Cidadania, Democracia e Participação Política
Cidadania, Democracia e Participação Política
Cidadania, Democracia e Participação Política
Colaboração
Reitora
Carmen Lúcia de Lima Helfer
Vice-Reitor
Rafael Frederico Henn
Pró-Reitor de Graduação
Elenor José Schneider
Pró-Reitora de Pesquisa
e Pós-Graduação
Andréia Rosane de Moura Valim
Pró-Reitor de Administração
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Pró-Reitor de Planejamento
e Desenvolvimento Institucional
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Pró-Reitor de Extensão
e Relações Comunitárias
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EDITORA DA UNISC
Editora
Helga Haas
COMISSÃO EDITORIAL
Helga Haas - Presidente
Andréia Rosane de Moura Valim
Felipe Gustsack
Hugo Thamir Rodrigues
Marcus Vinicius Castro Witczak
Olgário Paulo Vogt
Rafael Eisinger Guimarães
Vanderlei Becker Ribeiro
Dados eletrônicos
Texto eletrônico
Modo de acesso: www.unisc.br/edunisc
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7578-479-2
PRÓLOGO
Jorge F. MALEM SEÑA................................................................................7
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.................................................................10
1 A CIDADANIA..........................................................................................14
1.1 Conceitos e definições..................................................................................14
1.2 Origem e evolução histórica..........................................................................21
1.2.1 A cidadania na Grécia...................................................................................27
1.2.2 A cidadania em Roma...................................................................................30
1.2.3 A cidadania na Idade Média..........................................................................34
1.2.4 A cidadania na Modernidade........................................................................35
1.2.4.1 O cidadão liberal...........................................................................................36
1.2.4.2 O cidadão social............................................................................................40
1.2.4.3 O cidadão republicano..................................................................................42
1.2.4.4 O cidadão comunitário..................................................................................45
1.2.4.5 O cidadão diferenciado.................................................................................48
1.2.4.6 O cidadão pós-nacional................................................................................48
1.2.4.7 O cidadão cosmopolita.................................................................................49
1.2.4.8 O cidadão transnacional...............................................................................50
1.2.4.9 O cidadão transcultural.................................................................................50
1.2.4.10 O cidadão multicultural.................................................................................51
1.3 A necessária revisão do conceito de cidadania...........................................62
1.4 A experiência europeia.................................................................................66
1.5 Uma nova cidadania.....................................................................................70
1.5.1 A crise migratória na Europa.........................................................................73
1.5.1.1 Precisões conceituais sobre imigrantes, refugiados e solicitantes de asilo 74
1.5.1.2 Onde ficaram os valores fundacionais da União Europeia...........................76
1.5.2. Da cidadania ambiental à cidadania ecológica............................................80
2 DEMOCRACIA.........................................................................................84
2.1 Conceitos e definições..................................................................................84
2.2 Surgimento e evolução. A democracia nas primeiras organizações
políticas.........................................................................................................85
2.3 Principais formas de democracia: representativa, direta e deliberativa.........90
2.3.1 Democracia representativa.............................................................................91
2.3.1.1 Algumas reflexões sobre a legitimidade democrática ou a autoridade
das decisões democráticas.............................................................................92
2.3.2 O atual debate sobre a democracia direta: a teledemocracia e o
cibercidadão......................................................................................................94
2.3.2.1 A versão ‘frágil’ da teledemocracia: pode reforçar a democracia
parlamentar?...................................................................................................95
2.3.2.2 A versão ‘forte’ da teledemocracia: as novas tecnologias e o atual
debate sobre a democracia direta..................................................................96
2.3.3 Democracia deliberativa................................................................................102
2.3.3.1 As instituições da democracia deliberativa...................................................108
2.4 Democracia e demos - As voltas com a representação...............................110
2.5 Cidadania ativa, virtude cívica e patologias corruptivas...............................115
2.6 A crise da democracia...................................................................................127
2.7 A crise da democracia representativa...........................................................129
2.8 Desafios para uma democracia no século XXI.............................................136
2.8.1 Desobediência ao direito..............................................................................136
2.8.2 O “discurso do ódio......................................................................................142
2.8.3 Democracia global........................................................................................144
2.8.4 Os nacionalismos..........................................................................................146
3 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA.....................................................................148
3.1 O que é participação política........................................................................148
3.1.1 As modalidades de participação política......................................................152
3.1.1.1 A iniciativa legislativa popular como um instrumento do direito de
participação política......................................................................................156
3.2 O fundamento da participação política.........................................................158
3.3 A legitimidade da participação política.........................................................161
3.4 A participação política como um direito fundamental..................................165
3.5 A participação política coletiva: movimentos sociais...................................168
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................181
referências..........................................................................................185
PRÓLOGO
1 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2008. Livro III. Capítulo I. p. 113-114.
2 LOUREIRO, Patrícia. A cidadania da União Europeia: mito ou realidade? In: SOUSA, Mônica Teresa Costa;
LOUREIRO, Patrícia (Org.). Cidadania. Novos temas, velhos desafios. Ijuí: Unijuí, 2009. p. 175.
a cidadania
15
3 Marshall, embora afirme que sua análise se funda mais na história que na lógica, divide o conceito de cidadania
em três partes: a) a conquista dos direitos civis, compostos pelos direitos necessários à liberdade individual
– liberdade de ir e vir, de expressão, de manifestação, de pensamento, de crença religiosa, de propriedade;
b) dos direitos políticos, direito a participar no pleno exercício do poder político como um membro de um
organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo; e, c) dos
direitos sociais, que se referem desde a um direito a um mínimo existencial de bem estar econômico, a
previdência, ao direito de participar, inteiramente na herança social e levar a vida de um ser civilizado de
acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. Afirma ainda que estes três elementos, que formam
a cidadania, surgiram na Inglaterra no transcurso de três séculos: os civis no séc. XVIII, os políticos no séc.
XIX e os sociais no séc. XX. Por fim assevera que há uma tendência implícita a conceber tais direitos como
um modelo de cidadania. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:
Zahar, 1967. p. 63-64.
4 No entanto lembra Cortina que a crítica que se faz a Marshall é ter o mesmo concebido um cidadão passivo,
um simples “direito a ter direitos”, ao invés de valorar uma cidadania ativa, capaz de assumir responsabilidades
para com sua comunidade. CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía. 3. ed.
Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 85.
5 PINSKY, Jaime. In: Introdução. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). História da cidadania. 2. ed.
São Paulo: Contexto, 2003. p. 9.
6 RIVAS, Edelberto Torres. Poblaciones indígenas y ciudadanía: elementos para a formulação de políticas
sociales em América Latina. In: BALTODANO, Andrés Pérez (Coord). Globalización, ciudadanía y política
social en América Latina: tensiones e contradicciones. Caracas: Nueva Sociedad, 2007. p. 173.
7 PECES-BARBA, Gregório Martínez. Educación para la ciudadanía y Derechos Humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 342.
8 MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998. p. 9.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
16 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
que define cidadania como el estatus que proporciona respecto al Estado y a otros
ciudadanos, unos derechos supeditados a unos deberes que se ejercitan, unos y
otros, en relación con los demás, para promover mejoras contextuales a su alrededor.9
Como se observa esses conceitos, como tantos outros comumente
apresentados, além de serem tautológicos, isto é, não definirem o objeto, nos
conduzem ao erro de imaginar a cidadania como algo estático e simplesmente
discorrer sobre direitos. Poderíamos, em outras palavras, simplesmente dizer que
cidadão é aquele que têm direitos. E não estaríamos muito errados, ao menos no
moderno e ideologizado imaginário popular. Em geral as pessoas desconsideram
que intrínseco no termo estão, ou deveriam estar, os deveres, em especial os de
participação nos rumos de sua comunidade.
Para Pérez-Luño a chave histórica e sistemática para uma definição explicativa
da cidadania está na Enciclopedia, editada na França, no século XVIII (1751 – 1772),
por Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alambert. Efetivamente, a Encyclopédie, ou
dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers representou um auxílio
inestimável do iluminismo e serviu de estímulo decisivo para a formação do Estado
Liberal de Direito. Esta grande obra, que compreende 28 volumes, 71.818 artigos
e 2.885 ilustrações, recebeu contribuição das mais notáveis figuras do iluminismo
francês. Pensadores de toda ordem, artistas, técnicos dos mais variados, políticos,
filósofos como Voltaire, Rousseau, Holbach, Montesquieu e outros, liderados por
Diderot e D’Alembert, esforçaram-se para juntar num empreendimento editorial
e em linguagem acessível tudo o que a civilização havia produzido em termos de
conhecimento e cultura até aquele momento. Nela, citoyen (cidadão) é definido
como: “C’est celui qui est membre d’une société libre de plusieurs familles, qui partage
les droits.10
Partindo desta definição bem como das que se referem a vassal (súdito), Pérez-
Luño apresenta os três grandes principios da ideia de cidadania postulada pela
Encyclopédie enquanto texto paradigmático da modernidade iluminista:
9 RUBIO, C. Fernández. La educación para la ciudadanía europea. Propuesta educativa para su implementación
en el curriculum de Ciencias Sociales. In: VERA, M.; PÉREZ, D. (Coord.) Formación de la ciudadanía: las
tics y los nuevos problemas. Alicante: Associación Universitária de Profesores de Didáctica de las Ciencias
Sociales, 2004.
10 Aquele que é membro de uma sociedade livre, composta de muitas famílias e que compartilha os direitos.
a cidadania
17
11 Adverte Pérez-Luño que, segundo consta expressamente na enciclopédia nem todas as pessoas são
cidadãos, pois que as mulheres, as crianças, os servos, não possuem tal condição; participam da cidadania
através dos vínculos que os unem àqueles que ostentam tal condição. PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La
ciudadanía en las sociedades multiculturales. In: CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Ciudadanía y derecho en
la era de la globalización. Madrid: Dykinson, 2007. p. 264-265.
12 KANT, Immanuel. En torno al tópico. In: Teoría y praxis. Madrid: Tecnos, 1985. p. 15. Passagens análogas em:
A paz Perpétua. Porto Alegre: L & PM, 2008. p. 24-30, e em La metafísica de las costumbres, Madrid: Tecnos,
1989. p. 143. Citação também referida por CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la
ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 54; PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La ciudadanía en
las sociedades multiculturales. In: CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Ciudadanía y derecho en la era de la
globalización (Editor). Madrid: Dykinson, 2007. p. 265.
13 PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La ciudadanía en las sociedades multiculturales. Op. cit., p. 266.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
18 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
14 HEATER, Derek. Ciudadanía: Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 12-14.
15 FARIÑAS-DULCE, María José. Globalización, ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Dykinson, 2000. p. 37.
a cidadania
19
16 WARAT, Luis Alberto. La ciudadanía sin ciudadanos: tópicos para un ensayo interminable. In: Sequência:
estudos jurídicos e políticos, v. 14, n. 26, 1993. p. 1-17. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/
articulo?codigo=4818027>.
17 ZAPATA-BARRERO, Ricard. Multiculturalidad e inmigración. Madrid: Editorial Síntesis, 2008. p. 34.
18 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
20 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Parece-nos que razão assiste a Cortina quando assevera que qualquer conceito
pleno de cidadania, deve integrar um status legal (um conjunto de direitos), um
status moral (um conjunto de responsabilidades) e uma identidade, pela qual uma
pessoa sente-se integrada a uma sociedade.22 O que Cortina designa de identidade,
entendemos como um fator psicológico e, sem dúvida, o elemento mais importante
para uma definição de cidadania: sentir-se pertencente, fazer parte. Touraine atribui
tanta importância a esse fator psicológico que assevera não existir cidadania sem a
consciência de pertencer, seja a uma coletividade, seja uma nação, uma comunidade
ou uma região. De igual forma, sem esse direito a membership – expressão de Michael
Walzer – ou o direito de pertencer a uma comunidade não há democracia. Sentir-se
parte, não é per si democrático – não há democracia no fato de um soldado que tem
a consciência de pertencer a um exército ou um operário que pertence a determinada
indústria – mas sentir-se pertencente a uma comunidade é o que gera as demandas
democráticas.23
Nessa mesma linha segue Galván que, partindo do conceito sociopolítico de
Benedicto e Morán, de que cidadania é una forma colectiva de pertenencia activa a
la comunidade assevera que a cidadania está composta por uma série de elementos
interrelacionados, que definem sua dinâmica social em um grupo ou contexto social
pré-determinado, e destaca, então, três elementos que entende por básicos da
19 RESENDE, Ênio J. Cidadania: o remédio para doenças culturais brasileiras. São Paulo: Summus, 1992. p. 67.
20 COSTA, Pietro. Cittadinanza. Roma-Bari: Laterza & Figli, 2005. p. 35.
21 HEATER, Derek. Ciudadanía: Uma breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
22 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía. Op. cit., p. 151.
23 TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? París: Librairie Arthème Fayard, 1994. p. 145-146.
a cidadania
21
24 GALVÁN, Beatriz Souto. Educación y creencias. Nuevas y viejas querellas sobre cuestiones educativas.
Madrid: Dykinson, 2012. p. 65.
25 PECES-BARBA, Gregório Martínez. Educación para la ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 311.
26 GARCIA, S.; LUKES, S. Ciudadania: justicia social, identidad y participación. Madrid: Siglo XXI, 1999. p. 1.
27 BOLZMAN, Claudio. Políticas de inmigración, derechos humanos y ciudadanía a la hora de la globalización:
uma tipologia. In: DÍAZ, Emma Martín; SIERRA, Sebastián de la obra. Repensando la ciudadanía. Servilla:
Fundación El Monte, 1999. p. 207.
28 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 24.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
22 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
ou social e concluiu: “Los hombres, por su naturaleza, tienen que vivir en comunidad o
sociedad”.29 Efetivamente, ao julgar pelos achados paleontológicos pode-se afirmar
que os mais primitivos homens já compunham pequenos grupos sociais, comendo
frutos, sementes, raízes, insetos, pequenos vertebrados e, ocasionalmente, unindo
forças para abater predadores maiores; compartilhavam o mesmo espaço em grutas,
cavernas ou em esconderijos naturais. Embora ali não habitassem – a condição de
coletores/caçadores os impedia de fixarem-se – a estes centros o homem paleolítico
constantemente regressava e não apenas porque estes locais lhes trouxessem
vantagens naturais como segurança e esconderijo, mas movido por forças espirituais
e até sobrenaturais, porque era nesses locais onde também deixavam seus mortos,
os primeiros a possuírem um local permanente.30
Nesses antigos sítios paleolíticos é onde se encontram os primeiros indícios
de vida cívica, muito antes de poder sequer suspeitar-se de qualquer agrupamento
permanente. E esclarece Mumford:
29 FRANCISCO DE VITÓRIA. Los derechos humanos. Antologia. Salamanca: Editorial San Esteban, 2003. p. 245.
30 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. p. 13.
Entre 130.000 e 40.000 anos passados, os humanos da Europa e do oeste da Ásia são representados pelo
homem de Neanderthal, algumas vezes classificados como espécie diferente do homo sapiens: homo nean-
derthalensis. Foram eles os primeiros a deixar provas de que cuidavam seus doentes e que enterravam seus
mortos. Ver DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Os destinos das sociedades humanas. 2. ed. Rio de
Janeiro – São Paulo: Record, 2001. p. 38
31 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. p. 14.
a cidadania
23
32 Diversa é a conclusão de Harari. Não nega a importância da Revolução Agrícola para o desenvolvimento
das sociedades humanas. O aumento da oferta de alimentos é diretamente proporcional ao aumento da
população. Lembra, contudo, o alto preço pago por isso. Alimentos extras não se traduziram em uma dieta
melhor ou em mais lazer. Constituíram sim, explosões populacionais e elites favorecidas. Os caçadores-
coletores passavam todo o tempo em atividades variadas e estimulantes, e estavam menos expostos à fome
e doenças. O corpo do homo sapiens evoluiu para subir em árvores e correr atrás de animais (ou fugir
deles) e não para carregar pedras limpando terreno, puxar arado ou carregar água. A coluna, os joelhos,
o pescoço e os arcos plantares pagaram o preço. Estudos de esqueletos antigos indicam que a transição
para a agricultura causou uma série de males como deslocamento de disco, artrite e hérnias. Em troca não
tivemos uma dieta melhor. O homo, assim como os demais primatas, evoluiu com uma grande variedade
de alimentos. Uma dieta baseada em poucos cereais é pobre em vitaminas, difícil de digerir e péssima para
dentes e gengiva. Ademais, ao ficar na dependência exclusiva de uma espécie, uma prolongada seca, chuvas
em excesso, ou a invasão de pragas, condenava milhares a morte por inanição. Ao abandonar a vida nômade
as mulheres puderam ter um filho por ano. Os bebês eram desmamados mais precocemente – podiam
ser alimentados com mingaus e papinhas. Menos leite materno e a necessidade de dividir o mingau com
mais irmãos fez a mortalidade infantil disparar. Ademais, os caçadores-coletores viviam coletivamente em
territórios com centenas de quilômetros. “Lar” era o território inteiro, com seus rios, colinas e florestas. Com a
Revolução agrícola e o sedentarismo a vida para ser sua pequena roça ou pomar e a vida doméstica centrada
em uma estrutura de madeira ou pedra de poucos metros, denominada casa. O impacto psicológico disso
será permanente e transformará o homo em um ser individualista e egoísta.
O maior salto da humanidade, assegura, ocorreu entre 70 mil e 30 mil anos atrás. Mutações genéticas aciden-
tais permitiram novas formas de pensar e se comunicar: a Revolução Cognitiva. Todos os animais possuem
uma forma de linguagem, mas a humana é incrivelmente versátil. Podemos conectar uma série ilimitada de
sons e sinais para produzir um número infinito de frases. É graças à linguagem, que permite transmitir in-
formações precisas, que os sapiens puderam desenvolver tipos de cooperação mais sólidas e sofisticadas;
agora os membros do bando podem pensar juntos e discutir sobre estratégias de caça e o caminho a seguir.
Mas o mais importante, segundo Harari, a linguagem permite criar mitos, realidades inexistentes, fantasias.
E a cooperação humana é baseada em mitos criados. O caminho está aberto para o surgimento de lendas e
deuses, depois para igrejas, reis e Estados. Em resumo, com a Revolução Cognitiva surgiu a capacidade de
transmitir maiores quantidades de informações sobre o mundo à volta com o que levou a realização de ações
mais complexas, como evitar os leões e caçar bisões; a capacidade de transmitir grandes quantidades de
informações sobre as redes sociais dos sapiens, o que levou a grupos maiores e mais coesos; assim como
a capacidade de transmitir grandes quantidades de informações sobre coisas que não existem de fato, tais
como espíritos, deuses, nações, direitos, o que permitiu a cooperação entre números muito grandes de indi-
víduos estranhos e uma inovação no comportamento social.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. 25. ed. Porto Alegre: L&PM, 2017. p. 29 e ss.
33 Idem, p. 18.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
24 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
34 DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Os destinos das sociedades humanas. 2. ed. Rio de Janeiro – São
Paulo: Record, 2001. p. 265 e ss.
a cidadania
25
35 Diamond apresenta como exemplo um chefe recebendo trigo de todos agricultores na época da colheita,
depois dando um banquete para todos e servindo pão, ou armazenando o trigo e redistribuindo aos poucos
na entressafra. Quando uma parcela dos bens arrecadados não era redistribuida, mas retida para consumo
do chefe e sua família a redistribuição passava a ser um tributo, precursor dos impostos. O chefe podia não
revindicar unicamente produtos, mas também mão de obra para a realização de obras públicas, que mais
uma vez retornavam ao próprio povo (como a construção de canais de irrigação) ou beneficiar-se unicamente
(construção de tumbas e adereços). DIAMOND, Jared. Op. cit., p. 275.
36 ARISTÓTELES. Política. Op. cit., p. 53-56.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
26 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
agressão externa.37 Como disse Platão, a cidade surge e tem sua origem na impotência
de cada um de nós em sermos autossuficientes e das incontáveis necessidades que
sentimos. Como necessitamos de outros homens para nos ajudar a suprir nossas
necessidades, e todos precisam de todos e são muitas as necessidades, agrupamo-
nos em um só lugar, companheiros e ajudantes. A esta associação denominamos
cidade.38
Sendo o homem um animal político, ensina Aristóteles, está destinado a viver
em sociedade, e a cidade é um microcosmo economicamente autossuficiente e
homogêneo. É o lugar onde os cidadãos exercem a virtude e através dela é que
alcançam à plenitude humana. Se por um mero acidente não houvesse cidade, o
homem seria um ser vil, porque o homem que não vive em sociedade ou não necessita
dela para viver porque se basta a si mesmo, deve ser uma besta ou um Deus.39
É na mesma esteira que segue São Tomás de Aquino quando doutrina que o
homem possui naturalmente a racionalidade, outorgada por Deus, para que com ela
dirija seus atos e ações podendo, portanto, viver individualmente como ocorre com
muitos animais, sendo seu próprio rei, abaixo unicamente de Deus. Entretanto,
e cita Salomão: “É melhor viver dois juntos que um sozinho. Porque terão a vantagem
da mútua companhia”.40
Já Paine invocou a necessidade imposta pela própria natureza para justificar
a vida em sociedade. Como a natureza destinou o homem à vida social, também
o capacitou para as condições que propunha. Em todos os casos, fez com que
suas necessidades naturais fossem maiores que suas faculdades individuais;
assim, nenhum homem pode, sem ajuda da sociedade, satisfazer suas próprias
necessidades e estas, ao atuar sobre o indivíduo, impelem todos à sociedade, com a
mesma naturalidade que a gravidade atua com relação ao centro.41
Importante destacar que ao surgirem às primeiras comunidades organizadas,
agrupamentos, aldeias e vilas, o individuo vivia em função dela. Não unicamente por
37 GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-estado na antiguidade clássica. In: PISKY, Jaime; PINSKY Carla
Bassanezi. (Org.). História da Cidadania. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 32.
38 PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 55-56.
39 ARISTÓTELES. Política. Op. cit., p. 56.
40 AQUINO, São Tomás de. La monarquía. Estudio preliminar, traduccion y notas de Laureano Robles y Ángel
Chueca. Madrid: Tecnos, 2002. p. 7.
41 PAINE, Thomas. Derechos del hombre. Madrid: Alianza Editorial, 2008. p. 216.
a cidadania
27
42 QUIRÓS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIRALLES, Àngela Aparisi (Ed.).
Ciudadanía y persona en la era da globalización. Granada: Comares, 2007. p. 12.
43 CAMPUZANO, Alfonso de Julios. En las encrucijadas de la modernidad. Política, derecho y justicia. Servilla:
Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Servilla, 2001. p. 138.
44 QUIRÓS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIRALLES, Angela Aparisi (Org.).
Ciudadanía y persona en la era de globalización. Granada: Comares, 2007. p. 12.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
28 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
participavam deles”.45
Já a situação dos camponeses era absolutamente insustentável, sendo o único
elemento que unia os camponeses com os cidadãos de pleno direito era a convivência
nas mesmas terras. E foi justamente esta situação dos camponeses privados de terras
e sem qualquer participação política que proporcionou a chegada de uma nova época,
onde a influência da aristocracia foi drasticamente reduzida e se inicia um modelo
social mais participativo. É quando surge a possibilidade de o individuo participar
ativamente na administração da cidade. A este indivíduo atribuiu-se a denominação
de cidadão. Foi Clístenes – também chamado de o pai da democracia – um nobre
ateniense que, além de liderar uma revolta popular, reformou a constituição da antiga
Atenas em 508 a.C. realizando uma verdadeira reforma política que proporcionou
aos cidadãos, independentemente do critério de renda, o direito de voto e ocupação
dos mais diversos cargos. Isto, além de ampliar as liberdades, duplicou o número de
cidadãos com direito a voto o que fez com que as famílias aristocráticas perdessem
sua hegemonia que dominava até então. Assim, inicia-se uma época em que Atenas
se transforma no maior centro cultural e a cidade mais importante do Ocidente,
alcançando seu esplendor no decorrer do século V, sob o comando de Péricles.
De Esparta existem poucos dados confiáveis acerca de sua origem. Há certa
unanimidade em aceitar que seus habitantes eram descendentes dos invasores
dórios que uniram no século VIII a.C. três aldeias situadas na Lacônia. Tratava-
se de uma cidade-estado militarizada e totalitária, que desde cedo educava seus
jovens para a dura vida de soldado, para servir ao Estado, para obedecer às leis e à
hierarquia, desprezando a vida artística e intelectual como o resto da Grécia. Mas o
que efetivamente forjou o Estado e o modo de vida espartano, segundo Heater, foram
algumas características essenciais atribuídas a todos seus membros pelo seu próprio
modo de vida. Dentre essas características, a principal era o principio da igualdade –
a ponto de chamarem-se entre si de Homoioi, que quer dizer igual. Não se trata aqui
de uma igualdade econômica, de hierarquia ou de poder, mas uma igualdade a qual
julgavam ainda mais importante: igualdade na administração e defesa do Estado.
As demais características atribuíveis aos espartanos são: (a) a posse de uma fração
de terras públicas, (b) dependência econômica do trabalho escravo, (c) o regime de
educação e treinamento, (d) a celebração de festas e rituais em comum, (e) o serviço
militar, (f) a virtude cívica, e (g) a participação na administração do Estado. Essas
características fazem com que a união e o compromisso dos espartanos com seu
Estado sejam superiores às demais cidades gregas, o que leva Heater considerar
Esparta como a peculiar criadora da ideia de cidadania.46 O Conselho de anciãos era
o órgão mais importante para o governo da polis e possuía caráter vitalício. Junto ao
45 PAULA, Ricardo Henrique Arruda de. Cidadania e individualismo em Aristóteles e Cristo. Estudo comparativo
de Antropologia Filosófica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 75.
46 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 19-25.
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30 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Conselho havia a Assembleia que era formada por todos os cidadãos maiores de 30
anos que tivessem alcançado a cidadania plena.47
Para muitos aristocratas atenienses o sistema espartano era digno de elogios e
referências; não por sua brutalidade, evidentemente, mas por sua estabilidade e pelo
sentido de ordem. Platão também era um admirador do estilo de vida dos espartanos
e destacava sua disciplina, sua austeridade e sua dedicação ao Estado, dispostos a
sacrificar a própria vida em defesa deste.
Mas por volta do final do século IV a.C. as polis foram absorvidas por reinos
maiores, mais estruturados e poderosos. O comprometimento dos cidadãos com sua
cidade começa a declinar e é substituído por um sentimento cosmopolita em uma
parte da cidadania e um afã individualista em outra, que não encontrava lugar na
nova estrutura social. O cidadão que se tornou súdito de um rei desconhecido e ficou
sem regras éticas que lhe proporcionava sua polis, teve que voltar-se para a filosofia
– de caráter ético e prático – em busca de novos padrões de comportamento.48
Somente agora, lembra Mumford, quando o modo de viver na aldeia rapidamente
some e desaparece do mundo é que se pode avaliar o quanto devemos a esses
primeiros agrupamentos; foram eles, pela energia vital propiciada pela aproximação,
pelo aprendizado da divisão e pela proteção coletiva que propiciaram, que tomaram
possível o desenvolvimento da humanidade. O que hoje chamamos de moralidade,
diz, começa nos costumes, nos hábitos e na forma de vida na aldeia. Quando se
dissolvem esses laços primários, quando uma comunidade íntima e unida deixa
de ser um grupo vigilante, identificável, com aspirações e ideais comuns, o “nós”
passa aos ”eus”, os laços de fidelidades se tomam frouxos e não conseguem deter a
desintegração da comunidade.49
Roma, que até então era uma cidade-estado – governada por um rei, auxiliada
e controlada por um poderoso Senado e uma Assembleia – no ano 509 a.C.
altera seu regime para República, constituída de três classes sociais: os patrícios
(descendentes dos fundadores), os plebeus (descendentes de estrangeiros) e os
escravos (prisioneiros de guerra ou homens que não honraram suas dívidas). A causa
dessa mudança na organização política foi, segundo Quirós, a tomada de uma forte
consciência cívico-política, fato até então inexistente.50
47 Reservada aos meninos que deixavam suas famílias aos sete anos para estudarem em um colégio militar até
os 30 anos, quando poderiam se incorporar a vida política.
48 QUIRÒS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIALLES, Angel Aparisi (Org.). Ciudadanía
y persona en la era da globalización. Granada: Calmares, 2007. p. 22-23.
49 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Op. cit., p. 32.
50 QUIRÒS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIALLES, Angel Aparisi (Org.). Ciudadanía
y persona en la era da globalización. Granada: Calmares, 2007. p. 24.
a cidadania
31
51 LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil – Desafios à democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado;
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997. p. 23.
52 CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense, 1995. p. 101.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
32 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
53 MARTÍN, Nuria Belloso. Un’ approssimazione alla cittadinanza sociali: alcune proposte. In: Annali Del Seminario
Giurídico del’ Universitá di Catania. Milano: Giuffré, 2002. p. 665.
54 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 61-74.
a cidadania
33
55 Idem.
56 QUIRÓS, José Justo Megias. De la polis griega a La ciudad virtual. In: MIALLES, Angel Aparisi (Org.).
Ciudadanía y persona en la era de la globalización. Granada: Calmares, 2007. p. 22-23.
57 DAWISON, D. apud QUIRÒS, José José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIRALLES,
Angel Aparisi (Org.). Ciudadanía y persona en la era de la globalización. Granada: Comares, 2007. p. 26.
58 VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 2. ed. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 1998. p. 27.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
34 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
59 MORAES, Emanuel de. A Origem e as transformações do Estado. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 265.
60 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve história. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 84-85.
a cidadania
35
62 PECES-BARBA, Gregório Martinez. Educación para la ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 325.
63 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p.116.
64 Pelo direito natural tradicional, o objetivo de uma comunidade política era o bem-estar geral e a felicidade
coletiva. Assim a liberdade dos indivíduos poderia ser limitada em razão do objetivo principal. O novo direito
natural, o racional, coloca em primeiro plano a liberdade individual e as garantias contra qualquer ingerência
das autoridades. Humboldt, Kant, Mill, são exemplos.
a cidadania
37
65 VIEIRA, Listzi. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, 2001. p. 39.
66 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 277-278.
67 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São
Paulo: Cortez, 1999. p. 237-240.
a cidadania
39
68 MARX, C.; ENGELS, F. Das Kommunistiche Manifest. Edição espanhola El Manifesto Comunista. Barcelona:
Edicomunicación, 1998.
69 PADILLA, Jorge Peláez. La filosofía marxista sobre la política y los conceptos de ciudadanía, derechos
y libertades. In: REDHES, Revista de Derechos Humanos y Estudios Sociales, n. 1, enero-junio 2009.
Universidad Autónoma de San Luis Potosí, México/Universidad de Sevilla, España/Universidad Autónoma de
Aguascalientes, México/Comisión Estatal de Derechos Humanos de San Luis de Potosí/Comisión Estadual de
Derechos Humanos de Aguascalientes. p. 45.
70 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos Humanos. Sua história, sua garantia e a questão da indivisibilidade.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. p. 9.
71 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São
Paulo: Cortez, 1999. p. 242.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
40 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
72 De fato, o regime político da URSS libertou da fome milhares de miseráveis, mas não lhes deu jamais liberdade
de realização pessoal, de participar da vida pública, de fazer valer seus direitos, enfim, de serem cidadãos,
porque a ditadura do proletariado não evoluiu para o poder social, evoluiu para a ditadura militar, tecnocrática
e burocrática do partido.
73 Para Sotelo, a origem do Estado Social está no fragor da Revolução Francesa, implicita no afã de liberdade,
igualdade e fraternidade que o movimento exaltava. (SOTELO, Ignacio. Socialismo. In: MELLÓN, Joan Antón
(Ed.). Ideologías y Movimientos Políticos Contemporáneos. 2. ed. 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p.
79-100. Mas para Cortina, o Estado Social inicia nas décadas finais do século XIX. O primeiro passo ocorreu
em 1880, com Bismarck que desejoso de contrapor o socialismo adota medidas como o seguro contra
doenças, acidentes de trabalho e aposentadorias assumidas pelo Estado. Estas ações fomentam o bem
estar dos trabalhadores e debilitam as reivindicações dos menos favorecidos pelo sistema. CORTINA, Adela.
Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 59.
a cidadania
41
74 SILVA, Larissa Tenfen. Cidadania Participativa: algumas considerações político-jurídicas. In: SOUSA, Mônica
Teresa Costa; LOUREIRO, Patrícia (Org.). Cidadania. Novos temas, velhos desafios. Ijuí: UNIJUÍ, 2009. p. 47.
75 WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1990. p. 26.
76 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. Op. cit., p. 71.
Em 2010, a Academia Europeia de Ciências e Artes convidou destacados especialistas para pesquisar o
futuro da Europa. Os resultados dessas pesquisas foram publicadas sob o título “A Europa depois da
Europa” e suas conclusões são de que a Europa terá cada vez menos um papel hegemônico e que perderá
a significância político-econômica no mundo. Dentre as causas apontadas, destacam os pesquisadores a
contundente intervenção estatal na economia e o que gerou a perda do espírito trabalhador e competitivo
de seus cidadãos. Ver: ESPINOSA, Emilio Lamo de. (Org.). Europa después de Europa. Madrid: Academia
Europeia de Ciências e Artes, 2011.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
42 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
77 CAMPUZANO, Alfonso de Julios. En las encrucijadas de la modernidad. Política, Derecho y Justicia. Servilla:
Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2000, p. 129-171.
78 MARTINÉZ DE PISÓN, J. El final del Estado Social: Hacia qué alternativa. In Revista Sistema 160. Colección
Política. Madrid: Sistema. 2001. p. 75. Ver também MARTÍN, Nuria Belloso. Del Estado del Bienestar a la
sociedad de Bienestar: la reconstrucción filosófico-política de su legitimidad. In: MARTIN, Nuria Belloso. Para
que algo cambie en la Teoría Jurídica. Burgos: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Burgos, 1999.
p. 203-266.
a cidadania
43
79 CARRACEDO, José. Rubio. Teoría crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 85.
80 Idem, p. 86
81 CAÑELLAS, Antonio J. Colon; VARDERA, Juan C. Rincón. Educación, República y nueva ciudadanía. Ensayo
sobre os fundamentos de la educación cívica. Valencia: Titant lo Blanch, 2007. p. 114.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
44 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
82 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. Op. cit., p. 39.
83 Nesse sentido, com propriedade lembra Silva: “Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja
titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas consequências” SILVA, José Afonso da. Curso
de Direitos Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 345. Carvalho diz que, no Brasil,
cidadania designa uma faculdade específica do nacional: a faculdade de gozar e exercer direitos políticos.
“Cidadão, portanto, seria o brasileiro que tem direitos políticos” CARVALHO, A. Dardeau de. Nacionalidade e
cidadania. São Paulo: Freitas Bastos, 1956. p. 294. Por fim, veja-se a garantia constitucional expressa no inc.
LXXIII do art. 5º “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente
e ao patrimônio histórico e cultural[...]”. Como se comprova a cidadania? O parágrafo 3º da lei n° 4.717 de
29.06.1965, esclarece: “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral ou com
documento que a ele corresponda”.
84 WARAT, Luis Alberto. La ciudadanía sin ciudadanos: tópicos para un ensayo interminable. Op. cit.
85 MORENO, Isidoro. Derechos humanos, ciudadania e interculturalidad. In: DÍAZ, Emma Martín; SIERRA,
Sebastian de la Obra. Repensando la ciudadanía. Servilha: Fundación El Monte, 1998. p. 21.
a cidadania
45
isto é, o direito de voto e a extensão dos direitos políticos eram determinados por
uma série de requisitos além de estar condicionada pela renda.86 As mulheres, os
trabalhadores, os pobres foram excluídos da cidadania ativa. Então, cidadão poderia
definir-se simplesmente como membro de uma comunidade. Era a cidadania ativa
que lhes atribuía direitos. Era, portanto, o indivíduo no gozo de direitos civis e políticos
de seu Estado. Assim, quando a Europa inicia os tempos modernos, a partir do séc.
XVII começam a definir-se alguns direitos que, por evidente, estavam relacionados
com a cidadania de um determinado Estado, estando este obrigado a respeitar tais
direitos, no entanto a divisão de classes permanecia e com ela a divisão de direitos. 87
86 Para participar das assembleias paroquiais: ser homem livre, maior de 25 anos, não viver sob a dependência
dos pais e possuir uma renda superior a cem mil réis. Para participar da eleição dos Deputados: possuir
uma renda mínima de duzentos mil réis, não ser liberto (ser livre de nascimento), não estar pronunciado
criminalmente. Para ser Deputado: possuir uma renda mínima de quatrocentos mil réis, ser brasileiro nato,
ser católico. GORCZEVSKI, Clovis; SILVA JUNIOR, Edson Botelho; LEAL, Monia Clarissa Hennig. Introdução
ao estudo da ciência política, Teoria do Estado e da constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p.180.
87 Mas, os franceses foram além em suas contradições. A expansão colonialista e a formação do Império
que iniciara em 1635 com a colonização de Martinica têm, a partir de 1830, com a definitiva abolição da
escravatura e a conquista da Argélia, uma grande intensificação, em especial no Oceano Índico e Pacífico.
Suas conquistas vão da Nova Caledônia ao Senegal, do México a Conchinchina (Vietnã) ou ao Camboja,
transformando a França no segundo império colonial do mundo. Tem início uma era de selvagem e desumana
exploração que vai perdurar por quase dois séculos e deixará marcas e sequelas inapagáveis. Consolidadas
as conquistas, surge o primeiro dilema, como tratar os habitantes das colônias? Pertencem ao Império
Francês, mas não são republicanos, não são brancos, não são católicos, não são europeus. Poderão ser
franceses? Em 1881, é promulgado o Code De I’indigénat, o conjunto de leis a que estavam submetidos
os habitantes das colônias. Os Indigénes são sim franceses, mas de categoria inferior. Com os mesmos
deveres para com a França que qualquer Francês, mas sem os direitos da França para com os franceses.
Esta vergonhosa e injusta situação de discriminação chega ao seu extremo durante a Segunda Guerra
Mundial, quando mais de 160.000 indigènes são recrutados nas colônias da África, precariamente treinados
e enviados à Europa para libertar a pátria. Apesar de nunca lá ter estado e de que muitas de suas famílias
terem sido massacradas pelo colonizador, eles eram ‘franceses’ e tinham o dever de morrer pela pátria-mãe,
mesmo que esta os tratasse como filhos bastardos. Sofrendo toda espécie de preconceito e discriminação –
nem a farda francesa os tornava iguais aos demais soldados franceses – muitos destes homens deram sua
vida pela França. Vencida a guerra não eram mais necessários e na França eram considerados imigrantes e
ilegais. Em 1959, quando iniciam os movimentos de descolonização, o governo Frances suspendeu todos os
pagamentos a ex-combatentes não franceses. Todos os governos sucessivos se recusaram a assumir esta
dívida. Somente em 2006 quando o lançamento de um livro e de um filme sobre a situação dos indigènes
que lutaram pela pátria o tema é mundialmente conhecido fazendo o Presidente Jacques Chirac revogar a
vergonhosa medida. BLANCHARD, Pascal et BANCEL, Nicolas. De l’indigène a l’Immigré. Paris: Gallimard,
1998.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
46 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
88 GONZALO, Eduard. Comunitarismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 507-508.
89 ARISTÓTELES. Política. Texto Integral. São Paulo: Martin Claret, 2008. p. 55.
a cidadania
47
90 GONZALO, Eduard. Comunitarismo In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 505.
91 WALZER, Michael. La crítica comunitarista del liberalismo. Apud CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo.
Hacia una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 59.
92 MARTÍN, Nuria Belloso. Os novos desafios da cidadania. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. p. 26.
93 LANZILLO, Maria Laura. ?Nosotros o los otros? Multiculturalismo, democracia, reconocimiento. In: GALLI,
Carlo (Comp.). Multículturalismo, ideologías y desafíos. Traducción de Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva
Visión, 2006. p. 85.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
48 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
94 YOUNG, Iris M. Justice and the Politics of Difference. Princenton: University Press, 1990.
95 PATEMAN, Carol. El contrato sexual. Barcelona: Antrophos, 1995.
a cidadania
49
Para tanto, defende que o futuro Tratado, que estabeleça uma Constituição
Europeia, se é que se chegará a este consenso, deverá insistir em uma Europa dos
cidadãos, unidos em um texto constitucional para superar o déficit democrático e
estimular o processo de construção europeu.
96 CARRACEDO, José Rubio. Teoria crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 98-99.
97 CORTINA, Adela. Los ciudadanos como. protagonistas. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 1999.
98 ZOLO, Danilo. Cosmópolis. Perspectivas y riesgos de un gobierno mundial. Barcelona: Paidós, 2000.
99 WALZER, Michael. La crítica comunitarista del liberalismo. In: CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia
una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 59.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
50 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
100 Carracedo destaca que um caso especialmente interessante é o cancelamento automático da cidadania
nacional quando um imigrante adota a nacionalidade do país de acolhida. Outra questão é que o Estado
de origem regule juridicamente, e com justiça, alguns limites. Pode-se considerar arbitrariedade privar a
um emigrante de seus direitos políticos simplesmente porque optou pela dupla nacionalidade, se continuar
mantendo uma relação continuada com seu país de origem (relações familiares, remessas de valores, etc.)
CARRACEDO, José Rubio. Teoria crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 104.
Ademais, frequentemente o emigrante realiza uma emigração temporal, pelo tempo necessário para acumular
recursos econômicos que lhe permitam restabelecer-se em seu país de origem. Por isso, parece óbvio que
não rompe as relações, pois lhe interessa conservá-las para seu regresso. É verdade que, em alguns, o projeto
temporal se converte em definitivo, mas em seu país de origem continuará mantendo vínculos (familiares,
culturais e, muitas vezes, inclusive, econômicos).
101 Para Carracedo a ideia de cidadania transcultural assume também o conceito de cidadania complexa a qual
ele mesmo propõe. CARRACEDO, José Rubio. Teoria crítica de la ciudadanía democrática. Op. cit., p. 111.
a cidadania
51
105 ZAPATA-BARRERO, Ricard. Multiculturalidad e inmigración. Madrid: Editorial Sintesis, 2008. p. 75.
106 ANTONINI, Luca; BARAZZETTA, Aurelio; PIN, Andrea. Multiculturalismo y Hard Cases. In: ORIOL, Manuel;
PRADES, Javier (Ed.). Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 28.
107 DI MARTINO, Carmine. El encuentro y la emergencia de lo humano. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.)
Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 114.
108 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p.187.
a cidadania
53
109 Idem.
110 Idem, p. 172.
111 PAREKH, Bhikhu. Repensando el multiculturalismo. Diversidad cultural y teoria política. Madrid: Istmo, 2005.
p. 276.
112 TORRENS, Xavier. Racismo y antisemitismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
54 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
religiosas, culturais ou sociais) sua efetiva integração, sem perder suas características
próprias. Afirma que a noção geral de cidadania, de tratar todas as pessoas como
indivíduos iguais e com os mesmos direitos perante à lei, não atende aos interesses
da nova sociedade, trata-se de uma cidadania medieval. Defende que os Estados
democráticos modernos, além de reconhecer os direitos fundamentais dos indivíduos
devem reconhecer uma série de direitos especiais para os grupos minoritários. O
reconhecimento desses direitos tem como objetivo preservar a cultura, que dá sentido
à liberdade individual e a seu exercício, assim como fazer possível a permanência do
indivíduo em seu grupo social, promover e dissipar as desigualdades que afetam as
minorias. Garantir esses direitos é a melhor forma de preservar a cultura dos grupos
minoritários, bem como aliviar as tensões dos conflitos étnicoculturais.
Kymlicka apresenta três formas de direitos diferenciados em função do grupo:
1) Direito de autogoverno. Lembrando que o direito à autodeterminação dos
povos está reconhecido no próprio direito intencional, este, com certa autonomia
territorial, seria aplicável por nações que pretendessem desenvolver e proteger
os grupos que a compõe, atribuindo-lhes certa autonomia política e jurisdição
territorial em defesa dos interesses de seus indivíduos.
2) Direitos políticos - aplicáveis principalmente a imigrantes, grupos étnicos e
religiosos e às minorias do território. Têm o propósito de proteger e permitir que
estes grupos expressem de forma livre sua cultura, sem que isso constitua um
obstáculo à sua integração na sociedade hegemônica.
3) Direitos especiais de representação. Garantir aos grupos culturais minoritários
a participação em todo o processo político.
114 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural. Una teoría liberal de los derechos de las minorías. Barcelona-
Buenos Aires- México: Paidós, 1996. p. 240.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
56 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Sendo o homem um animal social que busca viver com outros homens, grupos
com outros grupos e sendo a história da humanidade uma história de migrações,
é arriscado apontar-se uma sociedade com uma cultura pura, absolutamente isenta
de influência externa. E em tempos de globalização, não se pode afirmar que uma
sociedade possua em seu seio exclusivamente uma única cultura, porque as culturas
ultrapassaram fronteiras e porque em uma mesma sociedade coexistem diferentes
culturas, sendo uma delas, geralmente, maioria.
Cabe analisar como se comportam os Estados frente às culturas alienígenas. Para
Torrens, as políticas públicas ante ao multiculturalismo podem ser excludentes, que
expulsam ou segregam as culturas distintas; podem ser inclusivas, com assimilação;
ou optam pelo modelo multicultural.
Estados xenofóbicos possuem geralmente uma política de exclusão de culturas
alienígenas. Esta exclusão pode ocorrer de forma radical: com a expulsão da cultura
minoritária. Seu fundamento básico é o rechaço a que o estrangeiro transforme-se
em membro da comunidade. A política de expulsão vem sempre acompanhada de
um corte nos serviços sociais. Entretanto esta política, bem lembra Torrens, não evita
o fluxo migratório, ao contrário, institucionaliza a figura de imigrante ilegal uma vez
que o Estado não consegue implementar uma política de expulsão geral dos ilegais,
que passam, então, a subcidadãos, sem recursos, sem direitos, sem participação.
Ainda, a política de exclusão pode agir com relativa tolerância (muitas vezes por
necessidade de mão de obra barata). Ocorre então a segregação. Não se afasta, do
território do Estado, o indivíduo de cultura diferente, mas o segrega-se. “La lógica
discursiva de la segregación es que, dado que se desaprueba la presencia de los
inmigrantes, entonces cabe mantenerlos apartados”.115 Esta ação impõe um isolamento
dos imigrantes pertencentes a culturas minoritárias; avigora a desigualdade étnica
e reforça a discriminação. Este modelo induz à uma justificativa: as pessoas estão
segregadas porque supostamente são ineptas para determinados trabalhos, inábeis
para votar, incompetentes para participar, inadaptáveis para viver em determinados
bairros, incapazes de assumir novos conhecimentos.
Já os Estados mesmo com Políticas Públicas de Inclusão podem muitas vezes
violar direitos culturais ao praticar a assimilação, isto é, fazer com que a cultura
minoritária assimile a majoritária. Este modelo, assevera Torrens, é inclusivo em
relação à comunidade política, mas intolerante com a multiculturalidade. “Es inclusiva
en los derechos políticos y los derechos socioeconômicos, pero es exclusiva con
los derechos culturales”.116 Isto porque ela admite o estrangeiro como membro da
sociedade, incorporando-o à comunidade política mas exige a assimilação da nova
cultura, uniformizando-o.
115
TORRENS, Xavier. Multiculturalismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y Movimientos Políticos
Contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 392.
116 Idem, p. 394.
a cidadania
57
119 TODOROV, Tzvetan. Cruce de culturas y mestizaje cultural. Gijón: Júcar, 1988. p. 27.
120
TORRENS, Xavier. Multiculturalismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 388.
a cidadania
59
121 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p. 187.
122 AZURMENDI, Mikel. El multiculturalismo, un pésimo poyecto para hacer afincar a los inmigrantes en el territorio
de nuestros valores. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.). Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora
Encuentro, 2009. p. 179.
123
DONATI, Pierpaolo. Desigualdades, diferecias y diversidades: la integración social más allá del
multiculturalismo. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.). Los Retos del Multiculturalismo. Madrid: Editora
Encuentro, 2009. p. 137.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
60 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Para Antonini, Barazzetta e Pin, fracassos não faltam nem mesmo nos contextos
que se inspiraram ao formular políticas opostas a do multiculturalismo, como o
assimilacionismo francês e a questão da maioria turca na Alemanha, onde o primeiro
ministro turco Erdogan, exigiu integração e não assimilação, definindo esta última
como um “crime contra a humanidade”124. Como consequência, diz Di Martino,
na prática, Canadá e Austrália, países com avançada política multicultural a estão
abandonando, enquanto a Grã-Bretanha e os Estados Unidos a estão questionam
seriamente.125
De fato, diz Donati, a doutrina do multiculturalismo surgiu para favorecer o
respeito, a tolerância e a defesa das diferenças culturais. Mas, se converteu depois
em um imaginário coletivo segundo o qual somos “todos diferentes, todos iguais”,
no sentido de que as diferenças/diversidades são postas todas no mesmo plano e
tratadas normativamente de modo tal que se tornam (in)diferentes, ou seja de modo
tal que anulam o sentido e a relevância de sua diferença/diversidade.126 Ademais,
diz o catedrático bolonhês, o multiculturalismo é deficitário porque não consegue
preencher a distância entre o citoyen e o homme. E sentencia:
124 ANTONINI, Luca; BARAZZETTA, Aurelio; PIN, Andrea. Multiculturalismo y Hard Cases. In: ORIOL, Manuel;
PRADES, Javier (Ed.). Los Retos del Multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 28.
125 DI MARTINO, Carmine. El encuentro y la emergencia de lo humano. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.).
Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 115.
126 DONATI, Pierpaolo. Desigualdades, diferecias y diversidades: la integración social más allá del multiculturalismo.
In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.). Los retos del multiculturalismo. Op. cit.
127 Idem, p. 139.
128 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p. 200.
a cidadania
61
sua ideia de justiça para destruir o outro, em um e no outro caso marchamos para um
regresso à barbárie. E, os conflitos modernos nos demonstram, de forma iniludível
a necessidade de se orientar o ser humano e as relações humanas para os valores
derivados do reconhecimento da dignidade humana, como imperativo para a própria
sobrevivência do gênero humano, pois como bem adverte Assmam, a humanidade
chegou numa encruzilhada ético-política, e ao que tudo indica não encontrará saídas
para a sua própria sobrevivência, como espécie ameaçada por si mesma, enquanto
não construir consensos sobre como incentivar conjuntamente nosso potencial de
iniciativas e nossas frágeis predisposições à solidariedade.129
Só há um caminho, diz Villoro: escutar o outro, tentar compreendê-lo, por
mais diferente que seja, por mais errado que nos pareça. E depois de escutá-lo,
construir uma ordem de justiça transcultural que o inclua, uma ordem baseada não
na imposição do nosso arbítrio, mas na equidade de direitos de todas as culturas,
uma ordem que seja capaz de julgar de igual forma a um crime cometido por quem
se sente humilhado ou pelo todo poderoso que humilha.130 O multiculturalismo não
é mais que isso: um retorno à ética, aos valores primários, como forma de assegurar
o reconhecimento recíproco da nossa dignidade e, portanto, da nossa própria
sobrevivência.
Por evidente que o modelo apresenta imperfeições. A superioridade da cidadania
multicultural sobre a integrada e a diferenciada não elimina alguns problemas de
difícil solução. O primeiro é o que força o indivíduo a submergir em seu grupo original
e seguir sua dinâmica, dificultando que se forje uma personalidade independente.
Outros problemas encontrados no modelo de cidadania multicultural são:
a) o excessivo enfoque sobre os direitos diferenciados que cada grupo pode
obter com a dialética maioria-minoria no âmbito do Estado democrático liberal, sem
o necessário diálogo intercultural entre maioria e minorias, assim como de grupos e
indivíduos entre si;
b) o reconhecimento de uma estrutura plurinacional ou pluriétnica como uma
realidade positiva, sem dar a necessária atenção às desigualdades entre os grupos
que podem ocorrer a partir da maior ou menor capacidade de pressão de cada grupo,
o que pode levar a uma integração deficiente, instável e injusta.131
129 ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 28.
130 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p. 200.
131 Santos tentou buscar uma nova equação entre o princípio da igualdade, é o princípio do reconhecimento
da diferença. Parte de que o paradigma da igualdade em sua versão capitalista, se funda em dois sistemas
de pertencimento hierarquizado: o sistema da desigualdade, que nega o princípio da igualdade e o sistema
de exclusão, que nega o princípio do reconhecimento da diferença. A desigualdade e a exclusão são dois
sistemas de pertencimento hierarquizados. No sistema de desigualdade, o pertencimento ocorre pela
integração subordinada, enquanto que no sistema de exclusão o pertencimento ocorre pelo afastamento.
A desigualdade implica um sistema hierárquico de integração social. Quem está abaixo, está dentro e sua
presença é indispensável. Ao contrário, a exclusão pressupõe um sistema igualmente hierárquico, mas
dominado pelo princípio da exclusão: se pertence ou se é excluído pela forma. Quem está abaixo está
excluído. Assim formulados, estes dois sistemas de hierarquização social são tipos ideais, pois na prática
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
62 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
os grupos sociais se introduzem simultaneamente nos dois sistemas, formando complexas combinações.
Para o sociólogo português, Marx é o grande teorizador da desigualdade e Foucault é o grande teorizador da
exclusão. Adverte que no sistema mundial os dois eixos se cruzam: o eixo socioeconômico da desigualdade
e o eixo cultural, civilizacional, da exclusão. O eixo norte/sul é o eixo do imperialismo colonial e pós-colonial,
socioeconômico, integrador da diferença. O eixo este/oeste é o eixo cultural, civilizacional, da fronteira entre a
civilização ocidental e as civilizações orientais: islâmica, hindu, chinesa e japonesa. O imperialismo é a melhor
tradução do eixo norte/sul, assim como o orientalismo é a melhor tradução do eixo este/oeste. (SANTOS,
Boaventura de Sousa. El milênio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política. Madrid: Trotta, 2005. p.
195-197).
a cidadania
63
132 SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica de la razón indolente. Contra el desperdício de la experiencia. Bilbao:
Desclée, 2003.
133 CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Os desafios da globalização. Modernidade, cidadania e direitos humanos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. p. 70.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
64 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Especialmente este segundo aspecto da cidadania é que levou, nos últimos anos,
a analisar-se o significado de cidadania nos termos da tensão entre pertencimento e
a exclusão. Destaca Rosales que, se o pertencer, ao menos na ordem democrática,
deve estar legitimado pela orientação inclusiva ou universalista, é justo o critério que
lhe confere valor enquanto modo de associação civil. Daí que a tensão não pode ser
resolvida sem a universalização dos direitos de cidadania, complementada por uma
universalização das possibilidades reais ou materiais para seu exercício.
Como já destacamos, a cidadania grega, o estatuto daqueles que viviam com
plenos direitos políticos na polis, estava restrito a uma reduzida parte do corpo social:
os varões adultos, livres e economicamente autônomos. Tratava-se de uma cidadania
comunitária. A cidadania grega era concebida como uma comunidade de interesses
134 DULCE, Maria José Farinas. Mercado sin ciudadanía. Las falácias de la globalización. Madrid: Biblioteca
Nueva, 2005. Ver também JIMÉNEZ, Carlos Arce. La ciudadanía en la era de la globalización: el reto de la
inclusión. Madrid: Editorial Universitaria Ramón Areces, 2009.
135 ROSALES, José Maria. Política, ciudadanía y pluralismo: un argumento sobre las transformaciones de la
esfera pública democrática. In: Anuário del Filosofia del Derecho. Tomo XIV. Madrid: BOE-Ministerio de
Justicia, 1997. p. 286-287.
a cidadania
65
políticos, mas também como uma comunidade de laços morais, coesionada pelos
cidadãos que obedeciam a autoridade de uma lei comum.
Durante o período da República Romana (do séc. VI ao I a.C.) surgiram diversas
tentativas de se estender o estatuto da cidadania aos territórios conquistados; mas
a definitiva abertura cosmopolita de direito de cidadania se produziu na época do
Império, nos primeiros séculos de nossa era. O antigo direito das gentes abandona
a concepção dualista que diferenciava os cidadãos de Roma dos cidadãos de
províncias, em busca de uma concepção integradora. O ius gentium aparece então
como a continuidade lógica do ius civile. Esta expansão possui um efeito igualitário
ao propiciar uma equiparação progressiva de direitos entre os cidadãos de Roma e
os súditos das províncias. A abertura cosmopolita da cidadania romana representa a
culminação igualitária e universalista da cidadania grega.
O espírito das fórmulas de representação do republicanismo é assumido na
Idade Média pelos primeiros regimes parlamentaristas que ampliam o sistema de
representação até incorporar, junto à representação política, a representação dos
interesses privados.
Finalmente, o problema da complexidade é resolvido pela política moderna,
mediante a transformação do modelo de Estado tardo-medieval, isto é o modelo
dos principados ou das repúblicas comunais, no Estado representativo, baseado
no princípio da mediação representativa de toda ação política. A ideia de cidadania
então, deixa de estar associada com o ideal de participação direta na comunidade
e recupera o ideal da participação em um estatuto igualitarista e universalista de
direitos.
As migrações internacionais massivas trazem o problema da própria extensão
da cidadania em comunidades políticas democráticas, autoproclamadas inclusivas.
A pressão torna não defensável manter políticas de naturalização baseadas
fundamentalmente em critérios nacionalistas e econômicos. A contradição obriga a
redefinir-se no seio das sociedades democráticas as condições para o pertencimento
na comunidade política. Como destaca Rosales,
137 Ensina Duverger, que o termo Europa somente possuía sentido geográfico para os gregos e romanos da
antiguidade, a palavra não era utilizada em sentido político. César não a empregava. Virgílio, Horácio, Salústio,
Tácito, Apiano e mesmo mais tarde Santo Agostinho falam dela esporadicamente. O Império Romano não era
europeu, não englobava a Escandinávia, a Polônia e a maior parte da Alemanha, mas estendia-se por todo o
contorno do Mediterrâneo africano e asiático. DUVERGER, M. Europe des Hommes. Paris: Odile Jacob, 1994.
p. 23.
a cidadania
67
Para Casela, a passagem do ideal europeu à realidade histórica poderia definir-se por
dois discursos: o de Winston Churchill, na Universidade de Zurich em 19 de setembro
de 1946, e a Declaração de Schuman, de 9 de maio de 1950, com a correspondente
aceitação do governo alemão.138
A realidade histórica inicia em 18 de abril de 1951, quando é constituída a
Comunidade do Carvão e do Aço,139 se consolida politicamente em 1986 com
a Comunidade Europeia até chegar a uma cidadania europeia com o Tratado de
Maastricht em 1992.
Entretanto, a proteção dos Direitos Humanos na Europa é anterior e possui
como base a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, firmada em 1950 e vigente
desde 1953. A Comissão Europeia de Direitos Humanos está composta por um
número de membros igual ao de Estados-partes da Convenção e possui funções
de supervisão quase judiciais, examinando queixas apresentadas a propósito do
cumprimento das obrigações dos Estados com relação aos direitos protegidos.
Não possui função normativa, incumbe-lhe, em primeiro lugar, a tarefa de filtrar
as comunicações recebidas, de acordo com critérios de admissibilidade bastante
rígidos, dentre os quais se destaca o esgotamento dos recursos internos. Quando o
Comitê de Ministros, na qualidade de órgão político, determina que houve violação
à Convenção, é fixado um prazo para que o Estado implicado tome as medidas
necessárias para a reparação. Eventual omissão do Estado acusado pode levar o
Comitê a tomar o assunto público, possui, ademais, o poder de proceder à expulsão
de um Estado-membro que não garanta a todas as pessoas sob sua jurisdição, o
gozo dos direitos humanos.
Também o supranacional Tribunal Europeu de Direitos Humanos exerce jurisdição
sobre todos os países membros da comunidade. Dentre as características mais
importantes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pode-se destacar que,
tecnicamente trata-se de um Tratado Internacional e, assim sendo, suas disposições
possuem força obrigatória e vinculante para os Estados signatários, o que os obriga
a alterar sua própria legislação interna para ajustar-se às disposições estabelecidas.
Ainda assim, o indivíduo, ou as organizações não governamentais, podem iniciar
um procedimento contra o governo que, a seu juízo, seja responsável por violação a
qualquer dos direitos reconhecidos pela Convenção.140
Mas o excepcional avanço se deu com o tratado de Maastricht, que introduziu
138 CHUCHILL, W. S. The Sinews of peace: Poswar Speeches, Londres: Cassel & Co., 1948; FOERSTER, R. H.
Die Idee Europa 13OO-1946: Quellen zur Geschichte der politischen Einigung. Munique: DTV, 1963, p. 253-
257. A declaração de Schuman é reproduzida e comentada por Fontaine. P., In: Uma nova ideia de Europa.
Luxemburgo: Serviço de Publicacões Oficiais das Comunidades Europeias. apud CASELA, Paulo Borba
Comunidade Europeia e seu Ordenamento Jurídico, São Paulo: LTr., 1994. p. 68-69.
139 Tratado que entra em vigor em 25 de julho de 1952.
140 MARTÍN, Nuria Belloso. El control democrático del poder judicial en España. Curitiba/Universidad de Burgos:
Moinho do Verbo, 1999. p. 33.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
68 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
141 Ver MARTÍN, Nuria Belloso. La doble protección de los Derechos Humanos en Europa: el Consejo de Europa
y la Unión Europea. In: COSTA, Marli M. M. da e outras (Coord.). Direito, cidadania e políticas públicas. V. III
Porto Alegre: UFRGS, 2008. p. 91-128.
a cidadania
69
as novas negociações.142
O Tratado de Lisboa, já ratificado por todos os membros da União Europeia,
constitui mais um significativo avanço. Incorpora à União, mais democracia, mais
eficácia, mais participação no âmbito global e mais solidariedade. Além de ratificar
todos os direitos e garantias já previstas nos Tratados de Maastricht e Amsterdã, definiu
que a Carta de Direitos Fundamentais da Europa possui força jurídica vinculativa a
todos os membros, atribuiu um papel mais importante para o Parlamento Europeu,
além de criar a possibilidade de proposição de diretivas comuns à União por iniciativa
popular. Merece também referência que o Tratado atribui especial destaque à
importância de consultas e diálogos constantes com a sociedade civil, associações,
igrejas, organizações e demais organizações populares.
A Europa iniciou seu caminho. A manutenção da nacionalidade, quando se
trata da cidadania europeia, é uma forma de reconhecer as diferenças, preservá-las,
respeitá-las e mantê-las. A cidadania europeia garante ao cidadão a universalidade
dos direitos fundamentais, a nacionalidade lhes garante as diferenças. Não há dúvidas
da evolução e progresso quanto às conquistas sociais, econômicas e políticas, mas
ainda há um longo caminho até a utopia da cidadania plena e universal.
A Europa dos cidadãos ainda necessita vencer algumas dificuldades como
sedimentar seu novo conceito e, efetivamente constituir uma cidadania europeia.
Lembra Rosales que discutir-se sobre a dimensão cívica ou cidadania da Europa política
não é suficiente para provar que exista um público de cidadãos. Na verdade, "solo
existen públicos nacionales, los públicos de cada país miembro de la Unión Europea.
Tampoco comparten una identidad comúm ni, hasta el momento, un proyecto político
de sociedad.143 Lembremos, ainda, que na Europa tem sido crescente a xenofobia
e os conflitos étnicos ressurgem em lutas por nacionalismo; sérias dificuldades a
serem superadas.
Por fim, permitindo-nos sonhar, queremos crer que talvez a Europa, rechaçando
a opção radical de Ferrajoli – eliminar por completo o conceito de cidadania –144
esteja dando início à utopia de Kant descrita em seu ensaio A Paz Perpétua de
1795. A instauração de um Federalismo Mundial com um Estado de Direito Social
e Democrático. Esta Federação de paz (foedus pacificum) iniciaria na Europa e se
espalharia pelo mundo, levando os homens a cumprir seu destino que é a felicidade
de todos em um mundo de eterna paz. Admitindo-se esta alternativa, assevera Peces-
142 E, como bem diz Luzárraga, “la eliminación del término ‘constitución’, no significa que ésta no lo sea. Una
constitución no lo es porque así se llame sino por lo que regula. Y en este sentido si, el contenido de la antigua
Constitución y el tratado de Reforma es muy similar, solo un cambio de nombre no va a alterar substancialmente
su naturaleza”. LUZÁRRAGA, Francisco Aldecoa; LLORENTE, Mercedes Guinea. La Europa que viene: El
tratado de Lisboa. 2. ed. Madrid-Barcelona-Buenos Aires: Marcial Pons, 2010. p. 32.
143 ROSALES, José María. Ciudadanía en la Unión Europea: Un Proyecto de cosmopolitismo cívico. In:
CARRACEDO, José Rubio; ROSALES, José María; MÉNDEZ, Manuel Toscano. Ciudadanía, Nacionalismo y
Derechos Humanos. Madrid: Trotta, 2000, p. 47.
144 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La ley del más débil. Madrid: Trotta, 2004. p. 119.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
70 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Está claro que há um abismo entre direitos humanos e cidadania. Mas não
podemos nos esquecer de que ambos possuem a mesma fonte e que apesar da
contradição intrínseca, são complementares e dificilmente um pode subsistir sem
o outro. O conceito de cidadania vinculado a uma nacionalidade, restrita ao âmbito
territorial de um Estado, quase sempre em oposição a outro, é incompatível com o
princípio da dignidade humana, e deve ser superado porque "se ha convertido en
fuente de profundas discriminaciones”.146 Assim, nos últimos anos começa a surgir
uma nova concepção de uma cidadania; uma concepção universal, que efetivamente
inclua a todos. Na verdade trata-se de um (re)surgir, pois que a ideia de uma cidadania
universal, que inclua a todos, onde direitos humanos e cidadania efetivamente teriam
o mesmo significado, inicia com aos pensadores estoicos. Vejam-se os escritos de
Plutarco, referindo-se a Zenon:
145 PECES-BARBA, Gregório Martínez. Educación para la Ciudadanía y Derechos Humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 355.
146 GARCIA, Eusebio Fernández. Ciudadanía cosmopolita y obediencia al derecho. In: MIRALLES, Ángela Aparisi.
Ciudadanía y persona en la era de globalización. Granada: Comares, 2007. p. 171.
147 PLUTARCO, Discursos I, II. Sobre la Fortuna o la virtud de Alejandro Magno, I, 6. In: PECES-BARBA, Gregório
Martínez. Educación para la ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Espasa, 2007. p. 312.
148 Idem.
a cidadania
71
149 ROSALES, José María; CARRACEDO, José Rubio. El nuevo pluralismo y la ciudadania compleja. In: Sistema,
126, 1995. p. 57-58.
150 MAMEDE, Gladston. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. In: Revista do Curso de Direito da Universidade
Estadual de Montes Claros, v. 16, 1997. p. 4.
151 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 101.
a cidadania
73
152 EUROPOP2013 (European Population Projections, base year 2013). Ver: <http://ec.europa.eu/eurostat/data/
database>; <http://ec.europa.eu/eurostat/web/population-demography-migration-projections:> <http://
ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/File:Immigration_by_citizenship,_2014_(%C2%B9)_
YB16.png>; <http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Migration_and_migrant_
population_statistics>. Acesso em: 02 jan. 2017.
153 DE LUCAS, J. Fundamentos filosóficos del derecho de asilo, Derechos y libertades: Revista del Instituto
Bartolomé de las Casas, n. 4, 1995, p. 23-56. Do mesmo autor: Puertas que se cierran. Europa como fortaleza,
Barcelona, Icaria, 1996.
154 HABERMAS, J. La idea de dignidad humana y la utopía realista de los derechos humanos. Anales de la
Cátedra Francisco Suárez, n. 44, Universidad de Granada. 201, p. 111.
155 O espaço e a cooperação Schengen se baseiam no Tratado Schengen de 1985. Refere-se a um território
onde está garantida a livre circulação de pessoas. Os Estados que firmaram o Tratado suprimiram todas as
fronteiras interiores e, estabeleceram uma única fronteira exterior. Dentro desta se aplicam procedimentos e
normas comuns no que se refere a vistos para estadias curtas, as solicitações de asilo e controles fronteiriços.
Ao mesmo tempo, se intensificou a cooperação e a coordenação entre os serviços policiais e de autoridades
judiciais para garantir a segurança dentro do espaço Schengen. A cooperação Schengen foi integrada no
direito da União Europeia pelo Tratado de Amsterdã em 1997. Contudo, nem todos os países que participam na
cooperação Schengen são membros do espaço Schengen, ou porque não desejavam suprimir os controles de
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
74 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
suas fronteiras ou porque não reuniam as condições requeridas para aplicar toda regulamentação prevista. As
principais normas aprovadas dentro do espaço incluem: 1) a supressão do controle de pessoas nas fronteiras
interiores; 2) um conjunto de normas comuns de aplicação às pessoas que cruzam as fronteiras exteriores
dos Estados membros da EU; 3) a harmonização das condições de entrada e de vistos de curtas estadias; 4)
uma melhora de coordenação policial (incluídos os direitos de vigilância e perseguição transfronteriça); 5) o
incremento da cooperação judicial através de um sistema de extradição mais rápido e uma maior agilidade
na execução de sentenças penais; 6) a criação de um sistema de Informações Schengen (SIS). In: <http://
eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri=URISERV%3Al33020>.
156 <http://www.cruzroja.es/portal/page?_pageid=174,12048652&_dad=portal30&_schema=PORTAL30>.
Acesso em: 02 jan. 2017.
157 PRONER, C.; QUEIROZ BARBOZA, E. M.; GUALANO DE GODOY, G., Migrações - políticas e direitos humanos
sob as perspectivas do Brasil, Itália e Espanha. Curitiba: Juruá Editora, 2015.
a cidadania
75
158 Espanha. Vid. Ley 12/2009, de 30 de octubre, reguladora del derecho de asilo y de la protección subsidiaria.
<https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2009-17242&p=20140326&tn=2&lang=en>. Acceso: 2
jan. 2017.
159 O Direito internacional define e protege aos refugiados. Os instrumentos jurídicos internacionais são vários.
Como resposta às atrocidades da II Guerra Mundial, a Declaracão Universal dos Direitos Humanos (1948)
refere-se ao direito de asilo em seu artigo 14, ao expressar que “em caso de perseguição, toda pessoa tem
direito a buscar asilo e a desfrutar dele, em qualquer país”. Na mesma linha a Convenção sobre o Estatuto
dos Refugiados, aprovada em Genebra em 28 de julho de 1951 e alterada pelo Protocolo sobre o Estatuto dos
Refugiados, firmado em Nova York em 31 de janeiro de 1967, constituem as duas disposições de referência,
em nível internacional sobre o direito de asilo.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
76 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
base essencial do direito de asilo costuma ser do tipo político e sobrevivência física.
Em troca na imigração estão mais presentes as conotações de caráter econômico
pelas desigualdades existentes entre os países de origem e o receptor.160
O princípio da não devolução – non refoulement – constitui a base da instituição
do asilo tal como o apresenta a Convenção de Genebra, em seu artigo 33, que
impossibilita a expulsão ou devolução de um refugiado nas fronteiras dos territórios
onde sua vida ou sua liberdade corram riscos em razão da raça, religião, nacionalidade,
de pertencimento a grupo social ou por suas opiniões políticas, salvo nos casos em
que o refugiado se apresente como um perigo para a segurança do país ou uma
ameaça para a comunidade.
A distinção tradicional entre imigrantes econômicos e peticionários de asilo
não está absolutamente clara e difundida, o que torna mais complexo definir que
legislação deve-se aplicar (e consequentemente que direitos lhes correspondem).161
Pelo menos 3.800 pessoas perderam a vida ou desapareceram em 2016
no Mediterrâneo.162 Em resposta à tragédia humanitária que se abatia sobre o
Mediterrâneo ante a chegada de milhares de pessoas, a Comissão Europeia adotou,
ainda em maio de 2015, uma Agenda Europeia de Migração, destinada a fortalecer a
política comum de asilo. A isso se deve somar que Sistema Europeu Comum de Asilo
(SECA)163 continua em tramitação prescrevendo diretivas concretas.164
160 Vid. MARTIN, Nuria Belloso. ¿La globalización de la indiferencia? Algunas reflexiones sobre los desplazados,
los migrantes y los refugiados en la Unión Europea. Revista do Direito, v. 3, n. 50, Programa de Pós-graduaçâo
em Direito – Mestrado – PPGD, Santa Cruz do Sul, UNISC, set.-dez. de 2016, p. 139-174. Disponível em: <https://
online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/8406>; también, MARTIN, Nuria Belloso. “The refugee
crisis in the European Union: the backgroundjusphilosophical” en SPRING 2016, UNOESC International Legal
Seminar. International Network of Human Rights. September 26-30, 2016, Chapecó/SC: Editora UNOESC,
2016. p. 91-112. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/uils/index>.
161 MARIÑO MENÉNDEZ, Fernando M. "El asilo en el Derecho de la Unión Europea". In: José María Beneyto
Pérez, Jerónimo Maillo González-Orús, Belén Becerril Atienza (Coord.) Tratado de derecho y políticas de la
Unión Europea, Vol. 8, 2016 (Ciudadanía europea y Espacio de Libertad, Seguridad y Justicia), p. 159-191.
162 DOMÍNGUEZ CEBRIÁN, B. Este 2016 bate el trágico récord de migrantes muertos en el Mediterráneo. In:
Diario El País, (27.10.2016). Disponível em: <http://internacional.elpais.com/internacional/2016/10/26/
actualidad/1477493447_075762.html>. Aceso em: 02 jan. 2017.
163 Ver “Un sistema común europeo de asilo”. Disponível em: <http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/e-library/
docs/ceas-fact-sheets/ceas_factsheet_es.pdf>. Aceso em: 10 jun. 2016.
164 Ver TFUE, TIT. V, Capítulo 2: Políticas sobre controles nas fronteiras, asilo e imigração.
165 INNERARITY, D; AYMERICH, I. (Comp.). Derechos humanos y política públicas europeas. Barcelona, Buenos
Aireas, México: Paidós, 2015. p. 14.
a cidadania
77
direitos no século XX acabou por desembocar em uma Europa fortaleza, que levanta
muros e abre valas para preservar a qualidade de vida de seus cidadãos e já não
uma Europa defensora dos direitos humanos. O reforço das fronteiras pode ser o
primeiro sintoma dessa nova fase e a crise dos refugiados se converteu em uma
mostra evidente dessas novas ideias.
Tem-se dito que o processo de integração europeia se desenvolveu, desde o
início, sem levar em consideração o princípio da soberania popular, Os gestores da
UE são vistos, pela maioria da população como uma elite tecnocrática.166 A cidadania
europeia não é assumida por seus titulares como uma característica de identidade
sólida, e sim tida como “um conjunto de vantagens justificáveis em termos utilitaristas”
(liberdade de circulação, isenção de taxas, homologação de títulos), mas não na linha
do “patriotismo constitucional” sustentado por Habermas167: uma identificação com
a comunidade política por ser um sistema compartilhado de liberdades públicas. A
debilidade desta identidade política baseada nos direitos fundamentais tem provocado
o ressurgimento dos velhos nacionalismos excludentes, inclusive a respeito dos
próprios europeus: movimentos políticos como “Os Verdadeiros Finlandeses”, a
“Frente Nacional Francesa” e outros.
A legislação aplicável ao asilo, ao gerenciamento de fronteiras e à imigração,
no marco do Direito da União Europeia e do Convenio Europeu de Direitos Humanos
é complexa. Para se ter uma ideia, basta verificar que a UE considera umas vinte
categorias diferentes de nacionais de terceiros países, cada uma com direitos
distintos, que variam segundo os vínculos da UE com seus Estados membros. Em
alguns casos, como o dos solicitantes de asilo, a UE possui um amplo conjunto de
normas.168
O Artigo 2º do Tratado da União Europeia estabelece que:
170 Os fundamentos jurídicos podem ser encontrados em: i) artigo 67, Inciso 2º, e artigo 78 do Tratado de
Funcionamento da União Europeia; ii) Artigo 18 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
171 Tratado de Lisboa, pelo qual se modifica o Tratado da União Europeia e o Tratado Constitutivo da Comunidade
Europeia. (2007/C 306/01). Disponível em: <https://www.boe.es/legislacion/enlaces/documentos/ue/Trat_
lisboa.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
172 ONGHENA, Y. La crisis de valores: la propia Unión Europea en tela de juicio. In: MORILLAS, P.; SÁNCHEZ-
MONTIJANO, E; SOLER, E. (Coord.). Europa ante la crisis de los refugiados. 10 efectos colaterales, Barcelona:
CIDOB, 2015. p. 5-7. Disponível em: <www.cidob.org/content/download/.../europa_ante_la_crisis_de_los_
refugiados.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2016.
a cidadania
79
173 ONGHENA, Y. La crisis de valores: la propia Unión Europea en tela de juicio, Op. cit., p. 8.
174 NAÏR, S. Refugiados frente a la catástrofe humanitaria, una solución real. Barcelona: Editorial Crítica, 2016.
175 No dia 2 de outubro de 2016, os húngaros participaram de um referendo para decidir se aceitavam ou não o
sistema de cotas de acolhimento obrigatório de refugiados decididos pela União Europeia. Com a consulta, o
primeiro ministro, férreo opositor do mecanismo de cotas – que junto com a Eslováquia recorreu ao Tribunal
de Justiça Europeu – deixa clara sua mensagem contra a imigração e a política europeia de acolhida de
refugiados. A pergunta do referendum era: Quer que a União Europeia possa impor acolhimento obrigatório
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
80 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
de cidadãos não húngaros na Hungria, mesmo sem a aprovação da Assembleia Nacional (Parlamento)? O
resultado do referendum foi de 98% dos votos válidos de “não”. Contudo a elevada abstenção e os votos
nulos invalidaram os resultados da consulta popular promovida pelo governo Húngaro, já que não havia
alcançado o quórum mínimo necessário para sua validação.
176 NAÏR, S. Refugiados frente a la catástrofe humanitaria, una solución real, Op. cit.
177 Ban Ki-moon, secretário geral das Nações Unidas, em seu Relatório In Safety and Dignity: Addressing Large
Movements of Refugees and Migrants, de 9 de Maio de 2016, apresenta algumas recomendações para levar-
se a cabo uma ação coletiva mais eficáz em nível mundial. Entre as recomendações destaca a necessidade
de prestar-se mais atenção aos fatores que impulsionam as migrações forçadas. As Nações Unidas seguem
intensificando seu trabalho para prevenir conflitos, resolver disputas de forma pacífica e fazer frente às
violações aos direitos humanos. Para isso dispõe agora de um instrumento novo e poderoso: a Agenda 2030
para o Desenvolvimento Sustentával, um plano de ação acordado em 2016 por 193 membros da ONU, onde
se dá destaque especial na justiça, nas instituições e nas sociedades pacíficas. In: <https://refugeesmigrants.
un.org/secretary-generals-report>. Acesso em: 31 ago. 2016. A relevância desse tema para a UE fica evidente
quando esta elege a crise dos refugiados e o crescimento econômico como prioridades na cúpula do G20,
que ocorrerá no próximo dia 4 e 5 de setembro de 2017. Assegura que pedirá um incremento para a ajuda
humanitária e apoio para os refugiados e suas comunidades de acolhida através de instituições financeiras
internacionais assim como para combater a imigração irregular.
178 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica. Isegoría, n. 32, p. 47-62, 2005. Disponível em: <https://dialnet.
unirioja.es/ejemplar/128982>.
a cidadania
81
181 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica: ¿una influencia desestabilizadora? Trad. de Carmen Velayos Castelo.
Isegoría, n. 24, p.167-187, 2001. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/50223618_
Ciudadania_ecologica_una_influencia_desestabilizadora>.
182 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica, cit., p. 52-53.
183 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica, cit., p. 56.
a cidadania
83
Este é outro motivo pelo qual a resposta ecológica a pergunta “a quem se deve
obrigações de cidadania?” difere tanto do liberalismo como do republicanismo cívico
e da cidadania cosmopolita: essas obrigações se devem tanto ao futuro como ao
presente. Uma decorrência muito importante desses tipos de obrigação ecológica e
a quem são dirigidas, é que não apresentam expectativas de reciprocidade.
A cidadania ecológica pode contribuir para a ‘remoralização’ da política. O
cidadão ecológico faz o que deve, não tanto como reação a incentivos, mas porque
é correto. Nesse sentido, a ideia de cidadania ecológica ajuda a transformar qualquer
sociedade em uma mais sustentável. A cidadania ecológica ‘contém’, indubitavelmente,
as virtudes da cidadania liberal e da republicana. Como bem aponta Barry:
184 BARRY, John: Rethinking Green Politics. Londres, Thousand Oaks, Nueva Delhi: Sage, 1999. p. 231.
2 DEMOCRACIA
185 Uma profunda análise da democracia exigiria fixarmo-nos no estudo do poder, de sua legitimação e de seus
limites, isso porém, desbordaria o objetivo do estudo a que nos propomos. Recomendamos ver: PINILLA,
Ignacio Ara. El fundamento de los límites al poder en la teoría del derecho de León Duguit. Madrid: Editorial
Dykinson, 2006; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Poder, Ordenamiento jurídico, derechos. Madrid:
Dykinson, 1997.
186 KELSEN, Hans. Escritos sobre la democracia y el socialismo. Madrid: Editorial Debate, 1988. p. 208.
187 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 129.
democracia
85
Assim também age Sánchez Rubio que foge de uma conceituação preferindo
uma descrição:
boa regência.
Aristóteles, ainda que afirmasse que a cidade foi criada pelos homens, não
questionou a legitimidade do poder político. Ao indagar sobre possíveis governantes,
apresenta 5 (as massas, os ricos, os bons, o melhor dos homens, um tirano)
destacando os inconvenientes da cada um, sem se preocupar com a legitimidade de
cada.191
Para Santo Agostinho, o poder político desempenha um papel importante na
sociedade terrestre, porque garante a unidade e a segurança dos cidadãos. Assim,
pregava que os cidadãos devem trabalhar e viver juntos, dentro de uma ordem,
portanto devem submeter-se às leis e à autoridade mesmo que essas sejam injustas,
afinal a verdadeira justiça não está nesse mundo. Pregava, pois, a submissão aos
governantes sem qualquer questionamento quanto à sua legitimidade.192
Tomás de Aquino abordou diretamente a questão do governo e do poder. Em
De regimine principum, estabelece critérios éticos para os governantes. Defende uma
monarquia em estrita justiça, onde o poder está sujeito ao direito natural e que o
governante também está sujeito a essa lei. Ao questionar-se se o governo deve ser
de muitos ou de um, responde que o poder deve pertencer a uma única pessoa (o
rei) que deve ser como um pastor, buscando o bem comum da sociedade e nunca o
seu. Argumenta que:
191 ARISTÓTELES. Política. Texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2001.
192
<http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2008/02/santo-agostinho-e-politica.html>; STRATHERN, Paul.
Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1999.
193 AQUINO, Tomás de. La monarquía. Estudio preliminar, traducción y notas de ROBLES, Laureano y CHUECA,
Ángel. 3. ed. Madrid: Techos, 2002. p. 15.
194 AQUINO, Tomás de. La monarquía. Estudio preliminar, traducción y notas de ROBLES, Laureano y CHUECA,
Ángel. 3. ed. Madrid: Techos, 2002. p. 21.
democracia
87
Na Europa dos Norte, os povos vikings provavelmente nada sabiam das práticas
democráticas e republicanas desses povos, e seguramente não se importariam com
elas. Contudo, ensina Dahl, por volta do ano 600 d. C. surge o costume de reunirem-se
os vikings livres (não somente os guerreiros, mas artesãos, pequenos proprietários,
agricultores, ...) em uma Assembleia denominada Ting. Nesta Assembleia discutia-se
a aprovação ou rejeição de leis, resolviam-se conflitos e dispunha-se sobre as futuras
ações da comunidade. Aqui também era eleito ou aclamado um Rei, que deveria jurar
obediência às leis aprovadas pela Ting. Esta prática era tão importante e arraigada na
consciência dos indivíduos que, quando os vikings se aventuraram a outras terras, a
transplantaram, criando Assembleias regionais (Althing - uma espécie de supra Ting)
que na Islândia, por exemplo, por mais de 300 anos foi a fonte de toda sua legislação;
o mesmo ocorreu na Noruega, Dinamarca e Suécia. Estas Assembleias regionais
mais tarde se transformaram em Assembleias nacionais, originando o parlamento
representativo moderno desses Estados.199
Enquanto isso, no Oriente Médio, Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb – conhecido
como Saladino, uniu todos os povos árabes contra os cruzados e impôs uma derrota
aos três mais poderosos reis da Europa: Filipe Augusto (França), Ricardo Coração de
Leão (Inglaterra) e Barbarossa (Sacro Império Romano-Germânico) reconquistando
Jerusalém para os mulçumanos. Suas vitórias e conquistas somente ocorreram pela
unificação de povos árabes e correntes religiosas. Tal feito deve-se a ser Saladino,
além de um líder íntegro, ético, cavalheiro e fiel, ser um hábil político. A unificação
de correntes tão diversas somente ocorreu por permitir aos líderes tribais, chefes
guerreiros e líderes religiosos participarem das decisões através de um Conselho,
onde todos eram ouvidos antes da tomada de decisões.
Em 1556, Jalal al-Din Mohamed Akbar – Akbar, o Grande – é proclamado
imperador mongol. Seu império estendia-se por um vasto território onde existiam
várias religiões em permanente confronto (bramanismo, budismo, zoroastrismo,
islamismo e cristianismo). Akbar, convencido de que a verdade existia em todas as
religiões, mas que nenhuma delas possuía a verdade suprema, aboliu o islão como
religião do Estado, obrigando a todos a respeitar a todas as religiões e distribuiu
altos postos de governança, obedecendo o percentual da representatividade das
religiões. Iniciou a fusão dos feudos e criou um Estado absolutamente laico e liberal,
com ênfase na integração cultural. Sua maior marca foi a administração das receitas,
que deveria ser proveitosa para os camponeses e para o Estado e eram fiscalizadas
por três administradores, representantes do governo e do povo.200
Na Europa feudal, a partir do século XI, a vida agrícola e comercial se intensifica,
india_persons_ashoka.html>.
199 DAHL, Robert A. La democracia. Op. cit., p. 21 e ss.
200 Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo. 1999. V. 1. p. 137, também: <http://www.dec.ufcg.edu.br/
biografias/AbuAkbar.html>.
democracia
89
201 TILLY, Charles. Democracia. Tradución de Raimundo Viejo Viñas. Madrid: Akal, 2010. p. 61-65.
202 O termo "sejm" vem de uma antiga expressão polaca que significa uma reunião da ralé. Sua origem é muito
anterior a 1182, mas seu poder político se consolidou no periodo da fragmentação da Polônia (1146-1295),
quando o poder de governos individuais diminuiu e vários conselhos se fortaleceram. O primeiro Sejm Geral
convocado pelo Rei Olbrazht em 1493 e evoluiu de encontros anteriores regionais e provinciais. Desde então
tem se reunido irregularmente, em média uma vez por ano. No sistema politico criado pela Constituição da
República da Polônia de 02.04.1997, o atual parlamento é constituido pelo Sejm (câmara baixa - formada por
460 deputados eleitos em eleições gerais e secretas para um período de 4 anos) e pelo Senado da República
da Polónia. <http://www.sejm.gov.pl/english/sejm/sejm.htm; http://opis.sejm.gov.pl/en/index.php>.
203 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, moral e religião no mundo contemporâneo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006. p. 644-650.
democracia
91
204 HELD, David. Modelos de democracia. 3. ed., trad. Mª. Hernández, Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 331.
205 Idem, p. 267.
206 LINARES, Sebastián. Democracia participativa epistémica. Madrid: Marcial Pons, 2017. p. 33.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
92 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
213 LINARES, Sebastián. Democracia participativa epistémica, cit., p. 53. MARTÍ, José Luis. La república
deliberativa: una teoría de la democracia. Barcelona: Marcial Pons, 2006. p.170-173.
214 Este ponto já foi exposto por BELLOSO MARTÍN, Nuria. Impacto de las nuevas tecnologías en la política. In:
GORZEVSKI, Clovis (Org.). Direitos Humanos e participacâo polìtica. Vol. II, Porto Alegre: Imprensa Livre,
2011. p. 75-106.
215 Neste ponto, sobre a cibercidadania e a teledemocracia em sua versão ‘frágil’ e ‘forte’ seguiremos os
ensinamentos de Antonio Enrique Pérez Luño, em sua obra ¿Ciberciudadani@ o ciudadaní@..com?
Barcelona: Gedisa, 2004.
democracia
95
216 SUNSTEIN, Cass R. República.com. Internet, democracia y libertad. Trad. de P. García Segura. Barcelona:
Paidós, 2003.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
96 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
217 SARTORI, Giovanni. Homo videns. La sociedad teledirigida. Trad. de A. Díaz Solar. Madrid: Taurus, 1998.
218 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Democracia directa y democracia representativa en el sistema constitucional
español. In: Anuario de Filosofía del Derecho, 2003, p. 63. (Monográfico: Veinticinco años de la Constitución
española de 1978. Aspectos jurídicos y políticos). Disponível em: <https://www.boe.es/publicaciones/
anuarios_derecho/articulo.php?id=ANU-F-2003...>.
219 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Democracia directa y democracia representativa en el sistema constitucional
español. Ibidem.
220 A expressão “O atrativo da democracia direta” constitui o enunciado de um dos capítulos da obra de Fishkin,
Democracia y deliberación. Trad. Cast. De J. Malem Seña, Barcelona: Ariel, 1995. p. 45.
democracia
97
221 Defendia Rousseau a tese de que quanto o povo se dá representantes, deixa de ser livre: “O povo inglês pensa
que é livre, mas se engana completamente; somente o é, durante a eleição dos membros do parlamento, uma
vez que estes são eleitos, se convertem novamente em escravos”. Rousseau, J.J., 1762; vol.III, cap. XV.
222 VALDEZ CEPEDA, Andrés. Las ciber-campañas en América Latina: potencialidades y militantes. In: CERRILLO
MARTÍNEZ, A.; PEGUERA, M.; PEÑA-LÓPEZ, I.; VILASAU SOLANA, M. (Coord.). Neutralidad de la red y otros
retos para el futuro de Internet, Actas del VII Congreso Internacional de Internet, Derecho y Política. Universidad
Oberta de Catalunya, Barcelona 11-12 de julio de 2011. Barcelona: UOC-HUYGERS. p. 539-554.
223 VALDEZ CEPEDA, Andrés. Las ciber-campañas en América Latina, Op. cit., p. 552.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
98 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
226 SARTORI, Giovanni. Homo videns. La sociedad teledirigida. Op. cit., p.128-129.
democracia
101
Por fim, atenção à lição de Pérez Luño: apesar das vantagens que apresenta
a democracia direta, não devemos nos esquecer das contribuições da democracia
representativa. Esta última é imprescindível para assegurar a deliberação, enquanto
a democracia direta é mais eficaz para garantir a participação popular. Daí conclui
que, para se oferecer um quadro mais adequado na garantia dos direitos e liberdades
no marco do Estado de Direito Constitucional, não se deve optar por um destes tipos
alternativos de democracia, há sim que se reforçar sua complementariedade.227
227 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Democracia directa y democracia representativa en el sistema constitucional
español. Ibidem.
228 GÓMEZ, María Isabel Garrido. Las democracia en la esfera jurídica. Navarra: Aranzadi, 2013. p. 30. Gómez
destaca, acertadamente, que as interpretações da democracia deliberativa não são unânimes e vão
se apresentando, ao longo do século XX, diferentes versões de como funcionam os processos do ideal
delibeativo, dando mais destaque a vocação universalista, a partir de sua origem kantiana, como e o caso de
Habermas – com sua teoria da ação comunicativa – e de Rawls – com sua teoria da justiça.
229 Ver. MARTIN, Nuria Belloso. Repensando la democracia en la perspectiva de las teorías deliberativas: En busca
de unos ciudadanos deliberantes. In: MARTÍN, N. Belloso; CAMPUZANO, A. de Julios (Coord.). El retorno a
la sociedad civil: democracia, ciudadanía y pluralismo en el siglo XXI. Madrid: Dykinson-IISJ, 2011. p. 207-237.
Tambén, ver: MARMOL, José Luis Martí. La república deliberativa. Uma teoria de la democracia. Prólogo de
democracia
103
seria, conforme os pressupostos da teoria discursiva, aquele modelo político em que a legitimidade das
normas jurídicas e das decisões políticas, radicaria em haverem sido adotadas com a participação de todos
os potencialmente afetados por elas. Admite que, dadas as dificuldades para alcançar a união do ideal e do
possível, há que estabelecerem-se certas ‘mediações’ que garantam uma fluida comunicação. Crê encontrar
nas instituições constitucionais vigentes (divisão de poderes, vinculação da atividade estatal ao direito e,
principalmente, os procedimentos eleitorais e legislativos) um reflexo das exigências normativas de seu
modelo político. (Conforme. VELASCO, Juan Carlos. Para leer a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, 2007)
Para ler a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, p.106-109) em “queremos um mundo em que tal coisa seja
possível”
233 CORTINA, Adela. Democracia deliberativa, op. cit.
Em não raras ocasiões temos assistido a inúmeras reuniões nas quais de debatia entre possíveis opções,
com argumentos e contra-argumentos, abrindo um amplo leque de possibilidades até que o emaranhado
de opções era tal que se levantava uma voz para dizer: porque não votamos e acabamos logo de uma vez?
Martí nos ofereçe um conceito de democracia deliberativa: “A democracia delibeativa é um ideal normativo,
defendido por um modelo teórico de democracia que propõe a adoção de um procedimento coletivo na
domada de decisões políticas com a participação direta ou indireta de todos os potencialmente afetados por
tais decisões e baseado no princípio da argumentação, em lugar do voto ou da negociação”. (MARTÍ, J. L. La
república deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons, 2006. p. 314.
democracia
105
234 Citamos aqui um exemplo apresentado por F. Ovejero, para esclarecer em que consite a deliberação. Trata-
se condomínios e uma escada, assim: uma pequena comunidade de condomínios se reune para decidir se
instalam ou não um elevador. A mais interessada é uma senhora idosa que vive no último andar e tem muitas
dificuldades para subir ao seu apartamento. De outro lado, os casais sem filhos dos primeiros três andares,
que com grandes dificuldades econômicas compraram seu apartamento, não estão dispostos a votar uma
proposta que lhes exija novos sacrifícios econômicos para instalar um elevador pefeitamente dispensável
para eles. Também é de muito pouco interesse a um jovem solteiro economicamente bem sucedido, mas que
unicamente tem o apartamento para algun fim de semana que passa na cidade. As regras do jogo parecem
claras: a decisão é tomada somente pelos afetados. É uma clara mostra do procedimento democrático.
Contudo há alguns aspectos que poderiam ser discutidos. Cada apartamento é uma unidade de decisão
e possui um voto, independentemente de quantas pessoas vivam nele. Inclusive, iniciada a discussão, se
poderia questionar se deve valer o mesmo a voto do solteiro que apenas eventualmente utiliza o apartamento,
lhe importando muito pouco o que ocorre no prédio. Aqui sim, há um aspecto reconhecido do sistema
democrático: contam as vozes de todos e contam por igual. Em segundo lugar, há que questionar-se se a
decisão deve ser adotada por maioria ou unanimidade. O melhor seria por unanimidade mas isto pode exigir
muito tempo até que todos sejam convencidos de que instalar um elevador será benéfico para todos. Se não
houvessem interesses conflitantes ou problemas de recursos seria fácil chegar-se à unanimidade, mas basta
que um morador se negue para que nada se possa fazer. De fato, conforme a lei vigente, a decisão de se
instalar um elevador em um edifício deve ser adotada por unanimidade. Outra possibilidade é que antes de
votar se inicie uma negociação entre os moradores, destacando a valorização dos imóveis se ali se instalar
um elevador. Aqui o resultado não seria bom ou justo e sim conveniente ou interessante. E quando chegar
a hora da votação alguns moradores podem se negar sem ter que justificar sua negativa. Por exemplo, os
do primeiro piso, simplesmente porque não lhes interessa, já que jamais utilizaram o elevador. Enfim, em um
caso a decisão final pode ser o resultado de um processo de negociação onde se recorre à força (em votos)
de cada um. A decisão dependerá dos votos que respaldem a cada uma das opiniões e da regra de decisão.
Se basta a metade mais um para que seja aprovada, será muito limitada a capacidade de influir na decisão
final das minorias. Em outro caso, na deliberação, a decisão é o remate final de um processo de discussão
em que se apela a razões, em princípios aceitaveis por todos. Não se pode dizer: “deve ser assim porque é
melhor para mim”. A decisão adotada dependerá do valor dos argumentos que respaldem cada ponto de
vista. Por exemplo, não se pode apresentar uma proposta de deliberação que o solteiro rico pague todos os
gastos.
235 Nem os defensores da tese da independência como E. Burke defendem uma liberdade absoluta por parte
dos representantes, nem os defensores da tese da dependência, como S. Mill, querem converter estes em
autômatos delegados, o que anularia a própria relação de representação. (Cf. MARTÍ, José Luis. La república
deliberativa. Una teoría de la democracia, cit., p. 236). Uma teoria da representação deve responder a estas
quatro questões: 1) Quem deve ser o representante?; 2) Como selecionamos o representante?; 3) Qual é o
vínculo entre representante e representado?; 4) Como deve se realizar a representação?. Mesmo depois das
revolução liberais, os conceitos de democracia e de representação se distinguiam e, inclusive, se opunham.
Depois evoluiram até chegar à ‘representação democrática’, por um lado, e à ‘democracia representativa’, por
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
106 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
outro. O problema desta transformação é que acabou voltando as costas ao legítimo sentido da representação.
P. Bachrach, um dos maiores estudiosos do elitismo político destaca que “todas as teoria da elite assentam-se
em dois supostos básicos: primeiro, que as massas são intrinsecamente incompetentes e, segundo, que são,
na melhor das hipóteses, matéria inerte e moldável à vontade e, na pior, seres ingovernáveis e desenfreados
por uma inclinação insaciável de minar a cultura e a liberdade. Portanto, a filosofia elitista tem como corolário
a ideia férrea de uma elite criativa e dominante”. (Citação extraída de Martí, José Luis, ibidem).
236 MARTÍ, José Luis. La república deliberativa. Una teoría de la democracia, op. cit., p. 268-269.
Os mecanismos institucionais de participação democrática-deliberativa podem ser vários. J.L. Martí apresenta
os seguintes: 1) direito de petição e iniciativa legislativa popular; 2) mecanismos de participação de associa-
ções nas deliberações; 3) consultas e referendos deliberativos; 4) participação nas administrações públicas;
5) Órgãos independentes de participação semidireta: a) conselhos de cidadãos; b) deliberative polls; c) deli-
beration day; d) foros deliberativos de associações; e) orçamentos participativos – como o da cidade de Porto
Alegre.
democracia
107
237 CASTILLO, Adolfo; VILLACIENCIO, Hugo. Hacia una democracia deliberativa. La experiencia del presupuesto
participativo/san Joaquín 2004, Asociación Chilena de Municipalidades, 2005.
238 CORTINA, Adela. Democracia deliberativa, cit.
239 HABERMAS, Jürgen. [1983] Conciencia moral y acción comunicativa. Barcelona: Ed. Planeta-Agostini, 1994.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
108 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
240 Em uma entrevista realizada por A. Malamud, com Philippe C. Schmitter, sobre a democracia deliberativa
(publicada em Reset 83, Roma, maio-junho de 2004) destacava este que, a partir de uma conferência
realizada por J. Fishkin no Instituto Universitário Europeu de Florença sobre a “sondagem deliberativa”,
discutiu-se a possibilidade de utilizar-se a sondagem deliberativa em nível europeu, especialmente no que
se referia à convenção constituinte. Mas Schmitter pensou que não era boa ideia por duas razões: 1) em
uma sondagem deliberativa é requisito essencial que as pessoas escolhidas por sorteio façam parte de uma
unidade sobre a qual todos estejam de acordo. E a Europa não é uma unidade que reúne esta característica;
2) As sondagens deliberativas se referem a medidas políticas específicas, e o problema que se apresentava
em nível europeu referia-se a um tema absolutamente amplo e não centrado em duas ou três questões
pontuais. Por isso Schmitter apresentou a proposta para a criação de uma “Assembleia de Cidadãos”: uma
assembleia convocada por pouco tempo, uma imitação do Parlamento Nacional, de modo que estas pessoas
pudessem sentar-se no parlamento durante o recesso legislativo e receber o mesmo salário de um deputado.
Deveriam concentrar suas atenções em três temas legislativos. Com tempo suficiente para preparação e
deliberação, qualquer grupo de cidadãos deveria estar capacitado para propor uma discussão razoável e
produzir uma avaliação sensata sobre um tema relevante. Nem todos poderiam ser eleitos: presidiários e
doentes estariam fora. O único pré-requisito é que existisse uma democracia representativa prévia com um
nível mínimo de educação e com baixos níveis de discriminação efetiva. Considera que esta proposta poderia
democracia
109
ser incorporada às leis internas do Parlamento para que a soberania popular não fosse afetada. Tratar-se-ia de
uma comissão dentro do parlamento, mas composta por não parlamentares. A ideia não é que a assembleia
se reúna e debata se determinado projeto é bom ou mau, mas se é bom ou mau dentro do contexto em que
está inserido. E sempre deixando claro que a proposta é a de uma democracia deliberativa, não participativa –
embora seguramente, a deliberação ecoe como um incremento da participação. Por exemplo. “suponhamos
que Berlusconi pretenda aprovar uma lei que lhe permita comprar totalmente a televisão italiana e que possui
deputados suficientes para aprovar a proposta. Mas suponhamos que um terço dos deputados pensem ‘um
minuto, isto é uma loucura, isto vai completamente contra todos os princípios democráticos de divisão de
poder e conflito de interesses’. Então, a aplicação desta lei ficaria suspensa até que se reúna a Assembleia
Cidadã.” Tem-se que, para os deputados, seria uma vergonha que se aprovasse tal lei que nem sequer
um grupo de cidadãos comuns havia aprovado. (extrato da entrevista, p. 20); Ver também SCHMITTER,
Philippe C. El diagnóstico y el diseño de la democracia. Sistema: Revista de ciencias sociales, n. 203-204,
2008 (Exemplar dedicado a: Nuevos desarrollos de la democracia). p. 45-53.
241 HELD, David. Modelos de democracia, op. cit., p. 351-357.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
110 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
das crianças, desde tenra idade, para ajudar a desenvolver suas capacidades e
fomentar seu espírito crítico e deliberativo.
Para levar adiante as propostas citadas, deve-se contar com o apoio dos
partidos políticos, sindicatos, parlamentos, comitês supranacionais e organismos
internacionais, associações públicas e privadas, operadores jurídicos e tribunais,
enfim, deve-se contar com a participação da classe política e dos cidadãos. Tudo isso
levará a uma renovação da democracia representativa que arraigada no consentimento
livre e razoado dos cidadãos – a deliberação – acabaria desembocando em uma
democracia participativa e deliberativa. As condições para tal objetivo se assentam no
pluralismo de valores, no programa de educação cívica, em uma cultura e instituições
que respaldem o desenvolvimento de preferências maturadas e, evidentemente,
também o financiamento público de organismos e práticas de deliberação e de
associações que os apoiem.242
Resta ainda o questionamento se a democracia deliberativa constitui uma
mudança paradigmática. Como acertadamente profere Held, até onde e até que ponto
se entenda a democracia deliberativa como um modelo inovador de democracia ou
como uma mudança na forma que se entende e funciona a democracia representativa,
é uma questão que deverá seguir se debatendo.243
Desde então, e até hoje, o acordo fundamental que se exprime nesse contrato
social foi concretizado, tanto nos antigos como nos modernos Estados, em uma
Constituição. A Constituição é o resultado de uma deliberação política – quando
não uma simples negociação – em um momento histórico-social determinado,
entre forças e valores desiguais, dentro de um amplo espaço democrático formal.
Daí que o resultado de tais negociações e coerções, mais ou menos invisíveis, seja
necessariamente parcial e induzido a uma ideologia embora suficientemente válido e
legítimo para fundar e dirigir um regime democrático, sancionado e, ademais, e isto
é decisivo, referendado pelo povo (demos).245
Um cidadão republicano é o que configura uma democracia, porque os liberais,
carecem, inclusive, do conceito que é o primordial para os republicanos: o de
comunidade política, existência comum, uma vez que sem comunidade política não
há cidadãos, mas indivíduos liberais. Para os liberais o essencial é estar livre de
vínculos, é o ideal da não interferência, tanto por parte do Estado como por parte dos
demais indivíduos. Representa a primazia do indivíduo sobre todos os demais, com a
conseguinte conquista dos direitos civis e políticos. Os direitos civis justificam-se por
serem os que garantem a independência do indivíduo.
Os direitos políticos asseguram ao indivíduo planificar sua vida como desejar:
pode dedicar-se somente à vida privada (negócios, profissões liberais) ou pode
optar por formar parte de uma classe política profissional através da representação
política, o que não deixa de ser uma contradição já que, se o indivíduo liberal defende
sua autonomia, como pode aceitar que outro indivíduo represente seus interesses
políticos? A resposta é bem posta por Carracedo que esclarece que tal desvirtuamento
teria como objetivo burlar os interesses do proletariado o que somente se poderia
conseguir através da burguesia. Isto é, os burgueses disporiam dos adequados
contatos sociais, possuiriam cultura, recursos econômicos e demais condições para
exercer o poder político. A preeminência política se completou quando se fixou o
modelo indireto de representação, com o qual se afastava o controle popular efetivo.246
Por tudo isso, o liberalismo não questiona programas de educação cívico-
política, ao contrário, desencoraja toda e qualquer tentativa de participação política
dos cidadãos, deixando-a nas mãos de profissionais e especialistas.
Mesmo depois das revoluções liberais os conceitos de democracia e de
das decisões importantes tomadas por seus representantes, permitindo que seus assuntos privados sejam
decididos, esquecendo (ou transferindo) suas responsabilidades públicas. Através de um processo direto os
cidadãos não somente se envolvem mais com os temas que lhes dizem respeito, mas também se vinculam
nas decisões tomadas, e não permitem a negociação de seus interesses privados. Ante a dificuldade – ou a
impossibilidade – de um regime direto de democracia em grandes Estados, Rousseau acaba “abrindo a porta”
a outra democracia, que necessita de mediadores, de delegados ou de representantes, a qual conhecemos
hoje como democracia representativa.
245 CARRACEDO, José Rubio. Teoría crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 130-131.
246 As classes populares constataram rapidamente este predomínio abusivo, o que deu lugar às revoluções
(fracassadas) de 1830 e 1848.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
112 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
247 MARTÍN, Nuria Belloso. Breves apuntes sobre el incumplimiento contractual de una promesa electoral.
Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, UNISC, n. 27, p. 83-120, jan./jun. 2007.
democracia
113
de 1947: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeitos. Tem-
se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas demais formas
que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. Basta vermos os resultados.
Para Castillo, a prova está em ver “para onde se dirigem as balsas”. Estas frágeis
embarcações que transportam os imigrantes ilegais, em sua maioria, em busca de
melhores condições de vida. A prova da direção dessas balsas é um indiscutível
indicativo de onde se vive melhor e de qual o sistema político melhor contribui para
o bem-estar humano. As balsas não seguem da Espanha para o Marrocos, ou para
a Síria, ou da Europa para a África; os balseiros não cruzam o Caribe para escapar
dos Estados Unidos e refugiar-se em Cuba; as escaladas no muro de Berlim não
eram de Berlim Ocidental para Berlim Oriental. Um número infinito de pessoas joga
sua própria vida, com uma alta probabilidade de perdê-la, para trocar de sistema
político.248 Ocorre que a ideia de democracia está indissoluvelmente vinculada às
idéias de dignidade, liberdade e igualdade entre os homens, constituindo-se em
um corolário de tais princípios, portanto somente em uma democracia os direitos
humanos podem ser efetivamente concretizados. O respeito aos direitos humanos
está indissociavelmente unido à democracia porque respeitar os direitos do homem
significa respeitar sua liberdade de opinião, de associação, de manifestação e todas
as demais liberdades que somente uma democracia permite.
Quanto a seu modelo, considerando a impossibilidade prática da democracia
direta nos Estados contemporâneos, Castillo aponta a democracia liberal como a
mais adequada e apresenta suas características básicas:
248 CASTILLO, Manuel Escamilla. Demos y democracia. In: Anuario de Filosofía del Derecho. Tomo XXIII. Madrid:
BOE – Ministerio de Justicia, 2006. p. 272.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
114 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
249 Idem.
250 FERNÁNDEZ, Ernesto Ganuza; SOTOMAYOR, Carlos Álvarez. Democracia y presupuestos participativos.
Barcelona: Icária, 2008. p. 16-17.
251 NINO, Carlos S. La paradoja de la irrelevancia moral del gobierno y el valor epistemológico de la democracia.
In: NINO, Carlos S. El constructivismo ético. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989. p. 113-133.
252 MOSCA, Gaetano. In: BALLESTEROS. Alberto Montoro. Razones y límites de la legitimación democrática del
derecho. Murcia: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Murcia, 1979. p. 31.
democracia
115
253 Esta teoria, recentemente, volta a ser sustentada por Harrington, Schumpeter e Sartori, dentre outros.
254 Veja-se a Declaração do Bom Povo da Virgínia; a Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do
Homem, artigo 20; a Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo XXI; o Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos, artigo 25.
255 IBÁÑEZ, Alberto J. Gil. Están preparados los políticos para gobernarnos? In: Notario del siglo XXI, n. 32.
Madrid: Revista del Colegio Notarial de Madrid, 2010. p. 8.
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116 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Como destaca Carracedo, chama a atenção que a classe política seja uma das
poucas que careça de um código de ética. É certo que outras classes profissionais o
possuem (médicos, advogados, jornalistas), entretanto a classe política, tristemente
conhecida em muitas ocasiões por casos de desvios e corrupção nem sequer o cogitou.
Não necessitam? A realidade nos diz o contrário. Ministros, senadores, deputados,
governadores, secretários, prefeitos, vereadores e tantos outros integrantes da classe
política encontram-se muitas vezes envolvidos em negócios suspeitos, em questões
de tráfico de influências ou no uso de informações privilegiadas, que provocam
ceticismo nos cidadãos com relação à classe política. E são estes que devem velar
pelo bem comum, por nossos interesses? É o vale tudo para triunfar. Como alertou
Montesquieu “quem tem poder tende a abusar dele”, consideram tolos aqueles que
atuam com o mínimo de ética. Cada um, segundo seu grau de poder e de influência
atua corruptamente. Pode-se iniciar com boas intenções, mas depois, se cria uma
espécie de couraça contra a consciência ética, porque “afinal de contas, todos fazem
e, portanto, não pode ser tão mal” e se revestem de impunidade.
Evidentemente o povo, os cidadãos também não estão livres de culpa. O demos
não está devidamente preparado, se deixam convencer pelo líder carismático, por
aquele que os meios de comunicação apoiam, por aqueles que ao insistir maciçamente
acabam os convencendo.
259 LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade:
causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013. p. 81.
260 STARLING, Heloisa Maria Murgel. Ditadura Militar. In: AVRITZER, Leonardo (Org.). Corrupção: ensaios e
críticas. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 259. Citação extraída de LEAL, Rogerio Gesta. Patologias corruptivas
nas relações entre Estado, administração puiblica e sociedade: causas, consequências e tratamentos. Op.
cit., p. 34.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
118 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
261 FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política. In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo
A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 45.
262 GARCÍA MEXÍA, Pablo. Ética y gobernanza. Estado y sociedad ante el abuso de poder. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2008. Citação extraida de FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política.
In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion.
Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 45.
263 Citação extraida de FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política. Op. cit., p.
45.
264 Malem Seña destaca que o esquema conceitual que formula não somente tem a vantagem de oferecer uma
melhor explicação das teses em uso, mas que permite atribuir diferentes tipos de responsabilidades aos
agentes intervenientes nas distintas corrupções, sem fazer que estas responsabilidades dependam umas das
outras. MALEM SEÑA, Jorge F. La corrupción: algunas consideraciones conceptuales y contextuales. Revista
Vasca de Administración Herri-Arduraritzako Euskal Aldizkaria, n. 104.2 (Exemplar extra dedicado a la lucha
contra corrupción), p. 27, 2016.
democracia
119
Aponta dez contextos favorecedores da corrupção: 1) quando o sistema punitivo é ineficaz; 2) quando os
atos de corrupção não são tipificados como delitos; 3) Quando as instituições e os órgãos anticorrupção
carecem de eficácia, cumprindo função meramente decorativa no plano jurídico-político; 4) quando os juizes
não prolatam sentenças condenatórias aos corruptos; 5) quando os juizes se veem obrigados a sentenciar
de conformidade com acordos estabelecidos entre o Ministério Público e a defesa dos acusados; 6) quando
se confirmam os atos jurídicos que são objeto de acordos corruptos; 7) da mesma forma os incentivos para
a corrupção se produzem quando não se recupera, por parte do Estado, os ativos subtraidos ou envolvidos
através da corrupção; 8) quando se criam vazias e fúteis comissões parlamentares de investigação para
determinar a responsabilidade política por atos de corrupção; 9) a reabilitação política dos suspeitos e
inclusive condenados por corrupção, também constitui uma forma de alimentar a ideia de que ser corrupto
gera insignificantes custos políticos , ao contrário, produzem certo reconhecimento e êxito político-social; 10)
as chamadas ‘portas giratórias’ também facilitam a proliferação da corrupção. Através delas se produz um
circular e incessante translado de pessoas que passam do mercado privado a organismos estatais e destes
às empresas de origem, uma vez cumprido seus mandatos. Neste caminho, quando ocupam cargos públicos,
costumam beneficiar as empresas de onde procedem e para onde voltarão, generosamente recompensados.
MALEM SEÑA, Jorge F. ‘La corrupción: algunas consideraciones conceptuales y contextuales’. Op. cit., p.
35-36.
265 MALEM SEÑA, Jorge F. La Corrupción Política. Jueces para la democracia, n. 30, p. 27, 2000. Seña dá
especial atenção a corrupção política na medida em que os partidos políticos se constituem o principal ator
das democracias contemporâneas. Claro que há outros atores políticos, tais como os movimentos cidadãos,
associações de empresários, sindicatos, etc., mas os partidos políticos são organizações complexas que
necessitam de recursos elevados para poderem funcionar adequadamente (alto custo de propaganda eleitoral,
necessidade de especialistas que lhes ajudem a tomar decisões políticas tecnicamente aceitáveis, descenso
dos afiliados e dos militantes políticos). Isso provoca que, em algumas ocasiões, busquem financiamentos
irregulares, ou inclusive, ilegais. Uma das atuações mais frequentes tem sido a compensação na conceção
de obras públicas (construção de estradas, linhas férreas, portos, aeroportos, edifícios públicos, etc.)
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
120 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Aqui também contesta Garzón Valdés afirmando que essa correlação entre
maior democracia e menor corrupção não é empiricamente sustentável. Lembra que
é sabido que havia menos corrupção sob o regime de Stalin que sob os regimes
soviéticos posteriores e que as democracias ocidentais abundam de exemplos de
corrupção governamental.266
O que se observa é que não se trata de um regime ou de um modelo. São os
homens, quando se desviam do dever de disporem de sua própria vida ao serviço
público, quando se convertem em vítimas da acumulação e se apropriam do bem
comum para si mesmos, quando adotam uma atitude negligente ante a participação
política e desviam o olhar para os assuntos de interesse privado, quando arriscam
a segurança de todos em benefício próprio ou de poucos, enfim, quando a virtude
cívica fraqueja, e que se criam as condições para que apareça e se desenvolva a
corrupção.267 Cidadão corrupto seria aquele que é incapaz de reconhecer os reclamos
que sua comunidade lhe apresenta, uma vez que prefere, em lugar de sustentá-los,
optar pela defesa de seus próprios interesses.268
É essa patologia social – como a define Leal – que conduz à indiferença ou à
perda de interesse em participar nos assuntos públicos, o que é a causa principal
da ruína de uma sociedade civil republicana. A corrupção supõe a reclusão ao
espaço privado, deixando os cidadãos ante a possibilidade de serem submetidos a
governantes sem escrúpulos que acabarão pisoteando suas garantias constitucionais.
É vital atentarmos para o alerta de Simon: se a sociedade entra em processo de
corrupção, a vida do indivíduo também se vicia; quando a sociedade é devassa, os
indivíduos começam a perder a capacidade de cultivar a virtude que os torna cidadãos
de verdade; e se alguém perde a capacidade de cidadão, perde a de homem, porque
uma vida humana digna somente pode-se viver sendo cidadão. Por isso um cidadão
não deve permanecer passivo ante a destruição de sua cidade, seu dever é atuar
para evitar.269
266 GARZÓN VALDÉS, Ernesto. El Concepto de corrupción. In: ZAPATERO, Virgilio. (Comp.). La Corrupción.
Mexico: Mexico D.C, 2007. p. 11-13
267 SIMON, María I. Wences. Republicanismo cívico y sociedad civil. In: SAUCA, J. María; SIMON, María I. Wences.
Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Madrid: Trotta, 2007. p. 194.
268 OVEJERO, Félix; MARTÍ, José Luis; GARGARELLA, Roberto (Comp.). Nuevas ideas republicanas. Autogobierno
y libertad. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós, 2004. p. 25.
269 SIMON, María I. Wences. Republicanismo cívico y sociedad civil. In: SAUCA, J. María; SIMON, María I. Wences.
democracia
121
Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Op. cit., p. 194.
270 PARRA GONZÁLEZ, Ana Victória. Medios, opinión pública y corrupción. In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A.;
PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 45.
271 FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política. In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo
A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 43.
272 LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade:
causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013. p. 217.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
122 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
práticas ilícitas por parte de um governo de homens que sigilosa e astutamente vão
afastando o governo das leis. A verdadeira definição de República deve ser o império
das leis e não dos homens.
E, como bem alerta Touraine, a democracia está sempre ameaçada pelos
regimes autoritários e totalitários, mas há outra séria ameaça, que não procede de
nenhum poder omnipotente que reduza a sociedade a sua vontade, mas surge da
própria sociedade quando já não vê na ordem política outra coisa do que burocracia
arbitrária ou corrupção.
Corrupção, diz, é o termo mais exato se admitirmos que a democracia deve
ser representativa e, portanto, as forças políticas e os partidos em particular,
devem estar a serviço dos interesses sociais e não servir a si mesmos. Passando
ao largo da corrupção pessoal de certos políticos, assevera que a corrupção mais
perigosa para a democracia é a que tem permitido aos partidos políticos acumular
recursos tão consideráveis e tão independentemente da contribuição voluntária de
seus membros que lhes permite eleger os candidatos que lhes interessam, rindo,
desse modo, do princípio da livre escolha dos candidatos pelos filiados. Que não
há democracia sem partidos e sem atores políticos é algo que ninguém nega. Mas a
partidocracia – como Touraine define a situação – destrói a democracia, privando-a
de sua representatividade e a conduzindo ou ao caos, ou à dominação de fato por
grupos econômicos dirigentes, à espera da intervenção de um ditador. Por fim alerta:
o perigo da partidocracia é grandessíssimo no momento em que, em um país, os
atores sociais se fragmentam e se debilitam.273
Peces-Barba sustenta que um das características mais estáveis que identificam
a modernidade é a distinção entre a ética pública e a ética privada. O fim a alcançar,
ou o objetivo da ética pública, moralidade do direito ou justiça,
273 TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? París: Librairie Arthème Fayard, 1994. p. 126/128.
274 PECES-BARBA, Gregório Martinez. Ética pública y ética privada. In: Anuario de Filosofia del Derecho. T. XIV.
Madrid: BOE - Ministerio de Justicia, 1997. p. 534.
275 Esquematicamente Peces-Barba destaca as seguintes dimensões:
democracia
123
Seguindo essa reta linha, Gil Villa afirma que a corrupção é tão velha como
o homem e que esse comportamento sempre acompanhou a humanidade. Apesar
disso, lembra que nossos sistemas sobreviveram e se desenvolveram, então parece
que o fenômeno não é tão grave e vital assim como entendemos; nossa época
tende a exagerar devido a mecânica dos sistemas políticos democráticos ocidentais
modernos, que estabelecem o império da lei.279
Estudos e pesquisas internacionais como o Bribe Payers Index, realizado pela
ONG Transparência Internacional, demonstram que nenhum país esta livre das práticas
de corrupção. O fenômeno atinge tanto a países como Suíça, Suécia, Austrália ou
Áustria, (ainda que minimamente) quanto as grandes potências exportadoras como a
China, Rússia e Índia (de forma contundente).280 A América Latina e a África têm sido
duramente atingidas por este câncer social, mas a corrupção infesta tanto os países
desenvolvidos como os subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. O financiamento
da política, a realização de grandes obras públicas, o tráfico de armas e inúmeras
atividades mercantis privadas são exemplos comuns de práticas que ocorrem na
1. Dimensão de limitação do poder: (a) submetimento do poder ao direito (Estado de direito, Estado
constitucional). Considera que não há ruptura entre os dois modelos. O Estado Constitucional é um Estado
de Direito aperfeiçoado; (b) direitos humanos individuais, civis e políticos, que possuem como objetivo criar
âmbitos de autonomia individual e favorecer a participação social e política dos indivíduos.
2. Dimensão de organização de poder: (a) separação funcional de poderes; (b) separação territorial de pode-
res (autonomias, federalismo); (c) sistema parlamentar representativo; (d) Independência do poder judiciário;
(e) neutralidade da administração; (f) garantia da constituição (Tribunal Constitucional).
3. Dimensão de promoção através do poder: direitos econômicos, sociais e culturais. Satisfação das neces-
sidades básicas (educação, previdência social, saúde, etc.).
4. Dimensão de funcionamento do poder. Neste âmbito é relevante a análise dos princípios da maioria e da
negociação, que devem atuar conjuntamente. p. 543.
276 BENITO SÁNCHEZ, C. Demelsa. Notas sobre la corrupción transnacional. Sus efectos y su combate. In:
FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion.
Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 237.
277 MALEM SEÑA, Jorge F. Comercio internacional, corrupción y derechos humanos. In: CAMPUZANO, Alfonso
de Julios. (Ed.). Dimensiones jurídicas de la globalización. Madrid: Dykinson, 2007. p. 141-154.
278 MALEM SEÑA, Jorge F. La corrupción política, p. 26.
279 GIL VILLA, Fernando. La Cultura de la Corrupción. Madrid: Maia Editores, 2008. p.19-20.
280 www.transparency.org
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
124 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
281 Ver MALEM SEÑA, Jorge F. Globalización, comercio internacional y corrupción. Barcelona: Gedisa, 2000; e
LAPORTA, Francisco; ÁLVAREZ, Silvia (Ed.). La corrupción política. Madrid: Alianza Editorial, 1997.
282 LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade:
causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013. p. 206-208.
democracia
125
283 SUBIRATS, Joan. Nuevos mecanismos participativos y democracia: promesas y amenazas. In: FONT, Joan
(Coord.). Ciudadanos y decisiones públicas. Barcelona: Ariel, 2001. p. 37-38.
284 FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna. Los derechos humanos. Ámbitos y desarrollo. Salamanca: San Esteban;
Madrid: Edibesa, 2002. p. 41.
285 Rodríguez-Arana In: DELPIAZZO, Carlos E.. Dimension tecnologica de la participacion del administrado em
derecho uruguayo. In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Administração Pública e Participação Social na América
Latina. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, p. 118.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
126 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Por outro lado, para quem governa sem a ética intenção de fazer o bem coletivo,
mas apenas de defender meros interesses privados, a omissão popular é providencial,
já que, quando não há cobranças ou participação/fiscalização, os administradores
atuam a seu bel-prazer, enquanto que os administrados assistem a tudo de forma
apática. Isto acaba por fortalecer o caráter assistencialista dos governos, de modo
286 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial,
2009. p. 71.
287 LEAL, Rogério Gesta. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Esgotamento de um modelo
institucional. Trabalho inédito. 2008.
democracia
127
que enquanto todos tiverem “pão e circo”, ninguém irá cobrar mais nada. Porém, esta
concepção, de mera participação passiva, como dito, enfraquece a democracia e
fortalece o surgimento das patologias corruptivas. Afinal já nos referimos anteriormente
que:
288 GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos, Educação e Cidadania. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato
dos. Direitos sociais e políticas públicas - desafios contemporâneos Tomo 5. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2005. p. 1285.
289 HELD, D.; PATOMÄKI, H. Diálogo entre David Hekld y Heikki Patomäki. Los problemas de la democracia global.
Papeles, n. 95, Trad. de B. Wang, 2006. p. 92. Disponível em: <www.fuhem.es/media/cdv/file/biblioteca/.../95/
Dialogo_Held_Pottomaki.pdf>.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
128 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
A nova ordem mundial surgida a partir dos anos 80 do século XX, levou os Estados
a uma profunda crise, obrigando-os a rever seus pilares; evidentemente que, como
parte do sistema, a democracia representativa também entra em questionamento.
Há algumas décadas se fala e cada vez com maior insistência de uma crise
de representação política que seria responsável pela fragilização da participação
cidadã nos rumos do Estado e consequentemente da democracia contemporânea.
Sim, muitos sinais nos levam a pensar que os regimes democráticos se debilitam.
Na verdade, os Estados estão se debilitando, mas nosso objetivo não é analisar a
situação dos Estados e sim discutir a democracia.
A queda do muro de Berlim, em 1989, simbolizou o colapso dos regimes
estabelecidos na Europa do Leste, o que levou a se imaginar que a democracia se
estenderia amplamente a partir desse momento, especialmente com a participação
ativa da cidadania na tomada de decisões políticas. Entretanto as coisas não
ocorreram bem assim, e para Alday isso, provavelmente, decorreu de dois fatores:
(a) a integração europeia ou latino-americana, fez com que o cidadão fosse levado
290 MARTÍN, Nuria Belloso. Nuevas tecnologías: proyecciones sociales, iusfilosóficas y políticas. In: VILLAR, A.
Murillo; PAREDES, S. Bello (Coord.). Estudios Jurídicos sobre la Sociedad de la Información y Nuevas Tecnologías.
Libro conmemorativo del XXº Aniversario de la Facultad de Derecho, Servicio de Publicaciones de la Universidad
de Burgos, 2005. p.151-172; também, ver PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. ¿ciberciudadania o ciudadania.
com?, cit.. Em que pesem as dificuldades de controlar o uso de dados no ambiente da informação, há
uma tendência de converter-se o espaço virtual da Internet em um lugar onde as pessoas possam praticar
sua cidadania virtual com uma participação imediata na deliberação política, através da votação eletrônica.
O autor analisa as modalidades dessa suposta ‘teledemocracia’, mostrando suas vantagens frente às
deficiências da democracia representativa, mas também advertindo de seus graves inconvenientes. Lembra
que esta democracia ‘direta’ comporta também o perigo de uma democracia vertical, onde os partidos e
líderes políticos podem influenciar indevidamente na opinião do cidadão além de manipulações diversas,
distorcendo o sistema.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
130 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
cada vez para mais longe do lugar onde se tomam as decisões que diretamente o
afetam; assim, sua participação no processo de tomada de decisão se tornou cada
vez menor; (b) o processo de globalização fez com que a economia essa fugisse do
controle dos Estados e, portanto, do jogo político onde são chamados a participar os
cidadãos.291
Além dessas causas “macro”, Aliende apresenta outras, que seguramente
contribuem para a chamada crise da democracia:
a) Falta de transparência e de legitimidade dos partidos políticos;
b) O declínio de filiações e identificação dos cidadãos com os partidos políticos;
c) A crescente volatilidade eleitoral;
d) A diminuição da participação política em geral e em particular a abstenção
eleitoral;
e) A ausência de relação e de responsabilidade dialética entre os eleitos e
eleitores;
f) A falta de receptividade da classe política das demandas dos cidadãos;
g) Os problemas de governabilidade no contexto da globalização e a chamada
‘crise do Estado’;
h) Falta de autênticas lideranças da classe política.292
Esses fatos fazem com que muitos setores da cidadania sintam certo rechaço
com relação aos instrumentos tradicionais de participação, próprios da democracia
representativa. Este rechaço se traduz em descrédito da política e, consequentemente,
na baixa participação eleitoral. O que se está demandando é mais e melhor
democracia. Arguem o modelo tradicional de democracia representativa por que: (a)
limita a participação em votar a cada 4 ou 5 anos; (b) suas instituições estão afastadas
da cidadania e de seus interesses; (c) seus poderes são estabelecidos através de um
sistema de partidos, com pouca democracia interna, cada vez com menos debates
e mais mídia; (d) produz políticos profissionais; e, (e) ao invés de cidadãos o sistema
gera consumidores e súditos. 293
291 ALDAY, Rafael Escudero. Activismo y sociedad civil: los nuevos sujetos políticos. In: SAUCA, J. María;
SIMON, Maria I. Wences (Ed.). Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Madrid:
Trotta, 2005. p. 256. Ver também MARTIN, Nuria Belloso. Movimientos sociales actuales? Emancipación
o resistencia? In: Direitos fundamentais e justiça. Porto Alegre: Revista de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. n. 12, jul./set. 2010. p. 25-77.
292 ALIENDE, José Manuel Canales. Algunas reflexiones sobre la representación y la participación ciudadana en
el ámbito local. In: ALZAMORA, Manuel Menéndez. Participación y representación política. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2010. p. 267.
293 FERNÁNDEZ, Ernesto Ganuza; SOTOMAYOR, Carlos Álvarez. Democracia y presupuestos participativos.
Barcelona: Icária, 2008. p. 17-18.
Para aprofundar o tema da crise da democracia representativa, ver também: ALIENDE, José Manuel Canales.
Algunas reflexiones sobre la representación y la participación ciudadana en el ámbito local. In: ALZAMORA,
Manuel Menéndez. Participación y representación política. Valencia: Titant lo Blanch, 2009. p. 266-302;
MARTINÉRZ, Antonia. Representación política y calidad de democracia. In: MARTINÉZ, Antoni (Coord.).
Representación y calidad de la democracia en España. Madrid: Tecnos, 2006. p. 13-36; NADALES, Antonio
Porras. El debate sobre la crisis de la representación. Madrid: Tecnos, 1996.
democracia
131
Seguindo a reta linha, Touraine apresenta uma razão a mais para a fragilização
da democracia. Ocorre que, igual aos regimes autoritários, os sistemas democráticos
estão submetidos às exigências do mercado mundial que é regulado e protegido
por acordos entre os principais centros de poder econômico. Esse mercado mundial
aceita igualmente e sem restrições a participação de países que possuem governos
autoritários duros ou regimes autoritários em decomposição, assim como regimes
oligárquicos e os regimes democráticos. Esse reconhecimento igualitário no âmbito
internacional, assim como uma classe política cujo objetivo primeiro é a manutenção
de seu próprio poder, quando não o enriquecimento pessoal de seus membros, é
uma das razões da baixa participação política, o que denominamos de uma crise de
representação política.294
A consciência de cidadania se debilita porque os indivíduos se sentem
mais consumidores que cidadãos, mais cosmopolitas que nacionais, sentem-se
marginalizados ou excluídos em uma sociedade onde não são ouvidos, quer por
razões sociais, econômicas ou políticas.
Assim, alerta Touraine, fragilizada, a democracia pode ser destruída, ou de cima,
por um poder autoritário, ou de baixo, pelo caos, a violência e a guerra civil, ou por ela
própria, pelo controle exercido sobre o poder pelas oligarquias ou por partidos que
acumulam recursos econômicos ou políticos para impor sua eleição aos cidadãos,
reduzidos ao simples papel de eleitores.295
Também Bobbio, ao analisar o Futuro da Democracia,296 apresenta o que
denomina de promessas não cumpridas da democracia, que auxiliam no descrédito
do modelo. Indica como uma promessa não cumprida a representação dos interesses.
A democracia moderna, nascida como democracia representativa, deveria ser
caracterizada pela representação política, isto é, uma forma de representação na
qual o representante sendo chamado a perseguir os interesses da nação não pode
estar sujeito ao mandato vinculado. Contudo, a representação dos interesses sobre
a representação política tem se instalado na maior parte dos estados democráticos,
entre os grandes grupos de interesses contrapostos e o parlamento. Tal sistema se
caracteriza por uma relação triangular na qual o governo, idealmente representante
dos interesses nacionais, intervém unicamente como mediador entre as partes
sociais e, no máximo, como garantidor do cumprimento do acordo realizado. Este
modelo nada tem a ver com a representação política, é sim uma expressão típica de
representação de interesses.
Uma outra promessa não cumprida, e que leva a democracia ao descrédito,
refere-se à derrota do poder oligárquico. Afirma que, a julgar pelo número de leis
294 TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? París: Librairie Arthème Fayard, 1994. p. 22-23.
295 Idem.
296 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 29 e ss.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
132 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
aprovadas anualmente, cada cidadão deveria exprimir seu voto ao menos uma vez ao
dia. Esta impossibilidade é suprida pela democracia representativa, mas esta já é, por
si mesma, uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia, e o preço pelo
empenho de poucos e a indiferença de muitos. Reforça a ideia, citando Schumpeter,
que a característica de um governo democrático não é a ausência de elites, mas a
presença de muitas.
Refere-se, ainda, ao espaço limitado como outra promessa não cumprida. Para
se aferir o desenvolvimento da democracia, a pergunta primeira deve ser: onde se
vota? É certo que já se conquistou o sufrágio universal, contudo, unicamente para
legitimação e controle das decisões políticas, em sentido estrito, ou do governo
propriamente dito. Mas, há democracia no cotidiano do cidadão? Na multiplicidade
de seus papéis específicos como membro de uma igreja, como trabalhador,
estudante, soldado, consumidor, etc.? Vê-se que o âmbito de atuação da democracia
e participação é ainda muito restrito.
Bobbio ainda refere como promessa não cumprida da democracia a eliminação
do poder invisível. Lembra que a democracia, nasceu com a perspectiva de eliminar
para sempre das sociedades o poder invisível e dar vida a um governo cujas ações
deveriam ser públicas e transparentes. Invocando a situação particular da Itália –
onde afirma que o poder invisível é visibilíssimo – refere-se à atuação das máfias, da
maçonaria, dos serviços secretos e outros similares no exercício e controle do poder.
Com o não controle dessas instituições estamos diante de uma tendência contrária
às premissas: a tendência do máximo controle dos cidadãos por parte do poder ao
invés do controle do poder por parte dos cidadãos.
Por fim, mais uma promessa não cumprida, que diz respeito à educação dos
cidadãos. Narra que, nos discursos sobre democracia, nunca esteve ausente o
argumento segundo o qual o único caminho para transformar o súdito em cidadão
seria pela educação, e que esta surgiria no próprio exercício da democracia. A
realidade tem nos mostrado a não concretização dessa aspiração. Nas democracias
mais consolidadas observa-se a apatia política e um crescente desinteresse dos
cidadãos pela coisa pública. Bobbio lembra Mill quando este afirma que a democracia
necessita de cidadão ativos, enquanto os governos, em geral preferem cidadãos
passivos. Esta situação é bem exemplificada por Enguita quando lembra que a
burguesia francesa, impondo-se contra a Igreja e as elites tradicionais, alardeava
a ideia de educação generalizada – fazia porque necessitava dela para enfrentar o
poder da Igreja, preparar e garantir seu próprio poder e conseguir a manutenção
da nova ordem que se instalava. Por outro lado, temia as consequências de educar
demasiadamente aqueles que, na realidade, iriam continuar ocupando os mais
baixos níveis da sociedade, pois isso poderia despertar neles ambições indesejáveis,
transformando o povo, talvez, em contestadores do novo sistema, portanto novos
democracia
133
297 ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola. Educação e trabalho no capitalismo. Trad. Tomaz
Tadeu da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. p. 110-112.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
134 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
298 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006. p. 656-658.
299 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 65.
democracia
135
300 MARTÍN, Nuria Belloso. Ciudadanía, democracia, constitución y educación: no basta la afición, se necesita virtud.
In: Mª.Susana Bonetto (Ed.). En torno a la democracia. Perspectivas situadas Norte-Sur. Córdoba (Argentina):
Universidad Nacional de Córdoba y Grupo Editor, 2009. p. 71-96.
301 PINILLA, Ignacio Ara. La difuminación institucional del objetivo al derecho a la educación, Madrid: Editorial
Dykinson, 2013.
302 DIMENSTEIN, Gilberto. O Cidadão de papel. 21. ed. São Paulo: Ática. 2008.
303 MARTIN, Nuria Belloso. Política y Humanismo en el siglo XV. Valladolid: Secretariado de Publicaciones de la
Universidad de Valladolid, 1998. p. 76.
304 BARCELLOS, Carlos Alberto (Coord.). Educando para a cidadania – os direitos humanos no currículo escolar.
Porto Alegre/São Paulo: Seção Brasileira da Anistia Internacional/Centro de Assessoramento a Programas de
Educação para a Cidadania, 1992. p. 15.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
136 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
305 MAMEDE, G. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. Revista de Informação Legislativa, Brasilia, n. 134, p.
11, abr./jun. 1977.
306 A este respeito ver RIVAS PALÀ, Pedro. Justicia, comunidad, obediencia. El pensamiento de Sócrates ante la
ley, Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1996; e também , do mesmo autor, “La triple justificación de
la desobediencia civil” In: Persona y Derecho. Revista de fundamentación de las Instituciones Jurídicas y de
Derechos Humanos n. 34. Universidad de Navarra: Servicio de Publicaciones, 1996. p. 177-199.
democracia
137
307 HOERSTER, Norbert. Obligación moral y obligación jurídica. In: Dianoia (1976), trad. al castellano de E. Garzón
Valdés.
democracia
139
308 MALEM SEÑA, Jorge. Concepto y justificación de la desobediencia civil. Barcelona: Ariel, 1988.
309 HOBBES, Thomas. Leviatán. Trad. al castellano de M. Sánchez Pardo, 2. ed., México: Fondo de Cultura
Económica, 1980. p. 179.
310 GARZÓN VALDÉS diferenciou a desobediência civil de outros possíveis atos que podem estar conectados com
ela e dar margem a confusões. Este seria o caso da desobediência revolucionária, do direito de resistência, da
desobediência criminal, da objeção de consciência, da atitude anarquista, da mera desobediência ideológica,
da desobediência militar e da desobediência eclesiástica. Assim, enquanto o objetivo do desobediente civil
é conseguir a modificação de uma determinada norma e sua substituição por outra mais justa, segundo sua
consciência, a finalidade do desobediente revolucionário é a de “derrubar a ordem legal existente e substitui-
la por outra”. Enquanto a desobediência civil se refere a normas que derivam do sistema jurídico, o direito
de resistência tem a ver com o sistema jurídico-político em seu conjunto. Há também que se distinguir o
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
140 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
desobediente civil que viola criminalmente uma lei ou do objetor de consciência, que “em geral não aspira
modificar a lei em questão e sim que circunscreve o efeito de sua desobediência ao caso particular” e que nos
casos onde a objeção de consciência está prevista no ordenamento jurídico como um direito não há nenhum
fato de desobediência às leis. Cfr. GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Acerca de la desobediencia civil. Sistema, n.
42,1981. p. 79-92.
311 Ver SINGER, Peter. Democracia y desobediencia. Barcelona: Ariel, 1985.
democracia
141
312 RAWLS apresenta três requisitos para se avaliar se a desobediência é justificada. Em primeiro lugar, se a
violação da lei é realizada apelando-se ao sentimento de justiça da comunidade, é razoável se pensar em limitar
sua justificação a casos claramente injustos, ou à aqueles que impõem um obstáculo quando se trata de evitar
novas injustiças. Esta é a razão pela qual uma presunção a favor de restringir a justificação da desobediência
civil quando se a utiliza exclusivamente para protestar contra graves infrações ao primeiro princípio de justiça
(o princípio de igual liberdade) e as violações manifestas da segunda parte do segundo princípio de justiça
(princípio da justa igualdade de oportunidades). Em segundo lugar, a desobediência civil deve ser o último
recurso político. Somente depois de recorrer-se aos órgãos competentes do Estado com o objetivo de conseguir
as alterações pretendidas e haver recebido uma resposta negativa porque a maioria permanece impassível ou
apática, fica aberta a possibilidade de desobediência civil. Por último, a terceira condição decorre de que em
algumas circunstâncias o “dever natural de justiça” – a que se refere Rawls – impõe certas restrições que os
cidadãos devem observar. Esta limitação poderia justificar-se da seguinte forma: se uma determinada minoria
se encontra legitimada para manifestar sua desconformidade através de uma violação à lei, qualquer outra
minoria em idênticas circunstâncias estaria igualmente justificada. Mas isso seria perigoso se muitos grupos
se encontram na mesma posição e recorrem a desobediência civil, já que provocariam uma séria desordem
e poderia debilitar a eficácia da constituição e do restante das instituições justas. Deve-se ainda acrescentar o
problema que se apresentaria aos tribunais já que entrariam em colapso. (RAWLS, John. Teoría de la Justicia.
Traducción al castellano de M.D. González. México: Fondo de Cultura Económica, 1979).
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
142 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
313 O termo “discurso do ódio” provém da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) a
qual o Conselho da Europa normatizou em sua doutrina legal.
314 Sua origem legal se encontra na Recomendação R (97) 20 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, de
30 de outubro de 1997, onde “insta aos Estados atuarem contra todas as formas de expressão que propaguem,
incitem ou promovam o ódio racial, a xenofobia, o antisemitismo ou outras formas de ódio baseados na
intolerância que se manifestam através do nacionalismo agressivo, o etnocentrismo, a discriminação e a
hostilidade contra as minorias e os imigrantes ou pessoas de origem imigrante”. E esta tem sua origem na
interpretação feita pelo Comitê do artigo 10 do Convênio Europeu de Direitos Humanos (1950) que em seu
parágrafo 1º declara que toda pessoa tem direito à liberdade de expressão e complementa em seu parágrafo
2º que o exercício de tal liberdade, que trás em si deveres e responsabilidades, poderá ser submetida a certas
condições, restrições ou sanções, previstas em lei, que constituam medidas necessárias em uma sociedade
democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial, a segurança pública, a defesa da ordem e a
proteção da reputação ou dos direitos alheios.
315 <http://www.interior.gob.es/web/servicios-al-ciudadano/delitos-de-odio>. Acesso em: 25 nov. 2017.
316 Versão Espanhola. “Recomendación General nº 15 relativa a la lucha contra el discurso de odio y Memorandum
democracia
143
Contudo, como bem adverte Moretón Toquero, qualificar como delito uma
emoção – como é o ódio – é bastante complexo já que não corresponde propriamente
a uma categoria jurídica.317 O termo ‘ódio’ se refere a emoções intensas e irracionais
de opróbio inimizade e aversão de grupo objetivo.318
O ‘discurso de ódio’, recebeu a tipificação penal dos ‘delitos de ódio’. O
primeiro elemento de um delito de ódio é a execução de um ato constitutivo de
delito, conforme a legislação penal ordinária, de maneira que se não há uma infração
regulada no Código Penal, não há delito. O segundo elemento do delito de ódio é
que o ato delituoso se comete para ‘prejudicar’. É esta motivação, para prejudicar,
que distingue um delito de ódio de um delito ordinário. Isto significa que o autor
escolhe intencionalmente sua vítima por alguma característica protegida, como sua
origem, crença, etnia ou nacionalidade. Como regra, o maior número de delitos de
ódio versam sobre deficiências, ideologia, orientação sexual, racismo/xenofobia.319
Grande parte das condutas que poderiam ser classificadas como ‘delitos de ódio’
não são denunciadas pelas vítimas.320 Assim torna-se difícil confirmar as estatísticas
porque, por um lado, não existem dados oficiais, e por outro, um grande percentual
de vítimas deste tipo de delito não costumam apresentar queixa ante as autoridades,
o que revela falta de confiança no sistema como também no desconhecimento e sua
tipificação penal.321
pessoas, cidadãos europeus e pertencentes a grupos de minorias étnicas, raciais ou imigrantes, divulgada
em dezembro de 2009, destaca que 12% das pessoas entrevistadas haviam sofrido no último ano algum
constrangimento que na legislação penal de seu país constitui infração penal. Destas, 82% não haviam
apresentado qualquer denúncia e, dentre estas, 64% não sabia que tal fato constituía crime. “Informe Anual
sobre la situación del Racismo y la Xenofobia en España 2017”. Op. cit. cit., p. 21.
321 Cuarto Informe de la Comisión Europea contra el Racismo y la Intolerancia (ECRI), publicado en febrero de
2011, p. 31 Ibidem, p. 45. In: <www.empleo.gob.es/oberaxe/es/normativa/internacional/ce/ecri/index.htm>.
322 Ver HELD, David. La democracia y el orden global. Del Estado moderno al gobierno cosmopolita, Madrid:
Paidós, 1997.
323 Idem, p. 101. Held destaca que, a partir de então, o que importará será a busca sistemática do interesse
nacional. Um exemplo disso é a corrida para opoderar-se de territórios coloniais protagonizada pelos Estados
Europeus mais avançados so séc. XIX.
democracia
145
2.8.4 Os nacionalismos
327 GÓMEZ, María Isabel Garrido. Las transformaciones del Derecho en la sociedad global. Navarra: Thomson
Reuters, 2010. p. 33.
328 Ver FERRAJOLI, Luigi. La crisis de la democracia en la era de la globalización. In: ESCAMILLA, Manuel;
SAAVEDRA, Modesto (Ed.). Derecho y justicia en una sociedad global – Law and Justice in a Global Society.
Anales de al Cátedra Francisco Suárez, n. 39, 2005, p. 37-57. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/
ejemplar/254703>.
329 Para diferenciar expressões como Nação, Nacionalismo, Pátria, que costumam ser utilizados de maneira
indistinta nos meios de comunicação, ver GARCÍA ARVELO, J. L. "Nacionalismos e independentismo: breve
historia y alguna reflexión desde el mensaje televisivo" en Concha Mateos Martín, Francisco Javier Herrero
Gutiérrez, (Coord.). La pantalla insomne, 2016, p. 1494-1507. Disponible en: <https://dialnet.unirioja.es/
servlet/articulo?codigo=6061704>. Em geral o termo nacionalismo possui três significados diferentes: a)
como o afeto particular que se tem a um lugar onde a pessoa tenha nascido. Neste sentido o nacionalismo
pode ser identificado com o patriotismo; b) com a ideia ou ideologia pela qual se atribui um valor superior às
pessoas que nasceram em uma determinada comunidade, cidade, nação ou Estado, em relação às pessoas
que nasceram em outra comunidade, cidade, nação ou Estado. O nacionalismo, neste sentido não somente
está fundado no fato de se haver nascido no mesmo local, mas que o nascimento no mesmo local traz consigo
um conjunto de identidades de natureza cultural: costumes, formas de ver a vida, etc. O nacionalismo, nesse
sentido, tem por base a etnia, isto é, pessoas que por terem nascido e crescido no mesmo local formam um
grupo étnico ao terem a mesma cultura. Destacamos que a etnia não se identifica com a raça, posto que
esta implica ter traços biológicos comuns, enquanto que a etnia implica em ter-se traços culturais similares;
c) a aspiração de uma comunidade, cidade, nação ou Estado de alcançar a independência em todos os
sentidos: política, cultural, econômica, etc. em relação a outras comunidades, cidades, nação ou Estado
de que dependem em algum desses sentidos políticos, culturais, econômicos, etc. Das três acepções de
nacionalismo, nos referimos, aqui, é à segunda, por ser uma das causas da discriminação social.
330 Por exemplo, no caso espanhol, existem duas Comunidades Autônomas que têm fomentado o sentimento
nacionalista de forma prevalente sobre as outras quinze Comunidades Autônomas. Trata-se da Catalunha e
do País Basco que destacam a singularidade de suas línguas, seu direito, e sua história.
democracia
147
331 A Lei 7/193 de normatização linguística na Catalunha, abriu a porta a uma única linha de educação em
Catalão. Um modelo linguístico inspirado na experiência de Quebec, no Canadá. A ação prática deste ato
se realizou adotando diversas medidas, como o desenvolvimento de programas de imersão linguística nas
escolas (onde mais de 70% falavam o espanhol) Simultaneamente este modelo monolinguístico foi vinculado
a todas as propostas de catalanização, estendendo-se à Administração Pública (saúde, justiça, transporte,
turismo) e seus serviços públicos, exigindo uma certificação de “competência linguística” em catalão para se
acessar a determinados postos de trabalho no setor público.Também se aplicou esta medida aos meios de
comunicação – Televisão, jornais, emissoras de rádio, etc. Também foi subvencionado pela Comunidade a
publicação de vasta literatura em catalão, edições de multimídia, como Windows 98, a produção de espetáculos
artísticos, e outros. Assim, a lingua catalã se transformou em um elemento claramente diferenciador, que
permite se atingir a determinados postos de poder ou ter certo status em instituições públicas. Dessa forma
se instalou uma identificação perversa entre língua e nação. SOLER COSTA, Rebeca. “La lengua catalana en
la construcción de la identidad social de Cataluña: análisis de este nacionalismo lingüístico”. In: REIFOP, 12,
2009, p.114-127. Disponible en: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3086764.pdf>.
332 Uma segunda argumentação catalã refere-se à necessidade de se evitar o desaparecimento de uma
língua com um número limitado de falantes. Enquanto o espanhol tem assegurada sua sobvevivência, o
catalão necessitaria de medidas de apoio, entre as quais a penalização pelo uso – em etiquetas, rotulações
comerciais – do espanhol. A terceira estratégia argumentativa invoca o direito de ‘viver sua própria língua’.
Refere-se à liberdade de expressar-se em sua própria língua, um direito indiscutível. OVEJERO, Félix.
“¿Razones (nacionalistas) de izquierda?” (14.07.2004). Disponível em: <https://elpais.com/diario/2004/07/14/
opinion/1089756009_850215.html>.
3 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA
333 ALIENDE, José Manuel Canales. Algunas reflexiones sobre la representación y la participación ciudadana en
el ámbito local. In: ALZAMORA, Manuel Menéndez (Ed.). Participación y Representación Política. Valencia:
Tirant lo Blanch, 2009. p. 267.
334 DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. 15. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 13.
335 “La Justicia de la Gente”, Cartilha editada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Rede
de Solidariedade Social da Presidência da República da Colômbia, Bogotá, s/d, p. 3.
336 MOORE, Christopher. W. The mediation process – practical strategies for resolving conflict. San Francisco:
Jossey-Bass Inc., 1996. p. 7.
participação política
149
Desde a formação das primeiras hordas o homem tem sido protagonista e vítima de
conflitos com seus semelhantes, basta lembrar Caim e na solução dramática que
deu a seu conflito com o próprio irmão. Portanto, a única regra comum e inflexível em
todas as sociedades humanas é que nenhuma, jamais, está sem tensões e conflitos.
Sem essas tensões e conflitos entre os diversos grupos que a compõem, a
sociedade humana seria como um formigueiro – e já disse Hobbes, o homem
não é social como as abelhas ou formigas.337 Mas as tensões e conflitos não são
necessariamente ruins, na verdade são eles muitas vezes os agentes causadores das
transformações sociais. Não é incomum que importantes acontecimentos em uma
sociedade surjam de uma saudável e produtiva negociação de seus conflitos: de los
conflictos pueden salir ideas, soluciones y respuestas que favorezcan a las personas
involucradas.338 Logo, há necessidade de se mediar esses interesses diversos.
Essa mediação, a participação na prevenção ou gestão dos conflitos sociais é que
denomina-se política. Trata-se, portanto, de um conjunto de regras, atos e ações que
permitem ao homem viver com seus semelhantes; é o instrumento de mediação que
permite a vida em sociedade ou, como define Dallari, trata-se da “conjugação das
ações de indivíduos e grupos humanos, dirigindo-as a um fim comum”. Portanto,
independente da forma, sistema, modelo ou regime adotado, pode-se definir
política como toda ação humana que produza algum efeito sobre a organização, o
funcionamento e os objetivos da sociedade.339 Dito de outro modo, política é a arte
337 “É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente umas
com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão
seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que
consideram adequado para o beneficio comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a
humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a responder o seguinte. Primeiro, que os homens estão
constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas
criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que
entre aquelas criaturas tal não acontece. Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem
comum e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o
bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar
prazer do que é eminente. Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o
uso da razão, elas não vêem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao
passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que
os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por empreender reformas e inovações,
uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil. Quarto,
que essas criaturas, embora sejam capazes de um certo uso da voz, para dar a conhecer umas às outras
seus desejos e outras afecções, apesar disso carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns
homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a
aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o
descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem. Quinto, as
criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e, consequentemente, basta que estejam
satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo
quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar
as ações dos que governam o Estado. Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo
que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar
que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo:
ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do beneficio
comum. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de
João Paulo Monteiro. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 146-147.
338 “La Justicia de la Gente”, Cartilha editada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Rede
de Solidariedade Social da Presidência da República da Colômbia, Bogotá, s/d. p. 11.
339 DALLARI, Dalmo de Abreu O que é participação política. Op. cit., p. 10-11.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
150 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
de conciliar interesses, ela substitui o combate pelo debate, a violência física pela
violência das palavras, a guerra pela paz.
O regramento dos conflitos é o teste derradeiro da arte da política: consiste
em fazer coexistir, na mesma sociedade, grupos antagonistas, impedindo-os de
recorrer à violência. Evitando, pois, que o conflito social se converta em uma guerra
civil que ameaçaria a existência da própria sociedade. É responsabilidade da própria
sociedade, através de seus governos, instituir instrumentos de mediação que permitam
arrefecer estes conflitos, ou, ao menos temporariamente, pôr um fim, através de
compromissos aceitáveis para as forças que os enfrentam. Temporariamente, porque
novas tensões surgirão, ou as velhas ressurgirão – afinal como já afirmamos, sem
tensões e conflitos não há vida social – e a regulação social para evitar conflitos
se opera de infinitas maneiras, segundo as diferentes culturas, algumas inusitadas,
como apresenta Lapierre baseado na antropologia política: a) ritos religiosos que
periodicamente reúnem toda sociedade e exigem uma reconciliação geral, onde
as compensações costumeiras são negociadas; b) casamentos entre indivíduos de
grupos diferentes; c) exigências de sangue; d) duelos de cânticos ou poesias entre
grupos e até competições esportivas.340
Entretanto, é o regramento dos conflitos através da lei, sob o controle do poder
político, que caracteriza as sociedades politicamente organizadas. Isso significa que
os conflitos são institucionalizados e são resolvidos através da aplicação da lei. A
regulação política desta sociedade é o resultado de um debate organizado, seguindo
as regras do jogo, escritas ou consuetudinárias, independente da vontade daqueles
que governam. Em um Estado de Direito, a política é o campo de ação onde tem lugar
a competição e as regras deste jogo social – artificiais e convencionais – não caem
do céu, são obras da sociedade de homens, que possuem seus desejos, paixões,
interesses e ambições.
Sob esse ângulo, divergindo de Foucault – que se referiu à política como a
continuação da guerra apenas com outros meios – Bovero refere-se à política como
um jogo de adultos, mas reconhece, extremamente conflitivo. E essa dimensão
conflitiva não pode ser eliminada porque está ligada à luta pela conquista do poder
e o poder político tem uma razão de ser que não é propriamente conflitiva, aliás, é
anticonflitiva: “impedir que os conflitos, de interesses, de aspirações, de ideais, etc.,
entre os indivíduos e grupos desagreguem a sociedade, causem dano à convivência
civil da qual depende a existência de cada um”.341
O jogo político possui muitas variantes, Bailey as denomina de regras do jogo
político e as classifica em regras normativas e pragmáticas: as primeiras estabelecem
como são organizadas as fases da competição, que são as eleições, os debates,
342 BAILEY, F. G. Les règles du jeu politique. París: PUF, 1972. p. 31. Apud LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce
qu’être cotiyen? Op. cit., p. 77.
343 Seguimos com a exposição de: DELFINO, G. I.; ZUBIETA, E. M. Participación política: concepto y modalidades.
In: Anuario de investigación, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, v. 17, p. 211-220, dic. 2010.
Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-16862010000100020&ln
g=es&nrm=iso>. Acesso em: 14 nov. 2017.
344 MILBRATH, L. Political participation, University of Harvard, 1965. p. 1.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
152 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
política composta por cinco itens que refletem as atividades desenvolvidas durante as
campanhas eleitorais: votar, participar de comícios, apoiar economicamente algum
candidato ou partido, trabalhar para algum partido e convencer aos outros para votar
por algum candidato e/ou determinado partido.
A distinção mais habitual costuma se estabelecer entre participação política
convencional ou não convencional.349 Para Kaase e Marsh,350 a participação política
convencional inclui “aqueles atos de compromisso político que estão direta ou
indiretamente relacionados com o processo eleitoral.” Quanto à participação política
não convencional, o que mais se destaca é a heterogeneidade de atividades que se
executam sob este rótulo.
Sabucedo e Arce351 utilizaram a técnica de escalonamento multidimensional,
obtendo duas dimensões: dentro-fora do sistema e progressivo-conservador;
e efetuaram uma análise que os leva a sustentar a existência de quatro tipos de
participação política: a) Persuasão eleitoral, que inclui atividades, tais como convencer
aos outros para que votem em um determinado candidato e/ou partido e participar/
organizar comícios; b) Participação convencional, que se caracteriza por aquelas
atividades que se mantêm dentro da legalidade vigente e que tratam de influenciar
o curso dos acontecimentos político-sociais. Exemplos deste tipo de participação
política são: votar, enviar matéria para a imprensa, manifestações e greves autorizadas;
c) Participação violenta, que integra ações como danos à propriedade e violência
armada; d) Participação direta pacífica, que inclui atividades que, ainda que possam
eventualmente derivar para a ilegalidade, não são necessariamente violentas.
Exemplos desta forma de participação seriam: ocupação de edifícios públicos,
boicotes, bloqueio de trânsito, manifestações e/ou greves não autorizadas.
O voto constitui a modalidade de participação política por excelência. Mas se
partirmos do pressuposto da obrigação (moral) que o cidadão tem de informar-se e
forjar um saber fundamentado para poder votar, cabe perguntar se está obrigado a
votar. O dever moral que o cidadão tem de informar-se antes de exercer seu direito
ao voto não significa que tenha um dever de votar. Inclusive se não cumpriu com sua
obrigação de informar-se, com seu dever de conhecer, parece que seria melhor que
não fosse votar.
A tradição liberal rechaça a obrigatoriedade do voto e defende seu caráter
voluntário. Em sua obra Considerações sobre o Governo Representativo, Mill ataca
a ideia de que o voto é um direito individual outorgado ao eleitor para seu próprio
uso e benefício pessoal. Sustenta que se trata de um ato de confiança, uma espécie
352 MILL, Stuart. Consideraciones sobre el gobierno representativo. Madrid: Edición, Librería de Victoriano
Suárez, 1861. cap. 10.
Em relação a essa questão Linares propõe a “promessa pública do votante”, segundo a qual os cidadãos
votantes, antes de lançar o voto na urna (ou apertar o botão) devem pronunciar publicamente ante o
presidente da mesa eleitoral (ou selecionar uma janela no computador) com o seguinte enunciado: “Prometo
publicamente fundar meu voto em juízo reflexivo sobre as propostas dos candidatos e exercer meu poder de
cidadão com responsabilidade” E, se algum cidadão se negar a tal promessa, o votante deveria pronunciar
publicamente o seguinte ditame: “Me nego publicamente a pronunciar a promessa por razões de objeção de
consciência”. Se se negar a utilizar qualquer uma das modalidades, não pode ter o direito de votar. LINARES,
Sebastián. Democracia participativa epistémica, Madrid: Marcial Pons, 2017. p. 295.
353 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 78.
354 Com isso, diz Fuente evita-se abordar aqui o fenômeno da corrupção política; uma situação ilegal, onde um
dos participantes é sempre uma autoridade exercendo funções políticas ou administrativas. Em alguns casos
a iniciativa procede do cargo público e visa incrementar o poder daquele (corrupção ascendente), em outros
casos, a iniciativa parte dos cidadãos para a autoridade a fim de obterem benefícios econômicos (corrupção
descendente).
participação política
155
355 ANDUIZA, Eva; BOSCH, Agustí. Comportamiento político y electoral. Barcelona: Ariel. 2004, Apud DE LA
FUENTE, Íñigo González. Antropología de la Participación Política. Salamanca: Amarú Editores, 2010. p. 24-
25.
356 FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuma. Los Derechos Humanos. Ámbitos y desarrollo. Salamanca: San
Estebam: Madrid: Edibesa, 2002. p. 39.
357 HART, Roger. La participación de los niños: de la participación simbólica a la participación autentica. Florença:
UNICEF/ICDC, 1993. Ver também GOMES DA COSTA, Antonio Carlos. Protagonismo Juvenil. Adolescência,
educação e participação democrática. Salvador: Fundação Odebrecht, 2000. p. 28-30.
358 Idem.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
156 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
359 Estas técnicas de democracia representativa se dividem, tradicionalmente, em vários níveis: 1) O originário
de debate, onde se produz a formação da vontade popular que desemboca nas urnas, ao efetuar-se as
votações; 2) O comunicativo, por meio do mandato, concebido como instrumento jurídico que condiciona
conteúdos e limites do processo representativo; 3) O de controle ou responsabilidade, onde se estabelece
o processo que vai dos eleitores aos seus representantes;e, 4) O da emancipação de decisões gerais ou
atuações governamentais na esfera pública convergente com a governabilidade. GÓMEZ, María Isabel
Garrido. Derechos fundamentales y Estado social y democrático de Derecho. Madrid: Editorial Dilex, 2007. p.
95-96.
360 Ibidem.
361 Os Orçamentos Participativos se constituem em uma ferramenta de participação e gestão da cidade,
mediante o qual a cidadania pode propor e decidir sobre o destino de parte dos recursos municipais. Deve-se
considerar que é um dos muitos instrumentos que podem serem utilizados para incrementar a presença dos
cidadãos na adoção de políticas públicas. Fomenta uma aproximação entre os governantes e a sociedade
civil, assim como facilita o conhecimento das reais necessidades e aspirações da cidadania.
O sistema de Orçamento Participativo consiste em uma serie de reuniões nas quais se definem as demandas
regionais, as prioridades da cidade e os critérios de destinação de recuros e o programa de investimentos
do municipio. Cada etapa contém mecanismos que permitem a circulação de informações entre as
autoridades políticas do governo, seus técnicos, profissionais e a cidadania. Ver. FREITAS, A. La experiencia
participação política
157
a iniciativa de exigir da Comissão Europeia, no marco de suas atribuições, que apresente uma proposta
adequada sobre questões que estes cidadãos julguem requererem um ato jurídico da União para os fins de
aplicação dos Tratados. Os procedimentos e as condições para a apresentação de uma iniciativa deste tipo
serão fixados em conformidade com o Parágrafo Primeiro do Artigo 21 do Tratado de Funcionamento da União
Europeia”. Tratado de Lisboa pelo qual se Modifica o Tratado da União Europeia e o Tratado Constitutivo da
Comunidade Europeia. (2007/C 306/01). Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri
=CELEX%3A12007L%2FTXT>.
367 As dez medidas propostas eram: 1) Prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação;
2) Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; 3) Aumento das penas e crime hediondo
para a corrupção de altos valores; 4) Eficiência dos recursos no processo penal; 5) Celeridade nas ações de
improbidade administrativa; 6) Reforma no sistema de prescrição penal; 7) Ajustes nas nulidades penais; 8)
Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa 2; 9) Prisão preventiva para assegurar a
devolução do dinheiro desviado; 10) Recuperação do lucro derivado do crime. Disponível em: http://www.
dezmedidas.mpf.mp.br/>. O teor das Dez Medidas tem provocado debates em diversas esferas e já foi
criticado por juristas que entendem que o pacote é mais repressivo do que punitivo, tocando em cláusulas
pétreas da Constituição Federal, porque medidas de combate à corrupção não podem suprimir direitos. Para
ampliar a informação: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/saiba-o-que-e-o-projeto-que-
cria-dez-medidas-de-combate-corrupcao>.
participação política
159
368 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Texto Integral. São Paulo: Martin Claret, 2002.
369 KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 24-30.
370 KELSEN, Hans. Esencia y valor de la democracia. México: Cayoacán, 2005. p. 11.
371 Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, Sobre a Igreja no Mundo Atual, Capítulo IV – A
Vida da Comunidade Política, item 75 - A colaboração de todos na vida política.
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160 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Também o Papa João XXIII expressou na Carta Encíclica Pacem in Terris que:
“coere com a dignidade da pessoa o direito de participar ativamente da vida pública,
e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos”.372
Reafirma mais tarde: “É certamente exigência da sua própria dignidade de pessoas
poderem os cidadãos tomar parte ativa na vida pública”.373 Por evidente que a este
direito corresponde o dever de todo o cidadão e de todos os grupos intermediários
em contribuir para o bem comum. Disto decorre que, antes de qualquer coisa, devam
ajustar seus próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e
serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na
devida forma e limites de competência.374 Então, a participação política nos destinos
da sociedade é um direito, mas também um dever do indivíduo com seus semelhantes.
A sociologia vê na participação um valor e um direito do homem que vive no
seio de um grupo. Como diz Valle, se aceitarmos os princípios de igualdade e de
liberdade do homem, faz-se evidente o direito de todos à participação nas decisões
relativas aos assuntos que lhe concernem. Esse direito é o mesmo seja qual for o tipo
de comunidade ou associação na qual o indivíduo está inserido. Pelo princípio da
igualdade de direito assim como da necessidade de que cada indivíduo desenvolva
ao máximo seus próprios talentos, tem-se que cada homem deve participar nas
atividades de todas as instituições políticas, sociais e educativas que o afetam.
Participar é assumir responsabilidades para, construir conjuntamente uma sociedade
na qual o homem é o principal protagonista.375
Para Dallari, é fácil compreender a razão deste direito universal de participação
política:
372 Carta Encíclica Pacem in Terris, Papa João XXIII – A Paz de todos os povos na base da verdade, justiça,
caridade e liberdade. Primeira Parte – Da Ordem entre os seres humanos, item 26 – Dos direitos de caráter
político. 16 Abril de 1963.
373 Idem. Item 73 - Da participação dos cidadãos na vida pública.
374 Idem. Item 53 - Da atuação do bem comum constitui a razão de ser dos poderes públicos.
375 VALLE, Ángeles del. Importancia de la pedagogía social como programa político. In: MARDONES, José María
(Dir.). 10 Palabras Clave sobre Fundamentalismos. Navarra: Verbo Divino, 1999. p. 310.
376 DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. Op. cit., p. 26.
participação política
161
377 NINO, Carlos S. La paradoja de la irrelevancia moral del gobierno y el valor epistemológico de la democracia.
In: NINO, Carlos S. El Constructivismo Ético. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989. p. 114.
378 É assim que interpretamos Kant, quando, usando a razão para condenar a guerra, ao apresentar os
artigos definitivos para A Paz Perpétua defende a participação do povo no ato de declaração de guerra: as
consequências serão para todos; todos sofrerão as consequências, logo, todos devem participar da decisão.
379 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 25.
380 Para Hobbes, enquanto os homens pudessem fazer o que bem quisessem, viver-se-ia em constante guerra,
motivo pelo qual foi imprescindível renunciar ou transferir seu direito através de uma declaração ou expressão
voluntária para a manutenção da ordem e da paz social. “A transferência mútua de direitos é aquilo que se
chama de contrato”. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil.
São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 114.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
162 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
garantia dos direitos naturais (vida, propriedade, liberdade) serve como fundamento
determinante. Rousseau tenta fundamentar a legitimidade na maioria absoluta dos
cidadãos, considerada como a vontade geral. Defende que os homens chegaram
a esse estágio depois que os fatos que ameaçavam sua própria conservação no
estado de natureza lhes levaram, por sobre as forças de cada indivíduo, a mudar seu
modo de ser.381
Mas, para o período do Estado moderno (final do século XV ao final do século
XX?), Lapierre arrisca outra fundamentação: O desenvolvimento das sociedades; com
a condição de não reduzir esse desenvolvimento ao crescimento econômico, e de
incluir, também, o progresso do conhecimento e das técnicas, do urbanismo, a melhora
da saúde e da educação pública, da criação literária e artística e das instituições
democráticas. E no século XXI, qual a ação coletiva que poderá fundamentar a
obediência e a participação política? No mundo globalizado, de Estados débeis,
de individualismo exacerbado, de sociedade desarticulada e valores esquecidos, a
ideologia dominante – que é não ter ideologia – nos dá uma resposta prêt-à-porter:
a ação coletiva que se deve realizar é o crescimento econômico mundial através do
livre mercado global.382
Contudo, assistimos, diariamente às manifestações contrárias aos dirigentes
políticos, à exacerbada queda de credibilidade dos governos, ao desencantamento e
à aversão aos modelos e sistemas políticos e, efetivamente, não se identifica uma ação
coletiva específica e definitiva. Então o questionamento: por que o povo obedece e
tolera a transferência do fruto de seu trabalho aos governantes? Afinal, governos com
pouco apoio popular correm o risco de serem derrubados, ou pelo povo oprimido
ou por novos-ricos ansiosos por substituir os governantes e que buscam apoio das
massas com a promessa de uma melhor distribuição de serviços em relação aos
frutos obtidos.
Diamond ensina que, em todas as épocas, os governos recorreram a uma
mistura de quatro recursos:
1. Desarmar a plebe. Isto é muito mais fácil em tempos de armas de alta
tecnologia, produzidas unicamente em fábricas controladas pelos governos
e monopolizadas pela elite do que nos tempos das lanças e porretes feitos
em casa;
2. Fazer a massa feliz, redistribuindo parte dos tributos recebidos em coisas de
reivindicação popular;
381 Para Rousseau a ordem social é o principal direito, pois através dela decorrem os demais. Todavia, quem a
determina não é a natureza humana e sim a vontade: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o
seu poder em direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível de
um todo”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002.
382 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 26.
participação política
163
383 DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço. Os destinos das sociedades humanas. 2. ed. Rio de Janeiro – São
Paulo: Record, 2001. p. 275-277.
Um bom exemplo de coesão através da religião é apresentado por Sebastián e refere-se à formação e à
organização da nação judaica. Os israelitas acabaram de sair do Egito e vagam pelo deserto buscando
uma terra onde assentar-se e dedicar-se a atividades permanentes como a agricultura, o artesanato e o
comércio e levar uma vida como a que haviam conhecido no Egito. Unia-os unicamente o fato de serem
descendentes de um conjunto de tribos nômades dedicadas ao pastoreio descendentes de Jacó e possuírem
uma religião monoteísta. Sabiam os lideres que a mudança no sistema de produção do pastoreio nômade
para a agricultura exigia uma mudança na organização social e que para se constituir uma ‘nação’ sedentária
e um Estado era necessário manter a unidade e a coesão entre todos, um tanto fragilizada em razão das
estreitas relações mantidas com egípcios e outros povos quando no cativeiro, trabalhando e vivendo junto a
culturas que adoravam outros deuses, com práticas religiosas, sociais e sexuais decadentes, desordenadas e
alheias a seus costumes ancestrais. Isso os contaminou, razão das brigas, violações, desordem de conduta,
desunião.
Os líderes políticos pretendem mantê-los sob controle, fazer deles um povo novo, dar-lhes um novo começo
– algo assim como quiseram fazer os puritanos que imigraram para os Estados Unidos, dar-lhes um new
begining – mas para isso era necessário estabelecer rígidas regras para manter a ordem, a coesão e a
organização desse povo em formação, regras de comportamento, leis fundamentais, tanto para manter a
perseverança dos caminhantes e sobreviver no deserto como para consolidar-se como nação na terra que
os lideres chamavam de ‘terra prometida’. Mas, para fazer com que essas leis fossem aceitas por um povo
primitivo, religioso e rebelde era necessário um respaldo divino até porque a autoridade dos lideres estava
bastante enfraquecida. É nesse contexto que surgem os dez mandamentos: Moises retira-se ao Monte Sinai
onde grava laboriosamente em táboas de pedra os mandamentos que seu sentido religioso, seu olfato
político e seu sentido comum lhe ditaram. Essas necessidades políticas e sociais são apresentadas ao povo
como um Pacto ou um Tratado entre Deus e o Povo de Israel, através do qual os israelitas se comprometiam
a seguir fielmente as regras ditadas por Deus, enquanto Este os tornaria o povo eleito e lhes daria uma terra
onde formar uma nação. Os Dez Mandamentos não são mais que o conteúdo desse pacto em forma de
preceitos, que serviram para unir um povo e constituir uma nação que se mantém coesa há mais de 2000
anos. SEBASTIÁN, Luis de. Los Diez Mandamientos. Una versión secular. Barcelona: Ariel, 1998.
384 CASTORIADIS, Cornélius. L’institution imaginaire de la societé. París: Seuil, 1975. p. 233-370.
385 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 28.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
164 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
de origem, que fundamenta sua organização social, legitima seu direito e o poder
político.
Pesquisadores da evolução humana corroboram com esta teoria. Harari sustenta
que toda cooperação humana, em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja
medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados
que só existem na imaginação coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam nos mitos
religiosos compartilhados; os Estados se baseiam nos mitos nacionais partilhados;
os sistemas judiciais se baseiam nos mitos jurídicos partilhados. Nada disso existe,
exceto na imaginação das pessoas. Não há deuses no universo, nem Estados, nem
dinheiro, nem direito, mas é a crença nesses mitos que faz com que um grande
número de estranhos coopere entre si, de maneira eficaz. Ao contrário da mentira,
o mito é uma realidade imaginada, é algo em que todo mundo acredita e, enquanto
persistir esta crença partilhada, a participação e a cooperação será plena e eficaz.
Destaca Harari, como toda cooperação humana é baseada em mitos, a maneira
como as pessoas cooperam pode ser alterada, modificando-se os mitos – contando-
se fantasias diferentes. Nas circunstâncias adequadas os mitos podem ser alterados
muito rapidamente. Cita como exemplo a Revolução francesa de 1789. Quase do
dia para a noite a população deixou de acreditar no mito do direito divino dos reis e
passou a acreditar no mito da soberania popular.386
A filosofia política moderna, ensina Lapierre, mesclou dois mitos: um herdado
da teologia escolástica, que buscava conciliar o mito judaico-cristão do paraíso
perdido e o outro greco-latino, onde os homens passam do estado de natureza ao
estado social graças a um contrato. Não há mais personagens invencíveis ou heróis
fundadores, os autores do mito são homens anônimos.
Já no século XIX, outros três grandes pensadores forjaram seus mitos: Marx,
Nietzsche e Freud. O marxismo funda-se em um mito de origem e em um mito
escatológico que se mesclam – a história humana inicia com o comunismo primitivo
e se cumpre no comunismo final de uma sociedade sem classes. Esse duplo mito
legitima o poder do chefe de um partido revolucionário considerando que representa
a classe social investida na missão histórica de realizar a última revolução: o
proletariado. Nietzsche resgata o mito antigo do Eterno Retorno e, anunciando a
morte de Deus, fundamenta a legitimidade na vontade de onipotência de uma elite
encarregada de edificar a morada ao sobre-humano para preparar a vinda à terra dos
animais e das plantas e, por isso mesmo, seu próprio declínio. Por sua vez, Freud
fundamenta sobre o mito da morte do pai na horda primitiva o vínculo político de não
agressão entre os homens e a legitimidade de todo poder que fortalece este vínculo,
reprimindo a agressividade.
386 HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. 25. ed. Porto Alegre: L&PM, 2017. p. 34 e
ss.
participação política
165
das comunas livres e das Repúblicas, nas estruturas políticas africanas baseadas no
consenso, nas tradições de tolerância, nos regramentos políticos de imperadores
Hindus como Ashoka e Akbar, na Corte de Saladino, etc.388 Mas é a partir das
revoluções democráticas do século XIX, que se vai conquistando progressivamente
o direito a uma participação política de todos os cidadãos. A base racional em que
se sustentavam tais direitos de participação era a de igual condição de todo cidadão.
O poder político, as funções públicas e os cargos políticos devem estar abertos, a
princípio, a todos os cidadãos em igualdade de condições. Somente quando o poder
e a gestão pública estão abertos a todos, em igualdade de condições, podemos falar
de uma democracia efetiva e livre.
O enunciado jurídico dessa participação incide, antes de tudo, na participação
no poder legislativo, por si mesmo ou por seus representantes, nas manifestações do
poder estatal e no estabelecimento dos objetivos políticos e programáticos do poder.
A primeira Declaração de Direitos no sentido moderno, a Declaração do
Bom Povo da Virgínia, elaborada em 12.01.1776, sob a influência do pensamento
iluminista, principalmente de Locke, Montesquieu, Burlamaqui e Pufendorf,
expressava os “direitos que devem pertencer a nós e à nossa posteridade, e que
devem ser considerados como o fundamento e a base do governo”. Após expressar
que “toda a autoridade pertence ao povo e por consequência dele se emana” e de
declarar que “O governo é ou deve ser instituído para o bem comum, para a proteção
e segurança do povo, da nação ou da comunidade”, prescreve que “as eleições
dos membros que devem representar o povo nas assembleias serão livres; e todo
indivíduo que demonstre interesse permanente e o consequente zelo pelo bem geral
da comunidade tem direito geral ao sufrágio”.
Nesta mesma linha segue a Declaração da Independência Americana
(04.07.1776) que, inspirada na teoria lockeana dos direitos naturais e na ideia do
contrato social, ratifica os direitos já expressos pela Declaração do Bom Povo da
Virgínia e agrega outros, como o de insurreição contra governos que abusem de seus
poderes. Declaram os revolucionários como verdade evidente por si mesma que os
governos são estabelecidos pelos homens para garantir seus direitos naturais e que
seus legítimos poderes derivam do consentimento dos governados. Assim,
388 RIGOTTI, Francesca. Epistemología monocultural y epistemología multicultural. In: GALLI, Carlo. (Comp.).
Multículturalismo, ideologías y desafíos. Tradución de Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2006. p.
45.
participação política
167
392 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de una nueva cultura del derecho. Trad. David
Sánchez Rubio. Sevilla: MAD, 2006. p. 117.
393 LACLAU, Ernesto. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais n. 2. São Paulo. 1986. p. 47. Ver também GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas
do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
394 SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 67-68.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
170 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Novíssimos Movimentos
Velhos movimentos Novos movimentos
movimentos sociais
sociais sociais
sociais antiglobalização
-Movimento operário: -Ecologista -Solidariedade -Diversos
defesa dos interesses e cooperação movimentos
da classe trabalhadora. -Feminista internacional contrários aos
efeitos negativos
-Movimento -Antirracismo da globalização
-Pacifista
Objetivos nacionalista: defesa
da identidade e -Apoio a grupos
-Direitos Civis
autogoverno nacional excluídos
-Opção sexual
Surgimento Inicio séc. XIX Década de 60/70 Década 80/90 Séc. Década 90 Séc.
Séc. XX XX XX
395 IBARRA, Pedro. Sociedad Civil y Movimientos Sociales. Op. cit., p. 81-82.
396 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimientos sociales. Madrid: Editorial Sistema, 1988.
397 IBARRA, Pedro. Sociedad Civil y Movimientos Sociales. Madrid: Síntesis, 2005. p. 97.
participação política
171
398 A questão dos ‘direitos’, nasce a partir de carências e necessidades fundamentais. Como assevera Eunice
R. Durham, o “acontecimiento, entre nosotros, de un proceso de construcción colectiva de un conjunto de
derechos, que está siendo realizado por los movimientos sociales. Y ello, no a través de una codificación
completa de una realidad existente, sino como el reverso de una definición de carencias que son definidas
como inaceptables”. Ver WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de una nueva cultura
del derecho. Trad. David Sánchez Rubio. Sevilla: MAD, 2006. p. 93.
399 GALLARDO, Helio. Siglo XXI. Producir un mundo. San José C.R.: Arlekin, 2006. p. 120-125.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
172 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
400 IBARRA, Pedro; LETAMENDIA, Francisco. Los movimientos Sociales. In: BADIA, Miquel Camina. Manual de
Ciencia Política. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2008. p. 402.
participação política
173
Para Touraine, todo movimento social, para assim ser caracterizado, deve reunir
três princípios:
401 Ver LARAÑA, Enrique; GUSFIELD, Joseph (Ed.). Los nuevos movimientos sociales. De la ideología
a la identidad. Madrid: CIS, 1995. Ver também MARDONES, José María (Ed.). Diez palabras clave sobre
movimientos sociales. Estella - Navarra: Verbo Divino, 1996.
402 TOURAINE, Alain. Una introduzione allo studio dei movimenti sociali. In: COHEN; MELUCCI; OFFE; PISSORNO;
TILLY y TOURAINE (Coord.). I nuovi movimenti sociali. Milano: Ed. Franco Angeli, 1987. p. 101-133. Também
TOURAINE, Alain. Movimientos sociales de hoy. Actores y analistas. Barcelona: Ed. Hacer, 1990.
403 PASQUINO, Giuseppe. Movimenti sociali. In: BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO (Coord.). Dizionario di
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Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
174 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
Quanto às funções dos movimentos sociais, Rocher destaca que são três as
principais:
a) de mediação – os movimentos sociais são agentes ativos de mediação entre
as pessoas, de um lado, e as estruturas e as realidades sociais, de outro. São
agentes socializadores e se constituem em um poderoso meio de participação;
b) de esclarecimento da consciência coletiva – permitem desenvolver e manter
uma consciência coletiva clarificada e combativa em uma sociedade em geral
ou em um setor em especial;
c) de pressão – os movimentos sociais exercem uma influência sobre o
desenvolvimento histórico das sociedades, pelas pressões que podem exercer
sobre as pessoas constituídas em autoridade e sobre as elites de qualquer tipo
de poder.406
404 RUBINSTEIN, Juan Carlos. Sociedad Civil y Participación Ciudadana. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 1994. p.
116-117.
405 IBARRA, Pedro; LETAMENDIA, Francisco. Los movimientos Sociales. In: BADIA, Miquel Camina. Manual de
Ciencia Política. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2008. p. 415.
406 ROCHER, G. Introducción a la sociología general. Barcelona: Ed. Herder, 1983.
Não se pode confundir um movimento social com o caráter que podem assumir outros grupos de pressão.
Os denominados lobbies, por exemplo, tentam influenciar as autoridades governamentais da mesma
maneira que os movimentos sociais. Entretanto, há várias diferenças entre ambos: os lobbies normalmente
exercem influência na busca de interesses muito particulares. Neste sentido, somente cumprem as funções
de mediação e de pressão, como os movimentos sociais, mas nunca a de esclarecimento da consciência
coletiva.
participação política
175
Junto a essas funções, que Rocher apresenta como principais, Melucci destaca
outras quatro, de natureza simbólica:
a) os atores do conflito são sempre agentes premonitórios e sua função é a
de ‘abrir o jogo’, anunciar à sociedade que em uma área específica existe um
problema fundamental. Deste modo cumprem uma função simbólica crescente.
Poder-se-ia falar de uma função profética. Buscam ou tentam mudar a vida das
pessoas, creem poder mudar a vida moderna lutando por mudanças gerais na
sociedade;
b) também se destacam efeitos democratizadores, contribuindo para adiantar
ciclos ou ondas de democracia;
c) contribuem para a construção de uma autêntica cultura de resistência em
determinados momentos históricos;
d) paulatina construção de uma identidade coletiva, que permite que seus
membros e simpatizantes falem de ‘nós’.407
Rocher refere-se ainda aos meios de ação que utilizam os movimentos sociais
e destaca três modalidades:
a) o esforço de persuasão – pode tomar a forma de redação de relatórios,
informes, documentos, petições dirigidas aos poderes públicos, notícias aos
meios de comunicação, etc;
b) as ameaças – podem adquirir diversas formas: ameaças de boicote, de
greves, de chantagem, de sanções físicas, etc;
c) o dinheiro – este meio, tendente a se ganhar os favores dos poderes públicos
pode ser lícito (adesão a partidos políticos, publicação) ou ilícito (corrupção de
funcionários).408
As linhas de ação que correspondem às perspectivas político-estratégicas dos
novos movimentos sociais refletem três posturas:
a) Postura reivindicativa – se encarrega de pressionar o Estado para a obtenção
de melhores condições de vida e de direitos básicos que não são atendidos. Tal
postura possui um alcance limitado no que se refere a criar soluções criativas.
Dada a prioridade de lutas segmentadas, acaba caindo no corporativismo ou
em práticas clientelistas ou populistas;
b) Postura contestatória – refere-se àquela opção que se utiliza das carências e
das privações materiais como forma de mobilização das grandes massas para
realizar uma oposição sistemática ao poder estatal constituído. Nesse caso
407 MELUCCI, Antonio. La sfida simbólica dei movimenti contemporanei. In: COHEN; MELUCCI; OFFE;
PISSORNO; TILLY; TOURAINE (Coord.). I nuovi movimenti sociali. Op. cit.
408 ROCHER, G. Introducción a la sociología general, Barcelona: Ed. Herder, 1983.
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176 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
A base social desses novos movimentos sociais é identificada por Offe como
uma nova classe média. Uma classe média onde as exigências carecem, em grande
parte, da tipicidade da classe já que suas metas são dispersas e universalistas, como
as pretensões que atingem o pacifismo, a proteção do meio ambiente e a defesa
dos direitos humanos. A nova classe média compõe alianças estáveis com outros
elementos sociais, como os grupos periféricos e setores da antiga classe média.410
Tais movimentos de massas organizados que emergem frente à fragilidade e à
inoperância das instituições oficiais, buscam defender a subsistência e a identidade
de seus membros, promovendo a mobilização contra a exploração, a opressão e a
exclusão.411
Os novos movimentos sociais, mesmo sendo absolutamente heterogêneos,
apresentam um conjunto de características comuns:
a) primazia na busca da identidade – o eixo dos conflitos relevantes nas
sociedades contemporâneas já não é eminentemente político ou econômico
como ocorria com o velho movimento de trabalhadores, mas é cultural e
simbólico e gira em torno do sistema de pertencimento a um grupo social
diferenciado (identidade coletiva) de modo que tal pertencimento redefine
a identidade individual;
b) mobilização sem referência específica de classe – os novos movimentos
sociais não mobilizam seus militantes e simpatizantes de acordo com a
posição destes na estrutura social;
c) caráter defensivo – enquanto o velho movimento de trabalhadores
almejava reestruturar a sociedade capitalista transcendendo sua natureza
409 VERAS, Maura P. B.; BONDUKI, Nabil G. Política habitacional e a luta pelo direito à habitação. In: COVRE,
Maria de Lourdes M. (Org.). A cidadania que não temos. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 67-69.
410 Os grupos periféricos ou desmercantilizados, são as categorias sociais cuja situação na sociedade não se
define necessariamente pelo mercado de trabalho, como os estudantes, mulheres, aposentados, etc.
411 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimientos sociales. Op. cit.
participação política
177
412 TEJERINA, Benjamín. Los movimientos sociales y la acción colectiva. De la producción simbólica al cambio
de valores. In: IBARRA, Pedro; TEJERINA, Benjamin (Ed.). Los movimientos sociales. Transformaciones
políticas y cambio cultural. Madrid: Trotta, 1998. p. 11-138.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
178 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI
413 IBARRA, Pedro; TEJERINA, Benjamin (Ed.). Los movimientos sociales. Transformaciones políticas y cambio
cultural. Madrid: Trotta, 1998. p. 10.
414 ALBERONI, Francesco. Movimento e instituzione. Bolonha: Il Mulio, 1977.
415 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. V. II. Madrid: Taurus, 1998.
416 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimientos sociales. Op. cit.
participação política
179
417 ALDAY, Rafael Escudero. Activismo y sociedad civil: los nuevos sujetos políticos. In: SAUCA, J. María; SIMON,
María I. Wences (Ed.). Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Op. cit., p. 276.
Embora sem profunda análise, não podemos deixar de fazer referência ao recentíssimo movimento social
denominado de 15-M (15 de Maio de 2011), a revolução dos indignados, ou Spanish Revolution. Iniciou com
acampamentos e mobilizações em todo território espanhol; imediatamente ultrapassou fronteiras e expandiu-
se para toda Europa ocidental, convocado sob a plataforma “Democracia Real Já”. Autodefinido como um
movimento composto por “cidadãos de diferentes idades e classes sociais” que se sentem “indignados”
ante a falta de representação e “as traições realizadas pelos políticos com o nome de democracia”. Exige
uma reforma na Lei Eleitoral “que devolva à democracia seu verdadeiro sentido: um governo de cidadãos.
Uma democracia participativa”. Argúi que não se pode manter o atual sistema eleitoral com a imunidade do
sistema bancário – a que atribui a responsabilidade pela atual crise econômica – e com candidatos acusados
de corrupção. Têm utilizado a internet e as diversas redes sociais para suas convocações e a divulgação de
suas propostas. Em meados de junho quando concluímos este trabalho, os acampamentos permanecem nas
principais cidades espanholas e europeias e o movimento busca expandir-se, estruturando-se nos bairros e
cidades menores.
418 SANTOS, Boaventura de Sousa. El milenio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política. Madrid: Trotta,
2005. p. 281-284.
419 ALDAY, Rafael Escudero. Activismo y sociedad civil: los nuevos sujetos políticos. In: SAUCA, J. María; SIMON,
María I. Wences (Ed.). Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Op. cit., p. 278.
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CLOVIS GORCZEVSKI