Labirinto - Jim Henson
Labirinto - Jim Henson
Labirinto - Jim Henson
FOLHA DE ROSTO
SUMÁRIO
A CORUJA BRANCA
Capítulo I.
NANICO
Capítulo III.
QUAL É QUAL
Capítulo IV.
LEMBRANÇAS RUINS
Capítulo V.
O SENTIDO DA VIDA
Capítulo VII.
JANELAS NO DESERTO
Capítulo XI.
UMA MORDIDA
Capítulo XIII.
APARÊNCIAS
Capítulo XVIII.
BOA NOITE
Capítulo XIX.
VOLTAS E REVIRAVOLTAS
As primeiras ideias, 1983
Era tão fácil aprender poesia de cor. Ele nunca sentia qualquer
dificuldade em lembrar aquelas linhas sempre que abria a caixinha de
música. Na verdade, pensava ela, é mais fácil lembrar-se delas que
esquecê-las. Então, por que estava tendo tanto trabalho para aprender a
fala de O Labirinto? Era só uma brincadeira, um jogo. Ninguém
esperava que ela ensaiasse a fala, não havia plateia, exceto Merlin, para
julgar sua performance. Devia ser moleza. Ela franziu o rosto. Como ela
podia ter esperanças de um dia subir aos palcos se não conseguia
lembrar uma fala?
A garota tentou novamente. “Enfrentando perigos indizíveis e
dificuldades sem conta, lutei para percorrer o caminho até aqui, ao
castelo para além da Cidade dos Duendes, para levar de volta a criança
que você roubou...” Ela hesitou, os olhos no pôster da mãe nos braços de
Jeremy, e decidiu que seria bom se preparar para fazer aquilo. Se você
quer mergulhar em um papel, dissera-lhe a mãe, tem de ter os adereços
corretos. Roupas, maquiagem, perucas: elas eram mais úteis ao ator que
à plateia, pois o ajudavam a fugir de sua própria vida e encontrar o
caminho para entrar no papel, como dizia Jeremy. E, após cada atuação,
você tira tudo aquilo, e começa do zero. Todo dia era um recomeço.
Você podia se reinventar. Sarah sacou um batom da penteadeira, passou
um pouco dele nos lábios e os esfregou um no outro, como a mãe fazia.
Com o rosto perto do espelho, ela aplicou um pouco mais da pintura nos
cantos da boca.
Ouviu-se uma batida na porta, e a voz do pai soou lá fora. “Sarah?
Posso falar com você?”
Ainda fitando o espelho, ela respondeu: “Não há nada sobre o que
conversar”.
A garota aguardou. Ele não entraria a menos que ela o convidasse.
Ficou imaginando o pai de pé ali, rosto franzido, esfregando a testa,
tentando pensar no que deveria dizer em seguida, algo firme o suficiente
para agradar aquela mulher, mas amigável o bastante para encorajar a
filha.
“É melhor se apressar”, disse Sarah, “se não quiser perder a
apresentação.”
“Toby já jantou”, disse o pai, “e está no berço agora. Por favor, só
cuide para que ele durma direitinho. Estaremos de volta lá pela meia-
noite.”
Mais uma pausa, seguida do som de passos que se afastavam com
uma lentidão calculada, a fim de expressar uma mistura de preocupação
e resignação. Ele havia feito tudo o que se podia esperar dele.
Sarah virou-se e lançou um olhar de acusação à porta fechada. “Você
queria mesmo falar comigo, não é?”, murmurou. “Praticamente botou a
porta abaixo.” Antigamente, ele não teria saído sem lhe dar um beijo.
Ela fungou. As coisas haviam realmente mudado naquela casa.
Ela colocou o batom no bolso e limpou os lábios com um lenço de
papel. Ao jogá-lo no cesto, algo chamou sua atenção. Mais
precisamente, algo que não estava lá chamou sua atenção. Lancelot não
estava lá.
A garota começou a vasculhar depressa a prateleira de brinquedos,
bonecas e bichinhos de pelúcia, cães, macacos, soldados e palhaços,
embora soubesse que seria inútil. Se o ursinho de pelúcia estivesse de
fato ali, estaria em seu devido lugar. Ele havia sumido. A ordem do
quarto havia sido violada. O rosto de Sarah queimava.
Alguém esteve em meu quarto, pensou ela. Eu odeio aquela mulher.
Lá fora, o táxi partia. Sarah o ouviu e correu para a janela.
“Eu odeio você!”, gritou.
Ninguém a ouviu, exceto Merlin, e ele não podia fazer nada além do
que já estava fazendo: latir ruidosamente, na garagem.
Ela sabia onde encontraria Lancelot. Toby já tinha tudo que um bebê
podia desejar, muito mais do que Sarah jamais tivera. E ainda assim, ele
ganhava cada vez mais, todos os dias, sem qualquer questionamento.
Furiosa, a garota entrou correndo no quarto do bebê. O ursinho estava
espichado no tapete, apenas jogado ali, de qualquer jeito. Sarah pegou
Lancelot e o apertou contra o corpo. Toby, satisfeito com o leitinho
quente que havia tomado, estava quase adormecido no berço, mas a
entrada de Sarah o despertou.
Ela encarou o bebê e disse, com raiva. “Eu odeio aquela mulher. E
odeio você.”
Toby começou a chorar. Sarah estremeceu e apertou Lancelot ainda
mais junto de si.
“Ah”, choramingou ela. “Ah, alguém... me salve. Alguém me tire
deste lugar horrível.”
Toby estava aos berros agora. Seu rosto estava vermelho. Sarah
choramingava. Merlin latia lá fora. A tempestade produziu um
relâmpago bem em cima de casa, e um trovão retumbou, sacudindo as
janelas nas esquadrias. Xícaras dançavam no armário da cozinha.
“Alguém me salve”, implorou Sarah.
“Ouçam!”, disse um duende, abrindo apenas um dos olhos.
Ao redor dele, em cima dele, embaixo dele, o ninho de duendes
agitou-se, sonolento. Abriu-se outro olho, e outro, e mais outro: eram
todos olhos ensandecidos, vermelhos e atentos. Alguns dos duendes
tinham chifres, alguns tinham dentes pontiagudos, outros tinham dedos
como garras; alguns vestiam restos de armadura, um elmo, um gorjal;
mas todos tinham pés escamosos e olhos ameaçadores. Eles dormiam
amontoados em uma pilha desorganizada, em seu sujo aposento no
castelo do Rei dos Duendes. Seus olhos continuaram a se abrir, e as
orelhas ficavam em pé.
“Tudo bem, fique quietinho agora, shhh.” Sarah tentava acalmar
tanto a si mesma como ao irmãozinho. “O que você quer? Hein? Quer
uma história? Tudo bem.” Sem pensar um instante sequer, ela tomou a
linha da narrativa de O Labirinto. “Era uma vez, uma linda garota cuja
madrasta sempre a obrigava a ficar com o bebê. O bebê era um menino
mimado, que queria tudo para si, e a garota era praticamente uma
escrava. Mas o que ninguém sabia é que o Rei dos Duendes havia se
apaixonado por ela e lhe dado certos poderes.”
No castelo, os duendes tinham os olhos arregalados. Eles prestavam
total atenção.
Outro relâmpago luziu e mais um trovão retumbou, mas Sarah e
Toby já estavam mais calmos. “Certa noite”, prosseguiu Sarah, “em que
o bebê estava sendo particularmente horrível com ela, a garota chamou
os duendes para ajudá-la. E eles disseram: ‘Diga as palavras certas, e
nós levaremos o bebê embora, para a Cidade dos Duendes, e você estará
livre’. Essas foram as palavras que eles disseram à garota.”
Os duendes assentiram, animados.
Toby já quase adormecia outra vez; restava apenas um leve protesto
em sua respiração. Sarah, desfrutando sua própria invenção, inclinou-se
mais para perto do irmãozinho, sobre a lateral do berço. Ela mantinha
sua plateia enfeitiçada. Lancelot estava em seus braços.
“Mas a garota sabia”, continuou Sarah, “que o Rei dos Duendes
prenderia o bebê em seu castelo para todo o sempre, e o transformaria
em um duende. E, assim, ela sofreu em silêncio, por um mês inteirinho...
até que, uma noite, cansada de um dia de escravidão nos serviços
domésticos, e magoada além da conta pelas duras palavras de ingratidão
da madrasta, ela não conseguiu aguentar mais.”
A essa altura, inclinada sobre o berço, Sarah estava tão perto de
Toby que sussurrava em sua orelhinha rosada. De repente, ele se virou,
abriu os olhos e se deparou com os olhos da irmã a apenas alguns
centímetros dos seus. Houve um instante de silêncio e, então, Toby
escancarou a boca e começou a berrar, um choro alto e persistente.
“Ah!”, bufou Sarah, irritada, aprumando-se novamente.
O trovão ecoou e Merlin latiu o mais alto que pôde.
Sarah suspirou, franziu o rosto, deu de ombros e decidiu que não
havia outro jeito. Ela tirou Toby do berço e caminhou pelo quarto,
embalando-o nos braços, junto com Lancelot. A pequena lâmpada ao
lado da cama lançava as sombras dos dois, enormes e tremeluzentes, na
parede. “Tudo bem”, disse ela, “tudo bem. Agora chega. Nana, nenê, e
todo aquele blá-blá-blá. Ora, vamos, Toby, pare com isso.”
O bebê não iria parar apenas por estar sendo embalado. Ele sentia
que tinha uma séria reclamação a fazer.
“Toby”, disse a irmã, com aspereza, “fique quieto, tá bom? Por
favor? Ou...” Ela baixou a voz. “Ou, então, vou... vou dizer as palavras.”
Ela ergueu os olhos depressa para as sombras na parede e se dirigiu a
elas teatralmente. “Não! Não! Não devo. Não devo. Não devo dizer...
‘Eu desejo... eu desejo...’”
“Ouçam”, disse o duende outra vez.
Todos os olhos reluzentes do ninho estavam abertos agora, e todos
os ouvidos prestavam atenção.
Um segundo duende falou. “Ela vai dizer as palavras!”
“Dizer o quê?”, perguntou um duende boboca.
“Quieto!” O primeiro duende fazia esforço para ouvir Sarah.
“Cale a boca você!” disse o duende boboca.
No rebuliço, o primeiro duende pensou que enlouqueceria, tentando
ouvir. “Shhh! Shhhh!” Ele cobriu a boca do duende boboca com as
mãos.
O segundo duende chiou: “CALADO!”, e começou a bater naqueles
que estavam mais perto dele.
“Ouçam”, o primeiro duende exortou os demais. “Ela vai dizer as
palavras.”
O restante deles conseguiu fazer silêncio. Eles ouviam Sarah
atentamente.
Ela estava ereta, aprumada. Os berros de Toby haviam aumentado de
tal forma que agora, com o rosto vermelho, ele mal conseguia respirar.
Seu corpinho estava tenso nos braços de Sarah, tamanho o esforço que
fazia. Lancelot caíra ao chão novamente. Sarah fechou os olhos e
estremeceu. “Não aguento mais”, exclamou a garota, e segurou o bebê
aos berros acima de sua cabeça, como se o oferecesse em sacrifício. Ela
começou a recitar:
Sarah vagueava por corredores de tijolos. Seus muros ainda eram altos e
assustadores, mas ao menos não se estendiam aos confins do tempo e do
espaço, e por vezes surgia um lance de escadas: alguma coisa diferente,
para variar. Ela havia encontrado uma maneira prática de garantir que
não ficaria andando em círculos sempre que chegasse a uma bifurcação
ou a uma curva e decidisse para onde ir: com o batom que havia
colocado no bolso, em casa, ela desenhava uma seta em um tijolo a cada
entroncamento, para mostrar de onde ela tinha vindo. E sempre que
guardava o batom e disparava pelo novo corredor, alguma criaturazinha
erguia o tijolo marcado, virava-o de cabeça para baixo, e o recolocava,
de modo a esconder a seta.
Após ter desenhado já dezoito setas, um pedaço do batom quebrou
enquanto ela marcava a décima nona. Decidida a manter-se calma, ela
girou o tubo para expor um pouco mais do batom e continuou seguindo
o caminho escolhido, que subia alguns degraus e dava para uma câmara.
Para além da extremidade do caminho, às suas costas, passou um grupo
barulhento de duendes, mas os olhos de Sarah estavam fixos no que
estava à sua frente, e ela não os viu.
A câmara era um beco sem saída. Ela deu uma espiada em cada
nicho e atrás dos esteios da parede, mas definitivamente não havia como
sair dali. A garota deu de ombros e voltou por onde viera, até a décima
nona seta. Quando chegou à curva, ela procurou pela seta, mas não
conseguiu encontrá-la. Que esquisito, pensou. Tenho certeza de que
estava bem aqui, nesta curva, naquele tijolo ali. Não havia marca
nenhuma nos tijolos. Ela franziu o rosto e olhou em volta. No chão, viu
o pedaço quebrado de batom. Olhou novamente, com mais atenção, e
mesmo assim não conseguiu encontrar seta alguma. Isso provava tudo.
Algo suspeito estava acontecendo. A garota jogou o restante do batom
no chão. “Alguém está apagando minhas marcas”, disse, em voz alta,
certa de que o culpado devia estar perto o bastante para ouvi-la. “Que
lugar horrível é este! Não é justo!”
“É isso mesmo”, disse uma voz às suas costas. “Não é justo!”
Ela deu um pulo e se virou depressa.
Às suas costas, na câmara que antes fora um beco sem saída, ela
agora via duas portas talhadas no muro, e um guarda postado diante de
cada uma delas. Ao menos a garota pensou que deviam ser guardas, pois
estavam ali de pé, firmes, e usavam armaduras e brasões. Mas, ao
examiná-los de perto, ela não teve tanta certeza. Na verdade, eles eram
um tanto cômicos. Seus escudos enormes, curiosamente ornamentados
com figuras geométricas, rolos de papiro e símbolos, pareciam
muitíssimo pesados, o que explicaria a postura de pernas bem abertas
em que cada um deles se mantinha. Pobrezinhos, pensou Sarah, eles têm
de permanecer o tempo inteiro assim só para ficar aprumados. Aquele
que estava à sua esquerda tinha olhos inquietos, que se moviam em
todas as direções, ali, debaixo do elmo, e ela disse a si mesma que o
chamaria Theodoro, igual a um tio que tinha olhos agitados daquele
jeito. Mas, então, ela refletiu que seu gêmeo não tão idêntico (a garota
simplesmente não conseguia ver os olhos do outro porque seu elmo era
grande demais) devia, portanto, ser chamado Deodoro (D, de direita,
percebe?), e mentalmente corrigiu a ortografia do nome do primeiro para
Teodoro (não que isso importasse para alguém, afinal, ela não escreveria
aqueles nomes).
Tendo resolvido, em sua mente, a questão dos nomes, a garota notou
o fato mais incrível de todos: da parte de baixo de cada escudo
despontava outro rosto, de cabeça para baixo, mais ou menos como um
valete de espadas mal desenhado. As personagens de ponta-cabeça, que
ela batizou de Jim e Tim (o primeiro par em rima que lhe veio à mente),
pareciam penduradas em sua posição desconfortável pelas grandes mãos
nodosas e cheias de pontas que ela podia ver segurando a base dos
escudos. Elas deviam acrescentar ainda mais peso ao fardo sob o qual
Teodoro e Deodoro tentavam se manter equilibrados.
Foi Jim de Ponta-Cabeça quem fez a garota estremecer ao se dirigir a
ela. Ele acrescentou: “E isso é apenas a metade dele”.
“Metade de quê?”, perguntou Sarah, curvando-se e tombando a
cabeça para dar uma boa olhada no rosto de Jim. Ela sentia que teria
sido um pouco rude permanecer aprumada. Era preciso se ajustar às
pessoas que se encontra, mesmo aqui.
“Metade do dobro”, respondeu Jim.
“O dobro de quê?” Sarah já estava irritada.
“O dobro da metade disso.”
“Olhe.” Sarah apontou um dedo para a parede da câmara, às costas
dos guardas, e disse: “Há um instante isso aqui era um beco sem saída”.
“Não.” Era Tim de Ponta-Cabeça quem falava agora. “Aquilo é um
beco sem saída, atrás de você.”
Ela endireitou o corpo e deu meia-volta. Ele tinha razão. O caminho
pelo qual ela chegara até ali estava agora de fato obstruído por um muro
sólido. “Ah!”, exclamou a garota, indignada. “Não é justo. Este lugar
fica mudando. O que se espera que eu faça?”
“Depende de quem está esperando”, disse Jim.
“Não metade”, concordou Tim.
“Tente uma das portas”, sugeriu Jim.
“Uma delas leva ao castelo”, informou Tim, com a voz alegre, “e a
outra leva à morte certa.”
Sarah ofegou. “Qual é qual?”
Jim meneou a cabeça invertida. “Não podemos dizer.”
“Por que não?”
“Não sabemos!”, bradou Jim, triunfalmente.
“Mas eles sabem.” Tim indicou Teodoro e Deodoro com um aceno
de cabeça confiante. Fazer isso de cabeça para baixo deve ter exigido
esforço, pensou Sarah.
“Então, vou perguntar a eles”, declarou a garota.
Porém, antes que pudesse dizer mais alguma coisa, Deodoro já
estava falando, bem devagar, com a voz pedante: “Ah! Não, você não
pode perguntar a nós. Você pode perguntar a apenas um de nós.” Ele
parecia ter certa dificuldade para pronunciar as palavras, especialmente
os P’s e os T’s.
“Está nas regras”, disse Teodoro, com a voz rápida e zombeteira,
remexendo os olhos inquietos. Ele batia o dedo sobre algumas cifras em
seu escudo, que seriam presumivelmente as regras. “E devo alertá-la de
que um de nós sempre diz a verdade, e um de nós sempre mente.
Também é uma regra.” Ele lançou uma olhadela para Deodoro. “Ele
sempre mente.”
“Não ouça o que ele diz”, tornou Deodoro, categórico. “Ele está
mentindo. Sou eu quem fala a verdade.”
“Isso é mentira!”, retorquiu Teodoro.
Jim e Tim davam risadinhas atrás de seus escudos, em atitude
bastante insolente, pensou Sarah. “Viu”, disse-lhe Tim, “ainda que você
pergunte a um deles, não saberá se a resposta que receber é verdadeira
ou falsa.”
“Não, espere um minuto”, disse Sarah. “Conheço essa charada. Já a
ouvi antes, mas nunca consegui descobrir a resposta.”
Ela ouviu Deodoro murmurando consigo mesmo: “Ele está
mentindo”.
“Ele está mentindo”, tornou Teodoro.
Sarah coçava a testa. “Tem uma pergunta que posso fazer e não
importa a qual deles eu faça.” Ela estalou a língua, impaciente consigo
mesma. “Ah, o que poderia ser?”
“Ora, vamos logo”, disse Tim, irritado. “Não podemos ficar aqui o
dia todo.”
“O que quer dizer com ‘não podemos’?”, tornou Jim, abruptamente.
“Este é o nosso trabalho. Somos guardiões dos portões.”
“Ah, é. Esqueci.”
“Fiquem quietos”, mandou Sarah. “Não consigo pensar.”
“Eu digo a verdade”, declarou Deodoro, pomposo, de sob seu elmo.
“Uii!”, respondeu Teodoro, mecanicamente. “Que mentira!”
Sarah tentava encontrar por si mesma uma solução lógica para a
charada. Pensativa, com um dedo em riste, assim ela raciocinava: “A
primeira coisa a fazer é descobrir qual deles é o mentiroso... mas, não,
não tem como fazer isso. Então... a próxima coisa a fazer é encontrar
uma pergunta que possa ser feita a qualquer um deles... e que consiga a
mesma resposta”.
“Ah, essa é boa”, ria-se Tim. “Um de nós sempre diz a verdade e o
outro sempre mente, e você quer encontrar uma pergunta a que nós dois
daremos a mesma resposta? Ah, isso nunca vai acontecer. Essa é boa,
ah, se é. Ah.”
Sarah estreitou os olhos. Ela pensou que talvez tivesse resolvido a
charada. “Agora”, disse ela, “pra quem devo perguntar?”
Teodoro e Deodoro apontaram um para o outro.
Com um sorrisinho, Sarah disse a Deodoro: “Responda sim ou não.
Ele”, e a garota apontou para Teodoro, “me diria que esta porta”, e
apontou para a porta atrás de Deodoro, “leva ao castelo?”
Teodoro e Deodoro olharam para a garota, depois se entreolharam.
Eles discutiram, aos sussurros.
Deodoro ergueu os olhos para ela. “Ah... sim.”
“Então a outra porta leva ao castelo”, concluiu Sarah. “E esta porta
leva à morte certa.”
“Como sabe?”, perguntou Deodoro lentamente. Sua voz soava aflita.
“Ele poderia estar dizendo a verdade.”
“Então, você não estaria dizendo a verdade”, tornou Sarah. “Se você
me diz que ele disse sim, eu sei que a resposta era não.” A garota estava
muito satisfeita consigo mesma.
Deodoro e Teodoro pareciam desanimados, sentindo que haviam
sido tapeados de alguma forma. “Mas eu poderia estar dizendo a
verdade”, objetou Deodoro.
“Então, ele estaria mentindo”, explicou Sarah, permitindo-se abrir
um largo sorriso de satisfação. “Assim, se você me diz que ele
respondeu sim, a resposta continuaria sendo não.”
“Espere um instante”, disse Deodoro. Ele franziu o rosto. “Isso está
certo?”
“Não sei”, respondeu Teodoro, todo animado. “Eu não estava
ouvindo.”
“Está certo”, disse-lhes Sarah. “Eu resolvi a charada. Eu nunca tinha
conseguido encontrar a solução antes.” Ela estava radiante. “Talvez eu
esteja ficando mais esperta.”
Ela caminhou até a porta atrás de Teodoro.
“Muito esperta, tenho certeza”, comentou Jim, decepcionado, e
mostrou a língua para a garota.
Sarah, por sua vez, mostrou a língua para ele enquanto empurrava a
porta para abri-la. Por sobre o ombro, depois de passar por eles, a garota
disse: “Isso é moleza”.
Ela atravessou o limiar da porta e caiu diretamente em um poço.
Sarah gritou. O alto do poço era um disco de luz que encolhia
rapidamente.
LEMBRANÇAS RUINS
V
Jareth mantinha quatro bolas de cristal perto do rosto. Ele fitava uma a
uma, observando a luminosidade. Parecia que estava escolhendo entre
elas. O Rei dos Duendes pegou uma e a ondulou no ar com um
movimento do pulso. Ela começou a se afastar, flutuando, e se
transformou em uma bolha. Em seguida, atravessou a janela aberta ao
lado da qual Jareth se postava, e seguiu pelo céu que escurecia. As
outras três a seguiram, uma a uma, bolhas de uma beleza fria flutuando
pelo poente, girando e reluzindo, globos hipnóticos cintilando na luz
morrediça.
Sarah ainda se apoiava frouxamente na árvore, tonta demais para se
mover, quando as quatro bolhas se aproximaram dela, no céu. A garota
as fitou, hipnotizada, observando enquanto as esferas estonteantes
flutuavam em sua direção, descendo devagar. Elas dançavam na
luminosidade e Sarah começou a ouvir uma música, uma melodia
dolorosa e comovente, solene como uma pavana. A garota estava
encantada. Seus lábios se entreabriram, tamanho era seu fascínio. As
bolhas estavam próximas o bastante agora para que ela visse, dentro da
primeira, a dançarina de sua caixinha de música, fazendo piruetas. Em
cada uma das outras três bolhas havia uma dançarina, movimentando-se
em sinuosa elegância.
O corpo de Sarah oscilava hipnoticamente ao compasso da música.
Ela era a música e a dança. Então, viu-se dentro de uma bolha,
dançando, em um vestido de baile. Encantada e encantadora, ela
dançava lentamente pelo céu na companhia das demais dançarinas.
Um conjunto de muitas bolhas cruzou o céu noturno, cada qual
encerrando um dançarino em seu interior. Elas se aproximavam de uma
grande bolha, como que atraídas por alguma força magnética. Dentro da
grande bolha havia um magnífico salão de baile. Jareth já estava
dançando ali.
Quando abriu os olhos novamente, ela não sabia ao certo onde estava.
Podia ser outra parte do saguão. Sarah pensou que reconhecia o lugar,
mas não conseguia situá-lo.
No entanto, alguma coisa havia mudado. Perto dela havia uma janela
em arco conopial, sem vidros, pela qual a garota via a parte mais
distante de uma ala do castelo. A estrutura estava em ruínas: a maioria
das pedras do revestimento havia desaparecido e a grama crescia nos
espaços que haviam deixado. O telhado dos torreões ruíra, e silveiras
subiam até a abertura no alto da torre. Dentro do castelo, ali onde estava,
ela ouviu no ar o zumbido que viera a associar a Jareth, mas nele havia
um tilintar surdo, algo de desamparo, como música em uma casa
abandonada. Na fenda entre as duas lajotas onde ela havia caído, Sarah
viu que as ervas daninhas começavam a emergir. Ela se levantou e olhou
ao redor. Não havia o menor sinal de Toby.
Jareth surgiu através de um arco sombrio, vestindo uma capa
desbotada e puída. Seu rosto parecia envelhecido, esgotado. Em sua
cabeleira loura viam-se alguns toques de cinza.
Por quanto tempo ela estivera ali? Sarah não percebia nenhuma
mudança em si mesma.
Jareth a aguardava de braços cruzados. Ela foi até ele. “Devolva a
criança”, disse a garota.
Ele hesitou antes de responder. “Sarah — cuidado. Tenho sido
generoso até agora, mas posso ser cruel.”
“Generoso!” A garota deu mais um passo adiante. “O que é que você
fez que foi tão generoso?”
“Tudo. Fiz tudo o que você quis.” Ele recuou de um passo, voltando
à sombra do arco. “Você pediu que a criança fosse levada. Eu a levei.
Você se acovardou diante de mim. Eu fui assustador.”
Afastando-se dela com mais um passo, ele fez um gesto no ar.
“Reorganizei o tempo”, disse o Rei dos Duendes. O relógio de treze
horas havia aparecido e pairava acima de sua cabeça. Seus ponteiros
giravam depressa. “Virei o mundo de cabeça para baixo.”
Sarah continuou avançando, os braços estendidos, na direção dele.
Ele recuou ainda mais nas sombras.
“E fiz tudo isso por você”, disse ele, balançando a cabeça. “Estou
cansado de satisfazer suas expectativas. Isso não é ser generoso? Não se
aproxime!” Ele ergueu as mãos como que para mantê-la afastada e deu
mais um passo para trás. Então repetiu, desta vez mais alto: “Não se
aproxime!”.
Sarah entreabriu os lábios. “Enfrentando perigos indizíveis e
dificuldades sem conta, lutei para percorrer o caminho até aqui, ao
castelo para além da Cidade dos Duendes...”
“Ouçam!”, disse um duende que estava em um ninho a um canto
escuro do castelo.
Jareth recuava, passo a passo, subindo um lance de escadas atrás do
arco.
Sarah continuou avançando, passando pelo arco.
“...para pegar de volta a criança que você roubou”, declamou ela.
“Pois minha vontade é tão forte quanto a sua...”
“Pare!” Jareth ergueu a mão espalmada para ela. “Espere! Sarah,
veja — veja o que posso lhe oferecer.” Ele elevou o braço esquerdo e fez
um gesto amplo com a mão, e nela surgiu uma reluzente bola de cristal.
O Rei dos Duendes a girou nos dedos, sorriu languidamente, e disse:
“Ela vai lhe mostrar seus sonhos. Você se lembra”.
Sarah deu mais um passo à frente.
“...e meu reino igualmente grande...”
“Ela vai dizer”, sibilou um duende.
“Ela vai dizer as palavras”, engrolou outro, agitado.
As escadas atrás de Jareth desciam agora, e ele as descia lentamente,
de costas, enquanto Sarah se postava mais acima. “Eu peço tão pouco”,
disse ele, girando o cristal. “Apenas confie em mim, e vai poder ter tudo
o que quiser... tudo o que sempre sonhou... seus sonhos, Sarah...”
A garota havia parado de avançar e agora franzia o rosto. “...e meu
reino igualmente grande...”, disse ela. “Droga!”
Um duende meneou a cabeça com firmeza. “Não é nada disso.
Nunca.”
“Shhhh!”, disse outro.
Sarah cerrava os punhos com força. Seus pensamentos eram
frenéticos. Quais eram as palavras certas?
Jareth deu um passo na direção dela. Ele precisava que a garota
confiasse nele. “Basta ter medo de mim, me amar”, disse-lhe ele, com a
voz suave, “e fazer o que eu digo, e eu... serei seu escravo.” Ele
estendeu a mão para Sarah e recuou mais um passo nas escadas.
“Nah.” Um duende meneou a cabeça feiosa. “Não parece que ela vai
dizer, não é?”
Os dedos de Jareth estavam próximos do rosto de Sarah.
A garota permaneceu onde estava e engoliu em seco. “Meu reino é
igualmente grande...”, murmurava ela, “...meu reino é igualmente
grande...” Ela viu o cristal girando nos dedos do Rei dos Duendes e
sentiu nos lábios o calor da mão que ele lhe estendia. A garota arfou e,
de algum recesso inspirado de sua mente, as palavras saíram de um
jorro.
“Você não tem poder sobre mim.”
“Não!”, gritou Jareth.
“Não!”, exclamaram os duendes, perplexos.
Um relógio começou a badalar.
Jareth lançou a bola de cristal no ar, onde ela ficou pairando,
transformada em uma bolha. Sarah olhou para ela e viu o rosto de Jareth,
distorcido sobre a superfície iridescente de reflexos inconstantes. A
bolha flutuou suavemente na direção da garota, que lhe estendeu dedos
fascinados. Ao tocá-la com as pontas dos dedos, a bolha estourou. Uma
névoa de gotículas de água pairou no ar, descendo na direção do Rei dos
Duendes.
Mas Sarah viu que Jareth havia desaparecido. Ela ouviu sua voz,
pela última vez, gemendo: “Sarah... Sarah...”. A capa que ele usava
acomodava-se, agora vazia, no chão. Um raio de luz revelou uma
pequena nuvem de partículas de poeira elevando-se da peça de roupa.
O relógio continuava a badalar.
Com um último farfalhar lento, a capa se assentou, imóvel, no chão.
Quando o relógio soou a décima segunda badalada, uma coruja branca
saiu de sob a capa, alçou voo e começou a descrever círculos acima da
cabeça de Sarah.
Lágrimas desciam pelas bochechas da garota.
BOA NOITE
XIX
Karen Falk
Diretora de Arquivos
The Jim Henson Company
Long Island, Nova York
1 No Brasil, a série recebeu o nome de Fraggle Rock, a Rocha Encantada. aaaa aaa
aaa
2 As palavras “labyrinth” e “maze” são sinônimas.
Os outros dois títulos poderiam ser assim traduzidos, respectivamente: “A Curva
do Labirinto”, “O Conto do Labirinto”.
JIM HENSON não é a mamãe. Ele é o pai do Caco, o Sapo; da Miss
Piggy; de Beto e Ênio; do Gonzo e do Urso Fozzie; de Garibaldo; de
Dino e do Baby da Silva Sauro, entre inúmeros personagens que
marcaram a infância de todas as muitas gerações nascidas nos últimos
cinquenta anos. Contribuiu com George Lucas, fã assumido dos
Muppets, no desenvolvimento do mestre Jedi Yoda. Roteirista, diretor,
manipulador e dublador de fantoches, Jim Henson foi um artista
completo, que o mundo teve a tristeza de perder em 16 de maio de 1990.
Saiba mais em henson.com.
A.C.H. SMITH é um escritor e dramaturgo inglês. Sua obra inclui mais
de doze romances e vinte peças teatrais. Smith se especializou na
novelização de roteiros cinematográficos, entre eles as versões literárias
de dois filmes de Jim Henson, Labirinto e O Cristal Encantado. Para
adaptar Labirinto, A.C.H. Smith se divertiu bastante consultando o
roteirista original do filme, o Monty Python Terry Jones, e incluiu no
livro cenas cortadas do longa-metragem. Saiba mais em achsmith.co.uk.
Henson, Jim
Labirinto / Jim Henson, A.C.H. Smith ; tradução de Giovanna Louise ; ilustrações de
Brian Froud. — Rio de Janeiro : DarkSide Books, 2016.
ISBN: 978-65-5598-075-2
Título original: Labyrinth: The Novelization
16-0810 CDD 813
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura norte-americana
[2016]
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