The Beautiful - Renée Ahdieh
The Beautiful - Renée Ahdieh
The Beautiful - Renée Ahdieh
Agradecimento
Sobre a Autora
Ver o Mundo inteiro num Grão
Ver o Céu numa Flor Bravia
É ter o Infinito na mão
E a Eternidade num dia
De “Augúrios de Inocência”
por William Blake.
Tradução por Matheus Mavericco
J’ai voulu ce matin te rapporter des roses;
O Aramis estava suposto para chegar à primeira luz, como ele fez nos
sonhos de Celine.
Ela acordava sob um céu ensolarado, a salmoura do oceano serpenteando
pelo nariz, a cidade pairando no horizonte.
Cheio de promessa. E absolvição.
Em vez disso, o sino de bronze na proa do Aramis tocou na hora do
crepúsculo, a hora do dia em que sua amiga Pippa chamou de “a escuridão”.
Era – na mente de Celine – algo muito britânico a dizer.
Ela começou a coletar essas frases não muito tempo depois de conhecer
Pippa, quatro semanas atrás, quando os Aramis haviam atracado por dois
dias em Liverpool. Sua favorita até agora não era — provável. — Celine
não sabia porque eles eram importantes para ela na época. Talvez fosse
porque ela pensava que as Coisas Muito Britânicas a serviriam melhor na
América do que as Coisas Muito Francesas que ela costumava dizer.
No momento em que Celine ouviu o sino tocar, ela caminhou para o porto,
os passos leves de Pippa seguindo em seu rastro. Filetes de trevas escuras se
espalharam pelo céu, uma névoa fantasmagórica encobrindo a cidade
crescente. O ar ficou mais espesso quando as duas meninas ouviram a
represa de Aramis através das águas do Mississippi, aproximando-se de
Nova Orleans. Mais longe da vida que eles deixaram para trás.
Pippa fungou e esfregou o nariz. Naquele instante, ela parecia mais jovem
do que seus dezesseis anos. — Para todas as histórias, não é tão bonito
quanto eu pensei que seria.
— É exatamente o que eu pensei que seria. — disse Celine em um tom
tranquilizador.
— Não minta. — Pippa olhou de lado. — Não vai me fazer sentir melhor.
Um sorriso apareceu no rosto de Celine. — Talvez eu esteja mentindo para
mim tanto quanto eu estou mentindo para você.
— De qualquer forma, mentir é pecado.
— Então, é ser desagradável.
— Isso não está na Bíblia.
— Mas deveria estar.
Pippa tossiu, tentando mascarar sua diversão.
— Você é terrível. As irmãs do convento de Ursuline não saberão o que
fazer com você.
— Eles farão o mesmo que com todas as meninas solteiras que
desembarcam em Nova Orleans, levando consigo todas as suas posses
mundanas: encontrarão um marido para mim. — Celine se absteve de franzir
a testa. Esta tinha sido sua escolha. O melhor dos piores.
— Se você se mostrar mundana, elas a combinarão com o tolo mais feio da
cristandade. Definitivamente alguém com um nariz bulboso e uma barriga.
— Melhor um homem feio do que chato. E uma pança significa que ele
come bem, então… — Celine inclinou a cabeça para um lado.
— Realmente, Celine. — Pippa riu, seu sotaque de Yorkshire tecendo as
palavras como finas rendas Chantilly. — Você é a garota francesa mais
incorrigível que eu já conheci.
Celine sorriu para a amiga.
— Eu aposto que você não conheceu muitas garotas francesas.
— Pelo menos não que falasse inglês tão bem quanto você. Como se você
tivesse nascido para isso.
— Meu pai achou que era importante para mim aprender. — Celine
levantou um ombro, como se isso fosse tudo, em vez de menos da metade. À
menção de seu pai – um francês sério que estudara linguística em Oxford –
uma sombra ameaçava descer. Uma tristeza com um peso que Celine ainda
não suportava. Ela fixou um sorriso irônico no rosto.
Pippa cruzou os braços como se estivesse se abraçando. A preocupação se
acumulou sob a franja loira na testa enquanto as duas meninas continuavam
estudando a cidade à distância. Toda jovem a bordo ouvira as conversas
sussurradas. No mar, os mitos que haviam compartilhado sobre xícaras de
café amargo e ralo haviam ganhado vida própria.
Eles se misturaram às histórias do Velho Mundo para formar histórias mais
ricas e sombrias.
Nova Orleans era assombrada. Amaldiçoada por piratas. Cercada por
sulistas. Um último refúgio para aqueles que acreditavam em magia e
misticismo. Ora, houve até boatos de mulheres possuindo tanto poder e
influência quanto a de qualquer homem.
Celine riu disso. Como ela ousou ter esperança. Talvez Nova Orleans não
tenha sido o que parecia à primeira vista. Apropriadamente, ela também não.
E se algo podia ser dito sobre os jovens viajantes a bordo do Aramis, era
que a possibilidade de magia como esta – um mundo como esse – se tornará
uma coisa vital.
Especialmente para aqueles que desejavam abandonar o espectro de seu
passado. Para se tornar algo melhor e mais brilhante.
E especialmente para aqueles que queriam fugir.
Pippa e Celine observaram enquanto se aproximavam do desconhecido.
Para o futuro deles.
— Estou com medo. — disse Pippa suavemente.
Celine não respondeu. A noite havia penetrado na água, como uma mancha
escura na organza. Um marinheiro desalinhado equilibrou-se ao longo de
uma viga de madeira com toda a graça de um aéreo, enquanto acendia uma
lâmpada na proa do navio. Como se em resposta, línguas de fogo saltassem
para a vida através da água, tornando a cidade em tons ainda mais
terrivelmente verdes.
O sino do Aramis tocou mais uma vez, dizendo aos que estavam ao longo
do porto até onde o navio partira para viajar. Outros passageiros saíram do
convés, chegando ao lado de Celine e Pippa, resmungando em português e
espanhol, inglês e francês, alemão e holandês.
Moças que deram um salto de fé e deixaram suas pátrias em busca de
novas oportunidades.
Suas palavras se fundiram em uma cacofonia suave de som que, em
circunstâncias normais, acalmaria Celine.
Não mais.
Desde aquela noite fatídica entre as sedas do ateliê, Celine ansiava por um
silêncio confortável. Fazia semanas desde que ela se sentia segura na
presença de outras pessoas.
A salvo com o tumulto de seus próprios pensamentos. O mais próximo que
ela chegara de atravessar águas mais calmas estava na presença de Pippa.
Quando o navio se aproximou o suficiente para atracar, Pippa segurou
repentinamente o pulso de Celine para se acalmar. Celine engasgou. Recuou
com o toque inesperado. Como um jato de sangue atravessou seu rosto, o sal
manchando seus lábios.
— Celine? — Pippa perguntou, seus olhos azuis arregalados. — O que há
de errado?
Respirando pelo nariz para estabilizar seus batimentos cardíacos, Celine
passou as duas mãos pelos dedos frios de Pippa.
— Estou com medo também.
Um ESTUDO De CONTRASTES
GTTAN
Jacques’
Por baixo, havia um endereço no coração de Vieux Carré, não muito longe
do convento.
— Venha aqui esta noite, por volta das oito horas, — continuou ela. —
Desconsidere a fila do lado de fora. Quando um homem bonito, com uma voz
como o pecado e um anel no ouvido direito, exigir saber o que você está
fazendo, diga-lhe para levá-lo a Odette, tout de suite[4]. — Ela pegou a mão
de Celine. Através do laço de sua luva, seu toque era frio.
Tranquilizante. Os olhos da garota se arregalaram por um instante, seu
aperto no começo. Ela inclinou a cabeça, um meio sorriso curvando seu
rosto de boneca.
— Foi um prazer conhecê-la, Celine, — disse ela calorosamente.
— Foi um prazer conhecê-la também... Odette.
Com outro sorriso simpatizante, a garota chamada Odette se afastou, o trem
de sua agitação deslizando em seu rastro. No instante seguinte, Anabel virou-
se para Celine.
— Acho que sou a última a cometer erros, Celine, mas não sei o que
aconteceu quando concordou em encontrar essa criatura Odette hoje à noite.
Você está doida? Você não pode deixar o convento depois do jantar. A
Madre Superiora proibiu-o expressamente. Ela disse que os acontecimentos
no bairro depois do pôr do sol...
— Promova o tipo de comportamento licencioso que não será tolerado sob
o teto dela. — concluiu Celine com uma voz cansada. — Eu sei. Eu estava
lá.
— Não há necessidade de ficar irritada. — Anabel soltou um forte cacho
vermelho do rosto. — Só estou preocupada com o que acontecerá se você
for pega.
— Eu pensei que você estava cansada de todo o barulho. — brincou
Pippa.
Celine sorriu, agradecida à amiga por desarmar a tensão.
— Pronta para conhecer um jovem cavalheiro forte.
— Na minha opinião, ele nem precisa ser jovem, — continuou Pippa.
— Ou um cavalheiro. — concluiu Celine.
— Och, você é terrível! — Cor inundando seu rosto, Anabel fez o sinal da
cruz. — O suficiente para me fazer levar para a igreja.
Celine fingiu ignorância, uma sobrancelha negra arqueando sua testa.
— Eu não tenho a menor idéia do que você está falando.
— Não seja a pequenina galinha que nunca despejou. Não comigo,
mademoiselle Rousseau. — Os olhos dela se voltaram para o peito de
Celine. — E certamente não com esse seio.
— O quê? — Celine piscou.
— Não se faça de inocente. — Disse Pippa com risadas.
— O que isso tem a ver com o meu... seio?
Pippa mordeu o lábio.
— Foi dito de brincadeira, querida. Você deve saber que tem uma figura
adorável. Ela bateu na mão de Celine como se fosse uma criança. O
movimento irritou os nervos de Celine. — Não leve a sério. Presentes foram
dados a você.
Presentes?
Eles pensaram que a figura dela era um presente? O ridículo disso quase
fez Celine cair na gargalhada. Houve um tempo em que ela apreciara seu
corpo por sua beleza e resiliência.
Mas esse tempo havia passado. O que ela não daria para ser ágil e magra
como Anabel. Os “presentes” sobre os quais essas garotas riram agora não
trouxeram Celine nada a não ser problemas.
E eles a deixaram longe de inocente.
Um rubor subiu nas bochechas de Celine. Queimou em sua pele, quente e
rápido, como se – mesmo de brincadeira – essas duas garotas pudessem ver
a verdade que ela trabalhava para esconder todos os dias de sua vida. O pior
de seu passado lavou sua memória. O sangue escorreu por sua visão, o
cheiro de cobre quente enchendo seu nariz, liberando a luz do ar.
Mas isso foi um absurdo. Como Pippa e Anabel sabem o que ela fez? Por
que ela fugiu de casa há cinco semanas? Celine lutou para acalmar seus
nervos.
Eles não. Ninguém faria isso. Contanto que ela não respirasse uma
palavra.
Seu nome é Marceline Béatrice Rousseau. Isso é tudo o que alguém
precisa saber sobre você.
— Eu nunca interpretaria inocentes, senhoras. — Celine piscou e sorriu
brilhantemente.
— Simplesmente não serviria.
A nabel traiu Celine no jantar, apenas uma hora depois de terem retornado
ao convento.
A Madre Superiora levou o trabalho de um instante para extrair a verdade
da garota de lábios soltos. Assim que Anabel disse às jovens reunidas que
os lenços bordados de Celine haviam sido comprados com o preço total de
uma só vez, a freira de olhos de falcão – com seu hábito perfeitamente
pressionado – procurou detalhes.
Infelizmente, Anabel provou ser uma péssima mentirosa. Por todas as
histórias que Celine ouvira sobre os escoceses, ela ficou profundamente
decepcionada por ter encontrado o único Highlander incapaz de contar uma
história.
Agora Celine estava presa revisando a paisagem no escritório da Madre
Superiora, o jantar de ensopado sem graça esfriando na mesa da cozinha. Ela
procurou no espaço por uma distração. Durante todo o tempo, ela tentou
inventar uma mentira crível por que deveria ter permissão para passear pela
cidade no anoitecer.
Foi tudo tão dramático. Tão desnecessário.
Por que todos que Celine encontrou insistiram em dizer-lhe como viver sua
vida?
Pippa sentou-se em um silêncio culpado nas proximidades, torcendo as
mãos como um personagem de uma história de advertência. Celine respirou
fundo, ciente de que não se podia contar com Philippa Montrose para apoiar
algo semelhante à perfídia. Pippa era simplesmente muito boa. Era uma
verdade universalmente reconhecida por todos os que residiam no convento,
até pelas próprias freiras:
Pippa Montrose era confiável e obediente. Nada como a impetuosa Celine
Rousseau.
De fato, por que Pippa foi convocada aqui? Ela não era culpada de
nenhuma irregularidade. A presença dela foi um esforço para destacar as
más ações de Celine? Ou talvez intimidar Pippa a traí-la também?
Com o olhar sombrio ao pensar, Celine examinou a sala. De um lado da
muralha, havia uma grande cruz de madeira que havia sido doada por uma
das famílias espanholas mais antigas de Nova Orleans, um tempo antes de os
franceses se apropriarem da cidade portuária. Além das persianas
parcialmente abertas, uma fenda da luz solar minguante banhava os confins
do convento de Ursuline.
Se apenas as janelas pudessem ser totalmente abertas, para permitir que a
vista do porto se infiltrasse nos pisos inclinados. Talvez enchesse esses
aposentos de vida com vida. No segundo dia, Celine tentou fazer isso
sozinha, mas foi castigada por dez minutos depois; as janelas do convento
caiado de branco eram sempre fechadas, em um esforço para manter a
atmosfera enclausurada.
Como se pudesse ser qualquer outra coisa.
A porta se abriu. Pippa sentou-se ereta no mesmo instante em que os
ombros de Celine caíram.
Mesmo antes de a Madre Superiora ultrapassar o limiar, a lã de seu hábito
preto encheu a sala com sua presença, cheirando a lanolina e a pomada
medicinal que ela usava todas as noites para as mãos rachadas.
A combinação era como um cão molhado em um palheiro.
Assim que a porta se fechou, as linhas em torno da boca da Madre
Superiora se aprofundaram. Ela parou para respirar, depois olhou para eles,
sua expressão severa. Um esforço óbvio para instilar uma sensação de mau
presságio, como um tirano da antiguidade.
Embora fosse inoportuno, um sorriso ameaçou tomar forma no rosto de
Celine. Tudo nessa situação era absurdo. Menos de cinco semanas atrás,
Celine havia sido aprendiz de uma das mais exigentes costureiras de Paris.
Uma mulher cujos gritos de raiva frequentes faziam os cristais tremerem em
seus candelabros. Um verdadeiro opressor, que rotineiramente rasgava o
trabalho de Celine em pedaços – diante de seus olhos – se um único ponto
estivesse fora do lugar.
E essa freira tirânica com mãos rachadas pensou que ela merecia medo?
Como Pippa diria, provavelmente não.
Um riso escapou da boca de Celine. Pippa mexeu na cadeira em resposta.
O que poderia ter causado o desgaste das mãos da Madre Superiora?
Talvez ela tenha trabalhado em algum ofício clandestino, profundamente nas
cavidades de sua cela. Um pintor, talvez. Ou um escultor. E se ela fosse
secretamente apaixonada por palavras à noite?
Melhor ainda, se ela escrevesse inteiramente em partes ou coisas ligadas a
duplo sentido, como Malvolio em Twelfth Night.
Seja pela minha vida, esta é a mão da minha dama, estes são os seus C's,
os U's e os T's, e assim ela faz ótimos P's.
Celine tossiu. Rugas de irritação se formaram na testa da Madre Superiora.
A idéia de que essa freira com um hábito engomado diria algo
desagradável fez Celine fixar os olhos no chão de pedra polida para não rir.
Pippa a cutucou novamente, desta vez com mais força. Embora sua amiga
não tenha dito nada, Celine percebeu que Pippa não estava nem um pouco
divertida com a situação deles.
Com razão. Nada sobre irritar a matrona do convento deve ser engraçado.
Essa mulher lhes dera um lugar para morar e trabalhar. Um meio pelo qual
encontrar seu caminho no Novo Mundo.
Apenas uma menina ingrata e problemática veria o contrário. Uma garota
exatamente como Celine.
Séria por esses pensamentos, Celine mordeu o interior de sua bochecha, a
sala ficando mais quente, suas estadas ficando mais apertadas.
— Espero que você se explique, mademoiselle Rousseau — começou a
Madre Superiora com uma voz fina e grave ao mesmo tempo.
Celine ficou calada, com os olhos baixos. Ela sabia que não deveria
começar oferecendo uma defesa. A Madre Superiora não os chamou aqui
com a intenção de ouvir; ela os chamou aqui com uma mente para ensinar.
Foi uma lição que Celine entendeu bem. Ela foi criada sobre isso.
— Esta jovem que você conheceu na praça, por que ela não vem ao
convento durante o dia ou consulta uma costureira local? — Perguntou a
Madre Superiora. — Se ela deseja contratá-lo para projetar roupas para ela,
parece apropriado que ela venha aqui, n'est-ce pas[1]?
Quando Celine ainda não respondeu, a Madre Superiora resmungou.
Inclinou-se para mais perto.
— Répondez-moi [2], mademoiselle Rousseau. Immédiatement [3]. — ela
sussurrou, seu tom misturado com aviso. — Ou você e Mademoiselle
Montrose vão se arrepender.
Diante da ameaça, Celine levantou a cabeça para encontrar o olhar da
Madre Superiora.
Ela lambeu os lábios para aguentar o tempo enquanto escolhia suas
próximas palavras.
— Je suis désolée, Mère Supérieure [4], — Celine pediu desculpas, ela
olhou para a direita, tentando decidir se envolvia ou não Pippa nessa
falsidade — Mas, infelizmente, seu modista não está familiarizado com o
estilo barroco de se vestir. Ela expressou urgência em precisar das roupas e
um horário que não parecia ser flexível durante o dia. Você vê... ela é
voluntária todas as tardes em uma organização de senhoras que tricota meias
para crianças.
Mesmo de perfil, Celine viu os olhos de Pippa se arregalarem de
consternação.
Era uma mentira abominável, com certeza. Formar Odette como um anjo
com um fraquinho por almas descalças estava entre os mais . . . histórias
coloridas que Celine havia contado em sua vida. Mas toda essa situação era
ridícula. E Celine gostava de prevalecer sobre os tiranos, mesmo com a
menor medida possível. Especialmente aqueles que ameaçavam seus amigos.
A carranca da Madre Superiora se suavizou, embora o resto de sua
expressão permanecesse duvidoso. Ela colocou as mãos atrás das costas e
começou a andar.
— Seja como for, não acho apropriado que você viaje pela cidade ao
anoitecer sem escolta. Uma jovem mulher não muito mais velha que você...
ontem pereceu ao longo das docas.
Na opinião de Celine, perecer era uma palavra bastante moderada por ser
rasgada em pedaços sob um céu estrelado.
A Madre Superiora fez uma pausa em oração silenciosa antes de retomar
sua palestra.
— Durante a temporada de carnaval, há muitos foliões nas ruas. O pecado
corre desenfreado, e não desejo que uma mente tão fraca e suscetível quanto
a sua seja atraída pelo perigo.
Embora Celine se irritasse com a leve, ela assentiu em concordância.
— Eu também não quero ser tentada por nada desfavorável. — Ela
pressionou a mão sobre o coração. — Mas acredito que essa jovem seja boa
e temente a Deus, Mère Supérieure. E o dinheiro que ela dará ao convento
pelo meu trabalho seria sem dúvida um grande benefício para todos nós. Ela
deixou claro – várias vezes – que o custo não era um objeto.
— Entendo. — A Madre Superiora virou-se para Pippa sem aviso prévio.
— Mademoiselle Montrose, — disse ela — Parece que você tem pouco a
oferecer sobre o assunto. O que você tem a dizer sobre esta situação?
Celine fechou os olhos, preparando-se para o que estava por vir. Ela não
culparia Pippa por dizer a verdade. Era simplesmente da natureza dela fazê-
lo. E quem poderia culpar Pippa por seguir sua inclinação natural.
Pippa limpou a garganta, apertando as mãos pequenas em punhos.
— Eu... acho a moça bastante digna de confiança e virtuosa também,
Madre Superiora. — disse ela lentamente. — É claro que suas preocupações
não são sem mérito, especialmente considerando o que aconteceu ao longo
das docas. Faria diferença se eu me oferecesse para acompanhá-la?
Poderíamos fazer as medições da dama juntos e seguir o nosso caminho. Não
acredito que sairíamos do convento por muito tempo. De fato, não vejo razão
para perdermos a oração da noite.
O tempo parou. Foi a vez de Celine arregalar os olhos com consternação.
Pippa Montrose se ofereceu para ajudar. Mentira por Celine. Para uma
freira.
— Tenho muitas dúvidas, mademoiselle Montrose — disse a Madre
Superiora depois de respirar. — Mas talvez se você estiver disposto a
fornecer escolta...
— Estou disposta a assumir total responsabilidade. — Pippa agarrou o
minúsculo crucifixo de ouro aninhado na cavidade da garganta. Ela deixou
cair a voz. Deixe-o encher de reverência. — E eu confio que Deus irá
conosco esta noite.
A Madre Superiora franziu o cenho novamente, os lábios se abrindo
lentamente. Sua atenção mudou de Pippa para Celine e voltou. Ela ficou em
pé. E tomou uma decisão.
— Muito bem — disse ela.
Uma onda de surpresa passou por Celine. A Madre Superiora mudou de
rumo muito rapidamente. Muito facilmente. A suspeita mordeu o estômago de
Celine. Ela olhou para Pippa de lado, mas sua amiga não olhou para ela.
— Obrigada Madre Superiora — murmurou Pippa. — Eu prometo que
tudo correrá como planejado.
— Claro. Desde que entenda, confio plenamente em você, mademoiselle
Montrose. Não me decepcione. — O sorriso da freira era perturbadoramente
beatífico. — Que a luz de Deus brilhe sobre vocês duas, minhas filhas.
As duas garotas desceram a Rua Royale, à procura de uma placa que dizia
'Jacques'.
Quando viraram uma esquina, passaram por uma estreita rua lateral que
cheirava suspeitamente a lixo. O beco estava apagado. Removido do reino
do povo civilizado.
Celine parou quando a sugestão de uma briga emanou de suas sombras. A
atingiu como um raio, a eletricidade chiando em sua pele. Um homem gritou,
implorando por sua vida em uma mistura gutural de francês e inglês. Suas
palavras foram seguidas pelo som de um punho contra a carne.
E se um assassinato estivesse ocorrendo a apenas alguns passos de onde
eles estavam?
Celine sabia que era mais prudente continuar seu curso. Permanecer
ambivalente.
Seguro.
Mas se um monstro tira uma vida, que tipo de criatura se recusa a salvar
uma?
Pippa puxou o braço de Celine. Celine a ignorou. Alguém estava sendo
espancado até a morte no beco, sem recurso. A parábola do bom samaritano
ecoou em seus ouvidos, advertindo-a a prestar atenção. Agir.
O homem gritou de novo e Celine deu um passo mais perto.
— Celine! — Pippa exclamou em um sussurro alto.
— Quem está aí? — Uma voz profunda chamou do centro obscuro do
beco.
Sem piscar um olho, Celine puxou Pippa em uma queda de sombras
próximas, seu coração batendo forte no peito. Ela olhou ao virar da esquina
– para o beco estreito – permitindo que sua visão se ajustasse à escuridão.
— Não deveríamos estar aqui — Pippa sussurrou no ouvido de Celine, os
olhos arregalados de terror, a respiração pesada. — Devemos sair às...
Celine pressionou um dedo na boca de Pippa e balançou a cabeça. Ela se
concentrou na cena que se desenrolava nas profundezas da pequena rua
lateral. Demorou um instante para formar um entendimento.
Um homem estava deitado de lado no meio de uma pilha de cascas de
frutas secas, suas palavras distorcidas, sua situação clara. Uma mão foi
levantada em súplica. Seus ombros tremiam incontrolavelmente.
Dois outros homens estavam de cada lado dessa pobre alma, apoiando-o
como um par de espectros adequados. Através da escuridão, o homem mais
baixo acendeu um charuto.
Um flash de luz do fogo brilhou sobre um conjunto de dentes brancos
perfeitos e o linho branqueado de suas mangas de camisa enroladas.
Mas não foi esse homem que chamou a atenção de Celine.
Era o mais alto, à sua direita, observando a violência se desenrolar como
se fosse simples entretenimento. Um show realizado no palco diante de um
público pagante.
No alto de sua cabeça, Celine reconheceu a inclinação de um chapéu
Panamá.
Talvez tenha sido uma coincidência. O garoto que ela vira naquela
primeira noite – aquele cuja memória ela lutara para conjurar dias depois –
não podia ser o único indivíduo em Nova Orleans com uma propensão a esse
estilo. Mas uma parte mais profunda e mais visceral de Celine a advertiu
para não colocar muita fé em coincidências.
— Por favor, Fantôme[2] — implorou o homem encolhido na lama. —
Pardonnez-moi [3]. — Sua voz tremia enquanto ele pedia perdão. Ele
estendeu a mão em direção à figura do chapéu Panamá. O que ele chamou de
fantasma. Um apelido adequado para uma criatura tão confortável nas
sombras.
— Desculpas não são nada sem reparações, Lévêque. — Fantôme disse
em um tom ricamente áspero, de costas para Celine, dificultando o
discernimento de seus traços. Mesmo nos movimentos mais sutis, ele se
comportou como muitos jovens de linhagem em Paris: sem se importar com o
mundo. Como se o próprio ar que ele respirava estivesse coberto de pó de
diamante.
Só o pensamento enfureceu Celine.
Continuando, ele disse:
— Você foi avisado do que aconteceria na próxima vez em que se
comportasse com tanto desrespeito. — Ele acenou com a cabeça para o
homem que fumava o charuto, que arregaçou as mangas da camisa para
começar de novo.
— Espere, espere, espere! — Disse o homem encolhido, sua voz ficando
mais alta a cada apelo. Ele passou o antebraço pelo rosto para afastar os
golpes que se aproximavam. — O que você quer? Você quer que eu peça
desculpas a ela? Vou me ajoelhar pelo perdão de mademoiselle Valmont. Eu
vou...
— Ah, Lévêque. Você não tem nada que eu, ou Mademoiselle Valmont,
queira. — Apoiando o ombro direito contra a parede de tijolos, ele acenou
com a cabeça novamente em direção ao seu compatriota com o charuto.
Como um trovão, um punho bateu no rosto do homem trêmulo. Enquanto o
espancamento continuava, o Fantasma pressionou os dedos na lateral da
garganta como se estivesse checando o próprio pulso, depois sacudiu um
pedaço de algodão imaginário do ombro.
O som de ossos quebrando pela noite, fazendo Celine estremecer.
Isso foi cruel. Desnecessário. Pavoroso.
Ela se moveu para parar a surra, mas Pippa segurou-a firmemente no
braço.
— Não interfira — disse ela. — Por favor. Homens violentos são
imprevisíveis.
Suas palavras deixaram Celine fria.
Claro que estavam. Ela sabia bem o que homens violentos eram capazes de
fazer. Sua mente relampejou para uma tarde de inverno no ateliê. Um jovem
rico que oferece trazer chá quente e um cobertor quente enquanto ela
trabalhava. A sensação de uma palma pegajosa no pescoço. Como isso a
chocou em sua devassidão não convidada. Como um toque rapidamente se
tornou doloroso. Unhas cravando em seu braço. Dedos rasgando seus
cabelos. Uma palma áspera ao redor do tornozelo.
Não.
Não.
Não.
Em seguida, o esmagamento de um candelabro contra o crânio.
O silêncio que se seguiu. O sangue que correu.
Celine ficou paralisada por essa repentina lavagem de memória. Naquele
momento, ela se tornou uma assassina. O próximo, uma fugitiva. Agora ela
vivia em um convento do outro lado do Atlântico, todas as noites
compartilhando a palavra de Deus com outras moças.
A ironia.
Pippa agarrou o antebraço de Celine.
— Celine?
Celine se livrou de seus pensamentos quando o homem com o charuto se
moveu para sair do beco, limpando as juntas ensanguentadas com um lenço
de seda. Pippa inalou bruscamente quando Celine entrou em seu caminho
sem pensar, impedindo-o de prosseguir, encontrando seus olhos encapuzados
com seu próprio olhar frio. Ele levantou uma sobrancelha para ela.
Mesmo sem a ajuda de uma lâmpada de gás, Celine podia ver sua
juventude óbvia e a costura fina em seu caro colete de damasco inglês. Uma
fina corrente de ouro pendia do pescoço dele, um monóculo pendurado no
centro. Sua pele de cobre não era marcada – na verdade, quase perfeita
demais – e seus cabelos eram uma massa de ondas escuras. Se Celine tinha
que adivinhar, provavelmente sua família era das Índias Orientais. Seus
olhos castanhos estavam cheios de interesse e não uma pequena quantidade
de admiração. Era quase como se ele a tivesse encontrado em um passeio
noturno por um jardim.
Este era – por todos os direitos – a aparência de um cavalheiro.
Os olhos do garoto vagaram por Celine, de cima a baixo. Ele deixou seu
olhar se voltar para Pippa, a quem enviou um sorriso lento. Então ele se
curvou antes de recuar, limpando o caminho estreito com um floreio.
E Celine foi recebida, cara a cara, com le Fantôme. As unhas de Pippa
cravaram na pele de Celine, provocando um tremor de medo. Outro choque
de consciência acalorada.
O Fantôme chegou mais perto, seus movimentos sem som. Ele estava
diante de Celine, suas feições ausentes de qualquer emoção discernível, o
conjunto de seus ombros fácil.
Forte. Embora ele não fosse muito mais alto que o garoto do monóculo, sua
presença ocupava infinitamente mais espaço. Ela podia entender por que o
motorista o havia rendido sem pensar. Celine parou de arregalar os olhos, de
abrir os lábios. Se ela visse esse garoto à luz do dia, seria forçada a admitir
uma verdade inatacável: O Fantôme era o jovem mais impressionante que
ela já tinha visto.
A pele acima da gravata estava bronzeada, os músculos do pescoço
presos. Ao longo de sua linha do queixo quadrado, havia a sugestão de barba
por fazer, sua sombra acentuando a elegante simetria de seus traços. Isso
trouxe à luz um nariz aristocrático, que contrastava com seus cílios grossos e
sobrancelha escura. Espanhol talvez? Norte-africano, talvez?
Independentemente disso, ele era uma mistura fascinante do Velho Mundo
ao lado do Novo.
Um pirata enfeitado em Savile Row.
Ele era... verdadeiramente bonito. Como um príncipe de um conto de fadas
sombrio.
Celine ficou lá um momento, as palavras falhando. Quando ela percebeu
que ele a deixara sem palavras – roubou o próprio fôlego de sua língua – a
indignação se enrolou em sua garganta.
Um vislumbre de diversão cintilou ao lado de seus lábios. Um ligeiro
recuo na bochecha direita. O gesto fedia a arrogância. Esse garoto sabia
muito bem como ele era. Sabia como exercer seu poder como um mestre de
armas.
Celine estreitou o olhar para ele.
Quando ele falou, seus olhos brilharam, concedendo a seus traços
cinzelados um olhar de ameaça.
— Como posso ajudá-la esta noite, mademoiselle? — ele disse em voz
baixa.
Como esse demônio claramente apreciava a visão dela, Celine decidiu
ignorá-lo e, em vez disso, virou-se para o lacaio que estava atrás dele, que
apoiou um pé na parede de tijolos enquanto inalava seu charuto.
— Faz você se orgulhar de vencer um homem indefeso, monsieur [4]? —
Ela perguntou em um tom frio.
— Nem um pouco. — disse o outro garoto com sotaque britânico, em torno
de uma expiração de fumaça azul pálida. — Mas isso me mantém flexível
para o ringue de boxe.
— Você se atreve a brincar com esse comportamento? — Celine exigiu. —
Você deveria ter vergonha.
O garoto do charuto riu.
— A adorável jovem poderia falar de forma diferente se soubesse o que
esse bastardo havia feito.
— Ele está desamparado. Você e seu… — Celine apontou um dedo na
direção do fantasma, ainda se recusando a reconhecê-lo. — Amigo tem toda
a vantagem. — Quando ela terminou de falar, o homem na lama olhou para
ela por trás das pálpebras inchadas. Então ele caiu de volta, seu peito
arfando de alívio.
— E se estivéssemos defendendo a honra de uma mulher? — O garoto
estendeu o cigarro, moendo-o sob os calcanhares.
A pergunta inesperada levou Celine de surpresa por um instante.
— Não há honra em derrotar um homem indefeso.
— Uma mulher sábia além dos anos — o Fantasma disse suavemente, um
sotaque estranho passando por seu discurso. Quando ele falou, uma onda de
gelo passou entre as omoplatas de Celine, provocando um arrepio na
espinha. — Mas não pense que sabe de tudo, mademoiselle. — continuou
ele.
Celine deslizou o olhar para ele, seu coração um baque baixo no peito. Ela
levantou o queixo.
— Eu sei o suficiente, monsieur.
— Então saiba disso: a verdade nem sempre é o que você vê. — Ele fez
uma pausa. — Agora se afaste. — Seus olhos de aço se estreitaram quase
imperceptivelmente. — Por favor.
Atrás dele, seu amigo riu.
— Enquanto eu vivo e respiro. — ele murmurou. — Sébastien Saint
Germain... atuando como parte de um cavalheiro, em vez de um desolador.
Em resposta, um músculo bateu na mandíbula do fantasma. O menor
indício de descontentamento. Ele olhou para o amigo, avisando-o sem
palavras. O garoto com o monóculo sorriu em resposta, o que pareceu
estranho a Celine, dadas as circunstâncias.
Quando um claramente superou o outro.
Não importa. O fantasma tinha um nome.
— Você não me comanda, Sébastien. — disse Celine, seu tom preciso. —
Eu desafio você a tentar.
Sébastien respirou com cuidado.
— Aceito seu desafio, mademoiselle. — Com um meio sorriso malicioso,
ele a segurou pela cintura e a moveu para um lado, levantando-a do chão
como se fosse mais leve que o ar.
Celine reagiu por impulso – o desejo de imobilizá-lo como ele a tinha.
Seus dedos dos pés, pendurados sobre os paralelepípedos – combinando
com ele ao nível dos olhos -, ela agarrou Sébastien pela gravata de seda.
Puxou com força, sua expressão determinada. Seus olhos se arregalaram de
surpresa, uma faísca de fogo queimando em suas profundezas. O recuo em
sua bochecha apareceu por menos de um instante.
Ele era... divertido?
Homem sem noção.
Ela apertou mais a gravata dele. Sentiu o vento fino do tecido entre os
dedos. Recusou-se a desviar o olhar, embora ele a segurasse no ar como um
fantoche em uma corda.
— Celine! — A voz de Pippa era estridente. Celine não precisava
adivinhar como sua amiga estava chocada. Pippa se aproximou, o pânico se
desenrolou de sua pele. — Desculpe-nos pela interrupção, senhor. —
Embora Pippa se dirigisse a Sébastien, seus olhos de metal nunca se
afastaram dos de Celine.
— Precisamos ir. — insistiu Pippa.
— Ponha-me no chão, monsieur Saint Germain — exigiu Celine. — De
uma vez só.
Para sua surpresa, Sébastien colocou-a de pé. Mas ele não tirou as palmas
das mãos da cintura dela, assim como Celine não renunciou ao seu aperto na
gravata. Mesmo através do espartilho, ela sentiu o toque do polegar dele
acima do quadril, a pressão dos dedos longos na parte inferior das costas.
Seu pulso batia forte no peito, seu ritmo rápido e fervente.
— Ela tem dentes — disse ele calmamente. — Mas ela também tem
garras?
— Existe apenas uma maneira de descobrir. — Ela quis dizer isso como
uma ameaça.
Ele tomou isso como um desafio.
O sorriso de Sébastien foi rápido. Não estudado. Incomum em um garoto
que obviamente se orgulhava do controle. A borda de suas feições aumentou,
levando Celine a suspeitar que ele não estava apenas divertido.
Era possível que ele estivesse intrigado?
Celine soltou a gravata, as costas da mão roçando um botão de obsidiana
enquanto deslizava sobre o colete. Embora estivesse longe da coisa mais
imprópria que ela fizera hoje à noite, o toque parecia ilícito. Roubado. Suas
bochechas esquentaram quando algo mudou em seu olhar.
— Bastien. — A voz de seu amigo cortou sua troca silenciosa. —
Devemos ir antes que alguém chame a polícia. — Ele avançou
propositadamente, uma palma se movendo para o ombro de Sébastien,
exigindo sua atenção.
Por um instante delicioso, Bastien ignorou. Então ele deslizou as mãos da
cintura de Celine, deu um passo para trás e inclinou o chapéu para ela. Com
horror, ela percebeu que o toque dele havia queimado sua pele. Essa poderia
ser a única explicação de por que o ar ao redor de sua cintura estava tão frio.
Quando ele passou por ela, o cheiro de bergamota e couro seguiu seu rastro.
Uma onda de emoções percorreu seu corpo. Celine se contentou com a
indignação, agarrando-a como uma tábua de salvação. Quando ela se virou
para garantir que tinha a última palavra, viu um brilho de prata em sua
periferia. Demorou menos do que um piscar de olhos para perceber sua
fonte.
O homem na lama havia libertado uma adaga da bota, com os traços de
cicatrizes ferozes ao luar.
Celine gritou em aviso, puxando Pippa para o lado. No mesmo instante,
Bastien girou, retirando um revólver de dentro do casaco, em um movimento
contínuo. Ele mirou – querendo atirar -, mas seu amigo se lançou para o
homem com a adaga, a mão direita envolvendo o pulso do homem.
Sem explicação, o homem caiu para a frente, como se de repente tivesse
adormecido, a adaga caindo no chão ao lado dele.
Tudo aconteceu tão rapidamente. Celine piscou uma vez. Duas vezes.
Pippa esforçou-se por respirar, os cachos loiros tremendo acima da testa.
— O que você fez? — Celine sussurrou para o garoto com o monóculo. —
Ele está... morto?
Os dois jovens tiveram uma conversa sem palavras.
— Ele está... dormindo — disse o garoto com o monóculo com cuidado,
como se tivesse decidido por uma versão da verdade. — Ele ficará muito
bem em uma hora, embora o palerma não mereça.
— Mas...
— Nós terminamos aqui. — disse Bastien, seu tom frio. Proibindo.
Celine olhou para ele.
— Você não é absolutamente...
— Minhas desculpas, mademoiselle. E para você, senhorita. — Ele se
curvou bruscamente para Pippa antes de se afastar. — Arjun? — Ele chamou
por cima do ombro. — Eu acredito que te devo uma bebida.
— Longe de mim recusar uma oferta tão generosa. — Arjun sorriu
ironicamente quando alcançou a adaga caída, jogando-a profundamente no
beco. Então ele se levantou e limpou as mãos mais uma vez. —
Especialmente de um cavalheiro tão estimado.
Celine mordeu nada quando começaram a se afastar, lutando para manter a
compostura, os punhos cerrados. Esse garoto amaldiçoado a roubara muito
nesses momentos. As palavras de seus lábios, o hálito de sua língua. Agora
ele pensou em dispensá-la como uma criança?
— Você não é um cavalheiro, monsieur Saint Germain. — disse Celine em
voz alta.
Ele parou. Pivotado em um salto polido.
— É isso que você pensa, Celine?
Celine ficou mais alta, os nós dos dedos ficando brancos. — Sim. Eu
penso isso.
Bastien se inclinou para mais perto. Um lampejo de luz do fogo pegou sua
corrente de relógio de ouro. No leão rugindo gravado em seu anel de sinete.
— Eu não dou a mínima.
Pippa ofegou, as duas mãos cobrindo a boca, os olhos arregalados que os
pires de chá.
Então Bastien continuou seu caminho, Arjun rindo baixinho. Quase com
pena.
A palavra sacudiu Celine. Ela nunca ouviu isso em voz alta. A vida
protegida que ela vivera em Paris a havia poupado de ser invadida por esse
tipo de conversa. Seu pai costumava comentar que os ouvidos femininos
eram delicados demais para essas coisas.
Mas Celine não sentiu como se seus ouvidos delicados tivessem sido
agredidos pela única sílaba. Bastien pode ter proferido uma palavra suja,
mas ele falou com ela como faria com um homem. Como igual. O sangue
correu por seu corpo, adrenalina alimentando seu caminho. O horror se
instalou na base de sua garganta, um nó se apertando lentamente.
Ela conhecia esse sentimento. Reconheceu. Ela sentiu quando o agressor
parou no chão do ateliê, o vermelho escorrendo da ferida no crânio dele, a
mão dela apertando os candelabros.
Celine sentiu... algo poderoso. Uma parte de algo maior que ela.
E ainda assim ela não sentiu um remorso por qualquer coisa que tinha
feito.
Era aterrorizante conhecer uma criatura tão negra se contorcendo sob a
pele de Celine.
Esse não era o comportamento de uma jovem piedosa, nem eram as
emoções de uma garota que deveria – com todos os direitos – estar buscando
perdão. Salvação de um Deus que ela não conhecia nem compreendia.
Celine piscou para clarear seus pensamentos. Assim como Pippa puxou
sua mão.
— Você está bem? — disse Pippa, seu tom incrédulo. — Eu não posso —
ela tentou. — Quero dizer, você pode acreditar no que ele disse para você?.
Celine assentiu, não confiando em si mesma para falar.
Não podia ter certeza de que o destino continuava colocando Sébastien
Saint Germain em seu caminho. Talvez tenha sido um teste. A penitência de
Deus por seu pecado mais grave, que um garoto envolto em trevas a forçaria
a ver a luz. Faça dela um bom samaritano.
Mas um medo maior espreitava profundamente em Celine. Passou a
corrente de sangue na medula de seus ossos.
Não importa para onde ela foi, o perigo seguiu.
E isso a horrorizou. Assim como a emocionou.
O jovem que deu um passo à frente não era o que Celine esperava.
Primeiro, ele parecia ser apenas alguns anos mais velho que ela. Sua
pele barbeada era castanha, em contraste com as feições pálidas dos outros
oficiais presentes. Ele não estava vestindo uniforme. Em vez disso, parecia
que ele havia deixado uma reunião elegante, o colarinho impecavelmente
engomado, a gravata cor de champanhe amarrada em um nó intocado. Seus
cabelos ondulados tinham sido domados com a última moda, por todos os
lados. Algo sobre sua aparência pareceu para Celine quase professoral. Um
toque estranho.
Exceto pelo inegável ar de autoridade ao seu redor.
Antes de falar novamente, ele lhes ofereceu um sorriso forçado, os dentes
retos e brilhantes. Depois ajeitou as mangas da camisa até que a quantidade
perfeita de branco aparecesse por baixo da borda do casaco verde-escuro.
— Sou o detetive Michael Grimaldi, da Polícia Metropolitana de Nova
Orleans, — ele começou com uma voz cortante, cada palavra correndo para
superar sua antecessora. — Espero ter a maior cooperação possível
enquanto trabalhamos juntos para encontrar o autor desse crime horrível. —
Ele deu um passo mais perto, caminhando ao lado de Arjun, que se encolheu,
com as feições azedas.
Ao ver o desconforto de Arjun, a satisfação passou pelo rosto do detetive
Grimaldi. Agora que ele estava ao lado de Arjun, Celine notou uma
semelhança em suas cores, embora os traços do detetive Grimaldi não
apresentassem a mesma aparência do Oriente. Talvez ele fosse italiano,
como o próprio nome sugeria.
Os olhos claros do detetive Grimaldi passaram pela sala novamente. Sem
dúvida, esquadrinhando a multidão, procurando uma abertura. Em pouco
tempo, ele se estabeleceu em Celine. Sua cabeça inclinou-se levemente, seu
olhar avaliando. Celine levantou o queixo automaticamente.
Desafiadoramente. Ela não sabia o que a possuía, mas se recusava a ser
vista como algo menos formidável. Com um sorriso malicioso, o jovem
detetive foi até Pippa.
Tudo o que ele estava procurando, ele encontrou nela.
Pippa ofegou em consciência. Celine pegou a mão de sua amiga para lhe
oferecer uma certa força, assim como Pippa havia feito inúmeras vezes hoje.
O detetive agachou-se diante de Pippa.
— Peço desculpas por ter que detê-la, senhorita, — disse ele. — Prometo
não mantê-la por muito tempo. Ouvi dizer que você era uma das senhoras
que encontrou o corpo da pobre jovem. — Ele fez uma pausa. — Isso deve
ter sido terrível para você. — O detetive Grimaldi estendeu a mão em sua
direção, como se quisesse ajudá-la a se levantar. — Você se importaria de
falar comigo além da multidão por apenas um...
— Não, — Bastien interrompeu, seu tom baixo e duro. Cheio de uma raiva
inconfundível.
Ele permaneceu na sombra, recusando-se a cumprir os termos mais
simples. Atrás dele, as cortinas se arrepiavam como se uma brisa tivesse
agitado suas bordas. — Ninguém responderá a nenhuma pergunta sem uma
testemunha, à vista de todos os presentes. —
Quando Bastien terminou de falar, a ameaça pairando sobre o espaço
engrossou. Constrito, como se estivesse sendo enjaulado em um vaso
encolhendo.
O detetive Grimaldi se levantou. Ele rolou os ombros para trás. Um traço
de fúria cruzou seu rosto antes de achatar suas feições mais uma vez.
— Sr. Saint Germain. — Ele levantou uma sobrancelha. — Se você deseja
ter um advogado presente...
— Isso não será necessário. — Bastien se afastou da parede e passou por
Celine em direção ao detetive da polícia. Ele deliberadamente demorou um
pouco, parando para mover um lenço amarelo-manteiga do bolso do colete
para o bolso da calça. Quando ele parou a poucos passos de onde estava o
detetive Grimaldi, as cortinas nas costas se mexeram mais uma vez. O
inconfundível assobio de uma serpente se enrolou no ar.
Toussaint deslizou da escuridão, tecendo lentamente a luz.
Celine endureceu onde estava sentada, o sangue congelando em seu corpo.
Gritos de medo irromperam dos lábios de vários policiais. Um deles tentou
sacar o revólver, mas o detetive Grimaldi ficou com a mão sem dizer uma
palavra. Bastien ofereceu a eles um sorriso parecido com uma foice, e isso
lembrou Celine de um personagem em um livro que ela havia lido
recentemente. Um gato de Cheshire que gostava de falar em verso.
Toussaint enrolou-se nos pés de Bastien, sua língua bifurcada passando
rapidamente sobre o tapete macio, sua cabeça se movendo em um balanço
preguiçoso. Embora os nós de tensão tivessem se apertado em torno dele, o
detetive Grimaldi facilitou sua posição, voltando a seguir os calcanhares.
— Penso que você já tem um advogado presente?
Bastien levantou um ombro desprezível.
— É possível.
Celine se forçou a relaxar enquanto procurava o mar de rostos ao seu
redor, tentando determinar qual membro de La Cour des Lions também era
versado na lei. Mas nenhuma das fileiras encontrou seu olhar. Nem um único
deles moveu um músculo. Era como se todos estivessem esculpidos em
pedra.
— É incrível que você tenha a previsão de fazer isso, Sr. Saint Germain.
— O detetive Grimaldi bateu a língua no céu da boca. — Realmente invejo
suas fontes.
— Aprendi com o exemplo, detetive Grimaldi. — Os olhos de Bastien se
esticaram ao redor das bordas. — A mente é uma espada. O conhecimento é
sua pedra de amolar.
— Claro. — O detetive Grimaldi bufou. — Se você preferir, ficaria feliz
em ajudá-lo e mudar todos para nossa sede antes de continuar questionando a
jovem. — Um brilho de conhecimento tomou forma em seu olhar incolor.
— Estou igualmente feliz em obedecer. — Embora Bastien mantivesse sua
voz cordial, a ameaça que rodava entre eles se agravou ainda mais. — No
entanto, não posso falar se todos aqui serão tão… favoráveis.
Celine engoliu em seco. Algo mudou, encolhendo a um ponto. Embora os
dois jovens se envolvessem civilmente, era impossível perder o sentimento
subjacente à troca.
O ódio mútuo e inalterado.
O verdadeiro perigo – do tipo que indicava danos corporais – girava em
torno deles.
Bastien saiu do círculo de escamas ao redor de seus pés, aproximando-se
de Pippa. Como se ele estivesse fazendo uma ameaça silenciosa. Desafiando
o detetive a pressionar mais.
O que se seguiu foi sutil. Nigel, Arjun, o homem do Extremo Oriente e as
duas mulheres com anéis perigosos olharam para Bastien em uníssono, seus
corpos rígidos com atenção.
Esperando que algo aconteça.
Não deveria ter funcionado. Mas os policiais que esperavam na periferia
murmuraram entre si. O mais novo dos cinco – um garoto de apenas dezoito
anos – desviou o olhar de Toussaint para Bastien. Ele estremeceu no instante
seguinte.
O que houve com Bastien – sobre esse lugar – que os fez se tremerem?
Um dos oficiais – um senhor mais velho, com nariz avermelhado e olhos
reumáticos – deu um passo à frente.
— Ah, Michael, — ele começou com uma voz grossa, — Ouça, meu
garoto, talvez seja…
— Detetive Grimaldi, — o jovem detetive corrigiu sem sequer olhar para
o homem que falava.
O policial tossiu uma vez, mas não conseguiu esconder a carranca
resultante.
— Detetive Grimaldi... talvez seja melhor realizarmos nossas perguntas
aqui, senhor.
O descontentamento cintilou no rosto de Michael Grimaldi. Celine sentiu
que desejava protestar, mas reconheceu que as marés estavam virando contra
ele.
— Muito bem, sargento Brady.
Nesse instante, ficou claro que todos os presentes – com exceção de
Celine e Pippa – sabiam algo sobre Jacques e seus habitantes peculiares que
não eram aparentes à primeira vista. Sébastien Saint Germain de fato exercia
um tipo estranho de poder dentro dessas paredes revestidas de painéis. Nem
uma vez ele emitiu ameaças diretas ou levantou a voz.
No entanto, ele conseguiu manter todos os presentes em um torno invisível.
A sugestão desse tipo de poder – a mera sugestão – enviou o sangue de
Celine em uma lágrima através de seu corpo, sua mente girando com a
possibilidade. A possibilidade de que ela também pudesse exercer esse tipo
de influência sobre os outros.
Que ela também poderia esmagar seus detratores em um torno.
Chocada com essa reação – por sua crescente obsessão por qualquer tipo
de poder – Celine se levantou abruptamente, desejando fugir de sua própria
pele.
Foi uma jogada impensada. Seu coração afundou como chumbo no
estômago quando ela percebeu que havia chamado a atenção da pior maneira
possível.
O jovem detetive virou-se para ela, deixando o olhar parar por um
momento.
— Posso ajudá-la, senhorita? — Ele entoou.
Celine considerou suas opções antes de responder. Ela viu os olhos do
detetive Grimaldi piscarem sobre ela. Dos cachos brilhantes de seus cabelos
escuros ao leve brilho de suor ao longo de sua testa. Para o pedaço de fita
preta em sua garganta e o vestido azul de gabardine preso firmemente em seu
busto. Ela se importava como as sobrancelhas dele arqueavam. Tomou nota
da ascensão e queda de seu peito. Observou como sua expressão se acentuou
com admiração, embora ele tentasse escondê-la.
Homens jovens eram previsíveis. Especialmente os jovens que apreciavam
as coisas boas da vida, como o detetive Grimaldi, como evidenciado por sua
maneira de se vestir.
Era uma verdade que ela havia percebido aos doze anos.
Celine abaixou os olhos e deu um passo à frente. Então ela ergueu os cílios
devagar, oferecendo a ele um sorriso hesitante.
— Sinto muito incomodá-lo, detetive Grimaldi, mas posso lhe pedir um
favor? — Ela inclinou a cabeça de maneira tímida.
Seus olhos pálidos se arregalaram.
— Como regra, costumo não concordar com esses pedidos até ouvir os
termos, senhorita... — Ele esperou que ela oferecesse seu nome, um tom
distinto em sua voz.
— Por favor, me chame de Celine. — Ela colocou um cacho preto atrás da
orelha. — E eu poderia te implorar para fazer uma exceção à sua regra,
apenas desta vez?
— Contra meu melhor julgamento, posso ser persuadido.
Da periferia, Celine jurou que ouviu Nigel bufar. Ela desconsiderou, nem
mesmo se permitindo considerar como Pippa poderia perceber seu
comportamento neste momento.
Como... outros podem perceber isso. Ela sorriu brilhantemente, depois se
inclinou para mais perto, como se quisesse contar algo ao detetive Grimaldi
com confiança.
— É terrivelmente tarde, e nossa... guardiã estará procurando por nós.
Seria possível realizarmos essas perguntas amanhã, à luz do dia? — Celine
fez uma pausa para respirar, seus olhos verdes implorando para ele sem
palavras. Ela pensou em estender a mão para tocar o braço do jovem
detetive, mas isso seria muito avançado, e ela não desejava manipular mal a
pequena quantidade de magia que conseguira conjurar naquele momento,
tudo em um esforço para alcançar um objetivo maior.
Celine queria desesperadamente sair. Dedicar-se uma hora para reunir
seus pensamentos e conversar com Pippa em particular. Uma chance de
contar a história certa a si mesma, para que pudessem oferecer mais tarde
como a verdade inabalável.
— Nós? — Perguntou o detetive Grimaldi.
Celine assentiu.
— Estou aqui com minha querida amiga Pippa.
O jovem detetive olhou por cima do ombro. Então voltou o olhar para
Celine.
— Aposto que sua guardiã deve estar bastante preocupada com o seu bem-
estar, dada a hora.
Celine assentiu novamente.
— Eu odiaria preocupar uma mulher tão boa, especialmente se ela ouvir
sobre os eventos infelizes que aconteceram hoje à noite.
— É claro, — ele concordou, sua expressão cheia de preocupação. —
Seria terrível para ela pensar que algo poderia ter acontecido com vocês
duas.
Celine sentiu que estava à beira de concordar. Seria realmente assim tão
fácil?
O detetive Grimaldi se inclinou para mais perto. Quase perto demais.
— Você sabe, — ele começou, sua voz baixa e rouca, — Você é uma
jovem muito bonita.
Talvez a jovem mais bonita que já conheci.
Celine piscou. Então riu alegremente.
— Obrigado, detetive Grimaldi.
— De fato... você pode ser adorável demais para o seu próprio bem — ele
murmurou.
— Perdão?
Ele se inclinou em direção à orelha direita dela.
— Sente-se, — ele a dirigiu — Antes que você se envergonhe mais.
A indignação surgiu no corpo de Celine, quente e fria ao mesmo tempo.
— Como se atreve...
O jovem detetive deu-lhe as costas antes que ela pudesse terminar de
adverti-lo. Naquele momento, ela não pôde ignorar a risada que escapou da
boca barbada de Nigel, nem o olhar de alegria pungente de Arjun passou por
ela. Celine não se atreveu a olhar para Bastien, embora desejasse
desesperadamente encarar a figura parada em silêncio, ocupando um grande
espaço confuso.
Bastien tinha vindo em defesa de Pippa. Por que ele não fez nada para
ajudar Celine?
No instante seguinte – como se tivesse ouvido o apelo tácito de Celine –
Pippa se levantou em um farfalhar de vozes.
— Detetive Grimaldi, peço gentilmente que não esqueça que existem
damas presentes.
— A voz dela tremeu com a última palavra, mas seus punhos se fecharam
contra os lados do corpo. — Além disso, eu também pediria que você
fizesse suas perguntas de maneira expedita. Estamos aqui há um bom tempo,
e provavelmente causaremos a ira da Madre Superiora no convento das
Ursulinas.
O detetive Grimaldi girou nos calcanhares.
— Você mora no convento? — Ele olhou primeiro para Celine em busca
de uma resposta.
Ela segurou a língua, recusando-se a responder, a humilhação ainda
ondulando em suas veias.
— Sim, — respondeu Pippa, aproximando-se de Celine em solidariedade.
— Nós moramos. — Ela inalou pelo nariz. — O mesmo que... — ela engoliu
— o mesmo que Anabel morava.
— Anabel? — Ele lançou a Pippa um olhar perscrutador.
— A jovem que pereceu esta noite, — Celine ofereceu em um tom calmo.
Michael Grimaldi olhou para ela por um suspiro antes de assentir.
— Então você conheceu essa pobre garota?
Celine fechou os punhos, as unhas cravando nas palmas das mãos. — Sim.
Ela é uma de nós. Uma das sete meninas que recentemente se estabeleceram
no convento. O nome dela é Anabel... — Ela se virou para Pippa.
— Stewart, — disse Pippa, com a voz embargada. — Anabel Stewart, de
Edimburgo.
— Entendo, — o detetive meditou. — Stewart acompanhou vocês aqui
esta noite?
Pippa olhou para Celine de lado.
— Bem...
— Nós não sabíamos que ela nos seguiu, — disse Celine, suas palavras
cheias de resignação. Agora que Pippa havia divulgado suas associações,
era melhor que eles revelassem tudo de uma só vez, em vez de prolongar o
assunto, forçando-o a torcer por eles toda última gota de informação.
Embora Celine não tivesse ficado infeliz ao vê-lo lutar.
Outro ataque de vergonha tomou conta de sua garganta. Como ela poderia
ter prazer em frustrar o jovem detetive encarregado de fazer justiça a
Anabel? Afinal, Celine era parcialmente culpada pelo que aconteceu hoje à
noite.
O momento em que ela ponderou mais cedo – quando percebeu que estava
fazendo a escolha errada – a esmagou com sua finalidade. Mesmo assim, ela
sabia que se arrependeria de suas ações, embora nunca pudesse ter
concebido um resultado tão terrível.
Celine desprezava se sentir assim. Como uma peça na engrenagem,
impotente para o seu destino.
Melhor ser qualquer outra coisa.
Ser um fantasma no meio da noite, comandando aqueles ao seu redor sem
palavras.
Naquele instante, Celine pensou que tinha uma ideia de como deveria ser
um monstro.
Cometer atos monstruosos. Desejar que coisas monstruosas aconteçam.
Para se deleitar no escuro.
— Senhorita? — perguntou o detetive Grimaldi em voz alta, como se já
tivesse tentado chamar a atenção de Celine várias vezes.
Ela balançou a cabeça, forçando seus pensamentos furiosos a se
acalmarem.
— Celine? — Pippa sussurrou ao lado dela. — O detetive fez uma
pergunta. — Ela pegou a mão de Celine e apertou-a, a afirmação silenciosa
de que cada uma delas não estava sozinha, não importa o que acontecesse.
Mais do que nunca, fortaleceu as duas.
O detetive Grimaldi estudou Celine, seus olhos pálidos, quase incolores,
irritantes em seu foco.
— Você sabe por que a senhorita Stewart seguiu você aqui sem o seu
conhecimento?
— Não conheço os pensamentos reais de ninguém, a não ser os meus,
detetive Grimaldi.
— Verdade. — Ele fez uma pausa. — Mas talvez — ele se aproximou,
apoiando Celine com sua altura impressionante. — Você me satisfaria por
apenas um momento.
A incredulidade se estabeleceu nas feições de Celine. A ousadia desse
garoto, para fazer pedidos a ela depois de humilhá-la tão publicamente!
— É claro, detetive Grimaldi, — disse ela entre dentes. — Ficaria feliz
em ajudá-lo.
— Encantador, — ele pronunciou em um tom plano. A respiração seguinte,
sua expressão ficou severa. Ele ficou ainda mais alto, uma ameaça tácita
emanando de seu peito largo. — Devo insistir para que você responda às
minhas perguntas honestamente, sem mais demoras, ou serei forçado a usar
toda a extensão do meu escritório para…
— Já chega, Michael. — As palavras de Bastien eram um sussurro
perigoso.
Finalmente, Celine fervilhava consigo mesma. Lúcifer finalmente achou
conveniente estender sua magnanimidade à sua maneira.
Bastien passou por Celine, passando por Michael Grimaldi, parado perto
demais para o conforto, combinando-o na frente do pé.
O detetive Grimaldi recuou. Uma satisfação sombria se enrolou no peito
de Celine. Como ela ansiava pela capacidade de assustar alguém com nada
mais que sua presença. Viver na pele de Bastien por apenas uma hora. Saber
como era ter esse tipo de poder.
— Como Celine já disse, nem ela, nem a Senhorita Montrose, estavam a
par dos pensamentos reais da Srta. Stewart e, portanto, só podiam especular
sobre as razões desta última para segui-las, — continuou Bastien em tom
medido. — Qualquer outro questionamento de sua parte insinua que a
senhorita está escondendo a verdade.
O detetive assentiu uma vez.
— O que é simplesmente uma maneira mais gentil de dizer que a dama
pode ser uma mentirosa.
Um músculo saltou na mandíbula de Bastien.
— Você ainda não aprendeu sua lição.
— E você ainda gosta de ser um cavaleiro de armadura brilhante. Algum
tipo de príncipe sombrio. — Ele zombou. — Você planeja me chamar de
novo? Serão pistolas ao amanhecer ou sabres na praça?
— Isso depende. — Bastien fez uma pausa. — Você vai implorar ao seu
primo para salvá-lo novamente?
Um vislumbre de raiva passou pelas feições do detetive Grimaldi.
— Muito bem. Vou dispensar as formalidades. — Ele falou com todos os
presentes, o tom em sua voz ecoando nas paredes revestidas de painéis. —
Todo mundo aqui é um possível suspeito de um assassinato. Todos vocês
podem estar mentindo para mim. — Seus lábios se curvaram em um sorriso.
— Na verdade, espero. Saiba que não vou ceder até descobrir a verdade. A
Corte dos Leões não possui mais autoridade do que a Polícia Metropolitana
de Nova Orleans, apesar da tradição que o cerca. Como oficial da lei, tenho
o dever de seguir qualquer curso de ação para determinar como essa pobre
jovem foi encontrada morta, drenada de todo o seu sangue.
Com essa revelação, um bloco de gelo se instalou ao redor do coração de
Celine, o frio queimando em sua garganta.
— Alguém... drenou o sangue de Anabel?
Girando em sua direção, o detetive assentiu.
— E usou para escrever esse símbolo matemático ao lado de seu corpo.
— Na verdade... Acredito que tenha nada a ver com matemática — disse
Celine, a consciência dando vida à sua voz. — Faz muito mais sentido que
seria uma letra ou um personagem. — Um tipo diferente de poder a
atravessava. Um tipo diferente de qualquer um que ela já conhecera. —
Talvez até de um texto antigo.
As sobrancelhas do detetive Grimaldi se arquearam antes que ele
conseguisse limpar o rosto de toda emoção.
— Interessante. E como você chegou a essa hipótese?
— Meu pai é professor de linguística. Ele tinha um quadro na parede de
seu escritório, mostrando a evolução do idioma inglês. — A alegria ecoou
por Celine. Esse foi o detalhe que a incomodou durante a última hora. Essa
era a coisa que havia permanecido além do seu alcance.
— Você sabe o que o símbolo significa? — O detetive pressionou.
— É parecido com as letras L ou C em latim ou grego, mas não está escrito
corretamente. É como se tivesse sido torcido ou escrito pela mão de um
bêbado.
— Entendo. — Ele pronunciou essas duas palavras lentamente.
Contemplativamente.
Celine olhou para o jovem detetive.
— É de sua responsabilidade suspeitar de todos aqui, mas você não pode
pensar que eu diria essas coisas se tivesse alguma coisa a ver com a morte
de Anabel. Seria o mesmo que confessar que sou a assassina.
O sargento Brady olhou para Celine como se tivesse brotado asas e um
chifre.
— Bem, serei amaldiçoado. A garota foi e confessou?
Michael Grimaldi espiou por cima do ombro, com uma expressão irônica.
— No futuro, eu daria um tempo para ouvir completamente antes de chegar
a conclusões, sargento Brady. — Ele se concentrou mais uma vez em Celine.
— Direi, no entanto, que estou intrigado com a noção. Você se importaria...
Bastien o interrompeu antes que ele pudesse terminar.
— Se você deseja continuar essa linha de perguntas, insisto em que você
marque um horário na sua sede amanhã, para que a senhorita Rousseau tenha
a chance de garantir sua própria representação.
Embora Bastien obviamente desejasse ajudar Celine, a irritava parecer
desamparada aos olhos de alguém.
— Embora aprecie seus esforços, monsieur senhor Saint Germain, não
preciso que você me defenda.
Como os outros membros da La Cour des Lions, Arjun ficou em silêncio
durante essa conversa, mas ele ficou parado, rindo baixinho.
— Ele não está defendendo você, boneca. Ele está fazendo o que faz de
melhor: negociando.
Nesse preciso momento, uma Odette sem fôlego apareceu no topo da
escada. Ela agarrou o corrimão com um suspiro, depois tirou os cabelos
desgrenhados da testa, deixando uma mancha de sujeira vermelha na testa.
Celine não estava preparada para o que se seguiu na sombra de Odette. Em
seus calcanhares, respirando pesadamente pelo esforço, estava a Madre
Superiora do convento das Ursulinas.
A salvadora de Celine... assim como sua possível executora.
HIVER, 1872
AVENIDA DAS URSULINAS
NOVA ORLEANS, LOUISIANA
Por sorte, a manhã seguinte trouxe o céu mais claro que Celine contemplara
desde que chegara a Nova Orleans,, duas semanas antes. Como resultado, os
raios do sol se infiltravam em todos os cantos.
Às dez horas, a temperatura havia se tornado sufocante.
Além disso, um dos piores temores de Celine havia acontecido.
Ela estava na frente de uma sala de aula, olhando para doze rostos jovens
sorridentes, a mais velha não tinha tinha mais que dez anos anos. À direita
estava Catherine, as mãos cruzadas à sua frente, óculos no rosto, a epítome
de uma jovem gentil.
Esperava-se que Celine ajudasse Catherine a ensinar as jovens sobre
comportamento adequado na sociedade, além de instruí-las sobre a
pronúncia correta do francês. S'il vous plaît, merci beaucoup, je vous en
prie, pardonnez-moi que significam, respectivamente, Por favor, Muito
obrigado, Com licença e Me perdoe.
Ela supôs que tudo isso foi uma tentativa cuidadosamente orquestrada por
parte da Madre Superiora de envergonhá-la. Para lembrar Celine de seu
lugar na vida e no mundo.
— Senhoritas! — Catherine bateu palmas. — Prestem atenção na
mademoiselle Rousseau. Ela está aqui para lhes ensinar exatamente o que
fazer para impressionar, digamos... um jovem cavalheiro bonito em algum
momento no futuro próximo? — Ela enviou um sorriso gentil para Celine,
mas em suas profundezas Celine detectou uma pontada de ressentimento. É
claro que Catherine sabia o que havia acontecido na noite passada. Todas as
jovens do convento haviam sido informadas, a verdade se espalhando como
fogo pela vegetação rasteira.
Sem surpresa. Uma das suas havia morrido de maneira terrivelmente
violenta.
Talvez Celine não deva culpar Catherine pela condescendência que
moldou sua sobrancelha esta manhã. Se Catherine estivesse ligada à morte
prematura de Anabel, Celine certamente também estaria lhe enviando um
olhar crítico.
Em uma tentativa de canalizar a confiança que Celine não tinha neste
momento, ela ofereceu um sorriso agradável para a sala cheia de inocentes à
espera.
— É claro que é adorável saber o que dizer e fazer na sociedade, mas
você também deve prestar atenção simplesmente para aprender a falar outro
idioma. — disse ela em tom desatento. — Não gostaríamos de sentir que
tudo o que fazemos é uma tentativa de chamar a atenção de um jovem, não é?
— Ela riu baixinho.
Um punhado de meninas na sala riu com Celine, embora a maioria delas se
contorcesse em seus assentos, os rostos contraídos em confusão.
A fúria moldou cada um dos traços de Catherine antes de se concentrar
acima das sobrancelhas.
— Senhorita Rousseau, posso falar com você por um minuto? — ela
resmungou entre os dentes.
Celine olhou para as vigas de madeira ao longo do teto, contando até dez.
Ela sabia que era um erro estar ensinando algo a alguém. Especialmente uma
sala de aula de crianças sob o olhar atento de uma ex-governanta inglesa.
Piadas sobre puritanos e a Torre do Terror surgiram na mente de Celine
antes que ela os silenciasse no instante seguinte.
— Celine? — Catherine disse ainda mais suavemente. Ainda mais
acaloradamente. Ela olhou para a saída de soslaio.
Estremecendo o tempo todo, Celine assentiu. Enquanto seguia Catherine
em direção à porta, uma voz semelhante a um sino veio do fundo da sala.
— Mademoiselle Rousseau? — perguntou uma garota com olhos de gato e
uma mecha de cabelos rebeldes.
Grata por ter escapado da palestra iminente, Celine virou-se.
— Sim?
A menina brincou com um canto da lousa.
— É verdade que você é de Paris?
— Sim, é verdade.
Murmúrios de admiração percorreram o espaço.
— Por que você foi embora? — Perguntou outra garota perto da frente da
sala de aula.
Um fluxo de maldições silenciosas saía da garganta de Celine. Por um
instante, pensou em repetir a palavra suja que Bastien usara na noite anterior
no primeiro encontro.
Simplesmente ver como seria chocar todos os presentes com nada além de
uma única sílaba.
Celine fechou os olhos com força.
— Porque eu queria uma aventura. — Outro sorriso brilhante tomou forma
em seu rosto.
— Que tipo de aventura você gostaria de ter?
— Gostaria de ver as pirâmides. — respondeu a primeira garota.
Uma garota de tranças loiras bateu um dedo no queixo.
— Talvez viajar de barco um dia?
— Eu quero tentar... lula! — outra gritou da direita.
Sons de alegria se misturavam com seu nojo exagerado. Risos de menina
caíram no teto de gesso. Catherine olhou desconfiada para Celine, mas
voltou ao seu canto de julgamento sem dizer uma palavra.
Mais uma vez, Celine foi poupada nos degraus da forca.
— É uma pena que minhas clientes não possam ajudar mais, detetive
Grimaldi. — disse Arjun, enquanto mantinha aberta a porta do escritório da
madre superiora.
Para seu crédito, ele não parecia nem um pouco convencido.
No entanto, um tipo de raiva oca subiu pelo estômago de Celine.
— É realmente uma grande pena. — respondeu o detetive Grimaldi
friamente. Ele voltou para deixar Pippa passar e depois esperou do outro
lado da porta de carvalho.
Quando Celine cruzou a soleira de pedra no corredor cavernoso, o jovem
detetive passou o chapéu de tweed para a outra mão para caminhar ao lado
dela.
Ele estava esperando por Celine. Talvez por outra chance de pegá-la
desprevenida.
Antes que o detetive Grimaldi pudesse continuar investigando, Celine
decidiu recuperar o controle da situação e pegá-lo de surpresa primeiro.
A solução mais rápida seria costurar o detetive enquanto ele a agulhava.
— Parece que você conhece bem o Monsieur Saint Germain. — disse
Celine, esperando que isso o provocasse, com base na troca de acusações
entre os dois jovens na noite anterior.
Michael Grimaldi a surpreendeu. Ele não parecia nem um pouco
perturbado pela pergunta dela.
— Sim. Nós éramos colegas de escola quando crianças. Os melhores
amigos. — Ele ofereceu isso com uma expressão de conhecimento. Como se
ele estivesse interessado em ver como essas notícias a afetavam.
Celine franziu a testa.
— Colegas? Então, por que você está...?
— Eu pensei que deveria ser o único com as perguntas.
Celine mordeu a bochecha enquanto caminhavam.
— Minhas desculpas por perguntar. — disse ela, embora não sentisse
pena.
A sugestão de um sorriso tocou seus lábios.
— Pode ser estranho para mim dizer isso, mas você também seria uma
ótima detetive, senhorita Rousseau.
Celine bufou com desdém. Enquanto seguiam Pippa e Arjun pelo corredor
em direção às portas duplas que davam para o lado de fora, ela lembrou o
que Arjun havia dito no início da tarde. Sobre ser o tipo errado de pessoa no
tipo errado de pele.
— Mesmo você deve estar ciente de que aqueles do sexo oposto nunca
poderiam lutar por uma posição tão elevada, detetive Grimaldi.
— Infelizmente, você não está errada. — O detetive parou em
contemplação. — Você sabia que a Polícia Metropolitana de Nova Orleans é
uma das únicas forças policiais em nosso país que permite que homens de
cor sirvam em suas fileiras?
— Eu não sabia. — Outra centelha de surpresa aqueceu através de Celine.
— É um desenvolvimento bastante recente. Provavelmente um tipo de
experimento distorcido. — Ele suspirou para si mesmo. — Mas, como neto
de um escravo, suponho que seja algo pelo qual devo agradecer.
Alguns passos à frente deles, Pippa e Arjun se aproximaram das enormes
portas duplas, Arjun pegando uma maçaneta de madeira para abri-la. Ele
parou para olhar o caminho de Celine, e a fita de luz crescente à esquerda
fez seus olhos brilharem prateados por um instante, como se ele fosse um
predador agachado nas sombras.
Inumano.
Nervosa com o pensamento recorrente, Celine voltou sua atenção para
Michael Grimaldi, parando um momento para examinar suas feições.
— Quando nos conhecemos, pensei que você era italiano. Você não é?
— Eu sou. — O detetive colocou o chapéu debaixo do braço e segurou a
outra alça. — A família do meu pai é da Sicília. Mas a família de minha mãe
é de sangue misto, assim como muitos residentes de longa data de Nova
Orleans. Além do distrito dos jardins, é claro. — O detetive Grimaldi se
afastou para deixar Celine passar sob a luz do sol.
— Entendo. — disse Celine lentamente. Ter a opção de ocultar a verdade
de sua própria herança combinada significava que ela havia sido poupada
desse tipo de julgamento cruel. — Não deveria ser revolucionário pensar
que a cor da pele de alguém não deveria ter influência sobre o seu lugar na
sociedade.
O detetive abriu a porta enquanto Celine emergia no brilho ofuscante do
sol da tarde.
— Eu concordo. — disse ele. — Você pode não estar ciente disso, mas a
sociedade de Nova Orleans – de fato, a sociedade em todo o Sul – baseia
grande parte de suas noções na regra de uma gota. — Ele seguiu os passos
dela. — Se você possui uma gota de sangue africano, recebe pouco em
consideração.
Celine ponderou sobre isso, sua visão se esforçando para se ajustar à luz
branca dura.
Ela olhou para ele.
— É a terra dos livres apenas em idéias, então.
Um sorriso tomou forma em seu rosto.
— A família do meu pai era de humildes sapateiros em Palermo. Muitas
vezes lutavam para juntar duas varas para iniciar um incêndio. A chance de
uma vida melhor os levou a Crescent City há cinquenta anos. — Ele levantou
a mão direita para proteger o olhar do sol.
— O que a trouxe às margens do Novo Mundo, senhorita Rousseau? A
Madre Superiora me disse que você chegou de barco há menos de duas
semanas.
Celine agarrou o tecido gasto de suas saias.
— A mesma coisa que trouxe sua família aqui, detetive Grimaldi. — Ela
sorriu para a luz, sua expressão feroz. — Oportunidade.
O detetive mudou, colocando Celine na sombra, protegendo-a do pior do
brilho do sol.
— Você é muito boa. — ele sussurrou.
— Perdão?
— Você é muito boa em esconder o quão inteligente é.
— E você é muito ruim em tentar ser charmoso.
Os lábios dele se contraíram.
— Você não me acha encantador?
— Você ainda está me interrogando, detetive Grimaldi. Você se sentiria
encantador neste caso?
Ele passou a mão grande pelos cabelos ondulados.
— Um ponto para você. E, por favor — ele disse. — me chame de
Michael.
— Eu... não sei se é apropriado.
— Acho essas crenças tediosas. É apropriado se decidirmos que pode ser.
— Se a vida fosse tão simples. Se ao menos todos nós fôssemos espertos o
bastante para evitar o tédio como você.
Seus olhos incolores – tão claros como um tom de azul que parecem quase
brancos – brilharam estranhamente por um instante. Quase como se ele
estivesse divertido.
Perto, Pippa tossiu como se quisesse limpar a garganta, e Celine girou em
sua direção.
Arjun e Pippa esperavam do lado de fora do portão de ferro, com
expressões incongruentes.
Pippa parecia alerta e estudiosa, os olhos arregalados, mas não de maneira
desaprovadora.
Em contraste, Arjun parecia despreocupado com os acontecimentos ao seu
redor, exceto pela luz aguda ainda brilhando em seu olhar.
Se Celine tivesse que adivinhar, o jovem advogado olhou... Cruzado.
Uma ideia tomou forma em sua mente. Uma maneira simples de
impressionar Arjun – e seu empregador – que ela faria o que quisesse,
apesar de suas tentativas de interferir.
Celine ofereceu a mão direita para Michael.
— Tenha um bom dia, detetive Grimaldi. Por favor, veja se você não volta
aqui tão cedo.
— Ela lhe lançou um sorriso provocador.
Ele lhe ofereceu um sorriso desajeitado, quase forçado, e então pegou a
mão dela para pressionar os lábios dele. Eles eram quentes e macios.
Apesar de pretender afirmar a vantagem, Celine sentiu as bochechas
começarem a ficar vermelhas.
— Eu a deixo desconfortável? — Ele perguntou sem aviso.
— De modo nenhum.
Os dedos dele apertaram os dela.
— Você está mentindo.
— O quê? — Celine piscou consternada.
Ela era tão ruim nisso?
— É de pouca importância para mim, se você está. Veja bem, o coração.
— Michael levantou o pulso, onde o pulso de Celine pulsava em suas veias.
— Não mente.
Sem uma palavra, ela soltou os dedos, seu maldito rosto corando ainda
mais a cada momento que passava. Então ela girou sobre os calcanhares,
com a intenção de fugir para a segurança do convento imediatamente.
— Posso lhe oferecer uma palavra de cautela? — Michael perguntou,
assim que ela começou a refazer seus passos.
Celine voltou, esperando ansiosamente, sabendo muito bem que Arjun
estava ouvindo a conversa deles, tudo com a intenção de informar seu
empregador.
— É em relação a Bastien. — disse Michael em voz alta, colocando o
chapéu de tweed diante dele como se fosse um escudo.
Celine não disse nada em resposta, lutando para recuperar a compostura.
— Quando éramos crianças, chamávamos-lhe de fantasma, porque todos
ao seu redor pareciam perecer sem explicação, deixando para trás nada além
de espectros. — começou Michael. — Primeiro sua irmã mais velha, Émilie.
Depois a mãe dele. Finalmente o pai dele. — Ele fez uma pausa. — Não
terminou aí. Quando ele completou dezesseis anos, seu tio subornou uma
vaga para ele em West Point. Então um dos colegas de quarto de Bastien foi
morto em uma briga de bar. Bastien atacou outro garoto, culpando-o pela
morte de seu amigo. Ele bateu no garoto dentro de uma polegada de sua vida.
Pouco tempo depois, ele foi convidado a deixar a academia militar em
desgraça.
— Eu... acho que entendo o que você quer dizer. — disse Celine. —
Obrigado pela informação. — disse ela em tom frio, enquanto Arjun se
erguia além dos dentes de ferro forjado.
— Bastien destrói tudo o que toca. — Michael continuou em um tom
estridente. — A menos que seja algo tão sem alma quanto dinheiro. Com
dinheiro, ele é realmente um príncipe sombrio.
— Aprecio o aviso, mas é improvável que eu e o Sr. Saint Germain
passemos um tempo na companhia um do outro, pois não tenho interesse em
ter nada a ver com ele.
— Eu gostaria que ele compartilhasse o sentimento.
Celine escolheu ignorar esse comentário. Ela olhou para o portão, onde
Pippa olhou para ela com uma expressão de curiosidade indisfarçável.
Arjun, enquanto isso, atirou punhais nas costas de Michael, depois inclinou a
cabeça para Celine de uma maneira espúria e alegre.
— Gostaria muito de vê-la novamente, Celine. — Michael anunciou, como
se tivesse algo a provar.
Chocada em seu âmago por essa admissão aberta, Celine quase perdeu o
equilíbrio.
Esse idiota, ela pensou, acredita que eu o notaria depois que ele
zombasse de mim e discutisse sobre um assassinato por dois dias seguidos?
Celine pensou rapidamente, imaginando o que ele esperava alcançar com
esse espetáculo. Não poderia ser tão simples irritar Bastien, poderia? Deus
a salve da mesquinharia dos jovens. Ou talvez...
— Eu também gostaria disso, Michael. — respondeu Celine.
Seria inteligente manter as boas graças do detetive Grimaldi. Sem
mencionar que isso irritaria imensamente o advogado traidor. Celine se
pegou à beira de sorrir. Arjun a testemunhou simpatizando com inimigo de
Bastien. Ela apostaria qualquer coisa que o advogado astuto iria acrescentar
esse detalhe específico à sua coleção de rabiscos inúteis.
Bom para ele, Celine pensou com um deleite sombrio.
Como ela desejava poder ver o rosto de Bastien quando Arjun o
informasse dos acontecimentos de hoje. Isso serviu a eles.
Na próxima vez, eles pensariam melhor antes de usar Celine Rousseau
como um peão.
UMA ASSASSINA NA MISSA DE DOMINGO
Mon amie,
Descobri a seda perfeita para meu vestido de baile em uma loja que
importa tecidos diretamente da China. Brilha como uma pérola e parece
água contra a pele. Eu já comprei rolos e rolos dele. Mal posso esperar
para mostrá-los quando chegarem ao Jacques hoje à noite.
Bastien planeja se encontrar esta manhã com monsieur.
Me procure depois da missa.
Eu serei a que estará com o diabo.
Bisous,
Odette
Celine leu a carta de Odette três vezes. Mesmo em várias leituras, seu
conteúdo não parecia menos ridículo.
Apenas um demônio cruel como Bastien participaria da missa na igreja
perto do convento de Ursuline uma mera semana depois que um de seus
moradores perecesse em seu estabelecimento. E apenas uma criatura
destemida como Odette insistiria em acompanhá-lo simplesmente para que
ela pudesse falar com sua nova modista sobre um vestido para o baile de
máscaras.
Com o simples pensamento de Bastien, Celine murmurou.
Mas Odette – como sempre – a encantou.
As dualidades em guerra de Celine cessariam?
Ela suspirou. Com o passar do tempo, parecia cada vez mais improvável.
Celine estava nua no centro de seu quarto, um medo frio a percorrendo
com o pensamento do que hoje traria. Sua pele estava úmida, o ar ao seu
redor perfumado pelo sabão de lavanda e castela que ela usara em seu banho
recente. Era uma alegria oferecida a ela em raras ocasiões, essa chance de
tomar banho na grande banheira de cobre compartilhada por todas as jovens
que residiam no convento. Na maioria das noites, ela era relegada a um
balde de água fria e meia ração de sabão sem perfume.
Respirando profundamente a suave fragrância de lavanda, Celine vestiu
uma roupa íntima limpa e amarrou os laços de sua blusa abaixo da clavícula.
Então ela segurou a frente de seu espartilho no meio da barriga e fez uma
careta antes de puxar os laços firmemente atrás dela até que sua cintura
parecesse estranhamente pequena em comparação com o busto e os quadris.
Como sempre, demorou um momento para se recuperar depois de se
prender no espartilho.
Celine prendeu as fitas brancas de sua camisola de linho sobre as esteiras
de ossos de baleia. Ela se virou para estudar as três peças de roupa
espalhadas por sua estreita cama de corda, tentando decidir qual de seus
vestidos surrados era o menos surrado.
Ela usara o vestido azul para a missa no domingo passado, o que
significava que o listrado era sua próxima melhor opção.
Com um suspiro exagerado, Celine pegou o vestido cor de salmão. Ela
sentiria calor nele, mas era o menos amarrotado e ainda mantinha um rastro
de seu brilho anterior.
Celine entrou na gaiola de sua crinoleta e ajustou a azáfama atrás dela. Ela
amarrou as cordas de sua melhor anágua na cintura antes de pular para cima
e para baixo para endireitar a saia sobre a extensão estreita de aros ovais.
Por fim, amarrou a saia listrada da fundação e a saia combinando com o
avental no alto da saia de linho antes de pegar o corpete coordenado e
começar a árdua tarefa de prender todos os minúsculos botões na frente.
Quando Celine terminou, ela olhou para o vestido, desejando que o
convento tivesse um espelho de qualquer tipo em algum lugar próximo. Uma
maneira de determinar se ela parecia tão tola quanto se sentia.
Celine supôs que seu vestido aparecesse... reparável. Quando ela fez isso
pela primeira vez, mais de um ano atrás, era bonito e elegante. Semanas no
porão encharcado de um navio em uma travessia transatlântica haviam
alterado o tecido irreparavelmente.
Celine chupou as bochechas.
Tudo bem. O vestido não estava terrível.
E sua aparência não importava para Deus, então por que deveria importar
para mais alguém?
Tolices. É claro que sua aparição na missa importava. Celine não podia
simplesmente marchar pela nave quadriculada da catedral de Saint Louis em
nada além de sua camisa e roupa íntima.
Embora isso fosse realmente um espetáculo, comportando-se tão
descaradamente em tais salões sagrados. Provavelmente seria banida do
convento – uma ideia que a aterrorizava e a intrigava.
Não importa.
Celine alisou a frente do vestido, as vibrantes listras rosas achatadas sob
as palmas das mãos. Eram quase dez horas, mas o dia estava quente como
uma casa de banho no verão.
O forte calor de Nova Orleans nunca deixou de surpreendê-la. Esta cidade
no final de janeiro parecia Paris em julho... se as ruas de Paris tivessem sido
encharcadas pelo mar. Ao lado de seu pé, havia os restos de uma pequena
poça, provavelmente de quando ela desenrolara os cabelos úmidos antes de
se vestir.
Distraidamente, Celine desenhou um símbolo na poça com a ponta do dedo
do pé. O mesmo símbolo encontrado ao lado do corpo de Anabel logo se
formou no chão de pedra. Ao mesmo tempo, Celine passou o calcanhar
através dele, banindo-o de vista.
Como seria Nova Orleans em julho? Inferno na Terra?
Celine estremeceu.
Ela imaginou que pareceria uma assassina na missa de domingo.
P elo canto do olho, Celine viu a última vela começar a piscar e diminuir.
Ainda não, ela silenciosamente implorou. Por favor ainda não.
Sua língua deslizou entre os dentes enquanto se apressava, juntando os
pedaços de tecido brilhante numa corrida contra a luz crepitante. Quando ela
estava prestes a chegar ao fim da costura, a porta da cela de Pippa se abriu.
Uma brisa fresca soprou pelo espaço, apagando a chama antes que Celine
pudesse piscar, engolindo-a na escuridão repentina.
— Oh. — disse Pippa, sua pequena figura em silhueta por um raio de luar.
— Sinto muito por isso. — Com o pé, ela apoiou a porta até a metade do
caminho. — Mas trago presentes.
— Ela entrou na sala. Entre as mãos dela, repousava uma simples bandeja
de madeira carregada com o que parecia ser comida e o toco de uma vela em
um suporte de latão à moda antiga.
Levou um momento para os olhos de Celine se ajustarem à escuridão azul.
— Desculpas são desnecessárias, especialmente se você trouxe queijo.
— E presunto e mostarda Dijon, além de chá, uma crosta de pão quente... e
um pedaço de favo de mel fresco que peguei anteriormente de uma colméia
de abelhas gloriosas! — disse Pippa, triunfante.
Celine quase podia ouvir Pippa sorrindo. Foi nesses momentos que ela
mais a apreciou.
Philippa Montrose era luz do sol e bondade. Um favo de mel por direito
próprio. Talvez parecesse bobo, mas ter uma amiga como Pippa ajudou
Celine a acreditar que era bem-vinda aos olhos da sociedade decente, apesar
de tudo o que havia acontecido nas últimas semanas.
Sorrindo, Celine prendeu a agulha no brilhante tecido branco e se afastou
da estação de trabalho improvisada para esticar os braços acima da cabeça.
Por um instante, pensou em esperar para comer. Seria sensato tirar proveito
da pequena vela que Pippa havia arrumado para terminar o último pouso
antes de se retirar para a noite. Afinal, uma única semana restava antes do
baile de máscaras. Celine nunca tinha terminado um vestido em tão pouco
tempo, muito menos sem assistência.
Mas ela estava faminta. Ela já tinha renunciado o jantar porque estava tão
consumida com seu trabalho. Quando Pippa sugeriu que reunissem suas
escassas provisões de luz para fazê-las durar mais tempo, Celine estava
além da apreciação do gesto. Desde que chegara ao convento há menos de
três semanas, lamentava sua escassez de lanternas a óleo.
Depois que o sol se pôs, Celine mudou suas coisas para a cela um pouco
maior de Pippa, onde Pippa optou por trabalhar em suas aquarelas, enquanto
Celine costurava à luz das chamas de velas que compartilhavam.
Agora Pippa mexia-se pelo espaço, cantarolando uma melodia familiar
enquanto acendia o cone curto e enquanto posicionava um banquinho no
centro da sala, colocando a bandeja no assento para formar uma mesa
improvisada.
No lado oposto da cela, Celine recuou para examinar seu trabalho.
Agradou-lhe o quanto ela conseguiu concluir em apenas dois dias. Assim
que o amanhecer terminou, ela consultou um carpinteiro na Rua Bienville,
que a Madre Superiora lhe recomendou. Depois que Celine explicou como
os cestos de estilo barroco deveriam parecer – estendendo-se lateralmente
para cada quadril de maneira exagerada, as silhuetas frontal e traseira
mantidas próximas ao corpo – ele sugeriu que usassem galhos de salgueiro,
pois seriam leves, flexíveis e prontamente acessível. Perfeito para construir
aros que estavam fora de moda há quase um século. Para imenso prazer de
Celine, ele garantiu que teria uma amostra para ela testar em três dias.
Celine começou a vestir o vestido de Odette com um único foco. Ajudou a
distraí-la das muitas perguntas sem resposta que giravam em sua mente.
A primeira vez que Celine visitou Jacques, ela chegou à conclusão de que
os membros da La Cour des Lions não eram humanos comuns. É claro que
esse conhecimento levantou a questão: se eles não eram exatamente humanos,
então o que eram?
Celine não tinha a menor idéia. Eles eram duendes ou changelings? Bruxas
ou feiticeiros?
Talvez algum tipo de fada escura ou silfo efêmero? Essas estavam entre as
possibilidades mais fantasiosas. O tipo que Celine pegou emprestada de
livros ou roubou de histórias que ouvira quando criança. Parecia mais
seguro acreditar que eles eram tricksters como Puck ou algo sobrenatural da
pequena floresta de uma floresta cintilante, como Oberon e Titania. Mais
seguro pensar que, do que acreditar que possam ser criaturas tão terríveis, o
pior dos pesadelos de Celine nunca os teria concebido.
Afinal, se a magia era possível, tudo era possível.
O pensamento que mais a assustou foi a probabilidade de que La Cour des
Lions tivesse algo a ver com o assassinato de Anabel. Que Bastien pretendia
proteger o culpado quando escondia a fita amarela.
Ou que ele era de fato o culpado.
Talvez Celine não tivesse estômago para a verdade. Talvez ela desejasse
permanecer alegremente ignorante, uma preocupação que a desconcertou
ainda mais.
Com um emaranhado de espinhos na cabeça, Celine passou os dedos pelos
pedaços de tecido cortado que estavam empilhados em uma pilha arrumada
em cima da cama de corda de Pippa. O que havia começado naquela manhã
como nada além de uma lista de medidas e pedaços de musselina dispersa se
transformara no começo de um grande vestido de baile.
Celine deixou sua mente ser consumida pelo desafio. Acolheu a distração.
A próxima parte do projeto poderia ser a tarefa mais difícil que ela já
havia encarregado-se. Uma parte do traje de baile de máscaras de Odette
pretendia ser uma surpresa. Assim, Celine não podia confiar em sua ajuda
para concluí-lo. Ela teria que recrutar assistência de outro lugar. Talvez
Pippa seja uma boa opção. Seu tamanho e formato eram semelhantes aos de
Odette, apesar da disparidade de altura.
— Você terminou a noite? — Pippa perguntou enquanto limpava o último
de seus apetrechos de aquarela.
Celine se esticou novamente, um bocejo puxando sua boca.
— Mais ou menos.
— Eu nunca vi alguém trabalhar por um período tão longo sem parar.
Como se você trabalhasse bem até a hora das bruxas, se não tivesse sido
interrompida.
— É verdade que estou me divertindo. — Celine enviou um sorriso
cansado. — Faz um bom tempo desde que tive a chance de criar algo tão
grandioso. O baile de máscaras está a apenas uma semana de distância.
Normalmente, tenho meses para fazer um vestido tão complicado. É uma
sorte que Odette tenha em sua posse uma grande quantidade de rendas e
miçangas para eu usar. — Ela se ajoelhou diante da mesa improvisada e
serviu uma xícara de chá para Pippa. — Eu não te vi no início da tarde. Você
foi ao mercado com Antonia ou ao chapelaria com Catherine?
Pippa balançou a cabeça.
— Eu encontrei a mãe de Phoebus Devereux para tomar chá. — Ela mexeu
uma gota de creme em seu chá, a cor pálida girando sobre a xícara.
— Eu quase me esqueci disso. — disse Celine, enquanto colocava
mostarda em um pedaço de pão, em seguida, fatias de Gruyère e presunto
salgado por cima. — Como foi?
Pippa apertou os lábios do botão de rosa para o lado.
— Estranho. Ela disse que seu filho esteve um pouco doente nos últimos
dois dias. Os médicos estão lutando para descobrir o que pode estar
deixando-o doente. Felizmente, ele está se recuperando. Ela quer que eu o
encontre em breve. Phoebus fará um convite quando estiver bem de novo.
— Se tudo correr de acordo com o plano de sua mãe, como você se sente
ao ser cortejada por ele? — Celine mordeu o pão, saboreando a nitidez da
mostarda e o sal do queijo.
Pippa quebrou um pedaço de favo de mel, deixando o mel dourado pingar
em seu chá enquanto pensava em como responder.
— Com toda a honestidade, estou mais preocupado com o que acontecerá
comigo se eu não encontrar um par. Quando não posso mais morar em um
convento sem ser freira. — Ela lambeu o mel da ponta dos dedos, sua
expressão melancólica.
A honestidade desolada de sua amiga irritou Celine.
— E se você não tivesse que se preocupar com essas coisas? Casar-se
com um garoto como Phoebus combina com sua sensibilidade?
— Eu acho que sim. Seria bom ter algo meu. Um espaço para desenhar.
Pintura. Tocar música. Ser eu mesma. A família Devereux parece ser um
meio confortável. — Pippa fez uma pausa. — Eu ficaria bem cuidada se
casasse com Phoebus, caso ele quisesse perguntar. — Conformação passou
pelas bordas de seus lábios.
Celine tomou um gole de chá, desejando poder falar claramente sobre o
quanto essa situação a incomodava. Que uma garota tão maravilhosa quanto
Pippa teria que renunciar a seus desejos para ter conforto e proteção.
— Suponho que tudo isso parece razoável e prudente. — E desanimador,
ela acrescentou a si mesma.
— Eu sei que isso te frustra. — Pippa parou novamente em consideração.
— Eu apenas, eu não tenho a disposição para esperar e ter esperança por
algo melhor. Eu me preocupo o tempo todo com o que vai acontecer comigo.
Mesmo objetivos razoáveis podem ser inatingíveis quando você é uma
jovem sem perspectivas. — ela disse simplesmente, a luz cansada em seus
olhos. — Aprendi isso em casa, em Yorkshire, quando ficou claro que
nenhum esforço da minha parte ou da parte de minha mãe poderia compensar
as falhas de meu pai.
Reparação. Um conceito que também assombrava Celine ultimamente.
— Você acha que é possível que seu pai possa reparar seus pecados?
— Para mim ou para Deus?
— Para você.
Pippa não respondeu, um cenho franzido nas linhas do rosto, como se o
pensamento a incomodasse.
Celine respirou com cuidado.
— Suponho que estou perguntando se é possível alguém realmente reparar
seus pecados. Para pedir perdão e ser verdadeiramente perdoado.
Por um momento, Pippa permaneceu em contemplação.
— Há algum tempo, acho que o pecado não é tão preto e branco como eles
gostariam que acreditássemos. — ela respondeu em tom pensativo. —
Suponho que há momentos em que o pecado está nos olhos de quem vê.
— Quando nos conhecemos, eu não pensaria que você é capaz de dizer
uma coisa dessas.
— Isso é um elogio ou um insulto? — Pippa sorriu de bom humor.
— É um elogio. Sou grata por você se sentir confortável compartilhando
esses pensamentos comigo. — Celine mordeu a parte interna da bochecha.
— Talvez você esteja certa. Talvez o que alguém possa considerar um
pecado, outro possa considerar ser... sobrevivência.
— Como quando Jean Valjean roubou um pedaço de pão para alimentar
sua família em Os Miseráveis. — Pippa assentiu em concordância, depois
preparou um tartine de presunto e queijo para si. Um silêncio fácil se
estabeleceu entre eles quando terminaram a refeição da meia-noite.
Assim que Celine engoliu os restos de seu chá morno, Pippa inclinou a
cabeça para um lado.
— Celine... há algo que pretendo lhe dizer há algum tempo. Eu posso
estragar tudo, mas espero que você tenha paciência comigo enquanto eu
tento.
O estômago de Celine se apertou de pavor.
— Claro. — Ela se forçou a sorrir.
— Acho que todos nós que viemos ao convento estamos aqui porque não
tivemos uma escolha melhor. — começou Pippa. — É possível que alguns de
nós estejam tentando... escapar de algo do nosso passado. — Ela vacilou por
um instante. — Mas acredito que você é uma pessoa maravilhosa, com um
bom coração e uma alma calorosa. O que quer que você tenha feito em sua
vida passada, acho que... não, eu sei disso... Deus pode perdoá-lo.
Um nó se formou na base da garganta de Celine.
— Pippa, eu...
— Espere, espere, tem mais. — Pippa respirou fundo, firmemente. — Se
Deus te perdoa, eu também posso. — Determinação gravada em sua testa. —
Todos nós deveríamos. — Ela engoliu em seco, seus lábios se juntando
timidamente. — Fiz isso uma confusão, não foi?
Soou muito melhor na minha cabeça. Muito mais vivo e significativo.
A boca de Celine ficou seca.
— Você não fez nada disso. Eu...
— Você não precisa dizer nada. Eu apenas pensei que você deveria saber.
— Com um sorriso terno, Pippa colocou o último favo de mel na borda do
pires de Celine.
Por um tempo, os olhos de Celine queimaram com lágrimas não
derramadas. Ela piscou de volta e desviou o olhar, lutando para se
recompor.
— Obrigado. — disse ela com uma voz grossa. Então ela levou o pedaço
de favo de mel banhado pelo sol aos lábios.
Pippa não sabia o que tinha feito por Celine. O que a declaração de Pippa
significou para ela.
De repente, ocorreu a Celine como as palavras mais simples geralmente
carregam mais peso.
Sim e não. Amor e ódio. Dar e receber.
Pela primeira vez desde que ela matou um homem e fugiu da França, ela se
sentiu entendida. Vista.
Segura.
Não. —B
C eline não sabia por que tinha certeza de que Bastien a seguiria.
Ela só sabia – com a certeza de uma lua nascente – que ele iria.
Quando ela olhou por cima do ombro, a forma do casaco dele se esticou
atrás dela, e uma sacudida de algo nunca visto, inédito, nunca sentido antes
deste momento, correu através de seu sangue. Pulsou em tempo com seu
coração, enviando-a correndo por um caminho perverso, mais fundo na
escuridão perversa.
Ela era Teseu. Preparando uma armadilha para o poderoso Minotauro em
um labirinto amaldiçoado.
Como se ela o conduzisse por uma corda, Bastien deslizou em seus passos.
Celine o sentiu através das camadas de sombra, como se a noite a tivesse
abraçado, refazendo-a à sua própria imagem. Os sons de alegria
desapareceram em suspiros, o cheiro de suor e flores pisoteadas embebendo
no ar quente.
Celine passou por um par de jovens se abraçando em um canto, com
pétalas de rosa esmagadas sem forma sob os pés. Uma alça no vestido de
uma menina deslizou por seu braço, o vermelho nos lábios de seu amante
nada mais que uma mancha em sua bochecha.
Com o rosto em chamas de desculpas, Celine virou a esquina seguinte e
chegou a um beco sem saída. Ela girou no lugar, com a cabeça erguida.
Bastien estava diante dela, iluminado pela lua, o colarinho virado para cima
escondendo a maior parte do rosto, a cabeça do Minotauro pendurada em
uma mão.
Ela olhou para ele através do vazio, prometendo manter-se firme em seu
plano, embora o espaço ao redor deles engrossasse com sugestões. — O
Minotauro, Bastien? Sério?
— Eu possuo uma certa afinidade por monstros.
— E o longo casaco preto?
— Eu gosto de fazer um espetáculo. — Seu rosto não continha nada além
de sombras, o conjunto de sua mandíbula refinado. Como se nada na situação
o incomodasse nem um pouco.
Isso provocou mais Celine. — E o que dizer da fita amarela de Anabel?
Bastien deu um passo mais perto. Um frio ártico emanava de sua pele. —
O que é que tem?
— Por que você a tem?
Ele não disse nada por um tempo.
— Por que você acha que eu tenho? — Bastien deu outro passo mais perto,
pressionando Celine no canto.
— Pare. — ela ordenou.
Ele parou de seguir. — Você está com medo?
— Não. Estou furiosa.
— Entendo. — A resposta de Bastien foi lenta. Deliberada. — Você acha
que eu a matei, — ele disse calmamente.
O carvão da noite dificultava a Celine discernir seus traços. — Eu não sei
mais o que pensar.
— Se eu dissesse que não a matei, você acreditaria em mim? Se eu
dissesse que encontrei a fita na escada, isso soaria verdadeiro? Ele avançou
mais uma vez, rondando como uma pantera, o timbre de sua voz diminuindo
ainda mais. — Ou você acreditaria em mim se eu lhe dissesse que pertencia
a alguém que amava há muito tempo?
— Eu... não sei.
— Você quer acreditar em mim? — Era como se o próprio Lúcifer tivesse
feito a pergunta a Celine, seu tom cheio de demônios sombrios.
Sim, seu coração disse. — Não. — As mãos de Celine se fecharam em
punhos.
— Mentirosa. — O último passo que Bastien deu trouxe seu rosto à luz da
lua.
Uma respiração aguda encheu os pulmões de Celine. Ele era
dolorosamente bonito. Não no caminho da arte ou no caminho da poesia.
Mas no caminho da violência. A maneira como a visão a agarrou e tomou
conta. Como uma tempestade de raios atrás de um banco de nuvens. Uma
maré quebrando em uma praia. Um lembrete de que a vida era um momento
no tempo.
Que cada segundo disso seja saboreado.
— Que tipo de criatura são os membros de La Cour des Lions? —
perguntou Celine, irritada com o tremor no peito. — Porque eu não acredito
que nenhum de vocês seja humano.
Celine esperava ver um vislumbre de choque em sua expressão. Ele
permaneceu com o rosto de pedra, a bainha do casaco comprido se
contorcendo sobre ele como a escuridão encarnada.
— Odette torna tudo possível. Arjun é um tecelão de palavras. Nigel
equilibra abolsa de valores. Jae elimina qualquer peso morto. Boone
encontra coisas que desejam permanecer ocultas. Madeleine faz essas coisas
funcionarem, enquanto Hortense saboreia em segundo plano. E, apesar do
meu amor por cobras, sou tão humano quanto você — disse Bastien
simplesmente.
— Você me vê como tola? — Ela respondeu.
Ele não disse nada em resposta.
— Se a Corte dos Leões não é responsável por matar Anabel e William,
então quem é? — Celine exigiu em um sussurro duro. — E como o
impedimos?
O som de um galho estalou em torno da curva, estalando com aviso.
Antes que Celine pudesse piscar, Bastien a empurrou para o canto,
cobrindo-a com o corpo, as folhas de cera nas costas formigando contra a
pele nua ao longo dos braços. Todo o ar deixou seu peito, o sangue
inundando suas veias em uma corrida quente. Por um instante ridículo,
Celine pensou que Bastien iria beijá-la, como os heróis dos terríveis contos
que ela frequentemente roubava de sua amiga Josephine.
Seus braços a envolveram quando ele assumiu uma postura ampla,
protegendo-a de vista. Para quem olhasse atentamente, pareceria que eles se
perderam pela folia da noite.
Não escapou à Celine de que Bastien não assumiu uma posição defensiva.
O que significava que ele tinha apenas a intenção de protegê-la.
Passos emanaram atrás dele, um grupo de figuras indistintas se movendo
em sua vista. A cada segundo, eles se aproximavam, suas identidades
escondidas sob a cobertura da noite.
Ameaça inconfundível rolou do corpo de Bastien. De todos os músculos
elegantes sob o colete preto a todos os tendões esticados em seus braços. A
respiração de Celine se alojou na garganta, o pulso disparando nos ouvidos.
Mais uma vez, lembrando a ela por que tantas pessoas concederam a Bastien
um espaço tão amplo.
Diante de Celine estava um jovem capaz de derramar sangue sem um
momento de hesitação. Um demônio cruel que poderia matar um dragão
armado e comparecer à missa na manhã seguinte.
Os intrusos se aproximaram, como se estivessem procurando algo na sebe,
suas palavras se arrastando juntas, seus corpos tropeçando na escuridão. O
braço direito de Bastien serpenteava em volta da cintura de Celine para
colocar o punho de uma pequena adaga na palma da mão, a mão esquerda se
deslocando em direção ao revólver enfiado no coldre do ombro.
Ele balançou a cabeça uma vez. Celine assentiu em entendimento.
Eles não diriam nada. Eles esperariam como víboras enroladas, prontas
para atacar.
Uma forma esbelta – a de uma jovem mulher – apareceu logo além do
ombro de Bastien.
— Você não disse que viu Sébastien Saint Germain entrando no labirinto,
perseguindo uma jovem? — disse ela ao companheiro atrás dela, suas
palavras pronunciadas de forma enrolada por causa da bebida.
— Eu poderia jurar que sim, — outra voz feminina soou atrás dela.
A primeira garota gemeu. — Qual rata sortuda conseguiu se agarrar a um
leão?
— Ela pode ficar com ele, — sua amiga respondeu com um
estremecimento audível. — Ele e todos os membros da Corte me assustam.
Não ligo quanto dinheiro ou influência eles tenham.
— Como você pode dizer isso? Ele é um prêmio em todos os aspectos.
Você viu a aparência dele quando sorri?— Ela suspirou. — É um rosto que
incendiaria as calcinhas de uma garota.
Uma luz fria se estabeleceu no olhar de Bastien enquanto elas falavam. O
gelo de uma noite sem lua, alto no Himalaia.
— Bem, ele não está aqui, — disse a segunda garota. — E Maman ficaria
furiosa se soubesse que havíamos entrado no labirinto. Todo mundo sabe o
que acontece aqui depois da meia-noite.
— Eu não ligo, — disse a primeira garota entre os dentes. — Eu esperava
sair da festa com pelo menos uma boa história.
— Vamos ser gratas por estarmos saindo, dados os assassinatos recentes.
— Sua amiga sensata afastou a primeira garota, forçando-as a retomar seus
passos, suas palavras derretendo no nada um momento depois.
Mesmo depois de terem ido além do alcance da voz, Bastien não se
afastou. Ele olhou para Celine, os lábios contraídos, as feições calculadas.
Celine olhou para cima, encontrando seu estudo, medida por medida. Ela
inalou, absorvendo o tempero da bergamota em sua colônia, misturado com o
cheiro de couro flexível.
— Parece que sua reputação o precede. — disse ela, suas palavras
silenciosas.
Traidoras. A cada instante que passava, a carga no ar começou a mudar, o
perigo se transformando em algo mais quente, mais intenso.
Mas não menos mortal.
— Pelo menos uma jovem aqui é sábia o suficiente para me temer. — ele
respondeu, com um significado claro.
— É isso que você pensa? — Sua sobrancelha franziu. — Que eu sou nada
mais que uma tola em saias de seda?
— Você não é nada como elas. Elas são sanguessugas. Você é um leão.
O prazer a percorreu com o elogio.
— E o que as sanguessugas querem com os leões?
— A chance de beber de nossas veias geladas. — Ele se aproximou, seu
hálito fresco lavando a pele dela.
Celine considerou seu rosto, concentrando-se no modo como sua boca
moldava as palavras. A maneira como seu sulco perfeito mergulhava no
centro. Quão fácil seria ficar na ponta dos pés e fazer o que ela queria fazer
desde o momento em que pôs os olhos nele.
Ela não estava sozinha em seu desejo. Mesmo sob o luar azul, o desejo nu
no rosto de Bastien desagradou Celine, deixando-a à deriva em um mar
tempestuoso.
Era o tipo de querer essa dor.
— Celine. — Ele pronunciou o nome dela como uma oração. — O que
você quer?
— Eu quero… — Ela se viu refletida em seu olhar líquido.
Bastien roçou a testa na dela.
— Ponha um fim às nossas misérias, mon coeur — ele sussurrou. — Por
favor.
Celine se levantou, na ponta dos dedos, ocupando o espaço dele como ele
ocupou o dela.
Ela o agarrou pelas lapelas imaculadas, a faca ainda entrelaçada entre os
dedos dela, a lâmina brilhando branca sob as estrelas. A frente do basco
dela pressionou os planos endurecidos do corpo dele, o coração de Bastien
batendo contra o dela. Ele olhou para baixo, depois se firmou.
Seus lábios estavam a um fio de cabelo por serem tocados.
— Eu quero — a língua de Celine estava a um gosto da dele — que você
responda minhas malditas perguntas.
Levou um momento para que suas palavras se registrassem. Uma sombra
cruzou a testa de Bastien, um músculo trabalhando em sua mandíbula quando
ele se desenrolou e deu um passo cuidadoso para trás. As mãos de Celine
deslizaram de seu peito, os calcanhares voltando à terra mais uma vez, o
cabo da adaga pendendo frouxamente na palma da mão.
Ela esperava a raiva dele. Desde tenra idade, Celine sabia que os meninos
não aceitavam bem as meninas que brincavam com seus desejos. Ela estava
preparada para a raiva dele.
Preparada para liberar um pouco da sua em troca.
Risos ricos roncaram através do silêncio da noite. Começaram no peito de
Bastien, depois saíram de seus lábios perfeitos, o som descarado de
apreciação.
Celine ficou congelada, atordoada em silêncio.
Por que ele nunca se comportava como o esperado? E por que isso o fez
ainda mais atraente?
Bastien continuou rindo como se ninguém estivesse lá para ouvir. Seus
lábios se curvaram em um meio sorriso.
— Celine Rousseau, você é...
— Brilhante, — ela terminou, recusando-se a admitir como estava
perturbada com a reação dele. — Uma alegria absoluta de se ver.
— Eu ia dizer impossível. — Bastien balançou a cabeça, parecendo
confuso por um trecho de tempo. Então sua expressão suavizou, sempre o
camaleão consumado. — Mas suponho que eu estaria disposto a considerar
outras opções. — Ele se endireitou. — Se você quiser que eu responda suas
perguntas, nomeie suas condições.
Ela piscou, ressentindo-se de como ele usava seus disfarces com tanta
facilidade.
— Você deseja negociar?
— Se você embainhar sua arma. — Bastien apontou para a adaga na mão
dela.
Inconsciente de si mesma, Celine levantou a pequena lâmina no ar,
brandindo-a entre eles. Piscando como um cervo preso na mira, ela virou a
alça iridescente na direção dele.
Em vez de pegá-lo, Bastien passou a bainha de madrepérola para ela.
— Mantenha isso em você o tempo todo. A lâmina é de prata maciça.
Nestes tempos, essa arma é uma necessidade, não uma opção. — Seu tom
não aceitaria qualquer censura. — E se necessário, sempre aponte para a
garganta.
Celine engoliu em seco.
— Obrigada, — ela murmurou. — Você... realmente promete responder
minhas perguntas?
Bastien verificou seu pulso. Assentiu uma vez.
— Aqui não. Toda sebe neste labirinto amaldiçoado contém pelo menos
cinco espiões. — Ele esfregou a lateral do pescoço. — Venha comigo.
TENHA CUIDADO
ESG
Confusão acumulada ao longo da ponte do nariz.
— O que...
— Pertencia à minha irmã, Émilie, — disse Bastien. — Ela me deu no dia
em que morreu.
— Ele respirou fundo, o ar queimando em seus pulmões no instante em que
pronunciou o nome dela. — Eu carrego comigo sempre. Isso me dá força.
Um momento se passou em silêncio. Celine esperou que ele falasse, como
se não soubesse que palavras expressivas de condolências fariam diferença,
mesmo depois de mais de uma década.
— Ela morreu por mim. — Ele lutou para esconder sua dor, como sempre
fazia. Para esclarecer isso, ninguém saberia como as lembranças de seu
passado ainda assombravam seu presente.
Celine lançou-lhe um olhar perscrutador.
— Você não deve esconder como se sente, Bastien. Não de mim. Prometo
nunca julgá-lo por isso.
— E por que você faria tal promessa a um garoto que mal conhece?
— Eu acho que você sabe o porquê. — Ela não desviou o olhar.
Mais uma vez, ele foi preso. Aqui estava o verdadeiro poder. O poder de
cativar sem uma palavra.
Naquele momento, Bastien não queria mais se esconder de Celine. Não
mais. Com ela, sua dor não era uma fraqueza para um inimigo explorar. Era
uma força, como Émilie teria desejado.
— Eu me sinto... despedaçado quando penso em minha irmã — ele disse,
sua voz grave com emoção incontrolável. — Como se meu coração fosse
feito de vidro, as peças se partissem através do meu peito. — Cada palavra
era um desabafo. Uma verdade que desejava ser libertada.
Celine assentiu, sua expressão melancólica.
— Não seria maravilhoso se todos pudéssemos ter corações feitos de
diamantes?
— Indestrutíveis. — Os lábios de Bastien se curvaram em um meio
sorriso.
Nos olhos dela, ele viu uma pergunta respondida.
O amor é uma aflição.
— Não deveríamos. — ele disse suavemente.
— Mas nós vamos.
— Não. — Ainda Bastien não conseguia parar de tocá-la. De deixar os
dedos deslizarem pela pele quente dela. — Nós não vamos.
— Sim nós vamos. Assim como você me ajudará a montar minha
armadilha no baile de máscaras.
— Eu não vou.
Celine se inclinou para sua carícia.
— Que mentiroso. — Ela apertou o corpo inteiro contra o dele, uma chama
acendendo em seu olhar. — E um covarde, — ela respirou sob o queixo
dele, a sensação percorrendo sua espinha.
Antes que Bastien pudesse oferecer uma réplica, Celine subiu na ponta dos
pés e inclinou os lábios nos dele. No instante em que se encontraram, ela
amoleceu em seus braços, moldando contra ele. Ele se rendeu, o resto do
mundo se derretendo. Quando a língua dela roçou seus lábios, Bastien
gemeu, não mais capaz de se conter.
Não foi um beijo de curiosidade, nem de exploração experimental. Foi
selvagem.
Imprudente. E Bastien não podia fazer nada além de responder da mesma
maneira. Ele queria isso na primeira noite em que se conheceram. Quando
Celine pegou sua gravata.
Quando ela o encarou – esperando que Sébastien Saint Germain se
encolhesse de medo – ela roubou seu coração partido.
Tudo em um instante perfeito.
Bastien levantou-a do chão, suas mãos endurecendo enquanto envolviam
suas pernas em volta de sua cintura. Ele empurrou as portas duplas com
Celine nos braços, engolindo-os na escuridão repentina. Mal consciente do
ambiente, atravessou o quarto em direção à cama de dossel de seu tio.
Diversão brilhou através dele, quente e rápido. Tio Nico sem dúvida ficaria
furioso com essa falta de respeito.
Valeria a pena.
Afundaram nos lençóis frios. Bastien beijou palavras espanholas na pele
da garganta de Celine, promessas que nenhum mortal poderia cumprir, votos
de um tolo poético. Os dedos dele afrouxaram os alfinetes enterrados em sua
coroa de cachos como a meia-noite, os pedaços de metal voando livremente,
os cabelos dela enrolando-se sobre eles como uma capa de escuridão. Ela
rasgou os botões da camisa dele, o som de tecido rasgado fazendo Bastien
sorrir em seu ombro nu.
— Eu gostava dessa camisa, — ele murmurou ao lado da orelha dela.
— Então faça uma oração pela alma imortal dela.
Bastien riu. Cada toque de sua pele, cada toque de sua mão, enviava outra
onda de desejo percorrendo suas veias.
Nos confins da sua mente, Bastien pensou no que isso significaria. Ele
arriscava pouco levando Celine para a cama. Ela arriscava tudo. Sua
reputação, seu futuro, possivelmente até seu bem-estar. Era algo que Odette
costumava comentar. A injustiça de tudo isso.
Ele pensou em parar, mesmo enquanto pegava as saias dela em suas mãos.
— Celine.
— Bastien. — Ela arqueou-se contra ele, as unhas arranhando os braços
dele, a sensação tornando sua visão negra. Ele agarrou os joelhos dela,
saboreando o choque em seu suspiro.
Ele deveria acabar com isso. Ele sabia que deveria.
— Está tudo bem?
— Sim.
Suas mãos roçaram mais alto.
— Isso? — O sangue rugiu em seu peito.
— Sim.
Os polegares dele roçaram a pele macia entre as coxas dela.
— E... isso?
— Bastien. — A cabeça de Celine caiu para trás, seu corpo tremendo. —
Por favor, eu... o que?
A pergunta em sua voz chamou sua atenção. Ela sentou-se abruptamente,
olhando de soslaio pelas sombras na parede oposta. Então ela empurrou
Bastien para longe, um grito assustador rasgando sua garganta.
Bastien se levantou, pegando o revólver em um movimento contínuo. Então
ele seguiu o olhar dela.
A escuridão do outro lado do caminho era espessa e profunda. O contraste
da luz que fluía das portas abertas na entrada da câmara dificultava a visão
do final da cama. Bastien levou um momento para detectar a fonte do grito de
Celine. Para perceber o que arrancou um soluço dela agora.
Bastien caiu de joelhos, o revólver batendo no tapete Aubusson.
Sempre termina em sangue.
Ali – ao longo da sacada de livros bem acima da cabeça – repousavam os
restos de um braço envolto em galhos de salgueiro quebrados, o sangue
pingando de seu rasgo. Sobre o corrimão, repousavam os restos carmesins
de uma cabeça humana decepada, suas feições marcadas pelas garras de um
animal.
Mas isso não importava. Nada poderia esconder a verdade de sua
identidade. Não de Bastien.
Nigel.
No muro acima da poça de sangue havia outro símbolo:
HIVER, 1872
RUA BIENVILLE
NOVA ORLEANS, LOUISIANA
O gelo fica mais fino sob o meu inimigo. Sob todos os seus amigos e
parentes.
Agora ele sabe que vou tirar dele aqueles que ele mais ama no mundo. Não
lhes mostrarei piedade. Vou tirar e tirar e tirar até que não haja mais nada a
perder.
Em breve eles entenderão que não há limites para o meu alcance. Pois
quebrei o muro de protetores de Nicodemus. Seu último bastião restante.
Agora não pode haver socorro. Não da minha ira.
Ele se esforçará para proteger sua família – como há séculos – mas não há
dúvida de quem sairá vitorioso nessa batalha. Só eu seguro todas as cartas.
Nenhuma porta está trancada para mim. Não há montanha alta demais para
escalar. Não há alcance neste inferno.
Eu estou nas sombras, olhando para o Hotel Dumaine. Eu assisto sua Corte
dos Leões passar pela escuridão. Testemunho quando uma força impotente
de policiais desce sobre o edifício suntuoso. Eu ouço enquanto eles falam.
Enquanto ela chora e ele se enfurece. Como todos eles lamentam o que antes
era.
A perda arde, não arde?
Não mais do que doeu quando perdi tudo o que considerava querido.
Quando tudo o que eu valorizei se despedaçou, pisoteado ao pó sob seus
pés.
Minha pele está eletrificada pelo tormento deles. Minha alma voa livre.
Ele sabe que é pessoal agora. Quando sua confiança é tirada dele – quando
aquele que ele mais ama é marcado pelo beijo duradouro da Morte – ele
saberá por que isso foi feito. A quem culpar.
Não há como voltar atrás. O pavio foi recolhido. O fósforo foi aceso.
Somente um de nós pode sobreviver aos fogos do inferno.
O TRAVESSO
Celine não deveria ter se importado que Bastien tivesse pensado nela
momentos depois de descobrir seu amigo assassinado. Mas importava mais
do que ela conseguia encontrar as palavras para dizer. A nota que ela
segurava na palma da mão provava que não eram simplesmente os "apenas
conhecidos" que haviam concordado em ser apenas alguns dias antes. Eles
estavam além de tais inanidades. Talvez importasse para alguém em algum
lugar que Celine não fosse uma combinação adequada para Bastien, nem ele
era o pretendente adequado que ela imaginara para si mesma.
Mas isso não importava mais para eles.
Celine viu através das máscaras de Bastien. Ele olhou além da vida de
mentiras astutas dela. E quando confrontados com essas verdades – as piores
coisas que haviam acontecido com eles, as piores coisas que eles haviam
feito – Bastien não vacilou nem Celine se afastou.
Essas eram as únicas verdades que faziam sentido em meio a esse caos.
Colocando um cacho errante atrás de uma orelha, Celine caminhou em
direção ao quadro-negro para dar uma olhada no mapa gasto, marcado com
pinos de metal de investigações anteriores. Mais uma vez ela se esforçou
para entender o que fez o assassino mudar suas atenções para ela. O que o
levou a assassinar aquela pobre garota nas docas semanas atrás. Se tudo
estava conectado e, em caso afirmativo, qual seria o próximo passo do
assassino. Seu olhar se prendeu ao nome da rua que passava em frente à
delegacia, Rue de Chartres.
Venha comigo para o coração de Chartres.
A frase estava faltando na coleção de Michael. Evidentemente, Celine
deixou de mencionar isso para ele. Isso importava? Isso tinha algum
significado? Quem era esse louco, e por que ele estava matando pessoas ao
seu redor? Onde ele estava escondido, à vista de todos ou em um labirinto
sombrio de sua autoria? Ele poderia estar entre tantas pessoas que ela
conhecera até agora. Ou ele não poderia ser nenhum deles.
Uma coisa estava clara: Celine terminou de esperar que ele desse o
próximo passo.
A frustração apertou sua garganta, o calor da raiva quase imperceptível
esquentando sua pele. Sua determinação endureceu ainda mais. Ela atrairia o
assassino em uma armadilha na noite do baile de máscaras, quando ele
acreditava que ela estava preocupada por causa da bebida. Ela pareceria se
entregar às festividades da festa e depois deixaria o baile para passear
sozinha pelo bairro, exatamente como na primeira noite em que o assassino a
seguira, há apenas quinze dias.
O demônio não saberia que os membros da Corte estariam espreitando nas
proximidades em um círculo cada vez mais apertado, esperando que ele se
revelasse. Para ele finalmente dar um passo em falso.
E se não funcionasse?
Celine simplesmente colocaria a armadilha novamente em um local e hora
diferentes.
Talvez fosse ridículo pensar que ela poderia superar um vilão como ele.
Mas pelo menos era alguma coisa .
Ao lado de seus pés, os raios de sol se estendiam longos e magros quando
o crepúsculo começou a descer em Nova Orleans, o céu pegando fogo ao
longo do horizonte. Celine bufou, o eco desenrolando-se nos tetos de gesso.
— Que perda de tempo, — ela murmurou para ninguém. Impediu-se de
chutar a esquina da mesa desordenadamente arrumada de Michael, como uma
criança a quem fora negada um doce. Havia tantas outras coisas que ela
poderia estar fazendo. Deveria estar fazendo. O olhar dela caiu sobre a saia
do vestido de baile de Odette, espalhado sobre a ponta da cama raquítica.
Durante várias horas naquela manhã, Celine havia trabalhado para
perseverar e dar os retoques finais nele. O baile de máscaras estava a
apenas dois dias, e ela ainda precisava de tempo para completar seu próprio
traje. Mas as agulhas haviam caído de seus dedos trêmulos, seus nervos
desgastados pelos eventos da noite anterior. Não importava o que Celine
fizesse, ela não conseguia silenciar o tumulto de seus pensamentos.
Passos militantes dobraram a esquina logo depois da porta trancada.
Celine ouviu, olhando para o relógio para verificar – mais uma vez – a hora
em que os guardas patrulhavam os corredores do lado de fora do escritório
do detetive Grimaldi.
Ficar em quarentena como um paciente de cólera foi um desperdício de
horas preciosas em muitos aspectos, mas pelo menos ajudou Celine a reunir
as informações necessárias para o empreendimento de hoje à noite:
Uma fuga da meia-noite da prisão.
Por sua conta, os guardas patrulhavam o impressionante edifício de tijolos
ao lado da Catedral de Saint Louis a cada quinze minutos. Em incrementos a
cada duas horas, alguém batia na porta do escritório de Michael para
verificar Celine ou entregar algo para ela comer.
Se ela quisesse atender às suas necessidades físicas, um oficial
estacionado perto da curva mais próxima do salão estaria lá para garantir
que ela retornasse ao escritório de Michael imediatamente.
O próprio Michael viera duas vezes para vê-la desde o amanhecer.
Como prometido, Celine foi bem atendida. Seria realmente uma tarefa
difícil para qualquer intruso passar pelo impressionante esquadrão de
guardas que cercava o prédio, subir as escadas sinuosas até o terceiro andar
e entrar em uma série de corredores, patrulhados como sempre a todas as
horas.
Mas ela apostaria que nenhum deles considerou se Celine gostaria de sair
dessa prisão improvisada.
Claro que era selvagem e irresponsável tentar uma coisa dessas.
Infelizmente, Celine suspeitava que, se ela sequer pedisse para deixar o
local, o próprio Michael estaria lá para monitorar todos os seus movimentos.
Além disso, Celine não achou que ele receberia de forma agradável o
pedido dela para se encontrar com qualquer membro da La Cour des Lions
na sede da polícia, quanto mais Bastien.
Merde, ela pensou consigo mesma. Eu nunca deveria ter lhe contado
nada, muito menos meu plano de me usar como isca.
Celine fungou. Era irritante para ela ser algemada a um lugar dessa
maneira, como uma princesa mantida em uma torre, esperando um cavaleiro
branco. Ela não era uma completa tola, afinal. Nenhum risco indevido seria
assumido esta noite. Em todos os momentos, a adaga de prata sólida de
Bastien estaria por perto. E ela não tinha intenção de vagar além do alcance
da sede da polícia. Em vez disso, esperaria Bastien no coração da Jackson
Square, nem um minuto antes da meia-noite, a menos de quarenta passos das
portas da frente da catedral.
Que tipo de assassino tolo tentaria derrubá-la a poucos passos de uma
guarnição de policiais armados?
Vários passos se aproximaram da porta, parando do lado de fora. Um
punho bateu levemente em sua superfície de carvalho em três batidas
sucessivas. Então esperou um pouco antes de bater quatro vezes mais.
O sinal de Michael que planejara transmitir que estava do lado de fora e
que tudo estava bem.
Celine abriu a porta e encontrou o jovem detetive parado ali, uma
tempestade se formando em seus olhos incolores. Por cima do ombro,
pairava um homem alegre e gigante carregando uma cesta incongruentemente
pequena e uma mulher curvada com um xale de lã pendurado nos ombros e
um prato coberto entre as palmas das mãos enrugadas.
A mulher idosa espiou além de Michael com uma expressão irônica. —
Afaste-se, caro. — Seu sotaque era marcado com r's e vogais ricamente
arredondadas. — E não se esqueça de me apresentar. — Um brilho brilhou
em seu olhar atento.
Quando Michael não conseguiu atravessar o limiar ou pronunciar uma
única palavra, a mulher idosa lhe deu uma cotovelada divertida, o bruto
iminente rindo baixinho, o som como o latido de um cão grande.
Com um suspiro cansado do mundo, Michael os seguiu até seu escritório,
seus movimentos descaracterizadamene estranhos.
— Nonna, esta é a senhorita Celine Rousseau de Paris. — Ele fez uma
pausa. — Rousseau, gostaria de apresentá-la à minha avó.
Os olhos de Celine se arregalaram. Ela ficou ereta enquanto guardava a
carta de Bastien no bolso de sua saia.
— É um prazer conhecê-la, madame Gri...
— Nada disso. Me chame de Nonna. — O sorriso dela enrugou todas as
linhas da testa, o efeito mais calmante do que uma caneca de chá quente. Ela
passou por Celine. — Trouxe um pouco de ribollita. — Com um ruído,
Nonna pousou o prato coberto na mesa de Michael.
— É uma sopa que minha mãe me ensinou a fazer quando eu era criança.
Veja bem, eu era um pouco encrenqueira na minha juventude. — Ela fez
pequenos círculos com as mãos, seus gestos pontuando suas palavras. —
Sempre destruindo coisas e entrando em travessuras. Então minha mãe me
dava pão velho para rasgar em pedaços, então esperávamos até que
absorvessem o delicioso caldo antes de fazer um banquete! Você já comeu
ribollita? — ela perguntou a Celine enquanto acenava sua imensa escolta
para mais perto, seus passos diminuindo, como se ele tivesse sofrido uma
lesão recente.
— Não, senhora. — Celine sorriu, um calor afeiçoado no estômago.
— Você vai adorar. — Nonna sorriu. Toda vez que ela se mexia, o cheiro
de canela e sálvia inundava o ar. — Luca, per favore, onde estão as tigelas?
— Ela se virou para o gigante alegre, com uma expressão severa no rosto.
— E, Michael, por que você está parado ali como se tivesse sido atingido
por um raio? Muoviti! — Ela jogou as mãos para o lado, afastando-o.
Pela primeira vez desde que Celine conheceu Michael, ela vislumbrou um
olhar de total perplexidade no rosto dele. Ele começou a dar um passo à
frente, depois parou, limpando a garganta e ajustando as barras das mangas.
Apesar de tudo, uma bolha de risada sombria ameaçou irromper pelos
lábios de Celine. A diminuta avó de Michael havia arrancado o proverbial
tapete debaixo de seus pés, e Celine aproveitou cada segundo de vê-lo
tropeçar.
Nonna continuou:
— Só posso imaginar o quão pouco meu neto pensou em fornecer-lhe
comida adequada, já que ele mesmo se esquece de comer. — Ela girou, o
xale caindo de um ombro. — Deixe-me olhar para você. — Sem aviso, ela
agarrou Celine pelo queixo, virando o rosto para lá e para cá. — Bella,
bella, bella, — ela murmurou. — Onde você conseguiu esses olhos e essas
maçãs do rosto, cara?
— Minha mãe.
— Óbvio, — Nonna disse, assentindo. — Sua mãe deve ter sido linda. —
Ela piscou para o homem que chamara de Luca. — Não é diferente de mim
no meu apogeu.
Luca riu, o som dançando na sala mal iluminada enquanto ele avançava.
— Como meu primo está claramente atado à língua, terei que me desculpar
por ele e fazer minha própria apresentação. — Ele mergulhou a cabeça em
um pequeno arco. — Luca Grimaldi, ao seu serviço. — Quando ele sorriu
para ela, Celine notou a semelhança na linha de sua mandíbula e ao longo de
sua testa despenteada. Mas, em vez de lhe emprestar a aparência acadêmica
de Michael, em Luca o deixava com aparência bastante robusta. Como um
homem que trabalhou com as mãos ao ar livre por longos períodos de tempo.
Seus olhos lembraram a cor de chocolate derretido e – quando ele pegou a
mão de Celine para dar um beijo educado – a solidez de seu aperto a fez se
sentir ainda mais à vontade.
Celine sorriu para ele, maravilhada com a sua altura. — É um prazer
conhecê-lo, Luca.
— Pegue uma cadeira para a jovem, caro — Nonna repreendeu Michael
enquanto colocava a sopa saudável em pequenas tigelas que ela retirou da
cesta de Luca. Celine se aproximou para ajudar, mas foi escovada para um
lado sem preâmbulos. — Não, não. Você é nossa convidada aqui. — Nonna
entregou uma tigela a Celine, e a ribollita fumegante esquentou as palmas de
Celine, serpenteando em direção ao coração. Uma vibração estranha tomou
forma em seu peito. Ela não conseguia se lembrar da última vez que alguém
preparou algo especialmente para ela, com as próprias mãos. Em casa, em
Paris, ela havia cozinhado a maior parte do tempo. E Celine nunca conheceu
suas avós.
Ela limpou a garganta.
— Obrigado, Nonna.
— Claro. — Nonna serviu tigelas de sopa para Michael e Luca. — Sente-
se, sente-se, antes que a comida fuja de você. — Ela bufou. — Você pode
acreditar que meu neto não queria que eu viesse aqui hoje? — Nonna disse
enquanto todos se reuniam ao redor da mesa de Michael para uma refeição
improvisada de ribollita. — Ele protestou com mais fervor. Então é claro
que eu fiz Luca me trazer. — Ela afastou um cacho de prata. — Embora as
circunstâncias não sejam ideais, eu estava ansiosa para conhecê-la, querida
Celine. — Os olhos dela brilharam. — Michael fala bem de você.
— O tempo todo, — Luca acrescentou em um tom de provocação.
O olhar de Michael penetrou no crânio de seu primo com a precisão de
uma lança.
— Cristo Todo Poderoso, deixe isso acabar logo, — ele resmungou
enquanto mexia sua sopa lentamente, suas feições sombrias.
Mais rápido que um raio, Nonna bateu na parte de trás de sua cabeça.
— Non pronunciare il nome del Signore invano, Michael Antonio
Grimaldi! Não pronuncie o nome do Senhor em vão!
Michael fechou os olhos e cerrou os dentes, enquanto Nonna continuava
comendo como se nada tivesse acontecido. Como se ela não tivesse acabado
de atacar o principal detetive da polícia de Nova Orleans por ousar falar o
nome do Senhor em vão.
Os lábios de Celine se contraíram. Ela tossiu. Então bufou da maneira
mais desagradável.
— Sinto muito. — Ela limpou a garganta.
— Pelo quê? — Luca perguntou, sua pergunta tingida de diversão.
— Que eu não posso assistir isso acontecer repetidamente na minha
cabeça.
Luca gruniu, um punho carnudo batendo contra a mesa, empurrando a sopa
de Celine.
— Ela vai se sair bem, primo. — Ele gruniu mais uma vez. À sua
esquerda, Nonna riu, seus ombros esbeltos tremendo de tanto rir.
— Suponho que não importa que ninguém tenha perguntado sua opinião, —
respondeu Michael, cortando friamente as palavras.
— Nem um pouco. — Luca bebeu sua sopa e se inclinou na direção de
Celine. — Eu contaria histórias terríveis sobre ele, mas temo que já
tenhamos pressionado meu primo longe demais, aparecendo em sua porta
sem sermos anunciados.
Celine curvou uma sobrancelha.
— Ele era tão desafiador quando criança como eu suspeito? Muitas
perguntas honestas e respostas presunçosas?
— Pior. Da próxima vez, vou contar sobre seu quinto aniversário, quando
ele me esfaqueou na lateral do pescoço com um lápis recém-afiado. — Ele
se inclinou para mais perto. — Ainda carrego a cicatriz aqui. — Luca
apontou para um pequeno ponto escuro logo abaixo da orelha esquerda.
Celine tremeu, encantada por sentir a ira de Michael quente ao seu lado.
— Basta, Luca, — Nonna ordenou. — Você mereceu por quebrar os outros
lápis dele como fez, e acho que Michael sofreu o suficiente por uma noite.
Vamos falar de coisas agradáveis. — Sua colher caiu na tigela. — Como
quando você planeja trazer aquela jovem para me ver. Aquela que continua
escrevendo essas lindas cartas para você. Está na hora de conhecê-la. Você
sabe que não estou ficando mais jovem, Luca Grimaldi.
Luca gargalhou, engasgando com a boca cheia de ribollita. — Eu pensei
que você queria que discutíssemos assuntos agradáveis, Nonna.
— Ela quis dizer agradável para si mesma, — Michael interrompeu.
Nonna murmurou.
— Vou recorrer a todas as maneiras de vergonha, se isso significa que eu
vou segurar meus bisnetos antes de morrer.
— E você, Michael? — Luca olhou para o primo com um sorriso
diabólico. — Você não me disse apenas na semana passada que uma jovem
chamou sua atenção?
Celine esperava que Michael olhasse para seu primo musculoso em
resposta. Mas ele mal olhou para Luca com um olhar de irritação
incontrolável.
— Quem chamou sua atenção? — Nonna exigiu, sua indignação claramente
fingida. Muito dramático para ser real. — E por que só estou sabendo disso
agora? — Sua mão minúscula bateu na borda da mesa. — Rispondetemi.
Responda me.
Luca riu baixinho, cruzando os braços e recostando-se na cadeira enquanto
Celine olhava para a tigela de sopa, rezando para que alguém mudasse de
assunto.
Michael limpou a boca com um lenço de linho, suas palavras medidas.
— Eu não te contei sobre ela, porque ainda estou tentando provar que sou
digna de sua atenção. — Ele nivelou o olhar para o relógio ao longo da
parede com um olhar determinado.
Celine se absteve de se contorcer na cadeira.
— Qualquer jovem que não consiga ver como você é um homem
maravilhoso deve ser tola, — disse Nonna, apontando suas palavras. — Meu
Michael sempre foi o garoto mais inteligente da sala. Tão trabalhador. E
mais bonito do que qualquer rapaz tem o direito de ser.
A cor subiu no pescoço de Celine com ferocidade desenfreada. Uma parte
dela queria dizer algo para atrapalhar o curso da conversa, mas ela não tinha
as palavras certas. Não importava o que ela dissesse ou como dissesse, ela
certamente ofenderia alguém.
E a família de Michael tinha sido tão gentil com ela. Mais amável do que
ela merecia.
— Ela não é boba, — disse Michael com muito cuidado. — Longe disso,
na verdade. Ela é esperta e perspicaz. Observa detalhes que outras pessoas
perderiam. Apesar de suas próprias dificuldades, ela consegue ser carinhosa
e altruísta. Além disso, ela se recusa a se curvar ao altar de dinheiro, —
continuou ele. — Mas ela é teimosa e um pouco distraída.
A mandíbula de Celine quase caiu. Ela nunca tinha ouvido Michael falar
de alguém tão bem, muito menos dela.
— Bem, você simplesmente terá que fazê-la se concentrar, — disse Nonna,
o lado da mão cortando a mesa como se fosse uma faca. — Mostre seus
encantos para ela.
Luca riu.
— Seus encantos? Nenhuma jovem quer ser inundada de fatos inúteis ou
forçada a lidar com colarinhos engomados e horas de trabalho ímpias. —
Ele desviou a atenção para Celine, sua expressão perspicaz. — Você tem
alguma sugestão para meu primo, senhorita Rousseau?
— Pardon? — Celine sentou-se ereta, sua colher balançando na mesa, o
delicioso caldo espirrando em seu rastro.
— Você é uma jovem mulher, — Luca pressionou. — O que um jovem
precisa fazer para chamar sua atenção?
A estranheza de seu pedido quase derrubou Celine. Apenas o idiota mais
tolo não conseguiria ver o que Luca e Nonna estavam tentando fazer. Quando
ela olhou na direção de Michael, ele parecia tão desconfortável quanto ela.
— Talvez — Celine firmou o tom — a detetive Grimaldi deveria começar
com um poema?
— Você ouviu isso, Michael? — Luca apoiou os cotovelos ao longo da
mesa, uma faísca ansiosa em seus olhos de chocolate. — Você deve enviar
um poema para a jovem.
Michael considerou a sugestão de seu primo, como se nada fosse estranho
nessa conversa. Então ele se virou para Celine, observando-a atentamente
enquanto ele falava.
— Sou parcial com Blake. Ou talvez Byron?
Celine engoliu em seco.
— Eu sou a favor de Shakespeare, embora eu aprecie Blake de vez em
quando. — Ela não sabia o que a possuía para dizer isso. Talvez fossem os
elogios de Michael ainda ecoando em seus ouvidos. Mas mesmo que ele
recitasse seu soneto favorito de memória, isso não daria vida a um
sentimento que ela não tinha por ele. O que ela sentia por Bastien ainda não
era amor, mas era... alguma coisa. Um sentimento que Celine não podia mais
ignorar.
— Shakespeare. — Michael assentiu uma vez, sua sobrancelha firme. —
Vale a tentativa.
MIL PEQUENOS CORTES
Tudo será por nada, pois ela não sabe o que faz..
Sou grato por meu sangue ser mais grosso que o óleo
Et brille plus fort que le soleil (E queima mais que o sol).
BELA QUEDA
O céu escureceu para um roxo profundo com o passar dos minutos. Celine
esperou na beira da varanda, olhando para as estrelas. Ela não sabia quando
percebeu o quanto a visão da lua a acalmava. Talvez tivesse algo a ver com
a mãe.
No fundo de sua mente, Celine lembrou-se de caminhar por uma costa
rochosa quando criança, de mãos dadas com uma figura ágil cujos cabelos
negros caíam pela cintura em ondas grossas. Nessa lembrança, sua mãe
cantou até a lua cheia, a melodia carregando a água escura, desenrolando-se
no vasto céu acima.
Talvez tenha sido um sonho. Nada mais.
Um galho estalou nas copas das árvores à esquerda de Celine, tirando-a de
seus pensamentos com um sobressalto repentino. A energia derretida
percorreu suas veias, sua pele ficando quente como brasas ardendo em
chamas. Os olhos de Celine voaram em todas as direções, o medo tornando-
a consciente de cada respiração. Todo escândalo. Todo suspiro. Ela se
concentrou no bosque de carvalhos iminentes, com o coração no peito.
Uma coruja solitária saiu das sombras, suas asas batendo no ritmo de sua
respiração.
Ela quase riu. Seus dedos tremeram quando se moveram para a pele nua de
sua garganta, em um esforço para acalmar seus nervos furiosos.
No instante seguinte, o silêncio caiu ao seu redor como um martelo na
bigorna. Os pássaros pararam de mexer nas copas das árvores, as cigarras
cessaram com o zumbido. Um rugido surdo ecoou nos ouvidos de Celine
quando ela se virou em direção às portas duplas abertas nas costas, com a
intenção de entrar.
Antes que ela pudesse dar um único passo, os indivíduos subitamente
mudos ao longo da varanda lotaram seu caminho. Eles se viraram para sair
em concerto, suas expressões em branco, seus passos rotineiros. O trio de
garotas de mãos dadas anteriormente, seus olhos vidrados quando se
aproximaram das portas duplas, a última de suas fileiras parando para
trancá-las atrás dela, as fechaduras se encaixando no lugar com um clique
ameaçador.
Nicodemus estava fazendo isso?
O pânico ecoou pelo corpo de Celine. Que tipo de magia negra era essa?
Nicodemus tinha mentido para ela? Ele estava brincando com ela? Ele
próprio fez falsas promessas, o tempo todo pretendendo se livrar de Celine
na primeira oportunidade?
De repente, cada uma de suas memórias se tornou muito mais preciosa. Ela
pensou em arregaçar as saias e fugir. Considerou correr em direção às portas
trancadas e bater em suas superfícies de carvalho, pedindo socorro.
Quão mal ela se machucaria se ela pulasse sobre a balaustrada?
Celine havia planejado atrair o assassino para o local de seu primeiro
assassinato. Empurrá-lo pelas docas, aproveitando os espaços abertos e o
trecho de água nas costas deles, frustrando assim suas tentativas de escapar.
E se isso não funcionasse, ela estava determinada a arrancá-lo de seu
esconderijo no coração de Chartres.
Ele não estava destinado a prendê-la.
Nicodemus foi o assassino? Celine literalmente dançou em suas garras?
Seu peito subiu e caiu em rápida sucessão, o osso de baleia dela
permanece atado. O único recurso que Celine tinha era que, se ela gritasse
alto o suficiente, alguém lá dentro certamente a ouviria.
Mas eles a alcançariam a tempo?
Celine plantou os pés, enraizando suas convicções. Se essa era sua única
chance, ela a aceitaria. Seus dedos se moveram em direção ao bolso
escondido no quadril, fazendo uma pausa na ponta do cabo da adaga de prata
de Bastien.
Uma orda de corvos irrompeu dos galhos à sua direita. Ela se virou,
observando-os voar para a lua, desejando com toda a força poder brotar
asas e voar.
Nesse momento, Celine notou um conjunto estranho de marcações ao longo
da borda da balaustrada. Seus pés a carregaram para mais perto antes que
ela pudesse pensar.
Quatro símbolos haviam sido pintados na pedra travertina, com as bordas
secas para combinar com as veias, os centros em um vermelho carmesim
brilhante e molhado:
L, O, U . . . P?
Um som estrangulado emitido pela garganta de Celine. Ela se afastou,
colidindo com uma parede de pedra. Choque a segurou quando um par de
braços longos alcançou sua cintura, mãos enluvadas subindo por sua caixa
torácica.
— Mon amour. — ele murmurou atrás da orelha dela, seu hálito fresco
lavando sua nuca. — Você é minha para sempre.
Celine abriu a boca para gritar. Algo afiado rasgou a lateral de seu
pescoço, e ela foi consumida em um vazio escuro.
UMA LIBRA DE CARNE