35458-Texto Do Trabalho-157107-1-10-20240411
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Luca Bussotti
Universidade Técnica de Moçambique
Avenida Albert Luthuli, Maputo, Moçambique
Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)
Centro de Estudos Internacionais
Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal
[email protected]
ORCID: 0000-0002-1720-3571
CRedit: conceptualização, curadoria dos dados,
análise formal, aquisição de financiamento, investigação,
metodologia, administração do projeto, supervisão,
validação, visualização, redação do rascunho original,
redação – revisão e edição
62 Moçambique: O papel das eleições na “transição inversa” (2009-2019)
1
Este artigo foi escrito antes das eleições autárquicas de 11 de outubro de 2023, que mudaram consideravelmente
parte do cenário político moçambicano.
Nota metodológica
Para alcançar o objetivo acima descrito, a opção metodológica foi analisar os
processos eleitorais ao longo dos últimos dez anos, ou seja, de 2009 até 2019,
considerando sobretudo as três eleições gerais (2009, 2014, 2019). Nestes 10 anos,
Moçambique efetuou a sua viragem de um país democraticamente “híbrido”
para um autoritário (como visto na introdução), facto pelo qual este período de
tempo resulta de extremo interesse para um estudo como este, embasado na aná-
lise política.
Entretanto, como já clarificado, a mera análise dos processos eleitorais não
seria suficiente para apreciar o tipo de regressão democrática que Moçambique
sofreu ao longo dos anos aqui considerados. Outros elementos de cunho político
e institucional devem ser averiguados, e foi por isso que o modelo de análise pro-
posto por Ronceray e Byiers me pareceu funcional para satisfazer este objetivo da
pesquisa. Com efeito, estes dois autores referem que são três os elementos cen-
mitado resulte mais forte e prestigiado do que um poder absoluto e sem limites
(Holmes, 1995).
A edificação de um sistema institucional tão complexo leva tempo e precisa
que as classes dirigentes o absorvam, propondo-o à opinião pública. O pressu-
posto é que as elites políticas estejam dispostas a deixar o poder, se os eleitores
assim o decidirem. No caso africano nem sempre houve tempo e vontade, por
parte das elites, de construir um tal sistema; e a mesma impaciência foi a carac-
terística dos parceiros internacionais ocidentais que apostaram na assinatura de
acordos de paz simbólicos entre as fações em luta em vários países do continente
(Angola e Moçambique são exemplo disso), querendo reduzir a introdução do
liberalismo à sua parte mais visível, a realização de eleições pluralistas (Bussotti,
2021; Vidal & Pinto de Andrade, 2008).
Além disso, raras vezes foi considerado que o liberalismo contém em si ele-
mentos conflituantes com a cultura não apenas política, mas africana tout court.
Por exemplo, o liberalismo enaltece o papel do indivíduo, em detrimento do gru-
po, tanto que os direitos em todos os Estados ocidentais são individuais, assim
como as responsabilidades em caso de infração da lei. Na cultura africana é o
mais das vezes o oposto, o indivíduo é sim respeitado, mas dentro de uma visão
holística que destaca mais a importância do grupo, da comunidade, até da etnia
(Sindima, 1990).
No âmbito político, também foram relevantes as dificuldades encontradas pe-
los doadores internacionais em impor os princípios liberais e democráticos aos
países africanos que foram alvo das políticas de ajustamento estrutural.
Na maioria dos casos, o princípio de que a maioria tem a prerrogativa de go-
vernar transformou-se num direito absoluto e incontestável, ao passo que líderes
despóticos tendem a confundir prerrogativas do poder com arbitrariedade, e in-
teresse público com interesses privados ou de grupos de fiéis (Teson, 2007). Há
autores que assinalaram o facto de os países africanos terem falhado, não tanto
na implementação da democracia, mas na implementação de um tipo específi-
co de democracia, a liberal, que, portanto, deveria ser ultrapassada e repensada
(Oduor, 2022).
Seja como for, o que resulta evidente e que faz convergir a opinião de muitos
estudiosos é que a vaga de democratização da década de 1990 que tocou o conti-
nente africano demonstrou todos os seus limites.
A partir de tais dificuldades, a pergunta que Chabal se colocava no meio deste
processo de transição africana para a democracia (“will the multi-party elections
now taking place usher in recognisably more democratic political systems?”) aponta-
va justamente para formas minimais de democracia em África, concluindo que
“a political system in which the political opposition can form, organize, compete in free
and fair elections and take power if elected” já seria um resultado excelente, tendo
em consideração a história política da maioria dos países do continente (Chabal,
1996, p. 57).
As perguntas a que Chabal não conseguiu responder em 1996 podem ser sa-
tisfeitas hoje: nos países em África, assim como em quaisquer outros do mundo,
as eleições representam o epifenómeno de um processo de democratização mais
profundo e intenso, pelo que não é possível garantir o “mínimo”, representa-
do por processos eleitorais transparentes, sem que haja por detrás uma sólida
cultura política, instituições independentes e dialogantes, e sobretudo sem que
haja a vontade de os partidos historicamente hegemónicos aceitarem considerar
a possibilidade do seu afastamento do poder como algo normal, parte da regular
dinâmica política. Isto significa, a contrário, que, regra geral, os partidos hege-
mónicos vão antes fazer tudo para se manterem no poder, pelo que esta atitude
tem de estar inscrita, mesmo que de forma sub-reptícia, dentro das normas e dos
procedimentos permitidos pela lei.
Angola e Moçambique representam a encarnação de um modelo em que os
partidos hegemónicos aprovaram constituições democráticas e leis consequen-
tes, mas nunca considerando como possível a cedência do poder à oposição: nos
dois casos, as elites interpretaram a governação do país como um direito indis-
cutível, que se coloca além da vontade dos eleitores. Aliás, a fundamentação do
seu poder não assenta em processos eleitorais, mas sim numa narrativa derivante
das respetivas lutas de libertação, que o MPLA e a FRELIMO protagonizaram,
tornando-os “eternos”. Esta autoridade, suposta ou verdadeira pouco aqui inte-
ressa, funcionou durante o período do partido único; circunstância, porém, que
provocou duas guerras civis particularmente sangrentas e destruidoras das in-
fraestruturas fundamentais daqueles dois países.
Entretanto, uma vez estabelecidos regimes democráticos, a dificuldade con-
sistiu em manter o poder, mas passando pelo crivo das eleições, ou seja, por
uma forma diferente de legitimidade. Esta importante transformação nunca se
concretizou em pleno. No caso angolano, foi pouco disfarçada a ideia de que não
era o povo que dava a legitimidade às elites para governarem. O sistema eleitoral
que foi instaurado – depois do primeiro e único turno disputado em 1992, após
os Acordos de Bicesse – previa a eleição indireta do Presidente, carregando o
inteiro peso eleitoral nas listas dos partidos concorrentes (Bittencourt, 2016); mas
também se evitou qualquer forma de eleição local, de maneira que, até hoje, as
únicas eleições a que os cidadãos angolanos têm direito são as gerais, com listas
partidárias bloqueadas.
Com a nova governação o país entrava num clima de normalização com acen-
tuado autoritarismo, que irá culminar – paradoxalmente – com os acordos de paz
de 2019 entre o governo e a RENAMO, e com a aprovação, pelo parlamento, do
pacote legislativo eleitoral.
na Matola, assim como em Maputo, onde a contagem dos votos foi manchada
por gravíssimas irregularidades (CIP, 2018).
As eleições autárquicas foram uma chamada de atenção para a FRELIMO:
os resultados demonstraram que a oposição era forte, quer nas suas áreas tradi-
cionais, quer em outras, por exemplo nos grandes centros urbanos do sul, onde
historicamente a FRELIMO dominava do ponto de vista eleitoral. Assim, Nyusi
e o seu governo tiveram tempo para preparar as eleições gerais de 2019, oleando
uma máquina administrativa que por demasiado tempo estivera mergulhada na
gestão da crise e nas negociações com a RENAMO.
Foi montada uma verdadeira operação pelo partido-Estado, designada “Não
falha nada”.2 Nyusi conseguiu 73% dos votos, Momade quase 22% e Simango
4,3%. A FRELIMO ganhou em todos os círculos eleitorais do país e em todas
as províncias, deixando apenas migalhas para a oposição. Os mecanismos de
fraude generalizada, com o condimento de confrontos e ataques (incluindo o as-
sassinato de um representante da mesa eleitoral da sociedade civil na província
de Gaza, Anastácio Matavele, cujos assassinos foram identificados como sendo
seis polícias das forças especiais, já condenados), levaram a RENAMO e o MDM
a queixarem-se pela enésima vez.
Numa reunião dramática da CNE, o resultado foi aprovado com nove votos a
favor e oito contra, arriscando-se, pela primeira vez, uma repetição das eleições
por fraude eleitoral comprovada. Joseph Hanlon, o maior especialista internacio-
nal em processos eleitorais em Moçambique, disse à imprensa que as eleições de
2019 tinham de ser consideradas como as piores na história do país, tanto devido
à fraude maciça como ao facto de mais de 3.000 observadores não terem sido
acreditados, tornando impossível o trabalho paralelo de contagem de votos que
normalmente era feito (Issufo et al., 2019).
Desta vez, a delegação da UE em Moçambique também identificou numero-
sos casos de irregularidades, antes, durante e depois do processo eleitoral. Entre
eles, o preenchimento de urnas com votos pré-impressos, a votação múltipla por
diferentes pessoas, a não validação deliberada de pacotes de votos em detrimen-
to da oposição e a alteração dos resultados em várias urnas, acrescentando votos
extra (Lusa, 2019, 2019a).
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Os contornos desta operação, assim como a sua denominação, foram relatados ao autor deste artigo por um
membro da Força de Intervenção Rápida que foi envolvido neste processo de fraude sistemática das eleições de
2019. A ordem era que a FRELIMO não devia perder em nenhuma província, a fim de evitar a governação de
membros da RENAMO em territórios extensos como, justamente, os das províncias.
Conclusões
A longa transição inversa, como aqui foi chamada, de um incipiente modelo
democrático para um modelo autoritário no contexto moçambicano, completou-
-se com as eleições de 2019, antecedidas pela aprovação de um pacote eleitoral
que concentra cada vez mais o poder nas mãos dos partidos políticos, enfraque-
cendo as possibilidades de escolha dos eleitores. Os três momentos eleitorais
aqui considerados (2009, 2014, 2019) foram caracterizados, todos eles, por ele-
mentos peculiares, mas com uma intenção comum: ultrapassar os vestígios de
pluralismo efetivo que se tinham concretizado na vida pública moçambicana nos
primeiros anos de vigência do sistema democrático, para voltar a uma configura-
ção política semelhante à do partido único.
Ao longo da transição, os riscos que a FRELIMO teve de enfrentar foram di-
versificados: ora a RENAMO, com mais frequência, ora o MDM, ora uma reno-
vada situação de guerra, ora a necessidade de negociar um novo acordo de paz.
Entretanto, a FRELIMO tem-se mostrado sempre capaz de enfrentar estes riscos
com flexibilidade, embora com formatos diferentes e com maior ou menor eficá-
cia. Em 2014, por exemplo, as condições objetivas fizeram com que a gestão pré-
via do pleito eleitoral tivesse sido descurada, coisa que obrigou o partido-Estado
a concentrar mais a sua atenção na gestão a posteriori.
De momento, o auge de um processo que procurou estabelecer um novo mo-
nopólio, de facto, do cenário político local por parte da FRELIMO, deu-se com
as normativas aprovadas em 2018, com o desaparecimento da ala militar da
RENAMO e com as eleições gerais de 2019. O controlo total do Estado por parte
do Presidente Nyusi, do partido FRELIMO e dos seus representantes de etnia
Makonde, que acabaram ocupando os lugares-chave da administração moçambi-
cana, tais como o de diretor-geral da polícia, de chefe dos serviços de segurança,
do ministério da Defesa, e de altas patentes do exército, representou a premissa
para que o partido dominante continuasse a ganhar as eleições, com todos os
formalismos jurídicos do caso, sem uma verdadeira oposição.
Este estudo procurou demonstrar que uma hipótese minimalista de adoção
dos princípios típicos do liberalismo, embasada na simples aceitação dos meca-
nismos eleitorais pluralistas, resulta impossível num contexto como o moçambi-
cano.
A hipótese esconde por detrás o que a elite política, que desde a indepen-
dência dominou Moçambique, sempre quis evitar: a cedência do poder a uma
formação alternativa, da oposição. Até hoje, a FRELIMO não tem mostrado tal
disponibilidade, passando por cima da vontade dos eleitores, quando estes deci-
dem votar maioritariamente a favor de um partido da oposição.
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