Trecho_-_O_que_o_rio_sabe_1

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Para Rebecca Ross,

que se apaixonou pelo Egito desde o meu primeiro rascunho,


que me incentivou, mesmo quando eu entrava em becos sem saída,
e que se encantou quando Whit surgiu pela primeira vez no papel.

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PRÓLOGO

Nunca se sabe qual é a última palavra quando


se trata do coração humano.
– Henry James

AGOSTO DE 1884

Uma carta mudou minha vida.


Eu havia esperado por ela o dia todo, escondida no galpão do oleiro,
longe de tia Lorena e suas duas filhas, a que eu amava e a que não gostava
de mim. Meu esconderijo, velho e caindo aos pedaços, mal se mantinha de
pé; um vento forte poderia muito bem pôr tudo abaixo. A luz dourada da
tarde forçava a entrada pelas vidraças embaçadas da janela. Franzi a testa,
batendo o lápis no lábio inferior, e tentei não pensar nos meus pais.
A carta deles ainda levaria uma hora para chegar.
Se é que chegaria.
Olhei para o bloco de desenho apoiado em meus joelhos e me acomodei
melhor dentro da banheira de porcelana antiga. Os vestígios de uma magia
ancestral envolviam meu corpo, embora mal fossem perceptíveis. O feitiço
fora lançado havia muito tempo, e um número excessivo de mãos manuseara
a banheira para que eu conseguisse me esconder por completo. Aquele era o
problema com a maioria das coisas tocadas pela magia: quaisquer particula-
ridades do feitiço original enfraqueciam, esvaindo-se aos poucos conforme o
objeto trocava de mãos. Mas isso não impedia meu pai de colecionar o máximo
possível de objetos contaminados por magia. A mansão estava repleta de sapa-
tos desgastados de cujas solas cresciam flores, espelhos que cantavam quando
alguém passava por eles e baús que lançavam bolhas sempre que eram abertos.

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Lá fora, minha prima mais nova, Elvira, berrava meu nome. O agudo nada
feminino certamente desagradaria a tia Lorena. Ela incentivava tons modera-
dos – a menos, é claro, que fosse ela quem estivesse falando. Sua voz era capaz
de atingir um volume surpreendente.
Muitas vezes, direcionada a mim.
– Inez! – gritava Elvira.
Eu estava mal-humorada demais para querer conversar.
Então me afundei mais na banheira, a voz da minha prima ecoando
fora da construção de madeira, gritando meu nome outra vez enquanto me
procurava no exuberante jardim, debaixo de alguma samambaia frondosa
ou atrás do tronco de um limoeiro. Eu me mantive quieta para o caso de
Elvira estar com a irmã mais velha, Amaranta – minha prima não favorita,
que nunca tinha uma mancha no vestido ou um cacho de cabelo fora do
lugar. Que nunca gritava nem dizia nada em tom agudo.
Pelas frestas das tábuas de madeira, avistei Elvira pisoteando canteiros
inocentes. Reprimi uma risada quando ela pisou em um vaso de lírios, gri-
tando uma imprecação que eu sabia que sua mãe também não apreciaria.
Tons moderados e nada de xingamentos.
Eu precisava dar logo as caras, antes que ela sujasse mais um par de seus
delicados sapatos de couro. Mas, até o carteiro chegar, eu não seria boa
companhia para ninguém.
A qualquer momento, ele apareceria com a correspondência.
Aquele poderia ser o dia em que eu enfim teria uma resposta de Mamá
e Papá. Tia Lorena quis me levar à cidade, mas eu dera uma desculpa e
passara a tarde toda escondida, para o caso de ela querer me tirar de casa.
Meus pais escolheram a ela e minhas duas primas para me fazer companhia
durante suas viagens de meses, e minha tia tinha boas intenções, mas às
vezes seu punho de ferro me irritava.
– Inez! ¿Dónde estás?
Elvira adentrou ainda mais o jardim, o som de sua voz se perdendo entre
as palmeiras.
Ignorei, o espartilho muito justo em torno do meu peito, e apertei mais
forte o lápis. Olhei para a ilustração que eu havia terminado, estreitando
os olhos. Os rostos esboçados de Mamá e Papá me encaravam. Eu era uma
mistura perfeita dos dois. Tinha os olhos cor de avelã e as sardas dela, seus

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lábios cheios e o queixo pontudo. Herdei do meu pai o cabelo preto – agora
o dele estava inteiramente grisalho –, cacheado e rebelde, assim como a pele
bronzeada, o nariz reto e as sobrancelhas. Ele era mais velho do que Mamá,
mas era quem mais me entendia.
Mamá era muito mais difícil de impressionar.
Eu não fora até a banheira com a intenção de desenhá-los, não queria
pensar neles de jeito algum. Porque, se eu pensasse, contaria os quilô-
metros entre nós. Se pensasse neles, lembraria que estavam a um mundo
de distância de onde eu me encontrava, escondida em um cantinho da
propriedade.
Eu lembraria que estavam no Egito.
Um país que adoravam, um lugar que chamavam de lar durante metade
do ano. Até onde eu me lembrava, as malas deles sempre estavam prontas,
e os adeuses eram tão constantes quanto o nascer e o pôr do sol. Durante
dezessete anos, eu os vi partir com um sorriso corajoso, mas, depois que
suas explorações passaram a se estender por meses, meus sorrisos se tor-
naram frágeis.
A viagem era muito perigosa para mim, eles diziam. A jornada era longa
e árdua. Para alguém que havia permanecido em um só lugar a maior parte
da vida, a aventura anual dos dois parecia divina. Apesar dos problemas que
enfrentavam, nunca deixavam de comprar outra passagem em um navio a
vapor partindo do porto de Buenos Aires a caminho de Alexandria. Mamá
e Papá nunca me convidaram para ir com eles.
Na verdade, não deixavam que eu fosse.
Virei a folha de cara fechada e encarei uma página em branco. Meus
dedos apertavam o lápis enquanto eu desenhava linhas e formas familiares
de hieróglifos egípcios. Eu praticava os glifos sempre que podia, forçando-
-me a lembrar todos que conseguia junto com seus valores fonéticos mais
próximos ao alfabeto romano. Papá sabia centenas deles, e eu queria estar à
altura. Ele sempre me perguntava se eu havia aprendido novos, e eu odiava
decepcioná-lo. Devorei os vários volumes de Description de L’Egypte e os
diários que Florence Nightingale escrevera enquanto viajava pelo Egito, até
History of Egypt, de Samuel Birch. Eu sabia de cor o nome dos faraós do
Novo Império e era capaz de identificar inúmeros deuses e deusas egípcios.

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abutre peneira
junco barriga de animal

braço ferrolho de porta


pinto tecido dobrado

perna lago
banco morro
víbora cesto
coruja suporte para jarra
água pão
boca corda
abrigo mão
pavio cobra

Deixei cair o lápis no colo quando terminei e, distraída, girei o anel dou-
rado no dedo mínimo. Papá o enviara em sua última remessa, em julho,
sem bilhete algum, somente seu nome e endereço no Cairo numa etiqueta
na caixa. Era típico dele esquecer o bilhete. O anel cintilava à luz suave, e
lembrei a primeira vez que o coloquei no dedo. No instante que o toquei,
meus dedos haviam formigado, uma corrente ardente me subira pelo braço
e minha boca se enchera com o sabor de rosas.

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A imagem de uma mulher passara diante dos meus olhos, desaparecendo
quando pisquei. Naquele momento intenso, eu tivera uma saudade profun-
da, uma emoção aguda, como se eu a estivesse vivendo.
Papá me enviara um objeto tocado pela magia.
Era intrigante.
Nunca contei a ninguém o que ele fez ou o que havia acontecido. A
magia do mundo antigo havia se transferido para mim. Era raro, mas pos-
sível, desde que o objeto não tivesse sido manuseado demasiadas vezes por
pessoas diferentes.
Papá uma vez me explicou assim: há muito tempo, antes que as pessoas
construíssem suas cidades, antes de decidirem se fixar em áreas específicas,
gerações passadas de Feiticeiros no mundo todo criavam magia com plantas
raras e ingredientes difíceis de encontrar. A cada feitiço realizado, a magia
liberava uma faísca, uma energia extraordinária que era literalmente bem
pesada. Como resultado, ela se impregnava em objetos próximos, deixando
em seu rastro uma marca do feitiço.
Um subproduto natural da prática da magia.
No entanto, ninguém mais a praticava. Aqueles que detinham o conheci-
mento para criar feitiços já tinham desaparecido havia muito. Todos sabiam
dos perigos de deixar qualquer registro da magia por via escrita, então seus
métodos eram ensinados oralmente. E, quando mesmo essa tradição se tor-
nou uma arte perdida, as civilizações foram obrigadas a abraçar as criações
do homem.
Práticas antigas foram esquecidas.
Mas toda aquela magia criada, aquele algo intangível, já havia se alojado
por aí. Essa energia mágica foi afundando no solo ou mergulhando em la-
gos e oceanos profundos. Agarrou-se a objetos, ordinários e obscuros, e às
vezes foi transferida ao entrar em contato com outra coisa, ou outra pessoa.
A magia possuía vontade própria, e ninguém sabia por que ela se transferia
ou se agarrava a alguns objetos ou pessoas e não a outros. Seja como for,
toda vez que uma transferência acontecia, o feitiço enfraquecia em graus
mínimos, até desaparecer por completo. Compreensivelmente, as pessoas
odiavam pegar ou comprar coisas aleatórias que pudessem conter magia
antiga. Imagine adquirir uma chaleira que destilasse inveja ou invocasse
um fantasma irascível.

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Incontáveis artefatos foram destruídos ou escondidos por organizações
especializadas em rastrear magia, e grandes quantidades foram enterradas,
perdidas e esquecidas de modo geral.
O mesmo ocorreu com os nomes de gerações passadas, ou com os pró-
prios criadores originais da magia. Quem eram, como viviam e o que fa-
ziam. Eles deixaram toda essa magia para trás, como tesouros ocultos – a
maioria dos quais manuseada com bem pouca frequência.
Mamá era a filha de um fazendeiro da Bolívia, e em seu pequeno po-
voado – como certa vez ela me contou – a magia estava mais próxima da
superfície, era mais fácil de encontrar. Presa em gesso ou em sandálias de
couro desgastadas, ou em um antigo sombrero. Isso a deixara empolgadís-
sima, a noção de resquícios de um feitiço poderoso agora capturados no
ordinário. Ela adorava a ideia de que sua cidade descendia de gerações de
talentosos Feiticeiros.
Virei a página do bloco de desenhos e recomecei, tentando não pensar na
Última Carta que enviara para eles. Eu tinha escrito a saudação em um trê-
mulo hierático – escrita cursiva hieroglífica – e mais uma vez pedira a eles
que, por favor, me deixassem ir para o Egito. Havia feito aquele mesmo pe-
dido de inúmeras maneiras diferentes, mas a resposta era sempre a mesma.
Não, não, não.
Daquela vez, porém, talvez a resposta fosse diferente. A carta deles de-
via chegar em breve, naquele dia – e talvez, apenas talvez, ela contivesse a
palavra que eu estava esperando.
Sim, Inez, você finalmente pode vir para o país onde vivemos metade de
nossa vida, longe de você. Sim, Inez, você finalmente pode ver o que faze-
mos no deserto e por que amamos tanto isso – mais do que ficar com você.
Sim, Inez, você enfim vai entender por que a deixamos, repetidas vezes, e
por que a resposta sempre foi “não”.
Sim, sim, sim.
– Inez! – voltou a gritar minha prima Elvira, e me sobressaltei.
Não tinha percebido que ela se aproximara do meu esconderijo. A magia
que se prendia à antiga banheira poderia obscurecer meu vulto de longe,
mas, se chegasse perto, Elvira me veria sem qualquer dificuldade. Quando
voltou a me chamar, sua voz se elevou e percebi um toque de pânico:
– Você recebeu uma carta!

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Ergui o rosto do bloco de desenho e me sentei, empertigada, com um
movimento brusco.
Finalmente.
Prendi o lápis atrás da orelha e saí da banheira. Abrindo apenas uma
fresta na pesada porta de madeira, espiei lá fora com um sorriso enver-
gonhado no rosto. Elvira estava a menos de dez passos de mim. Por sorte,
Amaranta não estava à vista. Ela ficaria horrorizada com o estado da minha
saia amassada e denunciaria meu crime hediondo à mãe.
– ¡Hola, prima! – gritei.
Elvira soltou um berro, dando um pulo. Depois, revirou os olhos.
– Você é incorrigível.
– Só na sua frente.
Olhei para as mãos vazias dela, à procura da carta.
– Cadê?
– Minha mãe me mandou vir te buscar. Isso é tudo que sei.
Seguimos de braços dados pelo caminho de paralelepípedos que levava à
casa principal. Eu andava rápido, como de hábito. Nunca entendi a lentidão
com que minha prima caminhava. Qual era o sentido em não chegar logo
aonde se quer ir? Elvira apressou o passo, seguindo no meu encalço. Aquela
era uma representação precisa do nosso relacionamento: ela estava sempre
tentando me acompanhar. Se eu gostasse da cor amarela, ela declarava que
aquela era a tonalidade mais bonita do mundo. Se eu quisesse carne assada
para o jantar, ela já começava a afiar as facas.
– A carta não vai sair correndo – disse Elvira com uma risada, jogando
para o lado o cabelo castanho-escuro.
Seus olhos eram calorosos, a boca carnuda se estendia num amplo sorri-
so. Éramos parecidas, exceto pelos olhos. Os dela eram mais verdes do que
os meus, que estavam sempre mudando de cor.
– Minha mãe disse que o carimbo é do Cairo.
Meu coração teve um sobressalto.
Eu não tinha contado à minha prima sobre A Última Carta. Ela não
ficaria feliz com meu desejo de me juntar a Mamá e Papá. Minhas primas e
minha tia não entendiam a decisão dos meus pais de desaparecer por me-
tade do ano, indo para o Egito. Elas adoravam Buenos Aires, uma cidade
glamourosa com sua arquitetura de estilo europeu, suas avenidas amplas

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e seus cafés. A família do meu pai era da Espanha e chegara à Argentina
quase cem anos antes; a jornada tinha sido penosa, mas eles enfim haviam
alcançado sucesso na indústria ferroviária.
O casamento deles fora um acordo que uniu o bom sobrenome de Mamá
e a grande riqueza de Papá, mas se transformara em admiração mútua e
respeito ao longo dos anos – e, na época do meu nascimento, em um amor
profundo. Papá nunca teve a família numerosa que desejava, mas meus pais
gostavam de dizer que já ficavam ocupados demais comigo.
Embora eu não tenha certeza de como algo assim era possível se eles
ficavam ausentes por tanto tempo.
A casa surgiu no meu campo de visão, linda e espaçosa, com pedras
brancas e janelas grandes, o estilo ornamentado e elegante, reminiscente de
uma mansão parisiense. Uma cerca de ferro dourado nos engaiolava, obs-
curecendo a vista do bairro. Quando eu era pequena, costumava subir até a
barra superior do portão, esperando vislumbrar o oceano, que permanecia
fora de vista, e eu tinha que me contentar em explorar os jardins.
Mas a carta poderia mudar tudo.
Sim ou não. Eu ficaria ou iria embora? Cada passo que eu dava em
direção à casa talvez me aproximasse mais de um país diferente. Outro
mundo.
Um lugar à mesa com meus pais.
– Aí está você – disse tia Lorena da porta do pátio.
Amaranta estava parada ao lado dela, com um grosso livro encadernado
em couro em uma das mãos. A Odisseia. Uma escolha curiosa. Se eu bem
lembrava, o último clássico que ela tentou ler havia mordido seu dedo. O
sangue manchara as páginas, e o livro tocado pela magia escapou pela ja-
nela para nunca mais ser visto – embora às vezes eu ainda ouvisse ganidos
e rosnados vindos dos canteiros de girassóis.
O vestido verde-menta da minha prima se agitava ao sabor da brisa
morna, mas, ainda assim, nenhum fio de cabelo se atrevia a escapar de
seu penteado preso na nuca. Ela era tudo o que minha mãe queria que eu
fosse. Seus olhos escuros encontraram os meus, e os lábios se contorceram
de reprovação quando ela viu meus dedos sujos. Os lápis de carvão sempre
deixavam sua marca, quase como fuligem.
– Lendo de novo? – perguntou Elvira à irmã.

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A atenção de Amaranta se voltou para Elvira, e sua expressão suavizou.
Ela avançou e entrelaçou o braço no da irmã.
– É uma história fascinante! Se tivesse ficado comigo, eu teria lido mi-
nhas partes favoritas para você.
Ela nunca usava aquele tom doce comigo.
– Onde você estava? Não importa – disse tia Lorena quando fiz menção
de responder. – Seu vestido está sujo, sabia?
O linho amarelo estava amarrotado e cheio de manchas medonhas,
mas aquele era um dos meus vestidos favoritos. O modelo permitia que
eu o colocasse sem a ajuda de uma criada. Eu havia encomendado em
segredo vários trajes com botões de fácil acesso, o que tia Lorena de-
testava. Ela achava que aquilo tornava os vestidos escandalosos. Minha
pobre tia se esforçava ao máximo para me manter apresentável – mas,
infelizmente para ela, eu tinha a habilidade singular de arruinar bainhas
e amassar babados. Eu adorava meus vestidos, mas eles precisavam ser
tão delicados?
Notei suas mãos vazias e reprimi um lampejo de impaciência.
– Eu estava no jardim.
Elvira apertou ainda mais meu braço com a mão livre, correndo em
minha defesa.
– Ela estava praticando sua arte, Mamá, só isso.
Minha tia e Elvira adoravam minhas ilustrações (Amaranta dizia que
eram muito infantis) e sempre se certificavam de que eu tivesse material
para pintar e desenhar. Tia Lorena achava que meu talento era suficiente
para que eu vendesse meu trabalho nas muitas galerias que estavam sur-
gindo na cidade. Ela e minha mãe tinham toda uma vida planejada para
mim. Além das aulas de inúmeros tutores do meio artístico, eu havia sido
educada em francês e inglês, ciências gerais e história – com ênfase especial,
é claro, na do Egito.
Papá fazia de tudo para que eu lesse os mesmos livros sobre o assunto
que ele, além de suas peças preferidas. Shakespeare era um dos favoritos,
em especial, e citávamos os versos um para o outro, um jogo que só nós
sabíamos vencer. Às vezes, fazíamos apresentações para os funcionários,
usando o salão de baile como nosso teatro doméstico. Como ele era um
patrono da ópera, recebia um constante suprimento de trajes, perucas e

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maquiagem cênica, e algumas das minhas lembranças mais preciosas eram
de nós experimentando novos figurinos, planejando o próximo espetáculo.
O rosto da minha tia desanuviou.
– Bom, venha, Inez. Você tem visita.
Lancei um olhar questionador a Elvira.
– Achei que você tinha dito que recebi uma carta…
– Sua visita trouxe uma carta dos seus pais – esclareceu tia Lorena. –
Deve ter encontrado os dois durante suas viagens. Não consigo pensar em
mais ninguém que pudesse ter escrito para você. A menos que haja um
caballero secreto do qual eu não saiba…
– A senhora espantou os últimos dois.
– Vagabundos, ambos. Nenhum sabia identificar um garfo de salada.
– Não sei por que se dá ao trabalho de me apresentar – eu disse. – Mamá
já decidiu. Acha que Ernesto seria um marido adequado para mim.
Os lábios de tia Lorena se curvaram para baixo.
– Não há nada de errado em ter opções.
Eu a encarei, achando graça. Minha tia se oporia até mesmo a um prínci-
pe se minha mãe o indicasse. Elas nunca tinham se dado bem. Ambas eram
muito obstinadas, muito firmes em suas opiniões. Às vezes, eu achava que
minha tia era a razão para minha mãe optar por me deixar para trás. Ela
não suportava dividir espaço com a irmã do meu pai.
– Tenho certeza de que a riqueza da família dele é um ponto a favor – dis-
se Amaranta, com sua voz seca. Eu reconhecia aquele tom. Ela se ressentia,
mais do que eu, das tentativas de lhe arranjarem um casamento. – Isso é
o mais importante, não é mesmo?
Minha tia dirigiu um olhar furioso à filha mais velha.
– Não é, só porque…
Me desliguei da conversa, fechando os olhos, a respiração presa no fundo
da garganta. A carta dos meus pais estava ali, e eu enfim teria uma resposta.
Naquela noite, talvez eu estivesse planejando meu guarda-roupa, arruman-
do minhas malas, quem sabe até convencendo Elvira a me acompanhar na
longa jornada. Abri os olhos a tempo de ver uma leve ruga surgir entre as
sobrancelhas da minha prima.
– Eu estava esperando notícias deles – expliquei.
Ela franziu a testa.

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– Você não está sempre à espera de notícias deles?
Um ótimo argumento.
– Perguntei se poderia encontrar com eles no Egito – admiti, lançando
um olhar nervoso para minha tia.
– Mas… mas por quê? – gaguejou tia Lorena.
Entrelacei meu braço no de Elvira e fui com ela para dentro da casa. For-
mávamos um grupo encantador, percorrendo o longo saguão de azulejos, as
três de braços dados, minha tia nos conduzindo como uma guia turística.
A casa ostentava nove quartos, uma sala de café da manhã, duas salas de
estar e uma cozinha digna do hotel mais elegante da cidade. Tínhamos até um
salão para fumantes – mas, desde que Papá comprara um par de poltronas
voadoras, ninguém mais entrara lá. Elas causaram estragos terríveis, batendo
nas paredes, quebrando os espelhos e abrindo buracos nas pinturas. Meu pai
ainda lamentava a perda de seu uísque de duzentos anos no armário de bebidas.
– Porque ela é a Inez – disse Amaranta. – Boa demais para atividades
como costura ou tricô, ou qualquer outra tarefa para damas respeitáveis. –
Lançou um olhar reprovador na minha direção. – Um dia sua curiosidade
vai te colocar em apuros.
Abaixei o queixo, sentida. Eu não estava acima de costurar ou tricotar: não
gostava de fazer nenhuma das duas atividades porque era horrível em ambas.
– Isso é por causa do seu cumpleaños – disse Elvira. – Só pode ser. Você
está magoada porque eles não estarão aqui, e entendo. De verdade, Inez.
Mas eles vão voltar, e teremos um grande jantar para celebrar e convidar
todos os rapazes bonitos do barrio, inclusive Ernesto.
Em parte, ela estava certa. Meus pais iriam perder meu aniversário de 19
anos. Outro ano sem eles na hora de apagar as velinhas.
– Seu tio é uma péssima influência para Cayo – disse tia Lorena, torcen-
do o nariz. – Não consigo entender por que meu irmão financia tantos dos
planos descabidos de Ricardo. A tumba de Cleópatra, pelo amor de Deus!
– ¿Qué? – perguntei.
Até Amaranta pareceu surpresa. Seus lábios se abriram de espanto. Am-
bas éramos ávidas leitoras, mas eu não sabia que ela havia lido algum dos
meus livros sobre o Egito Antigo.
O rosto de tia Lorena corou ligeiramente e, nervosa, ela prendeu uma
mecha de cabelo castanho mesclado de prata atrás da orelha.

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– A última aventura de Ricardo. Alguma bobagem que ouvi Cayo discu-
tindo com o advogado, só isso.
– Sobre a tumba de Cleópatra? – insisti. – E o que exatamente quer dizer
com financiar?
– Quem é Cleópatra? – perguntou Elvira. – E por que você não me deu
um nome assim, Mamá? Muito mais romântico. Em vez disso, me chamou
de Elvira.
– Pela última vez, Elvira é um nome imponente. Elegante e apropriado.
Assim como Amaranta.
– Cleópatra foi a última faraó do Egito – expliquei. – Papá não falava de
outra coisa quando estiveram aqui da última vez.
Elvira franziu a testa.
– Os faraós podiam ser… mulheres?
Assenti.
– Os egípcios eram bastante progressistas. Embora, em teoria, Cleópatra
não fosse egípcia de verdade. Ela era grega. Ainda assim, eles estavam à
frente do nosso tempo, se querem saber.
Amaranta me lançou um olhar reprovador.
– Ninguém quer saber.
Mas a ignorei e olhei de maneira incisiva para minha tia, erguendo a
sobrancelha. A curiosidade queimava na minha garganta.
– O que mais a senhora sabe?
– Não tenho mais detalhes – disse tia Lorena.
– Não é o que parece – repliquei.
Elvira, do meu outro lado, se inclinou para a frente e virou a cabeça para
olhar a mãe.
– Eu também quero saber. Na verdade…
– Ora, claro que quer. Você faz tudo que Inez diz ou quer – murmurou
minha tia, exasperada. – O que eu falei sobre senhoras intrometidas que
não conseguem cuidar apenas do que é da sua conta? Amaranta nunca me
dá trabalho assim.
– Era a senhora quem estava bisbilhotando – disse Elvira. Depois se
virou para mim, um sorriso ansioso nos lábios. – Você acha que seus pais
mandaram algum pacote junto com a carta?
Meu coração acelerou enquanto minhas sandálias batiam no piso de

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azulejos. A última carta deles veio com uma caixa cheia de coisas bonitas,
e, nos minutos que levei para desembalar tudo, parte do meu ressentimen-
to se dissipou enquanto eu olhava os presentes. Lindas sapatilhas amarelas
com borlas douradas, um vestido de seda rosa com bordados delicados e
um excêntrico quimono em uma profusão de cores: amora, oliva, pêssego
e um verde-mar clarinho. E não era tudo: no fundo da caixa, encontrei
copos de cobre e um prato de bugigangas feito de ébano com pérolas
incrustadas.
Eu amava cada presente, cada carta que me enviavam, embora fossem
metade das que eu enviava para eles. Não importava. Parte de mim entendia
que era tudo o que eu teria dos dois. Eles haviam escolhido o Egito, e tinham
se entregado de corpo e alma. Eu aprendera a viver com o que sobrava,
mesmo que aquilo me pesasse como pedras no estômago.
Eu estava prestes a responder à pergunta de Elvira, mas viramos a esqui-
na e parei abruptamente, a resposta esquecida.
Um cavalheiro mais velho, de cabelo grisalho e rugas profundas enta-
lhadas no cenho de pele escura, esperava junto à porta da frente. Era um
estranho para mim. Toda a minha atenção se concentrou na carta que via
nas mãos enrugadas do visitante.
Então me afastei de minha tia e das primas e fui depressa na direção dele,
meu coração palpitando enlouquecido contra as costelas, como um pássaro
ansiando por liberdade. Ali estava. A resposta que eu esperava.
– Señorita Olivera – disse o homem, em um barítono profundo. – Sou
Rudolpho Sanchez, procurador dos seus pais.
Não registrei as palavras. Eu já havia arrancado o envelope das mãos
dele. Com dedos trêmulos, virei o papel, me preparando para a resposta dos
meus pais. Não reconheci a caligrafia no lado oposto. Virei a missiva nova-
mente, estudando o selo de cera cor de morango que fechava a aba. Havia no
centro dele um minúsculo besouro – não, escaravelho –, junto com palavras
distorcidas demais para serem chamadas de legíveis.
– O que está esperando? Precisa que eu leia para você? – perguntou El-
vira, olhando por cima do meu ombro.
Eu a ignorei e me apressei a abrir o envelope, os olhos disparando para
as letras borradas. Alguém devia ter molhado o papel, mas eu mal percebi,
porque enfim me dei conta do que estava lendo. As palavras nadavam pelo

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papel à medida que minha visão se turvava. De repente, ficou difícil respirar,
e a sala se tornou gélida.
Elvira soltou um arquejo agudo perto do meu ouvido. Um arrepio frio
percorreu minha espinha, um dedo gelado de pavor.
– E então? – instou tia Lorena, com um olhar inquieto para o procurador.
Minha língua inchou na boca. Eu não tinha certeza se conseguiria falar
– mas, quando falei, minha voz saiu rouca, como se eu tivesse gritado por
horas:
– Meus pais morreram.

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PARTE UM

A UM MUNDO DE
DISTÂNCIA

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CAPÍTULO UNO

NOVEMBRO DE 1884

Pela misericórdia de Deus, eu mal podia esperar para desembarcar daquele


navio infernal.
Espiei pela escotilha da minha cabine, os dedos pressionados contra o
vidro como se eu fosse uma criança encantada diante da vitrine de uma
padaria, desejando alfajores e um balde de dulce de leche. Não se via uma só
nuvem no céu azul sobre o porto de Alexandria. Uma longa plataforma de
madeira se estendia, indo ao encontro do navio, como uma mão oferecida
em cumprimento. A prancha de desembarque havia sido acoplada, e vários
membros da tripulação entravam e saíam do porão do navio a vapor car-
regando baús de couro, caixas redondas de chapéus e caixotes de madeira.
Eu havia chegado à África.
Depois de um mês navegando, percorrendo milhas de correntes oceâ-
nicas temperamentais, eu havia chegado. Vários quilos mais leve – o mar
me odiava – e após inúmeras noites me revirando na cama, chorando no
travesseiro e jogando os mesmos jogos de cartas com meus companheiros
de viagem, eu estava ali de verdade.
Egito.
O país onde meus pais tinham vivido por dezessete anos.
O país onde morreram.
Girei o anel dourado num tique nervoso. Havia meses que ele não saía do
meu dedo. Ter o item comigo me dava a sensação de que eu tinha convidado
meus pais para irem comigo na viagem. Pensei que sentiria a presença deles
no momento que visse o litoral. Uma profunda sensação de conexão.
No entanto, não foi o que aconteceu. Não de imediato.

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A impaciência me afastou da janela, me forçou a caminhar de um lado
para outro, meus braços se agitando loucamente. Eu andava para cima
e para baixo, cobrindo cada centímetro da minha imponente cabine. Uma
energia nervosa circulava ao meu redor como um furacão. Empurrei com
a bota meus baús cheios, tirando-os do caminho e abrindo uma passagem
mais ampla. Minha bolsa de seda repousava sobre a cama estreita e, ao
passar marchando, eu a puxei em minha direção para pegar a carta do meu
tio mais uma vez.
A segunda frase ainda me matava, ainda fazia meus olhos arderem, mas
me forcei a ler o texto todo. O balanço sutil do navio dificultava a leitu-
ra, mas, apesar do súbito solavanco no estômago, segurei o bilhete e o reli
pela centésima vez, tomando cuidado para não rasgar sem querer o papel
ao meio.

Julho de 1884

Minha querida Inez,


Mal sei por onde começar, ou como escrever o que preciso.
Seus pais desapareceram no deserto e foram declarados mortos.
Procuramos durante semanas e não encontramos rastro algum
deles.
Eu sinto muito. Mais do que jamais poderei expressar. Saiba
que estou à sua disposição e, caso precise de alguma coisa, estou
a apenas uma carta de distância. Acho que o melhor é você rea-
lizar o funeral deles em Buenos Aires sem demora, de modo que
possa visitá-los sempre que desejar. Conhecendo minha irmã,
não tenho dúvidas de que o espírito dela está de volta com você
em sua terra natal.
Como você na certa já deve saber, agora sou seu tutor e ad-
ministrador dos seus bens e da sua herança. Como você já tem
18 anos e, pelo que todos dizem, é uma jovem brilhante, enviei
uma carta ao Banco Nacional da Argentina autorizando você a
retirar fundos conforme sua necessidade – dentro do razoável.
Apenas você e eu teremos acesso ao dinheiro, Inez.
Tenha muito cuidado com aqueles em quem confia. Tomei

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a liberdade de informar ao advogado da família sobre as cir-
cunstâncias presentes e sugiro que o procure caso precise de
algo. Se me permite, recomendo que contrate um assistente
para supervisionar a casa, de modo que você tenha tempo e
espaço para chorar por tal terrível perda. Perdoe-me por esta
notícia, e realmente lamento não estar aí com você para com-
partilhar sua dor.
Por favor, avise se precisar de alguma coisa.

Seu tio,
Ricardo Marqués

Desabei na cama, tombando para trás de um jeito nada feminino, ouvin-


do o tom de bronca de tia Lorena ecoar em meus ouvidos. Uma dama deve
sempre ser uma dama, mesmo quando ninguém está olhando. Então nada de
se largar pelos cantos nem xingar, Inez. Fechei os olhos, afastando a culpa que
sentia desde que deixara a propriedade. Aquele sentimento era uma com-
panhia insistente; por mais que eu viajasse, ele não podia ser esmagado ou
sufocado. Nem tia Lorena nem minhas primas sabiam dos meus planos de
ir embora da Argentina. Dava para imaginar a cara delas ao lerem o bilhete
que eu deixara em meu quarto.
A carta do meu tio tinha destroçado meu coração. Tenho certeza de que
a minha havia partido o delas.
Sem acompanhante. Eu mal havia completado 19 anos – celebrados no
meu quarto, enquanto chorava desconsolada até Amaranta bater na parede
com força – e já estava viajando sozinha sem guia ou qualquer experiência,
nem mesmo uma criada pessoal para lidar com os aspectos mais complica-
dos do meu guarda-roupa. Agora já estava feito. Mas aquilo não importava.
Eu estava ali para descobrir os detalhes do desaparecimento dos meus pais.
Estava ali para saber por que meu tio não os protegera, e por que tinham ido
para o deserto sozinhos. Meu pai era distraído, é verdade, mas não impru-
dente a ponto de levar minha mãe para uma aventura sem os suprimentos
necessários.
Mordi o lábio inferior. Aquilo não era de todo verdade. Ele podia ser
inconsequente, sim, sobretudo quando estava correndo de um lugar para

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outro. Apesar disso, havia lacunas no que eu sabia, e eu odiava perguntas
sem resposta. Eram uma porta aberta que eu queria fechar atrás de mim.
Esperava que meu plano desse certo.
Viajar sozinha era um aprendizado. Descobri que não gostava de comer
sozinha, ler no navio me deixava enjoada e eu era péssima no carteado. Mas
também descobri que tinha um talento para fazer amigos. A maioria deles
eram casais mais velhos, viajando para o Egito por causa do clima agradável.
No início, se mostravam hesitantes por eu estar viajando sozinha, mas eu
estava preparada para aquilo.
Fingia ser uma viúva, me vestindo de acordo.
Minha história pregressa foi ficando mais elaborada a cada dia. Casada
muito jovem com um caballero bem mais velho que poderia ser meu avô.
Ao fim da primeira semana, eu havia conquistado a simpatia da maioria das
mulheres, e os cavalheiros aprovavam meu desejo de ampliar os horizontes
viajando de férias para o exterior.
Olhei pela escotilha e fiz uma careta. Com um movimento impaciente
da cabeça, abri a porta da cabine e olhei para os dois lados do corredor.
Nenhum progresso ainda no desembarque. Fechei a porta e voltei a andar.
Meus pensamentos se voltaram para meu tio.
Eu lhe enviara uma carta escrita às pressas depois de comprar a passa-
gem. Sem dúvida, ele estaria esperando por mim no cais, impaciente para
me ver. Em questão de horas, estaríamos reunidos após dez anos. Uma dé-
cada sem nos falar. Ah, sim, eu incluíra desenhos para ele em algumas car-
tas que enviara aos meus pais, mas na época estava apenas sendo educada.
Além disso, ele nunca me mandava nada. Nem uma carta, nem um cartão
de aniversário, nem um pequeno objeto enfiado na bagagem dos meus pais.
Éramos estranhos, familiares apenas no nome e no sangue. Eu mal me lem-
brava da visita dele a Buenos Aires, mas isso não importava, porque minha
mãe se certificara de que eu nunca esquecesse o irmão favorito dela – e
também o único.
Mamá e Papá eram fantásticos contadores de histórias, fiando contos
com palavras, tecendo obras-primas envolventes e inesquecíveis. Tio Ri-
cardo parecia uma pessoa exuberante. Uma montanha de homem, sempre
carregando livros e ajustando os óculos de aros finos, os olhos cor de avelã
fixos no horizonte, surrando mais um par de botas. Ele era alto e robusto,

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o que não combinava com suas paixões acadêmicas e sua busca por conhe-
cimento. Ele florescia na academia, inteiramente à vontade em uma biblio-
teca, mas era combativo o suficiente para sobreviver a uma briga de bar.
Não que eu soubesse o mínimo que fosse sobre brigas de bar ou como
sobreviver a elas.
Meu tio vivia para a arqueologia. Sua obsessão começara em Quilmes,
no norte da Argentina, cavando com a equipe e manejando a pá quando
tinha minha idade. Depois de aprender tudo que podia, ele partiu para o
Egito. Foi lá que se apaixonou e se casou com uma egípcia chamada Zazi
– que, após apenas três anos de matrimônio, morreu no parto junto com a
bebê. Ele nunca mais se casou ou voltou à Argentina, exceto por uma única
visita. O que eu não entendia era o que ele de fato fazia. Era um caçador de
tesouros? Um estudioso da história egípcia? Um amante da areia e de dias
abrasadores sob o sol?
Talvez fosse um pouco de tudo isso.
A única coisa que eu tinha de fato era aquela carta. Duas vezes ele escre-
vera que, se eu precisasse de alguma coisa, bastava lhe dizer.
Bem, eu precisava de uma coisa, tio Ricardo.
De respostas.

Tio Ricardo estava atrasado.


Eu me encontrava no cais, o nariz cheio do ar salgado do mar. Lá do alto,
o sol desferia um ataque incandescente, o calor me tirando o fôlego. Meu
relógio de bolso dizia que eu estava esperando fazia duas horas. Meus baús
jaziam empilhados de forma precária ao meu lado enquanto eu procurava
um rosto que se assemelhasse ao da minha mãe. Mamá me dizia que a barba
do irmão havia fugido do controle, espessa e grisalha, longa demais para a
sociedade civilizada.
Pessoas se aglomeravam à minha volta logo após o desembarque, ta-
garelando alto, empolgadas por estar na terra das majestosas pirâmides e
do grandioso rio Nilo, que divide o Egito em dois. Mas eu não sentia nada
daquilo, concentrada demais nos meus pés doloridos, excessivamente preo-
cupada com minha situação.

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O pânico começou a abrir uma fenda nos meus nervos.
Eu não podia ficar ali por muito mais tempo. A temperatura esfriava
à medida que o sol avançava pelo céu, a brisa que vinha da água era en-
regelante, e eu ainda tinha muitos quilômetros pela frente. Até onde me
lembrava, meus pais embarcavam em um trem em Alexandria e, cerca de
quatro horas depois, chegavam ao Cairo. De lá, contratavam um traslado
até o Shepheard’s Hotel.
Meu olhar pousou em minha bagagem. Comecei a pensar no que pode-
ria ou não deixar para trás. Lamentavelmente, eu não era forte o suficiente
para carregar tudo. Talvez pudesse encontrar alguém para ajudar, mas eu
não conhecia o idioma além de algumas frases soltas, nenhuma das quais
equivalia a Olá, você pode me ajudar com todos os meus pertences, por favor?
Gotas de suor se formavam em minha testa, e eu ia ficando cada vez mais
inquieta. Meu vestido de viagem azul-marinho tinha várias camadas, e so-
bre ele eu usava um casaco de botões duplos que parecia um punho de ferro
ao redor das costelas. Ousei desabotoar o casaco, sabendo que minha mãe
teria suportado aquela provação com uma firmeza silenciosa. O barulho
ao meu redor aumentava: pessoas tagarelando, cumprimentando parentes
e amigos, o som do mar batendo na costa, a buzina dos navios soando no
volume máximo. Em meio à cacofonia, alguém chamou meu nome.
A voz atravessou o pandemônio, um barítono profundo.
Um jovem se aproximava a passos largos e descontraídos. Ele parou à
minha frente, as mãos enfiadas nos bolsos da calça cáqui, dando a impres-
são de alguém que estava passeando pelo cais, admirando a vista do mar e
provavelmente assobiando. A camisa azul-clara estava por dentro da calça,
um pouco amarrotada sob os suspensórios com pontas de couro. Suas bo-
tas iam até a metade da panturrilha; dava para ver que haviam percorrido
muitos quilômetros e estavam cheias de terra, o couro marrom agora cinza.
Os olhos do estranho encontraram os meus, as linhas que ladeavam sua
boca repuxadas. Sua postura era descontraída, os modos, despreocupa-
dos, mas, observando melhor, notei a tensão que ele deixava transparecer
no maxilar cerrado. Algo o incomodava, mas não queria que ninguém
percebesse.
Cataloguei o restante de seus traços. Um nariz aristocrático sob sobran-
celhas retas e olhos azuis, do mesmo tom da camisa. Lábios cheios forman-

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do um arco perfeito que se estendia em um sorriso torto, um contraponto
à linha pronunciada do maxilar. Cabelo espesso e despenteado, oscilando
entre o ruivo e o castanho. Com impaciência, ele os afastou da testa.
– Olá! Señorita Olivera? Sobrinha de Ricardo Marqués?
– Eu mesma – respondi em inglês.
Seu hálito cheirava de leve a bebida alcoólica. Franzi o nariz.
– Graças a Deus – disse ele. – Você é a quarta mulher a quem pergunto.
– Sua atenção se voltou para minha bagagem, e ele soltou um assobio baixo.
– Espero sinceramente que não tenha esquecido nada.
Ele não parecia nem um pouco sincero.
Estreitei o olhar.
– E quem é você, exatamente?
– Trabalho para o seu tio.
Olhei atrás dele, esperando avistar meu parente misterioso. Não havia
ninguém parecido com meu tio por perto.
– Achei que ele viria me encontrar aqui.
O rapaz negou com a cabeça.
– Receio que não.
Levou um momento para que eu absorvesse as palavras. Enfim veio a
compreensão, e o sangue subiu às minhas bochechas. Tio Ricardo não se
dera ao trabalho de aparecer. Sua única sobrinha havia viajado por semanas
e sobrevivido às repetidas provações do enjoo marítimo. E ele enviara um
estranho para me receber.
Um estranho que estava atrasado.
E, como seu sotaque deixava claro, era britânico.
Apontei na direção dos prédios desmoronados, os montes de pedras ir-
regulares, os construtores tentando restaurar o porto depois do que a Grã-
-Bretanha havia feito.
– Obra dos seus compatriotas. Suponho que se orgulhe do triunfo deles
– acrescentei, amarga.
Ele piscou.
– Como?
– Você é inglês – falei, indiferente.
O garoto ergueu uma sobrancelha.
– O sotaque – expliquei.

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– Correto – replicou ele, as linhas no canto da boca se aprofundando. –
Você sempre presume conhecer a mente e os sentimentos de um completo
estranho?
– Por que meu tio não está aqui? – contra-ataquei.
O jovem deu de ombros.
– Ele tinha uma reunião com um agente de antiguidades. Não podia ser
adiada, mas ele mandou suas sinceras desculpas.
Tentei evitar que o sarcasmo manchasse minhas palavras, mas falhei:
– Ah, tudo bem, já que mandou suas sinceras desculpas. Mas ele poderia
ter tido a decência de ao menos mandá-las pontualmente.
O homem contorceu os lábios. Sua mão deslizou pelo cabelo espesso,
mais uma vez afastando as mechas despenteadas da testa. O gesto o fez pa-
recer infantil, mas apenas por um momento fugaz. Seus ombros eram largos
demais, as mãos muito calosas e ásperas para refutar a aparência de rufião.
Parecia ser do tipo que sobreviveria a uma briga de bar.
– Bem, nem tudo está perdido – disse ele, apontando para minha baga-
gem. – Agora, estou a seu serviço.
– Que gentil – rebati a contragosto, ainda sem superar a decepção pela
ausência do meu tio. Então ele não queria me ver?
– Não sou do tipo gentil – disse ele, num tom lânguido. – Vamos embo-
ra? Tenho uma carruagem esperando.
– Vamos direto para o hotel? O Shepheard’s, não é? É lá que eles… – mi-
nha voz falhou – … sempre ficavam.
A expressão do estranho mudou para algo mais cuidadosamente neutro.
Notei que, sob os cílios densos, seus olhos estavam um pouco avermelhados.
– Na verdade, somente eu vou para o Cairo. Reservei para você uma pas-
sagem de volta para casa no vapor do qual acabou de desembarcar.
Pisquei, certa de que tinha ouvido errado.
– ¿Perdón?
– Foi por isso que me atrasei. Havia uma fila infernal no guichê de pas-
sagens. – Diante do meu olhar vazio, ele continuou: – Estou aqui para des-
pachá-la de volta – disse ele, parecendo quase gentil. Ou assim teria sido se
também não estivesse tentando parecer severo. – E para garantir que você
esteja a bordo antes da partida.
Cada palavra caía entre nós em pancadas impiedosas. Eu não conseguia

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compreender o significado delas. Talvez meus ouvidos estivessem cheios
de água do mar.
– No te entiendo.
– Seu tio – começou ele devagar, como se eu tivesse 5 anos – gostaria
que você voltasse para a Argentina. Tenho uma passagem com seu nome.
Mas eu havia acabado de chegar. Como ele poderia me mandar embo-
ra tão depressa? Minha confusão ferveu até transbordar, transformada em
raiva.
– Miércoles.
O estranho inclinou a cabeça e sorriu para mim, achando graça.
– Isso não significa quarta-feira?
Assenti. Em espanhol, soava semelhante a mierda, palavra imprópria
que eu não podia falar. Mamá fazia meu pai usar aquele arremedo quando
eu estava por perto.
– Bem, precisamos acomodar você no navio – disse ele, remexendo nos
bolsos. Tirou dele um bilhete amassado e me entregou. – Não precisa me
reembolsar.
– Não precisa… – repeti estupidamente, sacudindo a cabeça para de-
sanuviar os pensamentos. – Você não me disse seu nome. – Outra coisa me
ocorreu. – Você entende espanhol.
– Eu disse que trabalho para seu tio, não disse? – Seu sorriso retornou,
encantadoramente juvenil e destoante da constituição robusta. Ele parecia
capaz de me matar com uma só mão.
Eu não estava nem um pouco encantada.
– Pois bem – falei em espanhol. – Então vai entender quando eu disser
que não vou embora do Egito. Se vamos viajar juntos, preciso saber seu
nome.
– Você vai embarcar de novo nos próximos dez minutos. Uma apresen-
tação formal parece desnecessária.
– Ah – retruquei, fria. – Pensando bem, parece que você não entende
espanhol. Eu não vou entrar naquele navio.
O estranho não abandonou o sorriso, mostrando os dentes.
– Por favor, não me faça obrigá-la.
Meu sangue gelou.
– Você não faria isso.

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– Ah, acha que não? Estou me sentindo otimista – replicou ele, o desdém
gotejando de sua voz.
Ele deu um passo à frente e tentou me alcançar, os dedos roçando no
meu casaco antes que eu me esquivasse.
– Se tocar em mim de novo, vou gritar. E vão me ouvir da Europa, juro.
– Acredito em você.
Ele deu meia-volta e se afastou, indo até uma área onde uma dúzia de
carrinhos vazios esperava. Puxou um deles e, em seguida, começou a empi-
lhar meus baús, sem meu consentimento. Para um homem que claramente
tinha bebido, ele se movia com uma graça preguiçosa que me lembrava um
gato indolente. Manejava os baús como se estivessem vazios, e não cheios
com uma dúzia de blocos de desenho, vários diários em branco e tubos
novos de tinta. Sem falar nas roupas e sapatos para várias semanas.
Turistas usando chapéus com penas e sapatos de couro caros nos rodea-
vam, observando com curiosidade. Ocorreu-me que deviam ter presencia-
do a tensão entre mim e aquele estranho irritante.
Ele olhou para trás, me fitando e arqueando a sobrancelha ruiva.
Não o impedi porque seria mais fácil transportar minhas coisas naquele
carrinho, mas, quando ele começou a arrastar toda a minha bagagem para
o cais, indo direto para a fila de embarque, gritei:
– ¡Ladrón! Ladrão! Socorro! Ele está roubando minhas coisas!
Os turistas bem-vestidos olharam para mim alarmados, afastando os
filhos do espetáculo. Eu os olhava, boquiaberta, esperando que alguém me
acudisse derrubando o estranho no chão.
A ajuda não veio.

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