À Média Luz Da Democracia Interna:: Sombras E Reflexos Constitucionais Na Incorporação Do Multipartidarismo Português

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À MÉDIA LUZ DA DEMOCRACIA INTERNA:

SOMBRAS E REFLEXOS CONSTITUCIONAIS


NA INCORPORAÇÃO DO MULTIPARTIDARISMO
PORTUGUÊS

JOÃO TIAGO FREITAS MENDES


FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos


constitucionais na incorporação do multipartidarismo
português

João Tiago Freitas Mendes

CIÊNCIA POLÍTICA

2010-2011

2º Semestre: Turma B

Profª Doutora Maria João Estorninho

Mestre Cláudio Monteiro

Julho de 2011
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

Índice

Introdução ........................................................................................................................ 3
1. O caminho faz-se caminhando: coordenadas histórico-filosóficas dos partidos
rumo à democracia ........................................................................................................... 5
1.1 Da omissão à incorporação: apontamento de história constitucional dos séc.
XIX e XX ......................................................................................................................... 5
1.1.1 Pela positivação constitucional da liberdade de associação: o liberalismo de
séc. XIX em análise .................................................................................................... 6
1.1.2 A evolução política e constitucional contemporânea: a bonança depois da
tempestade................................................................................................................ 9
1.2 Democracia interna: um esboço filosófico de aproximação ao conceito ............ 10
2. A funcionalização constitucional e a praxis política nos dias de hoje .................... 14
2.1 O défice democrático: to be or not to be......................................................... 14
2.1.1 Liberdade de associação vs. princípios injuntivos de gestão e organização
interna ..................................................................................................................... 15
2.1.2 Requisitos legais, mínimos democráticos e limites de ingerência normativa 17
2.2 Da prática: situações de democracia interna .................................................. 19
2.2.1 Voto secreto: a forma soberana das candidaturas partidárias...................... 20
2.2.2 Eleições directas: evangelização ou democratização? .................................. 20
2.2.3 Direito de tendência e correntes de exclusão ................................................ 21
Conclusões ...................................................................................................................... 23
Bibliografia ...................................................................................................................... 24

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À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

Introdução

O presente trabalho insere-se no âmbito da oral de melhoria de nota a realizar na


disciplina de Ciência Política. Serve esta nota introdutória para dar conta ao leitor dos
pressupostos em que nos fundamos para abordar a questão da democracia interna dos
partidos políticos do ponto de vista da adequação e interesse do tema, tendo em vista
o escopo da Cadeira, bem como dando conta da organização das matérias em análise e
da metodologia adoptada.

Cabe começar por assinalar que o foco deste estudo dá sequência ao interesse
suscitado pelo tema da Democracia interna aquando da realização do trabalho de
grupo no decurso do 2ºsemestre. Assim, algumas das matérias aqui desenvolvidas,
nomeadamente as afloradas no ponto 2., foram objecto de estudo e reflexão
anteriores. Se tal constitui, prima facie, um predicado vantajoso, importa também
informar que pretendemos contribuir para o estudo destas questões com maior
investigação e renovadas perspectivas.

Sendo este um tema que entendemos de centralidade genética, em face do enfoque


dado no presente Curso aos Partidos Políticos, releva restringir o âmbito sobre o qual
nos debruçaremos. Antes de mais referir que este será sobretudo um trabalho de
Ciência Política, como será fácil de inferir pelas (p)referências bibliográficas, cujos
contornos se aproximam, por vezes, do Direito Constitucional e da Filosofia Política.
Assim, escusado será dizer que o tema em análise é interdisciplinar.

Introduzindo o tema, começaremos por traçar a evolução histórica: da omissão da


liberdade de associação nos textos constitucionais, até à incorporação dos partidos
políticos em 1976. Quanto ao (res)suscitar histórico da liberdade de associação em
face da questão da democracia interna, afirmar que há uma ligação umbilical que não
poderia deixar de ser observada. Na Constituição de hoje, importa analisar os
preceitos relativos à democraticidade interna e aferir o grau de ingerência em relação
à (in)existência de democraticidade interna. Por último, procuraremos perspectivar as
conclusões do enquadramento constitucional (2.1) e de algumas das situações de
fronteira no interior dos partidos (2.2) do séc.XXI: tudo isto, pontualmente através do
ponto de vista da filosofia política para encontrar um fundamento teórico possível. O
objectivo deste estudo é acrescentar ao que tem sido dito acerca deste tema, em
particular pelos autores portugueses, uma perspectiva histórica e filosófica. Assim,
julgamos estar a corresponder às directrizes da Cadeira, no que toca ao 2ºsemestre:
partir de uma perspectiva histórica do Direito Constitucional português para conhecer
o ordenamento jurídico actual, considerando concepções teóricas acerca do nosso
Estado de Direito democrático e do seus instrumento de participação democrática
mais em foco na actualidade: os Partidos Políticos.

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À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

Por último, deixar expresso um agradecimento ao Mestre Claúdio Monteiro e à


Professora Doutora Maria João Estorninho, pela motivação incutida e pela
disponibilidade cordial. O ensino destes temas na Faculdade de Direito proporciona
contacto com realidades meta-jurídicas, de forte repercussão social – que tende a
crescer – e permite construir pontes com outras áreas do saber. Em síntese: estimula a
formação de juristas conhecedores do contexto social e político.

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À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

1. O caminho faz-se caminhando: coordenadas


histórico-filosóficas dos partidos rumo à democracia

Cabe dizer que até ao cais da democracia interna, por muitas tormentas passaram os
sistemas constitucionais que incorporam hoje os partidos políticos. Isto é dizer que no
início era a liberdade de associação o destino e vários caminhos se traçaram para lá
chegar; depois as correntes de opinião que trouxeram o perigo iminente do naufrágio
no nevoiro da prática autoritária e corporativa; por fim, o pluralismo democrático
apontou a rota e concedeu a maior das honras pelos serviços prestados (e pelos que se
haveriam ainda de prestar): o reconhecimento constitucional.

Mas também se dirá que a democracia interna nem sempre é um porto seguro, imune
a temporais, maus ventos e noites sem estrelas. É verdade que no que toca a maus
ventos contrários à democracia semipresidencial, os partidos estarão razoavelmente
abrigados pela Constituição; mas já no que toca ao funcionamento interno a
democracia vagueia por marés muito próprias - estas, que reclamam um tratamento
desigual, resultam muitas vezes da organização interna, mas também do comandante
ou dos marinheiros, individualmente considerados. Por entre estes caminhos incertos
da questão interna, fixaremos o leme da nossa viagem.

1.1 Da omissão à incorporação: apontamento de história


constitucional dos séc. XIX e XX

“A política nem sequer podia ser concebida se o homem não existisse no plural.”1
Hannah Arendt

Sabemos que o surgimento dos partidos políticos é associado comunmente ao séc. XIX,
particularmente por meio da constitucionalização da liberdade de expressão 2. Mas a
questão que aqui se tratará está a montante, em face do tema da democracia interna.
É sabido que o liberalismo preconizava liberdades individuais, o que poderá ter
significado o descurar das instituições que agregam homens para melhor prosseguir o
fim da participação política - os partidos políticos. Então: onde pára a liberdade de
associação ? E, consequentemente, qual a ratio política desta omissão legislativa ?

1
Hannah Arendt (Concern with Politics in Recent European Philosophical Thought” in Essays in
Understanding 1930-1954, p.443). Cfr. Miguel Morgado, Pensamento Político Contemporâneo..., p.289
2
Veja-se art.7º Título I da Constituição de 1822: “a livre comunicação dos pensamentos é um dos mais
preciosos direitos do homem. Todo o Português pode conseguintemente, sem dependência de censura
prévia, manifestar suas opiniões em qualquer matéria, contanto que haja de responder pelo abuso
desta liberdade nos casos, e pela forma que a lei determinar.” Este artigo encontra-se inserido no Título
I, denominado Dos direitos e deveres individuais dos portugueses.
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

1.1.1 Pela positivação constitucional da liberdade de associação: o


liberalismo de séc. XIX em análise

As liberdades de reunião e de associação foram matéria não ignorada aquando dos


trabalhos preparatórios da Constituição de 1822 graças a uma proposta do Deputado
Baeta Neves3, mas omitidas no Projecto da Constituição e assim na versão final. Dir-se-
á que as fontes do texto constitucional, em particular a Constituição espanhola de
1812 ajudam a compreender a não positivação, mas não por completo4. Outro factor
explicativo5 desta omissão é a tradição liberal francesa, contrária à consagração de
direitos de acção colectiva6, no que consta na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, de 26 de Agosto de 1789. De seguida o direito constitucional francês evoluiu:
ao reconhecer a liberdade de reunião de 1791, mas tal não se reflectiu aquando da
importação das declarações francesas de direitos7 vertida no Título I, referente aos
direitos e deveres individuais, nos primórdios do constitucionalismo português.

Também a Carta de 1826 não consagrou as liberdades assinaladas, sendo uma cópia
fiel8 da Constituição de 1822: com efeito, os arts. 16º e 17º terão sido fielmente
transcritos para o parágrafo 28º do art.145ºda Carta.9

Na segunda vigência da Carta Constitucional (1834-1836), o seu art. 145º parágrafo


3º10 foi extensivamente interpretado por Silvestre Pinheiro Ferreira, em 1834, no
sentido de estender a liberdade de expressão (que diz-nos Kant é a justificação do
próprio poder, em face do contrato social11) ou manifestação de opiniões às liberdades
de reunião e de associação: “A manifestação de opiniões pode ser considerada ou
quanto às posições em si mesmas ou quanto aos modos de se manifestarem(…) Podem

3
Foi apresentada uma proposta de positivação pelo Deputado Baeta Neves, em 1821 nos trabalhos
preparatórios das Bases da primeira Constituição portuguesa, discutida na sessão nº17 de 16 de
Fevereiro de 1821 e rejeitada. Os arts.14 e 15º da Sessão 2ª do Projecto das Bases omitiram assim as
liberdades de reunião e de associação. As Bases foram o referencial doutrinário concreto no período de
1821-1822. n Cfr. Ivo Miguel Barroso, A ausência geral de positivação…, p.177-178.
4
Uma vez que a Constituição portuguesa inova por exemplo ao incluir o título I, relativo aos direitos
individuais dos portugueses (ver nota 1 supra). Ainda que as garantias consignadas fossem muitíssimo
inferiores às que se lhes não podem deixar de reconhecer. Palavras de Silva Sanches, sessão de 26 de
Abril, in Diario das Cortes Geraes, II, 1837, p.69 Cfr. Ivo Miguel Barroso, ob.cit., p.180
5
Neste sentido, Soares Martinez, Comentários à Constituição portuguesa de 1976, p.265.
6
Paulo Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo, vol I. Lex, Lisboa, 1995, p.326.
7
Neste sentido, Jorge Miranda, Manual…, I, 7ªedição, 2003, p.268.
8
Silva Sanches, sessão de 26 de Abril, in Diario…, II, 1837, p. 68. (Cfr. Ivo, Miguel Barroso, ob.cit, p.181)
9
Segundo o Parecer nº239 da commissão especial nomeada pela Câmara dos Pares. Ver nota nº26, Ivo
Miguel Barroso, ob cit., p.181.)
10
Preceito decalcado ipsis verbis do art.179nº4 da Constituição brasileira de 1824.
11
“Naquilo que um povo não pode decidir sobre si mesmo, menos o poderá decidir o legislador pelo
povo”. Immanuel Kant, Sobre a expressão corrente… in A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Lisboa:
Edições 70, 1995, p.91.
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

ser doutrinas de política, religião, moral, etc.(…) “12. Infelizmente, o citado juspublicista
não chegou a autonomizar essas liberdades no seu Projecto de Codigo Geral…13

Já na terceira vigência da Carta Constitucional (1842-1851) , Silva Ferrão14 considera as


liberdades de reunião e de associação incluídas na liberdade de pensamento: “(na
letra do art.145.parágrafo3º) todos podem comunicar os seus pensamentos por
palavras(…) E comunicar a quem senão aos outros homens ?”

Congratulamo-nos com estes labores interpretativos15 mas convém assinalar, para a


história, os seus limites. Como refere Lopes Praça16 “deduções lógicas são úteis (…)
mas são lamentáveis quando servem a encobrir verdadeiras lacunas nas leis
fundamentais, especialmente se aspiram a suprir a falta de garantia para direitos tão
importantes, como os de reunião e de associação”. Assim, a positivação das liberdades
em análise emerge como a solução mais conveniente: “A garantia preciosa (dos
direitos de reunião e de associação) deveria ser consignada no nosso pacto
fundamental(…) uma das mais atendíveis reformas a introduzir-lhe”. Note-se que o
efeito garantístico da positivação não é despiciendo.

Neste sentido, importa mencionar a dissertação de Costa Lobo datada de 1864 (!) e
cujo alcance e ousadia se conseguem quase antecipar pelo título da obra: “ O Estado e
a Liberdade de Associação”. Escrito, a páginas tantas, de forma lapidar: “É a associação
que reúne e concilia a liberdade com uma vontade e razão geral, sem o que não pode
haver direcção nem fim comum”.17

Mais tarde, o Código de Seabra vem, em 1867, a consagrar a liberdade de associação


(art.359º) enquanto direito originário18, definido no art.365º como a faculdade de pôr
em comun os meios ou esforços individuais para qualquer fim, que não prejudique os
direitos de outrem ou da sociedade. Este impulso de normas codificadas revolucionou19
o mundo jurídico português; ainda para mais, dado que este Código perfilhava os

12
Silvestre Pinheiro Ferreira, Manual do cidadão em um governo representativo…, p.33.
13
Silvestre Pinheiro Ferreira, ob.cit, tomo III, Projecto de Codigo Geral, Paris, 1834, p. 2-3.
14
F.A. da Silva Ferrão, Theoria do Direito Penal Applicada ao Código Penal Portuguez, vol.VI, p.48.
Lisboa: Imprensa Nacional, 1857.
15
Para uma perspectiva histórica acerca da interpretação das leis: Barbas Homem, A Lei da Liberdade,
p.110 e segs. No sentido de que os imperativos de justiça, nos casos “em que o direito deve adaptar-se
aquelas coisas que acontecem frequente e facilmente”, emanam mais da vontade da lei do que das suas
palavras.
16
J.J.Lopes Praça, Direito Constitucional portuguez, vol I, p.79-80. E este A. vai mais longe: “As
Contituições dos povos cultos e de boa razão estão de acordo em reconhecer a necessidade de inscrever
no capítulo dos direitos individuais os direitos de reunião e de associação”.
17
Costa Lobo, O Estado e a Liberdade de Associação, p.158.
18
Os direitos originários eram, segundo o proémio desse artigo, os da própria natureza do homem, que
a lei civil reconhece, e protege como fonte e origem de todos os outros. Seriam inalienáveis (art.368º,
1ªparte).
19
Mário Reis Marques, História do Direito Português Medieval e Moderno, 2ªedição, p.217.
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

princípios da Escola individualista20. Pois que maior demonstração do reconhecimento


liberal de um instrumento ao alcance dos indivíduos – feito para os cidadãos, e não
contra eles - poderia haver do que a consagração da liberdade de associação num
código civil?21 Ainda assim, conforme refere Jorge Miranda22, a liberdade civil é distinta
da liberdade política dos cidadãos.

Vejamos agora o porquê desta omissão legislativa, apesar de tudo num contexto
sociológico favorável pela existência de sociedades patrióticas e de clubes23: na
prática, o individualismo característico da época não produziu uma obliteração
completa do sentido organizativo dos cidadãos que os conduzisse a uma atomização
total24.

Importa pôr em evidência os fundamentos teóricos desta propositada omissão da


liberdade de associação nas constituições do séc. XIX. Sabemos que o liberalismo
assentava na trilogia propriedade, liberdade e segurança25. Para a nossa breve
investigação histórica do constitucionalismo liberal, o entendimento liberal da lei como
garantia da liberdade26 individual é determinante. Assim, a liberdade de associação
(enquadrável na liberdade-participação) era entendida como redutora da liberdade-
autonomia, para usar a terminologia de Sartori. Aqui está subjacente uma diferente
concepção teórica do governo das leis (maxime, o princípio da legalidade): com Barbas
Homem27, diremos que a liberdade individual constitui o fundamento da sociedade
política característica do liberalismo oitocentista. Na realidade, o liberalismo receava a
criação de instâncias intermédias28 entre o Estado e as liberdades individuais29. Em
síntese: (…) “a representação política limitou-se à representação dos cidadãos, no seu

20
A completa subordinação normativa aos princípios individualistas foi um dos defeitos apontados ao
Código. Assim, Mário Reis Marques, ob.cit, p.216.
21
Pois como escreve Miguel Lopes Romão, A Bem do Estado, p.83:”… a constitucionalização do direito
político e a codificação do direito civil são cara e coroa da mesma moeda – a formalização do direito, de
modo a que seja uma emanação soberana da vontade representativa da comunidade(…) por forma a
defender a liberdade de cada um dos membros dessa comunidade”.
22
Jorge Miranda, Manual…,III, p.344.
23
Ivo Miguel Barroso, ob.cit., p.183 e segs e p.201:” São detectáveis realidades fluidas, como correntes
de opinião, clubes secretos, associações secretas, sociedades secretas, sociedades partrióticas. Em
especial, as sociedades patrióticas eram estruturas do liberalismo junto das massas, sendo
simultaneamente lugares de convívio e de acrisolamento dos liberais, desde 26 de Setembro de 1820”.
24
Maria Carlos Radich, Formas de Organização Política…, p.119
25
Paulo Otero, Instituições Políticas…, I, p.250
26
Barbas Homem, A Lei da Liberdade, p. 180
27
Barbas Homem, O Justo…, p.61. Essa liberdade individual é analisada por Habermas, que retém do
liberalismo o respeito pela fronteira que separa a sociedade civil do Estado. Cfr. Pensamento político…,p.
323 e segs.
28
Miguel Lopes Romão, ob.cit., p.87 : “… vive em grande medida na negação de estruturas identificadas
com um poder político exercido de modo a não permitir a participação da comunidade sua destinatária
(…) com uma determinada perspectiva de racionalidade política que vive de uma autoridade para a
comunidade e não no seu inverso.”
29
Como nota Quentin Skinner, a liberdade do corpo político é identificada com a liberdade de cada
cidadão. Cfr. Pensamento político…, p.200 e segss.
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

exclusivo individualismo político, esquecendo ou minimizando a importância da


representação dos cidadãos na sua dimensão social. Esta tendência esvaziou a
representação política de significado social”30. Ora, conforme sabemos hoje, não há
forma de governo favorável à liberdade que seja contrária à participação política dos
cidadãos31: assim surge a lei como manifestação da vontade geral em democracia32.

1.1.2 A evolução política e constitucional contemporânea: a bonança depois


da tempestade

Apenas a título de nota complementar da evolução do direito Constitucional referir


uma breve cronologia de século XX.

A fase de juridização33 da realidade partidária começa com a revisão constitucional de


191934 . A partir de 1926 e mais concretamente com a Constituição de 1933 o Estado
Novo edifica um regime de partido único35 e de cariz anti-parlamentar que se prolonga
até 1974 e que, como é ensinado hoje e foi mesmo auto-proclamado à época, “afasta
e enjeita a concepção democrática do Estado”, argumentando que esta ”directamente
conduz à fórmula dos partidos políticos, estranhos à actividade expontânea da Nação e
vivendo, à ilharga dela, uma vida parasitária” 36. Destacamos esta crítica do
salazarismo aos partidos por não estar hoje – como deveria – completamente afastada
da opinião pública, num cenário de convulsões sociais esperadas e que põe à prova o
papel dos partidos políticos e, assim, a solidez das fundações do sistema de governo

30
Braga da Cruz, Instituições Políticas…, p.121
31
Jorge Miranda, ob.cit, 343-346.
32
Barbas Homem, A lei da liberdade, p.190
33
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, A Constituição e os Partidos Políticos, p.663. É neste ano, segundo
este A., que termina a fase de ignorância intencional iniciada em 1822.
34
Que prevê um Conselho parlamentar consultivo (em caso de dissolução presidencial das Câmaras
Legislativas) de não mais de 18 membros, respeitando uma proporção que permita ouvir todas as
correntes de opinião (art.10º, parágrafo 1º, da lei nº891 de 22 de Setembro).
35
Doutrinariamente o Estado Novo pretende ser apartidário, prescindindo dos partidos enquanto
veículos de participação e representação política dos cidadãos, pelo funcionamento do sistema
representativo e corporativo atender, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, ”à inserção dos indivíduos nas
múltiplas sociedades primárias” – o que, em face das miseráveis condições de vida e da inexistente
alfabetização de larga maioria da população (66% da população sem nível de ensino em 1960, segundo
dados do PORDATA, disponíveis em http://www.pordata.pt/azap_runtime/?n=4), é difícil de conceber
que tenha sido mais do que um postulado teórico nunca aplicado. Veja-se, entre outros, o art.14º da
Constituição de 1933 que preconiza a independência dos funcionários públicos no exercício das
respectivas funções relativamente a qualquer partido político. Cfr. Marcelo Rebelo de Sousa,ob.cit,
p.665.
36
Ademais, a concepção democrática de Estado é definida como “universalidade de indivíduos e
confusão”. Cfr. O Estado Novo: Princípios e Realizações, p.25.
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

democrático constitucionalmente previsto. Em suma, como refere Costa Pinto37, “os


princípios liberais eram fracos e os corporativistas e autoritários eram fortes”.

Após o desenlace da Segunda Guerra Mundial, segue-se a fase de


constitucionalização38 dos partidos políticos e do pluralismo democrático, nos países
em que o sistema de governo caiu junto com os escombros materiais e os milhares de
vidas humanas que então pereceram. Em rigor, o que aconteceu foi o reconhecimento
pelo legislador de uma praxis política preexistente39, que desde o séc.XIX foi
subsistindo, com maior ou menor dificuldade (desde o constitucionalismo liberal,
passando pela 1ª República e depois pelo Estado Novo), no vazio de normas
constitucionais expressas. A incorporação dos partidos no Direito Constitucional dos
países europeus ocidentais introduz uma opção política de rejeição de regimes anti-
democráticos, significativa para a democracia pluralista - e democrática.

Em Portugal, a alvorada política e social40 chega com a Revolução dos Cravos, em 25 de


Abril de 1974, da qual resulta a Constituição de 197641. Da funcionalização
constitucional dos partidos e suas consequências na prática interna se falará ao longo
das restantes linhas deste estudo.

1.2 Democracia interna: um esboço filosófico de aproximação ao


conceito

Começaremos por justificar a importância de aferir da democracia no interior dos


partidos. Assim, traçaremos desde já uma abordagem sintética à nossa linha de
raciocínio, para de seguida atentarmos em manifestações da prática partidária que
importa valorar à luz do que por ora se disser.

“O que precisamos agora é de recuperar o sentido perdido de uma sociedade cuja


liberdade e organização nascem, não de um plano imposto superiormente, mas do
poder integrador de um vasto e subtil corpo de direitos e deveres partilhados entre
37
Cfr. A.Costa Pinto, Contemporary Portugal, p.26-27. Como refere o A., “de jure freedom of association
existed, but parties were eliminated trough regulation. Formally, the National Union never became a
single party, although it functioned that way after 1934”.
38
García-Pelayo, El Estado de Partidos, p.47 e segs; David Plaza, La función constitucional de los partidos
políticos, p. 37; Fernandez de La Mora, La partitocracia, p.173.
39
García-Pelayo, ob.cit, p.49
40
Conforme Braga da Cruz, ob.cit., p.120. Segundo o A. no passado liberal e autoritário existia, ao nível
dos cidadãos, uma cultura de subordinação que lentamente tem vindo a transformar-se numa cultura
de participação.
41
A matriz da CRP de 1976, no que toca à matéria de partidos políticos, resulta do decreto-lei 595/1974
de 7 de Novembro, primeira regulação portuguesa. Cfr. Garcia Pelayo, ob.cit., p.57.
10
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

os indivíduos que não são um presente da natureza mas o produto da nossa própria
experiência e inventividade; e recuperar igualmente a percepção da nossa lei, não
enquanto um mero corpo de direitos e deveres adquiridos, o corpo de uma liberdade
em que os direitos políticos detêm um lugar comparativamente insignificante, mas
como um método vivo de integração social, o método mais civilizado e mais efectivo
jamais inventado pelo género humano.” 42

Michael Oakeshott

Partindo da concepção teórica - e prática , num certo sentido, se olharmos para as


sucessivas críticas que têm acompanhado o funcionamento interno dos partidos,
desde os primórdios do constitucionalismo - que defende que os partidos entregues a
si mesmo não funcionam democraticamente, pode afirmar-se que a democracia
consiste na aceitação de regras previamente formuladas43. Assim, o funcionamento
democrático tem uma vertente procedimental, que abarca um conteúdo material ou
substantivo44. No entender de Cotarelo45, o funcionamento democrático contrapõe-se
à burocracia, que é hoje crescente (nas suas dimensões técnica e humana) e
permanente46 na - quase - directa proporção do alargamento do sufrágio até à
universalidade.
Cabe referir a proposta de Weber que vem, de certa forma, propôr uma democracia
burocrática para os partidos, justificando esta com a necessidade de assegurar a
neutralidade47 dos procedimentos internos. Seguindo esta tese, podem verificar-se nos
dias de hoje, conexamente, duas realidades que se anteciparam há décadas: a
ascensão da tecnocracia no interior do partido e, em consonância, a profissionalização
das lideranças. Serão tais fenómenos louváveis por trazerem, supostamente, a
racionalidade legal da administração ao interior dos partidos, conforme esperava
Weber ? Entendemos que não e julgamos que a razão está com Cotarelo, não
dispensando claro está a vinculação dos partidos à tal vertente procedimental do
funcionamento democrático - isto porque, como refere Plaza48, constitucionalizar os
partidos políticos responde à necessidade de evitar um paradoxo entre o
protagonismo que se lhes reconhece desde a sua origem e a falta de regulação jurídica
de tão relevante realidade social, a que já se aludiu supra. É curioso notar desde já que

42
The Cambridge Journal, vol I, 1947-8 cfr. José Carepa, Pensamento Político… (Org. João Carlos Espada e
João Cardoso Rosas), p.59
43
Afirma Leoni que “con la regulación legislativa del partido podrá ser combatida y derrotada la
partitocracia”. Cfr. Fernandez de La Mora, La partitocracia, p.170
44
Os partidos não poderão assim invocar a aplicação da doutrina acta interna corporis (partindo da
liberdade de associação e da auto-organização), para impossibilitar o controlo dos seus actos internos.
Cfr. Plaza, ob.cit., p.41
45
Cfr. Garcia Cotarelo, ob.cit. p.251-252
46
Cfr. Plaza, ob.cit. p.35
47
Acerca do princípio da neutralidade, mas ao nível do Estado de partidos, como entendemos que este
deve ser visto, Cfr. Garcia-Pelayo, ob.cit., p. 86
48
Cfr. Plaza, ob.cit. p.44
11
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

a democracia interna não deixa de incluir, nos tempos que correm, alguns predicados
que são, numa interpretação literal do que foi dito, anti-democráticos. Neste sentido,
assinale-se a concordância com o que teoriza Robert Michels49: em virtude do supra
exposto “quem diz organização diz oligarquia”.
Para que a democracia interna possa funcionar terão que verificar-se, então, dois
pressupostos-base, no entendimento de Cotarelo50, entre outros. A saber: por um
lado, definir, dentro do possível, o que se entende por funcionamento democrático;
por outro, o respeito pelos direitos fundamentais51. Apesar do que já se adiantou, a
democracia interna corresponde a um conceito jurídico indeterminado - embora
forçosamente determinável pelos dados que são oferecidos em cada ordenamento
jurídico. E no que toca aos direitos fundamentais, convém adoptar uma posição
realista que nos impele a prevenir desde já que há uma configuração sui generis destes
no âmbito interno dos partidos, como se verá com maior nitidez adiante. Assim,
conclui-se: a democracia interna mede-se em graus e não se identifica
necessariamente com a filosofia por detrás do sistema político-constitucional.52

De acordo com Plaza53, a participação dos militantes na formação da vontade do


partido é um indicador mínimo de democraticidade interna. A montante desta
questão, a participação dos cidadãos na democracia representativa, segundo Jorge
Miranda54, surge hoje com um carácter dualista: os cidadãos tanto surgem
individualmente, como integrados em organizações, sejam elas partidos políticos ou
grupos e associações.55

49
Cfr. Robert Michels, Sociologia dos Partidos Políticos, Editora Universidade de Brasília, Brasília, 1982,
p. 238. O A. argumentou que a organização, ao mesmo tempo que assegura o funcionamento da
totalidade abrangida, também a afecta de um modo inevitável, dividindo-a numa minoria dirigente e
numa maioria dirigida. Enquanto os primeiros integram-se numa estrutura que lidera e controla; os
segundos, sem relações formais permanentes entre si, não têm outra alternativa senão obedecer.
Referiu este A. que “a tendência para a oligarquia constitui uma necessidade histórica, uma das leis de
ferro da história, às quais não puderam escapar as sociedades modernas mais democráticas e, dentro
destas sociedades, os partidos mais desenvolvidos”.
50
Cfr. Cotarelo, ob.cit, p.148-149; Cfr. Garcia-Pelayo, ob.cit., p.53: perfilhando semelhante doutrina,
Garcia-Pelayo concebe a legitimação do status de liberdade externa dos partidos mediante esta dupla
observância prática.
51
Segundo Nozick, na sua tese de direitos individuais e estado mínimo, existem seis etapas para um
estado moralmente legítimo. Em conclusão, se cada passo do processo foi moral, isto significa que não
violou direitos fundamentais. Cfr. Pensamento Político…p.111
52
Cfr. Cotarelo, ob.cit. p.252. Há-que ter em conta a distinção feita por Burdeau entre regimes de poder
aberto e regimes de poder fechado. Em especial, sendo o nosso uma democracia de poder aberto, a
verdade é que a realidade dos partidos tende a integrar elementos típicos de poder fechado,
nomeadamente na questão das correntes internas, como se verificará infra. Cfr. Burdeau, ob.cit., p.103-
104.
53
Cfr. Plaza, ob.cit., p.79
54
Cfr. Jorge Miranda, Manual…., VII, p.159
55
Olhando para a CRP de 1976, verificamos que existem modalidades de participação política dos
cidadãos que dispensam perfilhação partidária: o direito de sufrágio (art. 49nº1 e nº 2) e o referendo
12
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

Como teoriza Leibholz56, há uma necessidade imperiosa de democratizar os partidos


enquandrando estes no Estado de Direito democrático. Ora vejamos: se exigimos,
mesmo a nível global, que o sufrágio seja democrático, então deve exigir-se que a
formação da vontade no seio dos partidos assim o seja também. Muito simplesmente,
a falta de democracia nos mesmos, reflecte-se numa falta de democracia nos
Estados57. Em suma, a relevância da democracia interna prende-se com a tomada de
consciência da Estadualidade Partidária58.

nacional que pode resultar de iniciativa dos cidadãos (art. 115º1 e o art. 167º1). Pelo contrário, implica a
relação de confiança com um partido nas Eleições para a Assembleia da República (artº151).
56
Cfr. Gerhard Leibholz, O pensamento Democrático como Princípio Estruturador na Vida dos Povos
Europeus, Coimbra 1974, pp. 30-32. O A. vê a democracia como modalidade racional em que a vontade
do povo se assimila à vontade da maioria de governo, bem como à dos partidos com assento
parlamentar. Daí resulta a importância do sufrágio como manifestação popular, periódica, de apreciação
das propostas programáticas de cada partido político.
57
Assim como o inverso também é verdade.
58
Cfr. J.J.Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª
edição, Coimbra, 2007, Anotação ao artigo 51º.
13
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

2. A funcionalização constitucional
e a praxis política nos dias de hoje

Importa clarificar o contributo que se segue. Primeiramente vamos atender à letra da


CRP para enquadrar as metas democráticas a que os partidos estão obrigados. Depois,
veremos manifestações das máquinas partidárias em movimento, na concretização de
um dilema que se adivinha desde já: quão perto estarão os princípios injuntivos da CRP
da prática intra-partidária ?

2.1 O défice democrático: to be or not to be

Ora bem, aqui chegados importa esclarecer o contributo que se segue. Existe, como
decorre do supra exposto, um Estado de partidos59 ou, numa expressão paralela, uma
partidarização parlamentar60. Em sentido oposto, de fora para dentro, podemos
também falar de uma parlamentarização partidária, que consiste na mutação da
estrutura interna dos partidos com o objectivo de melhor expressarem na sua função
eleitoralista a lógica de funcionamento da maioria parlamentar futura, que é no caso
do semipresidencialismo português a base de legitimidade do governo
(independentemente da sua composição mais política ou mais técnica). Por exemplo,
na escolha das listas de deputados à Assembleia da República, a escolha é centralizada
no órgão central do partido e prevalece um vínculo pessoal61, favorecendo fenómenos
de caciquismo típicos dos partidos de notáveis de séc. XIX62, com expressão na futura
relação (que deveria ser de separação de poderes e fiscalização) institucional entre
governo e parlamento, que se afigura assim mais suave. Ou não estivéssemos na
presença de partidos de eleitores63 num sistema multipartidário limitado, no caso
português – o mesmo é referir a flexibilização ideológica em sociedades cada vez mais
(i)mediatizadas64.
Ora, quanto a essa adaptação actual do funcionamento interno expressa na
classificação de partidos supra citada, entendemos traduzir-se num défice democrático

59
Cfr. Burdeau, O Estado, p. 107.
60
Cfr. Braga da Cruz, Instituições…, pp. 175.
61
Neste sentido, Cotarelo, ob.cit, p.158. O A. refere “lealdades pessoais”. Também Burdeau ao escrever
sobre “personalização”, O Estado, p.34.
62
Segundo Costa Pinto, o clientelismo é uma prática com enorme expressão durante o séc. XIX – este A.
refere-se a essa realidade nos seguintes termos: “Portugal’s oligarchic and clientelistic liberalism”. Cfr.
Costa Pinto, ob.cit., p.3.
63
Tradução portuguesa da expressão “catch-all party” de Otto Kirchheimer. Cfr. David Plaza, ob.cit,
p.44-45.
64
Neste sentido: Braga da Cruz, Instituições…, p.119; Paulo Otero, A democracia totalitária, p.264.
14
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

no interior dos partidos portugueses na actualidade. Diz-nos Philipe Schmitter65 que os


partidos são hoje mais institucionais do que representativos: por aqui se vê que a
transformação é acompanhada de um critério de governabilidade interna que
prevalece sobre a representatividade das várias correntes de opinião66. Assim, os
partidos, em especial os ditos de governo, vivem da sua ligação umbilical ao Estado e
do acesso a cargos- e recursos- públicos. Contudo, se tal por um lado tende a
proporcionar um decréscimo da participação social e política dos cidadãos, poderá
também configurar um paradoxo entre a sustentabilidade desses partidos (que sai
reforçada) e a legitimidade cada vez mais diminuta dos mesmos67. Tal fenómeno pode
ser aproximadamente identificado pela classificação (redutora, em todo o caso) de
partidos cartel68.
Em poucas linhas: existe nos dias de hoje69 um défice democrático interno (veja-se o
exemplo dos congressos de mera aclamação70) que sobrevive entre as garantias
constitucionais, por um lado, e a disciplina partidária, por outro, como se verá adiante.
De resto, já no início da década de 90 se concluía que a pesada estrutura organizativa
interna impede o poder decisório das bases…71

2.1.1 Liberdade de associação vs. princípios injuntivos de gestão e


organização interna
Vistos os pressupostos críticos que, em nosso entender, configuram o Estado de
partidos e também os partidos de governo, importa agora colocar em equação duas
correntes contrastantes72: a liberdade de associação, enquanto base da disciplina
partidária e da auto-organização partidária, e os princípios injuntivos de gestão,
organização e transparência internas, garantes constitucionais da diversidade de

65
Cfr. Paula Sofia Ávila, Funções…, pp.34.
66
Expressão da revisão constitucional de 1919, a que já se aludiu supra. Plaza, ob.cit., p.88.
67
Tal referem Stefano Bartolini e Peter Mair em 2001 (cfr. Paula Sofia Ávila em Funções…, pp.34.)
68
Cfr.Peter Mair e Richard Katz, El partido cartel.., 2004. Sugestivamente, avisa Plaza, ob.cit.,p.83: “La
posicion oligopólica que ocupan los modernos partidos cartel en ele marco representativo, obliga que el
derecho o facultad de decidir libremente sobre las personas que van a integrar la asociación política
deva ser interpretado restrictivamente”.
69
Sem prejuízo de se considerar, com Plaza, que a falta de democracia interna tem sido uma constante
desde que os partidos existem. David Plaza, ob.cit, p. 35.
70
Exemplo de José I. Navarro Méndez, cfr. por João Pedro Freire, O princípio democrático na…, p.22.
71
Conclui Paula Ribeiro Costa a propósito de PS, PSD, PCP e CDS. Paula Ribeiro Costa, A democraticidade
interna…,numeração de pág. inexistente, ver Conclusão (1992).
72
Cfr. David Plaza, ob.cit, p.43, referindo-se “a la tensión”. Segundo Friedrich A. Hayek (que começou os
seus estudos licenciando-se em Direito em 1921 e em Ciência Política em 1923, antes de se notabilizar
na ciência económica e receber o Nobel da Economia em 1974) existem dois tipos ideais de ordem: a
organização (made order) e a ordem espontânea (grown order). No caso do sistema partidário
português, a organização é criada por forças exteriores (a Constituição), que impõem aos elementos
constituintes da mesma (militantes) o cumprimento de determinadas instruções, tendo em vista fins de
pluralismo democrático; a ordem espontânea é uma estrutura que surge em virtude da auto-
organização (liberdade de associação) dos militantes que obedecem a regras comuns, como nos casos
de autonomia estatutária (por ex., eleições directas). Cfr. Pensamento Político… Org. João Carlos Espada
e João Cardoso Rosas, p.35.
15
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

correntes de opinião73 pretendida em face do 25 de Abril de 1974 e do período que se


lhe segue de propostas divergentes74 para a 3ª República, maxime no que toca ao
sistema de governo - e do passado de partido único imposto pelo regime autoritário, a
que já se fez referência.
De facto, estas duas vertentes partem de pressupostos ideológicos contrários, daí o
seu tendencial conflito existencial. Senão vejamos: a liberdade de associação em
Portugal é um contributo, apesar de tudo o que se disse em termos de história
constitucional, da realidade histórica de séc. XIX (ligado ao surgimento dos partidos de
notáveis). Está hoje plasmada no art.12º da Carta dos Direitos Fundamentais da União
Europeia, bem como no art. 46º da CRP, do qual se salienta o nº475, revisto em 1982 e
em 199776. De facto, a funcionalização constitucional desta matéria vem a existir a
partir de 1976. Assim, em sentido activo, introduzem-se princípios injuntivos de
organização, gestão e transparência dos partidos políticos, enquanto associações de
cidadãos políticos e livres. Já quanto aos princípios supra referidos, foram
acrescentados pela revisão de 1997, que aditou os nºs 5 e 6 ao art.51º - é a chamada
teoria da incorporação que, ao abrigo do 18 nº2, permite a restrição de direitos,
liberdades e garantias nos casos expressos previstos na Constituição (a ratio é
salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos). Como é
bom de ver, a Constituição de 1976 procura assegurar padrões mínimos do regular
funcionamento da democracia pluralista e do sistema de governo representativo.
Seguindo a fórmula sugestiva de Burdeau77, pode dizer-se que a liberdade (de
associação) não vai ao ponto de autorizar os atentados à verdade: (…)pode colidir com
outras liberdades, com a liberdade da pessoa na sua vida privada, ou com o interesse

73
Sobre o pluralismo na CRP, ver Jorge Miranda, Manual…,III, p.351. Em sentido diferente, Soares
Martinez, ob.cit, p.12-13.
74
Jorge Miranda, Manual…, I, p.321 e segs
75
A questão que se coloca hoje é saber se uma democracia deve comportar cláusulas de protecção ao
sistema constitucional de partidos democráticos (o que pode configurar o paradoxo da tolerância de
Popper, dizem os críticos) ou, se pelo contrário, não existem hoje razões objectivas para manter esta
restrição de cariz ideológico (o que em face por um lado da imprevisibilidade dos movimentos sociais
que se prevêem; e, por outro, da recente evolução de movimentos ilegais e partidos de extrema-direita
na Europa, por ex. na Finlândia, onde o partido dos Verdadeiros Finlandeses obteve uns expressivos 19,1
% nas eleições legislativas em 17 de Abril de 2011, elegendo 39 deputados em 200, é imprudente
afirmar com certeza). Posto em termos muito sucintos o problema, tendemos a concordar com a letra
da lei com base nas exigências de uma sociedade democrática própria, portadora de uma história
política particular à qual os órgãos de soberania não devem ser insensíveis, especialmente em períodos
de previsível turbulência social como o que vivemos. O nosso entendimento é sustentado pelos arts.
11nº2 e 17º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Em sentido contrário: desde logo o
professor Jorge Miranda, Manual…, tomo VII, pp.165-166; Paulo Otero, A democracia totalitária, p.263-
266; Soares Martinez, Comentários à Constituição portuguesa de 1976, p.70. Veja-se, para uma
perspectiva eminentemente filosófica, a tese da democracia militante em Plaza, ob.cit p.195 e segs..
76
As revisões expressam o exercício de uma faculdade do sistema política português que Pedro C.
Magalhães denominou de “reforming itself”. Cfr. Costa Pinto, ob.cit., p. 201-202.
77
Georges Burdeau, professor de Direito Público e cientista político (1905-1988). Quanto à obra deste
autor francês, veja-se o Traité de Science Politique (1980).
16
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

público objectivamente entendido. Utilizando outra terminologia, poderemos invocar


de novo as garantias constitucionais de participação política, por oposição à disciplina
partidária (expressa no princípio de auto-organização), que necessariamente terá um
âmbito de aplicação mais restrito e tendencialmente corporativo78. A este propósito
se fala de uma reserva do politicamente adequado79, que é em nosso entender, a
expressão do pluralismo democrático80 do sistema partidário e de governo enquanto
pressuposto da regulação normativa. Como sintetiza John Rawls81, se o apoio a um
regime democrático constitucional dependesse apenas de uma doutrina abrangente
com exclusão das restantes, a estabilidade desse regime estaria em causa, porque
muitos cidadãos não encontrariam razões para apoiar as instituições existentes.
Neste sentido, compreende-se a intervenção do poder constituinte para estabelecer
mínimos democráticos e requisitos legais - que devem ser conformes ao limites de
ingerência enumerados pela doutrina, com especial enfoque em matéria de direitos
fundamentais, como veremos adiante.

2.1.2 Requisitos legais, mínimos democráticos e limites de ingerência


normativa
A matéria relativa aos requisitos de democraticidade da organização e funcionamento
dos partidos políticos é regulada pela lei dos partidos políticos82: no art.15º da lei
orgânica nº2/2008 de 14 de Maio, é estipulado o número mínimo de 7500 cidadãos
para inscrever um partido político (nº1). Trata-se da tradução em norma infra-
constitucional dos princípios do art.51 nº5 da CRP. O controlo material compete ao
Tribunal Constitucional, nos termos do art. 223nº2 e) e h) da CRP, e divide-se em três
categorias de objectos: disposições estatutárias, deliberações dos órgãos do partido e
eleições83. Como é bom de ver, a lei exige pressupostos de facto para a criação de
partidos políticos, por forma a assegurar, dentro do possível, a sobrevivência dos
mesmos. Também é verdade que o número de militantes não é hoje já um elemento

78
Cfr. Plaza, ob.cit. p.83.
79
É Jorge Reis Novais quem o afirma. Ver As Restrições aos Direitos Fundamentais…, 2010, pp.141.
80
Ver nota nº 44, supra. Conforme teoriza John Rawls, o pluralismo razoável não tem – nem pode ter -
um carácter provisório ou acessório numa sociedade democrática. Nas palavras de João Cardoso
Rosas:”um consenso de sobreposição entre doutrinas abrangentes razoáveis que fundamente os
aspectos essenciais da Constituição e os principais arranjos económicos e sociais, sendo apoiado por um
exercício compatível da razão pública”. Cfr. Pensamento Político…, p.100-103.
81
J.Rawls, Political Liberalism, I,II,IV. Cfr. Pensamento Político…, p.101.
82
Aprovada pela lei orgânica nº2/2003 de 22 Agosto.
83
Matéria que não será aqui aprofundada. Ver, a título de exemplo o Acórdão nº290/2008, em que o
Tribunal se pronuncia negativamente sobre a existência de qualquer situação violadora do princípio
democrático (art.5º da lei dos partidos políticos). Para maiores desenvolvimentos, ver Garcia Cotarelo,
ob.cit, p.164 e segs.
17
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

essencial da implantação de um partido84 - contudo haverá, um número mínimo que


proporcione, à partida, condições de relativa igualdade no jogo eleitoral democrático.
Assim, os mínimos democráticos85 fazem sentido no quadro de uma Constituição
vigente86, que pretende pluralizar mas também fortalecer os partidos, entendidos
como esteios do sistema semipresidencial e de reconhecida dignidade constitucional,
como já acentuámos. Veja-se o art.18 nº1 b) da lei dos partidos políticos: prevê a
extinção judicial de um partido político que não apresente candidaturas durante um
período de seis anos consecutivos a quaisquer eleições (Assembleia da República,
Parlamento Europeu e Autarquias). Tal preceito deve ser lido atendendo ao art. 2º d)
da mesma lei, referente aos fins do partidos políticos, bem como ao art.1º que define a
função político constitucional dos mesmos: por um lado, os partidos concorrem para a
participação política; por outro, são responsáveis pela organização do poder político.
Por outras palavras, existe uma função de carácter marcadamente político87, que se
desdobra nas funções representativa e de titularidade e exercício do poder político.
Assim, podemos afirmar que todos os partidos “têm o direito e o ónus” 88 de participar
em actos eleitorais.
Para finalizar este ponto, releva discorrer brevemente acerca dos limites de ingerência
normativa – barreiras à acção constitucional, bem entendido. Na esteira de Carla
Amado Gomes, salientamos o art. 12nº2 da CRP (princípio da especialidade) e o art.18º
nºs 2e3 da CRP(relativos à proporcionalidade sancionatória)89. Assim, é também do
interesse público que os partidos se definam de acordo com o método pretendido
pelos seus órgãos colegiais que exprimem a sua identidade própria – em última
análise, na ausência de entraves à ingerência normativa, os partidos poderiam nascer e
viver de uma forma igualitária90, superando mesmo as semelhanças quotidianas que
resultam da subordinação ao moderno dogmatismo91 da prevalência dos interesses
económicos sobre os executantes políticos do século XXI. Enfim, tememos que a
adaptação ao séc.XXI das exigências do liberalismo de séc. XIX ( por exemplo, o
parlamento-arena e a abertura à opinião pública92) estejam a produzir um efeito

84
Veja-se a evolução traçada de partidos de militantes para partidos de eleitores, genericamente a
partir da 2ªmetade do séc. XX, em Pasquino, Curso de …, pp.187 e segs.
85
Também referidos por Plaza, ob.cit, p.43 e nota nº20.
86
Contrariando, por exemplo, Paulo Otero que, partindo de pressupostos críticos idênticos aos nossos,
conclui pela vigência de uma “constituição não oficial”. Cfr. A subversão da herança política liberal: a
presidencialização do sistema parlamentar …, pp.254 e segs.
87
A principal, a que acrescem as funções administrativa, financeira e disciplinar.
88
Afirmação de Jorge Miranda, no seu Manual…, tomo VII, pp. 176.
89
Cfr.Carla Amado Gomes, Os Partidos.., pp. 27-29. Sobre o princípio da proporcionalidade, ver Plaza,
ob.cit, p.81.
90
Assim faz sentido a tese da “inibição normativa”, apresentada por Fernandez de La Mora. Cfr.
Fernandez de La Mora, ob.cit., p.170.
91
Expressão de Ignacio Ramonet, jornalista e sociólogo galego, nascido em 1943.
92
Barbas Homem, O Justo e …, p.106 e segs; David Plaza, ob.cit, p.44. Ver ainda, supra, a propósito das
relações sociais imediatas e da mediatização da política.
18
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

pernicioso de uniformização partidária – isto é, assistirmos a uma eleitoralização


sistemática que é em parte explicativa da classificação actual de catch-all parties. Por
outro lado, há-que assegurar que a adesão a um partido não comporta mais do que
uma renúncia parcial93 ao exercício de direitos fundamentais94. Se assim não for,
podem os cidadãos exercer a liberdade de associação negativa95, conforme prescreve
o art.46nº3 da CRP. No fundo, trata-se de ponderar o grau óptimo de intensidade de
regulação pública, ensina Jorge Miranda.

2.2 Da prática: situações de democracia interna

De um ponto de vista próximo da filosofia política, Rawls96 coloca a questão: “Como é


que sociedades formadas por cidadãos livres e iguais podem ser simultaneamente
justas e estáveis?”

Se é verdade que a incorporação constitucional desempenha uma função não


despicienda, como se pretendeu demonstrar, também há-que reconhecer97 que os
princípios democráticos e as suas concretizações estatutárias democráticas concorrem
as mais das vezes com poderes menos previsíveis a considerar em situações de facto98,
como são a actuação dos militantes e das máquinas partidárias. Assim sendo,
enumeram-se de seguida três casos práticos de democracia interna, cuja solução
introduziremos tendo em conta o melhor funcionamento do sistema de governo que,
saliente-se desde já, nem sempre encontra correspondência prática nas soluções mais
democráticas, prima facie. Ou seja: os partidos prosseguem uma finalidade eleitoral,
eminentemente política, que fundamenta e limita a sua existência, de tal modo que

93
Cfr.Carla Amado Gomes, Quem tem Medo…, pp.612
94
“El principio de democracia interna admite varias concreciones, pero un elemento indispensable
reconiece al afiliado de todos los derechos fundamentales, com las matizaciones pertinentes para que el
partido pueda concurrir cohesionadamente a la formación y manifestación de la voluntad popular”. Cfr.
David Plaza, ob.cit., p.79 e segs.
95
A defesa da liberdade negativa foi primeiramente efectuada por Jeremy Bentham, na esteira do
liberalismo clássico inglês: ”Qualquer lei é uma infracção à liberdade”. Em 1958, na lição inaugural Two
Concepts of Liberty após receber a cátedra em Teoria Social e Política, vem Isaiah Berlin corrobar: “ Qual
a área na qual o sujeito deve ou pode agir sem interferência de terceiros? Liberdade política, neste
sentido, é simplesmente a área na qual um homem pode agir sem a obstrução de outros.” Cfr.
Pensamento Político…Org. João Carlos Espada e João Cardoso Rosas, p.63-65.
96
Ob.cit., p.89
97
Cfr. Cotarelo, ob.cit., p. 252-253. Segundo o A. cuja opinião perfilhamos, não bastam estatutos que
sigam postulados de princípios democráticos, é necessária a análise da organização e do funcionamento
real.
98
Cfr. Burdeau, ob.cit. p-96-98. Subjacente ao raciocínio gizado está a distinção feita por este A. entre
poderes de Estado e poderes de facto.
19
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

nas acções instrumentais em relação a esse fim os direitos dos seus militantes tendem
a ser relativizados por essa função constitucional99.

2.2.1 Voto secreto: a forma soberana das candidaturas partidárias


A questão do voto secreto pode ser considerada um exemplo paradigmático da
relevância externa dos procedimentos internos. Senão vejamos: se é nas eleições
partidárias que se decidem as candidaturas aos órgãos de soberania (excepção feita ao
Presidente da República) faria sentido algum que os órgãos dos partidos fossem eleitos
por uma votação de menor lisura democrática ?100 As eleições dos órgãos de soberania
realizam-se através de voto secreto (art.10nº1 CRP, aditado em 1982), pelo que os
putativos candidatos aos órgãos de soberania não devem ser portadores de menor
garantia democrática, no que toca ao procedimento eleitoral interno. Claro está que
esta garantia é ainda de suplementar importância em meios mais restritos, dado o
carácter mais imediato das relações de poder. Só observando esta forma
constitucionalmente prevista se cumpre estritamente a formação da vontade de baixo
para cima, conforme preconizada por Leibholz.

2.2.2 Eleições directas: evangelização ou democratização?


No entender de Habermas101, os processos informais de formação da opinião pública
geram influência que é transformada em poder comunicativo por via dos processos
eleitorais. Este poder comunicativo é transformado em poder administrativo
racionalizado, mas não sem a mediação da legislação. Assim, podem aspirar os
cidadãos a mais do que a mera legitimação, mas a menos do que à constituição do
poder político.

No que concerne às eleições directas, a prática generalizada vai ao desencontro


daquela que julgamos ser a melhor doutrina nesta matéria. À primeira vista, as
eleições directas significam a ausência de delegados eleitos que funcionam como
intermediários nos congressos partidários que designam os líderes. Porém, como
refere Vital Moreira102, este modelo de eleições internas pode traduzir a
personificação do poder e, assim, a presidencialização do sistema de governo dos
partidos: existe um risco de fenómenos de carácter pessoal como troca de favores por

99
O que parece significar uma diminuição de garantias em comparação com os cidadãos não filiados em
partidos, com vantagem para o funcionamento dos partidos, conforme se preveniu supra. Cfr. Plaza,
ob.cit. p.88 .Haverá um paradoxo democrático que faz com que aqueles que se inscrevem no
instrumento privilegiado de participação política se vejam empobrecidos na sua dimensão individual,
conforme afiançaram os defensores do liberalismo? Quererá isto dizer que a participação política
implica em todo o caso uma subordinação às formas processuais da democracia que dificulta a efectiva
repercussão das ideias ?
100
Como indaga Jorge Miranda no seu Manual…, tomo VI, pp.172: Como prescrever o voto secreto para
os órgãos do poder público e não o prescrever para os órgãos do partido ?
101
Acerca do modelo normativo de política deliberativa. Pensamento político…p.339 e segs.
102
Vital Moreira, Da democracia partidária, crónica de 2 de Julho de 2007, no Jornal Público.
20
À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

votos103, de exploração emocional104 dos militantes de base e de populismo


demagógico – em suma, tende a prevalecer a discussão acerca dos candidatos, com
prejuízo para o debate das propostas políticas que cada um apresente. Tal mecanismo
pode acentuar também, por outro lado o poder pessoal105 dos líderes e a
marginalização das oposições internas (ver infra). É interessante verificar que partindo
desta caracterização, que entendemos realista, podemos observar um tendencial
caciquismo, típico nos partidos de notáveis de séc. XIX, e um apelo à sobrevalorização
da emoção em detrimento da razão, reconhecível no sentimento de pertença
idealizado pelos grandes partidos de massas. Concluímos esta breve nota dizendo que
existe autonomia estatutária nesta matéria, dado que a Constituição impõe ao
legislador uma norma permissiva (ao abrigo do 46nº2 da CRP, já referido a propósito
da liberdade de associação). Escusado será dizer que a opção pelas directas se
repercute na configuração prática do nosso sistema de governo, por exemplo na
possibilidade prática de presidencialização do primeiro-ministro106, enquanto
expressão da maioria partidária instrumentalizada a partir dos procedimentos
eleitorais internos. Já estes demonstram, prima facie, que os partidos são
parlamentares, mas que há, bem vistas as coisas, também uma tendência interna para
o presidencialismo107, pela acumulação de poderes nos órgãos executivos dos partidos.

2.2.3 Direito de tendência e correntes de exclusão


No seguimento do que vem sendo escrito, o também chamado direito de facção
releva conquanto possa interferir na formação das chamadas oligarquias partidárias. A
liberdade de organização de correntes no interior do partido, que disputam entre si o
poder dos órgãos internos (ou ainda mais sem tal finalidade), é uma questão
paradigmática de funcionamento da democracia no interior dos partidos uma vez que
interfere com a liberdade de expressão de cada militante. Cabe advertir a priori para a
presumível consequência, caso haja o ensejo de positivar o direito de tendência: uma
previsão legal do direito de tendência poderia retirar espaço (i.e. tempo de antena) ao
papel individual e único na sensibilidade de cada militante, e assim sendo se observaria

103
A expressão inglesa que designa esta prática inaceitável é logrolling. Segundo Costa Pinto, o
clientelismo existiu com grande expressão no séc. XIX. Infere-se que por esta altura terá começado esta
prática. Cfr. Costa Pinto, ob.cit., p.3
104
Cfr. Burdeau, ob.cit, p.34. O A. refere, logo no início do 2º parágrafo, que “Há uma certa inclinação
que impele os indivíduos a personalizar a autoridade. Um instinto ou uma inflexão sentimental incita-os
a dotar de uma figura a força que os obriga”. Na esteira de Weber, que explicou como um vínculo
institucional não poderia ser sólido sem a crença nas virtudes pessoais do chefe.
105
Ou numa expressão idêntica, o poder individualizado de que fala Burdeau. A este propósito, faz-se
referência ao poder carismático teorizado por Weber, que já se referiu acima. Cfr.Burdeau, ob.cit. p.30-
33.
106
É esta a tese com maior ênfase, entre outras. Paulo Otero, A subversão da herança política liberal: a
presidencialização do sistema parlamentar…, pp.254 e segs.
107
Neste sentido, Garcia Cotarelo, Los partidos políticos, p.162.
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

o crescimento de oligarquias de interesses108. Por outro lado, a finalidade eleitoral dos


partidos políticos requer uma imagem una para o exterior ( tem-se comprovado que
tal é do agrado da opinião pública109): concretizando, há-que evitar a formação de
correntes de exclusão110 que se opõem à construção da unidade interna e que se
tornam um obstáculo à implementação eleitoral, nacional ou regional do partido,
colocando inclusive em causa a sobrevivência do mesmo num dado contexto temporal
ou territorial111. Por outro lado, é evidente que um grau controlado de fraccionismo
deve ser encorajado, quanto mais não seja por emanar da liberdade de apresentação
de candidaturas aos órgãos. Acrescentamos que é até desejável – e expectável - que
estas representem um instrumento de participação política ao alcance de todos os
militantes, enquanto expressão de acentuado espírito crítico e de debate que se traduz
numa viva e equilibrada democraticidade interna, que indiscutivelmente contém
externalidades positivas a considerar: impossibilitar a ascensão de um pequeno
número de coligações oligárquicas112, que sobrevivem cooperando entre si para
assegurar, em certos casos, núcleos de interesses extra-partidários113 que configuram
as mais das vezes ingerências pouco democráticas114 na vida dos partidos e, através
dessas, influências anti-democráticas no sistema partidário e de governo.

108
Com Michael Walzer: Compreensões partilhadas no seio de comunidades concretas. Os princípios
adequados às diversas esferas não se harmonizam uns com os outros, o mesmo acontecendo com os
padrões de comportamento e de sentimento que geram. Pensamento político…, p.145-152
109
“Pode ser esta uma das causas que explicam o relativo primado socialista no governo desde o início
do presente século, em face das múltiplas vozes que se degladiam no interior do principal partido da
oposição, o PPD/PSD.” Apesar deste último partido ter ganho recentemente as eleições julgamos que se
justifica manter a nota original desta investigação para uma melhor panorâmica de séc.XXI, observando
agora com atenção a formação de correntes no principal partido da oposição, o PS.
110
Expressão de Navarro Méndez, em castelhano, “corrientes excluyentes”. Em termos sinónimos,
Cotarelo classifica esta realidade de “fracciones”.
111
Na fórmula sugestiva de Cotarelo: “La intención de aplicar al interior de los partidos de modo
mecánico la libertad irrestricta de expresión no tiene verdadera eficacia y, caso de tenerla, convertiría a
los partidos políticos en algo más parecido a sociedades recreativas(…)” Garcia Cotarelo, Los partidos
políticos, p.160. No mesmo sentido, Plaza, ob.cit, p.88.
112
Neste sentido Paulo Otero, A democracia…, p.263. O A. fala de “um novo tipo de senhorio de grupos
de interesses”. Também Cotarelo, ob.cit, p.246-247 refere que “la formación de la voluntad política y en
el proceso de adopción de decisiones, hay manifiestamente una situación típica de lobby.”
113
Cfr.Cotarelo, ob.cit, p.253: “sería ingenuo ignorar que los partidos son muy sensibles a los prestigios y
situaciones de hecho, producidos fora de su seno (…) los partidos pueden reaccionar integrando en su
acción sistemas de promoción de élites extrapartidistas”. Conexo com esta situação situa-se o princípio
da seniority, que significa uma preferência dada a personalidades com prestígio e influência social, de
que são exemplo os dissidentes de outros partidos, que tendem a prevalecer sobre os militantes do
partido. Na prática, esta seniority expressa uma espécie de tutela destas elites sobre o funcionamento
interno.
114
Por exemplo, como refere Cotarelo, o comportamento oligárquico dos órgãos partidários faz com
que estes se renovem por cooptação, em lugar de o fazerem por eleição, a verdadeira forma
democrática e soberana, como se salientou. Garcia Cotarelo, ob. cit., p.163
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constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

Conclusões
Se é verdade que a falta de democracia interna é uma crítica constante, também é
correcto reconhecer que os partidos têm vivido bem com esta. Julgamos que, na
mesma direcção em que se incorporaram os partidos no sistema de governo
constitucional, é hoje momento de se lhes exigir uma resposta à altura dos tempos.
Mas não nos iludamos: os cidadãos são os agentes responsáveis por esse impulso
necessário e também, em última análise, os prejudicados. Se hoje a perspectiva liberal,
na concretização do Estado mínimo, faz escola a nível nacional e – sobretudo -
europeu, ao menos que se aproveitem os contributos que esta trouxe à relação
inalienável de cada cidadão com os seus direitos individuais e com a sua esfera de
participação social e política.

Se podemos concluir do que se estudou que a evolução constitucional ao longo de dois


séculos de história tem sido, acima de tudo, progressista, não se poderá adjectivar nos
mesmos termos a mutação entretanto ocorrida no interior dos partidos, que é
sobretudo sociológica, vistas as assinaláveis diferenças políticas. Apesar dos contextos
sociais e políticos diferentes e das novas formas de participação social e política,
persistem vícios antigos na esfera interna, que se afiguram quase naturais e que dão
forma e matéria ao défice democrático interno. Daí que em face do exposto se saliente
a importância de um Estado democrático que assegure, a montante e a jusante, a
participação política segundo princípios democráticos. Por forma a assegurar esse
desiderato, é essencial recordar que as assimetrias de participação política
democrática, maxime eleitoral, são também resultado de uma desigualdade de
rendimentos e condições de vida(veja-se por exemplo o fenómeno demográfico de
êxodo rural). Importa enfatizá-lo para que não se ensaiem retrocessos num futuro
próximo: “a justiça é uma construção humana e é duvidoso que só haja uma maneira
para a atingir”, disse o norte-americano Michael Walzer um dia.

É do senso comun que os políticos necessitam de uma revisão, em face do seu papel
insubstituível a manter e a actualizar. No quadro de uma Constituição vigente, esta
será tanto mais frutífera se for realizada por genes partidários internos, através da
inscrição de novos militantes. E, por fim, tudo volta ao cidadão – em torno de uma
actividade social e política com finalidade de bem comum: a democracia. Poderá
dizer-se, com alguma razão, que as conclusões que enunciamos não serão
propriamente novidades animadoras. Ainda assim, com muito menor dificuldade
poderia a actividade partidária comprometer o pluralismo democrático que
defendemos se estivesse omissa dos textos constitucionais. Assim, indentifiquem-se os
entorses e qualifique-se a realidade, para estatuir com solidez – eis o desafio
permanente do Estado de Direito democrático, renovado em cada cidadão pluralista,
conforme teorizado por Michael Walzer, na tentativa de demonstrar que o justo é um
conceito eminentemente histórico e de natureza política.
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À média luz da Democracia interna: sombras e reflexos
constitucionais na incorporação do multipartidarismo português

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