Introducao Luso

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Índice
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Folha de Rosto
Nota Previa
I — A Política, os Políticos e os Outros
II — O Que é a Política
III — Breve Roteiro Histórico das Teorias Políticas em Portugal
IV — O Homem, a Sociedade e o Estado
V — A Organização da Sociedade
VI — Domínios da Organização Social: Estrutura (ou Base) e
Superestrutura
VII — Natureza e Funções do Estado
VIII — Elementos e Aparelhos do Estado
IX — Formas de Estado e Formas de Governo
X — Ideologia, Ideologias e Aparelhos Ideológicos do Estado
XI — A Crise Geral do Capitalismo, O Fascismo e a Demotecnocracia
XII — O Socialismo e Algumas Experiências Socialistas
XIII — Movimento Operário e Socialismo em Portugal
Introdução à Política I

Fernando Luso Soares

Os filósofos não têm feito mais do que interpretar o


mundo de diferentes maneiras, mas o que importa
agora é transformá-lo.

Marx, 11ª Tese sobre Feuerbach


Nota Previa
Começou, este livro, por ser projectado como um simples
curso de introdução à política, o qual deveria satisfazer, em termos
gerais, as exigências do «programa» que para esta disciplina fez
publicar o Ministério da Educação e Cultura. A breve trecho, porém,
o horizonte modificou-se. A formação política, que hoje se visa
alcançar, é evidente que não importa só aos alunos, mas a todos
nós, que neste momento todos somos aprendizes da prática
política numa sociedade em vias de democratização.

Este volume, portanto, não subverte as linhas fundamentais


do programa oficial. Aliás, a simples comparação do seu sumário
com o esquema daquele programa (que, como se sabe, é de
natureza meramente experimental) levará a que se compreendam
os motivos essenciais dos desvios, dos acrescentamentos e
eliminações que, aqui è ali, entendi dever fazer. E para um queria
eu chamar desde já a atenção do leitor: — a inclusão, como
matéria do 3.° capítulo, de um breve roteiro histórico das teorias
políticas em Portugal. Sucinto e imperfeito é ele, sem duvida. Mas
indispensável para o estudante (para o estudioso) português de
Política.

Por fim, escusado seria dizer que este livro traduz os pontos
de vista teóricos e ideológicos do seu autor. É preciso acabar com o
ensinamento neutro, o qual constitui uma forma baixa de
irresponsabilidade. Ao leitor, aos professores e aos alunos, a esses
é que competirá aceitar ou rejeitar este, aquele ou todos os
aludidos pontos de vista expressos neste livro. Numa sociedade
democrática, o verdadeiro estudo não se resume ao ler e repetir. A
prática da reflexão, que pode conduzir à livre discordância, eis a
sanação de que os nossos espíritos tanto necessitam hoje.
I — A Política, os Políticos e os Outros
O programa que o Ministério da Educação e Cultura publicou
recentemente a respeito da disciplina de «Introdução à Política»,
define como objectjvos primaciais a descrição, a informação e a
clarificação dos respectivos problemas, de forma a se propiciar aos
estudantes um panorama de conjunto, uma primeira identificação
com as instituições, as práticas e as ideias correntemente referidas
nos órgãos de comunicação. Mas o programa tem, aliás
justamente, uma ambição maior. Ele pretende suscitar o interesse e
o gosto pela prática da democracia e, portanto, pela política.

A cultura política exige uma correlação constante entre o


sector teórico e o sector prático.

O pensamento político, se se circunscreve a viver no mundo


das abstracções e dos ideais, quase sempre sonhos inalcançáveis,
não passa do campo das utopias. Uma introdução à política —
parece — só se revelará uma disciplina válida e eficaz na medida
em que implique (como explicitamente apontam as observações
prévias do programa oficial) um constante recurso ao caso
concreto, uma confrontação permanente com as situações práticas
que corporizam as noções e dão vida às ideias.

Precisamente por isso, desde logo me permito reformular em


termos um pouco diferentes a abertura do esquema programático
oficial. Este divide-se em cinco grandes partes: — «Que é a
Política?»— «Principais Ideologias Políticas» — «Sociologia
Política» — «Regimes Políticos» — «Comunidade Internacional».
Se nos ativéssemos estritamente a este enunciado, o estudante e a
pessoa interessada nas questões da Política correriam o risco de
entrar no edifício desta disciplina pela sua porta mais abstracta.

Vejamos o que pode acontecer.

O primeiro ponto do esquema programático é, como vimos, o


enunciado de uma simples interrogação:— «Que é a Política?».
Ora o tratamento desenvolvido da resposta (ou das respostas) a
esta pergunta pode levar-nos a verificar aquilo que, muito
concretamente (muito apavoradamente), me contava há dias uma
aluna do 1.° ano complementar do Curso Liceal. Logo na primeira
aula o professor disse «escrevam» e eles, alunos, passaram a
escrever. E o quê? Muito simplesmente dezena e meia de
«definições» de política ao longo de vários filósofos, pensadores e
autores: — política para Platão era isto, para Aristóteles era aquilo,
para São Tomás de Aquino aqueloutro, para Maquiavel outra coisa
ainda, e outra para Descartes, outra para Locke, para Voltaire,
Rousseau, Marx, Engels, Lenine, etc., etc., etc.... — enfim, uma
grande barafunda estabelecida, logo à cabeça, na cabeça dos
alunos.

Em consequência deste risco de caos, precisamente pela


necessidade de introduzir a pessoa que pretende ser estudiosa dos
problemas políticos nas suas relações teóricas e práticas, é que me
permiti — como já atrás disse — substituir o primeiro ponto do
esquema programático («Que é a Política?») por um capítulo em
que, de manifesto, o aspecto teórico e o aspecto prático convivem e
se fundem incindivelmente. Vamos portanto começar por falar de
política conjuntamente com o falar dos políticos, e ainda dos outros
— precisamente daqueles que, não fazendo «profissão» da política,
pensam que não são políticos.

A política, naturalmente porque traduz a vivência de todos os


nossos interesses (materiais e espirituais) postos em causa, presta-
se com facilidade quer a um jogo de lealdades e de nobrezas à
superfície, quer a um jogo de deslealdades, de hipocrisias, de
farisaísmos mais ou menos subterrâneos. Por causa desta
conjuntura é muito difícil, se não mesmo impossível, que uma
pessoa alheia (ou não alheia) à vida política se atreva a comparar
um político, vá lá, com um santo. Voltaire perguntava-se:

— «Que é a política se não a arte de mentir a propósito?».

E por sua parte, decerto porque era grande poeta e


respeitava ao máximo a grande Poesia, Goethe escrevia e
interrogava-se desta forma:

— «Quando o poeta quer fazer política, é obrigado a entrar


para um partido e, a começar logo por aí, ele está perdido
para a poesia. Será necessário que abandone a sua
liberdade de pensar, a lucidez e a clarividência, e que
enterre até às orelhas o barrete do pensamento mesquinho e
do ódio estúpido?»

Escolhi estes dois nomes de alta ressonância cultural para


nos apercebermos, sem a paixão da proximidade no tempo
relativamente a nós próprios, daquilo que as pessoas tendem a
pensar da política. E no que nos respeita, mais directamente, aos
produtores da cultura portuguesa, também não hesitaria em
mostrar aquela espécie de desconsideração geral em que a boa
gente do viver quotidiano tem os políticos. Na nossa literatura, por
exemplo, um Eça de Queiroz, um Ramalho Ortigão, um Fialho de
Almeida e uns tantos outros desenharam-nos o político como um
homem maneiroso, artificial, ambíguo em todas as atitudes que
requeressem verticalidade e espinha dorsal, movido unicamente
pelos seus interesses pessoais, ou alheios, mas sempre baixos.
Aliás, coisa curiosa, mesmo o padre António Vieira — que se
enfronhou na política até ao último dos seus ossos — não deixou
de escrever, como escreveu, a propósito dos políticos («Sermões»,
volume VII, págs 116 da edição Lello & Irmãos):

— «Tempos houve em que os demónios falavam e o mundo


ouvia; mas depois que ouviu os políticos ainda é pior o
mundo...»

Quererão dizer que a política é recusável?

Significará isto que a política é um reino infernal, sem


remédio ou moral que o salve ou lhe valha?

Estas questões obrigam-nos a uma reflexão.

A política e a moral talvez tenham vínculos menos inflexíveis


do que aqueles que as pessoas pensam. Evidentemente, não se
pode eximir a política ao julgamento da moral. Porém, apesar de
ser desejável que o homem político seja sempre um homem de
bem, esta relação não se pode situar a um nível absoluto. Quer
dizer: — a política toma a seu cargo os destinos das comunidades
humanas como tal, independentemente da qualidade moral e da
vocação pessoal dos membros dessas mesmas comunidades. E a
afirmação que acabo de fazer não é tão escandalosa como à
primeira vista parece. Tem a seu favor, até, um apoio que eu diria
clássico. Como afirmou Aristóteles («Política», III, 4, 1276 B 34-35),
é possível ser bom cidadão sem se possuir todas aquelas virtudes
que fazem da pessoa um homem mortalmente intocável. Julien
Freund chega a entender («O que é a política?», Editorial Futura,
1974, págs. 7) que a identificação da moral com a política, quando
se pretende reconduzi-la a termos absolutos, chega a constituir
uma das fontes mais vulgares do despotismo e das ditaduras. O
déspota, o ditador, o tirano moderno (como aliás o antigo) nunca
cessou de se figurar como incriticável por virtude de se arrogar,
carismaticamente, a todas as qualidades da perfeição humana. Em
consequência, resulta que a moral não é inerente à actividade
política por questões de necessidade conceituai ou lógica. Agir
politicamente não representa, em suma, a mesma coisa que agir
moralmente — e vice-versa.

Sendo então a moral e a política duas actividades distintas


por natureza, na medida exacta em que os seus objectivos são
diferentes, mostra-se evidente que o mesmo tem de acontecer no
plano prático. A simples qualidade ética do sujeito não constitui
garantia de qualidade ou de eficácia política. O verdadeiro político é
antes o homem de larga visão dos negócios públicos. É o promotor
da satisfação dos interesses colectivos. O arquitecto inteligente,
lúcido e pertinaz de programas e planos de interesse social. Sem
dúvida, todos desejarão que o político seja o mais possível uma
pessoa moralmente qualificada, repito. No entanto, deve ficar bem
claro que a validade e a eficácia de uma política não se define,
basicamente (necessariamente), pela angélica moralidade dos seus
sujeitos.
Intitulei este capítulo «A Política, os Políticos e os Outros». E
alguma coisa ficou já dita sobre os políticos. Reservo para o
seguinte a resposta à primeira questão do esquema programático a
que me venho referindo. Terminarei, pois, falando ainda dos
«outros» — isto é, de todos aqueles que não se dedicam
directamente à actividade prática da política.

Significará isto que os outros se limitam à posição de


espectadores da actividade política ou, ainda pior, de sujeitos
passivos (para não dizer puros objectos) de uma actividade política
alheia?. Neste ponto, recordo as palavras das observações prévias
do programa da disciplina «Introdução à Política» que o Ministério
da Educação e Cultura tornou público há pouco. Esta cadeira
destina-se «desde já a suscitar nos alunos (logo, nas pessoas em
geral) o interesse e o gosto pela prática da democracia, e, portanto,
pela política». Isto quer dizer, muito directamente, que em regime
democrático todos somos políticos. Só nos regimes ditatoriais ou
tirânicos a política é uma espécie de propriedade exclusiva do
governante que a impõe irrecusavelmente ao seu «rebanho» de
surdos, cegos, mudos e paralíticos. A vivência democrática implica,
ao contrário, que todos os membros da sociedade se
consciencializam e participam nos destinos da respectiva
comunidade. Afinal, tal vivência é aquela única que concorda com a
velha afirmação de Aristóteles, em cujos termos «o homem é um
animal político» e nisso se distingue, essencialmente, dos restantes
animais.

A política invadiu a nossa vida quotidiana. São palavras do


dia-a-dia: — liberdade, democracia, fascismo, ditadura, eleições,
soberania popular, luta de classes, proletariado, vontade colectiva,
etc., etc. — um mundo no plano do vocabulário que coloca a
pessoa numa de duas situações: ou se esclarece e participa, ou
anda simplesmente no tempo moderno por ver andar os outros,
sem nada entender dele. Além disso, cada vez mais os problemas
da nossa sociedade requerem que o cidadão se clarifique quanto a
um ror de conceitos: — o que são os preços, o que é a inflação, o
que é o salário, o emprego, o ambiente, as necessidades e o modo
das suas satisfações, tudo na medida em que tudo depende dos
modelos de civilização que o homem procura, participando o mais
possível e em seu proveito nas decisões da colectividade. A política
penetra, enfim, a nossa existência em todos os níveis.

Isto leva-nos a uma conclusão imediata: a politização, a


consciencialização política, é para todo o cidadão um dever prático
e constitui, para aquele que sabe um pouco mais destas coisas, um
dever pedagógico. A reflexão sobre os temas políticos limitava-se,
no regime ditatorial anterior ao 25 de Abril, a um estreitíssimo
sector da população. As massas foram reduzidas ou mantidas na
ignorância e na indiferença. Viviam esmagadas pela violência, sem
saberem até bem porquê e como. Mas hoje, no caminho de uma
democratização desejável, chegou a altura de todo o cidadão
procurar desempenhar na política um importante papel, para assim
exercer útil influência na vida nacional.

Mas há quem pense que a despolitização representa uma


característica das sociedades desenvolvidas modernas. A
abundância de bens económicos, a maior disponibilidade de
produtos para a satisfação das necessidades da população, tudo
terá levado — segundo pensam alguns (mal, diga-se desde já) — a
uma espécie de pacificação social. Vivendo na sociedade da
abundância, o homem resultaria anestesiado quanto às suas
faculdades políticas. Comer o suficiente (ou até o excedente) e com
largueza satisfazer as suas necessidades — numa palavra, viver
conforme um elevado nível de vida social e económica — levaria o
cidadão a anestesiar-se politicamente, a dcspolitizar-se, resultando
cada vez mais uma crescente massa de população por isso mesmo
tornada conservadora. Para quem assim pense, a
consciencialização política ou a politização constituirá um facto
anómalo. Que nos fique, porém, esta advertência: — eis uma
concepção que só convém aos reaccionários e aos ditadores.

A realidade é, com efeito, muito outra. Em virtude de uma


espécie de paradoxo (aliás facilmente explicável) o crescimento dos
níveis de vida, ao contrário de aumentarem a passividade do
cidadão, opostamente hipertrofiam e amplificam ou exasperam as
reivindicações sociais e económicas. Esta verdade foi lucidamente
sintetizada por Jean-Pierre Lassale («introdução à Política», edição
portuguesa D. Quixote, págs. 47):

— «A contestação — escreve Lassale — é tanto mais forte


quanto mais aumentam os recursos colectivos».

E como explicar, mais fundamente, este fenómeno à primeira


vista contraditório?

A politização das sociedades contemporâneas provém


fortemente da importância assumida pela ideia crítica que se faz do
Estado, da necessidade de transformação das nossas vidas e da
nossa mentalidade. Aí colaboram activamente os meios de
comunicação social (imprensa, rádio, televisão), poderosos
veículos e fonte de difusão política. Os meios de comunicação (os
mass media) favorecem as tomadas de consciência ao mesmo
tempo que generalizam ou universalizam as polémicas antigamente
circunscritas a cada sociedade nacional. O fenómeno, porém,
merece ainda outra explicação.

Nas modernas sociedades industriais, largamente


desenvolvidas do ponto de vista da produção, a tendência é para
que aumente a consciência crítica das pessoas. A sociedade
tradicional caracterizava-se por uma espécie de passividade. Os
diferentes agrupamentos nacionais eram de certo modo
impermeáveis uns nos outros, sendo difícil compará-los entre si, de
tal modo o estatuto económico-social de cada um surgia como
espécie de fatalidade a que os respectivos membros não lograriam
nunca escapar. Mas o progresso do nível de vida, o aumento da
importância das organizações de pessoas, a aludida difusão da
informação, tudo isto tornou mais fáceis as comparações,
amplificando o nível da consciência política.

Antigamente, quando era pacífico o entendimento de que a


sociedade burguesa tinha os seus órgãos políticos e estes
asseguravam a ordem estabelecida — ordem essa onde aos
trabalhadores nada mais competiria além de operar exaustivamente
nas fábricas e oficinas para a produção da riqueza nacional
(canalizada para a classe dominante) — a consciencialização
política era considerada, como continua a ser por parte de todos os
reaccionários, manifestação subversiva do ponto de vista social.
«Subversiva», no mau sentido, entenda-se.

É necessária, porém, cada vez mais uma transformação da


mentalidade. A consciência humana forma-se no transcorrer da
actividade especial da produção. No trabalho, adquire o homem
consciência das suas relações com o meio ambiente, convivendo
todos os que participam na produção. Escusado seria dizer que,
aparecendo a consciência como resultado ou efeito consequente
do trabalho social, não a possuem nem sequer os animais
superiores. A consciencialização pressupõe a capacidade de
organizar racionalmente a produção. Todo o membro da sociedade
tem de trabalhar, tem de participar na produção, e assim aumentará
a sua consciencialização político-social. Não é exacto, em suma,
distinguir os políticos dos outros. Repito: — como dizia Aristóteles,
o homem é um animal político.

E vamos então, depois de assentes todos estes


pressupostos, responder à pergunta capital: — «Que é a Política?».
II — O Que é a Política
Trata-se de uma interrogação secular — interrogação que
vem de Aristóteles aos nossos dias, e jamais cessará de ser feita.
Mas a resposta à pergunta do que realmente seja a
Política,dependerá sempre da óptica, da ideologia, do critério
segundo o qual se responda.

A política — eis um critério possível de distinção — pode ser


considerada fundamentalmente de dois modos: — do ponto de
vista prático ela é uma forma de actividade humana; do ponto de
vista teórico constitui uma ciência. Fala-se, por isso, de política ou
para significar a actividade política dos homens ou para aludir à
ciência política (a «politicologia», como alguns hoje lhe chamam).

Vamos abordar estes dois modos de ser pela ordem que


acabo de indicar: — primeiramente o ponto de vista prático e
depois o teóriço.

Do ponto de vista prático, enquanto (portanto) consideramos


a política como actividade dos homens, diremos que este conceito
se prende directamente à raiz etimológica da palavra. Política é
vocábulo de origem grega e significa «viver em sociedade». E pois
que todos os homens vivem necessariamente em sociedade, por
isso mesmo Aristóteles afirmava que o homem é, pelo seu próprio
ser, um animal social.

No quadro deste conceito (a política vista como actividade


prática dos homens) temos no entanto e ainda de distinguir dois
sentidos especiais. Num sentido amplo ela representa a actividade
quotidiana de todos os elementos da sociedade na realização dos
seus interesses individuais ou colectivos; ao contrário, num sentido
restrito, como forma específica de actuar daqueles que fazem dela
a sua forma particular de actuação, a política representa o exercício
de um poder organizado com o objectivo de comandar ou orientar
os destinos de determinado agrupamento humano. Quer isto dizer
que, em suma, enquanto por um lado e em sentido amplo todos os
homens fazem ou realizam diariamente a política dos seus
interesses, por outro, e em sentido restrito, os políticos exercem os
poderes instituídos com vista a realizar os fins para que a
sociedade se organizou.

Vejamos, em primeiro lugar, a política como expressão da


dinâmica geral de todos os seres humanos na sua actividade
prática.

Aí percebemos que, à excepção do que acontece com os


homens, todos os animais agem improgressivamente,
condicionados pelo meio em que nascem, vivem e morrem. Mesmo
numa abelha (animal que nos impressiona pela disciplinada e
funcionalíssima forma como se comporta) não é possível o
aparecimento de um desígnio, de propósitos conscientes. Nem de
uma ideia de progresso social. A abelha sempre fez e sempre fará
em construção igual a estrutura geométrica dos seus favos. É que
todos os animais não humanos vivem e viverão no mundo da
Natureza limitados pelas suas próprias condições.

O seu instinto pode revelar-se-nos um veículo para


actividades extremamente hábeis, mas eles serão sempre
incapazes de conseguir a conquista de um destino diferente ou a
transformação das estruturas do grupo. O animal não-humano
jamais poderá alterar, por força da vontade, o seu destino social.

Contrária é a relação que se estabelece entre o homem e o


meio ambiente que o circunda. Ainda que nos tempos mais
primitivos, há milhões e milhões de anos, ele vivesse e se
comportasse como os seres mais rudimentares, a verdade é que
por força do trabalho (produto da inteligência em aliança com a
vontade) logrou o homem transformar-se. e sempre continuará a
conseguir, a transformação do meio em que vive. Tal transformação
pelo trabalho efectua-se não só quanto às condições físicas e
geográficas da existência, mas também naquilo que respeita à
evolução social, criando-se instituições, organizando-se diferentes
modos de associação, tudo a caracterizar formas de consciência e
vida espiritual. Passo a passo, ao longo dos séculos, foi então o
homem descortinando e compreendendo os segredos da Natureza.
Foi descobrindo as leis dos fenómenos, utilizando os recursos
naturais. E. correlativamente, formou ideias e estatuiu costumes.
Opostamente a todos os outros animais, que continuarão sempre a
viver as mesmas «ideias», operando sempre conforme os
mesmíssimos «costumes», o homem opera dia-a-dia, em forma de
progresso, a transformação da sua própria sociedade.

Todo o homem é, em suma, um animal político. Todos os


homens participam na política como actividade prática em geral.
Veremos mais adiante (no 4.° capítulo deste livro) que em dado
momento da sua aventura histórica chegou o homem a um ponto
em que transformou em Estado o seu agrupamento. Por ora limitar-
nos-emos a dizer que, chegada essa fase histórica do Estado, a
política traduz-se, em sentido amplo e como prática social geral, na
participação de todos os homens (de todos os cidadãos) nos
assuntos do mesmo Estado. Uns limitam-se, repito, à actividade
participante sem outro desígnio que «o tratar da sua vida». Mas
outros, que diríamos ou mais ambiciosos ou mais conscientes da
necessidade de progresso e transformação social, levam tal
actividade participante ao ponto de querer mandar (de comandar)
nos destinos da sociedade. Vemos esta, então, nitidamente
distinguir no seu seio o sector dos governantes do sector dos
governados. E, dentro da actividade prática geral que a Política
constitui, vemos também que o primeiro destes dois sectores, o dos
governantes, a leva (à política) a figurar-se por uma parte como a
conquista do poder, e por outra, como o exercício desse mesmo
poder.

Em resumo: — políticos, dizia-se no primeiro capítulo, somos


nós todos, como homens que somos: mas políticos são-no,
especialmente, aqueles que procuram conquistar e exercer o poder.

Passamos então, olhando agora o homem como político em


sentido restrito, a encarar a política como actividade ou exercício
prático de um poder organizado. Isto é: — de um poder que se
instituiu com vista à realização de determinados fins sociais. É
então que se fala da política como arte de governar — em oposição
à política como ciência, que mais adiante analisaremos nos seus
traços gerais.

Pensadores e autores vários, referindo-se à actividade ou ao


exercício prático do poder, declaram que a política constitui uma
arte. E o conceito não representa uma coisa nova. Já os gregos da
Antiguidade Clássica — mestres da Política — definiam esta como
«a arte de governar os povos». Eis uma concepção que atravessou
perenemente os tempos, de tal modo que ainda recentemente, em
1962, Robert caracterizava a política como «arte e prática da
governação das sociedades humanas».

É verdade que desde há séculos procuram os pensadores


distinguir entre a Arte e a Ciência. Mas não se ignora que nenhum
artista (nenhum praticante da arte) deixou alguma vez de se
socorrer dos conhecimentos científicos do seu tempo, para realizar
a produção da sua obra artística. Então, e no plano que agora nos
importa, diríamos que a arte política da governação dos povos se
nutre constantemente dos dados científicos que ilustram o universo
conceituai da sua época.

Littré, em 1870, pretendia que a política era uma ciência. Eis


o seu conceito: — «Política — ciência da governação dos
Estados». Porém, nesta definição ele não estava a utilizar o termo
«ciência» no sentido que iremos empregar mais adiante, ao
analisarmos a política do ponto de vista teórico. Sem dúvida, não é
de mais repetir, toda a arte está sempre mais ou menos cientificada
no seu contexto ou na sua estrutura. Compreensivelmente, hoje a
política encontra-se bastante mais cientificada que que no tempo
de Littré. Os políticos da actualidade podem socorrer-se de
estatísticas e sondagens da opinião pública, têm ao alcance várias
técnicas de condução das massas e calculadores electrónicos. Mas
isto não confere à política prática o carácter de ciência. De modo
nenhum. Antes só revela e torna patente que a política, como
actividade prática, é uma arte cada vez mais cientificada. Ou mais
correctamente: — que a política prática é uma arte que dispõe cada
vez mais dos dados da Ciência.

Vou procurar demonstrar este facto com um exemplo


baseado no pensamento político de Lenine, que hoje tem a maior
acuidade.

No capitalismo, as leis dos fenómenos económicos actuam


cegamente. Ao contrário, como se sabe, a política económica
socialista arranca do conhecimento científico das leis da produção
e da acumulação, isto para realizar o acordo mais perfeito possível
entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Uma
coisa, porém, é fundamental no pensamento de Lenine. Quando os
«economistas» afirmam (segundo uma tese marxista superficial,
vulgar ou rígida) que a política segue docilmente o económico, o
que afinal fazem é vergar-se perante a obscuridade da
inconsciência, recusando-se a elaborar uma teoria revolucionária
específica «que responda às tarefas gerais do socialismo e às
condições (...) actuais» («Que Faire?», Oeuvres Choisies, I, págs.
209). Tal «economismo» emprega as teses de Marx e Engels de
modo totalmente oposto ao espírito do marxismo e à estrutura
extremamente dialéctica dos factos reais e da doutrina. Como
escreveu Henri Lefebvre em «O Pensamento de Lenine» (edição
portuguesa da Morais, págs. 243), lutando em duas frentes o
fundador da U.R.S.S. criticou «ao mesmo tempo os que desprezam
o económico e os que o transformam num absoluto», sem dúvida, o
pensamento leninista é ao mesmo tempo, extremamente firme e
extremamente flexível. Firme nos princípios e flexível na aplicação.
Princípio absolutamente firme — eis o do proletariado como
classe revolucionária, a única classe revolucionária «até ao fim»
(Lenine, em «Duas Tácticas»). Mas para além deste princípio
absoluto, eis também o relativismo resultante da flexibilidade na
sua aplicação, aquilo que chamaria a arte prática da política. O
verdadeiro homem político procederá o mais possível de acordo
com os dados científicos resultantes da análise objectiva. Mas para
Lenine a política era científica e simultaneamente incerta. E como
afirmou Lefebvre numa curiosa comparação, só se espantará com
isto quem nunca viu os engenheiros a construir um grande porto ou
uma nova locomotiva: — os seus cálculos mais desenvolvidos e
profundos não afastam a necessidade do tactear, do experimentar,
do fazer provas de resistência ou velocidade. Por força de razões
de tal natureza escreveria Lenine em «A Doença infantil do
Comunismo» esta frase de incursão metafórica:

— «A política parece-se mais com a álgebra do que com a


aritmética; parece-se mais com as matemáticas superiores
do que com as matemáticas elementares».

Assente, pois, que a política constitui uma arte como


actividade prática, passaremos a analisá-la no seu outro polo. Isto
é: — passamos agora a ver a política do ponto de vista teórico ou,
por outras palavras, como uma ciência.

Pois o que é a Ciência?

Daremos um conceito muito simples que serve perfeitamente


o nosso objectivo. A Ciência — diz-se — é um sistema de
conhecimentos sobre a natureza e a sociedade, acumulados no
decurso da História. E tem um fim próprio: — descobrir as leis
objectivas que regem os fenómenos naturais ou sociais. Por isso
mesmo se fala dicotomicamente em «ciências naturais» e em
«ciências sociais», conforme o objecto do estudo é a Natureza ou a
Sociedade. Consequentemente, uma vez descobertas pelo homem
as leis que regem os fenómenos, a ciência estuda de modo a
proporcionar-nos os meios que utilizamos na nossa actividade
prática. Eis por que motivo ainda há pouco falávamos da política
prática como arte cada vez mais cientificada. O homem não elabora
a Ciência pelo prazer gratuito e falaz de ser científico. O homem
investiga cientificamente, estuda, ensaia teorias, para tudo isto pôr
ao serviço da sua vida diária. Precisamente por isso o pensamento
moderno considera incindíveis, inseparáveis, a Teoria e a Prática
em todos os domínios da actividade humana.

A Ciência, com as suas teorias — e em plano mais alto a


Filosofia, classicamente identificada como ciência das ciências,
teoria das teorias, busca de um pensamento geral —, constitui a
luta contra a ignorância e a superstição. Daqui resulta que a ciência
política (a «politicologia») representa a luta contra a reacção
política e espiritual.

Nas chamadas sociedades de classe — sociedades onde


existe uma classe dominante e uma classe dominada e onde, como
acontece na sociedade capitalista, se verifica a exploração do
homem pelo homem — houve sempre (e actualmente continua a
haver) forças desfavoráveis ao estudo da ciência política,
designadamente contrárias à difusão dos pontos de vista científicos
avançados. Tais forças são próprias das classes sociais
reaccionárias, sempre atacando as novidades em matéria científica.
Historicamente, elas queimaram sábios e eliminaram filósofos.
Actualmente, como ainda há pouco aconteceu com a ditadura
obscurantista do salazarismo, empregam os mais variados meios
de opressão e de terror cultural.

Os políticos reaccionários, combatendo cruelmente todas as


formas de pensamento político que não correspondam à sua teoria
e à sua prática, apresentam-se carismaticamente como detentores
de uma verdade absoluta. Mas o pensamento político é
essencialmente relativo. Embora possa dizer-se que alguns
princípios fundamentais do pensamento teórico tenham alcançado
a categoria de postulados, não existe uma só teoria política, tal
como é definida em determinado tempo e lugar geográfico, que
possa apresentar-se como verdade definitiva e indiscutível.

Vou dar conta, neste particular, de um exemplo concreto


extremamente elucidativo.

Aplicar rigidamente esquemas teóricos a uma situação viva


seria esquecer que, se acaso Lenine não tivesse saltado por cima
de algumas teses de Marx e de Engels, não se teria efectivado, na
Rússia czarista, a revolução de 1917. Na obra de Engels (de 1844)
«Princípios do Comunismo», dava-se resposta negativa à questão
de se saber se era possível operar a revolução socialista num só
país. De acordo com Marx, afirmava Engels «que a revolução
comunista (...) produzir-se-ia simultaneamente em todos os países
civilizados...» Pois a grande lição de Lenine quanto às relações da
teoria e da prática em constante crítica recíproca, enfim, o seu
grande mérito na luta contra os dogmáticos (que viam o marxismo
como teoria rígida), consistiu em não se ater a fórmulas mortas,
desactualizadas, antes procurando aplicar, nas novas condições
históricas, a conclusão capital: — a possibilidade da vitória do
socialismo (inicialmente) num só país, que não era do ponto de
vista económico o mais desenvolvido, mas no qual se tinham criado
as condições concretas para a luta.

Daqui por um século, tendo mudado basicamente as


condições sociais, materiais e espirituais do nosso tempo —
construídos novos instrumentos ou meios de produção, novas
máquinas, estruturadas novas relações entre as forças produtivas
— aos não-informados em História parecerão até absurdas
algumas das nossas posições perante os problemas políticos
actuais. Mas, é evidente, isto em nada diminui a necessidade de
cada época formular para si própria uma ou mais teorias políticas,
modos vários do pensamento político, baseadas aquelas, baseados
estes, no estudo das condições materiais e espirituais da respectiva
época e das perspectivas então desenháveis para um futuro. O
pensamento político e as teorias políticas em que ele se diversifica
teriam morrido (ou melhor, nem sequer teriam nascido) se uma
«verdade absoluta» fosse conhecida e guardasse correspondência
invariável com os factos inumeráveis que formam o complexo da
nossa existência. O pensamento político progride precisamente à
medida que as condições materiais, básicas, da vida se
transformam e variam.

O homem é, portanto, um formulador de teorias políticas.


Formulando e reformulando as ideias, os costumes, as instituições,
em cada momento ele discute, confirma e impugna a sua
autoridade. Cada teoria política (se, na verdade, merece a
dignidade de tal qualificativo) produz-se em estreita relação com o
tempo determinado em que se origina e afirma. Cada teoria é
reflexo de determinadas condições económicas da própria época.
Torna-se impossível, por exemplo, entender em profundidade a
«República», de Platão, se não tivermos em consideração as
causas e os motivos económicos que concorreram, conjuntamente
com outras sub-determinantes, para a decadência da «cidade-
Estado» da Grécia antiga. Dq mesmo passo, não se pode
interpretar a «Utopia», de Tomás Morus, sem relacioná-la com as
perturbações sociais da transição da agricultura para a ganaderia
na velha Inglaterra. Efectivamente, quando se transformam as
condições sociais, materiais, económicas e religiosas de um tempo
considerado, desde logo, por reflexo, se modificam os processos e
os sistemas políticos. Diria que a base material e relacional da
sociedade subverte em cada momento as doutrinas, as teorias, as
concepções e as ideologias, e que também em cada momento
estas doutrinas, teorias, concepções e ideologias subvertem a
base. Assim, por exemplo, a «Magna Carta», que os barões
ingleses obtiveram em 1215 do rei João sem Terra, e a
«Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão», de 1789, não
valem só como simples manifestações textuais mais ou menos
românticas, mais ou menos especulativas. Tais documentos
jurídicos foram produto das condições económicas, materiais e
espirituais do seu tempo, mas desde logo foram também
verdadeiros programas de acção e empreendimento político.

Naturalmente, o pensamento político, as teorias políticas (a


Ciência Política, numa palavra), tudo isto não se pode dissociar dos
outros ramos da saber. As teorias políticas não se relacionam
apenas com as instituições sociais do seu tempo. Jogam a cada
instante com sectores de diversa natureza. E da mesma forma que
o político e o economista não podem alhear-se de todas as
manifestações actuantes da personalidade, também o pensamento
político não pode distanciar-se (divorciar-se) das várias ciências, da
filosofia, da ética, da religião, da economia e da literatura — nem
mesmo dos dogmas, tradições, superstições e preconceitos. A
Ciência Política como que engloba todas as outras, uma vez que é
de ordem geral e visa a organização superior da existência
humana.

De entre a generalidade das ciências há uma, no entanto,


que tem ligações muito particulares com a política. Refiro-me à
Economia, e não é difícil ver porquê. Com efeito, a actividade
política traduz-se na nossa participação nos assuntos do Estado.
Repito ainda: — a actividade política é a expressão prática dos
interesses vitais das classes c das suas relações. Como se sabe,
porém, as relações que se estabelecem entre as classes definem-
se sempre em conformidade com uma dada e concreta situação
económica. Precisamente por isso, Lenine definiu a política como
«a expressão concentrada da economia».
III — Breve Roteiro Histórico das Teorias
Políticas em Portugal
No decurso da primeira dinastia, que vai até à morte de D.
Fernando em 1383, é manifesta a quase ausência de prosa política.
Poderíamos falar de Álvaro Pais, franciscano discípulo de Duns
Scott, que em 1332 publica «De Planctu Ecclesiae Desideratissimi
Libri Duo» e em 1344 o célebre «Speculum Regnum». Mas só com
o advento da Casa de Avis vêm a revelar-se dois cultivadores mais
declarados da teoria política. Passada a fase da formação e
organização do reino, é nos alvores do processo de expansão
marítima e colonial, em 1451 (ano da conquista de Ceuta), que o
infante D. Pedro terá elaborado «O Livro da Virtuosa Benfeitoria» e
logo o seu irmão, o rei D. Duarte, redige entre 1420 e 1438 o «Livro
da Ensinança de Bem Cavalgar toda a Sela» e o «Leal
Conselheiro».

As ideias políticas D. Pedro revestem-se do maior interesse


como expressão da nossa cultura medieval. A «Virtuosa
Benfeitoria» intencionava ministrar leitura formativa de príncipes.
Inspirada no tratado de Séneca «De Beneficiis», faz parte
integrante daquela literatura peninsular que, à imitação dos tratados
de regimine principum, tinha por primacial objectivo o da «régia
instrução». Segundo Paulo Merêa («As Teorias Políticas Medievais
no «Tratado da Virtuosa Benfeitoria», artigo publicado na velha
Revista de História, ano VIII, n.° 29), «desde os princípios do século
XIII em que se inicia uma curiosa série de catecismos político- -
morais, desenvolveu-se na Península uma profusa literatura deste
género, na qual Portugal se acha representado pelo «Speculum
Regnum», de Álvaro Pais, e pela «Virtuosa Benfeitoria» do infante
D. Pedro—literatura onde sem dúvida sobreleva o aspecto moral e
principalmente se acumulam conselhos aos governantes, mas onde
não deixam de aparecer, mais ou menos vincados, os conceitos
fundamentais do direito político da época» (cfr apud «Estudos de
História do Direito», Coimbra Editora, 1923, págs. 185-186).

As fontes seguidas pelo infante, e depois por D. Duarte, são


Aristóteles, Cícero, Séneca, os ensinamentos da Igreja,
designadamente dos seus Padres e Doutores, com destaque
particular para Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. De
especial influência, os dois livros «De Regimine Principum», de São
Tomás e Egídio Romano — ambos compostos para educação de
um príncipe, mas com larga e duradoira divulgação. O livro de
Egídio, por exemplo, é vertido «do latim em linguagem» (Rui de
Pina, «Crónica de El-Rei D. Afonso V», capítulo 125). D. Duarte
refere-se-lhe a cada passo no «Leal Conselheiro». Fernão Lopes
quase textualmente dele traduz uma grande passagem no prólogo
da «Crónica do Rei D. Pedro».

Na «Virtuosa Benfeitoria» o poder político era ali chamado


«poderio», «governança», «regimento» — vem de Deus e só de
Deus. São Paulo, na Epístola aos Romanos, ensinara: «Non este
potestas nisi a Deo» (XIII, 1). E esta foi a réplica do infante: —
«Toda alma seja sujeita aos príncipes mais excelentes, que não
seja poderio que não proceda de Deus...» O poder político aparecia
aos olhos de D. Pedro como facto natural. Ele «é fundado em
natureza» não obstante se dizer que «em estado natural somos
(todos) iguais» (II, 9). Porém, em virtude da corrupção da
humanidade, evidente se mostrara a irrecusável necessidade de
um governo. Conclusão:—.«...a polícia do mundo perecera, se o
estado cavaleiroso dos reis, e dos príncipes e dos outros senhores
a não governara» (III, 4).

Coisa importante de assinalar é, no entanto, esta: — se o


infante apelava para a origem divina do poder político, de modo
nenhum (como aliás aconteceu com a generalidade dos escritores
medievais) partilhava de uma rígida teoria do direito divino (ou seja,
da ideia de que o rei fosse concretamente designado por Deus). A
teoria do direito divino dos reis (da designação concreta do rei pelo
poder divino) somente será apanágio do pensamento político
absolutista de alguns séculos após. Através da Idade Média — isto
é o que sumamente importa fixar — sempre se assentou numa
Concepção humana do poder político. Notável, a predilecção pelo
princípio da origem popular do poder de um chefe em concreto.
Quem ignora, com efeito, a escolha do Mestre de Avis pelo povo!
Quem esquece que os reis de Portugal anteriores ao absolutismo
deveriam ter popularmente confirmada a sua assunção ao poder...?
Bastará dar saliência a mais este ensinamento do infante: — se os
príncipes devem promover o bem dos seus súbditos, issò acontece
pois que «lhe outorgou Deus o regimento, e os homens
consentiram que sobre eles fossem senhores» (II, 9) e «... não
usará de crueldade (o príncipe) com aqueles que para sua
defensão lhe deram a espada» (II, 22).
Analisando estas obras, quer a «Virtuosa Benfeitoria» quer o
«Leal Conselheiro», não ficamos com dúvidas sobre serem D.
Pedro e D. Duarte dois característicos escritores políticos
medievais. Obras que não representam sistemas acabados, ambas
constituíram fruto das circunstâncias económicas do tempo,
expressas na viragem política levada a cabo por D. João I (irmão
de D. Pedro e pai de D. Duarte). Os seus acentos teóricos são
naturalmente, em conformidade com a época, de ordem ética e
teológica. Mas o que não pode deixar de ser repetido é que o
infante (particularmente ele), enquanto afirmava que se o poder em
abstracto vem de Deus o seu exercício em concreto exige o
consentimento do povo, vale nos quadros da Idade Média çomo
ponte de passagem do Estado antigo (autocrático) para o Estado
moderno (democrático).

António Salgado Junior (rubrica «Doutrina Política» do


«Dicionário de Literatura» dirigido pelo professor Jacinto do Prado
Coelho, 2.ª edição, págs. 271) afirma que o caminho aberto por D.
Pedro e D. Duarte «parece não ter tentado ninguém», pois os
tempos imediatamente seguintes não nos teriam oferecido qualquer
escrito político que, em português, seja de considerar. Esta
posição, porém, só é verdadeira do ponto de vista do reflexo, no
campo literário, das preocupações político-sociais. E pode até
lançar o estudioso em equívocos generalizantes. Ao mesmo tempo
que na Poesia, ainda que de forma incidental, afloravam correntes
opostas perante a política portuguesa da expansão colonial
(considerem-se Gil Vicente, Sá de Miranda e Camões), exacto é
que na segunda metade do século XVI e nos princípios do século
XVII se viu a literatura teológico-política florescer com forte
relevância. Norte orientador, como se sabe, o tomismo — a filosofia
de São Tomás de Aquino, conhecido por Doutor Angélico ou
Aquinate. E a este propósito convido também o leitor a considerar
os artigos de Paulo Merêa sobre «A ideia da origem popular do
poder nos escritores portugueses anteriores à Restauração»,
primeiramente publicados no 2.° volume da «Revista da
Universidade de Coimbra» e mais tarde, com alterações,
reproduzidos a págs. 229 e segs. dos «Estudos de História do
Direito» que atrás citei.

Aos problemas da origem da sociedade e do poder político


iremos dedicar parte do próximo capítulo. Não há, porém,
inconveniente em que se adiantem algumas ideias, reconhecendo
sem dificuldade que quanto a estes pontos os doutrinadores
políticos peninsulares do século XVI e dos princípios do século XVII
seguiram o pensamento tradicional da Igreja. A concepção tomista,
portanto.

Tal concepção, reproduzida já por Álvaro Pais em «De Plane


tu Ecclesiae», cifra-se no seguinte: — a sociedade civil é produto
necessário da sociabilidade inerente ao homem, necessitando
porém de uma autoridade que a comande para o conseguimento
dos seus fins; e esta autoridade dimana de Deus; mas
originariamente integrada nà própria sociedade, por direito natural,
não pode ela exercer-se por si própria; logo, pois, o grupo social
confere concretamente o poder público a um chefe. Quer isto dizer
que a legitimidade do exercício do poder político por parte de A, B
ou C não procede de Deus de forma imediata. Tal legitimidade tem
o seu fundamento no acordo do corpo social e só existe nestas
condições (omnis potestas a Deo per populum). E esta doutrina (de
uma soberania popular) completava-se com a ideia de um pacto
outorgado tácita ou expressamente entre o povo e o príncipe
(poctum subjectionis) e com o princípio da licitude da resistência ao
tirano.

A escola da soberania popular teve os representantes


portugueses que já vimos, e ainda outros como o jesuita Manuel de
Sá, o neo-tomista Frei Serafim de Freitas e os jurisconsultos Pedro
Barbosa Homem e João Salgado de Araújo. Aliás exerceu larga
influência no reino, designadamente através da Universidade de
Coimbra. E coisa curiosa: — a presença, nesta Universidade, de
jesuítas castelhanos, os célebres doutores Francisco Suarez, Luís
de Molina e Azpilcueta Navarro (doutrinários da soberania concreta
do povo) produziu entre nós reflexos diametralmente contrários às
ambições político-territoriais da nacionalidade espanhola daqueles
mestres.

As ideias tomistas da soberania popular, dadas as


circunstâncias económico-sociais que o país atravessava, poriam,
com efeito, ao dispor do povo um poderoso e convincente apoio da
ideia (então em franca afirmação) de independência nacional. O
exemplo da eleição do Mestre de Avis nas Cortes de Coimbra de
1385 —anota Paulo Merêa — foi sistematicamente invocado para
sustentar a teoria segundo a qual, vagando o trono por morte de D.
Henrique, pertencia ao povo a eleição de novo rei. E a
Universidade de Coimbra, por sustentar este direito de escolha
popular, foi alvo das acusações dos partidários de Filipe II, que
sustentavam a natureza «subversiva» e perigosa de semelhante
doutrina. Na verdade, nas «Alegações de direito, que se
ofereceram ao muito alto e muito poderoso rei D. Henrique (...) a 22
de Outubro de 1579», compostas pelos doutores Felix Teixeira e
Afonso de Lucena (desembargadores da Casa do Duque de
Bragança) e pelos lentes de Coimbra Luís Correia e António Vaz
Cabaço, concluia-se que «estando o reino vago por não haver
pessoa de sangue real que pudesse legitimamente suceder ao rei
último possuidor, podiam os povos conforme o direito eleger
novo rei que os governasse, tornando a usar do poder que por
direito natural lhes competia para elegerem novo rei».

Importa acentuar que foi ainda a teoria democrática da


soberania popular que, ao fim de 60 anos de domínio castelhano,
surgiu para justificar a deposição de Filipe III. Expressamente, OU
de forma implícita, ela encontra-se nas páginas dos escritores da
Restauração: — Carvalho de Parada, João Pinto Ribeiro, Sousa de
Macedo e Vila Real. E até se fortalecia com o auto (apócrifo) das
Cortes de Lamego, o qual, como se sabe, tinha sido publicado por
Frei António Brandão, em 1632. Aliás, a doutrina da soberania
popular, nos termos que ficam sucintamente relatados, encontrou
consagração praticamente oficial no célebre texto do lente de
cânones de Coimbra, doutor Francisco Vaz de Gouveia, que se
intitula «Justa Aclamação do Sereníssimo Rei de Portugal D.
João IV».

Soberania popular — eis portanto a tradição política-


portuguesa mais antiga no plano teórico. Mas (popular) de que
povo? Em contrapartida da posição ideológica dos doutores da lei
e da política, que espécie de povo procurava tal posição servir?
Como ver, enfim, na base das forças produtivas, a justificação
daquele concepção?

O que corre na espinha e no nervo do mundo ocidental, com


maior frequência do século XIII em diante, é a «contestação» do
burguês relativamente ao nobre. O «burguês» da Idade Média é o
habitante da cidade (do «burgo») que se dedica ao comércio, ao
artesanato, e cria uma forma de vida adaptada a essas condições
económicas. Começamos então a deparar com as lutas das
cidades contra os senhores, a classe burguesa ganhando uma
consciência que dia-a-dia mais contradiz a classe aristocrata
dominante. Esta velha nobreza, provinda da fundação do reino,
dilacera-se com problemas irresolúveis pela lâmina da espada,
única força que o fidalgo conhece. Nem sequer de nada lhe haviam
de servir as medidas protectoras do rei D. Fernando, que diríamos
reaccionárias enquanto procuravam violentar a nova consciência
política da burguesia em ascensão. Aliás, a «contestação» dirige-se
até contra a pessoa do próprio rei, para mais desacreditado — com
o desastre das guerras de Castela. O povo mete-se na vida privada
de D. Fernando. Amotina-se pelo seu casamento com Leonor
Teles. E isto se encara como factô tanto mais significativo de uma
consciencialização cívica se pensarmos que antes ninguém do
povo se atrevera a «criticar» as mancebias de D. Sancho I, de D.
Dinis ou de D. Pedro o Cru. As críticas relativas ao foro pessoal-
matrimonial de D. Fernando são assim uma marca da força que a
burguesia sente em si própria. E depois vem ainda o casamento de
D. Beatriz com o rei de Castela, agudizando-se as contradições
sociais, colocando-se os interesses económicos da classe
aristocrática ao lado daquele que vem a ser o invasor. A velha
nobreza, que tem por si a fundação de Portugal, desiste de se
aguentar portuguesa. Praticamente, só Nuno Álvares Pereira é uma
pertinaz excepção, desprezando em favor da Nação os votos de
vassalagem feitos para com D. Beatriz.

Foi com o objectivo de expulsar essa aristocracia dominante


que as subclasses populares (a burguesia e as massas mais baixas
da população) puseram as controvérsias de parte e uniram forças.

Eis um fenómeno de vária repetição na História do homem —


logo, na História da luta de classes – a que Louis Althusser chamou
unidade de ruptura no 3.° capítulo de «Pour Marx» (edição
Maspero, Paris, 1966, págs. 97-98): — agrupam-se, unificados,
elementos de situação social diferente com vista ao «assalto a um
regime para cuja defesa as classes dirigentes se acham
impotentes». E Althusser invoca em seu apoio conhecidas posições
de Lenine, tão persistentemente ignoradas pelo «esquerdismo».
Sobretudo a passagem da «Doença Infantil» onde o teórico-prático
da revolução de 1917 escreveria que

«a revolução somente pode triunfar quando os de baixo não


querem mais viver e os de cima não podem continuar a viver
à maneira antiga».

Curioso, portanto, é vermos que a situação portuguesa de


1383-85 (aliando-se subclasses distintas numa unidade de ruptura
contra a Velha aristocracia) tem algo de análogo à situação da
revolução social. Lenine também escreveria — numa das suas
«Cartas de Longe»: —

«Se a revolução triunfou tão depressa — (...) foi unicamente


porque, em razão de uma situação histórica de extrema
originalidade, correntes absolutamente diferentes, interesses
de classe absolutamente heterogéneos, tendências sociais e
políticas absolutamente opostas «e fundiram com notável
coerência...»

A burguesia e o povo miúdo (as subclasses ou classes não-


nobres) apoiam o rei novo. As Cortes de Coimbra de 1383
escolhem-no contra as pretensões do rei castelhano, o qual
representa a Opressão da classe dominante. Com a escolha
democrática do rei (na pessoa do Mestre de Aviz) recusa-se o trono
ao sucessor hereditário legítimo. Vence, subversivamente, o
candidato popular — apoiado nas teorias tomistas que viemos de
examinar atrás. Mas, ao impetuoso revolucionarismo, segue-se o
«bom senso» que cada vez virá mais «qualificar» o «burguês».
Porque ele é sobretudo um homem de contas, de teres-e-haveres,
comprador da propriedade agrária e até de títulos nobiliárquicos. O
Mestre, nobre por parte do pai (o rei D. Pedro), era plebeu por parte
da mãe. Muitos dos «novos nobres» (a nova aristocracia, saída da
revolução de 1383-85) são parentes próximos do rei. E pois que a
expansão colonial vai ser, logo de início, a grande aventura da
segunda dinastia, vemos, poucos anos após, o infante D. Henrique
(filho de p João 1) assumir o papel dirigente de quase todo o
monopólio explorador dos negócios da costa africana. Só que este
«encher» da nova aristocracia sofrerá a breve trecho um rude
golpe: — D. João 11 procede a uma espécie daquilo que hoje
chamaríamos as «nacionalizações». Efectivamente, numa viragem
estatista radicalmente contrária à política de mãos rotas de seu pai
Afonso V, a quase totalidade das explorações comerciais passam a
ser feitas pelo Estado, sob a direcção do rei D João II. E os seus
sucessores — D. Manuel e D. João III — aparecem-nos agora
como grandes dirigentes de uma enorme empresa que explora
todas as navegações e conquistas.

E o povo?... o povo miúdo, que ajudara na escolha


democrática do fundador da segunda dinastia?...

A depreciação da moeda, em 1417, é de 250 vezes


relativamente ao ano de 1385. No final do reinado do Mestre sobe
para 1000 Vezes. Por outro lado, se D. Duarte procura entravar a
desvalorização, o desastre de Tânger compromete-lhe os intentos.
Posto o que, no quadro da política centralizadora de D. João II (que
reina até aos finais do século XV) a queda ao valor monetário
atinge uma subida de 220% relativamente à reforma de 1436. E
então, fácil é responder quanto aos benefícios usufruídos pelo
povo-povo, participante básico na escolha democrática de D. João
I.

O benefício não foi nenhum. O povo nada ganhou com o


poder agora exercido pela alta burguesia das conquistas africanas
e dos descobrimentos, em parte convertida na nova aristocracia.
Porém, como já dissemos, também esta vai sofrer graves restrições
perante o monopólio estatal de toda a política africana. Vem a
«nacionalização» da Ordem de Cristo. Vem a liquidação violenta
dos Opositores de estirpe (duques de Viseu, de Bragança, etc.)
inconformados com a via estatizante. Vem também a programação
do domínio comercial da Índia. Mas o rei D. João II e os seus
sucessores gostariam também muito pouco de ouvir falar em
soberania popular. É manifesta a crise do pensamento
democrático-teologal que os precedera. A criação de uma nobreza
cortesã, serventuária e funcionária, leva o rei a dispensar o apoio
do povo. Compreende-se assim que em 1498 Diogo Lopes Rebelo
afirmasse como antecipação às doutrinas totalitárias do direito
divino dos reis:

«O rei é, no seu reino, por direito divino e humano senhor de


vida e de morte dos homens».

Eis-nos aqui com o germe do absolutismo (solução teórica


oposta à ideia de soberania popular), aliás relativamente
consagrado, tal absolutismo, no prólogo das «Ordenações
Manuelinas».

Não obstante poder-se afirmar que, em modos específicos de


cada tempo histórico, o absolutismo se estende desde D. José ao
ano de 1834, a verdade é que, como já vimos páginas atrás, com a
Restauração mais uma vez e em seu favor a realeza «requisitou»,
se assim se pode dizer, a intervenção da teoria democrática. E digo
requisitou porque o rei D. João IV, logo que escolhido e aclamado,
rapidamente criou novas instituições que consolidaram o poder
real, enveredando, com a orientação política do padre António
Vieira, por uma estreita aliança com as forças financeiras dos
mercadores judeus.

Claro que se vai mantendo sempre um discurso de


mistificação democrática. Por exemplo: — quando em 1706 e 1712
D. João V decide aumentar os impostos sem consulta das Côrtes,
no preâmbulo dessa decisão declara-se expressamente que tal
facto de modo nenhum pretende alterar os costumes 'e as
garantias fundamentais dos povos. Porém, nos últimos anos do
reinado do Magnífico a crise económico-política conduziu a um
intervencionismo real levado às derradeiras consequências. E com
o Marquês de Pombal criam-se organismos de contrôle estadual: —
a Junta do Comércio (1756), o Erário Régio (1760), a Junta da
Providência Literária (1772), tudo acrescido de um aumento do
monopolismo económico nas regiões mais ricas do país. O rei
afirma sua autoridade sem limites. Os usos são inoperantes, a lei
natural é de interpretação majestática e a lei divina está depositada
no soberano. Então, a autoridade é com frequência construída e
executada em termos de despotismo iluminado. E decerto por esse
motivo a época do Marquês ditador não é propícia à prosa
doutrinária, a não ser que como tal consideremos a «Tendência
Teológico-Política», do padre António Pereira de Figueiredo, ou as
«Cartas sobre a Educação da Mocidade» (1760) de Ribeiro
Sanches.

Ao nível teórico suscita-se, porém, uma polémica que vai


durar algum tempo. Durante o reinado de D. José a autoridade do
monarca é por uns formulada em termos do referido despotismo
iluminado, enquanto por outros se desenha conforme o esquema
tradicional da monarquia absoluta. Esta divergência separa em dois
sectores ideológicos os ministros de D. Maria I. Aliás, acima de tal
separação, os conceitos de monarquia , absoluta têm neste mesmo
período brilhantes defensores (Pascoal de Melo Freire e José
Acúrsio das Neves), enquanto em contrapartida se foi esboçando
um liberalismo mais teórico do que prático e muito hesitante quanto
aos fundamentos. Com efeito, não obstante terem sido abolidas as
Organizações corporativas em 1791, a verdade é que só cerca de
quarenta anos depois da Revolução Francesa ter eclodido se
iniciou em Portugal uma débil experiência liberal. Experiência
dificílima, sem dúvida, num país anquilosado por teias ancestrais e
policiado por pinamaniques. Mas verdade é que também que, não
obstante terem aumentado (na segunda metade do século XVIII) as
potencialidades económicas da burguesia devido ao comércio luso-
brasileiro, aquela não se sentira, conforme o atraso geral do país,
muito lesada pelo absolutismo. Ainda em 1821 — assim declarava
Manuel Fernandes Tomás perante as primeiras Cortes
constitucionais portuguesas — «eles (os industriais) não convieram
por ora no que é uma fábrica». E só ulteriormente, numa fase mais
evoluída do nosso processo liberal, mais concretamente a partir do
«setembrismo», os problemas da indústria e da maquinaria
adquirirão relevo.

A polémica que se estabeleceu entre absolutistas e liberais


tem assim, como cenário de fundo, uma estrutura geral da
sociedade portuguesa que se mantém absolutista quer do ponto de
vista político, quer do -económico ou burocrático. Grande
proteccionismo da burguesia urbana, funcionalismo hierárquico e
nobilitado, nobreza rural mais do que submissa, enfim, um
completo fideísmo ao Estado real absoluto. E foi por isso que,
apesar de todos os precursores e das largas simpatias que aos
portugueses mereceu a Revolução Francesa, ela interessou bem
pouco ao povo no plano da acção prática. Assim se verificou quer
no momento contemporâneo da Revolução, quer na sequência
próxima. E só no segundo quartel do século XIX a estrutura
absolutista portuguesa entrou em crise mercê de uma série de
factores que a contraditaram: — as invasões francesas (1807 a
1810), as grandes transformações técnicas (em 1817, a primeira
tentativa de introdução de uma máquina a vapor com fins
industriais; em 1821, o primeiro banco português (Banco de Lisboa)
e uma máquina, também de vapor, utilizada na navegação do Tejo),
a independência do Brasil (1822), e ainda a incapacidade dos
ideólogos tradicionalistas para adaptarem as suas fórmulas e
concepções aos novos tempos.

É com o advento do liberalismo no plano da superestrutura


ideológica, com a implantação segura da consciência social em prol
de uma democracia burguesa (nenhum outro movimento na nossa
História gerou tantos nomes de alto relevo) e com a progressiva
alteração dos modos e das relações de produção, que se
desenvolve a literatura política em Portugal. Falaríamos então de
Garrett, de Herculano, de Passos Manuel, José Estêvão, Rodrigo
da Fonseca, Borges Carneiro, Fernandes Tomás, Ferreira Borges e
outros. Mas é no campo da luta política armada, ao fim de quase
vinte anos de conflito, que a monarquia absoluta baqueia em 1834
(Convenção de Évora-Monte). Anote-se que, no entanto, os
conceitos fundamentais do absolutismo — assim o revelaram o
Integralismo Lusitano (no plano teórico) e a ditadura do Estado
Novo fascista-salazarista-caetanista (no campo prático) — voltaram
a aparecer e sempre tentarão reaparecer como bandeiras de forças
políticas minoritárias, se alguma vez fraquejar a vigilância popular.

Repare-se, entretanto, que neste capítulo ficámos à beira das


«Conferências do Casino» e da chamada Geração de 70. Ficámos
próximos de nomes como Teófilo Braga, Antero do Quental e
Oliveira Martins. E de muitos outros. Mas este corte, assim operado
no breve roteiro histórico das doutrinas políticas em Portugal,
justifica-se na medida em que no último capítulo deste livro, a
propósito da temática geral do socialismo, algum espaço vem
especificamente dedicado à presença da teoria socialista no nosso
país.
IV — O Homem, a Sociedade e o Estado
Começaremos por falar de «socialidade» — palavra de uso
pouco comum, talvez no entanto mais correcta que «sociabilidade»,
sua equivalente. Ela aplica-se à todos os seres vivos: — significa
ser próprio da sua natureza viverem em sociedade, terem uma
existência social.

A sociedade humana, é evidente, distingue-se da


sociedade animal. De forma lapalissiana diria-mos que a
socialidade humana se refere aos homens, enquanto a socialidade
animal concerne aos animais. É óbvio, porém, que por este
caminho ficaria-mos na mesma. Ainda que em breve termos, torna-
se necessário procurar a distinção de raiz que se verifica entre
estas duas espécies de socialidade. Os animais não se agrupam
por força da sua vontade ou mercê de um acto racional. Eles são
animais irracionais, assim costumam ser definidos. Em
consequência, a socialidade animal está unicamente baseada na
fisiologia, nos instintos, nas funções da respectiva espécie. Ao
contrário, embora também com bases biológicas, a sociedade
humana é vivida e construída no campo da consciência, reflectida
no espírito dos homens, sempre assumida graças a uma
participação da inteligência e da vontade.

Assente o que sejam a socialidade e as espécies em que ela


se materializa, passamos a incidir a nossa atenção sobre o
conceito de sociedade. Trata-se de uma palavra de sentido
extremamente variado, que se refere à ideia de uma convivência
permanente de animais ou pessoas que praticam os mesmos
costumes, comunicações e relações.

Mas deixemos de parte as sociedades animais, que estamos


a tratar de política. Vamo-nos, pois, circunscrever à única
sociedade que agora nos importa — a sociedade humana. Com
efeito, o termo «sociedade» empregamo-lo nós para designar um
agrupamento humano de base, de carácter durável (em oposição
aos agrupamentos fortuitos ou temporários: uma sociedade
artística, uma assembleia geral, um grupo de futebol) e tendo um
espaço territorial onde permanece. Mas este conceito de sociedade
humana implica desde logo a constatação de um núcleo de
elementos que a caracterizam:

1) — a continuidade, que se refere ao carácter durável da


sociedade humana;
2) — a complexidade de relações, que individualiza, em
cada momento, a fase histórica da mesma sociedade;
3) — a unidade operatória, já que os indivíduos integrados
num agrupamento durável devem submeter-se às leis do
seu funcionamento; e
4) — a diferenciação de participações individuais, a qual
resulta das diversidades (fisiológicas, psíquicas,
técnicas, culturais e outras) verificáveis de indivíduo para
indivíduo.
Vamos atentar no segundo elemento característico das
sociedades humanas — o da «complexidade de relações». Este é,
com efeito, o elemento que nos poderá conduzir a um conceito
moderno do que seja a sociedade civil. Civil vem, por raiz
vocabular, de «civis-civitatis» (o cidadão). Sociedade civil é,
portanto, a sociedade humana enquanto considerados os homens
como cidadãos.

A sociedade humana, temos de repetir, constitui um conjunto


de relações sociais. Este foi o contrito gerado no seio da filosofia
materialista pré-marxista do século XVIII. Mas a teoria da
sociedade civil, tal como era concebida por aqueles materialistas
(ingleses e franceses), enfermava de um defeito fundamental.
Defeito que provinha do facto de não se compreender a
dependência em que a sociedade encontra relativamente aos
modos de produção.

A teoria da «sociedade civil» própria da filosofia do século


XVIII explicava a formação social por força de propriedades
naturais do homem. Marx virá até a utilizar o termo nas suas obras
de juventude, em 1843, ao desenvolver a sua crítica a Hegel. De
início, a sociedade civil foi para ele a organização da família, das
classes, as relações de propriedade, as formas e procedimentos de
distribuição e, em geral, todas as condições que tornam possível a
existência e o funcionamento dos grupos humanos. E não obstante
ter sublinhado desde logo o carácter objectivo e a base económica
de tais condições, só anos mais tarde (em 1849) escreveria Marx
em «Trabalho Assalariado e Capital»:

— «As relações de produção formam em seu conjunto o que


chamamos as relações sociais, a sociedade e,
concretamente, uma sociedade com um determinado grau
de desenvolvimento histórico, uma sociedade de carácter
peculiar e distintivo».
Dirse-á em conclusão, no que respeita à ideia de sociedade
civil, que Marx veio a substituir a sua noção inicialmente pouco
precisa, por conceitos verdadeiramente científicos, tais como os de
«estrutura económica da sociedade», «base económica» e «modos
de produção».

E estamos agora aptos a entender a natureza social da


existência humana. A sociedade dos homens constitui uma união
moral e física de seres dotados de inteligência, que procuram
realizar um fim comum a todos. Neste sentido, a sociedade é uma
colectividade organizada. Eis um agrupamento de elementos
unidos por laços de solidariedade biológica, psíquica, económica,
técnica e cultural. Tudo isto implica, enfim, que a sociedade civil se
materializa numa estrutura global que permite a subsistência e o
desenvolvimento, quer do conjunto quer do indivíduo. Mas, claro,
no seio desta globalidade não se perde o valor de cada partícula:
— a sociedade dos homens tem carácter relativo na medida em
que, mesmo enquanto reunido a outros, cada indivíduo não abdica
de ser indivíduo. Estou a pensar em Schopenhauer, comparando a
sociedade humana a uma ninhada de porcos espinhos. Se eles se
chegam de mais, acabam por picar-se, isto é, por violar o foro
alheio.

A existência social do homem é então o conjunto das


condições de vida material em sociedade, principalmente das
formas de produção, do regime económico concreto de cada
momento. Mas falando-se de existência social, o grande problema
a ela relativo reside nesta interrogativa: — qual a relação da
existência social com a consciência social... Ou a mesma pergunta
por outras palavras : — o homem tem consciência porque existe
em sociedade ou, opostamente, existe em sociedade porque tem
uma consciência?

A relação da «existência» com a «consciência» é questão


filosófica fundamental no que se refere aos fenómenos sociais.
Para o pensamento actual, designadamente para o materialismo
dialéctico, a existência é considerada um dado primário, sendo a
consciência encarada como uma resultante daquele mesmo dado.
Isto é: — para este pensamento moderno, a existência social
precede a consciência na medida em que a consciência social do
homem é resultante da sua vida em sociedade. Esta é, em resumo,
a decisiva resposta: — para o materialismo dialéctico (filosofia
marxista) a existência precede a consciência; — para o
materialismo histórico (sociologia marxista) a existência social
resultará na formação da consciência social do homem. A uma
determinada existência social (conjunto-base de condições de vida,
de modos de produção) correspondem então as variadas formas de
consciência social (concepções políticas, ideias morais, teorias
estéticas, etc., etc.).

Vejamos agora, de Goethe, estas duas frases de um diálogo:

Epimeteu — Que te pertence, portanto, como teu?

Prometeu — Pertence-me tudo quanto cabe nos limites até


onde a minha actividade se estende. Nada mais, nem nada
menos.

E porquê esta passagem?


Dissemos já que são os modos de produção que determinam
a consciência social do homem. E acabamos de perceber, através
desta resposta de Prometeu, que tudo aquilo que nos pertence (o
que nos é próprio, quer espiritual, quer materialmente) resulta só da
nossa actividade. Portanto, só do nosso trabalho. Dispondo dos
meios de produção e conforme os modos de produção típica da sua
época, o homem realiza formas de consciência típicas dessa
época. Existe pois, uma ligação concreta entre «existência»,
«trabalho» e «consciência».

Na linguagem corrente é uso dizer-se o trabalho dos homens,


o trabalho dos animais, o trabalho das máquinas. Só que em tais
expressões encontramos um conceito vulgar, muito generalizado,
de trabalho — como representando a acção de uma força, seja ela
de que natureza for. Porém, o conceito económico-social mostra-se
muito mais restrito. Trabalho é somente o esforço humano
intencional, criador de riqueza. Esforço esse que nós exercemos
para transformação de uns elementos (matérias-primas, por
exemplo) noutros elementos (produtos). O trabalho figura-se,
portanto, como um processo estabelecido entre os homens e as
coisas: — «O trabalho é antes de mais — escreveu Marx em «O
Capital» — um processo entre o homem e a natureza no qual
aquele, mercê da sua actividade, regula e controla o intercâmbio de
substâncias entre ele e a natureza». Assim, ao actuar sobre a
natureza exterior o homem modifica-a, ao mesmo tempo que se
modifica também a ele próprio. Quer isto dizer que, enquanto o
homem modifica a natureza, ele está a modificar o seu fim
consciente, adaptando as coisas às suas próprias necessidades em
cada momento.
Compreende-se, pois, que o trabalho constitua a condição
primeira, fundamental, da existência humana. Ele não só
proporciona ao homem os meios de subsistência de que necessita,
como criou e continua a criar o próprio homem. É graças ao
trabalho que o homem se separa cada vez mais do mundo animal.
Uma das diferenças essenciais que se estabelece entre o ser
humano e o animal assenta precisamente em que este último se
limita a servir-se dos produtos acabados da natureza, tal como
estes se lhe apresentam, ao passo que o homem obriga a natureza
a pôr-se ao serviço dos seus fins. Ele modifica as coisas,
subordinando-as às suas necessidades.

Nas diferentes formações económico-sociais que a História


nos revela, o trabalho apresenta formas também diferentes, as
quais são marca do desenvolvimento das relações sociais em cada
época.

No regime social da comunidade primitiva o homem trabalha


em comum, o seu trabalho é colectivo e a todos pertence a
propriedade dos meios de produção. Neste tipo de organização não
existia a exploração do trabalho alheio. Porém, já assim não
acontece em todas as formações económico-sociais seguintes,
onde nos aparecem classes antagónicas, onde o trabalho do
homem está sempre submetido à exploração de uns relativamente
aos outros. Na sequência histórica surgem então as três fases em
que alguns homens exploram o trabalho de outros:

1) primeiramente, no regime esclavagista, há os que exploram o


trabalho dos seus escravos;
2) depois, no regime feudal, os senhores exploram o trabalho dos
servos;
3) no regime capitalista, os patrões exploram o trabalho dos
operários.
Quer dizer que a exploração do trabalho alheio atingiu o
ponto culminante com o regime capitalista, aquele em que o
indivíduo se deforma e mutila, espiritual e fisicamente, na exacta
medida em que é explorado. Só com o socialismo — dir-se-á então
— terá o trabalho ganho a sua verdadeira função, a de servir como
fonte de subsistência e também como veículo inspirador de criação
humana e de prazer.

Passamos agora a analisar, também muito brevemente,


como é que a formação diferenciada das classes sociais está ligada
a um fenómeno histórico cientificamente conhecido por divisão do
trabalho.

Dissemos ainda há pouco que nas comunidades primitivas


todos os homens trabalham igualmente para igualmente usufruir
dos produtos que conseguem. Durante milénios e milénios, esta
forma de existência verificou-se em todos os povos nas primeiras
etapas do seu desenvolvimento. Nas sociedades primitivas de há
milhões de anos as relações de produção estavam baseadas na
propriedade colectiva dos meios de produção. Os instrumentos, a
terra, tudo, enfim, era pertença da colectividade, do mesmo modo
que os produtos obtidos eram igualmente consumidos em comum.
Por isso, não havia classes.

Aconteceu, porém, que a primeira grande divisão social do


trabalho se realizou pelo apartamento da criação do gado e do
cultivo da terra. Apareceram os senhores e os não-senhores do
gado (os que o possuíam e os que o apascentavam) e os senhores
e os não-senhores da terra (aqueles que a detinham e os que a
cultivavam para os primeiros). Esta diferenciação de posições
quanto à titularidade dos meios de produção originava a distinção
das classes sociais. Foi, portanto, uma separação que engendrou a
propriedade privada. Logo, a desigualdade económica e,
consequentemente, a escravidão. E começou assim a desagregar-
se o tipo de organização social das comunidades primitivas.

Mais tarde, bastante mais, a segunda grande divisão social


do trabalho vem a resultar da cada vez mais diferenciada
desmultiplicação das profissões e dos misteres, fenómeno que
intensificará aceleradamente a destruição da comunidade primitiva.
E quando esta desaparece em definitivo, dando lugar à exploração
económica ou, por outras palavras, às classes sociais nitidamente
polarizadas (exploradores de um lado e explorados do outro),
quando enfim se extinguiu o igualitarismo colectivista das
comunidades primitivas, podemos dizer que surgiu, por
diferenciação das classes sociais, a instituição do Estado.

No regime de escravidão o Estado traduz-se na exploração


económica do escravo — ao mesmo tempo que o comércio se
torna independente como forma negociai, nascem e desenvolvem-
se divisões de trabalho de tipo territorial, profissional e
internacional, tudo isto enquanto se separam também o «trabalho
intelectual» do «trabalho físico, e a «cidade» do «campo», oposição
esta ultima que se revela gradualmente no atraso das zonas rurais
relativamente aos aspectos políticos, culturais e económicos.
Posteriormente, no regime de servidão feudal todas estas
contradições se hipertrofiam: — o trabalho intelectual será
praticamente um exclusivo dos monges, a arte da guerra exclusivo
dos nobres, o cultivo da terra um vínculo de adstrição dos servos
da gleba, e as cidades (cada vez mais predominantemente de cariz
burguês) progridem na consciencialização que as oporá,
reivindicativamente, contra os senhores feudais. Mas todas estas
contradições se agudizam ainda mais no regime da manufactura
capitalista. A oposição histórica entre a cidade e o campo, por
exemplo, atinge o auge neste sistema em que o capital domina. A
terra é explorada de forma insensata, a renda territorial cresce
conjuntamente com o endividamento e a ruína dos pequenos
proprietários e camponeses. Simultaneamente, a divisão do
trabalho penetra no interior da empresa, facto que se acentua com
a introdução do processo da maquinaria e que equivale a dizer que
os grandes senhores do capital são a classe dominante
(proprietária) contraposta à classe dominada (operária).

O Estado origina-se, portanto, no momento em que surge o


regime esclavagista. Logo aí aparece como máquina de poderes
políticos, de organizações administrativas e de acções de força que
servem a opressão dos que exploram, exercida sobre os que são
explorados. No n.° 5.° do seu ensaio sobre «O Estado», Lenine —
na sequência dos ensinamentos de Engels largamente estudados
em «A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado»
escreveria o seguinte:

— «O Estado é uma máquina que permite a uma classe


oprimir outra, máquina destinada a manter, à sujeição de
uma classe, todas as outras que dela dependem».
Voltaremos oportunamente a este texto de Lenine — e
portanto ao problema das origens desta máquina quando no 7.°
capítulo deste livro abordamos a «Natureza, funções e elementos
de Estado». Agora, o que nos interessa fixar é que Engels
efectivamente mostrou, na obra há pouco indicada, que

«o Estado não é um poder imposto de fora à sociedade (...)


senão que um produto da sociedade num período
determinado do seu desenvolvimento.»

Num parêntesis, entretanto diremos que nem sempre a


origem do Estado, como problema, foi encarada desta forma
realista. De acordo com a explicação de Engels, acabámos de ver,
o Estado nasce como produto da transformação da própria
realidade social. O Estado engendra-se no seio da sociedade,
resultado das suas contradições internas. Em séculos anteriores,
porém, podemos surpreender explicações diferentes, aliás
metafísicas e idealistas. Segundo, pelo menos, algumas delas, o
Estado (ao contrário de gerar-se na própria sociedade em
transformação) teria sido instituído de fora para dentro, como por
exemplo aconteceu nas doutrinas teocráticas, conforme as quais
ele foi instituído pela vontade de Deus.

Vamos então passar em revista, primeiramente as doutrinas


teocráticas — e depois, em segundo lugar, a concepção da filosofia
do século XVIII, nos termos da qual o Estado é, não um produto
das condições históricas, mas resultado imposto pela Razão.

As doutrinas teocráticas (teo = Deus + cracia = governo)


sustentaram que o Estado, o poder político, foi originado pela
intervenção de uma vontade supra-terrestre. De modo genérico
elas dividiram-se em duas correntes. Por um lado, a concepção do
direito divino sobrenatural, preponderante nos séculos XVII e XVIII,
de que são exemplo as «Memórias», de Luís XIV e o Édicto de
Dezembro de 1770, de Luís XV, afirmava que o rei era
directamente designado por Deus. Por outro, a concepção do
direito divino providencial, assente no princípio das Escrituras,
segundo o qual nem um só cabelo cairá da cabeça do homem que
não seja por vontade de Deus, através dos seus mentores Joseph
de Maistre e Bonald, pretendia que os acontecimentos e os actos
humanos eram conduzidos por inspiração determinante da
Providência. Metafísica, portanto, eis aquilo com que deparamos
nestas concepções teocráticas.

Contrariamente, para as doutrinas democráticas do século


XVIII o Estado não tem origem na determinação da vontade de
Deus, mas num pacto social. O Estado constituiu-se, para os
filósofos e pensadores racionalistas daquele século, por deliberada
criação humana através de um consenso colectivo. É o caso do
pensamento de Jean-Jacques Rousseau, autor de «O Contrato
Social».

Supõe Rousseau que os homens, vivendo a braços com a


natureza, vítimas da carência de organização, teriam instituído
contratualmente o Estado. Portanto, este criara-se por meio de um
acto voluntário de todos os homens enquanto procuravam uma
solução racional para as dificuldades inerentes ao estado de
natureza. Esta solução é, porém, igualmente metafísica (o
«contrato social» jamais foi um facto histórico na existência do
homem) e cheia de artifícios de raciocínio. Quando Rousseau
afirmava no capítulo 1.° do Livro III daquela sua obra que, se o
Estado é composto de 10 000 cidadãos, cada um deles tem a
décima-milionésima parte da autoridade soberana, colocava-se em
contradição consigo. Pouco antes, com efeito, tinha ele assente em
que uma das características da soberania é ser indivisível. E um
outro sofisma de Rousseau residia na seguinte passagem do Livro
I, capítulo 6.°:

— «Cada um, dando-se a todos, não se dá a ninguém».

E outro ainda é aquele que se colhe no capítulo 7.° deste


mesmo Livro:

— «Quem se recuse a obedecer à vontade geral, será


coagido a isso por todo o grupo, o que não significa outra
coisa além de que o obrigarão a ser livre».

Evidentemente, foi contra artifícios destes a que o idealismo


e a metafísica conduzem que as teorias modernas sobre a origem
do Estado (como as de Engels, Marx e Lenine) o indicaram como
um produto engendrado historicamente dentro da própria sociedade
— «produto da sociedade num período determinado do seu
desenvolvimento», como se lê, e eu repito, em «A Origem da
Família, da Propriedade Privada e do Estado».

Isto não quer dizer que Rousseau não tenha, perante o


materialismo histórico e a teoria política moderna, a maior
importância. Poderíamos limitarmo-nos a lembrar que os grandes
princípios enunciados na «Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão» de 1789 (tais assim os da liberdade, da igualdade e da
soberania popular) já estão contidos em «O Contrato Social». Mas
a importância dos enunciados rousseaunianos obriga-nos a ir mais
longe. Como mostrou Galvano della Volpe em «Rousseau e Marx»
(tradução argentina, Editorial Platina, Buenos Aires, 1963, págs.
59), enquanto a liberdade civil foi instituída pela democracia
parlamentária e teorizada por Locke, Montesquieu, Humboldt, Kant
e Constant, a liberdade igualitária, instituída pela democracia
socialista, vem explicitada já claramente em Rousseau. E aí reside
a sua superioridade e o seu interesse actual. O problema básico
das actuais democracias populares está aliás já posto noutro livro
do filósofo-político suíço, o «Discurso sobre a Origem e os
Fundamentos da Desigualdade entre os Homens». Numa das
respectivas conclusões diz-se, com efeito, que

«a desigualdade moral (entenda-se cívica), legitimada


unicamente pelo direito positivo, é contrária ao direito natural
sempre que não concorre, na mesma proporção, com a
desigualdade física».

A tradição marxista é peremptória sobre a origem e a


concepção do Estado. A partir do «Manifesto Comunista», de 1848,
e do «18 Brumário», e em todos os textos ulteriores de Marx,
sobretudo sobre a Comuna de Paris, e de Lenine em «O Estado e a
Revolução», a organização estatal configura-se como um aparelho
repressivo. O Estado — recordo o que ficou dito páginas atrás — é
uma máquina de repressão que, através dos seus órgãos (governo,
tribunais, polícia), permite às classes dominantes assegurar o seu
domínio relativamente à classe dominada. Por outras palavras, o
mesmo nos dirá Max Weber em «O Político e o Cientista»:

— «Hoje (...) devemos dizer que o Estado é a comunidade


humana que, dentro de determinado território (o «território» é
um elemento definidor), reclama com êxito para si o
monopólio da violência legítima».

Ou ainda:

— «O Estado é a única fonte do «direito» à violência».

Mas o Estado — fase histórica da sociedade humana que só


o estabelecimento da igualdade económica e social entre os
homens eliminará – exige, enquanto existir, uma regulamentação
própria. Não se pode viver em sociedade sem leis. O aparelho
repressivo do Estado pode até permanecer intacto apesar de uma
revolução (quer burguesa, quer social), precisamente porque a
sociedade civil não dispensa uma regulamentação e uma ordem.
Por exemplo: — sabe-se que, após a Revolução de 1917, grande
parte do aparelho do Estado russo permaneceu intacta após a
tomada do poder pela aliança do proletariado com os camponeses
pobres. Lenine não se cansou de repetir esta necessidade. E só os
anarquistas (adversários de toda a espécie de regulamentação
estadual) preconizam a supressão do Estado, e do poder político,
independentemente das condições históricas, concretas, de cada
época ou momento.

Entretanto, a necessidade de uma regulamentação social


projecta-nos para a matéria do próximo capítulo — a organização
da sociedade.
V — A Organização da Sociedade
Se o nosso tema é agora o da «organização da sociedade»,
parece-me compreensível que comecemos por ver o que em geral
significa uma organização.

O que é organização?

Que realidade traduz, exprime ou evoca esta palavra?

Diz-se que alguma coisa se encontra organizada (ou bem


organizada) quando tem as suas partes componentes dispostas
(adequadamente ou correctamente dispostas) para realizar os seus
próprios fins. Uma equipa de futebol diz-se organizada ou
desorganizada conforme esteja apta ou não para disputar um
campeonato ou um jogo. Uma equipa científica, se dotada ou não
de laboratórios e técnicos. Um partido político, se montados os
respectivos quadros dirigentes, definido o seu programa, abertas
delegações por todo o território. E o mesmo se diz até de um motor,
porque a errada montagem das suas peças componentes decerto
lhe impedirá ou prejudicará o funcionamento. De tal sorte, podemos
definir «organização» como o estado ou de um corpo ou de um ser
mecânico estruturado para determinado fim, de tal modo que a
disposição dos seus elementos integrantes permite o respectivo
funcionamento. Resulta que a cada um dos elementos integrantes
de um corpo organizado nós podemos chamar, e usualmente
chamamos, órgãos. Toda a organização se traduz pois,
necessariamente, num conjunto devidamente coordenado de
órgãos.
Se agora, por exemplo, reflectirmos sobre um grupo de
cavalos selvagens — onde há um chefe que se impõe aos outros e
comanda as deslocações da colectividade — não nos será difícil
compreender que aí já se realizou um encontro entre a ideia de
«organização», que estamos a tactear, e a de «sociedade», que
nos ocupou no capítulo anterior. Estamos então perante uma
organização social — ainda que se trate de uma organização social
não-humana. Estamos em face, afinal, de uma organização muito
elementar de seres dotados de «vontade», em que as estruturas do
poder se limitam a um órgão (o cavalo-chefe), não a um complexo
de órgãos.

Coisa semelhante, aliás, há quem sustente que se passou no


momento em que a transformação das comunidades primitivas
gerou, por força da divisão do trabalho, o Estado e instituiu o poder
nas mãos do chefe do clã ou da tribo. Teoria que, porém, é
manifestamente errada pois o agrupamento dos homens na
sociedade pré-estadual (isto é, na sociedade primitiva sem classes)
constituía já um tipo de organização política e aí, decerto, já o chefe
do clã (o mais forte, o mais arguto que se impunha aos outros)
constituía um órgão inteligente do poder.

Mas definida esta ideia do que seja toda e qualquer


organização (de coisas, de animais ou de pessoas), vamos ao
encontro daquilo que em Política nos importa: — a organização
social (humana) consiste na coordenação e articulação de todas as
estruturas sociais, das instituições, das forças e das relações entre
as pessoas e as coisas, de modo a permitir o funcionamento eficaz
da sociedade. Paralelamente ao facto de a ideia de organização em
geral implicar a coordenação ou montagem das peças integrantes
— órgãos do corpo organizado — também a organização social
implica a convivência articulada de uma pluralidade de órgãos
sociais. As organizações sociais, ao contrário do que aconteceu ao
nível das comunidades primitivas, não se podem limitar à existência
de um chefe ou condutor. A própria divisão do trabalho se reflecte e
implica o desembocar num complexo de órgãos diferenciados,
tantos quantos as funções específicas que o agrupamento humano
precisa de realizar para satisfação das necessidades dos seus
membros. Como entre os elementos componentes da sociedade
existem contradições e se verificam conflitos de concepções e
interesses, a organização social exige a instituição de um poder
político, o qual assegura e comanda o funcionamento da
sociedade. Semelhante poder exerce-se por meio de um conjunto
diferenciado de órgãos políticos a que usualmente se dá o nome de
órgãos públicos.

Qualquer dicionário ou manual elementar de Política nos dá


um conceito claro. «Órgão público» é a pessoa ou o conjunto de
pessoas que executa uma função especial para que tem
competência na estrutura complexa e variada do Estado. E dito isto
assim, parece tudo. Mas não podemos alhear-mo-nos do que é, na
realidade, o Estado — máquina de opressão de uma classe sobre
outra.

O Estado é sempre o domínio de uma classe que detém o


poder, logo, de uma classe que define e estrutura os órgãos
públicos. Por isso, o órgão público (o chefe do Estado, o governo, o
parlamento, os tribunais, a polícia) ou se separa do povo, como nas
organizações das sociedades burguesas ou capitalistas na medida
em que defende os interesses de uma classe dominante
minoritária, ou se aproxima dele quando este conquista o poder
através dos seus elementos de vanguarda revolucionária. Nos
tempos modernos, actuais, constatamos que efectivamente, neste
sentido, existem dois tipos fundamentais — diametralmente
opostos — de organização política da sociedade. Existem, por um
lado, organizações sociais onde o poder se encontra mais liberal ou
mais ferozmente nas mãos da burguesia, a qual institui os órgãos
públicos e forma a burocracia que lhe convem como classe (trata-
se do tipo de organização social a que chamaremos ditadura da
burguesia: — ditadura porque a classe burguesa exerce, através
dos seus órgãos públicos, a opressão da classe dominada, operária
e trabalhadora, e se configura em vários modelos que vão, desde a
democracia burguesa, parlamentar, jacobina, até ao terrorismo
fascista); e existe, por outro, a organização social em que o poder
se encontra nas mãos do proletariado, a qual consiste, também
através dos seus órgãos públicos, no exercício da chamada
ditadura do proletariado.

Ocorre-nos agora uma pergunta muito comum, cujas


respostas são susceptíveis de causar uma certa gama de
equívocos: — a organização social realiza-se espontaneamente ou
historicamente? A organização social é espontânea ou histórica?...
Mas esta contraposição assim apresentada entre «espontânea» e
«histórica» é verdadeira ou não conforme o que entendermos por
espontaneidade.
Existe, com efeito, uma concepção idealista da
espontaneidade querendo significar que um facto ou um
acontecimento são espontâneos enquanto se realizam ou verificam
com independência do mundo objectivo, como produto do livre
alvedrio indeterminado do homem. Porém, tal conceito teórico
(contrário, por simples evidência, à História enquanto ciência que
tem as suas leis objectivas) é inconsistente e não concorda com os
dados científicos da realidade. Por isso, temos de nos virar para
uma outra ideia de espontaneidade, vendo-a como característica
dos processos provocados, não por influxos exteriores, mas por
causas interiores. Recordarei que a passagem da comunidade
primitiva à fase do Estado — como descobriria Engels na
sequência dos trabalhos de Lewis Morgan sobre «A Sociedade
Primitiva», de 1877 — se verificou, não por causas exteriores ao
grupo social, mas por forças engendradas espontaneamente no
seu próprio seio. Quer para o materialismo dialéctico, quer para o
materialismo histórico, a espontaneidade concebe-se como uma
propriedade específica da matéria em geral, e da organização
social humana em particular, como manifestação do seu
automovimento. Segundo o ponto de vista de Lenine (tomo 38.°
das suas «Obras Completas», págs. 358 da edição soviética) a
condição para apreendermos todos os processos do mundo em seu
«automovimento», no seu descobrimento espontâneo, na sua vida,
assenta em conhecê-los como «unidade de contrários». Aqui reside
a ideia fulcral do que é a espontaneidade. E por este modo se
demonstra que, por força das suas contradições internas, o corpo
social se transforma como organização em cada momento do
processo histórico.
Mas se acaso fica, assim, evidenciada a convergência do
«espontâneo» e do «histórico» na formação das organizações
sociais, é preciso não esquecer que a ideia de processo histórico
põe em causa todas as coisas e pessoas existentes em cada
instante, fazendo com que, dialecticamente, a espontaneidade ou
automovimento do ser A funcione, relativamente aos seres B, C, D
e F como influxo exterior. Toda a espontaneidade (como movimento
que parte do interior de uma coisa ou de uma pessoa) opera, age,
influencia, actua exteriormente sobre (ou contra) outra coisa ou
pessoa. Portanto, reconhecer a espontaneidade do movimento de
todos os seres, segundo as suas próprias leis objectivas, não exclui
a necessidade de se ter em conta os influxos exteriores sobre as
coisas, as pessoas ou as sociedades em desenvolvimento, dada a
conexão recíproca, dialéctica, com todos os objectos do mundo.

Dito isto, porque é necessário termos presente que estamos


a tratar de política, permito-me agora restringir a ideia de
espontaneidade em contraposição à de consciência do homem.

Vimos que, no plano do materialismo dialéctico a


espontaneidade é uma propriedade específica da matéria,
manifestação do seu automovimento. Mas no que concerne à
evolução e ao desenvolvimento das sociedades humanas, já
sabemos que a existência social vai elevando, clarificando,
sublimando o nível da consciência do homem. Daí resulta que no
plano do materialismo histórico se entenda por «espontaneidade»
uma categoria diferente da categoria «consciência».
Espontaneidade e consciência são, na verdade, categorias do
materialismo histórico que caracterizam a relação entre a lei
histórica objectiva e a actividade do homem dirigida para um
determinado fim. Por espontaneidade entende-se então, o modo de
desenvolvimento social segundo o qual o homem não tem
consciência das leis objectivas desse desenvolvimento, não se
orienta por elas e actua ao acaso, sujeito a resultados de surpresa,
inesperados. Opostamente, fala-se em consciência na actividade
histórica quando as pessoas actuam apoiando-se em leis objectivas
do desenvolvimento social, que conhecem e o orientam de maneira
sistemática até à consecução de fins determinados. Seria um erro
considerar o automovimento social como uma evolução que se
desenvolve automaticamente, sem a intervenção activa dos
homens, das massas populares, dos partidos, etc.

Em conclusão:

1) todas as formações sociais pré-socialistas desenvolveram-se,


fundamentalmente, de modo espontâneo;
2) ao contrário, as formações socialistas procuram estar cada vez
mais conformes com as leis objectivas do desenvolvimento das
sociedades humanas;
3) mas não se deixa de reconhecer que mesmo no regime socialista
subsistem elementos de espontaneidade por vários motivos: —
ou por não se haverem ainda apurado certas questões da ciência
social, ou por não se ter sabido aplicar plenamente as leis
objectivas, ou finalmente pelo facto de subsistirem atrasos de
consciencialização neste ou naquele espaço humano.
Um estudo, ainda que breve, do que seja a «organização da
sociedade» não se pode dizer satisfatoriamente delineado se não
abordar, ainda que sumariamente, o conceito de formação
económico-social. Este conceito, fundamental para a política, foi
exposto por Karl Marx no prefácio do «O Capital», encontrando-se
no entanto esboçado até já em obras anteriores. Lenine retomá-lo-á
com um significado metodológico e teórico.

Como já foi recomendado (ver, por exemplo, «O Pensamento


de Lenine», de Henri Lefebvre, tradução portuguesa, Morais, 1969,
págs. 188-189) cada um dos termos desta sequência vocabular
«formação económico-social» deve ser tomado em toda a sua força
significante: — formação — na medida em que se refere a uma
realidade que se forma, reforma e transforma, que evolui e por isso
muda de maneira histórica; — económico-social no sentido de que
se trata de uma formação com dois aspectos que não podemos
separar nem confundir — o económico (forças produtivas, relações
práticas dos grupos humanos com a natureza) e o social (relações
humanas, relações de produção, classes sociais).

A organização da sociedade é assim correspondente, em


cada momento histórico, a uma determinada formação económico-
social. E como escreverá Lenine em «O Imperialismo, Estádio
Supremo do Capitalismo» («Oeuvres Choisies», Moscovo, 1948,
tomo I, págs. 841) cada formação económico-social tem as suas
leis específicas, particulares, que no entanto se subordinam às leis
gerais da formação económico-social. Esquecer as diferenças
específicas — acrescentaria Lenine — tem graves consequências,
como esta muita grosseira de se comparar, por exemplo, o
imperialismo romano com o imperialismo moderno.

No fluir histórico — é evidente isto, por força de tudo quanto


vem sendo dito — cada organização social está geneticamente
ligada às suas antecedentes e explicará as subsequentes. A
História não se processo por zonas estanques e desvinculadas.
Repito: — cada formação económico-social é específica por si
própria, mas enquadra-se numa teoria geral da formação
económico-social. Marx notaria esta verdade científica bem antes
de «O Capital». Eis uma significativa passagem da sua «Introdução
à Crítica da Economia Política»:

— «A sociedade burguesa é a organização histórica mais


desenvolvida e mais diferenciada da produção. As
categorias que exprimem as suas condições, a compreensão
da organização que lhe é própria, tornam-na apta a
compreender a organização e as relações de produção de
todas as sociedades desaparecidas, pois as ruínas e os
elementos destas sociedades foram a base em que se
edificou a sociedade capitalista, e cujos vestígios, não
superados nela, ainda se arrastam, enquanto o que estava
simplesmente indicado nas sociedades passadas se
desenvolveu e tomou todo o seu significado na sociedade
burguesa moderna».

O leitor já verificou que, a um nível de organização (qualquer


que ela seja no espaço geográfico, ou no tempo histórico)
aparecem com frequência conceitos que se distribuem por vários
campos. O programa oficial da «Introdução à Política», estabelece,
neste sentido, uma distinção entre «os vários domínios da
organização da sociedade — o económico, o social, o jurídico e o
político — e entre as várias ciências que o estudam: a economia, a
sociologia, o direito e a ciência política» (sic).

Salvo o devido respeito, o critério que se seguiu é errado.


Chega a roçar os vícios da teoria sociológica (burguesa) da
estratificação social a que aludo no capítulo seguinte. Por um lado,
nem o factor «económico» corresponde (como domínio)
exactamente e só à economia, nem o «social» exactamente e só à
sociologia. E por outro, o «jurídico» (que não respeita directamente
à realidade, mas ao mundo normativo) não passa de constituir um
reflexo do «económico» e do «social».

Esboçada esta crítica, busquemos determinar quais são


verdadeiramente os vários domínios da organização social. Isto
levar-nos-á a falar de estrutura (básica) da sociedade» e de
«superestrutura» — condição primeira, sine qua non, de uma
determinação o mais correcta dos referidos «vários domínios da
organização da sociedade».

Mas deixamos esta matéria para o próximo capítulo.


VI — Domínios da Organização Social: Estrutura
(ou Base) e Superestrutura
A propósito da «organização social», vimos que o programa
da disciplina de «Introdução à Política» estabelece um paralelo que
importa criticar.

A ideia com que uma pessoa ficava era a de que o


«económico», o «social», o «jurídico» e o «político» seriam
sectores objectivos de factos diferenciados a que correspondem
diferentes ciências que os têm por objecto. Os factos ou factores
económicos seriam objecto da ciência chamada «Economia», os
factos sociais objecto da «Sociologia», os factos jurídicos objecto
do «Direito» e, finalmente, os factos políticos objecto da «Ciência
Política». Contudo — como enunciei no final do capítulo anterior e
agora acentuo melhor — este confronto de correspondências
parece-me simplista, até mesmo errado.

Passo a explicar porquê.

Segundo o dizer corrente, os economistas e a Economia


estudariam as «forças produtivas», a produção, ou — como
geralmente se diz — o «factor económico». A Sociologia, essa,
estudaria as relações sociais. Porém, não é menos verdade que o
factor económico (as forças produtivas) só parcialmente pertencem
à Economia. As ciências da natureza (a física e a química) e outras
semelhantes (a geologia, a geografia, a tecnologia) têm também
por objecto o factor económico, as forças produtivas. Por seu turno,
a ciência da sociedade (a Sociologia) haverá de ter igualmente em
consideração o desenvolvimento das forças produtivas,
precisamente na medida em que estas condicionam as relações
entre os homens e as definem como relações de produção. É
errado, portanto, sustentar simplistamente que o «económico» é
objecto da Economia e o «social» objecto da Sociologia. O
programa oficial insinua-nos, pois, uma ideia inexacta. Aqui a
contestamos.

Mas outro equívoco se deve apontar no confronto que o


mesmo programa estabelece nos quadros da organização social,
alinhando de um lado o «económico», o «social», o «jurídico» e o
«político», e do outro (em correspondência) a Economia, a
Sociologia, o Direito e a Ciência Política. Passo assim a demonstrar
que o «jurídico» e o «político» não podem (correctamente) ser
emparelhados como objectos em si autónomos, à semelhança do
que acontece com o «económico» e o «social». Para isso, teremos
de ver mais rigorosamente o que constitui a organização social —
ou mais profundamente o que representa, como organização, toda
e qualquer formação económico-social.

A «formação económico-social» de um dado momento


histórico define-se, em concreto, pelos seus dois elementos
complementares:

1) pela estrutura económica da base (a base económica


da sociedade);
2) pela superestrutura correspondente àquela base.
Falando em estrutura e em superestrutura, não iremos porém
adiante sem procurar saber o que significam tais palavras. Mas
uma coisa podemos desde já verificar: — se a «superestrutura» é
obviamente uma estrutura superior, a simples «estrutura» situa-se
como estrutura inferior, básica ou de base.

Porém, o que significa «estrutura»?

Não nos vamos embrenhar, é evidente, no conceito


aprofundado do que ela seja — aliás, um tema de há anos a esta
parte na ordem do dia a propósito do «estruturalismo»,
designadamente das relações deste com o «marxismo».
Contentemo-nos, neste momento, com uma ideia que nem sequer
peca por demasiada imprecisão: —«estrutura» é conexão e relação
recíprocas, estáveis, entre as partes ou elementos de um todo ou
sistema.

Sabemos já que a «organização social» representa um


conjunto de elementos pessoais, materiais e relacionais, e não é
difícil entender que alguns desses elementos se situam na base e
outros na cúpula de referida organização. Por isso, distinguiremos a
estrutura de base ou simplesmente a estrutura (que também se
designa por base) da estrutura de cúpula ou superestrutura.

A base da sociedade é constituída pelas forças produtivas


(meios e instrumentos de produção) e pelas relações de produção
estabelecidas entre os homens. É a base económica — o
«económico» a que alude o programa da «Introdução à Política».

No século passado foi inventada a máquina a vapor, uma


nova força produtiva, novo instrumento de produção — e este facto
reflectiu-se logo no estabelecimento entre os homens, de um novo
tipo de relações de produção, as próprias da fase do industrialismo.
Muitos séculos antes a invenção da roda (instrumento de produção)
criara novas formas de relações entre os homens. Tal como,
milénios antes, a descoberta do fogo havia alterado radicalmente o
processo da convivência humana. Gama de exemplos, esta, que
chega suficientemente para se afirmar que as relações sociais da
produção correspondem sempre a uma fase determinada do
desenvolvimento das forças produtivas.

Evidente é, do mesmo passo, que as relações de produção


(estabelecidas em cada momento entre os homens) nos mostram
em que mãos se encontram (nesse momento) os meios ou
instrumentos de produção — quem é, enfim, o possuidor das forças
produtivas. Em consequência, como as relações de produção
constituem a base económica da organização social, tal base
caracteriza-se conforme quem possui as referidas forças. E
portanto, se pensarmos na antinomia «capitalismo-socialismo»,
veremos então esta diferença fundamental: — a base da sociedade
capitalista caracteriza-se pela propriedade individual dos meios de
produção e pela exploração do homem pelo homem (a exploração
do trabalho assalariado); — opostamente, a base da sociedade
socialista define-se pela propriedade colectiva dos meios de
produção e a ausência de exploração do homem pelo homem. Eis
onde reside a diferenciação estrutural básica do capitalismo e do
socialismo.

Estamos agora em situação para analisarmos como é, e


como se forma, a estrutura de cúpula, aquela que se costuma
designar por superestrutura.
O desenvolvimento das forças produtivas e o
estabelecimento de relações de produção tipicamente
correspondentes, eis um conjunto que engendra na consciência
dos homens uma série de formas políticas, ideológicas, morais,
jurídicas, etc. Pois a superestrutura é precisamente o conjunto
dessas formas — as quais, portanto, constituem formas de
consciência. E cumpre-nos recordar a questão posta no 4.° capítulo
deste livro: — aí verificamos que foi e é a existência social do
homem (as suas relações com os instrumentos de produção e as
suas relações de produção com os outros homens) que engendrou,
desenvolve e continuará a desenvolver-lhe a consciência. As
formas ideológicas, as formas políticas (entre elas o Estado), as
formas morais, as formas jurídicas, as formas estéticas, literárias e
artísticas, todas elas são formas de consciência e constituem a
superestrutura. A superestrutura de um dado tempo abrange todas
as formas de consciência dos homens desse mesmo tempo.

Podemos, neste momento, detectar claramente o vício da


selecção (para confronto) dos elementos da organização social
feita pelo programa de «Introdução à Política». Na verdade, se o
«económico» e o «social» são elementos da base económica de
uma dada formação económico-social o «jurídico» e o «político»
representam formas de consciência que se situam, portanto, a nível
super-estrutural. Estes quatro elementos, perfeitamente
emparelháveis dois a dois, não têm no conjunto (dos quatro)
emparelhamento possível.

A teoria da base e da superestrutura revela-nos o nexo


existente entre as relações económicas de uma sociedade e todas
as outras relações estabelecidas na mesma sociedade. As relações
sócio-económicas de produção, como dissemos já, constituem a
base — e à base está «ligada» à superestrutura por vínculos ao
mesmo tempo definidores e revolucionantes. Dada a importância
do problema, parece melhor examinarmos com mais profundidade
esta conexão activa, esta ligação dinâmica.

Formam parte da superestrutura as ideias, as concepções, as


organizações, as instituições sociais. Consequentemcnte, no
núcleo daquela entram as concepções políticas, jurídicas, morais,
estéticas, religiosas e filosóficas, também denominadas, como já
vimos, formas de consciência. E resulta evidente, em virtude da
conexão há pouco referida, que todas as formas de consciência
social reflectem, de um ou de outro modo, as relações económicas,
a estrutura económica da sociedade.

Acontece, porém, que esta conexão existente entre a base e


a superestrutura não é paralítica. Por outro modo de dizer, não é
estática. Já atrás a dissemos dinamica, não obstante todas as
formas superestruturais terem em si próprias a tendência para
permanecer. Mas é melhor explicar.

Os fenómenos da superestrutura — uma orgânica estadual,


política ou social que se estabelece, um código de leis que se
publica, uma doutrina religiosa que se proclama e prega, uma
filosofia que se sustenta, uma teoria científica que se define, uma
posição estética que se afirma — todos estes fenómenos, uma vez
declarados ou instituídos, têm tendência para não desaparecer,
para se conservar. Várias causas humanas explicam esse
fenómeno que contraria o natural progressismo humano,
designadamente a partir do instinto de conservação, do
comodismo, do conformismo com o que está feito. É indubitável
que os fenómenos da superestrutura, ainda que ditados por uma
base económica em constante desenvolvimento, tendem para não
variar. Os códigos, as correntes filosóficas, as ideias religiosas
tendem a conservar-se. Mas quando a base (complexo das
relações de produção) se transformou bastante, então as formas
superestruturais mostram-se de todo insuportáveis. Elas são agora
formas velhas, caducadas ainda que, só como fantasmas
imperantes, continuem a sobreviver. Repare-se nesta verdade: — o
que de insuportável seria, por exemplo, após a época do
industrialismo manter-se, persistindo em se conservar, a legislação
medieval do artesanato.

Assentemos, pois, em que cada «formação económico-


social» tem uma base determinada e a sua correspondente
superestrutura, diferenciando-se historicamente, por exemplo, as
bases e as superestruturas das sociedades esclavagista, feudal,
capitalista e socialista. Mudam, na base, as relações de produção,
e as formas superestruturais de consciência terão de mudar
também, ainda que resistam e se mantenham como sobrevivências
durante certo tempo de desacerto. As mudanças da base
produzem, enfim, mudanças da consciência do homem. Por
exemplo: — a industrialização do século passado está
economicamente na base da consciencialização do proletariado.

Quando, em suma, a base económica se modifica, a


superestrutura — que depende estritamente daquela — modifica-se
também por sua vez. A História da sociedade oferece numerosos
exemplos dessa correlação, já o mostrámos, permitindo
compreender por que motivo as ideias políticas, estéticas, morais e
outras, diferem segundo as épocas históricas. Por estar vinculada a
uma determinada base, a superestrutura desaparecerá com a
transformação dessa base.

Mas apesar de engendrada pela base económica, a


superestrutura está longe de ser passiva como mero reflexo da
dinâmica daquela. É que a base não constitui, de forma alguma, a
única força activa do desenvolvimento social. É preciso, assim, ter-
se igualmente em conta o considerável papel dinamizádor das
formas superestruturais (como o Estado, as instituições sociais, a
família, o direito, as ideias políticas, filosóficas, estéticas, literárias,
artísticas, etc., etc.), que todas elas influem na transformação da
base. Está na ordem do dia político português, como todos
sabemos, a «dinamização cultural» promovida pelo Movimento das
Forças Armadas — e isso não representa outra coisa senão
reconhecermos, do ponto de vista prático, que a cultura (forma
superestrutural) pode actuar, e actua com certeza, nas
transformações de base.

Verifica-se deste modo uma relação de subversão recíproca


entre a estrutura de base e a estrutura de cúpula. Ou por outras
expressões equivalentes no vocabulário da filosofia, da ciência e da
prática política: — entre a base e a superestrutura.

«A situação económica é a base — escreveria Engels numa


carta a Bloch, datada de 21/9/1890 —, mas os diversos
elementos da superestrutura, as formas políticas da luta de
classes e os seus resultados, as constituições estabelecidas
uma vez ganha a batalha, as formas jurídicas, e mesmo o
reflexo de todas essas lutas reais no cérebro dos
participantes (tais como teorias políticas, jurídicas,
filosóficas, conceitos religiosos e seu desenvolvimento
posterior em sistemas dogmáticos), igualmente exercem
acção nas lutas históricas e em muitos casos determinam-
lhes, de modo preponderante, a forma...»

Posto isto, fica compreensivelmente assente o seguinte:

1) que o factor económico (as forças produtivas) e o factor social (as


relações de produção), referidos no programa oficial da
«Introdução à Política», são elementos de base da organização
social; e
2) que o factor jurídico e o factor político, postos no referido
programa ao lado daqueles dois anteriores, não. pertencem ao
mesmo nível básico porque são formas de consciência,
elementos de nível superestrutural.
Portanto, e em conclusão, os vários domínios da organização
social distribuem-se correctamente por estes dois planos:

1) no plano estrutural (na base económica) estão o económico e o


social;
2) no plano superestrutural (como formas de consciência) situam-se
a filosofia, a organização jurídica e política do Estado, o direito, a
moral, a estética, as artes, a literatura e as ciências.
Captada tal diferenciação fundamentalíssima de situações,
procuraremos agora verificar os termos em que se devem definir as
várias ciências a que se refere o programa oficial: — a Economia, a
Sociologia, o Direito e a Política (ou Ciência Política).
Começaremos pela Economia e pela Política, mas
conjuntamente mercê da sua indeclinável ligação. «A política é a
expressão concentrada da economia» — no dizer de Lenine, como
já antes tivemos ocasião de reconhecer.

A Política (diga-se uma ciência ou uma arte) traduz


importantíssima parte da superestrutura, um reflexo do regime
económico existente em dada sociedade. Na política, efectivamente
encontram expressão concentrada os interesses desta ou daquela
classe. Mas acresce que, como reflexo da economia, por seu turno
a política exerce notável influência sobre a mesma economia.
Trata-se aqui de um dos múltiplos e possíveis aspectos daquela
reciprocidade de subversões a que aludíamos há pouco.

Em virtude desta condição dialéctica, quando se executa com


acerto uma determinada política, o centro de gravidade assenta
necessariamente na organização da economia. É isso o que
acontece na política do socialismo e daí ter Lenine escrito no seu
artigo sobre «As tarefas imediatas do poder soviético»: «A tarefa de
dirigir o Estado, situada agora em primeiro plano face ao Estado
soviético, oferece além do mais a particularidade de que hoje e,
sem dúvida, pela primeira vez na história dos povos civilizados —
se trata de uma orientação em que não é a política que adquire
significado predominante, antes sim a economia». Efectivamente,
na sociedade socialista o desenvolvimento da base (das forças
produtivas) não ocorre de maneira espontânea, como sob o
capitalismo, mas de forma planificada e conforme a utilização
consciente das leis económicas. E é daqui que resulta evidente a
natureza superestrutural da política:—o «político» constitui a
consciência mais elevada do «económico». Logo, portanto, como
regra geral podemos ver que:

1) no socialismo a economia predomina sobre o político;


2) e no capitalismo ou no imperialismo (fase última do
próprio capitalismo) a política predomina em regra
sobre o económico.
Não se pode, porém, entender isto em termos rígidos, não
dialécticos. Por isso, analisando o pensamento de Lenine («O
Pensamento de Lenine», tradução portuguesa, Morais, 1969, págs.
232) Henri Lefebvre coloca a questão segundo estes termos:

— «Nos períodos relativamente calmos, o económico


domina o social e o político: determina-os. Mas quando vem
o período (longo ou breve) de crise, é o contrário que sucede
(cfr. Lenine, «Oeuvres Choisies», I, págs. 643, II págs. 77). O
político, determinado pela crise como abalo e crise da base,
determina por sua vez o económico. E, nesse momento,
passa a ser essencial à formação económico-social, em cuja
história se integra, quer a crise se resolva
revolucionariamente, quer se faça marcha atrás
(aparentemente, e mais ou menos, porque nunca se volta
atrás por completo)».

A política, como superestrutura, como forma de consciência,


é portanto uma busca de solução para os fenómenos da base
económica. Isto explica todo um método próprio, adequado, e
também a razão por força da qual dizíamos no 1.° capítulo deste
livro que a actividade política é uma arte cientificada. Não nos
pareceu, e agora persistimos na ideia, que esta seja uma
expressão descolorida ou confusa. Ela traduz bem a realidade.
A política, então, representa uma forma de consciência. Por
sua parte, método é a maneira de reproduzirmos no pensamento o
objecto em que pensamos. Mas no fundamento de todos os
métodos de conhecimento encontram-se sempre, necessariamente,
as leis objectivas da realidade. O que porém acontece é que,
enquanto o método da política burguesa traduz um constante
oportunismo alheado daquelas leis objectivas, o método da política
socialista constitui, ao contrário, a maneira de reproduzirmos no
pensamento os dados da base económica da sociedade, tirando
daí os indicativos práticos para a condução dos assuntos do
Estado. Isto quer dizer que, enquanto a política burguesa é uma
arte caótica e cega para as leis objectivas da realidade, a política
socialista vale antes uma conduta tanto mais científica quanto
melhor apreende e toma em consideração aquelas mesmas leis.

Com o reparo desta diferença, demos por findo o nosso


apontamento sobre a natureza da Economia e da Política.
Passamos agora a outro ramo científico — o da Sociologia, que é a
ciência da sociedade e das leis do seu desenvolvimento.

Antes de mais, porém, estando nós a tratar, separativamente,


os domínios (fácticos e conscienciais) da «organização social»,
parece-me conveniente advertir o leitor, a propósito da sociologia,
contra uma ideia que muito frequentemente se costuma infiltrar
neste terreno com foros de coisa científica. Refiro-me à chamada
estratificação social.

Trata-se, com efeito, de uma teoria sociológica burguesa


muito em voga — a teoria da estratificação social. Conforme os
seus termos a sociedade encontra-se dividida em estratos sociais,
invocando-se, -se como base de diferenciação, diversos índices
caracterizadores de cada estrato: — índices económicos, políticos,
biológicos, raciais, religiosos e outros. Uma pessoa pertencerá,
então, a um ou outro estrato conforme o volume dos seus ganhos,
a ocupação profissional, o tipo de habitação que ocupa, a região ou
distrito em que vive, etc. etc. Mas é fácil de ver, por tudo isto, que a
teoria da estratificação social é, evidentemente, anticientífica. Ela
falseia a estrutura de classe da sociedade burguesa actual e
mascara a exploração da classe capitalista. A sua tendência aponta
para eliminar a ideia de luta de classes na exacta medida em que,
apesar da multiplicidade dos seus critérios de definição estratual,
nem sequer considera a relação das pessoas com os meios de
produção. Na realidade, só esta relação conduz a diferençar os
dois únicos estratos (classistas) socialmente existentes: – a classe
daqueles que são titulares dos meios de produção (os capitalistas)
e a classe daqueles outros que, não tendo meios de produção
próprios, vêm-se na necessidade de vender a sua força de
trabalho, condição trágica para conseguirem sobreviver.

A sociologia autenticamente científica — o materialismo


histórico — foi criada por Marx e Engels.

As suas investigações destacaram a base material


determinante da sociedade (as relações de produção), descobriram
as leis objectivas da História e da sociedade, apresentaram o
desenvolvimento desta como um processo histórico-natural de
sucessão de formações económico-sociais e apontaram
cientificamente a inevitável substituição do capitalismo pelo
socialismo.
Mas a sociologia burguesa da segunda metade do século
XIX, e dos princípios do século XX, tem lutado desesperadamente
contra o materialismo histórico. Eis então uma chuva opaca de
argumentos psicológicos, racistas, tecnocráticos, biológicos,
geográficos. Desfila a invocação de toda uma galeria de vários
argumentos para se «demonstrar» (?!) que o capitalismo é um
estádio social perpétuo e imutável, aliás tão perpétuo e tão imutável
como o colonialismo, o qual, nas suas parasitárias e vampíricas
relações de produção, constitui a base do imperialismo moderno.

Mas os pensadores burgueses criaram ainda muitas outras


teorias sociológicas (idealistas todas, naturalmente) que nada têm a
ver com uma verdadeira ciência do social. De modo genérico, as
teorias sociológicas posteriores a Marx e a Engels viram a causa
principal da actividade dos homens em motivos ideológicos, ou
aceitaram a chamada orientação geográfica (variedade da
sociologia burguesa segundo a qual o meio geográfico seria o
factor determinante da formação e da evolução social), ou
proclamaram ainda outra ideia não menos metafísica, anti-histórica
e idealista: — a da «escola-funcional» norte-americana (Merton,
Parsons, Sorokin) que concebeu a sociedade como um sistema
social unificado, onde cada um dos respectivos elementos cumpre
uma função e só aquela.

A verdade é que, aliás explicavelmente, a luta da sociologia


burguesa hipertrofiou-se após o conflito de 39-45. Assim, uma outra
teoria sociológica burguesa muito em voga, particularmente querida
dos norte-americanos depois da Segunda Guerra Mundial, é a da
geopolítica. Ao fim e ao cabo, como se demonstrará na análise do
imperialismo actual, a geopolítica pretende somente também
justificar, com referência a dados de geografia económica e política,
diversas formas de expansão imperialista. Finalmente, temos ainda
a chamada sociologia empírica, que representa uma outra corrente
da moderna sociologia norte-americana. Fugindo ao
reconhecimento das leis objectivas da realidade social descobertas
por Marx e Engels, entrega-se esta a um casuísmo extremo. Mas, o
estudo dos fenómenos singulares, concretos, a que a sociologia
empírica se dedica só poderá desempenhar um papel positivo se
acaso estiver integrado numa teoria científica que explique a
sociedade como um todo. Mas isso, repetimos, unicamente se pode
verificar com a sociologia científica do materialismo histórico.

Mudamos, entretanto, de campo — da Sociologia para o


Direito, que este é também outra forma superestrutural da
organização da sociedade. Mas o Direito, repito, não constitui a
ciência do (facto) «jurídico» como facto diferenciado do
«económico» e do «social». As relações de produção só são
relações jurídicas enquanto vistas pelo direito. O facto jurídico é
somente uma conceitualização normativa, superestrutural, do facto
económico-social. Ou por outras palavras: — o direito (as leis, as
instituições estaduais e as relações jurídicas) não são mais do que
o reflexo das condições económicas da sociedade. O «jurídico»
não é pois um elemento da base a que corresponde a forma
superestrutural do direito. O «jurídico» é já, em si mesmo
considerado, um sector da superestrutura. Donde, o ser preciso
não confundir as leis estaduais (legislação, direito) com as leis
económicas objectivas. Ao contrário das leis científicas da natureza
e da sociedade, que existem independentemente da vontade dos
homens, as promulgadas pelo Estado traduzem ou reflectem os
interesses económicos de determinadas classes e são destinadas a
defender essas mesmas classes.

O Estado é, como aliás já ficou dito, uma organização


jurídica, superestrutura normativa. Ele representa, obviamente, a
parte predominante da superestrutura. Impõe-se a todas as outras
formas precisamente porque constitui a organização jurídica e
política da classe dominante e tem por fim manter a ordem e a
sujeição da classe dominada. E da mesma maneira que
assinalámos para a generalidade das formas superestruturais a sua
tendência para, uma vez criadas, permanecerem, também o Estado
tende a conservar c a fortalecer o sistema económico que o criou.
Daí este resultado: — porque numa sociedade dividida em classes
a superestrutura assume carácter de classe, nós vemos que a
organização da sociedade burguesa (como Estado capitalista)
mobiliza esta sua forma específica na luta contra a revolução
proletária, procurando impedir o progresso social.

Parece-me que ao final, e antes de entrarmos a autopsiar


esta forma superestrutural designada por Estado, não é ilegítima
nem injustificada a seguinte conclusão: — procurar-se averiguar se
a política é uma ciência, se uma arte, isso constituirá uma questão
talvez bizantina. A política, a ciência e a arte são, todas elas três,
formas de consciência humana, formas superestruturais
relacionadas com uma determinada base económica.
Interpenetram-se, portanto. As diversas formas por que se estrutura
a nossa consciência de homens não sào de modo nenhum divisões
independentes. Não constituem compartimentos estanques. Além
de que — como nos advertiu Marx na segunda das suas «Teses
sobre Feuerbach»

— «a questão de saber se o pensamento humano pode


atingir uma verdade objectiva não é uma questão teórica,
mas uma questão prática. É na praxis (na actividade prática)
que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a
realidade, a precisão, o poder do seu pensamento. A
controvérsia sobre a realidade ou não realidade do
pensamento, isolada da praxis, é uma questão puramente
escolástica».
VII — Natureza e Funções do Estado
No capítulo dedicado ao «objecto da ciência política» o
programa oficial individualiza as seguintes questões: a natureza e
as funções do Estado, e as condições e formas de exercício do
poder político.

Tal enunciado tem, para já, uma vantagem sobre aquele


outro que, no domínio do Estado Novo, se apresentava ao
estudante da então chamada «Organização Política e
Administrativa da Nação». Vantagem que se resume muito
simplesmente no facto de que, naquele enganatório programa e ao
contrário do que no actual verificamos, não se punha sequer a
questão da natureza do Estado. Isso acontecia, não por qualquer
lapso involuntário, antes sim por deliberado artifício. Com efeito,
enquanto se pretende procurar, cientificamente, qual possa ser a
resposta a esta questão, não se encontra outra senão uma: — a
que resulta do que viemos de fazer no capítulo 4.° deste livro, que
teve por tema «O Homem, a Sociedade e o Estado».

Ali chegáramos, através da análise sobre as origens


históricas do Estado, à sintética definição de Lenine:

— «O Estado é uma máquina destinada a manter a


dominação de uma classe sobre outra».

Eis afinal a verdade que aos próceres do regime fascista não


convinha que fosse dita pelos motivos e razões que mais adiante
veremos.
Por outro lado, ainda que se possa acusar de repetitivo o
meu esquema (ver, quanto a tal matéria, o que ficou escrito no
capítulo 4.°), parece ser altura de procedermos a uma espécie de
retorno, transcrevendo mais algumas palavras de Lenine, do citado
ensaio sobre «O Estado». Trata-se de um trecho verdadeiramente
educativo, advertente e exemplar.

«Para abordar este assunto de maneira científica —


escreveu Lenine — convém relancear os olhos pela História,
mesmo rapidamente, no que respeita às origens e evolução
do Estado. O método seguro em qualquer questão
importante da ciência social, indispensável para
efectivamente adquirirmos o hábito de examinar com
correcção o problema, não nos perdendo numa massa de
pormenores ou na extrema variedade de opiniões, enfim, a
condição mais considerável num estudo científico reside em
termos presente o encadeamento histórico fundamental,
atendendo cada assunto do ponto de vista seguinte: — ver
como tal fenómeno apareceu na História, quais as etapas
principais do seu desenvolvimento, e depois encarar, dè um
ângulo desse mesmo desenvolvimento, aquilo em que ele
hoje resultou.

«Espero — recomendava Lenine — que acerca deste


problema leiam a obra de Engels «A Origem da Família, da
Propriedade Privada e do Estado». Eis uma das obras-
primas do socialismo, texto da maior confiança em cada
frase, na certeza de que nenhuma foi escrita por acaso, pois
antes se apoia em vasta documentação histórica e política
(...) É uma obra que começa por traçar a súmula histórica da
origem do Estado. Porém, para se versar convenientemente
tal assunto, como aliás outro qualquer (por exemplo: o
nascimento do capitalismo e da exploração do homem pelo
homem, o socialismo e a sua origem, as condições que o
produziram), para abordar, repito, mas seriamente e com
segurança, qualquer assunto deste género, é preciso fazer
de início um relance muito geral sobre a evolução histórica.
E no caso do Estado deve verificar-se, antes de mais, que
ele nem sempre existiu. Houve, com efeito, uma época em
que não havia Estado. Este só apareceu no momento em
que se dá a divisão da sociedade em classes, quando se
diferenciam os exploradores e os explorados.

«Antes de surgir a primeira forma de exploração do homem


pelo homem, a primeira forma de divisão em classes —
proprietários de escravos e escravos — existia a família
patriarcal, ou, como lhe chama por vezes, o clã (a palavra
«clã» significa geração ou descendência, na época em que
os homens viviam ligados por laços de sangue), e bastantes
vestígios destas épocas antigas subsistiam nos hábitos de
inúmeros povos primitivos; e se consultardes uma obra
qualquer sobre as civilizações primitivas encontrareis
sempre descrições, indicações, testemunhos mais ou menos
precisos a atestar q.ue houve uma época tanto ou quanto
parecida com um comunismo primitivo, já que a sociedade
não se encontrava dividida em proprietários de escravos e
escravos. Então não existia Estado — não havia qualquer
aparelho especial para se usar sistematicamente a violência
e obrigar os homens a submeterem-se a ele. Pois é a este
aparelho que se chama Estado».

O leitor já compreende, sem equívoco, o motivo determinante


da transcrição que acabo de fazer. E também a causa por força da
qual o velho e falso programa de «Organização Política e
Administrativa da Nação» não abordava a natureza do Estado. Este
traduz na essência, como revelou a investigação histórica, um
aparelho (uma máquina) de repressão, e nada mais. A repressão
de uma classe qualquer sobre outra — seja, em termos do nosso
tempo, da classe burguesa-capitalista sobre a classe trabalhadora
ou, contrariamente, seja desta sobre aquela.

Visto assim o problema, encontramo-nos claramente


habilitados a colocar em termos correctos a segunda questão deste
capítulo. Trata-se agora de entendermos o que são as funções do
Estado, coisa só seriamente possível uma vez deslindado o ponto
teórico anterior, que vimos ser o da natureza classista da
organização estatal.

O Estado é, portanto, uma máquina e, como tal, um conjunto


de órgãos. E como todas as máquinas existem para desenvolver
determinadas actividades, e a actividade do Estado equivale ao
funcionamento dos seus órgãos, fácil é concluirmos que — como
dizem os dicionários — a função representa o trabalho de cada
órgão. O problema das funções do Estado traduz-se,
consequentemente, no da realização dos seus fins através dos
órgãos que o constituem. Daqui não há que fugir, abrindo-se-nos as
portas para uma análise correcta, aquela que vamos efectuar a
partir da crítica de dois preceitos da Constituição Política de 1933.
Antes, porém, afigura-se-me indispensável recordarmos em duas
palavras a sequência dos vários tipos de formação económico-
social que o mundo historicamente viu.

Na primeira formação económico-social com carácter


estadual (a da sociedade esclavagista) o Estado assegura, com o
seu funcionamento, a exploração económica do escravo. Depois,
com a segunda formação (aquela que caracteriza e constitui o
regime da servidão feudal) o Estado promove a exploração dos
servos adstritos à gleba, pelos respectivos senhores feudais. Por
fim, na terceira formação (a do regime capitalista) o Estado
intensifica a segurança dos patrões na exploração dos
trabalhadores. Existe, porém, uma semelhança muito curiosa entre
o que aconteceu no regime feudal e o que acontece no regime
capitalista, rasgo característico de ambos, ao mesmo tempo oposto
àquilo que se tinha verificado no regime esclavagista. Digamos que
este foi menos hipócrita, ou muito mais sincero, mais brutalmente
óbvio no seu estatuto de exploração económica. Isto é o que vamos
tentar que fique suficientemente enunciado nas linhas seguintes.

Na generalidade dos regimes esclavagistas da Antiguidade o


escravo era juridicamente uma coisa, não uma pessoa. Como tal,
integrava-se nos bens patrimoniais do seu dono. Esta completa
sujeição não alimentava nem consentia disfarces. O escravo era
isso mesmo — uma coisa e só uma coisa. Mas no regime feudal já
a coloração é diferente: — está-se no domínio pleno do
cristianismo, situação a que os exploradores não podem fugir e que
portanto procuram desenhar ao sabor das suas conveniências de
classe.

Durante os séculos IX e X vemos o servo «ascender» à


condição de colono adscrito. No decurso do século XI define-se a
sua adscrição à gleba, jamais a podendo abandonar, pelo que ela
se transmite de geração em geração. E no século XIII o adscrito
transforma-se em colono livre (colono dito livre), facto que ocorreu
em virtude de três factores sócio-económicos:

1) as lutas contra os mouros (na reconquista cristã) requeriam


soldados e a condição destes bom era que aparentasse a de
homens livres, isto é, de homens não coagidos;
2) o trabalho livre era mais qualificado em rentabilidade;
3) além de que os concelhos concediam liberdade civil a todos os
foragidos com culpa delitual, desde que fossem cristãos. Quer
isto dizer que os escravos mouros mantiveram então um estatuto
análogo ao dos servi (escravos) romanos, sendo significativo
encontrarmos nas leis promulgadas em 1211 por Afonso II os
derradeiros sinais de constrangimento pessoal sobre cristãos.
Finda porém a adscrição forçada, continuou a exploração do
«trabalho livre» na medida em que os adscritos (considerados
agora pessoas civis) passaram a formar a classe dos juniores, que
cultivava o solo mas não o possuía. »

Talvez tenhamos ido longe. Mas é necessário não


esquecermos que estamos em busca de um disfarce comum ao
feudalismo e ao capitalismo, disfarce que (por este aspecto) opõe
estas duas formações sociais ao regime declaradamente brutal do
esclavagismo.

Neste sentido, torna-se necessário ver o que significou o


feudalismo. Só que antes, num curtíssimo parêntesis, eu queria
alertar o estudioso para a questão que vem de Herculano, Gama
Barros e Paulo Merêa, historiadores que assentaram na tese
negativa quanto ao problema da existência desse feudalismo em
Portugal (Alexandre Herculano, «Da existência ou não existência
do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e Portugal», no tomo 5.°
dos «Opúsculos»; Gama Barros, «História da Administração
Pública em Portugal nos séculos XII a XV», tomo L° da 2.° edição;
e Paulo Merêa, «Introdução ao problema do feudalismo em
Portugal» e «Organização social e administração pública», no 2.°
volume da «História de Portugal», de Barcelos. Limitar-me-ei a
prevenir que uma revisão do problema à luz do materialismo
histórico— com a noção de que o feudalismo, como formação
económico-social, haverá de ter tido formas específicas,
diferenciadas segundo as condições concretas de cada país e lugar
— poderá conduzir à rejeição da tese negativa de Herculano, Gama
Barros e Merêa. Há então que rever segundo critérios económico-
sociais (e não segundo critérios histórico-jurídicos) o significado da
instituição do Condado Portucalense; o do prestimónio de
vassalagem de Afonso Henriques a Afonso VII no Tratado de Tui,
de 1137; o das doações (feitas a colonos francos) de Vila Verde e
Vila Franca em 1160 e 1200, nos quais o próprio Herculano
chegou, na sua «História de Portugal», a descobrir «verdadeiros
caracteres da concessão dos feudos»; o da doação de Afonso III a
seu filho segundo, infante D. Afonso, dos castelos e vilas de
Marvão, Portalegre e Arronches; e muito especialmente ainda o
significado das duas concessões que, em 1317 e 1319, o rei D.
Dinis fez ao almirante genovês Manoel Pessanha, onde os
característicos feudais são mais evidentes, particularmente na do
castelo e vila de Odemira.

Paulo Merêa, é certo, observava que «para afirmar que o


nosso país e os de mais estados ocidentais da Península
conheceram o feudalismo é preciso ligar a esta palavra um sentido
demasiadamente vago» (sublinhado meu). Mas é evidente que tal
sentido, que se pretendeu vago, não passa de ser a definição geral
de uma formação económico-social que teve, na Península Ibérica,
feições estritamente particularizadas, conformes com o meio
concreto em que se geraram.
Seja como for, esclareçamos que Paulo Mêrea distinguiu
entre feudo e senhorio — «institutos diversos, com origens
diversas, se bem que embrenhadas» (sic). O primeiro filia-se
sobretudo em duas práticas antigas — o benefício e o patronato —
que, depois fundidas, deram o «feudo». O segundo, o senhorio, e
uma «terra» no significado predominantemente económico que o
termo implica. E feita esta distinção (dos dois elementos
reconhecidamente embrenhados), é-nos fácil surpreendermos a tal
«hipocrisia» do feudalismo: — ele aparece instituído juridicamente
como um benefício, mas na base vale antes como exploração do
servo «beneficiado». E aí está,,portanto, o analogado da hipocrisia
capitalista, enquanto esta última organização social
constantemente procura fazer crer que o Estado burguês promove,
não o domínio da classe exploradora sobre a classe explorada,
antes sim a harmonia pouco menos que celestial das duas classes.

Quem não terá esquecido já, que páginas atrás


anunciávamos que a questão das funções do Estado a
estudaríamos também, do ponto de vista crítico, a partir da lei
«constitucional» de 1933?... E quem não terá compreendido ainda
que este roteiro de novo efectuado pela História se destinou a
esclarecer a mesma questão?... Pois não é verdade que as funções
do Estado esclavagista (o funcionamento do Estado esclavagista)
se traduziu num processo jurídico-político de domínio dos escravos
explorados até à morte pelos seus donos?... E que as funções do
Estado feudal valeram um processo jurídico-político do domínio dos
servos e dos colonos, explorados pelos senhores feudais?... E que
as funções do Estado capitalista se representam na segurança com
que os patrões querem continuar a explorar os trabalhadores, os
verdadeiros produtores da riqueza?...

Antes de irmos, finalmente, olhar os art.°s 6.° e 35.° da


Constituição Política de 1933, assentemos em que a classe dos
patrões e a classe dos trabalhadores são classes antagónicas. Isto
é: — classes com interesses antagónicos, inconciliáveis. O
interesse do capitalista está em continuar acumulando capital à
custa da exploração da mão-de-obra e do trabalho dos operários; o
interesse dos operários é, contrariamente, o de eliminar esta
exploração que o vitima, facto que só terá consumação com a
abolição das classes sociais. Ora iremos ver que os art.°s 6.° e 35.°
da lei fundamental fascista mistificam hipocritamente o problema
das relações essencialmente antagónicas entre estas duas classes.

O que nos diz, então, o art.° 35.° da Constituição Política de


1933?

Ocultando ou ignorando o antagonismo das classes, este


preceito mascara efectivamente a realidade com uma refalsada
declaração de solidariedade social:

— «A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma


função social — reza esta norma dita constitucional —, em
regime de cooperação económica e solidariedade, podendo
a lei determinar as condições do seu emprego ou exploração
conformes com a finalidade colectiva».

Este logro de uma solidariedade impossível destina-se


obviamente a assegurar a exploração do trabalho pelo capital. Mas
ele agrava-se ainda no art.° 6.° da mesma Constituição, lugar onde
semelhante diploma define as várias funções do Estado, entre elas
as de

«coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais,


fazendo prevalecer uma justa harmonia de interesses (?)
dentro da legítima subordinação do particular ao geral» (n.° 2
do art.° 6.°) e as de «zelar pela melhoria das condições das
classes sociais mais desfavorecidas, procurando assegurar-
lhes um nível de vida compatível com a dignidade humana»
(n.° 3, idem).

Basta que o leitor reflicta directamente sobre a forma como a


ditadura do 28 de Maio tratou, social e economicamente, a classe
trabalhadora, para descortinarmos toda a ardilosa latitude do
chamado Estado Novo. Onde estará a «justa harmonia de
interesses» entre as classes antagónicas de capitalistas e
trabalhadores? Alguma vez será ela possível? E o que são os
equivalentes concretos de uma frase tão abstracta como esta —
«legítima subordinação do particular ao geral» — se não a
exploradora subordinação dos trabalhadores ao capital? E ainda,
finalmente, o que vale o falso paternalismo zelador(?) da «melhoria
das condições das classes sociais mais desfavorecidas», se um
texto constitucional não enuncia (constitucionalmente, está visto) a
razão última desse mesmo des- favorecimento?

O objectivo do Estado corporativo fascista — portanto, as


funções desse Estado — foi o de encobrir, na Constituição e nas
leis, a ditadura do capital monopolista, conferindo à sua
organização política e administrativa a aparência de uma
«colaboração de classes», de uma «harmonia de interesses»
realizável no seio das «corporações». No entanto, uma vez
aconteceu que fugiu para a verdade a boca do legislador fascista.
Nesse momento ele pôs a nú o âmago da sua hipocrisia e
esventrou a realidade — a realidade da exploração do trabalho pelo
capital. Foi no art.° 16.° do Estatuto do Trabalho Nacional,
publicado também em 1933. Aí, com efeito, o regime fascista
preceituou assim:

«O direito de conservação ou amortização do capital das


empresas e do seu justo rendimento são condicionados pela
natureza das coisas, não podendo prevalecer contra ele os
interesses ou os direitos do trabalho».

Este preceito é, clarissimamente, uma formulação jurídica


destinada a transformar em «direito» o carácter de classe do
Estado e a segurança da exploração do capital sobre o trabalho, na
medida em que a este último não são reconhecidos direitos de
oposição ao «justo rendimento» (?!) do mesmo capital!... E fala
ainda este art.° 16.° na «natureza das coisas» — expressão
obviamente abstracta, idealista e mistificadora da realidade. Porque
a realidade é a de que as funções do Estado dependem da
natureza do mesmo Estado — como máquina (como organização
ou aparelhagem) de domínio de uma classe sobre outra. E, por
isso, o problema das funções do Estado resume-se
necessariamente nesta dupla de posições antagónicas:

1) a máquina estadual capitalista desempenha funções conformes


com o domínio da classe do capital sobre a classe dos
trabalhadores, assegurando a exploração desta por aquela;
2) a máquina estadual proletária desempenhará funções conformes
com o domínio da classe trabalhadora sobre a classe do capital,
assegurando a instauração da sociedade sem classes (isto é,
sem a diferenciação de exploradores e explorados).
Esta é a nudez da verdade que se opõe à demagogia
burguesa enquanto ela nos fala em justas harmonias de interesses,
em solidariedade social e em cooperação entre as classes, um
canto de sereia na glosa de falsos e anticientíficos princípios. É,
enfim, a verdade oposta à teoria idealista de um Hegel (por
exemplo), segundo o qual o Estado é um ser ético, um ser moral —
«a ideia moralizada da realidade».

Como ideólogo da burguesia, ao descobrir as contradições


da sociedade capitalista Hegel não tirou (como, ao contrário, irão
tirar Marx e Engels) quaisquer conclusões a favor do proletariado.
O filósofo do mais influente idealismo germânico, chegaria a
manifestar-se no sentido de que as consequências resultantes das
contradições sociais unicamente poderão eliminar-se por meio da
função ética (reguladora e moralizadora) do Estado burguês. Para
Hegel:

«o Estado é a realidade da ideia ética» («Filosofia do


Direito» §§ 244-247). Ou:

«O Estado, como realidade moral, como compenetração do


substancial e do particular, implica que as minhas obrigações
perante a realidade substancial são, ao mesmo tempo, a
minha liberdade particular — isto é: que, nele, direito e dever
são reunidos numa única e mesma relação» (idem, §§ 260-
267).

E ainda:
«Os membros do Governo e os funcionários do Estado
constituem a parte principal da classe média, onde reside a
inteligência cultivada e a consciência jurídica da massa de
um povo» (idem, § 290).

O Estado, em suma, no pensamento hegeliano, representa o


cúmulo racional da moralidade (da eticidade) burguesa. O Estado
— para Hegel — como árbitro ou moderador ético de todas as
funções sociais, ocupa então o mais alto posto de entre todas as
categorias políticas.

Assente, porém e ao contrário, que o Estado é sempre um


Estado de classe e que as classes (antagónicas) são as opostas
dos exploradores e dos economicamente explorados, torna-se
evidente que a teoria do Estado ético não passa de um instrumento
posto ao serviço da classe burguesa. E porque para Hegel o
fenómeno social é coerente e homogéneo, não se vendo o
antagonismo económico na base do antagonismo social, o escritor
político romeno Constantín J. Gulián, escreveria a propósito — no
último capítulo do seu livro de 1963, «Metoda si Sistema La Hegel»
— estas palavras que me parecem óbvias:

— «Hegel apresenta o Estado como expressão dos


interesses do povo não dividido em exploradores e
explorados.

Traçando, em linhas gerais, o curso da História universal,


Hegel só vê contradições entre os povos, jamais no interior
dos mesmos».

Quando a doutrina do Estado ético passa às mãos da


hipocrisia fascista dá, como se viu, preceitos da natureza dos art.°
6.° e 35.°, e ainda do art.° 4.° da Constituição Política de 1933. Este
último declarararia expressamente que o Estado português, sendo
soberano, no entanto «reconhece como limites, na ordem interna, a
moral e o direito...» Mas repito:—todos sabem no que resultou, em
aplicação prática, este condicionamento «moral» do Estado
fascista!... E então, quando a doutrina do Estado ético saía da
cabeça dos «docentes» daquele regime, era assim como se
tivessem aberto as torneiras da estupidez e da baixa propaganda.
Veja-se, a título de exemplo, este pobre e caricato trecho onde J.
Estevão Pinto, e José da Silva, autores de um livro de
«Organização Política e Administrativa da Nação» (2.° edição, da
Livravia Francisco Franco, de Lisboa, págs. 22-23) opunham o
«seu» Estado ético àquele outro por eles definido como Estado
totalitário.

«Para cumprir a sua missão — escreviam estes submissos e


serventuários «docentes»—, o Estado ético subordina-se à
moral e ao direito, procurando coordenar as actividades
individuais e colectivas, no sentido do bem comum. O
Estado ético possui uma doutrina política, económica, social
e moral que pretende realizar no seio da Nação una. Neste
Estado ético, as três funções do Estado são consideradas
independentes, mas devendo harmonizar-se de modo a
alcançar o maior bem colectivo».

Depois, estes «educadores» recadeiros opunham o «seu»


Estado ético ao Estado não-ético ao Estado imoral, sem limites,
que era evidentemente o Estado comunista:

— «O Estado comunista ou Estado totalitário — escreviam


eles — fundamenta-se nas doutrinas comunistas, que
representam uma atitude extrema do socialismo. O Estado
monopoliza todos os direitos sobre os indivíduos e sobre
todas as fontes de riqueza e de trabalho; não admite a
constituição de famílias e todas as crianças pertencem ao
Estado, que as educa e lhes fixa a actividade; é um Estado
materialista, que aniquila toda a concepção religiosa; todos
os indivíduos pertencem ao Estado, não são livres e
aceitarão a doutrina estabelecida, sendo eliminados os que
pretendem substituí-la ou alterá-la, de qualquer modo que
seja».

Mas após este rasgo do mais idiota dos anticomunismos,


verdadeiro atentado à inteligência crítica do estudante, ainda os
mesmos serviçais autores «mostravam» como o corporativismo,
esse sim, era naturalmente o filho dilecto da Moral:

«Das doutrinas intervencionistas derivou o corporativismo e


do Estado ético resultou o Estado corporativo, que é uma
modalidade daquele. O corporativismo, fundamentado nas
corporações medievais e na acção social da Igreja — de que
trataremos oportunamente — caracteriza-se pela associação
dos indivíduos, segundo as suas actividades, em organismos
corporativos ou corporações. Nestas ideias se apoiou o
Estado corporativo português, cujos princípios se encontram
expressos na Constituição de 1933. (...) Daqui se conclui
que o Estado corporativo tem por fim substituir a
concorrência pela cooperação entre os homens, e, para o
conseguir, cuida da junção destes nos organismos
corporativos morais, culturais e económicos, aos quais
compete não só defender os interesses dos-seus membros
como participar na feitura e aplicação das leis. No Estado
corporativo, como no ético, as funções do Estado são
médias, pois reconhece a separação dos três poderes, mas
devendo cooperar intimamente no respectivo exercício; ora,
nesses poderes há interferência dos organismos
corporativos e só quando estes colaboram no governo da
Nação é que o Estado é corporativo».

Aqui fica a anedota, onde só faltou dizer que no inferno dos


Estados socialistas comem criancinhas e que o Estado Novo era
uma espécie de purgatório com porta aberta para as delícias do
Céu. Eis, enfim, a miséria a que, do ponto de vista formativo e
educativo, chegavam a escola e o ensino no regime fascista,
verdadeiros antros de embrutecimento intelectual e de substituição
da teorização (qualquer que ela seja) pela louvaminha sabuja e
fétida.

No começo deste capítulo, cumpre recordar voltando às


coisas sérias, chamava-se a atenção do leitor para o facto de os
próceres do regime deposto em 25 de Abril, como aliás acontece
com a generalidade dos corifeus do pensamento burguês,
escamotearem sempre o problema da natureza do Estado. É que
este situa-se, por força, na base do problema das suas funções e
não permite fantasias. Marta Harnecker, por exemplo, no n.° 5 do
7.° capítulo da sua excelente obra de vulgarização, «Os Conceitos
Elementares do Materialismo Histórico», coloca este
escamoteamento em meia dúzia de palavras que não resisto a
transcrever.

«Assim como o tipo de Estado — escreve Marta Harnecker


— depende da estrutura económica da sociedade, isto é, da
natureza de classe do Estado, as formas de governo
dependem das condições históricas concretas. Toda a
pessoa ou grupo que se mova dentro das margens estreitas
da ideologia dominante, numa sociedade capitalista, tenderá
a substituirá problema da natureza do Estado pelo das
formas de governo, e deste modo se oculta a natureza de
classe do Estado, que é problema essencial e decisivo».

Vamos agora examinar com que aparelhos a máquina


estadual exerce as suas funções.
VIII — Elementos e Aparelhos do Estado
No decurso deste capítulo veremos a razão de ser da
distinção que o título «Elementos e Aparelhos do Estado»
representa.

Classicamente, os teóricos usaram dizer — e hoje essa ainda


se mostra a doutrina dominante ou mais habitual nos manuais —
que o Estado tem três elementos:

1) território;
2) população;
3) ordenamento político e administrativo («governo» num
sentido muito amplo).
Esta distinção, porem, não nos parece harmónica. Para já,
ela não atende a uma rigorosa noção do que seja um «elemento» e
assim acaba por baralhar coisas distintas. Eis então,
preliminarmente, aquilo de que vamos tentar um breve
esclarecimento, procurando reter duas noções diferentes. Retiro-
me, por um lado, ao conceito de elemento (para vermos depois o
que é isso de elementos do Estado) e por outro ao conceito de
aparelho (para compreendermos o que são e quais são os
aparelhos do Estado).

«Elemento» é palavra que vem do termo latino elementum e


significa «substância primária». Este conceito básico chega-nos por
agora. Em contrapartida, o vocábulo «Aparelho» procede
igualmente de um termo latino (appariculu) e exprime uma ideia de
funcionamento, aliás contida no geral dos dicionários: — «preparo,
disposição para alguma coisa; conjunto de peças, instrumentos e
utensílios necessários para a execução de qualquer obra, ou que
são inerentes ao exercício de uma profissão ou arte; conjunto de
órgãos que concorrem para uma função determinada».

Conseguida a clarificação desta diferença (entre «elemento»


e «aparelho»), atingimos a possibilidade de uma separação
operada no seio dos três elementos do Estado que acabamos há
pouco de referir (território, população e ordenamento político-
jurídico). Separação esta que parece aliás satisfazer um maior
rigor: — o território e a população constituem efectivos elementos
do Estado já que o primeiro delimita-lhe substancialmente o espaço
geográfico, e o segundo corporiza o agrupamento humano onde se
opera a diferenciação entre' governantes (detentores do poder
político) e governados. O território e a população são pois
substâncias primárias, as condições materiais de um Estado
fisicamente revelado, existente. E é neste palco da cena estadual
(o território) e com aqueles actores do respectivo drama (a
população), que se instituem, organizam e representam as funções
estatais. É aí que se movimenta o ordenamento político e
administrativo, o qual não é mais do que o esquema de aparelhos
do próprio Estado. Permitir-me-ei portanto reformular a teoria
habitual dos três elementos do Estado (território, população e
ordenamento) segundo esta outra distinção que me parece mais
exacta, correspondente, afinal, àquilo que apuramos quanto ao
problema da natureza do Estado:

1) são elementos ou pressupostos (substanciais) do Estado, a


população e o território;
2) são aparelhos (funcionais) do Estado, todos os órgãos pelos
quais se diversifica o ordenamento político e administrativo do
mesmo Estado.
A propósito de tal diferenciação (entre elementos e aparelhos
do Estado) é oportuno recordar aquela frase de Max Weber, que
vimos em «O Político e o Cientista», e o leitor tem presente no
termo do 4.° capítulo deste livro. Aí se diz que o território é um
elemento só definidor, restando como único elemento ou dado
substancial do Estado a comunidade humana, a população. O
território segundo essa tese, somente situa, na geografia do globo
terrestre, aquela comunidade. E há quem assim pense, já o
veremos. Há quem entenda que o território não é essencial ao
Estado. Trata-se, contudo, de problemas que também vamos desde
já esclarecer pois para nós, ao contrário de semelhante doutrina, o
território constitui, mais do que simples campo meramente
definidor, um elemento básico do Estado.

Leon Duguit — sociólogo do Direito, discípulo de Augusto


Comte com larga projecção no estudo destas matérias desde uma
óptica positivista — foi dos que sustentaram que, do ponto de vista
objectivo, o território não constitui elemento necessário ou
essencial do Estado. Podemos ler, por exemplo, alguns dos seus
textos num caderno editado pela «Inquérito» sob o título «Os
Elementos do Estado». E a pág. 44, designadamente estas
palavras:

— «O território não é elemento indispensável à formação do


Estado, isto é, pode conceber-se perfeitamente que se
produza uma diferenciação política numa sociedade que não
esteja fixada num território determinado. No sentido geral da
expressão, existirá aí um Estado».

Dir-se-ia, em suma, que para Duguit o território também


constitui um elemento só definidor das sociedades sedentárias, isto
na exacta medida em que é povo sedentário todo aquele que vive
fixado a determinado território. A verdade, porém, é que o próprio
Duguit, logo em seguida reconheceria expressamente que o
nomadismo vale hoje, e cada vez mais, uma excepção
insignificante:

— «...as sociedades modernas — ressalvou Duguit - estão


fixas em territórios e a acção dos governantes exerce-se em
território determinado».

Só poderíamos conceber como Estado uma tribo nómada se


acaso, na sua vida deambulatória, ela não caminhasse sempre por
territórios de diversos Estados. Tal tribo está constantemente
sujeita às leis e ao ordenamento político, à aparelhagem estadual
dos territórios que atravessa. A sua deambulância é incompatível
com a acção repressiva da máquina do Estado em termos
significativos, quer do ponto de vista da diferenciação de classes
sociais, quer da detenção dos meios de produção por uma delas (a
exploradora) sobre a outra (a explorada). Ressalvadas as reservas
evidentes que tal autor nos merece, permitir-me-ia transcrever
aquela afirmação categórica de Wilhelm Sauer, que foi professor da
Universidade de Konisberga e escreveu uma «Filosofia Jurídica y
Social» onde, a págs. 193 da edição espanhola da Editorial Labor,
1933, tradução de Legaz Lacambra, podemos ler:
— «Ao requisito do poder coactivo acrescenta-se um outro: o
território; os membros de um Estado tem de ser sedentários.
As tribos primitivas, as hordas emigrantes, os povos
nómadas não constituem um Estado; vivem simplesmente
uma comunidade sujeita a costumes (mas também este
segundo requisito é discutido)». E assentando, enfim, na
natureza imprescindível do Território como elemento do
Estado, Sauer tiraria esta definição (págs. idem): — «Do que
fica dito resulta que é possível formular as definições
seguintes: o Estado é a comunidade sedentária sujeita a um
ordenamento e dotada de poder coactivo supremo; o Direito
é o ordenamento de uma comunidade sedentária dotada de
poder coactivo supremo».

Convenhamos, pois, na essencialidade do elemento territorial


do Estado. Mas este, já o vimos, é um produto das irredutíveis
contradições de classe.

«Aparece — escreveu Lenine — onde, quando e na medida


em que tais contradições não podem ser objectivamente
conciliadas».

Unicamente podemos falar de Estado — como aliás afirma O.


V. Kuusinen e outros, autores conjuntos do «Manual de Marxismo-
Leninismo» das edições Grijalbo, colecção «Ciências Económicas y
Sociales», 1962, págs. 161 — quando o poder político de uma ou
outra classe se estende a determinado território e afecta a
população que ali vive — cidadãos ou súbditos».

Do ponto de vista histórico, porém, o território nem sempre foi


encarado do mesmo modo. Os gregos da Antiguidade Clássica, por
exemplo, consideravam a Cidade como o tipo ideal de Estado.
Depois, com o estabelecimento do Império Romano gerou-se e
alimentou-se a concepção de um Estado que abrangeria todo o
Universo, dominando secularmente os homens. E nos tempos
modernos, com largo predomínio sobre certas teorias defensoras
de um federalismo mundial, considera-se como tipo mais perfeito o
Estado nacional, baseado numa unidade étnica e geográfica (se
bem que às vezes degenerado pela concepção absorvente de
impérios coloniais).

Depois de estudarmos a População como segundo elemento


do Estado, iremos analisar as relações entre os conceitos de
Estado, Povo e Nação. Nesse momento dir-se-á o suficiente para
realçar a ideia do que é e do que vale, numa perspectiva moderna,
o Estado Nacional.

A população é o conjunto de pessoas que vive num dado


território. Trata-se, evidentemente, de conjunto determinado por
uma unidade. Cada pessoa do agregado populacional tem, com
todas as outras do mesmo, um conjunto de relações que as vincula
como membro de um corpo uno. A população, aliás, constitui essa
unidade sob dois aspectos:

1) o aspecto económico-social — porque a população é um conjunto


de pessoas que entre si mantêm relações sociais;
2) o aspecto biológico — porque a população é um conjunto de
indivíduos biológicos.
Mas a população constitui, em face do primeiro aspecto que
agora distinguimos, o somatório das classes sociais.

«Chamamos classes — ensinou Lenine, em «Obras


Completas», 19.° volume, págs. 388 — aos grandes grupos
de pessoas que se diferenciam pelo lugar que ocupam num
sistema de produção historicamente determinado, pela sua
relação (na maioria dos casos legalmente referendada)
relativamente aos meios de produção, pelo seu papel na
organização social do trabalho e, por conseguinte, pelo
modo de obtenção e o volume da parte de riqueza social de
que dispõem. As classes são grupos de homens dos quais
um pode apropriar-se do trabalho de outro graças aos
diferentes lugares que ocupam num determinado sistema de
economia social».

Insistimos pois: — em face deste conceito, a população de


um Estado representa o somatório das classes nos limites do
respectivo território. E, sendo assim, como categoria económico-
social a população abarca (num Estado de formação capitalista):

1) os produtores de bens materiais;


2) os exploradores da produção alheia;
3) e os velhos e crianças (ou não-produtores).
É preciso, entretanto, acentuar que a população não está
sujeita a leis perpétuas e imutáveis. Porém, a tese contrária — a da
imutabilidade e da perpetuidade — foi e é sustentada pelo
pensamento burguês, designadamente pela teoria de Malthus, que
justificou e pretende continuar a justificar a exploração capitalista e
a opressão dos povos coloniais. Dada a gravidade dos seus erros e
a sua persistência teórica actual, abrimos um curto parêntesis para
inserir, a propósito, uma pequena notícia crítica.

O malthusianismo é uma teoria anticientífica. Formulada por


Malthus, clérigo inglês falecido em 1834, ela sustentava que o
aumento da população se verifica segundo uma progressão
geométrica, enquanto o desenvolvimento dos meios de
subsistência se opera a ritmo mais lento, conforme uma progressão
aritmética. Mas esta desarmonia de crescimentos (da população e
dos recursos económicos para satisfação das necessidades do
homem) corrige-se, segundo Malthus, de forma natural. Eis então,
vistas como singular benefício, as guerras, as epidemias, a
limitação da natalidade, enfim, todos os processos que tendam
para cercear o aumento populacional. Eis, em suma, dada como
fatalidade imutável a chamada «lei biológica da superpopulação
relativa».

Mas para o quadro ainda ser pior, ou mais negro, acontece


que alguns dos malthusianos modernos consideram que a
crescente desproporção entre o número de pessoas e o volume
dos meios de subsistência se deve não só aos preços «demasiado
baixos» dos bens de consumo, mas muito particularmente ao nível
demasiadamente «alto» dos salários dos trabalhadores. Os
malthusianos de hoje entendem que toda a população do globo —
et pour cause, excepção feita aos anglo-saxões — forma parte do
grupo de indivíduos «sobrantes», gente condenada ao extermínio
por sua própria natureza. E o que resulta daqui, em retrato de
terrível relevo, é que o malthusianismo serviu e afinal continua a
servir para legitimar a exploração capitalista e a política do
imperialismo. A partir daquela «natural»(?) legitimação do
extermínimo, o neomalthusianismo chega a concluir por certos
inconvenientes sociológicos da medicina: — enquanto Malthus
encontrava a causa da superpopulação relativa no índice de
natalidade excessivamente elevado das massas, o
neomalthusianismo surpreende-a no facto de a mortalidade
humana ser «excessivamente baixa» mercê dos êxitos médicos e
terapêuticos.

Bastaria este argumento para se poder ajuizar de mérito.


Trata-se de uma teoria anticientífica, como disséramos na abertura
deste parêntesis. Contra ela, Marx e Engels demonstraram que a
superpopulação (e a miséria, com esta conexionada) deve-se
unicamente ao regime capitalista. Não há que culpar nem as
progressões desiguais, nem a biologia, nem as «sabotagens» com
que a medicina impugna uma «justa mortalidade». De tal sorte,
Marx e Engels puseram a nu o carácter reaccionário do
malthusianismo. Os progressos da ciência e da técnica implicam
enorme aumento das forças produtivas, aceleram a produção
social, tudo isto com rapidez superior ao aumento da população.
Poder-se-á mesmo acrescentar que o carácter historicamente
transitório da superpopulação resultou insofismável, patente, mercê
das experiências já efectuadas nos países socialistas da Europa.

Poder-se-á considerar injustificável, num estudo político


sobre os elementos do Estado, este parêntesis que versou a
transitoriedade das leis da população. Dir-se-á então que só
importa, à disciplina de «Introdução à Política», saber que a
população é um elemento do Estado. Mas eu responderei de
contrário. Vindo nós a desenhar o Estado desde a questão das
suas origens, desde a definição da sua natureza como problema de
carácter económico, desde enfim as suas relações (no tempo) com
diferentes e sucessivas formações económico-sociais, importava
sem dúvida explicitar que a população, como elemento do Estado,
se modifica (mesmo biologicamente quanto a saúde, natalidade,
regime de reprodução, etc.) quando se modificam as condições
económico-sociais, e que ela tem leis próprias relativamente a cada
formação económico-social, transitórias portanto — como, por
exemplo, no capitalismo a atrás referida lei da superpopulação
relativa.

Posto isto, vejamos em que medida a população de um


Estado constitui uma Nação. Por forma interrogativa: — é acaso a
Nação o mesmo que Povo ou População? Constitui a Nação um
elemento do Estado?

População ou Povo, por um lado, e Nação por outro, não


representam a mesma ideia, se bem que ambos os conceitos
correspondam ao agregado humano que é elemento do Estado.
Para que se possa falar de Nação é necessário considerar um certo
grau de uma cultura própria. Quer isto dizer que, respeitando os
dois conceitos a uma mesma realidade material (o agregado
humano), a Nação é um fenómeno próprio das fases mais
avançadas da evolução cultural de um povo. Ao contrário, o Povo
(a população) é um produto social primário.

Os vínculos que tornam coesa uma nacionalidade, expressão


de uma cultura acoplada na massa do povo, são relativamente
estáveis. Isso é óbvio. Todavia, cumpre-nos observar que as
relações nacionais, tal como as relações de classe, não existiram
sempre. As relações de classe, já o sabemos, surgiram com o
aparecimento do Estado. A Nação, essa, formar-se-á mais tarde. É
que as nações constituem produto cultural de um longo
desenvolvimento histórico.
No regime da comunidade primitiva, a forma fundamental da
convivência humana era a gens e a tribo. O traço que unificava os
membros destes grupos, e os separava dos restantes, arrancava
de uma origem familiar comum, o parentesco consanguíneo., E só
quando se desintegra a comunidade primitiva, se debilita o
significado dos vínculos de sangue. Por isso Kuusinen, que
encabeça a autoria colectiva da obra citada neste capítulo (págs.
156) terá escrito assim:

— «A união de várias federações de tribos dá lugar à


nacionalidade. Os homens a esta pertencentes já não estão
relacionados por laços de sangue. Os traços que lhes são
próprios (comunidade de língua, de território, de cultura) têm
agora uma origem social histórica. Mas o carácter uno da
nacionalidade é ainda muito precário. Nem dentro do regime
esclavagista, nem do feudal, podia existir a unidade de vida
económica, condição necessária quer para uma unidade
territorial duradoura, quer para uma comunidade estável de
cultura. Só na época em que se estrutura o capitalismo,
quando este põe fim à dispersão feudal e origina a formação
de um mercado nacional único, só então surgem as
premissas necessárias para que apareça a Nação».

Parece dispensável advertir que a comunidade nacional não


se pode identificar com a raça, — não obstante isso ser coisa
pretendida por alguns sociólogos burgueses. A divisão em raças —
nas três grandes raças que a ciência antropológica conhece: a
indoeuropeia (branca), a negróide (negra) e a mongolóide
(amarela) — guia-se por diferenças morfológicas hereditárias, por
exemplo a cor da pele, a forma do crâneo, o tipo de cabelo. Os
caracteres rácicos são de natureza biológica, resultado de uma
longa adaptação do organismo ao meio ambiente. Noutro plano,
porem, os caracteres nacionais são de ordem cultural, sociológica,
histórica. Basta reparar que a uma mesma raça (a branca)
pertencem várias nações (Portugal, Espanha, França, etc.) e que
há nações que englobam várias raças (os brancos, negros e índios
dos países íbero-americanos).

O carácter unitário da comunidade nacional não, pode


obviamente, suprimir as diferenças sociais de classe. Quer isto
dizer que uma unidade de cultura não exclui os antagonismos
classistas. Mas este facto, mal interpretado e analisado por certos
teóricos de esquerda, estimulados ainda pelas desastrosas
consequências de certos nacionalismos imperialistas, não significa
de modo nenhum que a Nação valha um conceito historicamente
ultrapassado. Denis e Kanapa reparavam, em «Pour ou Contre
l'Europe», que até os mais acérrimos paladinos de uma cidadania
mundial nunca puderam evitar, cruzando vários países, que fossem
«imediatamente reconhecidos, no estrangeiro, quanto à sua nação,
através do comportamento, da linguagem, do seu modo de vida e
de pensar». Toda a Nação, na verdade, ainda que o processo da
sua formação implique elementos acidentais ou arbitrários, exprime
ao mesmo tempo uma unidade (a do povo) e uma diferença
(relativa às outras nações). A este propósito, numa carta dirigida a
Engels, escrevia Marx (em 20/6/1866) com a sua proverbial ironia:

«Ontem houve discussão no Conselho da Internacional


sobre a guerra (...) Os debates, como era de esperar,
centraram-se sobre a questão das nacionalidades e a nossa
posição a esse respeito. Os representantes da «Jeune
France» (que não eram trabalhadores) — o sublinhado é de
Marx — defenderam um ponto de vista segundo o qual a
nacionalidade e a própria Nação são preconceitos
ultrapassados. «Stirnerismo» proudhoniano!... Os ingleses
riram-se muito quando comecei o meu discurso dizendo que
o nosso amigo Lafargue, e os outros defensores da abolição
da nacionalidade, se nos dirigiam em francês, ou seja, numa
língua incompreensível para nove décimos da assistência...»

Assentemos que o conceito de nacionalidade não está


ultrapassado pela História. Ele constitui, ao contrário, uma ideia
verdadeiramente moderna, revelando designadamente um
conteúdo progressista na medida em que a reivindicação e a
defesa de uma nacionalidade própria representa para muitos povos
africanos e asiáticos parte integrante da sua luta contra o
imperialismo. Escreveram Denis e Kanapa no texto atrás referido:

— «Bem podem certos homens de esquerda apodar de


«reaccionário» o apego à independência nacional; porém o
imperialismo, o americano particularmente, com mais razão
classifica de «revolucionários» os movimentos populares que
se manifestam na América Latina, na Ásia, em África,
enquanto lutam por uma independência real. Se certos
homens de esquerda negam, em teoria, o facto nacional,
deveriam no entanto tomar consciência de que o
imperialismo, esse, nega-o praticamente, atentando por
sistema contra a soberania de dezenas de povos».

Passamos agora a analisar o chamado ordenamento político


e administrativo do Estado. Para uns, sob a designação de
«governo» (em sentido muito amplo), ele constitui o terceiro dos
elementos do Estado. Para nós, porém — que só concebemos,
como tais, o Território e a População — este ordenamento (ou
governo) representa antes o aparelho repressivo do Estado. É o
que vamos ver.
Lenine escreveu no seu ensaio sobre «O Estado»:

— «Os homens dividem-se em governados e especialistas


na arte de governar, os quais (estes últimos) se situam
acima da sociedade e se chamam governantes ou
representantes do Estado. Este aparelho, este grupo de
homens que governa outros, serve-se sempre de
instrumentos de repressão, de coacção, quer esta seja
exercida pela clava na idade primitiva, por armas mais
aperfeiçoadas na época da escravatura, por armas de fogo
aparecidas na Idade Média, quer enfim por armas modernas
que são, no século XIX, verdadeiros prodígios, inteiramente
báseados nas últimas realizações da técnica».

Em sentido amplo, portanto, o conceito de «governo»


abrange todo o aparelho repressivo do Estado, todos os órgãos de
domínio de uma classe sobre outra: — o Chefe do Estado, os
Ministros, o Parlamento e a Administração Pública, englobando
esta os Tribunais, as Polícias e, por absurdo que pareça (como
função repressiva), até os próprios Serviços Públicos. É
efectivamente óbvio que estes últimos, não obstante «servirem o
público», fazem-no segundo a orgânica de uma sociedade em que
a classe dominante reprime e oprime a dominada.

A enumeração destes órgãos integrantes do aparelho


repressivo do Estado permite-nos uma distinção interna que tem,
como veremos, importância de relevo. E possível, com efeito,
distinguir na generalidade .do aparelho repressivo do Estado
órgãos que são de função política e órgãos que são de função
administrativa. Teremos pois o binómio seguinte:

1) por uma parte, o aparelho repressivo político (Chefe do Estado e


Ministros ou «governo» em sentido restrito);
2) por outra, o aparelho repressivo administrativo (Administração
Pública em geral, Administração Pública judiciária, policiária,
etc...).
Mas qual será, afinal, o interesse desta distinção?

Num pequeno volume muito recentemente publicado em


Portugal pela Presença — «Ideologia e Aparelhos Ideológicos do
Estado» — lê-se (a págs. 37) esta importante afirmação do seu
autor, Louis Althusser:

— «Sabemos que o aparelho de Estado pode permanecer


intacto, como o provam as «revoluções» burguesas do
século XIX em França (1830, 1848), os golpes de Estado (o
2 de Dezembro, Maio de 1958) ou as quedas do Estado
(queda do império em 1870, a queda da 3.ª República em
1940), a ascensão política da pequena burguesia (1890-95
em França), etc., sem que o aparelho de Estado seja
afectado ou modificado por este facto: ele pode permanecer
intacto apesar dos acontecimentos políticos que afectam a
detenção do poder de Estado».

E logo a seguir:

— «Mesmo após uma revolução social como a de 1917,


grande parte do aparelho de Estado permaneceu intacta
após a tomada do poder de Estado pela aliança do
proletariado e dos camponeses pobres: Lenine não se
cansou de o repetir».

Tais frases podem lançar em confusão o leitor mais


desprevenido. O esclarecimento começará, no entanto, a
sobressair quando repararmos que Althusser chama «poder de
Estado» àquilo que viemos designando por «aparelho repressivo
político do Estado» e denomina «aparelho de Estado» a
engrenagem que identificámos como «aparelho repressivo
administrativo do Estado». E, na verdade, o que uma revolução faz
imediatamente cair é o aparelho político do Estado (como agora
aconteceu no nosso País com o 25 de Abril), mantendo-se, porém,
durante um mais ou menos longo tempo de transformações, o
aparelho repressivo administrativo desse mesmo Estado que foi
politicamente derrubado. Subsistem os Tribunais, a Administração
e os Serviços Públicos. Todo este último esquema vai sendo
progressivamente adaptado à nova organização política
revolucionariamente instaurada.

Trata-se de uma distinção fundamental, muito nítida em


Marta Harnecker, no seu livro «Os Conceitos Elementais do
Materialismo Dialéctico», de que transcrevo duas ou três breves
passagens.

A págs. 116, no n.° 2 («A dupla função do Estado») do 7.°


capítulo, «Estrutura jurídico-Política», afirma Marta Harnecker:

— «O Estado tem uma dupla função: técnico-administrativa


e de dominação política. Esta última é a que define
propriamente o Estado, sobredeterminando a função técnico-
administrativa, isto é, orientando-a ao serviço da função de
dominação política».

E no n.° 3 do mesmo capítulo («A Extinção do Estado»),


acrescenta (págs. idem):

... «Por outro lado, a distinção destas duas funções ajuda-


nos a compreender a tese marxista à cerca de extinção do
Estado, que se opõe à tese anarquista da supressão do
Estado. Os marxistas sustentam que, quando o proletariado
busca o amparo do poder político, não pode o Estado
desaparecer de um dia para outro. É preciso destruir o
aparelhamento político anterior e construir um novo, de
carácter proletário, porque a luta de classes continuará e,
portanto, necessitar-se-á de um aparelhamento que cumpra
as funções de repressão das classes que se oponham à
construção do socialismo. Os anarquistas sustentam, pelo
contrário, que é imprescindível fazer desaparecer
imediatamente todo o aparelho «burocrático», permitindo a
livre organização da população a nível das suas frentes de
massa».

Esta transcrição, conjugada com a anterior que fiz de


Althusser, justifica plenamente a distinção entre «aparelho
repressivo político do Estado» e «aparelho repressivo
administrativo do Estado». Só o primeiro a revolução elimina de
imediato. O segundo, «a administração das coisas e a direcção dos
processos de produção», ir-se-á transformando paulatinamente,
progressivamente, até à extinção total, final, do Estado como
aparelho genérico repressivo.

Antes de rematar esta matéria, volto ainda a chamar a


atenção do leitor para o título do há pouco aludido ensaio de
Althusser: —«Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado». É que
o Estado, além de ser um aparelho ou máquina de repressão,
também se revela como aparelho ou máquina de ideologia. Mas
esta matéria fica reservada para o capítulo em que estudarmos o
problema das ideologias.
IX — Formas de Estado e Formas de Governo
A última parte da rubrica «objecto da ciência política»
identifica-se, no programa oficial, com o problema das «condições e
formas do exercício do poder». Como entretanto já estudámos as
coordenadas históricas em que se gerou o mesmo poder, e aquelas
em que ele se exerce, agora vamos prender-nos simplesmente com
o problema das respectivas formas. Pretendo em suma, neste
capítulo, que nos debrucemos em particular sobre o modo como ao
observador se apresenta o exercício do poder político. Mas a dois
níveis: — o modo como se apresenta a nível do Estado (teremos aí
a questão das formas de Estado) e o modo como se apresenta a
nível do governo (questão das formas de governo).

Este problema é dos que mais preocupa e ao mesmo tempo


mais desarmoniza os pensadores. O que é forma de Estado para
uns, não é para outros; o que constitui forma de governo para
estes, constitui forma de Estado para aqueles; enfim, uma
farândola de conceitos em desfile, em troca de passes que
certamente não poderá deixar de confundir, até quase ao
desespero, o iniciando da Política. Por isso mesmo, com a
prevenção de que o esquema que desenhamos só representa um
enunciado tão relativo como muitos outros, vamos procurar alinhá-
lo na sequência coerente do que até ao momento tem vindo a ser
afirmado neste livro. O leitor tem efectivamente visto que não
perdemos um «norte» orientador: — o de estabelecermos o
relacionamento constante entre a base económica e a estrutura
política da sociedade organizada.
É óbvio que devemos começar pelo Estado — isto é, pelas
formas do Estado. Só depois olharemos as formas do governo. Mas
antes de mais, precisamente em conformidade com a posição
relacional que existe entre a estrutura económica da base e a
estrutura política da cúpula, afigura-se-me indispensável distinguir
os tipos de Estado das formas do Estado.

Através dos seus tipos e formas — tanto dos que existiram


noutros tempos como dos actuais — os Estados apresentam-nos
um quadro extremamente diversificado. O que seja isto de tipos e
de formas, veremos já do que se trata. Mas de imediato basta-nos
evocar as diferenças — quer de formação económico-social, quer
de organização e funcionamento do poder político — em todo um
bem complexo panorama realizado ao longo dos séculos. Eis então
os esquemas específicos dos impérios da Babilónia, da Assíria e do
Egipto; das repúblicas gregas e do império romano; ainda das
monarquias medievais; das repúblicas parlamentares modernas; e,
no ponto final deste roteiro histórico, os das repúblicas socialistas
do nosso tempo (União Soviética, democracias populares da
Europa oriental, República Popular da China, além de outras mais).

Haverá, decerto, um dado convencionalismo no uso que


fazemos do vocábulo tipo para significar esta ou aquela realidade, e
do vocábulo forma para aquela e aquela outra. Seja porém como
fôr, assentaremos no seguinte: — o tipo de Estado define-se pela
classe social que o Estado protege e satisfaz economicamente. O
tipo de Estado corresponde, enfim, a uma determinada formação
económico-social. E daí resulta podermos afirmar que até hoje a
História conheceu três grandes tipo de Estado baseados na
exploração do trabalho alheio: — o tipo de Estado esclavagista, o
tipo de Estado feudal e o tipo de Estado capitalista. Todos eles têm,
com efeito, um traço comum, característico. Em todos existiu (e,
naturalmente, no capitalismo continua a existir) o domínio dos
exploradores, a força opressora de uma pequena parte da
sociedade sobre os explorados, constituindo estes últimos a imensa
maioria. E finalmente, distinto dos anteriores, eis o novo tipo de
Estado — o Estado socialista — em que o poder pertence à classe
trabalhadora.

Em resumo os tipos de Estado têm sido os seguintes, ao


longo da História:

1) Estado esclavagista
2) Estado feudal
3) Estado capitalista
4) Estado socialista.
Em face do que ficou dito, podemos concluir que
necessariamente o tipo de Estado varia conforme varia o carácter
das relações de produção que lhe estão na base. O tipo de Estado
expressa, consequentemente, o seu carácter de classe. O
esclavagismo, por exemplo, teve no Egipto a forma oriental da
monarquia despótica sob o governo dos Faraós; em Atenas, a
forma da democracia; em Roma, primeiramente a de república
democrática, mais tarde a de império. Pois apesar de semelhante
variedade, a essência de todos estes Estados (o seu tipo) era a
dominação da classe dos esclavagistas sobre os escravos. Em
conclusão, isto será o qué havemos de reter: — que, dentro do
quadro geral de cada tipo de Estado, podem ocorrer diferentes
formas de Estado. Distintamente do que acontece com o tipo (que
tem uma base económica de diferenciação), a forma fala-nos da
ordenação jurídica dos órgãos do poder, do governo, do seu regime
político. E conforme este critério nós poderemos descobrir uma
gama diferenciada ou particularizada das formas que desde há
milénios os pensadores têm ensaiado sistematizar.

Heródoto de Halicarnaso (490-421 a.c.) distinguia entre


monarquia, oligarquia, democracia e tirania. Platão (328-347 a.c.)
ateve-se antes a identificar a forma de Estado para ele a única
perfeita — a república aristocrática — perante outras que
considerava corrupções dessa forma ideal: — a timocracia, a
oligarquia, a democracia e a tirania. Mas foi Aristóteles (384-322
a.c.) quem estabeleceu uma trilogia paralela de espécies perfeitas
e degenerações. Efectivamente Aristóteles distinguiu:

1) como espécies perfeitas:


monarquia — o poder radicado num único chefe
aristocracia — o poder radicado numa elite democracia — o
poder radicado no povo
2) e como degenerações:
tirania ou autocracia — degeneração da monarquia
oligarquia — degeneração da aristocracia
oclocracia — degeneração da democracia.

Está o leitor a cada passo familiarizado com a generalidade


destes conceitos. Exceptuam-se talvez os dois últimos casos de
degeneração das formas perfeitas. Daí a vantagem de ficar desde
já anotado um ligeiríssimo reparo: — que ainda hoje falamos em
«oligarquia» para designar o facto de o poder estar concentrado
num restrito número de pessoas (a oligarquia quando é exercida
por homens da finança e do dinheiro chama-se plutocracia); e
aludimos a «oclocracia» para referir aquela democracia onde o
poder do povo se encontra delegado em gente inferior ou incapaz,
ou quando o poder passa a ser irreflectidamente usado pela
multidão.

Montesquieu faria no século XVIII uma classificação que se


aproxima essencialmente dos ensinamentos que encontramos nos
filósofos da antiga Grécia. Na sua famosa obra «O Espírito das
Leis», de 1748, ele distinguiu três formas:

1) república (ou democrática ou oligárquica)


2) monarquia
3) despotismo
— mas ligou esta tripartição a critérios morais: — ao regime
republicano corresponderia o predomínio da virtude, ao monárquico
o da honra e ao despotismo o do medo.

Atendendo a um critério ainda muito comum nas últimas


décadas, a distinção mais vulgar (aliás correspondente a formas
vigentes na Europa, na Ásia e em África) é a que opõe duas formas
de Estado:

1) monarquia — quando a chefia do Estado é exercida por pessoa


não eleita pelo povo.
2) república — quando o poder é electivo.
A república é forma mais democrática que a monarquia, não
obstante haver Estados em que se combinam os traços
característicos de ambas as formas. Por exemplo, na monarquia
constitucional o poder do rei ou do imperador está restringido pelos
limites definidos na Constituição Política respectiva. Aliás, dessa
maior tendência para a realização prática do democratismo provém
o facto de as monarquias estarem a desaparecer, limitando-se hoje
a alguns Estados da Europa (Inglaterra, Bélgica, Holanda,
Suécia,...) a alguns da Ásia (Pérsia, Sião,...) e a um ou outro de
África (Marrocos...). Neste sentido, e sem risco de erro, poderemos
dizer que a tentativa de Franco para manter as instituições
implantadas na sequência da Guerra Civil Espanhola (1936-1939)
através de uma restauração monárquica é caminho a que não
correspondem as necessidades políticas da nossa época, e ao qual
poderá vir a corresponder um drama irrecusável num futuro mais ou
menos próximo.

Como se vê, a questão das formas do Estado tem a maior


importância. Só analisando-a percebemos que o Estado de tipo
burguês capitalista, qualquer que seja a sua forma, é sempre um
instrumento da burguesia. É uma arma que a burguesia emprega
para manter submetidas as massas trabalhadoras. Mesmo assim,
porém, o Estado democrático-burguês foi um passo adiante em
comparação com outras formas anteriores. Sob a dominação da
burguesia, quanto mais democrática for a forma do Estado, mais
propícias resultarão as condições para o progresso social, para os
avanços da cultura e da ciência, para a luta das massas
trabalhadoras contra o jugo da exploração capitalista.

Nos tempos das monarquias absolutas afirmava-se que a


soberania era um atributo do rei. Como se sabe, «rei», «monarca»
(mono—arca = chefe único) ou «soberano» eram palavras
sinónimas. Ao contrário, nas repúblicas e nas monarquias
constitucionais diz-se que a soberania pertence ao Povo ou, como
afirmou o art.° 71.° da Constituição Política do regime fascista
português, que a soberania «reside em a Nação» (sic). Falando nós
de poderes do Estado, parece-nos oportuno esclarecer o que é, o
que representa a soberania e, enfim, o que significa dizer-se que
este ou aquele são Estados soberanos.

Se quisermos comparar os conceitos de «soberania» e de


«poder político» ou «poder do Estado», depressa nos havemos de
aperceber que o primeiro não é senão sentido susceptível de uma
simples consideração jurídica. Por outras palavras, a soberania
nada mais representa do que a independência jurídica de um
Estado, proclamada esta em relação a todos os outros. Resulta
bem característico o facto de o conceito de soberania ter surgido no
no seio da teoria jurídica do direito político — enquanto, muito
diferentemente, o conceito de poder político, de poder do Estado,
pertence ao campo sociológico e económico.

É verdade que certos diplomas constitucionais confrontam,


como duas espécies, a soberania interna e a soberania externa.
Dispõe, com efeito, o art. 4.° da Constituição Política de 1933:

— «A Nação Portuguesa constitui um Estado independente,


cuja soberania só reconhece como limites, na ordem interna,
a moral e o direito; e,na internacional, os que derivam das
convenções ou tratados livremente celebrados ou do direito
consuetudinário livremente aceite, cumprindo-lhe cooperar
com outros Estados na preparação e adopção de soluções
que interessem à paz entre os povos e ao progresso da
Humanidade».
Mas a soberania interna não passa de ser o poder do Estado,
o jogo do aparelho repressivo do Estado como domínio de uma
classe sobre outra. E a soberania externa constitui a já referida
independência jurídica do Estado na sociedade internacional. Trata-
se assim, do ponto de vista político, de um conceito sem interesse.
Estamos de pleno acordo com uma voz que, citada aqui neste livro,
tem de ser ouvida como absolutamente insuspeita. Refiro-me a
Jacques Maritain, o pensador católico, o qual, a págs. 44 de
«L'Homme et l'Etat» escrevia há anos:

— «Na ordem política e em relação aos homens ou órgãos


encarregados de guiar os povos para os seus destinos
terrestres, não existe uso válido para o conceito de
soberania»..

A preencher a última parte do presente capítulo — depois


deste parêntesis relativo à ideia de «soberania», conceito não
político, antes simplesmente jurídico — analisaremos a questão das
formas de governo. Mas não faremos isso sem rematarmos com
lima chave que nos parece a mais actual quanto às formas do
Estado. Quero crer, efectivamente, que a distinção atrás apontada
entre forma monárquica e forma republicana perde dia a dia a sua
importância. Isto não só porque o fundamento desta diferenciação
atende a factores de circunstância (por exemplo, o modo de
nomeação ou escolha do chefe), como designadamente pelo facto
de a estatística da História, na medida em que traduz uma lógica e
bem compreensível tendência, nos convencer de que o
desaparecimento total das monarquias continua a constituir um
acontecimento necessário. A instituição das monarquias liga-se, de
raiz, a uma visão metafísica da sociedade que só tem sobrevivido
porque ainda não terminou a digestão de certos tradicionalismos
manifestamente anacrónicos. Sendo porém, assim, pergunta-se
qual a distinção de formas de Estado que propomos de acordo com
as formações económico-sociais do nosso tempo e da marcha para
o futuro?

Não vemos senão, como real e verdadeira, esta dicotomia de


formas de Estado:

1) a democracia burguesa — que corresponde, no plano político, ao


tipo de Estado capitalista;
2) a democracia popular — que corresponde, igualmente no plano
político, ao tipo de Estado socialista.
Posto isto, torna-se-nos agora fácil a análise da questão das
formas de governo. Mas sem esquecermos esta asserção
fundamental: — que tais formas estruturais, como regime político
concretamente estabelecido pela classe dominante, são
inseparáveis das formas de Estado.

A forma de Estado «democracia burguesa» tem como


fundamental a chamada teoria da divisão de poderes,
primeiramente formulada por Locke, mais tarde desenvolvida e
vulgarizada por Montesquieu através da sua já referida obra «O
Espírito das Leis». Segundo ela, a actividade governativa distribui-
se em geral por três poderes distintos — o poder legislativo, que
pertence ao Parlamento, o poder executivo, que pertence ao chefe
do Estado e ao conselho de Ministros; e o poder judicial, que
pertence aos Tribunais.
Porém, tais poderes não são isolados. Têm entre si várias
formas de convivência e as mais genericamente praticadas são
duas : — a forma presidencial e a forma parlamentar. Na primeira,
que é a do chamado presidencialismo, o governo é assumido
propriamente por uma só pessoa, o presidente da República, que
congloba simultaneamente a chefia do Estado e a chefia do
governo, representando os seus ministros a mera função de
auxiliares ou executores das decisões presidenciais (caso, por
exemplo, dos Estados Unidos da América do Norte). Na segunda,
conhecida por parlamentarismo, o «gabinete», formado pelo
Primeiro Ministro e pelo conselho de Ministros, não depende
estritamente do chefe do Estado pois governa ou cai consoante tem
ou não o apoio da maioria parlamentar.

Este esquema prima e peca, simultaneamente, pelo


simplismo com que acaba de ser desenhado. Assim se procede, no
entanto, para ponto de partida de uma razoável compreensão. E,
em corolário do que ficou dito, acrescentaria até que na
terminologia inerente à forma de Estado «democracia burguesa» o
conceito de ditadura corresponde àquela forma de governo em que
o poder político está concentrado autoritariamente nas mãos de
uma só pessoa (ditadura monocrática) ou de um grupo de pessoas
(ditadura colegial), traduzindo-se tal regime por limitações de
liberdades, de direitos cívicos, por desrespeito para com o princípio
da divisão de poderes, enfim, por uma verificação mais palpável de
violências, arbitrariedades e violações das leis.

Se remontarmos, entretanto, à origem histórica da teoria da


divisão de poderes veremos que, na realidade, ela serviu de
fundamento ideológico para a limitação do absolutismo por meio da
concentração do poder legislativo nas instituições representativas
burguesas. No Estado burguês, com efeito, a divisão de poderes o
que nos apresenta é um carácter puramente formal.

E porquê? Porque, como já analisámos nas páginas deste


livro, a democracia burguesa não passa de ser uma organização
política instituída para o domínio da respectiva classe relativamente
às classes trabalhadoras. A democracia burguesa, como dissémos
e mostrámos no decurso desta «Introdução à Política», constitui a
ditadura da burguesia exploradora do trabalho alheio. Eis, portanto,
um conceito científico de ditadura que nada tem a ver com o
conceito puramente burguês enunciado no parágrafo anterior deste
capítulo.

Por fim, e em correspondência com a forma de Estado


«democracia popular», temos a sua forma específica de governo —
a ditadura do proletariado. Esta consiste no poder dos
trabalhadores, no domínio da classe operária e tem como fim a
construção do socialismo.

«A ditadura do proletariado — escreveu Lenine («Obras»,


volume XXIX, págs. 387) — se traduzirmos este termo latino,
científico, histórico-filosófico, em linguagem mais simples,
significa isto: — só uma determinada classe, a dos operários
urbanos e, em geral, os operários fabris, industriais, está em
condições de dirigir. o conjunto de trabalhadores e
explorados na luta para derrubar o jugo do capital e, no
momento em que este é derrubado, na luta para manter e
consolidar a vitória com o objectivo de criar um regime social
novo, socialista, e ainda na luta para a completa supressão
das classes».
É evidente que o poder da classe operária, como forma de
governo concretamente determinada pelas condições históricas de
tal luta, adquire formas específicas, diversas em cada país ou
época.

«Todas as nações chegarão ao socialismo — escreveu


também Lenine («Obras», volume XXIII, págs. 58) — isso é
inevitável». Mas não exactamente da mesma maneira, pois
cada uma dará traços próprios a esta ou àquela forma de
democracia, a uma ou outra variedade de ditadura do
proletariado, num ou noutro ritmo das transformações
socialistas dentro dos distintos sectores da vida social».

Assente-se em que as diferentes formas de ditadura do


proletariado (só os cérebros monolíticos pensam que ela é modelo
rígido para todos os povos e épocas) se estruturam em
dependência da correlação de forças de classe na revolução, e da
violência do seu choque. Na hipótese de as classes dominantes
resistirem pela força, ver-se-á a classe operária obrigada a destruir
por completo todas as instituições políticas em que se apoiava a
burguesia. Se ao contrário, porém, no curso da revolução se
consegue uma superioridade tal sobre a reacção, de modo que o
poder passa para a çlasse operária por via pacífica, então resultará
possível aproveitar alguns dos velhos órgãos políticos, por exemplo
o Parlamento, ainda que transformado de conformidade com os
interesses da construção socialista.

Nas famosas «Teses de Abril» — expostas alguns meses antes


da insurreição de Outubro de 1917 — Lenine admitiu, no rigor
destes princípios, a possibilidade de que, segundo as condições
peculiares que então se verificavam na Rússia czarista, o poder
passasse por meios pacíficos para as mãos do proletariado. Tal
afigurara-se-lhe possível pois o governo provisório não tomara
ainda o caminho da violência contra a classe operária. Como, aliás,
observou Adolfo Sánchez Vázquez em «Filosofia da Praxis»,
edição brasileira da editora «Paz e Terra», 1968, págs. 399-400,
Lenine previra

«uma possibilidade de transformação radical pacífica no


período anterior à Revolução de Outubro, mas ele mesmo
afastou essa possibilidade quando os acontecimentos
tomaram novo curso».
X — Ideologia, Ideologias e Aparelhos Ideológicos
do Estado
Apelamos no capítulo anterior para o «norte» que nos tem
orientado: — o da posição existente entre a estrutura económica da
base social e a estrutura política da cúpula. Mas agora
consideraremos que ao nível desta cúpula ainda se articula um
outro plano, obviamente integrado nela. Tal plano é o da Ideologia.
E se invocarmos a conhecida metáfora de Marx e Engels — a do
edifício composto por alicerces básicos (a infraestrutura) e pela
superestrutura assente sobre os referidos alicerces — teremos de
reconhecer que a Ideologia pertence efectivamente à
superestrutura.

Dito isto, procedamos a mais uma confrontação entre o


enunciado do programa oficial e o esquema do presente livro.
Aquele, como resulta das suas palavras, limita-se a propor o estudo
das «principais ideologias políticas»; porém nós começaremos,
mercê de exigências mínimas de compreensão teórica, por
averiguar o que é Ideologia, depois veremos quais as ideologias
actualmente actuantes e, finalmente, determinaremos onde se
situam elas, como funcionam através do Estado e, portanto, quais
serão os tais «aparelhos ideológicos» a que Althusser se referia. Só
assim o leitor terá uma visão aceitável, culturalmente formativa, do
problema.

A expressão «Ideologia» foi forjada por Cabanis e outros, para


designarem a teoria genética das ideias. O seu objecto era pois, e
somente, o de se saber como nascem as ideias. Mas cerca de
cinquenta anos mais tarde Marx retomou o termo e deu-lhe, a partir
das suas obras da juventude, um sentido bastante diferente. Passa
então a Ideologia a designar o sistema das ideias (das
representações) que domina o espírito de um homem ou de um
grupo social. É a Ideologia como veículo de consciencialização
humana e mola de actuação prática. No entanto, o depararmos
com este novo conceito obriga-nos a reconhecer que, enquanto
tomado num sentido assim amplo, ele abarca ou compreende dois
tipos de sistemas:

1) os sistemas de ideias, ideologias em sentido restrito; e


2) os sistemas de comportamento, ou hábitos, costumes e
tendências.
A distinção destes dois níveis (o nível dos sistemas de ideias e
o nível dos comportamentos práticos, quotidianos, das pessoas)
mostra-nos, por seu turno, que a Ideologia pode naturalmente
existir sob duas formas distintas:

1) como ideologias teóricas (as teorias políticas)


2) como ideologias práticas (as práticas sociais).
Aproveitemos esta dualidade tirando da sua verificação um
resultado da maior importância para satisfazer o desejo de
coerência que,naturalmente, todo o homem pretende que exista
entre o modo como pensa e o modo como actua. Com efeito, a
distinção dos dois sistemas em que se desdobra a Ideologia
(sistema de ideias e sistema de comportamentos) implica a
descoberta de uma relação dialéctica estabelecida entre eles.
Sabe-se que é bem mais fácil, para uma pessoa, mudar a sua
forma de ver o mundo (isto é, a sua ideologia em sentido restrito)
que alterar as formas habituais do seu comportamento diário.
Resulta daí que determinados costumes, certos hábitos de
trabalho, este ou aquele estilo de direcção ou mando por alguém
assumido, podem ser, e são-no a cada passo, contrários à
ideologia política professada por esse mesmo alguém. E equivalia a
fugir aos pontos críticos da sua própria personalidade, e à sua
posição de classe, o facto de, por exemplo, esse alguém não
reconhecer que alguns dos seus costumes, hábitos de trabalho e
estilos de mando (isto acontece até com dirigentes socialistas,
muitos proletários e, frequentissimamente, com os intelectuais
burgueses que se aliam à classe operária) se revelam asperamente
contrários à ideologia daquele proletariado que em teoria
defendem.

«O comportamento tecnocrático ou burocrático de alguns


dirigentes marxistas — escreveu Marta Harnecker a págs.
101 do seu já citado livro — revela a penetração (eu diria
antes a sobrevivência não digerida) da ideologia burguesa
nas fileiras da classe operária». .

Como «sistemas de ideias» que são, as ideologias abrangem


as correntes filosóficas dos pensadores (a forma mais elevada da
ideologia teórica é a Filosofia), as teorias políticas, as teses
jurídicas, as crenças religiosas, as doutrinas estéticas. Todos estes
domínios se apresentam como formas diversas da «visão do
mundo» e do papel que o homem no mundo desempenha. E desde
logo se compreende, em face de todas as espécies agora
identificadas (filosofias, políticas, direitos, religiões e estéticas), que
as ideologias, ao contrário das representações científicas do
mundo, estão sempre eivadas de elementos mais ou menos
imaginários. E também por isso mesmo Marta Harnecker afirmou
(págs. 100, idem) que elas, as ideologias,

«mais do que descrever a realidade, expressam desejos,


esperanças, nostalgias».

Uma nota muito importante: — a confluência de dados


científicos, de elementos imaginativos, de costumes e práticas
quotidianas, empresta-lhe, à Ideologia, uma autonomia própria e a
sujeição específica a leis igualmente próprias. De acordo com esta
indeclinável verdade, errado seria pensarmos que, por exemplo, a
ideologia marxista corresponde rigorosamente à filosofia marxista
do materialismo dialéctico ou à sociologia marxista do materialismo
histórico. A Ideologia e a Ciência são, em suma, coisas diferentes e
autónomas.

É particularmente no campo das ideologias religiosas que


melhor se vê o grau de diferença existente entre as ideologias
teóricas e as ideologias práticas. Basta pensar que há religiões que
têm uma grande carga de ritos, carecendo porém de uma teologia
sistemática — e a teologia, quando existe, representa o grau mais
elevado de sistematização teórica da ideologia religiosa. Mas tal
diferenciação igualmente acontece com todas as demais «regiões
da ideologia», na medida em que todas as ideologias podem
realizar-se sob forma de meras práticas rituais, costumeiras ou
tendenciais, sem que nenhuma teoria se haja estabelecido como
plano reflectido e elevado de ideias.
Até porque os vários níveis ideológicos estão impregnados —
uns mais, outros menos — de elementos do conhecimento
científico, são as ideologias que directamente transformam a
consciência do homem e moldam os seus comportamentos com
vista a adaptá-lo às suas tarefas e condições de existência. Não é
pois excessivo repetir que, na verdade, as ideologias teóricas
podem conter elementos de tipo científico. Estes, porém,
encontram-se integrados numa estrutura de tipo ideológico e, por
tal motivo, só logram dar-nos conhecimentos parciais, deformados
ou limitados, precisamente em virtude da sua integração na aludida
estrutura.

Deixamos há pouco adivinhar, falando de autonomia e de leis


próprias da Ideologia relativamente à Ciência, que o nível
ideológico, como aliás o político, não representa — ao contrário do
que pretendem certos vulgarizadores ditos marxistas — um simples
reflexo do nível económico. E porquê?... Precisamente porque se
trata de um nível que possui leis próprias do seu desenvolvimento.
A determinação económica actua, sem dúvida, sobre a estrutura
ideológica em seu conjunto e em última instância; mas a verdade é
que as «regiões ideológicas» são sempre produto de dois tipos de
determinações:— primeiro tipo, o da determinação interna, inerente
à própria estrutura ideológica; segundo tipo, o da determinação
externa, composta por elementos jurídicos, políticos e económicos.
Assente-se, portanto, em que jamais se verifica uma determinação
directa ou mecânica da Economia na Ideologia — antes, sim, uma
determinação estrutural ou complexa. E isto foi o que Engels
afirmou repetidamente, por exemplo em duas passagens da carta
que dirigiu a Conrad Smith em 27/10/1890:
— «A economia não cria, ela mesma, nada directamente;
antes determina o tipo de modificações e de
desenvolvimento da matéria intelectual existente e, mais
ainda, «faz» isto a cada passo indirectamente, pois são os
reflexos políticos, jurídicos e morais que exercem acção
mais directa sobre a filosofia».

E ainda:

... «No que concerne às regiões ideológicas (...) a religião, a


filosofia, etc., compõem-se de um resíduo vindo da pré-
História, que a idade histórica encontrou e recolheu».

Por não verem ou não entenderem esta autonomia da estrutura


ideológica relativamente à estrutura económica, já certos críticos do
marxismo pretenderam afirmar que Marx se tinha enganado quanto
ao problema da acção e da missão da classe operária. Esta, em
vez de ganhar fôlego revolucionário com o amadurecimento da
consciência de classe, ter-se-ia aburguesado, adaptado cada vez
mais ao sistema capitalista. Tal crítica, porém, só teria procedência
se acaso o marxismo fosse essencialmente economicista. Por
palavras distintas: — se acaso o marxismo sustentasse que a
Ideologia é mero reflexo das condições económicas básicas da
sociedade. Muito ao contrário, porém, aquilo que sempre o
marxismo nos ensina é que o proletariado só descobre os seus
verdadeiros interesses de classe, para lá dos meros factores da
sua existência, quando faz intervir no processo do quotidiano
factores de natureza extra-económica, coisa que só acontece
desde que ponha ao seu serviço a teoria marxista.

Antes de avançarmos para a discriminação das várias


ideologias que se manifestam no palco político do nosso tempo,
iremos ainda ver em que medida e circunstâncias se exerce a
acção da ideologia na sociedade de classes.

Marx escreveu em «A Ideologia Alemã», e a este propósito,


uma frase célebre:

— «As ideias da classe dominante são as ideias dominantes


em cada época ou, dito de outra maneira, a classe que
exerce o poder material dominante na sociedade é, ao
mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante».

O que equivale a dizer que existem ideologias da classe


dominante e ideologias das classes dominadas; e que na
sociedade ocidental capitalista a ideologia da classe burguesa,
como dominante, se opõe às ideologias das classes dominadas.
Eis então o princípio que Althusser resumiria no ensaio «Teoria,
prática teórica e formação teórica. Ideologia e luta ideológica»,
publicado nos «Cahiers Marxistes-Leninistes» de 1966, onde
esclareceu que, neste sentido,

«as ideologias pequeno-burguesas e proletárias são


ideologias subordinadas e sempre triunfam sobre elas,
mesmo sob protesto dos explorados, as ideias da classe
dominante.»

Tem larga importância esta afirmação verdadeiramente


científica, de que aliás Marx fez extrema questão. Tal é a carga
ideológica burguesa sobre a ideologia operária, que o operário
tende a limitar-se ao protesto integrado no esquema das ideias
dominantes. Aí estão os exemplos de tantas e tantas lutas dos
trabalhadores processadas no mundo capitalista, mas limitadas à
conquista de maiores salários e circunscritas, portanto, à mera
obtenção de um maior poder aquisitivo de bens de consumo. E
então mostra-se evidente, na sequência do pensamento de Marx,
que a classe operária só pode libertar-se dos meandros ideológicos
da classe burguesa desde que receba do exterior o socorro da
Ciência — o socorro do socialismo científico. Só assim, com o
apoio deste novo elemento, ela se libertará radicalmente de uma
ideologia sua inimiga. Trata-se, em resumo, daquilo que nos ensina
a teoria leninista de fusão necessária da teoria marxista com o
movimento operário.

Posto o que passaremos a classificar diferenciadamente as


várias espécies ideológicas que hoje se assemelham, contraditam
ou opõem.

Segundo um critério possível, ainda que muito esquemático e


simplista, mas que tem a seu favor uma já longa tradição,
destinguiremos três posições ideológicas fundamentais:

1) a posição das direitas — que apoia a classe exploradora;


2) a das esquerdas — que apoia os interesses das classes
exploradas e
3) a do centro — que apoia os interesses das chamadas classes
médias.
Entre outros, Maurice Duverger escreveu a págs. 245 de «Les
Partis Politiques»:

— «Toda a política implica uma escolha entre dois tipos de


solução e as soluções ditas intermédias ligam-se a um ou
outro daqueles tipos».
O centro (tantas vezes se afirmando «centro-direita» ou
«centro-esquerda») não passa de ser, na realidade, um disfarce
eufemístico. Por isso nos limitamos, de acordo com aquele critério
possível, a distinguir os dois referidos pólos — direitas e esquerdas.
Aliás, desta dualidade teve origem em 1789, na altura em que os
realistas franceses (os que apoiavam o rei) se sentaram
ostensivamente à direita do presidente da assembleia legislativa,
enquanto os partidários da Revolução tomaram lugar à sua
esquerda. Depois, a diferenciação passou para o vocabulário
político geral e os dois termos ficaram consagrados num uso que
ainda hoje não cessou. Em boa verdade, porém, o complexo das
ideologias existentes apresenta-se-nos muito mais diversificado. E
se considerarmos que «direitas» e «esquerdas» assumem a
categoria de géneros, partiremos daqui para fazer referência
particular às respectivas espécies.

De modo geral, as «direitas» são também conhecidas por


ideologias conservadoras ou reaccionárias. E diz-se conservador
ou reaccionário, em política, todo aquele que se apresenta ou
revela como partidário de sistemas nos quais se procura assegurar
a continuidade e a permanência do Estado burguês, rejeitando a
transformação revolucionária da sociedade. As ideias
conservadoras representam, assim, a adesão à ordem
estabelecida. Manter o estabelecido, defender esta manutenção,
eis o que significa ser conservador ou reaccionário.

São reaccionárias e conservadoras, em primeiro lugar, as


ideologias nacionalistas, enquanto exaltam exageradamente os
valores nacionais-tradicionais, com um correlativo desprezo pelas
estruturas políticas das outras nações. Paralelamente, também são
conservadoras as ideologias racistas, no seu desiderato de ocultar
o papel que a luta de classes desempenha na história da sociedade
humana, isto com o fim de justificarem a guerra e a opressão
colonial. Os ideólogos burgueses do racismo têm procurado
sempre apresentar o processo histórico como um resultado da luta
de raças, não da luta de classes. No final de contas podemos notar
esta circunstância: — que, sendo o fascismo (de que falaremos
adiante) uma ideologia da violência pura, sem conteúdo específico,
ele vai buscar as posições teóricas das ideologias que lhe servem
os fins dessa violência, designadamente o nacionalismo e o
racismo.

Sob outra perspectiva, diríamos que é igualmente reaccionário


e conservador — como ideologia — o capitalismo. Este, na
verdade, representa a ideologia dominante após a queda do regime
feudal, defendendo, por um lado, a «propriedade privada» dos
meios de produção e considerando, por outro, o «lucro» como a
força motriz da produção económica. Os seus ideólogos, na
intenção de negar o facto de o socialismo ser o estádio social que
lhe seguirá no decurso histórico, pretendem que a evolução
económica atingiu com o capitalismo o seu termo. Para eles, o
capitalismo nasceu para ser eterno.

Entretanto, o imperialismo — a ideologia imperialista representa


o sistema de ideias a que chega a fase última do capitalismo —
leva aos derradeiros limites a contradição entre o «capital» e o
«trabalho», produz a contradição entre os Estados imperialistas até
à deflagração de conflitos bélicos (as guerras imperialistas de 1914-
1919 e 1939-45) e à contradição entre aqueles mesmos Estados e
os países coloniais ou colonizados, todos eles vítimas da
exploração económica internacional.

No capítulo seguinte faremos referência mais pormenorizada e


sistemática à chamada crise geral do capitalismo, resultante de
violenta e irreversível ruptura no equilíbrio das forças produtivas e
da agudização das contradições do sistema. Agora só nos
limitaremos a referir de corrida duas das mais conhecidas
ideologias reaccionárias — o fascismo e o corporativismo (que
afinal são uma única, como veremos) — processos de violência
social e de seráfico embuste destinados a aguentar o capitalismo
face à aludida crise geral em que ele mortalmente se debate.

Em termos muito gerais, o fascismo é — como se vem de dizer


— a ideologia da violência como forma de sustentação do
capitalismo imperialista. Combate não só o comunismo, mas
igualmente toda e qualquer força democrática ou progressista.
Basta, para que nos apercebamos disto, chamar a atenção do leitor
relativamente a esta frase em que Mussolini expressava a síntese
de tal ideologia:

— «Para o fascista tudo está contido no Estado e nada de


humano ou de espiritual existe ou tem valor fora do Estado.
Neste sentido, o fascismo é totalitário, e o Estado fascista
constitui a síntese e a unidade de todos os valores, e
interpreta, desenvolve e domina toda a vida do povo».

Mais eufemístico — como do mesmo modo dissemos — mas


patentemente hipócrita, o corporativismo rotula-se de ser uma
espécie de mensageiro da paz. Tal como a ideologia fascista da
ditadura burguesa, que o é também, mostra-se o corporativismo a
mais reaccionária das surgidas, depois da primeira guerra mundial,
em Itália, na Alemanha, em Portugal e em Espanha. Como
objectivo principal, ele pretende ocultar ou encobrir a ditadura do
capital monopolista, conferindo à sua organização política e
administrativa a aparência de uma «colaboração de classes», de
uma celestial «harmonia de interesses» capitalistas e operários,
tudo isso conseguido (?!?) no seio das «corporações». Marcelo
Caetano, por exemplo, justificou (?) um dia esta falsa solidariedade
entre as classes num texto intitulado «Problemas Político-Sociais
da Actualidade Portuguesa», de 1956 (a págs. 29):

— «Fomentar a luta de classes é um processo


revolucionário: de modo nenhum pode ser admissível como
norma de vida no quadro de uma sociedade politicamente
ordenada. Se duas pessoas discutem os seus interesses ou
os seus direitos, não se lhes permite o duelo, nem que por
outra forma façam justiça por suas mãos. Acabaram-se as
guerras privadas».

Aliás, o mesmo porta-voz teórico do fascismo chegou a


descobrir, a págs. 14 de 2.° edição do seu livro «A Constituição de
1933», que o corporativismo teria uma génese socialista. Neste
sentido não hesitou em aludir «à influência do socialismo
catedrático, doutrina professada por Oliveira Salazar e por outros
economistas portugueses» (sic), no edifício corporativo do Estado
Novo. Veremos daqui a pouco como, aliás, as designações de
«socialista» e «socialismo» são utilizadas a bel-prazer por
ideologias que pouco ou nada têm a ver com elas.
A primeira guerra imperialista (a de 1914) gerou ainda uma
outra teoria política que vale a pena referir: — a ideologia do
cosmopolitismo. Com efeito, durante esse conflito mundial certos
ideólogos burgueses tentaram doutrinar a formação dos Estados
Unidos da Europa. Mais exactamente: — depois da revolução russa
de Outubro de 1917, os ideólogos do cosmopolitismo burguês
difundiram o plano de criação de uma Federação Europeia. Mas
ninguém ficou com dúvidas relativamente ao seu carácter anti-
soviético e sobre a pretensão de uma hegemonia polarizada nas
mãos da França e da Inglaterra. E algumas décadas após, agora já
no decurso da segunda guerra mundial, voltou a burguesia
imperialista a falar de um governo mundial, de um direito mundial,
de uma cidadania mundial — mas todos estes planos não
passavam de um desejo imperialista norte-americano, de que o tal
«governo mundial» seria simplesmente um pobre lacaio.

São, finalmente, também conservadoras — de entre as do


nosso tempo — as ideologias católicas. Com efeito, muito do
catolicismo contemporâneo desenvolve esforços enormes na luta
ideológica da reacção. Excepção feita aos chamados «católicos
progressistas», que vêm alinhando ao lado dos trabalhadores na
luta de classes, independentemente da sua crença, o catolicismo
clássico propagandeia concepções filosóficas reaccionárias e
procura anular a consciência das massas populares por meio da
mística e do clericalismo. Empenha-se, assim, o catolicismo
tradicional em combater a verdadeira democracia e o marxismo. E
até acontece, numa bem significativa convergência, que os
ideólogos do imperialismo «ressuscitaram» a filosofia de São
Tomás: — os norte-americanos descobriram-se neo-escolásticos e
o presidente Kennedy, por exemplo, chegou a afirmar que o direito
natural foi estabelecido por Deus e que a democracia burguesa
(capitalista e imperialista) dos Estados Unidos se encontra
plenamente de acordo com aquele mesmo direito.

Falou-se há pouco de clericalismo, termo que é frequentemente


usado para significar a influência política do clero. Importa
entretanto esclarecer que do ponto de vista ideológico o
clericalismo constitui uma orientação político-social verificável nos
países capitalistas, a qual procura separar ou afastar do socialismo
científico (ou marxista) as massas trabalhadoras. O clericalismo é
demagógico e a sua demagogia consiste em fazer acreditar numa
«cristianização» do capitalismo monopolista. Enfim, uma espécie
de santificação do dinheiro e do capital financeiro!...

Ensaiando, agora, a passagem para o campo das ideologias de


esquerda ou progressistas, temos de tomar uma rigorosa cautela. E
sabido que os interesses económico-sociais das classes
reaccionárias dão sempre origem a teorias falsas e oportunistas.
Aparecem-nos então aquelas ideologias que se arrogam à natureza
de vários socialismos, mas que no final de contas só defendem,
conservadoramente, a subsistência estrutural da sociedade
capitalista. Vamos ver algumas delas, naturalmente as principais ou
mais características.

O socialismo fabiano, por exemplo, surge-nos como a primeira


dessas falsas ideologias ditas progressistas do nosso tempo.
Porém, ela constitui antes uma corrente reaccionária burguesa,
nascida em Inglaterra precisamente para combater o socialismo
científico ou marxista. A «Sociedade dos Fabianos» (de 1884)
preconizou a passagem gradual do capitalismo para o socialismo
por meio da «colaboração» entre a burguesia e o proletariado. Eis,
enfim, uma parente chegada do corporativismo de que há pouco
falámos, a propósito da qual em 1893, numa carta a Sorge, Engels
escrevia:

— «...os fabianos são um ambicioso grupo londrino (...), o


seu princípio fundamental é o termo da revolução (...) e
daqui também o seu ódio fanático contra Marx e todos nós: a
causa da luta de classes» (Marx e Engels,
«Correspondência», Buenos Aires, 1957, págs. 327).

Um mesmo falso progressismo encontraremos no chamado


socialismo ético. Trata-se, com efeito, de uma interpretação neo-
kantiana do socialismo, operada através de Max Adler, em «Kant e
o Socialismo», de 1900, e Vorlander, em «Kant e Marx», de 1911.
Alguns teóricos burgueses social-democratas, ao recusar a filosofia
do marxismo (o materialismo dialéctico) intentaram efectivamente
unir o socialismo científico com a filosofia moral kantiana.
Afirmaram então que foi Kant quem formulou pela primeira vez a
ideia básica do próprio socialismo — a ideia de solidariedade — a
qual constitui um dos seus imperativos categóricos. A sociedade,
para os socialistas éticos, passaria ao socialismo não por força da
luta de classes e da dialéctica da História, antes, ao contrário, pelo
aperfeiçoamento moral da humanidade, realizado paulatinamente
acima das classes.

É Bernstein (1850-1932), social-democrata alemão, a pessoa a


quem se deve, historicamente, a primeira forma sistemática de
revisionismo e reformismo no movimento operário revolucionário.
Nos seus artigos publicados sob o título genérico de «Problemas do
Socialismo» (1897-1898) ele submeteu a uma extensa revisão os
problemas básicos do marxismo — em filosofia, em economia
política, em teoria do socialismo científico. E depois de proclamar a
palavra de ordem — «Voltemos a Kant!» — Bernstein renunciou à
solução consequentemente materialista do problema capital da
filosofia: — negou a possibilidade de um socialismo científico;
recusou a ditadura do proletariado; considerou, enfim, o socialismo
um puro ideal da natureza ética.

Falando propriamente da social-democracia — que constitui


uma outra das falsas ideologias de esquerda — vê-la-emos, com
efeito, essencialmente reformista. Porque as reformas têm, para a
social-democracia, um duplo valor: — permitiriam, por um lado,
impregnar a realidade de doses cada vez mais fortes de socialismo
e, por outro, assentariam as bases sobre as quais entendem os
social-democratas que o socialismo se poderá erguer. Mas a social-
democracia não resiste à acusação que oportunamente lhe dirigiu
Frederico Adler, secretário da Internacional Operária Socialista, em
26/8/1939:

— «Não serão os partidos reformistas que conquistarão e


realizarão o socialismo. Em todas as situações críticas para
as classes dominantes, em vez de atacar logo, os partidos
reformistas deixaram-se seduzir por concessões sociais,
abandonando o terreno do poder político».

Outra falsa ideologia de esquerda é ainda a que se intitula


socialismo democrático. Trata-se da ideologia oficial do reformismo
moderno, proclamada no Congresso de Francfort da Internacional
Socialista, em 1951. As suas bases arrancam, tal como o
socialismo ético, de um neo-kantismo: — o socialismo não
constituirá a fase de um processo histórico revolucionário,
sustentam os socialistas democráticos, mas um ideal moral
acessível por igual aos representantes dos vários estratos sociais.
A transformação social é assim, para eles, a transformação moral.
Logo, esta ideologia recusa a luta de classes, a revolução
socialista, a ditadura do proletariado, motivos pelos quais tende
simplesmente a perpetuar a democracia burguesa.

Inventado, aliás, por alguns trabalhistas contemporâneos, este


socialismo democrático tornou-se praticamente na ideologia oficial
de todos os partidos socialistas de direita. Quer dizer: — ele
constitui uma ideologia reaccionária, identificável pela fraseologia
socialística se que divulga dissolventemente no seio da classe
trabalhadora. E parece irrecusável a ideia de que os socialismos de
direita, todos eles, deformam a essência do Estado. Pretendem
eles que o Estado, se já foi instrumento da classe dominante, hoje
deixou de constituir um aparelho repressor das massas operárias,
tornando-se um organismo acima das classes. Porque, afinal, os
socialistas de direita limitam-se a retomar a velha ideia reformista
da integração gradual do socialismo no capitalismo.

Páginas atrás, vimos classificadas as ideologias católicas no


sector das conservadoras mercê da sua posição normalmente
adversária do «novo» e do «científico», e da sua crença na
regeneração do capitalismo. Cumpre-nos agora, porém, ressalvar
que outros sectores cristãos existem que se procuram integrar no
campo socialista — como aliás acontece entre nós com os católicos
progressistas. E é evidente que nada obsta em admitir o
cristianismo como aliado dos defensores dos interesses dos
trabalhadores, desde que o socialismo cristão não enverede por um
carácter demagógico. Isto é: — desde que, no plano político, não
queira substituir a ideia da luta de classes por uma «pacificação»
com que unicamente ganha o capitalismo. Na luta contra o capital
explorador podem, obviamente, participar os cristãos como cristãos
já que a contradição antagónica, cientificamente irredutível porque
inconciliáveis os seus termos opostos, é a que se verifica entre
exploradores e explorados — não a polémica, puramente idealista,
entre crentes e não crentes.

De entre as ideologias classicamente reconhecidas como de


esquerda, e que fazem parte do horizonte ideológico do nosso
tempo, teremos ainda de referir o anarquismo e o marxismo-
leninismo. Quanto ao socialismo neo-marxista acabamos de ver um
desfile das particularizadas ideologias em que ele se tem
desdobrado, as quais são para mim, todas elas, falsas esquerdas
na medida em que (nunca é demais repetir) substituem a ideia,
confirmada pela História, da luta de classes pelas teorias da
solidariedade, da harmonia e da colaboração entre exploradores e
explorados. Faremos, pois, um apontamento breve sobre o
anarquismo, e outro também breve relativo ao marxismo-leninismo.
Mas este último, dada a sua extrema importância na panorâmica
ideológica dos nossos dias, será objecto de maiores considerações
no capítulo especificamente respeitante ao socialismo.

Quanto ao anarquismo já dissemos alguma coisa neste livro, a


propósito da distinção entre as duas espécies de aparelhos
repressivos do Estado (os aparelhos repressivos políticos e os
aparelhos repressivos administrativos). Aí afirmáramos que, ao
contrário do marxista, o anarquista entendia como revolução a
destruição imediata de todos os aparelhos repressivos, políticos ou
administrativos do Estado. Mas é precisamente neste ponto que
reside o seu vício fundamental: — o anarquismo constitui uma
ideologia pequeno-burguesa em qualquer das suas formas (anarco-
individualismo, anarco-sindicalismo, anarco-comunismo) que
preconiza a supressão do poder do Estado e do poder político
independentemente das condições históricas. Marx, Engels e
Lenine o denunciaram por isso mesmo, e a cada passo, como
contrário e hostil aos interesses das massas trabalhadoras. Na
verdade. o anarquismo sempre se tem mostrado incapaz de
compreender as etapas históricas que a luta de classes segue na
condução do mundo para o socialismo.

Quanto ao marxismo e ao marxismo-leninismo diremos agora,


muito simplesmente, que eles constituem um sistema integral de
concepções filosóficas, económicas e político-sociais, uma
concepção cabal do mundo que assenta na fundamentação do
papel histórico da classe operária como criadora da sociedade sem
classes. Mas creio que alguns leitores se perguntarão sobre o
motivo que nos levou a distinguir, no plano ideológico, entre
marxismo e marxismo-leninismo. É fácil, no entanto, explicar. O
marxismo, como ideologia, corresponde à fase de luta ideológica
contra o capitalismo clássico — conhecido por capitalismo
concorrencial ou da livre concorrência; o marxismo-leninismo, esse
situa-se já no domínio da luta enquadrada no último estádio
daquele capitalismo, ou seja, na fase do capitalismo-imperialista.
Eis-nos na altura de abordarmos a última parte deste capítulo.
Falámos da Ideologia em geral, e das principais ideologias em
particular. Resta-nos dizer alguma coisa sobre os aparelhos
ideológicos do Estado.

Em «Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado» (a págs.


143 da edição portuguesa) Louis Althusser dá-nos a seguinte
definição:

— «Designamos por Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE)


um certo número de realidades que se apresentam ao
observador imediato sob a forma de instituições distintas e
especializadas...»

Os AIE são, portanto, aqueles sectores da organização


estadual da sociedade que se especializam em informar, ou
deformar, ou transformar a consciência política das pessoas. Neste
sentido, são variadíssimos os Aparelhos Ideológicos do Estado:

o AIE religioso, constituído pelo sistema das diferentes igrejas;


o AIE escolar, que se materializa em sistemas das diferentes
escolas públicas e particulares;
o AIE familiar;
o AIE jurídico;
o AIE político, sistema de que fazem parte os diferentes
partidos;
o AIE sindical;
o AIE da informação, abrangendo a imprensa, a rádio e a
televisão;
o AIE cultural, referente às letras, belas artes, ao desporto, etc.,
etc..
Falamos da «família» como AIE e também, por exemplo, das
«escolas particulares», colocadas a par de vários organismos de
natureza pública. Será, então, que existem AIE de natureza
privada?... Eis uma dificuldade lógica que merece ser resolvida.

Todo o Aparelho Repressivo do Estado pertence, obviamente,


ao domínio público. Acontece, porém, que os Aparelhos Ideológicos
do Estado são quase todos, e não só as famílias e as escolas
particulares, do domínio privado. E, sendo assim, pergunta
Althusser a págs. 45 do ensaio que venho referindo: — se, na
verdade, as igrejas, os partidos, os sindicatos, as famílias, a maior
parte das escolas, a maioria dos jornais, as empresas culturais,
etc., etc., constituem elementos do domínio privado,

«com que direito podemos considerar como Aparelhos


Ideológicos do Estado instituições que, na sua grande
maioria, não possuem estatuto público, e são pura e
simplesmente instituições privadas»?

E o autor de «Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado»


responde apoiando-se no grande teórico e fundador do PCI, que foi
Gramsci:

— «Como marxista consciente que era, Gramsci já


salientara esta objecção. A distinção entre o público e o
privado é interior ao direito burguês, e válida nos domínios
(subordinados) em que o direito burguês exerce os seus
«poderes». O domínio do Estado escapa-lhe porque está
«para além do Direito»: o Estado, que é o Estado da classe
dominante, não é público nem privado...»

Em conclusão imediata, muito límpida, diremos que afinal as


instituições «privadas» podem perfeitamente «funcionar», e
funcionam mesmo, como Aparelhos Ideológicos do Estado.

Recordaremos ainda aquilo que ficou expresso no início, deste


capítulo: — que a Ideologia se desdobrava, dentro do seu sentido
amplo, em dois grupos de sistemas (nos sistemas de ideias e nos
sistemas de comportamento social das pessoas). Ora os AIE agem
relativamente a ambos. A força consciencial e actuante da
Ideologia penetra todas as actividades do homem, designadamente
a prática política. A ideologia preside a todas as suas actividades, a
todos os juízos de valor moral ou jurídico, a todas as decisões
políticas de conformação, de reforma ou de revolta.

A ideologia implica, enfim, a formação interna das consciências


individuais e actos externos inseridos em práticas políticas. São os
Aparelhos Ideológicos do Estado quem nos ensina os vários modos
do «saberes práticos».
XI — A Crise Geral do Capitalismo, O Fascismo
e a Demotecnocracia
É evidente a razão de ser deste título. O programa oficial não
sistematiza as três questões agora postas («crise geral do
capitalismo», «fascismo» e «demotecnocracia») num só corpo.
Porém, na medida em que o fascismo e a demotecnocracia nos
surgem como processos de que a burguesia se tem servido para
tentar salvar o capitalismo em crise, resulta compreensível a
reunião destes três pontos no texto conjunto do presente capítulo.

Falando da crise geral do capitalismo, parece conveniente


começarmos por ver, com um pouco mais de desenvolvimento, o
que é o capitalismo.

Trata-se de um termo de certo modo recente, mas usado com


sentidos diferentes. Ele figura, por exemplo, na «Enciclopédia», de
Diderot, para definir o estado do homem rico; reaparece depois, por
volta de 1840, expressando o sistema de capitalização; mas é
Louis Blanc, em «A Organização do Trabalho», quem lhe empresta
o sentido actual:

— «...aquilo a que chamarei capitalismo significa a


apropriação do capital por uns com a exclusão de outros»;

e se posteriormente Blanqui e Proudhon ainda utilizaram o


termo para designar o conjunto dos capitalistas, em boa verdade
ele só adquiriu o seu significado realmente moderno depois da
década de 1870-80 e da primeira tradução francesa de «O
Capital», de Karl Marx. De então para cá, a palavra capitalismo
passou a designar todo o sistema económico em que lei
fundamental é a procura sistemática da mais-valia, mercê da
exploração dos operários pelos detentores dos meios de produção
e troca, tudo com vista à transformação de uma fracção importante
dessa mais-valia em capital-adicional, por seu turno fonte de novas
mais-valias.

O capitalismo representa, como se sabe, a estrutura económica


da democracia burguesa. E teve base teórica no liberalismo
económico, cuja tese fundamental consistiu na afirmação da
existência de uma ordem natural que tenderia a estabelecer-se
espontaneamente na economia. O principal motor da actividade
humana seria a procura das vantagens pessoais, bastando
deixarem defrontar-se os interesses particulares para se
estabelecer o equilíbrio global, numa solução harmoniosa dos
homens e dos capitais. O liberalismo económico ligou-se, enfim, à
fase do capitalismo concorrencial:— pretendeu-se reconhecer, ao
indivíduo e à empresa, o máximo de liberdades, facto de que
proveio a expressão «livre concorrência», não devendo, nem a
intervenção do Estado nem a intervenção de quaisquer grupos,
entravar a sua acção.

Em fins do século XIX, entrou o capitalismo na última etapa do


seu desenvolvimento — a do imperialismo. Este caracteriza-se pela
concentração do capital financeiro nas mãos de um punhado de
monopolistas, facto que lhes assegura o domínio sobre a
economia, relativamente à política dos seus países e do mundo.
Deste modo, o capitalismo imperialista liquidou as características
do seu antecessor (do capitalismo concorrencial) as quais eram
fundamentalmente a livre competição entre as empresas, a fixação
dos preços pela lei da oferta e da procura e o livre acesso de novos
produtores ao mercado. Mas o fenómeno da concentração
capitalista, definido o imperialismo como o último estádio do
capitalismo, deu lugar às empresas gigantes (e aos agrupamentos
de empresas menores) com vista ao domínio dos ramos de
produção e ao «controle» dos preços e das quantidades
produzidas, e ainda ao condicionamento da procura por parte dos
próprios consumidores.

Nos sistemas económicos capitalistas, a unidade básica da


produção é a empresa. Esta constitui o organismo que concentra e
combina os factores de produção com o objectivo de realizar o
máximo de lucro, pela venda de bens e de serviços no mercado. A
verdade é que a característica fundamental do capitalismo veio
residindo, em virtude de tudo quanto ficou dito, no desequilíbrio ou
descontrole da produção. Daí resultou a chamada crise geral do
capitalismo.

Os teóricos e os ideólogos burgueses, quando defrontam os


factores mais agudos desta crise geral, pretendem que tais
factores, determináveis, em cada momento, só constituem crises
parciais do sistema capitalista, desde logo remediáveis por
determinadas acções políticas ou técnicas. Quer dizer: — os
ideólogos burgueses, na medida em que pretendem constituir o
capitalismo o último estádio social (não havendo, pois, de lhe
suceder o socialismo), recusam-se a aceitar a verificação de uma
crise total-geral do respectivo sistema. Mas ela existe — crise
irreversível do sistema mundial (capitalista) englobando a
economia, a política e a ideologia. Crise a que corolariamente
corresponde, a vitória progressiva do regime socialista. Mas crise
que tem alguns traços característicos e se processa em várias
etapas.

Poderemos considerar traços característicos da crise geral do


capitalismo:

1) a divisão do mundo em dois sistemas — o capitalista e o


socialista — e a luta entre eles;
2) a ajudicação das contradições entre a burguesia e o proletariado
nos países capitalistas;
3) a crise do sistema colonial do imperialismo;
4) e o agravamento constante e progressivo do problema dos
mercados, dos preços e da inflação.
Mas por outro lado poderemos ainda dizer que são três as
etapas fundamentais da referida crise geral:

1. no termo da guerra imperialista mundial de 1914-19, o êxito da


revolução soviética;
2. como resultado da guerra imperialista de 1939, proliferação
europeia, e asiática, das democracias populares;
3. a partir da última década de 50, a quebra dos sistemas
coloniais em que se estribava economicamente grande parte
das estruturas imperialistas.

Esta terceira etapa reveste-se para nós, portugueses, de


significado particular já que ela veio a consumar-se, após o 25 de
Abril de 1974, com o início de uma intensa política de
descolonização.

É evidente, di-lo-emos ainda, que a crise geral do capitalismo


traduz as grandes contradições do sistema. E a sua contradição
fundamental, enquanto economia desenvolvida, é a que se verifica
entre o carácter eminentemente social da produção e a egoísta e
individualista forma privada e exploradora da apropriação dos
meios produtivos. No jogo das contradições internas, a busca do
lucro — que é uma das razões de ser fundamentais do capitalismo
— gera a anarquia daquela produção e esta gera, por seu turno, as
superproduções e as crises económicas decorrentes do limitado
poder de compra da massa assalariada.

Perante esta situação de crise geral, os ideólogos burgueses


têm sentido repetidamente o caminho a que levam as contradições
antagónicas entre opressores e oprimidos, contradições
inconciliáveis entre exploradores e explorados. Eles sabem que tais
contradições só podem desaparecer quando a classe capitalista fôr
liquidada, isto é, quando os capitalistas forem privados dos meios
de produção e do poder político. Por isso, as ideologias burguesas
tratam de procurar processos que as salvem dos resultados (fatais
para a respectiva classe) inerentes à crise geral de que estamos
falando. Eis aí o lugar em que se inserem os dois mais
característicos processos de «salvamento» que a burguesia tem
ensaiado: — o fascismo e a demotecnocracia.

Fascismo é palavra de origem italiana. Deriva de «fascio» — o


feixe de varas, distintivo próprio dos cônsules da Roma antiga. Do
ponto de vista do seu conteúdo, o fascismo é a forma mais
reaccionária, abertamente terrorista, da ditadura do capital
financeiro. Esta ditadura é evidentemente instaurada pela
burguesia imperialista para prolongar o seu domínio.

O recurso ao fascismo prova que a alta burguesia já não confia


muito no conservar o poder político através da utilização dos meios
burgueses ordinários — isto é, através dos meios da democracia
parlamentar. Precisamente por isso o fascismo foge ao diálogo e à
polémica com as forças adversas e antes as reprime pela força no
domínio ideológico conduzindo ao mais negro obscurantismo. Ele
significa irracionalidade, chauvinismo, racismo extremo.

Na verdade, a sua maneira de pensar anti-racionalista quadra


bem com o desejo que aos fascistas anima de não fixarem
frontalmente um «programa», o qual posteriormente realizariam por
intermédio do exercício no poder. É muito típico do fascismo
procurar primeiro a conquista do poder político, para só depois
pensar em programas — facto que poderia levar a dizer-se que o
fascismo constitui a ideologia da ausência de ideologia. Aliás sabe-
se que em Itália, por exemplo, o programa do fascismo antes da
sua subida ao poder se resumia no grito «Itália a noi!». E não é
sem razão já se ter dito que, depois da sua transformação em
Estado corporativo, não constitui o fascismo, propriamente, uma
forma política estatal assente sobre si mesma, antes e apenas um
instrumento constituído para o exercício de uma ditadura.

Se a unidade da teoria fascista reside na violência das suas


soluções (fascismo significa interdição de liberdades cívicas, quase
eliminação dos direitos dos trabalhadores, combate às
organizações intelectuais progressistas), por outro lado o fascismo
tem apresentado, do ponto de vista nacional, várias formas
específicas de organização. As mais conhecidas foram a italiana, o
nacional-socialismo alemão, o franquismo espanhol, o
corporativismo português.

Em «Apostilha Critica ao Projecto do Código Civil» (a págs. 42),


José Hermano Saraiva — político e ideólogo do fascismo português
— pretendeu argumentar e sustentar que o corporativismo não era
fascista. Neste sentido ele escreveu:

«...não se verifica em Portugal nem a perspectiva ideológica


nem o condicionalismo legal que na Itália poude justificar a
solução referida. O corporativismo italiano era um
corporativismo de Estado e pretendia exprimir uma
concepção total de vida. A norma corporativa estava, sob o
ponto de vista do direito positivo, quase no mesmo plano da
lei. Emanava do Estado. O sistema corporativo português
tem outra índole. É um corporativismo de associação, e a
sua normatividade é subordinada e limitada a domínios
próprios. Por outro lado, não aspira a construir uma
concepção total da vida; o Estado reconhece que não tem de
interferir em tal esfera, e nesse respeito vai o
reconhecimento dos valores mais altos do espiritualismo
cristão, que são os que efectivamente definem o nosso
sentido da existência».

Esta distinção peca desde logo por se situar a nível


estritamente jurídico. Ela é consequência de um exame formal que
abstrai das razões e dos fundamentos políticos e económicos
capazes de mostrar a identidade essencial entre o fascismo e o
corporativismo. Mesmo assim, diremos que até nesse plano
estritamente jurídico mostra a conjuntura da lei portuguesa que
também, à semelhança do que acontecera com a italiana, a norma
corporativa tem força perfeitamente equiparável à lei geral. Basta,
para vermos isso, ler o n.° 1 do art.° 1.° do código civil de 1967,
onde ainda hoje se declara que «são fontes imediatas de direito as
leis e as normas corporativas».

Está-se a verificar, entre nós, uma situação análoga à que se


deu em Itália quando da queda do fascismo, durante a última
guerra mundial. A extinção da ordem jurídica corporativa italiana,
operada pelo decreto de 23/11/1944, não foi acompanhada da
expressa revogação daqueles preceitos que, como o do nosso
código civil, reconheciam as normas corporativas. Isso veio a
estabelecer incertezas quanto à sua vigência, dividindo-se a
doutrina entre os que sustentavam a revogação implícita e os que
sustentavam a vigência transitória (Passareli, «Durata Transitória
delle Norme Corporative» em «Saggi di Diritto Civile», Nápoles,
1961). E, com efeito, vivemos hoje esta situação em Portugal: —
uma das primeiras leis da Junta de Salvação Nacional, após o 25
de Abril, extinguiu a Câmara Corporativa; diplomas sucessivos têm
eliminado da ordem jurídica portuguesa vários órgãos das
instituições corporativas; todavia, ainda ninguém se lembrou de
revogar o n.° 1 do art.° 1.° do código civil, o qual continua a
declarar fonte de direito português as próprias normas corporativas.

Dissemos que o fascismo se caracteriza como sistema político


totalitário — aquele em que o Estado é confundido com o todo da
realidade social. De acordo com semelhante ideologia o indivíduo
deve fundir-se nesse todo (o Estado), de que constitui apenas uma
parcela. A fórmula de Mussolini era esta: — «Tudo no Estado, nada
contra o Estado, nada fora do Estado» — fórmula que manteve
aproximação evidente com a receita portuguesa do Estado Novo:
— «Tudo pela Nação, nada contra a Nação».

A ideologia totalitária do fascismo teve (e tem) manifestações


específicas que já referimos no capítulo anterior. Por exemplo: — o
racismo e o clericalismo. Cabe agora referirmos também o
belicismo. A este propósito, todavia, importa fazer uma ressalva.

Sabe-se que em virtude do desenvolvimento económico e


político desigual dos países capitalistas, principalmente na época
do imperialismo, a luta pelos mercados e fontes de matérias-primas
leva os Estados a guerras desvastadoras, como o primeiro conflito
mundial de 1914-1919, que desembocou na revolução de Outubro
de 1917 e deu início à crise geral do sistema capitalista. E tendo-se
a consciência de que o fascismo é um sistema de violência
destinado a sustentar, no plano prático, a exploração imperialista e
monopolista, há quem declare, como princípio, que o mesmo vaie
por essência a guerra. Porém, apesar de ele agudizar as
contradições que resultam da desigualdade de desenvolvimento
nos vários Estados capitalistas, não é de modo algum exacta esta
tese. «O fascismo é a guerra» — diz-se. Mas por muito que isso
possa admirar as pessoas, repetiremos que tal afirmação é
verdadeiramente reaccionária. Diria antes, astuciosamente
reaccionária. E é facil explicar porquê.

Bela Kun, em «L’Internationale Communiste» de 15/8/1933, já


denunciava o que esta frase tem efectivamente de equívoco e
astucioso. E escrevia:

«A afirmação de que o fascismo, uma das formas políticas


de domínio da burguesia, é a guerra, não tem outro fim que
libertar de toda a responsabilidade um dos grupos de
potências imperialistas, as quais mascaram os seus
preceptivos de guerra com aparências democráticas e frases
pacifistas. O velho «slogan» do antimilitarismo marxista, o da
luta revolucionária contra a guerra imperialista, afirmava
coisa bem diferente. Afirmava: —«O capitalismo é a guerra».
E, com efeito, é esta a teoria certa, rigorosamente exacta.
Na verdade, o fascismo não é mais do que um dos
instrumentos de domínio de que se serve o capitalismo.
Este, sim, constitui a causa dos males sociais, entre eles o
da guerra».

Uma das tendências irrefreáveis e mais características do


fascismo reside ainda na mitificação do chefe. Esta, de um modo
geral, produz-se no seio das ideologias conservadoras. Os partidos
conservadores procuram, com efeito, basear-se numa construção
ideológica irracionalista de base: — afirmam que não são os povos
quem exige alguém para seu chefe, já que as massas se limitam a
receber o chefe que lhes é dado. O fascismo tende assim a
considerar a autoridade como exercida por um condutor de tipo
carismático, o qual se apresenta como libertador, salvador ou
redentor.

Carisma é palavra oriunda do grego e significa «graça» ou


«dom excepcional». E foi Max Weber quem formulou a noção de
chefe carismático: — o chefe convencido de ter uma missão
superior, exercendo a autoridade como por virtude de participar do
«sagrado». Neste sentido, foram chefes fascistas de índole
carismática, apresentando-se aos olhos populares como únicos e
insubstituíveis salvadores do povo, um Mussolini em Itália, um
Hitler na Alemanha, um Franco em Espanha (este continua a ser) e
um Salazar em Portugal.

Como última característica do fascismo aí se nos apresenta o


seu obstinado e obcessivo anticomunismo. Basicamente, actuando
por meio de toda a espécie de calúnias contra o regime socialista,
não hesitando perante a falsificação de dados políticos, adulterando
constantemente os objectivos dos partidos, mistificando os
princípios da doutrina marxista-leninista. No campo da economia o
anticomunismo nega, por seu turno, o carácter socialista do sistema
económico da U.R.S.S. e dos países de democracia popular, no
intuito de apresentá-lo como nada mais sendo que uma economia
capitalista do Estado; também no campo político o anticomunismo
procede a invenções caluniosas sobre um pretenso totalitarismo
soviético; no campo ideológico alega, de má fé, que o comunismo
standartiza o pensamento; e, finalmente, no campo sociológico
sustenta e pretexta que o comunismo desumaniza as relações
humanas, transformando o homem em simples instrumento de
linhas programáticas. Mas como expressão das mais evidentes de
uma acção fascista ou anti-democrática, o anticomunismo não
serve senão as intenções das forças reaccionárias, ajudando-as a
conservar o domínio do capital sobre os trabalhadores.

Ponhamos, entretanto, ponto final no desenho do fascismo.


Como resulta do tema deste capítulo, outra via tem ainda o
capitalismo procurado utilizar para fugir às consequências da sua
crise. Enquanto o fascismo se mostra como um processo prático da
violência, da ditadura do capital, a demotecnocracia significa agora
e antes o recurso à técnica, na esperança de que esta possa
resolver ou eliminar a referida crise.

À demotecnocracia já ironicamente lhe chamaram a


democracia sem povo. O capitalismo, hostil por natureza a uma
democratização do poder económico, acomoda-se à tecnocracia. E
esta, defendendo uma ideologia de apoliticismo, favorece
consideravelmente e de forma óbvia os fins e os interesses dos
capitalistas. Quanto menos politizadas estiverem as massas
trabalhadoras...

«Demotecnocracia» é então uma palavra que poderá significar


governo dos técnicos em favor do povo. Há que se falar no povo
para se manter o tom. Mas o progresso do tecnicismo das decisões
tem, como corolário, o perigo efectivo de que a tecnocracia se
mostre uma nova via, a par do fascismo, tendente à anulação da
democracia. Jean-Yves Calvez, a págs. 275 da sua «Introdução à
Vida Política», publicada entre nós por Morais Editores, leva-nos à
conclusão de que a demotecnocracia é o tecnicismo implantado no
universo político. Ela é bem o reaccionarismo. A conservação da
ditadura do capital. Sabe-se que os tecnocratas — adeptos de uma
corrente reaccionária em Sociologia (a tecnocracia) — professam a
supremacia da técnica sobre a Economia e sobre a Política. Para
impedirem a formação socialista da sociedade, eles intentam curar
o capitalismo das suas chagas contraditórias, colocando a direcção
de toda a vida económica e a administração do Estado nas mãos
de técnicos, isto é, dos chefes da indústria. A crítica demagógica e
hipócrita do capitalismo, realizada pelos tecnocratas, dissimula-lhes
o desejo de justificarem a subordinação directa do aparelho de
Estado aos monopólios industriais, cujos dirigentes ocupam as
posições-chave nos Estados imperialistas.

A demotecnocracia assenta na chamada tecnoestrutura


empresarial, uma nova situação da direcção da grande empresa
analisada pelo professor de Harvard, J.K. Galbraith, autor de «O
Novo Estado Industrial», «Capitalismo Americano» e «A Sociedade
da Abundância».

A tecnoestrutura é algo de mais complexo que o empresariato


individual e não se confunde com a chamada «administração da
empresa», a qual aliás pode ter a sua «assistência técnica» e que
reune periodicamente para deliberar e marcar a política dessa
mesma empresa. A tecnoestrutura transcende o conjunto dos
órgãos sociais da empresa comercial e industrial. Ela é uma
«máquina» de recepção e elaboração de dados, de estudos de
mercado, de recursos financeiros para negociações com o poder
político e com os sindicatos, enfim, de selecção dos campos da
investigação científica e tecnológica. Toda esta gama de elementos
é dinamizada por «comissões técnicas de peritos» às quais as
empresas directamente encomendam decisões relativas às várias
divisões de carácter sectorial e espacial. A tecnoestrutura, em
correspondência óbvia com a exploração económica imperialista,
actua até à escala internacional.

Tem a demotecnocracia as suas experiências principais no neo-


capitalismo norte-americano e nas sociais-democracias europeias.
Todavia, nunca é de mais repetir que ela — como forma ditatorial
dos técnicos — se revela de todo incompatível com a verdadeira
democracia, mercê da sua indeclinável propensão para o
absolutismo e para o autoritarismo. Com a democracia burguesa já
pouco tem a ver, quanto mais com as democracias populares!...

Não quero, porém, encerrar este capítulo sem fazer uma


chamada de atenção que me parece importantíssima.

Quem analisar a história do nosso meio século observa que, no


momento em que o sindicalismo operário conquistou posições
fortes, escapou-se-lhe das mãos o fruto da sua vitória. E porquê?
Muito simplesmente por um motivo que nos deve merecer muita
reflexão, designadamente no momento em que se procura um
Portugal novo, liberto da opressão do poder económico. A simples
consciencialização política por parte das classes trabalhadoras,
sendo já bastante, não é, no entanto, o suficiente. As decisões
económicas tornaram-se hoje altamente técnicas e científicas.
Sendo assim, para se poder assegurar um controle popular sobre
os tecnocratas, preciso é que as classes trabalhadoras se munam
de conhecimentos que lhes tornem inteligíveis os problemas das
modernas técnicas e das questões económicas. E que tenham a
vigilância necessária, constante, sobre aqueles técnicos. Bloch-
Lainé escreveria, a este propósito, que os trabalhadores têm de
entender e discutir as posições dos técnicos:

— «Se acaso os técnicos disserem ao povo «deixem-nos


decidir que vós não nos podeis compreender», o povo está
no direito de duvidar da sua aptidão para decidirem, isto na
medida em que eles, os técnicos, não são capazes de se
fazer compreender».

A demotecnocracia, a tal mirífica democracia sem povo —


resposta burguesa à crise do capitalismo após a primeira guerra
mundial, e agente do capital com os seus «milagres económicos»
de após a segunda — só representou, ao nível social, uma
progressiva desumanização. Uma democracia de técnicos verte-se
em aridez social de competências geométricas e laboratoriais. Daí
a revolta contra a era tecnológica avançada (ou pós-industrial,
como certos sociólogos lhe chamam). Com efeito, a
demotecnocracia tem sido, a nível puramente social e político,
contestada pelos jovens e pelos intelectuais não só da América,
mas também da Europa. Porém, no campo económico a verdadeira
contestação da demotecnocracia é operada através da planificação
socialista, de que vamos falar no próximo capítulo.
XII — O Socialismo e Algumas Experiências
Socialistas
O socialismo nasceu — ou, mais exactamente, as diversas
correntes socialistas nasceram — das diferentes formas de reagir
teórica e praticamente contra o liberalismo económico, segundo o
qual o livro jogo das actividades individuais assegura o progresso e
realiza o bem público. E nasceu também contra as duas fases do
capitalismo (concorrencial e imperialista). Neste sentido, antes de
mais, o socialismo representa um tomada de consciência histórica
relativamente ao futuro económico e social. Este não é, ao contrário
do que sustenta a ideologia burguesa-capitalista, resultado de
forças naturais. Pode e deve ser dominado pela razão humana.

A industrialização (a partir dos séculos XVIII e XIX)


desumanizou o mundo dos homens. A generalização das máquinas
e da energia eléctrica, tudo isto produziu e agravou alterações
profundas, com dramáticos reflexos nas camadas laboriosas. O
operário viu-se cada vez mais reduzido à condição de coisa, de
máquina que vende a força do seu trabalho (o único valor que
possui). A classe operária é um sector desprezível na orgânica
social. Com efeito, na sociedade capitalista, assim se poderão
definir os traços que separam e caracterizam a classe laborial: —
diferença de tratamento entre operários e empregados; visão
dicotómica do mundo, no qual se diferenciam aqueles que
trabalham, daqueles que só tiram benefícios do trabalho alheio;
subordinação de quem trabalha perante quem o não faz; por parte
do operário, sentimento de ser desprezado por carência de
instrução e cultura; necessidade de evasão que se procura na
promoção, onde o êxito se divisa na situação do trabalhador por
conta própria ou na do comerciante; uma atitude geral defensiva
que explode de tempos a tempos por meio de greves; e um
sentimento profundo de solidariedade perante as injustiças sociais.
Este quadro, de que alguém desenhou o esquema, encaminha-nos
para a compreensão do que seja, basicamente, o socialismo.

É certo que já fizemos, no capítulo X, um desfile de correntes


ou ideologias socialistas. Há, efectivamente, várias. Só não se
disse, então, o que é o socialismo em termos de definição geral.
Mas perguntando-se agora o que ele seja, poderemos dar três
respostas gerais, conforme, cada uma delas, com determinada
perspectiva: — o que representa o socialismo como corrente
política, o que significa como sistema económico, o que vale no
decurso histórico das sociedades humanas.

Como corrente política, «socialismo» (ou socialista) é


qualquer doutrina que sustente que o progresso da sociedade e o
advento de um mundo de justiça não pode concretizar-se, não
logrará realizar-se, senão através de uma acção colectiva e
voluntária dos homens. Como sistema económico constitui
«socialismo» (é socialista) toda e qualquer teoria que procure
organizar a estrutura económica da sociedade a partir da
propriedade social dos meios de produção. Como estádio histórico,
«socialismo» (ou socialista) é a primeira fase, a fase inferior da
formação económico-social comunista, aquela que directamente
substitui a do capitalismo. Talvez este último grau requeira uma
explicação mais ampla, ainda que simples.

Estamos recordados daquela série de ideologias socialistas


que foram brevemente referidas no capítulo X: — por exemplo, o
socialismo democrático, o socialismo fabiano, o socialismo ético, o
socialismo de direita. Para estes casos, realizada a apropriação dos
meios de produção a um determinado nível ou grau, está
implantado o socialismo, e o seu «melhoramento» só se irá
operando por reformas no campo económico e no plano moral.
Para estas ideologias o socialismo é, como fase histórica, a única
fase.

Ora isto não acontece com o chamado socialismo científico


ou marxismo-leninismo. Por outras palavras: — com o comunismo.
Para este, o socialismo é só, efectivamente, a há pouco referida
primeira fase, fase inferior da formação económico-social
comunista. O comunismo, esse sim, constituirá a segunda fase.
Socialismo e comunismo são, assim, dois estádios sociais de
desenvolvimento de um só modo de produção, já que a base
económica de ambos é a propriedade social dos meios de
produção. Mas isto não quer dizer que também entre ambos não se
verifiquem, no entanto, distinções substanciais, condicionadas pelo
grau diferente do desenvolvimento das forças produtivas e das
relações de produção.

Recordando mais uma vez o desfile de socialismos já feito


neste livro, e não esquecendo que antes de Marx já havia correntes
socialistas de natureza não científica (utópicas, portanto),
tradutotoras de necessidades e desejos de justiça e de
igualitarismo social, é-nos possível esquematizar o seguinte quadro
sinóptico:

1) socialismos pré-marxistas (ou utópicos) — os de Saint-Simon,


Fourier, Owen, Weitling;
2) socialismo marxista (ou científico)—com as suas duas fases de
desenvolvimento histórico, a socialista e a comunista;
3) socialismos reformistas — trabalhismo, socialismo ético,
socialismo de direita, revisionismo, socialismo democrático,
socialismo humanista, etc., etc....
Consideremos nós o «socialismo», ou como fase única, ou
como um tempo histórico que se desdobra em duas fases
(socialista e comunista), há uma verdade insofismável que importa
fixar: — a evolução económico-social tende para o socialismo. Isto,
aliás, conforme um processo que se pode sistematizar assim:

1. o desenvolvimento técnico permite a organização global da


economia;
2. esta organização global é mais eficaz do que os ajustamentos
aproximativos que resultam da concorrência;
3. e não pode ser realizada num sistema capitalista;
4. pois, na verdade, este torna-se menos eficaz para satisfazer o
conjunto das necessidades sociais e individuais;
5. pelo que tende, com efeito, para desaparecer em benefício de
um sistema de produção planificada, implicando o
desaparecimento do poder dos proprietários das empresas
quanto às decisões fundamentais (coordenação com as
necessidades de consumo, orientação da produção, nível dos
investimentos, prazos, etc.).
Estes pontos ganham de tal modo, dia a dia, a consciência
das pessoas do mundo ocidental que, no plano dos valores, a
propriedade privada dos meios de produção lhes surge, cada vez
mais, como um poder (hereditário) sobre os homens. Já não se
admite que o filho suceda ao pai no exército, na administração, na
política. Porquê, então, mantê-lo sucessor na economia?... E
Maurice Duverger, em «Introdução à Política», a págs. 310 da
tradução portuguesa, nota muito lucidamente que, de forma
profunda e generalizante, a propriedade privada dos meios de
produção, base do sistema capitalista, está a perder a sua
legitimidade aos olhos dos homens do Ocidente.

No capítulo anterior falámos do «Novo Estado Industrial», de


Galbraith, e de tecnoestrutura. Pessoas menos avisadas nestas
coisas, sabendo que a economia socialista se baseia na
planificação, poderiam ajuizar (erradamente) que planear e
estruturar tecnicamente são uma e a mesma coisa e que, neste
sentido, razão teriam aqueles que falam na convergência do
capitalismo e do socialismo — ou outros tais que, insidiosamente,
sustentam a analogia dos sistema económicos dos Estados Unidos
da América do Norte e da União Soviética. Mas tentemos colocar o
problema.

É óbvio que a tecnoestrutura não é exclusiva do «novo


estado industrial» descrito por Galbraith. Existe, desde certo ponto
de vista, uma semelhança quanto ao funcionamento e à adopção
de decisões, dentro da grande empresa industrial americana e das
empresas socialistas. Em ambos os sítios poderá dizer-se que
apareceu, nos últimos anos, essa tecnoestrutura. Porém, a
diferenciação de raiz reside no facto de, no capitalismo, a
propriedade se centrar nos accionistas, ao passo que no socialismo
é detida pelo sector público. E resulta, assim, que as possibilidades
das respectivas tecnoestruturas são totalmente diferentes em
ambos os sistemas: — nos Estados Unidos estão ligadas ao
conceito de propriedade privada, a uma organização social
classista, ao espírito de lucro, aos grupos de pressão política com
determinados interesses; nos países socialistas, o núcleo central
colectivista das grandes decisões confere ao sistema ura carácter
social que permite a planificação global.

A planificação global não é, com efeito, possível nos quadros


do capitalismo. Cada empresa capitalista pode estabelecer planos
por conta própria, assentes em análises e cálculos respeitantes ao
seu ramo produtivo. Todavia, tais planos são necessariamente
errados pois não podem ter em conta factores gerais do
comportamento dos consumidores, a evolução dos custos das
matérias-primas, a mão de obra, etc., etc.. Poderá a planificação
atingir, maximamente, no sistema capitalista, o nível de uma
categoria de produção, isto pelo desenvolvimento de acordos e de
«trusts». Porém, não logrará nunca uma planificação considerando
a sociedade inteira. Só o Estado tem, na verdade, possibilidade de
ajustar as técnicas de cálculo e de previsão a toda a colectividade
social e, assim, nelas basear um um plano conjuntural.

Falaremos agora, um pouco, das experiências socialistas a


nível dos países onde tomaram mais vulto — U.R.S.S. e China
Popular. Isto não é esquecer nem a Jugoslávia, nem Cuba, nem o
Chile, como nenhuma das democracias populares da Europa, mas
a análise dos seus casos específicos seria incomportável no
espaço deste capítulo.

A U.R.S.S, por exemplo, oferece-nos um vasto campo de


observação. Ela foi a primeira nação a encarar uma sociedade
socialista, como fase preliminar do comunismo. E até muito
recentemente polarizou de modo incontestável, com o seu modelo
estrutural e o seu estilo político, o movimento comunista mundial.
Naturalmente, nesta rota a União Soviética produziu um certo tipo
de realidades, decerto com imperfeições, mas também com
grandes êxitos.

É compreensível que a experiência soviética (com a sua


condição principal, de superiorizar a produtividade dos países
capitalistas) continue a constituir modelo inspirador da orientação
de muitos países. No entanto, é necessário ter sempre presente
que tal experiência representa o produto específico de
determinadas condições históricas e que o sistema da U.R.S.S. se
desenvolve e progride em atenção às suas condições concretas de
cada momento. Isto quer dizer, portanto, que o modelo que a
U.R.S.S. propõe pode sugerir úteis reflexões relativamente aos
modos e aos processos de funcionamento do socialismo num país
industrializado, mas não logrará, evidentemente, ter um sentido
universal. Pretender tal sentido seria infringir um princípio
fundamental do marxismo-leninismo.

O sistema constitucional soviético caracteriza-se pela


rejeição global do núcleo de controvérsias e polémicas que estão
na base dos debates da política burguesa. As questões ditas
essenciais para o jurista do Ocidente, desenham-se aos olhos dos
soviéticos como falsos problemas, os quais ocultam aquela
realidade que é determinante de uma solução verdadeiramente
científica: — a existência ou a ausência de conflitos de classes
numa sociedade considerada. Enquanto a democracia burguesa
nega a sociedade unânime, os soviéticos respondem que isso é
ignorar (ou fingir ignorar) a verdadeira natureza do poder político.
Este, apesar de diferenciação dos seus órgãos, conserva uma
unidade profunda, e daí resulta que, para a teoria jurídica soviética,
aquela que respeita a um Estado sem classes, a oposição entre o
poder legislativo e o poder executivo, entre o parlamento e o
governo, não tem sentido nem lugar. Uma contradição de tal tipo só
num Estado capitalista é concebível. Aí é que as instituições
reflectem as contradições antagónicas que opõem os explorados à
classe dominante ou dirigente.

No que concerne aos direitos do homem, o pensamento


ocidental considera-os direitos naturais — e, por isso — mesmo,
direitos subtraídos à acção do Estado, tal como se afirmava na
Declaração de 1789. Porém, baseada como está numa análise
marxista do Direito, desde logo a concepção soviética se afasta de
todo o idealismo. Ela assenta directamente sobre o facto de que os
direitos e as liberdade fundamentais se ligam à base económica em
que estão integrados. Não há lugar, na U.R.S.S., para uma
concepção abstractamente universalizada da liberdade. Há, sim,
situações particulares ou concretas. E a questão posta pelos
juristas soviéticos é a seguinte: — que importam os direitos
individuais numa sociedade como a ocidental burguesa, que não
logra garantir a todos a fruição efectiva, economicamente
igualitária, desses mesmos direitos?... Então compreende-se o
motivo pelo qual a Constituição soviética abre com a estatuição da
orgânica económica e social, não com o mero enunciado, abstracto
e idealista, dos chamados direitos individuais.

Mas a experiência socialista soviética é, como marxista, de


ordem progressiva, dialéctica. A revolução não constitui um vento
desvastador que só deixa o deserto à sua passagem. «O Estado e
a Revolução», de Lenine, inscreve esta regra fundamental :

— «Em regime comunista subsistem durante determinado


tempo, não apenas o direito burguês, mas também o Estado
burguês sem burguesia».

É isto o que a generalidade dos esquerdistas,


«revolucionários» radicais do palavreado oco, esquecem ou
ignoram.

Entretanto, a ditadura do proletariado é provisoriamente


necessária para consolidar o poder do povo. Lenine demonstrava
que este dirigismo da classe operária constituía, bem menos do
que à primeira vista poderia parecer, a ideia da verdadeira
democracia:

— «No período de transição do capitalismo para o


comunismo, a repressão é ainda necessária, mas ela é já
exercida contra uma minoria de exploradores, por uma
maioria de explorados».

E ainda no que respeita à organização política do Estado


soviético, cumpre demarcar que nele o poder se organiza em
esquema de pirâmide. Isto é: — por delegações sucessivas até à
base, constituída esta pelos «sovietes».
Por fim, no que respeita à economia soviética sabemos que
ela se determina conforma um planeamento periódico. À U.R.S.S.
já teve, no decurso da sua existência, vários «Planos
Quinquenais». Mas verifica-se hoje uma aberta compreensão e um
lúcido acordo sobre os malefícios de uma planificação
excessivamente rígida e centralizada. Os planos a longo prazo são
modificados ou corrigidos, quando imperioso, substituindo-se assim
a primitiva estrutura de empirismo conjuntural, pela verdadeira
orientação concreta — que essa, sim, é eminentemente marxista.

Passamos, agora, à experiência socialista chinesa.

A U.R.S.S., vimos há pouco, sustenta que o seu modelo


revolucionário não deve ser copiado mecanicamente pelos outros
países socialistas — mas esta advertência não pode conduzir ao
ponto de se admitir qualquer degeneração ideológica. Esta
significaria, muito simplesmente, um rompimento com a ortodoxia.
E é de um desvio assim que se acusa a China Popular, a qual, por
seu lado, também põe em causa a interpretação e a aplicação
soviética do marxismo-leninismo. A verdade é que existe, sem
dúvida, um modelo chinês para a construção do socialismo. Ele
apresenta caracteres muito particulares e específicos, podendo
constituir um centro atractivo, sedutor para países em vias de
desenvolvimento económico.

A primeira característica da experiência chinesa reside no


facto de a sua revolução não ter sido feita a partir do proletariado
urbano, circunstância verdadeiramente específica e que, desde
logo, a cerceia e impede como modelo e exemplo para a
generalidade dos países europeus. Tendo, com efeito, a base
operária do partido sido eliminada em 1927, decidiu Mao-Tsé-Tung
fazer das massas rurais o motor revolucionário — facto, aliás,
também ligado de um modo estritamente específico à luta das
populações camponesas contra o invasor imperialista japonês, na
linha da resistência a outros imperialismos anteriores. Assim, dos
campos se partiu para a conquista das cidades. E esta prática
revolucionária fez desenhar a chamada «táctica do cerco», a qual,
aliás, viria mesmo a ser elevada à categoria de estratégia mundial.

Dentro desta linha de liderança camponesa, o Partido


Comunista Chinês decidiu, no momento em que ia ser posto em
prática o 2.° Plano Quinquenal, que o esforço dianteiro e principal
deveria partir dos campos, isto é, das «comunas populares». E foi a
base rural do comunismo chinês, ao nível das referidas comunas,
que explicou o «grande salto em frente» de 1958, fenómeno
cultural e político que constitui, por excelência, o contributo original
do sistema socialista chinês para a diversidade histórica das suas
soluções.

Em 3/9/1965, Lin-Piao — então ainda não acusado de traidor


ao sistema — formulava a teoria num discurso conhecido:

— «Só o campo é a base revolucionária a partir da qual os


revolucionários podem dirigir os seus passos para a vitória
final. Assim, a teoria do Camarada Mao-Tsé-Tung, sobre o
estabelecimento de bases revolucionárias nas regiões rurais
e o cerco das cidades pelos campos, chama cada vez mais
a atenção dos povos destes continentes. Se tomarmos o
mundo no seu todo, a América do Norte e a Europa
Ocidental podem ser tidas por cidades, e a Ásia, a África e a
América Latina seriam o campo (...) A revolução mundial
conhece hoje uma situação que vê as cidades cercadas
pelos campos. Finalmente, é da luta revolucionária dos
povos da Ásia, da África e da América Latina (...) que
depende a causa revolucionária mundial».

Salvo o devido respeito por esta tese, a sua tentativa de


generalização abstractizante nada tem de marxista-leninista. Mas
noutro aspecto ainda se revela a mesma carência. A posição
chinesa visou acelerar, no tempo mais curto, a passagem ao
comunismo. Nota Jean-Pierre Lassale, em «Introdução à Política»,
a págs. 153 da edição portuguesa, que aqui se revela a natureza
idealista da experiência levada a cabo pela China Popular. A ideia
de base do sistema é, no fundo, esta: — a de que o «objectivo»
pode nascer do «subjectivo»; a de que é possível inculcar no
indivíduo uma ideologia que radicalmente o transforme, sem ter em
conta o grau da evolução económica da respectiva sociedade. E
neste aspecto idealista, irrecuperavelmente idealista, se traduz
aquilo que significa «a revolução cultural». Basta invocar o facto de
a Carta da Revolução Cultural, que o Partido Comunista chinês
adoptou em 8/8/1966, ter este nítido começo:

— «A grande revolução cultural proletária, uma revolução


que toca o homem naquilo que ele tem de mais profundo...»

Mas é ainda mais claro e categórico de idealismo o n.° 14


desta mesma Carta:

— «A grande revolução cultural tem por objectivo o


revolucionamento do pensamento do homem».

Entretanto, a págs. 154 da obra há pouco citada, diz Lassale:


— «Notemos, aliás, que se trata ainda de uma acção em que
a classe trabalhadora desempenha papel ínfimo, e que
chega em parte a ser dirigido contra ela: — é à juventude, à
das escolas e também à dos campos, que cabe o papel de
inculcar o espírito proletário na população urbana».

É fácil de compreender o motivo por que a teoria maoísta —


de que o proletariado rural cercará as cidades, partindo as bases
revolucionárias da província — põe cada vez mais ênfase nesta
tónica. Parece que efectivamente à China Popular só lhe resta tal
ênfase. As estreitas relações existentes entre a U.R.S.S. e ela,
cimentadas em 1950 pelo Tratado Sino-Soviético de Amizade,
Aliança e Assistência Mútua, terminaram dez anos depois com a
retirada do auxílio económico soviético. Na verdade, o conflito
ideológico entre soviéticos e chineses é agravado com a ausência
de capital e de capacidade técnica indispensável para a China,
acelerar a revolução industrial e manter a organização e a
mecanização da agricultura.
XIII — Movimento Operário e Socialismo em
Portugal
Há quem enteada que a génese do socialismo em Portugal
quase foi só uma aspiração de minorias intelectuais (Joel Serrão,
rubrica «socialismo», do «Dicionário da História de Portugal»,
Iniciativas Editoriais). Salvo o devido respeito, parece-me que o
documentário da ideologia socialista não se situa entre nós a um
nível exclusivamente teórico.

A história do movimento operário em Portugal terá uma


primeira fase que vai de 1838 a 1871, caracterizada
dominantemente pelo associativismo mutualista, pelas medidas
contra o desemprego, protecção da saúde e da velhice, e ainda
pelos projectos de instrução popular e alfabetização. No plano das
classes sociais, porém, este movimento assentava numa ideia de
colaboração entre elas — isto é, entre o capital e o trabalho. Mas é
evidente que semelhante ilusão de uma harmonia possível só pode
encontrar explicação em face de ser então exíguo o
desenvolvimento das forças produtivas no Portugal dessa época: —
o capitalismo não existia de facto, ao tempo, com as suas
contradições; a classe operária era extremamente diminuta em
número e, mesmo assim, mais artesã do que fabril; e, por último, a
concentração industrial situava-se a nível de manifesta incipiência.

Depois dos esforços associativos de 1839, 1843 e 1845, os


primeiros meses de 1850 fizeram-se eco do 1848 de França. É
quando se inicia a publicação de «O Eco dos Operários», com o
engenheiro Sousa Brandão, o publicista Lopes de Mendonça e,
mais tarde, ainda Vieira da Silva como outro dos seus
responsáveis. Do artigo de apresentação, assinado por Lopes de
Mendonça, transcrevo uma passagem que, na época, teria avultado
de importância:

— «O que é o trabalho? É tudo. O que é ele hoje? Nada. O


que quer ele ser? Alguma coisa. De um lado uma classe
emancipada pela vitória, dotada de instrução, de talento, de
capitais; de outro lado massas inertes, privadas dos meios
intelectuais, desmoralizadas por uma longa tirania, tendo por
única aspiração as esperanças mal definidas duma
imortalidade envenenada pelos terrores do inferno, e tendo
por único recurso os seus braços desfalecidos pelas fadigas
e mal cicatrizados ainda das pesadas cadeias que haviam
rojado em séculos de opressão. Os resultados eram
decisivos, fáceis de prever. A classe armada de instrumentos
de trabalho enfeudou ao seu domínio, colectivamente, as
turbas laboriosas e pobres. Os progressos da indústria e o
crescimento da população fizeram descer o salário até o
nível das necessidades restritas e absolutas do homem. Ao
feudalismo político sucedeu o feudalismo monetário...»

Em Julho desse mesmo ano de 1850, organiza-se (em


Lisboa) a Associação dos Operários. Os seus fins relacionam-se
com o pensamento da época e com as necessidades mais
prementes. A Associação promove o espírito de solidariedade e o
progresso industrial, defende a instituição do crédito e a
cooperação e auxílio mútuo na doença e na velhice. E em 1 de
Setembro efectua-se a primeira reunião, presentes dezasseis
profissões, tendo' sido aprovado um documento que, sem dúvida,
traduz, na sua espinha dorsal, o tema federativo:
— «Todos os operários presentes fazem uma lista e na parte
superior se escreverá o nome do ofício que exercem, e em
seguida 3, 5 ou 7 indivíduos dos que se julgarem mais aptos
para serem os delegados das artes ou ofícios; estes
indivíduos, para a confecção dos estatutos, formam o grande
centro do trabalho; o principal fundamento desta Associação
é o relacionamento das classes; os delegados das classes
procederão imediatamente ao recenseamento dos indivíduos
do seu ofício, quer mestres, quer oficiais ou aprendizes».

Nas mesma reunião foi igualmente comunicado que um


grupo de intelectuais (professores, escritores e homens de ciência,
geração definida pelas coordenadas do republicanismo, do
socialismo inspirado em Blanc e Fourier, e do federalismo ibérico
de linha proudhoniana), de que faziam parte José Estevão,
Andrade Corvo, Latino Coelho, Sousa Brandão, Lopes de
Mendonça e outros, se oferecia para criar cursos gratuitos
destinados à classe operária. Manifestava-se o desejo de ser
concreto na situação concreta de Portugal. Henriques Nogueira,
pelo menos, cujo nome deve ser acrescentado aos anteriores,
escrevia em «Estudos Sobre a Reforma de Portugal», 1851, págs.
288, segundo uma afirmação curiosamente própria de um leninismo
do futuro, que

«melhor socialismo é o que mais se harmonizar com os


costumes e ideias do povo a que é aplicado».

Depois, outras organizações se instituíram, de certo modo já


com carácter de classe. Alfaiates, tipógrafos, tecelões, sapateiros e
muitos outros, organizam-se por profissões, predominando, porém,
em todas as suas associações o já referido objectivo ou desiderato
mutualista. E em 1852 é que surge alguma coisa de novo: — a
Associação do Trabalho, exclusiva dos operários produtores de
seda. Esta é a primeira associação de carácter não mutualista em
Portugal. Ela tem por fim «estabelecer o trabalho dos associados
do modo mais compatível com as forças do seu cofre, procurando
estabelecer uma fábrica destinada aos sócios». Eis aí o
cooperativismo a tomar os seus primeiros alentos.

Também em 1852 se organiza em Lisboa, para durar vinte


anos, o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes
Laboriosas. Mas agora é o Porto que desperta no horizonte do
movimento. Em 1853 alguns tipógrafos, logo auxiliados por
operários de outros ramos, iniciam a publicação de «A Voz do
Operário» e no seu primeiro número interrogam e explicam:

— «Não é tempo de nos emanciparmos?... Não será tempo,


finalmente, de conhecermos os nossos direitos e de
pugnarmos por eles em um órgão exclusivamente artístico
(operário) e dedicado às classes trabalhadoras? É tempo e
mais do que tempo».

Em breve organizar-se-iam, na base mutualista, várias outras


classes — ourives, sapateiros, tecelões, tipógrafos etc., e com este
movimento alentam-se as aspirações, expressas ainda sem firme
confiança, tentando sobreviver contra o tom social carregado de um
conservadorismo contrário a inovações. É que predomina na época
o paternalismo do industrial doméstico, relativo aos seus
servidores. E predomina também o internato de oficiais e
aprendizes. E o servilismo e a resignação das massas
trabalhadoras. Mas o movimento não pára.
Durante dez anos (de 1856 a 1876) publica-se em Lisboa o
periódico «A Federação», o qual defenderá com lucidez e rigor o
princípio federalista. Entretanto, arranca do Porto a iniciativa de se
organizar uma Confederação para se estabelecerem ligações entre
todas as associações do país. E em Lisboa promove-se uma
Federação local gerada a partir da Associação dos Artistas.

Em «A Federação» publicam-se, por essa época, mas por


iniciativas individuais, projectos e bases de estatutos, facto conjunto
que revela um espírito de autonomia e cooperação desorbitados já
dos moldes puramente mutualistas. As ideias dominantes dos seus
promotores, com Capital relevo para Sousa Brandão, intentam a
criação de um Banco de Crédito (cuja ideia provinha já da
Associação dos Operários, de 1850) a compra de matérias-primas,
a fabricação e venda de produtos, a instrução, o socorro no
trabalho, a elaboração de um código regulador das condições
laborais e dos salários. Tudo isto, enfim, significava uma prática de
algum modo revolucionária, contra os processos tradicionais,
corporativos, que se instituíam na cúpula da «Casa dos 24», extinta
após o advento do liberalismo.

Em 1871, conforme o incremento do capitalismo — cujo


processo se iniciara claramente depois da «Regeneração» de
Fontes Pereira de Melo e da «política de desenvolvimento dos
meios industriais» — o movimento operário português liberta-se da
ideia de colaboração de classes. Aflora, nítido, ao limiar da
consciência dos trabalhadores, que as suas reivindicações se
consumam praticamente pela luta. Eis o reflexo consciencial que
agora se faz eco da Comuna de Paris — dessa Comuna que Marx
e Engels definem como o primeiro exemplo de ditadura do
proletariado, como o esboço de uma primeira experiência
comunista no mundo. Este acontecimento reflecte-se no nosso país
com impacto considerável, designadamente ao nível dos
intelectuais progressistas de Lisboa, provocados já pela Questão
Coimbrã, pelo realismo naturalista francês, pelas ideias de
Proudhon. Mas o impacto não se verifica só a este nível. Alguns
sectores laboriais mostram-se politizados e conscientes:— por
exemplo, os tipógrafos e os manu- factores de tabaco. E o já
aludido Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes
Laboriosas publica um significativo manifesto onde reflecte o
acontecimento comunardo.

Ao mesmo tempo que assim desperta a consciência operária,


assusta-se a burguesia. Numa recente entrevista (publicada em «O
Expresso», de 7/1/1975) César de Oliveira regista neste sentido:

— «...basta ler «O Crime do Padre Amaro» para ver como a


burguesia portuguesa, concentrada à porta da Havaneza e
da Agência Havas, em Lisboa, se encontrava atónita e
assustada perante a conquista do poder em Paris pelo
proletariado, ouvindo-se em contraponto, de vez em quando,
segundo conta o Eça, um «viva o proletariado» no meio do
repúdio geral».

Ainda que se pretenda distanciar Antero de Quental do


ideário de 1850, a verdade é que as suas coordenadas ideológicas
são parelhas das de Lopes de Mendonça ou de Henriques
Nogueira: — republicanismo, socialismo, federalismo. E Antero é a
figura dianteira do reflexo cultural português, relativamente à
Comuna. As Conferências Democráticas do Casino Lisbonense têm
lugar quase simultaneamente à insurreição de Paris — e
constituem como que a primeira crítica sistemática do capitalismo
liberal do nosso país. No entanto, crítica realmente desfazada do
seu objecto. As Conferências — observa César de Oliveira —
criticam o liberalismo na base da sua destruição, quando este não
existia em Portugal como expressão de supremacia das relações
capitalistas industriais sobre todo o conjunto da população
laboriosa.

Seja como fôr, é de assinalar o afã revolucionário de Antero


de Quental, em 1871, enquanto escreve «O que é a Internacional»
(«Prosas», 1º volume, págs. 176). Aí ele responde que esta é

«a grande, a suprema obra do século XIX: emancipar o


trabalho, apagar por uma vez da face da terra a odiosa
divisão de classes, fundindo-se todas numa só de
trabalhadores livres e iguais, não ricos e pobres, senhores e
servos, governantes, e governados, capitalistas e operários,
mas todos homens, debaixo do mesmo céu, e em face do
mesmo trabalho justo e digno».

Palavras belas, sem dúvida bem intencionadas, mas produto


de uma teorização que, no momento, não correspondia às
condições concretas das nossas relações de produção. Só nos fins
desse século XIX é que virão a tomar vulto em Portugal, como
condições insuportavelmente opressivas, as estruturas de um
mercado interno, consequência do desenvolvimento da rede de
transportes e das restantes forças produtivas, perturbadoras do
atraso do movimento capitalista no nosso país.
Em 1872 é criada em Portugal uma secção da Associação
Internacional dos Trabalhadores. Do mesmo passo, um núcleo da
Aliança Democrática Socialista, de Bakunine. Ao mesmo tempo
inicia-se a publicação de «O Pensamento Social», veículo da
doutrina da Internacional e da publicação de o «Manifesto
Comunista», de Marx e Engels. E todos estes são factores práticos
e teóricos que levam o movimento operário português a abandonar
o mutualismo. Logo nesse mesmo ano de 1872 têm lugar as
primeiras greves com relevância. Verificam-se elas em Lisboa, na
metalurgia, em várias tipografias, nas manufacturas de tabaco.

Também ainda em 1872 é criado o organismo que ficou


conhecido como Fraternidade Operária. Ele já não constitui uma
federação de associações mutualistas. Representa, sim, um núcleo
de resistência, se não até de combate à exploração capitalista. E é
nesse mesmo ano que Paul Lafargue, genro de Karl Marx, vem a
Portural, procurando entre nós a obtenção de votos portugueses
para o apoio da facção marxista na Associação Internacional dos
Trabalhadores.

Volvidos trinta anos sobre a experiência socializante de


Lopes de Mendonça, Antero de Quental escreveu:

— «...independentemente das suas condições pessoais,


Lopes de Mendonça não podia ser mais do que uma voz
sem eco sério, um generoso diletante revolucionário, um
inofensivo precursor» («Prosas», 2.° volume, págs. 303).

Esta reflexão mostra o desfazamento em que viveram e


reincidiram os intelectuais socialistas portugueses, relativamente às
condições concretas do operariado do nosso país naquela época —
por exemplo, um Oliveira Martins. Este, que em 1872 publica a
«Teoria do Socialismo» e no ano seguinte «Portugal e o
Socialismo», que António Sérgio virá a prefaciar dizendo:

— «Pobre Martins, — grande português, grande vítima!


Nasceu numa época que era ainda imatura para que
pudesse representar o seu papel magnânimo de curador de
chagas sociais do seu povo...»

Mas em Setembro daquele mesmo ano dá-se um facto que


vai promover a integração dos trabalhadores portugueses no
movimento internacional. O Congresso da Internacional, realizado
em Haia, ao mesmo tempo que expulsa Bakunine da Associação,
propõe, por intermédio de Marx e de Engels, aliás com o apoio dos
votos dos internacionalistas portugueses, a criação de partidos
socialistas europeus.

O Partido Socialista (que nada tem a ver com o actual) funda-


se no nosso país em 10/1/1875, mercê da agora referida conjuntura
internacional. Esta traduz o princípio do internacionalismo
proletário, ideologia da solidariedade internacional dos operários e
trabalhadores de todos os países, constituindo um dos princípios
ideológicos da classe trabalhadora, aliás estabelecido por Marx e
Engels no «Manifesto Comunista», por meio da célebre
proclamação: — «Proletários de todo o mundo: uni-vos!» Mas
traduz, também, o próprio desenvolvimento da classe operária em
Portugal. Agora já não respeita a qualquer desfazamento de todo
idealista o vaticínio de Antero quanto ao futuro, escrito no mesmo
ensaio há pouco citado:
— «A revolução socialista, que se aproxima, não será uma
poética mascarada republicana, como a revolução de 1848,
mas uma séria tragédia histórica. As classes não se
convertem: podem morrer, mas morrem impenitentes. Tal é a
lei da História, que é uma dura e impassível lei natural, não
uma lei moral, sentimental».

Nada de ilusões, porém!... O operariado português não


estava penetrado fundamente de uma ideologia, muito menos do
socialismo científico, único que lhe marcará o seu carácter de
eficaz vanguarda revolucionária. Sem uma doutrina que lhe
permitisse criar e impôr valores próprios, a breve trecho a classe
operária do nosso país projectou-se e desdobrou-se em ímpetos
libertários, desde a sua sedução pela propaganda republicana (que
ela julgou, ingenuamente, ser o caminho da liberdade), até às
posteriores atitudes anarquizantes, que lhe expressaram as ânsias
do desespero. Na rubrica já atrás citada, Joel Serrão surpreende
curiosamente uma clara homologia entre o trajecto pessoal e
ideológico de Antero de Quental e a curva histórica daquele velho
Partido Socialista. À energia do primeiro arranque seguiu-se,
depois, a estabilização e a recessão. O republicanismo vence o
socialismo. As energias das classes proletárias vão canalizar-se,
não para o seu combate contra os exploradores, mas ao lado da
burguesia que procura, com meros fins capitalistas, a extinção da
monarquia.

Assim, com a revolução de 1910 aí vemos toda a massa


operária a debandar para o campo republicano. A esta debandada
se refere, analiticamente, César Nogueira a págs. 181 do 2.°
volume da suas «Notas para a História do Socialismo em
Portugal», de 1966. Abertos os caminhos da república, debandados
os operários da ala socialista, pertenceria a palavra política ao
anarquismo e ao sindicalismo. Estes, na verdade, lograriam
poderosa audiência popular e operária, muito especialmente
porque se manifestavam de forma prática, visível e sensível,
através das greves.

A par desta acção prática, revolucionária, do anarquismo, foi-


se mantendo (como um espectro ou fantasma) a mentalidade
socialista, apanágio das minorias intelectuais. Tão inóquo e ineficaz
se mostrava o Partido Socialista que, não obstante ter contrariado o
golpe militar de 28 de Maio de 1926, a verdade é que o regime do
Estado Novo intencionou manter a sua improcedente existência.
Transcrevo da referida entrevista dada por César de Oliveira, ao
«Expresso», esta síntese que me parece muito adequada à
realidade:

— «A razão por que o regime saído do 28 de Maio não


destrói de imediato também o Partido Socialista, quer-me
parecer que é óbvia: é porque o salazarismo sempre terá
pensado, nos anos da sua consolidação, em servir-se
eventualmente do Partido Socialista como ponte ideológica
de ligação à classe operária, pois sabia-o reformista, fraco e
sem implantação (...) E, até 1933, é esta a história do Partido
Socialista».

Isto nos dá uma ideia aproximada do carácter marginal da


aspiração socializante muito própria do decurso da nossa
experiência e da edificação da nossa sociedade burguesa
contemporânea. O socialismo português nada significou porque
esteve ausente dos quadros do socialismo científico marxista. Os
mestres de Antero, e de tantos outros, foram socialistas utópicos,
éticos etc., etc., O verdadeiro socialismo só entraria na liça política
com a fundação, em 1921, do Partido Comunista Português. Bento
Gonçalves, em «Palavras Necessárias — a vida proletária em
Portugal de 1872 a 1927» (Inova, 1974, pág. 29) faz este reparo:

«Na realidade, o nosso atraso industrial, a ignorância do


marxismo e o baixo nível de cultura geral, principalmente dos
operários e camponeses, tolhiam o passo ao proletariado
para mais largos objectivos políticos».

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Ebook convertido por: Fernando Araújo em janeiro/2015

Fonte do texto: Introdução à Política I

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