Karvid - Cora Félix

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KRAMP

Copyright © 2022, Cora Félix

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obra poderá ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma, meio eletrônico ou mecânico sem a
permissão do escrito do Autor e/ou Editor.

1ª Edição

Revisão
Nadja Moreno

Preparação de Texto e Revisão Final


Mari Vieira

Capa e Diagramação
Editorial Félix
NOTA DA AUTORA

Esse é um conto de presente de Natal que fiz para minhas leitoras.


Eu gostei tanto de criar esse universo que possivelmente isso poderá virar
uma série de livros.
Possivelmente. Eu já disse possivelmente?
SUMÁRIO
I
II
III
IV
V
Toda aposta na pureza produz sujeira,
toda aposta na ordem cria monstros.

Zygmunt Bauman
ATENÇÃO

Esse é um conto de fantasia monster love.


Se você não gosta dessa temática, sugiro não lê-lo!
Dezembro
Século XI
I

Ele veio com a suavidade de uma brisa, mas o medo que o


acompanhava era inconfundível, turvo e gradativo, daqueles que quanto
mais você se aproxima, mais sente os pelos do corpo eriçarem e o coração
bater mais rápido, mas isso não a impede de ficar estática o esperando. O
que era tolice. Ele sempre chegava, e seu tributo era levado sem que tivesse
saída. Sábio era o que não tentava fugir. Tolo era o que não acreditava na
lenda.
Meio animal, meio demônio. Com pelos espessos e escuros no corpo,
cascos e estatura incomum, vinha sempre no último mês do calendário. O
som das correntes era escutado por qualquer criança que temia o nome dele,
algumas podiam descrevê-lo como um demônio, outras juravam ter sentido
até mesmo o cheiro: fétido e ocre.
Svenja olhou para a irmã, Theda. A criança parecia mais pálida que o
normal e os olhos azuis viajavam da pequena cabana que abrigava a família
até a porta de madeira rústica que mal servia para barrar a ventania lá fora.
Às vezes, o ferrolho se mexia por causa do vento e Theda segurava a
boneca feita com algodão cru e palha. Dois meses atrás, Svenja havia
costurado lã amarela na cabeça da boneca. A mãe não gostou, lã era um
material caro e poderia ser usado em algum casaco, mas a alegria de Theda
valeu a pena.
Svenja não via aquele sorriso no rosto da irmã no momento.
— Pare de vigiar, Theda. — Tentou confortá-la. — Sabe que ele não
gosta de ser esperado.
A garota apertou mais a boneca contra o peito e fechou os olhos.
Svenja sorriu e passou as mãos nos cachos dourados do cabelo da irmã. O
carinho fez com que Theda relaxasse e a outra respirou fundo.
De certa forma, nunca havia visto a criatura, mas sabia que ela existia
por causa de relatos dos vilarejos. Todo final de ano, crianças eram levadas
dos seus casebres e passavam meses desaparecidas. Algumas eram achadas
nas fronteiras das florestas, outras, nunca mais eram vistas. Havia algo em
comum nas crianças que sobreviviam: não se lembravam de nada, mesmo
que soubessem quem as havia levado.
Svenja já não fazia parte da preferência da criatura, mas ela se
lembrava do medo. Ele viajava pela sua mente e inundava os pensamentos
como uma água turva, sufocando-a. Chifres enormes, correntes de argolas
grossas, um casaco de couro puído. Algumas pessoas da vila relataram até
mesmo ver olhos amarelos brilhantes.
Svenja sabia que a lenda de Krampus era real. Contudo, sentia que
esperá-lo era um erro. As vítimas escolhidas não tinham chance contra a
criatura horrenda, então se comportavam como bons filhos e boas pessoas
para que tivessem uma chance. Theda era uma boa filha, mas havia
quebrado algumas regras onde moravam. Vista várias vezes no vilarejo
pelas ruas do comércio, tinha roubado alguns legumes a mais e enfiado
dentro do vestido puído sem que ninguém notasse. Os pais delas não
gostaram quando descobriram os nabos e as batatas, mas comeram de bom
grado quando fizeram uma sopa mais grossa e mataram a fome de dias.
Com isso, Theda errou, e por tal gesto havia sido marcada.
Svenja sabia que as chances da irmã ser levada naquele ano haviam
aumentado muito quando a garota pegou gosto de surrupiar legumes e
pequenas frutas. Algumas, ela entregava para a família, outras, comia antes
mesmo que chegassem em casa. Svenja viu aquilo tudo calada, e os pais se
fingiram de cegos quando percebiam a alegria infundada da filha mais
nova.
O preço veio quando até mesmo o som do vento batendo nas tábuas
do casebre pareceu cessar. A respiração estável e confortável de Theda
indicava que a garota havia relaxado e estava imersa em um sono tranquilo.
Já Svenja, tinha todos os sentidos em alerta, e percebeu quando ele chegou.
O barulho de cascos na neve densa lá fora era captado com facilidade
por ela, que escutava apenas a respiração da irmã e o crepitar da lareira no
cômodo avulso. A sombra de pernas tortas foi vista pela fresta debaixo da
porta, a maldita fresta que ela tentava tampar com pedaços de juta e os ratos
ocasionalmente levavam embora. engoliu em seco quando o ferrolho
guinchou. Naquele momento, Theda acordou.
A brisa foi substituída pelo vento forte e flocos de neve entraram no
casebre. Theda gritou quando viu quem estava na porta e Svenja abraçou a
irmã, colocando-se em frente ao corpo franzino da garota em um instinto de
proteção. Olhou para a portinhola que separava o único quarto do casebre, o
quarto dos pais. Sabia que era inútil chamar por eles. Os adultos nunca
acordavam quando ele vinha recolher o tributo.
A criatura tinha quase dois metros, mas passou pela porta com
facilidade, as costas curvadas de forma grotesca. Os chifres arranharam o
teto de madeira e barro, criando desenhos estranhos. O corpanzil era
coberto de pelos grossos escuros e os cascos… Pelos deuses, os cascos
eram enormes. Svenja engoliu em seco e procurou com os olhos algo que
pudesse usar como arma, a criatura pareceu entender o que ela buscava e
sorriu. Foi quando Theda voltou a gritar. A boca possuía dentes afiados, as
presas alongadas tinham aspecto podre e estavam cobertas de sangue, que
pingava dos lábios e sujava os tufos de pelos maiores no queixo.
— Theda, criança. — Ele estendeu a mão que teria aspecto humano,
se não fosse pelos dedos grosseiros, cheios de nós e garras afiadas. —
Venha.
O tom de voz era gutural, como se há muito não a utilizasse. Svenja
voltou a colocar o corpo em frente à irmã e olhou para a criatura em
desafio. Os dentes apodrecidos voltaram a aparecer quando Krampus sorriu,
e Svenja viu pela primeira vez o brilho dos olhos amarelados.
O som da corrente caindo no piso de madeira fez com que Svenja se
assustasse e os olhos azuis correram pelos elos como se fossem achar
alguma fraqueza ali. Não viu, apenas sangue seco e sujeira. Theda começou
a tremer atrás dela e a choramingar.
— Você não vai levar minha irmã, demônio.
Um riso bestial saiu dos lábios escuros e Svenja viu o corpanzil
sacudir.
— Não fique entre Krampus e o tributo, mulher. — O brilho dos
olhos amarelados se intensificou. — Me deixe levá-la.
— Tributo é algo que se concede por vontade própria. Não permitirás
que o irmão caia na canção dos ímpios.
— Uma letrada… — A criatura parecia interessada. — Não fique
entre Krampus e sua presa.
Svenja viu quando ele se aproximou e a corrente brilhou com a
claridade da lareira. As garras se contorceram em ansiedade para se fechar
no bracinho delicado de Theda, mas Svenja foi mais rápida, levantou-se da
cama e tentou colocar espaço entre a criatura e a irmã.
— Me leve no lugar dela. — Ao ver a criatura sorrir, tentou a sorte.
— Posso ser útil. Sou letrada.
Svenja havia percebido a surpresa da criatura quando disse as
palavras do Breviário. Krampus deixou a mão no ar, parecia escolher seu
espólio, a respiração da criatura saía pelas narinas largas, os lábios ainda
pingavam sangue e abriram para fazer a pergunta.
— Humana tola. Estaria disposta a morrer pela irmã ratoneira?
Theda agarrou o braço de Svenja, mas ela não se mexeu. Apenas
assentiu para a criatura e ficou surpresa quando Krampus sorriu.
— Que assim seja.
— Não! — Theda gritou e tentou se aproximar, mas foi empurrada
com brusquidão por ele.
Svenja o olhou em fúria ao ver o corpo da irmã caído perto da lareira,
mas ele foi mais rápido, os dedos ásperos e com garras se fecharam no
braço da garota e um sorriso animalesco voltou a nascer dos lábios escuros.
— Que assim seja, letrada. — A corrente passou pelo pescoço e ela
perdeu a visão quando um saco de juta escura foi enfiado em sua cabeça. —
Que você não seja mais dona do próprio destino a partir de agora.
Svenja foi puxada com brusquidão e quase caiu quando tropeçou no
degrau da entrada da própria casa. Ela se virou para falar com a irmã, mas
descobriu que os lábios estavam colados e entrou em pânico. A madeira foi
fechada e ela escutou o som do ferrolho. Os pés descalços pisaram em neve
gelada e o vento cortante entrou pela roupa de dormir de lã.
Foi quando sentiu que ia vomitar.

[...]

Andavam há quase uma hora, ou pelo menos era isso que ela achava,
havia perdido a ideia do tempo, o frio enevoava a mente e Svenja já não
sabia o que era real e o que era fantasia da própria cabeça. Tinha escutado
risadas em volta, o som de botas correndo pelos cascalhos úmidos de
alguma floresta, galhos quebrando. Havia escutado gritos finos, pensou em
Theda e em como a irmã estaria e como os pais ficariam quando
descobrissem que havia sido levada. Os olhos ameaçaram fechar, o cansaço
inundando cada parte do corpo. O pescoço doía por causa da corrente
apertada, o saco de juta tinha um cheiro estranho que ela não conseguiu
identificar, e o frio – ah, este iria matá-la.
De repente a criatura parou. Svenja sabia disso porque a corrente
ficou mais larga e um silêncio súbito e peculiar a cercou. Olhou para os
próprios pés, já quase não os sentia mais, o que a fazia tropeçar em cada
pedra ou galho que havia pelo caminho. Escutava a respiração difícil, mas
ficou alerta quando viu cascos grandes pela fresta da juta. De repente, a
criatura arrancou o saco da sua cabeça e Svenja fechou os olhos quando a
juta machucou a pele.
Piscou algumas vezes e os olhos claros correram pelo local.
Procurava algo, pelo menos um sinal de onde estava para que se orientasse
quando tentasse fugir, mas tudo o que viu foram árvores e a imensidão clara
da neve. Engoliu em seco.
— O-o-onde estamos? — Seu queixo batia e as palavras eram
difíceis. — Para onde está me levando? — Lembrou-se das histórias e de
como as crianças que sobreviviam eram achadas em florestas mais ao
Norte.
A criatura sorriu, os dentes afiados aparecendo por entre os lábios
escuros.
— Se eu contasse a você, teria problemas, certo?
A voz ainda era gutural, mas Svenja conseguiu detectar um som mais
humano junto à pergunta e percebeu que estava alucinando.
— Eu… O frio. Vou morrer se não tiver abrigo.
A criatura não se mexeu, mas depois rosnou e começou a puxar a
corrente. Svenja não teve outra saída senão acompanhá-lo. Sabia que, caso
sucumbisse ao cansaço e caísse na neve, seria puxada até que não restasse
mais carne nos ossos. Andaram por bons metros, a paisagem de neve não
mudou, mas as árvores começaram a ficar menos espaçadas e logo os
troncos estavam mais próximos, os pés dela estavam úmidos e pôde
perceber que sangravam.
Engoliu em seco e olhou em volta. Conseguiria gritar? Teria forças
para isso? Antes que pudesse pensar em um plano de sobrevivência, algo
que pudesse fazer para pelo menos ter uma chance, sentiu o calor.
Como se tivesse entrado em uma banheira de água quente ou se o
vento do verão tivesse lutado contra a neve e achado o corpo dela. A lã da
sua roupa de dormir se aqueceu e o gelo que incrustava os fios do cabelo
derreteu. Os lábios pararam de bater e os pés começaram a sentir o chão que
pisava: úmido e macio. Svenja olhou para baixo e se surpreendeu ao ver a
terra escura com folhas verdes debaixo de uma neve tímida.
Sem conseguir acreditar, olhou para a criatura ao lado. Ele jogou o
saco de juta no chão, mas não a olhou nos olhos, apenas continuou
andando. Svenja o acompanhou, sentindo o conforto que o calor havia feito
em seu corpo. Não era uma mulher de crenças, apesar de ter passado a vida
inteira em um vilarejo que era regido por elas, mas precisou admitir que o
que sentia era… inacreditável.
— Como… — Ela arfou quando o viu.
A criatura ainda era alta, mas o corpanzil encurvado estava se
esticando, como se estivesse alongando a coluna depois de décadas andando
daquela maneira. Os pelos escuros pareciam estar sendo sugados para
dentro do corpo e os passos de Svenja pararam para ela acompanhar o que
se passava em frente aos seus olhos, mas sentiu a corrente voltar a enforcá-
la e voltou a andar, os olhos claros não se desgrudando da criatura.
Pele pálida apareceu em meio à pelagem, os cascos se esticaram e
formaram pés humanos, as pernas animais foram substituídas por coxas
grossas cobertas pelo couro puído que antes encobria sua corcunda. O peito
estava nu, um colar com uma pedra escura descansava em sua pele e
brilhava com a claridade quase etérea do lugar onde estavam.
A garota desgrudou os olhos da criatura e abriu a boca para observar a
floresta ao redor. As árvores triviais de troncos escuros foram substituídas
por troncos claros salpicados com musgo amarelado, as copas cobertas de
neve ainda possuíam folhas, que tinham um leve tom arroxeado. A grama
que ela pisava tinha o mesmo tom habitual verde, mas era macia e quente.
Svenja parou para encarar os próprios pés, que haviam parado de doer e
sangrar, como se a grama os tivesse curado, um sorriso infantil percorreu os
lábios dela, mas a corrente apertou seu pescoço e Svenja lembrou-se da dor
que sentia ali.
Os olhos azuis voltaram-se para a criatura, mas o que viram não era a
besta que havia entrado no casebre. A altura havia diminuído, mas ela ainda
precisava inclinar o rosto para olhá-lo. As pernas torneadas pararam de dar
passos largos e ele voltou o corpo para ela. A postura era perfeita, a pedra
negra brilhou no peito dele e parecia chamá-la, como uma cantiga antiga de
infância que a deixava calma.
A cauda ricocheteou no ar quando ele estendeu o braço e gesticulou
para a floresta à frente, as mãos fortes que seguravam a corrente que a
puxava ainda possuíam garras, menores e escuras, mas letais.
— Bem-vinda a Uleadore.
A voz havia mudado, ainda era grosseira, mas altiva. Svenja engoliu
em seco. O rosto que a observava era sério e cruel, um traço do Krampus
que ela conhecia dos pesadelos de criança, os olhos amarelados a fitavam
com certa diversão enquanto ela o analisava e se perguntava se estava
enlouquecendo antes mesmo de tentar sobreviver àquilo. As orelhas eram
pontudas, os chifres permaneceram, longos e curvados. Um sorriso
percorreu os lábios agora humanos, Svenja conseguiu ver dentes normais,
mas as presas alongadas lhe diziam que, apesar de parecer menos bestial,
ele ainda era perigoso.
— Será um prazer hospedá-la.
II

Karvid observava a garota humana com certa diversão nas curvas dos
lábios. Parecia uma criaturinha assustada e surpresa, mas ele conseguia ver
certo fascínio pontuando as feições do rosto feminino. Sabia que, quando
tirasse o glamour e revelasse sua verdadeira forma, ela teria aquela reação.
Todos os humanos tinham.
Não que ele fizesse isso com muitos. O equilíbrio da floresta pedia
apenas uma visita humana por ano, e ele às vezes preferia continuar com
sua forma bestial mais conhecida, o meio animal que prendia crianças pelas
correntes e as enfiava no saco de juta. O que ele fazia com as crianças
variava muito de vilarejo para vilarejo, mas Karvid sempre se divertia com
as facetas das histórias.
Como os humanos tinham imaginação!
O medo era uma motivação para eles e alimentava cada vez mais as
histórias, que passavam de geração a geração, cada um dava o seu toque
especial, e o que os súditos de Karvid lhe diziam era de gargalhar.
Ele puxou com leveza a corrente para que a humana saísse do estado
de torpor e foi agraciado com olhos azuis banhados de medo, uma
combinação que apreciava muito.
— O-o-onde estou? — ela perguntou sem entender, provavelmente
estava achando que havia ficado louca. Era a reação mais comum.
— Uleadore. — Karvid voltou a dizer e se aproximou, a humana se
encolheu, mas ele apenas retirou a corrente do pescoço delgado e agora
machucado. — Você está no meu reino.
Ela passou a mão no pescoço onde a corrente estava, e os dedos
estremeceram quando sentiram a pele arder.
— Não se preocupe com isso. — Ele tentou acalmá-la. — A floresta
irá curá-la.

[...]

Svenja ficou confusa, mas não conseguiu achar palavras para


respondê-lo. Ainda tentava achar o lugar em que havia perdido o fio do real
e do imaginário, o momento em que Krampus havia deixado de ser uma
besta para se tornar o homem estranho e – ela precisava admitir –, belo que
estava a sua frente. Sim, ele era belo, como apenas uma criatura que não
pertencia ao mundo dela podia ser. Os chifres diziam a ela que algo ainda
estava errado, e a diversão no rosto dele era real demais para que Svenja
pensasse que estava louca.
Talvez sob algum feitiço?
Ele deu as costas para ela e começou a andar. Svenja olhou para trás e
percebeu que, apesar de ainda haver neve, não sentia frio, como se tivessem
atravessado uma fronteira invisível. Pensou se seria sábio tentar fugir, mas
sabia que ele a alcançaria em poucos passos e não queria tentar a sorte.
Pensou em como a irmã estava protegida com a barganha. Seus pés já não
sentiam dor e a dormência no pescoço onde a corrente a apertou já não a
incomodava. Svenja se perguntou se a criatura estava certa. Desde que
havia se aproximado das árvores de troncos claros, incômodos e dores
haviam abandonado o seu corpo.
Engoliu em seco e, sem alternativa, o seguiu.
Ele andou por bons metros em silêncio, mas Svenja não conseguia
desgrudar os olhos da criatura a sua frente. Ele corria as mãos vez ou outra
pelos troncos pálidos das árvores, como se os acariciasse, as unhas escuras
raspavam na madeira, e a floresta parecia responder àquele toque. Svenja
achou que estava ficando louca quando sentiu a natureza acompanhando
cada passo daquela criatura. Os chifres às vezes raspavam nas folhas
arroxeadas das árvores, as copas eram altas e os flocos de neve conseguiam
perfurá-las, mas quando se aproximavam do solo, sumiam. Ele conseguia
fazer uma boa distância e, se ela não ficasse atenta, perderia para onde ele
estava indo. Depois de um tempo, ela decidiu que não conseguiria ficar por
muito tempo assim.
— O que acontecerá comigo?
Ele virou o rosto com leveza e Svenja percebeu o brilho nos olhos
amarelados.
— Irei levá-la para a cidadela e, lá, decidirei seu destino.
Svenja sentiu uma leve vontade de correr para o lado oposto. Algo lhe
dizia que, caso entrasse onde ele a estava levando, nunca mais sairia. Ele
pareceu estudar o rosto dela, e diversão percorreu as feições antes sérias.
— Você não será morta, humana — cantarolou. — Não enquanto
estiver comigo.
— Deve me desculpar, mas não acredito nisso.
Ele sorriu e Svenja percebeu as presas despontarem dos lábios.
Engoliu em seco.
— Sim… O Krampus. Diga-me, como você conhece a história?
Svenja não entendeu a pergunta de imediato, mas depois percebeu
que ele parecia ter genuíno interesse e contou a ele a versão de Krampus
que ela conhecia. A diversão no rosto dele deu espaço para a incredulidade
e depois, para a dúvida.
— Crianças voltando das florestas? — perguntou com interesse.
— Acontece raramente, mas algumas conseguem escapar quando
você as leva.
Os olhos dele semicerraram e Svenja ia perguntar o motivo de ele
deixar algumas crianças voltarem, porque de jeito nenhum um garoto de
oito anos conseguiria escapar daquele lugar que mais parecia um labirinto
de árvores semelhantes, quando ele parou. Ela quase bateu nas costas largas
e nuas.
— Bem-vinda à cidadela. — Ele apontou para frente.
Svenja olhou na direção apontada e quase caiu para trás com o que
viu. Os troncos claros haviam se espaçado. Em um vale abaixo e uns bons
metros à frente, ela conseguia ver um castelo enorme de pedras escuras, um
ponto negro em um local pálido. Havia árvores de troncos pálidos maiores
do que as da floresta por todo o campo do castelo, as copas eram mais
escuras também e as folhas em tons de malva foram substituídas por pétalas
violeta. A neve se acumulava em alguns pontos das copas e do castelo, mas
ainda não chegava ao solo. Svenja lembrou-se dos globos de vidro que os
comerciantes vendiam nas feiras naquela época do ano. Ali, criaturas de
todos os tamanhos perambulavam, e Svenja só não desmaiou porque seu
fascínio havia vencido o medo. Loucura. Sim, estava louca.
Krampus olhou para ela com atenção e respirou fundo.
— Iremos continuar nossa conversa em breve… Enquanto isso… —
Ela o viu gesticular e criaturas estranhas apareceram por entre os galhos, os
rostos curiosos quando a fitaram.
As írises escuras tomavam todo o globo ocular e, quando piscavam,
davam um aspecto peculiar ao rosto quase humano. Aproximaram-se de
Svenja e pareciam esperar ordens, que não tardaram a chegar.
— Cuidem dela e deem algo para comer e vestir. É humana, não
suportará muito.
Svenja tentou abrir a boca para perguntar o que ele queria dizer com
aquilo e qual seria o destino dela, mas mãos escorregadias e geladas
pousaram sobre os seus braços, fazendo-a se assustar. Olhou para uma das
criaturas, que sorria com dentinhos pequenos e afiados. Svenja teve vontade
de sorrir de volta, mas o instinto de autoproteção gritou que seria errado.
Olhou para onde Krampus estava, mas ficou surpresa quando percebeu que
ele havia desaparecido.
Foi empurrada em direção ao castelo, tão rápido e decidido que não
teve tempo de observar muito em volta, marcar uma possível rota de fuga
ou tentar entender onde estava no mapa humano. A grama ali era mais
escura também, mas não menos fofa e quente. Algumas pétalas violeta se
acumulavam no campo aberto e Svenja precisou conter a vontade de colhê-
las. Queria levá-las ao nariz, sentir o aroma daquelas flores mágicas.
Logo seus pés tocaram pedras ásperas e geladas. O castelo possuía
uma calidez bem-vinda, apesar de parecer vazio. O lugar cheirava a
lavanda, mesmo que alguns flocos de neve caíssem lá fora quando ela
olhava para a janela que pegava do teto ao chão, fechada com vidros que
possuíam desenhos prateados.
Svenja não sabia para onde ir, mas as criaturas fizeram um bom
trabalho a empurrando para o segundo andar. Antes que se desse conta, sua
roupa foi tirada do corpo e, com o rosto pegando fogo, ela tentou capturar o
pijama de lã velho, mas a criatura havia se afastado com a peça, levantando-
a e fazendo uma careta de desaprovação.
— Costume estranho. — A voz da criatura era fina e infantil. —
Como usam isso?
Svenja demorou um tempo para perceber que a serva falava com ela.
Colocou parte do cabelo para trás da orelha, de repente se sentindo tola.
— Bom… usamos para dormir.
A criatura sorriu e jogou a roupa em uma cadeira que estava ali.
Abriu uma porta de madeira clara que dava para uma saleta e Svenja
percebeu uma banheira de cobre a esperando. Olhou desconfiada para
dentro do local, mas não havia mais delas ali, foi cutucada nas costas e, com
aflição por estar nua e sendo tocada por dedos gelados, entrou.
A água exalava vapor e o aroma que chegava ao nariz era
convidativo. A garota percebeu que nunca havia tomado banho perfumado,
nem mesmo em ocasiões especiais, e o rosto dela pegou fogo. A criatura
ainda a olhava.
— Bom, entre — pediu.
Svenja decidiu aproveitar o sonho estranho que estava tendo e fez o
que a serva pediu. O corpo encontrou a água quente e o cheiro de flores a
acalmou. Svenja quase gemeu quando sentiu os músculos do corpo
relaxarem. Apoiou a cabeça na borda da banheira em um gesto cansado e
olhou para a criatura que a fitava com calma.
— Quem é você? Melhor, o que é você?
Os dentinhos afiados apareceram de novo e dessa vez Svenja não
conseguiu se conter, sorriu de volta.
— Sou uma Fae. — Ela colocou a mão no colo esverdeado.
O rosto de Svenja se iluminou.
— Uma fada?
— Uma Fae.
A criatura a corrigiu e Svenja ficou confusa.
— O que são Fae?
— Tudo aquilo que humanos não conseguem explicar, mas temem. —
A vozinha soltou um risinho ao ver o semblante confuso da jovem. — Não
tenho autorização para conversar com você sobre isso.
— Aquela besta a prendeu aqui também?
— Oh, não! — A Fae parecia chocada. — Servimos a Karvid com
honra.
— Karvid? É o nome dele? — A Fae afirmou com um gesto e sorriu.
— E qual o seu?
— Pode me chamar de Fiene, é o nome que humanos conseguem
pronunciar.
— Fiene… — Svenja disse o nome em um sussurro, era muito para
processar. — Você irá me fazer companhia?
Olhou para Fiene quando fez a pergunta, mas a Fae não estava lá
mais. Svenja franziu o cenho e esticou o corpo na banheira para ver além do
que a porta entreaberta mostrava, mas não havia sinal de Fiene em lugar
algum. Ela encostou na borda outra vez e deu de ombros.
Se era uma prisioneira e precisaria ficar ali, pelo menos aproveitaria o
banho.
[...]

— Ela é uma mulher, Karvid. — A criatura pontuou, os olhos escuros


observavam o regente com atenção.
— Uma garota.
— Uma mulher.
Karvid sabia o que Oloril queria dizer. Há muito capturava apenas
crianças, mas sequestrar uma garota, uma mulher, para os domínios de
Uleadore era arriscado demais. Não sabiam se a floresta veria aquilo com
bons olhos e se faria bom uso da energia da humana, mas havia algo nela
que interessava Karvid.
— Ela conhece as palavras do Breviário.
Oloril ficou surpreso com aquilo e Karvid respirou fundo, sentou-se
no trono de carvalho pálido e descansou a perna no braço dele. A mão
passou pelo rosto em um sinal de cansaço e Oloril ficou surpreso em ver
Karvid pensativo e inquieto. Normalmente, o regente de Uleadore era
rápido e breve em suas ações. Mas fazer uso de uma mulher naquela época
do ano poderia acarretar consequências desastrosas para o equilíbrio de
tudo.
— Acha que pode nos ensinar algumas palavras? — Oloril perguntou.
O livro que regia os humanos era sagrado e as palavras que
permeavam as páginas não podiam ser lidas por olhos da espécie dele.
Karvid havia pedido para os súditos se enfiarem nas vilas e roubarem
alguns exemplares, mas ninguém havia tido sucesso ao decifrar as letras.
Não por não conhecer a linguagem dos humanos, Karvid tinha gerações de
Fae que se dedicavam a isso, mas porque as palavras do Breviário eram
consideradas sacras e, com isso, proibidas para eles.
— É o que podemos descobrir se estendermos a estadia dela aqui —
Karvid disse a Oloril.
— E como fica a oferta da criança?
Karvid sabia o que Oloril perguntava. Todo ano, uma criança humana
era trazida até ali para se juntar à energia de Uleadore e fazer parte da
floresta. Algumas se desintegraram por inteiro e faziam parte da grama que
pisavam, outras preferiam se desvanecer no vento e levar as canções antigas
para as outras florestas. Às vezes, escolhiam abraçar o lado Fae e se
transformavam em espíritos da natureza. Nenhuma escapava e era o ciclo
sagrado de Uleadore que deixava as criaturas da floresta protegidas a olhos
humanos. Contudo, a garota humana havia lhe dito que crianças eram vistas
nas florestas depois de meses desaparecidas.
Aquela preocupação poderia esperar. Primeiro, precisava decidir o
que fazer com a garota que estava no castelo. Ele se levantou do trono e
Oloril fez uma reverência quando viu o regente se afastar.
— O que fará? — o súdito perguntou.
— Irei decidir quando conversar com a garota.
— Mulher. É uma mulher.
Um sorriso cruel percorreu os lábios de Karvid e Oloril fez uma
careta, que não foi vista quando o regente de Uleadore já tinha alcançado a
saída da sala real.
III

Ela comeu tudo o que haviam ofertado. Svenja não era tola em negar
comida, mesmo que a daquele lugar parecesse diferente aos olhos. Com a
situação em que sua família estava, na qual às vezes precisavam escolher
entre comprar lenha ou legumes já murchos para a sopa, um prato como o
que ela havia devorado era raro e, Svenja pensou com tristeza, uma honra.
Há bons meses não comia carne. A daquele mundo tinha um gosto
natural, mesmo que ela estivesse esperado algo diferente. Não sabia quais
animais poderia encontrar na floresta. A bebida era forte, Svenja sentiu a
mente flutuar depois de dois goles, mas o corpo pareceu abraçar aquela
sensação como uma criança se apega a um cobertor quente em uma noite
gelada. Um conforto, ela deduziu. A taça estava vazia ao lado do prato
também vazio e, com isso, o cansaço veio.
O quarto estava silencioso. A pequena fada não havia voltado e
Svenja tentou de todos os modos abrir as portas e as janelas, mas não
obteve êxito. Sua fuga frustrada a fez explorar o ambiente, abriu várias
gavetas para descobrir objetos estranhos e roupas que nunca havia visto nas
vilas humanas. Vestidos e mais vestidos de tecidos diversos, alguns ásperos
e outros sedosos ao toque. Svenja era uma mulher que nunca havia tido um
vestido daqueles, e precisou fechar as gavetas para conter a vontade de
experimentar a roupa.
Andou até a janela e observou o jardim que era cultivado no pátio
fora do castelo. Era belo como apenas uma cidadela mágica poderia abrigar.
As copas violeta contrastavam com o céu escuro. A neve que ainda insistia
em cair derretia antes de chegar ao solo ou às pétalas roxas. Svenja sabia
que a neve ainda ia cair por bons meses. Engoliu em seco. Aquilo
dificultaria sua fuga.
Ela se jogou na cama enorme e, depois de relutar, enfiou-se debaixo
do cobertor de pele clara. O aroma de flores que parecia fazer parte do
castelo, junto do cheiro de madeira da lareira, fez com que ela se sentisse
estranhamente calma. Depois, a solidão veio. Pensou em como estaria
Theda e como os pais ficariam ao saber que Svenja havia se sacrificado pela
irmã. Sentiu falta da cama que dividia com ela, mesmo que essa fosse bem
menor e mais dura com a palha escassa. A sopa rala da mãe parecia ser
melhor que o jantar suntuoso que havia devorado em minutos. Fechou os
olhos e sentiu uma lágrima descer pela bochecha e encontrar o algodão
macio do travesseiro.
Depois, sua mente desvaneceu, e ela caiu na inconsciência.

[...]

Acordou com uma sensação estranha, e depois percebeu que não


havia sido chamada, chutada pelos pezinhos de Theda, ou cutucada pelo
dedo ossudo do pai. Não era a claridade do dia e nem o cheiro de pão velho
torrado da mãe que a havia despertado. Foram os olhos dele. Amarelados e
com um brilho sobrenatural de malícia em meio à escuridão do quarto.
Aqueles olhos a encaravam de um canto escuro do quarto e Svenja se
sobressaltou na cama quando percebeu que estava sendo observada
enquanto dormia.
O cobertor desceu e ela se sentiu estranhamente vulnerável quando
ele se aproximou da cama, os olhos amarelados ainda grudados aos dela.
Estava com outra roupa. Uma blusa escura com uma leve abertura, a pedra
brilhava no peito pálido, as calças de couro pareciam as mesmas. Svenja
engoliu em seco quando subiu o olhar e percebeu que não havia
enlouquecido quando observou os chifres. Sim, ainda estavam lá,
despontando do cabelo escuro, com uma curvatura leve. Ele sorriu ao vê-la
estremecer e as presas afiadas a fizeram ter certeza de que ainda estava em
apuros.
— Há quanto tempo não dormia uma boa noite de sono? — ele
perguntou.
— Nunca dormi uma boa noite de sono — respondeu, surpresa e
irritada. — Você conhece minha vila, acha que temos castelos como o seu?
O sorriso dele aumentou.
— Acha que não conheço a realeza humana?
— Não parece muito afoito em roubar crianças de reis e rainhas.
— Não me irrite nem me tome como tolo. — O tom da voz dele
diminuiu e Svenja percebeu que havia ultrapassado um limite.
Ele se aproximou da cama e Svenja puxou o cobertor para o corpo em
um instinto de pudor e proteção, mas a besta apenas pegou uma cadeira e
colocou-a ao lado de onde ela estava deitada. Olhou-a com atenção.
— Meu nome é Karvid, sou regente de Uleadore, um dos reinos Fae.
— Ao ver que ela ainda parecia perdida, continuou: — Respire, garota,
você está sob minha proteção.
Svenja pareceu relaxar um pouco, mas os olhos voltaram a fitar os
chifres dele e ela engoliu em seco.
— Queira me perdoar, não é sempre que sou acordada por uma besta
no meio da noite.
O sorriso de Karvid voltou ao rosto cruel.
— Apenas a noite reina aqui.
Svenja franziu o cenho e tentou ignorar como o rosto dele parecia
belo com a claridade da lareira. Se não fossem os chifres, as presas afiadas
e a cauda que às vezes ricocheteava atrás do corpo, seria um homem que ela
olharia outra vez em meio às andanças da vila. Bom, olharia várias vezes.
Ele era muito belo.
Os lábios carnudos se curvaram e ela desviou os olhos.
— Noite e neve… — Svenja sussurrou. — Qual maldição paira sobre
seu reino?
— Anda lendo muitos livros. — Ele parecia divertido com as
suposições dela. — O reino é minha extensão. Não me incomodo com o
frio, nem mesmo com a escuridão.
Svenja desviou os olhos dele e fitou a janela. Ainda era noite, ou
assim ficaria, sempre.
— Por quanto tempo dormi?
— Cerca de onze horas. — Ao notar a expressão de surpresa, Karvid
tentou explicar. — Nada aqui é humano. Nem mesmo o tempo. — Ele
tocou um objeto no colo e só então Svenja percebeu que ele carregava algo.
— Preciso que me ajude a ler isso.
O livro foi pousado com delicadeza ao lado dela, no colchão. Svenja
pegou o exemplar com dedos trêmulos, a proximidade dele a estava
afetando, e ela ainda não sabia se era porque ele possuía o mesmo aroma
das flores da floresta ou porque, quanto mais o olhava, mais belo ele se
tornava. Desviou os olhos dele e observou a capa de couro velho.
— O Breviário? Por quê?
Karvid pareceu pensativo, mas depois decidiu que ela não
representava ameaça, principalmente ali, no reino que ele comandava.
— Minha espécie não consegue lê-lo.
— Por causa da linguagem?
— Porque é sagrado. — Karvid olhou para o livro nas mãos dela, mas
não conseguiu conter a atenção que se desviou para o colo que a roupa de
dormir Fae deixou desnudo. — Conseguimos falar todas as linguagens
humanas… Tenho especialistas que estudam as letras de todos os povos.
Mas o Breviário é diferente.
Svenja abriu o livro e observou as letras, as frases conhecidas. Já
havia lido aquele livro diversas vezes, nas manhãs de domingo, nos sermões
dos pais, nas aulas de educação, quando os voluntários passavam algumas
semanas nas vilas. Os dedos correram pelas frases, o pergaminho áspero fez
com que ela se perguntasse o quão sagrado aquele livro era para um
monstro como ele. Ela o fechou e olhou para Karvid.
— Se eu ler o livro para você, o que ganho em troca?
— Você não foi devorada quando entrou em Uleadore, garota. Por
isso, já devia ter sua eterna gratidão.
— Você ia trazer minha irmã — disse entredentes, a raiva espalhou
pelo corpo dela com a lembrança daquela noite de terror. Há quanto tempo
humano estava ali? Theda ainda se lembrava dela? — Para ler um livro para
você? O que faz com as diversas crianças que rouba nos dias sagrados?
Karvid levantou e Svenja percebeu o seu erro. Ele era alto, a cauda
ricocheteou no ar e os olhos escureceram. Os dedos dela estremeceram e ela
agarrou a capa de couro do livro para não mostrar o medo.
— As crianças fazem parte do ciclo natural de Uleadore, como um
porco faz parte do ciclo humano para alimento.
— Você come as crianças? — Ela jogou o livro para o lado e saiu da
cama, as pernas delgadas tentavam colocar a maior distância possível da
criatura.
— Não seja tola, garota. — Os olhos dele percorreram as pernas dela
e Svenja percebeu que a roupa de dormir Fae era curta demais para o
padrão humano. — A floresta abraça as crianças que aqui entram, elas
fazem parte das árvores, dos rios, da neve e até mesmo das estrelas… É
uma honra.
— Elas tiveram escolha?
— É uma honra — repetiu.
Svenja olhou para a porta do quarto e tomou a decisão de tentar.
Correu para fugir, mas gritou quando uma mão forte fechou nos fios do seu
cabelo e a puxou em direção a ele, as garras arranharam o couro cabeludo e
Karvid a obrigou a olhá-lo. Pelos deuses, ele era belo, os olhos pareciam
ouro líquido e os lábios carnudos mostraram as presas quando ele sorriu.
— Leia o Breviário, e eu esquecerei essa petulância.
Svenja fez uma careta de desagrado.
— Você não vai conseguir me obrigar.
As sobrancelhas escuras dele se arquearam em surpresa e Svenja
percebeu que aquilo teve um efeito contrário nele. Não parecia irritado,
mas… excitado? Ele estava se divertindo.
— Muito bem, garota. — Ele estalou os dedos e grossas cordas
apareceram e enrolaram nos pulsos fracos dela como cobras, eram fortes e
ásperas, machucaram a pele quando apertaram até que os ossos tremessem.
— Não pense que irei deixá-la cativa e amarrada por muito tempo, mas
creio que eu não tenha sido claro.
Ele a empurrou para a cama e Svenja caiu sem conseguir se apoiar em
algum lugar. A roupa de dormir se espalhou no colchão de penas e as pernas
ficaram mais expostas. Os olhos amarelados dele percorreram a pele que a
sua estupidez revelou e Svenja percebeu o animal que ele era quando sorriu.
— Eu quebrei um ciclo do meu reino, humana tola. E pagarei o preço
por isso. A floresta pede uma criança por ano. Se não fizer o que mando —
os olhos dele foram para a janela lá fora e pareceram observar a floresta
mágica que cercava o castelo — acho que terei que trazer sua irmã ladra
para Uleadore, afinal.
Ele esperou. O terror que nasceu nos olhos claros dela fez com que
Karvid tivesse a certeza de que havia cutucado a ferida certa, a
característica fraca que muitos humanos carregavam e ficavam vulneráveis:
a benevolência.
— E então, temos um acordo?
Svenja não acreditou que aquilo estava acontecendo. Karvid a
observava com atenção e ela assentiu. Pegou o livro do colchão e, com os
movimentos que as cordas ásperas permitiam, o abriu.
— No prelúdio, os deuses criaram os domínios e as terras. Neles, um
único rei nasceu para governá-los…
IV

Ela lia há horas e Karvid não conseguia entender as frases que os


lábios da humana soltavam. Não porque eram sagradas e as palavras do
Breviário não podiam ser compreendidas, mas porque eram um amontoado
de tolices. Palavras para escravizar humanos, deixá-los à mercê de um
sistema que favorecia poucos e estorvava muitos.
Como humanos conseguiam viver sob a regência daquelas regras e
não as questionar? Não era surpresa nenhuma que eram obtusos e
acreditavam em tudo o que fugia um pouco do controle. Um bom exemplo
era de como as lendas do Krampus nasceram nas vilas fervorosas e
tomaram forma através dos lábios cada vez mais ávidos por repassar
informações falsas. A besta que comia crianças, o demônio que roubava os
filhos perversos, o animal que matava quem não se comportava. O
comportamento era sempre uma linha de julgamento.
Ele estava tão envolvido nos próprios pensamentos que não percebeu
que a humana havia parado de ler. Olhou para ela, surpreso. Parecia um
pouco tímida e inquieta, e evitou o olhar dele quando o pegou a observando.
— E então… não vai continuar?
Svenja mordeu o lábio inferior e Karvid não conseguiu conter os
olhos de rumarem para aquela parte da garota. Era uma humana bonita.
Cabelos dourados, olhos claros. A pele era pálida, não tão pálida quanto de
uma Fae, mas leitosa como apenas uma humana podia ser. Ele se perguntou
se ela tinha consciência da própria beleza.
— Eu… Eu não posso continuar.
Ele ficou curioso.
— Por quê? Não consegue ler?
— Bom, consigo… — O rosto dela ficou vermelho e Karvid percebeu
o que estava acontecendo. — Mas essas palavras sempre são saltadas nas
cerimônias familiares e… — Ela ficou irritada ao vê-lo sorrindo. — O que
foi?
— Leia, mulher.
Svenja pigarreou e, tentando parecer natural, mas falhando
miseravelmente, continuou.
— O Rei de todos pede que os súditos se abstenham da imoralidade
sexual. O homem e a mulher precisam controlar as próprias vontades e
deixar o espírito honroso para o companheiro, e não serem dominados por
desejos desenfreados.
A risada de Karvid tomou o quarto e Svenja fez uma careta irritada, o
rosto ficou ainda mais vermelho. Ela desviou os olhos da página.
— E então… concorda com isso? — Ele desejou saber, curioso em
como a garota interpretava o Breviário.
Svenja tentou ser o mais honrosa possível.
— Fui ensinada de que nosso corpo precisa ser puro. Não há ganho
quando somos descontrolados.
Karvid se levantou da cadeira e se aproximou da cama, o seu rosto
mostrava uma mistura peculiar de diversão e malícia e a garota começou a
se encolher quando ele se sentou ao lado dela.
— E então… você concorda com isso? — ele repetiu a pergunta.
— Fui ensinada…
— Não quero saber sobre o que foi ensinada, quero saber sua
opinião… — Ele fechou os dedos no cobertor de pele e deslizou-o com
lentidão pelas pernas dela. — O que é imoralidade sexual para você,
Svenja?

[...]

Svenja não fazia ideia de como ele sabia seu nome, mas, pelos deuses,
a voz daquela besta o pronunciado fez com que arrepios percorressem o seu
corpo, arrepios que aumentaram quando ele deslizou os dedos pelas pernas
desnudas dela, as unhas afiadas e escuras fazendo com que Svenja tivesse
uma vontade enorme de senti-las por todo o corpo. Ele subiu o toque e o
coração da garota quase saiu pela boca.
— Tocá-la onde estou tocando é considerado imoralidade para os
humanos?
As unhas arranharam com leveza a carne interna das coxas. Sim, era
imoral. Svenja nunca havia sentido um toque masculino ali. Os garotos que
havia beijado nem mesmo tinham descido as mãos. Ela engoliu em seco.
— Acredita que homens e mulheres precisam conter os próprios
desejos?
Ele subiu um pouco o toque, ínfimo, mas acendeu algo em Svenja que
ela nunca havia sentido. A garota separou os lábios e tomou coragem para
observá-lo. Foi a atitude mais tola que podia ter tomado. Quanto mais
olhava para Karvid, mas ele se tornava belo. Aquilo era possível?
— Continue lendo para mim, garota.
Ela quase não acreditou no pedido, abriu a boca para retrucar, mas
sentiu o dedo dele passar com leveza pelo seu sexo e a fechou sem
acreditar. Suas mãos ainda estavam amarradas, mas ela tentou se
desvencilhar do toque, não por não o desejar, mas porque parecia estar
perdendo a sanidade toda vez que sentia as unhas afiadas dele deslizarem
com lentidão na entrada da sua intimidade.
— Eu… Eu não posso. — Ela não conseguia.
— Continue.
— Companheiros devem cumprir os deveres nupciais ao compartilhar
o elo sagrado… — A pressão do dedo dele aumentou e Svenja respirou
fundo. — A mulher não tem autoridade sobre o próprio corpo, apenas o
companheiro.
— Hmm… Eu gostei dessa parte.
Ele a empurrou para a cama, puxou as mãos atadas dela para cima e
jogou o livro para o lado. Svenja tentou se desvencilhar, mas o corpo dele a
prensou no colchão e ela sentiu a excitação de Karvid. Ela não era pura.
Bom, não pelos olhos do Breviário. Svenja já havia sentido aquilo em
alguns garotos, até mesmo já tinha enfiado a mão em incontáveis calças
para arrancar gemidos inocentes dos coitados, mas não aquilo.
Karvid a observou com atenção e Svenja ficou presa nos olhos
amarelos. Desviou-os para os lábios grossos e sentiu o coração dar um pulo
quando ele sorriu e mostrou as presas.
— Diga-me, Svenja… O que deseja nesse momento?
— Eu… C-como?
— Preciso saber o que deseja para que eu vá além — Karvid
sussurrou, as unhas afiadas faziam círculos nos pulsos doloridos dela, mas
as cordas ainda a prendiam e ele a mantinha com os braços suspensos.
— Me solte…
As unhas dele fincaram na carne da sua coxa e Svenja fechou os
olhos, os lábios abriram e um gemido incontido escapou.
— Esse não é o seu desejo, Svenja… — A mão dele pressionou a
coxa e a forçou a abrir, um dedo deslizando pela sua entrada. Ela sabia que
estava úmida apenas com aquele toque. — Quer ser beijada? Já
experimentou beijar um monstro?
Ele se aproximou e, ao ver que ela não recuaria, tocou os lábios dela.
Svenja deixou outro gemido escapar e dessa vez não fez muita questão de
disfarçá-lo. Ele tinha gosto de natureza selvagem, o aroma de flores e neve
caindo sobre grama úmida exalava da pele pálida, a pedra escura do cordão
escapou e descansou entre os seios dela, uma intimidade estranha nasceu
ali, a sensibilidade dela aflorou e Svenja abriu as pernas em um convite. O
dedo de Karvid entrou, deslizou com facilidade e tocou um lugar que
ninguém nunca havia sequer pensado em tocar.
A língua dele pediu permissão, acariciou os lábios de Svenja e ela
cedeu àquilo também. Já havia beijado garotos, mas beijar uma criatura
como ele era diferente. A língua dele era quente e aveludada, as presas
mordiscavam o lábio inferior da garota enquanto o dedo trabalhava entre as
suas pernas, para dentro, para fora, para dentro, para fora… Tocavam o
ponto sensível e acariciavam ali como uma reverência. Ele se afastou
brevemente e o hálito quente bateu no rosto dela quando ele fez a pergunta.
— Você vai me deixar tocá-la? — As presas voltaram a mordiscar o
lábio dela. — Me deixe mostrar o que um monstro como eu consegue fazer
com um corpo frágil como o seu.
Svenja estava sem fôlego, mas um rubor tomou as bochechas quando
ela apenas fechou os olhos e assentiu, derrotada. Escutou a risada e de
repente o peso do corpo dele diminuiu. Ela esperou, ainda de olhos
fechados. A boca atrevida desceu pelo corpo dela, a língua quente
circulando o umbigo, as mãos fortes acharam o tecido frágil da roupa de
dormir e rasgaram como se fosse algodão envelhecido, o corpo dela foi
revelado e Svenja sentiu os olhos felinos dele sobre cada pedaço de pele.
— Olhe para mim, Svenja. Quero vê-la se derramar na minha boca
quando eu começar.
Svenja franziu o cenho e, com relutância, abriu os olhos. Ele estava
mais abaixo, entre as pernas dela e ela se perguntou o que ele fazia ali,
quando o viu sorrir e abaixar a cabeça. Ela arregalou os olhos quando
entendeu, mas foi tarde demais quando a língua mergulhou no sexo úmido.
Svenja gritou dessa vez, tentando de toda forma abaixar os braços, mas
alguma magia os mantinha presos acima do corpo e ela sentia a corda
machucá-la enquanto ele fazia o trabalho primoroso entre as suas pernas.
Os chifres raspavam na pele das coxas, as pontas mais afiadas enviavam
arrepios pelo corpo feminino. Svenja nunca havia experimentado aquilo, era
insano, era errado, mas era delicioso e irresistível, e ela se perguntou como
as palavras do Breviário descreveriam aquilo, para depois descobrir que não
queria saber sobre Breviário nenhum.
O dedo dele entrou, a língua acariciou e os lábios sugaram, Svenja
achou que ia enlouquecer, mas quando o corpo pedia por algum tipo de
libertação, de fôlego, o toque sumiu e ela ficou ali, deitada e sem fôlego,
uma fina camada de suor no corpo. Olhou para ele, confusa e, de certa
maneira, irritada. Descobriu a besta sorrindo para ela e percebeu o que ele
estava fazendo.
— Você já viu um homem nu? — Karvid perguntou e tirou a blusa
que usava. Ela já havia visto o torso dele, mas os contornos do corpo
pareciam ainda mais exuberantes sob a claridade da lareira.
Ela assentiu com a cabeça, já havia visto alguns homens nus. Em
livros de anatomia que algumas curandeiras usavam. Eram proibidos, mas
as amigas de Svenja uma vez surrupiaram da biblioteca real para folheá-los
e ficaram surpresas quando encontraram as páginas com as imagens. Havia
também os rapazes que tomavam banhos nos lagos das vilas. Ele ainda
estava se despindo. A calça desceu pelas coxas grossas e Svenja não
conseguiu conter a surpresa quando os olhos correram por todo o corpo. O
sorriso não deixava o rosto de Karvid e Svenja não sabia se o odiava ou se
aquilo a excitava mais.
— Se parecem comigo? — A pergunta foi divertida.
E ela sabia o motivo. Não, não se pareciam em nada com a criatura
que ela via. Svenja não precisava conhecer o corpo de um homem para
saber que o dele se encaixava no padrão de anatomia perfeita. O tipo de
anatomia que as mulheres evitavam, mas sucumbiam. As coxas grossas não
possuíam pelo algum, nem mesmo o peitoral, nem mesmo… Ela observou o
que ele havia revelado e engoliu em seco. Depois, subiu os olhos e
observou o rosto. Os olhos, antes amarelos, agora estavam escuros como a
noite, as presas pareciam ter esticado alguns centímetros e os chifres…
pelos céus, os chifres a aterrorizavam, mas Svenja queria tocá-los. Ah,
como queria.
Karvid se juntou a ela na cama e Svenja abriu as pernas para recebê-
lo. Os dedos dele correram pela cintura delicada, as unhas a acariciando no
processo. Ela fechou os olhos e se remexeu, ele pareceu ler o desejo dela.
— Se eu a soltar, promete se comportar?
Ela assentiu e ele voltou a sorrir.
A pressão das cordas sumiu e os braços dela caíram ao lado do corpo.
Svenja não conseguiu se conter em abraçá-lo e puxá-lo para si. A risada de
Karvid tocou a pele do rosto dela quando ele percebeu o que ela queria.
— Coisinha impaciente. — O dedo dele correu pelo sexo úmido e
túrgido. — Vamos acabar com as palavras sacras deste Breviário que você
segue.
Com um empurrão, ele a invadiu. Svenja gritou. De dor, de prazer.
Ela não soube ao certo. Achou que estava sendo rasgada, partida em dois.
Ele a espichou, tomou o que era mais puro dela, roubou sua honra e não
parecia disposto a entregá-la de volta, mesmo que destruída.
Depois de um tempo, ele começou a se mexer.

[...]

Karvid precisou ser sincero, aquela humana era quente como o verão
e macia como o algodão mais caro de Uleadore. Nunca havia
experimentado uma como ela: pura, apertada e vulnerável. Sempre se
deitava com mulheres da sua espécie, humanas eram frágeis e ele tendia a
ser um pouco violento em suas preferências, não gostava de ser refreado e
não saciar os próprios desejos. Precisavam ser enfeitiçadas depois, não se
lembravam do que houve, e Karvid era um homem que gostava de marcar a
sua presa. Qual a diversão em não ver a companhia voltar para a cama dele
e implorar por mais?
Mas Svenja… Ela parecia diferente. Seu cristal sentiu isso quando
tocou o corpo dela. A sensibilidade dela aflorou para a magia da espécie
dele. E o corpo dela era tão receptivo… Ele era ainda grande para ela, mas
o sexo dela o recebeu como se ele sempre tivesse entrado ali e ele precisou
controlar a vontade de morder o pescoço delicado e deixar uma marca
eterna.
Sem pensar duas vezes, afastou o quadril e a invadiu de novo. Ela
aguentaria, aquela coisinha pequena e frágil, aguentaria tudo dele.

[...]

A dor havia passado, uma pressão estranha e agradável ficou no lugar


e Svenja fechou as pernas para apertá-lo mais ao corpo. Ele era faminto, o
corpo batia ao dela com violência, as unhas afiadas apertavam a carne das
suas coxas e a faziam sentir um prazer que Svenja nunca pensou que
sentiria. Ele parou de repente, diminuiu o ritmo, e a fitou com curiosidade.
Ela estava sem fôlego, ainda tentando entender como o seu corpo conseguiu
receber o dele.
As mãos dela correram os braços fortes que o mantinham erguido,
passaram pelos ombros e acariciaram os fios dos cabelos escuros, foram em
direção ao rosto e pousaram ali. Karvid enrijeceu. Os olhos claros dela
foram para os chifres e ela sentiu a cauda dele mexer acima do corpo.
Engoliu em seco e subiu o toque. Ele não a impediu.
Os dedos correram pelos chifres e ela escutou um rosnado sair dos
lábios carnudos de Karvid. Ela gemeu e ele desceu os lábios para os dela, a
língua acariciando a sua enquanto ele retomava o ritmo, primeiro com
paciência, depois com a brutalidade que ele preferia. Ela fechou os olhos e
apreciou, tomou tudo o que podia dele, a ferocidade de uma espécie mais
forte, a graciosidade de um ser místico, Svenja colheu cada movimento,
cada mordida, cada arranhada, arrancou dele o animal que era e o fez urrar.
Karvid quase a mordeu quando chegou ao seu limite e a sentiu apertá-
lo. O quadril bateu uma última vez quando ele a preencheu e ela estremeceu
abaixo dele. Ele ficou ali por algum tempo, ela sentia a respiração difícil
batendo no seu rosto. Os olhos escuros voltaram a ficar amarelados e ele a
olhou com atenção. Svenja percebeu algo nos olhos dele, mas não
conseguiu descrever o que realmente era.
— Seja bem-vinda à fome pela carne. — A língua dele correu o seu
pescoço e as unhas afiadas a fincaram quando ele voltou a apertar as coxas
femininas. — Mulher delicada, corça adocicada… Que os seios da sua
companheira sempre o fartem de gozo. — Os lábios dele se fecharam nos
seios dela e Svenja gemeu. — E sempre o embriaguem com prazer.
Svenja o olhou, confusa. Ainda estava trêmula quando afirmou:
— Mas você não consegue ler o Breviário.
— Não consigo… — O sorriso dele foi feral. — Mas conheço
algumas passagens.
V

Svenja andava pela floresta e tentava gravar cada pedaço de magia


que havia ali. Parecia tolice, mas ainda não estava preparada para se
despedir da beleza de Uleadore. Havia conhecido pouco do lugar. Uma
semana não era suficiente para apreciar as árvores de copas violeta, a neve
que não conseguia chegar ao solo, a noite eterna. Uma semana não foi o
suficiente para apreciar o regente de Uleadore.
Karvid acompanhava cada passo da garota, estava em silêncio e
Svenja apreciou isso. Sentia os olhos dele em cima dela e imagens invadiam
a mente da garota sempre quando ela arriscava olhá-lo. Mãos fortes com
unhas afiadas percorrendo o seu corpo sem pudor, deixando rastros
vermelhos onde ele as afundava, a língua atrevida que a interrompia sempre
quando ele ficava enfadado com as palavras do Breviário ou quando achava
as frases absurdas e a enchia de perguntas, os lábios incansáveis que
descobriram cada parte do corpo dela e acariciaram onde conseguiram
alcançar. Karvid era insaciável e Svenja perguntou se as criaturas da espécie
dele tinham isso em comum ou se era uma característica apenas do regente.
Ela correu as mãos pelos troncos pálidos e Karvid sentiu o cristal no
colar vibrar. Svenja era diferente, acariciava a floresta como uma mãe
acaricia o filho quando este volta para casa depois de uma longa batalha, e
Uleadore a reconhecia como igual e parecia chorar quando a garota se
despedia de cada ser vivo ali.
A colheita não havia sido feita. Uma criança ainda corria pelas vilas,
mas a energia de Uleadore havia sido restaurada, uma barganha que Karvid
não sabia se a floresta ia aceitar, mas que de fato deu certo. Svenja havia
nutrido o solo, as folhas, a áurea.
Ela havia questionado como isso acontecia, e não aceitava o fato de
sua espécie fazer parte do ciclo mágico dos Fae, mas Karvid não tentou
fazê-la mudar de ideia, pois sabia que seria inútil. Em breve, ela não se
lembraria de nada daquilo.
Tentou arrancar algo mais da garota, mas Svenja não mentiu quando
disse que não sabia como as crianças eram vistas nos arredores de florestas
depois de meses dos dias sagrados findarem. Krampus era uma lenda, e a
lenda dizia que várias crianças eram levadas, mas Karvid colhia apenas uma
por ano, e era o suficiente.
Quem usava para o próprio prazer a imagem que ele havia criado?
Seria um humano perverso que estaria levando crianças para fins egoístas
ou monstros como ele que estavam quebrando a linha frágil do mundo
humano com o mundo mágico?
Era uma pauta a se colocar no próximo conselho.
Ela parou e ele fez o mesmo, surpreso que a própria garota percebeu
que o limite de Uleadore se aproximava. Svenja olhou para ele e Karvid
percebeu dor nos olhos claros. Ele se aproximou e sorriu para ela.
— Não fique assim, Svenja. — Ela fechou os olhos, uma semana foi
o suficiente para fazê-la apreciar o modo como o seu nome era pronunciado
pelo sotaque primitivo dele. — Uleadore sempre fará parte de você.
— Como? Não vou me lembrar de nada, certo? — Svenja voltou a
fazer a mesma pergunta que havia feito diversas vezes depois que descobriu
o próprio destino.
Ele tocou o rosto dela e Svenja o observou. Os chifres, os lábios
carnudos, as presas… Ela quase chorou ao saber que nunca mais o veria, e
não soube o motivo. Dias atrás, queria fugir daquele monstro. Agora, queria
ficar. Queria viver na floresta mágica, sentir a noite acariciar a pele, sentir o
toque dele sobre si, beber o vinho forte. Ela desconfiava que aquilo era
parte da magia que a havia abraçado quando ela aceitou ser cativa. Quanto
mais o olhava, mais se sentia atraída. Como uma mosca se sentia atraída
pela chama e eventualmente se queimava quando ia longe demais.
Um sorriso malicioso percorreu o rosto de Karvid.
— Te visitarei nos sonhos — sussurrou. — E o que há melhor do que
ter sonhos proibidos? Ah, doce humana… Você irá acordar molhada,
túrgida e gemerá quando fechar as pernas e sentir a excitação por mim. —
O toque dele desceu para o colo dela e Svenja sentiu o corpo arrepiar. —
Meu toque estará na sua pele e no seu subconsciente, mas você não irá se
lembrar do que viveu aqui. É o curso natural.
Ela engoliu em seco e viu o rosto dele desvanecer. Sentiu a mente
flutuar e os pés amassarem grama seca. A claridade de um dia ensolarado a
atingiu e a fez semicerrar os olhos, como se há muito tempo não a visse.
Não entendeu o que estava acontecendo e se perdeu um pouco quando
escutou as canções vindas de fogueiras enormes. A vila estava em festa, os
dias sagrados estavam no ápice. Havia crianças correndo e adultos
conversando. Svenja piscou algumas vezes e sentiu algo no pescoço, como
uma carícia, um hálito quente.
— Ah, doce Svenja, eu irei buscá-la quando melhor me aprouver.
Svenja se arrepiou com aquela voz e se virou, mas não viu nada e
achou que estivesse sonhando. A voz era familiar, mas ao mesmo tempo
estranha. Ela passou a mão no pescoço e sentiu cheiro de flores.
— Svenja! — A voz fina de Theda chegou aos seus ouvidos e Svenja
se virou para sorrir para a irmã, que tinha raminhos de pinheiro nas mãos e
um biscoito feito de cacau. — Venha! Papai e mamãe assaram biscoitos.
Era uma das poucas épocas do ano que conseguiam cacau para fazer
biscoitos. Eram distribuídos pelo Rei para as festividades. Svenja se
aproximou de Theda e olhou para a irmã com atenção.
— Por que essa alegria?
— Não ficou sabendo? Krampus aterrorizou as vilas do sul, mas não
conseguiu levar nenhuma criança! Nos comportamos bem!
Svenja sorriu e observou Theda correr para voltar à vila principal,
onde as fogueiras altas estariam queimando para agradecer o ano bom e
permitir o ano vindouro próximo. Ela olhou para trás, uma sensação
estranha de perda a tomando. Mas sabia que poderia ser a superstição da
época.
Afinal, lendas eram sempre mentiras contadas para aterrorizar
crianças.
LEIA “O DOMADOR DE BRUXAS”, PRIMEIRO
VOLUME DA TRILOGIA ATMAN

A energia do sobrenatural está mudando. E o reino humano sente a vibração. Atman está alerta
com a maldade que corrói o coração dos homens e com a movimentação dos inimigos. O submundo,
há muito dormente, espreita e aguarda uma oportunidade para corromper.
Arsene Lefevre, um vampiro que carrega um sangue único, passa boa parte do tempo entre as
pernas de mulheres e enfiando as presas em pescoços alheios, mas uma decisão do seu mestre faz
com que o destino dele seja mudado.
Já Lymena é vista como uma bruxa que possui um poder dormente e sente o peso de carregar em
breve a Coroa Vermelha para liderar o Coven. Com a mente responsável e centrada em sua ascensão,
está disposta a abdicar de tudo para se dedicar à realeza bruxa. Mas o caminho cruzado com Arsene
faz a determinação dela falhar.
A luz suportará iluminar as trevas? Ou a escuridão conseguirá abocanhar a bondade no mundo?

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LEIA UM CONTO AMBIENTADO NO MUNDO
DE ATMAN!

Merik possuía os olhos mais negros que Alys um dia tinha visto em um
rosto humano. O cabelo era levemente ondulado e estava penteado para trás
em fios arrumados, o que deixava o rosto sem defeitos à mostra. Vestia-se
todo de preto e a palidez da pele ficava mais acentuada por causa das cores
escolhidas. O couro do gibão possuía um pequeno broche prateado, com
uma insígnia que ela não reconheceu, o único tom claro além da pele e do
anel que usava
Por mais que Alys já tivesse visitado vários lugares por todo o reino —
até mesmo na corte, acompanhada da tia —, aquele homem era bem
diferente dos que ela estava acostumada a ver. Era muito belo, mas gritava a
ela que representava o perigo do qual Alys fugia quando entrou naquela
taberna.

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SOBRE A AUTORA

CORA FÉLIX
Ilustradora, escritora e pesquisadora de criaturas fantásticas, Cora Félix
iniciou sua vida literária por meio das fanfictions (histórias de fãs), até
começar a produzir livros autorais. Estabeleceu carreira no campo erótico,
mas por ser apaixonada por vilões, passou a se dedicar à escrita de ficção
fantástica — hoje, tem foco exclusivo para a construção de livros
fantásticos e sobrenaturais. Autora de “Sinestesia”, distopia erótica e “O
Domador de Bruxas”, marcou sua estreia na fantasia adulta e recorde de
vendas na Bienal do Livro de 2022, Cora já foi listada entre as autoras mais
vendidas da Amazon, chegando à 5ª posição.

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