ar em um gesto de rendição e se afastou
no instante seguinte, mas não antes de oferecer a Celine uma piscadela.
— Fantastique[1]! — A mesma voz feminina exclamou atrás de Pippa e
Celine, como se nada de importante tivesse ocorrido. — Eu não pensei que
você realmente viria. — A silhueta esbelta à espreita em uma queda de
sombra mudou para a luz.
A boca de Celine se abriu.
— É claro que eu esperava que você viesse. — continuou Odette, os
dentes brilhando em um sorriso enquanto levantava o copo de vinho tinto em
saudação. — Mas eu não fiz uma aposta no resultado.
Se a garota não tivesse falado primeiro, Celine nunca a teria reconhecido.
Foram-se as roupas delicadas e recatadas do início do dia. O único
embelezamento familiar era o camafeu de marfim com sua auréola de rubis
vermelhos.
Odette estava vestido como um cavalheiro. Suas calças eram feitas de pele
de camurça macia, e sua camisa – com mangas de balão – era branca,
coberta por um elaborado colete de jacquard verde pálido. A corrente de um
grande relógio de bolso de ouro pendia na frente do colete de Odette. Mas a
pièce de résistance devia ser sua gravata de seda intricadamente amarrada,
presa no centro pela camafeu de marfim. Os cabelos castanhos tinham sido
arrancados do rosto e reunidos na nuca com um simples nó.
Um sorriso lento apareceu no rosto de Odette com o silêncio atordoado.
Ela rodou o vinho conscientemente.
— Porque você está vestindo... Calças! — Pippa comentou um momento
depois, com os olhos enormes.
— Acho incrivelmente libertador. — Odette avançou, descansando uma
das mãos enluvadas no bolso. — Alguns dias eu adoro usar espartilhos,
alvoroços e camadas de seda. Mas às vezes vale a pena usar calças.
Embora Celine ainda estivesse sem palavras pela visão, uma sensação de
prazer a percorreu. O sorriso persistente nas bordas de seus lábios ameaçou
florescer.
Como... Maravilhoso.
Celine pigarreou.
— É claro que viemos. — ela começou como se nada estivesse errado. —
Eu disse que sim, e não gosto de voltar atrás em minha palavra. — Celine
mudou ao lado de Odette, estudando a roupa da adorável garota com um
olhar experiente. — Perdoe-me, mas há uma mancha ao lado de sua gravata.
— Ela assentiu com a cabeça para a camisa de Odette, onde a menor gota de
vinho tinto – ou talvez rouge – havia se infiltrado no pano intocado.
Odette olhou para baixo, puxando a gola com um dedo enluvado.
— Merde[2]. — ela amaldiçoou baixinho. — E eu pensei que tinha sido
tão cuidadosa
— Tanto o vinho tinto quanto o vermelho são fáceis de remover com um
pouco de vinho branco ou água tônica. — ofereceu Celine. — Caso
contrário, você parece impecável.
— Sério? — Odette torceu o nariz, sem dúvida satisfeita ao ouvir o elogio.
Celine assentiu.
— Um colete jacquard é uma excelente opção para alguém com sua
coloração, e a alfaiataria parece impecável, embora eu tivesse selecionado
uma costura francesa para terminar as bordas, em vez de um pesponto
padrão.
— As costuras francesas são melhores? — perguntou Odette enquanto
colocava o vinho em uma mesa próxima.
— Claro. — Celine não piscou. — Elas são francesas.
Odette riu.
— Você é simplesmente deliciosa, mon amie[3].
Celine quase sorriu ao lado de Odette, mas algo a deteve. Disse a ela para
manter distância, pelo menos por enquanto. No passado, confiar demais nos
outros não tinha feito nenhum favor a ela.
— Eu nunca vi um nó assim. — Ela acenou com a cabeça em direção à
gravata de Odette.
— É um nó de ônibus da parte anterior deste século. — Os olhos de Odette
brilhavam em ouro pálido. — Eu acho que os homens da era Regency tinham
o melhor senso de moda, não é?
Celine pensou um momento.
— Uma parte de mim está inclinada a concordar. — Ela fez uma pausa. —
Embora eu admita que nunca gostei da cartola. Os homens não precisam da
altura adicionada; eles dominam tudo o que é suficiente.
Odette cantarolou em concordância.
— Que tipo de chapéu você combinaria com esse conjunto? — Ela
perguntou. — Um boné de Eton? Um de jogador?
— Francamente, eu preferiria nenhum chapéu, mas sei que simplesmente
não está pronto. Se você estivesse fora durante o dia, eu recomendaria um
chapéu de palha com uma faixa grossa. O clima aqui torna-se isto.
— Então, um chapéu Panamá? — Odette bateu um dedo indicador no
queixo.
Celine franziu a testa.
— Não. Algo... diferente.
Algo que não a lembrasse de Sébastien Saint Germain.
Celine engoliu em seco, se perguntando por que seus pensamentos haviam
ouvido aquele estilo em particular naquele instante em particular. Isso nunca
lhe pareceu memorável antes. Quando Celine olhou para Pippa, ela notou sua
amiga a estudando, a cabeça loira de Pippa inclinada para o lado. Como se
tivesse ouvido a mentira enterrada no fundo das reflexões de Celine.
Desconcertada com a noção, Celine decidiu mudar de rumo.
— Existe um lugar onde poderíamos começar a fazer suas medições? —
Ela perguntou a Odette.
Odette descansou os braços akimbo e inclinou a cabeça para um lado.
— Estou bem em fazer medições aqui, desde que você não se importe. —
Era quase como se ela tivesse emitido um desafio.
Tal coisa simplesmente não foi feita. Mas, novamente, Odette parecia
gostar da convenção contrária. Por que essa ocasião deve ser diferente?
Apresentando o retrato de apatia, Celine enfiou a mão no bolso da anágua e
extraiu um pedaço de fita métrica.
Ela se recusou a ser superada ou intimidada.
Mesmo se Odette fez calças de desgaste.
Enquanto Celine trabalhava para medir o torso de Odette, ela espiou
através de uma despedida na multidão, vislumbrando uma partida de xadrez
em andamento. Nenhum dos jogadores se moveu por várias respirações, com
os olhos fixos no quadro em preto e branco.
Então o rei branco caiu sem nunca ser tocado. No instante seguinte, todo o
jogo de xadrez se reorganizou por conta própria – as peças mexendo na
superfície quadriculada em um turbilhão – quando o vencedor estendeu a
mão para apertar a mão de seu oponente, um sorriso curvando seu rosto.
— O quê? — Pippa gaguejou. — O que aconteceu?
Celine olhou, sua expressão de descrença.
— Mais importante, como?
— Você não precisa parecer tão surpresa. — disse Odette com um sorriso.
— Eles são simplesmente ilusões realizadas por aqueles com a habilidade.
Pippa olhou para Odette, uma sobrancelha arqueada em questão. — Você
quer dizer... Magia?
— De uma espécie. — Odette assentiu. — Este é um lugar em que os
estudantes do ocultismo... — Ela procurou a palavra, as mãos girando no ar
— se reúnem.
— Como um inferno de jogo para mágicos? — Dúvida cruzou o rosto de
Celine quando ela voltou a medir os braços e ombros de Odette.
— Eu não nos chamaria de mágicos. — respondeu Odette. — Preferimos
ser chamados de ilusionistas ou mentalistas.
Pippa assentiu.
— Vi uma performance de um mentalista uma vez, nos arredores de
Londres. Ele transformou água em tinta e transformou um buquê de lírios em
um bando de pombas. — Ela fez uma pausa. — Seus membros também fazem
performances assim?
— Alguns de nós sim. — Odette levantou um ombro, provocando uma
repreensão sem palavras de Celine. — Mas a maioria de nós simplesmente
escolhe se encontrar aqui em segurança para aprimorar nosso ofício. — Ela
fez uma pausa. — É uma bênção que recebemos esse espaço. Houve um
tempo em que as coisas não eram bem assim... — Uma sombra escureceu o
semblante de Odette quando sua voz se desvaneceu no nada. Então ela sorriu
brilhantemente.
Celine respirou com cuidado enquanto trabalhava, suas dúvidas
aumentando. Algo sobre a explicação da garota a incomodou. Parecia
familiar. O tipo de explicação que Celine costumava dar ultimamente – um
esqueleto da verdade.
— Que tipo de mentalista você é? — Ela perguntou, seu tom indiferente.
— Alguém que adivinha o futuro. — disse Odette com naturalidade. — Os
antigos chamavam de observação de estrelas, mas os místicos do bairro se
referem a nós como adivinhos.
Os lábios do botão de rosa de Pippa se abriram. — Então você já sabe
tudo o que vai acontecer? Tudo o que vou fazer ou dizer? Ela olhou em volta
com óbvio desconforto.
— Até o que eu poderia estar pensando ou sentindo?
Odette balançou a cabeça.
— Eu sei o que pode acontecer, dependendo das escolhas que você faz.
— Apenas... — Pippa engoliu em seco — Olhando para mim?
— Não. O contato físico é necessário para que eu divine as coisas com
alguma clareza.
Durante essa troca, Celine ficou em silêncio por medo de falar fora de
hora. Ela fez uma pausa para tomar nota das medidas finais, mas a descrença
explodiu em suas veias quando lembrou como Boone alegou provar o sabor
de suas mentiras. Tais coisas não são possíveis, sua mente gritou, exigindo
atenção. Seu coração, no entanto, sabia melhor.
Celine não podia negar que esteve na presença de algo de outro mundo
hoje à noite, aqui na casa de Jacques. Além disso, ela se lembrou de seu
primeiro encontro com Odette esta tarde. Como o olhar de Odette se alargou
infinitamente quando Celine pegou a mão dela.
O adivinho tinha visto alguma coisa, mesmo nas breves interações.
Cativada pela perspectiva de tal conhecimento – de tanto poder – Celine
descartou a fita métrica, o lápis caindo dos lábios. Ela sabia que era um
risco, mas ela simplesmente precisava saber se Odette havia descoberto
algum de seus segredos.
— O que você viu?
Pippa virou-se para ela, confusa com a pergunta.
Odette encontrou o olhar de Celine, sua expressão sabendo.
— O que você quer dizer? — Sua voz parecia enganosamente inocente.
— Esta tarde. — continuou Celine sem piscar os olhos. — quando você
pegou minha mão, o que viu?
O sorriso de Odette ficou feroz.
— Eu só peguei flashes de possibilidade. A renda obstruiu minha visão.
Ela levantou uma mão enluvada. — Irritante, mas necessário. É fácil perder
de vista o que é real quando você está perdido nas estrelas.
Celine ficou mais alta. Então estendeu a mão, seu olhar firme, determinado
a saber se Odette possuía ou não alguma informação prejudicial.
— Por favor, me diga o que vê. Eu gostaria de saber.
Como tinha feito hoje, Odette inclinou a cabeça em contemplação.
— Você tem certeza, mon amie? Saber o que pode acontecer não é o
mesmo que impedir que isso aconteça.
Celine assentiu.
— Tenho certeza.
Odette removeu a luva de pelica na mão direita. Sem hesitar, ela colocou
os dedos frios na palma de Celine e fechou os olhos. O sorriso dela
suavizou-se.
— La dompteuse des bêtes. — ela murmurou depois de um momento. Seus
olhos se abriram, uma risada tingindo seu tom. — Je le savais! [4] — Ela se
congratulou.
— O domador de animais? — Celine traduziu, sua expressão de
perplexidade. — Eu não entendo.
Odette não respondeu. Seus lábios começaram a franzir como se ela
tivesse consumido algo azedo. Ela engoliu com cuidado, seus olhos se
fechando mais uma vez. Tudo o que ela viu agora causou sua inconfundível
consternação.
Pippa mordeu o lábio inferior. Inquietação escorreu pela espinha de Celine
como uma gota de suor pingando lentamente. Ela agarrou a mão de Odette
com força, notando o quanto sua pele estava mais quente a cada segundo que
passava. — O quê? — Ela sussurrou. — O que é isso?
De repente Odette se afastou, arrancando a palma da mão de Celine. Seus
olhos castanhos cintilaram abertos, seus centros escuros grandes, cintilantes,
fora de foco. — Eu não pude... — Ela parou, momentaneamente
desorientada. Então ela se endireitou como um soldado e lançou um sorriso
deslumbrante para Celine. — Sinto muito, mon amie, mas as porções do seu
futuro eram muito escuras para eu adivinhar.
Celine não acreditou nela. — O que isso significa?
Odette encolheu os ombros. — Isso significa que o curso de sua vida ainda
não foi traçado. — Sua risada parecia bolhas de champanhe, leves, frívolas,
cheias de ar. — Mas não se preocupe. Podemos tentar novamente em breve,
prometo.
Celine engoliu sua resposta. A marca de magia de Odette não era tão
impressionante ou tão útil quanto ela esperava que fosse. Também era
possível que a garota estivesse escondendo deliberadamente o que tinha
visto. Nenhuma das opções ficou bem com Celine, mas seria indelicado
aprofundar o assunto em público.
Como se nada tivesse acontecido, Odette voltou sua atenção para Pippa, a
mão sem luva estendida diante dela. — Você gostaria de tentar?
Pippa deu um passo atrás. — Por favor, não se ofenda, mas prefiro que
meu futuro permaneça uma surpresa.
Outra rodada de risada arejada explodiu nos lábios de Odette. — Garota
esperta!
— Mas, — disse Pippa, com as feições confusas. — estou curiosa sobre
como funciona. É uma habilidade com a qual você nasceu, ou uma que você
deve cultivar?
Odette inclinou a cabeça de um lado para o outro, sem palavras
equilibrando seus pensamentos como pesos em uma balança. Antes de
responder, vestiu a luva mais uma vez.
— Muitas das mulheres da minha família foram presenteadas com a
segunda visão. Este lugar me deu a chance de cultivar esse presente sem
julgamento ou expectativa. Para aqueles como eu, é o único porto seguro que
já tivemos. — Seu sorriso ficou triste antes que ela brilhasse no instante
seguinte. — Na verdade, este é um lugar diferente de qualquer outro.
— Kassamir chamou de La Cour des Lions. — disse Celine.
— O... Coração de leão? — Pippa tentou traduzir.
— A Corte dos Leões. — Celine corrigiu com uma voz gentil.
O olhar de Pippa se alargou em compreensão, sem dúvida, chegando à
mesma conclusão que Celine havia chegado há pouco tempo. Que, mais uma
vez, Celine foi responsável por arrastar sua amiga mais fundo através de um
campo de diamantes afiados.
Talvez fosse simplesmente o seu destino ser um portento de destruição.
Odette revirou os olhos.
— Isso não é de Kassamir. Isso é de Bastien. Honestamente, aquele garoto
poderia vender uma bola de neve a um pinguim. — Ela riu. — Você nunca
suspeitaria o quão dramático ele realmente é. — Seus traços ficaram tristes.
— Ah, mas se ele me ouvisse dizer isso, ele me encararia com aqueles olhos
punhais dele até que eu pedir desculpas.
Realmente, os homens são bebês.
Distraída por suas preocupações, Celine levou um momento para registrar
as palavras de Odette. O sangue dela ficou frio.
— Bastien? Você está se referindo a Sébastien Saint Germain?
Os olhos de Odette se arregalaram.
— Sim, é ele. Un vrai démon, n'est ce-pas? — Ela fungou. — Pelo menos
ele é uma visão bem-vinda para os olhos. Você já viu um diabo mais bonito?
— Não. — admitiu Celine. — Infelizmente, ele também não.
— Parfait! Simplicar parfait! [5] — Odette bateu palmas, sua risada
subindo no teto coberto.
Então ela voltou a tagarelar sem parar para respirar.
Em algum lugar alto acima das nuvens – ou nas profundezas de uma cova
ardente – uma criatura de outro mundo deve estar se divertindo muito às
custas de Celine. Os ombros dela caíram para a frente, os lábios afinando em
uma linha enquanto as palavras continuavam fluindo dos lábios de Odette
como vinho em uma bacanal.
— O tio de Bastien é dono de todo este edifício, além de várias
propriedades no Vieux Carré. — disse Odette. — Claro que você já ouviu
falar do Le Conde de Saint Germain. Rico como Creso e encantador como o
pecado. Bastien é seu único herdeiro, um fato que não passou despercebido
pelos débutantes de nossa cidade justa, apesar do... preocupação que muitos
na sociedade têm em relação à sua paternidade. — O riso dela tornou-se
malicioso, uma vibração astuta de som. — Eu apostaria que o dinheiro
resolve a maioria dos problemas, não? — Ela piscou. — Embora eu fale
apenas três idiomas, o conde domina nove e pode citar uma porção inteira de
escrituras por capricho. Ele também é um imenso fã do… — Ela parou
quando notou o olhar vidrado no rosto de Celine. — Ah, mas estou me
adiantando. —
Odette inclinou-se conspiratoriamente em direção a Pippa, que ficou de
lado, os dedos se entrelaçando e passando um pelo outro. — Não acredite
em todos os rumores desagradáveis. O tio de Bastien é uma jóia. Depois que
os pais de Bastien morreram, ele o aceitou quando menino e cuidou dele
como ele próprio.
Celine pigarreou, confusa com o ataque de informações. — Esta é a
primeira vez que ouvi falar do conde e fui apenas... apresentada ao sobrinho
esta noite.
Odette inclinou a cabeça. — O conde não está na cidade no momento, mas
suspeito que Bastien deve chegar a qualquer momento. — Ela começou a
vasculhar o tapete felpudo, seu olhar passando pelas pernas da cadeira. —
Em qualquer caso, você deve estar atenta a Toussaint.
— O quê? — Celine se absteve de voltar para trás. — Deveríamos estar
procurando por algo... no chão? — Depois de testemunhar as peças de
xadrez oferecerem sua própria rendição, Celine não queria ser pega de
surpresa por mesas ou banquinhos impertinentes com sentidos errôneos de
humor.
— Não se assuste. Realmente não é nada. — Odette gesticulou mais uma
vez com as mãos, uma reação que Celine passou a associar com agitação. —
Toussaint... é a píton birmanesa de Bastien. — Ela se apressou nas próximas
palavras. — Realmente ele é completamente inofensivo. O pobre anjo adora
descansar e não machucaria um rato. — Ela fez uma careta e mordeu o lábio.
— Zut alors. Eu quis dizer figurativamente, é claro. —
Odette se iluminou. — Apenas espere. Antes que você perceba, todos
vocês serão melhores amigos.
Levou um momento para sua explicação se registrar, desarticulada como
estava.
Piton birmanês de Bastien.
Cobra gigante de Bastien .
Embora a serpente em questão ainda não tivesse aparecido, Pippa abafou
um pequeno grito e deu um salto para trás, procurando uma cadeira ou algo
sobre o qual se apoiar. Celine permaneceu enraizada em um ponto, uma
corrente familiar correndo em suas veias.
Odette lançou-lhes um olhar triste.
— Ocasionalmente, Toussaint gosta de se envolver com qualquer coisa
quente, mas saiba que você não tem nada a temer. Eu apenas o mencionei
porque – se você não sabe procurá-lo – ele pode ficar um pouco...
desconcertante
— Uma cobra? — Pippa chiou, procurando por todo o mundo como se
quisesse derreter na parede apainelada nas suas costas. — Que tipo de
pessoa tem uma cobra de estimação ?
— Lúcifer. — disse Celine em uma voz plana. — Lúcifer teria uma cobra
de estimação.
Um riso de gargalhadas explodiu nos lábios de Odette quando ela pegou
seu copo de vinho.
— Ah, você simplesmente deve me contar o que aconteceu quando foi
apresentada esta noite. Que delícia!
Celine chupou as bochechas para ordenar sua resposta.
Os olhos azuis de Pippa dispararam pelo chão enquanto ela mordeu o
lábio inferior, os dedos brincando com a cruz dourada em volta do pescoço.
— Encontramos o Sr. Saint Germain a caminho de cá. Ele não era — ela
hesitou — tão gracioso quanto deveria ter sido.
— Não estou surpresa ao ouvir isso. — disse Odette. — Bastien é como
um personagem de uma rima infantil. Quando ele é bom, ele é muito, muito
bom. Quando ele é ruim, bem... Tenho certeza que você pode terminar o
resto.
Celine certamente poderia. Mas ela se recusou a perder mais tempo
contemplando aquele garoto miserável e sua ridícula cobra de estimação.
Seria necessário esforço, mas Celine pretendia pôr um fim rápido... qualquer
que seja o interesse preocupante que esse garoto bonito tenha conseguido
despertar nela.
Na verdade, ela não entendeu nada. Eles mal passaram menos de um
momento na presença um do outro, e um rosto bonito não foi suficiente para
distraí-la de seus muitos crimes. Antes que a noite terminasse, Celine
pretendia controlar firmemente suas emoções.
Nada de bom veio depois de deixá-los ficar loucos.
Seu olhar se fixou em uma pintura em uma moldura dourada do outro lado
da sala. Ela deixou a visão distorcer até que suas bordas brilhavam em ouro
derretido. Celine odiava o quanto sua observação de um garoto como
Bastien trouxe à luz o quão quebrada ela estava.
Em uma curta noite, ele se tornou um espinho proverbial ao lado de
Celine. Um lembrete de que algo dentro dela não estava certo.
Talvez fosse isso. Talvez não fosse um fascínio por ele. Talvez fosse o
fascínio da criatura que espreitava dentro dela. Não muito tempo atrás,
aquela criatura havia lhe concedido imenso poder sobre um atormentador e
liberdade sobre sua vida.
Mas também a tornara uma assassina.
A expressão de Celine endureceu. Ela poria fim a tudo isso.
Imediatamente.
Teria funcionado. Mais tarde, Celine juraria que estava à beira da vitória,
com a intenção de empurrar qualquer coisa relacionada ao Sébastien Saint
Germain para dentro de um abismo escuro. Para fazê-lo desaparecer para
sempre.
Tudo teria sido planejado.
Se não fosse pelo grito agudo que de repente atravessou a sala.
[1] Fantástico!
[2] Merda;
[3] Minha amiga
[4] Eu sabia!
[5] Perfeito! Simplesmente perfeito!
O FANTASMA

O grito agudo de Pippa ecoou através da câmara, ricocheteando nas


paredes apaineladas, fazendo as borlas douradas tremerem. Alugou o
espaço em dois, como se uma rachadura tivesse se espalhado pelo carpete
felpudo, o inferno bocejando em braças de fogo abaixo.
Realmente foi uma conquista impressionante, esse grito.
No momento em que saiu dos lábios de Pippa, todos os membros da La
Cour des Lions entraram em ação, seus corpos tensos e alertas. Odette se
arrastou para o lado de Pippa, o copo de vinho tinto na mão tombando, o
conteúdo espirrando nas saias de Pippa. Antes que Celine pudesse piscar,
um homem estiloso do Extremo Oriente se moveu rapidamente na direção
deles, brandindo uma adaga de madrepérola. Ele parou no ombro dela,
girando a lâmina de uma mão para a outra. Boone apareceu à vista enquanto
lançava um picador de gelo no ar. As duas mulheres com anéis perigosos
posavam como panteras prestes a saltar, os dedos formando garras, como se
suas jóias opulentas fossem realmente armas em vez de adornos. O vencedor
da recente partida de xadrez simplesmente colocou uma pistola sobre a mesa
diante dele, suas feições barbadas frias e colecionadas.
Celine agarrou o cotovelo da amiga, puxando-a de costas, inclinando o
corpo na frente do de Pippa, como um escudo.
— O que aconteceu? — Ela exigiu da amiga em voz baixa. — Você está
bem?
A culpa puxou os cantos da boca de Pippa. — Eu... pensei que algo roçou
meu pé — ela disse em um tom sem fôlego, sua expressão era de
perplexidade. — Eu devo ter me enganado. — Ela falou mais alto, lançando
sua voz através da sala. — Lamento profundamente ter assustado a todos.
Não há nada errado. Por favor, aceite minhas humildes desculpas.
Os que estavam prontos para atacar não se afastaram. Muitos deles
continuaram olhando fixamente para Pippa, seus traços cautelosos, seus
olhos continuando piscando de uma maneira desconcertante. Mais uma vez,
Celine ficou momentaneamente impressionada com seu pensamento anterior:
Desumano.
Mas isso era impossível. Não era? Uma coisa era acreditar em magia e
ilusão. Outra inteiramente a acreditar em criaturas de fantasia infantil.
Pippa tomou um grande gole de ar, o rosto corado.
— Sinto muito. — disse ela novamente, ainda mais alto, enquanto tentava
em vão impedir que o vinho derramado escorresse por suas saias.
— Não se desculpe mais. — murmurou Celine. — Uma varíola naquela
maldita cobra e seu tolo mestre.
Então – como se o grito de Pippa tivesse enviado uma mensagem através
das paredes revestidas de painéis – uma das duas portas na parte de trás da
câmara se abriu, uma onda de ar fresco correndo sobre a pele exposta no
peito e na garganta de Celine. A princípio, nada emergiu da entrada, mas os
que estavam por perto se mexeram um pouco, como se permitissem que
alguém – ou alguma coisa – passasse.
— Ah, lá está ele. — Odette sorriu.
Pippa alcançou Celine quando uma enorme cobra – suas escamas cobertas
de manchas marrons escuras, cercadas por anéis de preto – deslizavam pelo
chão acarpetado. Medo e alegria feriram o corpo de Celine. Ela começou a
se afastar quando a cobra se aproximou, mas Pippa a segurou no lugar, com
os dedos firmemente enrolados no pulso de Celine.
— Eles cheiram a medo. — murmurou Pippa.
— Como você sabe disso?
— Eu li em algum lugar.
— Isso é besteira. — Odette tirou as luvas manchadas de vinho. —
Tecnicamente eles não podem cheirar à nada. Apenas prove as coisas com a
língua.
Celine lançou um olhar assassino na direção de Odette quando a cobra
passou por eles, desaparecendo sob uma poça de seda índigo sob uma janela
em arco. Mesmo depois que a serpente desapareceu, Pippa não parou de
torcer o sangue pelas pontas dos dedos de Celine.
— Oh, bobagem, Toussaint não vai machucar ninguém. — Odette os
tranquilizou, colocando as mãos nuas nos bolsos enquanto falava. — Uma
vez ele se envolveu com Arjun, mas foi assustador por um minuto. — Ela fez
uma pausa em lembrança. — E aquele criminoso comedor de bolinhos
mereceu.
— O que… o que ele fez? — Pippa perguntou.
— Aparentemente massacrou um monte de bolinhos. — brincou o garoto
em questão por trás de Pippa, seu sotaque britânico tremendo levemente,
claramente manchado pela bebida.
Celine virou-se para Arjun em choque, notando suas juntas avermelhadas e
aparência desgrenhada. Lembretes não tão gentis que, independentemente de
quão agradável ele se comportasse, esse garoto das Índias Orientais não era
o que parecia. Afinal, ele conseguiu atravessar a sala sem ser notado, como
uma sombra deslizando através de uma nuvem de fumaça.
Pippa se virou com uma falta incomum de graça, apenas para perder o
equilíbrio. Ela teria caído no chão se Arjun não estivesse lá para segurá-la,
os braços dele envolvendo seus ombros.
— Eu tenho você, animal de estimação, — disse ele com um meio sorriso
travesso.
Um flash de horror percorreu o rosto de Pippa. No instante seguinte, ela o
empurrou com uma quantidade surpreendente de força. Arjun caiu de costas,
com o colete torto e o monóculo enrolado no pescoço.
Celine tentou controlar sua reação, mas não pôde ser ajudada. Ela apertou
os nós dos dedos nos lábios. Logo, Odette estava se firmando contra Celine,
rindo ao lado dela. Sem surpresa, Pippa não se divertiu. Ela apertou as duas
mãos sobre a boca. Aturdida, ela se inclinou para ajudar Arjun a se levantar,
pegando as mãos dele.
Apenas para ser totalmente rejeitado.
— Sinto muito! — Ela disse, a cor subindo pelo pescoço. — Eu não
esperava que você fosse assim...
— Útil? — Ele ofereceu.
— Quente. — ela terminou, suas bochechas ficando vermelhas.
Arjun olhou para ela interrogativamente, depois sorriu, embora ele ainda
se recusasse a pegar sua mão estendida. Em vez disso, olhou para a
esquerda, assobiando entre os dentes para chamar a atenção do campeão de
xadrez próximo. No instante seguinte, o sujeito desajeitado deu um passo à
frente para puxar Arjun de pé com uma quantidade estranha de força, o
bigode corado enrolando-se nas bordas enceradas.
— Já chega, meu bom homem? — ele disse com um sotaque áspero do
Leste de Londres.
Quando ele se endireitou, ele se elevou sobre todos os vizinhos, seus
membros longos e finos, fazendo com que ele se parecesse com um pólo de
feijão. — Todo sangramento de marajá é tão mijado quanto segurar o licor
que você é?
Arjun revirou os olhos.
— Que baboseira. Nem todo homem da Índia é marajá, Nigel. — Ele fez
uma pausa para conseguir o efeito, protegendo as abotoaduras de ouro. — E
nem todo inglês é um cavalheiro.
— Corrupto!
— Imperialista repugnante.
— Imbecil desajeitado!
— Galho coberto de vegetação.
O bigode encerado de Nigel se contraiu. Então ele jogou a cabeça para
trás e riu. O som estava tão cheio de alegria que Celine começou a sorrir.
— ¿Qué está pasando, Odette? — uma voz rica cortou o mêlée, o som
ressoando por trás de onde eles estavam.
— ¡Hostia! [1] — Odette assustou-se. Seu punho pequeno disparou,
batendo contra uma forma sólida. — Pare de tentar me assustar, seu idiota. O
que você quer que seja a próxima vez... — Ela lançou um discurso que
Celine não pôde seguir, as palavras em espanhol saindo de seus lábios com
facilidade.
Arjun e Nigel trocaram um olhar. Em seguida, rapidamente seguiram em
direção à mesa de roleta no fundo da sala.
Odette continuou reclamando com o recém-chegado nas costas de Celine.
Mas Celine se recusou a se virar. Ela não precisava confirmar o óbvio. Seu
pulso disparou na garganta quando o calor dele se aproximou. A sensação de
ser atraída e empurrada para trás – um imã feito de pólos opostos – tomou
conta de seu estômago. Assim como na noite em que ela chegou a Nova
Orleans, quando ele limpou as ruas sem dizer uma palavra, a presença de
Bastien era uma coisa tangível. Isso fez algo no ar mudar, como um suspiro
de vento.
A criatura dentro de Celine se contorceu sob a pele, revirando a vida.
Não. Celine Rousseau não era um cata-vento. Ela não se emocionaria com
a presença do fantasma como todo mundo estava. Ele não era especial, assim
como todos os meninos privilegiados que ela havia encontrado em seu
passado. Outra aproximação mimada e intitulada de um homem. Ela respirou
fundo, determinada a permanecer inalterada.
Celine sentiu os olhos de Bastien se fixarem na nuca. Os pêlos finos se
arrepiaram, enviando um zumbido quente pela espinha. Ele estava perto o
suficiente para que ela pudesse sentir o cheiro da bergamota em sua colônia.
As dicas de frutas cítricas e especiarias.
Esse garoto era perigoso. Muito perigoso. Como combustível para o fogo
dela.
Ela ficou em pé. Silenciou a criatura agitada.
Odette continuou a castigar Bastien em uma mistura de espanhol e francês.
Incomodado com seu discurso, Bastien passou por Celine e Pippa, seus
passos sem pressa, seus movimentos líquidos. Desde o encontro deles, uma
hora atrás, ele havia descartado o paletó e arregaçado as mangas da camisa
branca, revelando um colete sob medida de seda carvão e um conjunto de
curiosas marcas negras no antebraço esquerdo. Desdenhando a moda do dia,
ele usava os cabelos escuros perto da cabeça, parecendo um busto que
Celine já vira de Júlio César. Amarrado em volta dos ombros, havia um
coldre de couro polido, um revólver brilhando sob o braço direito. Quando
ele encontrou o olhar de Celine, ele apertou os lábios, um toque de irritação
os empurrando para frente, endireitando sua mandíbula. O aborrecimento
apareceu em seu rosto bonito. Nem um traço de surpresa nem uma gota de
prazer em encontrá-la aqui.
Encorajou Celine. Exortou-a a dispensá-lo tão sumariamente quanto ele a
dispensou.
— Você terminou? — Ele disse baixinho para Odette, embora seus olhos
estivessem voltados para Celine.
— Por enquanto. — Odette fungou. — Só não faça isso de novo. Você sabe
o quanto eu odeio ser pega de surpresa. Sem dúvida, é por isso que você
gosta de fazer isso, seu malquisto.
Embora seu tom tenha se tornado um tom de brincadeira, Bastien não
sorriu.
— Responda mi pregunta. ¿Por qué está ella aquí?
— Não. — Odette cruzou os braços. — Eu não estou respondendo sua
pergunta. C'est impoli. Essas senhoras são minhas convidadas, e eu não lhe
devo uma explicação de por que elas estão aqui.
As bordas dos olhos de Bastien se apertaram, sua expressão escurecendo.
Em circunstâncias normais, Celine suspeitava que esse olhar gelado gerasse
medo nos outros.
Comoveu-los a obedecer, sem questionar.
Ela o encontrou olho por olho, brilho por brilho, seu coração batendo por
trás das costelas.
Celine esperou que ele pedisse para sair. Afinal, este edifício pertencia à
sua família. E não importava o que alguém dissesse, era evidente que
Bastien governava La Cour des Lions, do teto coberto até a cobra deslizando
sobre os tapetes felpudos.
Lúcifer em seu covil de leões.
Em vez disso, Bastien permaneceu em silêncio. A pele de bronze ao redor
dos olhos e da testa se suavizou, o conjunto de ombros se desenrolando.
Antes que Celine pudesse respirar, o charme escorria dele com o tipo de
graça natural reservada à nobreza.
Era uma visão irritante de se ver.
Bastien curvou-se para Pippa.
— Bem-vindo a Jacques, mademoiselle. Eu sou Sébastien Saint Germain.
— O camaleão consumado, ele pegou a mão dela, inclinando-se para dar um
beijo nele.
Embora as bochechas de Pippa tenham corado com o toque dele, ela
limpou a garganta.
Libertou os dedos.
— Nós já nos conhecemos, senhor.
Celine sufocou um sorriso.
— Quel charlatan! — Odette bufou enquanto tomava um gole de vinho. —
Elas sabem quem você é.
Bastien não parecia nem um pouco perturbado por sua zombaria.
— Mas não acredito que fomos formalmente apresentados.
— Então permettez-moi[2]. — Uma luz desonesta brilhou nos olhos de
Odette. — A jovem deslumbrante à sua direita, com os cabelos negros e os
olhos como esmeraldas egípcias, é Celine… — Ela parou. Riu. — Acabei
de perceber que não sei seu segundo nome, mon amie.
Celine estendeu a mão, canalizando indiferença. — Meu nome é Celine
Rousseau.
Bastien pegou. Ela sentiu uma pitada de hesitação no momento em que seus
longos dedos envolveram os dela. A menor pontada, como se tivesse
cometido um erro de julgamento e percebido tarde demais. Uma corrente de
fogo se espalhou em seu braço, movendo-se lentamente, como se a criatura
em seu sangue desejasse saborear a experiência. Antes que Bastien pudesse
se inclinar para beijar sua mão, Celine puxou a palma da mão dele.
Algo ilegível passou por suas feições, indo e vindo antes que Celine
pudesse respirar.
Então, seu sorriso se tornou selvagem em diversão. Um desafio tácito.
Encorajou ainda mais Celine. Se ele fosse jogar, ela simplesmente jogaria
melhor. Ela olhou para Pippa e inclinou a cabeça, permitindo um brilho
cintilante nos olhos. Exatamente o tipo de olhar que ela viu inúmeras jovens
da sociedade parisiense compartilharem entre si, como se elas sozinhas
tivessem conhecimento de um delicioso segredo.
— Esta é minha querida amiga, senhorita Philippa Montrose.
Bastien curvou-se novamente para Pippa.
— Enchanté[3], mademoiselle Montrose.
Pippa assentiu, seu desconforto óbvio. Embora Odette tentasse parecer
indiferente à cena que se desenrolava, sua atenção flutuou entre Celine e
Bastien como se estivesse testemunhando um fio começar a se desfazer.
Quando ela pegou Celine olhando para ela, ela desviou o olhar,
concentrando-se na saia manchada de vinho de Pippa.
— Merde! — Odette xingou. — Sou uma desgraçada absoluta. Eu esqueci
completamente do seu vestido. Venha comigo. — Ela começou a andar com
propósito em direção à escada.
Pippa balançou a cabeça.
— Não se incomode. Não é...
— Bobagem. — Odette girou no lugar. — Tenho certeza de que Kassamir
terá um pouco, o que foi? — As pontas dos dedos dela se juntaram, o som
crepitando no ar. — Água tônica para remover a mancha, como Celine
sugeriu.
— Isso não é necessário.
— Eu insisto. — Odette pegou Pippa pela mão. — Se você não me
permitir consertá-lo, pelo menos você deve me permitir substituir seu
vestido. O tecido é tão adorável... voil, não é? — As feições dela brilharam,
uma idéia já tomando forma em sua mente. — Podemos ir juntas amanhã para
ver meu modista. Ela não tem os olhos ou o treinamento de Celine, mas é
bastante especialista em...
— Por favor, não se preocupe, mademoiselle Valmont. Este vestido não
vale a pena. É muito antigo Isso... Foi passado para mim de um primo. —
Pippa estremeceu com essa admissão, e algo esfaqueou o coração de Celine.
Claramente, doía Pippa por revelar esse detalhe, e Celine não tinha a menor
idéia do porquê.
Incomodava-a perceber o pouco que sabia sobre sua única amiga.
Apenas uma hora atrás, Pippa havia comentado que elas não eram
realmente amigas.
Ainda não. Ela ficou irritada ao ouvi-la, mas Celine não podia negar sua
verdade agora.
Amigos de verdade compartilhavam livremente seus pensamentos e
sentimentos, seus segredos, seus medos. Em Paris, antes daquela noite
terrível, Celine tinha duas dessas amigas, Monique e Josephine. Ela se
perguntou se elas pensavam nela agora. Se elas se preocupavam com ela.
Questionado para onde ela foi.
Se elas soubessem que ela agora era uma assassina.
Após a dolorosa admissão de Pippa, Odette ficou em silêncio por um
tempo. Quando em seguida ela falou, suas palavras foram gentis.
— Por favor, deixe-me ajudar com isso, ma choupette. — Ela pegou a mão
de Pippa novamente, desta vez com menos insistência. — E me chame de
Odette. Prefiro muito quando meus amigos me chamam assim.
Naquele momento, Celine decidiu que – um dia – ela gostaria de ser amiga
de Odette Valmont também. Pippa esperou um momento. Então assentiu uma
vez com um sorriso agradecido. As duas jovens caminharam em direção ao
restaurante do primeiro andar, em uma busca para encontrar Kassamir.
Deixando Celine em um covil de leões... de pé ao lado de Lúcifer.
[1] Uma exclamação
[2] Permita-me
[3] Encantado
PERGUNTAS, PERGUNTAS

N o momento em que os amigos desapareceram no andar de baixo, Celine


e Bastien trocaram um olhar. Uma carga zumbiu no ar, girando em torno
deles como o início de uma tempestade.
Seus sorrisos desapareceram no instante seguinte.
Um silêncio espesso desceu como um manto sobre seus ombros. Uma parte
de Celine gostava disso. Pareceu honesto. Ausentado de fingimento. Nesse
momento, ela poderia ser quem ela era. Não importava se ela não aderisse
aos costumes sociais de sua época.
Bastien não a julgaria, pois, ele não era um cavalheiro, assim como Celine
não era uma dama.
Sua postura relaxou ainda mais, quase como se ele tivesse chegado à
mesma conclusão.
Ele abriu os pés e se estabeleceu em uma posição informal. Celine
descobriu que gostava de vê-lo sob essa luz confortável. Isso o fez parecer
mais como uma pessoa de carne e osso do que um assunto de fofocas
obscenas. Ele era, afinal, nada além de um jovem.
Embora fosse diabolicamente atraente.
Bastien empurrou os lábios para a frente novamente em um cálculo óbvio.
Isso chamou a atenção de sua boca de uma maneira que fez Celine desviar o
olhar. Ela engoliu em seco, descartando uma enxurrada de pensamentos
devassos. Metade dela se sentiu irritada com essa prova de sua atração. A
outra metade apreciou o lembrete de que Bastien trouxe a pior versão de
Celine à superfície. Aquela envolta em vício e pecado.
Outro minuto se passou em silêncio. Quanto mais eles ficavam sem falar,
mais pesada a carga no ar aumentava, até ganhar vida própria, um espectro
encapuzado pairando acima de suas cabeças.
Celine se recusou a ser a pessoa que falaria primeiro. Sob pena de morte.
Ele podia esperar até que o sol se levantasse no céu amanhã de manhã, por
tudo que ela se importava.
— Você chegou a Nova Orleans recentemente. — Bastien ofereceu isso
como a constatação de um fato, e não como uma pergunta.
— Há pouco mais de uma semana. — Celine fez uma pausa, imaginando se
ele lembrava de tê-la visto naquela primeira noite perto de Jackson Square.
— Você fala espanhol.
Ele assentiu.
— Por causa do meu pai.
— Seu pai era espanhol?
— Não.
Celine esperou que ele esclarecesse, depois suspirou para si mesma
quando não o fez.
Não porque ela estava perturbada com a evasão dele, mas sim porque ela
entendeu o desejo dele de enfiar uma agulha em cada palavra que falava.
Mais uma semelhança.
Incomodada com essa percepção, Celine recostou-se no calcanhar
esquerdo, os dedos do pé direito batendo no tapete grosso.
Um sorriso apareceu nos lábios de Bastien.
— Estou irritando você.
— Você está gostando.
— Estou. — Sua boca mudou para um lado, novamente pressionada em um
franzido enlouquecedor.
O silêncio se estabeleceu entre eles mais uma vez. Então Bastien deu um
passo mais perto de Celine, sem dúvida para ver como ela reagiria. Se ela
voltasse, revelaria seu desconforto, concedendo-lhe vantagem. Se ela se
movesse para a frente, revelaria sua atração… o que também concederia ao
demônio a vantagem.
Celine não cedeu. Ela era uma montanha. Um carvalho de cem anos. Uma
torre que se recusa a inclinar.
— Posso ficar aqui para sempre em um silêncio irritado. Isso não me
incomoda. — Ela cruzou os braços com força, os antebraços enrolando sob
os seios, empurrando contra a desossa do espartilho. — Você pode perecer
se perguntando o que estou pensando, pois, nunca direi.
— Igualmente. — Os ângulos das feições de Bastien se ocultaram ainda
mais. Seus olhos mergulharam instintivamente antes de pegá-los, sua
mandíbula flexionando, afiando.
Ele desviou o olhar.
A princípio, Celine não entendeu seu comportamento estranho. Ela deixou
o olhar vagar mais baixo, apenas para soltar os braços como se tivessem
explodido em chamas.
— Se você acha que usei minhas artimanhas para captar sua atenção como
uma garota tentando preencher seu cartão de dança em um baile, então...
— O que acho que não tem nada a ver com você — interrompeu Bastien.
— Meu comportamento não é de sua responsabilidade.
Sua resposta a derrubou. A chocou em silêncio. Ela nunca tinha ouvido
essas palavras saírem dos lábios de qualquer homem. O pai de Celine
sempre a repreendeu por usar qualquer coisa que acentuasse sua figura.
Infelizmente, as últimas modas procuravam fazer exatamente isso: dar vida a
todas as linhas, influenciar todas as curvas. Até as roupas íntimas de uma
dama foram projetadas para lhe dar a aparência de uma ampulheta. No
entanto, o professor Guillaume Rousseau incentivou a filha a usar peças
modestas sob sua garganta e a se vestir em camadas, mesmo quando os
verões parisienses estavam em seu pior estado.
Bastien respirou fundo, como se estivesse ganhando tempo.
— Deixei você desconfortável. Eu… me desculpo.
— Você provavelmente é o primeiro homem que não me culpou por isso
— confessou Celine, mascarando seu choque arqueando uma sobrancelha.
Ele assentiu, sua expressão sombria. Então ele esfregou a parte de trás do
pescoço, o couro brilhante do coldre do ombro esticando, captando a luz.
— Para responder à pergunta que você não fez, meu pai tinha herença
Taíno. Passei vários anos da minha vida em San Juan. O espanhol é a língua
da minha infância.
Isso explicava o traço de algo diferente em seu sotaque. Celine não sabia o
que Taíno queria dizer, mas lembrou-se de ler sobre uma cidade chamada
San Juan em uma ex-colônia espanhola em algum lugar do Caribe. Ela se viu
querendo saber mais. Para descobrir porque seu tio o criou desde a infância.
Porque Celine queria saber, ela perguntou nada.
Era mais seguro assim, para os dois.
— Você está aproveitando seu tempo em Nova Orleans? — Foi a primeira
pergunta que Bastien fez a Celine que parecia artificial, como se fosse feita
para ser uma companhia educada. Ficou irritada ao ouvi-lo, pois eles nunca
foram uma companhia educada. Ela preferia assim.
Celine inclinou a cabeça. Cerrou o olhar.
— Por quanto tempo vamos fingir que o que houve no início da noite não
aconteceu?
O riso de Bastien foi rápido. Cáustico.
— Você tem certeza de sua integridade moral, mademoiselle senhorita
Rousseau.
— Assim como tenho certeza de que é benéfico ser tão desdenhoso,
monsieur senhor Saint Germain.
Seus olhos cinza-metal brilharam.
— Te irritei novamente.
— No entanto, você ainda não ofereceu uma razão para isso.
— Não gosto de me explicar. Minhas ações falam por mim. Se você os
considera insensíveis e cruéis, que assim seja; sou desalmado e cruel. — Ele
falou de uma maneira simplista. — Acredite, serei a última pessoa a corrigi-
la.
— Deve ser uma vida e tanto, sem ter que se explicar.
— Você deveria tentar algum dia. É bastante libertador.
— Imagino que seria libertador se preocupar apenas com si mesmo. — Ela
deu um suspiro dramático. — Infelizmente, não sou um homem.
Uma carranca tocou os lábios de Bastien. O primeiro sinal de que Celine
atingiu um nervo.
Mas ele não respondeu. Desta vez, o silêncio à sua volta pairava à beira
de algo mais pesado. Um raio antes de um trovão.
— Por quê...
— Estamos...
Os dois pararam. Trocaram sorrisos apunhalados. Tão perto, Celine podia
ver manchas de aço em seus olhos. A maneira como a barba por fazer ao
longo de sua mandíbula acentuava suas linhas finas.
— Por favor. — ele começou, inclinando a cabeça, deixando-a falar
primeiro.
— Por que o homem no beco te chamou de Le Fantôme O fantasma? —
Perguntou Celine. — Você tem o hábito de se vestir como um vampiro e
aterrorizar aqueles ao seu redor?
Diversão percorreu pelo rosto de Bastien.
— É um apelido desde a infância. — Ele fez uma pausa antes de retornar o
vôlei. — Você tem o hábito de arrastar a escuridão com você para onde quer
que vá?
— O quê? — Celine se surpreendeu com a precisão com que ele conseguiu
atingir outro nervo.
— Selene era uma deusa lunar. Uma titã. Ela dirigiu uma carruagem de
cavalos brancos pelo céu para inaugurar a noite.
O quão… adorável. Celine nunca ouvira a história da deusa Selene, que a
surpreendeu porque seu pai era um amante dos clássicos. Seus pais a
nomearam por uma relação de família, morta há muito tempo. Uma tia-avó
chamada Marceline. Ela não sabia quando começaram a se distanciar.
Provavelmente quando ela era muito jovem. Talvez até quando ela morou na
costa do país de sua mãe.
— Não, não fui nomeada em homenagem a uma deusa — respondeu ela. —
Celine... é um apelido desde a infância.
— Eu mereci isso. — A risada suave de Bastien se filtrou no ar. Os que se
encontravam nas proximidades se viraram para olhá-los, incrédulos, uma das
fileiras soprando uma corrente de fumaça azul pálida de um elaborado cano
de água. Foi a primeira vez que Celine ouviu Bastien rir livremente. Soou
baixo. Um barítono rico envolto em seda. Ela ignorou o modo como a fez
apreciar cada um de seus sentidos ainda mais.
Celine se viu se acomodando na conversa, sem sentir a necessidade de
desempenhar um papel. A trabalhadora diligente. A filha obediente. A jovem
piedosa. Alguém que flutuava com a correnteza, em vez de fazer suas
próprias ondas.
A deusa lunar Selene também dominou as marés, como a lua? Nesse caso,
Celine desejou passar o resto de sua vida canalizando essa divindade. Era
verdade que ela não sabia se essa deusa era sua xará, mas talvez ela pudesse
escolher assumir o manto.
Celine gostou do pensamento. A ideia de ser uma titã que envolveu o céu
em um velo de estrelas.
— Por que você deixou Paris? — Bastien perguntou, quebrando a imagem
que se formava na mente de Celine.
Seu pulso acelerou com a pergunta, seus nervos esticados.
— Eu nunca disse que era de Paris.
— Você não precisava. — Seu sorriso era devastadoramente encantador,
apesar dos ângulos agudos de suas feições. — Você disse a Odette. Agora
até os ratos da sarjeta sabem.
Com isso, Celine riu. Pareceu fácil. Muito fácil.
Perto, os sons de dados de marfim batendo contra a saliência da madeira
se misturavam com um coro de gargalhadas estridentes. Sua atenção se
voltou para a mesa de roleta.
Celine sorriu para si mesma, novamente impressionada com a percepção
de que se sentia confortável aqui, entre praticantes de magia e senhores do
caos. Como Odette sugerira, esse lugar era diferente de tudo que Celine já
conhecera.
Bastien seguiu seu olhar.
— Você já jogou roleta?
Celine não respondeu.
— Você deveria tentar — ele pressionou.
— Você está me incentivando a jogar?
— Isso atrapalha suas delicadas sensibilidades?
— Não seja um canalha. — Celine estreitou os olhos para ele. — Talvez
eu seja uma excelente jogadora — ela mentiu novamente, como fez com
Boone. — Talvez você se arrependa no dia em que me deixar vencer.
Uma faísca de humor brilhou em seu olhar. — Um trocadilho justo, embora
eu seja relutante em admitir isso.
— Você não gosta de trocadilhos?
— Quase tanto quanto perguntas retóricas.
— Houve um tempo em que trocadilhos eram o auge do humor. — Ela
refletiu o ângulo da cabeça dele. — E você não está curioso sobre o que
veio primeiro, a galinha ou o ovo?
— Tecnicamente — ele enviou um sorriso perverso — não foi o galo?
As sobrancelhas de Celine se ergueram, sua boca aberta. No instante
seguinte, uma risada brilhante explodiu em seus lábios, o som assustou
aqueles que estavam por perto pela segunda vez naquela noite.
Bastien sorriu mais largo, seus dentes brilhando brancos, distraindo-a por
um instante.
Eles pareciam extraordinariamente perfeitos, as pontas de seus cães quase
lupinos. Algo a perturbava, como se Celine estivesse olhando uma pintura
em vez de uma pessoa. Talvez uma peça de Rembrandt, um mestre que
sempre conseguia captar detalhes que os outros perdiam, tornando seus
assuntos sob uma luz sobrenatural.
Um lembrete oportuno de que jovens como Bastien viam o mundo através
de óculos cor de rosa. Através de uma névoa de riqueza e direito.
— Não se apaixone por mim. — Celine deixou escapar sem pensar. —
Nada de bom resultará disso.
Surpresa tocou suas feições.
— Então você pretende partir meu coração?
— Certamente.
— Devidamente anotado. — Bastien parecia – por todos os direitos –
estar se divertindo.
Celine ficou nervosa ao perceber que ela também estava gostando da
companhia dele. Fazia semanas desde que ela olhou para um homem sem um
ar de suspeita nublando todos os seus pensamentos.
No instante seguinte, o sorriso de Celine desapareceu.
Pippa alcançou o topo da escada, Odette ao lado. A frente do vestido
simples de voil de Pippa estava molhada, mas a mancha parecia ser da água
e não do vinho. Celine se afastou de Bastien, apertando as mãos atrás dela,
voltando sua atenção para o chão, como se tivesse sido pega cometendo um
ato de subterfúgio.
Bastien a estudou com um olhar estranho, sua expressão saboreando
estranhamente de decepção. Foi apenas por um instante, mas uma mão fria de
culpa agarrou Celine pela garganta, tornando difícil de engolir. Como se sua
consciência acreditasse que ela havia prejudicado Bastien de alguma
maneira. Mas como isso seria possível? Um garoto assim não se importaria
com o que uma garota que ele acabara de conhecer pensava dele. Ele mesmo
disse:
Ele seria o último a corrigir suas suposições.
Com certeza, Bastien se afastou. Permaneceu ereto, sua sobrancelha
cobrindo o olhar, uma sombra caindo sobre suas feições mais uma vez.
Outra pontada de culpa cortou o peito de Celine. Ela a baniu no instante
seguinte. Se Bastien não achou necessário se explicar, por que ela deveria?
Além disso, não era apropriado que ela fosse vista desfrutando de sua
companhia, dado seu comportamento anterior.
Eles eram como dois trens em rota de colisão. Melhor para todos os
envolvidos se eles não gostarem da companhia um do outro.
Pelo menos assim, eles poderiam evitar colidir.
Odette andou a passos largos diante deles, as mãos nos bolsos da calça de
camurça, uma mecha de cabelo morena escapando de seu penteado.
— Nossa, isso foi uma odisséia. Nunca pensei que o voile fosse um tecido
tão teimoso. — Ela arqueou as sobrancelhas em forma de pergunta. — O que
perdemos?
Celine levantou um ombro como se estivesse entediada.
— Eu estava apenas transmitindo ao senhor Saint Germain meu desagrado
com nosso encontro anterior. — Ela ergueu o queixo. — E especialmente
com a exibição de violência arbitrária.
Bastien permaneceu em silêncio, seus lábios pressionando para frente.
Celine sentiu o peso de seu olhar sobre ela, o aço ficando mais frio a cada
segundo que passava.
— Violência? — Os olhos de Odette mudaram de Celine para Bastien e
voltaram novamente. — Qu'est-ce que tu as fait? O que você fez? — ela
acusou, seu rosto adorável desmoronado, as mãos se fechando em punhos ao
lado do corpo, a pele ali parecendo uma carrara polida. — Pelo menos me
faça a cortesia de não arruinar minhas amizades antes que eu tenha a chance
de fazê-las, s'il te plaît por favor. — Bufando, Odette puxou um leque de
dentro da manga balonê e o abriu.
Bastien considerou Celine um feitiço tenso. Então a diversão puxou as
bordas da boca dele.
— Responder à violência com violência foi uma cortesia, ma souris minha
querida. Talvez em sua busca por amizade, você possa optar por escolher
menos… caracteres desagradáveis.
O ventilador de Odette se fechou.
— Você não fez.
Ele torceu uma sobrancelha escura para ela e não disse nada.
— Seu demônio, — disse Odette. — avisei para não se envolver com
Lévêque nesse assunto. O que você fez? — Ela olhou em volta. — Deixa pra
lá. Claro que você não vai me dizer. Vou simplesmente perguntar a Arjun.
— Des questions, des questions Perguntas, perguntas. — Bastien
estendeu as mãos para os lados. — Qui a le temps pour ces choses? Quem
tem tempo para essas coisas? — Ele lhe enviou um sorriso diabólico.
— Você deve arranjar tempo. — Odette fungou com desdém. — E eu não
ficaria orgulhoso dessa piada terrível, se fosse você.
— Há quem me ache muito inteligente.
— Grâce à Dieu[1], não estou entre eles — replicou Odette — pois não
preciso dos seus cofres de ouro... ou seu rosto bonito.
Celine riu baixinho.
— E todo homem deve dominar seu próprio tempo.
Bastien virou-se para ela, suas feições inexpressivas. Ele assentiu uma
vez.
— Assim como toda mulher deve citar Shakespeare quando ela não tem
nada melhor para dizer.
As bochechas de Celine ficaram quentes. O constrangimento a percorreu
quando Pippa segurou sua mão esquerda, pedindo-lhe que se mantivesse
calma.
Apertando os dentes, Celine girou em direção a Odette. — Perdoe-me,
mas o tempo se afastou de nós. Existe algum lugar para terminarmos de obter
suas medidas? — Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras. — Um lugar
onde podemos evitar olhos indesejados?
As pequenas narinas de Odette queimaram em Bastien, sua boca presa
entre o silêncio e a fala para respirar. A qualquer momento, Celine esperava
que ela começasse a repreendê-lo novamente, quase como se ela fosse sua
irmã mais velha ou tia. Mas Odette simplesmente assentiu. — Há uma
câmara na parte de trás, após o banheiro.
Com um olhar fulminante na direção de Bastien, Odette liderou o caminho
em direção a uma das duas portas nos fundos, situada em extremos opostos
ao longo da parede. Entre eles estava uma credenza de madeira ornamentada
com um pano branco espalhado pelo meio. Cobrindo sua superfície, havia
estátuas semelhantes a São Pedro e a Virgem Maria, pintadas em tons
vívidos. Uma lâmina curta estava no centro da credenza. Posicionados em
um semicírculo ao redor, havia figuras esculpidas com rostos de caveira e
pequenas bonecas feitas de osso e palha. Espalhados entre eles havia
sortidos de contas de madeira, frutas secas e nozes, misturados com gotas de
cera endurecida.
O local parecia vagamente familiar para Celine. Traços remanescentes de
incenso e velas perfumadas se enrolavam em seu nariz, pintando lampejos de
memória em sua visão.
Recordações de uma mesa baixa decorada de maneira semelhante, as
fragrâncias de frutas e mirra impregnam o ar.
A exibição despertou sua curiosidade, mas Celine não parou para estudá-
la mais ou fazer perguntas. Ela queria se livrar de qualquer coisa associada
a esse lugar o mais rápido possível, embora isso a incomodasse não se sentir
mais bem-vinda na casa de Jacques.
— Por aqui. — Odette pegou a maçaneta de uma entrada destinada a se
misturar às paredes revestidas de painéis, as dobradiças escondidas pelas
dobras de uma pesada cortina de seda. Quando ela a empurrou, a porta se
recusou a se mexer.
— C'est quoi ça? O que é isso? — Odette murmurou, empurrando com
mais força, linhas se juntando em sua testa. Ela jogou seu peso contra o
carvalho pesado. Finalmente, começou a ceder.
Uma mão passou pela abertura.
Uma mão pálida e imóvel.
Demorou um momento para a visão se registrar. Uma gagueira antes que
tudo acelerasse rapidamente.
— Mon Dieu! Meu Deus! — Odette exclamou. Usando o ombro, ela
atravessou a abertura com Celine nos calcanhares. As duas pararam, Pippa
tremendo atrás delas.
Uma garota estava esparramada no chão de um corredor escuro, seus
cachos ruivos e soltos jogados sobre o rosto sardento. Em sua garganta havia
uma ferida irregular. Algo rasgou sua carne com dentes afiados, como os de
um animal grande.
Com os dedos trêmulos, Odette alcançou o punho da garota, procurando
por um pulso.
Quando ela empurrou o braço da jovem, uma mecha de cabelo vermelho
ondulado caiu de seu rosto.
Celine engasgou. Ela conhecia aquele rosto. Passara a maior parte do dia
em sua empresa.
Anabel.
— Ela está...? — A voz de Pippa quebrou. Então subiu em um lamento
trêmulo.
Não havia necessidade de alguém responder sua pergunta não dita.
Ao lado do corpo sem vida de Anabel, um símbolo fora desenhado em
sangue:
[1] Graças a Deus
UM TRAPEZISTA EM UMA CORDA BAMBA

C eline já tinha visto a morte antes.


Ela não era estranha à vista. Mas isso não tornou mais fácil
testemunhar isso agora.
Tampouco tornou sua finalidade menos severa.
Uma vida havia sido tirada hoje à noite.
Assim, Anabel se foi.
Muitas realizações dominaram Celine nos momentos seguintes à
descoberta do corpo: Anabel tinha morrido violentamente. Isso ficou claro
pela boca irregular em sua garganta.
Celine nunca tinha visto uma ferida assim. Por um instante, ela brincou
com a ideia de que a cobra de Bastien poderia ser responsável.
Após uma análise mais aprofundada, no entanto, não fazia sentido que uma
cobra como Toussaint se daria ao trabalho de matar sua presa, apenas para
deixá-la para trás em um corredor escuro. Se a memória serviu corretamente
a Celine, os pitães não cortaram a garganta de suas vítimas; em vez disso,
optaram por espremer a vida deles lentamente.
E é claro que nenhuma cobra deixaria para trás um cartão telefônico.
Escrito em sangue, nada menos.
Mas se a cobra não era responsável pela morte de Anabel, quem era? E
por quê? Além disso, por que Anabel tinha ido à casa de Jacques hoje à
noite? Claramente ela seguiu Celine e Pippa até aqui. Mas por que ela não
fez sua presença conhecida?
Celine levou apenas um instante para analisar a verdade.
A Madre Superiora deve ter enviado Anabel para espioná-los. Tinha que
ser a razão pela qual a matrona do convento de Ursuline havia mudado de
ideia com tanta facilidade no início da noite, quando de repente ela concedeu
a Celine e Pippa permissão para ir, depois de protestar contra isso.
Celine engoliu, seus ouvidos ficando quentes. Se as maquinações da
Madre Superiora explicavam por que Anabel tinha ido à casa de Jacques
hoje à noite, significava que todas elas – Pippa, Madre Superiora e a própria
Celine – haviam participado da morte violenta de Anabel.
No assassinato de Anabel.
Finalmente, se a morte dela estava relacionada com a das docas,
significava que um louco – ou louca – estava à solta.
Os olhos de Celine mudaram ao redor da sala lentamente, sua respiração
acelerando. Se alguém tivesse assassinado Anabel na noite de Jacques após
sua chegada, significava que qualquer um presente agora – incluindo todos
os membros da La Cour des Lions – poderia ser responsável por matá-la.
Odette. Nigel. Kassamir. Arjun. O homem do Extremo Oriente com a
lâmina de madrepérola. As duas mulheres de pele de ébano com suas garras
de jóias. Boone. O jovem servo atormentado abaixo. Sem mencionar os
muitos indivíduos sem nome que estavam sentados em toda a câmara mal
iluminada.
E, claro, Bastien.
A cada segundo que passava, esses pensamentos corriam pela mente de
Celine, sua pele formigando devido à corrente de sangue, seu pé batendo no
carpete felpudo. Em contraste, Pippa olhou para a mesa de mármore diante
deles, sua postura oca como uma maçã deixada ao sol.
Era quase meia-noite. Celine e Pippa deveriam ter retornado ao convento
horas atrás. Em vez disso, haviam sido sequestradas na câmara sombria do
segundo andar, sentadas em um divã ornamentado no estilo de Luís XIV,
cercado por uma multidão de ilusionistas.
Bem como cinco membros da Polícia Metropolitana.
Embora fosse a menor das preocupações de Celine, a Madre Superiora
teria, sem dúvida, cortaria suas cabeças ao voltarem. Mas isso não poderia
ser problema agora.
Muito mais premente foi o fato de Pippa e Celine provavelmente estarem
entre os possíveis suspeitos de um assassinato. Se Celine encontrasse algum
humor na ironia, ela estaria no chão, rindo loucamente.
Mas o humor não a salvaria agora.
Uma vez que a verdade da associação de Celine e Pippa com Anabel veio
à tona, não seria fácil para eles explicar por que elas desconheciam a
presença de Anabel até o momento em que descobriram seu corpo. Até para
Celine, isso parecia suspeito. Não apenas elas estavam por perto no
momento da morte da vítima, mas também conheceram a pobre jovem
pessoalmente. Por um instante, Celine pensou em tentar convocar a Madre
Superiora para atestá-los. Infelizmente, essa velha morcega teria a mesma
chance de colocar a culpa em Celine do que em ajudá-la.
Era muito arriscado.
Celine sabia que deveria revelar essas verdades no instante após ser
apresentada ao melhor detetive da Polícia Metropolitana. Mas isso pode
colorir seu julgamento contra eles, fazendo com que ele abandone a procura
de provas em outros lugares. Se ela esperasse, no entanto, ele sem dúvida
suspeitaria.
Zut. Droga. Celine suspirou para si mesma. Quando seria um bom
momento para contar a ele?
Nunca definitivamente não era uma opção… era?
Infelizmente, Celine não podia esconder essas coisas dele para sempre. O
ressentimento a rodeava como uma névoa tingida de luz vermelha. Pippa
começou a chorar baixinho, os dedos girando em torno de um dos lenços que
Celine havia criado para arrecadar dinheiro para o convento. Uma das
muitas sapatilhas bordadas que Anabel havia vendido a Odette mais cedo
naquele mesmo dia.
Como isso aconteceu?
Que tipo de infortúnio horrível havia acontecido com Anabel?
E por que diabos ela havia concordado com os desejos da Madre
Superiora? Celine apertou os punhos nas saias, a raiva aquecendo o sangue.
Hoje à noite, o custo da decisão de Anabel tinha sido sua vida.
Celine balançou a cabeça rapidamente, afastando a crescente culpa.
Desejando banir a imagem do corpo danificado de Anabel de sua mente.
Seus esforços foram inúteis. Mesmo alguns segundos antes do grito de Pippa
e do grito de Odette rasgarem a noite toda – antes de Bastien, Arjun e Nigel
correrem para os lados – a imagem da máscara mortuária de Anabel se
infiltrara para sempre nas pálpebras de Celine.
Ela olhou em volta, imaginando quanto tempo o detetive mais famoso da
Polícia Metropolitana levaria para interrogá-los. Nenhum dos que
esperavam ainda tinha que falar com ele. Ao chegar, ele foi direto ao local
onde o corpo de Anabel fora encontrado, e o semicírculo de oficiais de rosto
sombrio ao seu redor não proporcionava exatamente a Celine um ponto de
vista para discernir muito mais.
Do outro lado, Arjun estava sentado em um banquinho de veludo com um
tornozelo cruzado sobre o joelho, a postura fácil. De seus dedos pendia um
copo de cristal, o conteúdo dentro dele girando em torno do copo em tons de
âmbar e ouro. O monóculo que balançava de sua garganta brilhava enquanto
o uísque dançava sobre seu copo. Celine pediu que sua mente se perdesse
nos prismas quentes expressos por seus movimentos.
Melhor ela se perder na bebida do que olhar para o seu direito imediato.
Em direção à figura parada nas sombras, desprovida de seu revólver,
olhando para o nada.
Celine fingiu tossir para pigarrear.
Onde estava esse maldito detetive? Por que ele demorou tanto para
examinar a cena do crime? E onde, em nome de Deus, estava Odette?
O caos se seguiu nos momentos seguintes à descoberta do corpo de
Anabel. Não havia tempo para Celine fazer um balanço do que estava
acontecendo ao seu redor. Muitos flashes de movimento em todas as
direções, muitas perguntas enchendo sua mente.
Mas agora que um tipo tenso de calma havia descido – um trapezista na
corda bamba – vários detalhes pareciam estranhos a Celine. Primeiro, as
únicas reações imediatas do segundo andar foram as dela, Pippa e Odette.
Os outros membros do La Cour des Lions mantiveram-se estranhamente
silenciosos e imóveis, como se o assassinato não fosse de todo um evento
surpreendente.
Não foi até que todos abaixo reagiram à notícia de que uma morte horrível
havia ocorrido a poucos passos de onde eles estavam sentados que os do
segundo andar entraram em ação. Gritos ecoaram nas vigas, carregando do
restaurante para as ruas. Mulheres e homens haviam fugido do prédio,
inchando pelas vielas e avenidas ao lado de Jacques.
Na multidão de corpos que gritavam, Odette desapareceu sem dizer uma
palavra. A princípio, Celine e Pippa se preocuparam que algo terrível
pudesse ter acontecido com ela.
Elas correram escada abaixo em direção às portas, procurando na
multidão qualquer sinal de uma jovem mulher vestida de homem. Quando
chegaram à frente da casa de Jacques, todas as saídas haviam sido isoladas
pela Polícia Metropolitana de Nova Orleans.
Mais de uma hora depois, Odette ainda não estava em lugar algum. De
fato, apenas alguns membros da La Cour des Lions ainda estavam presentes:
Arjun, Bastien, Nigel, o homem do Extremo Oriente e as duas mulheres com
anéis tentadores. O resto desapareceu na noite durante o caos. Celine sabia
que Bastien não poderia evitar ser interrogado. Sua família era dona desse
estabelecimento. Era natural que ele estivesse sob investigação imediata. A
qualquer momento, ela esperava que o tio dele, o conde, entrasse na sala
com uma capa de seda preta e uma cartola de pelúcia.
A mente de Celine agitou-se em uma enxurrada incessante de pensamentos.
Apesar de seus melhores esforços para silenciá-los, um continuou subindo
para a frente. A visão do corpo de Anabel a incomodou imensamente. É
claro que a ferida aberta na garganta da garota provavelmente assombraria
Celine pelo resto de seus dias. Mas algo mais a atormentava. Permaneceu um
pouco além do seu alcance.
O baque de um objeto sólido ecoou de baixo. O barulho desceu as escadas
em estacadas explosões de som. Celine começou. Pippa ganiu baixinho.
Ninguém mais pronunciou uma palavra. Os cinco policiais da Polícia
Metropolitana apertaram seu semicírculo com mais força, aproximando-se,
como as cordas de uma bolsa se fechando.
Então eles trocaram olhares preocupados.
Sem aviso, alguém bateu palmas atrás dos policiais que esperavam, o som
alto e repentino, fazendo Pippa gritar novamente e reacender a irritação de
Celine. Ele formigou sob sua pele como mil pequenas agulhas ameaçando
explodir. Arjun parou de rodar sua bebida. À esquerda, o cenho de Nigel
endureceu, a visão contrastando com o bigode ondulado, os tendões nos
dedos flexionando como se para impedi-lo de se lançar na briga.
Celine não precisou olhar para Bastien para saber que sua raiva havia
aumentado, assim como a dela.
— Minhas desculpas mais profundas por mantê-los esperando por tanto
tempo, — um homem entoou calmamente, o som díspar com as
circunstâncias. — Mas prometo que apenas um entre vocês será
verdadeiramente incomodado.
Os oficiais que estavam em um semicírculo se separaram sem preâmbulos.
Revelando o melhor detetive da polícia de Nova Orleans
UM DE NÓS

O jovem que deu um passo à frente não era o que Celine esperava.
Primeiro, ele parecia ser apenas alguns anos mais velho que ela. Sua
pele barbeada era castanha, em contraste com as feições pálidas dos outros
oficiais presentes. Ele não estava vestindo uniforme. Em vez disso, parecia
que ele havia deixado uma reunião elegante, o colarinho impecavelmente
engomado, a gravata cor de champanhe amarrada em um nó intocado. Seus
cabelos ondulados tinham sido domados com a última moda, por todos os
lados. Algo sobre sua aparência pareceu para Celine quase professoral. Um
toque estranho.
Exceto pelo inegável ar de autoridade ao seu redor.
Antes de falar novamente, ele lhes ofereceu um sorriso forçado, os dentes
retos e brilhantes. Depois ajeitou as mangas da camisa até que a quantidade
perfeita de branco aparecesse por baixo da borda do casaco verde-escuro.
— Sou o detetive Michael Grimaldi, da Polícia Metropolitana de Nova
Orleans, — ele começou com uma voz cortante, cada palavra correndo para
superar sua antecessora. — Espero ter a maior cooperação possível
enquanto trabalhamos juntos para encontrar o autor desse crime horrível. —
Ele deu um passo mais perto, caminhando ao lado de Arjun, que se encolheu,
com as feições azedas.
Ao ver o desconforto de Arjun, a satisfação passou pelo rosto do detetive
Grimaldi. Agora que ele estava ao lado de Arjun, Celine notou uma
semelhança em suas cores, embora os traços do detetive Grimaldi não
apresentassem a mesma aparência do Oriente. Talvez ele fosse italiano,
como o próprio nome sugeria.
Os olhos claros do detetive Grimaldi passaram pela sala novamente. Sem
dúvida, esquadrinhando a multidão, procurando uma abertura. Em pouco
tempo, ele se estabeleceu em Celine. Sua cabeça inclinou-se levemente, seu
olhar avaliando. Celine levantou o queixo automaticamente.
Desafiadoramente. Ela não sabia o que a possuía, mas se recusava a ser
vista como algo menos formidável. Com um sorriso malicioso, o jovem
detetive foi até Pippa.
Tudo o que ele estava procurando, ele encontrou nela.
Pippa ofegou em consciência. Celine pegou a mão de sua amiga para lhe
oferecer uma certa força, assim como Pippa havia feito inúmeras vezes hoje.
O detetive agachou-se diante de Pippa.
— Peço desculpas por ter que detê-la, senhorita, — disse ele. — Prometo
não mantê-la por muito tempo. Ouvi dizer que você era uma das senhoras
que encontrou o corpo da pobre jovem. — Ele fez uma pausa. — Isso deve
ter sido terrível para você. — O detetive Grimaldi estendeu a mão em sua
direção, como se quisesse ajudá-la a se levantar. — Você se importaria de
falar comigo além da multidão por apenas um...
— Não, — Bastien interrompeu, seu tom baixo e duro. Cheio de uma raiva
inconfundível.
Ele permaneceu na sombra, recusando-se a cumprir os termos mais
simples. Atrás dele, as cortinas se arrepiavam como se uma brisa tivesse
agitado suas bordas. — Ninguém responderá a nenhuma pergunta sem uma
testemunha, à vista de todos os presentes. —
Quando Bastien terminou de falar, a ameaça pairando sobre o espaço
engrossou. Constrito, como se estivesse sendo enjaulado em um vaso
encolhendo.
O detetive Grimaldi se levantou. Ele rolou os ombros para trás. Um traço
de fúria cruzou seu rosto antes de achatar suas feições mais uma vez.
— Sr. Saint Germain. — Ele levantou uma sobrancelha. — Se você deseja
ter um advogado presente...
— Isso não será necessário. — Bastien se afastou da parede e passou por
Celine em direção ao detetive da polícia. Ele deliberadamente demorou um
pouco, parando para mover um lenço amarelo-manteiga do bolso do colete
para o bolso da calça. Quando ele parou a poucos passos de onde estava o
detetive Grimaldi, as cortinas nas costas se mexeram mais uma vez. O
inconfundível assobio de uma serpente se enrolou no ar.
Toussaint deslizou da escuridão, tecendo lentamente a luz.
Celine endureceu onde estava sentada, o sangue congelando em seu corpo.
Gritos de medo irromperam dos lábios de vários policiais. Um deles tentou
sacar o revólver, mas o detetive Grimaldi ficou com a mão sem dizer uma
palavra. Bastien ofereceu a eles um sorriso parecido com uma foice, e isso
lembrou Celine de um personagem em um livro que ela havia lido
recentemente. Um gato de Cheshire que gostava de falar em verso.
Toussaint enrolou-se nos pés de Bastien, sua língua bifurcada passando
rapidamente sobre o tapete macio, sua cabeça se movendo em um balanço
preguiçoso. Embora os nós de tensão tivessem se apertado em torno dele, o
detetive Grimaldi facilitou sua posição, voltando a seguir os calcanhares.
— Penso que você já tem um advogado presente?
Bastien levantou um ombro desprezível.
— É possível.
Celine se forçou a relaxar enquanto procurava o mar de rostos ao seu
redor, tentando determinar qual membro de La Cour des Lions também era
versado na lei. Mas nenhuma das fileiras encontrou seu olhar. Nem um único
deles moveu um músculo. Era como se todos estivessem esculpidos em
pedra.
— É incrível que você tenha a previsão de fazer isso, Sr. Saint Germain.
— O detetive Grimaldi bateu a língua no céu da boca. — Realmente invejo
suas fontes.
— Aprendi com o exemplo, detetive Grimaldi. — Os olhos de Bastien se
esticaram ao redor das bordas. — A mente é uma espada. O conhecimento é
sua pedra de amolar.
— Claro. — O detetive Grimaldi bufou. — Se você preferir, ficaria feliz
em ajudá-lo e mudar todos para nossa sede antes de continuar questionando a
jovem. — Um brilho de conhecimento tomou forma em seu olhar incolor.
— Estou igualmente feliz em obedecer. — Embora Bastien mantivesse sua
voz cordial, a ameaça que rodava entre eles se agravou ainda mais. — No
entanto, não posso falar se todos aqui serão tão… favoráveis.
Celine engoliu em seco. Algo mudou, encolhendo a um ponto. Embora os
dois jovens se envolvessem civilmente, era impossível perder o sentimento
subjacente à troca.
O ódio mútuo e inalterado.
O verdadeiro perigo – do tipo que indicava danos corporais – girava em
torno deles.
Bastien saiu do círculo de escamas ao redor de seus pés, aproximando-se
de Pippa. Como se ele estivesse fazendo uma ameaça silenciosa. Desafiando
o detetive a pressionar mais.
O que se seguiu foi sutil. Nigel, Arjun, o homem do Extremo Oriente e as
duas mulheres com anéis perigosos olharam para Bastien em uníssono, seus
corpos rígidos com atenção.
Esperando que algo aconteça.
Não deveria ter funcionado. Mas os policiais que esperavam na periferia
murmuraram entre si. O mais novo dos cinco – um garoto de apenas dezoito
anos – desviou o olhar de Toussaint para Bastien. Ele estremeceu no instante
seguinte.
O que houve com Bastien – sobre esse lugar – que os fez se tremerem?
Um dos oficiais – um senhor mais velho, com nariz avermelhado e olhos
reumáticos – deu um passo à frente.
— Ah, Michael, — ele começou com uma voz grossa, — Ouça, meu
garoto, talvez seja…
— Detetive Grimaldi, — o jovem detetive corrigiu sem sequer olhar para
o homem que falava.
O policial tossiu uma vez, mas não conseguiu esconder a carranca
resultante.
— Detetive Grimaldi... talvez seja melhor realizarmos nossas perguntas
aqui, senhor.
O descontentamento cintilou no rosto de Michael Grimaldi. Celine sentiu
que desejava protestar, mas reconheceu que as marés estavam virando contra
ele.
— Muito bem, sargento Brady.
Nesse instante, ficou claro que todos os presentes – com exceção de
Celine e Pippa – sabiam algo sobre Jacques e seus habitantes peculiares que
não eram aparentes à primeira vista. Sébastien Saint Germain de fato exercia
um tipo estranho de poder dentro dessas paredes revestidas de painéis. Nem
uma vez ele emitiu ameaças diretas ou levantou a voz.
No entanto, ele conseguiu manter todos os presentes em um torno invisível.
A sugestão desse tipo de poder – a mera sugestão – enviou o sangue de
Celine em uma lágrima através de seu corpo, sua mente girando com a
possibilidade. A possibilidade de que ela também pudesse exercer esse tipo
de influência sobre os outros.
Que ela também poderia esmagar seus detratores em um torno.
Chocada com essa reação – por sua crescente obsessão por qualquer tipo
de poder – Celine se levantou abruptamente, desejando fugir de sua própria
pele.
Foi uma jogada impensada. Seu coração afundou como chumbo no
estômago quando ela percebeu que havia chamado a atenção da pior maneira
possível.
O jovem detetive virou-se para ela, deixando o olhar parar por um
momento.
— Posso ajudá-la, senhorita? — Ele entoou.
Celine considerou suas opções antes de responder. Ela viu os olhos do
detetive Grimaldi piscarem sobre ela. Dos cachos brilhantes de seus cabelos
escuros ao leve brilho de suor ao longo de sua testa. Para o pedaço de fita
preta em sua garganta e o vestido azul de gabardine preso firmemente em seu
busto. Ela se importava como as sobrancelhas dele arqueavam. Tomou nota
da ascensão e queda de seu peito. Observou como sua expressão se acentuou
com admiração, embora ele tentasse escondê-la.
Homens jovens eram previsíveis. Especialmente os jovens que apreciavam
as coisas boas da vida, como o detetive Grimaldi, como evidenciado por sua
maneira de se vestir.
Era uma verdade que ela havia percebido aos doze anos.
Celine abaixou os olhos e deu um passo à frente. Então ela ergueu os cílios
devagar, oferecendo a ele um sorriso hesitante.
— Sinto muito incomodá-lo, detetive Grimaldi, mas posso lhe pedir um
favor? — Ela inclinou a cabeça de maneira tímida.
Seus olhos pálidos se arregalaram.
— Como regra, costumo não concordar com esses pedidos até ouvir os
termos, senhorita... — Ele esperou que ela oferecesse seu nome, um tom
distinto em sua voz.
— Por favor, me chame de Celine. — Ela colocou um cacho preto atrás da
orelha. — E eu poderia te implorar para fazer uma exceção à sua regra,
apenas desta vez?
— Contra meu melhor julgamento, posso ser persuadido.
Da periferia, Celine jurou que ouviu Nigel bufar. Ela desconsiderou, nem
mesmo se permitindo considerar como Pippa poderia perceber seu
comportamento neste momento.
Como... outros podem perceber isso. Ela sorriu brilhantemente, depois se
inclinou para mais perto, como se quisesse contar algo ao detetive Grimaldi
com confiança.
— É terrivelmente tarde, e nossa... guardiã estará procurando por nós.
Seria possível realizarmos essas perguntas amanhã, à luz do dia? — Celine
fez uma pausa para respirar, seus olhos verdes implorando para ele sem
palavras. Ela pensou em estender a mão para tocar o braço do jovem
detetive, mas isso seria muito avançado, e ela não desejava manipular mal a
pequena quantidade de magia que conseguira conjurar naquele momento,
tudo em um esforço para alcançar um objetivo maior.
Celine queria desesperadamente sair. Dedicar-se uma hora para reunir
seus pensamentos e conversar com Pippa em particular. Uma chance de
contar a história certa a si mesma, para que pudessem oferecer mais tarde
como a verdade inabalável.
— Nós? — Perguntou o detetive Grimaldi.
Celine assentiu.
— Estou aqui com minha querida amiga Pippa.
O jovem detetive olhou por cima do ombro. Então voltou o olhar para
Celine.
— Aposto que sua guardiã deve estar bastante preocupada com o seu bem-
estar, dada a hora.
Celine assentiu novamente.
— Eu odiaria preocupar uma mulher tão boa, especialmente se ela ouvir
sobre os eventos infelizes que aconteceram hoje à noite.
— É claro, — ele concordou, sua expressão cheia de preocupação. —
Seria terrível para ela pensar que algo poderia ter acontecido com vocês
duas.
Celine sentiu que estava à beira de concordar. Seria realmente assim tão
fácil?
O detetive Grimaldi se inclinou para mais perto. Quase perto demais.
— Você sabe, — ele começou, sua voz baixa e rouca, — Você é uma
jovem muito bonita.
Talvez a jovem mais bonita que já conheci.
Celine piscou. Então riu alegremente.
— Obrigado, detetive Grimaldi.
— De fato... você pode ser adorável demais para o seu próprio bem — ele
murmurou.
— Perdão?
Ele se inclinou em direção à orelha direita dela.
— Sente-se, — ele a dirigiu — Antes que você se envergonhe mais.
A indignação surgiu no corpo de Celine, quente e fria ao mesmo tempo.
— Como se atreve...
O jovem detetive deu-lhe as costas antes que ela pudesse terminar de
adverti-lo. Naquele momento, ela não pôde ignorar a risada que escapou da
boca barbada de Nigel, nem o olhar de alegria pungente de Arjun passou por
ela. Celine não se atreveu a olhar para Bastien, embora desejasse
desesperadamente encarar a figura parada em silêncio, ocupando um grande
espaço confuso.
Bastien tinha vindo em defesa de Pippa. Por que ele não fez nada para
ajudar Celine?
No instante seguinte – como se tivesse ouvido o apelo tácito de Celine –
Pippa se levantou em um farfalhar de vozes.
— Detetive Grimaldi, peço gentilmente que não esqueça que existem
damas presentes.
— A voz dela tremeu com a última palavra, mas seus punhos se fecharam
contra os lados do corpo. — Além disso, eu também pediria que você
fizesse suas perguntas de maneira expedita. Estamos aqui há um bom tempo,
e provavelmente causaremos a ira da Madre Superiora no convento das
Ursulinas.
O detetive Grimaldi girou nos calcanhares.
— Você mora no convento? — Ele olhou primeiro para Celine em busca
de uma resposta.
Ela segurou a língua, recusando-se a responder, a humilhação ainda
ondulando em suas veias.
— Sim, — respondeu Pippa, aproximando-se de Celine em solidariedade.
— Nós moramos. — Ela inalou pelo nariz. — O mesmo que... — ela engoliu
— o mesmo que Anabel morava.
— Anabel? — Ele lançou a Pippa um olhar perscrutador.
— A jovem que pereceu esta noite, — Celine ofereceu em um tom calmo.
Michael Grimaldi olhou para ela por um suspiro antes de assentir.
— Então você conheceu essa pobre garota?
Celine fechou os punhos, as unhas cravando nas palmas das mãos. — Sim.
Ela é uma de nós. Uma das sete meninas que recentemente se estabeleceram
no convento. O nome dela é Anabel... — Ela se virou para Pippa.
— Stewart, — disse Pippa, com a voz embargada. — Anabel Stewart, de
Edimburgo.
— Entendo, — o detetive meditou. — Stewart acompanhou vocês aqui
esta noite?
Pippa olhou para Celine de lado.
— Bem...
— Nós não sabíamos que ela nos seguiu, — disse Celine, suas palavras
cheias de resignação. Agora que Pippa havia divulgado suas associações,
era melhor que eles revelassem tudo de uma só vez, em vez de prolongar o
assunto, forçando-o a torcer por eles toda última gota de informação.
Embora Celine não tivesse ficado infeliz ao vê-lo lutar.
Outro ataque de vergonha tomou conta de sua garganta. Como ela poderia
ter prazer em frustrar o jovem detetive encarregado de fazer justiça a
Anabel? Afinal, Celine era parcialmente culpada pelo que aconteceu hoje à
noite.
O momento em que ela ponderou mais cedo – quando percebeu que estava
fazendo a escolha errada – a esmagou com sua finalidade. Mesmo assim, ela
sabia que se arrependeria de suas ações, embora nunca pudesse ter
concebido um resultado tão terrível.
Celine desprezava se sentir assim. Como uma peça na engrenagem,
impotente para o seu destino.
Melhor ser qualquer outra coisa.
Ser um fantasma no meio da noite, comandando aqueles ao seu redor sem
palavras.
Naquele instante, Celine pensou que tinha uma ideia de como deveria ser
um monstro.
Cometer atos monstruosos. Desejar que coisas monstruosas aconteçam.
Para se deleitar no escuro.
— Senhorita? — perguntou o detetive Grimaldi em voz alta, como se já
tivesse tentado chamar a atenção de Celine várias vezes.
Ela balançou a cabeça, forçando seus pensamentos furiosos a se
acalmarem.
— Celine? — Pippa sussurrou ao lado dela. — O detetive fez uma
pergunta. — Ela pegou a mão de Celine e apertou-a, a afirmação silenciosa
de que cada uma delas não estava sozinha, não importa o que acontecesse.
Mais do que nunca, fortaleceu as duas.
O detetive Grimaldi estudou Celine, seus olhos pálidos, quase incolores,
irritantes em seu foco.
— Você sabe por que a senhorita Stewart seguiu você aqui sem o seu
conhecimento?
— Não conheço os pensamentos reais de ninguém, a não ser os meus,
detetive Grimaldi.
— Verdade. — Ele fez uma pausa. — Mas talvez — ele se aproximou,
apoiando Celine com sua altura impressionante. — Você me satisfaria por
apenas um momento.
A incredulidade se estabeleceu nas feições de Celine. A ousadia desse
garoto, para fazer pedidos a ela depois de humilhá-la tão publicamente!
— É claro, detetive Grimaldi, — disse ela entre dentes. — Ficaria feliz
em ajudá-lo.
— Encantador, — ele pronunciou em um tom plano. A respiração seguinte,
sua expressão ficou severa. Ele ficou ainda mais alto, uma ameaça tácita
emanando de seu peito largo. — Devo insistir para que você responda às
minhas perguntas honestamente, sem mais demoras, ou serei forçado a usar
toda a extensão do meu escritório para…
— Já chega, Michael. — As palavras de Bastien eram um sussurro
perigoso.
Finalmente, Celine fervilhava consigo mesma. Lúcifer finalmente achou
conveniente estender sua magnanimidade à sua maneira.
Bastien passou por Celine, passando por Michael Grimaldi, parado perto
demais para o conforto, combinando-o na frente do pé.
O detetive Grimaldi recuou. Uma satisfação sombria se enrolou no peito
de Celine. Como ela ansiava pela capacidade de assustar alguém com nada
mais que sua presença. Viver na pele de Bastien por apenas uma hora. Saber
como era ter esse tipo de poder.
— Como Celine já disse, nem ela, nem a Senhorita Montrose, estavam a
par dos pensamentos reais da Srta. Stewart e, portanto, só podiam especular
sobre as razões desta última para segui-las, — continuou Bastien em tom
medido. — Qualquer outro questionamento de sua parte insinua que a
senhorita está escondendo a verdade.
O detetive assentiu uma vez.
— O que é simplesmente uma maneira mais gentil de dizer que a dama
pode ser uma mentirosa.
Um músculo saltou na mandíbula de Bastien.
— Você ainda não aprendeu sua lição.
— E você ainda gosta de ser um cavaleiro de armadura brilhante. Algum
tipo de príncipe sombrio. — Ele zombou. — Você planeja me chamar de
novo? Serão pistolas ao amanhecer ou sabres na praça?
— Isso depende. — Bastien fez uma pausa. — Você vai implorar ao seu
primo para salvá-lo novamente?
Um vislumbre de raiva passou pelas feições do detetive Grimaldi.
— Muito bem. Vou dispensar as formalidades. — Ele falou com todos os
presentes, o tom em sua voz ecoando nas paredes revestidas de painéis. —
Todo mundo aqui é um possível suspeito de um assassinato. Todos vocês
podem estar mentindo para mim. — Seus lábios se curvaram em um sorriso.
— Na verdade, espero. Saiba que não vou ceder até descobrir a verdade. A
Corte dos Leões não possui mais autoridade do que a Polícia Metropolitana
de Nova Orleans, apesar da tradição que o cerca. Como oficial da lei, tenho
o dever de seguir qualquer curso de ação para determinar como essa pobre
jovem foi encontrada morta, drenada de todo o seu sangue.
Com essa revelação, um bloco de gelo se instalou ao redor do coração de
Celine, o frio queimando em sua garganta.
— Alguém... drenou o sangue de Anabel?
Girando em sua direção, o detetive assentiu.
— E usou para escrever esse símbolo matemático ao lado de seu corpo.
— Na verdade... Acredito que tenha nada a ver com matemática — disse
Celine, a consciência dando vida à sua voz. — Faz muito mais sentido que
seria uma letra ou um personagem. — Um tipo diferente de poder a
atravessava. Um tipo diferente de qualquer um que ela já conhecera. —
Talvez até de um texto antigo.
As sobrancelhas do detetive Grimaldi se arquearam antes que ele
conseguisse limpar o rosto de toda emoção.
— Interessante. E como você chegou a essa hipótese?
— Meu pai é professor de linguística. Ele tinha um quadro na parede de
seu escritório, mostrando a evolução do idioma inglês. — A alegria ecoou
por Celine. Esse foi o detalhe que a incomodou durante a última hora. Essa
era a coisa que havia permanecido além do seu alcance.
— Você sabe o que o símbolo significa? — O detetive pressionou.
— É parecido com as letras L ou C em latim ou grego, mas não está escrito
corretamente. É como se tivesse sido torcido ou escrito pela mão de um
bêbado.
— Entendo. — Ele pronunciou essas duas palavras lentamente.
Contemplativamente.
Celine olhou para o jovem detetive.
— É de sua responsabilidade suspeitar de todos aqui, mas você não pode
pensar que eu diria essas coisas se tivesse alguma coisa a ver com a morte
de Anabel. Seria o mesmo que confessar que sou a assassina.
O sargento Brady olhou para Celine como se tivesse brotado asas e um
chifre.
— Bem, serei amaldiçoado. A garota foi e confessou?
Michael Grimaldi espiou por cima do ombro, com uma expressão irônica.
— No futuro, eu daria um tempo para ouvir completamente antes de chegar
a conclusões, sargento Brady. — Ele se concentrou mais uma vez em Celine.
— Direi, no entanto, que estou intrigado com a noção. Você se importaria...
Bastien o interrompeu antes que ele pudesse terminar.
— Se você deseja continuar essa linha de perguntas, insisto em que você
marque um horário na sua sede amanhã, para que a senhorita Rousseau tenha
a chance de garantir sua própria representação.
Embora Bastien obviamente desejasse ajudar Celine, a irritava parecer
desamparada aos olhos de alguém.
— Embora aprecie seus esforços, monsieur senhor Saint Germain, não
preciso que você me defenda.
Como os outros membros da La Cour des Lions, Arjun ficou em silêncio
durante essa conversa, mas ele ficou parado, rindo baixinho.
— Ele não está defendendo você, boneca. Ele está fazendo o que faz de
melhor: negociando.
Nesse preciso momento, uma Odette sem fôlego apareceu no topo da
escada. Ela agarrou o corrimão com um suspiro, depois tirou os cabelos
desgrenhados da testa, deixando uma mancha de sujeira vermelha na testa.
Celine não estava preparada para o que se seguiu na sombra de Odette. Em
seus calcanhares, respirando pesadamente pelo esforço, estava a Madre
Superiora do convento das Ursulinas.
A salvadora de Celine... assim como sua possível executora.
HIVER, 1872
AVENIDA DAS URSULINAS
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

E ssa noite foi um fracasso e um sucesso.


Admito livremente que a morte da garota foi infeliz. Como disse antes,
não gosto de tirar uma vida. No entanto, em última análise, não consigo me
arrepender. No grande esquema das coisas, ela não passa de uma
engrenagem no relógio.
Meus inimigos viveram com tempo emprestado por tempo suficiente.
Com a morte dela, deixei minha mensagem. Mas ainda não consegui
alcançar todo o meu propósito. O maior inimigo da minha espécie sai livre,
sua reputação intacta. Sem uma pitada de suspeita atrás dele. Esse
conhecimento me enfurece. O infeliz ladrão não merece se deslocar ileso –
para ocupar posições de poder e influência – depois de todas as coisas que
sua família fez na minha.
Poderia matá-lo. Quebrar seu pescoço. Tirar todo seu sangue. Seria
simples. Merecido. Afinal, ele é a razão de eu andar neste mundo
desprovido de luz. Por causa dele, perdi tudo. Até minha própria
humanidade.
Eu poderia fazer isto. Poderia provocar sua morte.
Todavia, a morte dele em minhas mãos provocariam guerra e ruína para
aqueles que estavam ao meu redor. Aprofundaria a brecha entre os Caídos e
a Irmandade. Entre minha família e a dele. Primeiro, desejo vê-lo sofrer.
Desejo vê-los todos conhecerem seu criador e serem enviados para a
fogueira onde pertencem.
Rezo para que você não me julgue muito severamente por isso. Sei que
esses tipos de considerações mesquinhas são impróprias para imortais como
eu, mas há uma linha tênue entre justiça e vingança. Essa linha é a borda de
uma lâmina.
Um dia vou mergulhar na alma dele.
A garota, no entanto, me intrigou. Não é aquela com a expressão educada e
o rosto em forma de coração. Sei que existem aqueles que são atraídos por
pessoas como ela. Eles buscam tranquilidade. Um lugar para descansar a
cabeça.
Não procuro nada disso. Descansei por muito tempo.
Mas aquela garota… aquela garota com o olhar inabalável e a expressão
conhecedora. Ela possui a aparência de alguém que conheceu a Morte em um
campo de batalha e conseguiu viver outro dia. Estou intrigado com ela. Estou
curioso sobre as cicatrizes que a morte deixou para trás. Quero saber quem
ela é. O que ela fez.
Que papel ela desempenhará neste conto de angústia.
Meu interesse me consome de uma maneira perigosa, pois, demônios como
eu são predispostos à obsessão, e não tenho tempo para distrações. Uma vez,
anos atrás, minha irmã no meio da noite perdeu-se perseguindo um ser
humano normal, tentando encontrar respostas para perguntas que deveria ter
pensado melhor do que perguntar.
Eu não poderia salvá-la. A luz da lua me traiu naquela noite. Meu coração
ainda sofre as feridas, anos depois. Eu deveria saber melhor do que ser
consumido pela curiosidade. Não deveria me importar com o que essa
criatura encantadora pensa. O que ela faz ou o que sente.
E ainda...
Devo me importar. Não importa quão frágil ela seja – quão delicadamente
sua vida esteja na balança – ela é uma ferramenta a ser usada e descartada.
Um martelo destinado a um parafuso muito específico.
Ela será a única no final. Aquele que manda meu inimigo profundamente
nas profundezas do inferno, onde ele pertence. Consigo ver, tão verdadeiro
quanto posso sentir a lua no meu ombro, no alto de seu pico, sua luz é tanto
uma fonte de conforto quanto uma de dor.
Meu inimigo está tão encantado quanto eu. Ainda mais porque ele a deseja
na realidade, não simplesmente como um peão em um esquema maior. O
pensamento me enche de prazer. Talvez eu finalmente tenha encontrado algo
dele com o qual brincar. Algo para fazê-lo se contorcer. Tirar dele por tudo
que ele – e sua espécie – tirou de mim.
Pois, nunca houve uma história de mais sofrimento.
Em breve ele saberá como é ser desfeito.
UMA SILHUETA EM UM SONHO

— T’es une allumeuse, Celine Rousseau.


Você é uma provocação, Celine Rousseau.
Rios, rios, rios de sangue. O cheiro de cobre quente e sal. O turbilhão
suave de seus pensamentos conforme seu foco lhe escapava, quando ela
começava a se afogar lentamente em sua própria mente.
Era assim que o sonho sempre começava.
— T’as supplié pour mon baiser, n'est-ce pas?
Você está me implorando, não está?
O sussurro áspero dele ao lado da orelha dela. A sensação de sua mão
úmida contra sua dela, a palma da mão suada. A torção doentia de seu
estômago.
Ele era o irmão mais novo de um dos melhores clientes do ateliê. Um
esbanjador rico, acostumado a ter qualquer coisa – e qualquer um – que ele
quisesse. Acostumado a gastar o dinheiro do pai como se ele sozinho tivesse
ganho cada franco. Ele olhou para Celine nos últimos três meses, uma luz
gananciosa em seu olhar. Isso a deixara nervosa, mas ela sabia que não devia
irritá-lo chamando atenção para isso.
Semanas depois, ela ainda se lembrava de como as mãos dele não
pareciam as mãos de cavalheiros, pois eram calejadas e gastas. Na verdade,
nada sobre ele – apesar de sua criação e riqueza – indicava que ele era um
cavalheiro. Suas mãos estavam ásperas por andar a cavalo. Na verdade, ele
era um dos melhores cavaleiros em seu círculo de elite de amigos.
Com essas mãos, ele se ofereceu para acalmá-la. Ofereceu-se para lhe
trazer algo quente para beber. Perguntou se ele poderia fazer companhia a
ela. Celine não sabia o que fazer quando ele chegou à porta do ateliê muito
depois do anoitecer, sua fina capa sobre os ombros e a respiração cheirando
a vinho. Ela pediu para ele voltar para casa, mas ele insistiu, entrando na
oficina como se fosse o dono.
Em seu sonho, Celine observou a cena de cima, como se a parte consciente
dela tivesse se separado do corpo durante o sono. Ela testemunhou os
eventos se desenrolarem com lentidão punitiva. Observou-se cometer erro
após erro, como se o próprio Deus quisesse lhe ensinar uma lição.
Um baque surdo soou em seus ouvidos.
O vestido listrado rasgou-lhe os ombros quando o jovem tentou impedi-la
de fugir. Tudo depois disso foi uma névoa. Celine considerou-se sortuda por
ele mal conseguir segurar suas saias antes que seus dedos se mexessem,
lutando por qualquer coisa com a qual se defender.
O candelabro não tinha sido uma escolha. Essa tinha sido a melhor arma
que ela conseguiu pegar.
Celine sempre se perguntava – em momentos para si mesma – se ela
pretendia matá-lo.
Certamente ela poderia ter atingido ele usando menos força. Certamente
ela não precisava apontar para o lado da cabeça dele. Certamente ela
poderia ter impedido a morte dele.
Mas não. No mais sombrio dos seus sonhos, ela sabia a verdade.
Em Celine, o mal havia encontrado o receptáculo perfeito.
Ela pretendia destruir o jovem, tanto quanto ele pretendia destruí-la.
Enquanto ela assistia o sangue escorrer de seu corpo, ela procurou em sua
alma uma gota de arrependimento, uma pitada de remorso. Ela não encontrou
nenhuma. Ela apertou o candelabro com mais força. Preparou a mentira para
contar ao pai, sabendo que não podia ficar onde estava.
Mais uma vez, um baque surdo vibrou em seu crânio.
Quem acreditaria que Celine tinha sido a vítima? Afinal, não era ela
deitada fria e imóvel no chão do ateliê. A versão onírica de si mesma
encarou o círculo crescente de vermelho.
Recuou para não manchar a bainha das saias.
E então... algo novo e curioso começou a tomar forma no sangue que se
acumulava sobre seus pés. Normalmente Celine estava descalça nessa
lembrança, os dedos dos pés deslizando sobre o mármore frio, tentando
evitar qualquer contato com o garoto que ela matara.
Esta noite, um símbolo se formou ao lado dos dedos dos pés. O mesmo
símbolo que ela viu antes, manchado na madeira ao lado do corpo de
Anabel.
Algo macio roçou a ponta do nariz de Celine. Ela olhou para cima. Uma
agitação de pétalas amarelo-douradas cascateou ao seu redor, instalando-se
na poça de sangue cada vez maior, transformando-se em centenas de lenços
bordados no instante em que tocaram o chão de mármore. Então a deusa
lunar arrastou sua carruagem através do sonho de Celine.
O barulho em seus ouvidos ficou mais alto. Mais insistente.
Tudo se dissolveu em um mar de preto.

Celine acordou assustada.


Embora o quarto dela estivesse escuro, nem tudo estava parado.
Os baques estavam mais agudos agora. Não mais abafado. Um barulho de
madeira contra pedra. Ela se encolheu quando uma névoa fria umedeceu sua
pele. As persianas do lado de fora da janela se abriram. Uma tempestade se
alastrou além deles, enviando lençóis de chuva para o lado, levando água
para o minúsculo quarto até que tudo o que tocou parecesse vivo.
Celine se levantou. Quase escorregou quando seus pés descalços
deslizaram pelo chão molhado de pedra. Ela deu alguns passos curtos para a
janela da sua cela. Então suspirou.
— Merde. — ela amaldiçoou para ninguém.
Não poderia ser ajudada. Se ela fosse prender a trava mais uma vez, teria
que se inclinar para a frente e ficar encharcada.
Celine pensou em se envolver em um xale. Seria apropriado fazê-lo. A
camisola noturna era feita de algodão fino. Se a chuva ensopasse a roupa,
seria inapropriado ela ficar ao lado da janela e correr o risco de ser vista.
Sua expressão endureceu quando ela percebeu que seu xale não estava ao
seu alcance.
O vento continuava batendo em suas persianas, a chuva soprando através
de seu quarto.
O decoro que se dane.
Celine lutou contra um vendaval particularmente severo, depois estendeu a
mão sobre o peitoril da janela para agarrar a trava de madeira.
Sinais de movimento chamaram sua atenção. Ela congelou, embora a chuva
continuasse caindo sobre ela, encharcando seus cabelos, penetrando em sua
pele. Celine piscou para conter as gotas. Parecia que uma figura pairava em
sua periferia, posicionada ao lado de um pilar perto do portão da cerca de
ferro forjado do convento. Ela piscou novamente.
A silhueta desapareceu.
O coração de Celine bateu no peito, o sangue diluindo em suas veias.
Ela puxou as persianas fechadas, trancando-as juntas em um movimento
contínuo. Então ela pegou um pedaço de algodão grosso. O sangue
continuava batendo em seu corpo quando ela tirou a camisola e puxou uma
camisa limpa de seu escasso baú de roupa.
Uma coisa era certa: algo havia mudado naquela noite.
Desde aquela noite no ateliê, quase seis semanas atrás – quando o mal se
refugiara em seus ossos – Celine se sentia dividida. Certamente, entre o
certo e o errado. Mas mais do que isso, entre quem ela era e quem ela
pensava que deveria ser.
Celine Rousseau era uma garota que acreditava na justiça. Aquele jovem
pretendia estuprá-la – destruí-la, corpo e alma.
Era errado ela destruí-lo?
Ela sabia a resposta certa. Aquele que a Bíblia ensinou. Porque Celine
também era uma garota criada nos Dez Mandamentos, e era errado matar.
Mas haveria momentos em que poderia ser o certo?
Celine Rousseau poderia ser uma garota que valorizava a vida, assim
como uma garota que a tirara de alguém, sem um pingo de remorso?
Era como andar na beira de um penhasco. Se Celine caísse para um lado,
ela seria boa para sempre. Se ela se apaixonasse pelo outro? Ela seria
consumida pelo mal e perderia todas as chances de redenção. Celine sabia
que parecia bobo, mas para ela parecia verdade.
Não era possível que o bem e o mal residissem na mesma pessoa.
Ou era possível?
Celine piscou com força na escuridão úmida. Após os eventos desta noite,
ela não deveria se preocupar com essas coisas. Ela deveria estar tremendo
em sua camisola, envenenada por um tipo diferente de preocupação.
Amanhã, apesar de seus esforços, o mundo de Celine poderia desmoronar
como um castelo feito de areia. À tarde, o detetive Grimaldi chegava ao
convento para terminar de interrogá-las. Foi seu favor para a Madre
Superiora, uma mulher bem familiarizada com sua família. Celine assistiu
em choque silencioso enquanto a idosa advogava por ela e por Pippa.
Implorou a paciência do jovem detetive.
— Senhorita Rousseau e Senhorita Montrose são boas e jovens mulheres.
— ela disse.
— Elas ficarão mais do que felizes em cooperar. É claro que elas
responderão a qualquer pergunta que você fizer para elas. Mas, por favor,
conceda-as esta noite para lamentar a perda de seu amigo. Refletir sobre as
ações que provocaram essa infeliz mudança de eventos.
Celine desviou o olhar quando ouviu essas palavras, sua vergonha como
uma adaga no coração.
Nenhum traço de culpa foi encontrado no rosto da Madre Superiora. Mas a
mulher enrugada havia poupado Celine. Ofereceu-lhe um perdão nos degraus
da forca.
No dia seguinte, Michael Grimaldi renovaria suas investigações. E se o
detetive olhasse para o passado de Celine com seus olhos misteriosos e
incolores? E se ele perguntasse por que ela viajara pelo Atlântico?
E se ele soubesse que ela era uma assassina?
Poderia ser sua ruína.
As mãos de Celine tremiam quando ela enrolou o pedaço de algodão
grosso ao redor do cabelo, tentando em vão torcer os fios da cintura. Seus
sonhos a provocaram. Suas memórias falharam. Seus desejos se tornaram
ceifadores no escuro.
Ela lutou para organizar suas emoções. Se ela não assumisse o controle de
sua vida – desses medos – eles certamente a controlariam. Ela não podia
permitir que isso acontecesse. Sucumbir ao medo era o caminho certo para
perder o equilíbrio.
Celine voltou para sua cama estreita de corda, determinada a lutar por uma
certa paz, para poder se preparar para o que o amanhã poderia trazer.
Quando ela pegou os lençóis de linho grosso ao pé do colchão, ela congelou.
As pétalas de ouro. Os lenços bordados.
Ela piscou uma vez. Duas vezes. O comprimento de algodão grosso
enrolado em seus cabelos se desenrolou no chão de pedra a seus pés. O
corpo dela tremia.
Bastien havia guardado um pedaço de tecido dobrado no bolso da calça.
No brilho quente das lanternas a gás, parecia um lenço de seda amanteigado.
Na luz brilhante do dia?
Seria amarelo.
Como a fita que faltava no cabelo de Anabel.
UMA VISITA SURPRESA

O s sonhos de Celine continuaram assombrando-a até altas horas. Pelo


resto da noite, o sono dela ia e voltava. Em meio à inquietação, ela
imaginou ter visto a silhueta do lado de fora da janela se aproximar, um
toque de preto em um mar de cinza.
Quando criança, esse tipo de sonho indistinto chegava a ela em ondas,
muitas vezes em tempos de tumulto. Neles, tudo parecia vívido, vivo e
possível, até seus pesadelos mais distorcidos. Por duas vezes, ela imaginou
que sua mãe a havia visitado na calada da noite. Uma vez, ela estava envolta
em pele de raposa cintilante, com os olhos em chamas. Na ocasião seguinte,
ela foi acompanhada pelo aroma salgado do oceano, uma pérola brilhando
entre os dentes.
Esta noite, Celine sonhou que sua mãe sussurrou em seu ouvido. Ela sentiu
a aproximação, o perfume de óleo de cártamo e o incenso espesso sobre ela.
— Kah, — disse ela, com um hálito frio na concha da orelha de Celine. —
Bhal-ee.
Celine não deveria saber o que essas palavras significavam. Mas o corpo
dela congelou, os olhos arregalados.
Fuja. Sua respiração ficou ofegante. Rápido.

Por sorte, a manhã seguinte trouxe o céu mais claro que Celine contemplara
desde que chegara a Nova Orleans,, duas semanas antes. Como resultado, os
raios do sol se infiltravam em todos os cantos.
Às dez horas, a temperatura havia se tornado sufocante.
Além disso, um dos piores temores de Celine havia acontecido.
Ela estava na frente de uma sala de aula, olhando para doze rostos jovens
sorridentes, a mais velha não tinha tinha mais que dez anos anos. À direita
estava Catherine, as mãos cruzadas à sua frente, óculos no rosto, a epítome
de uma jovem gentil.
Esperava-se que Celine ajudasse Catherine a ensinar as jovens sobre
comportamento adequado na sociedade, além de instruí-las sobre a
pronúncia correta do francês. S'il vous plaît, merci beaucoup, je vous en
prie, pardonnez-moi que significam, respectivamente, Por favor, Muito
obrigado, Com licença e Me perdoe.
Ela supôs que tudo isso foi uma tentativa cuidadosamente orquestrada por
parte da Madre Superiora de envergonhá-la. Para lembrar Celine de seu
lugar na vida e no mundo.
— Senhoritas! — Catherine bateu palmas. — Prestem atenção na
mademoiselle Rousseau. Ela está aqui para lhes ensinar exatamente o que
fazer para impressionar, digamos... um jovem cavalheiro bonito em algum
momento no futuro próximo? — Ela enviou um sorriso gentil para Celine,
mas em suas profundezas Celine detectou uma pontada de ressentimento. É
claro que Catherine sabia o que havia acontecido na noite passada. Todas as
jovens do convento haviam sido informadas, a verdade se espalhando como
fogo pela vegetação rasteira.
Sem surpresa. Uma das suas havia morrido de maneira terrivelmente
violenta.
Talvez Celine não deva culpar Catherine pela condescendência que
moldou sua sobrancelha esta manhã. Se Catherine estivesse ligada à morte
prematura de Anabel, Celine certamente também estaria lhe enviando um
olhar crítico.
Em uma tentativa de canalizar a confiança que Celine não tinha neste
momento, ela ofereceu um sorriso agradável para a sala cheia de inocentes à
espera.
— É claro que é adorável saber o que dizer e fazer na sociedade, mas
você também deve prestar atenção simplesmente para aprender a falar outro
idioma. — disse ela em tom desatento. — Não gostaríamos de sentir que
tudo o que fazemos é uma tentativa de chamar a atenção de um jovem, não é?
— Ela riu baixinho.
Um punhado de meninas na sala riu com Celine, embora a maioria delas se
contorcesse em seus assentos, os rostos contraídos em confusão.
A fúria moldou cada um dos traços de Catherine antes de se concentrar
acima das sobrancelhas.
— Senhorita Rousseau, posso falar com você por um minuto? — ela
resmungou entre os dentes.
Celine olhou para as vigas de madeira ao longo do teto, contando até dez.
Ela sabia que era um erro estar ensinando algo a alguém. Especialmente uma
sala de aula de crianças sob o olhar atento de uma ex-governanta inglesa.
Piadas sobre puritanos e a Torre do Terror surgiram na mente de Celine
antes que ela os silenciasse no instante seguinte.
— Celine? — Catherine disse ainda mais suavemente. Ainda mais
acaloradamente. Ela olhou para a saída de soslaio.
Estremecendo o tempo todo, Celine assentiu. Enquanto seguia Catherine
em direção à porta, uma voz semelhante a um sino veio do fundo da sala.
— Mademoiselle Rousseau? — perguntou uma garota com olhos de gato e
uma mecha de cabelos rebeldes.
Grata por ter escapado da palestra iminente, Celine virou-se.
— Sim?
A menina brincou com um canto da lousa.
— É verdade que você é de Paris?
— Sim, é verdade.
Murmúrios de admiração percorreram o espaço.
— Por que você foi embora? — Perguntou outra garota perto da frente da
sala de aula.
Um fluxo de maldições silenciosas saía da garganta de Celine. Por um
instante, pensou em repetir a palavra suja que Bastien usara na noite anterior
no primeiro encontro.
Simplesmente ver como seria chocar todos os presentes com nada além de
uma única sílaba.
Celine fechou os olhos com força.
— Porque eu queria uma aventura. — Outro sorriso brilhante tomou forma
em seu rosto.
— Que tipo de aventura você gostaria de ter?
— Gostaria de ver as pirâmides. — respondeu a primeira garota.
Uma garota de tranças loiras bateu um dedo no queixo.
— Talvez viajar de barco um dia?
— Eu quero tentar... lula! — outra gritou da direita.
Sons de alegria se misturavam com seu nojo exagerado. Risos de menina
caíram no teto de gesso. Catherine olhou desconfiada para Celine, mas
voltou ao seu canto de julgamento sem dizer uma palavra.
Mais uma vez, Celine foi poupada nos degraus da forca.

Menos de uma hora depois, uma batida ecoou na porta.


Catherine respondeu como se estivesse esperando por isso o tempo todo,
suas saias cinza-azuladas um farfalhar suave contra o chão de pedra polida.
A jovem que esperava do outro lado inclinou com tristeza a cabeça dos
cabelos castanhos.
— Rousseau? — perguntou ela a Celine. — Desculpa por incomodar sua
aula, mas há um cavalheiro esperando por você e Miss Montrose no limoeiro
que leva ao vestíbulo.
Celine fortaleceu os nervos enquanto seguia a garota com capuz para fora.
Num banco perto de uma fileira de trepadeiras de tomate cuidadosamente
cultivadas, estava Pippa em um vestido de lavanda, seu olhar oco, sombras
escuras pairando sob seus olhos. Como Celine, era óbvio que ela não tinha
dormido bem. Quando Pippa viu que elas foram buscá-la, ela lhes ofereceu o
menor dos sorrisos. A visão acalmou Celine, embora a incomodasse que
Pippa tivesse sido colocada – mais uma vez – em uma situação precária.
Se ao menos Pippa não tivesse se oferecido para acompanhar Celine na
noite passada.
Se ao menos Celine não tivesse sido tão insistente.
Se ao menos a Madre Superiora não tivesse enviado Anabel para espioná-
las.
Se apenas fosse isso.
O coração de Celine trovejou em seu peito enquanto ela se preparava para
enfrentar o jovem detetive da polícia com seriedade. Para dar o desempenho
de sua vida.
Quando eles contornaram a curva final – sua escolta deixando-os à sua
sorte – Celine ficou chocada ao descobrir que não era o detetive Michael
Grimaldi esperando sob o dossel de folhas com cheiro de cítrico.
Era Arjun.
Ele estava à sombra de um limoeiro, com um chapéu-coco na mão, o
monóculo no topo do olho direito. Ele parecia envolvido em conversas com
o jardineiro, um cavalheiro curvado cuja pele bronzeada e enrugada o
envelheceu além dos anos, dando-lhe a aparência de um bruxo, com uma
barba longa e fina. O jardineiro ofereceu a Arjun um tipo de ramo, seu caule
verde vibrante e pequenas folhas envoltas em um pedaço de linho
umedecido. Curvando-se até a cintura, Arjun tocou a parte superior do pé do
jardineiro, como se estivesse em gratidão.
Então ele pegou o ramo antes de se voltar para Celine e Pippa e oferecer a
elas o sorriso mais falso.
Para não ficar atrás, Celine respondeu do mesmo jeito.
— Perdoe-me. — ela começou. — Mas estou um pouco confusa. Posso
perguntar sobre...
— É coentro. — interrompeu Arjun. — Uma erva frequentemente usada na
culinária das Índias Orientais. Senti falta do perfume e William
generosamente me ofereceu um ramo para o meu jardim.
Celine piscou duas vezes.
— Isso foi gentil da parte dele.
— E não é a pergunta que você pretendia fazer. — Arjun sorriu. — Bastien
pediu que eu viesse aqui hoje. Aconselho-o em questões legais, e ele não
queria que você ou a senhorita Montrose fossem interrogadas pela polícia
sem que alguém advogasse em seu nome.
O entendimento se estabeleceu em Celine. Além de ser o lacaio de Bastien
– dando socos a pobres tolos em becos detestáveis – Arjun também foi o
advogado mencionado na noite passada. Diversão amarga esquentou o corpo
de Celine. Ela não ficou surpresa ao saber que Bastien mantinha entre seus
amigos mais próximos um advogado, sem dúvida a todas as horas do dia e
da noite.
— Então... você é advogado? — perguntou Pippa, uma brisa brincando
com as pontas dos cachos loiros emoldurando seu rosto em forma de
coração.
— De certa forma. — respondeu Arjun sem perder o ritmo. — Conheço a
lei por dentro e por fora, mesmo que eu não tenha permissão para praticá-la.
Uma expressão interrogativa passou pelos traços de Pippa.
— Eu não entendo.
— Mas é uma pena. — Outro sorriso punitivo tomou forma em seu rosto.
— Que minha pele não é da cor certa, senhorita Montrose, nem minha
paternidade. Certamente você, de todas as pessoas, entende isso.
— Desculpe-me? — Ela piscou, consternação nublando o olhar.
— Com base no seu sotaque, aposto que você é de Yorkshire. Uma garota
inglesa adequada, completamente.
A cor inundou as bochechas de Pippa.
— Sim, eu sou de Yorkshire.
— Então, sem dúvida, você está ciente de que nunca seria permitido a um
lutador do leste da Índia trabalhar como advogado em qualquer círculo de
importância. — Colocando o chapéu-coco debaixo do braço, Arjun guardou
o ramo de coentro dentro do bolso do peito do casaco cinza. — Isso é
intencional, caso você não saiba. — Ele riu para si mesmo.
— Nem todos nós acreditamos em tais noções. — disse Pippa suavemente.
— Isso pode ser verdade. — disse ele. — mas todos vocês
definitivamente se beneficiam com isso.
Pippa empalideceu enquanto lutava para responder.
Sabendo muito bem que essa conversa não estava a favor da amiga, Celine
interrompeu com uma pequena reverência.
— Muito obrigada por ter tido tanto problema em nosso nome, monsieur...
— Ela esperou Arjun oferecer seu sobrenome.
— Desai. — Ele desviou o olhar de Pippa e pigarreou.
— Mas, por favor, sinta-se à vontade para me chamar de Arjun, pois acho
que passamos desse tipo de formalidade. — Seus olhos castanhos brilharam.
— Agradeço que você venha aqui hoje para advogar em nosso nome, mas
receio que não tenhamos os meios para pagar você. — Celine lutou contra o
desejo de se contorcer sob seu olhar firme. — E eu não gostaria me de
aproveitar seu valioso tempo.
Ele bufou.
— Parece que nós dois não gostamos de estar em dívida com os outros. E
embora meu tempo seja realmente valioso, você não precisa se preocupar
com pagamento. Bastien cuidará de todas as despesas.
A pura arrogância. Dos dois homens. O olhar de Celine se estreitou. Pippa
olhou para o lado, com um olhar de extremo desconforto.
— E por que ele faria isso? — Celine pressionou.
Arjun inclinou a cabeça de um lado para o outro, considerando.
— Eu não poderia especular sobre as razões dele. Uma jovem sábia me
disse uma vez que só temos conhecimento de nossos próprios pensamentos.
— Um meio sorriso apareceu em seu rosto quando ele lembrou a Celine suas
palavras da noite passada.
Celine podia sentir seus lábios começando a fazer beicinho. Ela ficou
quieta, deixando seus olhos responderem por ela.
— Bravo, senhorita Rousseau. — comentou Arjun. — Aconselho você a
manter essa indignação durante o curso da investigação de hoje. — Ele deu
um passo mais perto de Pippa, diminuindo o espaço entre eles de uma só
vez. — Fique em silêncio, a menos que tenha certeza absoluta de que as
próximas palavras que você falar serão irrecuperáveis. Faça da calma sua
amiga. Aproveite isso.
Foi a vez de Celine bufar.
— Simples o suficiente. Você está apenas nos pedindo para nos
comportarmos como as damas que fomos criadas.
— Eu apostaria que essa é uma tarefa mais fácil para algumas do que para
outras.
Celine mordeu a língua, recusando-se a deixá-lo incitá-la.
Pippa fez uma careta.
— Não há necessidade de fazer tais negligências, senhor. — disse ela. —
É impróprio de sua parte.
— A verdade é muitas vezes imprópria. Mas isso não significa que seja
injustificada.
— Na sua opinião. — Pippa ergueu o queixo élfico, preparada para a
batalha.
Celine não queria que Pippa fosse vítima das provocações de Arjun, então
decidiu que era melhor mudar de assunto.
— Você ainda não respondeu minha pergunta anterior, monsieur Desai. Por
que Monsieur Saint Germain se responsabilizará por nos fornecer uma
representação legal?
— Eu te disse ontem à noite, senhorita Rousseau. — respondeu ele. —
Bastien está apenas fazendo o que faz de melhor. Não vejo isso como mais
nada. Ele teria feito o mesmo por quem precisa de assistência, como fez por
inúmeras outras jovens da cidade.
— Que magnânimo da parte dele. — respondeu Celine em um tom frio.
Um sorriso apareceu nos lábios de Arjun.
— Confie que ele está mais preocupado em pôr um fim rápido em qualquer
coisa que possa afetar negativamente os negócios de sua família.
Bem. Celine fungou, sua indignação aumentando. Incomodava-a
imensamente que Bastien tivesse decidido tomar decisões por elas, sem
sequer consultá-las primeiro. Sem mencionar que, se as suspeitas dela
estavam corretas – se Bastien realmente tinha algo a ver com a morte
prematura de Anabel, como sugeria a fita amarela no bolso – ele estava
essencialmente servindo bebidas para eles de um poço envenenado.
Além disso, Celine odiava a ideia de lhe dever alguma coisa.
Ela poderia recusar. Mas isso seria tolice e orgulho. O benefício de ter
uma mente jurídica presente para os eventos futuros deve superar as
preocupações dela com o que o futuro distante pode trazer.
Arjun espanou a aba do chapéu-coco.
— Acredito que o detetive está esperando por nós dentro do escritório da
Madre Superiora. — disse ele. — Se você gostaria de aproveitar o
benefício que lhe é oferecido, por favor, mostre o caminho. Mas se você
preferir ser idiota, darei um bom dia para vocês duas.
Celine se irritou ainda mais. Pelo menos ela não seria culpada de egoísmo
ou arrogância nesse caso.
— Pippa. — disse ela, virando-se para a amiga. — o que você acha que
devemos fazer?
Pippa olhou de Arjun para Celine e voltou, sua expressão pensativa.
— Embora não tenhamos nada a esconder, acho melhor ter um advogado
conosco, não é?
— Eu concordo. — Celine assentiu. — Agradecemos sua ajuda neste
assunto, Monsieur Desai. Por favor, transmita nossa apreciação para... seu
empregador.
Pois eu certamente não vou, Celine terminou em sua cabeça.
Diversão sombria brilhava no olhar de Arjun.
— Vamos? — Ele disse a Pippa e Celine, indicando que elas deveriam
liderar o caminho para dentro.
Nenhuma delas ousou dar um passo à frente. As sobrancelhas grossas de
Arjun se juntaram quando ele se virou para Pippa.
— Senhorita Montrose, — disse ele baixinho. — Você não tem nada a
esconder. Para citar Lancelote, a verdade será revelada.
Pippa assentiu. Então ela seguiu pelo limoeiro, sua postura rígida, o
queixo erguido.
Preparando-se, Celine inspirou profundamente antes de seguir a amiga, na
esperança de que Shakespeare – nesse caso – estivesse totalmente errado.
Sua verdade deve permanecer na escuridão. Não importa o custo.
A PERFORMANCE DE SUA VIDA

À luz do dia, o detetive Michael Grimaldi não parecia tão intimidador


quanto na noite anterior. Ele também não parecia tão professoral. Ele
quase pareceu... bonito.
Infelizmente, essa mudança de rosto fez pouco para aliviar a tensão que
crescia no corpo de Celine.
Ela ajeitou o assento na cadeira de madeira rangente posicionada diante da
mesa da madre superiora. Então ela passou a saia por cima do vestido mais
tedioso que possuía. A cor da água da louça suja, esse vestido em particular
havia sido relegado aos tempos em que Celine brincava com corantes de
tecido no ateliê. Seus ouvidos ainda ardiam com o modo como o detetive
Grimaldi a repreendeu friamente por usar artifícios femininos para
convencê-lo a estar do seu lado. Hoje, seu traje fora escolhido para enfatizar
que Celine não se importava se o jovem detetive zombeteiro e auto-
importante a achasse atraente.
A mulher mais bonita que ele já conheceu, o caramba. Celine fervilhava
consigo mesma.
Então ela deu um grande suspiro.
O temperamento dela não podia tirar o melhor dela hoje, como quase tirou
ontem à noite.
Do lado oposto da mesa da madre superiora, Michael Grimaldi a observou
em silêncio estudioso antes de considerar Pippa, que estava sentada entre
Celine e Arjun. As mãos de Celine ficaram úmidas quando o detetive
Grimaldi ergueu um olhar gélido para Arjun, que cruzou o tornozelo sobre o
joelho antes de remover um pequeno caderno de couro e colocá-lo na mesa
ao lado de um lápis de grafite.
A imensa cruz de madeira na parede diante de Celine parecia aumentar a
cada momento que passava. O próprio Jesus pareceu prender seu olhar
torturado no dela e dizer: — Sofri assim por sua salvação?
Celine desviou o olhar.
Era importante que ela mantivesse o juízo. Que ela não perdesse de vista a
diretiva anterior de Arjun. Se ela permanecesse recatada e silenciosa, talvez
Michael Grimaldi os deixasse em paz.
Mas se o pior acontecesse, Celine sabia como desviar suas atenções para
outro lugar.
A localização de uma fita de cabelo amarela ausente, para ser específica.
O detetive Grimaldi pigarreou.
— Obrigado por concordarem em se encontrar comigo, senhorita Rousseau
e senhorita Montrose. — ele entoou.
— Claro. — murmurou Pippa. — Desejamos ajudar de qualquer maneira.
Celine inclinou a cabeça. Seu olhar cortante fixo. Absteve-se de
compartilhar seus pensamentos, embora tivesse certeza de que sua expressão
falava alto. À esquerda de Pippa, Arjun sorriu e depois pegou uma lâmina
fina para começar a afiar a ponta do lápis de grafite.
O ruído de metal contra madeira era tão reconfortante quanto irritante.
— Você conseguiu descansar, senhorita Rousseau? — Perguntou o detetive
Grimaldi diretamente a Celine.
Ela inalou pelo nariz.
— É gentil da sua parte perguntar por mim, detetive Grimaldi. Eu dormi
tão bem quanto se pode esperar.
Colocando o boné de tweed na mesa, o detetive recostou-se na cadeira de
madeira.
— Então eu suponho que você não dormiu bem.
— Não sei como responder a isso, senhor. Você está fazendo uma
investigação indireta sobre se eu dormi como uma pessoa culpada dormiria?
Se sim, você deve saber... não vai funcionar.
O golpe da faca contra o lápis cessou no meio do curso.
Michael Grimaldi arqueou uma sobrancelha.
— Você compartilha seus pensamentos com toda a sinceridade, senhorita
Rousseau.
Celine considerou arreganhar os dentes em um sorriso feroz. O miserável
maldito estava deliberadamente tentando provocá-la. Novamente. Ela alisou
a saia, prendendo a atenção em uma leve mancha verde ao longo da bainha.
— Suponho que você preferiria se eu mantivesse meus pensamentos para
mim.
— Não. Agradeço sua sinceridade. Espero que você continue
compartilhando comigo.
Em resposta, Celine não disse nada.
Totalmente inquieto, o detetive Grimaldi virou-se para Pippa.
— Uma boa noite de descanso é algo que eu valorizo muito. Como o
primeiro de cinco filhos, era um luxo que mal podíamos pagar quando eu era
menino. Quantos irmãos você tem, Srta. Montrose?
Pippa se assustou com a pergunta.
— Como você sabe que eu tenho irmãos?
— Uma dedução simples. A manga interna do seu vestido está desgastada.
A cor não está mais na moda, embora tenha sido feita para uma jovem há
pouco tempo, sugerindo que ele não pertencia à sua mãe. — Ele a olhou
atentamente. — É lógico que você não é filha única.
A indignação ficou presa na garganta de Celine no instante em que o rosto
de Pippa ficou vermelho. Celine abriu a boca para repreender o detetive,
mas se conteve, olhando para Arjun em busca de orientação.
O advogado delas terminou de afiar o lápis. Ele descansou o monóculo em
cima do olho direito e abriu seu pequeno caderno de capa de couro. Sem
dizer uma palavra, ele começou a escrever nele, o rascunho do grafite no
papel sendo toda a sua contribuição à investigação deles.
Homem irritante, pensou Celine.
— O vestido me foi dado pela minha prima. — respondeu Pippa, com a
voz clara. Sem culpa. — E eu também sou a mais velha da minha família.
— De quantas? — perguntou o detetive Grimaldi, como se estivessem
tomando chá da tarde no Claridge.
— Três. Eu tenho um irmão e uma irmã.
Ele a considerou por um momento.
— Você deve ter sido um excelente modelo para eles. Sem dúvida, muito
melhor que eu.
Pippa desviou o olhar.
— Eu fiz o meu melhor, detetive Grimaldi.
— Você não se sente à vontade em ser sincera na minha presença,
senhorita Montrose?
— Um sulco marcou sua testa.
Foi... inesperado da parte dele acusar Pippa de ser ingênua.
— Estou próxima à isso. — disse Pippa.
— Ajudaria se eu lhe dissesse que não tenho suspeitas sobre você,
senhorita Montrose?
Pippa respirou com cuidado.
— Isso ajudaria, definitivamente. — Ela mordeu o lábio inferior. — Mas
isso deve significar que você também não tem suspeitas sobre Celine, já que
ficamos juntas o tempo todo.
Arjun ergueu os olhos do caderno.
O detetive inclinou a cabeça, os olhos incolores sem piscar.
— Você tem certeza de que esteve na presença da senhorita Rousseau
durante toda a noite?
O coração de Celine bateu em seu peito como um pássaro enjaulado.
Ele prendeu Pippa em uma mentira. Tão facilmente.
Pippa empalideceu.
— Eu… — Ela olhou para Arjun, que continuou rabiscando em seu
caderno, oferecendo-lhe nem uma única palavra de conselho. — Houve um
breve período em que deixei o lado dela. Mas não poderia ter sido por mais
de quinze minutos. — ela terminou com pressa.
— Durante esse tempo. — o detetive Grimaldi olhou para Celine — Você
interagiu com mais alguém, senhorita Rousseau?
Celine nem se deu ao trabalho de olhar para Arjun em busca de pistas.
Ficou claro que o detetive Grimaldi já sabia as respostas para as perguntas
que estava fazendo. Ele estava tentando pegá-los. Para enlamear as águas.
Por fim, Celine só poderia arriscar um palpite.
— Eu acredito que você já conhece essa resposta. — disse Celine,
impaciente.
No entanto, ele esperou a resposta dela.
Com um pequeno suspiro, ela continuou.
— Durante esse período, compartilhei uma breve conversa com o
proprietário do estabelecimento.
— Senhor Saint Germain.
Celine assentiu.
— E ele esteve presente durante toda a sua visita à casa de Jacques?
A percepção brilhou através de Celine, quente e rápida. O detetive
Grimaldi estava atrás de Bastien, não delas. Ela deveria ter percebido isso
antes, com base na inimizade mútua de ontem à noite. O alívio a inundou
como água fria em um dia seco. Sua mente girou ao pensar em revelar suas
observações sobre a fita amarela.
Mas cada palavra que ela falava precisava estar acima de qualquer
censura. E ela não tinha provas incontestáveis.
— Não. — respondeu Celine cuidadosamente. — Ele não estava.
Arjun parou de escrever, com o lápis parado sobre o caderno por um
instante. Então ele sorriu para si mesmo antes de retomar seus rabiscos. Mas
esse sopro de tempo havia revelado sua participação. A verdade sobre o
motivo pelo qual o antigo advogado estava aqui, tornou-se acentuada.
Ele não estava aqui para ajudá-las. Ele veio para proteger Bastien. Para
garantir que seu empregador não estivesse envolvido em nada desagradável.
Esses guarda-costas haviam se inserido na infeliz situação de Pippa e Celine
para proteger seus próprios interesses, provando que não se importavam
com ninguém. Embora Arjun tivesse dito o mesmo a Celine, sua raiva
aumentou repentinamente. A revelação sobre a fita amarela ameaçava sair de
seus lábios em uma onda de fúria descontrolada, falta de provas que se dane.
— Rousseau? — perguntou o detetive Grimaldi.
Amaldiçoe-o por ser tão observador. Celine limpou seus pensamentos
com um lance de seus cachos escuros.
— Além do fato de estar sendo interrogada pela polícia, não consigo
pensar em nada que possa estar errado.
— Eu quis dizer que você parecia excitada de repente. Como se algo digno
de nota tivesse captado seu interesse.
— Eu só cheguei a uma conclusão preocupante. Isso é tudo.
— Posso perguntar depois?
Indiferentemente, Celine desviou o olhar para Arjun. Ele encontrou o olhar
dela, depois se recostou no banco, a madeira embaixo dele rangendo com a
mudança de peso. Os cantos de seus olhos castanhos se estreitaram, seu
monóculo brilhando como se estivesse em alerta.
— É em relação ao monsieur Saint Germain. — disse Celine.
Michael Grimaldi não moveu um músculo, sua quietude desmentindo seu
interesse.
— Embora eu tenha visto apenas por um momento. — começou Celine. —
A imagem de Anabel na morte será gravada para sempre em minha mente, e
eu queria ter certeza de que você pegaria todos os detalhes.
O detetive assentiu.
Arjun bateu a ponta do lápis no couro preto do caderno, com um sorriso
sereno no rosto, embora mantivesse a atenção fixada em Celine.
Sem palavras, ela o desafiou a detê-la.
— Sua pele pálida. — continuou Celine. — Seus olhos abertos congelados
de terror. — Ao lado dela, Pippa estremeceu. — Seu cabelo solto no rosto...
— Ela assistiu para ver se Arjun teve alguma reação. Exceto pelas batidas
contínuas do lápis no caderno, ele não tinha nenhuma emoção.
— E, — Celine fez uma pausa. — aquela ferida horrível e irregular.
O detetive esperou.
— Um tipo de ferida que teria produzido uma grande quantidade de
sangue, sem dúvida. — disse Celine. — Seria quase impossível para
qualquer pessoa presente ontem à noite – incluindo Monsieur Saint Germain
– cometer um crime tão hediondo, depois drenar sua vítima de sangue e
remover todos os vestígios de sua pessoa a tempo.
O detetive Grimaldi colocou as mãos na frente dele. Ele olhou para
Celine, pensativo. Ela não sabia dizer se ele estava impressionado ou
irritado.
— Cheguei a uma conclusão semelhante, senhorita Rousseau. — disse ele.
— Mas precauções podem ser tomadas. Roupas manchadas podem ser
trocadas. Casacos e luvas podem ser tirados com a mesma facilidade com
que são colocados. — Ele se inclinou sobre as mãos unidas. — Por isso,
você ou a senhorita Montrose encontraram algo que julgassem suspeito?
Bastien havia descartado seu casaco. Numerosos membros de La Cour des
Lions haviam carregado armas contra suas pessoas. Facas, armas, picadores
de gelo e até anéis que poderiam servir como instrumentos de tortura e
violência. De repente, a pequena mancha vermelha na gola da camisa de
Odette não parecia tão inócua.
Odette, uma assassina? Celine quase riu para si mesma. Então o sangue
dela gelou.
Celine era uma assassina.
Qualquer um era capaz de cometer atos medonhos. E todos na corte dos
Leões pareciam possuir dons de outro mundo. Alguns podiam provar o sabor
da mentira. Podiam fazer com que as peças de xadrez se movessem,
ordenadas pela mente. Podiam prever o futuro, com apenas um toque.
O próprio Arjun acalmou um homem em estupor, simplesmente agarrando
seu pulso.
Celine olhou em volta, o medo penetrando em sua alma. Todos esses
indivíduos estavam além do comum, suas habilidades se estendendo para
além dos truques da sala de estar.
Mas até que ponto? Mais uma vez, ela lembrou o que as duas jovens
haviam revelado no início da praça, sobre - a Corte - provavelmente sendo
responsável pela garota decapitada ao longo das docas.
A Corte. La Cour des Lions.
Celine não acreditava em coincidências.
E apenas um tolo provocaria criaturas com apetites incalculáveis e
habilidades desconhecidas.
Se Celine desejava manter-se segura – para manter Pippa segura – ela
precisava se curvar com o vento, não importava o sabor amargo que deixaria
em sua língua. De repente, ela entendeu por que os outros policiais da
Polícia Metropolitana de Nova Orleans haviam concedido a Bastien um
espaço tão amplo.
Cognez au nid de guêpe, e vous serez piqué.
Golpeie o ninho de uma vespa e você será picado.
Celine alisou a saia do avental. Ela encontrou o olhar penetrante do
detetive, recusando-se a vacilar.
— Lamento dizer que não vi nada de especial, detetive Grimaldi.
Decepção brilhou em seu rosto. Ele olhou para Pippa.
Disfarçadamente, Celine pegou a mão de Pippa embaixo da mesa. Apertou
com força.
— Sinto muito, detetive Grimaldi. — disse Pippa em uma voz clara. —
Mas eu também não vi nada.

— É uma pena que minhas clientes não possam ajudar mais, detetive
Grimaldi. — disse Arjun, enquanto mantinha aberta a porta do escritório da
madre superiora.
Para seu crédito, ele não parecia nem um pouco convencido.
No entanto, um tipo de raiva oca subiu pelo estômago de Celine.
— É realmente uma grande pena. — respondeu o detetive Grimaldi
friamente. Ele voltou para deixar Pippa passar e depois esperou do outro
lado da porta de carvalho.
Quando Celine cruzou a soleira de pedra no corredor cavernoso, o jovem
detetive passou o chapéu de tweed para a outra mão para caminhar ao lado
dela.
Ele estava esperando por Celine. Talvez por outra chance de pegá-la
desprevenida.
Antes que o detetive Grimaldi pudesse continuar investigando, Celine
decidiu recuperar o controle da situação e pegá-lo de surpresa primeiro.
A solução mais rápida seria costurar o detetive enquanto ele a agulhava.
— Parece que você conhece bem o Monsieur Saint Germain. — disse
Celine, esperando que isso o provocasse, com base na troca de acusações
entre os dois jovens na noite anterior.
Michael Grimaldi a surpreendeu. Ele não parecia nem um pouco
perturbado pela pergunta dela.
— Sim. Nós éramos colegas de escola quando crianças. Os melhores
amigos. — Ele ofereceu isso com uma expressão de conhecimento. Como se
ele estivesse interessado em ver como essas notícias a afetavam.
Celine franziu a testa.
— Colegas? Então, por que você está...?
— Eu pensei que deveria ser o único com as perguntas.
Celine mordeu a bochecha enquanto caminhavam.
— Minhas desculpas por perguntar. — disse ela, embora não sentisse
pena.
A sugestão de um sorriso tocou seus lábios.
— Pode ser estranho para mim dizer isso, mas você também seria uma
ótima detetive, senhorita Rousseau.
Celine bufou com desdém. Enquanto seguiam Pippa e Arjun pelo corredor
em direção às portas duplas que davam para o lado de fora, ela lembrou o
que Arjun havia dito no início da tarde. Sobre ser o tipo errado de pessoa no
tipo errado de pele.
— Mesmo você deve estar ciente de que aqueles do sexo oposto nunca
poderiam lutar por uma posição tão elevada, detetive Grimaldi.
— Infelizmente, você não está errada. — O detetive parou em
contemplação. — Você sabia que a Polícia Metropolitana de Nova Orleans é
uma das únicas forças policiais em nosso país que permite que homens de
cor sirvam em suas fileiras?
— Eu não sabia. — Outra centelha de surpresa aqueceu através de Celine.
— É um desenvolvimento bastante recente. Provavelmente um tipo de
experimento distorcido. — Ele suspirou para si mesmo. — Mas, como neto
de um escravo, suponho que seja algo pelo qual devo agradecer.
Alguns passos à frente deles, Pippa e Arjun se aproximaram das enormes
portas duplas, Arjun pegando uma maçaneta de madeira para abri-la. Ele
parou para olhar o caminho de Celine, e a fita de luz crescente à esquerda
fez seus olhos brilharem prateados por um instante, como se ele fosse um
predador agachado nas sombras.
Inumano.
Nervosa com o pensamento recorrente, Celine voltou sua atenção para
Michael Grimaldi, parando um momento para examinar suas feições.
— Quando nos conhecemos, pensei que você era italiano. Você não é?
— Eu sou. — O detetive colocou o chapéu debaixo do braço e segurou a
outra alça. — A família do meu pai é da Sicília. Mas a família de minha mãe
é de sangue misto, assim como muitos residentes de longa data de Nova
Orleans. Além do distrito dos jardins, é claro. — O detetive Grimaldi se
afastou para deixar Celine passar sob a luz do sol.
— Entendo. — disse Celine lentamente. Ter a opção de ocultar a verdade
de sua própria herança combinada significava que ela havia sido poupada
desse tipo de julgamento cruel. — Não deveria ser revolucionário pensar
que a cor da pele de alguém não deveria ter influência sobre o seu lugar na
sociedade.
O detetive abriu a porta enquanto Celine emergia no brilho ofuscante do
sol da tarde.
— Eu concordo. — disse ele. — Você pode não estar ciente disso, mas a
sociedade de Nova Orleans – de fato, a sociedade em todo o Sul – baseia
grande parte de suas noções na regra de uma gota. — Ele seguiu os passos
dela. — Se você possui uma gota de sangue africano, recebe pouco em
consideração.
Celine ponderou sobre isso, sua visão se esforçando para se ajustar à luz
branca dura.
Ela olhou para ele.
— É a terra dos livres apenas em idéias, então.
Um sorriso tomou forma em seu rosto.
— A família do meu pai era de humildes sapateiros em Palermo. Muitas
vezes lutavam para juntar duas varas para iniciar um incêndio. A chance de
uma vida melhor os levou a Crescent City há cinquenta anos. — Ele levantou
a mão direita para proteger o olhar do sol.
— O que a trouxe às margens do Novo Mundo, senhorita Rousseau? A
Madre Superiora me disse que você chegou de barco há menos de duas
semanas.
Celine agarrou o tecido gasto de suas saias.
— A mesma coisa que trouxe sua família aqui, detetive Grimaldi. — Ela
sorriu para a luz, sua expressão feroz. — Oportunidade.
O detetive mudou, colocando Celine na sombra, protegendo-a do pior do
brilho do sol.
— Você é muito boa. — ele sussurrou.
— Perdão?
— Você é muito boa em esconder o quão inteligente é.
— E você é muito ruim em tentar ser charmoso.
Os lábios dele se contraíram.
— Você não me acha encantador?
— Você ainda está me interrogando, detetive Grimaldi. Você se sentiria
encantador neste caso?
Ele passou a mão grande pelos cabelos ondulados.
— Um ponto para você. E, por favor — ele disse. — me chame de
Michael.
— Eu... não sei se é apropriado.
— Acho essas crenças tediosas. É apropriado se decidirmos que pode ser.
— Se a vida fosse tão simples. Se ao menos todos nós fôssemos espertos o
bastante para evitar o tédio como você.
Seus olhos incolores – tão claros como um tom de azul que parecem quase
brancos – brilharam estranhamente por um instante. Quase como se ele
estivesse divertido.
Perto, Pippa tossiu como se quisesse limpar a garganta, e Celine girou em
sua direção.
Arjun e Pippa esperavam do lado de fora do portão de ferro, com
expressões incongruentes.
Pippa parecia alerta e estudiosa, os olhos arregalados, mas não de maneira
desaprovadora.
Em contraste, Arjun parecia despreocupado com os acontecimentos ao seu
redor, exceto pela luz aguda ainda brilhando em seu olhar.
Se Celine tivesse que adivinhar, o jovem advogado olhou... Cruzado.
Uma ideia tomou forma em sua mente. Uma maneira simples de
impressionar Arjun – e seu empregador – que ela faria o que quisesse,
apesar de suas tentativas de interferir.
Celine ofereceu a mão direita para Michael.
— Tenha um bom dia, detetive Grimaldi. Por favor, veja se você não volta
aqui tão cedo.
— Ela lhe lançou um sorriso provocador.
Ele lhe ofereceu um sorriso desajeitado, quase forçado, e então pegou a
mão dela para pressionar os lábios dele. Eles eram quentes e macios.
Apesar de pretender afirmar a vantagem, Celine sentiu as bochechas
começarem a ficar vermelhas.
— Eu a deixo desconfortável? — Ele perguntou sem aviso.
— De modo nenhum.
Os dedos dele apertaram os dela.
— Você está mentindo.
— O quê? — Celine piscou consternada.
Ela era tão ruim nisso?
— É de pouca importância para mim, se você está. Veja bem, o coração.
— Michael levantou o pulso, onde o pulso de Celine pulsava em suas veias.
— Não mente.
Sem uma palavra, ela soltou os dedos, seu maldito rosto corando ainda
mais a cada momento que passava. Então ela girou sobre os calcanhares,
com a intenção de fugir para a segurança do convento imediatamente.
— Posso lhe oferecer uma palavra de cautela? — Michael perguntou,
assim que ela começou a refazer seus passos.
Celine voltou, esperando ansiosamente, sabendo muito bem que Arjun
estava ouvindo a conversa deles, tudo com a intenção de informar seu
empregador.
— É em relação a Bastien. — disse Michael em voz alta, colocando o
chapéu de tweed diante dele como se fosse um escudo.
Celine não disse nada em resposta, lutando para recuperar a compostura.
— Quando éramos crianças, chamávamos-lhe de fantasma, porque todos
ao seu redor pareciam perecer sem explicação, deixando para trás nada além
de espectros. — começou Michael. — Primeiro sua irmã mais velha, Émilie.
Depois a mãe dele. Finalmente o pai dele. — Ele fez uma pausa. — Não
terminou aí. Quando ele completou dezesseis anos, seu tio subornou uma
vaga para ele em West Point. Então um dos colegas de quarto de Bastien foi
morto em uma briga de bar. Bastien atacou outro garoto, culpando-o pela
morte de seu amigo. Ele bateu no garoto dentro de uma polegada de sua vida.
Pouco tempo depois, ele foi convidado a deixar a academia militar em
desgraça.
— Eu... acho que entendo o que você quer dizer. — disse Celine. —
Obrigado pela informação. — disse ela em tom frio, enquanto Arjun se
erguia além dos dentes de ferro forjado.
— Bastien destrói tudo o que toca. — Michael continuou em um tom
estridente. — A menos que seja algo tão sem alma quanto dinheiro. Com
dinheiro, ele é realmente um príncipe sombrio.
— Aprecio o aviso, mas é improvável que eu e o Sr. Saint Germain
passemos um tempo na companhia um do outro, pois não tenho interesse em
ter nada a ver com ele.
— Eu gostaria que ele compartilhasse o sentimento.
Celine escolheu ignorar esse comentário. Ela olhou para o portão, onde
Pippa olhou para ela com uma expressão de curiosidade indisfarçável.
Arjun, enquanto isso, atirou punhais nas costas de Michael, depois inclinou a
cabeça para Celine de uma maneira espúria e alegre.
— Gostaria muito de vê-la novamente, Celine. — Michael anunciou, como
se tivesse algo a provar.
Chocada em seu âmago por essa admissão aberta, Celine quase perdeu o
equilíbrio.
Esse idiota, ela pensou, acredita que eu o notaria depois que ele
zombasse de mim e discutisse sobre um assassinato por dois dias seguidos?
Celine pensou rapidamente, imaginando o que ele esperava alcançar com
esse espetáculo. Não poderia ser tão simples irritar Bastien, poderia? Deus
a salve da mesquinharia dos jovens. Ou talvez...
— Eu também gostaria disso, Michael. — respondeu Celine.
Seria inteligente manter as boas graças do detetive Grimaldi. Sem
mencionar que isso irritaria imensamente o advogado traidor. Celine se
pegou à beira de sorrir. Arjun a testemunhou simpatizando com inimigo de
Bastien. Ela apostaria qualquer coisa que o advogado astuto iria acrescentar
esse detalhe específico à sua coleção de rabiscos inúteis.
Bom para ele, Celine pensou com um deleite sombrio.
Como ela desejava poder ver o rosto de Bastien quando Arjun o
informasse dos acontecimentos de hoje. Isso serviu a eles.
Na próxima vez, eles pensariam melhor antes de usar Celine Rousseau
como um peão.
UMA ASSASSINA NA MISSA DE DOMINGO

Mon amie,
Descobri a seda perfeita para meu vestido de baile em uma loja que
importa tecidos diretamente da China. Brilha como uma pérola e parece
água contra a pele. Eu já comprei rolos e rolos dele. Mal posso esperar
para mostrá-los quando chegarem ao Jacques hoje à noite.
Bastien planeja se encontrar esta manhã com monsieur.
Me procure depois da missa.
Eu serei a que estará com o diabo.
Bisous,
Odette

Celine leu a carta de Odette três vezes. Mesmo em várias leituras, seu
conteúdo não parecia menos ridículo.
Apenas um demônio cruel como Bastien participaria da missa na igreja
perto do convento de Ursuline uma mera semana depois que um de seus
moradores perecesse em seu estabelecimento. E apenas uma criatura
destemida como Odette insistiria em acompanhá-lo simplesmente para que
ela pudesse falar com sua nova modista sobre um vestido para o baile de
máscaras.
Com o simples pensamento de Bastien, Celine murmurou.
Mas Odette – como sempre – a encantou.
As dualidades em guerra de Celine cessariam?
Ela suspirou. Com o passar do tempo, parecia cada vez mais improvável.
Celine estava nua no centro de seu quarto, um medo frio a percorrendo
com o pensamento do que hoje traria. Sua pele estava úmida, o ar ao seu
redor perfumado pelo sabão de lavanda e castela que ela usara em seu banho
recente. Era uma alegria oferecida a ela em raras ocasiões, essa chance de
tomar banho na grande banheira de cobre compartilhada por todas as jovens
que residiam no convento. Na maioria das noites, ela era relegada a um
balde de água fria e meia ração de sabão sem perfume.
Respirando profundamente a suave fragrância de lavanda, Celine vestiu
uma roupa íntima limpa e amarrou os laços de sua blusa abaixo da clavícula.
Então ela segurou a frente de seu espartilho no meio da barriga e fez uma
careta antes de puxar os laços firmemente atrás dela até que sua cintura
parecesse estranhamente pequena em comparação com o busto e os quadris.
Como sempre, demorou um momento para se recuperar depois de se
prender no espartilho.
Celine prendeu as fitas brancas de sua camisola de linho sobre as esteiras
de ossos de baleia. Ela se virou para estudar as três peças de roupa
espalhadas por sua estreita cama de corda, tentando decidir qual de seus
vestidos surrados era o menos surrado.
Ela usara o vestido azul para a missa no domingo passado, o que
significava que o listrado era sua próxima melhor opção.
Com um suspiro exagerado, Celine pegou o vestido cor de salmão. Ela
sentiria calor nele, mas era o menos amarrotado e ainda mantinha um rastro
de seu brilho anterior.
Celine entrou na gaiola de sua crinoleta e ajustou a azáfama atrás dela. Ela
amarrou as cordas de sua melhor anágua na cintura antes de pular para cima
e para baixo para endireitar a saia sobre a extensão estreita de aros ovais.
Por fim, amarrou a saia listrada da fundação e a saia combinando com o
avental no alto da saia de linho antes de pegar o corpete coordenado e
começar a árdua tarefa de prender todos os minúsculos botões na frente.
Quando Celine terminou, ela olhou para o vestido, desejando que o
convento tivesse um espelho de qualquer tipo em algum lugar próximo. Uma
maneira de determinar se ela parecia tão tola quanto se sentia.
Celine supôs que seu vestido aparecesse... reparável. Quando ela fez isso
pela primeira vez, mais de um ano atrás, era bonito e elegante. Semanas no
porão encharcado de um navio em uma travessia transatlântica haviam
alterado o tecido irreparavelmente.
Celine chupou as bochechas.
Tudo bem. O vestido não estava terrível.
E sua aparência não importava para Deus, então por que deveria importar
para mais alguém?
Tolices. É claro que sua aparição na missa importava. Celine não podia
simplesmente marchar pela nave quadriculada da catedral de Saint Louis em
nada além de sua camisa e roupa íntima.
Embora isso fosse realmente um espetáculo, comportando-se tão
descaradamente em tais salões sagrados. Provavelmente seria banida do
convento – uma ideia que a aterrorizava e a intrigava.
Não importa.
Celine alisou a frente do vestido, as vibrantes listras rosas achatadas sob
as palmas das mãos. Eram quase dez horas, mas o dia estava quente como
uma casa de banho no verão.
O forte calor de Nova Orleans nunca deixou de surpreendê-la. Esta cidade
no final de janeiro parecia Paris em julho... se as ruas de Paris tivessem sido
encharcadas pelo mar. Ao lado de seu pé, havia os restos de uma pequena
poça, provavelmente de quando ela desenrolara os cabelos úmidos antes de
se vestir.
Distraidamente, Celine desenhou um símbolo na poça com a ponta do dedo
do pé. O mesmo símbolo encontrado ao lado do corpo de Anabel logo se
formou no chão de pedra. Ao mesmo tempo, Celine passou o calcanhar
através dele, banindo-o de vista.
Como seria Nova Orleans em julho? Inferno na Terra?
Celine estremeceu.
Ela imaginou que pareceria uma assassina na missa de domingo.

Celine estava sentada ao lado de Pippa em um banco de carvalho no meio do


lado direito da Catedral de Saint Louis. Uma gota de suor escorreu por seu
pescoço. Os fãs improvisados agitavam-se ao lado de artifícios caros de
seda e madeira lacada. Sussurros desbotados carregados para o teto com
afrescos acima. As cabeças começaram a cair mesmo antes do início do
sermão, os olhos se fechando um instante antes de a pessoa acotovelada
acordar.
— Misericórdia. — Celine murmurou para Pippa. — É ainda mais quente
que na semana passada. Como devemos suportar os meses de verão?
Pippa sentou-se ao seu lado em um vestido de organza azul claro. Não
muito tempo atrás, ele tinha sido o auge da moda. Foram feitos esforços para
manter o delicado detalhe das rendas, mas várias pequenas lágrimas podiam
ser vistas ao longo das mangas. Em alguns lugares, havia sido
meticulosamente consertado.
— Você está adorável. — sussurrou Celine.
Pippa cutucou seu ombro com bom humor.
— Pareço um lenço empapado ao seu lado. Essa cor brilhante é
maravilhosa contra a sua pele.
Celine tremeu.
— Você não deveria falar mal do meu amigo. Especialmente em uma
igreja.
Pippa sufocou um sorriso.
Atrás do imenso altar de mármore, o monsieur se posicionou para iniciar
seu sermão, passando do latim para o inglês para abordar adequadamente
sua congregação.
Celine examinou a multidão até que seu olhar caiu em um par bem vestido
posicionado no lado oposto do corredor. Bastien estava sentado em um
banco no final da primeira fila, Odette ao lado dele em um vestido de cor
creme de duquesa de cetim com um gorro.
É certo que não foi a primeira vez que Celine lançou um olhar na direção
deles.
Ela ficou surpresa ao notar que Bastien parecia bem familiarizado com
todos os aspectos da missa. Ele recitava as coisas em latim inflexível. Sabia
quando sentar, levantar e ajoelhar.
Inclinou a cabeça com o tipo de reverência que Celine juraria ser genuína.
Isso a pegou desprevenida, para dizer o mínimo. Ela meio que esperava
que um raio o atingisse no momento em que ele mergulhou os dedos na bacia
de água benta ao lado da entrada.
— Quando a tragédia acontece no rebanho do Senhor, devemos olhar para
as lições a serem aprendidas. Tragédia é o que vem da desobediência. — o
monsieur zumbiu. — Como Ele nos divulgou no livro do Apocalipse...
Celine fechou os olhos, tentando ignorar as palavras dele, mesmo quando o
fogo e o enxofre choveram ao seu redor.
— ... e devemos ser gratos pelos atos de penitência decorrentes dessas
tragédias.
Devemos oferecer bênçãos aos filhos favorecidos de nossa bela cidade,
por sua generosidade ilimitada e seu atrito inabalável. — Entoou o homem
idoso, com as mãos abertas nos dois lados de sua vestimenta de ouro. —
Nosso Deus está perdoando. Então devemos ser.
A atenção na igreja se voltou para Bastien, que mantinha o olhar desviado,
a cabeça inclinada em oração.
Celine levou apenas um momento para entender.
Aquele demônio pagou por seus pecados hoje. Com - generosidade sem
limites -, ele comprara a absolvição da igreja. Esse tinha sido o motivo pelo
qual ele se encontrou com o monsieur e fez questão de comparecer à missa
hoje.
Celine afundou no banco e cruzou os braços, furiosa.
Primeiro, ele enviou seu advogado para cobrir seus rastros com a Polícia
Metropolitana.
Depois, trocou ouro por absolvição, como trocaria uma moeda por um
pedaço de pão. Se essas não fossem as ações de uma consciência culpada,
Celine iria comer o chapéu e engolir a fita listrada inteira.
Ela olhou para a nuca de Bastien. Embora relutasse em admitir, tinha que
admirá-lo por sua eficiência. Tinha que invejar como ele flutuava pelo
mundo tão incólume.
Se Celine possuísse um décimo de seu poder, não haveria limite para o
que ela poderia fazer.

— Celine! — Logo depois dos degraus que levavam à catedral, Odette


acenou de seu assento em uma carruagem preta brilhante combinada com um
par de garanhões da meia-noite.
Inspirando pelo nariz, Celine desceu as escadas em direção à carruagem
ao ar livre. Ela colocou a mão na testa para se proteger do sol do meio-dia.
— Bonjour, Odette. — disse ela com relutância.
— Bonjour, mon amie. — Odette abriu o guarda-sol cremoso de seda com
um floreio, os rubis ao redor de sua camafeu de marfim piscando na luz
filtrada, seu olhar avaliando. — Eu adoro como você usa tons tão brilhantes.
É muito mais intrigante do que esse mar de tons pastel. — Ela acenou com a
mão enluvada ao redor da praça. — Um dia, você deve me dizer o que a
inspira.
Celine pensou por um momento, sua mão ainda a protegendo do sol
intransigente.
— Paris costumava ter céus melancólicos. Eles sempre eram lindos,
especialmente na chuva, mas eu ansiava por borrões de cor, então pensei em
me envolver neles.
— Bien sûr. — Odette murmurou com um sorriso conhecedor. — Venha
sentar comigo. — Ela deu um tapinha no couro vermelho ao seu lado.
— Eu não deveria. — respondeu Celine, olhando em volta para o que ela
achava ser uma boa parte da alta sociedade de Nova Orleans, saindo da
igreja a caminho do churrasco de domingo.
— Ah, isso pareceria desagradável?
Celine torceu o nariz.
— Não é desagradável. Só... indiscreto.
— Logo depois daquele infeliz incidente. — Odette assentiu.
Celine simplesmente sorriu.
— Bem, — disse Odette. — suponho que posso emitir meu convite a partir
daqui.
— Convite?
— Para se juntar a mim para jantar no Jacques hoje à noite, tolinha. Ainda
temos muito o que discutir em relação ao meu vestido para o baile de
máscaras. E não se preocupe, — ela acrescentou quase como uma reflexão
tardia. — não será perto de onde... Ocorreu o incidente.
— Eu–não acho isso sábio. Tenho certeza de que a madre superiora...
— Já concedeu o pedido, apesar de suas apreensões iniciais. O monsieur
falou com ela antes da missa.
— Claro que sim. — murmurou Celine, descrença queimando através dela.
O diabo no trabalho mais uma vez, sem dúvida.
Então – como se ele tivesse sido convocado por seus pensamentos –
passos ecoaram escada abaixo atrás dela, movendo-se ritmicamente.
Eficientemente. Celine se virou no lugar no momento em que Bastien passava
por ela em um terno de linho cinza, o chapéu Panamá inclinado sobre a testa,
o cheiro de bergamota e couro desenrolando em seu rastro.
Ele não parou para reconhecê-la, então Celine retornou o gesto.
— A carruagem virá buscá-la esta noite às sete horas. — disse Odette
enquanto Bastien se instalava na carruagem em um único movimento fluido.
— E não se preocupe com sua aparência. O que você está vestindo agora é
adorável. — Sem aviso, ela bateu no braço de Bastien com a alça entalhada
do guarda-sol. — Você não acha que Celine parece adorável?
Bastien apertou os lábios e olhou para Celine.
— C'est une belle couleur. É uma cor bonita. — Ele segurou as rédeas,
sua expressão desapaixonada.
Odette desviou os olhos na direção dele, depois sorriu para Celine.
— É realmente uma cor bonita. Mas eu não estava falando sobre...
O par de cavalos negros reluzentes decolou antes que Odette pudesse
terminar, seus cascos batendo nos paralelepípedos, espalhando qualquer
pobre alma ainda circulando pela catedral branca.
Na confusão que se seguiu, Celine ouviu Odette guinchar pelo pátio, suas
palavras uma mistura de francês e espanhol, sua indignação apontada para
um alvo preciso.
Celine sorriu para si mesma, suas feições sérias no instante seguinte. Ela
viu a elegante carruagem dobrar a esquina, de costas para a igreja. Um
momento depois, seu olhar se voltou para o olhar incessante de uma figura
familiar parada do outro lado da escada, estudando Celine atentamente. A
Madre Superiora franziu a testa, sua censura simples, o sol lançando metade
do rosto na sombra.
Não foi preciso o trabalho de um gênio para deduzir a fonte de sua
irritação. Mais uma vez, ela foi frustrada em suas tentativas de controlar
Celine, desta vez pelo próprio monsieur.
Com um bufo, a matrona do convento continuou descendo os degraus, sua
postura estóica, seus passos inabaláveis.
Suspirando para si mesma, Celine ficou um tempo em frente à catedral até
que os frequentadores começaram a sair da estrutura cheia de pináculos,
esvaziando o lugar aos poucos, e Pippa se juntou a ela.
— A reunião correu bem? — Celine perguntou a Pippa.
Pippa assentiu. Uma brisa quente puxou suas saias de organza.
— Tão bem quanto se poderia esperar. É a primeira organização de damas
que já participei. Tem certeza de que não quer me acompanhar da próxima
vez?
— Eu sei pouco sobre música e arte. Receio não poder oferecer muito em
termos de conversa.
— Você sabe tão bem quanto eu que conversar sobre artes não é realmente
o objetivo.
Celine sorriu, uma sobrancelha negra curvando sua testa.
— Quantas das damas da sociedade tentaram empurrar seus filhos
horríveis para você?
Pippa fez uma pausa, sua expressão sombria.
— Três. Um deles pode não ser... terrível.
Ela se virou para Celine, com os olhos desamparados.
— O nome dele é Phoebus.
Risos explodiram nos lábios de Celine.
— Acho que ele não se parece com seu xará, o Deus do Sol.
— Vou encontrar a mãe dele para o chá na próxima semana. — Pippa
exalou um bufo. — Afinal, não podemos permanecer no convento para
sempre. — Uma linha se formou ao longo da ponte do nariz. — E cabe a nós
tirar o melhor proveito de nossas vidas.
Celine não disse nada em resposta. Com um sorriso gentil, Pippa ligou os
braços a Celine e elas começaram a curta jornada de volta ao convento.
Enquanto caminhavam, os pensamentos de Celine passaram por sua mente.
Ela não deveria ir hoje à noite. Ela não iria hoje à noite. Mesmo que isso
significasse renunciar uma refeição na casa de Jacques. Mesmo que isso
significasse que ela tinha que ingressar em algumas organizações femininas.
Associar-se a qualquer membro da La Cour des Lions foi um erro terrível.
Eles eram perigosos. Além do comum. Algo escuro se contorcia ao redor do
que eles tocavam.
Foi loucura de um tolo considerar qualquer outra coisa.
Celine resolveu fazer o que tinha vindo aqui fazer. Começar sua vida como
uma jovem adequada. Encontrar um jovem adequado. Ter um bando de
crianças pequenas adequadas.
E isso seria o fim de tudo.
Celine suspirou para si mesma mais uma vez.
Suas próprias mentiras estavam começando a ter um gosto amargo na
língua.
O que o pai dela gostava de dizer?
Devemos provar o amargo antes que possamos apreciar o doce.
Hoje à noite, Celine supôs que faria exatamente isso.
HIVER, 1872
CATEDRAL DE SAINT LOUIS, REI DA FRANÇA
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

V ocê pode se perguntar por que tenho tanto ódio no coração.


Como os contadores de histórias costumam dizer, é uma longa
história. Centenas de anos, de fato. Começa como muitas coisas, com um
amor perdido e uma confiança quebrada.
Eu poderia passar horas dizendo o que perdi. O que meu tipo sofreu. Como
a situação do Outro Mundo peneirou como grãos de areia nesta espiral da
morte, ameaçando para sempre nossa sobrevivência. É a causa célebre de
nossa espécie, por assim dizer.
Como nossa sobrevivência há muito é um osso de discórdia.
Uma vez, todas as criaturas do Outro Mundo existiam sob o mesmo céu
encantado, através de portas ocultas do reino do homem. Aqueles de nós que
prosperavam sob a luz se deliciavam nas florestas reluzentes do Vale de
Sylvan, um lugar de primavera perpétua, o ar banhado para sempre no calor
dourado do sol. Os nascidos na escuridão refugiaram-se na Sylvan Wyld, um
mundo de noite sem fim, coberto de estrelas invernais.
Mas isso foi antes de nossos anciãos cometerem seu pecado original.
Antes do Banimento.
Agora criaturas como eu existem em um lugar entre a luz e as trevas, sem
um lar para chamar de nosso. Sem raízes. Desconexos. Sozinhos.
Pelos crimes de nossos anciões, fomos amaldiçoados a andar nas sombras
da humanidade. Logo – como costuma acontecer – ocorreu uma brecha,
dividindo nossas fileiras entre as dos Caídos e as da Irmandade. Através dos
séculos, nossa tradição se espalhou pelo mundo. A humanidade nos
concedeu – a todos esses imortais habitantes da noite – muitos nomes: wode;
wearh; dampiros; moroi; morto-vivo; fantasma; licantropo; alukah; vardalak;
lamia.
O nome que os habitantes de Nova Orleans costumam usar é vampiro, não
importa que seja um pouco impróprio, pois nem todos nós sobrevivemos
apenas com o sangue de outros. Para a Irmandade, o nome é um insulto. Para
os Caídos, é um distintivo de honra. Como em muitas coisas, suas origens
estão no Velho Mundo. Em um período de eternas trevas e guerras, quando
os que estavam no poder bebiam o sangue de seus inimigos e empalavam os
conquistados em lanças de madeira lançadas profundamente na lama.
O título foi concedido aos moradores da noite por excêntricos
supersticiosos. Seres tristes que acreditavam que esses demônios poderiam
ser frustrados por dentes de alho ou pitadas de água benta. Por orações
sussurradas e espelhos brilhantes, estacas de madeira e cruzes abençoadas.
Totalmente risível. Nada inventado pelo homem jamais poderia controlar
tais seres.
As criaturas do Outro Mundo gostaram de propagar tais noções, pois
mantêm nossas vítimas fascinadas com a crença de que seus deuses podem
salvá-las. Os seres fey – tanto claros quanto escuros – sempre gostaram de
brincar dessa maneira com as mentes dos homens.
Há apenas uma coisa que pode destruir um vampiro.
A luz do sol.
E há apenas uma coisa que pode subjugá-lo.
Prata pura.
Mas, por fim, esses detalhes não importam.
O que importa é como me sinto agora. Como aqueles que considero
queridos se sentem há séculos. Como conseguimos suportar.
Ainda mais importante é o que pretendo fazer. Não basta mais arruinar meu
inimigo e desmontar tudo o que ele construiu ao longo dos anos. Ele me
levou da minha família. Roubou a minha própria respiração dos meus
pulmões. Vou machucá-lo como ele e sua espécie me machucaram. Com um
amor perdido e uma confiança quebrada.
Com a justiça finalmente feita.
Muitos diriam que esta história não é sobre justiça. É sobre vingança.
Para mim, simplesmente não há diferença.
Esta noite vou testar minhas suspeitas. Vou ver se a garota importa, como
cheguei a suspeitar.
Antes do amanhecer, conhecerei as cicatrizes que a morte deixou em sua
alma.
PALAVRAS SÃO ARMAS

E u estou no topo do mundo! — Ashton Albert – filho mais velho do


magnata da navegação Jay Ballon Albert – cantou no horizonte roxo
profundo. — E eu gosto do que vejo.
Sua voz soou presunçosa em sua embriaguez. Desprezivelmente seguro de
si.
Bastien o odiava, apesar de enviar um sorriso aprovador à doninha
arrogante enquanto olhava para um velo de nuvens.
O irmão mais novo de Ashton, Arthur (um idiota de merda), deu uma
cotovelada no andaime de aço, parado perigosamente perto da borda para
um garoto de dezessete anos recentemente conquistado pela bebida.
— Abra espaço para mim, Ash. Quero ver como é estar no topo do mundo.
— Tecnicamente, — Phoebus Devereux, neto mais novo do atual prefeito
de Nova Orleans, interveio em um tom monótono nasalmente. — você está
em um hotel meio construído ao longo da costa da Louisiana. Você não está
nem perto do topo do mundo.
Bastien queria rir. Em vez disso, ele fez uma careta. Ele podia jurar que
viu Phoebus ajustar seus óculos enquanto falava. Como uma gazela que
mancava no Serengeti no exato momento em que os leões decidiram se
alimentar. Ash e Art não seriam gentis com ele por essa transgressão.
— Cale a boca, seu ratinho. – Ash gritou por cima do ombro.
— Ninguém se importa com o que você tem a dizer. — Art ecoou como o
bom pequeno bajulador que ele foi criado para ser.
Bastien cruzou os braços e encostou-se a uma coluna de aço. Ele levou um
momento para verificar seu pulso, pressionando dois dedos da mão esquerda
contra o lado da garganta. Embora ele quisesse desesperadamente levar
esses bastardos mimados para a tarefa (ou pelo menos imaginar como seria
fazê-lo), ele segurou a língua e permitiu que a cena se desenrolasse.
Bastien odiava essa besteira.
Isso levantou a questão: por que ele estava aqui?
Seus lábios empurraram para a frente, seus olhos se movendo pela silhueta
de Nova Orleans.
Porque Sébastien Saint Germain adorava dinheiro. Em seus quase
dezenove anos, ele descobriu que havia apenas duas coisas que mais amava:
sua família e sua cidade. O dinheiro fez desaparecer todos os tipos de
queixas. Apagou pecados e abriu caminhos em palácios de poder e
influência. Tornou o que havia sido impossível, possível.
Foi a melhor lição que seus pais mortos já lhe ensinaram. Com dinheiro,
você pode comprar tudo e qualquer coisa. Mesmo uma maneira de salvar sua
própria vida.
Era uma pena que seus pais não tivessem aprendido a lição a tempo de se
poupar.
Ou Émilie.
Bastien se afastou da coluna de metal, aproximando-se da borda da
estrutura inacabada.
— Então, o que você acha?
Ash girou, agarrando um cabo de aço para manter o equilíbrio.
— Acho que é exatamente o tipo de projeto que meu pai adoraria.
— Ele está nos dizendo há algum tempo que Marigny precisa de um bom
hotel. — acrescentou Art. — Está em uma localização perfeita, tão perto do
bairro.
— Ele sabe disso. — Ash cuspiu em seu irmão mais novo. — É por isso
que ele escolheu, seu tolo.
— Por que meu tio escolheu. — corrigiu Bastien, mantendo o tom suave.
Bem-humorado.
Decididamente indiferente.
— Definitivamente vou discutir isso com ele. — disse Ash. — É o projeto
perfeito para aguçar o meu apetite.
— E usar essa educação cara de Princeton. — brincou Art.
— Confie em mim, eu usei bem. Basta perguntar às prostitutas do outro
lado de Rampart.
— Ash riu como uma hiena bêbada.
Até o jeito que ele ria fazia Bastien querer bater na cara dele. Para parar e
assistir o sangue escorrer de seu nariz.
Para saborear o que aconteceu depois.
— O comitê de planejamento da cidade pode ser um problema, no entanto.
— interrompeu Phoebus mais uma vez. — Eles não concederam permissão a
ninguém para construir um hotel tão alto... desde sempre.
Art empurrou Phoebus no braço, o garoto mais lento tropeçando em uma
coluna de aço.
— Quem dá a mínima para essas ratazanas?
— Você e seu irmão parecem ter uma fixação perturbadora com roedores.
— respondeu Bastien. — E você não está errado, Phoebus. Eu estava
esperando consultar você sobre isso. — Ele se moveu ao lado do garoto,
tomando cuidado para manter sua postura leve.
Ameaçadora. Uma façanha em si, pois ele tinha quase meia cabeça mais
alto que o mais jovem Devereux. — Sua opinião sobre como fazer isso seria
muito apreciada.
Bastien não precisava de sua opinião. Ele precisava de um membro da
família Devereux dentro de seu bolso. Phoebus era uma opção tão boa
quanto qualquer outra. Ele havia retornado recentemente de uma passagem
em Oxford e havia rumores de que sua mãe tinha grandes planos para ele no
caminho de um futuro político.
A política era a próxima grande fronteira.
Bastien deu um tapinha no ombro de Phoebus como se fossem velhos
amigos. O negócio perspicaz era identificar a falha fatal de um oponente... e
explorá-la.
— Você seria de grande ajuda para mim neste assunto. Eu apreciaria
imensamente.
Phoebus engoliu em seco, seus olhos castanhos brilhando por trás dos aros
dos óculos, traindo o quão lisonjeado estava por ter recebido a atenção de
Bastien.
— Vou investigar.
— Bom homem. — Bastien bateu no ombro novamente, desta vez um
pouco demais.
Ele precisava que Phoebus para se endireitasse. Falasse com convicção.
Se o fizesse, seria uma força a ser considerada com um dia. Valeria pelo
menos quatro de Art e oito de Ash.
Art puxou um frasco envolto em couro de dentro do bolso do casaco. Ele
tomou um longo gole e passou para o irmão mais velho.
— Eu não sei se o Deus do Sol vai ajudar você nisso, Bastien. Ele está
muito ocupado assustando todas as garotas que sua mãe continua jogando em
seu caminho.
— Agora ela está tentando recrutar dos restos do convento das Ursulinas.
— Ash riu de novo.
Bastien rangeu os dentes e verificou o pulso uma segunda vez.
Uma luz perversa brilhou nos olhos de Art.
— Ouvi dizer que existem alguns pedacinhos de morcela entre as recém-
chegadas.
Ash riu ainda mais alto, o cheiro de licor estragado estragando o ar
agradável da noite.
— Talvez eu devesse dar uma olhada. — Ele zombou de Phoebus. — Você
sabe o que fazer com um pote de mel, Devereux?
A raiva girou nos punhos de Bastien. Uma sede de sangue desejando ser
abatida.
Ele precisava cuidar de seu temperamento. Muitas vezes tinha sido sua
ruína quando menino. Custou a Bastien o que seu tio mais desejava para ele:
uma educação em West Point e tudo o que isso implicava. Agora, o tio Nico
insistia que ele se casasse bem para remediar a perda, uma perspectiva que
Bastien desprezava. As debutantes debochadas de Nova Orleans – assim
como suas mães intrometidas – o cansaram do ponto de vista da razão, fato
que divertiu muito seu tio.
— Ficar entediado com eles é muito melhor do que ficar apaixonado. —
dizia o tio Nico. — Nunca se apaixone por um mortal, pois o amor é uma
aflição. Sempre termina em sangue. — ele avisou inúmeras vezes, em
inúmeras línguas.
A raiva também havia custado a Bastien sua irmã, uma jovem mulher com
um temperamento ardente e um coração feroz. Um nó se formou em sua
garganta, como sempre fazia há mais de uma década. Ele o engoliu no
instante seguinte, desprezando qualquer sinal de fraqueza. Qualquer chance
de um oponente derrotá-lo.
Embora Bastien lutasse, seus pensamentos vagavam espontaneamente para
outra jovem mulher com uma alma feroz. Para seu nervosismo
inquebrantável e sagacidade. Para a escuridão que permaneceu em seu olhar.
Para cabelos que brilhavam como as asas de um corvo e olhos da cor da
inveja.
Bastien queria deslizar os dedos naquele cabelo. Soltá-lo de seus laços.
Deixá-los cair em volta dos ombros em uma cascata de tinta preta. Fazer
uma pausa para agarrar os fios de seda antes de saborear o sal em sua pele.
O amor é uma aflição.
A frustração aqueceu nas veias de Bastien.
Ele não tinha tempo para essas bobagens, apesar do que Odette tinha a
dizer. Gerenciar os assuntos de seu tio consumia a maior parte das horas de
vigília de Bastien. Após a rendição do general Lee em Appomattox, sete
anos atrás, Nicodemus Saint Germain havia começado a comprar terras em
cidades portuárias do Sul, com o plano de um dia ser o dono da maior
coleção de hotéis de luxo do país. Na maior parte do ano, o tio Nico viajou
entre suas propriedades em Nova York e Charleston, deixando o controle de
sua operação em Nova Orleans em grande parte para Bastien. Como tal,
sempre havia alguém que precisava de algo, seja uma palavra no ouvido da
pessoa certa ou um punhado de moedas intervindo.
Inúmeras decisões a serem tomadas num piscar de olhos.
Celine Rousseau era uma distração indesejável. Ela trouxe consigo nada
além de problemas, como provara vários dias atrás durante o interrogatório
de Michael no convento, quando ela tentou atrair os dois. Uma tentativa boba
que, por todos os direitos, deveria ter falhado.
Infelizmente, isso não aconteceu. Era como se ela segurasse Bastien por
um feitiço, mesmo à distância. Como se lhe dissessem para não pensar na
cor vermelha. Agora tudo o que via eram seus tons vibrantes. No nascer e no
pôr do sol. Em toda flor trêmula. No respingo de vinho em um copo de
cristal.
Sempre termina em sangue.
Bastien já tinha muito a perder. Essa garota sedutora – com um senso de
humor compatível com o dele e uma história implorando para ser contada –
não seria mais uma vítima. Não se ele pudesse evitar.
— Certamente falarei com meu pai sobre isso amanhã. — Ash disse com
um sorriso doloroso.
Bastien respondeu com um sorriso igualmente desagradável.
— Excelente. Então sugiro que voltemos à terra firma e peguemos um
prato da melhor meunière da cidade, além de uma garrafa gelada de Chateau
d'Ygeum.
Art uivou para o céu enquanto caminhava bêbado em direção ao sistema de
plataforma suspensa posicionado ao lado da estrutura, Phoebus seguindo
seus passos.
Ash ficou para trás por um segundo.
— A única coisa é… — Ele puxou Bastien para mais perto, segurando seu
antebraço, uma ação que enviou a bola de raiva latente do peito de Bastien
para sua garganta. — Eu sei que meu pai não vai harmonizar com alguns de
seus... associados.
Uma onda fria de surpresa se desenrolou na espinha de Bastien. Ou Ash
era muito mais imprudente do que Bastien imaginara pela primeira vez, ou
ele era um completo idiota.
Nenhuma das opções seria boa para o desgraçado. No entanto, eles
alcançaram um momento crítico em sua conversa. Uma decisão precisava ser
tomada. Bastien sabia o que Ash queria dizer. Mas ele queria ouvi-lo dizer
isso.
Então ele levantou uma sobrancelha em questão.
— Pare com isso, Bastien, você sabe do que eu falo. — continuou Ash.
Bastien alargou o sorriso. Parecia que sua sede de sangue poderia ser
abatida hoje à noite, afinal.
— Não tenho a menor idéia de qual dos meus colegas incomoda seu pai.
Você terá que ser mais específico. — A voz dele ficou mais calma a cada
palavra, até que a última não passasse de um sussurro.
— Um homem como Jay Ballon Albert não pode ser visto fazendo
negócios com chinas e ne— Bastien levou menos de um segundo para sacar
o revólver por baixo do casaco. Ele nivelou antes que Ash pudesse respirar
novamente.
Lento para reagir, Ash permaneceu imóvel, a boca aberta, os olhos
piscando lentamente.
Atrás deles, Art tropeçou indo em auxílio de seu irmão, apenas para ser
arrancado de suas botas por algo que ele não viu nem ouviu. Um fantasma ao
vento.
Para seu crédito, Phoebus sabia que não devia interferir ou sequer proferir
um gemido.
Formas indistintas saíam das linhas e sombras do edifício esquelético,
movendo-se rápido demais para serem rastreadas. Eles correram pelas
colunas de aço sem fazer som, obscurecendo a escuridão até se focarem,
formando um círculo de figuras encapuzadas ao redor de Bastien e Ash.
— O que diabos? — A voz de Ash tremeu.
Bastien olhou para ele, um sorriso de prazer supremo tomando forma em
seu rosto.
— Permita-me apresentá-lo a alguns dos meus associados, Ash. — Ele
apontou o revólver para o peito do garoto chocado. — Eles gostariam de
uma palavra com você.

Antes que a noite terminasse, Ashton Albert ia mijar nas calças.


Bastien não apreciaria a vista. Ou o cheiro.
Não. Isso era mentira.
Ele apreciaria a vista imensamente.
Era hora de essa criatura insuportável ser abatida. Saber como era não ter
nada, nem mesmo uma mãe ou um pai por perto para salvar o filho dos
demônios que se escondiam na escuridão.
A tensão passou pelos ombros de Bastien. Com um toque sutil do pescoço,
ele forçou seus músculos a relaxar. Fazia quase um ano que a raiva
incessante tomara conta de Bastien, quando ele pensou na morte prematura
de seus pais. De todas as coisas, ele desejou que não fosse o chorão Ashton
Albert que serviria como um lembrete do que havia perdido.
Mais uma razão para saborear a punição da doninha.
Foi tão bom quanto. Bastien supôs que poderia se contentar com a visão do
filho mais velho de Jay Ballon Albert, pendurado horizontalmente sobre uma
plataforma de metal, oito andares acima de Nova Orleans.
Uma explosão de risada feminina se espalhou pela noite. Hortense segurou
as botas polidas de Ash e girou o garoto mais uma vez, as jóias sem cortes
em seus anéis enormes brilhando na escuridão, sua pele de ébano radiante
contra o céu aveludado. Quando a polia que suspendia Ash acima da
plataforma estalou, ele gritou, implorando por alívio.
— Dis-le plus fort, mon cher. Diga mais alto, minha querida. — murmurou
Hortense. — Eu não posso te ouvir.
Boone riu com vontade, suas feições querubins cheias de prazer. Na beira
do edifício, Jae girou sua adaga em madrepérola entre as pontas dos dedos,
seus cabelos pretos enrolados pela brisa.
A irmã de Hortense, Madeleine, revirou os olhos. Perto da bainha da capa
– silenciosa pelo medo – estava Art, que começou a vomitar na plataforma
pela segunda vez, o peito arfando, o rosto sujo de ranho e lágrimas.
— O que você quer? — Ash lamentou.
Bastien pretendia responder. Eventualmente.
— Oi, Bastien. — disse Nigel, seu sotaque Cockney rude, sua expressão
severa. — Não desça ao nível dele, gov. Não é o esperado de um líder
honrado.
Bastien bufou.
— Que tolo disse que eu era honrado? A depravação não tem limites.
— Amém. — Boone interrompeu em um tom exagerado.
Grunhindo, Nigel ajustou os laços de sua capa.
— Chega. — Ele cortou a mão no ar. Arjun se aproximou, os lábios em
volta de um charuto fumegante, sua expressão de acordo comum.
Bastien os estudou em um divertido silêncio. Como Odette e Jae, Nigel
Fitzroy estava ao seu lado desde o início, Boone, Hortense e Madeleine
seguindo logo depois. Arjun Desai havia chegado a Nova Orleans há menos
de um ano, mas ele se juntou a eles rapidamente, tornando-se muito mais do
que um mero colega ou conhecido. Bastien valorizava o conselho desses sete
indivíduos estranhos acima da maioria das coisas, embora ele só o admitisse
sob extrema pressão, como anjinhos de tortura, óleo fervente e similares.
— Eu realmente deveria encontrar novos amigos. — refletiu Bastien.
Arjun exalou uma nuvem de fumaça cinza-azulada.
— Se você pudesse pagar. — Seus olhos castanhos brilhavam com
diversão.
— Falou como um maldito marajá. — Nigel gargalhou.
Aborrecimento brilhou no rosto de Arjun.
— Em muitos dos círculos da sua amada coroa, um marajá não é melhor
que um vira-lata.
— Eu nunca-
— Cães e indianos não são permitidos, mestre Fitzroy. Bem na entrada do
seu amado Astoria.
A raiva escureceu as feições de Nigel.
— Se tivesse sido deixado para mim, nada disso teria acontecido. Eu sei
melhor, assim como conheço meus apostadores.
— Um imperialista benevolente. — disse Arjun em torno de outra nuvem
de fumaça. — Que refrescante.
Um fraco grito cortou a noite, voltando sua atenção para o assunto em
questão. Bastien agarrou Ash pela corda em volta da cintura, terminando
com o lento tormento de girar em círculo.
— Estou lhe dizendo isso porque suspeito que você não sabia. — ele
começou em tom de conversa. — Minha mãe era um quadroon, uma mulher
de cor livre. Aqueles associados com quem seu pai não podia ser visto
trabalhando ao lado? Eles são eu. Eles são minha família.
— Ele fez uma pausa, baixando a voz para um sussurro. — Ninguém
insulta minha família.
— Eu não pretendia-
— Cale a boca, seu porco miserável. — Boone interrompeu. — Deus está
falando.
Bastien o silenciou com um olhar. Então voltou para Ash.
— Que vergonha. Eu ia compartilhar uma garrafa de vinho com você,
Ashton. Agora... você terá que participar de uma refeição com aqueles que
preferem um tipo muito diferente de bebida.
Quando Bastien terminou de falar, a tensão no ar ficou tensa como uma
corda prestes a quebrar. Ash piscou as lágrimas, forçando-se a se concentrar.
Tudo o que ele viu nos rostos ao seu redor fez seus lábios tremerem e seus
ombros tremerem.
Bastien sabia o que viu. O que Art viu. O que Phoebus havia escondido
nos preciosos momentos anteriores. Demônios. Criaturas de sangue e trevas.
Morte, feita de carne.
Família de Bastien, para melhor ou para pior.
Art levantou-se novamente ao lado dos pés de Madeleine, sufocando
enquanto ele lutava para se acalmar. Bastien olhou para Arjun,
compartilhando uma conversa sem palavras. No instante seguinte, Arjun
pegou o pulso de Art. O garoto caiu um momento depois, concedeu um
perdão abençoado.
Lágrimas caíram de lado no rosto de Ash.
— Tudo o que eu disse foi...
Bastien deu um passo atrás. Engatou o revólver. Mirou.
— Por favor! — Ash implorou. Uma mancha suspeita escureceu a frente de
suas calças, o cheiro acre de urina que o inundava. — Vou te dar o que você
quiser. Eu não direi nada. Vou esquecer isso sempre...
— Não. — disse Bastien. — Nunca esqueça isso enquanto viver. Palavras
são armas. E nada mais importa quando o diabo o pega pelas bolas. — Ele
deu um único tiro.
Ash gritou. A corda balançando-o acima da plataforma estalou, seu corpo
amarrado batendo contra o metal com um estrondo retumbante. Quando ele
rolou, o sangue escorria de seu nariz, seu perfume ondulando no ar, cobre
quente misturado com o sal do mar.
Hortense e Madeleine pararam de se mover. Pararam de respirar. Jae
embainhou uma de suas lâminas com um sorrisinho. Boone jogou a cabeça
para trás, inspirando profundamente, com as pálpebras cerradas. Franzindo a
testa com óbvia frustração, Nigel cruzou os braços, enquanto Arjun estendia
o charuto sob os calcanhares.
Diversão amarga atravessou o peito de Bastien. Outro desejo concedido.
Hoje pode ser o seu dia de sorte.
Ash lutou contra suas amarras quando as figuras encapuzadas ao seu redor
se aproximaram, seus olhos prateados sob uma lua crescente.
Então Madeleine, Hortense e Boone caíram sobre Ash como chicotes
estalando a noite toda, seus gritos de terror abafados pelo tecido pesado de
suas capas. E pelos sons de êxtase subindo no ar acima de Nova Orleans.
Nigel observou o frenesi cortando o silêncio, seus longos braços cruzados,
o julgamento em seu rosto.
— Você é melhor que vingança mesquinha, Bastien. Seu tio não ficaria
satisfeito.
— Eu nunca reivindiquei ser um santo. — respondeu Bastien, sua
expressão fria. — E Nicodemus não está aqui hoje à noite, está?
— Gomapgae. — Jae murmurou em gratidão antes de voltar para a beira
do prédio inacabado, girando uma faca de borboleta em volta dos dedos com
facilidade despreocupada.
— Um bom tiro. — Arjun interrompeu, habilmente mudando de assunto. —
Cortando a corda com uma única bala. Bravo.
Bastien não disse nada, seus olhos se apertando nas bordas.
— O quê? — Arjun piscou. — Foi algo que eu disse? — Ele balançou
instável em seus pés.
— Você é fraco.
— Acontece. Foi preciso muito esforço para subjugar o irmão. Ao
contrário de você, eu não sou Deus. — ele brincou.
Um sorriso sombrio surgiu nos lábios de Bastien.
— Veja se você tem algo para comer.
— Mas é claro, meu velho. — Arjun se curvou com um floreio.
Apesar de seus esforços, a culpa se acendeu no peito de Bastien,
ameaçando pegar fogo.
Ele lutou contra o sentimento, recusando-se a ser incomodado pelo
julgamento deles. Então ele chamou Madeleine, que ficou turva ao seu lado
com a furtividade de uma sombra, a capa dela arrastando atrás dela como
fumaça. Nem um traço de sangue podia ser visto em lugar algum... até que
ela abriu a boca, mostrando dentes brancos manchados de vermelho e
caninos, contanto que os de um lobo.
— Certifique-se de que ninguém morra hoje à noite, Mad. — Bastien disse
suavemente.
— Temos muitos olhos em nós.
— Mas oui, Bastien. — Madeleine assentiu com a cabeça serena. — E o
que devemos fazer com ele quando terminarmos?
— Deixe o lixo com o irmão mais novo, no beco perto de seu bebedouro
favorito. Faça com que eles não se lembram de nada. Como sempre, minha
confiança está com você.
Madeleine assentiu e voltou-se para retomar a refeição.
Expirando devagar, Bastien olhou ao redor do espaço aberto até que seu
olhar se fixou no que ele estava procurando: Phoebus Devereux, encolhido
em um canto, os joelhos puxados contra o peito, sem dúvida rezando para
que tivesse sido esquecido pela primeira vez. vida.
Quando Phoebus avistou Bastien deslizando em seu caminho, ele colocou
os braços em volta dos joelhos, apertando as mãos até os dedos ficarem
brancos.
Fazendo questão de se mover com cuidado, Bastien se agachou na frente
de Phoebus.
— Eu realmente sinto muito que você tenha visto isso.
— O que você vai fazer comigo? — Phoebus tremia como uma folha
moribunda na brisa.
— Isso depende. — disse Bastien. — do que você quer que eu faça.
— Eu... eu não entendo.
— Eu posso simplesmente deixar você ir.
— Você... podia? — Os olhos de Phoebus se arregalaram atrás dos óculos
manchados.
— Se você quisesse.
Phoebus assentiu.
— Você não precisa se preocupar. Não vou dizer nada, Bastien.
— Eu sei que você não vai. — Um meio sorriso curvou o rosto de Bastien.
— Quem acreditaria em você? — Simpatia atada através de suas
características. — Apenas mais uma história tentadora sobre a Corte, que eu
achei muito mais útil do que prejudicial, por razões que tenho certeza de que
você pode entender.
Estremecendo, Phoebus desviou o olhar.
— Por outro lado, eu posso ajudá-lo a esquecer. — Bastien fez uma pausa.
— Eu posso fazer com que os eventos desta noite nunca assombrem seus
sonhos.
— Phoebus engoliu em seco. Você vai... matar Art e Ash?
— Não. Eles também não se lembrarão de nada. — Sua expressão
endureceu. — Mas eles não têm escolha. Você faz. Nunca retiro a escolha de
alguém que respeito.
— Você... me respeita? — A voz de Phoebus estava rouca.
— Você é um bom homem. Faça com que você continue assim. — Bastien
se levantou com a graça de um gato da selva. — E tome sua decisão.
Phoebus empurrou os óculos pelo nariz, os dedos tremendo. A convicção
se estabeleceu em seu rosto suado.
— Eu... quero esquecer.
— E assim você deve.
Bem acima da cidade de Crescent, o neto mais novo do prefeito começou a
gritar em um céu machucado por nuvens.
CHAMPAGNE E ROSAS

C eline recostou-se no damasco em tons de jóias de sua cadeira dourada.


— Eu não tenho nada.
— Nada? — Odette riu. Ela pegou outro pedaço de codorna, separando a
carne macia entre os dedos delicados.
— Não há nada que eu possa dizer. — continuou Celine. — Nada que eu
possa fazer. Não há como transmitir o quão incrível foi essa refeição.
Simplesmente além da crença. — Ela soltou um suspiro prolongado. —
Talvez se eu pudesse dançar como uma fada alada, eu poderia servir melhor
a essa causa.
Outra gargalhada ecoou no ar.
— Essa é a minha coisa favorita que você já disse, mon amie.
— Também a mais verdadeira. — Celine respirou fundo, depois alcançou
além dos talheres de ouro o caule de cristal de seu copo de vinho.
Celine passou a maior parte de seus dezessete anos em Paris. Como tal,
ela viveu a poucos passos de alguns dos melhores estabelecimentos
culinários do mundo. Infelizmente, o custo de frequentar esses
estabelecimentos fora alto demais para sua família. Fora do alcance da
maioria das pessoas que ela conhecia.
Mas, em ocasiões especiais, o pai a levava a um bistrô na esquina do
apartamento. A cozinheira de rosto brilhante que comandava a cozinha era
famosa por seu decadente frango assado, servido com pequenas batatas
douradas banhadas em gordura de pato por horas a fio. Quando criança,
Celine adorava colocar um pomme de terre perfeitamente redondo na boca
quando ainda estava muito quente, a pele crocante estalando em sua língua
enquanto ela soprava a batata, lutando para esfriá-la e consumi-la de uma só
vez. Seu pai a repreendeu por ser tão antipática, embora ele tivesse lutado
para esconder seu sorriso.
Tinha sido a refeição favorita de Celine.
Todos os anos, em seu aniversário, seu pai trazia para casa um milha-
feuille de uma padaria conhecida no oitavo distrito. Um bolo de mil folhas.
Camadas finas como papel de massa folhada, separadas por crème pâtissière
batido, amêndoas trituradas e gotas finas de chocolate.
Essas foram algumas das melhores lembranças de Celine. Apesar da
severidade e austeridade de seu pai, ele conseguiu demonstrar seu amor de
maneiras simples. Maneiras que ela costumava trazer à mente durante alguns
de seus momentos mais sombrios na travessia transatlântica, pois eles lhe
deram conforto quando ela mais precisava.
Mas eram todas sombras pálidas quando comparadas com esta noite.
Hoje à noite, aos dezessete anos, Celine estava certa de que havia
consumido a melhor refeição de sua vida.
Lagostins escalfados em manteiga, vinho branco e tomilho. Pregado
incrustado com pistache, decorado com flocos de trufa branca. Codornas
assadas servidas com um creme de azeitona ao lado de vegetais de raiz
salteados em ervas da Provença, depois cobertos com flores comestíveis.
Sem mencionar as pequenas delícias e combinações perfeitas de vinhos
oferecidos por toda parte.
Tudo isso, sublime até a última gota. O lado fantasioso de Celine sonhava
em um dia trazer seu pai aqui. De compartilhar esta refeição com ele
também.
Odette esfregou os cantos dos lábios com um guardanapo de seda antes de
gesticular para um dos maîtres d'hôtel, que colocava uma grande tigela de
latão cheia de pétalas de rosa ao seu lado em um pedestal de mármore. Então
ele encheu a bacia com champanhe borbulhante para que Odette enxaguasse
as mãos dela. Tão indulgente. Tão desperdício.
Uma vez que seus dedos estavam limpos, Odette alisou o corpete de
duquesa cetim, o polegar roçando a cama de marfim em seu peito,
inclinando-o para fora.
— Você usa esse broche frequentemente. Deve ter muito significado para
você. — comentou Celine enquanto o maître d'hôtel servia uma garrafa
totalmente nova de champanhe e rosas. As bolhas fizeram cócegas em seus
pulsos, o perfume inebriante das pétalas enrolando em sua garganta.
— Mmmmm. — Odette cantarolou em resposta. — Realmente. — Ela
endireitou a camafeu, seus gestos cuidadosos. Um brilho travesso brilhou em
seus olhos. — Você acreditaria em mim se eu lhe dissesse que estava
encantada? Que isso manteve o mais sombrio dos meus segredos em
segurança? — Ela piscou.
— Depois de tanta comida e vinho, eu acreditaria em qualquer coisa. —
Celine gemeu enquanto tentava em vão relaxar na cadeira. — Diga-me,
Odette, por que devemos usar espartilhos enquanto comemos?
— Porque os homens gostam de nos manter em gaiolas a cada hora que
acordamos. — Odette girou seu vinho. — Dessa forma, estamos contidos.
Eles têm medo do que aconteceria se fôssemos livres. — Ela sorriu. — Mas
talvez se eu parecesse com você em um espartilho, eu estaria cantando uma
música diferente. Infelizmente, nem todos podemos ser abençoados com uma
cintura fina e um peito naturalmente arrojado – brincou ela.
— Isso... não é tão maravilhoso quanto você esperaria. — Celine
estremeceu, o vinho fazendo seus pensamentos girarem. — Desde o meu
décimo segundo aniversário, tenho medo da maneira como os homens olham
para mim. Como se eu fosse algo para comer.
Odette inclinou a cabeça, uma luz estranha em seu olhar.
— Eu nunca pensei nisso dessa maneira. — Ela fez uma pausa em
consideração. — Perdoe-me por falar fora de hora. — Convicção brilhou
em seu rosto. — C'est assez! Chega! Nenhuma de nós deve ter que usar
espartilhos, a menos que decida usá-los. Enquanto isso, digo que vamos para
a praça e queimamos todos eles.
Os olhos de Celine brilharam.
— Os espartilhos?
— Não, os homens, é claro.
Uma gargalhada riu dos lábios de Celine.
— Você fala escandalosamente.
— Eu apenas falo a verdade. Homens são miseráveis, minha querida. Eu
jurei completamente. Vou mantê-los como amigos, mas eles permanecem
eternamente indesejáveis em meu coração.
A alegria brilhou no peito de Celine.
— Por favor, compartilhe seu segredo comigo. Desejo me livrar deles
também. — Ela conseguia pensar em um ou dois em particular.
— Não é segredo. Odette afastou o prato de porcelana de Limoges para
descansar os cotovelos ao longo da borda da mesa recortada. — Eu
simplesmente não tenho interesse neles. — Ela fez uma pausa, sua expressão
pensativa. — Na verdade, eu prefiro muito a companhia de mulheres, em
todos os aspectos. — Odette pronunciou isso claramente, observando a
reação de Celine.
Celine levou um momento para compreender todo o significado da
admissão de Odette.
Os olhos dela se arregalaram no instante seguinte, a cor subindo pelo
pescoço.
— Por favor, saiba como estou lisonjeado, mas...
Odette bufou.
— Não estou falando especificamente de você, seu delicioso narcisista.
Embora você seja genuinamente bonita... e, sem dúvida, provaria ser um
verdadeiro incômodo como resultado. Anos atrás, jurei nunca amar nada
mais bonito que eu. — Ela soltou um suspiro dramático. — Felizmente, isso
deixa minhas opções amplas e variadas.
O riso ficou preso na garganta de Celine quando ela tomou um gole de
vinho. Queimava na parte de trás da língua, fazendo-a tossir como uma
jovem boba em suas xícaras.
— Mas não vamos mentir um para o outro, mon amie. — disse Odette
acima da tosse de Celine. — Você não deseja se livrar de todos os homens,
não é?
— Eu desejo. — Celine pigarreou e enxugou as lágrimas debaixo dos
cílios. — Eles não passam de um incômodo.
Odette apontou um dedo para Celine.
— Menteuse. Eu vejo o jeito que você olha para Bastien. — Ela se
inclinou para mais perto, sua expressão maliciosa. — Saber.
Celine assustou, sua mão empurrando seu cálice de água.
— O que você está... — Ela sentou-se, com o coração batendo forte no
peito. — Como estou?
— Com sede, mon amie. Como se você vagasse pelo deserto por quarenta
anos, buscando a Terra Prometida.
Eu pareço que estou... com sede? Celine gemeu, as bochechas ficando
vermelhas. Uma mistura de raiva e vergonha lavou suas veias. Ela está
considerando negar. Tentou em vão invocar uma explicação plausível. Então
levantou o queixo em desafio. Por que ela deveria mentir?
— Muito bem. — anunciou Celine. — Não vou negar. Estou atraído por
Bastien. Eu acho que ele é... lindo demais para ser real.
Odette bateu palmas como se tivesse acabado de ouvir a soprano principal
do mundo tocando sua ária favorita.
— Esta é agora a minha coisa favorita que você já disse. — Ela começou
a rir de uma maneira que lembrou Celine de ser uma menina pequena. Ela
não conhecia mais ninguém que ria assim. — Agora, — Odette parou para
tocar um dedo indicador ao longo do queixo. — O que fazer com essa
situação...
— Nada. — disse Celine com determinação. — Não há nada a se fazer.
Não tenho intenção de perseguir alguém como Sébastien Saint Germain,
Odette – alertou ela. — Nada virá de suas tentativas bastante nuas de
interferir. Você sabe tão bem quanto eu que Bastien não é um jovem
cavalheiro.
— E você precisa de um jovem cavalheiro?
— Eu preciso. — Celine assentiu com convicção.
Com uma expressão duvidosa, Odette apertou os lábios.
— Vamos discutir isso mais tarde. — Ela mudou de tática com a facilidade
de uma dançarina. — Diga-me o que você acha da minha idéia para o baile
de máscaras.
Grata por Odette ter mudado de assunto, Celine não hesitou em responder.
— Eu acho que você não deve ir como Marie Antoinette. Ouso dizer que
haverá pelo menos quinze outras mulheres vestidas de acordo para a
ocasião. Porque é esperado. Eu digo que você faz algo inesperado. — Um
brilho astuto iluminou seu olhar. — Não vá como esposa. Vá como a amante.
— Perdão? — Odette soltou uma gargalhada. — Isso, da garota que exige
um jovem cavalheiro!
Celine acenou com a mão com desdém.
— Esqueça isso. Você deveria ir como Madame du Barry.
— Scandaleux! Escandaloso! — Odette aplaudiu alegremente. — As
matronas da sociedade terão olhos de insetos positivos!
— E será o vestido que ninguém esquece. — prometeu Celine.
— Eu farei isso... mas devo insistir para que você me acompanhe ao baile
de máscaras, assim como a outro baile que eu gostaria de assistir. — Odette
brincou com a fita de seda em volta do pescoço. — Há rumores de que o
anfitrião – um membro de um novo krewe conhecido como Reveladores da
Noite da Noite – planeja decorar seus jardins após o Sonho de uma noite de
verão.
Embora ambas as idéias atormentassem Celine com a possibilidade, ela
balançou a cabeça.
— Eu não acho isso sábio.
— Nem mesmo se Bastien está lá, em toda a sua impropriedade? — Odette
piscou.
— Especialmente se ele estiver lá.
— Ah, não seja tão difícil, mon amie. — Odette fez uma pausa
significativa. — Você já admitiu que ele é... como você disse isso?
Celine gemeu, arrependimento florescendo em seu estômago.
— Bonito demais para ser real.
Algo caiu no chão atrás dela.
O sangue escorreu do rosto de Celine em uma corrida repentina. Ela
congelou na cadeira, os olhos arregalados. Foi preciso apenas um olhar na
direção de Odette para confirmar o óbvio.
Sébastien Saint Germain estava de pé atrás de Celine.
Ouvindo cada palavra que ela acabara de dizer.

— Je suis désolée. Me desculpe. — Odette torceu o nariz, claramente não


sentindo muito.
Celine pensou em enrolar o guardanapo de seda na mão e arremessá-lo na
direção do rosto de boneca de Odette. Ela reconsiderou no instante seguinte.
Embora isso possa ser satisfatório no momento, pouco ajudaria na situação
dela. Seu pulso causando estragos em seu corpo, Celine se virou.
E imediatamente desejou poder encolher no nada.
Bastien estava no topo da escada curva, o mais impressionante de sempre,
com o chapéu panamá na mão. Ao lado dele, vários membros do La Cour des
Lions, cada um com variados graus de diversão.
Antes que alguém pudesse falar, Arjun se inclinou para recuperar seu
caderno de couro, com uma expressão de desculpas no rosto. Se Celine tinha
que adivinhar, ele deixara de propósito.
Ela reprimiu uma labareda de gratidão. Ele deixou cair o caderno tarde
demais, aquele traidor.
Um herói era apenas um herói se ele conseguisse salvar a donzela a tempo.
Mortificada, Celine ficou de pé ao mesmo tempo, as pernas da cadeira
dourada agarrando o carpete felpudo, as saias listradas de salmão
emaranhadas nos pés. Cerrando os dentes, Celine permitiu que seu
constrangimento aumentasse de raiva. Ela fechou as mãos em punhos e
esticou o pescoço para poder observar as chegadas recentes com desdém
inconfundível.
Uma das mulheres elegantes com os anéis riu.
— Comme une reine des ténèbres.
Como uma rainha das trevas.
Risos fáceis ecoaram pela sala. Bastien ficou calado, seus olhos de metal
firme, suas feições bonitas ilegíveis.
Os batimentos cardíacos de Celine batiam em seus ouvidos como as asas
de um beija-flor. Não faria para ela parecer fraca. Ela nunca seria capaz de
mostrar seu rosto novamente neste lugar se sucumbisse à mortificação.
Com os punhos segurando o tecido listrado do vestido, Celine assentiu
uma vez.
— Olá.
Em resposta, Bastien se curvou, com o chapéu estendido ao lado. Quando
ele se levantou mais uma vez, a sugestão de um sorriso passou por seus
lábios.
— Boa noite. — disse ele, sua voz suave. Pecador.
Celine queria bater o pé e fugir. Gritar como um feijão, alto o suficiente
para prejudicar sua própria audição.
— Bonsoir, Bastien. — respondeu Odette com um sorriso zombeteiro.
Antes que outra palavra pudesse ser dita, o relógio de caixa longa
esculpido ao longo da parede começou a bater a hora em tons furtivos, seu
pêndulo de bronze pesado balançando para frente e para trás.
A interrupção deu a Celine a oportunidade perfeita.
— Receio que deva ir. — Ela passou pela mesa, o rosto corado.
— Ainda não! — Odette ficou de pé, os olhos de zibelina redondos,
suplicando. — Você deve pelo menos provar as îles flottantes.
— Ilhas flutuantes?
— É uma sobremesa que Kassamir quis acrescentar ao cardápio. Nós
deveríamos estar entre os primeiros a experimentá-lo. Nuvens de merengue
perfeito flutuando em um molho decadente de crème anglaise.
Celine sorriu tristemente.
— Embora isso pareça divino, receio que a hora seja tarde. Meus amigos
no convento vão se preocupar.
Odette fez beicinho, colocando um cacho morena atrás da orelha.
— Então, pelo menos, espere enquanto eu chamo a carruagem.
— Não. — respondeu Celine, endireitando as saias, atenta à audiência
deles. — Eu vou ficar bem. São apenas algumas quadras do convento.
— Acho que devo insistir. — respondeu Odette. — Você simplesmente não
pode ir para casa sozinho, não depois de tudo o que aconteceu recentemente.
A frustração tomou conta do estômago de Celine. Ela precisava sair
agora.
— Muito bem então. Vou contratar um veículo alugado.
— Mas isso não é necessário. — protestou Odette. — Não quando...
— Odette. — disse Celine entre dentes. — Muito obrigado pela
maravilhosa refeição e pela hospitalidade consumada. Vou encontrar o meu
próprio caminho de casa.
— Eu não posso em sã consciência deixar isso acontecer.
— Deixe ela, Odette. — Bastien interrompeu suavemente, o som de sua
voz fazendo Celine enrijecer onde ela estava. — Tu ne peux pas tout
contrôler. Você não pode controlar tudo.
Odette se afastou do lado dela da mesa.
— Mas, Bastien, ela...
— Eu vou ficar bem, mon amie. — disse Celine com outro sorriso. — Por
favor, diga a Kassamir que a refeição foi uma obra de arte. Começarei a
modelar seu vestido para o baile de máscaras imediatamente. Sinta-se à
vontade para enviar os pedaços de tecido e todos os suprimentos para o
convento amanhã.
Com isso, Celine levantou o queixo e caminhou em direção às escadas que
levavam ao primeiro andar da casa de Jacques. Os membros da La Cour des
Lions – que permaneceram em silêncio e vigilantes durante toda essa
conversa humilhante – se afastaram para conceder licença a Celine, embora
ela pudesse sentir os olhos deles seguindo-a enquanto descia os degraus,
Boone inalando profundamente enquanto passava. por.
Suas mãos tremiam nas saias, mas ela não vacilou. Ela era uma montanha,
uma torre, um carvalho de cem anos no...
Atrás dela, uma risada suave subiu no teto coberto.
Condene todos eles para o inferno.
CONHEÇA SEU CRIADOR

C eline lamentou a decisão de voltar para casa no instante seguinte.


A menos de um quarteirão da casa de Jacques, todas as sombras
cambiantes e sons desconhecidos chamavam sua atenção, aumentando sua
consciência, como um tipo de medo rastejante.
Se ao menos a Corte pudesse ver a rainha das trevas agora.
O orgulho de Celine não permitia que ela admitisse que não tinha meios de
contratar um hack. E foi sua arrogância que a proibiu de tomar qualquer
outra coisa de Odette. Ou Bastien.
Ou qualquer membro da La Cour des Lions.
Mas agora que o fervor dos acontecimentos recentes havia diminuído, o
arrependimento desceu pela espinha de Celine. Ela estava muito apressada.
Ela deveria ter se aproveitado da carruagem oferecida, em vez de permitir
que seu orgulho a impedisse.
Celine suspirou para si mesma.
Não. Não era apenas o orgulho dela. Ela estava simplesmente cansada de
saber o que fazer.
Preparando-se, Celine decidiu deixar que a beleza de uma noite em Nova
Orleans a distraísse de seus pensamentos.
Uma brisa agradável agitava-se através de uma magnólia à sua esquerda,
as flores brancas e felpudas balançando ao vento abafado. A brisa se
aproximou, levando consigo o doce perfume de madressilva e lavanda, as
pequenas flores espreitando entre os dentes de uma cerca de ferro fundido
em frente a uma mansão imponente de quatro andares. No alto, terraços
envolventes e cestas penduradas transbordavam de trepadeiras e flores de
cores vivas. Uma fileira de ciprestes azuis derramava-se sobre musgo
espanhol, formando camadas de perfume e sombra. Em algum lugar distante,
um homem invisível com uma voz bonita começou a cantar, suas palavras
uma mistura de francês e algo que Celine não conseguia discernir.
Em poucas semanas, Celine aprendeu a apreciar como a cidade parecia
ganhar vida no momento em que o sol mergulhou no horizonte. Não é um tipo
normal de vida, como sol e risos. Mas um tipo sensual, sinistro e vivo. Uma
carícia quente e um sussurro fresco.
Apesar de tudo, Celine se viu se apaixonando um pouco.
Enquanto ela seguia em direção ao convento, passos se alinhavam atrás
dela, claros e nítidos contra as pedras azul-acinzentadas. Passos pesados,
como os de um homem.
Celine ouviu quando eles se aproximaram. Então endireitou sua coluna.
Não havia razão para temer a pessoa atrás dela. Os pedestres saíam às ruas
do bairro a qualquer hora do dia e da noite. Era irracional pensar que isso
poderia ser alguém – ou qualquer outra coisa.
No entanto, ela não pôde deixar de se lembrar daquela noite terrível no
ateliê, quando sua ingenuidade a traiu, mudando o curso de sua vida.
Celine virou para a rua seguinte. Os passos permaneciam em sua sombra.
O medo formigou sua nuca. Aquele sentimento de ser seguido.
Ela se absteve de se virar para enfrentar o homem, para não parecer tola
pela segunda vez em uma única noite ou, pior, provocá-lo a agir. Em vez
disso, ela decidiu realizar um teste. Ela diminuiu o passo para um passeio,
esperando que o pedestre passasse.
Ele não fez.
Em vez disso, ele também diminuiu os passos para combinar com os dela.
Celine se afastou de uma onda de pânico, suas lembranças daquela noite
terrível voaram em sua mente. Ela olhou ao redor sem mexer a cabeça,
olhando para ver quem poderia estar ao seu redor. Um cavalheiro solitário
passeava no lado oposto da rua, sua bengala atingindo as pavimentadoras,
seu olhar focado no caminho à sua frente, indiferente a tudo o mais.
Ele se incomodaria em ajudá-la?
Por um instante, Celine pensou em atravessar a rua e ficar ao lado dele,
independentemente dessas preocupações. Então ela percebeu os sons de um
desfile à distância. Um lugar em que inúmeras pessoas, sem dúvida, se
reuniram. Ela decidiu acelerar para seguir em direção à multidão, não
importava que estivesse na direção errada do convento.
Os passos atrás dela pararam no meio do caminho. Então Celine jurou que
ouviu algo subir ao vento em uma agitação de folhas, o som batendo nas
barras de uma balaustrada de ferro.
Entrando em pânico, Celine parou. Ousou olhar por cima do ombro.
Nada estava lá.
Seu coração caiu em seu estômago, sua batida trovejando alto e forte
através de seu corpo.
— Celine. — uma voz sussurrou atrás dela. Uma voz de unhas ralando na
lousa.
O medo a atravessou, mantendo-a imóvel por um instante.
Então ela se virou... para não encontrar nada.
— Mon amour. — raspou suas costas, suas palavras um pincel gelado
contra sua pele. — Você tem um cheiro divino. Venha comigo para o coração
de Chartres. Morra nos meus braços.
Celine levantou as saias e correu, os pés correndo acima das pedras
cinzentas da calçada. Ela correu para o canto mais próximo, dando a volta,
os dentes.
Passos bateram contra a passarela atrás dela, depois se dissolveram em
um farfalhar de folhas secas. Ela continuou correndo em direção ao barulho
do desfile à distância, recusando-se a parar até chegar à multidão.
Uma mão disparou de trás de uma alcova à sua esquerda, agarrando Celine
pelo braço, puxando-a do caminho pretendido, fazendo-a quase tropeçar.
Celine gritou, forçando todo o ar dos pulmões. Uma palma fria cobriu seus
lábios, oferecendo-lhe silêncio. Então, braços fortes a empurraram para trás
de uma parede de músculo com cheiro de bergamota.
Bastien.
Posicionando-se diante dela, Bastien nivelou o revólver em uma queda na
escuridão sob um toldo próximo. Um estranho murmúrio podia ser ouvido
em suas profundezas, quase como o chiado de insetos ou o ranger de dentes.
— Vá embora. — disse Bastien, suas palavras punindo com precisão. —
Ou fique e conheça seu criador, pois eu não lhe concederia um quarto.
Celine pressionou o rosto no ombro dele, os dedos cravando nas costas
dele.
O chiado cessou, a criatura encoberta subindo a lateral do prédio antes de
desaparecer na noite.
Por um momento, Celine e Bastien ficaram ali imóveis, seus corpos tensos,
suas respirações subindo e descendo em conjunto. Então Bastien virou-se
para ela, sua expressão cortada de pedra enquanto ele guardava a arma.
Algo dentro de Celine estava à beira de quebrar. Suas pernas pareciam
desossadas, seu corpo parecia esticado. A energia bateu em suas veias,
fazendo com que suas mãos tremessem.
Os dedos de Bastien se apertaram em seus braços no momento exato em
que as pernas de Celine começaram a ceder. Ele a segurou no lugar, seu
olhar fixo no dela.
Sua visão turva, Celine piscou. Então exalou lentamente.
— Celine. — disse Bastien, sua voz suave. Cuidadosa.
Ela assentiu.
— Eu estou... bem. — Celine continuou encarando o rosto de Bastien,
traçando suas linhas em um esforço para se acalmar, com a garganta seca, as
palavras em sua língua. ― Como você fez... Quero dizer, você não precisa...
— Celine. — disse Bastien novamente. Timidamente, ele mudou a mão
para o lado do rosto dela.
Ela ficou quieta, embora quisesse se apoiar em seu toque.
— Tu vas bien? Você está bem? – ele perguntou baixinho, passando o
polegar pela bochecha dela em uma carícia suave.
Celine assentiu.
― Mas... por favor... fique.
— Eu vou ficar. — Algo brilhou em seu olhar. — Eu prometo.
— O que... foi isso? — Ela sussurrou.
Ele hesitou, seu polegar roçando a borda dos lábios dela.
— Não minta para mim — disse ela suavemente. — Estou cansada de
todas as mentiras.
Ele inalou pelo nariz.
— Foi... — Ele procurou as palavras certas.
— Algo desumano. — concluiu Celine.
Bastien a considerou por um momento. Então assentiu.
— Essa... coisa matou Anabel? — perguntou Celine.
— Não posso ter certeza. É possível.
Suas palavras pareciam soar como verdade. Ou talvez Celine
simplesmente desejasse acreditar nele. Para descartar a fita amarela. Ignorar
a lógica e ouvir os sussurros do seu coração.
Tola inconstante que era.
— Ele sabia meu nome. Me disse para ir com ela ao coração de Chartres.
— Celine estremeceu. — Ele me pediu para morrer em seus braços.
Um traço de raiva percorreu o rosto de Bastien.
— Foi embora agora.
— Pode voltar.
— Vou encontrá-lo primeiro. — Os dedos de Bastien deslizaram por seu
rosto, a palma da mão emoldurando seu queixo. Suas feições assumiram uma
borda perigosa, seus olhos manchados de aço brilhantes e intensos. Ele
parecia... vicioso. Como um anjo vingador. Ou um demônio do inferno.
Celine passou a mão em seu pulso. A maneira como ele falou neste
momento – a maneira como ele olhou para ela – deveria tê-la assustado. Mas
isso não aconteceu. Em vez disso, Celine se curvou em sua carícia. Apertou
seu aperto em torno de seu pulso, a criatura em seu sangue inquieta, febril.
Bastien se inclinou para mais perto, sua respiração uma lavagem fria em
sua pele, seus lábios perto o suficiente para tocar. Para beliscar. Provar.
Ele ia beijá-la. Ela ia beijá-lo de volta.
E – por um piscar de tempo – nada mais importaria.
Um par de passos do outro lado da rua quebrou seus devaneios. Um casal
bem vestido, com a idade de seu pai, parou de andar, parando para olhar
Bastien e Celine, suas expressões cheias de desaprovação compartilhada.
De repente, o senso de propriedade de Celine voltou. Ela sabia por que o
outro par olhou para eles com tanto desdém. Para quem passava, Bastien e
Celine pareciam ser dois jovens amantes apanhados em um abraço
apaixonado em uma esquina escura da rua.
Inconscientemente, os dedos de Celine torceram ao redor do tecido fino do
colete de Bastien,
como se para puxá-lo para mais perto. A palma da mão livre de Bastien
foi pressionada contra as costas dela, arrastando-a contra ele.
Ela sentiu o calor dele através de seu corpete. Por suas saias. Sentiu que
passava por sua pele, em sua alma.
Desonesto. Pecador. Perfeito.
Com um suspiro, Celine se afastou.
Os dedos de Bastien saíram de sua garganta. Ele deu um passo atrás. O
fogo em seus olhos desapareceu no instante seguinte, substituído por
divertida indiferença.
Celine engoliu em seco, tomada por um repentino desânimo.
— Obrigado... por ter vindo em meu auxílio esta noite, monsieur Saint
Germain.
Bastien assentiu.
— É claro. — Ele esfregou a palma da mão no pescoço, parando para
verificar o pulso, por razões que Celine não conseguia entender.
Endireitando-se rigidamente, ela olhou em volta, procurando sua própria
distração. A poucos quarteirões de distância, o barulho do carnaval subia em
seus ouvidos, a folia se aproximando a cada segundo que passava.
— Devemos voltar ao convento. — disse Bastien acima do barulho
crescente.
Celine assentiu em concordância. Mas o desconforto tomou conta dela ao
pensar em marchar pelos corredores escuros do convento de Ursulina. De
tentar adormecer em meio às sombras ocultas.
Ela não podia estar sozinha agora, embora se recusasse a dizer isso em
voz alta.
— Agradeço sua oferta de me acompanhar ao convento — disse Celine,
com a voz trêmula pela incerteza. — Eu apenas...
A expressão de Bastien se suavizou. Seu coração disparou quando ele se
moveu em sua direção, apenas para se recuperar no meio do caminho.
— Você prefere andar para outro lugar primeiro? Talvez um café próximo
para tomar um café ou uma xícara de chá? — ele perguntou, seu tom quase
formal.
Celine odiava ouvir a distância em suas palavras. Outra onda de tristeza
inexplicável a atravessou. Como ela desejava poder pedir o que ela
realmente queria. Como ela desejava poder admitir para si mesma.
A criatura dentro dela sacudiu sua gaiola, exigindo ser libertada.
Como se para zombar dela ainda mais, um riso estridente ecoou ao longe,
seu eco alegre.
Sem ônus. Celine se ressentiu muito. Mais do que tudo, ela queria se sentir
tão livre quanto aquele riso. Para se lembrar como era se sentir segura em
sua própria pele.
A escuridão a envolveu como uma mortalha, lembrando Celine de sua
verdade. Como ela se atreve a desejar uma coisa dessas? Ela matou um
homem e fugiu, desrespeitando a lei francesa. Se a verdade surgisse, ela
poderia ser enforcada por isso.
Uma assassina merecia se sentir livre?
Uma nova música se desenrolou no céu, sua melodia brilhante.
Efervescente.
Acenou para Celine, quase tomando a decisão por ela. Ainda ela hesitou.
Então, como se ele pudesse ler sua mente, Bastien disse:
— Talvez devêssemos nos aventurar na direção do desfile e caminhar com
a multidão por alguns minutos.
Celine assentiu, a gratidão clara em seu rosto.
Talvez uma garota destinada à forca não merecesse se sentir livre. Afogar
suas tristes tristezas em algo leve. Mas também nenhum rapaz que tentou
forçar-se em uma jovem merecia.
E Celine ainda não estava arrependida pelo que tinha feito.
CUIDADO COM O ROUGAROU

A multidão pulsava em torno de Celine e Bastien, diminuindo e fluindo


como uma maré caprichosa. Aplausos e risadas selvagens inundaram o
ar, acabando com o pior de seus medos. O pulso de Celine pulsava sob a
pele, seu sangue subindo rapidamente. Se ela fechou os olhos, quase podia
sentir como se estivesse flutuando com a multidão, sendo carregada em uma
onda errante.
Ela nunca experimentou uma distração mais bem-vinda.
Pedaços de papel colorido choveram ao redor deles, acumulando nos
cabelos de Celine e contra a pele de Bastien antes de sujar o chão. A música
batia no céu, as trombetas soavam, guinchando pela noite como se a alegria
deles não pudesse ser contida. Os foliões reuniam-se sob beirais e nas
esquinas, enfeitados com serpentinas vibrantes, muitas com as mãos ou os
braços ligados, todo o senso de propriedade perdido sob a luz da lua
crescente.
Um carro de tablier de papel machê percorreu a pista, movendo-se no
ritmo de um caracol. Homens vestidos com jaquetas enfeitadas com dragonas
douradas – como se fossem soldados de infantaria do exército de Napoleão
– riram enquanto jogavam moedas, botões pintados e contas de madeira na
multidão.
Cada um dos sentidos de Celine estava em chamas. O suor e o cheiro da
terra tombada se misturavam com nuvens de açúcar em pó para formar sua
própria fragrância. Ela logo se viu envolvida na comoção, seus medos ainda
mais entorpecidos pela visão do espetáculo em andamento.
Ela girou, dando um passo para trás quando membros de uma tropa
dançando carregando tochas pressionaram o centro da multidão, suas saias
girando em um borrão sobre seus corpos esbeltos. Homens sem camisa e de
barril, com bigodes encerados e calças escandalosamente apertadas
realizavam acrobacias no meio da rua.
O caos da multidão ameaçando separá-los, Celine pegou a mão de Bastien
sem pensar.
Ele passou os dedos pelos dela como se fosse natural. Como se a única
coisa que fizesse sentido em meio à confusão fosse o toque da pele dele na
dela.
Celine andou ao lado de Bastien, com os olhos bem abertos, um sorriso
ameaçando tomar forma no rosto. Engolidos pelo mar de corpos em
movimento, eles logo foram levados por um caminho estreito, onde um casal
jovem e bem vestido compartilhava um beijo ardente nas sombras, como se
fossem as únicas duas almas existentes, os dedos dela serpenteando pelos
dele. cabelo, suas mãos segurando seus quadris.
Suas bochechas corando, Celine desviou o olhar. Era errado assistir a algo
tão íntimo.
Para assisti-los. Para querer ser eles.
— Prestem atenção! — Um homem gritou quando a multidão fez uma onda
repentina.
— Nom de Dieu. Em nome de Deus — Celine amaldiçoou quando quase
colidiu com um homem robusto segurando uma garrafa vazia de vinho do
porto. Bastien recuou em um movimento contínuo, girando-os, afastando-se
da confusão crescente.
Antes que eles pudessem respirar, três jovens viraram a esquina, puxando
um pouco os cabelos de Bastien e Celine. Penas azuis de avestruz se
espalharam sobre suas cabeças, seus cintos largos feitos de contas de cetim e
brilhantes em uma variedade de cores do arco-íris, suas saias construídas
com camadas de tule translúcido. Rosetas de tecido cobriam o centro dos
seios.
O resto da pele pálida estava nu.
Bastien riu quando as mulheres murmuraram com uma Celine atordoada,
contornando-a com facilidade.
— Preste atenção. — ele sussurrou em seu ouvido, seu tom de provocação.
Ela olhou por cima do ombro – armada com uma réplica – quando uma
figura alta usando uma máscara aterrorizante se lançou sobre eles, os pelos
em volta do rosto tremendo, as garras de casca de noz quase roçando seus
ombros.
Celine sufocou um grito quando voltou para Bastien, que passou um braço
firme em volta da sua cintura.
O homem da máscara peluda inclinou a cabeça para o céu. Bayed uma vez.
— Méfiez-vous du rougarou! — Ele soltou a última palavra em outro
uivo, depois girou em uma dança estranha.
Os olhos de Celine se arregalaram. Embora seu coração ainda batesse
forte, um sorriso apareceu nas bordas de seus lábios. Bastien riu e depois se
curvou para o homem mascarado, que começou a galopar em outra direção.
— Cuidado com o... o que ele disse? — Celine inclinou a cabeça, lutando
para ser ouvida sobre a comoção.
— O rougarou.
Celine piscou.
— O que é um rougarou? — Ela perguntou em voz alta.
— Uma criatura das trevas destinada a instilar medo no coração das
crianças. — Bastien lhe deu um sorriso leve, seu olhar brilhando. — Meio
homem, meio lobo, ronda os pântanos e florestas sob a luz da lua,
procurando sua próxima morte.
Embora ele falasse de brincadeira óbvia, Celine não podia ignorar a
estranha atração em seu estômago. Algo desumano a atacou menos de meia
hora atrás. O pior de seus pesadelos havia se tornado possibilidades muito
reais. Isso era uma criatura verdadeira ou fictícia?
Os traços de Bastien suavizaram em compreensão.
— Não se preocupe. Um rougarou existe apenas em nossa imaginação.
— E na sua imaginação, o que isso mata? — Ela perguntou
cuidadosamente.
— Católicos ruins.
Uma onda de risadas inesperadas irrompeu dos lábios de Celine.
— Você não pode estar falando sério.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Certifique-se de manter todas as suas promessas durante a Quaresma.
— Ele se inclinou para perto, eletrificando a pele sob a orelha dela,
enviando um calafrio do pescoço aos pés. — Ou méfiez-vous du rougarou.
Celine riu de novo, empurrando-o para longe.
— Olhem! — Uma voz gutural ordenou nas proximidades.
Bastien e Celine seguiram a diretiva, virando-se para olhar para o lado.
Quatro mulheres idosas de pele escura estavam em um semicírculo, a mais
velha no centro acenando com a mão na direção de Bastien.
— C'est un beau diable. Ele é um demônio bonito. — declarou ela, as
outras mulheres ao seu redor rindo em resposta. — Você não concorda? —
Ela perguntou a Celine.
Celine respondeu com um aceno sem humor. Bastien era de fato um belo
demônio.
A senhora estendeu as mãos enrugadas.
— Dance comigo, beau diable. — ela ordenou Bastien.
Sem a menor hesitação, ele a pegou nos braços quando a batida de uma
quadrilha festiva soou no céu noturno, os tambores e violinos voando em
conjunto. Logo outros casais se juntaram, até que um pequeno canto da rua
mudou de padrão familiar, trocando de parceiro, entrelaçando um e outro
como os juncos de uma cesta.
Celine se viu puxada para o mêlée, passando as mãos e os ombros,
passando pelos rostos embaçados, o suor escorrendo pela testa, a bainha da
saia listrada de salmão levantando um turbilhão de poeira vermelha ao redor
dos pés.
Quando a quadrilha terminou – uma nova melodia rapidamente tomou seu
lugar – Celine riu alto e aplaudiu com a multidão dispersa. Então ela olhou
através do caminho para encontrar Bastien a observando, com um olhar
estranho em seu rosto.
Eles mantiveram o olhar um do outro, enquanto todos quase colidiram no
centro da rua.
— Você dança bem. — disse Celine com um sorriso constrangedor.
— Como você.
Ela fez uma careta.
— Eu estava um pouco incerto sobre as etapas. Não houve muitas ocasiões
para eu dançar.
— Nós devemos remediar isso. — Bastien escovou a poeira dos ombros.
— E dançar bem não é conhecer os passos. É sobre conhecer a si mesmo.
— Isso é um pouco banal, você não acha?
Os lábios dele avançaram.
— Banal? Por que seria banal se conhecer?
— Eu só quis dizer, nós realmente nos conhecemos?
— Eu espero que sim. Saber quem você é necessário para determinar
quem você quer ser. — Bastien olhou para Celine em busca de pistas sobre
onde proceder. Sem dizer uma palavra, ela começou a serpentear pelas
franjas da multidão, movendo-se na direção do convento, tranquilizada pela
sensação da palma da mão contra a parte inferior das costas.
Depois que eles terminaram o desfile, Celine mudou-se para o lado de
Bastien, à vontade pela primeira vez desde que saiu de Jacques, quando sua
principal preocupação era a humilhação recente que sofrera nas mãos de
Odette. Celine quase riu de si mesma. Pensar que isso aconteceu menos de
uma hora atrás.
Mas nada disso importava agora. Não muito, pelo menos.
Seus dedos não tremiam mais. Suas costelas não mais contraíram seu
coração. Ela ainda não se sentia totalmente segura, mas pelo menos não
sentia mais medo.
E ela estava agradecida.
Durante todo o quarteirão seguinte, Celine considerou a última coisa que
Bastien havia dito.
— Saber quem você é, é uma parte necessária para saber quem você se
tornará, então quem é você, Sébastien Saint Germain?
Ele bufou.
— Devo avisar que a reviravolta é um jogo limpo.
Celine parou em deliberação.
— Hoje à noite, eu concordo. A partir deste ponto, vamos tratar apenas de
verdades.
— E amanhã?
— Voltaremos a nos esconder em mentiras confortáveis.
Bastien riu, o som rico e ressonante.
— Muito bem então. Quem sou eu? — ele meditou. — Eu sou... um
homem. — Algo brilhou em seu olhar.
Celine olhou para ele de lado, sua expressão sarcástica.
— Eu sou filho de pessoas de mundos diferentes. — continuou ele, seu
sorriso persistente. — Minha mãe era uma mulher livre de cor e meu pai era
Taíno. — Ele fez uma pausa. — Por muito pouco tempo, eu também fui, —
uma sombra cruzou seu rosto — um irmão. Depois que perdi minha família,
me tornei sobrinho. Meu tio me trouxe de volta a Nova Orleans aos nove
anos de idade e morei aqui até ser mandado para a academia, onde, salvo um
incidente bastante infeliz, quase me tornei um soldado. — Uma pitada de
diversão amarga tocou seus lábios. — Agora eu cuido dos assuntos do meu
tio quando ele está viajando a negócios.— Ele levantou um ombro. —
Suponho que isso é tudo.
Celine absteve-se de chamá-lo. Bastien pode não ter contado nenhuma
menitira, mas ele ofuscou a verdade, destilando toda a sua vida em nada
além de alguns detalhes. Uma fonte de perguntas reunidas em sua garganta. A
advertência de Michael de dias antes passou por sua mente, incentivando-a a
pressionar Bastien por detalhes, para que ela pudesse entender toda a
extensão da infeliz história do Fantasma.
Ela escolheu ignorar esse desejo. Seria mais fácil enfrentar essas
preocupações amanhã do que suportar seu peso hoje à noite.
— Você pode me perguntar, Celine. — disse Bastien. — Afinal, Michael
não contou tudo. — Humor cáustico entrelaçou suas palavras.
— Claro que ele não fez. Estou certo de que não escapou ao seu
conhecimento quanto ele te odeia.
— O sentimento é certamente mútuo. — Seu sorriso cheirava a arrogância.
— Posso perguntar por que?
— Você pode. Mas eu não posso responder. Desde que prometi não mentir.
Os lábios de Celine ficaram presos entre o silêncio e a fala por um
instante.
— Muito bem. — ela resmungou. — Pelo que vale, Arjun é um espião
miserável.
Ele bufou.
— Assim como um excelente advogado.
— Para demônios e patifes. — Ela fez uma pausa. — Mas com toda a
seriedade... o que aconteceu com sua família? — Isso, pelo menos, ela
queria saber neste momento.
Um olhar de apatia em branco surgiu em seu lindo rosto.
— Minha mãe morreu seis meses depois da minha irmã. Após a morte
deles, meu pai me levou de Nova Orleans para Saint Domingue. Ele adoeceu
logo depois, então nos mudamos para sua casa em San Juan.
— E... como sua irmã morreu?
— Ela foi morta em um acidente, aos quinze anos. — Embora a resposta
de Bastien parecesse indiferente, suas feições endureceram por um instante,
a raiva piscando atrás de seus olhos antes de sua máscara astuta voltar ao
lugar. Havia uma história lá. Uma fonte de dor imensa. Mas Celine não
queria pressionar Bastien sobre o assunto. Ainda não. — Meu pai sucumbiu
à doença pouco tempo depois, depois do qual retornei a Nova Orleans. —
concluiu.
Uma mão invisível agarrou o coração de Celine em um torno. Incomodou-a
como Bastien falava sobre a perda em um tom tão banal. Talvez fosse assim
que ele falava sobre coisas que realmente lhe importavam, de maneira fria e
desapegada.
— Ouvi muitas pessoas dizerem que a tragédia nos molda. — continuou
Bastien. — Mas eu não sou a pior coisa que já aconteceu comigo, nem a pior
coisa que já fiz. Nada na vida é tão simples assim. — Ele olhou através das
ruas escuras de Nova Orleans, seu olhar firme.
Determinado.
Suas palavras foram como um golpe para Celine. Todo dia ela negava
partes de si mesma. Tentou esconder a pior coisa que tinha acontecido com
ela, a pior coisa que ela já havia feito. Durante toda a sua vida, ela negou
quem era sua mãe, como se fosse algum tipo de grande vergonha. Por causa
disso, ela não sabia nada sobre metade de seu passado.
Metade de sua própria história.
Desde os quatro anos de idade, ela foi informada que esse era o único
caminho.
— Você já desejou poder ser outra pessoa? — Celine perguntou, seu tom
solene.
— Frequentemente. Especialmente quando eu era garoto. — Bastien virou-
se para ela. — E você?
Celine empalideceu.
— Não minta para mim. — Bastien repetiu suas palavras anteriores: —
Hoje à noite lidamos apenas com verdades.
— Que é... difícil, já que toda a minha vida é construída sobre uma
mentira.
Foi sincero. Mais honesta do que Celine já havia sido com alguém em sua
vida.
Ela respirou profundamente pelo nariz.
— Minha mãe era de um país do Extremo Oriente. Nunca me disseram
qual. Mas... Eu sou de herança mista, de um casamento do Oriente e do
Ocidente – disse Celine, quase como se sua própria admissão a tivesse
assustado. — Eu nunca disse isso a uma alma. — ela terminou apressada.
E, no entanto, as palavras caíram de seus lábios com uma facilidade
surpreendente.
Bastien a estudou enquanto eles caminhavam. Quaisquer que fossem seus
pensamentos, ele os ocultou bem.
Com a cabeça notavelmente fria, Celine olhou para as pedras cinzas à
frente.
— Quando meu pai e eu viemos para Paris, eu era muito jovem. Ele me
disse para manter quem minha mãe era em segredo. Ele disse que se o mundo
soubesse, eu viveria com escárnio pelo resto da minha vida. Então eu ouvi e
menti. E... Sinto vergonha por isso. É como se essa mentira se tornasse parte
essencial da minha verdade, como uma espécie de pedra angular distorcida.
Tanto que eu não sei como. — ela lutou por um momento. — Como pensar
ou se comportar de maneira diferente, para que a coisa toda não se desfaça
em pedaços.
Aí. Várias verdades dolorosas desmascaradas. Verdades que ela era
incapaz de admitir até para si mesma. Surpreendeu-a que – de todas as
pessoas que encontrara até agora – tivesse decidido compartilhar essas
verdades com Bastien.
Celine esperou em silêncio por um tempo, ponderando essa realização.
Desejando que ela pudesse ignorar o significado por trás disso.
— Sinto muito por sua dor, Celine. — disse Bastien em um tom suave. —
Obrigado por confiar em mim com sua verdade.
Uma pontada aguda cortou seu peito, dificultando a resposta a princípio.
Finalmente Celine falou, com sua voz em um tom suave.
— E sinto muito por sua dor, Bastien. Eu acho que a confiança é uma coisa
preciosa.
Saiba que eu sempre tratarei a sua como tal.
Ele olhou para ela, seus olhos eram de prata líquida.
— Merci, mon coeur. Obrigado, querida. Do meu coração para o seu.

Eles andaram o resto do caminho em direção ao convento das Ursulinas sem


nada que os acompanhasse, além do barulho dos insetos e do sussurro das
folhas das palmeiras. Uma vez que contornaram a curva final – o convento
que se erguia alto na escuridão – Celine inclinou a cabeça em direção ao
laço de estrelas ao redor da lua falciforme, a luz fria subindo por suas veias.
Bastien parou ao lado dela, embora ele não seguisse o olhar dela.
— As estrelas são assim tão atraentes? — Ele brincou em um tom suave.
— Claro que sim. — disse ela sem desviar o olhar. — Elas são infinitas.
Elas vêem tudo e sabem tudo. Essas mesmas estrelas pairavam no céu
durante os tempos de Michelangelo e Shakespeare. Isso não é fascinante?
Bastien suspirou, o som sombrio.
— Eu nunca vou entender o fascínio pelo infinito. Há um fim para tudo,
para as coisas boas também.
— Chaucer era um idiota. — Celine olhou para ele, com uma sobrancelha
arqueada com diversão. — E o infinito nos cativa porque nos permite
acreditar que todas as coisas são possíveis. Esse amor verdadeiro pode
durar além do tempo.
Ele não respondeu. Em vez disso, seus olhos se fixaram nos dela, os cílios
acima deles grossos. Uma deliciosa cor de fuligem. Quando Celine desviou
o olhar, Bastien pigarreou, parando para verificar seu pulso.
— Você fez de novo. — disse Celine.
— O que?
— Você costuma checar seu pulso. Estou curiosa sobre o porquê.
Um sorriso sarcástico tomou forma no rosto de Bastien.
— Para me lembrar que sou humano.
Aquele mesmo sentimento estranho tomou conta de Celine novamente.
Aquele sentimento de algo iludindo seu alcance. Algo... importante. Antes
que ela pudesse se conter, ela perguntou: — Você é?
Sua pergunta pegou Bastien desprevenido. Ele olhou para ela, seus lábios
perfeitos empurrando para a frente com lenta deliberação. Então ele pegou a
mão dela e a pressionou na lateral do pescoço. Sob as pontas dos dedos de
Celine batia um batimento cardíaco constante. Um que começou a correr ao
seu toque, seu calor formigando através de seu corpo. Bastien manteve as
duas mãos lá por um tempo, ciente de que seu pulso o traiu.
Ciente e aparentemente despreocupado.
O coração não mente, Michael havia dito.
Celine deixou cair a mão trêmula. E decidiu ignorar todo o senso comum.
— Como estamos lidando com verdades nesta noite, eu queria dizer que
estou atraída por você.
— E eu estou atraído por você. — Bastien não hesitou nessa confissão.
Ela olhou para ele, seus olhos sem vacilar.
— No início desta noite, eu queria te beijar.
— Eu queria beijar você desde a noite em que nos vimos pela primeira
vez na Jackson Square.
— Você lembrou. — ela murmurou. — Eu pensei que você tinha
esquecido.
Bastien inclinou a cabeça.
— Como eu poderia esquecer? Você me surpreendeu. Faz muito tempo que
nada me surpreendeu.
Celine piscou.
— Eu te surpreendi?
Ele riu. Então sua expressão ficou séria.
— Um dia, alguém deveria lhe dizer como você é linda ao luar. — disse
Bastien suavemente.
O calor acumulou-se no estômago de Celine, lambendo seu peito, subindo
para sua garganta.
— Alguém deveria. — Ela engoliu em seco. ―Mas... Eu não acho que
deveria ser você.
— Eu concordo. — Mais uma vez, Bastien não hesitou.
— Não se apaixone por mim. — ela alertou novamente, suas palavras sem
fôlego. — Você não é bom para mim. E eu não sou bom para você.
— Eu concordo, em todos os aspectos.
— Provavelmente, você precisa de uma jovem com riqueza e uma boa
linhagem. Um lugar estabelecido na sociedade — continuou Celine. — E eu
preciso de um jovem cavalheiro.
Os ângulos no rosto de Bastien se acentuaram, traindo uma faísca de
emoções delicadas demais para distinguir.
— Correto em todos os aspectos. — disse ele. — Você não tem a linhagem
certa. — Um meio sorriso curvou seu rosto. — E eu não sou um cavalheiro.
— No entanto, agradeço o que você fez por mim esta noite, mais do que
palavras. E no futuro, — Celine inalou. — não ficaria ofendida se você
escolhesse manter distância.
— Não acho que seja necessário. Se você concorda, acredito que estamos
seguros para se passar por conhecidos. — Bastien fez uma pausa como se
pretendesse dizer algo mais.
Então ficou em silêncio, seus lábios se curvando para cima.
Mas... quem quer estar seguro? Celine baniu o pensamento imprudente de
sua mente e estendeu a mão.
— Obrigado de novo. Não esquecerei sua bondade.
— De nada, mon coeur. — Em vez de se inclinar para beijar a mão dela,
Bastien a sacudiu, como se fosse igual, seu anel de sinete piscando de volta
para as estrelas.
Uma onda de satisfação percorreu Celine.
— Os conhecidos falsos usam esses termos carinhosos?
— Eles fazem no meu mundo.
Ela sorriu através de um lampejo de tristeza.
— Seu mundo é lindo, Bastien. Eu gostaria de poder ficar.
— Assim como eu.
Com isso, Celine deslizou a mão da dele, as pontas dos dedos demorando
mais do que o necessário. Então ela se virou em direção ao convento,
surpresa ao perceber que era possível sentir-se satisfeita e vazia ao mesmo
tempo.
A HORA DA BRUXA

P elo canto do olho, Celine viu a última vela começar a piscar e diminuir.
Ainda não, ela silenciosamente implorou. Por favor ainda não.
Sua língua deslizou entre os dentes enquanto se apressava, juntando os
pedaços de tecido brilhante numa corrida contra a luz crepitante. Quando ela
estava prestes a chegar ao fim da costura, a porta da cela de Pippa se abriu.
Uma brisa fresca soprou pelo espaço, apagando a chama antes que Celine
pudesse piscar, engolindo-a na escuridão repentina.
— Oh. — disse Pippa, sua pequena figura em silhueta por um raio de luar.
— Sinto muito por isso. — Com o pé, ela apoiou a porta até a metade do
caminho. — Mas trago presentes.
— Ela entrou na sala. Entre as mãos dela, repousava uma simples bandeja
de madeira carregada com o que parecia ser comida e o toco de uma vela em
um suporte de latão à moda antiga.
Levou um momento para os olhos de Celine se ajustarem à escuridão azul.
— Desculpas são desnecessárias, especialmente se você trouxe queijo.
— E presunto e mostarda Dijon, além de chá, uma crosta de pão quente... e
um pedaço de favo de mel fresco que peguei anteriormente de uma colméia
de abelhas gloriosas! — disse Pippa, triunfante.
Celine quase podia ouvir Pippa sorrindo. Foi nesses momentos que ela
mais a apreciou.
Philippa Montrose era luz do sol e bondade. Um favo de mel por direito
próprio. Talvez parecesse bobo, mas ter uma amiga como Pippa ajudou
Celine a acreditar que era bem-vinda aos olhos da sociedade decente, apesar
de tudo o que havia acontecido nas últimas semanas.
Sorrindo, Celine prendeu a agulha no brilhante tecido branco e se afastou
da estação de trabalho improvisada para esticar os braços acima da cabeça.
Por um instante, pensou em esperar para comer. Seria sensato tirar proveito
da pequena vela que Pippa havia arrumado para terminar o último pouso
antes de se retirar para a noite. Afinal, uma única semana restava antes do
baile de máscaras. Celine nunca tinha terminado um vestido em tão pouco
tempo, muito menos sem assistência.
Mas ela estava faminta. Ela já tinha renunciado o jantar porque estava tão
consumida com seu trabalho. Quando Pippa sugeriu que reunissem suas
escassas provisões de luz para fazê-las durar mais tempo, Celine estava
além da apreciação do gesto. Desde que chegara ao convento há menos de
três semanas, lamentava sua escassez de lanternas a óleo.
Depois que o sol se pôs, Celine mudou suas coisas para a cela um pouco
maior de Pippa, onde Pippa optou por trabalhar em suas aquarelas, enquanto
Celine costurava à luz das chamas de velas que compartilhavam.
Agora Pippa mexia-se pelo espaço, cantarolando uma melodia familiar
enquanto acendia o cone curto e enquanto posicionava um banquinho no
centro da sala, colocando a bandeja no assento para formar uma mesa
improvisada.
No lado oposto da cela, Celine recuou para examinar seu trabalho.
Agradou-lhe o quanto ela conseguiu concluir em apenas dois dias. Assim
que o amanhecer terminou, ela consultou um carpinteiro na Rua Bienville,
que a Madre Superiora lhe recomendou. Depois que Celine explicou como
os cestos de estilo barroco deveriam parecer – estendendo-se lateralmente
para cada quadril de maneira exagerada, as silhuetas frontal e traseira
mantidas próximas ao corpo – ele sugeriu que usassem galhos de salgueiro,
pois seriam leves, flexíveis e prontamente acessível. Perfeito para construir
aros que estavam fora de moda há quase um século. Para imenso prazer de
Celine, ele garantiu que teria uma amostra para ela testar em três dias.
Celine começou a vestir o vestido de Odette com um único foco. Ajudou a
distraí-la das muitas perguntas sem resposta que giravam em sua mente.
A primeira vez que Celine visitou Jacques, ela chegou à conclusão de que
os membros da La Cour des Lions não eram humanos comuns. É claro que
esse conhecimento levantou a questão: se eles não eram exatamente humanos,
então o que eram?
Celine não tinha a menor idéia. Eles eram duendes ou changelings? Bruxas
ou feiticeiros?
Talvez algum tipo de fada escura ou silfo efêmero? Essas estavam entre as
possibilidades mais fantasiosas. O tipo que Celine pegou emprestada de
livros ou roubou de histórias que ouvira quando criança. Parecia mais
seguro acreditar que eles eram tricksters como Puck ou algo sobrenatural da
pequena floresta de uma floresta cintilante, como Oberon e Titania. Mais
seguro pensar que, do que acreditar que possam ser criaturas tão terríveis, o
pior dos pesadelos de Celine nunca os teria concebido.
Afinal, se a magia era possível, tudo era possível.
O pensamento que mais a assustou foi a probabilidade de que La Cour des
Lions tivesse algo a ver com o assassinato de Anabel. Que Bastien pretendia
proteger o culpado quando escondia a fita amarela.
Ou que ele era de fato o culpado.
Talvez Celine não tivesse estômago para a verdade. Talvez ela desejasse
permanecer alegremente ignorante, uma preocupação que a desconcertou
ainda mais.
Com um emaranhado de espinhos na cabeça, Celine passou os dedos pelos
pedaços de tecido cortado que estavam empilhados em uma pilha arrumada
em cima da cama de corda de Pippa. O que havia começado naquela manhã
como nada além de uma lista de medidas e pedaços de musselina dispersa se
transformara no começo de um grande vestido de baile.
Celine deixou sua mente ser consumida pelo desafio. Acolheu a distração.
A próxima parte do projeto poderia ser a tarefa mais difícil que ela já
havia encarregado-se. Uma parte do traje de baile de máscaras de Odette
pretendia ser uma surpresa. Assim, Celine não podia confiar em sua ajuda
para concluí-lo. Ela teria que recrutar assistência de outro lugar. Talvez
Pippa seja uma boa opção. Seu tamanho e formato eram semelhantes aos de
Odette, apesar da disparidade de altura.
— Você terminou a noite? — Pippa perguntou enquanto limpava o último
de seus apetrechos de aquarela.
Celine se esticou novamente, um bocejo puxando sua boca.
— Mais ou menos.
— Eu nunca vi alguém trabalhar por um período tão longo sem parar.
Como se você trabalhasse bem até a hora das bruxas, se não tivesse sido
interrompida.
— É verdade que estou me divertindo. — Celine enviou um sorriso
cansado. — Faz um bom tempo desde que tive a chance de criar algo tão
grandioso. O baile de máscaras está a apenas uma semana de distância.
Normalmente, tenho meses para fazer um vestido tão complicado. É uma
sorte que Odette tenha em sua posse uma grande quantidade de rendas e
miçangas para eu usar. — Ela se ajoelhou diante da mesa improvisada e
serviu uma xícara de chá para Pippa. — Eu não te vi no início da tarde. Você
foi ao mercado com Antonia ou ao chapelaria com Catherine?
Pippa balançou a cabeça.
— Eu encontrei a mãe de Phoebus Devereux para tomar chá. — Ela mexeu
uma gota de creme em seu chá, a cor pálida girando sobre a xícara.
— Eu quase me esqueci disso. — disse Celine, enquanto colocava
mostarda em um pedaço de pão, em seguida, fatias de Gruyère e presunto
salgado por cima. — Como foi?
Pippa apertou os lábios do botão de rosa para o lado.
— Estranho. Ela disse que seu filho esteve um pouco doente nos últimos
dois dias. Os médicos estão lutando para descobrir o que pode estar
deixando-o doente. Felizmente, ele está se recuperando. Ela quer que eu o
encontre em breve. Phoebus fará um convite quando estiver bem de novo.
— Se tudo correr de acordo com o plano de sua mãe, como você se sente
ao ser cortejada por ele? — Celine mordeu o pão, saboreando a nitidez da
mostarda e o sal do queijo.
Pippa quebrou um pedaço de favo de mel, deixando o mel dourado pingar
em seu chá enquanto pensava em como responder.
— Com toda a honestidade, estou mais preocupado com o que acontecerá
comigo se eu não encontrar um par. Quando não posso mais morar em um
convento sem ser freira. — Ela lambeu o mel da ponta dos dedos, sua
expressão melancólica.
A honestidade desolada de sua amiga irritou Celine.
— E se você não tivesse que se preocupar com essas coisas? Casar-se
com um garoto como Phoebus combina com sua sensibilidade?
— Eu acho que sim. Seria bom ter algo meu. Um espaço para desenhar.
Pintura. Tocar música. Ser eu mesma. A família Devereux parece ser um
meio confortável. — Pippa fez uma pausa. — Eu ficaria bem cuidada se
casasse com Phoebus, caso ele quisesse perguntar. — Conformação passou
pelas bordas de seus lábios.
Celine tomou um gole de chá, desejando poder falar claramente sobre o
quanto essa situação a incomodava. Que uma garota tão maravilhosa quanto
Pippa teria que renunciar a seus desejos para ter conforto e proteção.
— Suponho que tudo isso parece razoável e prudente. — E desanimador,
ela acrescentou a si mesma.
— Eu sei que isso te frustra. — Pippa parou novamente em consideração.
— Eu apenas, eu não tenho a disposição para esperar e ter esperança por
algo melhor. Eu me preocupo o tempo todo com o que vai acontecer comigo.
Mesmo objetivos razoáveis podem ser inatingíveis quando você é uma
jovem sem perspectivas. — ela disse simplesmente, a luz cansada em seus
olhos. — Aprendi isso em casa, em Yorkshire, quando ficou claro que
nenhum esforço da minha parte ou da parte de minha mãe poderia compensar
as falhas de meu pai.
Reparação. Um conceito que também assombrava Celine ultimamente.
— Você acha que é possível que seu pai possa reparar seus pecados?
— Para mim ou para Deus?
— Para você.
Pippa não respondeu, um cenho franzido nas linhas do rosto, como se o
pensamento a incomodasse.
Celine respirou com cuidado.
— Suponho que estou perguntando se é possível alguém realmente reparar
seus pecados. Para pedir perdão e ser verdadeiramente perdoado.
Por um momento, Pippa permaneceu em contemplação.
— Há algum tempo, acho que o pecado não é tão preto e branco como eles
gostariam que acreditássemos. — ela respondeu em tom pensativo. —
Suponho que há momentos em que o pecado está nos olhos de quem vê.
— Quando nos conhecemos, eu não pensaria que você é capaz de dizer
uma coisa dessas.
— Isso é um elogio ou um insulto? — Pippa sorriu de bom humor.
— É um elogio. Sou grata por você se sentir confortável compartilhando
esses pensamentos comigo. — Celine mordeu a parte interna da bochecha.
— Talvez você esteja certa. Talvez o que alguém possa considerar um
pecado, outro possa considerar ser... sobrevivência.
— Como quando Jean Valjean roubou um pedaço de pão para alimentar
sua família em Os Miseráveis. — Pippa assentiu em concordância, depois
preparou um tartine de presunto e queijo para si. Um silêncio fácil se
estabeleceu entre eles quando terminaram a refeição da meia-noite.
Assim que Celine engoliu os restos de seu chá morno, Pippa inclinou a
cabeça para um lado.
— Celine... há algo que pretendo lhe dizer há algum tempo. Eu posso
estragar tudo, mas espero que você tenha paciência comigo enquanto eu
tento.
O estômago de Celine se apertou de pavor.
— Claro. — Ela se forçou a sorrir.
— Acho que todos nós que viemos ao convento estamos aqui porque não
tivemos uma escolha melhor. — começou Pippa. — É possível que alguns de
nós estejam tentando... escapar de algo do nosso passado. — Ela vacilou por
um instante. — Mas acredito que você é uma pessoa maravilhosa, com um
bom coração e uma alma calorosa. O que quer que você tenha feito em sua
vida passada, acho que... não, eu sei disso... Deus pode perdoá-lo.
Um nó se formou na base da garganta de Celine.
— Pippa, eu...
— Espere, espere, tem mais. — Pippa respirou fundo, firmemente. — Se
Deus te perdoa, eu também posso. — Determinação gravada em sua testa. —
Todos nós deveríamos. — Ela engoliu em seco, seus lábios se juntando
timidamente. — Fiz isso uma confusão, não foi?
Soou muito melhor na minha cabeça. Muito mais vivo e significativo.
A boca de Celine ficou seca.
— Você não fez nada disso. Eu...
— Você não precisa dizer nada. Eu apenas pensei que você deveria saber.
— Com um sorriso terno, Pippa colocou o último favo de mel na borda do
pires de Celine.
Por um tempo, os olhos de Celine queimaram com lágrimas não
derramadas. Ela piscou de volta e desviou o olhar, lutando para se
recompor.
— Obrigado. — disse ela com uma voz grossa. Então ela levou o pedaço
de favo de mel banhado pelo sol aos lábios.
Pippa não sabia o que tinha feito por Celine. O que a declaração de Pippa
significou para ela.
De repente, ocorreu a Celine como as palavras mais simples geralmente
carregam mais peso.
Sim e não. Amor e ódio. Dar e receber.
Pela primeira vez desde que ela matou um homem e fugiu da França, ela se
sentiu entendida. Vista.
Segura.

— Ooofff. — Pippa engasgou quando tropeçou em uma pedra irregular nos


corredores escuros do convento de Ursuline. A cesta de tecido adornado em
suas mãos quase derramou pelo chão, mas ela conseguiu segurá-la com
firmeza.
— Você está bem? — Celine perguntou em um sussurro alto, alguns passos
atrás dela.
O riso de Pippa foi suave. Arrependida.
— Minhas mãos estão escorregadias da água e do sabão. Talvez
devêssemos ter ido lavar a noite depois de devolver suas coisas para a sua
cela. — Ela se endireitou, seus movimentos desajeitados como resultado de
seu peso.
— Ou talvez devêssemos ter guardado o último cone para algo além de
zombar de Catherine.
— Eu não zombei dela!
— Bem, você me viu zombando dela. E você riu, o que é tão horrível.
— Não é. — Pippa sufocou uma risadinha.
Celine sorriu para si mesma, sua alma inundada de calor. Nesse ponto, ela
realmente perdeu a conta de quantas vezes havia oferecido agradecimentos
silenciosos por Pippa.
Talvez se ela tivesse uma irmã – como tantas vezes desejava quando era
mais nova – pudesse entender melhor como era ter um aliado ao seu lado nos
momentos difíceis. Alguém com quem enfrentar as noites mais sombrias.
Um flash de movimento chamou a atenção de Celine no final do corredor
curvado. Como uma sombra se estendendo em um raio de sol.
Ela parou, seu último passo ecoando em seus ouvidos.
A lembrança daquela criatura disforme rangendo os dentes e subindo a
lateral do prédio passou pela mente de Celine, fazendo com que a respiração
parasse na sua garganta. As saias de Pippa balançavam pelo chão de pedra
alguns passos à frente, o som lembrava a criatura voando em um emaranhado
de galhos varridos pelo vento.
A pele de Celine se arrepiou como se ela tivesse entrado em uma teia de
aranha. Os pelos da nuca estavam retos. Ela olhou para o lado oposto do
corredor, metade dela desejando que as sombras mudassem mais uma vez, a
outra metade rezando para que não mudassem.
Um momento depois, ela decidiu que sua mente cansada havia brincado
com ela. Com uma firme postura nos ombros, ela ajeitou a cesta de vime e
seguiu Pippa.
Do lado de fora da porta da cela, Celine apoiou a cesta de costura em um
quadril e se preparou para empurrar a pesada porta de madeira. Pouco antes
de segurar a maçaneta, ela se virou na direção de Pippa.
— Você tem um momento livre amanhã para eu medir um pedaço de tecido
em você?
— Claro que não. — Pippa sorriu. – Abomino a ideia de ser envolto em
seda cintilante. É como se você não me conhecesse.
Celine bufou.
— Então, eu te vejo ao meio-dia? — Ela girou a maçaneta da cela.
A porta se abriu de repente, puxada por uma corrente inesperada.
Pippa gritou quando a cesta de instrumentos de costura de Celine caiu no
chão de pedra.
Sem parar para respirar, Celine puxou um conjunto de tesouras da pilha ao
lado de seus pés, brandindo a ponta afiada como se fosse uma lâmina.
O cheiro a atingiu primeiro. Uma mistura de centavos velhos e o fedor de
um açougue.
De um local em que os animais foram abatidos.
— Pippa. — disse Celine, sua voz mesmo, apesar do medo agitando sob
sua pele. — Vá encontrar a Madre Superior.
— Eu não vou te deixar. E se... — As palavras de Pippa foram engolidas
em um suspiro.
Uma grande sombra voou do chão da cela para o teto, movendo-se rápido
demais para distinguir.
— Quem está aí? — Celine exigiu, seu coração trovejando no peito.
Atrás dela, Pippa lutou para acender um fósforo longo, a caixa caindo ao
lado de seus pés em uma dispersão de galhos.
— Vá! — Celine exigiu. Mas Pippa persistiu, recusando-se a sair do seu
lado.
A criatura pairando no teto estremeceu, os dentes rangendo juntos, fazendo
com que os ombros de Celine se afastassem e um calafrio percorreu sua
espinha. No chão sob a janela aberta, outra criatura gemeu, o som um apito
fraco. Como se estivesse preso no meio da morte.
Levou um instante para Celine entender. O demônio nas sombras atacou
algo em sua cela. Ela se moveu para ajudar a alma ferida embaixo da janela,
mas os dedos dos pés deslizaram em algo molhado, o pé direito deslizando
por baixo dela. Agarrando a parede para se firmar, Celine olhou para cima
quando uma gargalhada seca emanou de cima.
Terror correndo por suas veias, Celine lutou para ficar em pé, seus joelhos
ameaçando ceder debaixo dela. Pippa gritou e se afastou.
— Vá embora daqui! — Celine exigiu na escuridão que pairava acima
dela, seus dedos tremendo ao redor de suas tesouras.
A coisa borrou do teto ao chão como uma tempestade através de um campo
de trigo.
Então parou lentamente, sua figura longa se desenrolando em um raio de
luar minguante.
Antes que Celine pudesse piscar, ela correu em sua direção, pegando-a
pelo pulso, batendo-a contra a parede áspera de gesso. Ele se aproximou,
cheirando a sangue e chuva. A umidade da terra. Respirava profundamente
no pescoço de Celine, os dentes roçando o lóbulo da orelha esquerda,
deixando um rastro de umidade pegajosa.
— Cada vez que você foge de mim, só me faz te querer mais. — ofegou,
sua voz como metal contra pedra. — Você não pode escapar. Você é minha.
— Então ele arrastou seus dedos sangrentos pelo rosto, como se estivesse
marcando-a.
Um grito de horror pegou na garganta de Celine. Ela continuou rígida, com
os olhos sem piscar, lutando para detectar algo notável. Qualquer coisa que
possa ajudar a identificar a criatura à luz do dia. Mas a sala estava muito
escura, o demônio muito perto. Os passos de Pippa ecoaram pelo corredor,
seus gritos atrapalhados e sem sentido.
— A morte leva a outro jardim. Bem-vindo à Batalha de Cartago – a coisa
sussurrou no ouvido de Celine, com as palavras um tom estridente, o sotaque
refinado. — Para si mesmo, seja verdadeiro.
Celine o apunhalou no peito com suas tesouras de costura. Rugindo, o
demônio a empurrou para um lado com força desumana, um grito
ensurdecedor rasgando a escuridão.
A cabeça de Celine bateu no chão com um baque surdo, sua visão
distorcida pelo golpe. Ela lutou para se concentrar na figura que pairava
acima dela. Tudo o que conseguia distinguir era a silhueta do que parecia ser
um homem alto e musculoso, o peito arfando, as mangas e a bainha do casaco
esfarrapadas.
— Eu não tenho medo de você. — disse Celine em um tom rouco.
O riso do demônio foi um murmúrio molhado.
— Você terá.
O tumulto ecoou pelos corredores além da cela de Celine. As portas se
abriram e os gritos das jovens mergulharam na escuridão espessa, seus
passos batendo no chão de pedra, suas velas tremulando sobre as paredes.
Então o demônio pulou da janela de Celine com graça sobrenatural.
Com o crânio zumbindo e a visão turva, Celine pegou a caixa de fósforos
caída.
Trabalhou para sentar e acender um, os dedos dos pés deslizando através
da poça de calor pegajoso coletando pelos pés. Seus dedos tremiam quando
o fósforo explodiu em chamas, o cheiro apimentado de pólvora inundando o
ar.
O coração de Celine martelava em suas têmporas, seus membros
desprovidos de calor.
No momento em que a chama da partida se esticou para espalhar sua luz,
Pippa irrompeu pela entrada da cela, brandindo uma lareira pôquer como
uma épée de esgrima. Seu grito retumbante se transformou em muitos,
montando como ondulações em um lago. Rostos horrorizados, carregados de
sono, ergueram-se para dar uma olhada além da porta, lamentando sua
curiosidade no instante seguinte.
Pois nada poderia tê-los preparado para a visão que encontrou em seus
olhos.
Espalhado pelo parapeito da janela aberta de Celine estava o corpo
mutilado de um homem. Uma de suas pernas estava dobrada em um ângulo
não natural, um braço dobrado atrás dele, quase arrancado do encaixe. Sua
barba rala arrastou-se pelo chão de pedra.
Bolhas vermelhas espumaram ao redor de sua boca enquanto o sangue de
um corte no pescoço pingava para baixo, passando entre as rachaduras em
afluentes misteriosos.
Acima de seu corpo – pintado na persiana de madeira – havia outro
símbolo, esboçado em vermelho carmesim:
A LIBERDADE SOLITÁRIA DE UMA RUA ENEVOADA

D ormência envolveu Celine, apoiando-se nos ombros, serpenteando


pelos membros. Ela deu boas-vindas. Desejou que a engolisse inteira.
Um demônio a tocou. Marcou ela.
Tirou outra vida.
William, o jardineiro gentil que se assemelhava a um mago, havia sido
assassinado hoje à noite na cela de Celine, no auge da hora das bruxas. Ele
morreu como Anabel, sua garganta rasgada de uma maneira horrível, o
sangue escorrendo de seu corpo o mais rápido que seu coração pode
bombear. Desta vez, o assassino tinha sido muito menos exigente. Em vez de
drenar todo o sangue de William, ele permitiu que respingasse em todos os
lugares, como se houvesse uma luta. Ou talvez o demônio tenha escolhido
brincar com sua presa.
Nenhum dos pensamentos foi tranquilizador.
Celine estava sentada nos degraus além do vestíbulo do convento das
Ursulinas. Uma chuva leve espanou o ar, borrifando sua pele, embora ela não
pudesse senti-lo, cortesia da dormência abençoada. Ao seu redor, fala
silenciosa e passos rápidos pontuaram a noite, de vez em quando atados a
lamentos intermitentes.
Felizmente – após o ataque inicial de perguntas – ninguém pensou em
incomodar Celine ou se aproximar. Era como se eles tivessem chegado à
mesma conclusão que ela. Que ela era uma maldição. Uma praga em todas as
suas vidas.
Não poderia ter sido uma coincidência que Anabel tivesse sido morta
depois de seguir Celine para um covil de iniqüidade. Nem poderia ser mero
acaso que William tivesse encontrado seu fim horrível na cela dela. Com
exceção do assassinato aparentemente não relacionado ao longo das docas, o
assassino parecia estar mirando qualquer pessoa ligada a Celine Rousseau,
por razões além de todo o seu conhecimento. Parecia não haver lógica para
nada disso, exceto pelas associações das vítimas com ela e com o convento
das Ursulinas.
Seria possível que a jovem ao longo das docas também estivesse
conectada de alguma forma?
Nesse ponto, nenhum detalhe, poderia ser ignorado.
Cada vez que você foge de mim, só me faz querer mais você.
Você não pode escapar. Você é minha.
Celine estremeceu ao olhar as pavimentadoras de granito ao lado de seus
pés, observando a chuva cintilar em suas superfícies arenosas. Ela ficou
rígida quando Pippa se agachou ao lado dela, depois olhou para a amiga de
lado, encontrando os olhos azuis arregalados de preocupação. Sem uma
palavra, Pippa entregou-lhe um lenço de linho limpo.
Então esperou atentamente enquanto Celine limpava o sangue do rosto, os
pedaços secos descascando em seu vestido úmido, fazendo com que seu
estômago se agitasse e o ácido borbulhasse na garganta.
— Existe algo que eu possa fazer? — perguntou Pippa, sua voz suave.
Você pode me deixar em paz. Raiva percorreu Celine com a pouca
consideração que Pippa parecia ter por sua própria autopreservação. Nessa
altura, ela deveria procurar uma companhia melhor do que de uma praga
como ela.
A essa altura, todos deveriam ter corrido para as colinas.
— Posso pegar um chá para você? – perguntou Pippa.
Celine recuou e não disse nada. Ela se preocupava se abrisse a boca, uma
enxurrada de palavrões – o pior de seus medos ganhando voz – sairia de sua
boca. Coisas que ninguém merecia ouvir, muito menos Pippa.
Embora Celine não tivesse respondido à pergunta de Pippa – ou sequer
reconheceu sua presença de maneira significativa – Pippa permaneceu por
perto, pairando de uma maneira provocando ainda mais Celine.
Por que ela não sabe se salvar? Ela tem um desejo de morrer? Os
pensamentos de Celine se tornaram cruéis. Demasiado em sua raiva.
Uma parede de lã preta apareceu diante dela, obscurecendo sua visão.
Como sempre, Celine sentiu o cheiro da madre superiora antes de ver o rosto
da mulher mais velha. O mesmo cheiro de um cão molhado no palheiro.
Pippa ficou de pé ao mesmo tempo, Celine permanecendo na escada, todo o
senso de compostura espalhado pelos ventos.
A parede de lã permaneceu firme em sua abordagem, observando e
esperando. Uma faixa escura de diversão passou Celine. Ela ansiava pelo
retorno ao dia em que acreditava que a matrona do convento das Ursulinas
era seu pior inimiga. Quando a mais memorável das tardes de Celine foi
gasta, tentando imaginar maneiras criativas de impedi-la.
Por um instante, Celine ponderou se havia um único ponto em que ela
poderia ter evitado seu destino. Em que momento preciso ela desviou pelo
caminho errado? Infelizmente, não havia nada que ela pudesse fazer sobre
isso agora. Mas talvez houvesse uma maneira de impedir que essa terrível
mudança de eventos aconteça novamente no futuro.
A Madre Superiora pigarreou, exigindo silenciosamente a atenção de
Celine, o colar de madeira do seu rosário pendurado na sua cintura. Celine
estudou a pequena cruz balançando diante dela. Observou a chuva
deslizando para baixo.
— Mademoiselle Rousseau. — começou a madre superiora em tom
sombrio. — Eu queria...
— Por que você enviou Anabel para nos espionar? – perguntou Celine,
com a voz vazia, os olhos fixos na parede de lã preta posicionada diante
dela.
Uma respiração aguda ressoava do alto. Celine olhou para cima. As
feições da madre superiora eram estreitas. Cansada. Seu corpo estava
inclinado, a chuva escorrendo da bainha.
— Você poderia ter se recusado a nos deixar ir. — continuou Celine. —
Você não precisava usar Anabel como um peão no seu esquema. Você a
enviou para a morte. — Sua acusação foi baixa. Impiedoso.
— Celine! — Pippa repreendeu suavemente.
Nos recantos mais profundos da mente de Celine, ela sabia o quão injusto
era acusar a Madre Superiora de ser responsável pela morte de Anabel. Mas
seu coração exigia respostas. A ferida ao redor continuava a crescer a cada
momento que passava, a dor ardendo em seu peito, queimando em seus
pulmões. Ela teve que acabar com isso. A tudo isso.
— Por quê? — Celine repetiu.
— Eu... — A Madre Superiora hesitou, sua expressão estranhamente
incerta. Então seu olhar ficou severo, as linhas ao redor da boca se
aprofundando. Celine se preparou para uma repreensão rigorosa.
— Eu sou humana. — disse a Madre Superiora simplesmente. — Como
tal, cometi um erro.
Celine balançou a cabeça.
— Isso não é uma resposta. Por favor, — ela se levantou de uma vez, com
gotas de chuva caindo da ponta do nariz. — me ajude a entender. Eu preciso
entender o porquê.
A madre superiora analisou Celine, os olhos voltando-se para lá e pra cá.
— Porque vi em você o tipo de espírito imprudente que anseia por perigo,
e desejei provas. Uma erva daninha deixada para florescer é a morte de todo
o jardim.
A dor no peito de Celine se intensificou.
— Então você enviou uma jovem sozinha, simplesmente para provar que
eu estava podre por dentro? Por que você não me perguntou? Je vous
l'aurait dis, madre supérieure! Eu teria lhe dito, madre superiora! — As
mãos dela se fecharam em punhos ao lado do corpo.
A Madre Superiora segurou o pulso esquerdo de Celine, segurando-o com
força, puxando-a para mais perto. Por um instante, Celine pensou que a
matrona poderia atingi-la.
Mas então as sobrancelhas cinza da mulher mais velha se juntaram, seus
traços beliscando de tristeza.
— Você está sofrendo agora, mademoiselle Rousseau. — disse ela
gentilmente. — Eu também estou com dor. Eu também desejo apontar um
dedo de culpa. Mas não serve para nada agora. Peço que reúna-se com sua
dor. Deixar passar, não atacar. Não vai adiantar. —
Ela soltou o pulso de Celine. — Confie nesta importante lição que aprendi
há muito tempo: a raiva é momentânea. O arrependimento é para sempre.
Celine lutou para controlar sua fúria. Ela não estava pronta para abandonar
sua raiva e sucumbir à tristeza que certamente se seguiria. Se ela aceitasse,
significava que aceitava tudo o que havia acontecido hoje à noite. Ela não
queria aceitar. Ela queria lutar contra isso.
Esmagar sua verdade no esquecimento.
Mas a Madre Superiora estava certa. Que benefício fez contra a mulher
idosa? Anabel e William não haviam morrido por causa da Madre
Superiora.
Eles morreram por causa dela.
Celine piscou de volta a chuva. Forçou a tensão em seus ombros a
diminuir.
— Sim, Mère Supérieure. — Ela engoliu em seco. Percebeu que estava
tremendo e que sua têmpora palpitava. — Peço desculpas pelo meu
comportamento. Isso não vai acontecer novamente.
A Madre Superiora assentiu.
— Você precisa de alguma coisa agora? Existe algo que eu possa
providenciar para você?
Celine balançou a cabeça.
Um suspiro caiu dos lábios da madre superiora.
— Se você mudar de idéia a qualquer momento, agora ou no futuro, não
hesite em me dizer. Estou aqui para ajudá-la de qualquer maneira. — Ela fez
uma pausa para segurar o olhar de Celine, suas feições sombrias. — Os
próximos dias não serão fáceis, meu filha.
Celine assentiu, já sabendo o que a Madre Superiora pretendia dizer a
seguir.
— Muitas das minhas irmãs vieram a mim na última hora. — continuou a
madre superiora em tom abafado. — O consenso é que talvez seja hora de
encontrar uma acomodação alternativa para você.
Celine continuou assentindo.
A Madre Superiora estendeu a mão mais uma vez. Desta vez, ela pegou a
mão de Celine, seu toque gentil e quente, apesar da frieza da chuva.
— Eu já comecei a investigação. Não vamos jogá-la na rua, e não é
necessário que você saia hoje à noite. Simplesmente não é mais seguro você
ficar aqui. — Ela fez uma pausa. —
Por favor, saiba que isso não é o que queremos fazer. Mas concordo que é
a melhor estratégia. Pelo bem de todos os que permanecem dentro desses
muros.
— Uma erva daninha que floresce é a morte de todo o jardim. — disse
Celine, com um tom de tristeza em sua voz.
Com outro suspiro, a Madre Superiora assentiu. Apertou a mão de Celine.
E deixou ir.
Endireitando a coluna, Celine encontrou o olhar enrugado da matrona.
— Obrigado por me dar a chance de começar minha vida em um mundo
novo, Mère Supérieure. Eu... não sei o que teria acontecido comigo sem ele.
— Claro que sim minha querida. Que Deus vá com você. Que você viva
uma vida de generosidade e propósito. — Então, após a menor hesitação, a
Madre Superiora virou-se para o convento, sua cruz balançando com os
passos, o cheiro de lanolina e pomada medicinal seguindo seu rastro.
Celine ficou na chuva por um tempo, Pippa esperando por perto, limpando
silenciosamente as lágrimas das bochechas com as costas de uma mão. Era
um exercício de futilidade, pois logo começou a chover mais, suas gotículas
gordas subindo sobre a grade de ferro e espirrando sobre a pele.
Pippa removeu o xale de seus próprios ombros, colocando-o sobre os de
Celine.
— Você está tremendo.
— Estou? — O latejar na cabeça de Celine estava piorando. Ela tocou sua
têmpora e encontrou um ponto sensível de onde havia atingido o chão em sua
luta com o assassino.
— Amanhã farei perguntas com algumas das outras mulheres da
organização de damas. — continuou Pippa. — Talvez a mãe de Phoebus
saiba de um lugar para onde você pode ir.
— Obrigado, — resmungou Celine. — Mas o barco para o Tártaro está
cheio. — Ela falou o último em voz baixa. Eu sou um titã, afinal, ela
zombou de si mesma.
— Eu sinto Muito. Não consegui ouvi-lo, querida. — A paciência infinita
completou a resposta de Pippa.
— Eu disse obrigada, mas vou fazer as perguntas eu mesma. — Celine se
absteve de cerrar os dentes, ciente de quão errado era jogar suas frustrações
em sua amiga mais próxima.
As sobrancelhas de Pippa se juntaram, traindo sua própria irritação
crescente.
— Você não precisa fazer tudo sozinha, Celine. Não é sua culpa que um
louco tenha se jogado naqueles perto de você. Também não é sua culpa que
você foi convidado a deixar o convento.
— Mesmo que a madre superiora não tivesse me pedido para ir, eu teria
deixado por vontade própria. Não é seguro para mim ficar. Seria melhor... se
eu nunca mostrasse meu rosto aqui novamente.
— Entendo.
Pippa piscou através da chuva, os olhos brilhando desconfiados. Então ela
enxugou o queixo na manga. Renovou suas convicções com um sorriso
brilhante.
— Bem, talvez possamos deixar um quarto juntos. Isso não seria adorável?
Eu sempre gostei de Marigny.
Suas palavras congelaram o sangue no corpo de Celine. A fez querer fugir
o mais rápido que pôde. Ela não podia ter Pippa perto dela. De todas as
pessoas, Pippa deve estar o mais longe possível de Celine. Estar perto de
Celine Rousseau tornou-se um beijo da morte.
E ela não sabia o que faria se algo acontecesse com Pippa por causa dela.
À direita, as portas do convento se abriram com uma lentidão bocejante.
Dois oficiais sombrios apareceram, trazendo entre eles um embrulho
embrulhado em lençóis de linho. O centro dos lençóis já estava manchado de
vermelho, a chuva fazendo com que a mancha se espalhasse, as bordas
iluminando para um rosa pálido. Celine assistiu em silêncio enquanto eles se
moviam em direção a uma carroça aberta esperando ao longo da pista para
levar o corpo para a estação.
Os braços de William penduravam sem vida em ambos os lados dele, uma
de suas mãos ainda torcida em uma posição não natural. Eles caíram como
peixes mortos quando os dois oficiais levantaram seu corpo danificado na
parte de trás da carroça. As lágrimas começaram a jorrar nos olhos de
Celine.
Apenas alguns dias atrás, William havia oferecido a Arjun um corte do
jardim do convento, para ajudar a lembrar Arjun de sua casa. Ele mostrou
uma gentileza, sem esperar nada em troca.
Agora ele estava morto, a última lembrança em sua vida o rosto de seu
assassino.
As lágrimas derramaram, fluindo pelas bochechas de Celine em fluxos
constantes.
Nem uma vez chorara seriamente desde aquela noite no ateliê. Sua mente a
proibira de adiar. Ela não chorou quando percebeu que sua vida na França
havia terminado. Na primeira noite a bordo dos Aramis, ela ouviu os fungos
suaves de inúmeras outras jovens. Ainda assim, ela não conseguiu derramar
uma única lágrima. Ela não chorou mesmo quando Anabel foi morta.
Por que a visão do corpo quebrado de William a levou às lágrimas?
Talvez a represa dentro dela finalmente tivesse estourado. Ou talvez essa
fosse uma rachadura demais em sua fachada.
Para o seu próprio ser, seja verdadeiro. O assassino citou Shakespeare,
como se pudesse ver a alma de Celine.
A culpa se infiltrou em seus ossos, queimando como ácido enquanto
viajava pelo comprimento de seu corpo. Bile engasgou na garganta. Celine
foi a razão pela qual esse homem gentil e uma jovem adorável morreram.
Ela não seria a razão pela qual mais alguém morreu. Nunca mais.
Sem pensamento ou consideração – suas lágrimas escorrendo pelo rosto,
juntando as mãos à chuva – Celine começou a andar.
— Celine? — Pippa gritou atrás dela.
Celine a ignorou e acelerou o passo. Virou-se no limoeiro,
deliberadamente serpenteando por entre as árvores, parando por um tempo
em um esforço para afastar Pippa de sua trilha.
Sob um galho gotejante, Celine respirou fundo, enchendo a cabeça com o
doce aroma cítrico, misturado com o metal e o musgo de um banho de
primavera. Invocou seu espírito para lhe conceder a coragem necessária
para fazer o que deve ser feito.
A rua estava vazia através do portão de ferro, a poucos passos e a um
mundo de distância.
Em um momento, ela desapareceria e nunca mais voltaria. Não importava
para onde ela foi. Só importava que ela desaparecesse sem deixar vestígios.
Que ninguém mais perece por causa dela.
— Celine! — Ela ouviu Pippa gritar do lado oposto do limoeiro.
Agora era sua melhor chance. Celine disparou da sombra da árvore,
caminhando em direção ao portão e à liberdade solitária de uma rua
enevoada.
Um homem alto entrou no caminho dela, com o boné de tweed puxado para
baixo na testa.
— Celine. — ele disse calmamente, seus olhos como lascas de gelo.
Celine tropeçou no meio do caminho, sua compostura à beira de lascas.
— Sim, detetive Grimaldi?
— Onde você vai?
— Fui convidada a deixar o convento. — Ela tentou contorná-lo, mas ele
se mexeu mais uma vez, impedindo-a de alcançar o portão.
A raiva alinhava os traços de Michael.
— Você foi convidada a sair... hoje à noite? — Suas palavras soaram
abafadas para ela.
Como se estivesse falando no vazio ou no fim de um longo túnel.
O desespero apertou seu coração.
— Deixe-me ir, Michael. Por favor.
— Agora não é hora de alguém andar pelas ruas sozinho, muito menos
você.
Foi uma declaração legal. Mas isso invadiu Celine como uma marca,
lembrando-a das muitas mortes em sua consciência. Um por sua própria mão.
— Saia do meu caminho. — disse ela, sua voz perigosamente perto de
quebrar.
— Não.
Celine empurrou Michael com todas as suas forças. Ela não parou para vê-
lo cair. Ela simplesmente correu em direção ao portão, os pés voando acima
das pedras da calçada, o coração batendo forte em um ritmo frenético. A
lembrança do que Bastien havia dito a ela na noite em que se conheceram
ecoou em seus ouvidos. Ele a comparou a uma deusa lunar que arrastava as
trevas com ela onde quer que fosse.
Ela não traria mais escuridão aqui. Ela fugiu uma vez para começar uma
nova vida. Ela poderia fazê-lo novamente, sem um único olhar por cima do
ombro.
Uma mão firme arrancou Celine do curso, segurando seu antebraço com
força. Então a puxou para um peito sólido, apertando os pulsos atrás dela,
forçando o ar dos pulmões.
Michael se elevou sobre ela, enjaulando-a com os braços, efetivamente
deixando-a imóvel.
Ele era mais forte do que parecia à primeira vista, seu corpo se movendo
sob as roupas molhadas como tendões.
— Sua idiota. — ele rosnou baixinho, a fúria aguçando suas feições. —
Você acha que vai fugir e tudo será como era antes?
Celine olhou para ele, gotas de chuva caindo em seus cílios.
— Vá para o inferno.
— Você fará parada no inferno? Se sim, então mostre o caminho.
— Parada? — Ela chorou. — Esta noite fui atacado por uma criatura que
podia voar. Isso me insultou. Disse que eu pertencia a isso. Disseme que a
morte era um jardim e comparou seu trabalho à Batalha de Cartago. Duas
noites atrás, fui perseguido por algo que subiu por uma parede e
desapareceu ao vento sem deixar vestígios. — Celine riu, o som quase
enlouquecido. — Ele sabia meu nome. Diga-me, Michael Grimaldi, isso faz
sentido?
As narinas de Michael se abriram. Ele soltou os pulsos dela, um véu de
calma letal descendo sobre o rosto.
— Por que agora só estou ouvindo falar do incidente de duas noites atrás?
— Devo relatar a você a cada passo? — Celine riu novamente. Empurrou-
o para longe, com as mãos no ar. — Além disso, pareço um lunático. Como
alguém que viveu nas masmorras da Bastilha por um tempo, privado de luz
do sol, ar e tudo o que é necessário para sobreviver. — O peito dela arfava
quando ela respirou fundo.
Sua expressão ilegível, Michael olhou para ela, seu olhar pálido firme.
— O que aconteceu quando a criatura o perseguiu dois dias atrás? Como
você conseguiu escapar?
— Bastien.
— Bastien? — Os olhos de Michael se estreitaram, um músculo pulando
em seu pescoço.
— Por que Bastien estava lá?
— Não tenho a menor idéia. Talvez você deva parar de se comportar como
uma criança beligerante e perguntar a ele. É possível que ele também tenha
um desejo de morte.
Michael abriu a boca para responder, mas o barulho de uma carruagem que
chegava roubou sua atenção, poupando Celine de ter que participar ainda
mais da conversa.
Um brougham preto brilhante parou do lado de fora dos portões de ferro
do convento. Na porta estava estampado o símbolo de uma flor de lis na
boca de um leão que ruge. Por um instante, Celine se permitiu esperar que
um jovem de ombros largos saísse de seus limites, seus olhos como punhais
afiados e sua mandíbula como pedra talhada. Ousou sonhar que ele daria a
ela esta carruagem encantada, capaz de levá-la até os confins da terra.
Dizendo a ela para ir a qualquer lugar que desejar. Jurando seguir onde quer
que fosse, até o próprio inferno.
Ridículo. Um homem não deveria ter que conceder a ela esse tipo de
liberdade. Celine deve ser capaz de fazer isso sozinha. Mas ela já havia
tentado aguentar. Tentou e fracassou inúmeras vezes, o mundo lembrando-lhe
de todas as formas que sua própria liberdade não era dela, e muito menos
que ela deveria dar. Uma mulher sem dinheiro ou perspectivas não tinha
lugar na sociedade adequada. Em tal sociedade, esposa e filha eram posses
legais.
Mercadorias usadas para atrair riqueza e favor.
Talvez fosse hora de Celine rejeitar a sociedade adequada.
Como se quisesse ressaltar a idéia, a porta do brougham se abriu e Odette
desceu os degraus, vestindo calças e hessianos polidos, uma jaqueta de
estilo militar pendurada nos ombros. Ela correu para o lado de Celine,
passando por Michael com um olhar que escaldaria o sol.
— Mon amie. — disse Odette, sua expressão grave, seus olhos
avermelhados ao redor dos aros.
Celine endureceu-se, seus ombros quase tremendo de gratidão. Os contos
de fadas de sua infância foram preenchidos com mentiras. Nenhum homem
tinha vindo em seu socorro hoje à noite, como sempre acontecia nas
histórias.
Mas as amigas dela tinham. Primeiro Pippa com seu épée. Então Odette
com sua carruagem.
E apenas um momento atrás, Celine quase deu as costas para eles para
sempre.
Antes que Celine pudesse dizer alguma coisa, Michael olhou para Odette,
seus olhos incolores parecendo como se pudessem perfurá-la através de seu
coração.
— Valmont. — ele disse secamente. — A palavra certamente viaja
rápido... despertando até o mais ardente dos adormecidos.
— Nada do sua tolice hoje à noite. — Odette olhou de volta para ele, com
o rosto de pedra. — Minha paciência com jovens medíocres é perigosamente
baixa. — Ela olhou para Celine, suas feições suavizando. — Eu vim assim
que ouvi. — Suas mãos enluvadas envolveram os dedos de Celine. — O que
você deseja fazer? Vou levá-la a qualquer lugar que você queira ir.
Michael pigarreou.
— Uma oferta desnecessária. Vou arranjar um lugar para Celine na sede da
polícia. Está bem isolado de possíveis invasores, e os policiais estarão
estacionados nas proximidades o tempo todo. — Ele estava alto, a água
pingando da aba do boné de tweed. — Eu mesmo vou patrulhar as ruas ao
redor duas vezes por noite, então não há necessidade dessa demonstração
dramática de preocupação. Volte para sua morada dourada, senhorita
Valmont. Deixe o trabalho real para quem está acostumado a fazê-lo.
Odette fungou, o som cheio de escárnio.
— Não se orgulhe dessa trégua, seu idiota santíssimo. É um trabalho
suficiente ter que olhar para você com uma cara séria. — Os olhos de
zibelina se afunilaram em fendas. — E talvez devêssemos deixar Celine
tomar suas próprias decisões, em vez de informá-la sobre as suas, como
você parece tão interessado em fazer.— Ela se virou para Celine. — Mon
amie, podemos ir aonde você quiser. Charleston ou Atlanta. Nova York, se
você preferir.
Talvez até São Francisco. E se você quiser ficar em Nova Orleans, posso
ter uma suíte pronta para você no Dumaine dentro de uma hora.
Celine assentiu, seus pensamentos acelerando em um turbilhão. Ela
poderia ir aonde quisesse. Fuja deste lugar e de todos os seus terrores de
montagem. Seus olhos se fecharam quando ela se permitiu sonhar com uma
nova vida. Uma lousa limpa mais uma vez.
Passos espirraram através de uma poça próxima, parando repentinamente,
o som de suspiros assustados perfurando a escuridão. Celine abriu os olhos,
bloqueando uma única imagem.
Pippa, a cor drenada de sua pele, seus lábios tremendo, suas feições
inundadas de alívio inconfundível. Sua bainha tinha quinze centímetros de
profundidade na lama, e um galho arranhou a lateral da bochecha esquerda,
minúsculas gotas de sangue deslizando em direção ao queixo.
Durante todo esse tempo, Pippa procurou Celine, sua preocupação com a
amiga fazendo com que ela não prestasse atenção em nada, nem mesmo em
seu próprio bem-estar.
Se Celine fugisse agora, o assassino poderia nunca ser pego. Ele
provavelmente continuaria causando estragos no mundo que ela deixou para
trás. Talvez ela não tivesse mais que testemunhar com seus próprios olhos ou
se aterrorizar com a possibilidade. Mas ela sempre saberia. Sempre se
perguntaria.
E suas amigas continuariam em perigo.
A raiva é momentânea. O arrependimento é para sempre. Celine tinha
arrependimentos suficientes na cabeça. Fugir como uma vítima nunca mais
seria um deles. Ela não era uma vítima.
Ela era uma sobrevivente.
— Eu quero ficar em Nova Orleans. — disse Celine. — Mas eu tenho uma
condição.
O RETRATO ASSOMBRADO

U ma hora depois, Celine, Michael e Odette estavam em um canto de


mármore com veias escuras, abrigados nos confins mais distantes de um
saguão de hotel deserto.
Acima deles, lustres de cristal e latão pendiam como sentinelas
silenciosas, tocando suavemente com uma brisa fantasmagórica. Lanternas
alojadas em esferas de vidro opaco brilhavam ao redor da sala,
assemelhando-se a farrapos flutuando pela noite. Orquídeas roxas e jasmim
branco perfumavam o ar, o perfume sugere a riqueza e lugares distantes.
Posicionados em cada extremidade do hall de entrada havia grandes vasos
de chinoiserie transbordando de rosas de caule longo e um tom de vermelho
tão profundo que suas pétalas pareciam negras nas sombras.
Se a exaustão de Celine não fosse uma âncora em seus ombros, ela teria
passado um momento maravilhada com a grandiosidade do espaço. Tudo
sobre ele parecia ter sido decorado para se adequar a uma rainha das trevas.
— Já esperamos o suficiente, mon amie. — disse Odette, com a voz
embargada e cansada. — Diga-nos sua condição, s'il te plaît. Por favor.
Michael estava a uma distância saudável de Odette, seus longos braços
cruzados, seus cachos escuros despenteados pela chuva. Embora seu rosto
estivesse cheio de aversão, seus olhos claros brilhavam.
Em um sussurro quase inaudível, Celine informou-os de seu plano. Quando
ela terminou, eles a encararam em silêncio atordoado, Odette piscando
rapidamente, como se sua mente pretendesse passar por todos os resultados
possíveis no espaço de uma única respiração.
— Só sobre o meu cadáver. — Michael anunciou em um tom plano.
— Aqui esperamos, mon cher. — brincou Odette. Ela se virou para
Celine, seu olhar carregado de incerteza. — Mas devo concordar com o
sentimento do justiceiro. Usando-se como isca para pegar um assassino
louco... parece excessivamente tolo.
Michael fungou com um desprezo inconfundível.
— Finalmente, uma imagem de bom senso. — Ele acenou com a cabeça
para Odette, que lhe ofereceu um arco de zombaria em troca.
— Eu sabia que você não concordaria a princípio. — respondeu Celine.
— Mas amanhã, espero que você veja a lógica disso. Como faz sentido para
nós agir em vez de sermos forçados a ficar de fora.
— Lógica? — Odette bufou. — É loucura, mon amie. Pura loucura.
Finalmente entendo por que você mentiu para Pippa antes de deixarmos o
convento. Você deve saber que ela nunca aceitaria isso como uma opção.
— Pippa é… — Celine exalou com muito cuidado. — Não quero Pippa
perto de mim, pelo menos não até que esse transe termine. Ela não é egoísta
o suficiente para se preocupar com sua própria segurança. — A imagem de
Pippa tremendo em uma poça – seus olhos brilhando e correntes de sangue
escorrendo por sua bochecha – era algo que Celine não esqueceria tão cedo.
— Não se preocupar com a própria segurança não é altruísta. É tolice. —
Odette ergueu uma sobrancelha, os lábios enrugando de julgamento.
Celine assentiu.
— Concordo. Mas não tenho paciência para discutir com Pippa sobre isso.
Não é o meu lugar para dissuadi-la. E eu prefiro ser o caçador do que a
presa. Não é?
Um olhar contemplativo surgiu no rosto de Odette, ao mesmo tempo em
que um sorriso puxou os cantos da boca de Michael.
— Então eu tenho o seu apoio? — Celine perguntou a Odette.
Inspirando devagar, Odette assentiu.
— Embora eu tenha certeza que vou viver para me arrepender disso.
— Você não vai. — disse Celine, infundindo sua voz com uma certeza que
ela não sentia.
— Obrigado, Odette. — Com isso, ela mudou sua atenção para Michael.
Seu descontentamento se aprofundou com o escrutínio dela.
— Não tenho intenção de concordar com esse plano, então poupe seu
esforço. — disse ele, suas palavras caracteristicamente breves. Insensível.
— Foi uma loucura vir aqui. Para nós dois. — Michael girou no lugar e
começou a caminhar em direção às portas duplas na entrada do hotel. – Vou
pedir suas coisas de manhã e depois vou até o Dumaine para buscá-lo. —
disse ele por cima do ombro.
Um arrepio no pescoço de Celine enviou uma onda de desconforto pela
espinha. Ela inclinou a cabeça, estremecendo o tempo todo.
— É uma pena que você não esteja disposto a ouvir a razão, Michael. —
ela gritou atrás dele. — Mas até que você concorde em me ajudar, pretendo
ficar aqui no Hotel Dumaine.
Ele girou, raiva brilhando em suas feições. Em alguns passos largos, ele
ficou diante dela mais uma vez.
— Uma escolha tola, especialmente quando eu já arranjei um lugar para
você com total proteção policial.
— Não é tolice. — argumentou Celine. — Se você não respeitar meus
desejos, não vejo motivo para me curvar à sua vontade. Além disso, nenhum
lugar nesta cidade é seguro se o assassino estiver me observando, como eu
acredito que ele esteja. — Um calafrio percorreu sua pele, mas Celine
manteve o olhar firme.
Suas sobrancelhas grossas se juntaram.
— Não se trata de respeitar seus desejos. É sobre o que é melhor para
você. O que o manterá mais segura.
A irritação fervia nas bordas da visão de Celine.
— Então a Polícia Metropolitana de Nova Orleans só me protegerá se eu
fizer exatamente como o detetive Michael Grimaldi diz?
Michael não disse nada em resposta. Risos suaves ressoavam de Odette.
Celine suspirou.
— Por alguma razão, essa coisa me escolheu. Podemos fugir desse fato ou
usá-lo em nosso proveito. — Ela respirou fundo. — Eu não sou tola. Estou
ciente do perigo e prometo ter um medo adequado. Só me recuso a ser vítima
por mais um segundo. — Um músculo se contraiu sob o olho esquerdo.
Celine esfregou a pele lá e encontrou outra mancha de sangue seco nas
pontas dos dedos, o cheiro grosso e metálico. Seu estômago revirou com a
visão.
— Eu só queria que soubéssemos o que era isso, para podermos
determinar a melhor forma de destruí-lo.
— Não acredite em todos os mitos que ouvir. Se não há deuses entre nós,
não pode haver demônios. — disse Michael, sua voz desprovida de toda
emoção. — A mesma lógica que você já empregou indica que o assassino
deve ser um homem. A maioria dos assassinos com múltiplas vítimas é.
— Não é simplesmente um homem. — Celine balançou a cabeça. — É
alguma outra... coisa. Algo não humano.
— Se ele vive e respira, pode ser morto como qualquer criatura viva e que
respira.
A exaustão enterrou-se profundamente nos ossos de Celine. A força para
continuar discutindo com o intratável Michael Grimaldi estava deixando-a
com cada respiração menor.
Os dedos das mãos e pés tinham perdido todo o senso de sentimento. Em
breve seria difícil permanecer em linha reta.
Mesmo assim, Celine não perdeu o fato de que Odette falhou em contrariar
as afirmações recentes de Michael. Celine também não podia ignorar a
inclinação pensativa da cabeça morena de Odette.
Odette Valmont possuía informações de valor e estava se esforçando ao
máximo para mantê-las longe deles.
Aqui estava a prova de algo que Celine suspeitava há muito tempo. Os
membros de La Cour des Lions tinham uma idéia do que – ou quem – esse
demônio poderia ser. Por que eles escolheram mantê-lo entre si permaneceu
um mistério. Poderia ser porque o assassino residia no meio deles, e eles
desejavam proteger sua identidade. Mas seu comportamento recente não
seguiu esse raciocínio. Nos últimos dias, Odette tornou-se mais do que um
simples conhecido de Celine, e Bastien se esforçou para garantir a segurança
dela na outra noite. Ele até ameaçou destruir a criatura de uma maneira
totalmente implacável.
Por que eles se esforçaram para protegê-la se a lealdade deles estivesse
com o assassino?
A menos que... tudo isso fazia parte do plano deles.
Um truque elaborado para estabelecer sua inocência.
Se isso fosse verdade, Celine já havia perdido a batalha. Momentos atrás,
ela divulgou seu plano na íntegra para Odette. Se Odette a traiu, todos os
seus esforços seriam inúteis.
Os ombros de Celine caíram.
Ela estava cansada de ficar especulando. Ela precisava da verdade. E
Celine sabia a quem perguntar, apesar de temer a resposta dele. A mentira
que ele ofereceria no lugar que ela desejava. No entanto, Celine planejava
falar com Bastien amanhã. Ela exigiria que ele compartilhasse com ela tudo
o que sabia. Sem mais mentiras. Sem máscaras. Era hora de deixar de lado
as fachadas e despir tudo.
Bastien não tinha mais escolha. Se ele se recusasse a aparecer, Celine
contaria a Michael sobre a fita amarela e permitiria que o julgamento caísse
sobre todos eles.
— Desista deste plano de punição. — disse Michael a Celine, arrancando-
a de sua agitação interior, seu rosto sério. — Porque eu nunca vou concordar
em usar você como isca.
Celine fez uma careta, desejando desesperadamente poder estrangular
Michael. Só um pouco.
— Não tenho intenção de desistir de nada. Certamente você, de todas as
pessoas, deve entender isso. — Ela pegou a mão dele em uma tentativa fraca
de canalizar açúcar em vez de tempero. — Por favor, Michael. Não seja tão
teimoso. Peço que você reconsidere.
Ele piscou duas vezes ao toque dela, uma veia pulsando em seu pescoço.
— Eu não vou reconsiderar. Mas… Eu vou prometer fazer tudo que posso
para mantê-la segura. — A última foi dito num tom fervoroso, suas palavras
irregulares, seu tom duro.
Celine não achou que Michael estivesse ciente de como ele colocou a mão
fria dela nas suas, apertando seus dedos com um estranho tipo de desespero.
Não importa o que ele disse ou como ele disse, a intensidade de Michael
sempre o traiu.
Ele se importava com ela. E esse conhecimento incomodava Celine ainda
mais.
Por um momento, ela pensou em tirar proveito disso. Se ela implorasse,
talvez ele cederia. Se ela chorasse lindamente ou se enfurecesse da maneira
certa, talvez ela pudesse fazer o que não havia feito antes e superar sua
teimosia.
Mas ela não queria desempenhar o papel da demoiselle tímida. Assim não.
Nunca foi um papel que lhe convinha bem, como evidenciado pelas
interações anteriores. Celine precisava ser fria e calculista. Se Michael se
recusasse a ajudá-la, o plano não funcionaria.
Isso simplesmente não era uma opção.
Sua vida – e a vida das pessoas ao seu redor – dependia de todos
trabalharem juntos em conjunto.
— Eu não preciso que você me ajude. — mentiu Celine, suas palavras
insensíveis, canalizando Michael no seu melhor. — Simplesmente vou
perguntar a Bastien. — Ela livrou os dedos de suas mãos.
Desânimo ondulou em seu rosto, lá e desapareceu rapidamente. No instante
seguinte, Michael sorriu friamente.
— Pergunte a ele. — Seu sorriso virou punição. — Não tenho dúvidas de
qual será a resposta dele.
— Mon cher, você não o conhece tão bem quanto pensa. — A resposta de
Odette foi apontada. – Esse é o caso de fanáticos como Sébastien Saint
Germain: eles sempre fazem o que você menos espera que eles façam. —
Ela tirou uma gota de poeira inexistente do ombro dele. — E no final, eles
sempre usam a coroa.
Celine não poderia ter roteirizado uma resposta mais perfeita. Era uma
arma carregada, armada e apontada para o peito de Michael.
Às vezes era necessário ser tão astuto quanto uma raposa, mesmo que isso
também significasse ser cruel.
Michael estreitou o olhar. Suas narinas dilataram.
— A Corte dos Leões não governa esse local, senhorita Valmont. Verei
esta cidade queimar até o chão antes de ceder o controle de minha
investigação a um bando de animais sem lei. — Com isso, ele se virou em
direção à entrada, saindo, o ar que o rodeava fervendo.
Isso não importava. Celine plantou a semente. Odette a havia regado.
Agora eles tinham apenas que ver crescer. Se Celine aprendeu alguma coisa
nos últimos dias, era que o detetive Michael Grimaldi não era o tipo de
jovem que permitia que seu inimigo o vencesse. De qualquer maneira.
Ela estava contando com isso.
— Connard. — Odette xingou baixinho quando Michael desapareceu de
vista.
O mármore ao redor de Celine começou a balançar, os farrapos
embaçados no fundo.
— Não pode parecer muito óbvio. — disse ela a Odette, piscando com
força. — E precisaremos refinar os detalhes. — Ela passou os dedos pela
saia úmida e apertou o tecido arruinado, em um esforço para se manter
alerta. — Se você contar o primeiro assassinato da jovem no porto, o
assassino tirou uma vida por semana desde a minha chegada. — ela
murmurou. — Seguindo esse padrão, é provável que o próximo assassinato
ocorra na próxima semana, o que deve nos dar alguns dias para preparar
nossa armadilha. — Sua cabeça começou a listar adiante. — Talvez
devêssemos planejá-lo para a noite do baile de máscaras em si? — Pensou
ela em voz alta, exatamente quando o chão polido corria em direção ao
rosto.
— Ah, putain! — Odette gritou, pegando Celine no momento antes de
atingir a pedra fria.
— Você está caindo aos pedaços diante dos meus olhos. — Ela passou um
braço pelos de Celine e envolveu o outro em volta dos ombros, depois
começou a conduzi-los por um corredor escuro.
Celine se apoiou contra Odette, seus olhos lutando para permanecer
abertos.
— Obrigado. — Suas palavras eram roucas. — Por tudo. — Ela agarrou a
mão enluvada da amiga com força.
— De nada, minha corajosa corça. Mas se você quiser que o seu plano
ridículo funcione, honestamente, quem utiliza tal palavra. Você vai precisar
ser mais do que valente. Você precisará ser implacável. Depois desta noite,
acredito que isso não será um problema. Não é todo dia que se conhece uma
garota que esfaqueou um demônio com tesouras de costura. Ah, queria ter
visto isso! — O riso de Odette foi triste, o som vibrando como sinos. —
Também acho fascinante o quão tagarela você é depois de testemunhar um
evento chocante. A maioria das pessoas que conheço fica em silêncio por
essas coisas. Você é incomum em todos os sentidos, Celine Rousseau. — Ela
sorriu.
Mesmo através da névoa de sua exaustão, Celine sorriu. Seus pensamentos
ficaram sérios no instante seguinte.
— Por que eles se odeiam tanto? — Ela murmurou.
— Quem odeia quem, mon amie? Não sei nada além de amor.
— Por favor. — Celine cutucou o cotovelo nas costelas de Odette. —
Estou exausta demais para jogar esses jogos. É uma luta colocar um pé na
frente do outro.
— Por que você acha que eles se odeiam?
— Como eu deveria saber?
— Arrisque um palpite. É uma história antiga.
— Por causa de uma garota? — Os olhos de Celine se contorceram mais
uma vez, o nariz tremendo em resposta.
— Correto.
— Oh. — Seus ombros caíram.
Talvez essa fosse a jovem mulher que possuía o pedigree certo. Celine
expirou lentamente. Tais coisas não deveriam importar para ela. Não mais.
Eles viraram uma esquina, seus passos leves sobre o mármore afiado.
Celine quase podia jurar que Odette suportava todo o seu peso
compartilhado, como se ela possuísse a força de uma Amazonas.
— Ela era impressionante? — A voz de Celine parecia pequena.
Minúscula. Apropriada para essa pergunta.
— Muito. — respondeu Odette, à vontade, apesar de seu fardo. — Ela
cantava com graça e dançava à luz do sol.
Ela acrescentou no ouvido de Celine:
— Mas não se preocupe, ela não era tão bonita quanto você.
Celine bufou, depois tropeçou em si mesma como se tivesse bebido muito
champanhe.
Tão deselegante quanto um porco na lama, ela caiu no chão.
Uma maldição imunda voou dos lábios de Odette. Ela repetiu a palavra em
mais duas línguas para uma boa medida. Puxando Celine para seus pés,
Odette começou a arrastá-la pelo resto do caminho. Eles pararam diante de
um imenso elevador de latão reluzente, suas barras feitas de trepadeiras e
pássaros do paraíso, suas penas incrustadas com turquesa persa.
— Você não deveria. — Celine murmurou. — Uma cela própria.
Odette riu. Ela gesticulou para a direita, e um homem desordenadamente
alto, com cabelos ruivos ricos presos na nuca e um casaco azul escuro com
luvas combinando, avançou para abrir uma fechadura reluzente de prata
pura. Embora ele fosse tão ágil como dançarino, ele conseguiu abrir a porta
deslizante do elevador de latão com apenas uma pontada de esforço.
Uma vez que eles estavam situados lá dentro, Celine descansou a cabeça
no ombro de Odette, com os olhos fechados quando o elevador começou a
mover-se sob a direção constante de seu porteiro desprezível.
— A lista daqueles que têm acesso permitido aqui é curta. — disse Odette.
— Este elevador tem um destino: o último andar do hotel. Enquanto você
morar no Dumaine, todo esse espaço será seu.
Celine considerou isso, mesmo quando o cansaço caiu sobre ela como um
cobertor de lã quente.
— E se o assassino puder escalar as paredes do hotel? — Ela lembrou
como o demônio havia subido o prédio antes de desaparecer no vento.
— Ele também pode quebrar barras de ferro e fechaduras de prata maciça?
— Por uma questão de argumento, vamos assumir que sim.
— Então é foutue. — Odette xingou baixinho. — Como todos nós somos.
Celine riu baixinho, os olhos ainda fechados.
— Merci, Odette.
— Pas du tout, mon amie. — respondeu Odette. — Nós cuidamos dos
nossos.
A respiração de Celine ficou presa na garganta.
― É isso... uma coisa sua? — ela perguntou, seu tom parado.
Odette não disse nada até o elevador começar a diminuir.
— Não.
Mas sua hesitação sugeriu o contrário.
— Você sabe o que é. — Os olhos de Celine se abriram. — Por que você
não me conta?
— Não é minha história para contar.
— Por favor...
O elevador parou e o senhor esbelto, de casaco azul de veludo, destrancou
a porta em um movimento contínuo, seu olhar era de supremo tédio.
— Chega de perguntas. — disse Odette, afastando os cachos desgrenhados
de Celine em um gesto reconfortante. Então ela encarou Celine, recusando-se
a piscar como se estivesse em transe. — Eu vou te mostrar o seu quarto, e
você vai dormir a noite inteira, como se estivesse à deriva entre as nuvens.
— Um sorriso triste curvou seu rosto de boneca.
— Os únicos sonhos que você terá serão agradáveis, cheios de ilhas de
merengue flutuante e taças de champanhe cintilantes. — Sua voz soou em
camadas. Pesada. Ressoou através de Celine, alcançando a medula de seus
ossos.
A última coisa que ela lembrou foi o barulho de uma gaiola de latão.
Do pássaro voando livre.
Celine acordou assustada, com o coração batendo forte no peito. A
desorientação tomou conta dela, sua visão lutando para encontrar o foco.
Seus olhos correram para todos os cantos, procurando por algo familiar.
Lutando por uma aparência de pé.
Ela não se lembrava desse lugar.
Então – como uma onda batendo em uma praia – todos os eventos da noite
passada inundaram sua mente. Ela foi consagrada na suíte do último andar do
melhor hotel da cidade.
Um elevador de latão enfeitado com pássaros dourados a levara a este
lugar. Antes de sair, Odette fez com que Celine estivesse confortável. Quente
e bem cuidada.
Amanhã começariam a inventar uma armadilha para pegar um assassino.
Esse último pensamento fez Celine se sentar ao mesmo tempo, com a
respiração presa na garganta, a dor na cabeça latejando. Ela olhou em volta,
seu olhar se movendo pelo espaço mais uma vez, desta vez com deliberada
medida.
Os lençóis de cor creme embaixo dos dedos possuíam um brilho fraco, as
superfícies lisas, as bordas adornadas com delicados bordados dourados.
Quando ela passou as mãos sobre eles, eles pareciam água fria ao toque.
Como se tivessem sido tecidos de pura seda de aranha. Acima dela, pendia
uma copa grossa de damasco dourado, presa no centro por um emblema
entrelaçado com intrincadas filigranas. Amarradas ao redor de cada uma das
quatro colunas de mogno da cama havia cortinas de veludo vermelho vinho.
Celine jogou as colchas para trás e afundou os dedos dos pés nus no
luxuoso tapete Aubusson, as borlas ao longo da borda brilhando à luz das
velas.
Incontáveis pinturas pendiam do outro lado do quarto, estendendo toda a
altura da sala, cerca de seis metros. Alguns eram da largura da palma da mão
de Celine, outros estavam mais do que o dobro da sua altura. Cada um deles
foi representado pelas mãos de um mestre, com os detalhes no escuro e na
luz, como se o colecionador apreciasse o contraste da luz solar e da sombra
em igual medida.
Coroando os três lados restantes da sala havia uma espécie de varanda
estreita, como Celine nunca tinha visto antes. Prateleiras e prateleiras de
livros enchiam as paredes ao longo da metade superior da câmara, rodízios
oleados e escadas de ferro aguardando o retorno inevitável de seu sábio.
Velas altas e perfumadas haviam sido acesas ao redor da sala, como se
Odette soubesse o quão desconcertante seria para Celine acordar em um
lugar frio e desconhecido.
Ela atravessou a câmara em direção a um par de janelas gradeadas,
dormência formigou ao longo de suas extremidades. Ela dormiu
profundamente. Surpreendentemente, dado o teor chocante dos eventos
recentes. Quando Celine afastou as pesadas cortinas para olhar para fora, ela
descobriu duas coisas dignas de nota: que havia – de fato – barras de ferro
forjado envolvendo todas as janelas, pintadas de branco brilhante e que o
anoitecer ainda reinava supremo no mundo abaixo. Apesar da advertência
final de Odette para Celine dormir até o sol nascer, ela acordou naquele
momento pouco antes do amanhecer, quando a noite estava mais escura.
Celine estudou a cena além da janela gradeada. Observou a falta de uma
varanda externa. O nível de segurança do último andar do Dumaine foi
certamente extremo. Como se fosse destinado a um dignitário visitante ou a
um membro da realeza.
Celine refez seus passos, avaliando cada entrada e saída. O acesso
principal à sala era um conjunto de portas duplas construídas para parecer
que faziam parte dos intrincados painéis, com as bordas cortadas em
molduras douradas. Outra porta que levava a um banheiro parecia ser uma
obra de arte por si só, uma moldura grossa escondendo suas costuras. Dentro
do banheiro, uma grande banheira de cobre martelado estava em uma
plataforma elevada, cercada por quadrados de azulejo de mármore branco.
Todos os candelabros à vista estavam incrustados de cristais. O ar ao redor
de Celine cheirava a íris e água doce, as chamas de inúmeras velas brancas
dançando ao longo das paredes e bordas.
Com os pés firmes no mármore frio, Celine tirou o vestido ainda úmido,
sem se preocupar em pegá-lo do chão. Em silêncio, ela removeu os grampos
do couro cabeludo, parando para esfregar os pontos doloridos que haviam
deixado para trás. Então ela se moveu em direção a uma tigela de porcelana
e jarra cercada por um espelho de três lados de latão embelezado.
Ela olhou para seu reflexo. Para olhos mais largos que um guaxinim e
cabelos como um assassinato de corvos. Sangue seco ainda pontilhava sua
pele. As manchas vermelhas eram especialmente perturbadoras ao lado dos
olhos, que brilhavam com uma luz consumidora, como se Celine estivesse
com febre. Sem pensar duas vezes, ela encheu a bacia com água limpa da
jarra e começou a espirrar o rosto, esfregando as bochechas até parecerem
cruas.
Até que todas as três versões de si mesma refletidas nos espelhos
parecessem adequadamente irritadas.
Celine não parou para secar o rosto. Ela voltou para a cama com dossel e
puxou as cobertas para o queixo, deixando a umidade encharcar os lençóis,
esfriando sua pele quente.
O olhar dela se fixou acima da grande lareira paralela ao pé da cama de
dossel.
Tinha sido cortado de um sólido bloco de mármore italiano, a tela antes de
ser feita de ferro e ouro. Pendurado acima da borda em camadas, havia o
retrato de um jovem de não mais de vinte e cinco anos, um turbilhão
diabólico de cabelos negros caindo sobre a testa e o brilho cintilante de um
pirata em seus olhos. Embora sua coloração fosse muito mais clara que a de
Bastien – e seu rosto possuía uma inclinação distintamente européia – Celine
podia detectar uma vaga semelhança, principalmente no corte de sua
mandíbula. Na inconfundível arrogância de seu olhar âmbar.
Uma chave de esqueleto de ouro repousava na palma da mão, uma fita
vermelha pendurada em um laço no final. Um jovem de meios óbvios, que
possuía a chave de inúmeras portas.
Que droga.
Mas a coisa mais impressionante no retrato era sua paleta. A pele e os
traços do sujeito foram todos reproduzidos em tons críveis, mas todo o resto
ampliou a noção. As sombras eram de um azul muito brilhante, as bordas um
borrão, os cantos borrifados com tinta ocre, como se o artista estivesse à
beira da loucura.
Celine olhou para a pintura por um tempo. Então fechou os olhos. Ela
sentiu como se estivesse sendo observada. Como se o olhar do retrato a
seguisse, como as histórias da obra-prima de Leonardo da Vinci, a Mona
Lisa . Ela decidiu se concentrar no cone ao lado de sua cabeça, que pingava
cera em seu suporte de latão em correntes constantes, até que os candelabros
reluzentes pareciam estar chorando.
Outra visão desconcertante. Em todos os lugares que Celine olhava, algo
sinistro ganhava vida. Ela pensou em esperar até o sol nascer para voltar a
dormir. Até os raios de luz branca e dourada penetrarem em seus lençóis de
seda. A visão do amanhecer deveria trazer consigo uma medida de paz.
Por que Celine não se sentia como se fosse?
A cabeça dela afundou no travesseiro suntuoso, o corpo inquieto, os olhos
ao pé da cama provocando.
Perturbada pela sensação de ser observada enquanto ela dormia, Celine
puxou as cortinas de vinho ao redor da cama e engoliu-se no conforto da
escuridão.
HIVER, 1872
RUA BIENVILLE
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

N a esquina deserta da rua, observo as cortinas caras no andar mais alto


do Hotel Dumaine correrem para um lado. O rosto de uma jovem
deslumbrante, com olhos verdes afiados e cabelos da cor da tinta derramada,
espia pela abertura. Apenas para desaparecer na respiração seguinte, o
tecido adamascado pesado voltando ao lugar.
Eu sorrio.
Conveniente que a levassem aos aposentos de Nicodemus. Uma câmara
adequada para um Rei do Sol, repleta de uma exibição extravagante de
riqueza, do tipo com o qual ele se acostumou ao longo dos anos. Uma
homenagem a Versalhes em seu melhor. Ou em seu pior, dependendo da
perspectiva de quem vê.
Não importa. Nicodemus raramente está lá agora. Ele sabe que é melhor
não vir a Nova Orleans e tentar seu destino. Ele perdeu muito nos últimos
anos.
Mas eu perdi mais. E ainda há muito a perder para nós dois. Memórias e
esperanças, desejos para um futuro que nunca poderá ser substituído uma vez
que ele se for. A esse ponto, Nicodemus foi, sem dúvida, convocado da
segurança de seu covil em Nova York, em resposta à onda de recentes
assassinatos em Nova Orleans. Ele voltará para a cidade em breve,
exatamente como eu previ.
Precisamente a tempo da minha performance final.
A satisfação percorre meus membros, fazendo-me baixar a guarda por um
momento.
Tudo está se desenrolando de acordo com o plano. Aproveito esse
sentimento brilhante antes de permitir que a raiva se acumule no meu peito e
tampe minha visão. Então respiro profundamente o ar salgado. Deixando a
umidade preencher meus pulmões enquanto meus sentidos elevados se
estendem, absorvendo cada detalhe em minha vizinhança. Um cavalo por
perto com um dente dolorido, cheirando a sangue e doce decadência.
Migalhas de pão de centeio rodopiando na sarjeta, seu perfume azedo e
pungente. Um rato morto descansando no canto de um esgoto próximo, as
larvas contorcendo-se sob a luz da lua.
E – bem perto da curva – a batida de corações. Um velho. Dois jovens. Se
eu tivesse que adivinhar, os mais jovens estão envolvidos em um ato de
luxúria, com os corações acelerados em conjunto com seus suspiros.
O velho coração bate devagar. Firmemente. Batendo em direção ao seu fim
inexorável.
Outra criatura da noite se aproxima. Meus músculos ficam tensos e meus
dentes se alongam por instinto, como as garras de um gato. Eu me tranquilizo
quando percebo que é um aroma familiar. Um que eu não preciso temer.
Continuo respirando profundamente até meus ombros caírem. Então olho
mais uma vez para o último andar do Dumaine. Outro lugar que eu conheço
bem... até suas portas secretas e passagens escondidas.
Não faz muito tempo, visitei esses quartos sob a cobertura da noite,
observando o mundo dos meus inimigos, sabendo que os enfrentaria em
breve. Até escolhi deitar na cama de Nicodemus e admirar sua coleção de
livros, cujas prateleiras coroam o espaço imponente como uma tiara
brilhante. Empurrei as escadas ao longo com suas rodinhas oleadas e fiquei
maravilhado com os movimentos brilhantes antes de embolsar um dos meus
tomos favoritos, uma primeira edição de O Conde de Monte Cristo. Uma
pena que perdi a chance de me despedir do meu amado Alexandre.
O contentamento ondula pela minha pele com as lembranças.
O quarto de Nicodemus é um lugar apropriado para deixar minha próxima
marca.
Eu permaneço no meu delicioso devaneio encostado na minha esquina, um
zumbido agradável se formando atrás dos meus lábios. Uma música de um
tempo mais brilhante e feliz.
Uma mendiga passa, as mãos estendidas implorante algo, seu xale um trapo
esfarrapado balançando na brisa. Seu coração bate em um padrão
reconhecível. A velha alma que senti momentos atrás. Coloco a mão no
bolso para oferecer a ela tudo o que possuo, uma pequena fortuna para os
padrões de qualquer pessoa.
Eu não preciso de dinheiro. O que eu preciso, eu pego. A moeda não é
importante para uma criatura como eu. Não procuro descansar sob um dossel
dourado ou me banhar em uma sala cheia de mármore polido.
Eu só procuro sobreviver.
Não! Isso é mentira! Eu desejo prosperar. Ver aqueles que trariam um fim à
minha existência morrerem uma morte lenta e agonizante. Depois de
testemunharem tudo o que valorizam se enrugar em pedaços diante deles.
É apenas adequado.
— Deus te abençoe. — diz a mendiga, um som sibilante assobiando entre o
punhado de dentes.
— Que o Senhor te guarde. — respondo com um sorriso.
Minha voz a pega desprevenida. Não estou surpreso com isso. Sua música
rica aproxima os mortais de uma maneira que nunca deixa de me divertir.
Isso ajuda muito a abrir o caminho para sua inevitável morte. De certa
forma, eu diria que estamos entre os predadores mais perfeitos. Nós
imitamos os maneirismos de nossas presas. Andamos entre eles,
desconhecidos e invisíveis. Quando eles percebem que estão presos em
nossa teia, já é tarde demais. A transformação é o clique de um copo, a
virada de uma maçaneta.
O fim de uma vida. Aqui em um momento. Já não existe mais no seguinte.
Existe apenas outro tipo de criatura que nos rivaliza dessa maneira. Ou
talvez dois, embora eu ache a maioria das pessoas da floresta genuinamente
irritante, com toda essa conversa sobre glamour e promessas. Com seus
contos alegres sobre enganar os mortais para que façam barganhas
desastrosas. Por que eu precisaria do primeiro filho de alguém?
Um bebê choramingando é um incômodo, não uma recompensa. E apenas
monstros verdadeiros fariam refeições dessas coisas.
Além disso, não negocio com seres inferiores. Eu tomo. Depois disso, faço
as emendas necessárias, para que um dia eu possa prosperar. É uma bênção
esperar por esse futuro, dadas as manchas do nosso passado.
Lembro-me da última vez que vi um vampiro morrer.
Ela era uma vampira que eu amava além das palavras, embora eu soubesse
que não deveria, pois percebi que não passaria de um coração partido. Mas
quando se encontra um espírito semelhante, como é possível se afastar?
Essas conexões são tão raras, mesmo para imortais. Para mim, elas são o
alimento da vida.
Eu assisti enquanto eles jogavam Marin em um poço estreito. Os que estão
no meu círculo testemunharam do lado de fora, como sentinelas encapadas.
Enterrei meu carinho por ela profundamente atrás do meu coração. Tranquei-
o firmemente no meu peito, para que ninguém soubesse o quanto eu amava
uma criatura que desrespeitava nossas regras e tratava os presentes dados a
ela como nada mais que símbolos de apreciação de um deus das trevas.
Foi uma das coisas que eu mais apreciava nela. Marin nunca se levava
muito a sério.
Depois que a jogaram na cova, levou um momento para ela se recuperar.
Só um momento. Ela percebeu onde estava no instante em que olhou para
cima.
Lembro-me de ver seu rosto quando o reconhecimento passou por ela,
agradecido por ela não poder me discernir das sombras.
Ela estava apavorada. Os olhos dela viraram pedra, lixiviados de toda a
luz.
Mas ela riu. Desafiadora até o fim.
Ela nos chamou, sabendo que estávamos à margem das trevas, seguros em
nossa justiça própria. Seguros na capa do nosso ódio compartilhado.
Marin lançou nomes terríveis em nossa direção. Exigia saber o que
procurávamos provar ao pôr um fim à sua existência.
Chamo de existência porque – até hoje – não acredito que o que ela viveu
foi uma vida.
Caçando no abrigo da noite. Em constante guerra com os animais do Outro
Mundo. Em constante preocupação sobre quem chamar de amigo e quem
chamar de inimigo. Não era uma vida porque Marin nunca ansiava por mais
nada. Ela era complacente. Ela não aprendeu nada em todos os seus anos.
E no final, essa complacência falhou com ela. Ela deveria ter me traído
antes que eu a traísse. Ela nunca deveria ter sido minha amiga. Eu nunca
deveria tê-la amado. Isso me trouxe nada além da dor no final. A lembrança
de sua pele, macia e dura ao mesmo tempo, como veludo e aço. O gosto de
seus lábios nos meus, sempre tão agridoce.
Mas não importa. Essa é uma história para uma noite diferente.
Não muito tempo depois de Marin ser jogada na cova, o sol começou a
aparecer sobre a abertura do estreito abismo, deslizando no lugar do luar
minguante. Todos nós assistimos em silêncio enquanto seus raios corriam em
direção ao chão de pedra. Ouvimos Marin rindo mais alto, pressionando o
corpo contra as pedras empilhadas da câmara cilíndrica.
Ela chorou por ajuda nos últimos momentos. Gritou por sua risada,
implorando por um alívio. Uivando por resgate, sua música era uma melodia
quebrada.
Seus gritos me assombraram por anos. O cheiro de sua carne enquanto
queimava é uma lembrança que ainda vira meu estômago, e não há muito que
possa fazer isso. Infelizmente, o fogo nunca será meu amigo. Nos anos que se
seguiram, me endureci a tais visões. Esses castigos eram necessários se meu
tipo pretendia sobreviver. Se pretendíamos estabelecer nosso lugar neste
mundo.
Após a morte de Marin, seu clã se espalhou pelos cantos mais distantes da
terra. De vez em quando eu ouvia histórias de um de seus grupos
perseguindo um dos nossos em retaliação.
Uma tarefa tola. A verdadeira vingança não acontece em um momento. Isso
acontece com o passar do tempo. O cuidado na distribuição de fichas, a
assídua exibição de autocontrole. Quando eu colher o que semeei, será em
segurança. Será uma respiração para saborear. E estarei longe quando
finalmente chegar.
Viro da minha adorável esquina, seguindo em direção a um beco estreito,
envolto em uma escuridão espessa. Um lugar em que minha espécie
prosperou por séculos, em todos os continentes do mundo.
Sinto uma presença familiar, embora se mova sem som. Espero até que se
aproxime.
Perto o suficiente para que eu seja o único a ouvir suas palavras.
— Mestre? — diz ele, com os olhos brilhando como brasas durante a
noite. — fiz o que você pediu.
Assinto, minhas feições calmas. Distantes. Mesmo através das camadas de
escuridão, é impossível perder a adoração no olhar dele. O desejo quase
febril de angariar minha aprovação.
— E a garota? — Eu continuo.
— Ela não é mais bem-vinda no convento. — Ele praticamente vibra com
o prazer de divulgar esta notícia.
Irritante o quanto ele anseia pelo meu carinho. Como um cachorro
implorando pelo toque de seu dono.
— Bom. — eu digo. — E a Corte?
Diversão tinge suas palavras.
— Eles conhecem a situação dela. Um membro de seus grupos de ladrões
foi enviado em seu socorro.
Delicioso. Isso tornará minha vingança muito mais doce.
— Ele sabe?
Meu fiel servo se aproxima, a nuca juvenil sombreando sua velocidade
desumana.
— Eu assumo que sim. A criatura Valmont, sem dúvida, dirá a ele. Ela me
irrita, mestre.
Desejo silenciá-la agora, mais do que nunca. Desejo silenciá-los a todos
pelo que nos roubaram.
— A garota é incidental, assim como o resto. Só o usurpador é importante.
O silêncio nos engole por um suspiro.
— Mestre? — Ele diz, sua voz hesitante. — Qual é o significado por trás
dos símbolos Cartagineses que você me instruiu a deixar?
— É a marca da minha espécie. Seu significado mais profundo não precisa
lhe interessar.
— Mantenho meu tom calmo, minha réplica final.
Quando meu servo volta em frustração, seus movimentos enviam um cheiro
de sangue seco em minha direção. Sangue imortal. Eu estreito meu olhar para
ele.
— O que causou sua lesão?
— Ela me atacou, mestre.
Eu sorrio para ele.
— Você permitiu que uma garota humana sem sentido tirasse o melhor de
você?
— Eu não esperava que ela fosse tão... destemida.
— Eu já te disse; ela conheceu a Morte e viveu para contar a história.
Claro que ela seria capaz de lhe causar danos. Você tem sorte de a lâmina
não ser feita de prata.
— Sim, mestre. — ele resmunga. — Existe mais alguma coisa que você
precisa de mim?
Eu sinto sua irritação. Ele não queria que eu soubesse de sua ferida.
Inclusive se esforçou para ocultá-lo trocando sua camisa. Mais do que sua
necessidade de vingança, o orgulho deste será sua ruína. Seu desejo de ser
notado. Ser considerado o salvador que ressuscitou seus companheiros
demônios da noite – aqueles de nós banidos da Sylvan Wyld – de volta ao
seu devido lugar entre as estrelas invernais.
Mas Lázaro não era salvador, e esse covarde patético não é da minha
conta. Eles são todos dispensáveis. Cada um significa um meio para o meu
fim.
— Mestre? — Ele pressiona. — Existe algum outro serviço que você
precisa?
— Não neste momento. — Faço uma pausa. — Não. Isso não é verdade.
Desejo que você tome um banho.
— Mestre?
Sua perplexidade me irrita.
— Você pode ter mudado de roupa, mas ainda cheira a morte. Eles sentirão
o seu cheiro você antes de colocarem os olhos em você. — Recorro ao meu
maior patrimônio. O poder de manter seres menores como meus servos, com
nada mais que minhas palavras. — Esta é sua próxima lição: se você deseja
exigir respeito e se elevar acima de suas fileiras, deve ser melhor que seus
irmãos. Muito mais esperto. Sua vida foi roubada de você e você foi
relegado a um local de servidão por muito tempo. Mas você não é um servo.
Você tem em mãos as ferramentas para ser o rei desta selva. Um meio de
superar a divisão... e salvar a todos nós. — Eu deixei minha voz desvanecer-
se com significado, minha expressão elevada em relação a ele.
— Um leão. — ele respira, seus olhos luminosos em sua glória.
Eu concordo.
— Mas você nunca deve esquecer. O mundo é um palco.
— E todos os homens e mulheres são apenas jogadores. — ele termina
com um floreio.
Eu o direciono a sair com um empurrão no meu queixo. Ele se curva antes
de se dissolver na escuridão, seus passos iluminam com seu sucesso.
Tolo insignificante.
Ele está ansioso para me agradar. Ansioso para assumir o papel do
usurpador e se estabelecer em uma posição de poder. É por isso que eu o
destaquei não faz muito tempo.
Pois também estou ansioso por tirar do meu inimigo o que foi tirado de
mim. Ele saber como é ter um amor perdido e uma confiança quebrada.
Lembro brevemente o momento em que a traição rasgou minha alma. A
realização me deixou oco, como costuma fazer uma abrasadora essência.
Levou anos para eu recolher as brasas. Para fazer de mim algo inteiro. Após
esse período de tentativas, não senti mais tristeza pelo que havia perdido. Eu
apenas senti raiva. Ódio.
Agora sinto vingança. Tem gosto adocicado. Mais doce do que todo o
sangue e morte que eu poderia esperar engolir.
Um homem em seu tempo desempenha muitos papéis.
Eles pensaram que não havia razão para me temer. Que eu tinha espalhado
ao vento, como cinzas de uma urna. Eles procuraram roubar minha
primogenitura e instalar um falso rei no trono.
Eles estavam errados.
SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO

Não. —B

B astien recusou-se a se encontrar com Celine. O grosso insuportável nem


se deu ao trabalho de mostrar a menor medida de civilidade em sua
resposta.
Nas primeiras cinco vezes em que ela leu sua nota – a inicial rabiscada de
forma enorme ao longo da parte inferior da página – a raiva corria pelas
veias dela. Ela passou a andar pelo tapete felpudo de seus quartos
emprestados, fervendo de fúria.
Então – na sexta leitura – ela se recompôs. Sua expressão se neutralizando.
A raiva é momentânea. Ele se arrependeria disso para sempre.
Friamente e com calma, Celine fez planos. Ela enviou uma nota para
Odette pelo correio do hotel, que repassou a resposta imediata de Odette,
informando-a dos planos de Bastien para a noite.
Ele participaria da festa da Noite de Solstício, organizada por um membro
da Décima Segunda Noite de Foliões. A mesma festa que Celine se recusou
a participar, quando Odette a convidou para jantar, apenas alguns dias atrás.
Naquela noite em particular, a festa não servira a um propósito.
Mas hoje era uma história diferente. Celine pretendia que este evento
servisse a vários propósitos, todos a seu favor. De fato, ela freqUentaria
todas os eventos ridículos do carnaval no futuro próximo – até o próprio
baile de máscaras – se isso significasse erradicar o autor desses horríveis
crimes, que agora aconteciam ao seu redor uma vez por semana.
Seu plano para esta noite era duplo: obter respostas para suas muitas
perguntas do próprio leão e informar ao assassino que Celine Rousseau não
iria se esquivar e fugir.
Que ela planejava ficar e lutar.
Ela levou um tempo para se preparar. Não importava que ela tivesse
menos de uma tarde para comprar uma fantasia. Outra mensagem rápida para
Odette garantiu a Celine um vestido emprestado de uma família que devia à
Corte "um barril de dinheiro."
O vestido não se ajustava bem em Celine, mas ela passou a outra parte do
dia refazendo-o para a ocasião, um evento ao ar livre realizado ao lado de
uma mansão na rua mais rica do Garden District. Certamente, era de mau
gosto que Celine participasse de uma festa de qualquer tipo, meros dias
depois de ser expulsa do convento.
Mas isso não importava mais.
A sociedade adequada não tinha lugar para Celine de qualquer maneira. Já
era tempo de ela se afastar de seus limites.
Depois que ela terminou de aplicar os detalhes finais de sua fantasia,
Celine colocou a carta de Bastien no bolso de seu vestido emprestado. Ela
planejava colocar de vez em quando a mão lá para beliscar o pedaço de
pergaminho entre os dedos, imaginando que era o pescoço dele.
Só a ideia endureceu sua espinha. Ele poderia ter evitado seu chamado
antes, mas Sébastien Saint Germain não seria capaz de fugir de Celine hoje à
noite. Esta noite ela teria suas respostas. Ela saberia a verdade sobre a fita
amarela. Sobre o envolvimento dele nesses assassinatos. O que exatamente
eram todos os membros de La Cour des Lions.
Finalmente, ela saberia que lado eles assumiam.
Se eles não estavam lutando ao lado dela, estavam contra ela. E Celine
pretendia usar todas as ferramentas de seu arsenal para proteger aqueles com
quem ela se importava – e a si mesma – de tudo o que viesse.
Mesmo que o próprio inferno tenha desencadeado todos os seus monstros
na Cidade Crescente.

Gritos frenéticos ecoaram ao longo do seixo de roseiras ocre atrás de


Celine. Um homem passou correndo pela entrada do labirinto do jardim, com
as roupas cobertas de folhas, os galhos colocados estrategicamente por todo
o cabelo, o champanhe pingando do copo canelado. Ele ria, olhando por
cima do ombro esquerdo enquanto corria. Uma jovem de saias diáfanas
tingidas da cor de jade palestino quase colidiu com Celine em seus esforços
para seguir o cavalheiro bêbado. A garota correu para os braços do garoto, e
eles colidiram um com o outro antes de se dissolverem em um acesso de
riso.
Celine inspirou lentamente. Poderia ter sido um erro ela vir aqui.
Quanto mais ela usava esse vestido, mais ela percebia a forma doentia em
que ele servia nela. Seu basco de seda esmeralda polonesa estava quente,
suas camadas de saiote creme eram pesadas. Pior ainda, seu tamanho menor
a forçara a se entrelaçar em seu corpete. E – como evidenciado pelas outras
"fantasias" que os convidados escolheram para um sarau com tema Sonho de
uma Noite de Verão de Shakespeare - todos os seus esforços foram
claramente para nada.
Os membros dos escalões superiores de Nova Orleans tomaram o tema da
festa como nada mais que uma leve sugestão. Celine já tinha avistado
pessoas vestidas como ninfas da floresta ou espíritos feéricos, repletas de
pedras preciosas, roupas translúcidas e galhos afixados em seus elegantes
casacos. Pelo menos cinco sátiros estavam presentes. Cinco jovens de
famílias proeminentes vestidos de cabras com tesão. Um já era demais, na
opinião de Celine.
Eles viram ou se deram ao trabalho de ler a peça?
Celine esperava canalizar Hermia, uma personagem em homenagem ao
deus do comércio. Como tal, parecia adequado vestir um vestido da cor da
ganância. Ao longo das maçãs do rosto e ao redor dos olhos, ela pontilhou
flocos de folhas de ouro finas em forma de moedas, posicionando-as como
se estivessem caindo da coroa de cachos de ébano no topo de sua cabeça.
Contas reais haviam sido pregadas em sua touca, metade da qual ela havia
deixado cair, jogadas descuidadamente por cima de um ombro. Fazia anos
desde que a sociedade considerava apropriado que Celine usasse o cabelo
solto em público.
Enforque a sociedade, de qualquer maneira. Bem, pendure até a metade,
pelo menos.
Por insistência de Odette, um toque final de pó feito de pérolas esmagadas
havia sido espalhado pelo rosto e decote de Celine.
— Você simplesmente deve, minha querida. — dissera Odette, como se
isso fizesse um pouco de sentido.
Toda vez que Celine se inclinava para um lado ou se inclinava para pegar
alguma coisa, podia ouvir as costuras do basco esmeralda começarem a
gritar. Ela atou seu corpete o mais firmemente possível, e ainda o rico tecido
verde em seu busto estava sendo segurado apenas por uma oração. No final
da noite, era provável que seus seios se libertassem do espartilho, uma visão
que provocaria um certo tipo de ignomínia. Embora promovesse a remoção
de Celine da sociedade adequada, poderia trazer essa conclusão de maneira
abrupta. Um com o qual ela ainda não estava totalmente confortável.
Mas, pela maneira como a noite parecia progredir, talvez não fosse o
evento mais escandaloso da noite.
No momento em que Celine e Odette entraram no vestíbulo brilhante desta
magnífica casa, o champanhe foi servido generosamente, a toda e qualquer
pessoa que desejasse participar. Horas mais tarde, os pilares mais
chamativos da sociedade de Nova Orleans estavam envolvidos em seus
copos. Os casais já estavam desaparecendo através da cerca, nas
profundezas do impressionante labirinto, procurando cantos sombrios
inundados por sussurros fervorosos.
Celine remexeu a ponta decotada de seu vestido esmeralda, tentando em
vão puxá-lo mais alto.
— Pare de se preocupar com isso, mon amie. Você só vai chamar mais
atenção para a impressionante faixa de pele nua aí. — disse Odette ao lado
de Celine, seu longo vestido ajustado caindo dos ombros em uma cascata de
organza de lavanda, o cabelo coberto por uma rede cintilante em cima da
cabeça. Ela se vestira com roupas da Regency, com uma pitada de influência
greco-romana. Um novelo de tule fino como um sussurro manchado de um
púrpura profundo de Tyrian estava envolto em seu peito, com as pontas
deixadas para seguir pelas costas. Em volta da cintura, havia um cinto de
ouro inspirado no personagem Hipólita, rainha das Amazonas.
— Eu não me importo com uma faixa de pele nua. — respondeu Celine. —
Eu me importo com meus seios nus derramando por cima do meu vestido em
uma festa repleta de sátiros.
Odette riu, seu leque de marfim agitando seus cachos morenos soltos.
— Se isso acontecer, você terá dez propostas de casamento até o final da
noite.
— Não tenho intenção de me tornar a futura Madame Cabra. — Celine
fungou. — Além disso, me sinto como um presunto amarrado em um jantar
comemorativo.
O riso de Odette ecoou no céu estrelado.
— Uma taça de champanhe, e você é muito mais divertida que o próprio
Bardo. — As bordas de seu rosto adorável enrugaram quando ela olhou para
Celine, sua expressão calorosa. — Antes que eu esqueça, você parece divina
dessa cor. É uma combinação perfeita para seus olhos.
Suas palavras fizeram Celine se encolher. Seu atormentador naquela noite
no bairro usara essa palavra. Divina. Significado —dos deuses—. Ela
certamente não se sentiu —dos deuses— esta noite.
— Eu deveria ter me vestido como uma árvore. — disse Celine em um tom
plano. Quando o olhar dela percorreu o comprimento do jardim, ela
vislumbrou mais um sátiro, as orelhas de bode no alto da cabeça
encaracolada, um rabo feito de lã e penas presas nas costas das calças de
gabardina.
Exasperação percorreu seu peito.
— Qualquer um desses tolos realmente leu a peça?
Odette gargalhou com alegria, seu longo manto roxo girando sobre os pés.
Uma figura familiar chamou a atenção de Celine do outro lado. Seu
coração perdeu uma batida quando um par de olhos de safira deslizaram
perigosamente perto de onde Celine estava, o sorriso abaixo deles era doce
e sereno.
Pippa Montrose estava presente neste sarau, vestida como Titania, a rainha
das fadas, se Celine tivesse que arriscar um palpite. Ela chegou no braço de
um jovem plácido com uma moldura esbelta e grandes óculos redondos,
provavelmente Phoebus Devereux.
Felizmente, parecia que Pippa ainda não encontrara Celine em toda a
extensão lotada.
Sem pensar duas vezes, Celine se virou, posicionando-se de costas a
Pippa, o tempo todo desejando poder se encolher nas roseiras. Se Pippa a
visse, provavelmente um confronto se seguiria. Pippa havia enviado duas
mensagens para o hotel só hoje, ambas perguntando sobre o bem-estar de
Celine. Na parte final da tarde, Pippa tinha ido pessoalmente ao Dumaine, na
esperança de verificar a amiga. Celine havia implorado a cada tentativa de
contato, girando uma teia de mentiras brancas projetadas para manter Pippa
o mais longe possível dela, mesmo que isso significasse prejudicar o
relacionamento delas.
Melhor que Pippa se sinta deixada de lado do que ser notada pelo
assassino.
— Devemos ir. — murmurou Celine para Odette, no momento em que
outro grupo de festeiros jubilosos ergueu um jovem em seus ombros e
começou a aplaudir como se seu cavalo tivesse vencido o Derby.
Odette se aproximou, seus traços adornando com preocupação.
— Eu pensei que você queria se encontrar com Bastien. Algo está errado?
— Nada está errado. — Celine lutou para parecer indiferente. — Faz três
horas desde que chegamos. Se ele tivesse alguma intenção de mostrar o
rosto, já estaria aqui agora.
Odette jogou uma mão desdenhosa no ar, as jóias adornando seus dedos
brilhando.
Definitivamente não é feito de pasta.
— Oh,caramba, ele está sempre atrasada para esse tipo de coisa. O
demônio gosta de fazer uma entrada.
Apesar das garantias de Odette, a dúvida surgiu no estômago de Celine.
Madeleine e Hortense chegaram pouco depois de Celine e Odette, vestidas
como fadas etéreas, seus ombros escuros brilhando com pó de ouro. Boone
apareceu à sombra delas um momento depois, vestido de branco, uma
auréola literal em torno de sua cabeça. Uma visão que fez o corpo de Odette
tremer de tanto rir.
Celine estava prestes a renovar suas objeções quando Odette agitou os
dedos no ar acima da cabeça, com um sorriso brilhante.
— Nigel! — Odette pegou a mão de Celine para puxá-la.
Mais perto de onde Pippa e Phoebus estavam conversando com o crème de
la crème da cidade crescente.
— Odette. — Celine engasgou, tentando se livrar do aperto determinado
de Odette.
O calor úmido da noite e o rugido das festividades conseguiram abafar os
protestos de Celine. Nigel os encontrou no meio do caminho, duas figuras
mascaradas andando atrás dele a um ritmo sem pressa. Sua estrutura alta
tecia com facilidade os inúmeros corpos que circulavam e derramaram.
Como a maioria dos outros convidados presentes, ele adotou uma abordagem
bastante blasé para o traje, recorrendo a enrolar alguns galhos de salgueiro
ao redor dos braços, as folhas caídas, o efeito geral sem brilho, exceto pela
coroa de louros que enfeitava sua testa.
Boone apareceu do nada, surpreendendo Celine quando ele se aproximou
dela, sua camisa branca solta ondulando sobre o tronco, a auréola de ouro se
inclinou em sua testa.
Grata pela cobertura que sua proximidade proporcionava, Celine fez uma
pausa para examinar seu traje.
— E quem você deveria ser?
— Teseu. — disse Boone sem hesitar.
— O herói fundador de Atenas? — Descrença brilhou no rosto de Celine.
— Fala sério. Você está vestido como um anjo.
Boone deu de ombros.
— Honestamente, pensei que fosse uma festa para santos e pecadores.
— E você pensou em ir vestido como um santo?
— Você não sabia, querida? — Ele demorou. — Todos os melhores santos
são pecadores.
Apesar de tudo, Celine riu, o som enchendo seus pulmões, fazendo com
que suas estadas apertadas se estendessem ainda mais. Ela apertou a mão no
esterno, exalando lentamente para recuperar o fôlego. Com a fome de um
pecador experiente, Boone cobiçou o peito de Celine, a ironia que ela não
perdeu.
Nigel sorriu quando Odette empurrou o ombro de Boone, uma nota de
aviso em seus olhos. No instante seguinte, ela se virou para Nigel e suspirou
profundamente.
— Quem você espera canalizar com esse traje esquecido por Deus? Eu
esperava melhor de você, Lorde Fitzroy.
— Oberon, é claro. — Nigel torceu as pontas enceradas do bigode corado,
sua expressão travessa, seu sotaque grosso. — Primeiro e único rei das
fadas.
— Parece mais com rei das árvores cobertas de vegetação. — brincou
Odette enquanto ela arrancava uma folha sem vida ao longo de seu cotovelo.
Ele olhou para ela com uma imperiosidade exagerada.
— Independentemente disso, sou o senhor de tudo no meu domínio.
Ajoelhe-se diante de mim, Hipólita.
— Você não domina nada, meu garoto tolo e doce. — Odette passou uma
ponta da luva embaixo do queixo, um fantasma de um sorriso pairando no
rosto dela. — Muito menos a rainha das Amazonas.
Nigel curvou-se profundamente, as folhas enroladas em seu pulso tremiam
de seus movimentos. Ele enviou um aceno atrevido para Celine, cuja atenção
se voltou para as duas figuras mascaradas que vagavam em sua sombra.
Talvez vadiar fosse a palavra errada. Pois nenhum dos cavalheiros parecia
nem um pouco preocupado com o espetáculo que se desenrolava.
Um deles era obviamente Arjun Desai. A máscara de um burro escondia a
metade superior do rosto polido. Um rabo de feltro havia sido preso em suas
costas. Pelo menos ele pagou o tema do sarau com o devido direito, pois
obviamente pretendia retratar Nick Bottom, o pobre tolo transformado em
uma fera de carga pelo notório malandro Robin Goodfellow.
Arjun examinou o ambiente, os olhos caindo em Pippa, os lábios tremendo.
— Essa é sua amiga no braço de Phoebus Devereux? — Ele perguntou a
Celine.
— Eu acredito que sim. — ela respondeu de maneira não comprometida.
Esperando que ele não insistisse mais no assunto.
— Fascinante. — O sorriso de Arjun se alargou quando ele lançou um
olhar significativo para o jovem alto e de ombros largos à sua esquerda.
Uma máscara cobria todo o rosto dele, completo com um conjunto de chifres
em espiral girando para longe da testa, o perfil lembra um touro. Seu corpo
estava envolto em um sobretudo de couro, seu grande colarinho preto virado
para cima, ocultando ainda mais suas feições.
Seu único identificador era o anel de sinete de ouro no menor dedo da mão
esquerda, gravado com o selo de La Cour des Lions.
O olhar de Celine permaneceu no anel, e os graciosos dedos de Bastien
flexionaram ao seu lado, como se pudessem sentir seu estudo inabalável.
Não deveria ter significado nada para Celine notar essa fenda específica em
sua fachada. Mas – para seu desgosto interminável – isso fez com que seu
estômago se contraísse e sua pele formigasse como se ela tivesse entrado na
noite de inverno.
Sua consciência a fez se sentir viva. O que significava que estava em
algum lugar entre nada e tudo. Um desenvolvimento incômodo, com certeza.
Quase tão preocupante quanto a pergunta inevitável que se seguiu.
Bastien ficou satisfeito em vê-la ou estava irritado?
Era a primeira vez que se viam desde que admitiam sua atração mútua. A
noite em que eles concordaram em ser nada mais que meros conhecidos.
Infelizmente, a presença de um simples conhecido não faria com que um
bando de borboletas voassem no estômago de Celine, se aglomerassem em
torno de seu coração, suas asas batendo.
A frustração esquentou sob sua pele.
Odette fez uma pose dramática, seu quadril direito se projetando para
frente enquanto gesticulava em direção a Bastien.
— Por favor, diga, quem você deveria ser?
— O Minotauro. — Uma voz rica emanou de trás da máscara de touro,
diversão arredondando seu tom.
— Existe um Minotauro na peça de Shakespeare? — Odette perguntou.
Bastien balançou a cabeça com chifres uma vez.
— Bem, que bom pra você. — brincou Celine, desejando poder ver os
olhos dele.
Desejando que ela pudesse ler seus pensamentos como as páginas de um
livro amado, parando para saborear cada palavra. Os dedos dela entraram
no bolso por vontade própria, beliscando a nota insolente dele, alimentando
a raiva em seu sangue, esperando que o fogo superasse o desejo.
A cabeça do touro inclinou-se na direção de Celine, o movimento cheio de
desprezo.
Então Bastien desviou o olhar, como se estivesse entediado com a simples
ideia dela.
Embora fosse sutil, sua rejeição enfureceu Celine além da razão, o fogo da
fúria engolindo tudo em seu caminho. Ela amassou a nota em seu punho. Ele
já a havia desconsiderado uma vez hoje. Depois do imenso problema que
Celine teve em participar dessa reunião esquecida por Deus, tudo com a
intenção de confrontá-lo.
E ele pensou em tratar ela com escárnio?
Loucura, até o fim. Era verdade que uma parte tola de Celine queria vê-lo
e ser vista em troca. Ela merecia se sentir ferida agora. Nada de bom nunca
veio de sucumbir à loucura.
Não importa. Pegando emprestado as próprias palavras dele, Celine não
mostraria misericórdia a Bastien. Ele brincou com ela por tempo suficiente.
Essas não foram as ações de um conhecido. Essas foram as ações de um
inimigo. Ela teve sua cota de inimigos.
Se Bastien fosse o Minotauro, Celine seria Teseu, armado com a espada de
Egeu.
Pronto para matar a fera.
Como se Arjun pudesse sentir o desconforto acumulado no ar, ele riu,
empurrando a máscara de burro no rosto, os laços de seda passando por suas
ondas indisciplinadas.
— Bem, eu apostaria que este evento seria o ápice do deboche desta
temporada. Alguém se importaria de nomear os termos?
Seu sotaque britânico parecia refinado demais para uma festa em que
sátiros vagavam pelos jardins com facilidade insidiosa. Muito culta para
uma noite em que tolos bêbados perderam suas inibições em um labirinto de
roseiras perfumadas, esquecendo todos os seus espinhos.
Como para ilustrar a questão, uma jovem impressionante, com cabelos da
cor de brasas fumegantes, derramou uma taça de champanhe borbulhante na
pele pálida de sua garganta, deixando-a escorrer entre as clavículas e
mergulhar na frente do corpete. Ele traçou o formato de seus seios antes que
ela fingisse indignação, como se ela simplesmente tivesse perdido a boca,
suas risadas subseqüentes altas e falsas.
Qualquer que fosse a atenção que a garota buscasse, ela conseguiu. Todos
os olhos – homens e mulheres – estavam presos em sua forma esbelta, partes
iguais escandalizadas e atormentadas. Com um sorriso presunçoso, ela girou
em seu círculo de amigos, seguros e cobiçados.
Por enquanto.
Distraída pela exposição, o olhar chocado de Pippa pousou em Celine, a
mesma realização roubando através deles no próximo suspiro. Um lampejo
de dor cintilou nas feições de Pippa, seus lábios se separando de surpresa.
No instante seguinte, ela se inclinou para a escolta, falando com ele em voz
baixa.
Celine sabia que demoraria menos de dez passos para Pippa encará-la.
Menos da metade disso para o assassino perceber, ele estava presente, como
ela suspeitava. E Celine simplesmente não podia permitir que isso
acontecesse.
O pânico se enraizou no estômago. Risos enlouqueciam no ar ao seu redor,
misturando-se com conversas incessantes. O aroma de ervas frescas e o
ferro do solo varado encheram suas narinas quando Celine olhou ao seu
redor, procurando uma fuga.
Em um único movimento sinuoso, Bastien removeu sua máscara de touro,
seus olhos prateados como nuvens de tempestade, sua expressão protegida.
Como se ele pudesse sentir seu sofrimento.
Eles trancaram os olhares por um piscar de tempo.
No instante seguinte, Celine girou sem aviso, correndo em direção à
entrada do labirinto, sua bainha de cor creme agarrando espinhos enquanto
corria.
ESCURIDÃO ENCARNADA

C eline não sabia por que tinha certeza de que Bastien a seguiria.
Ela só sabia – com a certeza de uma lua nascente – que ele iria.
Quando ela olhou por cima do ombro, a forma do casaco dele se esticou
atrás dela, e uma sacudida de algo nunca visto, inédito, nunca sentido antes
deste momento, correu através de seu sangue. Pulsou em tempo com seu
coração, enviando-a correndo por um caminho perverso, mais fundo na
escuridão perversa.
Ela era Teseu. Preparando uma armadilha para o poderoso Minotauro em
um labirinto amaldiçoado.
Como se ela o conduzisse por uma corda, Bastien deslizou em seus passos.
Celine o sentiu através das camadas de sombra, como se a noite a tivesse
abraçado, refazendo-a à sua própria imagem. Os sons de alegria
desapareceram em suspiros, o cheiro de suor e flores pisoteadas embebendo
no ar quente.
Celine passou por um par de jovens se abraçando em um canto, com
pétalas de rosa esmagadas sem forma sob os pés. Uma alça no vestido de
uma menina deslizou por seu braço, o vermelho nos lábios de seu amante
nada mais que uma mancha em sua bochecha.
Com o rosto em chamas de desculpas, Celine virou a esquina seguinte e
chegou a um beco sem saída. Ela girou no lugar, com a cabeça erguida.
Bastien estava diante dela, iluminado pela lua, o colarinho virado para cima
escondendo a maior parte do rosto, a cabeça do Minotauro pendurada em
uma mão.
Ela olhou para ele através do vazio, prometendo manter-se firme em seu
plano, embora o espaço ao redor deles engrossasse com sugestões. — O
Minotauro, Bastien? Sério?
— Eu possuo uma certa afinidade por monstros.
— E o longo casaco preto?
— Eu gosto de fazer um espetáculo. — Seu rosto não continha nada além
de sombras, o conjunto de sua mandíbula refinado. Como se nada na situação
o incomodasse nem um pouco.
Isso provocou mais Celine. — E o que dizer da fita amarela de Anabel?
Bastien deu um passo mais perto. Um frio ártico emanava de sua pele. —
O que é que tem?
— Por que você a tem?
Ele não disse nada por um tempo.
— Por que você acha que eu tenho? — Bastien deu outro passo mais perto,
pressionando Celine no canto.
— Pare. — ela ordenou.
Ele parou de seguir. — Você está com medo?
— Não. Estou furiosa.
— Entendo. — A resposta de Bastien foi lenta. Deliberada. — Você acha
que eu a matei, — ele disse calmamente.
O carvão da noite dificultava a Celine discernir seus traços. — Eu não sei
mais o que pensar.
— Se eu dissesse que não a matei, você acreditaria em mim? Se eu
dissesse que encontrei a fita na escada, isso soaria verdadeiro? Ele avançou
mais uma vez, rondando como uma pantera, o timbre de sua voz diminuindo
ainda mais. — Ou você acreditaria em mim se eu lhe dissesse que pertencia
a alguém que amava há muito tempo?
— Eu... não sei.
— Você quer acreditar em mim? — Era como se o próprio Lúcifer tivesse
feito a pergunta a Celine, seu tom cheio de demônios sombrios.
Sim, seu coração disse. — Não. — As mãos de Celine se fecharam em
punhos.
— Mentirosa. — O último passo que Bastien deu trouxe seu rosto à luz da
lua.
Uma respiração aguda encheu os pulmões de Celine. Ele era
dolorosamente bonito. Não no caminho da arte ou no caminho da poesia.
Mas no caminho da violência. A maneira como a visão a agarrou e tomou
conta. Como uma tempestade de raios atrás de um banco de nuvens. Uma
maré quebrando em uma praia. Um lembrete de que a vida era um momento
no tempo.
Que cada segundo disso seja saboreado.
— Que tipo de criatura são os membros de La Cour des Lions? —
perguntou Celine, irritada com o tremor no peito. — Porque eu não acredito
que nenhum de vocês seja humano.
Celine esperava ver um vislumbre de choque em sua expressão. Ele
permaneceu com o rosto de pedra, a bainha do casaco comprido se
contorcendo sobre ele como a escuridão encarnada.
— Odette torna tudo possível. Arjun é um tecelão de palavras. Nigel
equilibra abolsa de valores. Jae elimina qualquer peso morto. Boone
encontra coisas que desejam permanecer ocultas. Madeleine faz essas coisas
funcionarem, enquanto Hortense saboreia em segundo plano. E, apesar do
meu amor por cobras, sou tão humano quanto você — disse Bastien
simplesmente.
— Você me vê como tola? — Ela respondeu.
Ele não disse nada em resposta.
— Se a Corte dos Leões não é responsável por matar Anabel e William,
então quem é? — Celine exigiu em um sussurro duro. — E como o
impedimos?
O som de um galho estalou em torno da curva, estalando com aviso.
Antes que Celine pudesse piscar, Bastien a empurrou para o canto,
cobrindo-a com o corpo, as folhas de cera nas costas formigando contra a
pele nua ao longo dos braços. Todo o ar deixou seu peito, o sangue
inundando suas veias em uma corrida quente. Por um instante ridículo,
Celine pensou que Bastien iria beijá-la, como os heróis dos terríveis contos
que ela frequentemente roubava de sua amiga Josephine.
Seus braços a envolveram quando ele assumiu uma postura ampla,
protegendo-a de vista. Para quem olhasse atentamente, pareceria que eles se
perderam pela folia da noite.
Não escapou à Celine de que Bastien não assumiu uma posição defensiva.
O que significava que ele tinha apenas a intenção de protegê-la.
Passos emanaram atrás dele, um grupo de figuras indistintas se movendo
em sua vista. A cada segundo, eles se aproximavam, suas identidades
escondidas sob a cobertura da noite.
Ameaça inconfundível rolou do corpo de Bastien. De todos os músculos
elegantes sob o colete preto a todos os tendões esticados em seus braços. A
respiração de Celine se alojou na garganta, o pulso disparando nos ouvidos.
Mais uma vez, lembrando a ela por que tantas pessoas concederam a Bastien
um espaço tão amplo.
Diante de Celine estava um jovem capaz de derramar sangue sem um
momento de hesitação. Um demônio cruel que poderia matar um dragão
armado e comparecer à missa na manhã seguinte.
Os intrusos se aproximaram, como se estivessem procurando algo na sebe,
suas palavras se arrastando juntas, seus corpos tropeçando na escuridão. O
braço direito de Bastien serpenteava em volta da cintura de Celine para
colocar o punho de uma pequena adaga na palma da mão, a mão esquerda se
deslocando em direção ao revólver enfiado no coldre do ombro.
Ele balançou a cabeça uma vez. Celine assentiu em entendimento.
Eles não diriam nada. Eles esperariam como víboras enroladas, prontas
para atacar.
Uma forma esbelta – a de uma jovem mulher – apareceu logo além do
ombro de Bastien.
— Você não disse que viu Sébastien Saint Germain entrando no labirinto,
perseguindo uma jovem? — disse ela ao companheiro atrás dela, suas
palavras pronunciadas de forma enrolada por causa da bebida.
— Eu poderia jurar que sim, — outra voz feminina soou atrás dela.
A primeira garota gemeu. — Qual rata sortuda conseguiu se agarrar a um
leão?
— Ela pode ficar com ele, — sua amiga respondeu com um
estremecimento audível. — Ele e todos os membros da Corte me assustam.
Não ligo quanto dinheiro ou influência eles tenham.
— Como você pode dizer isso? Ele é um prêmio em todos os aspectos.
Você viu a aparência dele quando sorri?— Ela suspirou. — É um rosto que
incendiaria as calcinhas de uma garota.
Uma luz fria se estabeleceu no olhar de Bastien enquanto elas falavam. O
gelo de uma noite sem lua, alto no Himalaia.
— Bem, ele não está aqui, — disse a segunda garota. — E Maman ficaria
furiosa se soubesse que havíamos entrado no labirinto. Todo mundo sabe o
que acontece aqui depois da meia-noite.
— Eu não ligo, — disse a primeira garota entre os dentes. — Eu esperava
sair da festa com pelo menos uma boa história.
— Vamos ser gratas por estarmos saindo, dados os assassinatos recentes.
— Sua amiga sensata afastou a primeira garota, forçando-as a retomar seus
passos, suas palavras derretendo no nada um momento depois.
Mesmo depois de terem ido além do alcance da voz, Bastien não se
afastou. Ele olhou para Celine, os lábios contraídos, as feições calculadas.
Celine olhou para cima, encontrando seu estudo, medida por medida. Ela
inalou, absorvendo o tempero da bergamota em sua colônia, misturado com o
cheiro de couro flexível.
— Parece que sua reputação o precede. — disse ela, suas palavras
silenciosas.
Traidoras. A cada instante que passava, a carga no ar começou a mudar, o
perigo se transformando em algo mais quente, mais intenso.
Mas não menos mortal.
— Pelo menos uma jovem aqui é sábia o suficiente para me temer. — ele
respondeu, com um significado claro.
— É isso que você pensa? — Sua sobrancelha franziu. — Que eu sou nada
mais que uma tola em saias de seda?
— Você não é nada como elas. Elas são sanguessugas. Você é um leão.
O prazer a percorreu com o elogio.
— E o que as sanguessugas querem com os leões?
— A chance de beber de nossas veias geladas. — Ele se aproximou, seu
hálito fresco lavando a pele dela.
Celine considerou seu rosto, concentrando-se no modo como sua boca
moldava as palavras. A maneira como seu sulco perfeito mergulhava no
centro. Quão fácil seria ficar na ponta dos pés e fazer o que ela queria fazer
desde o momento em que pôs os olhos nele.
Ela não estava sozinha em seu desejo. Mesmo sob o luar azul, o desejo nu
no rosto de Bastien desagradou Celine, deixando-a à deriva em um mar
tempestuoso.
Era o tipo de querer essa dor.
— Celine. — Ele pronunciou o nome dela como uma oração. — O que
você quer?
— Eu quero… — Ela se viu refletida em seu olhar líquido.
Bastien roçou a testa na dela.
— Ponha um fim às nossas misérias, mon coeur — ele sussurrou. — Por
favor.
Celine se levantou, na ponta dos dedos, ocupando o espaço dele como ele
ocupou o dela.
Ela o agarrou pelas lapelas imaculadas, a faca ainda entrelaçada entre os
dedos dela, a lâmina brilhando branca sob as estrelas. A frente do basco
dela pressionou os planos endurecidos do corpo dele, o coração de Bastien
batendo contra o dela. Ele olhou para baixo, depois se firmou.
Seus lábios estavam a um fio de cabelo por serem tocados.
— Eu quero — a língua de Celine estava a um gosto da dele — que você
responda minhas malditas perguntas.
Levou um momento para que suas palavras se registrassem. Uma sombra
cruzou a testa de Bastien, um músculo trabalhando em sua mandíbula quando
ele se desenrolou e deu um passo cuidadoso para trás. As mãos de Celine
deslizaram de seu peito, os calcanhares voltando à terra mais uma vez, o
cabo da adaga pendendo frouxamente na palma da mão.
Ela esperava a raiva dele. Desde tenra idade, Celine sabia que os meninos
não aceitavam bem as meninas que brincavam com seus desejos. Ela estava
preparada para a raiva dele.
Preparada para liberar um pouco da sua em troca.
Risos ricos roncaram através do silêncio da noite. Começaram no peito de
Bastien, depois saíram de seus lábios perfeitos, o som descarado de
apreciação.
Celine ficou congelada, atordoada em silêncio.
Por que ele nunca se comportava como o esperado? E por que isso o fez
ainda mais atraente?
Bastien continuou rindo como se ninguém estivesse lá para ouvir. Seus
lábios se curvaram em um meio sorriso.
— Celine Rousseau, você é...
— Brilhante, — ela terminou, recusando-se a admitir como estava
perturbada com a reação dele. — Uma alegria absoluta de se ver.
— Eu ia dizer impossível. — Bastien balançou a cabeça, parecendo
confuso por um trecho de tempo. Então sua expressão suavizou, sempre o
camaleão consumado. — Mas suponho que eu estaria disposto a considerar
outras opções. — Ele se endireitou. — Se você quiser que eu responda suas
perguntas, nomeie suas condições.
Ela piscou, ressentindo-se de como ele usava seus disfarces com tanta
facilidade.
— Você deseja negociar?
— Se você embainhar sua arma. — Bastien apontou para a adaga na mão
dela.
Inconsciente de si mesma, Celine levantou a pequena lâmina no ar,
brandindo-a entre eles. Piscando como um cervo preso na mira, ela virou a
alça iridescente na direção dele.
Em vez de pegá-lo, Bastien passou a bainha de madrepérola para ela.
— Mantenha isso em você o tempo todo. A lâmina é de prata maciça.
Nestes tempos, essa arma é uma necessidade, não uma opção. — Seu tom
não aceitaria qualquer censura. — E se necessário, sempre aponte para a
garganta.
Celine engoliu em seco.
— Obrigada, — ela murmurou. — Você... realmente promete responder
minhas perguntas?
Bastien verificou seu pulso. Assentiu uma vez.
— Aqui não. Toda sebe neste labirinto amaldiçoado contém pelo menos
cinco espiões. — Ele esfregou a lateral do pescoço. — Venha comigo.
TENHA CUIDADO

S ébastien Saint Germain detestava o que estava prestes a fazer.


Mas seus sentimentos não poderiam ter influência sobre sua decisão.
Isso devia ser feito. Esta noite. Sem um pingo de misericórdia.
Celine Rousseau sofria de muitas noções equivocadas. A primeira delas
era que ela poderia fazer parte deste mundo e não sofrer as consequências.
Que ela podia ficar frente a frente com criaturas que a rasgariam em pedaços
sem pestanejar... e viver para falar sobre isso.
Se havia algo que Bastien havia aprendido em seus dezoito anos, era que
os seres humanos – não importa quão formidáveis ou resistentes – não
pertencia a um Outro Mundo cheio de demônios e bestas. No ventre sombrio
de criaturas que nada senão desprezo à fragilidade da vida.
O mundo em que Bastien havia sido criado.
Não importava que Bastien quisesse Celine em seu mundo, mais do que
tudo. Ela foi a primeira garota mortal a enfrentar o herdeiro de Nicodemus
Saint Germain e não se encolher.
E talvez – se esses assassinatos não tivessem acontecido – poderia ter sido
possível.
O amor é uma aflição.
Por um instante, Bastien se permitiu sonhar. No instante seguinte, o sonho
se enrolou como uma cobra, envolvendo seu coração em um torno. Ele
precisava silenciar esse desejo tolo. Seu tio já havia dito isso antes.
Esquecemos nossos sonhos, mas pesadelos permanecem conosco sempre.
Celine era exatamente o oposto do que o tio de Bastien desejava para ele
em uma esposa. Ela era teimosa em seus deveres. Intransigente em sua
abordagem. Características que seu tio se recusava a tolerar em qualquer
mortal. Sem mencionar que ela não tinha o cachê de uma família distinta. A
união de Bastien com um pilar da sociedade de Nova Orleans era de
importância equivalente ao tio Nico. Seu casamento não passaria de uma
transação comercial, e Celine Rousseau não era uma escolha sábia a esse
respeito, por inúmeras razões.
Mas esses assuntos não tiveram influência na decisão de Bastien hoje à
noite. O único mês de Celine neste mundo já lhe causara danos irreparáveis.
A coisa mais gentil para Bastien fazer seria expulsá-la disso, para que ele
não se tornasse um pesadelo persistente em sua mente.
Ele preferiria ser um sonho que ela já teve. Bonito por um tempo. Era para
ser esquecido.
Sempre termina em sangue.
Bastien não era um nobre tolo. Longe disso. Não havia nada nobre no que
ele pretendia fazer. Era puramente egoísta da parte dele. Ele não podia
assistir Celine morrer, como ele viu sua família morrer. A imagem da vida
dela drenando de seu corpo – da faísca em seus olhos desaparecendo diante
dele – roubou o fôlego de seu peito.
Ele estava fazendo isso por si mesmo. Não para ela.
Bastien ajeitou sua postura, depois afundou o queixo na gola do sobretudo,
com uma expressão melancólica. Celine encostou-se nas barras do elevador
de latão enquanto andavam para o último andar do Dumaine. Quando Bastien
olhou de lado para ela, ele tentou desconsiderar o adorável tom de rosa em
suas bochechas. Lutou para ignorar a estranha eletricidade pulsando entre
eles.
Em vão, ele lutou para banir a memória do corpo dela contra o dele. Do
jeito que seus olhos verdes o tentaram a pecar. Ela estava muito perto agora,
sua pele cheirando a lavanda e madressilva, o cheiro ressecando sua
garganta, chamando-o para mais perto.
Só para provar.
Como sempre, o elevador parou exatamente no momento certo.
— Obrigado, Ifan, — disse Bastien ao féerico sombrio que controlava o
elevador. Um pária da Sylvan Wyld, a quem seu tio pagava uma fortuna
obscena todos os meses pelo propósito expresso de vigiar esse posto. Com
um único toque da mão, Ifan possuía a capacidade de congelar um intruso em
seus passos.
Ifan assentiu, suas feições frias. Se não fosse a promessa obrigatória dos
fadas a Nicodemus, Bastien não tinha dúvida de que Ifan zombaria de
qualquer humano que se dignasse a olhá-lo nos olhos. Provavelmente, coagiu
sua alma inexistente a servir um descanso.
Bastien esperou Celine sair do elevador, sabendo que lhe dava conforto
liderar, em vez de segui-lo. Ele precisava que ela se sentisse confortável.
Para que, quando ele tirasse o sentimento, doesse muito mais.
Ele descartou sua máscara de touro em um canto, enquanto Celine passava
pelo espelho pendurado na parede adamascada do corredor estreito, alheio
ao que era. Na superfície, brilhava intensamente, nada mais que um simples
espelho. Mas a prata tinha sido soletrada para ver além do olho nu.
Descobrir a verdade escondida sob a pele de um ladrão.
Bastien tinha aprendido aos cinco anos de idade como a maioria das
aparências era projetada para enganar.
Celine parou na frente das portas duplas que levavam aos aposentos de seu
tio. Mais uma vez Bastien foi lembrado de quanto ela não sabia. Como os
escritos nas molduras ao redor das portas – escondidas de maneira
inteligente nas elaboradas esculturas – queimariam a carne de um intruso
indesejado.
Alheia a toda a magia ao seu redor, os dedos de Celine tremeram em uma
das alças douradas. Ela se virou no lugar.
— Algo está errado, Bastien?
— O que você quer dizer?
Ela fez uma careta.
— Você continua me olhando como se eu lhe devesse dinheiro.
A reação imediata de Bastien foi rir. Ele manteve o sentimento sob
controle, apesar de lhe doer fazê-lo. Uma das coisas que mais o encantaram
em Celine foi sua inteligência.
Isso não importava. Nada nela poderia segurá-lo mais em escravidão.
Antes que ele tivesse a chance de reconsiderar, Bastien olhou para Celine
com um olhar que faria homens menores correrem para suas mães. Apenas
com a força dessa carranca, ele a pressionou contra as portas duplas, sua
mão direita pousando no carvalho inglês ao lado de sua cabeça. Embora os
olhos de Celine se arregalassem, ela não vacilou. Em vez disso, ela se
irritou, advertindo-o sem palavras.
Ande com cuidado, Sébastien Saint Germain.
Maldita sua audácia. Por combinar com ele de todas as maneiras.
— Você não me deve nada, — disse Bastien, seu tom imbuído de aviso. —
Assim como eu não lhe devo nada em troca.
— Quando você vai...
— Você queria respostas. Tudo o que você precisa saber é o seguinte: há
demônios à noite que não querem nada além de drenar seu sangue e deixar
para trás uma casca sem vida. — Bastien a interrompeu antes que ela
pudesse dizer qualquer coisa. — Não importa como eles se chamam. Não
importa como eles são mortos. Só importa que eles vão matá-la.
O melhor conselho que posso dar é ficar longe e deixar esses assuntos
para os que estão equipados para lidar com eles.
Celine engasgou com um ataque de diversão sombria, seu pulso flutuando
sob a pele fina ao longo do pescoço.
— Se você está equipado para lidar com esse demônio, então por que ele
ainda está causando estragos em nós? Eu mereço saber me defender. Odette
iria...
— Você não ouviu uma palavra que eu disse? — Bastien se ergueu em toda
a sua altura, intencionalmente elevando-se sobre ela, embora continuasse
falando em tom medido. — Afaste-se de todos na Corte dos Leões. Não
confie em mim. Não confie em ninguém ao meu redor, incluindo Odette. O
que você ouvir, não acredite em nada. O que quer que você veja, acredite em
menos da metade.
— Você me prometeu a verdade. — Seus olhos se estreitaram em fendas.
Ele levantou um ombro desdenhoso.
— Eu menti.
A fúria manchava o rosto de Celine, os flocos de ouro ao longo de suas
maçãs do rosto brilhando. Para a eterna frustração de Bastien, isso a fez
parecer ainda mais bonita, seus olhos como pedras preciosas, seus dentes à
mostra como armas. — Então você me trouxe aqui apenas para-
— Você deveria ter fugido quando teve a chance. Tem...
— Pare de me interromper, seu fils de pute. — Celine o empurrou, as
palmas das mãos como marcas contra seu peito. — E para a sua informação,
eu já tentei correr.
— Mentirosa.— Bastien afastou as mãos como se estivesse golpeando uma
mosca. — Se você pretendesse fugir, teria fugido deste lugar há muito tempo.
Não me diga que você tentou. Bastardos egoístas como você e eu não
tentamos. Nós fazemos.— As palavras sentiram como ácido em sua língua, a
verdade queimando através de sua alma.
Celine recuou, seus lábios se separando. Um olhar de compreensão
suavizou seu lindo rosto.
— Você está tentando me assustar. Não vai funcionar.
Bastien passou uma mão cuidadosa ao redor de sua garganta, puxando-a
para mais perto, seus cachos soltos fazendo cócegas em seu pulso,
distraindo-o por outro instante enlouquecedor.
— Então você é uma tola.
— Por que você não me ajuda? — A voz de Celine falhou no último, o
primeiro sinal de que ele causou nela dor demonstrável.
O que atingiu Bastien como um aríete no estômago.
— Você se preocupa com a criatura que pode matá-la?— Uma gargalhada
fria caiu de seus lábios. — Você deveria se preocupar com o demônio que
quer. Pois eu vou te matar se você não ficar longe.
— Mentiroso. Você não me machucaria.— Apesar de tudo, Celine
Rousseau ainda se recusava a recuar.
Bastien não podia admirá-la por isso. Ele não iria a admirar por isso.
— Você não sabe nada sobre mim, — disse ele. — Já matei antes, Celine.
Inúmeras vezes. E adorava fazê-lo, nunca pedindo perdão. — Ele pretendia
aterrorizá-la com essa admissão. Para selar seu destino de uma vez por
todas.
Celine exalou lentamente, sua respiração tremendo ao sair de seus lábios.
— Eu também.
A mão de Bastien caiu de sua garganta, a tensão fluindo por baixo de sua
pele, seu peito apertado de surpresa. Ele pensou em acusá-la de mentir. Mas
ela não estava mentindo. Ele a conhecia bem o suficiente para perceber que
uma revelação como essa não poderia ser uma mentira. Era muito brutal,
como a verdade costumava ser.
Celine levantou o queixo pontudo. Lágrimas de raiva brotaram em seus
olhos.
— Eu matei um homem com minhas próprias mãos. — Seus punhos
fecharam ao lado do corpo. — É por isso que eu fugi de Paris. — Ela inalou,
seu corpo tremendo. — E eu não sinto muito por isso, nem um pouco. Não
tenho medo da morte, Sébastien Saint Germain. Não tenho medo de você. É
você quem deve ter medo de mim. — Ela o empurrou mais uma vez, as
lágrimas escorrendo pelo rosto.
Bastien agarrou suas mãos. Manteve-a firme enquanto respirava fundo.
Seus pensamentos percorreram sua mente, perguntas se acumulando em sua
língua.
— Quem?
— Eu matei o garoto que tentou me estuprar.
O fogo deixou seu corpo em uma corrida de roubo de almas. Era o mesmo
de sempre.
Sempre que Bastien estava prestes a destruir algo, sentia gelo, não fogo.
— Bom, — disse ele, não confiando em si mesmo para dizer mais.
— Talvez não sejamos tão diferentes, você e eu.
Estava tão longe da verdade. Tão perto do que seu coração desejava
acreditar. Bastien não pôde evitar. Ele mudou a palma da mão para o rosto
dela, enxugando as lágrimas com o polegar.
— Diga-me por que você tem a fita de Anabel, — disse Celine, seus olhos
verdes brilhando. — Por favor.
O aperto de Bastien aumentou, suas mãos segurando o queixo dela. Ele
detestava a necessidade de se explicar. Desprezava o significado por trás
disso.
— Olhe no meu bolso esquerdo.
Com a testa franzida, Celine retirou um pedaço de seda amarela sobre o
coração dele.
Costurado em um canto do lenço gasto havia um conjunto de iniciais:

ESG
Confusão acumulada ao longo da ponte do nariz.
— O que...
— Pertencia à minha irmã, Émilie, — disse Bastien. — Ela me deu no dia
em que morreu.
— Ele respirou fundo, o ar queimando em seus pulmões no instante em que
pronunciou o nome dela. — Eu carrego comigo sempre. Isso me dá força.
Um momento se passou em silêncio. Celine esperou que ele falasse, como
se não soubesse que palavras expressivas de condolências fariam diferença,
mesmo depois de mais de uma década.
— Ela morreu por mim. — Ele lutou para esconder sua dor, como sempre
fazia. Para esclarecer isso, ninguém saberia como as lembranças de seu
passado ainda assombravam seu presente.
Celine lançou-lhe um olhar perscrutador.
— Você não deve esconder como se sente, Bastien. Não de mim. Prometo
nunca julgá-lo por isso.
— E por que você faria tal promessa a um garoto que mal conhece?
— Eu acho que você sabe o porquê. — Ela não desviou o olhar.
Mais uma vez, ele foi preso. Aqui estava o verdadeiro poder. O poder de
cativar sem uma palavra.
Naquele momento, Bastien não queria mais se esconder de Celine. Não
mais. Com ela, sua dor não era uma fraqueza para um inimigo explorar. Era
uma força, como Émilie teria desejado.
— Eu me sinto... despedaçado quando penso em minha irmã — ele disse,
sua voz grave com emoção incontrolável. — Como se meu coração fosse
feito de vidro, as peças se partissem através do meu peito. — Cada palavra
era um desabafo. Uma verdade que desejava ser libertada.
Celine assentiu, sua expressão melancólica.
— Não seria maravilhoso se todos pudéssemos ter corações feitos de
diamantes?
— Indestrutíveis. — Os lábios de Bastien se curvaram em um meio
sorriso.
Nos olhos dela, ele viu uma pergunta respondida.
O amor é uma aflição.
— Não deveríamos. — ele disse suavemente.
— Mas nós vamos.
— Não. — Ainda Bastien não conseguia parar de tocá-la. De deixar os
dedos deslizarem pela pele quente dela. — Nós não vamos.
— Sim nós vamos. Assim como você me ajudará a montar minha
armadilha no baile de máscaras.
— Eu não vou.
Celine se inclinou para sua carícia.
— Que mentiroso. — Ela apertou o corpo inteiro contra o dele, uma chama
acendendo em seu olhar. — E um covarde, — ela respirou sob o queixo
dele, a sensação percorrendo sua espinha.
Antes que Bastien pudesse oferecer uma réplica, Celine subiu na ponta dos
pés e inclinou os lábios nos dele. No instante em que se encontraram, ela
amoleceu em seus braços, moldando contra ele. Ele se rendeu, o resto do
mundo se derretendo. Quando a língua dela roçou seus lábios, Bastien
gemeu, não mais capaz de se conter.
Não foi um beijo de curiosidade, nem de exploração experimental. Foi
selvagem.
Imprudente. E Bastien não podia fazer nada além de responder da mesma
maneira. Ele queria isso na primeira noite em que se conheceram. Quando
Celine pegou sua gravata.
Quando ela o encarou – esperando que Sébastien Saint Germain se
encolhesse de medo – ela roubou seu coração partido.
Tudo em um instante perfeito.
Bastien levantou-a do chão, suas mãos endurecendo enquanto envolviam
suas pernas em volta de sua cintura. Ele empurrou as portas duplas com
Celine nos braços, engolindo-os na escuridão repentina. Mal consciente do
ambiente, atravessou o quarto em direção à cama de dossel de seu tio.
Diversão brilhou através dele, quente e rápido. Tio Nico sem dúvida ficaria
furioso com essa falta de respeito.
Valeria a pena.
Afundaram nos lençóis frios. Bastien beijou palavras espanholas na pele
da garganta de Celine, promessas que nenhum mortal poderia cumprir, votos
de um tolo poético. Os dedos dele afrouxaram os alfinetes enterrados em sua
coroa de cachos como a meia-noite, os pedaços de metal voando livremente,
os cabelos dela enrolando-se sobre eles como uma capa de escuridão. Ela
rasgou os botões da camisa dele, o som de tecido rasgado fazendo Bastien
sorrir em seu ombro nu.
— Eu gostava dessa camisa, — ele murmurou ao lado da orelha dela.
— Então faça uma oração pela alma imortal dela.
Bastien riu. Cada toque de sua pele, cada toque de sua mão, enviava outra
onda de desejo percorrendo suas veias.
Nos confins da sua mente, Bastien pensou no que isso significaria. Ele
arriscava pouco levando Celine para a cama. Ela arriscava tudo. Sua
reputação, seu futuro, possivelmente até seu bem-estar. Era algo que Odette
costumava comentar. A injustiça de tudo isso.
Ele pensou em parar, mesmo enquanto pegava as saias dela em suas mãos.
— Celine.
— Bastien. — Ela arqueou-se contra ele, as unhas arranhando os braços
dele, a sensação tornando sua visão negra. Ele agarrou os joelhos dela,
saboreando o choque em seu suspiro.
Ele deveria acabar com isso. Ele sabia que deveria.
— Está tudo bem?
— Sim.
Suas mãos roçaram mais alto.
— Isso? — O sangue rugiu em seu peito.
— Sim.
Os polegares dele roçaram a pele macia entre as coxas dela.
— E... isso?
— Bastien. — A cabeça de Celine caiu para trás, seu corpo tremendo. —
Por favor, eu... o que?
A pergunta em sua voz chamou sua atenção. Ela sentou-se abruptamente,
olhando de soslaio pelas sombras na parede oposta. Então ela empurrou
Bastien para longe, um grito assustador rasgando sua garganta.
Bastien se levantou, pegando o revólver em um movimento contínuo. Então
ele seguiu o olhar dela.
A escuridão do outro lado do caminho era espessa e profunda. O contraste
da luz que fluía das portas abertas na entrada da câmara dificultava a visão
do final da cama. Bastien levou um momento para detectar a fonte do grito de
Celine. Para perceber o que arrancou um soluço dela agora.
Bastien caiu de joelhos, o revólver batendo no tapete Aubusson.
Sempre termina em sangue.
Ali – ao longo da sacada de livros bem acima da cabeça – repousavam os
restos de um braço envolto em galhos de salgueiro quebrados, o sangue
pingando de seu rasgo. Sobre o corrimão, repousavam os restos carmesins
de uma cabeça humana decepada, suas feições marcadas pelas garras de um
animal.
Mas isso não importava. Nada poderia esconder a verdade de sua
identidade. Não de Bastien.
Nigel.
No muro acima da poça de sangue havia outro símbolo:
HIVER, 1872
RUA BIENVILLE
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

O gelo fica mais fino sob o meu inimigo. Sob todos os seus amigos e
parentes.
Agora ele sabe que vou tirar dele aqueles que ele mais ama no mundo. Não
lhes mostrarei piedade. Vou tirar e tirar e tirar até que não haja mais nada a
perder.
Em breve eles entenderão que não há limites para o meu alcance. Pois
quebrei o muro de protetores de Nicodemus. Seu último bastião restante.
Agora não pode haver socorro. Não da minha ira.
Ele se esforçará para proteger sua família – como há séculos – mas não há
dúvida de quem sairá vitorioso nessa batalha. Só eu seguro todas as cartas.
Nenhuma porta está trancada para mim. Não há montanha alta demais para
escalar. Não há alcance neste inferno.
Eu estou nas sombras, olhando para o Hotel Dumaine. Eu assisto sua Corte
dos Leões passar pela escuridão. Testemunho quando uma força impotente
de policiais desce sobre o edifício suntuoso. Eu ouço enquanto eles falam.
Enquanto ela chora e ele se enfurece. Como todos eles lamentam o que antes
era.
A perda arde, não arde?
Não mais do que doeu quando perdi tudo o que considerava querido.
Quando tudo o que eu valorizei se despedaçou, pisoteado ao pó sob seus
pés.
Minha pele está eletrificada pelo tormento deles. Minha alma voa livre.
Ele sabe que é pessoal agora. Quando sua confiança é tirada dele – quando
aquele que ele mais ama é marcado pelo beijo duradouro da Morte – ele
saberá por que isso foi feito. A quem culpar.
Não há como voltar atrás. O pavio foi recolhido. O fósforo foi aceso.
Somente um de nós pode sobreviver aos fogos do inferno.
O TRAVESSO

C eline estava sentada na beirada da cama precária no escritório de


Michael, na sede da polícia. O tique-taque do relógio próximo ecoou
em seu cérebro, o som ficando mais alto a cada segundo que passava. Raios
de luz filtrada atravessavam as tábuas de madeira sob seus pés, o sol se
aquecendo em preparação para seu grand finale.
Seu pulso bateu forte nos ouvidos enquanto ela estudava o grande quadro
de ardósia do outro lado da sala, coberto de listas intermináveis e diagramas
meticulosos que Michael construíra desde a noite do primeiro assassinato ao
longo das docas, menos de um mês atrás. Ela parou no mapa desgastado pelo
tempo, fixado em um canto da superfície cinza e lisa. Espiou atentamente os
detalhes que ela compartilhou da noite em que o assassino a seguira por uma
rua escura da cidade. As coisas que o demônio havia dito a ela, tanto
naquela noite quanto na noite em que William fora morto. As ameaças que a
criatura rosnara em seu ouvido:

Bem-vindo à batalha de Cartago.


Você é minha.
A morte leva a outro jardim.
Para o seu próprio ser, seja verdadeira.
Morra em meus braços.

Ela estremeceu com a lembrança de como o hálito frio do demônio havia


percorrido suas costas. Do cheiro quente de cobre que ele deixou para trás
depois de passar os dedos manchados de sangue em seu rosto. Celine
desviou o olhar, seus olhos se prendendo a mais recente adição do quadro-
negro: aquela referente ao assassinato de Nigel na noite passada na suíte do
Dumaine. A contagem de outra pista horrível para sua coleção de símbolos.
Ela suspirou, os ombros curvando-se para a frente como se estivesse
sobrecarregada por um peso invisível.
Era o mesmo que havia sido nas últimas horas.
Celine não podia fazer nem cara nem coroa.
As letras em si poderiam ser como apareceram à primeira vista: um G, um
O, e um Y. Mas juntos, eles não tinham significado para Celine, nem
pareciam ter ressonância com Michael ou qualquer outro membro da Polícia
Metropolitana. Eles podem ser iniciais. Ou diretrizes. Ou um absurdo total
que pretendia distraí-los com a preocupação.
Se eles eram de fato outro tipo de roteiro, seu significado permaneceu
além do alcance de Celine. A primeira letra poderia ser um L invertido ou
para o lado, em grego antigo ou latim. Ou talvez até um C? Talvez o
assassino tenha escrito incorretamente ou talvez a perspectiva tenha sido
distorcida. A segunda carta era sem dúvida um O, se é que realmente era
uma letra. E o último? Pode ser qualquer letra. A ou Y ou W. Talvez um U,
dependendo de suas origens. Poderia até ser de uma língua que antecedeu o
grego antigo.
Talvez não fossem letras, e Michael tinha razão em atribuir-lhes
significado matemático.
Foi exaustivo. Todas as possibilidades infindáveis atormentavam Celine
bem depois do amanhecer. Com o passar das horas, os acontecimentos da
noite anterior entraram em sua mente, deixando para trás uma mistura
estranha de memória. O que mais impressionou Celine foi o contraste de frio
e calor. Das trevas e da luz. A sensação do ar no labirinto, espessa e pesada.
A lembrança da jovem garota derramando champanhe frio na pele de sua
garganta, o vidro brilhante no jardim mostrando sua forma. Do jeito que os
nervos de Celine tinham congelado a qualquer ameaça, seus ossos tensos
como se ela tivesse entrado na noite de inverno. A sensação das mãos de
Bastien queimando em sua pele, seus lábios uma marca na cavidade de sua
garganta. O delicioso calor escorrendo por seu corpo mesmo agora apenas
com o pensamento. Aquele momento horrível em que um grito congelou na
língua de Celine.
O cheiro quente de sangue.
O frio amargo da morte.
Ela apertou a nota boba com mais força na palma da mão. Aquela que lhe
foi passada por uma Odette com a cara petrificada apenas alguns minutos
depois que Michael separou Celine e Bastien ao chegar ao hotel, com a
intenção de levá-la para o quartel da polícia de três andares na Praça
Jackson, ao lado da Catedral de Saint Louis.

Onde quer que você esteja, eu a encontrarei à meia-noite.


—B

Celine não deveria ter se importado que Bastien tivesse pensado nela
momentos depois de descobrir seu amigo assassinado. Mas importava mais
do que ela conseguia encontrar as palavras para dizer. A nota que ela
segurava na palma da mão provava que não eram simplesmente os "apenas
conhecidos" que haviam concordado em ser apenas alguns dias antes. Eles
estavam além de tais inanidades. Talvez importasse para alguém em algum
lugar que Celine não fosse uma combinação adequada para Bastien, nem ele
era o pretendente adequado que ela imaginara para si mesma.
Mas isso não importava mais para eles.
Celine viu através das máscaras de Bastien. Ele olhou além da vida de
mentiras astutas dela. E quando confrontados com essas verdades – as piores
coisas que haviam acontecido com eles, as piores coisas que eles haviam
feito – Bastien não vacilou nem Celine se afastou.
Essas eram as únicas verdades que faziam sentido em meio a esse caos.
Colocando um cacho errante atrás de uma orelha, Celine caminhou em
direção ao quadro-negro para dar uma olhada no mapa gasto, marcado com
pinos de metal de investigações anteriores. Mais uma vez ela se esforçou
para entender o que fez o assassino mudar suas atenções para ela. O que o
levou a assassinar aquela pobre garota nas docas semanas atrás. Se tudo
estava conectado e, em caso afirmativo, qual seria o próximo passo do
assassino. Seu olhar se prendeu ao nome da rua que passava em frente à
delegacia, Rue de Chartres.
Venha comigo para o coração de Chartres.
A frase estava faltando na coleção de Michael. Evidentemente, Celine
deixou de mencionar isso para ele. Isso importava? Isso tinha algum
significado? Quem era esse louco, e por que ele estava matando pessoas ao
seu redor? Onde ele estava escondido, à vista de todos ou em um labirinto
sombrio de sua autoria? Ele poderia estar entre tantas pessoas que ela
conhecera até agora. Ou ele não poderia ser nenhum deles.
Uma coisa estava clara: Celine terminou de esperar que ele desse o
próximo passo.
A frustração apertou sua garganta, o calor da raiva quase imperceptível
esquentando sua pele. Sua determinação endureceu ainda mais. Ela atrairia o
assassino em uma armadilha na noite do baile de máscaras, quando ele
acreditava que ela estava preocupada por causa da bebida. Ela pareceria se
entregar às festividades da festa e depois deixaria o baile para passear
sozinha pelo bairro, exatamente como na primeira noite em que o assassino a
seguira, há apenas quinze dias.
O demônio não saberia que os membros da Corte estariam espreitando nas
proximidades em um círculo cada vez mais apertado, esperando que ele se
revelasse. Para ele finalmente dar um passo em falso.
E se não funcionasse?
Celine simplesmente colocaria a armadilha novamente em um local e hora
diferentes.
Talvez fosse ridículo pensar que ela poderia superar um vilão como ele.
Mas pelo menos era alguma coisa .
Ao lado de seus pés, os raios de sol se estendiam longos e magros quando
o crepúsculo começou a descer em Nova Orleans, o céu pegando fogo ao
longo do horizonte. Celine bufou, o eco desenrolando-se nos tetos de gesso.
— Que perda de tempo, — ela murmurou para ninguém. Impediu-se de
chutar a esquina da mesa desordenadamente arrumada de Michael, como uma
criança a quem fora negada um doce. Havia tantas outras coisas que ela
poderia estar fazendo. Deveria estar fazendo. O olhar dela caiu sobre a saia
do vestido de baile de Odette, espalhado sobre a ponta da cama raquítica.
Durante várias horas naquela manhã, Celine havia trabalhado para
perseverar e dar os retoques finais nele. O baile de máscaras estava a
apenas dois dias, e ela ainda precisava de tempo para completar seu próprio
traje. Mas as agulhas haviam caído de seus dedos trêmulos, seus nervos
desgastados pelos eventos da noite anterior. Não importava o que Celine
fizesse, ela não conseguia silenciar o tumulto de seus pensamentos.
Passos militantes dobraram a esquina logo depois da porta trancada.
Celine ouviu, olhando para o relógio para verificar – mais uma vez – a hora
em que os guardas patrulhavam os corredores do lado de fora do escritório
do detetive Grimaldi.
Ficar em quarentena como um paciente de cólera foi um desperdício de
horas preciosas em muitos aspectos, mas pelo menos ajudou Celine a reunir
as informações necessárias para o empreendimento de hoje à noite:
Uma fuga da meia-noite da prisão.
Por sua conta, os guardas patrulhavam o impressionante edifício de tijolos
ao lado da Catedral de Saint Louis a cada quinze minutos. Em incrementos a
cada duas horas, alguém batia na porta do escritório de Michael para
verificar Celine ou entregar algo para ela comer.
Se ela quisesse atender às suas necessidades físicas, um oficial
estacionado perto da curva mais próxima do salão estaria lá para garantir
que ela retornasse ao escritório de Michael imediatamente.
O próprio Michael viera duas vezes para vê-la desde o amanhecer.
Como prometido, Celine foi bem atendida. Seria realmente uma tarefa
difícil para qualquer intruso passar pelo impressionante esquadrão de
guardas que cercava o prédio, subir as escadas sinuosas até o terceiro andar
e entrar em uma série de corredores, patrulhados como sempre a todas as
horas.
Mas ela apostaria que nenhum deles considerou se Celine gostaria de sair
dessa prisão improvisada.
Claro que era selvagem e irresponsável tentar uma coisa dessas.
Infelizmente, Celine suspeitava que, se ela sequer pedisse para deixar o
local, o próprio Michael estaria lá para monitorar todos os seus movimentos.
Além disso, Celine não achou que ele receberia de forma agradável o
pedido dela para se encontrar com qualquer membro da La Cour des Lions
na sede da polícia, quanto mais Bastien.
Merde, ela pensou consigo mesma. Eu nunca deveria ter lhe contado
nada, muito menos meu plano de me usar como isca.
Celine fungou. Era irritante para ela ser algemada a um lugar dessa
maneira, como uma princesa mantida em uma torre, esperando um cavaleiro
branco. Ela não era uma completa tola, afinal. Nenhum risco indevido seria
assumido esta noite. Em todos os momentos, a adaga de prata sólida de
Bastien estaria por perto. E ela não tinha intenção de vagar além do alcance
da sede da polícia. Em vez disso, esperaria Bastien no coração da Jackson
Square, nem um minuto antes da meia-noite, a menos de quarenta passos das
portas da frente da catedral.
Que tipo de assassino tolo tentaria derrubá-la a poucos passos de uma
guarnição de policiais armados?
Vários passos se aproximaram da porta, parando do lado de fora. Um
punho bateu levemente em sua superfície de carvalho em três batidas
sucessivas. Então esperou um pouco antes de bater quatro vezes mais.
O sinal de Michael que planejara transmitir que estava do lado de fora e
que tudo estava bem.
Celine abriu a porta e encontrou o jovem detetive parado ali, uma
tempestade se formando em seus olhos incolores. Por cima do ombro,
pairava um homem alegre e gigante carregando uma cesta incongruentemente
pequena e uma mulher curvada com um xale de lã pendurado nos ombros e
um prato coberto entre as palmas das mãos enrugadas.
A mulher idosa espiou além de Michael com uma expressão irônica. —
Afaste-se, caro. — Seu sotaque era marcado com r's e vogais ricamente
arredondadas. — E não se esqueça de me apresentar. — Um brilho brilhou
em seu olhar atento.
Quando Michael não conseguiu atravessar o limiar ou pronunciar uma
única palavra, a mulher idosa lhe deu uma cotovelada divertida, o bruto
iminente rindo baixinho, o som como o latido de um cão grande.
Com um suspiro cansado do mundo, Michael os seguiu até seu escritório,
seus movimentos descaracterizadamene estranhos.
— Nonna, esta é a senhorita Celine Rousseau de Paris. — Ele fez uma
pausa. — Rousseau, gostaria de apresentá-la à minha avó.
Os olhos de Celine se arregalaram. Ela ficou ereta enquanto guardava a
carta de Bastien no bolso de sua saia.
— É um prazer conhecê-la, madame Gri...
— Nada disso. Me chame de Nonna. — O sorriso dela enrugou todas as
linhas da testa, o efeito mais calmante do que uma caneca de chá quente. Ela
passou por Celine. — Trouxe um pouco de ribollita. — Com um ruído,
Nonna pousou o prato coberto na mesa de Michael.
— É uma sopa que minha mãe me ensinou a fazer quando eu era criança.
Veja bem, eu era um pouco encrenqueira na minha juventude. — Ela fez
pequenos círculos com as mãos, seus gestos pontuando suas palavras. —
Sempre destruindo coisas e entrando em travessuras. Então minha mãe me
dava pão velho para rasgar em pedaços, então esperávamos até que
absorvessem o delicioso caldo antes de fazer um banquete! Você já comeu
ribollita? — ela perguntou a Celine enquanto acenava sua imensa escolta
para mais perto, seus passos diminuindo, como se ele tivesse sofrido uma
lesão recente.
— Não, senhora. — Celine sorriu, um calor afeiçoado no estômago.
— Você vai adorar. — Nonna sorriu. Toda vez que ela se mexia, o cheiro
de canela e sálvia inundava o ar. — Luca, per favore, onde estão as tigelas?
— Ela se virou para o gigante alegre, com uma expressão severa no rosto.
— E, Michael, por que você está parado ali como se tivesse sido atingido
por um raio? Muoviti! — Ela jogou as mãos para o lado, afastando-o.
Pela primeira vez desde que Celine conheceu Michael, ela vislumbrou um
olhar de total perplexidade no rosto dele. Ele começou a dar um passo à
frente, depois parou, limpando a garganta e ajustando as barras das mangas.
Apesar de tudo, uma bolha de risada sombria ameaçou irromper pelos
lábios de Celine. A diminuta avó de Michael havia arrancado o proverbial
tapete debaixo de seus pés, e Celine aproveitou cada segundo de vê-lo
tropeçar.
Nonna continuou:
— Só posso imaginar o quão pouco meu neto pensou em fornecer-lhe
comida adequada, já que ele mesmo se esquece de comer. — Ela girou, o
xale caindo de um ombro. — Deixe-me olhar para você. — Sem aviso, ela
agarrou Celine pelo queixo, virando o rosto para lá e para cá. — Bella,
bella, bella, — ela murmurou. — Onde você conseguiu esses olhos e essas
maçãs do rosto, cara?
— Minha mãe.
— Óbvio, — Nonna disse, assentindo. — Sua mãe deve ter sido linda. —
Ela piscou para o homem que chamara de Luca. — Não é diferente de mim
no meu apogeu.
Luca riu, o som dançando na sala mal iluminada enquanto ele avançava.
— Como meu primo está claramente atado à língua, terei que me desculpar
por ele e fazer minha própria apresentação. — Ele mergulhou a cabeça em
um pequeno arco. — Luca Grimaldi, ao seu serviço. — Quando ele sorriu
para ela, Celine notou a semelhança na linha de sua mandíbula e ao longo de
sua testa despenteada. Mas, em vez de lhe emprestar a aparência acadêmica
de Michael, em Luca o deixava com aparência bastante robusta. Como um
homem que trabalhou com as mãos ao ar livre por longos períodos de tempo.
Seus olhos lembraram a cor de chocolate derretido e – quando ele pegou a
mão de Celine para dar um beijo educado – a solidez de seu aperto a fez se
sentir ainda mais à vontade.
Celine sorriu para ele, maravilhada com a sua altura. — É um prazer
conhecê-lo, Luca.
— Pegue uma cadeira para a jovem, caro — Nonna repreendeu Michael
enquanto colocava a sopa saudável em pequenas tigelas que ela retirou da
cesta de Luca. Celine se aproximou para ajudar, mas foi escovada para um
lado sem preâmbulos. — Não, não. Você é nossa convidada aqui. — Nonna
entregou uma tigela a Celine, e a ribollita fumegante esquentou as palmas de
Celine, serpenteando em direção ao coração. Uma vibração estranha tomou
forma em seu peito. Ela não conseguia se lembrar da última vez que alguém
preparou algo especialmente para ela, com as próprias mãos. Em casa, em
Paris, ela havia cozinhado a maior parte do tempo. E Celine nunca conheceu
suas avós.
Ela limpou a garganta.
— Obrigado, Nonna.
— Claro. — Nonna serviu tigelas de sopa para Michael e Luca. — Sente-
se, sente-se, antes que a comida fuja de você. — Ela bufou. — Você pode
acreditar que meu neto não queria que eu viesse aqui hoje? — Nonna disse
enquanto todos se reuniam ao redor da mesa de Michael para uma refeição
improvisada de ribollita. — Ele protestou com mais fervor. Então é claro
que eu fiz Luca me trazer. — Ela afastou um cacho de prata. — Embora as
circunstâncias não sejam ideais, eu estava ansiosa para conhecê-la, querida
Celine. — Os olhos dela brilharam. — Michael fala bem de você.
— O tempo todo, — Luca acrescentou em um tom de provocação.
O olhar de Michael penetrou no crânio de seu primo com a precisão de
uma lança.
— Cristo Todo Poderoso, deixe isso acabar logo, — ele resmungou
enquanto mexia sua sopa lentamente, suas feições sombrias.
Mais rápido que um raio, Nonna bateu na parte de trás de sua cabeça.
— Non pronunciare il nome del Signore invano, Michael Antonio
Grimaldi! Não pronuncie o nome do Senhor em vão!
Michael fechou os olhos e cerrou os dentes, enquanto Nonna continuava
comendo como se nada tivesse acontecido. Como se ela não tivesse acabado
de atacar o principal detetive da polícia de Nova Orleans por ousar falar o
nome do Senhor em vão.
Os lábios de Celine se contraíram. Ela tossiu. Então bufou da maneira
mais desagradável.
— Sinto muito. — Ela limpou a garganta.
— Pelo quê? — Luca perguntou, sua pergunta tingida de diversão.
— Que eu não posso assistir isso acontecer repetidamente na minha
cabeça.
Luca gruniu, um punho carnudo batendo contra a mesa, empurrando a sopa
de Celine.
— Ela vai se sair bem, primo. — Ele gruniu mais uma vez. À sua
esquerda, Nonna riu, seus ombros esbeltos tremendo de tanto rir.
— Suponho que não importa que ninguém tenha perguntado sua opinião, —
respondeu Michael, cortando friamente as palavras.
— Nem um pouco. — Luca bebeu sua sopa e se inclinou na direção de
Celine. — Eu contaria histórias terríveis sobre ele, mas temo que já
tenhamos pressionado meu primo longe demais, aparecendo em sua porta
sem sermos anunciados.
Celine curvou uma sobrancelha.
— Ele era tão desafiador quando criança como eu suspeito? Muitas
perguntas honestas e respostas presunçosas?
— Pior. Da próxima vez, vou contar sobre seu quinto aniversário, quando
ele me esfaqueou na lateral do pescoço com um lápis recém-afiado. — Ele
se inclinou para mais perto. — Ainda carrego a cicatriz aqui. — Luca
apontou para um pequeno ponto escuro logo abaixo da orelha esquerda.
Celine tremeu, encantada por sentir a ira de Michael quente ao seu lado.
— Basta, Luca, — Nonna ordenou. — Você mereceu por quebrar os outros
lápis dele como fez, e acho que Michael sofreu o suficiente por uma noite.
Vamos falar de coisas agradáveis. — Sua colher caiu na tigela. — Como
quando você planeja trazer aquela jovem para me ver. Aquela que continua
escrevendo essas lindas cartas para você. Está na hora de conhecê-la. Você
sabe que não estou ficando mais jovem, Luca Grimaldi.
Luca gargalhou, engasgando com a boca cheia de ribollita. — Eu pensei
que você queria que discutíssemos assuntos agradáveis, Nonna.
— Ela quis dizer agradável para si mesma, — Michael interrompeu.
Nonna murmurou.
— Vou recorrer a todas as maneiras de vergonha, se isso significa que eu
vou segurar meus bisnetos antes de morrer.
— E você, Michael? — Luca olhou para o primo com um sorriso
diabólico. — Você não me disse apenas na semana passada que uma jovem
chamou sua atenção?
Celine esperava que Michael olhasse para seu primo musculoso em
resposta. Mas ele mal olhou para Luca com um olhar de irritação
incontrolável.
— Quem chamou sua atenção? — Nonna exigiu, sua indignação claramente
fingida. Muito dramático para ser real. — E por que só estou sabendo disso
agora? — Sua mão minúscula bateu na borda da mesa. — Rispondetemi.
Responda me.
Luca riu baixinho, cruzando os braços e recostando-se na cadeira enquanto
Celine olhava para a tigela de sopa, rezando para que alguém mudasse de
assunto.
Michael limpou a boca com um lenço de linho, suas palavras medidas.
— Eu não te contei sobre ela, porque ainda estou tentando provar que sou
digna de sua atenção. — Ele nivelou o olhar para o relógio ao longo da
parede com um olhar determinado.
Celine se absteve de se contorcer na cadeira.
— Qualquer jovem que não consiga ver como você é um homem
maravilhoso deve ser tola, — disse Nonna, apontando suas palavras. — Meu
Michael sempre foi o garoto mais inteligente da sala. Tão trabalhador. E
mais bonito do que qualquer rapaz tem o direito de ser.
A cor subiu no pescoço de Celine com ferocidade desenfreada. Uma parte
dela queria dizer algo para atrapalhar o curso da conversa, mas ela não tinha
as palavras certas. Não importava o que ela dissesse ou como dissesse, ela
certamente ofenderia alguém.
E a família de Michael tinha sido tão gentil com ela. Mais amável do que
ela merecia.
— Ela não é boba, — disse Michael com muito cuidado. — Longe disso,
na verdade. Ela é esperta e perspicaz. Observa detalhes que outras pessoas
perderiam. Apesar de suas próprias dificuldades, ela consegue ser carinhosa
e altruísta. Além disso, ela se recusa a se curvar ao altar de dinheiro, —
continuou ele. — Mas ela é teimosa e um pouco distraída.
A mandíbula de Celine quase caiu. Ela nunca tinha ouvido Michael falar
de alguém tão bem, muito menos dela.
— Bem, você simplesmente terá que fazê-la se concentrar, — disse Nonna,
o lado da mão cortando a mesa como se fosse uma faca. — Mostre seus
encantos para ela.
Luca riu.
— Seus encantos? Nenhuma jovem quer ser inundada de fatos inúteis ou
forçada a lidar com colarinhos engomados e horas de trabalho ímpias. —
Ele desviou a atenção para Celine, sua expressão perspicaz. — Você tem
alguma sugestão para meu primo, senhorita Rousseau?
— Pardon? — Celine sentou-se ereta, sua colher balançando na mesa, o
delicioso caldo espirrando em seu rastro.
— Você é uma jovem mulher, — Luca pressionou. — O que um jovem
precisa fazer para chamar sua atenção?
A estranheza de seu pedido quase derrubou Celine. Apenas o idiota mais
tolo não conseguiria ver o que Luca e Nonna estavam tentando fazer. Quando
ela olhou na direção de Michael, ele parecia tão desconfortável quanto ela.
— Talvez — Celine firmou o tom — a detetive Grimaldi deveria começar
com um poema?
— Você ouviu isso, Michael? — Luca apoiou os cotovelos ao longo da
mesa, uma faísca ansiosa em seus olhos de chocolate. — Você deve enviar
um poema para a jovem.
Michael considerou a sugestão de seu primo, como se nada fosse estranho
nessa conversa. Então ele se virou para Celine, observando-a atentamente
enquanto ele falava.
— Sou parcial com Blake. Ou talvez Byron?
Celine engoliu em seco.
— Eu sou a favor de Shakespeare, embora eu aprecie Blake de vez em
quando. — Ela não sabia o que a possuía para dizer isso. Talvez fossem os
elogios de Michael ainda ecoando em seus ouvidos. Mas mesmo que ele
recitasse seu soneto favorito de memória, isso não daria vida a um
sentimento que ela não tinha por ele. O que ela sentia por Bastien ainda não
era amor, mas era... alguma coisa. Um sentimento que Celine não podia mais
ignorar.
— Shakespeare. — Michael assentiu uma vez, sua sobrancelha firme. —
Vale a tentativa.
MIL PEQUENOS CORTES

A gora era sua chance.


Os passos arrancados do lado de fora do escritório de Michael
desapareceram quando eles dobraram a esquina. Se Celine se apressasse,
poderia esgueirar-se pelo corredor e sair.
O relógio na parede começou a tocar, tocando a hora da meia-noite em
tons doces.
Um. Dois. Três.
Com uma respiração firme, Celine tirou os sapatos. Destrancou a porta.
Torceu o botão.
Sete. Oito.
Ela deslizou pelo corredor, tomando cuidado para andar com os dedos dos
pés. Quando o guarda postado perto do necessário olhou em sua direção, ela
se abaixou por uma porta aberta, com os olhos abertos pelo momento em que
ele se virou.
Uma carga de batalha percorrendo suas veias, Celine voou pelos degraus
sombreados, com cuidado para parar em cada patamar, garantindo que
nenhuma alma estivesse à vista.
No momento em que alcançou o térreo, olhou de relance para o sargento
corpulento que ocupava a recepção. Observou enquanto ele tomava um gole
de café em uma caneca manchada. O ouviu tossir e pigarrear antes de
derramar um pouco de uísque na xícara.
Com um pequeno sorriso, Celine rastejou pela parede até chegar a uma
porta lateral trancada. Tomando muito cuidado para destrancar a fechadura
de latão sem sequer um suspiro de metal, ela deslizou pela abertura e entrou
na noite. Mais uma vez, ela esperou debaixo de um beiral, à procura de
olhares espreitadores. Triunfando em seu rosto, ela deu um passo no caminho
escuro, seus ouvidos cheios com o som de insetos chilrear e seus olhos fixos
na extensão elegante de palmitos de serra em frente à Catedral de Saint
Louis.
— Marceline.
A voz em suas costas era baixa. Acentuado. Ameaçador. No entanto,
assustou Celine em sua essência. Fazia meses desde que ela ouvira seu nome
completo ser dito em voz alta.
Embora ela não reconhecesse a voz de imediato, seu dono pronunciou as
três sílabas com um objetivo inconfundível. Como se soubesse como ela
tomou seu chá, bem como a última ocasião em que rezou para alguém por
qualquer coisa.
Celine congelou no meio do caminho, seu coração galopando através do
peito como um cavalo assustado.
— N'aie pas peur. Não tenha medo. — a voz tranquilizou atrás dela, seu
barítono rico e claro. — Eu não estou aqui para prejudicá-la.
Por um instante precipitado, Celine pensou em correr. Mas algo lhe disse
que ela não iria longe. Os pêlos finos de seu pescoço estavam arrepiados,
como se ela tivesse sido avistada através das lentes de um rifle, os olhos a
cercando por todos os lados. Embora seus dedos tremessem, Celine
conseguiu desembainhar a adaga de prata de Bastien antes de girar em um
salto.
De uma queda de sombra próxima surgiu um cavalheiro esbelto, vestindo
uma cartola feltrada e um terno de azul mais escuro. A bengala na mão
esquerda era coroada por um leão de ouro maciço, o relógio de bolso feito
de brilhantes lingotes espanhóis. Quando ele tirou o chapéu, Celine abafou
um suspiro.
Ela reconheceu esse homem.
Era o jovem na pintura estranhamente colorida acima da lareira na suíte do
Dumaine.
Aquele que a assombrava além da cama de dossel.
Ele olhou para ela, sua expressão serena e calma. Então, um sorriso lento
se desenrolou em seu rosto culto. Isso a assustou, pois era como assistir a
uma estátua ganhar vida. Um segundo, sua expressão parecia imóvel e suave,
como se afiada pela mão de um mestre. No segundo seguinte tudo suavizou,
fazendo-o parecer quase humano.
Quase.
Como Arjun e Odette e todos os outros membros da Corte, este homem não
era inteiramente humano. Celine apostaria sua vida nisso.
Ela não disse nada enquanto ele a avaliava em silêncio. Apesar da
descrença que a atravessava, Celine soube rapidamente quem ele era. Quem
ele deve ser.
Tio de Bastien. Le Comte de Saint Germain. O Conde de Saint Germain
Sem nada a fazer senão devolver seu estudo inabalável, Celine vasculhou
seus traços em busca de similaridades, como se isso a acalmasse.
O conde olhou para ela com a mesma precisão exigente que seu sobrinho,
a linha de sua mandíbula não menos cortante. Sua testa era tão escura e
expressiva quanto a de Bastien, o tom de sua pele vários tons mais claros.
Celine respirou fundo o ar quente da noite. O conde não devia ter sido
mais do que um menino quando assumiu a tarefa de criar o sobrinho. A
pintura na suíte do Dumaine poderia ter sido concluída ontem, pois o tio de
Bastien não parecia ter mais de vinte e cinco dias.
Impossível.
— Eu sou Nicodemus Saint Germain. — ele interrompeu seus
pensamentos. Seu sotaque era difícil de colocar, embora suas palavras
fossem líricas e precisas, como se ele tivesse sido um elocucionista em uma
vida passada. Quando ele mudou para o brilho fraco de um poste distante,
uma corrente de medo perseguiu a pele de Celine.
Até a maneira como ele se moveu a pegou desprevenida. Como se ele
estivesse com fumaça. Ou deliberadamente se movendo mais devagar que o
normal, como faria com um animal encurralado.
Por instinto, Celine levantou a lâmina de prata na mão, como se quisesse
afastá-lo.
Uma brisa soprou por ela, chocando-a ainda, agitando as mechas soltas de
seus cabelos e a bainha de sua saia enrugada. Antes que Celine pudesse
piscar, uma figura entrou em foco. Um segundo, nada estava lá, exceto um
redemoinho de escuridão. A respiração seguinte, um homem estava em seu
lugar, totalmente formado. Como se ele sempre estivesse lá, um espectro
vigilante.
Jae. O membro da Corte, Bastien disse que eliminou o peso morto.
O que isso significava?
O jovem gracioso do Extremo Oriente demorou entre Celine e o conde,
com lâminas curtas nas duas mãos. Quando ele girou uma adaga entre os
dedos, Celine viu algo que ela havia perdido antes: inúmeras cicatrizes
minúsculas nas costas das mãos, as marcas levantadas e levemente brancas.
O olhar dela subiu para observar as mesmas cicatrizes no lado do pescoço
dele, chegando logo acima do colarinho engomado. Não parecia haver um
design para as marcações, pois elas haviam sido cortadas aleatoriamente,
algumas delas cruzadas, todas dolorosas de se ver.
— Na China antiga, — Nicodemus Saint Germain começou em tom de
conversa. — houve um tempo em que a pena de morte era infligida por um
meio conhecido como lingchi, ou a morte de mil cortes.
Celine encolheu um passo para trás. Então ficou em pé, determinada a
manter-se firme, apesar do fato de que todas as fibras de seu corpo queriam
que ela fugisse.
— Jaehyuk foi pego alguns anos atrás em uma missão em Hunan. —
continuou Nicodemus. — Ele mal escapou com vida. Sou grato todos os dias
que ele está ao nosso lado.
Jae olhou para o nada, sem piscar e sem respirar, como se não tivesse
vontade de fingir nem uma aparência de humanidade.
— Eu prezo a lealdade acima da maioria das coisas, — disse o conde. —
E Shin Jaehyuk possui essa qualidade em espadas.
Inspirando para acalmar seus nervos, Celine disse:
— Monsieur le Comte, não tenho certeza do que...
— Sébastien não é para você, senhorita Rousseau. — Jae interrompeu, sua
voz não mais que um sussurro. — Cuide-se com seu coração... e sua vida.
O primeiro corte.
A indignação tomou forma no peito de Celine. Ela abriu a boca para
responder quando um barulho ressoou da escuridão em suas costas. O
barulho de passos se aproximando. Ela lutou contra o desejo de estremecer
no instante em que um par de figuras esguias passavam por ela.
As duas jovens com anéis inesquecíveis. À luz das estrelas, suas gemas
brilhavam como fogo, sua pele brilhante e escura, suas saias de seda
imaculadas.
O tio de Bastien observou Celine quando elas passaram. — Madeleine de
Morny é a tática mais talentosa que já encontrei na minha vida, uma rival do
próprio Napoleão. A irmã mais nova, Hortense, canta como um pássaro
canoro e dança como o vento. — O conde se apoiou na bengala, segurando o
leão na palma da mão. — Mas, acima de tudo, prezo a sinceridade deles.
Madeleine é sincera em relação a uma falha e Hortense é incapaz de enganar.
Celine mordeu o interior da bochecha quando as duas mulheres pararam na
mão direita do conde.
Madeleine de Morny olhou para Celine sem pestanejar.
— Bastien est trop dangereux pour la santé. Bastien é muito perigoso. —
alertou ela. — Seja mais esperta do que isso, mademoiselle.
Um sorriso malicioso se desenrolou no rosto de Hortense.
— À moins que vous souhaitiez jouer à l'imbecile. A menos que você
queira pagar de tola.
Corte dois e três.
Outra rajada de vento soprou das costas de Jae, percorrendo seus longos
cabelos negros.
Assobiando nas sombras, Boone caminhou em direção a eles, as mãos nos
bolsos, os cachos querubins espalhados pela testa.
— Ah, querida. — ele começou quando encontrou o olhar de Celine. — Eu
esperava que não chegasse a isso.
— Deixe-me adivinhar, — disse Celine. — Você está aqui para me dizer
para ficar longe de Bastien.
Uma expressão triste atravessou seu rosto.
— Eu evitaria se pudesse. Eu gosto de você, Celine Rousseau. Você irrita
muito Bastien. Aposto que você cortou seus dentes. — Ele sorriu, então suas
feições azedaram ao mesmo tempo. — Mas acabamos de perder Nigel. Não
podemos nos dar ao luxo de perder mais ninguém.
— Um ponto excelente, monsieur Ravenel. A perda de um entre nós é
realmente um golpe angustiante. — concordou o conde em tom suave. —
Como sempre, agradeço seu apoio e sua sabedoria. — Mais uma vez ele
voltou sua atenção para Celine.
O quarto corte.
Apesar de sua crescente irritação, Celine sentiu-se começar a se enrolar
para dentro, o medo ameaçando superar todo o resto. No instante seguinte,
ela se forçou a se reunir.
Canalizar a deusa Selene, que dominava o céu noturno e todas as suas
inúmeras estrelas.
— Monsieur le Comte, ouvi falar muito de você nas últimas semanas. É um
prazer finalmente conhecê-lo. — Embora Celine tentasse ao máximo não
parecer atrevida, ela sabia que havia falhado no momento em que Boone
bufou e Hortense gargalhou.
— Comme une reine des ténèbres. Como uma rainha das trevas. —
Hortense repetiu suas palavras daquela noite na casa de Jacques, diversão
entrelaçada em seus traços.
Celine quase riu do absurdo. Se ela era rainha de alguma coisa, era Maria
Antonieta, a caminho de encontrar a guilhotina.
Para seu crédito, o conde apenas sorriu, seus olhos âmbar brilhando.
— É um prazer fazer a sua, ma chérie.
Em um mundo ideal, Celine deveria estar se esforçando para encantar o tio
de Bastien.
Mas essa chance havia desaparecido como fumaça ao vento. Afinal,
apenas um tolo tentaria encantar um homem cuja primeira inclinação era
ameaçá-la.
Nicodemus Saint Germain, sem dúvida, conseguiu assustar Celine com
esse show de bravata. Mas ela não tinha intenção de se encolher na sombra
dele.
— Não quero ser desrespeitosa, monsieur le Comte, mas você alega ser
sincero, por isso afirmo que não há necessidade de comentar seu ponto de
vista. — Ela olhou de relance para a comitiva. — Está claro que você não
me acha uma companheira adequada para o seu sobrinho. Mas, para ser
justo, você sabe muito pouco sobre mim.
— Pelo contrário, sei muito de você, Marceline Béatrice Rousseau.
Novamente, seu nome completo ecoou em seus ouvidos, o som subindo
acima das copas das árvores. E novamente seu coração disparou atrás das
costelas em resposta.
Uma risada suave caiu dos lábios do conde, como se ele pudesse sentir o
medo crescente dela.
— Até recentemente, você residia com seu pai acadêmico no terceiro
andar de um pequeno apartamento em Montmartre. — Ele deu outro passo à
frente. Celine não pôde evitar quando recuou em conjunto. Seu corpo fez a
escolha antes que ela pudesse argumentar.
Nicodemus continuou:
— E trabalhou sob a tutela da famosa Camille de Beauharnais. — Ele fez
uma pausa com um significado. — No andar superior de seu ateliê... sob um
laço de lustres brilhantes.
O baque do coração de Celine arranhou sua garganta.
Ele sabe. Suas preocupações invadiram sua mente. Ele sabe.
As duas palavras correram através de seu cérebro no ritmo de seu pulso.
Ela lutou para manter a compostura, os dedos segurando a adaga de prata, as
unhas cravando as palmas das mãos a ponto de sentir dor.
— Está claro que você aprendeu muito sobre o meu passado, monsieur.
Você obviamente tem ótimos recursos à sua disposição. Mas esses detalhes
não informam necessariamente o meu presente.
O sorriso de Nicodemus foi punitivo.
— Ouvi dizer que você também gosta de ser imprudente. Se aventurar em
lugares onde você foi proibida. Mentindo entre os dentes e desrespeitando as
regras.
Cor inundou as bochechas de Celine.
— A quais regras você se refere?
— As únicas que importam. As minhas. — Sua última palavra foi a ponta
de uma faca nas costas dela.
Celine se recusou a ser intimidada, embora seus joelhos tremessem sob as
saias.
Uma nova emoção passou pelo rosto do conde. Uma que ela não conseguiu
reconhecer.
Enquanto Nicodemus a estudava, uma linha se formou no mármore de sua
testa. No instante seguinte, suavizou-se, desaparecendo de vista.
— Eu admiro sua coragem, Celine. Mais do que tudo que pude aprender
sobre o seu passado, entendo por que meu sobrinho é tão levado com você.
Não são muitas as jovens mulheres que ousariam se conter na presença de
tantas pessoas que poderiam matá-las sem nem pensar duas vezes. — Ele
deu um passo para a frente novamente, no final de sua bengala golpeando os
pavers ao lado de seus pés com uma decisiva paulada. — Quem mataria
você ao meu comando, sem um momento de hesitação.
O tremor tomou conta de Celine. Ela mordeu nada para impedir que
atingisse os dentes.
Não havia nada para ela dizer em resposta. O tio de Bastien acabara de
afirmar de maneira inequívoca que Celine continuava respirando à vontade.
Uma resposta atrevida não serviria para nada aqui. A única coisa que ela
podia fazer era permanecer firme. Recuse-se a ceder ou implorar, embora
seu queixo fique mais apertado a cada segundo que passa, seus músculos
tensos em preparação para lutar ou fugir.
Afinal, Celine Rousseau não era um bezerro miado marcado para abate.
Ela poderia se segurar, se necessário. O garoto que ela matou por ousar
tratá-la como uma coisa conquistada era uma prova desse fato. Seu último
suspiro nesta terra não seria arrependido, disso Celine tinha certeza.
O conde olhou para a noite como se pudesse ler seus pensamentos, sua
postura imóvel.
Uma montanha sob a lua.
— Também ouvi os sussurros de como você não tem medo de derramar
sangue. Mas você deve saber que eu também não tenho escrúpulos em
destruir algo no meu caminho.
— Por que você insiste em me ameaçar, monsieur? — Celine agarrou suas
saias, o cabo da adaga de Bastien esfriou na palma da mão. — O que você
espera alcançar?
Outro lampejo dessa mesma emoção ilegível. Se Celine não soubesse
melhor, teria jurado admiração.
— Não ameaço pessoas, machérie. — disse Nicodemus. — Troco favores.
Se há algo que posso fazer por você, você precisa apenas perguntar.
Celine quase riu. Agora ele estava oferecendo a ela seu bom favor?
Parecia que Bastien havia aprendido os modos de camaleão com o tio.
— Eu não quero o seu dinheiro, monsieur.
— Eu não insultaria você, oferecendo algo tão pouco inspirador quanto
dinheiro.
— Posso perguntar o que você quer em troca de ganhar seu favor?
O conde não hesitou.
— Quero que você rejeite meu sobrinho. Deixe-o de lado. Melhor ainda,
se for para outra pessoa.
Celine piscou.
— Por que você me opõe? — O olhar dela se estreitou. — É a minha falta
de fortuna ou família?
— Como eu disse, não sou tão pouco inspirador. Sua falta de fortuna é
realmente um incômodo, mas não do tipo intransponível, você era adequada
em outros aspectos. — As palavras dele encheram os ouvidos de Celine, a
mortificação zumbindo em seu corpo. — Na verdade, estou mais preocupado
com duas coisas: você é cheio sal demais e já se tornou uma fraqueza. Não
gosto de ver fraqueza no meu sobrinho. Especialmente para algo tão insano
quanto a emoção humana.
Celine escolheu suas próximas palavras com cuidado, ciente de que suas
bochechas começaram a corar.
— Não é uma fraqueza sentir, monsieur. Eu não sou uma fraqueza.
— É uma fraqueza a partir do momento em que os sentimentos de alguém
sobrepõem seu julgamento. E o amor de qualquer tipo é uma arma a ser
usada contra você, quando empunhada pela mão direita.
Uma parte de Celine concordou com ele. Houve muitas vezes na vida em
que ela foi vítima de suas emoções e errou no julgamento como resultado.
Então ela lembrou os fios de esperança aos quais se apegara durante a longa
travessia do Atlântico.
— Você deveria querer que seu sobrinho encontrasse amor, meu senhor.
Quando a vida se torna difícil, a única fonte de força que temos é o amor.
Amor aos outros, amor a si mesmo, amor à vida em sua totalidade.
Nicodemus assentiu.
— E o que é amor, ma chérie, uma escolha ou um sentimento?
Surpresa, levou um momento para Celine responder.
― É... um sentimento. — Ela inclinou a cabeça para cima, aguardando um
tempo enquanto procurava uma resposta melhor. Como se estivesse
esperando por esse momento, a lua emergiu de trás de um banco de nuvens,
cercado por um bando de estrelas. Celine olhou para o conde com
determinação. — O amor está olhando para alguém como se as estrelas
brilhassem em seus olhos.
Ele assentiu novamente.
— Uma noção bonita. Mas você está errada, ma chérie. O amor não é um
sentimento. É uma escolha. Ao contrário da opinião popular, existem muitos
caminhos para a felicidade.
Devo perguntar qual você escolherá, pois o caminho que você está
seguindo agora lhe trará apenas dor. — O conde deu um passo final para
mais perto, até que ele ficou diante dela.
Perto o suficiente para que ela pudesse ver as cores girando em seus olhos
âmbar e sentir o cheiro estranho e gelado que emanava de sua pele. Como
hortelã fosca. — Você não pertence a este mundo, Celine. Pode ser bonita –
até intoxicante – mas a beleza é um perigo de se contemplar, pois muitas
vezes oculta a deterioração que se esconde por baixo. Et ça fini toujours
dans le sang.
E sempre termina em sangue.
— Eu não sou tão cativada pelo belo, monsieur. — Celine encontrou seu
olhar sem vacilar. — Porque eu sei que a beleza é apenas um momento no
tempo.
— Você está certa. — Nicodemus murmurou. Então ele colocou a bengala
diante dele, as duas mãos apoiadas no cabo dourado. — No entanto, devo
enviar os arrependimentos de meu sobrinho. Ele não poderá encontrar você
hoje à noite, como planejado.
— Eu juntei tudo, monsieur le Comte, — disse Celine.
— Não leve a sério, mademoiselle. Meu único objetivo na vida é proteger
meu legado.
Faça o que eu pedi. Rejeite Sébastien. Machuque-o agora para poupar a
ambos uma vida de dor. Se você cumprir meus desejos, concederei qualquer
favor que você pedir. E você descobrirá que não há limites para o meu
alcance em todos os assuntos. — Ele fez uma pausa, a linha estragando sua
testa mais uma vez. — Desafie-me, e você verá que seus piores medos se
tornarão sua realidade. Vou me certificar de que você fique completamente
sozinha, Celine Rousseau. Deixada para enfrentar tudo de que você fugiu,
sem ninguém para culpar além de si mesma.
Suas palavras atingiram Celine como um golpe no rosto. Como se o conde
tivesse espiado sua própria alma e desmascarado seu maior medo de todos.
Ela se encolheu quando uma rajada final de vento precedeu a última chegada.
O que ela estava esperando há algum tempo. Ela se preparou para isso,
sabendo que essa ferida a cortaria rapidamente.
Mas isso não diminuiu o aguilhão. Ela sentiu isso intensamente, como uma
corda estalando em uma harpa, o som ecoando profundamente em seus ossos.
Odette não encontrou o olhar de Celine quando ela se posicionou à
esquerda de Nicodemus. Os ombros dela eram arredondados, as feições
sombrias. Mas ainda assim ela ficou ao lado do tio de Bastien, seus passos
infalíveis.
— Sinto muito, mon amie. — disse Odette, seus olhos de zibelina virados
para baixo. — Você é minha amiga. Mas eles… são minha família.
Com este corte final, o conde desenhou uma linha invisível na areia.
Celine não podia confiar em nenhum membro da Corte. Era ridículo pensar
que a lealdade deles poderia estar com ela. Se Nicodemus ordenasse que a
deixassem à sua sorte – para cuidar de si mesma, independentemente das
circunstâncias – eles fariam o que ele pedisse.
Michael já havia se recusado a usar Celine como isca. Se Nicodemus
impedisse Bastien de ajudar Celine, ela estaria completamente sozinha,
como o conde prometera.
Com um assassino à espreita à sua sombra.
Talvez eu recorra a orar mais uma vez. Seus pensamentos ficaram
sombrios. No banco principal da Catedral de Saint Louis, onde todos os
melhores pecadores se refugiam.
A consciência percorreu seus membros.
Venha comigo para o coração de Chartres.
Conhecimento acendeu dentro de Celine, sua luz fria subindo por suas
veias. Ela sabia onde montar sua armadilha. E o diabo que a leve se ela
espera que um garoto desafie sua família antes que ela faça planos. Ela faria
como sempre: o que precisava ser feito. Em Paris, Celine Rousseau havia
abatido seu agressor no auge, sem ninguém para depender, a não ser ela
mesma. Ela viajou metade do mundo para começar uma nova vida, sem uma
única promessa em seu horizonte.
E ninguém – humano ou demônio – ficaria no seu caminho agora.
HIVER, 1872
PRAÇA JACKSON
NOVA ORLEANS, LOUISIANA

Eu acredito que esta noite terminará em sangue


e só eu sei para quem.

Talvez ela me prenda, com sua


pequena maldade
Mascarar, sua mente inteligente.

Tudo será por nada, pois ela não sabe o que faz..

O amor é prova de que somente o sangue não significa nada.

Sou grato por meu sangue ser mais grosso que o óleo
Et brille plus fort que le soleil (E queima mais que o sol).
BELA QUEDA

C eline viveu e respirou a moda francesa por quase cinco anos.


Em Paris, ela aprendeu a importância da escolha das roupas. Como
isso falava para uma garota, talvez antes que ela pudesse falar por si mesma.
As roupas poderiam abrir portas com tanta certeza quanto fechá-las. Em um
nível prático, a maneira como uma jovem escolheu se vestir indicava não
apenas sua posição na vida, mas para onde ela queria ir.
Havia uma arte em se vestir. De todas as razões para amar a moda, Celine
se apaixonou mais por essa. A idéia de que ela poderia armar seu corpo em
cores para combinar com sua alma. Como um vestido simples poderia
transmitir suas esperanças, medos e sonhos. Como pedaços de seda podiam
ser moldados em armaduras nas mãos da pessoa certa.
Esse foi o espírito que inspirou Celine a criar o vestido que ela usava
agora. Era completamente inadequado para o evento em questão, mas
perfeito em todos os outros aspectos. Os trajes de batalha de uma deusa
lunar. Ou talvez uma homenagem a uma rainha das trevas.
Celine sorriu para si mesma. Às vezes, uma garota deve fazer sua própria
mágica.
Ela encheu seus pulmões com o ar sensual de uma noite quente. Os últimos
chuveiros da tarde terminaram pouco antes do sol se pôr no horizonte. Todas
as ruas lotadas de Nova Orleans brilhavam como prata recém polida, o ar
com cheiro de ferro e fumaça. Sua bainha varreu uma piscina de água
espelhada, o tafetá preto sussurrando em seu rastro.
Logo depois do arco da entrada principal do salão de baile de Orléans,
Celine parou no meio do caminho. Por um instante, ela imaginou que era o
local exato em que o próprio marquês de Lafayette já estivera.
Embora fosse improvável, ele teria chegado a uma festa duas horas
atrasado.
Celine precisava do tempo. Ela passou a maior parte de suas horas
acordada na sede da polícia, terminando sua fantasia. Ontem ela conseguiu
completar o conjunto de Odette. Ela até tentou entregar as roupas na casa de
Jacques, apenas para ser rejeitada na porta pelo mesmo indivíduo de cabelos
de Ticiano que ocupava o elevador no Dumaine. Depois de confiscar suas
encomendas e pagar integralmente, Ifan afastou Celine e os policiais de sua
companhia, com um sorriso de escárnio satisfeito. Conseqüentemente, lhe foi
negada a oportunidade de ver Bastien ou fazer um ajuste final em Odette. Seu
primeiro vislumbre da roupa pronta – uma ousada gorjeta de chapéu para
Madame du Barry – seria hoje à noite quando ela veria Odette no baile.
Celine esperava que sua amiga se deliciasse com a surpresa, tanto quanto
ela se deliciou ao criá-la.
Desde o amanhecer até o anoitecer, Celine havia se esforçado na
confecção de tafetá preto que usava agora. Tudo começou como um vestido
de luto, o tipo facilmente disponível em qualquer loja de roupas. Ela a
desmontou e juntou novamente em um aceno para a silhueta barroca. Dentro
das saias do vestido, ela incorporara o primeiro conjunto de aros largos que
o carpinteiro da Rue Bienville havia feito.
O efeito geral não foi perfeito. Talvez se tivesse tido mais tempo, Celine
teria acrescentado mais babados. Ela poderia ter aparado a renda preta
pingando das mangas de pagode em algo mais dramático. Mas mesmo em sua
imperfeição, era ela, para o bem ou para o mal. Imprudente, incompleto e
inadequado.
Mas aqui tudo a mesma coisa.
Celine descansou o pé direito no degrau mais baixo, demorando um
momento para endurecer sua coluna.
Sem dúvida, o tio de Bastien estaria presente esta noite, assim como vários
membros da La Cour des Lions. Ainda assim, Celine não tinha certeza se
Bastien estaria presente, logo após a morte de Nigel. O baile de máscaras no
salão de Orléans seria o sarau da temporada de carnaval. Sua ausência seria
notada entre os da sociedade. Isso seria suficiente para garantir sua
presença?
Celine esperava que sim.
Todos os melhores e mais brilhantes de Crescent City certamente
apareceriam. O tema deste ano foi anunciado no final do evento do ano
passado. Doze longos meses de expectativa por uma homenagem às
deslumbrantes cortes de Luís XV e seu filho Louis-Auguste, naquele
vislumbre de pouco tempo antes da Revolução Francesa. Todos os
convidados foram instruídos a vestir-se de branco, da cabeça aos pés.
E aqui Celine estava em nada além de preto, do dominó em seu rosto até as
pontas dos chinelos tingidos... exceto a adaga de prata escondida sob as
saias, é claro. Isso deveria tê-la assustado. Em Paris, teria sido chocante
contemplar uma coisa dessas. Mas Celine não estava mais em Paris. Nem ela
era a mesma garota que fugira do ateliê naquela noite terrível, com as mãos
ensangüentadas, as feições frenéticas. Aquela garota era uma criatura de
memória distante. Uma insegura de seu lugar, os dedos dos pés persistindo
em um degrau que leva ao desconhecido.
Celine subiu as escadas. Esta noite ela não era uma garota com medo de
enfrentar suas escolhas. Ela era uma deusa, criando uma armadilha para
pegar um assassino.
Com os ombros para trás, Celine deslizou por baixo da porta em arco.
Logo depois da entrada, aguardavam dois cavalheiros de libré, usando
perucas em pó e sapatos de fivela, as meias brancas amarradas no joelho,
logo abaixo das calças apertadas.
— Senha. — disse a da esquerda, com os olhos vidrados de tédio.
Celine não vacilou.
— Capetian.
Enquanto o outro guarda abriu as portas pesadas, o homem à esquerda
lançou um olhar interrogativo a Celine. Como se ele quisesse dizer alguma
coisa e não tivesse as palavras certas.
Ela sorriu para si mesma. Essa era a verdade sobre a sociedade adequada.
Eles fizeram todas essas regras, nunca planejando aplicar consequências a si
mesmos. Nunca esperando que nenhuma de suas fileiras se desvie do curso
estabelecido.
Com uma inclinação imperiosa no queixo, Celine virou-se de lado para
acomodar seus aros largos e depois atravessou a porta para o que poderia
ser sua última noite nesta terra.
Foi seu primeiro pensamento quando decidiu refazer um vestido destinado
ao luto. Se essa seria sua última noite entre os vivos, ela queria que fosse a
noite mais gloriosa da memória.
Ela viveria uma noite como Selene, uma Titã que arrastava as trevas com
ela onde quer que fosse.
As contas de jato ao longo de seu corpete cintilaram quando Celine varreu
o teto abobadado do salão de baile, ignorando os olhares de surpresa e
aversão brilhando nas proximidades. Ela ficou maravilhada com os inúmeros
lustres refletidos no mármore polido a seus pés, enchendo a sala com um
brilho amanteigado. Uma corte improvisada havia sido posicionada em torno
de um trono ornamentado, enfeitado com fitas roxas, verdes e douradas. No
centro, havia um cavalheiro barbudo, de vinte e poucos anos, seus
regimentos brancos enfeitados com latão trançado, um sorriso de satisfação
presunçosa percorrendo seus lábios. Celine supôs que ele fosse o convidado
de honra da festa, o grão-duque russo, Alexei Alexandrovich. Em
circunstâncias normais, ela pode ter ficado impressionada com a imponência
dele. Mas hoje à noite ela era uma deusa.
E uma deusa não se preocupava com as brincadeiras dos homens.
Ao redor de Celine, casais flutuavam em círculos deslumbrantes, girando
no familiar tempo triplo de uma valsa. Suas vestes brancas lhes davam a
aparência de nuvens almofadas girando através de um firmamento dourado.
Os melhores da sociedade de Nova Orleans haviam pulverizado suas
perucas e rostos, o aroma suavemente sufocante ao lado dos imensos buquês
de flores de estufa, todos escolhidos por seu tom angelical. Até os garçons
agitados com suas bandejas de champanhe borbulhante, suas bochechas e
lábios corados, marcas negras de beleza afixadas sob seus olhos direitos.
Celine assistiu a melhor dança de Crescent City em suas roupas empoadas,
sentindo seus olhos nela. Os sussurros atrás dos fãs de marfim. Os olhares de
desdém masculino, junto com uma piscada ocasional de aprovação astuta.
Nada disso importava. Esse era um tipo diferente de liberdade da que
Celine ansiava na jornada aqui. Um tipo diferente de poder. A capacidade de
ver através de um belo verniz e apreciar a deterioração abaixo dele.
Agora que tinha experimentado tanto poder, jamais queria voltar ao que
era antes.
O assassino estava escondido entre essas nuvens dançantes? Se estivesse,
Celine tinha certeza de que ele a notaria. Ela estava contando com isso.
Seu olhar se deparou com uma figura do outro lado do caminho. Um jovem
que tinha parado no seu caminho, seus olhos de metal se fixaram nos dela.
Ele estava acima da multidão, com os cabelos pretos cortados contra o couro
cabeludo como Júlio César. A filigrana dourada aparando sua máscara
contrastava com o bronze escuro de sua pele. Seu colete de marfim brilhava
à luz quente das velas, assim como a intrincada dor de cabeça ao redor dos
botões dourados de seu casaco de seda. Ele deu um passo à frente e parou,
as calças de cetim grudadas no tendão do corpo, a cabeça inclinada em
admiração.
Que os céus a perdoassem, mas Bastien era bonito. Perigosamente.
Nas costas dele, havia um punhado de jovens damas, seus cachos de
papilote perfeitos, suas expressões avarentas.
Mas ele tinha olhos para uma garota sozinha.
Um zumbido baixo ecoou nos ouvidos de Celine. Aqueceu por suas veias,
o sangue colorindo suas bochechas. Bastien curvou-se lentamente, um pé na
frente do outro, a mão direita inclinando-se para baixo em homenagem ao
período. Quando ele se levantou mais uma vez, Celine não pôde deixar de
sorrir.
Bastien devolveu o sorriso dela sem hesitar, seus olhos como moedas
cintilantes, uma promessa tácita em seu rosto. Então ele se derreteu na
multidão, despreocupado com aqueles ao seu redor.
Se Alexei Alexandrovich presidia essa corte celestial, então Sébastien
Saint Germain era o príncipe de sua contraparte sombria.
Com esse pensamento, o último medo de Celine se dissipou. Ela sabia que
Bastien a ajudaria a pegar o assassino hoje à noite, desafiando os desejos de
seu tio. Ela estava certa disso. Lúcifer era dela no momento em que ele
retribuiu o sorriso dela.
Isso era amor então?
Se fosse, Celine queria banhar-se nele. Para exaltar esse sentimento de
saber - sem ser dito - que alguém viu ela, em meio a bela decadência. A viu
e ficou ao seu lado, contra o próprio mundo.
No instante seguinte, seus ombros ficaram tensos. Através de uma
despedida no meio da multidão, Celine avistou o perfil inconfundível de
Pippa. Novamente, sua pequena amiga passeava pelo salão de baile no braço
de Phoebus Devereux, em meio ao crème de la crème da sociedade de Nova
Orleans.
Pippa encontrou o olhar de Celine. Então se virou, sua expressão fria.
Embora doesse, Celine estava agradecida. Era melhor para Pippa ficar
brava com ela. A raiva a manteve longe da linha de visão do assassino.
Odette passou por Celine na pista de dança, rindo enquanto passava pelos
braços de Boone, seu manto contornado balançando nos engenhosos cestos.
Quando eles se viraram, Celine notou as calças combinadas que ela
desenhou como uma surpresa, o vestido da fantasia de Odette se dividiu em
seu centro, revelando sua figura enquanto ela girava ao som da música. Seu
broche incrustado de rubis brilhava à luz das velas, preso no meio da
gravata de um cavalheiro. Uma mistura do masculino e do feminino. Uma
representação perfeita de Odette Valmont e Madame du Barry, a cortesã que
ajudou a governar um reino.
Mais uma vez, Celine sorriu para si mesma. Mesmo que Odette nunca
dissesse outra palavra para ela, Celine sabia que sua amiga estava
agradecida.
— Mademoiselle Rousseau. — uma voz familiar anunciada atrás do ombro
direito.
Celine virou-se para encontrar os olhos cor de âmbar de uma figura alta e
mascarada. O dominó preto em seu rosto mudou, obstruindo sua visão. Ela
levou um momento para endireitá-lo, seu pulso batendo através de seu corpo.
— Monsieur le Comte. — ela respondeu com uma reverência, seus nervos
formigando nos dedos.
O tio de Bastien estendeu a mão com luvas brancas.
— Posso ter essa dança? — Um sorriso de conhecimento surgiu em seus
lábios, como se ele fosse a serpente oferecendo a maçã a Eva. Celine
deslizou a mão na dele. No momento seguinte, o mundo ficou turvo ao seu
redor, chamas de velas riscando as bordas de sua visão.
Nicodemus dançou como se tivesse nascido para isso. Para tudo isso. A
riqueza, a devassidão, cada um dos lustres brilhantes. Quando ele os enrolou
na primeira curva – seus passos eram suaves e precisos – Celine fechou os
olhos por um breve instante. Imaginou como seria confiar nela em uma
criatura de outro mundo como essa.
Os olhos dela se abriram. Esse mundo de magia negra poderia intrigar
Celine, mas ela sabia que não devia morder seus frutos.
— Uma escolha ousada. — comentou o conde, observando o modo como
as saias pretas se agitavam ao redor deles, acompanhando a música. — Eu
aprecio jovens mulheres que torceram o nariz na sociedade.
— Todas as evidências em contrário. — O medo não ditaria suas ações
hoje à noite.
— Sébastien deve valorizar sua inteligência afiada.
— Como se costuma dizer, monsieur, — respondeu ela. — O tesouro de
um homem…
Outro sorriso ondulou em seu rosto, seus dentes incrivelmente brancos.
— Touché, ma chérie. Touché.
Eles dançaram em silêncio por um feitiço.
— Você já teve a chance de considerar minha oferta? — Ele perguntou.
— Eu tive. — ela respondeu de maneira igualmente não comprometida.
Algo brilhou nos olhos dourados de Nicodemus.
— Diga-me, mademoiselle Rousseau, você já ouviu falar de um jogo
chamado Shatranj?
Surpreendida pela pergunta estranha, Celine perdeu um passo.
— Receio que não, monsieur le Comte.
— É um jogo de estratégia persa, não muito diferente do xadrez. Diz a
lenda que estava entre os favoritos do famoso contador de histórias
Shahrzad.
Incomodou Celine ao perceber que ele havia roubado a vantagem com uma
pergunta aparentemente inócua.
— Eu joguei xadrez antes, mas não sou proficiente. Meu pai sempre me
deixa vencer.
— Shatranj é um dos precursores do xadrez. Eu ficaria feliz em ensiná-la a
jogar. Seu sorriso era afiado. — Você pode ter certeza de que nunca vou
deixar você vencer.
— Merci, monsieur le Comte. Eu aceito sua oferta generosa... e espero
provar que você está errado em todos os aspectos.
Nicodemus riu, o som saboreando estranhamente a aprovação paterna.
— Se você reservou um tempo para considerar a minha oferta. — ele as
girou no lugar — que pedido você a de mim?
Tanta arrogância. Tanta presunção. Celine fingiu hesitar antes de
responder.
— Depois de muita consideração... Acho que seria melhor eu sair de Nova
Orleans. — Ela não precisava ser proficiente em xadrez ou shatranj para
saber que jogadores talentosos antecipavam os movimentos de seus
oponentes e planejavam de acordo.
O aperto do conde aumentou em sua mão.
— Você deixaria a cidade sem olhar para trás?
— É possível que eu possa ser persuadida. — ela rebateu. — Houve um
momento na semana passada em que desejei poder esquecer tudo e
simplesmente desaparecer.
O conde a considerou por meia volta no salão de baile.
— Se você está dizendo isso sinceramente, eu poderia ajudá-la.
— Tenho certeza de que você ficaria mais do que feliz em me ajudar a
desaparecer, monsieur. — ela brincou.
Sua expressão assumiu uma inclinação pensativa.
— Eu quis dizer que eu poderia ajudá-la a esquecer.
— Você poderia me ajudar... a esquecer?
Nicodemus assentiu uma vez.
— É o trabalho de um momento. Você não sentiria nada, nem causaria
danos permanentes. — Ele falou como se a estivesse convidando para um
piquenique no gramado de sua propriedade rural.
Enervava Celine além das palavras.
— E como você explicaria esse ataque repentino de amnésia?
— Não guardo segredos do meu sobrinho. Sébastien saberia que era sua
escolha. Como tal, ele passaria a respeitá-lo.
Os sons da música diminuíram, os corpos girando ao redor do salão
parando. Com a mente agitada, Celine riu com falso abandono, juntando-se
aos aplausos quando a música chegou ao fim.
O tio de Bastien era um homem com o poder de roubar memórias.
Só o pensamento assustou Celine mais do que qualquer coisa que ele
dissera até agora.
Isso a forçou a mudar de posição, pois se ela mentisse sobre deixar Nova
Orleans, o que o impediria de roubar sua mente com um estalar de dedos?
Além disso, se ela - desaparecesse - depois, nenhuma alma questionaria sua
ausência, dada sua decisão de deixar a cidade. Ela ficaria sozinha e à deriva
mais uma vez.
Não. Seria mais seguro negociar uma maneira de permanecer em Nova
Orleans.
Celine pegou o braço estendido de Nicodemus e caminhou com ele em
direção às margens do salão de baile, tendo tempo para construir um novo
plano.
— Monsieur le Comte, devo me desculpar. Quando eu disse que achava
que a melhor coisa a fazer era deixar a cidade, eu quis dizer isso, pois é a
abordagem mais racional. — Ela fez uma pausa. — No entanto, como você
já apontou, minhas emoções são uma fraqueza. Descobri que passei a amar
Nova Orleans e não desejo ir embora. — Ela estremeceu como se uma onda
de medo tivesse passado entre as omoplatas. — Mas não desejo renunciar a
minhas memórias, nem desejo entrar em batalha com você. Então, eu tenho
uma oferta... se você me permitir ficar.
O conde cruzou as mãos enluvadas diante dele, sua expressão ilegível.
— Você não exigiria que Sébastien escolha entre nós?
— Bastien já perdeu a maior parte de sua família. — disse Celine. — Eu
não gostaria que ele te perdesse. — Ela mordeu o lábio inferior. — Então eu
vou rejeitá-lo, como você pediu.
Nicodemus não disse nada por um tempo.
— E que pedido você tem de mim em troca de rejeitar meu sobrinho?
— Eu tenho três. — Celine esperava que sua ganância o convencesse de
sua sinceridade. — Eu gostaria de um apartamento no quarteirão. Assim
como uma loja de roupas por perto para eu ganhar a vida.
— E o terceiro pedido?
Celine focou em seus olhos cor de âmbar, lutando para transmitir uma
sensação de seriedade.
— Eu quero contar para Bastien, sem nenhum de seus espiões ou capangas
por perto.
— Por que você acha que eu concordaria com um pedido tão sentimental?
— Porque apesar de tudo, você gosta de mim, monsieur le Comte. —
respondeu Celine sem vacilar. — E você ama seu sobrinho. Bastien é sua
fraqueza. Aposto que deve doer para lhe causar pesar.
Outra emoção ilegível cruzou seu rosto, o silêncio se diluindo por várias
respirações.
— Quando você quer contar a Sébastien?
Aqui estava a pergunta mais importante que ele já havia feito. Celine
manteve um efeito direto ao responder.
— Suponho que depende de quanto tempo você deseja que esse assunto
chegue ao fim.
— Hoje à noite, então?
Era exatamente como ela esperava.
— Se quiser, monsieur le Comte.
Nicodemus lançou-lhe um olhar irônico.
— O amor é, de fato, uma fraqueza. — Ele se inclinou em direção à orelha
direita dela. — E eu gosto de você, Marceline Rousseau. Especialmente
quando você faz o que eu quero. — O toque de sua ameaça coçou sua
espinha, enviando aranhas correndo por sua pele.
Celine sorriu para mascarar seu medo.
— Compreendo.
— Sébastien irá encontrá-la no terraço em vinte minutos.
DOIS LADOS DE UMA MESMA MOEDA

O cheiro de flores moribundas passava pelas portas abertas, tecendo em


direção a Celine. Isso a lembrava do vendedor de praliné que ficava
parado na esquina da Rue Bourbon e Rue Toulouse todos os sábados, sinos
de Natal nos pulsos e tornozelos, um cachimbo caseiro pendurado em seus
lábios. Sob a luz da lua, a balaustrada de travertino na ponta dos dedos
brilhava em um tom de rosa pálido, coberto de veias da cor de sangue seco.
Videiras de buganvílias e begônias de pêssego enroladas no parapeito do
terraço, o orvalho brilhando em suas pétalas felpudas.
Desse ponto de vista, Celine considerou seu próximo passo.
Ela conseguiu o que mais queria: um momento a sós com Bastien. Como
resultado dos esforços do conde para mantê-los separados após o
assassinato de Nigel, Celine ainda não havia compartilhado o que havia
percebido enquanto estudava as pistas no quadro de ardósia de Michael.
Venha comigo para o coração de Chartres.
No mínimo, era possível que ela soubesse a localização do covil do
assassino. O que eles deveriam fazer com essa informação ainda não havia
sido visto. Ela considerou levar para Michael, mas ele já se recusou a ajudá-
la uma vez, e a Polícia Metropolitana de Nova Orleans até agora havia sido
frustrada em todas as suas tentativas de pegar esse demônio de outro mundo.
Celine não sabia quanto tempo Nicodemus lhes daria agora. Seria
suficiente também garantir a ajuda de Arjun ou Odette? A perspectiva
parecia improvável. Bastien pode estar disposto a desafiar seu tio para
capturar o assassino de Nigel, mas seria estúpido que Celine esperasse o
mesmo de qualquer outra pessoa na corte, especialmente devido ao recente
encontro do lado de fora da sede da polícia várias noites atrás.
Não importa. Celine pretendia usar cada segundo de seu tempo emprestado
com Bastien, especialmente se isso significasse que eles poderiam atrair o
assassino para a luz.
Vários outros casais se misturavam à beira da varanda. Um trio de jovens
se amontoou, rindo de piadas obscenas. Sua leviandade iluminou o teor dos
pensamentos de Celine. Por um instante, ela até pensou em se juntar a eles.
Especialmente quando ela ouviu uma de suas fileiras falando em tom
animado sobre o figurino de Odette Valmont. Como o amante escandaloso de
Sébastien Saint Germain ousara usar calças justas sob seu manto aberto, bem
como a gravata de um cavalheiro.
Malícia brilhava nos olhos castanhos de uma garota. — Quem você acha
que usa as calças na cama?
— Nenhum deles, se estiver fazendo isso corretamente. — respondeu a
jovem ao lado dela.
— Cruzes! — A última garota riu com entusiasmo.
Apesar de tudo, Celine não pôde deixar de rir. Ela quis dizer isso quando
disse a Nicodemus que gostava daqui. Nova Orleans era um mundo de
contrastes. Uma cidade de vida e morte. Um quadro cru e rico.
Combinava com ela.
Ela traçou os dedos ao longo da balaustrada de pedra, desenhando através
da fina camada de umidade que se acumulava ao longo de sua superfície. Um
par de passos parou abruptamente por cima do ombro, perto demais para ser
por acaso. Ela se virou de uma vez, suas palavras engolidas por um suspiro.
— Pippa. — Um alarme escaldado passou através do corpo de Celine.
A raiva beliscou as feições de sua adorável amiga. — Vim aqui porque
queria lhe contar uma coisa.
— Por favor, você não pode ser vista com…
— Não. — interrompeu Pippa. — Desta vez, você será a única a ouvir.
Celine puxou-a mais profundamente nas sombras, olhando loucamente,
suas feições apertadas. — Você não entende, eu...
— Não! — Lágrimas se acumularam nos olhos de Pippa quando ela se
libertou. — Eu não quero lhe dar uma chance de me oferecer uma
explicação. Você... me feriu. Imensamente. Eu me preocupo com você todos
os dias. Uma única palavra ou nota seria suficiente. Mas você me cortou da
sua vida, e eu não vou fingir saber o porquê. — Ela gesticulou enquanto
falava, sua manga de renda agarrando a elegante sapata de prata em seu
estômago barroco. — Oh, incomode. — ela gemeu.
— Deixe-me ajudar. — disse Celine, pegando a renda.
Pippa se moveu para detê-la. No instante seguinte, seus ombros caíram,
seu suspiro de derrota.
— Que se dane. — ela murmurou. — Eu saí com a intenção de causar uma
boa impressão, mas aqui estou com sua dívida. — Sua peruca de cachos de
salsicha em pó deslizou por sua testa, a cruz em sua corrente de ouro presa
em uma mecha solta. — E para piorar as coisas, pareço o fantasma do
passado de Natal.
— Não se preocupe. — Um sorriso apareceu nos lábios de Celine. —
Certificarei-me de ouvir seus avisos, não importa o quão pretensioso.
Cortando o olhar, Pippa suspirou mais uma vez.
— Eu preciso que você saiba como estou com raiva... e que não importa se
você me ignora ou me afasta. Eu sempre estarei aqui, Celine. Eu te amo
ternamente, e isso não muda simplesmente porque você está se comportando
como uma miserável. — Ela puxou a peruca reta, uma nuvem de pó
difundindo sobre sua cabeça.
Celine desembaraçou o último laço enrolado.
— Eu também te amo muito, e sinto muito por me comportar como uma
desgraçada. — disse ela em uma voz suave. — Por favor, saiba que tenho
minhas razões para manter distância. Um dia em breve, vou lhe contar tudo.
— Eu vou lembrá-la dessa promessa. — Pippa assentiu. — Mas nunca
esqueça que eu estou aqui, se você precisar de mim.
Um caroço se juntou na base da garganta de Celine.
— Eu não esquecerei. Nunca.
Pippa assentiu novamente, sua expressão ficando sombria. — Suponho que
devo voltar ao baile. Enviei Phoebus para algumas bebidas, e apenas um
bobo total se perderia no caminho para a tigela de ponche.
— Monsieur Devereux é tão bobo? — Celine brincou em um tom gentil.
— Tenho certeza de que não sei o que você quer dizer. — Pippa lançou-
lhe um olhar arqueado. — Mas se você me encontrar para tomar chá na
próxima quinta-feira, tenho certeza – juntas – podemos adivinhar a verdade.
Uma parte de Celine queria desesperadamente ser o tipo de garota que
poderia fazer planos na próxima quinta-feira com um amigo querido. Mas ela
não tinha ideia do que duraria a próxima hora, muito menos nos próximos
dias. Parecia que, não importava para onde ela fosse no mundo, esses dois
lados em conflito estavam destinados a chegar a um impasse. Dois lados da
mesma moeda. Pois Celine era a garota de vestido em tons de joia que
ansiava pelo amor e pelo riso de um chá da tarde. Assim como ela era a
garota de preto, seu coração se encheu de desenhos assassinos, com a
intenção de provocar a morte de um assassino.
Poderiam duas dessas forças opostas coexistir na mesma alma?
— Eu adoraria tomar chá com você na próxima quinta-feira. — respondeu
Celine com convicção.
O melhor que ela podia fazer era ter esperança. Afinal, a esperança era seu
próprio tipo de mágica.

O céu escureceu para um roxo profundo com o passar dos minutos. Celine
esperou na beira da varanda, olhando para as estrelas. Ela não sabia quando
percebeu o quanto a visão da lua a acalmava. Talvez tivesse algo a ver com
a mãe.
No fundo de sua mente, Celine lembrou-se de caminhar por uma costa
rochosa quando criança, de mãos dadas com uma figura ágil cujos cabelos
negros caíam pela cintura em ondas grossas. Nessa lembrança, sua mãe
cantou até a lua cheia, a melodia carregando a água escura, desenrolando-se
no vasto céu acima.
Talvez tenha sido um sonho. Nada mais.
Um galho estalou nas copas das árvores à esquerda de Celine, tirando-a de
seus pensamentos com um sobressalto repentino. A energia derretida
percorreu suas veias, sua pele ficando quente como brasas ardendo em
chamas. Os olhos de Celine voaram em todas as direções, o medo tornando-
a consciente de cada respiração. Todo escândalo. Todo suspiro. Ela se
concentrou no bosque de carvalhos iminentes, com o coração no peito.
Uma coruja solitária saiu das sombras, suas asas batendo no ritmo de sua
respiração.
Ela quase riu. Seus dedos tremeram quando se moveram para a pele nua de
sua garganta, em um esforço para acalmar seus nervos furiosos.
No instante seguinte, o silêncio caiu ao seu redor como um martelo na
bigorna. Os pássaros pararam de mexer nas copas das árvores, as cigarras
cessaram com o zumbido. Um rugido surdo ecoou nos ouvidos de Celine
quando ela se virou em direção às portas duplas abertas nas costas, com a
intenção de entrar.
Antes que ela pudesse dar um único passo, os indivíduos subitamente
mudos ao longo da varanda lotaram seu caminho. Eles se viraram para sair
em concerto, suas expressões em branco, seus passos rotineiros. O trio de
garotas de mãos dadas anteriormente, seus olhos vidrados quando se
aproximaram das portas duplas, a última de suas fileiras parando para
trancá-las atrás dela, as fechaduras se encaixando no lugar com um clique
ameaçador.
Nicodemus estava fazendo isso?
O pânico ecoou pelo corpo de Celine. Que tipo de magia negra era essa?
Nicodemus tinha mentido para ela? Ele estava brincando com ela? Ele
próprio fez falsas promessas, o tempo todo pretendendo se livrar de Celine
na primeira oportunidade?
De repente, cada uma de suas memórias se tornou muito mais preciosa. Ela
pensou em arregaçar as saias e fugir. Considerou correr em direção às portas
trancadas e bater em suas superfícies de carvalho, pedindo socorro.
Quão mal ela se machucaria se ela pulasse sobre a balaustrada?
Celine havia planejado atrair o assassino para o local de seu primeiro
assassinato. Empurrá-lo pelas docas, aproveitando os espaços abertos e o
trecho de água nas costas deles, frustrando assim suas tentativas de escapar.
E se isso não funcionasse, ela estava determinada a arrancá-lo de seu
esconderijo no coração de Chartres.
Ele não estava destinado a prendê-la.
Nicodemus foi o assassino? Celine literalmente dançou em suas garras?
Seu peito subiu e caiu em rápida sucessão, o osso de baleia dela
permanece atado. O único recurso que Celine tinha era que, se ela gritasse
alto o suficiente, alguém lá dentro certamente a ouviria.
Mas eles a alcançariam a tempo?
Celine plantou os pés, enraizando suas convicções. Se essa era sua única
chance, ela a aceitaria. Seus dedos se moveram em direção ao bolso
escondido no quadril, fazendo uma pausa na ponta do cabo da adaga de prata
de Bastien.
Uma orda de corvos irrompeu dos galhos à sua direita. Ela se virou,
observando-os voar para a lua, desejando com toda a força poder brotar
asas e voar.
Nesse momento, Celine notou um conjunto estranho de marcações ao longo
da borda da balaustrada. Seus pés a carregaram para mais perto antes que
ela pudesse pensar.
Quatro símbolos haviam sido pintados na pedra travertina, com as bordas
secas para combinar com as veias, os centros em um vermelho carmesim
brilhante e molhado:

L, O, U . . . P?
Um som estrangulado emitido pela garganta de Celine. Ela se afastou,
colidindo com uma parede de pedra. Choque a segurou quando um par de
braços longos alcançou sua cintura, mãos enluvadas subindo por sua caixa
torácica.
— Mon amour. — ele murmurou atrás da orelha dela, seu hálito fresco
lavando sua nuca. — Você é minha para sempre.
Celine abriu a boca para gritar. Algo afiado rasgou a lateral de seu
pescoço, e ela foi consumida em um vazio escuro.
UMA LIBRA DE CARNE

A lguma coisa estava terrivelmente errada.


Bastien sabia disso no instante em que seu tio o procurara, um sorriso
caloroso no rosto e uma luz perturbadora no olhar. No momento em que
Nicodemus deu a Bastien a chance de falar com Celine no terraço em
particular.
Nenhum membro dos mortos-vivos concedeu tal benefício sem primeiro
cobrar um preço excruciante. Especialmente um imortal teatral como
Nicodemus Saint Germain. Uma vez, anos atrás, Bastien testemunhou seu tio
tirar uma libra de carne de um inimigo, descascando a pele do homem
lentamente, saboreando cada um de seus gritos. Bastien tinha nove anos
então. E, para ser justo, o inimigo em questão havia matado seu pai.
Desconforto reunido na base da garganta de Bastien. A súbita mudança de
coração de seu tio certamente seria um presságio. No entanto, ele murmurou
seu agradecimento e atravessou o salão, parando apenas para acenar para
aqueles que disputavam sua atenção.
Implorando a sua partida, com promessas de retornar rapidamente.
Tudo o que Bastien conseguia pensar era alcançar Celine. De tranquilizá-
la de que os desejos de seu tio não tinham influência sobre seu coração.
Não que ela precisasse de garantias de qualquer homem.
Um sorriso de apreciação curvou-se em um lado do rosto de Bastien
quando ele pensou em como ela irrompeu no salão duas horas atrasada,
vestida com um vestido de luto, uma atitude diabólica em cada um de seus
passos. Era uma das coisas que ele mais amava em Celine. Quão pouco ela
se importava com a boa opinião de alguém.
Bastien parou diante das portas duplas de carvalho maciço que levavam ao
terraço, intrigado ao encontrá-las trancadas por dentro. Tensão em seus
braços, ele destrancou as portas para entrar na varanda... e foi recebido com
uma visão que congelou a medula em seus ossos.
Ninguém estava lá. Nenhuma alma permaneceu sob o céu violeta,
absorvendo o ar da noite.
Celine Rousseau não estava em lugar algum.
Com os dentes cerrados e a mandíbula ondulando, Bastien deslizou em
direção ao corrimão vazio, seus olhos examinando todos os lados. Ele não
possuía nenhum dos dons sobrenaturais de seu tio. Ele não podia ver através
da escuridão desimpedida, nem podia sentir o cheiro de sangue a uma grande
distância. E ele definitivamente não podia desfocar o tempo e o espaço em
um piscar de olhos.
Mas Bastien havia aprendido quando menino a perceber as coisas que a
maioria dos mortais ignoraria. Como a mancha de sangue ao longo da borda,
a cor camuflada no travertino com veias. E os quatro símbolos manchados
por perto, escritos em tinta macabra, cheirando a cobre e sal.
Houve uma luta. E parecia que o assassino havia levado Celine da
varanda.
A raiva se espalhou pelas veias de Bastien. A hora da raiva absoluta.
Sempre gelo. Nunca atire.
Bastien arrancou a máscara ridícula do rosto. Sem olhar para trás, ele
voltou para as portas duplas, parando no limiar, com a mente em um tumulto
calculado.
Primeiro ele procurou seu tio. Estudou a multidão para a figura alta,
vestida com uma longa capa de ópera branca. Felizmente, Nicodemus não
parecia mais estar misturado à nobreza não oficial da cidade de Crescent.
Era provável que ele se juntasse a alguns dos cavalheiros mais influentes de
Nova Orleans em uma antecâmara próxima para participar de um copo de
conhaque, um charuto e um poço de segredos. Um dos rituais mais
apreciados de Vieux Carré.
O que significava que Bastien tinha menos de meia hora antes que seu tio
notasse sua ausência.
Sem parar para pensar, Bastien deslizou entre os casais que teciam no
salão, roubando Odette de seu parceiro antes que o jovem tolo pudesse
protestar.
Ela não perdeu um passo. Seu sorriso também não vacilou a qualquer
momento, apesar de um único olhar no rosto de Bastien lhe dizer que algo
estava terrivelmente errado.
Odette Valmont representou o melhor da família encontrada de Bastien.
Ela, Nigel, Hortense, Madeleine, Jae e Boone o cercaram pouco tempo
depois de ele chegar às docas da cidade, há quase uma década, um garoto
revoltado, cheio de perda e dor, cujas feições assombradas lhe haviam
concedido o apelido Le Fantôme .
Essa estranha coleção de imortais fora encarregada de apenas uma coisa:
guardar o único herdeiro sobrevivente de Nicodemus. Protegendo o maior
legado de seus criadores.
Por quase dez anos, eles ficaram nas costas de Bastien, ajudando-o a abrir
uma trilha pela cidade, mantendo-o a salvo dos terrores que o haviam
arrancado de seus pais e irmã.
— Dê uma volta comigo na varanda. — disse Bastien a Odette com um
sorriso encantador, suas palavras mais respiração do que som. Com isso,
eles se arrastaram pela multidão – espalhando os casais na periferia – antes
de girar pelas portas duplas e entrar na escuridão aveludada.
Assim que eles estavam fora do alcance da voz, Bastien parou de se
mover, seus braços caindo para os lados. — Celine se foi. — disse ele
calmamente, ciente de que alguém – ou qualquer coisa – poderia estar
ouvindo.
Os olhos de zibelina de Odette brilharam pretos, suas feições se
acentuaram, seus caninos se alongaram além dos lábios vermelhos.
Perfurando o véu elegante e trazendo o predador mais perfeito do mundo
para a superfície. Ela fez uma pausa para encher os pulmões de ar. — Eu
sinto o cheiro do sangue dela. Ela estava aqui há cinco minutos.
— Como você pode ter certeza de que é dela?
Ela cheirou mais uma vez, sua cabeça empoada inclinando para o lado. —
O sangue dela canta uma melodia incomum.
Os olhos de Bastien se estreitaram, apertando os lábios. — Você já olhou
para o futuro dela?
— Só uma vez. — Odette hesitou. — Mas isso não me mostrou nada sobre
isso, Bastien. Simplesmente me contou o que eu compartilhei com você
semanas atrás. Uma verdade que já aconteceu. Ela será domadora de...
— Eu lembro. — A fúria alcançou as pontas dos dedos de Bastien, seus
punhos cerrando e abrindo ao lado do corpo. Levou todo o seu controle para
não quebrar algo com as próprias mãos. Ele sabia melhor. Quanto maior a
raiva, mais destrutiva é sua força. Seria inútil se ele perdesse a cabeça. —
Você pode rastrear o cheiro dela?
Os olhos de Odette voltaram à sua sombra normal, suas narinas não mais
queimando como as de um chacal. — Não tenho certeza. A chuva dificulta
para mim rastrear as coisas pelo cheiro. Você pediu ajuda ao Cão do
Inferno? Ele é nosso melhor caçador.
— Você sabe tão bem quanto eu que Boone não levantará um dedo em
desafio a Nicodemus. — respondeu Bastien, a ira aguçando seu tom. — Ele
está com muito medo.
— Nosso pequeno cão sempre foi um cordeiro no coração. — Odette
voltou suavemente.
— Ele levou a morte de Nigel com mais força. Esta noite foi a primeira
vez que ele voltou para casa em dias.
Bastien olhou para o nada, uma pontada no peito. O tempo havia se
tornado uma mercadoria tão valiosa para todos eles. — Você pode me dar
uma hora?
Alarme brilhou em seu rosto adorável. — Seu tio proibiu…
— Eu não dou a mínima para o que Nicodemus disse. — Bastien rosnou.
Ela pegou a mão dele, os dedos enluvados frios ao toque. — Todo membro
da La Cour des Lions está sob ordens expressas para impedir que você vá a
qualquer lugar que envolva Celine Rousseau. Por favor. — ela pediu. —
Nigel morreu porque todos falhamos em levar a sério essa ameaça. Se algo
acontecer com você, não sei o que todos faremos.
— Eu não sou o garoto que você conheceu anos atrás.
— Eu sei, meu querido. — disse ela. — Apenas Jae é um empate mais
rápido que você, e todos nós vimos você atirar em um homem através dos
olhos a sessenta passos. Mas o assassino está tentando nos forçar a sair. Nos
tire, um por um — continuou ela, os olhos nadando, as lágrimas ficando
rosadas. — O diabo só sabe o porquê. Isso deveria ter terminado anos atrás.
— Odette. — Bastien a agarrou pelos ombros, desejando que sua
expressão fosse calma.
— Você é a única em quem posso confiar. Eu sei que você se importa
profundamente com Celine. Se não a ajudarmos, ela poderá morrer. — Seu
interior se contorceu com o pensamento, as palavras queimando em sua
garganta. Não posso permitir que isso aconteça. Você passou anos
obedecendo ao seu criador. Hoje à noite, você não vai ajudar seu amigo?
Odette o estudou, seus lábios pressionados em uma linha, uma única
corrente de lágrimas tingidas de sangue escorrendo por uma bochecha. — Eu
não posso impedi-los de te procurar, Bastien.
— Você pode pelo menos me dar uma hora?
Ela vacilou, lutando para manter a compostura. — Eu vou... tentar o meu
melhor. Mas o Cão do Inferno o encontrará, Bastien, como sempre. E todos
nós vamos enfrentar as consequências.
— Obrigado, Odette. — Ele beijou sua testa.
Então ele pulou a balaustrada e desapareceu na escuridão.

Bastien chutou a porta do escritório de Michael na sede da polícia sem parar


para respirar. Ele esperava encontrar seu amigo de infância pairando sobre
sua mesa. Assim como ele antecipou totalmente uma briga no momento em
que exigiu que o detetive compartilhasse todas as suas anotações sobre o
assassino. Quem ele pode ser. O que ele pode ser. E – o mais importante –
onde ele pode estar.
O único sinal de vida que Bastien encontrou foi uma única lâmpada, sua
chama solitária dançando alegremente em um cilindro de vidro transparente.
A fúria o cegou por um instante, suas mãos desejando quebrar a lâmpada
em mil pedaços. Em um esforço para acalmar sua raiva, Bastien examinou o
espaço apertado em busca de algo que pudesse ajudá-lo a encontrar Celine.
De um lado, havia um berço, cobertores dobrados em cima de uma pilha bem
organizada, uma cesta de materiais de costura ao lado.
Sua raiva ameaçava cair em desespero.
Muitas das coisas que ele apreciara haviam sido tiradas dele muito cedo.
Essas perdas o haviam ensinado a manter-se firme em seu coração, exceto
por duas exceções: o amor que ele tinha por sua família imortal e o amor que
ele tinha por sua cidade. Ele se recusou a abrir espaço para qualquer outra
coisa. Então, um mês atrás, uma semente havia sido plantada em sua mente,
regada pela mão do Destino. Por um sorriso irônico e uma queda de cabelos
negros. Por uma garota que encontrou palavra por palavra, desafio por
desafio.
Algo se desenrolou no peito de Bastien.
Parecia que havia agora uma terceira exceção.
Ele deveria ter dito a Celine que ela capturou seu coração, em vez de
permitir que costumes e expectativas sociais ridículas se interponham em seu
caminho. Se algo acontecesse com ela, o próprio diabo responderia por isso.
Bastien não levaria mero quilo de carne.
Antes de terminar, ele veria as lágrimas do demônio se transformarem em
cinzas.
Seus lábios avançaram em cálculo, Bastien parou no grande quadro de
ardósia correndo paralelo à mesa de Michael. Ele estudou a coleção de
pistas que o detetive reuniu, incluindo as muitas coisas insidiosas que o
assassino havia dito a Celine em várias ocasiões:
Bem-vinda à batalha de Cartago.
Você é minha.
A morte leva a outro jardim.
Para o seu próprio ser, seja verdadeiro.
Morra em meus braços.
Um músculo bateu no pescoço de Bastien. Ele examinou o mapa antigo
afixado em um canto da lousa, seu olhar pegando algo que ele havia perdido
antes.
Então Bastien se endireitou, seus olhos se arregalando.
As anotações de Michael estavam incompletas. O assassino havia dito uma
coisa peculiar a Celine na noite em que a perseguira pelas ruas do Vieux
Carré. A atenção de Bastien foi atraída por sua ausência no quadro
meticuloso.
Venha comigo para o coração de Chartres.
Chartres era uma cidade ao sul de Paris, famosa pela bela catedral em seu
coração.
A Rua de Chartres atravessava o centro de Nova Orleans, bem no meio do
mapa de Michael. No coração da rua estavam os três pináculos da Catedral
de Saint Louis.
O demônio tinha sido arrogante o suficiente para levá-los direto ao seu
porto seguro?
Certamente, a igreja era um lugar incomum para um assassino encontrar
refúgio. Mas também era o tipo exato de detalhe que encantaria a maioria
dos imortais no conhecimento de Bastien. Buscar santuário na casa de Deus.
— O que em nome de Deus você está fazendo aqui? — Uma voz áspera
exigiu atrás dele.
Bastien virou-se para encontrar a figura astuta de seu ex-amigo. —
Desculpe-me, detetive Grimaldi. — Ele manteve o tom leve, apesar de uma
onda de raiva. — Eu vou me despedir.
— O inferno que você vai. Você quebrou minha porta, seu demônio inútil.
Você e seu maldito temperamento. Você aprenderá alguma vez? — Michael
cortou o olhar incolor. — O que o trouxe ao meu escritório a essa hora,
pavimentando-se como um rei de merda da França?
— Eu tive um lapso momentâneo de julgamento. — disse Bastien com uma
voz alegre, cruzando na frente de Michael enquanto ele falava, com a
intenção de fazer uma saída rápida. — O que foi corrigido desde então.
O jovem detetive o agarrou pela frente do colete de marfim. —
Balderdash. Responda a minha maldita pergunta. Por quê você está aqui?
Bastien lutou para controlar sua fúria. Ele não conseguiu atacar o detetive.
Ele não atacaria Michael. Gerações de sangue ruim o proibiam. — Eu não
tenho tempo para este concurso de mijo. — Segurando os pulsos de Michael,
ele torceu as mãos do detetive livre de seu traje absurdo. — Envie uma
conta para Jacques' pelo dano. — Seu sorriso ficou arrogante. — Não deixe
de provar o vichyssoise na próxima vez que estiver lá. Você sempre
favoreceu os prazeres mais simples da vida. — Mais uma vez ele tentou sair.
— Aconteceu alguma coisa com Celine? — Michael entrou no caminho de
Bastien, suas narinas queimando como se ele tivesse cheirado chum na água.
O nome dela nos lábios dele reacendeu a raiva de Bastien. Se ele dissesse
a Michael a verdade, não haveria maneira de conter o assunto. O tolo ordena
que uma guarnição inteira desça sobre a catedral, e se perde um tempo
precioso navegando em sua justa idiotice.
— Não faço ideia de onde possa estar Celine Rousseau. Não era para
você saber agora? — Bastien zombou, tentando passar por seu amigo de
infância mais uma vez. O relógio no escritório de Michael passava os
minutos. A qualquer momento, Boone encontraria Bastien, seu tio seguindo
os passos bem seguidos do Cão do Inferno. E esses momentos foram
preciosos para Celine. Assim como ela se tornara preciosa para Bastien.
Mais precioso que a própria vida.
Michael o empurrou de volta, suas feições manchadas. — Responda-me
Sébastien. Antes de ligar para o...
Bastien atacou Michael. Algo que ele prometeu nunca fazer, muitos anos
atrás. Atacar o jovem detetive era um desafio direto aos decretos de seu tio.
Para um Saint Germain atingir um Grimaldi...
Seu golpe quebrou a ponte do nariz de Michael, o sangue jorrando por
baixo dele. Um uivo de raiva voou dos lábios do detetive, fazendo passos
correrem na direção deles por baixo.
— Preste atenção, Michael. — disse Bastien entre dentes. — Nunca mais
fique no meu caminho novamente. — Com isso, ele deslizou do escritório, a
batida do coração trovejando no peito.
Não havia nada para isso.
Sébastien Saint Germain acabara de violar o tratado da Irmandade.
A ÚLTIMA UNHA

C eline acordou de lado, a bochecha encostada na pedra fria.


Um cheiro enjoativo serpenteava pelo nariz, as têmporas batendo com
a batida lenta do coração. Por um tempo, ela lutou para se concentrar em
qualquer coisa, sua visão nadando como se tivesse consumido muito
champanhe. Lambendo os lábios ressecados, Celine tentou levantar a cabeça.
Um grito de surpresa voou de sua boca. A dor lancinante percorreu seu
braço direito, a umidade quente escorrendo pela clavícula, pingando em seu
corpete preto. A ferida em seu pescoço ainda estava fresca, o que
significava que não havia passado muito tempo desde que ela foi atacada no
terraço. O cheiro forte de sangue permeava o ar, misturando-se com o
perfume de... incenso?
Mais uma vez, Celine tentou mudar de posição, mas estava fraca. Muito
fraca.
Pelo menos o assassino a tinha deixado viva. Ela supôs que deveria estar
agradecida.
Por um instante angustiante, ela teve certeza de que seu último suspiro
nesta terra estaria naquela varanda.
Apertando os dentes com a dor, Celine lutou para se sentar, apenas para
falhar mais uma vez. Suas mãos estavam amarradas nas costas, os pés
amarrados nos tornozelos, as cordas como pesos de chumbo. Com o
cotovelo, ela verificou se a lâmina de prata de Bastien ainda estava
escondida no bolso escondido debaixo das saias. Quando Celine sentiu seu
peso reconfortante contra o quadril direito, ela deixou a cabeça cair na pedra
lisa, cansada pela ação mais simples.
Os olhos dela se fixaram no teto fresco, enquanto ela contava até três em
sua mente.
Então Celine jogou os joelhos no peito, as saias de tafetá farfalhando no
silêncio, a testa cheia de suor. Com um esforço gigantesco, ela enrolou os
pulsos nos pés, estalando várias argolas de madeira ao lado do corpo e
torcendo o braço esquerdo no processo. Ela ofegou – piscando as lágrimas
quentes de dor – antes de observar o ambiente.
À sua esquerda, estendia-se um piso familiar de pedra em preto e branco,
estampado na diagonal. Um corredor iluminado por longas velas corria pelo
centro, apoiado por bancos de madeira.
Celine tossiu, uma amarga diversão enrolando em seu estômago. Sua
suposição anterior estava correta. Ela estava deitada no altar da Catedral de
Saint Louis, no coração da Rue de Chartres. Se ela não tivesse tanto medo,
zombaria do agressor por sua teatralidade.
Tossindo novamente, ela rolou para o lado e caiu da superfície da pedra,
os dentes estalando juntos quando seu corpo atingiu o chão de granito com
um estrondo retumbante. Fragmentos de dor apunhalaram ao longo de seu
lado direito, mil agulhas minúsculas escavando sua pele.
Celine mordeu o lábio inferior para não gritar.
Não havia tempo para ela sucumbir à dor. Ela precisava libertar os pés de
seus laços para que ela pudesse pelo menos tentar uma fuga. Celine sentou-
se, gotas de sangue brilhando contra a pedra fria. Então ela dobrou os
joelhos sob o queixo e enfiou a mão sob a bainha das saias para mexer nos
nós ao redor dos tornozelos.
— Admiro sua resistência, Celine. — uma voz quente pronunciada nas
sombras nas costas dela, seu sotaque refinado. Distinto da classe alta
britânica. — Mas você perdeu muito sangue. Não acredito que você vá muito
longe.
O medo atravessou Celine, um calafrio fantasmagórico percorrendo sua
espinha. Mas ela já havia feito uma promessa a si mesma. O medo não
ditaria suas ações hoje à noite.
— Quem é você? — A voz dela estava rouca, mas firme. — Por que você
me trouxe aqui?
Passos circulavam mais perto, os calcanhares do assassino atingindo o
chão de pedra com uma lentidão tentadora.
— Estou um pouco chateado por você não ter percebido quem eu sou,
sendo tão incrivelmente inteligente e tudo. — continuou ele, com tom
zombeteiro. — Mas, para ser justo, eu amo... Eu soei um pouco diferente
antes, pareceu. — Ele relaxou com um sotaque londrino vibrante. O sotaque
da classe trabalhadora de Londres.
Seu teor fez Celine tremer. Apesar do ferimento sangrento, ela virou a
cabeça para um lado, descrença dividindo seus pensamentos.
Nigel?
— Mas você estava morto. — sussurrou Celine quando Nigel apareceu,
parecendo sã e calorosa e íntegra, o cheiro da terra inundando o ar. O
choque começou a se estabelecer nos membros de Celine, fazendo com que
seus ombros tremessem. — Eu vi você. Seu braço. Sua cabeça. — Ela
ofegou, percebendo a respiração ofegante de seu corpo. — Foi... você.
O mal não parecia da maneira que ela imaginara. Nigel não era o vilão
sedento de sangue de seus pesadelos. Ele era o amigo bem-humorado de
Arjun. O garoto bobo e doce de Odette. Um dos confidentes mais próximos
de Bastien.
Nigel bateu palmas duas vezes com deliberação lenta, a capa cinza caindo
dos braços, revelando um colete amarrotado e mangas de camisa manchadas.
— Você viu o que queríamos que você visse, amor.
— Nós?
Ele ignorou a pergunta dela, voltando ao sotaque polido da Praça
Grosvenor.
— Você provou ser o pequeno detetive. — Ele mudou de tom mais uma
vez, como se estivesse vestindo ou tirando um chapéu. — Tão esperto. Tão
sangrento, especialmente para um pássaro. — Seu sotaque londrino ressoou
nas vigas.
Meu Deus, ele parecia louco. Mas Celine não sentiu nenhuma loucura por
ele. Suas bochechas estavam rosadas, seus olhos claros, seus lábios cheios.
Não, não era loucura.
Foi orgulho.
Orgulho em tocar para uma multidão, como um ator reverenciado em um
palco. Se Celine tivesse que adivinhar, Nigel estava gostando do sucesso de
seu engano, como se isso desse testemunho de sua grandeza.
Determinação gravada em sua testa. Se o orgulho era sua queda, Celine o
distrairia ainda mais, incentivando-o a falar sobre si mesmo. Ela fez a
mesma coisa com o jovem que a atacou naquela noite no ateliê.
Não importa que quase tenha falhado.
— Por favor, me diga por que. — Celine sussurrou, sua expressão
implorando. — Eu não entendo por que você faria uma coisa dessas. —
Enquanto ela falava, seus dedos trabalhavam nos nós sob as saias, desejando
manter a calma.
— Já foi o detetive brilhante, não é? — perguntou Nigel no inglês da
rainha. Ele se aproximou do trio de degraus arredondados que levavam ao
altar, parando para descansar o pé direito na base escura de granito. — A
propósito, você já conseguiu descobrir o significado por trás dos símbolos
que eu deixei para você?
— Não. — mentiu Celine, encolhendo-se, as costas pressionadas contra a
base do altar, os laços começando a se soltar acima dos pés.
— Não importa. — Nigel continuou, um ar casual sobre ele. —
Impressionante a rapidez com que você determinou que eles poderiam ser de
uma língua antiga. — Ele apoiou um cotovelo no joelho dobrado. — Você
estava de folga apenas algumas centenas de anos.
— A língua é anterior ao grego antigo? — Celine adivinhou.
— Uma civilização totalmente diferente. — Ele mudou para londrino. —
Até te dar uma dica, eu dei.
Os ombros de Celine caíram. — Cartago.
— Correto. — Ele sorriu, voltando. — Por que eu fiz isso... existem várias
razões. Por que alguém trai seus entes queridos? — Ele se endireitou, sua
expressão sombria. — Pelo poder, talvez. Isso é algo que os Medicis, os
Bórgias, os Tudors, os Ptolomeus – qualquer número de famílias influentes
ao longo da história – poderiam atestar. — Ele fez uma pausa. — Ou talvez
seja porque eu nunca os amei de verdade.
— Você sabe por que a Corte dos Leões existe? — Nigel continuou, seus
olhos brilhando com uma luz sobrenatural. — Você sabe por que Nicodemus
me arrancou de minha casa no East End de Londres e me transformou em um
demônio, amaldiçoado por compartilhar seu destino? — Raiva ondulou em
seu rosto. — Obedecer ao meu criador até o fim dos tempos?
Celine balançou a cabeça, seu primeiro dedo prendendo um laço em seus
laços, libertando-o.
Um músculo trabalhou sob a pele da testa de Nigel.
— A Corte dos Leões existe com o único objetivo de proteger o legado de
Nicodemus Saint Germain. — Ele bufou. — Sébastien, o último herdeiro da
família Saint Germain. Eu guardo um garoto mortal por quase uma década.
Desde o momento em que ficou de mau humor em uma sala cheia de livros
até o momento em que se coroou príncipe de nossa corte sombria, fui
forçado a fazer o que ele mandou. Risos amargos voaram de seus lábios. —
Eu – um ser imortal com poderes além do seu conhecimento mais selvagem
– fui atraído por um suspiro amaldiçoado, como um cão de guarda sangrento.
— Aversão puxou seus lábios. — Não é de admirar que a Irmandade nos
despreze tanto.
O laço afrouxou infinitamente mais, os dedos de Celine se irritando com o
esforço.
— Por que Bastien precisa ser vigiado? — Se ela pudesse comprar a si
mesma por mais um minuto...
— Certamente não escapou ao seu conhecimento de que todos os outros
membros da família de Bastien estão mortos. Você acha que é por acidente
ou por design?
Uma réplica ameaçou sair da boca de Celine. Ela mordeu a língua,
provando o sal do seu sangue. Não podia sucumbir à raiva, assim como não
seria consumida pelo medo.
— Deve ser por design. — respondeu Celine.
Nigel tirou uma fina camada de sujeira dos ombros e ajeitou as mangas da
camisa como se estivesse se preparando para algo. Um nó de desconforto se
formou no estômago de Celine.
— Bastien é a última peça de uma retribuição de séculos em construção. E
eu – Nigel Fitzroy – serei o único a colocar a unha final neste caixão. O
primeiro da minha espécie a superar a divisão entre os Caídos e a
Irmandade. — Ele inalou pelo nariz e abriu os braços.
Então ele gritou uma vez, como se estivesse em triunfo, um grito feroz e
gutural.
Parecia o rugido de uma fera. Como o uivo de uma criatura mal amarrada,
saboreando os espólios de sua caçada. Seu eco sacudiu o chão debaixo de
Celine.
Não. O mal não parecia da maneira que imaginara.
Parecia muito pior. Era o ódio envolto no disfarce de um amigo.
Celine lutou contra uma maré de angústia, desânimo se instalando ao seu
redor, sua sombra se aproximando.
Antes que pudesse criar raízes, ela se levantou e começou a correr. Com
os dentes batendo no crânio, ela agarrou o primeiro banco, usando-o para
empurrá-la pelo corredor em direção às portas, esperando que Nigel a
impedisse a qualquer momento. Suas mãos amarradas coçavam para
recuperar a adaga ao seu lado. Ansiava por se defender. Para conduzir a
prata profundamente no lugar que seu coração costumava estar.
Mas uma vez que ela desembainhou a lâmina, ela teria apenas uma única
chance de usá-la.
Agora não era a hora.
Uma risada suave seguiu atrás de Celine, seu eco queimando através de
sua alma. Ela não conseguiu parar para perguntar por que Nigel não a estava
perseguindo. Não havia tempo para ficar parado por curiosidade. Abafando
a bile crescente, Celine continuou correndo pelo corredor, seu corpo taxado
a cada passo.
Por que ela estava tão malditamente fraca?
As portas da catedral estavam a menos de dez passos de distância. Tudo o
que importava agora era escapar.
Uma rajada de ar passou por Celine, sua visão embaçada pela brisa. Ela
piscou, um grito de surpresa escapando de seus lábios.
Nigel estava parado diante das portas da catedral. Apenas um segundo
antes, ele estava no extremo oposto da igreja.
Com os sentidos aturdidos, Celine tropeçou, segurando um banco para se
equilibrar. — Como? — Ela desprezava a maneira como sua voz tremia. —
O que você é?
Uma batida passou em um silêncio terrível. Então um sorriso lento se
espalhou por seu rosto.
— Eu pensei que você nunca perguntaria. — Suas palavras eram letais em
sua calma.
Nigel começou a mudar. Seus olhos escureceram para preto, a cor se
espalhando como uma gota de tinta na água. Suas feições afiadas, as pontas
de suas orelhas afinando em pontos.
Celine agarrou o banco entre as mãos, engolindo seus gritos. Os dentes de
Nigel começaram a se alongar, seus caninos pareciam os de um lobo,
brilhando como punhais na luz fraca das velas.
O pânico tomou conta do estômago de Celine. O ácido se acumulou em sua
língua, sua nitidez lavando sua garganta. Ela deu um passo para trás, seu
coração batendo contra o peito, exigindo ser libertado.
Então Nigel desfocou em sua direção. Um momento ele estava a dez
passos de distância.
No próximo, apareceu diante de Celine, como se tivesse manipulado o ar à
sua volta, como um fantasma, um espírito ou um demônio da noite.
Celine cruzou as mãos atadas diante dela, como se estivesse em oração.
Ela se inclinou contra o banco, lutando para se manter de pé. Esperando que
sua fraqueza percebida lhe desse uma oportunidade de tirar a adaga da
bainha no quadril.
— Pergunte-me novamente o que eu sou. — A nuca no queixo de Nigel
brilhava como cobre derretido, seus olhos eram lascados de obsidiana.
Celine não pôde responder. Nem ela podia desviar o olhar.
Com uma risada suave, Nigel agarrou seus pulsos em um torno de ferro,
puxando-a contra seu peito. Então ele se inclinou para frente e lambeu a
ferida no pescoço dela. Celine reprimiu um grito. Quando ele inclinou a
cabeça para as vigas da catedral – para os afrescos brilhantes de anjos que
venciam seus irmãos demônios – sua língua estava manchada de vermelho
com o sangue dela. Um som de satisfação suprema surgiu em sua garganta.
Como se ele achasse o sangue dela delicioso. Como se ele gostasse de
refeições de sangue humano.
Vampiro.
Um grito brutal saiu dos lábios de Celine. Ela tentou libertar as mãos dos
laços para poder agarrar a adaga no quadril, mas Nigel riu dela mais uma
vez, deleitando-se com sua luta.
Brincando com ela como se ela não fosse nada além de um brinquedo.
— Já chega, Nigel.
A advertência cruel veio das costas de Celine. Para o lado direito do altar.
Um ar de triunfo preencheu o espaço quando Nigel olhou por cima do
ombro. Ele virou Celine, sua pele vibrando com antecipação.
Como se esse tivesse sido seu plano o tempo todo.
Bastien caminhou pelo corredor na direção deles, seu revólver apontado
para Nigel, sua expressão cortada do gelo.
Nigel passou um braço em volta da cintura, puxando Celine em sua
direção, como se ela fosse uma possessão e um escudo. Diversão tingiu sua
voz.
— O imprudente Romeu finalmente veio resgatar sua tola Julieta. Diga-me,
lorde Leão, nosso guardião sabe que você está aqui? — Seus olhos negros se
estreitaram em fendas. — O que Nicodemus dirá quando perceber que você
arriscou seu legado pela vida de uma garota mortal?
Bastien o ignorou.
— Ele não vai machucá-lo novamente, Celine, — disse ele, seu tom
uniforme, suas palavras suaves. — Não, se ele quiser ver outra lua.
O braço de Nigel apertou sua cintura, puxando-a de volta contra o
mármore frio de seu peito.
— Não minta para o seu amor, Sébastien. — disse ele. — Porque eu não
tive o meu preenchimento, e seu sangue tem um gosto mais doce que o mel
aquecido pelo sol.
Com a batida do coração batendo nos ouvidos, Celine acenou para
Bastien, as mãos atadas avançando em direção ao bolso.
Com um movimento sutil de cabeça, Bastien deu um passo à frente, o
polegar levantando o martelo do revólver. — Sua briga não é com ela. Deixe
Celine ir, e eu farei o que você quiser.
— Talvez tudo o que eu quero seja secá-la diante de seus olhos. Para
assistir você viver o resto de sua vida curta e esquecida por Deus como o
Fantasma.
As pontas dos dedos de Celine roçaram a ponta do bolso, a respiração
acelerada na garganta.
Os lábios de Bastien se apertaram, algo brilhando nas profundezas de seus
olhos. — Não desperdice uma mão vencedora com tanta tolice. Ninguém vai
a todo esse problema por algo tão pequeno e mesquinho. Sei que podemos
fazer um acordo. — Seu sorriso era frio. Imperdoável.
— Nomeie seus termos.
— Você não está em posição de fazer exigências. Abaixe sua arma, Bastien
— disse Nigel. — E talvez eu concorde em negociar de boa fé.
— Foda-se sua boa fé. — O sorriso de Bastien se alargou. — Deixe ela ir.
Agora. — Ele deu outro passo à frente.
— É verdade. — Os dedos gelados de Nigel envolveram o pescoço de
Celine, enviando um arrepio entre as omoplatas. — Você pode conseguir me
ferir, mas não antes que eu rasgue as veias da garganta dela.
Os dedos de Celine se fecharam ao redor do cabo da adaga de prata.
Antes que qualquer um deles pudesse fazer outro movimento, Nigel
levantou Celine como se ela não pesasse mais que uma pena. Então ele
afundou os dentes no pescoço dela. O terror arranhou suas garras afiadas
através de Celine, a dor quase a cegando enquanto ela lutava para arrancar
os cabelos ruivos do couro cabeludo, os dedos batendo contra uma parede
de pedra.
— Chega! — Bastien ordenou. Pela primeira vez, Celine sentiu medo em
sua voz. — Deixe-a ir e eu vou largar meu revólver.
Nigel lambeu os lábios antes de responder. — Largue primeiro.
Bastien não disse nada. Ele desengatou o revólver, embora não o
abaixasse.
— Faça isso agora, ou eu vou acabar com ela, — provocou Nigel. — Não
vai demorar muito. Ela tem tão pouco a dar. Seu coração diminui a cada
momento que passa.
— Bastien. — sussurrou Celine, deixando sua postura desmoronar,
esperando que Nigel confundisse o gesto de desamparo. O mesmo tipo de
desamparo que seu atacante esperava naquela noite no ateliê.
Mas Celine Rousseau não estava desamparada. Enquanto ainda havia
fôlego em seu
corpo, ela pretendia lutar. Nigel não escaparia ileso desta igreja. Ela jurou
para o céu.
Tremendo incontrolavelmente, Celine olhou Bastien de lado, os dedos
roçando o quadril direito. — Bastien, por favor. — ela repetiu, como se
estivesse implorando para que ele a salvasse.
Embora Bastien estremecesse, ele assentiu uma vez. Deixando-a saber que
ele entendeu sua diretriz tácita.
— Parece que estamos em um impasse, Sébastien. — disse Nigel. — O
que você propõe que façamos agora? Lutar até a morte como monstros
civilizados? — Ele pegou um fio de sangue pingando do pescoço de Celine e
o levou à boca. — Alguns de nós são monstros melhores.
— Alguns de nós somos homens melhores. — Os dedos de Bastien se
apertaram em torno de seu revólver. Então ele apontou o cano em direção ao
chão.
Nigel começou a abaixar Celine. Abaixando a guarda. Ela esperou o
instante em que seus dedos encontraram a compra. Preparou-se para
esfaqueá-lo na garganta, assim como ela foi instruída a fazer a noite em que
Bastien lhe deu a adaga. Durante todo o tempo, Celine continuou tremendo,
como se o medo tivesse encontrado refúgio em seus ossos. Como se ela
fosse o cordeirinho patético que Nigel esperava o tempo todo.
Ela não era cordeiro. Ela era um leão.
Bastien guardou o revólver. Desdobrou-se para ficar de pé quando Nigel
lançou Celine.
No instante seguinte, o vampiro turva em direção a Bastien em um frenesi,
suas presas rasgando a garganta de Bastien.
Celine se jogou nas costas de Nigel, com a adaga na mão. Com a fúria que
passou pela razão, Celine esfaqueou Nigel na base da cabeça e no lado do
pescoço, repetidamente, um rosnado nos lábios.
Com um rugido desumano, o vampiro girou, sangue escuro jorrando de
suas feridas. Ele jogou Celine no ar, os ombros dela batendo na beira dos
bancos, arrancando o vento dos pulmões e quebrando algo nas costelas.
Nigel cambaleou, a lâmina de prata embutida no lado da garganta. Raiva
contorcendo seu rosto, ele seguiu em direção a Celine, o sangue jorrando
pelo corpo, as mãos estendidas.
Uma brisa correu pela nave, o som de asas batendo na sombra. Então algo
agarrou Nigel, arrancando-o de vista, os gritos de um animal ferido
desaparecendo na escuridão.
Com o corpo quase quebrado, Celine lutou para ficar de pé, buscando um
ponto de clareza além da dor. Uma sensação aguda irradiou através de seu
peito, sua visão nadando enquanto ela olhava para frente. Bastien encostou-
se a uma vasta coluna de mármore, uma mão pressionada sob a orelha, uma
expressão estranha nos olhos.
Ele caiu de joelhos.
Então Celine viu a cascata de vermelho pingando de seu pescoço.
— Bastien. — Ela correu em direção a ele, pegando-o antes que ele
atingisse o chão de pedra. Agachada ao seu lado, Celine pressionou as mãos
atadas sobre as dele, tentando estancar a ferida aberta em sua garganta. O
sangue escorria entre as pontas dos dedos, fluindo rápido e quente, como um
rio rompendo fissuras em uma represa.
Várias escovas de ar se reuniram em todos os lados. Celine não precisou
procurar saber quem estava lá. O resto da corte havia chegado, nem um
momento antes.
Bastien abriu a boca, a luz em seu olhar feroz. Ele tentou falar, mas um
rastro de sangue escorreu de sua boca.
— Não fale. — Celine o abraçou. — Você vai ficar bem. Nicodemus
estará aqui em breve. Mantenha sua força. — Ela pressionou o ferimento
dele até as pontas dos dedos ficarem brancas, mas o sangue de Bastien
apenas fluiu mais rápido, seu calor encharcando sua pele.
Um pequeno sorriso curvou seus lábios. Com a outra mão, ele agarrou seus
dedos com força.
Nos seus olhos, Celine viu um céu cheio de estrelas.
Ela viu um garoto que morreria por ela, assim como ela mataria por ele.
— Você vai ficar bem. — repetiu Celine, suas palavras trêmulas, lágrimas
escorrendo da ponta do nariz. — Não vai acabar assim. Eu sei que não. Eu
nem te disse que estou me apaixonando por você. — Alguém chorava
baixinho atrás deles. — Droga, não chore. — ela gritou por cima do ombro.
— Não há nada para chorar. Ele vai ficar bem. Todos nós vamos sair daqui
juntos. E amarei Bastien até que a última estrela caia do céu. — Sua voz
falhou. — Onde está Nicodemus? — gritou Celine, suas palavras ressoando
com imperiosidade. — Encontre-o de uma vez.
A deusa dentro dela deu um sorriso triste.
E os olhos de Bastien se fecharam, sua mão pousando no chão ao lado dos
pés de Celine.
MUITOS CAMINHOS PARA A FELICIDADE

N icodemus Saint Germain estava de pé sobre o corpo moribundo de seu


sobrinho.
O último membro sobrevivente de sua linhagem. A única razão de sua
existência. Tudo o que ele lutou por toda a sua vida mortal – seu legado –
estava drenando no chão da igreja diante de seus olhos.
Apropriado. Pois ele destruiu centenas de vidas ao longo dos séculos.
Tantas mortes. Tanta perda.
Sempre haveria um acerto de contas. O tempo ensinara a Nicodemus essa
verdade inevitável.
— Por favor — implorou Celine, lágrimas escorrendo pelo rosto enquanto
segurava a cabeça do sobrinho no peito, o sangue se acumulando em um
círculo cada vez maior. — Salve-o.
O peso da alma de Nicodemus já havia começado a se acalmar.
— Não. — ele disse simplesmente. Quebradamente. Foi o mesmo depois
que ele perdeu a irmã de Bastien, Émilie. Depois que seus pais pagaram
pelo maior erro de Nicodemus.
— Eu me recuso a aceitar isso — gritou Celine. — Faça alguma coisa.
Não o deixe morrer.
À sua direita e esquerda, Nicodemus sentiu seus filhos imortais se
mexendo. Boone chorou abertamente. Mais longe, Jae olhou para um ponto
do nada, suas feições diminuíam, seus dedos manchados pela evidência do
acerto de contas final de Nigel. Uma nuvem de raiva cercou Hortense,
Madeleine passou uma lágrima solitária por baixo do queixo da irmã. Ao
longo da periferia, Odette avançou como se quisesse subverter as ordens
dele, os olhos de zibelina arregalados.
— Pare — ordenou Nicodemus. Todos eles se endireitaram como
soldados. — Não serei desafiado em meus desejos. Sébastien sempre foi
destinado a viver e morrer como um mortal. Nada vale o preço dessa
maldição — disse ele, com tom firme. — Jurei a mim mesmo que nunca
tornaria um membro da minha família humana um monstro sanguinário.
— Vale a pena qualquer preço no mundo se Bastien viver. — implorou
Celine.
Uma luz forte brilhou nos olhos de Nicodemus. — Sébastien já provou que
é fraco demais para esta vida. Ele não deu ouvidos aos meus avisos quando
se apaixonou por uma garota mortal, e agora sua vida está perdida. Se ele
fosse um de nós, seria o mesmo. Nossos inimigos explorariam essas
fraquezas. E sempre haveria algo para ele perder.
— Então proteja-o. Faça-o mais forte. Apenas salve-o. — ela chorou.
Nicodemus olhou para a garota amaldiçoada. A causa da ruína de seu
sobrinho. Ele sabia que Celine amava Sébastien. Podia ver a verdade disso
em seu olhar assombrado. E isso o deixou frio. Sombrio. Insensível.
— Fiquei longe para que meus inimigos não fossem atraídos por
Sébastien. Então eles não seriam tentados. Eu o envolvi com meus filhos
imortais para que eles sempre o protegessem. Eu sacrifiquei tudo o que
amava para mantê-lo seguro. — Nicodemus inalou, um nó de dor tomando
forma em torno do vazio em seu coração. — Minha família sempre foi minha
fraqueza. E agora meus inimigos me destruíram com isso. — Ele balançou a
cabeça. — O amor é uma aflição para nossa espécie. Não vou refazer
Bastien apenas para vê-lo se tornar vítima dele novamente. Eu sinto muito.
— O que você quer que eu faça? — Celine sussurrou. — O que posso
dizer que vai fazer você salvá-lo?
— Nada. Tudo o que somos em nossas vidas humanas torna-se ampliado
pela imortalidade. O que Bastien ama agora será uma fraqueza ainda maior.
— Nicodemus estudou Celine, observando suas palavras despedaçarem sua
última esperança. — Esqueça tudo isso, criança. Viva sua vida à parte deste
mundo miserável. — Uma aproximação de simpatia atou suas feições.
Nicodemus voltou-se para os filhos imortais, pronto para sair. Para se sentar
com sua dor, ponderando tudo o que havia perdido esta noite. Fugir desta
cidade amaldiçoada para sempre.
— E se eu prometesse esquecer Bastien? — Celine disse atrás dele.
Nicodemus não se mexeu.
Ela tropeçou em seus pés em um farfalhar de tafetá preto, o ferimento no
pescoço enchendo o ar com um cheiro intoxicante.
— Você me disse que poderia me ajudar a esquecer. Que Bastien
respeitaria minha escolha. Se eu o esquecesse, se eu não fosse mais uma
fraqueza, você o salvaria?
Nicodemus deu um passo em direção às portas da catedral.
— Você disse que havia muitos caminhos para a felicidade — continuou
ela. — Se eu puder escolher um diferente, você não fará o mesmo?
Ele parou. Virou-se para olhar Marceline Rousseau por cima do ombro.
Suas mãos ainda estavam atadas, seu corpo coberto de sangue, uma grande
parte dela própria. Ainda a menina se recusou a capitular. Uma parte de
Nicodemus admirava sua teimosia. Sua relutância em desistir diante de tais
probabilidades.
Seu olhar caiu no corpo agredido de seu sobrinho. Nos últimos sinais de
vida que permanecem por dentro. Suspirando em derrota, Nicodemus
desviou o olhar.
— Bastien é o último de seus parentes. Você está pronto para andar
sozinho nesta terra? — Celine gritou. — Porque eu prefiro perdê-lo para
sempre do que vê-lo morrer.
Nicodemus encontrou os olhos de seus filhos imortais. Viu o peso de sua
perda refletido em seus rostos.
Não. Não é para ser.
Ele se endireitou e começou a se afastar.
— Nicodemus! — Celine gritou, a angústia em sua voz subindo para as
vigas acima. — Nicodemus Saint Germain!
Novamente Nicodemus parou, o eco do nome de sua família circulando
sob os tetos frescos da catedral, o som de sua dor agitando os fragmentos de
seu coração. Trazendo de volta à vida.
— Nós temos um acordo?
AMOR NÃO É AMOR

O primeiro do meu povo veio de Cartago.


Desde uma época em que o sangue reinava supremo. Quando
monstros e mercenários governavam o mundo conhecido. Este foi o começo
da Irmandade.
Pouco mudou desde então.
Eu estou ao longo do cais, olhando em direção às águas do Mississippi,
em paz pela primeira vez em uma década.
Quando ouvi pela primeira vez a notícia de que Sébastien Saint Germain
havia sido atingido por um golpe fatal na escaramuça na catedral, dores
estranhas se enrolaram no meu peito. Sei agora que foram os últimos
vestígios do meu fraco coração humano finalmente morrendo para que eu
pudesse abraçar a versão melhor e mais forte de mim mesmo.
Não há chance de Nicodemus ter transformado Bastien.
Não quando ele me recusou há dez anos.
Divertido o quão amarrado à sua moral o grande Nicodemus Saint
Germain pode ser. Especialmente considerando toda a morte e destruição
que ele operou ao longo dos séculos. Bastien foi o último herdeiro vivo da
linha Saint Germain. Agora, a única coisa que essa sanguessuga de
quatrocentos anos lutou para proteger acima de tudo se foi. Seu propósito foi
tirado dele, assim como o meu foi tirado de mim.
Eu desmontei o legado dele.
E é doce. O tipo de doçura que obscurece a amargura, consumindo-a
inteira.
Pois uma vez amei Bastien mais do que a mim mesmo. Eu até dei minha
vida humana pela dele.
Meu lindo irmãozinho.
Mas minhas lealdades estão em outro lugar agora. Com as criaturas que me
ofereceram o presente, o tio Nico se recusou a me conceder dez anos atrás.
Com as verdadeiras bestas imortais do Outro Mundo. Os mesmos que os
vampiros sempre deixaram de lado, para serem usados como cães de guarda
e alimentarem os restos da mesa de jantar. Tratada como nada além de
forragem em uma guerra de séculos com o Vale da Sylvan.
Mas não importa, isso é uma história para outra hora.
Uma vez eu andei entre os Caídos. Os via como família.
Mas eu não sou mais uma Saint Germain. Não preciso lamentar a morte do
meu irmão. Ele era cúmplice dos crimes do meu tio. Sua impetuosidade
provocou a morte de minha mãe há muitos anos. Bastien é a razão pela qual
ninguém tentou me salvar, uma mera garota, destinada a se tornar nada.
Meus pensamentos permanecem em Celine Rousseau. Uma pedreira
formidável, eu admito. Ela estava perto de descobrir a verdade do que eu me
tornei.
Mas a contagem aproximada é apenas de tiros de canhão e ferraduras.
Era algo que meu pai costumava dizer.
Eu me movo do meu lugar ao longo do píer, deslizando em direção às
sombras abaixo dele, confortável na minha pele pela primeira vez em eras.
As estrelas brilham com abandono, alheias à forma como elas existem pela
graça da lua. Mas eu estou ciente. Ela é nossa mãe em todos os aspectos.
Luca estará esperando por mim, como sempre fazia, mesmo quando éramos
crianças. Sob a luz prateada de nossa mãe lua, correremos livres juntos.
Nossas famílias podem ter sido inimigas mortais na vida, mas isso não
importa agora. Pois eu estou entre a sua espécie. Um deles. Um membro da
Irmandade, sempre.
E Luca sempre me amará, como faz há mais de uma década.
Eu também o amo. À minha maneira. Assim como eu amava Marin.
Sob o cais, a mudança começa. A magia queima através da minha corrente
sanguínea, enviando arrepios na minha espinha. Meus dedos se enrolam em
garras, minhas presas se alongam, meus cabelos longos se enrolam e se
remodelam.
E eu me torno quem eu sempre deveria ser.
Émilie le Loup, um lobo imortal uivando para a lua.
Pronta para qualquer coisa que vier.
Celine abriu os olhos assustada, como se tivesse caído de uma torre em seus
sonhos. Seu corpo estava danificado e lento, como o casco de um navio após
uma tempestade de verão. Uma nuvem pairou sobre sua mente, fazendo com
que tudo ao seu redor aparecesse filtrado como se estivesse através de uma
névoa.
Ela limpou a garganta com uma tosse fraca.
Imediatamente uma figura se moveu para o lado dela.
— Celine.
Parecia a voz que Celine queria ouvir. Mas diferente. Nos seus sonhos,
tinha sido diferente.
— Michael. — O nome dele quebrou na língua dela. Ela limpou a garganta
novamente, percebendo o quão seca estava. Quanto tempo ela deve ter
dormido.
— Você quer água? — Ele perguntou.
— Por favor. — Celine bebeu do copo que Michael segurou em seus
lábios. Todo movimento que ele fazia era lento. Cuidado. Indiscutivelmente
macio.
Celine piscou com força, mas o filme se manteve firme nos limites de sua
visão.
— O que aconteceu com seu nariz? — Sua sobrancelha franziu. — Alguém
bateu em você?
Aborrecimento cintilou no rosto machucado de Michael.
— Estou bem.
— Pippa está bem?
— Pippa está bem. Todo mundo está... bem.
— O que aconteceu? — Ela engoliu em seco. — Não me lembro como
cheguei aqui.
Michael assentiu.
— Você passou por uma provação.
— Parece que há buracos na minha memória.
— Isso é normal depois de tudo o que aconteceu. — Michael mudou uma
mão para cobrir a dela. — Mais tarde, prometo que podemos conversar
sobre tudo. Mas agora você deve descansar.
Celine engoliu em seco novamente, tentando banir o gosto de metal e ervas
da língua. Ela caiu contra os travesseiros, a dor ao seu lado fazendo-a
estremecer.
— Obrigado Michael. É reconfortante saber que você está aqui comigo.
— Onde mais eu estaria? — Ele apertou a mão dela, seus olhos pálidos
quentes. A abertura em sua expressão a acalmou. Como se ele não tivesse
nada que desejasse esconder dela, nunca mais.
Talvez Celine estivesse errada ao desconsiderar seus afetos, como no
passado. Michael Grimaldi sempre se sentiu como um pedaço de um quebra-
cabeça que simplesmente não se encaixava.
Hoje? Sentiu algo... diferente.
Michael continuou falando.
— Pippa saiu menos de meia hora atrás para dormir um pouco. — Ele
sorriu para si mesmo. — Ela ficará furiosa quando descobrir que você
acordou na ausência dela. — Ele se virou em direção à porta, seus passos
longos. Capaz. Rápido. — Eu vou chamá-la em breve.
Celine sentou-se, seu corpo gritando em protesto.
— Por favor não saia. Ainda não. — Ela não sabia o motivo, mas não
queria ficar sozinha.
Ele curvou uma sobrancelha sardônica para ela. Em seguida, pegou a
cadeira de madeira no final de sua cama de hospital.
— Estou simplesmente me aproximando.
Com um suspiro agradecido, Celine afundou nos travesseiros mais uma
vez. Ela olhou em volta. A capa espalhada sobre a cama lembrava o xale que
vira pela última vez nos ombros de Nonna. Um vaso de alegres flores
amarelas repousava sobre uma mesa gasta ao lado dela. Ao pé da cama,
havia um tomo pequeno e bem gasto.
— O que é isso?
Michael parou enquanto estava sentado.
— É uma coleção dos sonetos de Shakespeare. Estive lendo para pesquisa.
— Um sorriso constrangedor apareceu em seu rosto. — Uma garota com
alma de ferro me disse que eu deveria escrever um poema para ela.
Celine piscou, a memória retornando a ela, indistinta a princípio, depois
lentamente tomando forma. Quando Michael estendeu a mão para agarrar sua
mão novamente, ela hesitou por um momento, desejando que o resto de sua
mente se afastasse de toda a confusão. Desejando que ela pudesse preencher
as lacunas em sua memória. Então ela passou os dedos pelos dele.
— Você vai ler um para mim?
Michael agarrou seus dedos com força, depois começou a falar com uma
voz firme.
— Não me deixe para o casamento de mentes verdadeiras / Admita
impedimentos. O amor não é amor / O que se altera quando a alteração
encontra, / Ou se inclina com o removedor para removê-lo...
EPÍLOGO

P rimeiro não havia nada.


Depois... havia tudo.
AGRADECIMENTOS

Esta história mora na minha cabeça desde que eu era um adolescente


ranzinza, com a cabeça enterrada nos romances de Anne Rice até as
primeiras horas da manhã. Desde o momento em que se tornou realidade, não
se passou um dia em que eu não tenha ficado muito emocionado ao ter uma
equipe de pessoas acreditando em mim - e no meu trabalho - sem hesitar.
Barbara, ainda me lembro da sua gargalhada encantada quando disse que
queria escrever um livro de vampiros ambientado em Nova Orleans. Nada
que eu conquistei nesta carreira teria sido possível sem você. E aquela
gargalhada maravilhosa. Boa sorte, idiota... para sempre e depois.
Stacey, não há campeã melhor que você. Sua voz na minha cabeça me
motiva todos os dias para ser melhor do que eu era no dia anterior, e por
isso não há palavras suficientes de gratidão. Também encontrei o restaurante
perfeito para o bairro. Eu até peguei nossa mesa já. Nova Orleans é melhor
tomar cuidado.
Para a equipe de criadores de mágica da Penguin: seu apoio, entusiasmo e
ética de trabalho tornaram o mundo e os personagens que eu criei em minha
mente uma realidade bonita. Para Marisa Russell: muito obrigada por sua
paixão e entusiasmo. O dia em que você me disse que amava Penny
Dreadful, Eu sabia que éramos uma partida feita no céu. Uma gratidão sem
fim a Caitlin Tutterow por responder a todas as minhas perguntas insanas.
Um sincero obrigada a Carmela Iaria, Venessa Carson, Doni Kay, Theresa
Evangelista pela impressionante capa e design, Elyse Marshall, Felicia
Frasier (eu insisto em mais uma noite de massas no Brooklyn!), Lindsay
Boggs, Shanta Newlin, Erin Berger (massas noite parte deux, certo?),
Christina Colangelo, Colleen Conway, Caitlin Whalen e Bri Lockhart.
Imensa gratidão a Laurel Robinson, Cindy Howle e à inimitável Anne
Heausler por suas anotações e edições. E uma nota especial de
agradecimento a Kara Brammer e Felicity Vallence por serem os gênios
loucos que vocês dois são.
Um enorme obrigada a todos os incríveis blogueiros, leitores e amantes de
livros de todo o mundo. Não posso fazer o que faço sem vocês.
À Jessica Khoury pelo impressionante mapa e pelo lindo emblema. É a
minha área de trabalho e admiro seu talento e profissionalismo consumado.
A Daniel José Older pela experiência em Nova Orleans, pelas anotações e
pelo apoio sem fim. Obrigada, obrigada, obrigada.
A Alwyn por seus preciosos e-mails, seu entusiasmo e toda a ajuda para
aperfeiçoar minhas tristes tentativas de francês. Você é uma delícia e uma
das pessoas mais genuinamente gentis que conheço. Eu te adoro.
Para Rosh, JJ e Lemon: quando penso em todas as memórias que já
fizemos, sorrio para tudo o que está por vir. obrigada por me agraciar com
seu amor e talento sem fim.
A Sabaa por torcer comigo, chorar comigo, ler comigo e me inspirar todos
os dias. E por assistir The Two Towers Edição Extendida e conhecer todas
as falas de cor, assim como eu. Sua amizade é um presente além da medida.
A Gio Mannucci por toda a ajuda com o italiano. Eu amo como essa
carreira nos reconectou de uma maneira tão maravilhosa.
A Carrie Ryan e Brendan Reichs por todos os almoços, conselhos e
risadas da Cantina. QC representam!
À minha assistente Emily Williams: obrigada por ser a pessoa mais
organizada que conheço e por me manter - e minhas idéias enlouquecidas! -
na pista.
A Maggie Kane, Heather Baror-Shapiro e a maravilhosa equipe da IGLA:
obrigada por todo o seu trabalho sem fim e profissionalismo incessante.
Para Elaine: Tenho muita sorte de ter uma irmã escolhida como você.
obrigada por corrigir todo o espanhol do livro e me enviar mensagens de
texto carregadas de maldições às 3 da manhã e por amar Nova Orleans como
eu. Não há ninguém com quem eu goste de Dumaine, procurando um leitor de
tarô ou nosso próximo conserto gastronômico.
Para Erica, Ian, Chris e Izzy: amo muito vocês e sou muito grata por
chamá-los de família. Aos meus pais - Umma, pai, mamãe Joon e Baba Joon
- obrigada por todo o seu amor e por sempre colocarem meus livros onde
todos podem vê-los, de frente nas livrarias.
A Omid, Julie, Navid, Jinda, Evelyn, Isabelle, Andrew, Ella e Lily:
obrigada por nossa família e por todas as vezes que você nunca deixa de
aparecer e torcer por mim. Tenho muito orgulho de compartilhar esta vida
com vocês.
E para Vic: pela maneira como você me olha quando pensa que não estou
prestando atenção, e pela maneira como você me faz sorrir, mesmo quando
você não está lá, obrigada, para as estrelas e vice-versa. Não existe homem
melhor que você.
SOBRE A AUTORA

Renée Ahdieh é formada pela Universidade da Carolina do Norte em Chapel


Hill. Nas horas vagas, ela gosta de dançar salsa e colecionar sapatos. Ela é
apaixonada por todos os tipos de curry, cães de resgate e basquete
universitário. Os primeiros anos de sua vida foram gastos em arranha-céus
na Coréia do Sul; consequentemente, Renée gosta de ter a cabeça nas nuvens.
Ela mora em Charlotte, Carolina do Norte, com o marido e seu pequeno
senhorio de cachorro. Ela é autora de O Fogo Entre a Névoa e Smoke in the
Sun além do best-seller #1 do New York Times A Fúria e a Aurora e sua
sequência, A Rosa e a Adaga.

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