Cidadania, Democracia e Participação Política

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CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA:

OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Colaboração
Reitora
Carmen Lúcia de Lima Helfer
Vice-Reitor
Rafael Frederico Henn
Pró-Reitor de Graduação
Elenor José Schneider
Pró-Reitora de Pesquisa
e Pós-Graduação
Andréia Rosane de Moura Valim
Pró-Reitor de Administração
Dorivaldo Brites de Oliveira
Pró-Reitor de Planejamento
e Desenvolvimento Institucional
Marcelino Hoppe
Pró-Reitor de Extensão
e Relações Comunitárias
Angelo Hoff

EDITORA DA UNISC
Editora
Helga Haas

COMISSÃO EDITORIAL
Helga Haas - Presidente
Andréia Rosane de Moura Valim
Felipe Gustsack
Hugo Thamir Rodrigues
Marcus Vinicius Castro Witczak 
Olgário Paulo Vogt
Rafael Eisinger Guimarães
Vanderlei Becker Ribeiro

Avenida Independência, 2293


Fones: (51) 3717-7461 e 3717-7462
96815-900 - Santa Cruz do Sul - RS
E-mail: [email protected] - www.unisc.br/edunisc
Clovis Gorczevski
Nuria Belloso Martin

CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA:


OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Santa Cruz do Sul


EDUNISC
2018
© Copyright: dos autores
1ª edição 2018

Direitos reservados desta edição:


Universidade de Santa Cruz do Sul

Editoração: Clarice Agnes, Caroline Fagundes Pieczarka


Arte da capa: Denis Ricardo Puhl (Assessoria de Comunicação e Marketing da UNISC)

G661c Gorczevski, Clovis


Cidadania, democracia e participação política [recurso eletrônico]:
os desafios do século XXI / Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin. - 1.
ed. - Santa Cruz do Sul : EDUNISC, 2018.

Dados eletrônicos
Texto eletrônico
Modo de acesso: www.unisc.br/edunisc
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7578-479-2

1. Cidadania. 2. Democracia. 3. Participação política. 4. Século XXI


- Previsões. I. Belloso Martín, Nuria. II. Título.
CDD: 321.8

Bibliotecária responsável: Jorcenita Alves Vieira – CRB 10/1319


SUMÁRIO

PRÓLOGO
Jorge F. MALEM SEÑA................................................................................7

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.................................................................10

1 A CIDADANIA..........................................................................................14
1.1 Conceitos e definições..................................................................................14
1.2 Origem e evolução histórica..........................................................................21
1.2.1 A cidadania na Grécia...................................................................................27
1.2.2 A cidadania em Roma...................................................................................30
1.2.3 A cidadania na Idade Média..........................................................................34
1.2.4 A cidadania na Modernidade........................................................................35
1.2.4.1 O cidadão liberal...........................................................................................36
1.2.4.2 O cidadão social............................................................................................40
1.2.4.3 O cidadão republicano..................................................................................42
1.2.4.4 O cidadão comunitário..................................................................................45
1.2.4.5 O cidadão diferenciado.................................................................................48
1.2.4.6 O cidadão pós-nacional................................................................................48
1.2.4.7 O cidadão cosmopolita.................................................................................49
1.2.4.8 O cidadão transnacional...............................................................................50
1.2.4.9 O cidadão transcultural.................................................................................50
1.2.4.10 O cidadão multicultural.................................................................................51
1.3 A necessária revisão do conceito de cidadania...........................................62
1.4 A experiência europeia.................................................................................66
1.5 Uma nova cidadania.....................................................................................70
1.5.1 A crise migratória na Europa.........................................................................73
1.5.1.1 Precisões conceituais sobre imigrantes, refugiados e solicitantes de asilo 74
1.5.1.2 Onde ficaram os valores fundacionais da União Europeia...........................76
1.5.2. Da cidadania ambiental à cidadania ecológica............................................80

2 DEMOCRACIA.........................................................................................84
2.1 Conceitos e definições..................................................................................84
2.2 Surgimento e evolução. A democracia nas primeiras organizações
políticas.........................................................................................................85
2.3 Principais formas de democracia: representativa, direta e deliberativa.........90
2.3.1 Democracia representativa.............................................................................91
2.3.1.1 Algumas reflexões sobre a legitimidade democrática ou a autoridade
das decisões democráticas.............................................................................92
2.3.2 O atual debate sobre a democracia direta: a teledemocracia e o
cibercidadão......................................................................................................94
2.3.2.1 A versão ‘frágil’ da teledemocracia: pode reforçar a democracia
parlamentar?...................................................................................................95
2.3.2.2 A versão ‘forte’ da teledemocracia: as novas tecnologias e o atual
debate sobre a democracia direta..................................................................96
2.3.3 Democracia deliberativa................................................................................102
2.3.3.1 As instituições da democracia deliberativa...................................................108
2.4 Democracia e demos - As voltas com a representação...............................110
2.5 Cidadania ativa, virtude cívica e patologias corruptivas...............................115
2.6 A crise da democracia...................................................................................127
2.7 A crise da democracia representativa...........................................................129
2.8 Desafios para uma democracia no século XXI.............................................136
2.8.1 Desobediência ao direito..............................................................................136
2.8.2 O “discurso do ódio......................................................................................142
2.8.3 Democracia global........................................................................................144
2.8.4 Os nacionalismos..........................................................................................146

3 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA.....................................................................148
3.1 O que é participação política........................................................................148
3.1.1 As modalidades de participação política......................................................152
3.1.1.1 A iniciativa legislativa popular como um instrumento do direito de
participação política......................................................................................156
3.2 O fundamento da participação política.........................................................158
3.3 A legitimidade da participação política.........................................................161
3.4 A participação política como um direito fundamental..................................165
3.5 A participação política coletiva: movimentos sociais...................................168

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................181

referências..........................................................................................185
PRÓLOGO

La obligación política es una de las cuestiones recurrentes en la filosofía política.


Cómo debe caracterizarse y cuál es su fundamento ha generado desde siempre un
debate abierto sin que haya suscitado, hasta el momento, un consenso generalizado
o tan siquiera mayoritario sobre alguna de las propuestas ofrecidas.
Varias son las razones que hacen difícil alcanzar dicho consenso. La primera
de ellas adquiere tintes conceptuales. La obligación política tiene como núcleo
significativo la pregunta de si hay una obligación de obedecer al derecho. La mera
interrogación sobre si esta obligación tiene un sesgo moral, político, jurídico o de otro
tipo subvierte la posibilidad de alcanzar un rápido acuerdo. Además, la obligación
política no solo capta esta pregunta, también supone definir cuál es la idea de
ciudadanía o de ciudadano que se asume. O cuáles son las notas de la participación
política que se exigen para que esta obligación surja, si es que fuera necesaria. Esto
por citar únicamente tres de los asuntos definicionales más relevantes que no deben
hacer olvidar un sinnúmero de problemas adicionales que se pueden abordar.
La cuestión se complica un poco más, aún si cabe, si la cuestión de la obligación
política se inserta en una democracia. Nuevamente aquí se hacen presentes múltiples
desacuerdos acerca de qué es una “auténtica” democracia y cómo se construye un
orden represivo, el Estado, respetando los derechos fundamentales de los individuos.
La discusión sobre si la democracia es un sistema puramente procedimental que se
rige por la regla de la mayoría o si es un sistema que además debe resguardar ciertos
valores y derechos de las personas, esto es, regirse por el principio de la mayoría,
tampoco está solucionado en la doctrina al uso.
Desde el punto de vista de la justificación de la obligación política, los
desacuerdos tampoco son menores. Numerosas teorías han tratado de modelar y de
fundar la supuesta existencia de una obligación política. Desde las conocidas teorías
del consentimiento a la teoría del fair play, desde las teorías clásicas del derecho
natural al constructivismo moral, por citar tan solo algunas de ellas, han pretendido
ofrecer argumentos justificativos de su existencia no sin antes tomar ciertas cláusulas
precautorias de ribetes difusos. Como se puede advertir, establecer qué relaciones ha
de tener un ciudadano con un Estado democrático depende de numerosos factores
de muy diversa índole. Todo esto contribuye, sin duda, a que el análisis de estos
asuntos sea tan pertinente como difícil.
Clovis Gorczevski y Nuria Belloso Martín abordan el examen de parte de
estas cuestiones conscientes de las dificultades que tal empresa presenta. De ahí
su preocupación por examinar las diversas caracterizaciones de las nociones que
utilizan, previo a la inevitable tarea de escoger una de ellas. Esto hace que la lectura
del libro que prologo tenga un claro interés formativo para un amplísimo número
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
8 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

de potenciales lectores. Escrito con claridad y rigurosidad, el libro se centra en tres


aspectos básicos que tienen fuertes implicaciones para la noción y la justificación
de la obligación política: las ideas de ciudadanía, de democracia y de participación
política.
Su punto de partida es la comprensión de la noción de ciudadanía y de lo que
significa ser ciudadano. En sus análisis, los autores tratan de evitar el que para mí es
un falso dilema entre una visión etnocentrista y otra andino-latinoamericana. Que una
de ellos sea española y el otro brasileño no asegura el éxito de este emprendimiento
pero hacen, en todo caso, un esfuerzo por superarlo. En su entramado conceptual
mezclan elementos y versiones que ofrecen teóricos de origen diverso y tradiciones
distintas con consideraciones históricas y casos contemporáneos. El resultado es
una miscelánea útil para hacerse una idea de las diversas facetas del problema y
poder tomar una opción entre las concepciones presentadas.
Esto no oculta a los autores, como se encargan de poner de manifiesto, la
necesidad de revisar el concepto de ciudadanía para adaptarlo a los desafíos que
supone el choque entre fuerzas de diferentes tipos e impactos como la globalización,
la multiculturalidad o los movimientos migratorios, por citar unos pocos aspectos
que deben convivir en un Estado moderno de una complejidad creciente. Rechazan,
pues, la validez de simples visiones monistas de la ciudadanía.
Este mismo esquema heurístico se repite en el análisis de la democracia. Si bien
se acepta que el concepto de democracia es histórico no dudan en que conviene
repensarlo una vez más. Las realidades en las cuales se insertan las prácticas
democráticas hace que las nociones que se creían bien asentadas deban ser puestas
en cuestión. El uso de las nuevas tecnologías, entre otros elementos, provoca que
la vieja idea ateniense de la democracia deba revisarse. Basta pensar en la llamada
democracia cibernética o en la teledemocracia, que los autores analizan.
En cuanto a la justificación de la democracia, sobre todo en su versión
representativa, Gorczevski y Belloso Martín analizan algunos de los obstáculos que la
democracia debe superar para que su legitimidad no quede viciada. Uno de ellos es
la corrupción que asola a prácticamente todas las naciones iberoamericanas. El caso
Odebrecht, por ejemplo, es el arquetipo de un comportamiento empresarial que, a
través de pagos venales, violenta toda regla política democrática imaginable. Con
los altísimos niveles de corrupción existentes en el contexto iberoamericano, al que
fundamentalmente se dirige este libro, la idea de democracia en cualquiera de sus
versiones se muestra como una ilusión. No hurtar de sus análisis las consecuencias
teóricas y prácticas de este tipo de fenómenos que atenazan la democracia es otro
de los aciertos de este trabajo.
Respecto de la participación política, ambos autores son contestes en sostener
que participar en política no es un fin en sí mismo sino que cumple una función
PRÓLOGO
9

instrumental. Esto no debe entenderse como un intento por disminuir su importancia.


Al contrario, abogan por atribuirle la trascendencia que merece. En política, nos
recuerdan, existen muchas maneras de participar, máxime en una democracia. De
forma activa o pasiva, directa o indirecta, individual o formando parte de viejos y
nuevos movimientos sociales, obedeciendo la ley o desobedeciéndola civilmente,
todo ello para contribuir a la construcción de una voluntad estatal que rija los destinos
de los ciudadanos en libertad.
Comparto con los autores que la ciudadanía debe ser inclusiva, que entre sus
miembros debe primar el principio de igualdad y que en Iberoamérica las prácticas
democráticas y la participación política deben consolidarse para que todas las
personas alcancen el mayor bienestar posible, sin miserias ni temores. Detrás de ello
emerge el respeto por la autonomía de los individuos y la salvaguarda de la dignidad
de la persona.
Este libro alumbra tres cuestiones básicas de la vida del ser humano en un
Estado. No son solo estas las que merecen ser analizadas, pero sí de las más
significativas. Les animo a leerlo, ya que constituye, entre otras cosas, una fructífera
invitación a la reflexión.

Jorge F. MALEM SEÑA


Catedrático Universitat Pompeu Fabra
Barcelona, julio de 2018
CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Cidadania, democracia e participação política são três noções que estão


profundamente inter-relacionadas. A forma de governo democrático não pode ser
entendida sem participação política e, por sua vez, quem exerce a participação
política são os cidadãos. Essa trilogia que pode, à primeira vista, parecer simples
traz, em si, uma grande complexidade porque a afirmação de cada uma dessas três
categorias é o resultado de lutas e notáveis esforços ao longo da história.
A cidadania trouxe o reconhecimento dos direitos humanos a todos os
indivíduos, dotando-os de mecanismos para tutelar e garantir esses direitos. O
ensaio Ciudadanía y clase social, de Thomas Humphrey Marshall, é o referencial
sociojurídico e político fundamental para se analisar a cidadania. Marshall descreve
a implementação sucessiva e temporal da conquista dos direitos civis, políticos e
sociais. Ao referir-se aos sujeitos incluídos e excluídos “percebeu que a própria
cidadania havia funcionado como arquétipo da desigualdade social”. Referiu-se,
contudo, somente à desigualdade de classes, não de gênero, tampouco de etnia ou
outras categorias que, ainda hoje, estão excluídas, como é o caso dos imigrantes.
A cidadania civil surge no século XVIII. O Artigo 1º, da Declaração dos Direitos
do Homem e do Cidadão, expressa: “Os homens nascem e permanecem livres e
iguais em direitos. As distinções sociais somente podem se fundamentar no bem
comum”. A cidadania política é própria do século XIX e incluía o direito de participar
no exercício do poder político, desempenhando-o diretamente ou através do direito
ao voto. As mulheres tiveram que lutar para conseguir seu direito ao voto; no caso
dos imigrantes, o sufrágio passivo e ativo segue submetido, em geral, a diversas
condições e circunstâncias. O reconhecimento de direitos sociais (econômicos,
sociais e culturais) às classes trabalhadoras, foi o caminho para alcançar-se a
igualdade humana básica. Progressivamente foi se alcançando a cidadania social,
ainda que em fases tardias.
No ocidente, a ideia de cidadania sempre esteve ligada à noção de autonomia,
de independência, de posse de propriedades e outros recursos materiais, assim como
de autossuficiência. A cidadania surge no momento em que a burguesia buscava
redefinir um novo sujeito político e este novo sujeito político será o proprietário de
mercadorias, força de trabalho ou opinião.
A cidadania leva a uma profunda mudança nas relações com a nova força
política, que será o Estado. A uma cidadania baseada nos princípios da obediência
aos líderes e caudilhos políticos e no clientelismo dos grupos ante os aparatos
organizacionais dos partidos, os movimentos e o Estado se alteram cada vez mais
pela influência das multidões, grupos de pressão e redes horizontais de indivíduos e
cidadãos com interesses e demandas cada vez mais complexas.
Considerações iniciais
11

O triplo modelo de cidadania marshalliana já não consegue dar respostas às


demandas de direitos em contextos de globalização e de sociedades multiculturais.
A denominada crise humanitária, provocada pela chegada tanto de refugiados como
de imigrantes econômicos, põe em manifesto a resposta de nossas democracias.
O Brasil com a chegada de refugiados e imigrantes procedentes principalmente da
Venezuela, Colômbia e Haiti; a União Europeia, com a chegada, principalmente, de
refugiados do norte da África, bem como de imigrantes econômicos da América
Latina, tem demonstrado não saber gestionar esse fenômeno. É mister e urgente
uma revisão do conceito de cidadania.
A democracia, desde suas origens, foi vista com cautela por filósofos políticos,
de Platão a Santo Agostinho, Hobbes, Montesquieu e muitos outros. Cabe a pergunta
se estes filósofos tiveram a capacidade de detectar a problemática que poderia
se apresentar. Acaso entendiam melhor as debilidades e limitações da condição
humana? Não temeram sucumbir ao discurso que a apresentou como a melhor forma
de governo – entendida como o governo do povo – próprio de nossa época? Quanta
atenção estão dispostos os cidadãos a prestar em assuntos públicos, ao bem estar
da res pública, em um período em que alcançar fins econômicos parece dominar?
A democracia está sempre em evolução. Os diversos modelos de cidadãos – aos
quais faremos referências – constituem as correspondentes formações da cidadania,
das diversas formas de democracia: democracia liberal, democracia republicana
e democracia deliberativa, entre outras. Os dois modelos mais difundidos, a direta
e a representativa, ao longo do tempo conviveram em um jogo de forças, porque
quando a democracia direta ganhava espaço, a representativa se retraía, e vice-
versa. A democracia representativa de hoje, muito pouco se assemelha àquela que
se estabeleceu no início do constitucionalismo. O mesmo ocorre com as instituições
da democracia direta, já que estas instituições não podem ser entendidas fora do
marco da representação e, por evidente, não se pode entender a democracia direta
como se exercia na Grécia. O modelo de democracia direta, com origem na Grécia
Clássica, inspiração para a teoria rousseaniana séculos mais tarde, tem em sua defesa
a vontade popular. Formas de democracia representativa, própria de comunidades
sociais mais amplas, e as democracias diretas (em suas diversas variantes, como a
democracia deliberativa) são de difícil articulação.
Nos últimos anos, consolidadas as democracias nos países ocidentais, busca-se
solidificar jovens democracias (como é o caso da maioria dos países latino-americanos
e, especialmente, o Brasil) uma vez que se tenta enfrentar a crise da democracia que
parece haver impregnado boa parte das democracias (especialmente as jovens, mas
não somente estas, como é o caso da Espanha, cuja Carta Magna chega a seus 40
anos).
Junto aos dois grandes eixos de cidadania e democracia, se situa o terceiro,
a participação política. A teoria moderna da representação política surge como
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
12 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

resultado da influência de diversos autores e pensadores do século XVIII e de dois


processos políticos quase sucessivos: a independência dos Estados Unidos da
América, proclamada em 1776 e a Revolução Francesa, iniciada em 1789 e concluída
em 1799 com o consulado de Napoleão.
Desde então, cidadania, democracia (tanto a representativa como a direta) e
participação, erigiram-se como três pilares sobre os quais se construíram nossas
democracias atuais. E, como toda construção social, segue evoluindo pela influência
de fatores e teorias políticas e econômicas (globalização, pós-modernidade e
outras). Atualmente assistimos a um massivo desenvolvimento de mecanismos de
participação cidadã na gestão do público, contra a desvalorização da democracia e
da política. A participação deixou de ser uma demanda ocasional e marginal, para
converter-se em uma aspiração transversal a todos os setores políticos e a todas as
categorias sociais e culturais.
Atualmente, o modo fundamental de participação na vida pública ocorre através
de partidos políticos. São eles a base da estrutura representativa da soberania
popular. Contudo, os recentes casos conhecidos de corrupção, principalmente para
obterem-se financiamentos ilegais, para adquirir vantagens sobre os demais partidos
que também concorrem às eleições, levaram a uma desconfiança dos cidadãos,
tanto de seus representantes políticos como dos partidos políticos. O modelo de
democracia representativa tem apresentado dois inconvenientes: em primeiro lugar,
um excessivo protagonismo dos partidos políticos; em segundo lugar, os cidadãos
não se sentem adequadamente representados pelos partidos políticos.
Por isso, a democracia representativa, ainda que sólida, vai perdendo sua
estabilidade e a confiança popular. São cada vez maiores os problemas que sofre
essa forma democrática, chegando a classificar-se como “crise da democracia
representativa”. Esses fatos provocam um grande dano à democracia, já que
desencadeiam uma descrença por parte dos cidadãos em seus representantes
políticos, uma sensação de que todos os partidos políticos são iguais – às vezes as
diferenças no discurso ideológico de cada partido são difíceis de identificar – e um
desinteresse pelas diversas opções e atuações dos partidos políticos. O cidadão não
se sente representado por uma classe política que parece não conhecer seus reais
problemas e necessidades. Mesmo os que participam e votam nas eleições, em muitas
oportunidades votam sem ter uma clara opção política, uma vez que consideram que
nenhum dos partidos, ao menos dos majoritários, representam seus ideais ou seus
interesses. Muitos outros cidadãos, que decidem exercer seu direito de voto, também
não estão satisfeitos com seus representantes. Assim, no sistema representativo atual
o julgamento dos partidos e de seus representantes se faz através do ‘voto de castigo’
– onde se deixa de votar no partido que está no poder por suas ações passadas – ou
no ‘voto de protesto’, onde se vota em figuras grotescas e caricaturadas como forma
de rebeldia ou demonstração de desprezo aos atuais políticos.
Considerações iniciais
13

Cidadania, democracia e participação são conceitos gestados há séculos


e que evoluem em suas demandas ao compasso das próprias mutações do
demos. Ocasionalmente temos sido interpelados com questionamentos como: As
categorias de cidadãos existentes são suficientes para incluir a amplitude de sujeitos
de direito (mulheres, crianças, imigrantes, trabalhadores excluídos) como existem
atualmente? Os mecanismos de participação existentes no marco das democracias
representativas modernas são suficientes? Que conceito de participação é mais
coerente considerando as possibilidades de evolução atual e futura da cidadania? Se
por um lado, os cidadãos possuem uma capacidade maior de estarem informados
dos acontecimentos políticos – e as novas tecnologias têm ajudado – por outro, a
informação manipulada, inclusive o excesso de informação, faz com que se desvie a
atenção daquilo que é verdadeiramente essencial. A cultura da modernidade líquida
pode nos ocultar o horizonte da verdade.
O trabalho, que aqui apresentamos, tenta superar o enfrentamento – por vezes
forçado – entre o eurocentrismo e os sistemas latino-americanos, principalmente
andinos. Os autores, Nuria Belloso Martín, Catedrática da Universidad de Burgos,
Espanha, que poderia representar o sistema eurocêntrico, e Clovis Gorczevski,
professor de Política e Direitos Humanos da Universidade de Santa Cruz do Sul,
Brasil, tentam estender pontes entre ambos os sistemas. Isso porque não se trata de
realçar as diferenças e sim valorar as bases comuns que sustentam nossos sistemas.
Compartilham inúmeras inquietudes que gravitam sobre os três amplos eixos deste
estudo: cidadania, democracia e participação.
Este trabalho é fruto de pesquisa realizada pelos autores, com o apoio da
Universidade de Santa Cruz do Sul e Universidad de Burgos, inicialmente denominado
A participação política como exigência intrínseca para o reconhecimento da cidadania
e a construção de uma sociedade justa e democrática, e está destinado a estudantes,
professores, pesquisadores, profissionais do mundo do direito e da política. Em suas
páginas poderão ser encontrados conceitos e teorias que permitirão ao leitor transitar
pelas três noções que são imprescindíveis para se conhecer nossa realidade jurídico-
filosófica-política. Partimos da história, que há por trás de cada um desses eixos,
para chegar à atualidade e projetá-la para o desafio futuro: desde a cidadania até a
formulação de uma resposta com respeito a alguns dos grandes desafios como a
imigração e as sociedades complexas; desde a participação política até oferecer uma
solução para o descrédito relativo à política; desde a democracia até o que fazer frente
aos perigos e ameaças que pairam sobre a mesma, provocando crises cíclicas, dando
respostas aos novos desafios – tais como a desobediência ao direito, o discurso do
ódio, os nacionalismos e tantos outros – no marco do Estado Democrático de Direito. Os
direitos humanos não possuem um capítulo específico neste estudo, mas constituem
o eixo vertebrador sobre o qual transita a cidadania, a democracia e a participação
política. Confiamos que estas páginas abram as portas a novas reflexões sobre estes
temas, que incitem um diálogo ao qual os jusfilósofos estão sempre dispostos.
1 CIDADANIA

1.1 Conceitos e definições

A expressão cidadania nos induz diretamente a ideia de cidade, de um núcleo


urbano, de uma comunidade politicamente organizada. Isto é verdade, mas como
definir cidadão? A expressão vem do latim e refere-se ao individuo que habita a cidade
(civitas). Então, etimologicamente poderíamos dizer que cidadão é aquele que habita
a cidade. Mas, ainda na Grécia, a expressão significava muito mais. Como escreveu
Aristóteles: cidadão não é cidadão porque vive na cidade, afinal os estrangeiros e
os escravos também ali vivem; tampouco são cidadãos aqueles que compartilham
de um mesmo sistema legal, de conduzir ou ser conduzido diante de um tribunal,
pois residentes estrangeiros não possuem completamente esses direitos, sendo
obrigados a apresentar um patrono, um cidadão responsável por eles; os chamamos
de cidadãos apenas na acepção em que se aplica o termo às crianças que são
muito jovens para o registro de cidadão ou aos homens velhos que já estão isentos
dos deveres cívicos. Cidadão, em sentido estrito, a respeito do qual não se possa
apresentar nenhuma exceção é unicamente aquele que tem o poder de tomar parte
na administração deliberativa ou judicial da cidade.1
Também em Roma, a expressão indicava não unicamente o habitante da cidade,
ela significava mais: ela indicava a situação política da pessoa e seus direitos em
relação ao Estado. Cidadão significava ser Romano, homem e livre, portanto com
direitos do Estado e deveres para com ele.
Modernamente, mesmo os estudiosos da área encontram dificuldades em
atribuir-lhe um conceito. Embora reconhecendo o fenômeno como resultado de um
processo histórico, há uma tendência à simplificação que discorre sobre os direitos
do cidadão, desconsiderando o contexto social a que se está referindo. Como diz
Loureiro: “pode-se afirmar que cidadania é o direito a ter direitos, além do dever de
lutar por estes. Não é só isso, porém, cidadania também representa a necessidade
de reconhecimento de novos direitos”.2
Não obstante esta simplificação do conceito de cidadania – direito a ter direitos
– nascer do discurso jusnaturalista formulado no contexto das lutas libertárias e
reivindicatórias da classe burguesa emergente que almejava um novo status, firmou-
se com a concepção de Marshall que, em 1949, com base na realidade de sua época,
em especial no conflito aberto entre o capitalismo e o marxismo, elaborou a primeira
teoria sociológica de cidadania, estabelecendo como direitos do cidadão os direitos

1 ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2008. Livro III. Capítulo I. p. 113-114.
2 LOUREIRO, Patrícia. A cidadania da União Europeia: mito ou realidade? In: SOUSA, Mônica Teresa Costa;
LOUREIRO, Patrícia (Org.). Cidadania. Novos temas, velhos desafios. Ijuí: Unijuí, 2009. p. 175.
a cidadania
15

civis, cooptados ainda no século XVIII, os políticos, adquiridos no século XIX e os


sociais, conquistados no século XX.3 Então, sob esta ótica, cidadão é aquele que em
uma comunidade política goza plenamente dos direitos civis (liberdades individuais),
dos direitos políticos (participação) e dos direitos sociais (trabalho, educação, saúde,
moradia...).4
Pinsky, mesmo reconhecendo que o conceito de cidadania não é um conceito
estanque, mas um conceito histórico, assevera que “ser cidadão é ter direito à vida,
à propriedade, à igualdade perante a lei: é, em resumo, ter direitos civis”. “É também
participar no destino da sociedade, votar, ser votado, ter direitos políticos”.5
Assim também é o pensamento de Rivas para quem cidadania é uma condição
social que se manifesta na capacidade do indivíduo em participar plenamente da vida
política, econômica e cultural de uma sociedade, isto é, trata-se de uma condição
social que permite ao indivíduo desfrutar das oportunidades que a vida social propicia.6
É importante lembrar que a análise de Marshall sobre os direitos do cidadão
encontra-se sob o título: O desenvolvimento da cidadania até o final do século XIX.
Com isso defende Peces-Barba que os três elementos da cidadania – civil, político e
social são elementos básicos e imprescindíveis, mas que devem ser complementados
com novos elementos, isto é, com os novos direitos surgidos no século seguinte e
que não se encaixam parcial ou totalmente no âmbito dos direitos identificados por
Marshall.7
Muitos doutrinadores, que procuram fugir da simples descrição de direitos,
apresentam definições vagas e confusas. Como a de Manzini-Covre, para quem
“cidadania significa ter, direitos e deveres, ser súdito e ser soberano”,8 ou a de Rubio,

3 Marshall, embora afirme que sua análise se funda mais na história que na lógica, divide o conceito de cidadania
em três partes: a) a conquista dos direitos civis, compostos pelos direitos necessários à liberdade individual
– liberdade de ir e vir, de expressão, de manifestação, de pensamento, de crença religiosa, de propriedade;
b) dos direitos políticos, direito a participar no pleno exercício do poder político como um membro de um
organismo investido de autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo; e, c) dos
direitos sociais, que se referem desde a um direito a um mínimo existencial de bem estar econômico, a
previdência, ao direito de participar, inteiramente na herança social e levar a vida de um ser civilizado de
acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. Afirma ainda que estes três elementos, que formam
a cidadania, surgiram na Inglaterra no transcurso de três séculos: os civis no séc. XVIII, os políticos no séc.
XIX e os sociais no séc. XX. Por fim assevera que há uma tendência implícita a conceber tais direitos como
um modelo de cidadania. MARSHALL, Thomas Humphrey. Cidadania, classe social e status. Rio de Janeiro:
Zahar, 1967. p. 63-64.
4 No entanto lembra Cortina que a crítica que se faz a Marshall é ter o mesmo concebido um cidadão passivo,
um simples “direito a ter direitos”, ao invés de valorar uma cidadania ativa, capaz de assumir responsabilidades
para com sua comunidade. CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía. 3. ed.
Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 85.
5 PINSKY, Jaime. In: Introdução. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). História da cidadania. 2. ed.
São Paulo: Contexto, 2003. p. 9.
6 RIVAS, Edelberto Torres. Poblaciones indígenas y ciudadanía: elementos para a formulação de políticas
sociales em América Latina. In: BALTODANO, Andrés Pérez (Coord). Globalización, ciudadanía y política
social en América Latina: tensiones e contradicciones. Caracas: Nueva Sociedad, 2007. p. 173.
7 PECES-BARBA, Gregório Martínez. Educación para la ciudadanía y Derechos Humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 342.
8 MANZINI-COVRE, Maria de Lourdes. O que é cidadania. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998. p. 9.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
16 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

que define cidadania como el estatus que proporciona respecto al Estado y a otros
ciudadanos, unos derechos supeditados a unos deberes que se ejercitan, unos y
otros, en relación con los demás, para promover mejoras contextuales a su alrededor.9
Como se observa esses conceitos, como tantos outros comumente
apresentados, além de serem tautológicos, isto é, não definirem o objeto, nos
conduzem ao erro de imaginar a cidadania como algo estático e simplesmente
discorrer sobre direitos. Poderíamos, em outras palavras, simplesmente dizer que
cidadão é aquele que têm direitos. E não estaríamos muito errados, ao menos no
moderno e ideologizado imaginário popular. Em geral as pessoas desconsideram
que intrínseco no termo estão, ou deveriam estar, os deveres, em especial os de
participação nos rumos de sua comunidade.
Para Pérez-Luño a chave histórica e sistemática para uma definição explicativa
da cidadania está na Enciclopedia, editada na França, no século XVIII (1751 – 1772),
por Denis Diderot e Jean Le Rond d’Alambert. Efetivamente, a Encyclopédie, ou
dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers representou um auxílio
inestimável do iluminismo e serviu de estímulo decisivo para a formação do Estado
Liberal de Direito. Esta grande obra, que compreende 28 volumes, 71.818 artigos
e 2.885 ilustrações, recebeu contribuição das mais notáveis figuras do iluminismo
francês. Pensadores de toda ordem, artistas, técnicos dos mais variados, políticos,
filósofos como Voltaire, Rousseau, Holbach, Montesquieu e outros, liderados por
Diderot e D’Alembert, esforçaram-se para juntar num empreendimento editorial
e em linguagem acessível tudo o que a civilização havia produzido em termos de
conhecimento e cultura até aquele momento. Nela, citoyen (cidadão) é definido
como: “C’est celui qui est membre d’une société libre de plusieurs familles, qui partage
les droits.10  
Partindo desta definição bem como das que se referem a vassal (súdito), Pérez-
Luño apresenta os três grandes principios da ideia de cidadania postulada pela
Encyclopédie enquanto texto paradigmático da modernidade iluminista:

1) Cidadania é condição da pessoa que vive em uma sociedade livre.


Nas comunidades políticas onde impera o arbítrio ou a tirania não
existem cidadãos. Para que tal condição se implemente, é mister uma
ordem política democrática que permita o exercício das liberdades;
2) A cidadania é uma condição voluntária, não pode ser imposta a
nenhuma pessoa. A qualidade de cidadão se funda no pacto social; um
acordo livre de pessoas para integrar-se e participar num determinado
modelo de organização política. Por isso postula a Encyclopédie na

9 RUBIO, C. Fernández. La educación para la ciudadanía europea. Propuesta educativa para su implementación
en el curriculum de Ciencias Sociales. In: VERA, M.; PÉREZ, D. (Coord.) Formación de la ciudadanía: las
tics y los nuevos problemas. Alicante: Associación Universitária de Profesores de Didáctica de las Ciencias
Sociales, 2004.
10 Aquele que é membro de uma sociedade livre, composta de muitas famílias e que compartilha os direitos.
a cidadania
17

existência de um direito natural a imigração, porque não se pode


obrigar ninguém a ser cidadão de um Estado pela força. Toda pessoa
tem direito a mudar de cidadania: renunciar a que possui e adquirir
outra, que seja mais de acordo com suas convicções e preferências
políticas. Daí existirem dois modelos de cidadania: a originária, que
surge com o nascimento e a adquirida, que procede de manifestações
expressas de vontade;
3) A cidadania se desdobra em um conjunto de direitos e deveres das
pessoas que pertencem a um determinado Estado.11

Também não se pode, de nenhuma maneira, desprezar a contribuição de


Kant para com o tema. Encarnando a razão iluminista, o filósofo prusso afirma
expressamente que “a situação dos cidadãos, considerada como situação puramente
jurídica, se funda nos seguintes princípios: (l) A liberdade de cada membro da
sociedade enquanto homem; (2) A igualdade frente a qualquer outro enquanto súdito;
e, (3) A independência de cada membro da comunidade enquanto cidadão”. Esses
princípios, afirma, não são leis dadas por um Estado instaurado, mas leis que por sí
só, fazem possível a constituição do Estado, segundo os princípios da pura razão,
que emanam do direito externo do homem.12
É com base nos textos da Encyclopédie e das teses Kantianas, que Pérez-Luño
expressa sua definição:

Ciudadanía, consistirá en el vínculo de pertenencia a un Estado de


derecho por parte de quienes son sus nacionales, situación que se
desglosa en un conjunto de derechos y deberes; ciudadano será la
persona física titular de esta situación jurídica.13

Por evidente que cidadania ou o pertencimento a uma comunidade é um


processo histórico e em constante evolução. Assim, ao definir-se a qualidade de
cidadão, deve-se sempre considerar o contexto social a que se está referindo, porque
com isso a mesma adquire características próprias que se diferenciam conforme o
tempo, o lugar e as condições socioeconômicas.
Assevera Heater em seu trabalho, que ao longo dos quase três milênios de
existência das sociedades organizadas, a questão da cidadania adquiriu formas

11 Adverte Pérez-Luño que, segundo consta expressamente na enciclopédia nem todas as pessoas são
cidadãos, pois que as mulheres, as crianças, os servos, não possuem tal condição; participam da cidadania
através dos vínculos que os unem àqueles que ostentam tal condição. PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La
ciudadanía en las sociedades multiculturales. In: CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Ciudadanía y derecho en
la era de la globalización. Madrid: Dykinson, 2007. p. 264-265.
12 KANT, Immanuel. En torno al tópico. In: Teoría y praxis. Madrid: Tecnos, 1985. p. 15. Passagens análogas em:
A paz Perpétua. Porto Alegre: L & PM, 2008. p. 24-30, e em La metafísica de las costumbres, Madrid: Tecnos,
1989. p. 143. Citação também referida por CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la
ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 54; PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La ciudadanía en
las sociedades multiculturales. In: CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Ciudadanía y derecho en la era de la
globalización (Editor). Madrid: Dykinson, 2007. p. 265.
13 PÉREZ-LUÑO, Antonio Enrique. La ciudadanía en las sociedades multiculturales. Op. cit., p. 266.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
18 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

muito variadas e que são perfeitamente identificáveis cinco modelos:

1) O feudal - onde a relação era do tipo hierárquico e o status estava


definido pelos vínculos entre vassalo e senhor. A relação é simples:
quem está na base da pirâmide serve a quem está acima, em troca
este lhe oferece proteção;
2) o monárquico - ao personificar o Estado, o monarca, único dirigente,
se distingue claramente dos demais habitantes que se convertem
em súditos e de quem se exige basicamente lealdade e obediência
passiva, - não há qualquer outro vinculo;
3) o tirânico - (entendida como qualquer forma de governo autoritário
- da simples ditadura ao totalitarismo moderno). Aqui o individuo se
degrada ainda mais, pois o único direito político que se lhe dá e a
única forma de participação que se lhe permite é o apoio pleno ao
tirano;
4) o nacional - onde o individuo se identifica com a nação que cultiva
seus valores. O país se transforma em “algo grande” a quem se deve
servir; e
5) o moderno cidadão - onde a relação do indivíduo não é com outro
indivíduo (como no modelo feudal, monárquico ou tirânico), nem com
um grupo (como ocorre com a ideia de nação), mas com a ideia de
Estado. A identidade cívica se consagra nos direitos outorgados pelo
Estado aos cidadãos individuais e nas obrigações que estes devem
cumprir para com aquele.14

Como se observa, não há como se falar de cidadão sem identificar o modelo


a que se está referindo, pois o termo comporta inúmeros conceitos dependendo do
tempo e o contexto cultural a que se está referindo. Assim, a principal dificuldade ao
tratar-se de cidadania é o caráter pluriforme do próprio termo, dada a variedade de
dimensões espaciais e funcionais que se pode desenvolver bem como as situações
empíricas que designa. A falta de claridade sobre o significado do termo deve-se às
diferentes concepções políticas, porque, como bem lembra Fariñas-Dulce, cidadania
não corresponde a uma categoria natural, trata-se de uma construção metafórica que
surge como consequência de processos históricos de negociação, interpretação e
ratificação, mediante a qual se estabeleceu um duplo vínculo de caráter abstrato entre
o cidadão e sua organização jurídico-política. Enquanto o segundo é responsável
pela proteção do cidadão este, por sua vez, participa na direção da atividade jurídico-
política daquela.15

14 HEATER, Derek. Ciudadanía: Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 12-14.
15 FARIÑAS-DULCE, María José. Globalización, ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Dykinson, 2000. p. 37.
a cidadania
19

Na verdade, como veremos a seguir, a questão da cidadania é tão ou mais


antiga quanto as primeiras comunidades sedentárias e define o status do individuo
em uma sociedade. O conceito de cidadania nasce, historicamente, como oposto
ao de súdito, mas sem a aspiração de incluir a todas as pessoas da sociedade. Pelo
contrário, referia-se aos homens livres, proprietários e cabeças de família. Por isso, diz
Warat, que falar em cidadania, em qualquer época, significa fazer referência aos que
tem opinião, pois ser cidadão é ter voz, poder opinar e decidir – o que exclui a maioria
(os pobres) e grupos de minorias (étnicas-culturais-nacionais). Logo, "la ciudadania
en todos los tiempos siempre fue una classe VIP”.16 Zapata-Barrero também leciona
que historicamente sempre se fez dois usos da palavra cidadania: um fechado e
institucional, outro aberto e instrumental. Isto é, pode ser tanto um objeto de atuação
política para incluir e/ou excluir, como objeto para designar um tipo de identidade e
de atividade política. E arremata: “está claro que ciudadanía ha sido históricamente
una noción excluyente”.17 Efetivamente, no conceito de cidadania, sempre esteve
arraigada uma conotação de privilégio e um limite social, étnico, político e econômico
frente aos demais indivíduos não incluídos dentro de seu alcance semântico.
Mas, sendo uma construção histórica, com a extensão dos direitos vai se
modificando também o conceito de cidadania, que vai assumindo diferentes formas
nos diferentes tempos e contextos sociais, prestando-se a diversas interpretações
para justificar diversas situações ideológicas. Assim não há um conceito rígido de
cidadania, pois não se trata de algo estático. Cidadania é o resultado de um longo
processo histórico em constante evolução, que no ocidente inicia a partir do século
XVIII – com a conquista dos direitos civis expressos na igualdade ante a lei e pela
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão – se afirma no século XIX – em
virtude do sufrágio universal – e se impõe definitivamente no início do século XX –
com a conquista dos direitos econômicos e sociais. E este é um processo sem fim,
porque como bem disse Bobbio,

[...] ainda que fossem necessários, os direitos não nascem todos de


uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando
o aumento do poder do homem – que acompanha inevitavelmente
o progresso técnico, isto é, o progresso da capacidade do homem
de dominar a natureza e os outros homens – ou cria novas ameaças
à liberdade do indivíduo ou permite novos remédios para as suas
indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de
limitações do poder.18

16 WARAT, Luis Alberto. La ciudadanía sin ciudadanos: tópicos para un ensayo interminable. In: Sequência:
estudos jurídicos e políticos, v. 14, n. 26, 1993. p. 1-17. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/servlet/
articulo?codigo=4818027>.
17 ZAPATA-BARRERO, Ricard. Multiculturalidad e inmigración. Madrid: Editorial Síntesis, 2008. p. 34.
18 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 6.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
20 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Efetivamente, uma sociedade aberta, livre e democrática será sempre sensível


e estará atenta ao surgimento de novas necessidades que fundamentaram novos
direitos. E a questão da cidadania é, como disse Resende,19 um estado de espírito e
uma postura permanente que leva os indivíduos a atuar, isoladamente ou em grupos,
na ampliação e defesa de seus direitos, ou como bem expressou Tancredo Neves: “a
cidadania não é atitude passiva, mas ação permanente, em favor da comunidade”.
Como se observa há uma grande dificuldade em definir-se cidadania, pela
ambiguidade e ideologia que o termo encerra. Mesmo uma definição técnica como
a de Costa, que conceitua a cidadania como a relação politica-fundamental, isto é a
relação entre um individuo e a ordem politico-jurídico na qual esta inserido, torna-se
tautológica, pois acaba não definindo o objeto.20 O mesmo acontece com o conceito
de Heater:

La ciudadanía es primariamente una relación política entre un indivíduo


y una comunidad política, en virtud de la cual el indivíduo es miembro
de pleno derecho de esta comunidad y le debe lealtad permanente.21

Parece-nos que razão assiste a Cortina quando assevera que qualquer conceito
pleno de cidadania, deve integrar um status legal (um conjunto de direitos), um
status moral (um conjunto de responsabilidades) e uma identidade, pela qual uma
pessoa sente-se integrada a uma sociedade.22 O que Cortina designa de identidade,
entendemos como um fator psicológico e, sem dúvida, o elemento mais importante
para uma definição de cidadania: sentir-se pertencente, fazer parte. Touraine atribui
tanta importância a esse fator psicológico que assevera não existir cidadania sem a
consciência de pertencer, seja a uma coletividade, seja uma nação, uma comunidade
ou uma região. De igual forma, sem esse direito a membership – expressão de Michael
Walzer – ou o direito de pertencer a uma comunidade não há democracia. Sentir-se
parte, não é per si democrático – não há democracia no fato de um soldado que tem
a consciência de pertencer a um exército ou um operário que pertence a determinada
indústria – mas sentir-se pertencente a uma comunidade é o que gera as demandas
democráticas.23
Nessa mesma linha segue Galván que, partindo do conceito sociopolítico de
Benedicto e Morán, de que cidadania é una forma colectiva de pertenencia activa a
la comunidade assevera que a cidadania está composta por uma série de elementos
interrelacionados, que definem sua dinâmica social em um grupo ou contexto social
pré-determinado, e destaca, então, três elementos que entende por básicos da

19 RESENDE, Ênio J. Cidadania: o remédio para doenças culturais brasileiras. São Paulo: Summus, 1992. p. 67.
20 COSTA, Pietro. Cittadinanza. Roma-Bari: Laterza & Figli, 2005. p. 35.
21 HEATER, Derek. Ciudadanía: Uma breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007.
22 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoría de la ciudadanía. Op. cit., p. 151.
23 TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? París: Librairie Arthème Fayard, 1994. p. 145-146.
a cidadania
21

cidadania: (a) do ponto de vista institucional, se compõe pelo marco de direitos e


deveres através do qual a relação de pertencimento cívico é expressado normativa e
institucionalmente; (b) do ponto de vista ideológico, se relaciona com a construção
das identidades cidadãs, isto é, com aqueles critérios culturais que dão sentido à
comunidade e a pertencer à mesma; (c) por último há um componente prático que
engloba as práticas sociopolíticas que levam a termo os governos e os cidadãos,
dentro do marco institucional e das culturas cidadãs que configuram a esfera pública.24
Por fim, embora considerando a definição apresentada por Peces-Barba como
definitiva – “Cidadania define o status ou o posto que ocupa a pessoa na sociedade”25
– ficamos com a opinião sustentada por Garcia y Lukes que consideram a cidadania
como uma conjunção de três elementos: (1) pertencer a uma comunidade política
determinada (normalmente um Estado); (2) a garantia de certos direitos, assim
como a obrigação de cumprir certos deveres para com essa sociedade específica;
e, (3) a oportunidade de contribuir na vida pública dessa comunidade através da
participação.26 Com outras palavras a definição de Bolzman é idêntica. Depois de
lembrar que a noção de cidadania é dificilmente dissociável de uma comunidade
política defende que seu conceito reveste-se de um duplo significado: (1) por um
lado pertencer a uma comunidade política e (2) por outro, o exercício de direitos no
seio dessa comunidade. Dito de outro modo, cidadania significa um status (pertencer
a um Estado) e um direito (poder exercer direitos neste espaço definido). A essas
duas dimensões agrega uma terceira que é o poder de influenciar na vida dessa
comunidade (participação política).27

1.2 Origem e evolução histórica

Embora tradicionalmente atribua-se o surgimento da cidadania à Grécia Clássica,


podemos ousadamente afirmar que sua origem é anterior mesmo às primeiras
comunidades sedentárias, isto é, muito antes de surgirem aldeias, vilas ou cidades.
Não obstante a assertiva de Rousseau de que viver em sociedade não é
natural,28 o ser humano possui a natural predisposição de conviver com outros de
sua espécie. Muito antes de Hobbes afirmar que "homo homini lupus", Francisco de
Vitória já sentenciava que "el hombre no es un lobo para el otro hombre. La naturaleza
estableció cierto parentesco entre todos”. Defendia que o homem é um animal civil

24 GALVÁN, Beatriz Souto. Educación y creencias. Nuevas y viejas querellas sobre cuestiones educativas.
Madrid: Dykinson, 2012. p. 65.
25 PECES-BARBA, Gregório Martínez. Educación para la ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 311.
26 GARCIA, S.; LUKES, S. Ciudadania: justicia social, identidad y participación. Madrid: Siglo XXI, 1999. p. 1.
27 BOLZMAN, Claudio. Políticas de inmigración, derechos humanos y ciudadanía a la hora de la globalización:
uma tipologia. In: DÍAZ, Emma Martín; SIERRA, Sebastián de la obra. Repensando la ciudadanía. Servilla:
Fundación El Monte, 1999. p. 207.
28 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 24.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
22 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

ou social e concluiu: “Los hombres, por su naturaleza, tienen que vivir en comunidad o
sociedad”.29 Efetivamente, ao julgar pelos achados paleontológicos pode-se afirmar
que os mais primitivos homens já compunham pequenos grupos sociais, comendo
frutos, sementes, raízes, insetos, pequenos vertebrados e, ocasionalmente, unindo
forças para abater predadores maiores; compartilhavam o mesmo espaço em grutas,
cavernas ou em esconderijos naturais. Embora ali não habitassem – a condição de
coletores/caçadores os impedia de fixarem-se – a estes centros o homem paleolítico
constantemente regressava e não apenas porque estes locais lhes trouxessem
vantagens naturais como segurança e esconderijo, mas movido por forças espirituais
e até sobrenaturais, porque era nesses locais onde também deixavam seus mortos,
os primeiros a possuírem um local permanente.30
Nesses antigos sítios paleolíticos é onde se encontram os primeiros indícios
de vida cívica, muito antes de poder sequer suspeitar-se de qualquer agrupamento
permanente. E esclarece Mumford:

Não se tratava de um mero ajuntamento por ocasião do acasalamento


ou de um regresso pela fome a uma fonte segura de água e alimento, ou
de um ocasional escambo, em determinado ponto convenientemente
protegido por um tabu, de âmbar, sal, jade ou mesmo, talvez de
instrumentos prontos. Ali, no centro cerimonial verificava-se uma
associação dedicada a uma vida mais abundante; não simplesmente
um aumento de alimentos, mas um aumento de prazer social, graças
a uma utilização mais completa da fantasia simbolizada e da arte,
com uma visão comum de uma vida melhor e mais significativa ao
mesmo tempo que esteticamente atraente uma boa vida em embrião,
como a que Aristóteles um dia iria descrever na Política: o primeiro
vislumbre da Utopia. 31

Assim, o primeiro embrião da cidade é o ponto de encontro cerimonial, pois


que a necessidade de um amplo raio de ação em busca de alimento impedia o
sedentarismo, até surgir a domesticação dos animais e o plantio de sementes.
Este foi o maior saldo da humanidade segundo Diamond. Desde que nossos
ancestrais se distinguiram dos primatas, há cerda de 7 milhões de anos, todos os
humanos da terra se alimentavam exclusivamente da caça de animais e da coleta de
plantas. Foi somente nos últimos 11.000 anos que alguns povos passaram a dedicar-

29 FRANCISCO DE VITÓRIA. Los derechos humanos. Antologia. Salamanca: Editorial San Esteban, 2003. p. 245.
30 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. p. 13.
Entre 130.000 e 40.000 anos passados, os humanos da Europa e do oeste da Ásia são representados pelo
homem de Neanderthal, algumas vezes classificados como espécie diferente do homo sapiens: homo nean-
derthalensis. Foram eles os primeiros a deixar provas de que cuidavam seus doentes e que enterravam seus
mortos. Ver DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Os destinos das sociedades humanas. 2. ed. Rio de
Janeiro – São Paulo: Record, 2001. p. 38
31 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. 4. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1998. p. 14.
a cidadania
23

se à produção de alimentos: o cultivo de plantas e a domesticação de animais, o que


possibilitou a fixação em um determinado local.32
A disponibilidade de mais comida significa a possibilidade de ampliar o grupo,
pois a obtenção de calorias (cereais, frutas, carne, leite, peles, ovos) pode aumentar
100 vezes ou mais em uma mesma área. Ainda, a fixação em um determinado
local, eleva a taxa da natalidade, pois na sociedade caçadora-coletora, a mãe podia
carregar apenas um filho, não podia ter outro antes que o primeiro fosse capaz de
acompanhar o grupo. Tudo isso faz com que os grupos tornem-se muito maiores.
Para Mumford, a produção de alimentos, a domesticação de animais, com o
consequente sedentarismo e o aumento da população – que leva à criação de aldeias
– foi obra da mulher e foi precedida de uma revolução sexual. Esta mudança,

deu predomínio não ao macho caçador, ágil, de pés velozes, pronto


para matar, impiedoso por necessidade vocacional, porém à fêmea,
mais passiva, presa aos filhos, os rebentos, inclusive, ocasionalmente,
pequenos mamíferos lactentes, se a mãe destes morria, plantando
sementes e vigiando as mudas [...]33

32 Diversa é a conclusão de Harari. Não nega a importância da Revolução Agrícola para o desenvolvimento
das sociedades humanas. O aumento da oferta de alimentos é diretamente proporcional ao aumento da
população. Lembra, contudo, o alto preço pago por isso. Alimentos extras não se traduziram em uma dieta
melhor ou em mais lazer. Constituíram sim, explosões populacionais e elites favorecidas. Os caçadores-
coletores passavam todo o tempo em atividades variadas e estimulantes, e estavam menos expostos à fome
e doenças. O corpo do homo sapiens evoluiu para subir em árvores e correr atrás de animais (ou fugir
deles) e não para carregar pedras limpando terreno, puxar arado ou carregar água. A coluna, os joelhos,
o pescoço e os arcos plantares pagaram o preço. Estudos de esqueletos antigos indicam que a transição
para a agricultura causou uma série de males como deslocamento de disco, artrite e hérnias. Em troca não
tivemos uma dieta melhor. O homo, assim como os demais primatas, evoluiu com uma grande variedade
de alimentos. Uma dieta baseada em poucos cereais é pobre em vitaminas, difícil de digerir e péssima para
dentes e gengiva. Ademais, ao ficar na dependência exclusiva de uma espécie, uma prolongada seca, chuvas
em excesso, ou a invasão de pragas, condenava milhares a morte por inanição. Ao abandonar a vida nômade
as mulheres puderam ter um filho por ano. Os bebês eram desmamados mais precocemente – podiam
ser alimentados com mingaus e papinhas. Menos leite materno e a necessidade de dividir o mingau com
mais irmãos fez a mortalidade infantil disparar. Ademais, os caçadores-coletores viviam coletivamente em
territórios com centenas de quilômetros. “Lar” era o território inteiro, com seus rios, colinas e florestas. Com a
Revolução agrícola e o sedentarismo a vida para ser sua pequena roça ou pomar e a vida doméstica centrada
em uma estrutura de madeira ou pedra de poucos metros, denominada casa. O impacto psicológico disso
será permanente e transformará o homo em um ser individualista e egoísta.
O maior salto da humanidade, assegura, ocorreu entre 70 mil e 30 mil anos atrás. Mutações genéticas aciden-
tais permitiram novas formas de pensar e se comunicar: a Revolução Cognitiva. Todos os animais possuem
uma forma de linguagem, mas a humana é incrivelmente versátil. Podemos conectar uma série ilimitada de
sons e sinais para produzir um número infinito de frases. É graças à linguagem, que permite transmitir in-
formações precisas, que os sapiens puderam desenvolver tipos de cooperação mais sólidas e sofisticadas;
agora os membros do bando podem pensar juntos e discutir sobre estratégias de caça e o caminho a seguir.
Mas o mais importante, segundo Harari, a linguagem permite criar mitos, realidades inexistentes, fantasias.
E a cooperação humana é baseada em mitos criados. O caminho está aberto para o surgimento de lendas e
deuses, depois para igrejas, reis e Estados. Em resumo, com a Revolução Cognitiva surgiu a capacidade de
transmitir maiores quantidades de informações sobre o mundo à volta com o que levou a realização de ações
mais complexas, como evitar os leões e caçar bisões; a capacidade de transmitir grandes quantidades de
informações sobre as redes sociais dos sapiens, o que levou a grupos maiores e mais coesos; assim como
a capacidade de transmitir grandes quantidades de informações sobre coisas que não existem de fato, tais
como espíritos, deuses, nações, direitos, o que permitiu a cooperação entre números muito grandes de indi-
víduos estranhos e uma inovação no comportamento social.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. 25. ed. Porto Alegre: L&PM, 2017. p. 29 e ss.
33 Idem, p. 18.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
24 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Da união de várias famílias buscando atender às necessidades comuns surge


a aldeia – o embrião da cidade – uma associação primária que cria o vizinho, a via
pública, o oratório comum; que vai necessitar de uma moralidade organizada, de um
governo e de um direito.
Para demonstrar o desenvolvimento das sociedades humanas, Diamond34
apresenta quatro categorias, ou estágios: os bandos, tribos acéfalas, tribos
centralizadas e, finalmente o Estado.
Todos os humanos viveram em bandos até pelo menos 40.000 anos atrás,
e muitos até somente 11.000 anos. Trata-se da primeira sociedade humana, uma
família ampliada. Possuíam de 5 a 80 indivíduos, parentes próximos por nascimento
ou casamento. São caçadores-coletores e não dispõe de instituições formais como
leis, polícia e tratados. Sua organização é descrita como “igualitária”, pois não há
liderança formal nem estratificação social.
O segundo estágio é a tribo acéfala maior que o bando – centenas ao invés
de dezenas de pessoas. Essas sociedades começaram a surgir por volta de 13.000
anos. São sedentários, pois produzem alimentos, e constituídas por mais de um
grupo familiar. Preservam um sistema igualitário, isto é, sem uma autoridade central
ou hierarquia formal, sem burocracia, sem leis e sem tributos, a tomada de decisões
é da comunidade.
Registros arqueológicos sugerem que, por volta de 5.500 anos, no Crescente
Fértil e, por volta de 1.000 anos, na América surgem as tribos centralizadas. Possuem
populações muito maiores que as acéfalas – de milhares a dezenas de milhares de
indivíduos. Isso gerou o primeiro grande problema: essas organizações não são
constituídas por uma única família, é necessários fazer com que as pessoas coabitem
com estranhos, sem conflitos. Com o desenvolvimento da aldeia alterou-se também
a função do caçador, que devido ao bom manejo das armas passou a proteger a
comunidade, não somente das feras, mas também de invasores. Assim, pela proteção
que propicia, através da força e das armas, o caçador começa também a exercer
poder sobre os demais, atribuindo-se o monopólio na solução dos conflitos internos,
tornando-se mais tarde chefe político, abrindo caminho para o poder, tornando-se
depois o senhor da guerra, da lei e também da terra. Será ele quem dirá o direito,
administrará, cobrará tributos e oferecerá proteção. Em contraste com a tribo acéfala,
o chefe ocupa um posto reconhecido, preenchido por direito hereditário, passa a ser
uma autoridade centralizada, tomando as decisões importantes. A grande população
de uma tribo centralizada em uma área reduzida, precisa de muita comida – dando
início às especialidades (pescadores, agricultores, coletores). Para Diamond, a
característica mais marcante das tribos centralizadas é a economia. Enquanto as

34 DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço. Os destinos das sociedades humanas. 2. ed. Rio de Janeiro – São
Paulo: Record, 2001. p. 265 e ss.
a cidadania
25

tribos acéfalas viviam exclusivamente da troca, as tribos centralizadas desenvolveram


um sistema adicional: a economia redistributiva.35 Ainda que desempenhando
funções genéricas, não especializadas, dependendo do tamanho da comunidade as
determinações do chefe podiam ser transmitidas por um ou dois níveis de burocratas.
Como evolução das tribos centralizadas, surgem os primeiros Estados. Diamond
sugere que tenha ocorrido por volta de 3.700 a.C. na Mesopotâmia, 300 a.C. na
Mesoamérica, mais de 2.000 nos Andes, na China e sudeste da Ásia e por volta de
1.000 anos da África ocidental. A evolução se deu de bandos para tribos acéfalas,
tribos organizadas e os primeiros Estados, que conservavam muitas características
das tribos centralizadas. A distinção fundamental é que os Estados são organizados
segundo linhas políticas e territoriais, não segundo as linhas de afinidade que
definiam os bando e as tribos. Além disso, bandos e tribos eram constituídos por um
único grupo linguístico e étnico, os Estados passam a ser multiétnicos e multilíngues.
A seleção dos burocratas não se dá mais por afinidade consanguínea e sim por
especialidade, pois há uma proliferação dos níveis burocráticos que passam a ser
também horizontais. Os proto-estados possuíam um líder hereditário, o poder central
era mais abrangente e concentrado, a especialização econômica mais acentuada e
a redistribuição (rebatizada de tributo) é mais extensa. A maioria adotou a escravidão
em grande escala porque a maior especialização econômica e o aumento de obras
púbicas necessitavam de mais mão de obra. Para Diamond essas organizações se
fortaleceram e se desenvolveram basicamente por descobrirem novas tecnologias e
armas, terem um processo decisório concentrado, o que possibilitou agrupar tropas
e recursos, além uma religião oficial e um fervor patriótico que incutia nos indivíduos
o ardor de defender o Estado até a morte.
Das muitas teorias que tratam do problema da origem do Estado, provavelmente
a mais conhecida seja a de Rousseau, com a ideia do Contrato Social, outras, até
negam que haja qualquer problema a ser resolvido.
Aristóteles ensinava que quando várias aldeias se unem em uma única e
completa comunidade, a qual possui todos os meios para bastar-se a si mesma,
surge a Cidade (polis), formada originalmente para atender às necessidades da vida
e, na sequência, para o fim de buscar viver bem.36 Elas são, segundo Guarinello, o
resultado do fechamento gradual e ao longo de vários séculos, de territórios agrícolas
específicos, cujos habitantes se estruturam, progressivamente como comunidades,
excluindo os estrangeiros e defendendo coletivamente suas planícies cultivadas da

35 Diamond apresenta como exemplo um chefe recebendo trigo de todos agricultores na época da colheita,
depois dando um banquete para todos e servindo pão, ou armazenando o trigo e redistribuindo aos poucos
na entressafra. Quando uma parcela dos bens arrecadados não era redistribuida, mas retida para consumo
do chefe e sua família a redistribuição passava a ser um tributo, precursor dos impostos. O chefe podia não
revindicar unicamente produtos, mas também mão de obra para a realização de obras públicas, que mais
uma vez retornavam ao próprio povo (como a construção de canais de irrigação) ou beneficiar-se unicamente
(construção de tumbas e adereços). DIAMOND, Jared. Op. cit., p. 275.
36 ARISTÓTELES. Política. Op. cit., p. 53-56.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
26 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

agressão externa.37 Como disse Platão, a cidade surge e tem sua origem na impotência
de cada um de nós em sermos autossuficientes e das incontáveis necessidades que
sentimos. Como necessitamos de outros homens para nos ajudar a suprir nossas
necessidades, e todos precisam de todos e são muitas as necessidades, agrupamo-
nos em um só lugar, companheiros e ajudantes. A esta associação denominamos
cidade.38
Sendo o homem um animal político, ensina Aristóteles, está destinado a viver
em sociedade, e a cidade é um microcosmo economicamente autossuficiente e
homogêneo. É o lugar onde os cidadãos exercem a virtude e através dela é que
alcançam à plenitude humana. Se por um mero acidente não houvesse cidade, o
homem seria um ser vil, porque o homem que não vive em sociedade ou não necessita
dela para viver porque se basta a si mesmo, deve ser uma besta ou um Deus.39
É na mesma esteira que segue São Tomás de Aquino quando doutrina que o
homem possui naturalmente a racionalidade, outorgada por Deus, para que com ela
dirija seus atos e ações podendo, portanto, viver individualmente como ocorre com
muitos animais, sendo seu próprio rei, abaixo unicamente de Deus. Entretanto,

corresponde a la naturaleza del hombre ser un animal sociable y


político que vive en sociedad, más aún que el resto de los animales,
cosa que nos revela su misma necesidad natural” .... “Porque uno solo
hombre, por sí mismo, no puede bastarse en su existência. Luego
el hombre tiene como natural el vivir en una sociedad de muchos
miembros.

e cita Salomão: “É melhor viver dois juntos que um sozinho. Porque terão a vantagem
da mútua companhia”.40
Já Paine invocou a necessidade imposta pela própria natureza para justificar
a vida em sociedade. Como a natureza destinou o homem à vida social, também
o capacitou para as condições que propunha. Em todos os casos, fez com que
suas necessidades naturais fossem maiores que suas faculdades individuais;
assim, nenhum homem pode, sem ajuda da sociedade, satisfazer suas próprias
necessidades e estas, ao atuar sobre o indivíduo, impelem todos à sociedade, com a
mesma naturalidade que a gravidade atua com relação ao centro.41
Importante destacar que ao surgirem às primeiras comunidades organizadas,
agrupamentos, aldeias e vilas, o individuo vivia em função dela. Não unicamente por

37 GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-estado na antiguidade clássica. In: PISKY, Jaime; PINSKY Carla
Bassanezi. (Org.). História da Cidadania. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2003. p. 32.
38 PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000. p. 55-56.
39 ARISTÓTELES. Política. Op. cit., p. 56.
40 AQUINO, São Tomás de. La monarquía. Estudio preliminar, traduccion y notas de Laureano Robles y Ángel
Chueca. Madrid: Tecnos, 2002. p. 7.
41 PAINE, Thomas. Derechos del hombre. Madrid: Alianza Editorial, 2008. p. 216.
a cidadania
27

questão de segurança, mas por laços espirituais e consanguíneos, um forte vínculo


social dirigia toda sua dedicação à comunidade. Sua vida somente tinha sentido
contribuindo e cumprindo seus deveres para com o seu grupo social. Quirós aponta
esta como uma diferença gritante entre as primeiras comunidades e as comunidades
atuais: a participação do individuo. Es que cuando apareció la polis, como tal, el
ciudadano vivia para ella, y su vida no tenia sentido se no se le permitia cumplir con
sus deberes sociales y disfrutar de sus bienes.42 Hoje, o distanciamento entre o
cidadão e a cidade é cada vez maior; o individualismo próprio da modernidade faz
com que os laços comunitários se tornem cada vez mais frágeis e que o cidadão eleja
em primeiro lugar seus próprios interesses, deixando em segundo plano o interesse
comum, que desperta nele somente um interesse indireto. Campuzano43 atribui esse
afastamento ao individualismo – uma forte característica da sociedade moderna. Um
individualismo narcisista, que exerce uma força dispersiva sobre a sociedade e conduz
os homens ao terreno de seus piores interesses. Com isso, afirma, a apatia apodera-
se dos indivíduos e o desinteresse pela construção de um espaço comum invade seu
espírito. Esse individualismo gera um sentimento de contemplação ante os grandes
problemas da vida, retira do individuo o instinto de luta por uma sociedade mais justa
e o leva a abdicar de sua condição de cidadão. Efetivamente, cada dia é maior o
distanciamento entre a sociedade civil e suas instituições representativas e podemos
atribui tal fato à desconfiança ou decepção dos cidadãos com seus representantes e
órgãos políticos.

1.2.1 A cidadania na Grécia

Parece ser unânime a ideia que, ao menos no ocidente, as primeiras civilizações


surgiram na Grécia, contudo não se pode afirmar de forma precisa quando e onde
surgiu a primeira. A hipótese mais aceita é de que foi na ilha de Creta, por volta do
(século XVI a.C.). Há incontestáveis vestígios de povos desenvolvidos na antiga idade
do bronze assim como na média idade do bronze, mas com provas incontestáveis
e fidedignas pode-se afirmar que foi na idade do bronze recente que surgiu e se
fortaleceu a civilização minoica. Esta civilização,

tuve su origen en Cnosos, población de la isla de Creta en la que


parece que un señor de gran prestigio y autoridad consiguió aunar a
todos sus habitantes bajo su mando. Su palacio no fue solamente una
residencia real, sino un verdadero centro de la actividad social de los
súbditos - comercial política y religiosa.44

42 QUIRÓS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIRALLES, Àngela Aparisi (Ed.).
Ciudadanía y persona en la era da globalización. Granada: Comares, 2007. p. 12.
43 CAMPUZANO, Alfonso de Julios. En las encrucijadas de la modernidad. Política, derecho y justicia. Servilla:
Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Servilla, 2001. p. 138.
44 QUIRÓS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIRALLES, Angela Aparisi (Org.).
Ciudadanía y persona en la era de globalización. Granada: Comares, 2007. p. 12.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
28 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

No início, toda organização social se reduzia a ethos, que significava tribo e/


ou povo, e implicava na existência de um território mais ou menos extenso, no qual
poderiam coabitar de forma dispersa diversas comunidades pequenas que mantinham
entre si algum laço de união. Não havia um poder centralizado nem diferenciação
de classes nessas comunidades, reconhecia-se, contudo, a autoridade do chefe de
família.
Por volta do século IX a.C. como uma forma de organização social mais evoluída
surgem as demos, onde já se observa excedentes econômicos, pois uma só família
não conseguia mais consumir toda sua produção, logo procuravam outras famílias
para troca de produtos. Nesse período ocorre um movimento migratório crescente
de camponeses que abandonam o campo para morar em colinas, que lhes oferecia
uma maior proteção natural. Esses lugares cresceram e transformaram-se em novas
aldeias e daí em pequenas cidades.
Este fato caracteriza-se como uma evolução, pois implicava na convivência de
habitantes de distintas comunidades, fazendo surgir uma nova organização política
e social que exigia métodos mais sofisticados de controle e a formação de um sólido
governo central com autoridade total em toda nova estrutura que estava surgindo. É
essa necessidade que vai originar a polis e transformá-la em modelo predominante a
partir do século VIII a.C.
Esse novo modelo político, a polis, era constituído não somente pela cidade
propriamente dita, mas pelas demais cidades – pequenas ou grandes – existentes em
uma determinada extensão territorial – de dimensão variada – bem como por todas as
terras cultiváveis ou de pastoreio que ficavam sob sua influência, daí a denominação
de cidade-estado.
Atenas e Esparta foram às cidades-estados de maior relevância durante os
primeiros séculos de sua existência.
Em Atenas, havia o reconhecimento do direito dos habitantes de participar
ativamente na vida da cidade, onde se tomavam decisões políticas. Contudo este
direito era restrito a um pequeno número de pessoas, pois que seu modelo somente
considerava cidadãos os varões adultos cujos progenitores, por sua vez, haviam
também sido cidadãos, o que excluía, evidentemente, as mulheres, os demais filhos
varões, os escravos e os estrangeiros. Assim, cidadãos livres e iguais era somente
um número ínfimo de homens atenienses e não todos os habitantes da polis. Por
evidente, os não cidadãos não tinham o direito de expressar ideias políticas, nem
ao voto, nem a participar dos tribunais ou órgãos públicos; sequer tinham direito ao
ócio. Como diz Paula, estes unicamente margeavam os acontecimentos promovidos
por aqueles que estavam “dentro do mundo”, contribuindo com suas funções
naturais e instrumentais para com eles, mas assegura que “não eram alienados dos
acontecimentos, da cultura e das decisões da comunidade política, apenas não
a cidadania
29

participavam deles”.45
Já a situação dos camponeses era absolutamente insustentável, sendo o único
elemento que unia os camponeses com os cidadãos de pleno direito era a convivência
nas mesmas terras. E foi justamente esta situação dos camponeses privados de terras
e sem qualquer participação política que proporcionou a chegada de uma nova época,
onde a influência da aristocracia foi drasticamente reduzida e se inicia um modelo
social mais participativo. É quando surge a possibilidade de o individuo participar
ativamente na administração da cidade. A este indivíduo atribuiu-se a denominação
de cidadão. Foi Clístenes – também chamado de o pai da democracia – um nobre
ateniense que, além de liderar uma revolta popular, reformou a constituição da antiga
Atenas em 508 a.C. realizando uma verdadeira reforma política que proporcionou
aos cidadãos, independentemente do critério de renda, o direito de voto e ocupação
dos mais diversos cargos. Isto, além de ampliar as liberdades, duplicou o número de
cidadãos com direito a voto o que fez com que as famílias aristocráticas perdessem
sua hegemonia que dominava até então. Assim, inicia-se uma época em que Atenas
se transforma no maior centro cultural e a cidade mais importante do Ocidente,
alcançando seu esplendor no decorrer do século V, sob o comando de Péricles.
De Esparta existem poucos dados confiáveis acerca de sua origem. Há certa
unanimidade em aceitar que seus habitantes eram descendentes dos invasores
dórios que uniram no século VIII a.C. três aldeias situadas na Lacônia. Tratava-
se de uma cidade-estado militarizada e totalitária, que desde cedo educava seus
jovens para a dura vida de soldado, para servir ao Estado, para obedecer às leis e à
hierarquia, desprezando a vida artística e intelectual como o resto da Grécia. Mas o
que efetivamente forjou o Estado e o modo de vida espartano, segundo Heater, foram
algumas características essenciais atribuídas a todos seus membros pelo seu próprio
modo de vida. Dentre essas características, a principal era o principio da igualdade –
a ponto de chamarem-se entre si de Homoioi, que quer dizer igual. Não se trata aqui
de uma igualdade econômica, de hierarquia ou de poder, mas uma igualdade a qual
julgavam ainda mais importante: igualdade na administração e defesa do Estado.
As demais características atribuíveis aos espartanos são: (a) a posse de uma fração
de terras públicas, (b) dependência econômica do trabalho escravo, (c) o regime de
educação e treinamento, (d) a celebração de festas e rituais em comum, (e) o serviço
militar, (f) a virtude cívica, e (g) a participação na administração do Estado. Essas
características fazem com que a união e o compromisso dos espartanos com seu
Estado sejam superiores às demais cidades gregas, o que leva Heater considerar
Esparta como a peculiar criadora da ideia de cidadania.46 O Conselho de anciãos era
o órgão mais importante para o governo da polis e possuía caráter vitalício. Junto ao

45 PAULA, Ricardo Henrique Arruda de. Cidadania e individualismo em Aristóteles e Cristo. Estudo comparativo
de Antropologia Filosófica. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. p. 75.
46 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 19-25.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
30 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Conselho havia a Assembleia que era formada por todos os cidadãos maiores de 30
anos que tivessem alcançado a cidadania plena.47
Para muitos aristocratas atenienses o sistema espartano era digno de elogios e
referências; não por sua brutalidade, evidentemente, mas por sua estabilidade e pelo
sentido de ordem. Platão também era um admirador do estilo de vida dos espartanos
e destacava sua disciplina, sua austeridade e sua dedicação ao Estado, dispostos a
sacrificar a própria vida em defesa deste.
Mas por volta do final do século IV a.C. as polis foram absorvidas por reinos
maiores, mais estruturados e poderosos. O comprometimento dos cidadãos com sua
cidade começa a declinar e é substituído por um sentimento cosmopolita em uma
parte da cidadania e um afã individualista em outra, que não encontrava lugar na
nova estrutura social. O cidadão que se tornou súdito de um rei desconhecido e ficou
sem regras éticas que lhe proporcionava sua polis, teve que voltar-se para a filosofia
– de caráter ético e prático – em busca de novos padrões de comportamento.48
Somente agora, lembra Mumford, quando o modo de viver na aldeia rapidamente
some e desaparece do mundo é que se pode avaliar o quanto devemos a esses
primeiros agrupamentos; foram eles, pela energia vital propiciada pela aproximação,
pelo aprendizado da divisão e pela proteção coletiva que propiciaram, que tomaram
possível o desenvolvimento da humanidade. O que hoje chamamos de moralidade,
diz, começa nos costumes, nos hábitos e na forma de vida na aldeia. Quando se
dissolvem esses laços primários, quando uma comunidade íntima e unida deixa
de ser um grupo vigilante, identificável, com aspirações e ideais comuns, o “nós”
passa aos ”eus”, os laços de fidelidades se tomam frouxos e não conseguem deter a
desintegração da comunidade.49

1.2.2 A cidadania em Roma

Roma, que até então era uma cidade-estado – governada por um rei, auxiliada
e controlada por um poderoso Senado e uma Assembleia – no ano 509 a.C.
altera seu regime para República, constituída de três classes sociais: os patrícios
(descendentes dos fundadores), os plebeus (descendentes de estrangeiros) e os
escravos (prisioneiros de guerra ou homens que não honraram suas dívidas). A causa
dessa mudança na organização política foi, segundo Quirós, a tomada de uma forte
consciência cívico-política, fato até então inexistente.50

47 Reservada aos meninos que deixavam suas famílias aos sete anos para estudarem em um colégio militar até
os 30 anos, quando poderiam se incorporar a vida política.
48 QUIRÒS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIALLES, Angel Aparisi (Org.). Ciudadanía
y persona en la era da globalización. Granada: Calmares, 2007. p. 22-23.
49 MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. Op. cit., p. 32.
50 QUIRÒS, José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIALLES, Angel Aparisi (Org.). Ciudadanía
y persona en la era da globalización. Granada: Calmares, 2007. p. 24.
a cidadania
31

Essa consciência política se traduz em avanços jurídicos e políticos para os


plebeus – os quais, diz Leal, aproximam-se de garantias e direitos individuais.51 São,
evidentemente, conquistados a duras penas e sob pressão popular, como a luta em
busca de uma maior igualdade com a nobreza; a designação dos tribunos à plebe; a
conquista de leis que nivelam um pouco as posições sociais, e outras. A designação
dos tribunos foi um decisivo avanço na defesa das pessoas e dos interesses da
plebe, pois aqueles possuíam o poder de vetar as leis que julgavam não apropriadas
ou prejudiciais para estes.
Assim, lentamente os plebeus foram conquistando direitos até chegar à
igualdade com os patrícios. Primeiro foi uma lei agrária, que os equiparava com
os patrícios na distribuição das terras conquistadas em guerras, mais tarde
conquistaram a igualdade jurídica; reclamaram então a liberdade de matrimônios
sem discriminação e, por último sua admissão nos Consulados e no Pontificado,
atingindo assim a igualdade civil, política e religiosa. Não obstante esses avanços, a
estrutura social se caracterizava por um forte autoritarismo; o pater familias detinha
o poder de chefe e juiz e o direito de vida e morte sobre os seus, extensivo os
seus escravos. A tortura continuava institucionalizada – embora como na Grécia os
cidadãos estivessem imunes – imunidade essa estendida como um privilégio aos
burocratas e funcionários públicos.
Observa-se que também em Roma existia a ideia de cidadania como direito
de participação, um status de homem livre, em oposição ao não cidadão – escravos
e estrangeiros. Cretella Júnior ensina que a liberdade era o ideal máximo aspirado
por todo habitante romano e, possuindo esta, a cidadania (civitas) era a situação
ambicionada. Somente quem possuía o status libertatis poderia adquirir o status
civitatis, eis que aquele era condição sine qua non para este. Perdendo-se a condição
de status libertatis (por exílio, deportação ou por tornar-se membro de uma cidade
estrangeira) perdia-se também a condição de status civitatis.52 Como cidadão,
o homem romano possuía situação privilegiada, pois esta condição permitia ao
individuo viver sob a orientação e, principalmente, sob a proteção do direito romano.
A cidadania afetava tanto a vida pública como a privada. No primeiro caso, além do
direito a agir em juízo e de servir nas legiões, atribuía-lhe o direito a votar nos membros
das assembleias e para todos os cargos políticos (magistrados, cônsules, pretores)
bem como a ser candidato. Atribuía-lhe também o dever de pagar determinados
tributos, especialmente sobre propriedades e sucessório. No âmbito da vida privada,
a cidadania permitia-lhe contrair matrimônio com membro de família cidadã e praticar
comércio com outros cidadãos. Ademais, na medida em que o Estado ia estendendo-
se, especialmente no período imperial, o cidadão possuía direito à proteção contra a

51 LEAL, Rogério Gesta. Direitos humanos no Brasil – Desafios à democracia. Porto Alegre: Livraria do Advogado;
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1997. p. 23.
52 CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. Rio de Janeiro:
Forense, 1995. p. 101.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
32 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

autoridade dos governadores provinciais. Se acusado de qualquer delito, o cidadão


poderia invocar seu direito de ser julgado unicamente em Roma.
Apesar disso, em suas instituições não havia qualquer referência específica a
cidadania ou a um modo de vida próprio, mas sim a uma relação bilateral estabelecida
entre o indivíduo e a sociedade.
A cidadania romana continha o pressuposto normativo básico da condição civil
moderna: reconhecia pertencer o indivíduo à comunidade em virtude de uma relação
de direito, entre o cidadão e o Estado, excludente na medida em que diferenciava
legal e politicamente os cidadãos do não cidadão, mas inclusiva no sentido de que
convivia com o resto de identidades coletivas participantes da comunidade civil, que
não deviam ser necessariamente identidades universalistas.53
Por razões pragmáticas, os romanos criaram também uma cidadania
diferenciada, muito próxima do que denominamos hoje de cidadania multicultural.
No ano de 381 a.C. a cidade de Túsculo (Tusculum), independente, mas rodeada
de território romano, opta por uma política hostil com Roma. A dúvida em Roma
era se respondia de forma agressiva ou conciliadora. A opção foi pacífica através
de um acordo sem precedentes até então. Concedeu-se aos habitantes de Túsculo
a cidadania romana (plena) ao mesmo tempo em que se permitia manterem seu
próprio governo e seguirem suas próprias leis. Este acordo foi repetido em várias
oportunidades durante a conquista dos povos da península. Mas na medida em que
Roma ganhava poder, os acordos com os povos conquistados iam se tornando menos
benéficos. Em 338 a.C. Roma inventou uma nova cidadania: civitas sine suffragio,
que Heater denomina de cidadania de segunda classe, ou semicidadania. O fato
ocorreu após a Guerra Latina. Findas as batalhas, os povos conquistados receberam
diferentes tratamentos, mas sete deles adquiriram a condição de cidadãos romanos
sem direito a voto, consequentemente a não ser votado.54
Com o Imperador Caracalla (Marcus Aurelius Antoninus – 186 (?) - 217 – Roma
universaliza a cidadania. No ano de 212 é promulgada a Constitutio Antoniana, que
concede cidadania romana a todos os habitantes livres do império, independente
de qualquer condição. Antes que se idolatre Caracalla, atenção à lição de Heater:
a medida não foi nem altruísta nem revolucionária. Dois pontos merecem destaque
para compreender-se a real intenção do imperador. Primeiro devemos lembrar que
somente os cidadãos estavam obrigados a pagar tributos. Com a ascensão de todos
à cidadania há um aumento substancial na arrecadação de impostos. Segundo, com
a necessidade de se manter as legiões cada vez em maior número e em regiões mais
distantes se fez necessário engrossar as fileiras do exército e, servir nas legiões era

53 MARTÍN, Nuria Belloso. Un’ approssimazione alla cittadinanza sociali: alcune proposte. In: Annali Del Seminario
Giurídico del’ Universitá di Catania. Milano: Giuffré, 2002. p. 665.
54 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 61-74.
a cidadania
33

“privilégio” concedido unicamente aos cidadãos.55


Contudo, a Constituição Antoniana trouxe também, como consequência, o
desprestígio de um título ostentado até então com muito orgulho. Se agora todos são
cidadãos, este status não pode ser usado como fator de diferenciação. Com o passar
do tempo pouco restava da expressão ciceroniana Civis Romunus sum proferida com
tanto orgulho e, no fim do século I começam os primeiros sintomas de uma grave
enfermidade. Como assevera Quirós,

podríamos afirmar que la ciudad romana adolecía en esa época de la


misma enfermedad que habia afectado a las poleis griegas tras sus
grandes éxitos y sus etapas doradas: la corrupción e la ambición de
los dirigentes terminaba por destruir todos los principios de la social y
aparecía la lucha innoble por el poder. 56

Diante desse quadro, os cidadãos se sentem desvinculados de sua cidade, não


acreditando mais nela, pois seus dirigentes a estavam utilizando para a execução
de benefícios próprios, com o intuito de aumentar a supremacia de determinadas
famílias em detrimento do bem comum. Assim, toda a coragem romana, a tomada de
consciência, os direitos adquiridos, e o civismo instalado, não foram suficientes para
obstruir o nepotismo de seus imperadores que passaram a personificar o Estado
levando-o à ruína. Os bárbaros, em suas invasões demolidoras, enterraram todo o
passado Romano, reerguendo sobre os escombros uma nova ordem.
Mas a ideia de cidadania, defende Dawson, foi o maior legado da cultura
romana, juntamente com o civismo e a participação política. A principal missão de
Roma, afirma, consistiu em introduzir a cidade na Europa continental, e com a cidade
veio a ideia de cidadania e a tradição cívica, que foi a maior das criações da cultura
mediterrânea. O soldado romano e o engenheiro militar foram os agentes desse
processo de expansão; na realidade o próprio exército foi organizado por Augusto
como uma preparação para a cidadania e como um agente de difusão nas novas
províncias da cultura romana juntamente com seu cortejo de instituições.57 Igual é
o ensino de Vieira, para ele não foi a República Moderna quem inventou o conceito
de cidadania; ela se origina, na verdade, na República Antiga: Roma é o ponto de
partida da cidadania como um estatuto unitário pelo qual todos os cidadãos são
iguais em direitos.58

55 Idem.
56 QUIRÓS, José Justo Megias. De la polis griega a La ciudad virtual. In: MIALLES, Angel Aparisi (Org.).
Ciudadanía y persona en la era de la globalización. Granada: Calmares, 2007. p. 22-23.
57 DAWISON, D. apud QUIRÒS, José José Justo Megias. De la polis griega a la ciudad virtual. In: MIRALLES,
Angel Aparisi (Org.). Ciudadanía y persona en la era de la globalización. Granada: Comares, 2007. p. 26.
58 VIEIRA, Liszt. Cidadania e Globalização. 2. ed. Rio de Janeiro - São Paulo: Record, 1998. p. 27.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
34 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

1.2.3 A cidadania na Idade Média

Quando os bárbaros – francos, hunos, godos, estrogodos, visigodos,


lombardos, vândalos, suevos, anglos e saxões – concluem a conquista dos territórios
que compunham o Império Romano, um sistema de poderes superpostos e uma
autoridade dividida dominam o ocidente adotando várias formas. Uma sucessão de
alianças, de acordos e desacordos, levam a um longo período de lutas e guerras que
terminam por constituir uma nova realidade política: o Estado. Inicialmente predomina
uma sociedade feudal, eminentemente rural, que se caracteriza pela rígida divisão
estamental: nobres (incluindo o clero) e a vassalagem. Nesse período, também
denominado de a idade das trevas, os camponeses estão agregados à gleba, tanto
quanto os demais animais, não possuindo escolha sobre seus destinos nem arbítrio
sobre seus valores. Esta classe, a que efetivamente trabalhava, é definida, por Moraes,
como

um proletariado desqualificado para a luta armada e para as


atividades intelectuais, mas que era o sustentáculo econômico
de uma sociedade da qual, embora constituísse a imensa maioria,
não participava politicamente. Uma classe considerada inferior,
inteiramente dominada pela maioria aristocrática representada pelos
senhores da guerra - que apenas acreditavam no direito da espada - e
pelos senhores da igreja - esquecidos da lição dos evangelhos.59

Nesse período ressurge uma breve centelha do sentido de cidadania: a ideia


de pertencer a uma comunidade. Quando a igreja começou a desenvolver sua
estrutura administrativa, concedeu aos bispos uma autoridade considerável. Estes
se instalaram em cidades romanas, que a igreja denominava dioceses. Como
consequência coincidiam as administrações civis e eclesiástica. Com a queda
do império romano, portanto das autoridades civis e militares, a igreja estava em
situação ideal para assumir o controle e a liderança política, além da espiritual que
já detinha, congregando tanto os habitantes das aldeias como os da zona rural em
uma comunidade com clara identidade. Nesses primeiros tempos era a igreja a
responsável pelos registros civis, pela educação, pela orientação cívica e espiritual.
O sentido de cidadania – ainda que não com este nome – volta a existir. Cidadão é o
homem cristão ligado/subordinado a uma diocese.60
Foi somente com o desenvolvimento da sociedade capitalista (a partir do
séc. XV), com o início da ascensão da burguesia, que se retoma pouco a pouco o
exercício da cidadania independente da igreja, com autoridades e instituições laicas,
como parte da existência de homens que vivem novamente em núcleos urbanos.
Isto porque, como se viu, a cidadania está relacionada com a vida em sociedade e

59 MORAES, Emanuel de. A Origem e as transformações do Estado. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 265.
60 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve história. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p. 84-85.
a cidadania
35

a capacidade dos homens de exercerem direitos e deveres em uma comunidade; e,


desde as sociedades greco-romanas, ser cidadão era uma questão eminentemente
política. O problema de quem podia exercer a cidadania e em que termos, não era
somente uma questão legal/formal, mas sim uma questão de capacidade política,
derivada dos recursos que se dominava e aos quais se possuía acesso.
Então as primeiras manifestações por conquista de direitos frente ao
poder começam a ocorrer. Cronologicamente tem-se que o primeiro movimento
reivindicatório e limitador do poder ocorreu na Inglaterra, culminando com a Magna
Carta de 1215, que alguns doutrinadores insistem em considerá-la como um
antecedente das declarações de direitos humanos. Ora, embora importante, pois
pela primeira vez tem-se uma restrição ao poder absoluto, os parcos direitos ali
conquistados referiam-se aos nobres e não ao povo como um todo. A estes, na
maioria das vezes, as eventuais benesses eram concedidas (e não conquistadas)
por mediação da igreja e destinavam-se ao cumprimento de alguma promessa ou a
auxiliar algum “filho de deus”, mas não a um cidadão.
O fim do feudalismo e o surgimento dos Estados nacionais não altera a
sociedade, que continua rigidamente dividida em estamentos. Nesse período, em
toda Europa, mas especialmente na França, a situação é catastrófica: fome, miséria,
direitos diferenciados, insensibilidade, desigualdade e ganância. Tudo isso gera
uma grande insatisfação popular. Sérios questionamentos são levantados sobre
as diferenças sociais e os privilégios. Revoltas e Declarações de Direitos são as
consequências naturais.

1.2.4 A cidadania na Modernidade

Na aurora do Estado Moderno, ao definir a soberania como o poder supremo,


absoluto, ilimitado e perpétuo sobre os cidadãos e súditos, Bodin equipara ambos.
Sua visão é simples, vertical e hierárquica: há o soberano, que está acima das leis e há
os que lhe devem obediência. Então, o termo súdito ou cidadão refere-se igualmente
àqueles que devem obediência e submissão ao poder. Embora não fosse seu objetivo
primeiro, Bodin também estava interessado na condição do indivíduo frente ao poder
e a este tema dedicou dois capítulos de sua obra Les six livres de la Repúblique.
Bodin define cidadão “como súdito livre, dependente da soberania de outro[...] de
sorte que se pode dizer que todo cidadão é súdito ao estar sua liberdade dependente
da majestade a quem deve obediência”. Não são os privilégios que diferenciam um
cidadão e sim a obrigação mútua que se estabelece entre o soberano e o súdito/
cidadão, que lhe deve obediência e submissão e em troca recebe justiça, conselhos,
consolo, ajuda e proteção contra os inimigos internos e externos.61

61 BODIN, Jean. Les six livres de la Repúblique. 1576.


Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
36 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Quiçá, diz Peces-Barba, poder-se-ia encontrar em Bodin um matiz, considerando


o cidadão um súdito livre, mas dependente do soberano, enquanto o súdito não é
livre, e igualmente dependente do soberano.62
Também Pufendorf, embora preocupado na situação do homem no estado de
natureza, encontrou tempo para o estudo da cidadania. Sua obra Dos Deveres dos
Cidadãos, publicada em 1682, é uma espécie de catálogo onde se encontram os
deveres do cidadão, não unicamente para com o Estado, mas também para com
seus pares. Para o iluminista alemão um cidadão deve aos dirigentes do Estado
respeito, fidelidade e obediência; possui a obrigação de preservar o bem-estar e
a segurança do Estado e da sociedade da melhor maneira possível, oferecendo
suas propriedades e sua vida, se for necessário; tem o dever de conviver pacífica,
respeitosa e amigavelmente com seus pares e nunca dar motivos a incidentes ou
criar empecilhos, não invejar a fortuna dos demais ou ostentar a sua. Assevera Heater,
que o trabalho de Pufendorf é perfeitamente coerente com a sua época: fala-se de
deveres, não de direitos.63
É somente por volta do século XVII, na Inglaterra, na França e nas colônias
norte-americanas que as ideias iluministas mais se enraízam e inicia-se a falar de
direitos do cidadão. Invocando o estado de natureza, o primeiro a radicar na liberdade
do homem foi Locke, defendendo que todo homem tem o direito de proteger sua
vida, sua liberdade e seus bens, valores transportados mais tarde para as primeiras
declarações de direitos. Desde então, vários matizes políticos e diversas tipologias
surgiram para uma nova definição de cidadão, evidenciando que cidadania não é
um termo unívoco, mas sim polissêmico. Dentre os modelos mais conhecidos e
destacados estão:
1.2.4.1 O cidadão liberal – Que dá primazia à liberdade, à autonomia. Parte
de uma noção abstrata do indivíduo e põe em destaque o individualismo, os direitos
individuais e o mercado como mecanismo regulador e distribuidor de recursos. A partir
do século XVII o direito natural passa a ter uma nova concepção: o jusnaturalismo
racional, que procura afastar o vínculo teológico e apresenta como fundamento do
direito a própria razão humana.64 É por demais conhecida a expressão de Hugo
Grócio que, tentando demonstrar o caráter racional do direito, sustentava que este
poderia ser concebido mesmo que não houvesse Deus, ou que não se preocupasse
Ele com as questões terrenas. É a partir do jusnaturalismo racional que iniciam, na
Inglaterra, as ideias liberais – conjunto de ideias contra o poder ilimitado do Estado, a

62 PECES-BARBA, Gregório Martinez. Educación para la ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 325.
63 HEATER, Derek. Ciudadanía. Una breve historia. Madrid: Alianza Editorial, 2007. p.116.
64 Pelo direito natural tradicional, o objetivo de uma comunidade política era o bem-estar geral e a felicidade
coletiva. Assim a liberdade dos indivíduos poderia ser limitada em razão do objetivo principal. O novo direito
natural, o racional, coloca em primeiro plano a liberdade individual e as garantias contra qualquer ingerência
das autoridades. Humboldt, Kant, Mill, são exemplos.
a cidadania
37

autoridade absoluta da Igreja, em especial seu monopólio de dizer a verdade e contra


os privilégios políticos-sociais existentes; tudo considerado ‘natural’. Nesse contexto
surge a ideia que o individuo nasce em um hipotético estado de natureza e, através
do contrato social, cria a sociedade organizada. A ordem social e política, portanto,
é constituída por pessoas livres que compartilham os mesmos direitos fundamentais.
Portanto, o governo deve estar baseado no consentimento delas, prestando-lhes
conta de suas ações e limitando-se a seus interesses.
Teóricos liberais, seguidores principalmente de Locke, Montesquieu, Rousseau,
Mill e Kant, radicam a cidadania na igualdade e no exercício da liberdade religiosa,
política e econômica, livre de qualquer intervenção. Reconhecem no homem direitos
naturais que nenhuma autoridade pode lhes negar, pois fazem parte da própria essência
do ser humano e fundamentam seu pensamento no que denominamos direitos de
primeira geração, sendo o elemento principal em toda questão a liberdade, entendida
como a capacidade que cada cidadão possui de ter a sua própria concepção acerca
da vida e de procurar realizar seus objetivos sem qualquer interferência externa.
Baseiam-se na primazia dos direitos individuais para dar legitimidade à ordem
pública. O Estado deve tão somente garantir a vida e a propriedade aos cidadãos,
os interesses particulares seguem as regras próprias e naturais do mercado. Sendo
os cidadãos livres, o poder do Estado depende do consentimento dos cidadãos e
a obediência somente é devida por uma obrigação autoassumida. A concepção de
cidadania liberal é atrelada também à participação do indivíduo no poder, como forma
de proteger suas liberdades individuais diante do Estado Nacional. Embora divididos
em duas correntes distintas, ambas mantém como elementos principais a liberdade
e a igualdade, atribuindo-lhes apenas pesos diferentes. Os liberais puros defendem
mais o papel da liberdade na sociedade e na limitação dos âmbitos de atuação do
Estado, enquanto que os liberais igualitários tentam equilibrar o papel atribuído à
liberdade e a conciliá-la com o atribuído à igualdade. Em resumo, seu pensamento
é que o Estado é para os indivíduos e não o contrário. Assim, deve esse se limitar
a garantir os direitos civis e políticos e evitar intrometer-se na atividade econômica,
onde cada um, ao buscar seus interesses individuais contribuiria com o interesse
coletivo. Pela lógica liberal, os indivíduos estão competindo entre si, lutando por seus
interesses particulares e o fazem em condições de igualdade de oportunidades –
que a liberdade garante a todos. Assim, as desigualdades sociais se devem a esta
competição ou luta, onde alguns alcançam melhores resultados do que outros.
Como se vê, para os liberais a ideia de cidadania radica nos valores e direitos
primários, basicamente centrados no exercício da liberdade, para que o individuo tenha
a possibilidade de viver dignamente. Defende o cidadão como o átomo da sociedade
e, consequentemente, principal usufrutuário da liberdade e da democracia. Enfim,
como assevera Vieira, pela teoria liberal, o cidadão é concebido como um indivíduo
dotado de liberdade e responsável pelo exercício de seus direitos. A cidadania
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
38 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

encontra-se, assim, estreitamente relacionada à imagem pública do indivíduo como


cidadão livre e igual, e não a características que determinam sua identidade.65
Tornando-se o Estado liberal uma realidade, radicado na liberdade individual e
na igualdade formal, com o mínimo de interferência na vida social, cria-se uma gama
de inegáveis benefícios. Mas como ensina Dallari, a valorização do indivíduo chegou
ao ultra-individualismo que ignorou a natureza associativa do homem e deu margem
a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para os mais hábeis, os mais
audazes ou menos escrupulosos. A concepção individualista da liberdade impedia o
Estado de proteger aos menos afortunados e foi a causa de uma crescente injustiça
social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser livre, não assegurava a ninguém o
poder de ser livre. Na verdade, sob o pretexto de valorização e proteção da liberdade,
o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os economicamente mais
fortes.66
Este modelo de Estado e este conceito de cidadão levaram por transformar
os cidadãos teoricamente livres em monetariamente escravizados. É que, com
a revolução industrial surge um indivíduo até então desconhecido: o operário de
fábrica; e o aparecimento das máquinas produziu o desemprego em massa. O
trabalho humano passa a ser negociado como mercadoria, sujeito à lei da oferta
e da procura. O operário se vê compelido a aceitar salários ínfimos e a trabalhar
quinze ou mais horas por dia para ganhar o mínimo necessário à sua sobrevivência.
Por outro lado, fortunas imensas se acumulavam nas mãos dos dirigentes do poder
econômico. Santos, ao criticar este modelo, lembra que para os liberais o princípio
da cidadania abrange unicamente a cidadania civil e política e seu exercício reside
exclusivamente no voto, qualquer outra forma de participação está excluída, ou ao
menos desvalorizada. Para o sociólogo português, a teoria liberal representa a total
marginalização do princípio de comunidade, tal como definiu Rousseau, pois para ele,
não há antinomia entre a liberdade dos cidadãos e o poder de mando do Estado.67
Surge então a reação, primeiro com o socialismo utópico, apenas no campo
literário, que alcança seu clímax com o Manifesto Comunista de Marx e Engels, em
1848. Neste manifesto, depois de afirmar que a história de todas as sociedades é a
história das lutas de classes, Marx e Engels fazem uma análise da política econômica-
social então vigente, e denunciam que o sistema transformou a dignidade pessoal em
um valor de troca, que as liberdades foram substituídas “por uma única e desalmada
liberdade de comércio” e que se estabeleceu um “regime de exploração aberto,
descarado, direto e brutal”. Nesse contexto, a igualdade jurídica é vista como uma
falácia que permite mascarar a dominação de classes. Marx critica, veementemente,

65 VIEIRA, Listzi. Os argonautas da cidadania. A sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, 2001. p. 39.
66 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 1998. p. 277-278.
67 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São
Paulo: Cortez, 1999. p. 237-240.
a cidadania
39

a separação entre a vida econômica do homem (a posição do homem nas relações


de produção) de sua figura jurídica de cidadão, o que faz desta uma abstração.68
Como esclarece Padilla, ele

no creía que una fuera la realidad política y otra la ideológica, la


económica, la social, la científica. Para poder comprender al ser
humano y a historia, era necesario articularlas todas y relacionarlas
con la producción de las fuentes materiales de vida, esfera básica
donde se trenzan todas las relaciones humanas.69

Ao criticar a dominação dentro do modo de produção capitalista, Marx criticava


todas as construções teóricas e ideológicas, entre elas o conceito de cidadania.
Para ele a ideia de cidadania defendida pelo liberalismo era um conceito trazido pela
burguesia desde a antiguidade e utilizado para manter o poder usurpado pela classe
emergente.
Para Marx, os direitos do cidadão não são universais, mas direitos históricos
da classe burguesa ascendente em sua luta contra a aristocracia. Comungando o
pensamento do sofista Trasimaco para quem “as leis eram criadas pelos homens ou
grupos que estavam no poder, com o objetivo de fomentar seus próprios interesses”
e que, portanto justiça “não é senão o que convém ao mais forte”,70 assevera que o
direito é apenas um conjunto de normas impostas pelo Estado como instrumento
de interesse das classes dominantes. E, para criticar radicalmente o Estado liberal e
aquele modelo de cidadania, Marx contrapõe ao sujeito monumental que é o Estado,
outro sujeito monumental: a classe operária. Mais tarde, com Lênin, a classe operária
dá surgimento a outro sujeito monumental: o partido operário. Mas como ensina
Santos:

Se nos termos em que foi formulada, a subjetividade coletiva da


classe tendeu a destruir a subjetividade individual dos seus membros,
a titularidade política do partido, nos termos em que foi formulada,
tendeu a destruir a titularidade política individual da cidadania.71

Na verdade a tensão entre a subjetividade individual e a cidadania se resolveu


pela destruição de ambas. Assim, o marxismo ao procurar construir a emancipação a

68 MARX, C.; ENGELS, F. Das Kommunistiche Manifest. Edição espanhola El Manifesto Comunista. Barcelona:
Edicomunicación, 1998.
69 PADILLA, Jorge Peláez. La filosofía marxista sobre la política y los conceptos de ciudadanía, derechos
y libertades. In: REDHES, Revista de Derechos Humanos y Estudios Sociales, n. 1, enero-junio 2009.
Universidad Autónoma de San Luis Potosí, México/Universidad de Sevilla, España/Universidad Autónoma de
Aguascalientes, México/Comisión Estatal de Derechos Humanos de San Luis de Potosí/Comisión Estadual de
Derechos Humanos de Aguascalientes. p. 45.
70 MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direitos Humanos. Sua história, sua garantia e a questão da indivisibilidade.
São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000. p. 9.
71 SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade. 6. ed. São
Paulo: Cortez, 1999. p. 242.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
40 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

custa da subjetividade e da cidadania, arriscou-se a aprovar o despotismo, o que de


fato ocorreu.72 Influenciados principalmente pela teoria Marxista surgem os teóricos
socialistas que priorizam os direitos econômicos e sociais (saúde, educação, moradia,
trabalho... ) que mais tarde, unidos ao pensamento liberal progressista instituem um
novo conceito de cidadão, através da criação do Estado Social.
1.2.4.2 O cidadão social - É a partir do surgimento do Estado de Bem Estar
Social que o conceito de cidadania passa a significar ter direitos sociais. Então
cidadão é aquele que tem direito a ter direitos. Com o fim da segunda guerra mundial
– que marcou a derrota do nazifacismo – nasce outro capitalismo, mais organizado,
controlado pelo Estado, que intervém na economia não somente para regulá-la, mas
passa a fazê-lo com o objetivo de promover o crescimento dos Estados arrasados
pelo conflito, que se deve ao investimento de políticas sociais e redistributivas.
Assim começa o Estado Social de Direito, cuja origem é hibrida, fruto de um
compromisso entre tendências ideológicas opostas: por um lado representou uma
conquista do socialismo democrático, por outro uma vitória do pensamento liberal
mais progressista.73 A ideia de cidadania passa a apontar para uma base igualitária
dos direitos e exigia, portanto, a eliminação de qualquer obstáculo que impedisse
alcançar a independência pessoal indispensável para ser cidadão. A pobreza passa
a ser vista não mais como uma questão individual, mas social que exigia intervenção
política.
O Estado abandona sua conduta abstencionista e passa a garantir direitos
sociais mínimos à população. Começam a despontar os instrumentos característicos
do Estado Social, como: (1) proteção ao cidadão contra riscos individuais e sociais,
como o desemprego, a doença ou a invalidez; (2) a promoção de serviços essenciais
para os cidadãos, como a educação, saneamento básico, habitação, acesso à cultura,
e (3) a promoção do bem-estar individual no sentido moderno. A igualdade entre os
cidadãos passa a ser material e não unicamente formal, portanto todos possuem
direitos. Então, resume Silva:

A noção de cidadania social está associada à promoção da igualdade


material e de bem-estar social aos cidadãos por meio da concessão
de direitos sociais (saúde, educação, trabalho) e econômicos (livre

72 De fato, o regime político da URSS libertou da fome milhares de miseráveis, mas não lhes deu jamais liberdade
de realização pessoal, de participar da vida pública, de fazer valer seus direitos, enfim, de serem cidadãos,
porque a ditadura do proletariado não evoluiu para o poder social, evoluiu para a ditadura militar, tecnocrática
e burocrática do partido.
73 Para Sotelo, a origem do Estado Social está no fragor da Revolução Francesa, implicita no afã de liberdade,
igualdade e fraternidade que o movimento exaltava. (SOTELO, Ignacio. Socialismo. In: MELLÓN, Joan Antón
(Ed.). Ideologías y Movimientos Políticos Contemporáneos. 2. ed. 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p.
79-100. Mas para Cortina, o Estado Social inicia nas décadas finais do século XIX. O primeiro passo ocorreu
em 1880, com Bismarck que desejoso de contrapor o socialismo adota medidas como o seguro contra
doenças, acidentes de trabalho e aposentadorias assumidas pelo Estado. Estas ações fomentam o bem
estar dos trabalhadores e debilitam as reivindicações dos menos favorecidos pelo sistema. CORTINA, Adela.
Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 59.
a cidadania
41

concorrência, direito de monopólio, entre outros) por parte do Estado


intervencionista garantidos pelas constituições nacionais.74

Contudo, este modelo de Estado, começa a apresentar algumas características


peculiares, bem identificadas por Wolkmer:75 (a) uma preponderância do Executivo
sobre os demais poderes, o que gera uma crise de legitimidade; (b) uma progressiva
burocratização da administração pública. O Estado se transforma em uma máquina
pesada pelos vícios da burocracia, em especial o grande número de funcionários
públicos trabalhando em uma enormidade de institutos de assistência social; (c)
expansão do intervencionismo estatal na economia; (d) crescente complexidade dos
conflitos sociais e aumento das demandas populares.
Começam então a surgir objeções contra o assistencialismo, principalmente
a ideia de que a assistência serve para manter os pobres preguiçosos, castrando
qualquer iniciativa econômica, criando legiões de mendigos e aproveitadores.
Ademais, que estas ações claramente paternalistas, exigem o agradecimento de
quem as recebe e sustentam as bases de uma política social populista que gera
nefastas consequências. O Estado benfeitor, diz Cortina, gera cidadãos heterônomos
e dependentes, com as consequentes sequelas psicológicas que produz. Porque,

el sujeto tratado como si fuera heterônomo acaba persuadido de su


heteronomía y asume en la vida política económica y social la actitud
de dependencia pasiva propia de un incompetente básico. Certamente
reivindica, se queja y reclama, pero ha quedado incapacitado para
percatarse de que es él quien ha de encontrar soluciones, porque
piensa, con toda razón, qui si el Estado fiscal es el dueño de todos los
bienes, es de él de quien ha de esperar el remedio para sus males o
la satisfacción de sus deseos.

Pode-se, então afirmar que o Estado paternalista gera um cidadão dependente,


não crítico, passivo, apático e medíocre. Longe dele está o pensamento da livre
iniciativa, da responsabilidade e da criação. Este é um cidadão que prefere ser
funcionário a ser empresário, prefere a segurança ao risco.76 Então, ao invés de se
estimular a preguiça é necessário estimular o trabalho. Suprimindo a ajuda social
todos buscariam trabalho, produção e, consequentemente, desenvolvimento.

74 SILVA, Larissa Tenfen. Cidadania Participativa: algumas considerações político-jurídicas. In: SOUSA, Mônica
Teresa Costa; LOUREIRO, Patrícia (Org.). Cidadania. Novos temas, velhos desafios. Ijuí: UNIJUÍ, 2009. p. 47.
75 WOLKMER, Antonio Carlos. Elementos para uma crítica do Estado. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
1990. p. 26.
76 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. Op. cit., p. 71.
Em 2010, a Academia Europeia de Ciências e Artes convidou destacados especialistas para pesquisar o
futuro da Europa. Os resultados dessas pesquisas foram publicadas sob o título “A Europa depois da
Europa” e suas conclusões são de que a Europa terá cada vez menos um papel hegemônico e que perderá
a significância político-econômica no mundo. Dentre as causas apontadas, destacam os pesquisadores a
contundente intervenção estatal na economia e o que gerou a perda do espírito trabalhador e competitivo
de seus cidadãos. Ver: ESPINOSA, Emilio Lamo de. (Org.). Europa después de Europa. Madrid: Academia
Europeia de Ciências e Artes, 2011.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
42 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Campuzano de forma didática aborda outro aspecto, o político: A fórmula


política do Estado Social de Direito, supôs um crescimento espetacular das funções
do Estado com o correspondente aumento das elites tecnocráticas na estrutura
burocrática estatal. Na medida em que o Estado se expandia foi surgindo uma nova
elite social de especialistas e tecnocratas cujo poder decisório na adoção de acordos
e na execução de políticas públicas foi erosionando paulatinamente o princípio
democrático e adonando-se do espaço reservado à legitimação das decisões na
vontade majoritária. Tratou-se, certamente, de um dos efeitos mais perversos do Estado
benfeitor que, no afã de virtualizar os espaços de liberdade com doses crescentes de
igualdade, terminou afastando amplas zonas da liberdade que pretendia conquistar.
E continua o professor Sevilhano, a conformação fortemente hierárquica dos partidos
políticos permitiu que este processo se consolidasse, pois com freqüência, as
estruturas partidárias foram blindadas frente às aspirações democráticas da militância
e da cidadania. Desse modo, os mecanismos de representação da vontade popular
ficaram obstruídos na medida em que se produziu uma fratura entre representantes
e representados, pois a cúpula dirigente dos partidos, com frequência, deixou de
representar os interesses dos governados e se erigiu em porta-voz de um grupo
reduzido, cada vez mais isolado do resto da cidadania, com interesses específicos da
classe: a classe política enquanto setor diferenciado da sociedade. Essa mecânica
de representação gerou uma fratura entre governantes e governados, entre a elite
dirigente, que ocupava cargos políticos, e os cidadãos, cujas possibilidades de
acesso democrático ao poder ficaram, de fato, drasticamente limitadas.77
Tudo isso, e especialmente a impossibilidade de equilibrar os vultosos gastos
públicos, levam o Estado ao limite de suas possibilidades, dando inicio aos debates
sobre a extensão e os limites dos benefícios sociais. Assim, lembra Martinez de
Pisón78 que um dos aspectos mais surpreendentes da teoria e do debate político
nos últimos tempos, é a coincidência entre conservadores, liberais, e a esquerda
marxista na tese sobre a crise e o fim do Estado Social. Mas, considerando que as
funções do Estado Social foram adequadamente cumpridas, isto faz com que seu
desaparecimento não seja tão fácil, até porque ainda são visíveis e chocantes os
efeitos de seu desmonte, dando lugar a um Estado mais débil e omisso e a uma
cidadania fragilizada e igualmente omissa.

1.2.4.3 O cidadão republicano – Este modelo prioriza a participação ativa


nos assuntos públicos. O cidadão republicano é alguém que participa ativamente

77 CAMPUZANO, Alfonso de Julios. En las encrucijadas de la modernidad. Política, Derecho y Justicia. Servilla:
Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Sevilla, 2000, p. 129-171.
78 MARTINÉZ DE PISÓN, J. El final del Estado Social: Hacia qué alternativa. In Revista Sistema 160. Colección
Política. Madrid: Sistema. 2001. p. 75. Ver também MARTÍN, Nuria Belloso. Del Estado del Bienestar a la
sociedad de Bienestar: la reconstrucción filosófico-política de su legitimidad. In: MARTIN, Nuria Belloso. Para
que algo cambie en la Teoría Jurídica. Burgos: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Burgos, 1999.
p. 203-266.
a cidadania
43

na configuração da direção futura da sociedade através do debate e da elaboração


de decisões públicas. Republicanismo é autogoverno de cidadãos iguais que, em
sua gestão política, põem a causa comum acima de seus interesses individuais.
Os cidadãos podem, mediante o debate e a discussão aberta, alcançar um grau
substancial de consenso sobre assuntos de interesse comum.
O cidadão é concebido como um “ser eminentemente participativo, tanto na
dinâmica das associações cívicas como nas deliberações e na ação política direta”.79
Apresenta também a preocupação pela educação do cidadão nas virtudes públicas,
que lhe capacitam para a assunção de seu papel ativo na vida democrática, certo que
a democracia supõe diálogo e ações consensuais, mas também diferenças e conflitos
a afrontar. Por isso não basta a liberdade “negativa”, nem a ausência de dominação,
é necessário desenvolver as potencialidades da liberdade “positiva”. A característica
principal da cidadania republicana é seu compromisso com o público. Considera
que “o indivíduo deve ser educado desde a infância como cidadão, vinculado
com a comunidade política de concidadãos e comprometido com as instituições
democráticas na procura do bem comum. Não exclui a iniciativa individual nem a
consecução do bem particular, desde que seja compatível com o interesse público”.80
Neste modelo o cidadão já não está entre a individualidade narcísica e o
comunitarismo despersonalizante. O modelo não aceita o conformismo passivo com
o que se tem, nem uma oposição cerrada ao que existe. Cidadão é o indivíduo que
participa ativamente na configuração do futuro de sua sociedade, através do debate
e da participação na tomada de decisões políticas. Aqui a civilidade se converte
em poder e o poder se torna cívico.81 Esta concepção distingue a esfera pública
(política) da privada (economia). Através desta separação, os cidadãos poderiam
manter sua independência contra qualquer tipo de pressão proveniente de interesses
particulares. Esta ideia de que cidadão é o membro de uma comunidade política e
que participa ativamente dela, não é nova, na verdade sua origem está na experiência
da democracia ateniense a partir do século V a.C.
Em linhas gerais, são duas as ideias básicas do republicanismo: a primeira, a
concepção antitirânica, contrária a toda dominação, pois reivindica a liberdade e a
vida livre em um Estado livre, bem como a defesa de certos valores cívicos como a
coragem, a honestidade, o patriotismo, a prudência, a igualdade, o amor à justiça, a
solidariedade, a nobreza, enfim, o compromisso com a sorte dos demais. A segunda
ideia é que o republicanismo oferece novas formas de organizar a sociedade: se
apoia na responsabilidade pública de cidadania; busca uma cidadania ativa. Não
tem a pretensão de separar o âmbito público do privado, como difunde o liberalismo.

79 CARRACEDO, José. Rubio. Teoría crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 85.
80 Idem, p. 86
81 CAÑELLAS, Antonio J. Colon; VARDERA, Juan C. Rincón. Educación, República y nueva ciudadanía. Ensayo
sobre os fundamentos de la educación cívica. Valencia: Titant lo Blanch, 2007. p. 114.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
44 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

O que se observa é que toda ideia de cidadania está centrada na participação


política do indivíduo. Como ensina Cortina, a partir dessa perspectiva, cidadão é
aquele

que se ocupa de las cuestiones públicas y no se contenta con


dedicarse a sus asuntos privados, pero además es quien sabe que
la deliberación es el procedimiento más adecuado para tratarlas,
más que la violencia, más que la imposición; más incluso que la
votación que no es sino el recurso último, cuando ya se ha empleado
convenientemente la fuerza de la palabra.82

Em resumo: cidadão é aquele que possui inserção na comunidade política.


Note-se que não há qualquer referência aos demais princípios, direitos e/ou garantias
fundamentais.83
Mas, nem mesmo esta ideia de que cidadão é somente aquele que ocupa um
lugar em uma fila para exercer seu poder político – que como diz Warat é simplesmente
o cínico exercício de votar84 – concretizou-se integralmente. Os próprios franceses
que em agosto de 1789 – após quase uma década de lutas por igualdade, liberdade e
fraternidade – nos legaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, onde
ressurge a ideia de cidadania nos tempos modernos, mantiveram uma sociedade de
estamentos. A Constituição Francesa de 1791, elaborada logo após a Declaração
de Direitos, manteve a monarquia, o que significa um privilégio e uma diferença de
nascimento. E, contrariando todo texto da Declaração que expressa a igualdade de
todos, definiu que somente os cidadão ativos poderiam votar e serem eleitos para a
Assembleia Nacional; e para ser cidadão ativo era necessário, além de ser francês, ser
do sexo masculino, proprietário de bens imóveis e possuir uma renda mínima elevada.
Também na Espanha, por volta de 1878, somente eram reconhecidos como eleitores,
portanto cidadãos, os varões maiores de 25 anos, com dois anos de residência fixa
num determinado lugar e que pagassem à Fazenda Pública o mínimo de 25 pesetas
anuais como imposto territorial ou 50 como imposto industrial. Isto atingia a 5,1 %
da população.85 lgual no Brasil Império, onde as eleições eram indiretas e censitárias,

82 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. Op. cit., p. 39.
83 Nesse sentido, com propriedade lembra Silva: “Cidadão, no direito brasileiro, é o indivíduo que seja
titular dos direitos políticos de votar e ser votado e suas consequências” SILVA, José Afonso da. Curso
de Direitos Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 345. Carvalho diz que, no Brasil,
cidadania designa uma faculdade específica do nacional: a faculdade de gozar e exercer direitos políticos.
“Cidadão, portanto, seria o brasileiro que tem direitos políticos” CARVALHO, A. Dardeau de. Nacionalidade e
cidadania. São Paulo: Freitas Bastos, 1956. p. 294. Por fim, veja-se a garantia constitucional expressa no inc.
LXXIII do art. 5º “qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise anular ato lesivo ao
patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente
e ao patrimônio histórico e cultural[...]”. Como se comprova a cidadania? O parágrafo 3º da lei n° 4.717 de
29.06.1965, esclarece: “a prova da cidadania, para ingresso em juízo, será feita com o título eleitoral ou com
documento que a ele corresponda”.
84 WARAT, Luis Alberto. La ciudadanía sin ciudadanos: tópicos para un ensayo interminable. Op. cit.
85 MORENO, Isidoro. Derechos humanos, ciudadania e interculturalidad. In: DÍAZ, Emma Martín; SIERRA,
Sebastian de la Obra. Repensando la ciudadanía. Servilha: Fundación El Monte, 1998. p. 21.
a cidadania
45

isto é, o direito de voto e a extensão dos direitos políticos eram determinados por
uma série de requisitos além de estar condicionada pela renda.86 As mulheres, os
trabalhadores, os pobres foram excluídos da cidadania ativa. Então, cidadão poderia
definir-se simplesmente como membro de uma comunidade. Era a cidadania ativa
que lhes atribuía direitos. Era, portanto, o indivíduo no gozo de direitos civis e políticos
de seu Estado. Assim, quando a Europa inicia os tempos modernos, a partir do séc.
XVII começam a definir-se alguns direitos que, por evidente, estavam relacionados
com a cidadania de um determinado Estado, estando este obrigado a respeitar tais
direitos, no entanto a divisão de classes permanecia e com ela a divisão de direitos. 87

1.2.4.4 O cidadão comunitário – O modelo comunitarista atribui toda primazia


à comunidade, ao indivíduo inserido em um grupo. Parte de uma ideia mística de
tribo. O cidadão não pode ser entendido à margem das vinculações sociais que o
constituem como sujeito. São os valores morais, culturais ou religiosos que devem
determinar as políticas públicas e o entramado normativo dessas sociedades.
Para os liberais o sujeito antecede a seus fins; os comunitaristas criticam esta
prioridade. O “eu” liberal, o “eu” sem vínculos é um “eu” vazio, inexistente. Criticam
o individualismo egoísta, onde cada um defende seu próprio interesse e vê o outro
como um rival, que se desconheça o papel que desempenham a cultura, os valores
compartilhados, as identidades.
Iluministas como Kant, identificaram a razão como a fonte da identidade e

86 Para participar das assembleias paroquiais: ser homem livre, maior de 25 anos, não viver sob a dependência
dos pais e possuir uma renda superior a cem mil réis. Para participar da eleição dos Deputados: possuir
uma renda mínima de duzentos mil réis, não ser liberto (ser livre de nascimento), não estar pronunciado
criminalmente. Para ser Deputado: possuir uma renda mínima de quatrocentos mil réis, ser brasileiro nato,
ser católico. GORCZEVSKI, Clovis; SILVA JUNIOR, Edson Botelho; LEAL, Monia Clarissa Hennig. Introdução
ao estudo da ciência política, Teoria do Estado e da constituição. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007. p.180.
87 Mas, os franceses foram além em suas contradições. A expansão colonialista e a formação do Império
que iniciara em 1635 com a colonização de Martinica têm, a partir de 1830, com a definitiva abolição da
escravatura e a conquista da Argélia, uma grande intensificação, em especial no Oceano Índico e Pacífico.
Suas conquistas vão da Nova Caledônia ao Senegal, do México a Conchinchina (Vietnã) ou ao Camboja,
transformando a França no segundo império colonial do mundo. Tem início uma era de selvagem e desumana
exploração que vai perdurar por quase dois séculos e deixará marcas e sequelas inapagáveis. Consolidadas
as conquistas, surge o primeiro dilema, como tratar os habitantes das colônias? Pertencem ao Império
Francês, mas não são republicanos, não são brancos, não são católicos, não são europeus. Poderão ser
franceses? Em 1881, é promulgado o Code De I’indigénat, o conjunto de leis a que estavam submetidos
os habitantes das colônias. Os Indigénes são sim franceses, mas de categoria inferior. Com os mesmos
deveres para com a França que qualquer Francês, mas sem os direitos da França para com os franceses.
Esta vergonhosa e injusta situação de discriminação chega ao seu extremo durante a Segunda Guerra
Mundial, quando mais de 160.000 indigènes são recrutados nas colônias da África, precariamente treinados
e enviados à Europa para libertar a pátria. Apesar de nunca lá ter estado e de que muitas de suas famílias
terem sido massacradas pelo colonizador, eles eram ‘franceses’ e tinham o dever de morrer pela pátria-mãe,
mesmo que esta os tratasse como filhos bastardos. Sofrendo toda espécie de preconceito e discriminação –
nem a farda francesa os tornava iguais aos demais soldados franceses – muitos destes homens deram sua
vida pela França. Vencida a guerra não eram mais necessários e na França eram considerados imigrantes e
ilegais. Em 1959, quando iniciam os movimentos de descolonização, o governo Frances suspendeu todos os
pagamentos a ex-combatentes não franceses. Todos os governos sucessivos se recusaram a assumir esta
dívida. Somente em 2006 quando o lançamento de um livro e de um filme sobre a situação dos indigènes
que lutaram pela pátria o tema é mundialmente conhecido fazendo o Presidente Jacques Chirac revogar a
vergonhosa medida. BLANCHARD, Pascal et BANCEL, Nicolas. De l’indigène a l’Immigré. Paris: Gallimard,
1998.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
46 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

da moralidade do homem – concebida como um atributo de todo indivíduo – mas


desprovida de vínculos tanto com a comunidade como com a cultura. Para Kant, a
moral não pode encontrar fundamento em nossos desejos, nem em nossas crenças
religiosas, nem em nossas circunstâncias, e sim na ideia da autodeterminação.
Concebe o indivíduo como um ser capaz de se afastar de todas suas circunstâncias
culturais e das situações em que está comprometido e fazer juízos a partir de um
ponto de vista universal e abstrato, desvinculado de toda e qualquer peculiaridade
social.
A reação a este universalismo abstrato do iluminismo foi célere, ensina
Gonzalo, e deu início à discussão comunitarista; iniciando com Vico e Rousseau,
desenvolvendo-se na Alemanha com Herder e Schiller e alcançando sua máxima
expressão com Hegel. Frente ao universalismo dos valores e ao cosmopolitismo
do iluminismo, Herder assevera que a humanidade não é composta de indivíduos
cuja essência é uma razão abstrata e universal; ao contrário, consiste em um
conjunto de seres humanos ancorados em nações e culturas e na multiplicidade
de caminhos diferentes que podem seguir cada povo, assim como na vontade de
cada sociedade em viver seus próprios valores e tradições e conservar seu direito de
serem diferentes. A partir das últimas décadas do século XIX e início do século XX,
surgem novos teóricos comunitaristas, destacando-se Thomas Hill Green, Leonard
Trelawney Hobhouse, Émile Durkheim e John Dewey, todos têm em comum a crítica
ao liberalismo deontológico e a defesa dos valores intrínsecos das comunidades.88
Mas a ideia da existência de valores intrínsecos da comunidade e da
necessidade dos indivíduos de viver em íntima conexão com eles existe desde a
Grécia Clássica e pode ser encontrada na filosofia política de Aristóteles quando
ensina que todos os cidadãos da polis devem participar do governo e emitir juízos
políticos, ao invés de submeterem-se as decisões de uma minoria. O ser humano
é intrinsecamente sociável e necessita dos demais para desenvolver sua própria
essência como ser. A ideia aristotélica de que “a cidade é formada inicialmente para
atender às necessidades da vida e na sequência, para o fim de buscar viver bem”89
isto é, a cidade visa a um bem comum, é o estandarte dos comunitaristas.
Para Aristóteles, ao contrário de Platão, não existe um regime político perfeito,
o melhor será aquele que mais bem se adequar às circunstâncias específicas de
cada comunidade. Esta afirmativa subsiste nas construções comunitaristas que
consideram a comunidade dotada de um valor intrínseco.
O comunitarismo, ensina Gonzalo, não é propriamente uma ideologia, nem
mesmo uma tese política e sim uma corrente de pensamento ético e político de crítica
ao individualismo liberal ao qual acusa de promover movimentos políticos liberais que

88 GONZALO, Eduard. Comunitarismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 507-508.
89 ARISTÓTELES. Política. Texto Integral. São Paulo: Martin Claret, 2008. p. 55.
a cidadania
47

desvinculam os seres humanos de suas respectivas comunidades de referência (a


família, o clã, os vizinhos, o grêmio profissional, a cidade, a nação), fazendo-os crer,
falsamente que podem encontrar sua identidade à margem delas, num universalismo
abstrato.90 É possível, assevera Walzer, que o comunitarismo nem seja uma alternativa
para o liberalismo, mas trata-se, indubitavelmente, de uma arrebatadora crítica a suas
insuficiências.91
Com a máxima de que não há indivíduo sem sociedade, os comunitaristas
vêem na sociedade contemporânea a dissolução do nexo social, a erradicação das
identidades coletivas assim como o incremento do individualismo egoísta. Com tudo
isso, cada indivíduo defende unicamente seu próprio interesse e vê o outro sempre
como um rival. Assim, o principal objetivo comunitarista é a edificação de uma
sociedade baseada em valores comuns: identidade, solidariedade, participação...
Fazer o indivíduo sentir-se integrado a uma comunidade motiva-o a trabalhar por ela.
As características básicas dos comunitaristas são duas, a primeira, relativa às
atitudes, o princípio aristotélico da prioridade do todo sobre as partes, isto é, da
cidade sobre seus habitantes; segunda, referente às suas crenças, a pressuposição
de que as comunidades humanas são diversas e estão submetidas a pautas culturais
especificas e, por conseguinte, a critérios morais particulares que obrigam somente os
dentre seu seio. Uma das teses mais importantes dos comunitaristas é precisamente
que a salvação e a realização do individual dependem da salvação e da realização
do coletivo.92
Esta concepção de cidadania, como se observa, é fundamentalmente uma
teoria de oposição ao individualismo liberal que tem seu ponto de partida na ordem
empírica e sociológica e defende a primazia do coletivo sobre o individual e a primazia
da esfera cultural para entender a ordem política. São, portanto, os valores morais,
culturais e religiosos que devem determinar as políticas públicas e o ordenamento
jurídico do Estado. Assim, são as crenças morais, publicamente compartilhadas por
um grupo, que deverão dar sentido ao ordenamento jurídico.
Para os comunitaristas o indivíduo somente é reconhecido como tal – de
forma plena, como homem e cidadão capaz de realizações – porque surge de uma
comunidade que lhe permite realizar seu próprio projeto de vida. Em razão disso, o
todo (a comunidade, ou o grupo étnico de pertencimento) é superior às partes (os
indivíduos) e, portanto, é o real titular de todos os direitos.93

90 GONZALO, Eduard. Comunitarismo In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 505.
91 WALZER, Michael. La crítica comunitarista del liberalismo. Apud CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo.
Hacia una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 59.
92 MARTÍN, Nuria Belloso. Os novos desafios da cidadania. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005. p. 26.
93 LANZILLO, Maria Laura. ?Nosotros o los otros? Multiculturalismo, democracia, reconocimiento. In: GALLI,
Carlo (Comp.). Multículturalismo, ideologías y desafíos. Traducción de Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva
Visión, 2006. p. 85.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
48 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Em resumo, o comunitarismo defende que o individuo não existe na sociedade


per si, já que sua existência se deve à vida social da qual emerge. E movimentos
contemporâneos, como os conflitos bélicos emancipacionistas e as lutas pelo
reconhecimento de grupos, etnias e culturas, nos provam a necessidade humana de
pertencimento e identificação comunitária.

1.2.4.5 O cidadão diferenciado – Este modelo, sustentado basicamente por


Young94 e Pateman95 começa ratificando a crítica do liberalismo em relação à cidadania
integrada, isto é, a respeito da integração forçada das minorias; nega contudo, a
neutralidade do Estado liberal. Afirma que o conceito de cidadania integrada é um
atentado ao conceito de igualdade, já que na prática significa negar os direitos das
minorias sociais, culturais e étnicas ao serem forçadas a uma homogeneização
pautada pela maioria. Os critérios de aplicação da liberdade, da igualdade e da
justiça dos liberais são desterrados e se fomentam políticas diferenciadas específicas
que permitam às minorias sair de sua posição sociocultural e econômica de
marginalização e, inclusive, por vezes de opressão e exploração, através de um
estatuto de direitos diferenciados. Young invoca uma política de ressarcimento da
opressão sofrida mediante a criação de fundos públicos, cotas de representação em
todos os órgãos colegiados e direito de veto para as decisões públicas prejudiciais às
minorias, argumentando que antes de aplicar a justiça distributiva há que se sanarem
as desvantagens impostas por um Estado não neutro.

1.2.4.6 O cidadão pós-nacional (patriotismo constitucional) – Habermas


defende a aceitação de uma nova realidade social multiétnica e plurinacional como
superação ao modo restrito entre Estado-nação e cidadania. Considera para tal, o
efeito das alianças interestatais como a União Europeia, e os massivos movimentos
migratórios dos últimos anos. Para ele isto nos conduz a Estados pós-nacionais,
como denomina os atuais Estados plurinacionais e pluriétnicos.
O instrumento básico desta cidadania é a própria constituição, que integrará
a todos através do patriotismo constitucional. Este patriotismo constitucional ou a
lealdade à constituição e aos valores que ela consagra, assume o papel da identidade
cultural, sendo o marco sobre o qual se sustenta toda a teoria da cidadania pós-
nacional.
Referindo-se especificamente a União Europeia, Habermas adverte para um
duplo perigo: o eurocentrismo e o burocratismo. O primeiro: a Europa se fecharia
em suas fronteiras como uma fortaleza de prosperidade egocêntrica e com vínculos
meramente instrumentais com seu entorno. O segundo, a Europa se converteria

94 YOUNG, Iris M. Justice and the Politics of Difference. Princenton: University Press, 1990.
95 PATEMAN, Carol. El contrato sexual. Barcelona: Antrophos, 1995.
a cidadania
49

em uma comunidade de nações com vínculos legais e políticos de representação.


Contudo, considera irrenunciável a aspiração de uma Europa dos cidadãos:

O patriotismo constitucional a de penetrar no tecido cívico de cada um


dos Estados que integram a União Europeia, quase todos plurinacionais
e/ou pluriétnicos. Esta reconvenção ao patriotismo constitucional em
cada Estado-membro permitira solucionar de forma mais adequada
e profunda o peso do passado e integrar as diferenças etnoculturais,
sob o guarda-chuva da Constituição, com o reconhecimento explícito
dos direitos diferenciais em uma convivência cívica.96

Para tanto, defende que o futuro Tratado, que estabeleça uma Constituição
Europeia, se é que se chegará a este consenso, deverá insistir em uma Europa dos
cidadãos, unidos em um texto constitucional para superar o déficit democrático e
estimular o processo de construção europeu.

1.2.4.7 O cidadão cosmopolita – Held e Cortina97 advogam um modelo de


cidadania baseado na criação de um sistema global de direitos e deveres universais,
independentemente do lugar de nascimento e residência. Por evidente que uma
cidadania cosmopolita exige uma extensão universal da cidadania pós-nacional
em termos quase exclusivamente étnicos, pois nenhum dos proponentes defende
a existência de um governo mundial para implementar e garantir os direitos válidos
e exigíveis em qualquer país do mundo. Não faltam críticos e céticos a este modelo
de cidadania. Zolo, por exemplo, matizou os limites de aplicação da cidadania
cosmopolita que em nenhuma circunstância deveria seguir na linha de um tipo forte
de governo mundial, optando por um cosmopolitismo fraco ou fragilizado.98 Também
Walzer se expressou com ceticismo à proposta de uma cidadania fundada quase
que exclusivamente em termos étnicos, sem maior atenção aos aspectos jurídico-
políticos:
Ni siquiera tengo conciencia de que haya un mundo en el que uno
pueda ser ciudadano. Nadie me ha ofrecido nunca esa ciudadanía,
ni me ha descrito el proceso de naturalización, o me ha inscrito en
las estructuras institucionales de ese mundo, ni me ha explicado
sus procedimientos de toma de decisiones (espero que sean
democráticos), ni me ha ofrecido una lista de los derechos y deberes
de esa ciudadanía, o me ha mostrado el calendario y las festividades y
celebraciones comunes a sus ciudadanos.99

96 CARRACEDO, José Rubio. Teoria crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 98-99.
97 CORTINA, Adela. Los ciudadanos como. protagonistas. Barcelona: Galaxia Gutenberg, 1999.
98 ZOLO, Danilo. Cosmópolis. Perspectivas y riesgos de un gobierno mundial. Barcelona: Paidós, 2000.
99 WALZER, Michael. La crítica comunitarista del liberalismo. In: CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia
una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial, 2009. p. 59.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
50 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

1.2.4.8 O cidadão transnacional – Já nos manifestamos sobre a realidade


social dos imigrantes nos países receptores, analisaremos agora, embora de
forma breve, a realidade social destes imigrantes em seus países de origem. Em
alguns casos, como o dos mexicanos nos Estados Unidos ou dos equatorianos na
Espanha, os imigrantes podem continuar exercendo relativa influência nos aspectos
econômicos, sociais e políticos de seus Estados de origem, por isso pleiteiam uma
dupla cidadania: a da adoção e a da origem. Sobre esta problemática surgiu a teoria
da cidadania transnacional. Esta teoria refere-se ao fato de que todo imigrante é
também um emigrante e que o exercício de sua cidadania pode ser exercido tanto
no país de origem como no de acolhida. Para justificar esta possibilidade basta
reelaborar os princípios clássicos que regulavam o direito de pertencimento: a) o
território (ius soli); b) a descendência (ius sanguinis) e, c) o consentimento pessoal.
Os dois primeiros são princípios objetivos de implementação, que até agora vinham
sendo aplicados preferentemente, no país de origem o primeiro e no país de adoção
o segundo. A nova realidade da imigração-emigração obriga a aplicá-los em ambos
os casos por igual. O terceiro, é um princípio de eleição, que incumbe unicamente a
pessoa à iniciativa de expressar sua opção, a qual a de ser atendida por ambos os
Estados, o de admissão e o de origem.100

1.2.4.9 O cidadão transcultural – Este modelo assume as teses da cidadania


transnacional e a complementa com “os resultados do diálogo intercultural promovido
entre indivíduos e grupos de diferentes culturas, nações, religiões e etnias”.101 A
cidadania transcultural se apoia na ideia de que cidadania se constrói através de um
complexo processo de integração-diferenciação sustentado no espaço e no tempo.
Não se pode enfatizar a integração nem tampouco a diferenciação. O primeiro passo
é a conciliação entre o pertencimento e a participação cidadã. O reconhecimento do
pertencimento é a condição mínima que permite iniciar o diálogo intercultural: todos
os grupos devem reconhecer a realidade e legitimidade de suas diferenças culturais.
O pertencimento é uma característica psicossocial através da qual os indivíduos
e os grupos se reconhecem mediante uma determinada identidade, o que leva a
uma disposição de lealdade profunda, assim com a assunção de obrigações para
com o grupo. A partir de então se consegue o impulso para a obtenção do pleno

100 Carracedo destaca que um caso especialmente interessante é o cancelamento automático da cidadania
nacional quando um imigrante adota a nacionalidade do país de acolhida. Outra questão é que o Estado
de origem regule juridicamente, e com justiça, alguns limites. Pode-se considerar arbitrariedade privar a
um emigrante de seus direitos políticos simplesmente porque optou pela dupla nacionalidade, se continuar
mantendo uma relação continuada com seu país de origem (relações familiares, remessas de valores, etc.)
CARRACEDO, José Rubio. Teoria crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 104.
Ademais, frequentemente o emigrante realiza uma emigração temporal, pelo tempo necessário para acumular
recursos econômicos que lhe permitam restabelecer-se em seu país de origem. Por isso, parece óbvio que
não rompe as relações, pois lhe interessa conservá-las para seu regresso. É verdade que, em alguns, o projeto
temporal se converte em definitivo, mas em seu país de origem continuará mantendo vínculos (familiares,
culturais e, muitas vezes, inclusive, econômicos).
101 Para Carracedo a ideia de cidadania transcultural assume também o conceito de cidadania complexa a qual
ele mesmo propõe. CARRACEDO, José Rubio. Teoria crítica de la ciudadanía democrática. Op. cit., p. 111.
a cidadania
51

reconhecimento dos direitos civis A participação é uma categoria sociopolítica que


impulsiona o exercício dos direitos políticos, para consolidar os direitos civis e para
colaborar na consecução dos interesses do grupo. Se o pertencimento é reconhecido
a todos os indivíduos e grupos, sem exclusão, o diálogo intercultural flui sobre
bases igualitárias. Se ao contrário, o pertencimento não é reconhecido plenamente,
se produz um curto-circuito no diálogo intercultural, se obstaculiza a participação
política, já que ninguém quer participar em um âmbito onde não é reconhecido. E
isto não ocorre somente no âmbito transnacional. A etnia cigana é um bom exemplo
de uma cidadania transnacional que, contudo, não é transcultural porque nunca se
buscou a integração.102
Atualmente, o grande desafio da cidadania é a superação da exclusão e a
tentativa de integrar como cidadãos os indivíduos que provêm de outro horizonte
cultural. Paradoxalmente neste tema se avança de forma inversa que nos processos
anteriores: os residentes estrangeiros recebem primeiro a cidadania social e, depois
devem lutar para alcançar a cidadania individual e política. Quer dizer, primeiro recebem
os direitos econômicos e sociais como a educação e a saúde, e somente mais tarde,
alguns setores começam a receber parcialmente direitos políticos, em nível local ou
regional. No horizonte da cidadania se desenha esta perspectiva a todos, tarefa para
a qual a educação será um instrumento básico, porque a cidadania não é somente
um status, mas uma forma de entender o convívio e a organização social, com seus
valores e princípios e seus procedimentos. E como bem ensina Peces-Barba, “não se
nasce com estas ideias, se aprende; formam parte dos conteúdos da educação”.103

1.2.4.10 O cidadão multicultural - Há certa unanimidade entre os doutrinadores


em situar o nascimento do pensamento multicultural no período entre as duas grandes
guerras, particularmente na crítica ao pensamento positivista, ao dualismo cartesiano
e ao paradigma racionalista. Mas para Rigotti, suas raízes são mais remotas, situam-
se, não nas décadas de 20 a 40 do século XX, e sim nas décadas de 20 a 40 do século
XVIII, especificamente na obra Princípios da Ciência Nova, do filósofo napolitano
Gianbattista Vico que pode ser considerada um dos primeiros textos de epistemologia
multicultural. Talvez, sustenta, seja possível retroagir ainda mais e encontrar-se a ideia
de multiculturalismo no pensamento de Michel de Montaigne, especialmente em seu
ensaio Dos Canibais.104
A dificuldade em definir-se o multiculturalismo, decorre de sua polissemia; há
no mínimo duas acepções para o termo: uma como fato e outra como valor. No

102 Idem, p. 112.


103 PECES-BARBA, Gregório Martinez. Ética pública y ética privada. Anuário de Filosofia del derecho. T. XIV.
Madrid: BOE-Ministerio de Justicia, 1997. p. 23.
104 RIGOTTI, Francesca. Epistemología monocultural y epistemología multicultural. In: GALLI, Carlo. (Comp.)
Multiculturalismo, ideologías y desafíos. Tradución de Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2006. p.
32.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
52 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

primeiro caso, descreve um fato evidente: a coexistência de muitas culturas dentro


de um mesmo espaço territorial (estatal), sem que uma delas predomine. Como diz
Zapata-Barrero, “[...]ni es un problema ni es un ideal [...] simplemente el resultado de
un proceso histórico real”.105 O segundo caso, ultrapassa o limite de um juízo de fato
e entra em um juízo de valor: um modelo de sociedade onde a relação entre todas
as culturas existentes é de igualdade, onde todas possuem o reconhecimento e a
proteção da esfera pública.
Mas, Antonini, Barazzetta e Pin, asseveram que o multiculturalismo é também
uma doutrina política que assumiu notáveis matizes e características tanto no plano
ideológico (desde o tipo comunitarista até a pluralista) como no das atuações
políticas (a europeia, por exemplo, possui uma característica do tipo estatalista que é
substancialmente diferente do modelo norte-americano).106 Seguindo a mesma linha,
Di Martino define multiculturalismo como “um modelo cultural e político-institucional
orientado para a gestão da diversidade em uma sociedade multiétnica como a que
vem se formando no ocidente nos últimos decênios”.107
Villoro, também vê o multiculturalismo como uma ideologia política. Afirma que
o multiculturalismo surgiu como um grito de liberdade: liberdade para as velhas
culturas escravizadas pelo ocidente, reação contra a marginalização de um povo
dentro de uma nação, consciência da própria dignidade humilhada pela atitude
arrogante do dominador. Isto levou a reivindicação da autonomia, pessoal e coletiva,
a suas últimas consequências. Então o multiculturalismo nasce de um movimento
libertário e se por liberalismo entendemos uma doutrina que exige a liberdade, o
multiculturalismo está na mesma linha do liberalismo radical.108
Seu surgimento moderno deu-se na região da Grã-Bretanha nos anos 70,
difundindo-se pelo ocidente onde se conformou em modelos distintos em cada país;
nasce contra a pretensão de uma cultura erigir-se em modelo universal, reivindicando
o igual valor de todas as culturas. Propõe a equiparação e a não discriminação (in
primis racial) de indivíduos e de grupos, como reconhecimento da igual dignidade
de todos os cidadãos de todas as etnias, independentemente de língua, cultura ou
religião. Explica Di Martino:

Al proponerse la tutela las diversas identidades étnico-culturales


presentes en el espacio social, el modelo multiculturalista promueve

105 ZAPATA-BARRERO, Ricard. Multiculturalidad e inmigración. Madrid: Editorial Sintesis, 2008. p. 75.
106 ANTONINI, Luca; BARAZZETTA, Aurelio; PIN, Andrea. Multiculturalismo y Hard Cases. In: ORIOL, Manuel;
PRADES, Javier (Ed.). Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 28.
107 DI MARTINO, Carmine. El encuentro y la emergencia de lo humano. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.)
Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 114.
108 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p.187.
a cidadania
53

e incentiva iniciativas asumidas sobre una base explícitamente étnica.


Su palabra de orden es: igualdad de oportunidades.109

A origem de todo o problema cultural está na constituição do Estado moderno. O


Estado-nação, consagrado pelas revoluções modernas, não reconhece comunidades
históricas anteriores à sua constituição. Parte do zero – que os contratualistas
denominaram estado de natureza. O Estado é concebido como uma associação
de indivíduos que livremente se unem através de um contrato. Nesse sentido,
lembra Villoro,110 a sociedade não é mais vista como uma complexa rede de grupos,
associações, culturas diversas, estamentos que foram se desenvolvendo ao longo da
história, e sim como a soma de indivíduos que acordam em tornar sua uma vontade
geral. E a vontade geral é a lei que rege a todos, sem distinções. Ante a lei todos os
indivíduos se uniformizam, ninguém possui o direito de ser diferente. Então, de forma
artificial o Estado homogenizou uma sociedade absolutamente heterogênea.
Através da uniformidade de uma legislação geral, de uma administração central,
de uma cultura nacional válida para todos e de um poder único, o Estado moderno
tenta apagar a multiplicidade de culturas existentes sob sua soberania e impõe
uma ordem única sobre a complexa diversidade das sociedades que o compõem.
Para Parekh o Estado moderno apresenta uma série de limitações, mas a que
resulta crucial para esta discussão é seu afã de homogenização política e cultural.
Ela supõe que todos os cidadãos devam privilegiar sua identidade territorial acima
das demais, que devam considerar muito mais importante aquilo que compartilham
enquanto cidadãos do que possam possuir em comum com os demais membros das
comunidades religiosas, culturais, etc., as quais possam pertencer.111
Os indivíduos ou as culturas que resistem, não se homogeneizando, tenta-se
eliminar. Assim, a discriminação, o rechaço ou a exclusão de determinados grupos
sociais e de indivíduos a eles pertencentes, que podemos denominar genericamente
de racismo é o resultado de processos políticos, sociais e históricos que foram
conduzindo a uma distribuição desigual de poder a partir das discriminações étnicas
exercida pelas maiorias.
Este racismo é definido por Torrens como “o discurso e a discriminação para
com pessoas pertencentes a minorias, por razão da cor da pele, origem nacional,
religião, língua ou cultura”. Vê-se, portanto, que este racismo pode ser dirigido a uma
comunidade religiosa (hindus, muçulmanos, judeus), a um grupo pela cor da pele
(negros), a uma comunidade com valores diferentes (ciganos), a um grupo linguístico
distinto (latinos nos EUA) ou a uma minoria nacional diferente (curdos na Turquia).112

109 Idem.
110 Idem, p. 172.
111 PAREKH, Bhikhu. Repensando el multiculturalismo. Diversidad cultural y teoria política. Madrid: Istmo, 2005.
p. 276.
112 TORRENS, Xavier. Racismo y antisemitismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
54 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Pode-se também denominar este rechaço de xenofobia, no sentido de fobia, medo,


ódio a estrangeiros ou a tudo que não for igual a si. De fato, empiricamente racismo
e xenofobia são conceitos equivalentes.
Após a II Guerra, com a revelação do holocausto e a descolonização da África e
Ásia, o racismo biológico não encontrava espaço para apresentar-se como tal. Com o
desenvolvimento do programa genoma humano, a própria UNESCO condenou termo
raça ao ostracismo e para a ONU o conceito raça não possui validade científica. Não
obstante a comprovação científica da inexistência de raças, evidentemente que a
ideologia do racismo, agora mais sofisticada, persiste.
De forma didática, para demonstrar a evolução da exclusão de grupos e
indivíduos, e a fundamentação utilizada, Torrens elaborou o quadro abaixo.113
Racismo religioso Racismo biológico Racismo cultural
Período Até o final do sec. XVIII. Entre 1789 e 1945 A partir da metade do
histórico séc. XX aos dias atuais.
Momento Iluminismo Revolução Francesa Holocausto
histórico
Sociedade Agrária Industrial Do conhecimento
Tipo de Estado Absolutista Liberal Democrático
Modelo Cultural Pré-modernidade Modernidade Pós-modernidade
Legitimação Religião Ciência Cultura
Axioma Infiel pecador Raça inferior Imigrante ilegal
Estrutura Cristianismo como a Raça superior Cidadãos com cultura
Ideológica única religião autêntica civilizada frente nacional avançada
frente a religiões pagãs a raças inferiores frente a imigrantes com
primitivas culturas alienígenas.
Pressuposto A religião dos infiéis O atraso das As diferenças culturais
ideológico é incompatível com a raças inferiores é dos imigrantes são
salvação das almas incompatível com a incompatíveis com a
cristãs. civilização européia identidade nacional
Argumento Os infiéis são impuros As raças inferiores Os imigrantes não
para merecer a fé não possuem querem integrar-se à
verdadeira capacidade para cultura nacional
atingir o progresso

Como se observa a xenofobia, o rechaço a grupos ou indivíduos é ainda uma


realidade sob variadas argumentações. Seu combate é o desafio da modernidade,
pois como afirmamos, uma característica marcante da sociedade moderna é sua
multiculturalidade, multietnicidade e multirreligiosidade. Assim que o multiculturalismo
impõe-se como condição primeira para a concretização dos direitos humanos.
Para acabar com a exclusão e criar-se esta nova cidadania Kymlika defende
a aplicação de direitos diferenciados. O primeiro passo, assevera, é a necessidade
de desenhar-se um novo conceito de cidadania, que permita às minorias (étnicas,

contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 348.


113 Idem, p. 350.
a cidadania
55

religiosas, culturais ou sociais) sua efetiva integração, sem perder suas características
próprias. Afirma que a noção geral de cidadania, de tratar todas as pessoas como
indivíduos iguais e com os mesmos direitos perante à lei, não atende aos interesses
da nova sociedade, trata-se de uma cidadania medieval. Defende que os Estados
democráticos modernos, além de reconhecer os direitos fundamentais dos indivíduos
devem reconhecer uma série de direitos especiais para os grupos minoritários. O
reconhecimento desses direitos tem como objetivo preservar a cultura, que dá sentido
à liberdade individual e a seu exercício, assim como fazer possível a permanência do
indivíduo em seu grupo social, promover e dissipar as desigualdades que afetam as
minorias. Garantir esses direitos é a melhor forma de preservar a cultura dos grupos
minoritários, bem como aliviar as tensões dos conflitos étnicoculturais.
Kymlicka apresenta três formas de direitos diferenciados em função do grupo:
1) Direito de autogoverno. Lembrando que o direito à autodeterminação dos
povos está reconhecido no próprio direito intencional, este, com certa autonomia
territorial, seria aplicável por nações que pretendessem desenvolver e proteger
os grupos que a compõe, atribuindo-lhes certa autonomia política e jurisdição
territorial em defesa dos interesses de seus indivíduos.
2) Direitos políticos - aplicáveis principalmente a imigrantes, grupos étnicos e
religiosos e às minorias do território. Têm o propósito de proteger e permitir que
estes grupos expressem de forma livre sua cultura, sem que isso constitua um
obstáculo à sua integração na sociedade hegemônica.
3) Direitos especiais de representação. Garantir aos grupos culturais minoritários
a participação em todo o processo político.

Argumenta que o reconhecimento dessa cidadania diferenciada não é uma


contradição de termos e lembra que muitos direitos políticos de representação ou
autogoverno são concedidos a grupos específicos em várias democracias modernas.
Alerta, contudo, que o reconhecimento de direitos das minorias traz consigo alguns
riscos, pois os nazistas e o apartheid também fizeram uso (e abuso) da linguagem de
direitos diferenciados. Lembra, ainda que a grande oposição aos direitos das minorias
étnicas ou nacionais – consiste na preocupação prática quanto à estabilidade dos
Estados, mas afirma que este temor é improcedente, pois as reivindicações dos
grupos minoritários são fundamentalmente de inclusão no conjunto da sociedade,
mantendo sua cultura, por isso, autogovemo – sentimento de ser uma nação dentro
de outra maior – é tão desestabilizador como a negação deste direito, que fomenta
ressentimentos e desejo de alijar-se.114
Na verdade, o multiculturalismo está presente no âmago de toda sociedade.

114 KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural. Una teoría liberal de los derechos de las minorías. Barcelona-
Buenos Aires- México: Paidós, 1996. p. 240.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
56 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Sendo o homem um animal social que busca viver com outros homens, grupos
com outros grupos e sendo a história da humanidade uma história de migrações,
é arriscado apontar-se uma sociedade com uma cultura pura, absolutamente isenta
de influência externa. E em tempos de globalização, não se pode afirmar que uma
sociedade possua em seu seio exclusivamente uma única cultura, porque as culturas
ultrapassaram fronteiras e porque em uma mesma sociedade coexistem diferentes
culturas, sendo uma delas, geralmente, maioria.
Cabe analisar como se comportam os Estados frente às culturas alienígenas. Para
Torrens, as políticas públicas ante ao multiculturalismo podem ser excludentes, que
expulsam ou segregam as culturas distintas; podem ser inclusivas, com assimilação;
ou optam pelo modelo multicultural.
Estados xenofóbicos possuem geralmente uma política de exclusão de culturas
alienígenas. Esta exclusão pode ocorrer de forma radical: com a expulsão da cultura
minoritária. Seu fundamento básico é o rechaço a que o estrangeiro transforme-se
em membro da comunidade. A política de expulsão vem sempre acompanhada de
um corte nos serviços sociais. Entretanto esta política, bem lembra Torrens, não evita
o fluxo migratório, ao contrário, institucionaliza a figura de imigrante ilegal uma vez
que o Estado não consegue implementar uma política de expulsão geral dos ilegais,
que passam, então, a subcidadãos, sem recursos, sem direitos, sem participação.
Ainda, a política de exclusão pode agir com relativa tolerância (muitas vezes por
necessidade de mão de obra barata). Ocorre então a segregação. Não se afasta, do
território do Estado, o indivíduo de cultura diferente, mas o segrega-se. “La lógica
discursiva de la segregación es que, dado que se desaprueba la presencia de los
inmigrantes, entonces cabe mantenerlos apartados”.115 Esta ação impõe um isolamento
dos imigrantes pertencentes a culturas minoritárias; avigora a desigualdade étnica
e reforça a discriminação. Este modelo induz à uma justificativa: as pessoas estão
segregadas porque supostamente são ineptas para determinados trabalhos, inábeis
para votar, incompetentes para participar, inadaptáveis para viver em determinados
bairros, incapazes de assumir novos conhecimentos.
Já os Estados mesmo com Políticas Públicas de Inclusão podem muitas vezes
violar direitos culturais ao praticar a assimilação, isto é, fazer com que a cultura
minoritária assimile a majoritária. Este modelo, assevera Torrens, é inclusivo em
relação à comunidade política, mas intolerante com a multiculturalidade. “Es inclusiva
en los derechos políticos y los derechos socioeconômicos, pero es exclusiva con
los derechos culturales”.116 Isto porque ela admite o estrangeiro como membro da
sociedade, incorporando-o à comunidade política mas exige a assimilação da nova
cultura, uniformizando-o.

115
TORRENS, Xavier. Multiculturalismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y Movimientos Políticos
Contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 392.
116 Idem, p. 394.
a cidadania
57

Por fim, temos os Estados com políticas de multiculturalismo. O valor da


diversidade, imperceptível nos outros modelos é aqui aceita como patrimônio social.
O multiculturalismo é inclusivo porque aceita as pessoas na comunidade política,
permite-lhe uma cidadania e não exige seu nivelamento, aceitando, respeitando e
valorando sua diferença.
Todos estes modelos podem ser expostos em um quadro didático:117

Ensina Torrens que a luta moderna pela aceitação do multiculturalismo,


isto é, a coexistência de múltiplas culturas no mesmo espaço territorial, contra a
discriminação, o rechaço e a xenofobia, cuja fundamentação encontra amparo no
princípio da igualdade, inicia em 1 de dezembro de 1955, em Montgomery, Estado
do Alabama, com a ação não violenta da afrodescendente Rosa Parks que foi
arrestada por não ceder seu assento no ônibus a um passageiro branco. Este fato dá
início, de forma espontânea, a um grande boicote aos ônibus devido à segregação
racial. A partir de então, e durante a década de 1960, a luta contra o racismo, pela
aceitação da igualdade e pelo multiculturalismo passa a ser liderada por Martin
Luther King. Grandes movimentos, e com significativos êxitos, ocorrem em fevereiro
de 1960 quando ativistas negros sentavam-se em cafeterias e restaurantes brancos
e segregacionistas e, como não eram atendidos, ali permaneciam todo dia em sinal
de protesto, mas ocupando um lugar no estabelecimento. A desobediência civil se
estendeu a mais de vinte Estados Norte-Americanos até que, em 28 de agosto de 1963,
ocorreu a grande Marcha sobre Washington onde Martin Luther King pronunciou seu
notório discurso “I have a dream”.118
Os primeiros Estados a implementar políticas públicas para a concretização de
uma sociedade multicultural plena foram o Canadá, a Suécia e a Austrália. O Canadá
foi o primeiro país a se definir como um Estado multicultural, dando início a políticas
públicas, nesse sentido, durante as décadas de 1960/70. A seguir a Suécia, onde o

117 Idem, p. 389.


118
TORRENS, Xavier. Multiculturalismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 383.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
58 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

modelo multicultural está sendo implementado desde 1975. Já a Austrália iniciou a


política do multiculturalismo no início dos anos 1970, adotando-a definitivamente em
1978.
O multiculturalismo defende a liberdade do indivíduo de assumir ou rechaçar a
tradição cultural que lhe tenha sido transmitida. Porque a chave do multiculturalismo
é a liberdade individual e seu desenvolvimento, o reconhecimento da plena liberdade
do indivíduo para construir reflexivamente uma identidade pessoal multireferencial,
em uma sociedade com uma mescla de diversas culturas, ao invés de ver-se impelido
a uma única cultura, como sempre veio imposto pelo Estado-nação que deseja fazer
coincidir plenamente o país e a cultura.
Esta nova realidade social, que se forma, foi assim definida por Todorov:

la constante interacción entre las culturas desemboca en la formación


de culturas híbridas, mestizas y criollas, en todos los grados: desde
los escritores bilingües, pasando por las metrópolis cosmopolitas,
hasta los Estados pluriculturales.119

Então, para congregar a grande diversidade cultural existente em nossas


sociedades, o multiculturalismo se apresenta como a proposta eficaz. Utilizado cada
vez com maior profusão desde os anos 60/70, tem apresentado resultados altamente
satisfatórios. A identidade nacional antanho fonte de coesão das sociedades, já não
necessita ser monocultural e pode ser substituída por uma identidade nacional com
um enfoque multicultural, como fator que ofereça coesão na sociedade sem criar a
uniformidade como a exigida pelo Estado-nação monocultural. Daí que as políticas
públicas devem expressar estes valores ideológicos para a efetiva concretização
da cidadania multicultural. O multiculturalismo reafirma a autonomia individual e a
pluralidade das comunidades. Trata-se de uma proposta intercultural, entre culturas
e, também intracultural, dentro de cada uma das culturas. A pretensão não é criar
uma homogeneidade interna dentro de cada cultura – muito ao contrário – porque
entende que a gênese desta cultura já é por si só intercultural, feita de outras culturas.
Insiste Torrens que esta perspectiva evita a endogamia cultural. O multiculturalismo,
afirma, se fundamenta no princípio quid pro quo e supõe uma profunda relação entre
uma pluralidade de culturas.120
O multiculturalismo permite ser diferente e disputar as mesmas oportunidades.
Não obstante a existência de processos coletivos de socialização, a identidade
individual está assegurada, respondendo à livre decisão de cada indivíduo, no pleno
exercício da sua autonomia de vontade. O direito à diferença se configura como
o direito de combinar em cada indivíduo características e hábitos pertencentes a

119 TODOROV, Tzvetan. Cruce de culturas y mestizaje cultural. Gijón: Júcar, 1988. p. 27.
120
TORRENS, Xavier. Multiculturalismo. In: MELLÓN, Joan Antón. Ideologías y movimientos políticos
contemporáneos. 2. ed., 2. reimpressão. Madrid: Tecnos, 2008. p. 388.
a cidadania
59

identidades sociais originariamente distintas. Somente assim o indivíduo será um


ator político que escolhe e decide por si mesmo. O multiculturalismo, portanto, é
indissociável da democracia e a valores como à tolerância e ao pluralismo.
Assim, os velhos modelos de Estado-nação assimilacionistas e homogenizadores
estão sendo crescentemente questionados, mas, nem de perto há unanimidade. O
multiculturalismo sofre profundas e severas criticas. Ocorre, diz Villoro, que doutrinas
políticas e filosóficas podem ser utilizadas para justificar-se um poder, transformam-
se então em ideologias. Assim, muitos vêem no multiculturalismo um perigo para a
manutenção do Estado Nacional moderno.121
Para Azurmendi, por exemplo, o multiculturalismo é um conceito normativo
como pode ser o comunismo ou o liberalismo. E, assim como o comunismo, o
multiculturalismo configura uma ideologia comunitarista e contrária ao liberalismo.
Trata-se de um projeto de alteração do sistema democrático a partir de dentro,
fomentando propensões e motivações para fazer desaparecer o indivíduo do centro
da ação social pela igualdade de oportunidades em detrimento dos agrupamentos.
Chamando “maioria cultural” a cidadania ordinária, dá a entender que determinados
conflitos sociais são culturais e que somente podem ser abordados discriminando a
cidadania em grupos e favorecendo as minorias, supostamente submetidas a maioria
cultural. Conclui com um sério alerta: a democracia, enquanto espaço jurídico-
político que gera os direitos dos cidadãos e os garante, não será capaz de resistir à
fragmentação multicultural em grupos aparte, buscando para si distintos privilégios.122
Também Donati, ao apresentar suas críticas ao modelo, lembra que, ao
concretizar-se o multiculturalismo, não só não se obteve os resultados esperados,
como não assegurou os efeitos de tolerância, de pacífica e ordenada convivência, ao
contrário, alimentou e aprofundou os conflitos, exasperando as divisões de origem,
provocando uma maior segregação, tanto quanto o modelo antagonista, quanto o
assimilacionista franco/germânico. Afirma que,

Después de haber sido adoptado como política oficial en varios países,


el multiculturalismo ha generado efectos más negativos que positivos.
Ha fragmentado la sociedad, separado a las minorías, ha dado lugar
a un relativismo cultural en la esfera pública. Como doctrina política
parece cada vez más difícil de practicar . En su lugar se habla hoy de
interculturalidad.123

121 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p. 187.
122 AZURMENDI, Mikel. El multiculturalismo, un pésimo poyecto para hacer afincar a los inmigrantes en el territorio
de nuestros valores. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.). Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora
Encuentro, 2009. p. 179.
123
DONATI, Pierpaolo. Desigualdades, diferecias y diversidades: la integración social más allá del
multiculturalismo. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.). Los Retos del Multiculturalismo. Madrid: Editora
Encuentro, 2009. p. 137.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
60 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Para Antonini, Barazzetta e Pin, fracassos não faltam nem mesmo nos contextos
que se inspiraram ao formular políticas opostas a do multiculturalismo, como o
assimilacionismo francês e a questão da maioria turca na Alemanha, onde o primeiro
ministro turco Erdogan, exigiu integração e não assimilação, definindo esta última
como um “crime contra a humanidade”124. Como consequência, diz Di Martino,
na prática, Canadá e Austrália, países com avançada política multicultural a estão
abandonando, enquanto a Grã-Bretanha e os Estados Unidos a estão questionam
seriamente.125
De fato, diz Donati, a doutrina do multiculturalismo surgiu para favorecer o
respeito, a tolerância e a defesa das diferenças culturais. Mas, se converteu depois
em um imaginário coletivo segundo o qual somos “todos diferentes, todos iguais”,
no sentido de que as diferenças/diversidades são postas todas no mesmo plano e
tratadas normativamente de modo tal que se tornam (in)diferentes, ou seja de modo
tal que anulam o sentido e a relevância de sua diferença/diversidade.126 Ademais,
diz o catedrático bolonhês, o multiculturalismo é deficitário porque não consegue
preencher a distância entre o citoyen e o homme. E sentencia:

Afirmar que o cidadão se realiza na esfera pública mediante a política


da dignidade humana e dos correspondentes direitos legais (política
do universalismo), enquanto a pessoa humana se realiza na própria
comunidade cultural (política da diferença), deixa vazio o espaço
entre estas duas esferas.127

Assim, assevera que o multiculturalismo é um equívoco e ambivalente porque, se


por um lado destaca a unicidade da pessoa humana, por outro, a torna incomunicável
do ponto de vista cultural.
De nossa parte ficamos com o ensino de Villoro ao entendermos que o
multiculturalismo não é uma escola filosófica, não constitui uma doutrina elaborada. É
somente a expressão de uma postura ética, política e jurídica que nasce do despertar
de uma ilusão: o sonho do pensamento ocidental moderno que criou uma concepção
de razão e de bem, que a entendeu como a única válida e que tentou impor ao resto
do mundo transformando-a no conceito dominante.128
Quando um grupo que se sente ameaçado e injustiçado invoca seu deus para
assassinar inocentes e em resposta a arrogância ocidental invoca sua liberdade e

124 ANTONINI, Luca; BARAZZETTA, Aurelio; PIN, Andrea. Multiculturalismo y Hard Cases. In: ORIOL, Manuel;
PRADES, Javier (Ed.). Los Retos del Multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 28.
125 DI MARTINO, Carmine. El encuentro y la emergencia de lo humano. In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.).
Los retos del multiculturalismo. Madrid: Editora Encuentro, 2009. p. 115.
126 DONATI, Pierpaolo. Desigualdades, diferecias y diversidades: la integración social más allá del multiculturalismo.
In: ORIOL, Manuel; PRADES, Javier (Ed.). Los retos del multiculturalismo. Op. cit.
127 Idem, p. 139.
128 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p. 200.
a cidadania
61

sua ideia de justiça para destruir o outro, em um e no outro caso marchamos para um
regresso à barbárie. E, os conflitos modernos nos demonstram, de forma iniludível
a necessidade de se orientar o ser humano e as relações humanas para os valores
derivados do reconhecimento da dignidade humana, como imperativo para a própria
sobrevivência do gênero humano, pois como bem adverte Assmam, a humanidade
chegou numa encruzilhada ético-política, e ao que tudo indica não encontrará saídas
para a sua própria sobrevivência, como espécie ameaçada por si mesma, enquanto
não construir consensos sobre como incentivar conjuntamente nosso potencial de
iniciativas e nossas frágeis predisposições à solidariedade.129
Só há um caminho, diz Villoro: escutar o outro, tentar compreendê-lo, por
mais diferente que seja, por mais errado que nos pareça. E depois de escutá-lo,
construir uma ordem de justiça transcultural que o inclua, uma ordem baseada não
na imposição do nosso arbítrio, mas na equidade de direitos de todas as culturas,
uma ordem que seja capaz de julgar de igual forma a um crime cometido por quem
se sente humilhado ou pelo todo poderoso que humilha.130 O multiculturalismo não
é mais que isso: um retorno à ética, aos valores primários, como forma de assegurar
o reconhecimento recíproco da nossa dignidade e, portanto, da nossa própria
sobrevivência.
Por evidente que o modelo apresenta imperfeições. A superioridade da cidadania
multicultural sobre a integrada e a diferenciada não elimina alguns problemas de
difícil solução. O primeiro é o que força o indivíduo a submergir em seu grupo original
e seguir sua dinâmica, dificultando que se forje uma personalidade independente.
Outros problemas encontrados no modelo de cidadania multicultural são:
a) o excessivo enfoque sobre os direitos diferenciados que cada grupo pode
obter com a dialética maioria-minoria no âmbito do Estado democrático liberal, sem
o necessário diálogo intercultural entre maioria e minorias, assim como de grupos e
indivíduos entre si;
b) o reconhecimento de uma estrutura plurinacional ou pluriétnica como uma
realidade positiva, sem dar a necessária atenção às desigualdades entre os grupos
que podem ocorrer a partir da maior ou menor capacidade de pressão de cada grupo,
o que pode levar a uma integração deficiente, instável e injusta.131

129 ASSMANN, Hugo. Reencantar a educação: rumo à sociedade aprendente. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 28.
130 VILLORO, Luis. Los retos de la sociedad por venir. Ensayos sobre justicia, democracia y multiculturalismo.
México: FCE, 2007. p. 200.
131 Santos tentou buscar uma nova equação entre o princípio da igualdade, é o princípio do reconhecimento
da diferença. Parte de que o paradigma da igualdade em sua versão capitalista, se funda em dois sistemas
de pertencimento hierarquizado: o sistema da desigualdade, que nega o princípio da igualdade e o sistema
de exclusão, que nega o princípio do reconhecimento da diferença. A desigualdade e a exclusão são dois
sistemas de pertencimento hierarquizados. No sistema de desigualdade, o pertencimento ocorre pela
integração subordinada, enquanto que no sistema de exclusão o pertencimento ocorre pelo afastamento.
A desigualdade implica um sistema hierárquico de integração social. Quem está abaixo, está dentro e sua
presença é indispensável. Ao contrário, a exclusão pressupõe um sistema igualmente hierárquico, mas
dominado pelo princípio da exclusão: se pertence ou se é excluído pela forma. Quem está abaixo está
excluído. Assim formulados, estes dois sistemas de hierarquização social são tipos ideais, pois na prática
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
62 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Pelos modelos e propostas apresentadas, ainda que de forma sucinta é fácil


identificar que cada um possui vantagens e desvantagens. Ocorre que o cerne
de toda polêmica está entre princípios básicos: segurança, liberdade, igualdade.
Contudo, todos são imprescindíveis: segurança (Hobbes e o Leviatã), liberdade
(Locke, Nozick, individualismo possessivo), igualdade (Rawls, Dworkin, liberalismo
solidário, liberalismo social).
Isso nos remete ao debate entre o individualismo possessivo e o liberalismo
solidário. O primeiro dá primazia à liberdade e à propriedade e apresenta as seguintes
características: a) o que torna o homem humano é ser livre, isto é, independente da
vontade dos demais. Liberdade e independência se identificam; b) um homem livre é
independente de qualquer relação com os demais, a exceto aquelas que lhe interessa
contrair; c) cada indivíduo é proprietário de sua pessoa e de suas capacidades
pelas quais não deve nada à sociedade. Por conseguinte, é também proprietário do
produto de suas capacidades. No individualismo possessivo não há razão para que
se compartilhe com os demais indivíduos aquilo que é somente seu; suas rendas são
suas, o salário é seu e, “tiram do meu” aquilo que é para fazer redistribuição.
O segundo, a corrente do liberalismo solidário outorga primazia à igualdade,
tentando conciliá-la com a liberdade. Seu modelo de Estado é o Estado Social e
Democrático de Direito, a social-democracia. Acoima que o Estado de Bem-Estar
elimina o Estado de direito porque impossibilita o império da lei. Assim o liberalismo
solidário defende as seguintes teses: a) as pessoas não são responsáveis nem donas
das qualidades naturais ou sociais que adquirem por nascimento; b) por conseguinte,
cada pessoa deve à sociedade parte do que é, portanto é razoável compartilhar
encargos e benefícios, distribuindo uns e outros de forma justa. c) uma sociedade
será justa quando os princípios que a orientam distribuam os encargos e os benefícios
desconsiderando a loteria natural e social; d) a liberdade é o valor mais precioso para
os seres humanos, mas deve sempre ser articulado com a dos demais cidadãos; e) a
distribuição deve ser igualitária, mas se o igualitarismo produzir menos riqueza social
é prejudicial para todos. O mais justo então, é retribuir de forma desigual tomando
por referência o grupo social mais desfavorecido (Teoria da Justiça de John Rawls).

1.3 A necessária revisão do conceito de cidadania

Como lembra Boaventura de Sousa Santos, estamos vivendo um momento


de transição paradigmática que põe em xeque o modelo social, político, jurídico e

os grupos sociais se introduzem simultaneamente nos dois sistemas, formando complexas combinações.
Para o sociólogo português, Marx é o grande teorizador da desigualdade e Foucault é o grande teorizador da
exclusão. Adverte que no sistema mundial os dois eixos se cruzam: o eixo socioeconômico da desigualdade
e o eixo cultural, civilizacional, da exclusão. O eixo norte/sul é o eixo do imperialismo colonial e pós-colonial,
socioeconômico, integrador da diferença. O eixo este/oeste é o eixo cultural, civilizacional, da fronteira entre a
civilização ocidental e as civilizações orientais: islâmica, hindu, chinesa e japonesa. O imperialismo é a melhor
tradução do eixo norte/sul, assim como o orientalismo é a melhor tradução do eixo este/oeste. (SANTOS,
Boaventura de Sousa. El milênio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política. Madrid: Trotta, 2005. p.
195-197).
a cidadania
63

econômico imperante no mundo ocidental desde a Revolução Francesa.132


Para afirmar-se e obter a lealdade de seus súditos, o Estado moderno, ao
surgir, cria artificialmente o nacionalismo; com isso surge uma identidade superior
ao indivíduo que é a nação. A cidadania passa a ser nacional, cidadãos são aqueles
que pertencem a um determinado Estado e, portanto, possuem objetivos comuns. A
cidadania abriga-se sob o estandarte do nacionalismo que encobre o que a etnicidade
descobre: uma língua, uma cultura, um vínculo histórico, um pertencimento a uma
comunidade nacional específica. A imposição dessa vontade do Estado através de
uma artificialização legalmente constituída universaliza e induz à marginalização das
culturas menores, levando a um pensamento e estilo de vida uniforme, que é uma
ameaça à diversidade cultural. Contudo, uma característica marcante da sociedade
moderna é sua rápida transformação de comunidades monoculturais, monoétnicas
e monorreligiosas para comunidades multiculturais, multiétnicas e multirreligiosas e
isso afeta profundamente o tradicional conceito de cidadania.
Como consequência, surge uma tendência à fragmentação da cidadania, isto é,
a cidadania deixa de ser, no interior de cada Estado, um conjunto fechado, completo
e homogêneo de faculdades e direitos que se atribuem por igual a cada um dos
membros da comunidade política. Essa fragmentação, supõe a incorporação do
princípio da diferença, que com vigor foi reivindicado pelas teorias pós-modernas,
embora essa diferença seja introduzida de forma diferente quanto à diferenciação.
E como bem observa Campuzano, frente a concepção homogênea e igualitária da
cidadania como um status único dos membros da comunidade, situados em pé
de igualdade, a sociedade atual gera tendências à diferenciação que traduzem a
necessidade de ajustar a atribuição das faculdades e direitos em função das posições
diferenciadas dos membros da comunidade política. Isso se traduz em uma crise no
conceito de cidadania, cujos perfis se diluem, se evaporam e se desconfiguram.133
A cidadania, então, deixa de ser concebida em termos monistas, como o
centro de imputação de direitos e deveres nas relações jurídicas entre indivíduos e
Estado para adquirir um estatuto mais difuso, indefinido e enodoado, com contornos
indefiníveis. Mas, este colapso da cidadania decorre, indubitavelmente, de uma crise
maior que atinge o Estado-nação como modelo jurídico-político, uma crise que atinge
em cheio o direito e a política, consequentemente a participação, a democracia e os
direitos humanos.
Os fatores que desencadearam estas mutações são diversos. As profundas
transformações derivadas da consolidação da sociedade globalizada facilitaram a
prevalência da condição de consumidor em relação a de cidadão; a progressiva

132 SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica de la razón indolente. Contra el desperdício de la experiencia. Bilbao:
Desclée, 2003.
133 CAMPUZANO, Alfonso de Julios. Os desafios da globalização. Modernidade, cidadania e direitos humanos.
Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2008. p. 70.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
64 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

privatização do espaço público acabou transformando os direitos do cidadão em


direitos do consumidor, pelo que a existência sócio-política e a correlativa titularidade
dos direitos vêm determinada pela capacidade de consumir, isto é, do status
econômico. A desigualdade impõe a exclusão de pessoas, de grupos sociais e
inclusive, de povos inteiros.134
Mais especificamente, são os movimentos migratórios associados ao fenômeno
globalizador os que de uma forma mais intensa desafiam os pressupostos básicos
da concepção clássica de cidadania: a nacionalidade e a homogeneidade étnica,
cultural e religiosa. A ruptura do mito da homogeneidade no Estado-nação, que nos
conduz a uma era de “diferenças entrelaçadas”, onde se exige uma vigência plena do
direito de igualdade com o reconhecimento das diferenças e da diversidade cultural
bem como ao questionamento do tradicional vínculo nacionalidade-cidadania.
A cidadania define o modo de pertencer dos indivíduos na comunidade
política. O pertencimento, o estatuto da cidadania, qualquer que seja sua natureza
(adquirido pelo nascimento ou por relação contratual) constitui a condição de direito
que reconhece o acesso do indivíduo na comunidade civil de direitos, obrigações e
deveres, igualmente compartilhado pelos cidadãos. Como aponta Rosales,

la ciudadanía capacita al individuo (en el sentido de dar derecho)


a participar en la vida política de la comunidad. Es capacitación
igualitaria en la medida en que parte del reconocimiento de la igual
capacidad cívica de todo ciudadano a actuar políticamente. Pero lo es
también universalista, en la medida en que significa la participación de
un estatuto universalista de derechos, normativamente compartido por
cada individuo, en razón de su misma humanidad.135

Especialmente este segundo aspecto da cidadania é que levou, nos últimos anos,
a analisar-se o significado de cidadania nos termos da tensão entre pertencimento e
a exclusão. Destaca Rosales que, se o pertencer, ao menos na ordem democrática,
deve estar legitimado pela orientação inclusiva ou universalista, é justo o critério que
lhe confere valor enquanto modo de associação civil. Daí que a tensão não pode ser
resolvida sem a universalização dos direitos de cidadania, complementada por uma
universalização das possibilidades reais ou materiais para seu exercício.
Como já destacamos, a cidadania grega, o estatuto daqueles que viviam com
plenos direitos políticos na polis, estava restrito a uma reduzida parte do corpo social:
os varões adultos, livres e economicamente autônomos. Tratava-se de uma cidadania
comunitária. A cidadania grega era concebida como uma comunidade de interesses

134 DULCE, Maria José Farinas. Mercado sin ciudadanía. Las falácias de la globalización. Madrid: Biblioteca
Nueva, 2005. Ver também JIMÉNEZ, Carlos Arce. La ciudadanía en la era de la globalización: el reto de la
inclusión. Madrid: Editorial Universitaria Ramón Areces, 2009.
135 ROSALES, José Maria. Política, ciudadanía y pluralismo: un argumento sobre las transformaciones de la
esfera pública democrática. In: Anuário del Filosofia del Derecho. Tomo XIV. Madrid: BOE-Ministerio de
Justicia, 1997. p. 286-287.
a cidadania
65

políticos, mas também como uma comunidade de laços morais, coesionada pelos
cidadãos que obedeciam a autoridade de uma lei comum.
Durante o período da República Romana (do séc. VI ao I a.C.) surgiram diversas
tentativas de se estender o estatuto da cidadania aos territórios conquistados; mas
a definitiva abertura cosmopolita de direito de cidadania se produziu na época do
Império, nos primeiros séculos de nossa era. O antigo direito das gentes abandona
a concepção dualista que diferenciava os cidadãos de Roma dos cidadãos de
províncias, em busca de uma concepção integradora. O ius gentium aparece então
como a continuidade lógica do ius civile. Esta expansão possui um efeito igualitário
ao propiciar uma equiparação progressiva de direitos entre os cidadãos de Roma e
os súditos das províncias. A abertura cosmopolita da cidadania romana representa a
culminação igualitária e universalista da cidadania grega.
O espírito das fórmulas de representação do republicanismo é assumido na
Idade Média pelos primeiros regimes parlamentaristas que ampliam o sistema de
representação até incorporar, junto à representação política, a representação dos
interesses privados.
Finalmente, o problema da complexidade é resolvido pela política moderna,
mediante a transformação do modelo de Estado tardo-medieval, isto é o modelo
dos principados ou das repúblicas comunais, no Estado representativo, baseado
no princípio da mediação representativa de toda ação política. A ideia de cidadania
então, deixa de estar associada com o ideal de participação direta na comunidade
e recupera o ideal da participação em um estatuto igualitarista e universalista de
direitos.
As migrações internacionais massivas trazem o problema da própria extensão
da cidadania em comunidades políticas democráticas, autoproclamadas inclusivas.
A pressão torna não defensável manter políticas de naturalização baseadas
fundamentalmente em critérios nacionalistas e econômicos. A contradição obriga a
redefinir-se no seio das sociedades democráticas as condições para o pertencimento
na comunidade política. Como destaca Rosales,

la orientación universalista e inclusiva de la ciudadanía democrática


entra así en conflicto con la limitación que impone la política vigente
del reconocimiento. Por otra parte, las demandas de reconocimiento
del pluralismo incorporan cada vez más componentes de carácter
cultural, étnico y nacional, que obligan a reconsiderar a la luz de los
cambios las bases de la convivencia .social.136

Trata-se do problema de encontrar um novo equilíbrio entre o crescimento do


pluralismo pelo próprio desenvolvimento da cidadania democrática e a manutenção

136 Idem, p. 303.


Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
66 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

da governabilidade pela adoção de uma política de reconhecimento.


A quebra de todos esses pressupostos faz patente que uma cidadania construída
sob os parâmetros dos séculos XIX e XX, não responde aos desafios das sociedades
do novo milênio. A clássica distinção entre cidadania liberal, social, comunitarista
e republicana está superada pelas mudanças ocorridas: estamos assistindo a uma
transformação interna dos Estados como unidades territoriais soberanas, postas em
manifesto na profunda inter-relação entre as instituições do Estado com as instituições
da sociedade civil; pela mudança do modelo de Estado de bem-estar, consequência
da crise do sistema financeiro e econômico mundial; a necessária redefinição do
Estado no cenário da política global, submetido aos vais e vens de reivindicações
nacionalistas por um lado, e por outro, as formas de soberania supra-nacionais, por
exemplo, a cidadania da União Europeia, devendo reconhecer que suas normas não
são as que “possuem a última palavra” nos confins de seu território, a globalização
impera em tudo, da economia às comunicações.
As mudanças jurídicas também são importantes: já não é a lei a última instância
de referência, mas a Constituição e seu intérprete, os Tribunais Constitucionais
assumem um renovado protagonismo. O jusnaturalismo, o positivismo, o realismo,
o neo-constitucionalismo, o pós-positivismo, correntes que vão se sucedendo
progressivamente, e sobre as quais os teóricos do direito se pronunciam, dialogam,
se enrodilham, polemizam e vão tecendo os diversos elementos que articulam e
formam o Estado.
Convém, então, que nos ocupemos de alguns conceitos básicos que evidenciam
que não basta “ser aficionado” pela constituição, pela democracia ou pela cidadania.
Para que o conteúdo que reflete cada um desses termos alcance seu verdadeiro
significado, requer-se um minimum de virtude.

1.4 A experiência europeia

Corroborando o pensamento de Montesquieu – “A Europa não passa de


uma nação composta de várias” – a ideia de Europa unida somente surge com a
revolução Francesa e o Império Napoleônico onde, contudo, se mantém vaga e frágil,
camuflando uma expansão nacional mais que federando Estados ou povos.137
É com o fim da Segunda Guerra Mundial que os Estados europeus que
participaram nos conflitos bélicos decidem construir uma Europa unida, procurando
utilizar uma melhor situação econômica como instrumento de salvaguarda da paz.

137 Ensina Duverger, que o termo Europa somente possuía sentido geográfico para os gregos e romanos da
antiguidade, a palavra não era utilizada em sentido político. César não a empregava. Virgílio, Horácio, Salústio,
Tácito, Apiano e mesmo mais tarde Santo Agostinho falam dela esporadicamente. O Império Romano não era
europeu, não englobava a Escandinávia, a Polônia e a maior parte da Alemanha, mas estendia-se por todo o
contorno do Mediterrâneo africano e asiático. DUVERGER, M. Europe des Hommes. Paris: Odile Jacob, 1994.
p. 23.
a cidadania
67

Para Casela, a passagem do ideal europeu à realidade histórica poderia definir-se por
dois discursos: o de Winston Churchill, na Universidade de Zurich em 19 de setembro
de 1946, e a Declaração de Schuman, de 9 de maio de 1950, com a correspondente
aceitação do governo alemão.138
A realidade histórica inicia em 18 de abril de 1951, quando é constituída a
Comunidade do Carvão e do Aço,139 se consolida politicamente em 1986 com
a Comunidade Europeia até chegar a uma cidadania europeia com o Tratado de
Maastricht em 1992.
Entretanto, a proteção dos Direitos Humanos na Europa é anterior e possui
como base a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, firmada em 1950 e vigente
desde 1953. A Comissão Europeia de Direitos Humanos está composta por um
número de membros igual ao de Estados-partes da Convenção e possui funções
de supervisão quase judiciais, examinando queixas apresentadas a propósito do
cumprimento das obrigações dos Estados com relação aos direitos protegidos.
Não possui função normativa, incumbe-lhe, em primeiro lugar, a tarefa de filtrar
as comunicações recebidas, de acordo com critérios de admissibilidade bastante
rígidos, dentre os quais se destaca o esgotamento dos recursos internos. Quando o
Comitê de Ministros, na qualidade de órgão político, determina que houve violação
à Convenção, é fixado um prazo para que o Estado implicado tome as medidas
necessárias para a reparação. Eventual omissão do Estado acusado pode levar o
Comitê a tomar o assunto público, possui, ademais, o poder de proceder à expulsão
de um Estado-membro que não garanta a todas as pessoas sob sua jurisdição, o
gozo dos direitos humanos.
Também o supranacional Tribunal Europeu de Direitos Humanos exerce jurisdição
sobre todos os países membros da comunidade. Dentre as características mais
importantes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pode-se destacar que,
tecnicamente trata-se de um Tratado Internacional e, assim sendo, suas disposições
possuem força obrigatória e vinculante para os Estados signatários, o que os obriga
a alterar sua própria legislação interna para ajustar-se às disposições estabelecidas.
Ainda assim, o indivíduo, ou as organizações não governamentais, podem iniciar
um procedimento contra o governo que, a seu juízo, seja responsável por violação a
qualquer dos direitos reconhecidos pela Convenção.140
Mas o excepcional avanço se deu com o tratado de Maastricht, que introduziu

138 CHUCHILL, W. S. The Sinews of peace: Poswar Speeches, Londres: Cassel & Co., 1948; FOERSTER, R. H.
Die Idee Europa 13OO-1946: Quellen zur Geschichte der politischen Einigung. Munique: DTV, 1963, p. 253-
257. A declaração de Schuman é reproduzida e comentada por Fontaine. P., In: Uma nova ideia de Europa.
Luxemburgo: Serviço de Publicacões Oficiais das Comunidades Europeias. apud CASELA, Paulo Borba
Comunidade Europeia e seu Ordenamento Jurídico, São Paulo: LTr., 1994. p. 68-69.
139 Tratado que entra em vigor em 25 de julho de 1952.
140 MARTÍN, Nuria Belloso. El control democrático del poder judicial en España. Curitiba/Universidad de Burgos:
Moinho do Verbo, 1999. p. 33.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
68 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

novos artigos ao Tratado da Comunidade Europeia, criando a cidadania europeia.


A partir de 1992, os nacionais de qualquer Estado-membro passam a ser cidadãos
europeus, pelo que seus direitos passam a valer em toda comunidade europeia, e não
somente a liberdade de ir e vir e fixar residência – o que na prática já se reconhecia –
mas o próprio direito à participação política. Qualquer cidadão europeu pode exercer
seu direito ativo ou passivo em eleições municipais no Estado onde esteja residindo,
independente de sua nacionalidade. Com isso, criou-se um laço efetivo e direto entre
a integração europeia e a participação cidadã.141
Com a criação de uma cidadania europeia, outorgam-se direitos civis e políticos
concretos, exigíveis em toda comunidade. O Estatuto da Cidadania da União Europeia,
em seus artigos 8B a 8D, cita expressamente uma série de direitos e deveres que afeta
a todos os nacionais dos Estados-membros. Alguns desses direitos, como a livre
circulação e residência, o direito ao sufrágio nas eleições ao Parlamento Europeu e
o direito de petição ante o Parlamento Europeu, já existiam no Direito Comunitário,
outros, contudo, são novos, como é o caso do direito ao sufrágio ativo e passivo
nas eleições municipais, o direito à proteção diplomática e consular e o direito de
reclamação ante o defensor do povo europeu.
O novo cidadão europeu passa a desfrutar, em toda a comunidade, de direitos
civis e socioeconômicos relacionados com sua condição de cidadão da União
Europeia. E importante, a condição de cidadão europeu não pretende substituir a
nacionalidade de cada Estado e sim complementá-1a, como expressa o art. 17 do
Tratado de Amsterdã, de 02 de outubro de 1997, que entrou em vigor em 1º de maio
de 1999: “Cria-se uma cidadania da União. Será cidadão toda pessoa que ostente a
nacionalidade de um Estado-membro. A cidadania da União será complementar e não
substitutiva da cidadania nacional”. Assim, a cidadania europeia não é na realidade
uma nova cidadania – o que daria ao cidadão europeu dupla cidadania – mas sim um
status privilegiado do qual gozam os nacionais de qualquer Estado membro da União
Europeia, quando em território de outro Estado da União; além de uma garantia em
dobro de respeito aos direitos humanos, pois esta nova situação se estabelece com
o objetivo de “reforçar a proteção dos direitos e interesses dos nacionais” (art. B).
Superpõe-se aos conceitos de nacionalidade dos Estados membros; os incorpora,
mas sem homogeneizá-los.
Após um tropeço que foi o fracasso na aprovação de uma Constituição Europeia,
um novo tratado seria firmado entre todos os membros da União, em Lisboa em 13 de
dezembro de 2007. Este tratado – que reforma o funcionamento da União Europeia
– evita a palavra ‘constituição’, mas recupera muito do que estava previsto naquele
documento que não logrou aprovação e que se constituiu em ponto de partida para

141 Ver MARTÍN, Nuria Belloso. La doble protección de los Derechos Humanos en Europa: el Consejo de Europa
y la Unión Europea. In: COSTA, Marli M. M. da e outras (Coord.). Direito, cidadania e políticas públicas. V. III
Porto Alegre: UFRGS, 2008. p. 91-128.
a cidadania
69

as novas negociações.142
O Tratado de Lisboa, já ratificado por todos os membros da União Europeia,
constitui mais um significativo avanço. Incorpora à União, mais democracia, mais
eficácia, mais participação no âmbito global e mais solidariedade. Além de ratificar
todos os direitos e garantias já previstas nos Tratados de Maastricht e Amsterdã, definiu
que a Carta de Direitos Fundamentais da Europa possui força jurídica vinculativa a
todos os membros, atribuiu um papel mais importante para o Parlamento Europeu,
além de criar a possibilidade de proposição de diretivas comuns à União por iniciativa
popular. Merece também referência que o Tratado atribui especial destaque à
importância de consultas e diálogos constantes com a sociedade civil, associações,
igrejas, organizações e demais organizações populares.
A Europa iniciou seu caminho. A manutenção da nacionalidade, quando se
trata da cidadania europeia, é uma forma de reconhecer as diferenças, preservá-las,
respeitá-las e mantê-las. A cidadania europeia garante ao cidadão a universalidade
dos direitos fundamentais, a nacionalidade lhes garante as diferenças. Não há dúvidas
da evolução e progresso quanto às conquistas sociais, econômicas e políticas, mas
ainda há um longo caminho até a utopia da cidadania plena e universal.
A Europa dos cidadãos ainda necessita vencer algumas dificuldades como
sedimentar seu novo conceito e, efetivamente constituir uma cidadania europeia.
Lembra Rosales que discutir-se sobre a dimensão cívica ou cidadania da Europa política
não é suficiente para provar que exista um público de cidadãos. Na verdade, "solo
existen públicos nacionales, los públicos de cada país miembro de la Unión Europea.
Tampoco comparten una identidad comúm ni, hasta el momento, un proyecto político
de sociedad.143 Lembremos, ainda, que na Europa tem sido crescente a xenofobia
e os conflitos étnicos ressurgem em lutas por nacionalismo; sérias dificuldades a
serem superadas.
Por fim, permitindo-nos sonhar, queremos crer que talvez a Europa, rechaçando
a opção radical de Ferrajoli – eliminar por completo o conceito de cidadania –144
esteja dando início à utopia de Kant descrita em seu ensaio A Paz Perpétua de
1795. A instauração de um Federalismo Mundial com um Estado de Direito Social
e Democrático. Esta Federação de paz (foedus pacificum) iniciaria na Europa e se
espalharia pelo mundo, levando os homens a cumprir seu destino que é a felicidade
de todos em um mundo de eterna paz. Admitindo-se esta alternativa, assevera Peces-

142 E, como bem diz Luzárraga, “la eliminación del término ‘constitución’, no significa que ésta no lo sea. Una
constitución no lo es porque así se llame sino por lo que regula. Y en este sentido si, el contenido de la antigua
Constitución y el tratado de Reforma es muy similar, solo un cambio de nombre no va a alterar substancialmente
su naturaleza”. LUZÁRRAGA, Francisco Aldecoa; LLORENTE, Mercedes Guinea. La Europa que viene: El
tratado de Lisboa. 2. ed. Madrid-Barcelona-Buenos Aires: Marcial Pons, 2010. p. 32.
143 ROSALES, José María. Ciudadanía en la Unión Europea: Un Proyecto de cosmopolitismo cívico. In:
CARRACEDO, José Rubio; ROSALES, José María; MÉNDEZ, Manuel Toscano. Ciudadanía, Nacionalismo y
Derechos Humanos. Madrid: Trotta, 2000, p. 47.
144 FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantías. La ley del más débil. Madrid: Trotta, 2004. p. 119.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
70 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Barba, para a consecução do objetivo final, faz-se necessário a manutenção de um


Estado nacional democrático-liberal bem como a ideia de cidadania, mas neste novo
modelo ampliando-se seu conceito à universalidade. 145

1.5 Uma nova cidadania

Está claro que há um abismo entre direitos humanos e cidadania. Mas não
podemos nos esquecer de que ambos possuem a mesma fonte e que apesar da
contradição intrínseca, são complementares e dificilmente um pode subsistir sem
o outro. O conceito de cidadania vinculado a uma nacionalidade, restrita ao âmbito
territorial de um Estado, quase sempre em oposição a outro, é incompatível com o
princípio da dignidade humana, e deve ser superado porque "se ha convertido en
fuente de profundas discriminaciones”.146 Assim, nos últimos anos começa a surgir
uma nova concepção de uma cidadania; uma concepção universal, que efetivamente
inclua a todos. Na verdade trata-se de um (re)surgir, pois que a ideia de uma cidadania
universal, que inclua a todos, onde direitos humanos e cidadania efetivamente teriam
o mesmo significado, inicia com aos pensadores estoicos. Vejam-se os escritos de
Plutarco, referindo-se a Zenon:

A admirável República de Zenon, o fundador da escola estoica, possui


fundamentalmente um único princípio: que não vivemos em cidades
nem em países separados uns dos outros por leis particulares, mas sim
que consideramos a todos os homens compatriotas ou cocidadãos, e
que haja um só mundo e ordenamento com uma multidão associada,
constituída e obediente a uma lei comum.

E conclui: Esto escribió Zenón representando selo como un sueño o imagen de


un buen ordenamiento y República para el filosofo.147
A ideia universalista de uma só pátria e direitos comuns a todos os homens
também se encontra em De Finibus, de Cícero:

Y creen que el mundo está gobernado por la voluntad de los dioses, y


que es como una ciudad y un Estado común de los hombres y de los
dioses, y cada uno de nosotros es parte de este mundo; por lo que
sigue por naturaleza que enteponemos la utilidad común a la nuestra.
148

145 PECES-BARBA, Gregório Martínez. Educación para la Ciudadanía y Derechos Humanos. Madrid: Espasa,
2007. p. 355.
146 GARCIA, Eusebio Fernández. Ciudadanía cosmopolita y obediencia al derecho. In: MIRALLES, Ángela Aparisi.
Ciudadanía y persona en la era de globalización. Granada: Comares, 2007. p. 171.
147 PLUTARCO, Discursos I, II. Sobre la Fortuna o la virtud de Alejandro Magno, I, 6. In: PECES-BARBA, Gregório
Martínez. Educación para la ciudadanía y derechos humanos. Madrid: Espasa, 2007. p. 312.
148 Idem.
a cidadania
71

A semente já há muito estava plantada, mas é na modernidade que se inicia


concretizar a utopia.
Como vimos, o desenvolvimento e a conquista da moderna cidadania
ocorreram em diversos contextos históricos, sociais e institucionais e a obtenção da
cidadania por meio da luta, principalmente pela luta de classes, reflete não somente
as necessidades – sociais em geral – das classes mais baixas, mas também a
necessidade de segurança das classes dominantes. Para vencer essas etapas foram
séculos de evolução e de lutas. Muitas gerações pereceram para que alcançassem
o nível atual. Temos, pois, a obrigação de consolidar e aperfeiçoar este legado para
as próximas gerações: de se entender a cidadania não mais como algo homogêneo,
uniforme e restrito a um território; a utopia é pela cidadania universal e multicultural.
É visível que a concepção de uma nova cidadania está brotando. Ela não se opõe a
ideia clássica de cidadania como defesa de direitos individuais e coletivos, não libera
a luta coletiva para conquistar mais direitos, mas assume o combate pela conquista
de direitos, inclusive o direito a ter direitos e de construir novos direitos. Mas não se
centra mais na ideia de que o Estado é o grande e único responsável pela felicidade
dos seus cidadãos. Cada um deve fazer sua parte e todos devem participar.
Cidadania pressupõe democracia, liberdade de manifestação, de contestação,
respeito a todos integrantes da comunidade, aos seus credos, aos seus valores,
as suas culturas. Mas não somente os regimes autoritários inibem o exercício da
cidadania. Mesmo nas democracias, o assistencialismo, o paternalismo e a tutela do
Estado aceitos que são pela maioria das pessoas por comodismo, tampouco permitem
o desenvolvimento de uma cidadania plena, porque a cidadania plena não pode dar-
se ou outorgar-se, somente se alcança pela participação, pela luta e empenho dos
próprios indivíduos interessados. O paternalismo institucional desmobiliza e debilita a
efetiva conquista desse status. Porém, a lei do menor esforço é ainda a mais seguida
em todo o mundo. De uma maneira geral, as pessoas consideram que a cidadania
está definida exclusivamente em seus direitos individuais e nos deveres do Estado;
esquecem-se de seus próprios deveres e de sua responsabilidade na participação
política, no exercício de sua liberdade e na obrigação para com os demais cidadãos.
A participação é fundamental, e a primeira etapa a vencer-se é acabar com
qualquer forma de exclusão social, pois com a exclusão social não pode haver
cidadania, ninguém pode ser verdadeiramente cidadão na presença de um não
cidadão. Se existem excluídos da cidadania, então, os direitos dos incluídos – mesmo
aqueles duramente conquistados – tenderão a parecerem privilégios.
Vencida a primeira etapa, a da exclusão social, a próxima é a de acabar com as
demais exclusões – tão graves como a primeira – culturais, étnicas, sociais – há que se
universalizar a cidadania e universalizar a cidadania significa o oposto de nacionalizá-
la, é o reconhecimento da existência de gêneros, etnias, religiões, culturas. É garantir
a cada individuo a participação plena em seu grupo e ao grupo a plena participação
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
72 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

na comunidade maior – não necessariamente nacional.


Esta nova cidadania, Carracedo denomina de cidadania complexa, que permite
construir uma identidade comum fundamental dentro de uma legítima diferenciação
étnico-cultural como indivíduos e como grupo com identidade própria e irrenunciável,
e para alcançá-la é necessário a assistência de uma tríplice exigência: 1) direitos
fundamentais iguais a todos os cidadãos, o que implica em uma política universalista
de integração de pontos mínimos comuns e irrenunciáveis; 2) direitos diferenciados
para os grupos, seja de maiorias, seja de minorias, o que implica em uma política
de reconhecimento das diferenças; e 3) condições mínimas de igualdade para a
dialética ou diálogo livre e aberto dos grupos socioculturais, o que conduzirá a uma
política multicultural, que inclui dispositivos de discriminação inversa (para igualar as
condições de partida). Estamos convencidos que a busca de justiça leva a reduzir a
níveis mínimos a generalidade das leis, pois esta será mais bem alcançada mediante
um tratamento diferenciado.149
Entretanto, há ainda um longo caminho para concretizarmos o ideal da cidadania
universal. No Brasil, mesmo a simples ideia de cidadania nacional parece distante. A
exclusão social e cultural de uma grande parcela da população, o conservadorismo
vigorante no imaginário popular agregado a políticas públicas equivocadas,
paternalistas e eleitoreiras, a taxação injusta de impostos e os privilégios de grupos
são os principais obstáculos a superar. Mamede, em seu trabalho Hipocrisia: O mito
da cidadania no Brasil, refere-se a três grandes obstáculos: (1) o sistema jurídico
brasileiro não possui uma ampla definição de possibilidades para uma efetiva
participação popular-consciente; (2) a postura excessivamente conservadora dos
operadores jurídicos e (3) a profunda ignorância: a maioria dos brasileiros não possui
os mínimos conhecimentos sobre seus direitos e de como exercê-los.150
Entretanto, a Constituição de 1988 representa um grande avanço quando, já em
seu artigo 1º, expressa como fundamento do Estado a cidadania e a dignidade da
pessoa humana. De vários dispositivos constitucionais e mesmo infraconstitucionais,
é possível extrair-se uma nova concepção de cidadania: cidadão é o indivíduo
que integra a sociedade. Mesmo os absolutamente incapazes e os condenados
criminalmente são cidadãos, portanto merecedores da proteção do Estado. Assim
que, o conceito de cidadão, na nova ordem constitucional, possui um sentido diverso
daquele tradicional associado à ideia de eleitor. A cidadania tem agora um sentido
mais amplo que o titular de direitos políticos, pois “qualifica os participantes da vida
do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade estatal”.151 Portanto, os

149 ROSALES, José María; CARRACEDO, José Rubio. El nuevo pluralismo y la ciudadania compleja. In: Sistema,
126, 1995. p. 57-58.
150 MAMEDE, Gladston. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. In: Revista do Curso de Direito da Universidade
Estadual de Montes Claros, v. 16, 1997. p. 4.
151 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 101.
a cidadania
73

direitos de cidadania passam a serem todos aqueles relativos à dignidade do cidadão,


seja ele eleitor ou não.

1.5.1 A crise migratória na Europa

A Europa, desde seu início, sempre foi um continente receptivo a imigrantes e


refugiados. Nos últimos três anos tem sofrido a pior crise migratória desde o fim da
Segunda Guerra Mundial. No verão de 2015 a cifra de imigrantes e solicitantes de
asilo havia superado 350.000 pessoas.152
Para enfrentar os desafios que gera esse tipo de mobilidade internacional, a
União Europeia (EU) deveria desenvolver políticas comuns em matéria de imigração
e um sistema europeu comum de asilo para proteger os que buscam refúgio por
perseguição ou graves riscos de violação de seus direitos fundamentais em seus
países de origem. A falta de uma verdadeira política comum de asilo fez com que
cada país aplique sua legislação nacional. Falar de asilo e refúgio significa reivindicar
a proteção do gênero humano e nisso se encontra uma estrita vinculação com os
direitos humanos e a dignidade da pessoa humana,153 entendendo-se esta como
“el portal a través del cual el contenido universal igualitario de la moral se importa el
derecho”.154
A responsabilidade com respeito à proteção dos refugiados e de todas as
populações imigrantes recai principalmente sobre o governo do país que os acolhe.
A combinação entre um incremento notável do número de imigrantes nos últimos
anos – principalmente motivado por guerras e conflitos em seus países de origem
– unido à crise econômico-financeira em boa parte dos Estados, levou a inúmeros
países da União Europeia, não só a se negar receber refugiados como inclusive a
questionar a livre circulação de pessoas no território da UE. A livre circulação de
pessoas, permitido pelo Tratado de Schengen, não pode ser mantida se não houver
um controle das fronteiras exteriores.155

152 EUROPOP2013 (European Population Projections, base year 2013). Ver: <http://ec.europa.eu/eurostat/data/
database>; <http://ec.europa.eu/eurostat/web/population-demography-migration-projections:> <http://
ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/File:Immigration_by_citizenship,_2014_(%C2%B9)_
YB16.png>; <http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Migration_and_migrant_
population_statistics>. Acesso em: 02 jan. 2017.
153 DE LUCAS, J. Fundamentos filosóficos del derecho de asilo, Derechos y libertades: Revista del Instituto
Bartolomé de las Casas, n. 4, 1995, p. 23-56. Do mesmo autor: Puertas que se cierran. Europa como fortaleza,
Barcelona, Icaria, 1996.
154 HABERMAS, J. La idea de dignidad humana y la utopía realista de los derechos humanos. Anales de la
Cátedra Francisco Suárez, n. 44, Universidad de Granada. 201, p. 111.
155 O espaço e a cooperação Schengen se baseiam no Tratado Schengen de 1985. Refere-se a um território
onde está garantida a livre circulação de pessoas. Os Estados que firmaram o Tratado suprimiram todas as
fronteiras interiores e, estabeleceram uma única fronteira exterior. Dentro desta se aplicam procedimentos e
normas comuns no que se refere a vistos para estadias curtas, as solicitações de asilo e controles fronteiriços.
Ao mesmo tempo, se intensificou a cooperação e a coordenação entre os serviços policiais e de autoridades
judiciais para garantir a segurança dentro do espaço Schengen. A cooperação Schengen foi integrada no
direito da União Europeia pelo Tratado de Amsterdã em 1997. Contudo, nem todos os países que participam na
cooperação Schengen são membros do espaço Schengen, ou porque não desejavam suprimir os controles de
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
74 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

1.5.1.1 Precisões conceituais sobre imigrantes, refugiados e solicitantes de asilo

Para a Federação Internacional de Sociedades da Cruz Vermelha e da Meia


Lua Vermelha,156 as populações desalojadas abandonam seu lugar de residência
habitual em movimentos coletivos, devido, geralmente, a um desastre repentino –
como um terremoto, ou uma inundação – a uma ameaça ou a um conflito armado,
como mecanismo de superação da situação e com a intenção de regressar. Ainda
que a migração e o desalojamento estejam inter-relacionados, deve-se distingui-los.
A situação das populações desalojadas , seja através de fronteiras (como a
afluência de refugiados) ou dentro de seus próprios países, devido a um desastre ou
conflito armado, exige geralmente a ação de operações de socorro juntamente com
ações orientadas a encontrar soluções coletivas e duradouras. A migração, por sua
vez, exige atos e ações de assistência social, proteção jurídica e apoio às perspectivas
futuras, mas de forma individualizada.
Imigrantes e refugiados constituem duas realidades distintas, mas compartilham
um objetivo comum: empreender uma nova vida em um lugar melhor. Contudo, uns
fogem por razões políticas e outros por razões econômicas. O problema reside,
muitas vezes, em diferencia-los, sobretudo quando o país de origem é um lugar de
conflitos e também de problemas econômicos.
Assim é importante esclarecer a diferença entre refugiado e migrante, já que,
normalmente, estes termos são usados como sinônimos, o que efetivamente não
o são.157 E não se trata de uma mera retórica de conceitos, mas os resultados da
confusão entre a categoria de uns e outros, incide nas medidas que se adotam a
respeito (a deportação ou expulsão de um refugiado agrega uma alta probabilidade
de morte quando chegar de volta ao país de onde saiu fugindo).
Inicialmente, os migrantes escolhem transladar-se não por causa de uma
ameaça direta de perseguição ou morte, e sim principalmente para melhorar suas
vidas ao encontrar trabalho, educação, reunificação familiar ou por outras razões.
Diferentemente dos refugiados, que não podem voltar a seus países, os migrantes
continuam recebendo a proteção de seu governo. Um imigrante é aquela pessoa
que imigra, isto é, que chega a outro país para estabelecer-se, Muitos desses

suas fronteiras ou porque não reuniam as condições requeridas para aplicar toda regulamentação prevista. As
principais normas aprovadas dentro do espaço incluem: 1) a supressão do controle de pessoas nas fronteiras
interiores; 2) um conjunto de normas comuns de aplicação às pessoas que cruzam as fronteiras exteriores
dos Estados membros da EU; 3) a harmonização das condições de entrada e de vistos de curtas estadias; 4)
uma melhora de coordenação policial (incluídos os direitos de vigilância e perseguição transfronteriça); 5) o
incremento da cooperação judicial através de um sistema de extradição mais rápido e uma maior agilidade
na execução de sentenças penais; 6) a criação de um sistema de Informações Schengen (SIS). In: <http://
eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri=URISERV%3Al33020>.
156 <http://www.cruzroja.es/portal/page?_pageid=174,12048652&_dad=portal30&_schema=PORTAL30>.
Acesso em: 02 jan. 2017.
157 PRONER, C.; QUEIROZ BARBOZA, E. M.; GUALANO DE GODOY, G., Migrações - políticas e direitos humanos
sob as perspectivas do Brasil, Itália e Espanha. Curitiba: Juruá Editora, 2015.
a cidadania
75

imigrantes – geralmente os que não possuem documentos – podem ser deportados,


e transportados de volta a seu país de origem. As causas da fuga podem ser muitas
e variadas: desde a pobreza, a falta de emprego ou a busca de outro futuro. Se
decidirem por voltar, continuam contando com a proteção de seu governo de origem.
Para os governos esta distinção é importante. Os países tratam aos imigrantes
de acordo com sua própria legislação e procedimentos em matéria de imigração,
enquanto tratam aos refugiados aplicando normas sobre o direito de asilo e a proteção
subsidiária,158 que estão definidas tanto em sua legislação nacional como no direito
internacional. Os países possuem responsabilidades específicas sobre qualquer
pessoa que solicite abrigo em seu território ou em suas fronteiras.
Um dos problemas da imigração é que muitas vezes ocorre de forma irregular.
Pessoas que entram legalmente em um país, com um visto de curta duração e
permanecem por um período muito além do permitido. Também ocorre que pessoas
entrem e residam em um Estado-membro da União Europeia sem autorização,
eventualmente, inclusive, contra sua vontade. As redes de tráfico de seres humanos
podem explorar facilmente as pessoas “sem papeis” O mercado de trabalho não
declarado também atrai a imigração irregular. Para proteger os mais vulneráveis e
manter a confiança dos cidadãos nas políticas de imigração, a estratégia tem sido a
de combater a imigração irregular em todas as suas modalidades.
Por outro lado, o termo refugiado refere-se a pessoas que fogem de conflitos
armados ou de perseguições. O refugiado é alguém que foi forçado a sair de seu
país natal. Nesse sentido, os refugiados podem pedir asilo em países europeus,
um processo que poderia demorar muito tempo, seja em razão de raça ou religião.
Até que não consigam este status, estas pessoas são meras solicitantes de asilo.
Frequentemente sua situação é tão perigosa e intolerável que devem cruzar fronteiras
para buscar segurança em países próximos e então converterem-se em refugiados
com acesso a assistência dos Estados, o ACNUR e outras organizações. São
conhecidos como tal, precisamente porque não podem voltar ao seu país de origem.
Para estas pessoas, a denegação do asilo possui consequências mortais.159
Por asilo, pode-se entender uma modalidade de proteção internacional
que se concede às pessoas que fogem de seus países de origem por um temor
fundamentado de perseguição. A proteção também se concede às pessoas que
correm um risco real de sofrer danos graves se regressarem a seu país de origem. A

158 Espanha. Vid. Ley 12/2009, de 30 de octubre, reguladora del derecho de asilo y de la protección subsidiaria.
<https://www.boe.es/buscar/act.php?id=BOE-A-2009-17242&p=20140326&tn=2&lang=en>. Acceso: 2
jan. 2017.
159 O Direito internacional define e protege aos refugiados. Os instrumentos jurídicos internacionais são vários.
Como resposta às atrocidades da II Guerra Mundial, a Declaracão Universal dos Direitos Humanos (1948)
refere-se ao direito de asilo em seu artigo 14, ao expressar que “em caso de perseguição, toda pessoa tem
direito a buscar asilo e a desfrutar dele, em qualquer país”. Na mesma linha a Convenção sobre o Estatuto
dos Refugiados, aprovada em Genebra em 28 de julho de 1951 e alterada pelo Protocolo sobre o Estatuto dos
Refugiados, firmado em Nova York em 31 de janeiro de 1967, constituem as duas disposições de referência,
em nível internacional sobre o direito de asilo.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
76 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

base essencial do direito de asilo costuma ser do tipo político e sobrevivência física.
Em troca na imigração estão mais presentes as conotações de caráter econômico
pelas desigualdades existentes entre os países de origem e o receptor.160
O princípio da não devolução – non refoulement – constitui a base da instituição
do asilo tal como o apresenta a Convenção de Genebra, em seu artigo 33, que
impossibilita a expulsão ou devolução de um refugiado nas fronteiras dos territórios
onde sua vida ou sua liberdade corram riscos em razão da raça, religião, nacionalidade,
de pertencimento a grupo social ou por suas opiniões políticas, salvo nos casos em
que o refugiado se apresente como um perigo para a segurança do país ou uma
ameaça para a comunidade.
A distinção tradicional entre imigrantes econômicos e peticionários de asilo
não está absolutamente clara e difundida, o que torna mais complexo definir que
legislação deve-se aplicar (e consequentemente que direitos lhes correspondem).161
Pelo menos 3.800 pessoas perderam a vida ou desapareceram em 2016
no Mediterrâneo.162 Em resposta à tragédia humanitária que se abatia sobre o
Mediterrâneo ante a chegada de milhares de pessoas, a Comissão Europeia adotou,
ainda em maio de 2015, uma Agenda Europeia de Migração, destinada a fortalecer a
política comum de asilo. A isso se deve somar que Sistema Europeu Comum de Asilo
(SECA)163 continua em tramitação prescrevendo diretivas concretas.164

1.5.1.2 Onde ficaram os valores fundacionais da União Europeia?

Para tratar esse tema é indispensável inicialmente analisar-se qual o papel


atual dos direitos humanos na política europeia. Porque como adverte Innerarity,
corremos o risco de, pouco a pouco, os direitos humanos tornarem-se mais uma
característica de identidade do passado que uma parte do projeto futuro europeu.165
Uma Europa escarmentada por décadas de colonialismo e por graves violações de

160 Vid. MARTIN, Nuria Belloso. ¿La globalización de la indiferencia? Algunas reflexiones sobre los desplazados,
los migrantes y los refugiados en la Unión Europea. Revista do Direito, v. 3, n. 50, Programa de Pós-graduaçâo
em Direito – Mestrado – PPGD, Santa Cruz do Sul, UNISC, set.-dez. de 2016, p. 139-174. Disponível em: <https://
online.unisc.br/seer/index.php/direito/article/view/8406>; también, MARTIN, Nuria Belloso. “The refugee
crisis in the European Union: the backgroundjusphilosophical” en SPRING 2016, UNOESC International Legal
Seminar. International Network of Human Rights. September 26-30, 2016, Chapecó/SC: Editora UNOESC,
2016. p. 91-112. Disponível em: <http://editora.unoesc.edu.br/index.php/uils/index>.
161 MARIÑO MENÉNDEZ, Fernando M. "El asilo en el Derecho de la Unión Europea". In: José María Beneyto
Pérez, Jerónimo Maillo González-Orús, Belén Becerril Atienza (Coord.) Tratado de derecho y políticas de la
Unión Europea, Vol. 8, 2016 (Ciudadanía europea y Espacio de Libertad, Seguridad y Justicia), p. 159-191.
162 DOMÍNGUEZ CEBRIÁN, B. Este 2016 bate el trágico récord de migrantes muertos en el Mediterráneo. In:
Diario El País, (27.10.2016). Disponível em: <http://internacional.elpais.com/internacional/2016/10/26/
actualidad/1477493447_075762.html>. Aceso em: 02 jan. 2017.
163 Ver “Un sistema común europeo de asilo”. Disponível em: <http://ec.europa.eu/dgs/home-affairs/e-library/
docs/ceas-fact-sheets/ceas_factsheet_es.pdf>. Aceso em: 10 jun. 2016.
164 Ver TFUE, TIT. V, Capítulo 2: Políticas sobre controles nas fronteiras, asilo e imigração.
165 INNERARITY, D; AYMERICH, I. (Comp.). Derechos humanos y política públicas europeas. Barcelona, Buenos
Aireas, México: Paidós, 2015. p. 14.
a cidadania
77

direitos no século XX acabou por desembocar em uma Europa fortaleza, que levanta
muros e abre valas para preservar a qualidade de vida de seus cidadãos e já não
uma Europa defensora dos direitos humanos. O reforço das fronteiras pode ser o
primeiro sintoma dessa nova fase e a crise dos refugiados se converteu em uma
mostra evidente dessas novas ideias.
Tem-se dito que o processo de integração europeia se desenvolveu, desde o
início, sem levar em consideração o princípio da soberania popular, Os gestores da
UE são vistos, pela maioria da população como uma elite tecnocrática.166 A cidadania
europeia não é assumida por seus titulares como uma característica de identidade
sólida, e sim tida como “um conjunto de vantagens justificáveis em termos utilitaristas”
(liberdade de circulação, isenção de taxas, homologação de títulos), mas não na linha
do “patriotismo constitucional” sustentado por Habermas167: uma identificação com
a comunidade política por ser um sistema compartilhado de liberdades públicas. A
debilidade desta identidade política baseada nos direitos fundamentais tem provocado
o ressurgimento dos velhos nacionalismos excludentes, inclusive a respeito dos
próprios europeus: movimentos políticos como “Os Verdadeiros Finlandeses”, a
“Frente Nacional Francesa” e outros.
A legislação aplicável ao asilo, ao gerenciamento de fronteiras e à imigração,
no marco do Direito da União Europeia e do Convenio Europeu de Direitos Humanos
é complexa. Para se ter uma ideia, basta verificar que a UE considera umas vinte
categorias diferentes de nacionais de terceiros países, cada uma com direitos
distintos, que variam segundo os vínculos da UE com seus Estados membros. Em
alguns casos, como o dos solicitantes de asilo, a UE possui um amplo conjunto de
normas.168
O Artigo 2º do Tratado da União Europeia estabelece que:

A União se fundamenta nos valores de respeito à dignidade humana,


liberdade, democracia, igualdade, Estado de Direito e respeito aos
Direitos humanos, incluídos os direitos das pessoas pertencentes
às minorias. Estes valores são comuns aos Estados-membros em
uma sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação,
a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e
mulheres.169

Portanto, a UE se fundamenta no respeito aos Direitos Humanos. Contudo,

166 Idem, p. 15.


167 HABERMAS, J. Identidades nacionales y postnacionales. Madrid: Tecnos, 2007.
168 Manual de Derecho Europeo sobre asilo, fronteras inmigración. Agencia de los Derechos Fundamentales
de la Unión Europea, 2014. Disponível em: <http://fra.europa.eu/sites/default/files/handbook-law-asylum-
migration-borders-2nded_es.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
169 Tratado da União Europeia. Versão consolidada. Disponível em: <http://www.boe.es/doue/2010/083/Z00013-
00046.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
78 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

em relação ao ponto aqui abordado, nem o Tratado de Funcionamento da União


Europeia, nem a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia propiciam uma
definição dos termos “asilo” e “refugiado”.170 Ambos os instrumentos referem-se
especificamente à Convenção de Genebra de 28 de julho de 1951 e seu Protocolo de
31 de janeiro de 1967.

A política da EU em matéria de asilo tem por objetivo harmonizar


os procedimentos de asilo dos Estados-membros mediante a
instauração de um sistema comum de asilo, com vistas a oferecer um
estatuto apropriado a todo nacional de um terceiro país que necessite
de proteção internacional e a garantir o respeito ao princípio da não
devolução.

A luta contra a imigração ilegal é um pilar relevante nessas políticas da UE,


como se constata pela atuação da EUROPOL, ainda que fosse mais desejável que a
UE, em sua política de imigração, atuasse com mais severidade com as máfias.
O Tratado de Lisboa, de 2007, ao entrar em vigor, em 2009, trouxe importantes
modificações aos Tratados Constitutivos. Conservou algumas inovações na questão
do asilo,171 já que transformou em política comum as medidas atinentes ao tema. Seu
objetivo não é somente o estabelecimento de normas mínimas, mas a criação de
um sistema comum que inclua Estatutos e procedimentos uniformes. Esse sistema
deve compreender os seguintes elementos: a) um Estatuto uniforme de asilo; b)
um Estatuto uniforme de proteção subsidiária; c) um sistema comum de proteção
temporal; d) procedimentos comuns para conceder ou retirar o Estatuto uniforme de
asilo ou proteção subsidiária; e) critérios e mecanismos para determinar o Estado
membro responsável por examinar a solicitação; f) normas relativas as condições de
acolhida; g) associação e cooperação com terceiros países.
A chegada massiva de imigrantes e refugiados em alguns Estados membros
revelou a fragilidade de suas sociedades de bem estar, que já haviam sido duramente
atingidas pela crise econômica e as políticas de austeridade impostas pelo Governo
de Bruxelas. Cada vez são mais numerosas as reinvindicações populares para uma
revisão no Regramento de Dublin e do acervo de Schengen. Contudo se adverte que
essas atualizações não devem ocorrer a expensas das obrigações que os países
europeus possuem em matéria de proteção internacional de refugiados, nem do
regime de livre circulação de cidadão europeus.172

170 Os fundamentos jurídicos podem ser encontrados em: i) artigo 67, Inciso 2º, e artigo 78 do Tratado de
Funcionamento da União Europeia; ii) Artigo 18 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
171 Tratado de Lisboa, pelo qual se modifica o Tratado da União Europeia e o Tratado Constitutivo da Comunidade
Europeia. (2007/C 306/01). Disponível em: <https://www.boe.es/legislacion/enlaces/documentos/ue/Trat_
lisboa.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2016.
172 ONGHENA, Y. La crisis de valores: la propia Unión Europea en tela de juicio. In: MORILLAS, P.; SÁNCHEZ-
MONTIJANO, E; SOLER, E. (Coord.). Europa ante la crisis de los refugiados. 10 efectos colaterales, Barcelona:
CIDOB, 2015. p. 5-7. Disponível em: <www.cidob.org/content/download/.../europa_ante_la_crisis_de_los_
refugiados.pdf>. Acesso em: 15 jul. 2016.
a cidadania
79

A esta situação há que se agregar outros dois pontos: a política exterior da UE e


o papel da Turquia que, aproveitando-se da debilidade europeia, insiste em acelerar
sua adesão como Estado candidato a UE. Os refugiados passaram de uma carga a
um instrumento diplomático para concretizar os desejos expressos pela Turquia de
longo tempo, no sentido de integrar a União Europeia.
O posicionamento da UE frente aos que tentam entrar na Europa – refugiados
ou imigrantes – tem sido deixar que os países com fronteiras externas construam
muros, cercas, valas ou utilizem outros meios. Assim, no caso espanhol, se reforçou
as cercas de Melinha, enclave espanhol no norte de Marrocos, e se há levado a cabo
a denominada “devolução quente”, expulsão imediata dos imigrantes no momento
em que tentam cruzar, sem aplicação das proteções previstas na legislação de
estrangeiros.
Cada vez mais surgem iniciativas de fechamento de fronteiras e a aplicação
de políticas migratórias restritivas, acompanhadas de um rechaço de ideologias de
direita. As políticas de austeridade têm alimentado discursos populistas anti-europeus.
A isso tudo deve-se agregar “o alarme social do terrorismo islamita, que trata de
vincular a identidade muçulmana com uma imigração excessiva, justamente pela
abertura de fronteiras”.173 O medo do estrangeiro por temor a uma suposta perda da
identidade europeia e o crescimento dos partidos extremistas acabam se traduzindo
em uma Europa xenófoba e racista.
Como destaca Naïr:

Europa ha demostrado, sobre el hilo de la crisis económica desde


2008, y la política de austeridad que se ha elegido, su incapacidad
para solucionar el paro provocado por esta política, la exclusión del
mercado de trabajo europeo de más de 22 millones de personas, el
sacrificio de una generación entera de jóvenes.174

Diante dessa realidade deve-se ainda considerar que,

frente a la llegada de centenares de miles de refugiados, Europa


está pisoteando sus valores fundamentales de solidaridad humana,
siendo incapaz de elaborar una estrategia cooperativa de sus socios,
reportando la carga de la acogida sobre unos Estados (el griego en
particular), y capitulando ante gobiernos europeos xenófobos, es
decir, aceptando de hecho la subida del nacionalismo excluyente
contrario a sus valores fundamentales.175 El tratamiento de la cuestión

173 ONGHENA, Y. La crisis de valores: la propia Unión Europea en tela de juicio, Op. cit., p. 8.
174 NAÏR, S. Refugiados frente a la catástrofe humanitaria, una solución real. Barcelona: Editorial Crítica, 2016.
175 No dia 2 de outubro de 2016, os húngaros participaram de um referendo para decidir se aceitavam ou não o
sistema de cotas de acolhimento obrigatório de refugiados decididos pela União Europeia. Com a consulta, o
primeiro ministro, férreo opositor do mecanismo de cotas – que junto com a Eslováquia recorreu ao Tribunal
de Justiça Europeu – deixa clara sua mensagem contra a imigração e a política europeia de acolhida de
refugiados. A pergunta do referendum era: Quer que a União Europeia possa impor acolhimento obrigatório
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
80 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

de los inmigrantes es, desde este punto de vista, emblemático para


juzgar la impotencia europea.176

Há muito tempo se exige da UE a elaboração de uma verdadeira política comum


de imigração e asilo. A ideia de uma “Europa fortaleza” foi corroída ante a chegada
cada vez mais numerosa de imigrantes devido à globalização, aos desastres naturais
e aos conflitos armados que levam às perseguições de toda ordem, à miséria e à
fome. Como era um problema que afetava quase que exclusivamente aos países
de entrada na Europa, especialmente do Sul (Grécia, Itália, Espanha) a UE não se
preocupava em estabelecer esta ação política comum. A proposta de uma Política
Comum de Imigração e Asilo Sustentável e Solidário é um dos grandes desafios que
tem a UE para o século XXI.177

1.5.2 Da cidadania ambiental à cidadania ecológica

A cidadania, como conceito, trata dos direitos e deveres dos indivíduos


(normalmente) e em um território determinado (Estado). Sob sua vertente participativa,
a cidadania está normalmente associada com a esfera pública, e supõe o cultivo e o
exercício de certas virtudes.178 A este conceito de cidadania pode-se atribuir diferentes
qualificações, que darão lugar a diversas tipologias de cidadãos – as quais já nos
referimos. Por exemplo, a cidadania liberal, a cidadania republicana ou a cidadania
cosmopolita. Cada um desses tipos de cidadania enfatiza um aspecto concreto.
Assim a cidadania liberal centra-se mais nos direitos que nos deveres, a cidadania
republicana fala em uma linguagem do dever e da virtude, enquanto a cidadania
cosmopolita questiona argumentos territoriais dos outros tipos de cidadania. A noção
de cidadania ecológica, proposta por Dobson, desempenha um importante papel no
século XXI, na medida em que seu principal objetivo é buscar um desenvolvimento

de cidadãos não húngaros na Hungria, mesmo sem a aprovação da Assembleia Nacional (Parlamento)? O
resultado do referendum foi de 98% dos votos válidos de “não”. Contudo a elevada abstenção e os votos
nulos invalidaram os resultados da consulta popular promovida pelo governo Húngaro, já que não havia
alcançado o quórum mínimo necessário para sua validação.
176 NAÏR, S. Refugiados frente a la catástrofe humanitaria, una solución real, Op. cit.
177 Ban Ki-moon, secretário geral das Nações Unidas, em seu Relatório In Safety and Dignity: Addressing Large
Movements of Refugees and Migrants, de 9 de Maio de 2016, apresenta algumas recomendações para levar-
se a cabo uma ação coletiva mais eficáz em nível mundial. Entre as recomendações destaca a necessidade
de prestar-se mais atenção aos fatores que impulsionam as migrações forçadas. As Nações Unidas seguem
intensificando seu trabalho para prevenir conflitos, resolver disputas de forma pacífica e fazer frente às
violações aos direitos humanos. Para isso dispõe agora de um instrumento novo e poderoso: a Agenda 2030
para o Desenvolvimento Sustentával, um plano de ação acordado em 2016 por 193 membros da ONU, onde
se dá destaque especial na justiça, nas instituições e nas sociedades pacíficas. In: <https://refugeesmigrants.
un.org/secretary-generals-report>. Acesso em: 31 ago. 2016. A relevância desse tema para a UE fica evidente
quando esta elege a crise dos refugiados e o crescimento econômico como prioridades na cúpula do G20,
que ocorrerá no próximo dia 4 e 5 de setembro de 2017. Assegura que pedirá um incremento para a ajuda
humanitária e apoio para os refugiados e suas comunidades de acolhida através de instituições financeiras
internacionais assim como para combater a imigração irregular.
178 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica. Isegoría, n. 32, p. 47-62, 2005. Disponível em: <https://dialnet.
unirioja.es/ejemplar/128982>.
a cidadania
81

sustentável, o que constitui a pedra angular para a Economia, o Direito, a Política e a


Filosofia para os próximos anos – ao menos até o ano 2030.
Há que se diferenciar a cidadania ecológica da cidadania ambiental. Dobson
utilizou cidadania ambiental para se referir ao modo em que a relação entre a cidadania
e o meio ambiente pode ser considerada a partir do ponto de vista liberal. A cidadania
ambiental, portanto, se ocupa do assunto em termos de direitos ambientais; se exerce
exclusivamente na esfera pública; suas principais virtudes são as virtudes liberais da
razoabilidade e a predisposição de aceitar os argumentos mais convincentes, assim
como a legitimidade dos procedimentos; e sua referência se limita às configurações
políticas modeladas pelo Estado-nação.179
Já a cidadania ecológica, se ocupa dos deveres que não possuem caráter
contratual; refere-se tanto à esfera pública com à privada; centra-se na origem ao
invés da natureza do dever para determinar quais são as virtudes da cidadania; opera
com a linguagem da virtude e é, explicitamente, não territorial. Isto não significa que a
cidadania ecológica seja mais válida que a ambiental, ou totalmente diferente desta.
Do ponto de vista político, a cidadania ambiental e a ecológica são complementares,
se organizam em diferentes âmbitos, mas ambas dirigem seus propósitos na mesma
direção: a uma sociedade sustentável. Por exemplo, a inclusão dos direitos ambientais
nas constituições é uma parte tão importante do projeto político de sustentabilidade
como assumir e levar a cabo a responsabilidade ecológica.
Contudo, a cidadania ecológica é conceitualmente mais relevante que a
cidadania ambiental. Isto porque a cidadania ambiental não altera substancialmente
o conceito de cidadania; sua relação com o meio ambiente segue radicalmente uma
vertente liberal e ali se concretiza. A cidadania ecológica, ao contrário, nos obriga a
repensar as concepções tradicionais sobre cidadania.
O conceito de virtude é importante para a cidadania ecológica e assim se mantém
muito próxima à cidadania cívica republicana. Também se mantém muito próximo a
esta quando enfatiza a noção de ‘bem comum’, já que a sustentabilidade ambiental,
como objetivo social é facilmente traduzível à linguagem do ‘bem comum’. Assim
que, as duas principais tradições sobre cidadania – o liberalismo e o republicanismo
cívico – podem se integrar frutiferamente no ‘projeto’ da sustentabilidade ambiental.180
A cidadania ecológica tem como efeito global a desestabilização das noções
estabelecidas de cidadania. Até agora se costumava trabalhar sobre cidadania através
do que a teoria pós-moderna chamou de ‘oposições binárias’, entre as quais as mais
comuns são: pública e privada, ativa e passiva, direitos e deveres, territorializadas
e desterritorializadas da cidadania. Estas oposições são as que constituem a

179 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica, cit. p. 47-48.


180 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica, cit., p. 48. Dobson analiza la desterritorialidad ecológica, la huella
ecológica, la producción del espacio político, el ámbito privado en la ciudadanía ecológica, entre otras
cuestiones.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
82 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

‘arquitetura’ da teoria da cidadania. Contudo, a cidadania ecológica exige superar


essas combinações binárias na medida em que sugere que o âmbito privado é um
espaço tão legítimo para a atividade cidadã como o espaço público; quando nega a
associação habitual entre cidadania ‘passiva’ e o âmbito privado; e quando revalida
as concepções de desterritorialização da cidadania.181

El «espacio» de la ciudadanía ecológica no es, por tanto, algo


dado por las fronteras de los Estados-nación, por organizaciones
supranacionales como la Unión Europea, ni siquiera por el territorio
imaginario de una cosmópolis. Más bien es producido por las
relaciones materiales y metabólicas entre personas individuales y su
medio ambiente. Esta relación da lugar a una huella ecológica, que da
lugar, a su vez, a ciertas relaciones con aquellos a los que esa huella
afecta.
[…] Las obligaciones de la ciudadanía ecológica se extienden en el
tiempo, así como en el espacio, hacia generaciones que aún no han
nacido. Los ciudadanos ecológicos saben que sus acciones de hoy
tendrán implicaciones para las personas del mañana, y pueden argüir
que el generacionismo se asemeja y es tan poco defendible como el
racismo o el sexismo. 182

Um dos grandes desafios que tem a cidadania é deixar de articular-se em torno
da possessão de direitos (teoria marschalliana) para situar-se no âmbito dos deveres
e das obrigações. A cidadania ‘ecológica’ proposta por Dobson faz ruir posições
deste tipo, dando lugar a um novo tipo de configuração de grande importância para a
política contemporânea. Os deveres do cidadão ecológico não se dirigem a ninguém
de modo específico nem no tempo, nem no espaço.

Las obligaciones de la ciudadanía ecológica se dirigen a cualquiera


al que se le deba espacio ecológico. Estas personas pueden habitar
el mismo espacio político o no. Así como los problemas ambientales
cruzan las fronteras políticas, también lo hacen las obligaciones de la
ciudadanía ecológica. Sin embargo, no lo hacen de igual modo que
las obligaciones de los ciudadanos cosmopolitas. En el ámbito de la
ciudadanía cosmopolita, las obligaciones -y sobre todas la obligación
de reconocer la fuerza del mejor argumento-- son recíprocas entre
todas las personas. Por el contrario, las obligaciones de la ciudadanía
ecológica son asimétricas. Sólo aquellos que ocupen el espacio
ecológico de modo que pongan en peligro o restrinjan las posibilidades
de otras personas, en el presente o en el futuro, de llevar a cabo
posibilidades de acción importantes para ellos, tienen obligaciones
de ciudadanía ecológica.183

181 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica: ¿una influencia desestabilizadora? Trad. de Carmen Velayos Castelo.
Isegoría, n. 24, p.167-187, 2001. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/50223618_
Ciudadania_ecologica_una_influencia_desestabilizadora>.
182 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica, cit., p. 52-53.
183 DOBSON, Andrew. Ciudadanía ecológica, cit., p. 56.
a cidadania
83

Este é outro motivo pelo qual a resposta ecológica a pergunta “a quem se deve
obrigações de cidadania?” difere tanto do liberalismo como do republicanismo cívico
e da cidadania cosmopolita: essas obrigações se devem tanto ao futuro como ao
presente. Uma decorrência muito importante desses tipos de obrigação ecológica e
a quem são dirigidas, é que não apresentam expectativas de reciprocidade.
A cidadania ecológica pode contribuir para a ‘remoralização’ da política. O
cidadão ecológico faz o que deve, não tanto como reação a incentivos, mas porque
é correto. Nesse sentido, a ideia de cidadania ecológica ajuda a transformar qualquer
sociedade em uma mais sustentável. A cidadania ecológica ‘contém’, indubitavelmente,
as virtudes da cidadania liberal e da republicana. Como bem aponta Barry:

La ciudadanía, tal y como es vista por la teoría democrática verde,


enfatiza el deber del ciudadano de tomar responsabilidad sobre
sus acciones y elecciones –la obligación de hacer «lo que a uno le
corresponde» en la empresa colectiva de alcanzar la sostenibilidad–.
Existe, por tanto, una noción de «virtud cívica» en el fondo de esta
concepción verde de ciudadanía. Una parte de esta noción de virtud
cívica supone tener en consideración los intereses de los demás,
así como estar abierto al debate y la deliberación. Esto implica que
los deberes del ciudadano van más allá del ámbito político formal,
incluyendo, por ejemplo, actividades como el reciclaje de los residuos,
el consumo ecológicamente responsable y la conservación de la
energía.184

Enfim, a cidadania ecológica introduz mudanças na forma de se entender as


noções e os conceitos que se costumam utilizar ao se trabalhar com a cidadania
(direitos, obrigações, virtude, território, esfera pública, esfera privada). Os governos
usam excessivamente medidas fiscais e outros instrumentos econômicos como
mecanismos para dirigir a sociedade a hábitos mais sustentáveis porque sabem
que as mudanças nos comportamentos dos cidadãos se conseguem através de
um sistema de prêmios e recompensas ou de castigos – que não deixam de ser
superficiais. Em troca, os cidadãos ecológicos mantêm um compromisso com
determinados princípios e tentarão levar a cabo uma atuação sustentável, por uma
questão de justiça, mais que por conveniência.

184 BARRY, John: Rethinking Green Politics. Londres, Thousand Oaks, Nueva Delhi: Sage, 1999. p. 231.
2 DEMOCRACIA

2.1 Conceitos e definições

Se definir o vocábulo basta para conceituar o objeto, a tarefa torna-se bastante


simples. Com um rápido passar de olhos pelo dicionário vê-se que a palavra significa,
literalmente, poder (kratos) do povo (demos), então democracia seria “poder do povo”
ou “poder popular”. Entretanto, cremos que a etimologia não abrange a essência do
objeto, e a conceituação de democracia é uma tarefa muito mais complexa.185
Ensina Kelsen que na essência do termo, cunhado na teoria política da antiga
Grécia, encontra-se o princípio da liberdade na autodeterminação política, e esse
foi o significado com que o termo foi recolhido pela teoria política da civilização
ocidental.186 Então, ainda que retórico e recheado de indagações o melhor aforismo
moderno sobre democracia é o estabelecido por Abraham Lincoln em seu famoso
discurso de Gettysburg em 19 de novembro de 1863: Government of de people, by
the people, for the people.
Para Silva, democracia é um conceito histórico,

[...] Não sendo por si um valor-fim, mas meio e instrumento de


realização de valores essenciais de convivência humana, que
se traduzem basicamente nos direitos fundamentais do homem,
compreende-se que a historicidade destes a envolva na mesma
medida, enriquecendo-lhe o conteúdo a cada etapa do envolver
social, mantido sempre o princípio básico de que ela revela um
regime político em que o poder do povo repousa na vontade do povo.
Sob esse aspecto, a democracia não é um mero conceito político
abstrato e estático, mas é um processo de afirmação que o povo vai
conquistando no correr da história.187

Referindo-se à complexidade e às armadilhas que levam a uma conceituação,


Sartori opta por caracterizar a democracia:

Dizemos democracia para aludir, grosso modo, a uma sociedade livre,


não oprimida por um poder político discricionário e incontrolável, nem
dominada por uma oligarquia fechada e estrita, na qual os governantes
‘respondem’ aos governados. Há democracia quando existe uma
sociedade aberta, onde a relação entre governantes e governados é

185 Uma profunda análise da democracia exigiria fixarmo-nos no estudo do poder, de sua legitimação e de seus
limites, isso porém, desbordaria o objetivo do estudo a que nos propomos. Recomendamos ver: PINILLA,
Ignacio Ara. El fundamento de los límites al poder en la teoría del derecho de León Duguit. Madrid: Editorial
Dykinson, 2006; ROIG, Francisco Javier Ansuátegui. Poder, Ordenamiento jurídico, derechos. Madrid:
Dykinson, 1997.
186 KELSEN, Hans. Escritos sobre la democracia y el socialismo. Madrid: Editorial Debate, 1988. p. 208.
187 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 129.
democracia
85

entendida no sentido de que o Estado está a serviço dos cidadãos e


não os cidadãos a serviço do Estado, onde o governo existe para o
povo e não ao contrário.188

Assim também age Sánchez Rubio que foge de uma conceituação preferindo
uma descrição:

Por democracia concebimos no solo una forma de gobierno, sino un


conjunto de acciones, conceptos y mediaciones que tienen como
objetivo posibilitar el poder del pueblo para el pueblo, desde la lucha,
la reclamación y la reivindicación de los miembros de una comunidad
o sociedad.189

A partir desses ensaios, depreende-se que na democracia a cidadania assume a


responsabilidade, o dever e o direito de autogovernar-se. Por isso a ideia de democracia
se opõe a qualquer forma de omissão, e mesmo a entrega da responsabilidade a um
grupo de especialistas ou a um determinado número de cidadãos para agirem em
representação no espaço público.

2.2 Surgimento e evolução. A democracia nas primeiras organizações políticas

A busca de uma fundamentação para a democracia e a participação política


nos clássicos antigos é infrutífera. Por evidente que todos os pensadores tiveram e
expressaram sua preocupação com a ética e a justiça dos governantes, contudo não
se encontram questionamentos quanto à legitimidade na formação dos governos.
Ainda no século V a.C., Kung-Fu-Tzu – Confúcio para os ocidentais – manifestou-
se sobre o exercício do poder. Em seus ensinamentos pregava aos governantes que
a autoridade não deve ser exercida pela força física e sim pela virtude e pelo bom
exemplo. Para o filósofo chinês o governante deveria ser virtuoso, agir com ética e
respeito para com os governados.
Platão não acreditava na democracia. Na República expressa dúvidas sobre
o poder do legislador, questionando: “quem sabe de fato o homem nunca legisla,
e todas as leis são produto da natureza e do acaso. Pode ser que os verdadeiros
legisladores sejam as condições econômicas, as consequências da guerra, a peste
e a fome”.190 Para ele a política, a boa condução dos homens em sociedade era uma
arte que somente bem poucos dominavam. O ideal, para ele, era uma coletividade
governada pelos mais sábios, visto que os pensadores eram uma espécie de
sócios humanos dos deuses, os únicos a entenderem os difíceis mecanismos da

188 SARTORI, Giovanni. ¿Qué es la democracia? Madrid: Taurus, 2003. p. 43.


189 SANCHEZ RUBIO, David; SENENT DE FRUTOS, Juan Antonio. Teoría crítica del derecho. Nuevos Horizontes.
San Luis Potosí: Universidad Autonoma de San Luis de Potosí, 2013. p. 152.
190 BARKER, Ernest. Teoria Política Grega. Brasília: UnB, 1978. p. 365.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
86 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

boa regência.
Aristóteles, ainda que afirmasse que a cidade foi criada pelos homens, não
questionou a legitimidade do poder político. Ao indagar sobre possíveis governantes,
apresenta 5 (as massas, os ricos, os bons, o melhor dos homens, um tirano)
destacando os inconvenientes da cada um, sem se preocupar com a legitimidade de
cada.191
Para Santo Agostinho, o poder político desempenha um papel importante na
sociedade terrestre, porque garante a unidade e a segurança dos cidadãos. Assim,
pregava que os cidadãos devem trabalhar e viver juntos, dentro de uma ordem,
portanto devem submeter-se às leis e à autoridade mesmo que essas sejam injustas,
afinal a verdadeira justiça não está nesse mundo. Pregava, pois, a submissão aos
governantes sem qualquer questionamento quanto à sua legitimidade.192
Tomás de Aquino abordou diretamente a questão do governo e do poder. Em
De regimine principum, estabelece critérios éticos para os governantes. Defende uma
monarquia em estrita justiça, onde o poder está sujeito ao direito natural e que o
governante também está sujeito a essa lei. Ao questionar-se se o governo deve ser
de muitos ou de um, responde que o poder deve pertencer a uma única pessoa (o
rei) que deve ser como um pastor, buscando o bem comum da sociedade e nunca o
seu. Argumenta que:

Las abejas tienen una reina y en todo al universo se da un único Dios,


creador e señor de todas las cosas. Y esto es lo razonable. Toda
multitud se deriva de uno. Por ello si el arte imita a la naturaleza, y
la obra es tanto mejor cuanto más se asemeja a lo que hay en ella,
necesariamente también en la sociedad humana lo mejor será lo que
sea dirigido por uno.193

Assim conclui que la monarquía es el mejor régimen. Mas condena


veementemente a tirania do governante, aceitando, inclusive, sua destituição. O
monarca deve ser justo, honrado e virtuoso e cita Salomão: As ruinas de los hombres
son causadas por reyes impíos, porque los súbditos de los tiranos se apartan de la
perfección de la virtud.194
Como se observa, não há manifestações teórico-filosóficas sobre democracia
nos clássicos antigos. Não obstante, a ausência de uma fundamentação teórica, em
termos práticos a democracia e a participação – ainda que de forma incipiente e pontual

191 ARISTÓTELES. Política. Texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2001.
192
<http://cyberdemocracia.blogspot.com.br/2008/02/santo-agostinho-e-politica.html>; STRATHERN, Paul.
Santo Agostinho. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1999.
193 AQUINO, Tomás de. La monarquía. Estudio preliminar, traducción y notas de ROBLES, Laureano y CHUECA,
Ángel. 3. ed. Madrid: Techos, 2002. p. 15.
194 AQUINO, Tomás de. La monarquía. Estudio preliminar, traducción y notas de ROBLES, Laureano y CHUECA,
Ángel. 3. ed. Madrid: Techos, 2002. p. 21.
democracia
87

– floresceram em muitas sociedades, em distintos tempos e lugares. Assim seria um


equívoco afirmar-se que ela surgiu pronta e acabada em uma única sociedade. Dahl
arrisca-se a dizer que é bem provável que tenha existido alguma forma de democracia
e participação em governos tribais, muito antes da história registrada.195
Contudo, buscando as origens clássicas, há certa unanimidade em se reconhecer
que esta tenha iniciado na Grécia, mais precisamente na ilha de Creta. Como vimos
anteriormente, por volta do século XVI a.C., não contavam os helenos com um poder
centralizado nem diferenciação de classes. É nesse período que Cabrera situa a
origem da participação e o nascimento da ideia de democracia. Tudo começou,
ensina, quando estes povos não eram senão um conjunto de tribos entregues à
pilhagem e à pirataria. Havia um velho costume de sentarem-se em círculos e colocar-
se o saque no meio para repartir entre todos. Pouco a pouco esqueceu-se do saque e foi
o poder que se pôs no meio. Mas o poder não se divide, surge então a ideia de que o
povo, reunido em Assembleia se constituía no poder, compartilhado por todos para decidir
os interesses de todos.196 Eis a origem de tudo. Esta ideia é ampliada mais tarde, por
volta do século IX a.C. quando surgem as demos, originando uma nova organização
política e social que exigia métodos mais sofisticados de controle e a formação de um
governo central com autoridade em toda nova estrutura que estava surgindo. Ensina
Dahl que em Atenas o sistema de governo era muito complexo, mas em seu âmago
havia uma Assembleia onde todos os cidadãos estavam autorizados a participar. Ali
os funcionários essenciais à administração eram eleitos; para outros cargos públicos
havia uma espécie de sorteio onde qualquer cidadão poderia ser eleito e todos tinham
a mesma oportunidade de servir à comunidade.197 É esse modelo que vai configurar a
polis e transformá-la em modelo predominante a partir do século VIII a.C.
Em 265 a.C., Samrat Ashoka Maurya assume o trono do Império Hindu e
estabelece profundas reformas políticas no Império. Do poder centralizado e férreo,
adotado pelos seus antecessores, passou para um regime que introduziu órgãos
de controle das ações do governo, cujos deveres para com os seus súditos foram
expressamente definidos, produziu reformas liberais em quase todas as vertentes
da vida do Império e criou mecanismos de participação popular no governo. Isso
permitiu, por exemplo, o desenvolvimento de um sistema de apelações para dar
aos acusados todas as chances para um julgamento revisado, buscando a maior
proximidade do ideal de justiça, bem como uma reforma no sistema tributário de
modo que cada região pudesse apelar por alívio quando as colheitas e o comércio
declinavam. A participação do povo permitiu a criação de “fiscais”, (mahamatras)
estabelecidos para monitorar as ações do governo. 198

195 DAHL, Robert A. La democracia. Barcelona: Ariel, 2015. p. 12.


196 CABRERA, Juan Manuel. Democracia y participación ciudadana. Madrid: Fundación Emmanuel Mounier,
2008. p. 9.
197 DAHL, Robert A. La democracia. Op. cit., p. 15.
198 <http://www.levir.com.br/inst-013.php;pt.wikipedia.org/wiki/Asoka> <http://www.sabores-da-india.net16.net/
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
88 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Na Europa dos Norte, os povos vikings provavelmente nada sabiam das práticas
democráticas e republicanas desses povos, e seguramente não se importariam com
elas. Contudo, ensina Dahl, por volta do ano 600 d. C. surge o costume de reunirem-se
os vikings livres (não somente os guerreiros, mas artesãos, pequenos proprietários,
agricultores, ...) em uma Assembleia denominada Ting. Nesta Assembleia discutia-se
a aprovação ou rejeição de leis, resolviam-se conflitos e dispunha-se sobre as futuras
ações da comunidade. Aqui também era eleito ou aclamado um Rei, que deveria jurar
obediência às leis aprovadas pela Ting. Esta prática era tão importante e arraigada na
consciência dos indivíduos que, quando os vikings se aventuraram a outras terras, a
transplantaram, criando Assembleias regionais (Althing - uma espécie de supra Ting)
que na Islândia, por exemplo, por mais de 300 anos foi a fonte de toda sua legislação;
o mesmo ocorreu na Noruega, Dinamarca e Suécia. Estas Assembleias regionais
mais tarde se transformaram em Assembleias nacionais, originando o parlamento
representativo moderno desses Estados.199
Enquanto isso, no Oriente Médio, Ṣalāḥ ad-Dīn Yūsuf ibn Ayyūb – conhecido
como Saladino, uniu todos os povos árabes contra os cruzados e impôs uma derrota
aos três mais poderosos reis da Europa: Filipe Augusto (França), Ricardo Coração de
Leão (Inglaterra) e Barbarossa (Sacro Império Romano-Germânico) reconquistando
Jerusalém para os mulçumanos. Suas vitórias e conquistas somente ocorreram pela
unificação de povos árabes e correntes religiosas. Tal feito deve-se a ser Saladino,
além de um líder íntegro, ético, cavalheiro e fiel, ser um hábil político. A unificação
de correntes tão diversas somente ocorreu por permitir aos líderes tribais, chefes
guerreiros e líderes religiosos participarem das decisões através de um Conselho,
onde todos eram ouvidos antes da tomada de decisões.
Em 1556, Jalal al-Din Mohamed Akbar – Akbar, o Grande – é proclamado
imperador mongol. Seu império estendia-se por um vasto território onde existiam
várias religiões em permanente confronto (bramanismo, budismo, zoroastrismo,
islamismo e cristianismo). Akbar, convencido de que a verdade existia em todas as
religiões, mas que nenhuma delas possuía a verdade suprema, aboliu o islão como
religião do Estado, obrigando a todos a respeitar a todas as religiões e distribuiu
altos postos de governança, obedecendo o percentual da representatividade das
religiões. Iniciou a fusão dos feudos e criou um Estado absolutamente laico e liberal,
com ênfase na integração cultural. Sua maior marca foi a administração das receitas,
que deveria ser proveitosa para os camponeses e para o Estado e eram fiscalizadas
por três administradores, representantes do governo e do povo.200
Na Europa feudal, a partir do século XI, a vida agrícola e comercial se intensifica,

india_persons_ashoka.html>.
199 DAHL, Robert A. La democracia. Op. cit., p. 21 e ss.
200 Grande Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo. 1999. V. 1. p. 137, também: <http://www.dec.ufcg.edu.br/
biografias/AbuAkbar.html>.
democracia
89

aumentando o número de centros urbanos. Logo os habitantes das cidades sentiram


necessidade de liberdade e compravam do senhor da terra sua libertação. Outras
vezes, a autonomia conseguia-se pela força, havendo lutas violentas contra o
senhor. Surgia, assim, o movimento comunal, ou seja, o desejo dos burgueses
de obterem liberdade, segurança, isenção de impostos feudais e justiça própria.
Esse foi o nascimento das comunas europeias, uma associação de burgueses da
mesma localidade que tinham o direito de se governar a si próprios escolhendo seus
administradores.
Para Tilly, a partir daí, até o século XIX, encontramos na Europa 04 modelos de
embriões democráticos: (1) oligarquias mercantis; (2) comunidades rurais; (3) seitas
religiosas e (4) movimentos revolucionários. Das oligarquias mercantis, as cidades-
Estado italianas e holandesas, constituíram, até o século XVIII, um bom exemplo.
Os burgueses reunidos formavam um corpo de cidadãos entre os quais rodavam
os cargos públicos, organizavam a segurança da cidade, os grêmios e convocavam
assembleias para deliberar sobre os interesses políticos da cidade. Está claro que
o modelo não era perfeito, pois o que realizavam, diz Tilly, era um simulacro de
democracia, uma vez que continuavam sendo uma oligarquia urbana. Quanto às
comunidades rurais, algumas apresentavam, o que utilizando um oximoro diríamos,
uma oligarquia plebeia. O direito à participação era garantido, os cargos públicos
eram rotativos mediante eleição ou sorteio, convocavam assembleias gerais com
poder vinculante e procedimentos judiciais para reconsiderar eventual erro para
com algum indivíduo ou comunidade. A crítica de Tilly é que nessas comunidades
rurais “democráticas” somente aqueles que possuíam alguma propriedade (ou suas
viúvas) é que eram considerados cidadãos (peões, servos e crianças não contavam)
e, controlavam populações e áreas tributadas, onde não existia cidadania alguma.
Algumas comunidades religiosas dos países nórdicos, especialmente aquelas
de tradição cristã primitiva e pietista, praticavam uma democracia plena dentro de
suas congregações. Proprietário ou não, todos os membros da comunidade eram
tratados igualmente. Sucediam-se nos cargos e nas responsabilidades, submetiam
suas condutas à disciplina da comunidade e organizavam assembleias gerais para
tomar decisões coletivas. Tais associações prevaleceram na Noruega, Dinamarca,
Suécia e Finlândia até o século XVIII e, segundo Tilly, sentaram as bases para o
desenvolvimento dos movimentos sociais e das instituições democráticas do norte
europeu. Desde a baixa idade média, os movimentos revolucionários europeus,
especialmente aqueles oriundos da tradição cristã radical ou pietista, transmitiam
uma radical visão de igualdade e coletivismo. Na Inglaterra, quando ainda nem
os católicos nem os anglicanos se preocupavam com a questão, uma variedade
de protestantes dissidentes, incluindo os cuaqueros e membros da Igreja da
Congregação, pressionavam por programas igualitários, reivindicando um governo
eleito democraticamente, inclusive com voto feminino. No revolucionário New
Model Army de Oliver Cromwell, foi estabelecida uma representação por homens
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
90 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

eleitos democraticamente. Também na Revolução Americana os revolucionários


organizaram-se em bases de representação democrática. Igual na Holanda, onde
no final do século XVIII um forte movimento revolucionário exige ampla participação
democrática nos governos locais e nacional.201
Outro exemplo interessante vem da Polônia. A partir de 1182 o rei tem seu poder
severamente limitado pelos Sejms.202 De acordo com a lei, o rei deveria convocar um
Sejm Geral (com duração de seis semanas) a cada dois anos, e Sejms Extraordinários
poderiam ser convocados em tempos de emergência nacional. Esses tinham a decisão
final nas matérias sobre a edição de leis, tributos, orçamento e tesouro (incluindo o
fundo militar), assuntos externos e nobilitação (distribuição de títulos de nobreza). O
rei não poderia aprovar nenhuma lei sem a anuência do Sejm. A partir de 1572, com
a morte de Zygmunt II, instituiu-se na Polônia um regime de reis eleitos pelo Sejm.
Como se denota, com imperfeições, avanços e retrocessos, a ideia, e a própria
efetivação da democracia é muito anterior ao comumentemente apresentado.
Contudo, considerando-se a primeira Declaração de Direitos no sentido moderno,
a Declaração do Bom Povo da Virgínia, (1776) e a Declaração da Independência
Americana (1776) pode-se afirmar que a democracia moderna, como a idealizamos
hoje, é uma invenção dos norte-americanos, imediatamente adotada pelos franceses.
Mas, como ensina Comparato, a concepção atual é ampliada e aperfeiçoada após
a Segunda Guerra, onde o povo efetivamente adquire o direito de tomar decisões
políticas de participar da administração pública por meio de referendos e plebiscitos
e, em alguns países, até mesmo propor leis ao parlamento e até mesmo de propor
emendas à constituição.203

2.3 Principais formas de democracia: representativa, direta e deliberativa

Democracia é basicamente uma “forma de governo”, um sistema de decisão


coletiva. Existem vários modelos de democracia. As categorias de classificação variam
segundo os autores. Seguindo Held, podemos diferenciar nove tipos: 1) a democracia
clássica: Atenas; 2) O republicanismo: a liberdade, o autogoverno, o cidadão ativo; 3)
a democracia liberal: a favor e contra o Estado; 4) a democracia direta; 5) o elitismo
competitivo e a visão tecnocrática; 6) Pluralismo, capitalismo corporativo e Estado;

201 TILLY, Charles. Democracia. Tradución de Raimundo Viejo Viñas. Madrid: Akal, 2010. p. 61-65.
202 O termo "sejm" vem de uma antiga expressão polaca que significa uma reunião da ralé. Sua origem é muito
anterior a 1182, mas seu poder político se consolidou no periodo da fragmentação da Polônia (1146-1295),
quando o poder de governos individuais diminuiu e vários conselhos se fortaleceram. O primeiro Sejm Geral
convocado pelo Rei Olbrazht em 1493 e evoluiu de encontros anteriores regionais e provinciais. Desde então
tem se reunido irregularmente, em média uma vez por ano. No sistema politico criado pela Constituição da
República da Polônia de 02.04.1997, o atual parlamento é constituido pelo Sejm (câmara baixa - formada por
460 deputados eleitos em eleições gerais e secretas para um período de 4 anos) e pelo Senado da República
da Polónia. <http://www.sejm.gov.pl/english/sejm/sejm.htm; http://opis.sejm.gov.pl/en/index.php>.
203 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, moral e religião no mundo contemporâneo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006. p. 644-650.
democracia
91

7) da estabilidade do pós-guerra à crise política: a polarização dos ideais políticos;


8) a democracia depois do comunismo soviético; e, 9) a democracia deliberativa e a
defesa do público.204 Não vamos aqui nos estender em uma análise de todos esses
modelos.
A versão mais idealizada da democracia ateniense corresponderia à democracia
deliberativa, majoritária e participativa. Todos os cidadãos reunidos em praça pública
podem fazer propostas sobre o que quiserem, as discutem, apresentam seus
argumentos e tomam uma decisão. Entretanto, nossas democracias contemporâneas
se situam no outro extremo: as decisões são tomadas por representantes, predominam
processos de negociação e existem âmbitos de decisão que ficam fora do jogo de
maiorias e minorias, protegidos por direitos e instituições contramajoritárias.205 Vamos
fazer referência aos dois modelos mais significativos na atualidade: a democracia
representativa, a democracia direta e a democracia deliberativa.

2.3.1 Democracia representativa

A forma de democracia por excelência é a representativa. A representação


política, em sentido estrito, é o resultado das eleições a cargos públicos que
estabelecem uma relação entre um principal (o votante) e um agente ou mandatário
(o representante) que, uma vez eleito tem a obrigação de tomar decisões em nome
(e no melhor interesse) do principal. Na representação política democrática, todos os
cidadãos elegem pessoas (denominados representantes) para que ocupem cargos
públicos (representativos) e tomem decisões em nome e no melhor interesse de
todos os cidadãos. O desenho da democracia representativa tem sido considerado
por alguns autores – como Dalh – o mais adequado para governar as complexas
sociedades contemporâneas.
Na teoria política é habitual fazer-se uma distinção entre autoridade, legitimidade
e justiça, como três conceitos com implicações normativas distintas, ainda que
interligados. Por autoridade se entende o poder moral que tem o Estado para obrigar
aos cidadãos a realizar (ou abster-se de realizar) determinadas condutas, através de
leis, independentemente de serem estas normas justas ou injustas. Por legitimidade
se entende o poder moral que tem o Estado para fazer uso da força, em caso de
desobediência de suas ordens. E por justiça se entende os princípios que regem
em uma sociedade a distribuição de bens escassos considerados valiosos pelas
pessoas.206
A pergunta que surge é de como podemos dotar de autoridade e legitimidade

204 HELD, David. Modelos de democracia. 3. ed., trad. Mª. Hernández, Madrid: Alianza Editorial, 2007, p. 331.
205 Idem, p. 267.
206 LINARES, Sebastián. Democracia participativa epistémica. Madrid: Marcial Pons, 2017. p. 33.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
92 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

o processo de tomada de decisões quando os desacordos sobre a justiça são tão


amplos.
O ideal normativo contemporâneo de democracia sobre o qual estão fundadas
as denominadas democracias representativas contemporâneas estabelece que as
decisões coletivas são obrigatórias porque foram tomadas mediante um procedimento
em que todos tiveram a oportunidade de participar, e mais, em uma participação
em pé de igualdade. Então, o ideal da democracia representativa é um sistema
de governo em que todos os cidadãos adultos têm direito a participar em pé de
igualdade nas eleições de representantes políticos, em eleições que são periódicas,
competitivas, transparentes, livres e igualitárias (uma pessoa, um voto). Como
destaca Linares, “la igualdad política es, pues, el principio rector del ideal estándar
de la democracia y de su sucedáneo institucional, la democracia representativa”.207
Assim a coluna vertebral da legitimidade política é o principio da igualdade política
na tomada de decisões coletivas.
Dahl estabelece cinco critérios ideais que fariam possível cumprir a exigência
de que os membros adultos de uma coletividade tenham o mesmo direito a participar
nas decisões políticas: 1) participação efetiva: antes de se adotar uma determinada
política pela comunidade, todos os membros adultos devem ter a igual e efetiva
oportunidade para que seus pontos de vista sobre o tema sejam conhecidos por
todos os outros membros; 2) igualdade de voto: quando chegar o momento de se
adotar a decisão, cada membro adulto deve ter uma igual e efetiva oportunidade de
votar e todos os votos devem ser contados como iguais; 3) compreensão iluminada:
dentro de um razoável limite de tempo, todos os membros adultos devem ter igual
e efetiva oportunidade de conhecer sobre as políticas alternativas relevantes e suas
consequências possíveis; 4) controle da agenda: os membros adultos devem ter a
oportunidade exclusiva de decidir como e, se aprovam, que assuntos devem ser
incorporados à agenda; 5) Inclusão de todos os adultos, ou ao menos da maioria dos
que são residentes permanentes; todos devem ter plenos direitos de cidadania, que
estão implícitos nos quatro critérios anteriores.208

2.3.1.1 Algumas reflexões sobre a legitimidade democrática ou a autoridade das


decisões democráticas

Que os sábios (prudentes, virtuosos, preparados) sejam os governantes é uma


proposta que, desde Platão, vem se debatendo. A proposta é a de delegar o governo
aos especialistas e restringir a democracia. Porque não delegamos o poder àqueles
mais preparados se a governança tem o compromisso de decisões mais justas e
estes, supõe-se, mais experientes e justos poderiam tomar as melhores decisões.

207 Idem, p. 35.


208 DAHL, Robert A. La democracia, op. cit.
democracia
93

Linares tentou formular uma teoria da democracia epistêmica, não populista,


onde o compromisso estrutural para garantir o direito à participação em pé
de igualdade seja complementado com: a) a deliberação entre iguais; b) com
oportunidades equitativas para informar-se adequadamente antes da tomada
de decisão e, c) com incentivos apropriados para que, aqueles que não estejam
seguros de suas convicções, ou que não puderam informar-se adequadamente,
possam abster-se de participar.209
Há que se reivindicar uma dimensão pragmática da política e propor novas
alternativas para os problemas de crise de representação que enfrenta a democracia
contemporânea.
Uma importante corrente da teoria democrática contemporânea – que Linares
denomina elitismo epistêmico – alerta para o risco de se atribuir à cidadania amplas
oportunidades para participar diretamente na tomada de decisões; porque assim,
como um timoneiro que deixa na mão dos marinheiros a pilotagem do navio
(evocando a metáfora de Platão), o navio pode acabar naufragando e “destruindo-
se nos recifes da incompetência cognitiva”.210 Por outro lado, o timoneiro não pode
sozinho conduzir o navio, uma adequada direção exige uma distribuição de tarefas
em função do conhecimento e competências de cada um.
Platão, em sua obra A República, foi o primeiro a defender expressamente a
epistocracia.211 Defendendo a ideia do rei-filósofo ou filósofo-rei, e a divisão em três
classes de cidadãos (magistrados e governantes, guardiões e artesãos/agricultores)
sustentou que o princípio de igualdade não deveria ser aplicado para as funções mais
relevantes; estas deveriam ser reservadas para a classe com superior conhecimento
e virtudes. O compromisso da democracia com a igualdade e a liberdade faz com
que os cidadãos opinem preferencias baseadas em meras opiniões desinformadas
ao invés de forjá-las em um corpo de conhecimento sólido e coerente.
Uma segunda versão da epistocracia, mais moderada, foi a de Stuart Mill, em
Considerações sobre o Governo Representativo (1861) onde todos tem o direito
de participar, mas a vontade de alguns vale mais do que a dos outros (critica o
paternalismo político e defende que a democracia é a melhor forma de governo que
se pode conceber).212
Contudo, um governo de sábios ou epistocrático não é defensável por duas

209 LINARES, Sebastián. Democracia participativa epistémica, op. cit.


210 SARTORI, Giovanni. The Theory of Democracy revisited. Chatham: Chatham House Publishers, 1987.
211 PLATÓN (380 a.C.) República, libro VIII.
212 Outras modalidade de sistemas epistocráticos mais inclusivos são os que pretendem identificar os mais
competentes para eleger os que devem governar. Um primeiro enfoque seria o voto plural de Stuart Mill
(MILL, J., Consideraciones sobre el gobierno representativo, Madrid, Edición, Librería de Victoriano Suárez,
1861 [1878]), e o sistema de exames prévios para a aquisição do direito ao voto, proposto por Jason Brennan
(BRENNAN, J., “The right to a Competent Electorate”, The Philosophical Quarterly, n. 61 (245), 2011. p. 700-
724).
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
94 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

razões, uma principal outra complementar. A razão fundamental é que a legitimidade


democrática não está fundada unicamente na dimensão epistêmica, mas também
no valor da igualdade e na liberdade de opção.213 Estabelecer discriminações a priori
entre os que mais sabem e os que menos sabem, ainda que possa parecer uma
vantagem epistêmica, significaria violar a igualdade de escolha, (assim como o direito
moral de equivocar-se que vai unido à ideia dessa igual liberdade). Estabelecer uma
discriminação, a priori, entre os mais competentes e menos competentes resulta uma
afronta à igual dignidade e autonomia das pessoas.
Uma segunda razão para rechaçar a epistocracia é que em nossas sociedades
democráticas não há “especialistas” em política geral. O conhecimento está distribuído
amplamente na sociedade, de forma que não há ninguém a quem se possa atribuir o
título de “especialista geral”. Na tomada de decisões sobre um tema ambiental, por
exemplo, é importante o conhecimento de engenheiros, geógrafos, juristas, biólogos,
entre outros.

2.3.2 O atual debate sobre a democracia direta: a teledemocracia e o


cibercidadão214

Temos analisado algumas modalidades da democracia, como a representativa


e a deliberativa. Também temos aludido à possibilidade prática de, em nossos dias,
implantar-se uma democracia direta. As possibilidades que a internet e as redes
abriram para que os cidadãos possam participar na tomada de decisões, direta ou
indiretamente – a renovação dos métodos tradicionais de mobilização da opinião
pública, de atuação dos meios de comunicação e do papel dos políticos – permitiu
que os cidadãos se sintam partícipes ativos, dando lugar a uma nova modalidade de
cidadão, o ‘cibercidadão’ e a uma modalidade de exercício democrático renovada: a
teledemocracia, que poderia definir-se como a projeção das novas tecnologias nos
processos de participação política das sociedades democráticas. Esta apresenta
duas modalidades: a versão ‘frágil’ e a versão ‘forte’, sobre as quais discorreremos a
seguir.215

213 LINARES, Sebastián. Democracia participativa epistémica, cit., p. 53. MARTÍ, José Luis. La república
deliberativa: una teoría de la democracia. Barcelona: Marcial Pons, 2006. p.170-173.
214 Este ponto já foi exposto por BELLOSO MARTÍN, Nuria. Impacto de las nuevas tecnologías en la política. In:
GORZEVSKI, Clovis (Org.). Direitos Humanos e participacâo polìtica. Vol. II, Porto Alegre: Imprensa Livre,
2011. p. 75-106.
215 Neste ponto, sobre a cibercidadania e a teledemocracia em sua versão ‘frágil’ e ‘forte’ seguiremos os
ensinamentos de Antonio Enrique Pérez Luño, em sua obra ¿Ciberciudadani@ o ciudadaní@..com?
Barcelona: Gedisa, 2004.
democracia
95

2.3.2.1 A versão ‘frágil’ da teledemocracia: pode reforçar a democracia


parlamentar?

A incidência das novas tecnologias nos processos políticos da democracia


representativa parlamentar – classificada como versão ‘frágil’ da democracia
– tem sido cada vez mais ampla nos países avançados. Hoje, é praticamente
inimaginável uma campanha eleitoral em que estas não possuam um papel decisivo.
Este protagonismo vem se ampliando com a utilização da rede, que abre novas
possibilidades e novas formas de exercício da democracia representativa. Entretanto,
existem vozes discrepantes que apresentam sérias restrições sobre as possibilidades
da teledemocracia reforçar e aprofundar a democracia representativa, como é o caso
de Sunstein e Sartori.
O constitucionalista e politicólogo norte-americano Sunstein, em sua obra
Republic.com,216 reconhece as possibilidades de uma renovação da vida política
democrática cimentada na imensa capacidade informativa e comunicativa que traz a
internet. Contudo adverte que a rede propicia um tipo de informação e comunicação
individualizada e personalizada. Cada usuário constrói seu próprio menu de dados
e documentação política, o que pode acabar desembocando em uma fragmentação
que dificulta a existência de opiniões e programas políticos coletivos.
Assim, em relação à internet, podemos selecionar as páginas web que desejamos
consultar, em razão do conteúdo e da ideologia que lhes dá suporte (conservador,
liberal, outro). O indivíduo poderá ter acesso e receber informações de um determinado
perfil, segundo suas preferências e, não receberá a mínima informação das demais
opções ideológicas. Isto acaba limitando sua capacidade crítica e sua objetividade.
Sunstein assegura que um sistema de liberdade de expressão deve contar,
principalmente, com duas características: a primeira é que os indivíduos devam
entrar em contato com matérias que não tenham previamente escolhido. Isso lhes
permitirá conhecer pontos de vista que não haviam imaginado e que poderiam lhes
abrir novos horizontes e provocar, inclusive, uma mudança de opinião; em segundo
lugar, a cidadania deve ter experiências comuns, pois constituem uma sociedade
heterogênea onde os próprios indivíduos têm dificuldades de compreenderem-
se entre si mesmos. Considera que uma democracia necessita de uma série de
experiências comuns - como conhecer diferentes temas e ideias não previstas nem
escolhidas. O sistema em que cada pessoa eleja previamente o que quer ou não
quer, representa um perigo para a democracia. As pessoas de mentalidade afim
não devem comunicar-se única e exclusivamente com quem opina como elas, pois
poderia surgir uma fragmentação social, romper-se-ia o pluralismo e desprezar-se-ia a
tolerância. A prática da democracia se forja através de formas de pensamento variadas

216 SUNSTEIN, Cass R. República.com. Internet, democracia y libertad. Trad. de P. García Segura. Barcelona:
Paidós, 2003.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
96 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

e distintas, de pontos de vista diferentes que, mediante o diálogo, a comunicação


e a compreensão de outras formas de entender a vida, permitam chegar-se a um
consenso. O ‘pensamento único’ acabaria com a democracia.
Sartori, por sua vez, critica o que denomina de ‘opinião teledirigida’, partindo da
formação de opinião, do governo das pesquisas, de que a imagem também mente.
Expressa sua desconfiança nas pesquisas e na maioria das opiniões ali recolhidas,
pois assegura: a) são frágeis – não expressam opiniões intensas; b) são voláteis –
podem mudar em poucos dias; c) são inventadas – para sustentar alguma decisão;
d) produzem um efeito repetidor do que sustentam os meios de comunicação.217 A
isso deve-se agregar o problema da fácil manipulação das pesquisas.

2.3.2.2 A versão ‘forte’ da teledemocracia: as novas tecnologias e o atual debate


sobre a democracia direta

Como bem lembra Pérez Luño, o debate sobre a democracia direta e a


democracia representativa tem suscitado renovado interesse nas últimas décadas,
na medida em que as novas tecnologias permitem experiências democráticas
(teledemocracia) incidentes principalmente no âmbito da democracia direta, que
em épocas anteriores eram impensáveis.218 Este aspecto constitui um dos grandes
desafios para as democracias e para o constitucionalismo do século XXI.
As esperanças depositadas na teledemocracia – que possibilita a operatividade
de um poder democrático real e efetivo, sem interferência de entes interpostos que
possam deformar ou desvirtuar sua vontade – constituem a conscientização de
certo grau de decepção da cidadania com respeito à democracia representativa, na
medida que a considera “responsable de haber vaciado de contenido el ejercicio
del poder por el pueblo”.219 Destaca o mestre de Sevilha que as vantagens que a
teledemocracia apresenta são várias: a restituição do protagonismo político, dos
partidos ao povo; evita as disfunções dos sistemas eleitorais; funciona como fator
corretivo das distorções da representação; constituem uma forma de se eliminar a
manipulação da opinião pública, entre outros.
Entretanto, ainda que discutível, “o atrativo da democracia direta”220 também
apresenta alguns riscos. A estas questões vamos nos referir a seguir.

217 SARTORI, Giovanni. Homo videns. La sociedad teledirigida. Trad. de A. Díaz Solar. Madrid: Taurus, 1998.
218 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Democracia directa y democracia representativa en el sistema constitucional
español. In: Anuario de Filosofía del Derecho, 2003, p. 63. (Monográfico: Veinticinco años de la Constitución
española de 1978. Aspectos jurídicos y políticos). Disponível em: <https://www.boe.es/publicaciones/
anuarios_derecho/articulo.php?id=ANU-F-2003...>.
219 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Democracia directa y democracia representativa en el sistema constitucional
español. Ibidem.
220 A expressão “O atrativo da democracia direta” constitui o enunciado de um dos capítulos da obra de Fishkin,
Democracia y deliberación. Trad. Cast. De J. Malem Seña, Barcelona: Ariel, 1995. p. 45.
democracia
97

Um considerável número de politicólogos avançou no prognostico de uma


‘democracia computadorizada’. Pretendem oferecer uma alternativa à democracia
parlamentar, baseada na participação indireta dos cidadãos através de um sistema
de mediação representativa articulados em formas de partidos políticos, por uma
democracia fundada na participação direta e imediata dos cidadãos. Destacam as
vantagens que apresenta a participação real e efetiva de todos os cidadãos na tomada
de decisões políticas, aspiram, com isso, a descentralização do poder.
O sistema permite maximizar e aperfeiçoar a comunicação direta, sem nenhum
tipo de mediação, entre os cidadãos e aqueles que têm o poder político de tomar
decisões. Esta defesa da democracia participativa e a desconfiança da democracia
parlamentar traz a atualidade algumas das célebres passagens do Contrato Social de
J.J. Rousseau, onde demonstra a suspeita nos sistemas representativos.221
Não menos ímpio se mostrou Marx, um século mais tarde, sobre a democracia
parlamentar, quando a concebe como um instrumento pelo qual se decide, a cada
quatro ou seis anos, que membro da classe dominante vai representar e pisotear o
povo. Frente a esse sistema, exaltou o modelo de democracia direta que, em sua
opinião, estava representado pela Comuna de Paris, um governo do povo pelo povo.
Contudo, a pretensão de substituir a democracia parlamentar por uma democracia
direta ou participativa more informática, não oferece tantos riscos e dificuldades.
As NT permitem conhecer mais profundamente os eleitores e saber o que
os move, simpatiza ou motiva. As ciber-campanhas permitem uma comunicação
mais interativa entre os candidatos e os cidadãos, permitindo organizar melhor
seus simpatizantes transformando-os em ciber-militantes ou ciber-voluntários, que
impulsionem ações a partir de seu trabalho, suas redes de amigos, etc. Também
a captação de fundos econômicos para fazer frente aos gastos das campanhas
políticas, mediante doações de simpatizantes, é facilitada pelo uso das novas
tecnologias. Ainda, é mais fácil convocar os eleitores para as urnas nos dias de
eleições.222
Atualmente toda campanha eleitoral exitosa envolve a conjunção de três grandes
frentes estratégicas: a) a mediática, centrada no rádio e televisão; b) a territorial,
centrada no contato direto com os eleitores e, c) o ciber-espaço, pela utilização das
novas tecnologias de informação e telecomunicações.223

221 Defendia Rousseau a tese de que quanto o povo se dá representantes, deixa de ser livre: “O povo inglês pensa
que é livre, mas se engana completamente; somente o é, durante a eleição dos membros do parlamento, uma
vez que estes são eleitos, se convertem novamente em escravos”. Rousseau, J.J., 1762; vol.III, cap. XV.
222 VALDEZ CEPEDA, Andrés. Las ciber-campañas en América Latina: potencialidades y militantes. In: CERRILLO
MARTÍNEZ, A.; PEGUERA, M.; PEÑA-LÓPEZ, I.; VILASAU SOLANA, M. (Coord.). Neutralidad de la red y otros
retos para el futuro de Internet, Actas del VII Congreso Internacional de Internet, Derecho y Política. Universidad
Oberta de Catalunya, Barcelona 11-12 de julio de 2011. Barcelona: UOC-HUYGERS. p. 539-554.
223 VALDEZ CEPEDA, Andrés. Las ciber-campañas en América Latina, Op. cit., p. 552.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
98 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Vamos examinar as principais contribuições da teledemocracia ‘forte’, tanto


políticas como jurídicas, na tentativa de tornar viáveis determinadas experiências de
democracia direta.224
I ) Contribuições políticas.
Seus defensores entendem que, graças às experiências teledemocráticas se
reforçará a presença imediata da cidadania em todas as esferas da vida pública.
a) Operatividade de um poder democrático real e efetivo – a teledemocracia
torna possível que o povo exerça o poder sem mediações ou interferências
que possam desnaturalizar sua vontade. Recuperar-se-ia a própria acepção
etimológica de democracia: pertencimento do poder (kratos) ao povo (demos).
b) Eliminação do protagonismo político dos partidos políticos – Nas modernas
sociedades livres e democráticas se atribui um excessivo protagonismo dos
partidos nos processos políticos. Também se considera uma quebra ao princípio
da representação democrática quando os partidos realizam ‘pactos contra
natura’, isto é, contraem alianças por razões conjunturais de oportunismo em
flagrante menosprezo à sua ideologia. Além do sistemático descumprimento de
seus próprios programas eleitorais.
c) Meio para evitar as disfunções dos sistemas eleitorais - o sistema de listas
fechadas ou bloqueadas representa uma limitação à liberdade. Esta limitação
impede ao cidadão eleger o candidato que considera mais qualificado para a
defesa de determinadas ideias ou interesses.
d) Fator corretivo das distorções da representação – na maioria dos sistemas
atuais de representação parlamentar, encontramos a infrarrepresentação
da mulher, grandes desigualdades no acesso de determinadas minorias em
sociedades multiculturais ou, inclusive, a distorção do mapa profissional das
sociedades democráticas.
e) Dificulta e impede a corrupção da democracia representativa – os partidos
políticos, cuja ideologia é mais afim aos interesses dos poderes econômicos
contam com maiores possibilidades de financiamento que aqueles cujos
programas aludem na limitação ou controle de tais poderes. São duas as
principais modalidades de corrupção parlamentar: a estratégia eleitoral e a
estratégia legislativa. Na primeira, se utiliza o financiamento para conseguir que
seja eleito um candidato favorável às pretensões do corruptor; na segunda,
se faz referência aos subornos recebidos por parlamentares corruptos para
defender no legislativo, os interesses dos corruptores.
f) Elimina a manipulação da opinião pública - é frequente a utilização, por
parte de alguns políticos, segundo sua conveniência, da opinião pública para

224 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. ¿Ciberciudadani@ o ciudadaní@..com? Op. cit.


democracia
99

legitimar suas próprias decisões políticas referindo-se a pesquisas de opinião


de discutível validade científica-sociológica. Com o sistema teledemocrático é
possível fazer frente a essas tentativas de manipular a opinião pública na medida
em que permite pesquisas instantâneas com a totalidade da cidadania.
II) Contribuições jurídicas:
A teledemocracia pode contribuir para se superar um dos importantes desafios
do Estado de Direito como é a participação real e consciente dos cidadãos no
processo legislativo. A legislação deixará de ser uma questão técnica, monopolizada
por juristas que, em sua grande maioria, integram partidos políticos representados
nos parlamentos. O princípio democrático que concebe a lei como expressão da
vontade popular já não será um mero postulado ideal, na medida que refletirá a
participação real e efetiva dos cidadãos na aprovação das leis. Contudo, os defensores
da teledemocracia legislativa estão conscientes de que a participação cívica em
todos os âmbitos da legislação seria disfuncional, reconhecem que a apelação direta
à cidadania deveria circunscrever-se às leis que tiverem por objeto a regulação de
questões candentes. Matérias tais como a regulamentação do aborto, o terrorismo,
a violência doméstica, a contaminação ambiental e o que concerne à qualidade de
vida, seriam suscetíveis de debate público. A teledemocracia reforçaria a eficácia
normativa da legislação, pois parece lógico que, como os cidadãos participaram de
sua elaboração sintam-se mais comprometidos em acatá-la.
Contudo, a teledemocracia ‘forte’ não está isenta de riscos. A representação
ideal de estar bem informado através da rede e, por conseguinte, exercer o voto
eletrônico com conhecimento e responsabilidade, não deixa de ser um pensamento
utópico. Cada um poderia votar de acordo com seu estado momentâneo passional, o
que pode degenerar para o ‘cibercretinismo’. A imediatez que oferece a internet poria
em perigo o desejável triunfo da razão sobre as paixões.
Assim como apresentamos as vantagens da teledemocracia, convém
destacarmos os riscos, tanto políticos como jurídicos que se podem apresentar.225
I) Riscos Políticos:
a) Perigo de se promover uma estrutura vertical das relações sociopolíticas.
A teledemocracia pode tornar-se um veículo para uma progressiva
despersonalização do cidadão e para sua alienação política. A votação ou
‘referendum instantâneo e permanente’ reforçaria um sistema de ‘comunicação
vertical’ entre cidadãos e governantes, ao invés de favorecer a ‘comunicação
horizontal’. Desse modo se enfraquecem e se dissolvem os grupos intermediários
(partidos, sindicatos, associações, movimentos sociais, cívicos e coletivos, etc.)

225 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. ¿Ciberciudadani@ o ciudadaní@..com? Op. cit.


Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
100 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

b) Perigo de provocar apatia e despolitização dos cidadãos. A teledemocracia


pode trazer em si grandes riscos: de solidão, de isolamento e de letargo,
que pode degradar a vida humana que é, por definição social e comunitária,
relegado a uma multiplicidade de indivíduos atomizados em seus bunkers
eletrônicos. Democracia é o governo do povo, o mando do demos. Porém o
problema é que não nos conformamos com uma democracia representativa, e
ambicionamos uma democracia direta, ser diretamente escutados, convertermo-
nos em protagonistas. Nesse sentido, Sartori aponta que “a cada incremento
do demo-poder deveria corresponder um incremento do demo-saber. De
outro modo, a democracia se converte em um sistema de governo onde são
os mais incompetentes os que decidem. Quer dizer: um sistema de governo
suicida”.226 Anteriormente, as razões para não se ampliar o sufrágio a todos
eram o analfabetismo e a pobreza. A educação possui agora um bom nível, mas
cidadão instruído não é sinônimo de cidadão bem informado sobre questões
públicas. Educação política é outra coisa: exige um discurso bem trabalhado,
argumentado e devidamente arrazoado. Ao contrário, com as novas tecnologias,
muitos cidadãos estão simplificando cada vez mais sua capacidade de raciocínio
e sua fundamentação discursiva. O demos tem diminuída sua capacidade de
entender e, consequentemente, de saber orientar adequadamente seu destino.
c) Perigo de que se transforme em um instrumento de manipulação política ou
em uma justificativa para a legitimação incondicional do poder. A ficar o sistema
democrático reduzido a um plebiscito permanente, surge o perigo de uma
predeterminação dos resultados, pois são bem conhecidas as técnicas para
influir sobre as atitudes dos consultados por parte dos detentores do poder.
d) Suspeita de que possa implicar um esvaziamento até a mercantilização da
esfera pública. O processo de ‘desterritorialização’ da cidadania que propicia
a internet, e sua contribuição para forjar uma cidadania virtual planetária, têm
como contraponto negativo a submissão da política aos interesses econômicos.
Por isso, com a cidadania virtual pode-se supor o desaparecimento da cidadania
como participante no poder político e ser substituída por um mero contrato de
disfrute de bens e serviços na rede em escala planetária. A internet está criando
novas formas de desigualdade – info-ricos e info-pobres – ao estabelecer
discriminações graves no acesso e utilização das informações.
II) Riscos Jurídicos
a) Pode conduzir a um empobrecimento da elaboração normativa e da própria
qualidade das leis. Nas democracias parlamentares o iter legis se constitui
na formalidade de debates institucionalizados em comissões ou em
reuniões plenárias e o resultado, é quase sempre, fruto da consequente

226 SARTORI, Giovanni. Homo videns. La sociedad teledirigida. Op. cit., p.128-129.
democracia
101

apresentação de emendas, muitas das quais contribuem eficazmente para


o aperfeiçoamento técnico e material da lei. Em um sistema de democracia
direta onde se implantasse a teledemocracia, é impensável a possibilidade
de apresentarem-se emendas ou o desenvolvimento aberto de debates, pois
é fácil imaginar o bloqueio legislativo que se produziria se milhões de pessoas
apresentassem alternativas individuais a um projeto de lei. As condições
que Jürgen Habermas denominou ‘situação comunicativa ideal’, de ampla
difusão na cultura jurídico-política atual, ganham imediata relevância para
configurar o marco de uma correta deliberação. A exigência de liberdade,
isto é, a garantia de que não ocorram situações de dominação entre os
deliberantes; a necessidade de se estabelecer uma paridade entre eles,
de forma que sua deliberação não seja deformada por discriminações ou
posições de desigualdade; o requisito de uma leal predisposição de alcançar
acordos entre aqueles que intervêm no discurso, descartando qualquer
propósito de má fé ou de reserva mental; a capacidade e competência
básica dos deliberantes para entender e obrigar-se aos conteúdos de sua
intercomunicação; a racionalidade, coerência, consequência e plenitude dos
argumentos empregados na deliberação; estes são alguns dos elementos
básicos que formam o universo ideal da comunicação e da deliberação e
que contribuíram também para reforçar o interesse por uma democracia
deliberativa.
b) O sistema teledemocrático poderia ser violado pela criminalidade informática.
Os atuais sistemas de segurança da rede não conseguem garantir que não
se produzam atentados tendentes à manipulação ou ao colapso de seu
funcionamento. A criminalidade informática se caracteriza pelas dificuldades
de descobri-la, prová-la ou persegui-la. Os sistemas informatizados são como
um “queso de gruyère”, pelos enormes vazios e lacunas que ficam sempre
abertos a possíveis atentados criminosos. Não se pode, pois, descartar
que algum funcionário corrupto encarregado de serviços telemáticos ou
mesmo hackers possam manipular as pesquisas ou os próprios referendos
teledemocráticos. Esses atentados informáticos poderiam inclusive inverter
o sentido dos votos, de forma que milhares de ‘sim’ se transformariam em
‘não’. Também poderia ocorrer a violação do segredo do voto, mediante o
acesso a chaves que permitiriam identificar o voto individual de cada cidadão.
c) A teledemocracia pode atentar contra o direito à intimidade. Vivemos em uma
sociedade onde a informação é poder. É a ‘sociedade da informação’ e a
‘sociedade informatizada’. Mas isso não significa que os cidadãos fiquem
inertes ante a coleta, utilização e transmissão de dados que afetem a sua
intimidade e ao exercício de seus direitos. A formação escolar e universitária,
suas operações financeiras, sua trajetória profissional, seus hábitos de vida,
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
102 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

viagens e diversões, suas compras, sua história clínica ou suas próprias


crenças religiosas e políticas se encontram exaustivamente registradas
em bancos de dados informatizados, suscetíveis de serem cruzados e
oferecerem um perfil completo de sua personalidade.

Por fim, atenção à lição de Pérez Luño: apesar das vantagens que apresenta
a democracia direta, não devemos nos esquecer das contribuições da democracia
representativa. Esta última é imprescindível para assegurar a deliberação, enquanto
a democracia direta é mais eficaz para garantir a participação popular. Daí conclui
que, para se oferecer um quadro mais adequado na garantia dos direitos e liberdades
no marco do Estado de Direito Constitucional, não se deve optar por um destes tipos
alternativos de democracia, há sim que se reforçar sua complementariedade.227

2.3.3 Democracia deliberativa

Ao longo de sua história a democracia foi acompanhada de qualificativos muito


variados, como direta, indireta, representativa, elitista, participativa, congregativa e
outros, mas na ultima década se colocou em evidência a deliberativa. Este termo
compreende diversas posições ainda que seus defensores costumem a utilizar para
destacar um enfoque político dirigido a uma melhora de qualidade da democracia.
Frente a uma democracia contemporânea – representativa ou direta – a qual se
considera como um descenso, aos choques de personalidade, a política dos famosos,
os debates de titulares e a busca exclusiva de benefícios e a ambição pessoal, os
defensores da democracia deliberativa a apresentam como uso político da razão e a
busca imparcial da verdade. Como bem destaca Gómez:

[...] La crisis de legitimidad de la democracia liberal condujo a una


noción de diálogo como mecanismo de formación o revelación de
la voluntad colectiva, con el fin de asegurar la legitimidad en la toma
de decisiones, conformando lo que conocemos con el nombre de
deliberación política.228

Para compreender o que seja o procedimento deliberativo devemos partir do


próprio conceito de democracia deliberativa,229 também conhecida como democracia

227 PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Democracia directa y democracia representativa en el sistema constitucional
español. Ibidem.
228 GÓMEZ, María Isabel Garrido. Las democracia en la esfera jurídica. Navarra: Aranzadi, 2013. p. 30. Gómez
destaca, acertadamente, que as interpretações da democracia deliberativa não são unânimes e vão
se apresentando, ao longo do século XX, diferentes versões de como funcionam os processos do ideal
delibeativo, dando mais destaque a vocação universalista, a partir de sua origem kantiana, como e o caso de
Habermas – com sua teoria da ação comunicativa – e de Rawls – com sua teoria da justiça.
229 Ver. MARTIN, Nuria Belloso. Repensando la democracia en la perspectiva de las teorías deliberativas: En busca
de unos ciudadanos deliberantes. In: MARTÍN, N. Belloso; CAMPUZANO, A. de Julios (Coord.). El retorno a
la sociedad civil: democracia, ciudadanía y pluralismo en el siglo XXI. Madrid: Dykinson-IISJ, 2011. p. 207-237.
Tambén, ver: MARMOL, José Luis Martí. La república deliberativa. Uma teoria de la democracia. Prólogo de
democracia
103

discursiva. Constitui um sistema que pretende equilibrar a democracia representativa


com a tomada de decisões consensuadas. Diferentemente da teoria tradicional da
eleição racional proveniente da economia, que enfatiza o ato de votar como instituição
central da democracia, os teóricos da democracia deliberativa argumentam que as
decisões somente podem ser legítimas se ocorrem como consequência de uma
deliberação pública por parte da cidadania.230 Não se trata de um procedimento de
decisão baseado necessariamente no consenso, mas sim de um pré-requisito da
votação majoritária sob a premissa de que votar sem discutir não é democrático.
Enquanto os liberais sentem-se satisfeitos com a democracia representativa, porque
respeita a decisão de quem prefere dedicar a maior parte do seu tempo aos assuntos
privados, os republicanos estão mais inclinados para uma democracia deliberativa.
Como corretamente destaca Cortina, o termo “deliberação” nasceu na vida
política antes que na vida pessoal. Os cidadãos atenienses que deliberavam em
assembleia, antes de tomar decisões, ponderavam publicamente os prós e contras
das alternativas possíveis para as diferentes decisões como expressará mais tarde
o verbo “deliberar”, do latim “libra”, que quer dizer “balança”. Assim, delibera quem
“considera atenta y detenidamente el pro y el contra de los motivos de una decisión
antes de adoptarla, y la razón o sinrazón de los votos antes de emitirlos” 231. Mas,
sobre o que se delibera?

En política, según la tradición aristotélica que más tarde prolonga el


republicanismo, ante todo sobre lo justo y lo injusto […] De donde
se sigue que con el rótulo ‘democracia deliberativa’ nos referimos a
la entraña misma de la democracia, porque si ha de ser el demos, el
pueblo, el que gobierna, tiene que hacerlo a través de la deliberación,
no de la agregación de votos, menos aún de la imposición. 232

Roberto Gargarella y José Juan Moreso. Madrid: Marcial Pons, 2006.


230 O termo “democracia deliberativa” foi originalmente cunhado por J. M. Bessette, em Deliberative Democracy:
The majority Principle in republican Government, (1980). Este autor elaborou e difundiu a noção em The Mild
Voice of Reason (1994). Outros autores que contribuiram para o desenvolvimento do conceito de democracia
deliberativa foram Jon Elster, James Fishkin, Dennis Thompson y Seyla Benhabib.
231 CORTINA, Adela. Democracia deliberativa, Diario El País, (24.08.04) 2004.
232 Não podemos deixar de fazer referência, ainda que mínima, aos apontamentos de Habermas a respeito
do tema. No início dos anos 90, como sabemos, desenvolveu um modelo normativo de democracia que
incluía um procedimento ideal de deliberação e tomada de decisões: a chamada política deliberativa. Trata-
se de um modelo que responde ao propósito não dissimulado de estender o uso público da palavra e, com
isso, da razão prática às questões que afetam a boa ordenação da sociedade. A concepção deliberativa da
democracia, aponta que, chegado o momento de adotar uma decisão política, o seguimento da regra da
maioria esteja subordinado ao prévio cumprimento do requisito de uma discussão coletiva, capaz de oferecer
a todos os afetados a oportunidade de defender publicamente seus pontos de vista e seus interesses,
mediante argumentos genuínos e negociações transparentes. A deliberação não deve ser confundida
como a mera ratificação coletiva de posições já cristalizadas. Se todas as preferências e opiniões devem
submeter-se a um processo de debate, isso significa que todos os atores políticos devem estar abertos a
mudar sua posição inicial se, como resultado da deliberação pública, surgirem razões para fazê-lo. Assim
não ocorrendo, a discussão fica como um mero trâmite que deve ser cumprido antes da votação, isto é,
aplicar mecanicamente o poder da maioria. Daí que seja tão importante a melhora dos métodos e condições
do debate, da discussão e da persuasão. É por isso que Harbemas não advoga o uso para qualquer das
democracias atuais, e sim por uma democracia qualificada, por uma democracia deliberativa que apresenta
a opinião política ativa – com suas práticas argumentativas – como o lugar onde se dilucida a legitimidade do
sistema democrático, assim como a de seus diversos procedimentos de tomada de decisão. A democracia
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
104 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

O ponto de partida em uma sociedade livre é o desacordo de preferências ou


de convicções, e existem três caminhos para se chegar a uma decisão comum: 1) a
imposição, que não é um procedimento democrático; 2) a agregação de preferências
ou de interesses, que se somam em público e vence a vontade da maioria; 3) a
deliberação, que pretende transformar publicamente as diferenças para se chegar a
uma vontade comum.
O deliberacionista vê a deliberação como o instrumento capaz de transformar
afirmações como “eu prefiro isto” ou “me interessa aquilo” em “queremos um mundo
em que tal coisa seja possível”. É a passagem do “eu” ao “nós” através da formação
democrática da vontade. O deliberativo valoriza o momento de apresentação
das propostas, os argumentos que se expõem, as objeções pelas quais alguns
argumentos são rechaçados, o acordo entre as parte acerca de determinados
objetivos, o compromisso que cada um assume para levar adiante sua parte e atuar
conjuntamente. Contudo, a decisão final normalmente ocorre por votação.233
Evidentemente a democracia deliberativa também sofre algumas objeções,
vamos aqui destacar quatro:
1) O elitismo: a democracia deliberativa costuma caracterizar-se como elitista,
pois nem todas as pessoas possuem o capital cultural necessário para ganhar
uma discussão ainda que tenham preferências legítimas. Surgem algumas
questões: a) qual é a relação entre o acesso equitativo ao processo deliberativo
e a distribuição dos ingressos? b) o elitismo que caracteriza a democracia
deliberativa tem sido criticado por intelectuais femininas, com o argumento
de que a deliberação tem sido historicamente possível porque os homens
discutem enquanto as mulheres cuidam dos filhos e se ocupam das tarefas
domésticas. c) produzirá a deliberação todos seus bons resultados se tem
lugar principalmente no seio de uma elite que se auto seleciona porque possui
mais conhecimentos que os outros acerca dos assuntos públicos e está mais
preocupada com eles?

seria, conforme os pressupostos da teoria discursiva, aquele modelo político em que a legitimidade das
normas jurídicas e das decisões políticas, radicaria em haverem sido adotadas com a participação de todos
os potencialmente afetados por elas. Admite que, dadas as dificuldades para alcançar a união do ideal e do
possível, há que estabelecerem-se certas ‘mediações’ que garantam uma fluida comunicação. Crê encontrar
nas instituições constitucionais vigentes (divisão de poderes, vinculação da atividade estatal ao direito e,
principalmente, os procedimentos eleitorais e legislativos) um reflexo das exigências normativas de seu
modelo político. (Conforme. VELASCO, Juan Carlos. Para leer a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, 2007)
Para ler a Habermas. Madrid: Alianza Editorial, p.106-109) em “queremos um mundo em que tal coisa seja
possível”
233 CORTINA, Adela. Democracia deliberativa, op. cit.
Em não raras ocasiões temos assistido a inúmeras reuniões nas quais de debatia entre possíveis opções,
com argumentos e contra-argumentos, abrindo um amplo leque de possibilidades até que o emaranhado
de opções era tal que se levantava uma voz para dizer: porque não votamos e acabamos logo de uma vez?
Martí nos ofereçe um conceito de democracia deliberativa: “A democracia delibeativa é um ideal normativo,
defendido por um modelo teórico de democracia que propõe a adoção de um procedimento coletivo na
domada de decisões políticas com a participação direta ou indireta de todos os potencialmente afetados por
tais decisões e baseado no princípio da argumentação, em lugar do voto ou da negociação”. (MARTÍ, J. L. La
república deliberativa. Una teoría de la democracia. Madrid: Marcial Pons, 2006. p. 314.
democracia
105

O republicanismo tem se caracterizado historicamente pela defesa de uma


participação qualificada. Desde Aristóteles, a superioridade da república
sobre outros regimes políticos tem se assentado em seu caráter de governo
da lei, entendida esta como norma racional acima das paixões e interesses.
Para criar esta lei o instrumento apropriado é a deliberação dos cidadãos.
Entretanto, a deliberação não está obrigatoriamente vinculada à democracia.234
Poder-se-ia pensar que efetivamente não é adequado que todos os cidadãos
– a maioria dos quais carece das condições intelectuais e morais apropriadas
– deliberem. Melhor seria que participassem das deliberações somente uma
minoria de pessoas intelectualizadas e moralmente destacadas que são
capazes de julgar reflexivamente e de deliberar corretamente. Esta seria uma
opção do republicanismo aristocrático, do governo representativo e no fundo
da democracia elitista competitiva. Segundo esta tese, ou bem se restringe a
cidadania aos melhores, ou bem, supondo-se uma cidadania universalizada,
ainda que sejam legalmente e inclusive politicamente iguais, se limitem
os cidadãos a escolher os mais capacitados e virtuosos para deliberarem e
decidirem em seu lugar.235

234 Citamos aqui um exemplo apresentado por F. Ovejero, para esclarecer em que consite a deliberação. Trata-
se condomínios e uma escada, assim: uma pequena comunidade de condomínios se reune para decidir se
instalam ou não um elevador. A mais interessada é uma senhora idosa que vive no último andar e tem muitas
dificuldades para subir ao seu apartamento. De outro lado, os casais sem filhos dos primeiros três andares,
que com grandes dificuldades econômicas compraram seu apartamento, não estão dispostos a votar uma
proposta que lhes exija novos sacrifícios econômicos para instalar um elevador pefeitamente dispensável
para eles. Também é de muito pouco interesse a um jovem solteiro economicamente bem sucedido, mas que
unicamente tem o apartamento para algun fim de semana que passa na cidade. As regras do jogo parecem
claras: a decisão é tomada somente pelos afetados. É uma clara mostra do procedimento democrático.
Contudo há alguns aspectos que poderiam ser discutidos. Cada apartamento é uma unidade de decisão
e possui um voto, independentemente de quantas pessoas vivam nele. Inclusive, iniciada a discussão, se
poderia questionar se deve valer o mesmo a voto do solteiro que apenas eventualmente utiliza o apartamento,
lhe importando muito pouco o que ocorre no prédio. Aqui sim, há um aspecto reconhecido do sistema
democrático: contam as vozes de todos e contam por igual. Em segundo lugar, há que questionar-se se a
decisão deve ser adotada por maioria ou unanimidade. O melhor seria por unanimidade mas isto pode exigir
muito tempo até que todos sejam convencidos de que instalar um elevador será benéfico para todos. Se não
houvessem interesses conflitantes ou problemas de recursos seria fácil chegar-se à unanimidade, mas basta
que um morador se negue para que nada se possa fazer. De fato, conforme a lei vigente, a decisão de se
instalar um elevador em um edifício deve ser adotada por unanimidade. Outra possibilidade é que antes de
votar se inicie uma negociação entre os moradores, destacando a valorização dos imóveis se ali se instalar
um elevador. Aqui o resultado não seria bom ou justo e sim conveniente ou interessante. E quando chegar
a hora da votação alguns moradores podem se negar sem ter que justificar sua negativa. Por exemplo, os
do primeiro piso, simplesmente porque não lhes interessa, já que jamais utilizaram o elevador. Enfim, em um
caso a decisão final pode ser o resultado de um processo de negociação onde se recorre à força (em votos)
de cada um. A decisão dependerá dos votos que respaldem a cada uma das opiniões e da regra de decisão.
Se basta a metade mais um para que seja aprovada, será muito limitada a capacidade de influir na decisão
final das minorias. Em outro caso, na deliberação, a decisão é o remate final de um processo de discussão
em que se apela a razões, em princípios aceitaveis por todos. Não se pode dizer: “deve ser assim porque é
melhor para mim”. A decisão adotada dependerá do valor dos argumentos que respaldem cada ponto de
vista. Por exemplo, não se pode apresentar uma proposta de deliberação que o solteiro rico pague todos os
gastos.
235 Nem os defensores da tese da independência como E. Burke defendem uma liberdade absoluta por parte
dos representantes, nem os defensores da tese da dependência, como S. Mill, querem converter estes em
autômatos delegados, o que anularia a própria relação de representação. (Cf. MARTÍ, José Luis. La república
deliberativa. Una teoría de la democracia, cit., p. 236). Uma teoria da representação deve responder a estas
quatro questões: 1) Quem deve ser o representante?; 2) Como selecionamos o representante?; 3) Qual é o
vínculo entre representante e representado?; 4) Como deve se realizar a representação?. Mesmo depois das
revolução liberais, os conceitos de democracia e de representação se distinguiam e, inclusive, se opunham.
Depois evoluiram até chegar à ‘representação democrática’, por um lado, e à ‘democracia representativa’, por
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
106 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

2) A divisão do trabalho: o tamanho e a complexidade de nossas sociedades


atuais impede organizar as tarefas, encargos e funções comunitárias se não
tomar-se como critério um princípio estrito da divisão do trabalho. A política requer
dedicação, e não podemos pensar que todos os cidadãos estão em condições
de destinar tempo e esforço com a política, já que devem compartilhar com suas
respectivas profissões, família e demais atribuições. Por isso, da política deve se
encarregar pessoas especialmente designadas para esta função: os políticos.
Se este argumento já se utilizava para justificar a representação, agora em na
sociedade tecnológica e do conhecimento, com maior razão. Este argumento
da divisão do trabalho se apresenta como uma questão de eficiência. A isso
há que se agregar o argumento da liberdade individual, pela qual não se pode
obrigar aos cidadãos a participar de assuntos públicos.
3) O custo da deliberação. Os custos podem ser de três ordens: a) de tempo, já
que o procedimento deliberativo exige que os participantes exponham e debatam
todos seus argumentos a favor de suas preferências; b) de esforços pessoais
empenhados, já que os participantes devem interessar-se por assuntos públicos,
realizar o acompanhamento das ações de seus representantes, participar das
deliberações, etc.; c) econômicos decorrentes de abrir-se a deliberação pública
a todos os cidadãos.236
4) Pode realmente a deliberação chegar a ocupar o lugar das votações majoritárias
como procedimento decisório? Para isso se necessitaria: a) que o parlamento e o
Senado se convertessem em câmaras deliberativas, para intercambiar propostas
argumentadas e que pudessem levar a uma alteração das posições iniciais a
finalmente uma vontade comum; b) partidos acostumados a deliberação interna
e dispostos a não se deixar levar por critérios meramente eleitorais, defendendo
propostas somente para obter votos ou vencer a oposição; c) cidadãos capazes
de participar das discussões, com conhecimentos suficientes para tomar
decisões bem informados e dispostos a assumir a tarefa que lhes corresponder
na decisão comum. A democracia deliberativa é também valiosa porque, através
da participação política, especialmente em foros deliberativos, os cidadãos
acabam por adquirir uma formação e valores, que não seria possível em um
sistema rígido de divisão elitista do trabalho. Ao participar das discussões em

outro. O problema desta transformação é que acabou voltando as costas ao legítimo sentido da representação.
P. Bachrach, um dos maiores estudiosos do elitismo político destaca que “todas as teoria da elite assentam-se
em dois supostos básicos: primeiro, que as massas são intrinsecamente incompetentes e, segundo, que são,
na melhor das hipóteses, matéria inerte e moldável à vontade e, na pior, seres ingovernáveis e desenfreados
por uma inclinação insaciável de minar a cultura e a liberdade. Portanto, a filosofia elitista tem como corolário
a ideia férrea de uma elite criativa e dominante”. (Citação extraída de Martí, José Luis, ibidem).
236 MARTÍ, José Luis. La república deliberativa. Una teoría de la democracia, op. cit., p. 268-269.
Os mecanismos institucionais de participação democrática-deliberativa podem ser vários. J.L. Martí apresenta
os seguintes: 1) direito de petição e iniciativa legislativa popular; 2) mecanismos de participação de associa-
ções nas deliberações; 3) consultas e referendos deliberativos; 4) participação nas administrações públicas;
5) Órgãos independentes de participação semidireta: a) conselhos de cidadãos; b) deliberative polls; c) deli-
beration day; d) foros deliberativos de associações; e) orçamentos participativos – como o da cidade de Porto
Alegre.
democracia
107

assuntos públicos o cidadão também adquire consciência do que é de interesse


público e de seu próprio interesse.
Efetivamente é mister a necessidade de abrir-se a deliberação política à
cidadania, ao invés de preservá-la exclusivamente para o parlamento. Contudo: a)
nem as câmaras foram planejadas para o debate e sim para a votação em bloco; b)
nem os partidos políticos vão mudar suas estratégias – basta se observar um debate
entre políticos de diferentes partidos sobre determinada questão para se constatar
que ali não se debate livremente, que cada um sustenta os pontos de vista de seu
partido; c) nem os cidadãos podem aceder em pé de igualdade à opinião pública,
nem estão dispostos a assumir a parte que lhes corresponde nos acordos.
Os deliberacionistas continuam citando experiências – escassas e sempre em
países em desenvolvimento e em lugares de dimensões controláveis. Orçamento
participativo em Porto Alegre (Brasil), Villa del Rosario (Perú), San Joaquin (Chile).237
Mas, e o modelo deliberacionista para a Europa, Estados Unidos, ou mesmo para as
Comunidades Autônomas da Espanha?
Que querem aqueles que seguem propondo na vida pública uma democracia
deliberativa? Para Cortina238 podem ser duas coisas:
1) Que na hora de tomar decisões convêm aumentar as negociações com os
setores mais atingidos assim como potencializar debates na esfera pública. Mas tudo
isso sem modificar nem o funcionamento das Câmaras, nem a estratégia dos partidos,
nem a incidência dos cidadãos na vida pública. Esta opção se dá por satisfeita com
a política “agregativa”; entende que os diálogos não deixam de ser negociações de
interesses em conflito e não possibilidades de transformar preferências privadas em
metas comuns. Com esta primeira possibilidade não mudaria nada.
2 ) Que os cidadãos possam fazer algo mais que somar interesses e prostrar-se à
maioria, que aspiram a critérios de justiça para reger suas atuações. Mas tudo isso não
se pode improvisar. Deve-se partir de experiências de deliberação a partir das bases
da própria sociedade civil: hospitais, universidades, escolas, condomínios, comitês
de empresas, prefeituras, associações profissionais. Se, a partir desses núcleos da
sociedade civil se levar a sério a busca de metas comuns, não se contentando com
a mera negociação e a soma de interesses pode-se avançar para o procedimento
deliberativo. Com esta segunda opção se poderia mudar o sistema.
A democracia deliberativa se nutre, na verdade, de uma interação entre a
formação da vontade formalmente articulada [...] e a formação informal da opinião,
como destaca Habermas.239 O parlamento é o órgão institucionalizado representativo

237 CASTILLO, Adolfo; VILLACIENCIO, Hugo. Hacia una democracia deliberativa. La experiencia del presupuesto
participativo/san Joaquín 2004, Asociación Chilena de Municipalidades, 2005.
238 CORTINA, Adela. Democracia deliberativa, cit.
239 HABERMAS, Jürgen. [1983] Conciencia moral y acción comunicativa. Barcelona: Ed. Planeta-Agostini, 1994.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
108 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

da vontade popular, mas a gênese da formação da vontade política se encontra


nos processos não institucionalizados (partidos políticos, sindicatos, igrejas, foros
de discussão, condomínios, ONG’s). É nesse âmbito que surgem as necessidades,
se elaboram propostas políticas concretas e se controlam a realização efetiva dos
princípios e regras constitucionais. Lamentavelmente, não em raras ocasiões, os
partidos políticos monopolizaram as iniciativas da sociedade civil, subtraindo da
cidadania a oportunidade de definir a efetiva necessidade assim como o controle do
cumprimento dos programas.
Nos questionamos se a democracia deliberativa poderia constituir um modelo
de democracia com identidade própria ou se, ao contrário, o procedimento
deliberativo é um elemento característico da democracia em si, independentemente
do modelo de democracia que se trate (liberal, republicana, neoconstitucional,
etc.). Nos inclinamos à ideia de que o procedimento deliberativo pode – e convém
– ser utilizado em qualquer das diversas formas de democracia. É provável que os
cidadãos deliberantes se encontrem mais cômodos em uma democracia republicana,
mas próxima do diálogo e da participação, mas isso não significa que não se
possa utilizar em qualquer dos outros tipos de democracia. A democracia liberal
permanece mais ancorada no individualismo, refugiando-se na própria autonomia, e
menos propensa a admitir as argumentações dos outros, mas não está excluída de
um procedimento deliberativo. Por sua parte, a democracia neoconstitucional, ainda
que continue sustentando a primazia da constituição e dos próprios intérpretes do
texto constitucional, também admite a deliberação.

2.3.3.1 As instituições da democracia deliberativa

Uma vez sentadas as bases de uma democracia deliberativa, faz-se necessário


encontrar formas para aumentar o elemento deliberativo nas democracias modernas.
É conhecida a proposta de James Fishkin das “sondagens deliberativas”, que são
pequenos foros de cidadãos escolhidos ao acaso, que discutem, se informam e,
somente ao final tomam posição a respeito de algum assunto.240 Dentre as formas

240 Em uma entrevista realizada por A. Malamud, com Philippe C. Schmitter, sobre a democracia deliberativa
(publicada em Reset 83, Roma, maio-junho de 2004) destacava este que, a partir de uma conferência
realizada por J. Fishkin no Instituto Universitário Europeu de Florença sobre a “sondagem deliberativa”,
discutiu-se a possibilidade de utilizar-se a sondagem deliberativa em nível europeu, especialmente no que
se referia à convenção constituinte. Mas Schmitter pensou que não era boa ideia por duas razões: 1) em
uma sondagem deliberativa é requisito essencial que as pessoas escolhidas por sorteio façam parte de uma
unidade sobre a qual todos estejam de acordo. E a Europa não é uma unidade que reúne esta característica;
2) As sondagens deliberativas se referem a medidas políticas específicas, e o problema que se apresentava
em nível europeu referia-se a um tema absolutamente amplo e não centrado em duas ou três questões
pontuais. Por isso Schmitter apresentou a proposta para a criação de uma “Assembleia de Cidadãos”: uma
assembleia convocada por pouco tempo, uma imitação do Parlamento Nacional, de modo que estas pessoas
pudessem sentar-se no parlamento durante o recesso legislativo e receber o mesmo salário de um deputado.
Deveriam concentrar suas atenções em três temas legislativos. Com tempo suficiente para preparação e
deliberação, qualquer grupo de cidadãos deveria estar capacitado para propor uma discussão razoável e
produzir uma avaliação sensata sobre um tema relevante. Nem todos poderiam ser eleitos: presidiários e
doentes estariam fora. O único pré-requisito é que existisse uma democracia representativa prévia com um
nível mínimo de educação e com baixos níveis de discriminação efetiva. Considera que esta proposta poderia
democracia
109

sugeridas para a sua realização estão as seguintes:241


a) Introdução de pesquisas deliberativa. Ocorre com a seleção aleatória de uma
amostra representativa da população, um “microcosmos” do conjunto do eleitorado.
Reunir-se-ia esses cidadãos por alguns dias para deliberar sobre determinado
assunto urgente que preocupe a população. Previamente se lhes perguntaria sua
opinião a respeito. Depois, se trataria de contrastar sua opinião inicial com a final,
uma vez que houvessem conhecido outros argumentos, visto as provas e escutado
especialistas no assunto. Normalmente o processo de deliberação modifica a opinião.
Os resultados seriam publicados para estimular o público a expor com cautela suas
próprias opiniões.
b) Dias de deliberação. Trata-se de dedicar determinados dias à discussão
pública de um assunto candente. Por exemplo, reunir 500 cidadãos em um colégio
ou centro cívico para que passem um dia deliberando sobre os candidatos que
se apresentaram às eleições políticas. A rádio e a televisão poderiam transmitir
esta discussão para que se estendesse a toda população. Para evitar que alguém
não compareça por razões econômicas, seria, inclusive, remunerado por este dia
dedicado ao debate público.
c) Jurados de cidadãos. Seriam convocados por órgãos públicos para expor
sua valoração e prioridades políticas em temas candentes, uma vez ponderadas as
provas e tomando consciência dos argumentos relevantes. Podem ser utilizados para
aconselhar governos sobre uma vasta gama de temas controvertidos: planejamento
urbano, política sanitária, reforma do Estado de bem-estar, gastos sociais, etc.
d) Ampliar os mecanismos de informação dos votantes e da comunicação. São
mecanismos planejados para melhorar a comunicação e a compreensão entre aqueles
que tomam as decisões e os cidadãos. Podem combinar as diversas possibilidades
que atualmente oferecem as novas tecnologias - TV a cabo, internet, whats app, foros
de opinião virtual, etc.
e) Reforçar a educação cívica para melhorar a possibilidade de eleições maduras
e o financiamento de grupos cívicos e associações que buscam o compromisso com
a república deliberativa. É importante que a educação cívica integre a aprendizagem

ser incorporada às leis internas do Parlamento para que a soberania popular não fosse afetada. Tratar-se-ia de
uma comissão dentro do parlamento, mas composta por não parlamentares. A ideia não é que a assembleia
se reúna e debata se determinado projeto é bom ou mau, mas se é bom ou mau dentro do contexto em que
está inserido. E sempre deixando claro que a proposta é a de uma democracia deliberativa, não participativa –
embora seguramente, a deliberação ecoe como um incremento da participação. Por exemplo. “suponhamos
que Berlusconi pretenda aprovar uma lei que lhe permita comprar totalmente a televisão italiana e que possui
deputados suficientes para aprovar a proposta. Mas suponhamos que um terço dos deputados pensem ‘um
minuto, isto é uma loucura, isto vai completamente contra todos os princípios democráticos de divisão de
poder e conflito de interesses’. Então, a aplicação desta lei ficaria suspensa até que se reúna a Assembleia
Cidadã.” Tem-se que, para os deputados, seria uma vergonha que se aprovasse tal lei que nem sequer
um grupo de cidadãos comuns havia aprovado. (extrato da entrevista, p. 20); Ver também SCHMITTER,
Philippe C. El diagnóstico y el diseño de la democracia. Sistema: Revista de ciencias sociales, n. 203-204,
2008 (Exemplar dedicado a: Nuevos desarrollos de la democracia). p. 45-53.
241 HELD, David. Modelos de democracia, op. cit., p. 351-357.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
110 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

das crianças, desde tenra idade, para ajudar a desenvolver suas capacidades e
fomentar seu espírito crítico e deliberativo.
Para levar adiante as propostas citadas, deve-se contar com o apoio dos
partidos políticos, sindicatos, parlamentos, comitês supranacionais e organismos
internacionais, associações públicas e privadas, operadores jurídicos e tribunais,
enfim, deve-se contar com a participação da classe política e dos cidadãos. Tudo isso
levará a uma renovação da democracia representativa que arraigada no consentimento
livre e razoado dos cidadãos – a deliberação – acabaria desembocando em uma
democracia participativa e deliberativa. As condições para tal objetivo se assentam no
pluralismo de valores, no programa de educação cívica, em uma cultura e instituições
que respaldem o desenvolvimento de preferências maturadas e, evidentemente,
também o financiamento público de organismos e práticas de deliberação e de
associações que os apoiem.242
Resta ainda o questionamento se a democracia deliberativa constitui uma
mudança paradigmática. Como acertadamente profere Held, até onde e até que ponto
se entenda a democracia deliberativa como um modelo inovador de democracia ou
como uma mudança na forma que se entende e funciona a democracia representativa,
é uma questão que deverá seguir se debatendo.243

2.4 Democracia e demos – as voltas com a representação

Para apresentar algumas reflexões acerca da democracia, partiremos da


modernidade, das teorias do contratualismo clássico. A concepção do contrato
social tinha, evidentemente, como objetivo, justificar o nascimento da sociedade civil
e da política. As três linhas principais surgem a partir dos jusfilósofos Hobbes, Locke
e Rousseau. O primeiro, Hobbes, se propõe a justificar principalmente a dominação
política, que apresenta como a única garantia de paz e estabilidade. Seu pacto social
é de união civil e de dominação política mediante a coercibilidade do soberano.
Diferente era o posicionamento de Locke, que invocando o direito natural, para marcar
o mínimo de onde partir – direitos naturais já no próprio estado de natureza – se
propôs a justificar a necessidade de limitar e controlar o poder político. Já Rousseau
se baseou em um acordo consensuado - o contrato social – que permitia conservar
a igualdade e a liberdade, características do estado de natureza, para construir uma
sociedade civil de homens livres e iguais.244

242 HELD, David. Modelos de democracia, op. cit., p. 361.


243 Idem, p. 362.
244 Em relação ao tema da representatividade no processo democrático a obra rousseauniana é contraditória em
alguns pontos já que inicialmente é contrária a possibilidade de uma manifestação democrática indireta para,
mais tarde, reconhecer a dificuldade de submeter-se à forma direta de democracia em sociedades complexas,
admitindo a possibilidade de uma democracia indireta, isto é, através da representação. A reticência de
Rousseau em relação à democracia representativa revela um temor que mais adiante vai se confirmar: o de
que na democracia representativa os cidadãos manifestam suas intenções periodicamente e se desvinculam
democracia
111

Desde então, e até hoje, o acordo fundamental que se exprime nesse contrato
social foi concretizado, tanto nos antigos como nos modernos Estados, em uma
Constituição. A Constituição é o resultado de uma deliberação política – quando
não uma simples negociação – em um momento histórico-social determinado,
entre forças e valores desiguais, dentro de um amplo espaço democrático formal.
Daí que o resultado de tais negociações e coerções, mais ou menos invisíveis, seja
necessariamente parcial e induzido a uma ideologia embora suficientemente válido e
legítimo para fundar e dirigir um regime democrático, sancionado e, ademais, e isto
é decisivo, referendado pelo povo (demos).245
Um cidadão republicano é o que configura uma democracia, porque os liberais,
carecem, inclusive, do conceito que é o primordial para os republicanos: o de
comunidade política, existência comum, uma vez que sem comunidade política não
há cidadãos, mas indivíduos liberais. Para os liberais o essencial é estar livre de
vínculos, é o ideal da não interferência, tanto por parte do Estado como por parte dos
demais indivíduos. Representa a primazia do indivíduo sobre todos os demais, com a
conseguinte conquista dos direitos civis e políticos. Os direitos civis justificam-se por
serem os que garantem a independência do indivíduo.
Os direitos políticos asseguram ao indivíduo planificar sua vida como desejar:
pode dedicar-se somente à vida privada (negócios, profissões liberais) ou pode
optar por formar parte de uma classe política profissional através da representação
política, o que não deixa de ser uma contradição já que, se o indivíduo liberal defende
sua autonomia, como pode aceitar que outro indivíduo represente seus interesses
políticos? A resposta é bem posta por Carracedo que esclarece que tal desvirtuamento
teria como objetivo burlar os interesses do proletariado o que somente se poderia
conseguir através da burguesia. Isto é, os burgueses disporiam dos adequados
contatos sociais, possuiriam cultura, recursos econômicos e demais condições para
exercer o poder político. A preeminência política se completou quando se fixou o
modelo indireto de representação, com o qual se afastava o controle popular efetivo.246
Por tudo isso, o liberalismo não questiona programas de educação cívico-
política, ao contrário, desencoraja toda e qualquer tentativa de participação política
dos cidadãos, deixando-a nas mãos de profissionais e especialistas.
Mesmo depois das revoluções liberais os conceitos de democracia e de

das decisões importantes tomadas por seus representantes, permitindo que seus assuntos privados sejam
decididos, esquecendo (ou transferindo) suas responsabilidades públicas. Através de um processo direto os
cidadãos não somente se envolvem mais com os temas que lhes dizem respeito, mas também se vinculam
nas decisões tomadas, e não permitem a negociação de seus interesses privados. Ante a dificuldade – ou a
impossibilidade – de um regime direto de democracia em grandes Estados, Rousseau acaba “abrindo a porta”
a outra democracia, que necessita de mediadores, de delegados ou de representantes, a qual conhecemos
hoje como democracia representativa.
245 CARRACEDO, José Rubio. Teoría crítica de la ciudadanía democrática. Madrid: Trotta, 2007. p. 130-131.
246 As classes populares constataram rapidamente este predomínio abusivo, o que deu lugar às revoluções
(fracassadas) de 1830 e 1848.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
112 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

representação se distinguiam e, inclusive se opunham. Depois se evoluiu até chegar


à representação democrática por um lado e à democracia representativa, por outro.
O problema dessa transformação é que acabou manipulando também o legítimo
sentido da representação. A representação indireta se diferencia da direta em quatro
aspectos básicos:
a) Listas abertas de candidatos – o adequado seria que os partidos políticos
apresentassem ao eleitorado listas abertas de seus candidatos, selecionados
democraticamente e não designados pela cúpula burocrática. Como assim não
ocorre, aos eleitores não resta outra alternativa que a de referendar a designação
partidária já que não podem eleger realmente. Em uma lista aberta, elege o
eleitor, em uma lista fechada elege quem tem poder no partido;
b) O programa de governo – todo candidato apresenta aos eleitores um
programa concreto e uma promessa implícita de que se for eleito atenderá a
este programa. Geralmente se trata do programa do partido, com alguns matizes
pessoais em atenção a algumas solicitações de eleitores. A diferença é que a
representação direta adota este contrato entre representante e representado,
direta e abertamente, enquanto na representação indireta o faz como futura
intenção, como propaganda eleitoral, já que o único propósito e o que importa
é conseguir os votos necessários para ganhar; depois se verá a possibilidade
de cumprir algumas das promessas. Em face aos flagrantes descumprimentos
sempre se pode invocar os interesses do Estado ou que eram inviáveis;247
c) Prestação de Contas – A representação indireta não se sente obrigada a
prestar contas aos eleitores. Um deputado federal, por exemplo, representa
a nação (ou o Estado), não necessariamente seus eleitores. A representação
direta, ao contrário, leva em consideração direta seus eleitores. A representação
nacional não ofusca sua vinculação com os eleitores, portanto se está mais
disposto à prestação de contas;
d) Renúncia política – Pela lógica da representação direta, um representante
deve abandonar seu cargo quando perde a confiança de seus eleitores. (por ex.
se não cumpriu o programa ou as ações a que se propôs). Na representação
indireta isto não ocorre pois, o representante político deve lealdade ao partido,
antes dos eleitores. A lógica é: aqueles que estiverem descontentes com sua
gestão que não o reelejam. O problema é que deve-se esperar as próximas
eleições e sequer tem-se garantia de que o mesmo vá concorrer.
Entretanto, qualquer que seja o seu modelo, não há nenhuma dúvida de que a
democracia é o melhor sistema político que se encontrou até hoje. Como disse Sir
Winston Churchill em seu famoso discurso na Câmara dos Comuns em 11 de setembro

247 MARTÍN, Nuria Belloso. Breves apuntes sobre el incumplimiento contractual de una promesa electoral.
Revista do Direito, Santa Cruz do Sul, UNISC, n. 27, p. 83-120, jan./jun. 2007.
democracia
113

de 1947: “Ninguém pretende que a democracia seja perfeita ou sem defeitos. Tem-
se dito que a democracia é a pior forma de governo, salvo todas demais formas
que têm sido experimentadas de tempos em tempos”. Basta vermos os resultados.
Para Castillo, a prova está em ver “para onde se dirigem as balsas”. Estas frágeis
embarcações que transportam os imigrantes ilegais, em sua maioria, em busca de
melhores condições de vida. A prova da direção dessas balsas é um indiscutível
indicativo de onde se vive melhor e de qual o sistema político melhor contribui para
o bem-estar humano. As balsas não seguem da Espanha para o Marrocos, ou para
a Síria, ou da Europa para a África; os balseiros não cruzam o Caribe para escapar
dos Estados Unidos e refugiar-se em Cuba; as escaladas no muro de Berlim não
eram de Berlim Ocidental para Berlim Oriental. Um número infinito de pessoas joga
sua própria vida, com uma alta probabilidade de perdê-la, para trocar de sistema
político.248 Ocorre que a ideia de democracia está indissoluvelmente vinculada às
idéias de dignidade, liberdade e igualdade entre os homens, constituindo-se em
um corolário de tais princípios, portanto somente em uma democracia os direitos
humanos podem ser efetivamente concretizados. O respeito aos direitos humanos
está indissociavelmente unido à democracia porque respeitar os direitos do homem
significa respeitar sua liberdade de opinião, de associação, de manifestação e todas
as demais liberdades que somente uma democracia permite.
Quanto a seu modelo, considerando a impossibilidade prática da democracia
direta nos Estados contemporâneos, Castillo aponta a democracia liberal como a
mais adequada e apresenta suas características básicas:

1. Trata-se de uma democracia representativa, isto é, o povo não governa


diretamente e sim através de seus representantes. Isto obedece tanto a razões
práticas, uma vez que o tamanho das sociedades atuais a tornaria inviável, como
para evitar o risco de eventual manipulação de alguns cidadãos sobre outros;

2. Se baseia no sufrágio universal, livre, direito e secreto. O sufrágio universal


foi introduzido tardiamente nas democracias ocidentais. Reconheceu-se o voto
masculino no final do séc. XIX e somente no sec. XX, o sufrágio feminino;

3. É um modelo de democracia baseado no império da lei;

4. No modelo de democracia ocidental vige o princípio da separação de poderes,


tendo como base as teorias de Locke e Montesquieu. Divisão de poderes não
tanto entre os três tradicionais, mas entre dois poderes fundamentais: o poder
de decidir as questões políticas em termos gerais, por um lado, e o poder da
execução concreta dessas decisões gerais, por outro.

5. A democracia ocidental é uma democracia respeitosa com os direitos

248 CASTILLO, Manuel Escamilla. Demos y democracia. In: Anuario de Filosofía del Derecho. Tomo XXIII. Madrid:
BOE – Ministerio de Justicia, 2006. p. 272.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
114 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

humanos; direitos humanos que, desde o princípio são universais, os direitos


coletivos são direitos instrumentais, a serviço dos indivíduos.249
Devemos reconhecer, contudo, que a democracia representativa, ante os
novos desafios do mundo contemporâneo, passa por dificuldades, abrindo caminho
para a democracia participativa. Para Fernández e Sotomayor, um dos desafios da
democracia representativa, como sistema de governo, é o incremento de motes que
ocorrem fora de nossas fronteiras e nos atingem diretamente (agressões ambientais,
narcotráfico, epidemias, deslocamento da produção, fluxo de capitais, conflitos
bélicos, etc.). Se a matéria que nos atinge se origina fora de nossas fronteiras, a
democracia não pode ficar restrita ao Estado-nação. Outro desafio da democracia
representativa é sua própria debilidade para resolver a questão da participação
cidadã na vida social. Embora seja evidente que o cidadão comum não conhece
sequer o funcionamento da sua prefeitura, o rechaço e a insatisfação ao sistema é
contundente, e abre caminho aos novos movimentos sociais.250
De qualquer maneira, a democracia, tal como a conhecemos hoje, é uma
democracia representativa, baseada no sufrágio universal, livre, direto e secreto, no
império da lei, na divisão de poderes e no respeito aos direitos humanos. Suas formas
e procedimentos refletem a evolução das sociedades, ao menos a ocidental.
Nino aborda também a questão moral, e depois de uma série de questionamentos
conclui pela importância de um governo democrático e a democrática origem das
normas. Porque as decisões democráticas gozam de uma presunção de validade
moral e isso significa que temos razões morais para cumprir suas determinações.
A origem democrática de uma norma nos leva a crer que há razões para cumprir
seu conteúdo. Em proporcionarmos estas razões reside a superioridade moral da
democracia, já que teremos razões para fazer aquilo que temos razões para crer que
temos razões para fazer.251
Então, como conclui Mosca, a democracia responde àquela necessidade natural
do homem de governar e sentir-se governado, não pela força material ou intelectual,
mas sobre princípios morais.252

249 Idem.
250 FERNÁNDEZ, Ernesto Ganuza; SOTOMAYOR, Carlos Álvarez. Democracia y presupuestos participativos.
Barcelona: Icária, 2008. p. 16-17.
251 NINO, Carlos S. La paradoja de la irrelevancia moral del gobierno y el valor epistemológico de la democracia.
In: NINO, Carlos S. El constructivismo ético. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989. p. 113-133.
252 MOSCA, Gaetano. In: BALLESTEROS. Alberto Montoro. Razones y límites de la legitimación democrática del
derecho. Murcia: Secretariado de Publicaciones de la Universidad de Murcia, 1979. p. 31.
democracia
115

2.5 Cidadania ativa, patologias corruptivas e virtude cívica

Na origem de nossa civilização – reportando-nos à Grécia – eram os filósofos


que apontavam as características e condições que deveriam reunir os governantes;
basta lembrar a República de Platão ou a Política de Aristóteles. Defendiam que a
democracia deveria selecionar os melhores, os mais virtuosos e sábios para velar
pelos interesses coletivos.253
Como vimos, é tão somente a partir das revoluções democráticas do século
XIX, que se vai conquistando progressivamente o direito a uma participação de todos
os cidadãos. A base racional em que se sustentavam tais direitos era a de igual
condição de todos os indivíduos.
Assim que modernamente o reconhecimento do direito de participação no
governo e nos assuntos públicos que delineiam o destino da comunidade encontra-
se expressamente reconhecido nos principais documentos internacionais254 e nas
constituições da maioria dos Estados Modernos.
Atualmente é contundente e incisivo o argumento de que para democratizar o
Estado, qualquer indivíduo, sem especiais requisitos e condições, além da eleição
popular, pode participar das atividades de governo. Para Ibáñez é possível que esta
situação

sea un efecto (en principio no deseado) de la llegada de la democracia


y su principio igualitario, que habría supuesto una reacción frente al
modelo aristocrático de selección de gobernantes, excesivamente
elitista o clasista, pero sin ofrecer una alternativa clara al respecto.255

Pode-se atribuir esta tendência a rebaixar as qualidades e atitudes dos


governantes aos regimes onde a luta de classes e a ditadura do proletariado
demonstraram todo tipo de elites. A isto há que se agregar o enfoque relativista
baseado no “vale tudo” ou “tudo é igual”. Como destaca Ibáñez, talvez o problema
surja de considerar-se que governar é o mesmo que representar, pois para esta
última função somente a eleição dos representados pode e deve bastar. O exemplo
claro pode-se verificar nas eleições brasileiras de 2010. A maioria dos partidos
selecionou seus candidatos pensando fundamentalmente em “puxadores de votos”
(artistas, jogadores de futebol, figuras caricatas, etc...), grandes máquinas eleitorais
para alcançar o poder, mas não se preocuparam em prepará-los para exercer o
poder com rigor e eficácia. Isto fica para depois das eleições, quando já é tarde para

253 Esta teoria, recentemente, volta a ser sustentada por Harrington, Schumpeter e Sartori, dentre outros.
254 Veja-se a Declaração do Bom Povo da Virgínia; a Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do
Homem, artigo 20; a Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo XXI; o Pacto Internacional sobre os
Direitos Civis e Políticos, artigo 25.
255 IBÁÑEZ, Alberto J. Gil. Están preparados los políticos para gobernarnos? In: Notario del siglo XXI, n. 32.
Madrid: Revista del Colegio Notarial de Madrid, 2010. p. 8.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
116 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

recuperar o tempo perdido ou onde se impõe o pagamento dos favores. Situação


igual vive a Europa, especialmente a Espanha. Os partidos nacionalistas tampouco
melhoram a situação, pois nestes também não é o mérito e a capacidade o que mais
se valora, mas a fidelidade às premissas nacionalistas, além de outros aspectos
como o domínio da língua territorial – caso dos Bascos, Catalães e outros.
Os cidadãos não votam no dirigente mais preparado e sim no mais carismático
ou naquele que apresentar um slogan mais sugestivo. A pergunta que faz é: não
deveria o povo se preocupar com a escolha de seus governantes? Esta é uma
situação alheia ao interesse do cidadão? Seguramente “no habrá mejora de la
Administración si las propuestas de reforma y exigencias de capacitación afectan
únicamente a los funcionarios y demás empleados públicos y no a sus máximos
dirigentes políticos”. Não é nosso objetivo aprofundar no perfil profissional completo
a ser exigido dos governantes, mas de forma sintética apresentamos as exigências
mínimas sugeridas por Ibáñez: além de uma certa experiência mínima e os lógicos
conhecimentos de economia e idiomas (mundo globalizado) requer-se capacidades
e habilidades específicas tanto no início de seu mandato (capacidade de liderança,
de formar boas equipes e integrá-los no cumprimento dos objetivos, desenho de
estratégias e prevenção de riscos a curto e longo prazo) como durante seu mandato
(direção eficaz de reuniões, capacidade de aprendizagem, flexibilidade em um
entorno mutante, permanente atualização de capacidades e habilidades, iniciativa e
capacidade antecipativa, etc..) e na finalização do mesmo (criar pontes para que as
funções possam seguir com normalidade, deixar informações ordenadas, etc.).256
Em uma democracia, não são importantes somente os valores da educação
virtuosa dos cidadãos, mas também as formas e procedimentos, o formalismo e o
procedimentalismo.257 Alguns adotam o “gesto moralizador de intelectual”, crêem
estar acima do povo, se atribuem “defensores da pátria” e tendem a esquecer
que a democracia dos tempos modernos não funciona a base de valores, mas
principalmente, de instituições e procedimentos. Diz Greppi,

un ejército de moralistas, profetas de corrección política, dan a


entender que no es tarea de intelectuales perder el tiempo con
los ‘detalles’ de la estructura constitucional de las democracias
‘reales’, que lo importante es despertar sentimientos de solidariedad
democrática, hablando al corazón de los ciudadanos y apelando al
sentido de responsabilidad de los políticos.258

256 Idem, p. 13-14.


257 Ver MARTÍN, Nuria Belloso. Ciudadanía, democracia, constitución y educación: no basta la afición, se necesita
virtud. In: Mª .Susana Bonetto (Ed.). En torno a la democracia. Perspectivas situadas Norte-Sur. Córdoba
(Argentina): Universidad Nacional de Córdoba y Grupo Editor, 2009. p. 71-96.
258 GREPPI, Andrea. Concepciones de la democracia en el pensamiento político contemporáneo. Madrid: Trotta,
2006. p. 12.
democracia
117

Como destaca Carracedo, chama a atenção que a classe política seja uma das
poucas que careça de um código de ética. É certo que outras classes profissionais o
possuem (médicos, advogados, jornalistas), entretanto a classe política, tristemente
conhecida em muitas ocasiões por casos de desvios e corrupção nem sequer o cogitou.
Não necessitam? A realidade nos diz o contrário. Ministros, senadores, deputados,
governadores, secretários, prefeitos, vereadores e tantos outros integrantes da classe
política encontram-se muitas vezes envolvidos em negócios suspeitos, em questões
de tráfico de influências ou no uso de informações privilegiadas, que provocam
ceticismo nos cidadãos com relação à classe política. E são estes que devem velar
pelo bem comum, por nossos interesses? É o vale tudo para triunfar. Como alertou
Montesquieu “quem tem poder tende a abusar dele”, consideram tolos aqueles que
atuam com o mínimo de ética. Cada um, segundo seu grau de poder e de influência
atua corruptamente. Pode-se iniciar com boas intenções, mas depois, se cria uma
espécie de couraça contra a consciência ética, porque “afinal de contas, todos fazem
e, portanto, não pode ser tão mal” e se revestem de impunidade.
Evidentemente o povo, os cidadãos também não estão livres de culpa. O demos
não está devidamente preparado, se deixam convencer pelo líder carismático, por
aquele que os meios de comunicação apoiam, por aqueles que ao insistir maciçamente
acabam os convencendo.

Patologias corruptivas – A corrupção pode ser estudada e analisada sob


infinitas perspectivas, o que dificulta sua compreensão e condiciona sua precisão
conceitual. Para Leal, trata-se de um fenômeno de múltiplos fundamentos e nexos
casuais, tratada por diversos campos do conhecimento (filosofia, ciência política,
sociologia, antropologia, economia, ciência jurídica, etc.) daí a dificuldade de sua
compreensão e definição.259 Em sua origem grega, lembra Starling que

a palavra corrupção aponta para dois movimentos: algo que se quebra


em um vínculo; algo se degrada no momento dessa ruptura. As
consequências são consideráveis. De um lado, quebra-se o princípio
da confiança, o elo que permite ao cidadão associar-se para intervir
na vida de seu país. De outro, degrada-se o sentido do público. Por
conta disso, nas ditaduras, a corrução tem funcionalidade: serve para
garantir a dissipação da vida pública. Nas democracias – e diante
da República – seu efeito é outro: serve para dissolver os princípios
políticos que sustentam as condições para o exercício da virtude do
cidadão.260

259 LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade:
causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013. p. 81.
260 STARLING, Heloisa Maria Murgel. Ditadura Militar. In: AVRITZER, Leonardo (Org.). Corrupção: ensaios e
críticas. Belo Horizonte: UFMG, 2008. p. 259. Citação extraída de LEAL, Rogerio Gesta. Patologias corruptivas
nas relações entre Estado, administração puiblica e sociedade: causas, consequências e tratamentos. Op.
cit., p. 34.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
118 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Fernández Garcia lembra que quando falamos em corrupção em sentido amplo,


a maioria dos doutrinadores estão de acordo com sua definição:

Nos referimos a aquellos actos que implican, por acción u omisión, la


violación de un deber posicional o el incumplimiento de una función
específica, en un marco de discreción y con el objetivo de obtener
algún tipo de beneficio extraposicional261.

Essa definição compreende tanto a corrupção no setor publico como no privado.


Se nos restringirmos exclusivamente à corrupção política, uma boa e simples definição
nos é dada por García Mexía que refere-se a um comportamento orientado al uso de
un cargo o función públicos en aras de la obtención de un beneficio privado.262 Para
Njaim seria o abuso de poder que consiste no enriquecimento ilegal ou ilegítimo dos
políticos ou, em geral das autoridades – corrupção pessoal – ou o favorecimento ilegal
ou ilegítimo as causas ou organizações as quais estão integrados ainda que não se
beneficiem pessoalmente (corrupção oficial), graças aos cargos que desenham ou
suas conexões com os que os detêm.263
De sua parte, Malem Seña oferece um conceito de corrupção que se caracteriza
por um conjunto de características: haverá corrupção se, em primeiro lugar, a intenção
dos corruptos é obter algum benefício irregular, não permitido pela instituição da
qual participa ou presta serviços. Este benefício não necessita ser econômico, pode
ser político, social, sexual; tampouco é necessário que este benefício seja imediato.
Em segundo lugar, a pretensão de conseguir alguma vantagem na corrupção se
manifesta através da violação de um dever institucional por parte dos corruptos.
Em terceiro lugar, deve haver uma relação casual entre a violação do dever que se
impunha e a expectativa de obter um benefício irregular. Em quarto lugar, a corrupção
se mostra como uma deslealdade à regra violada, à instituição a qual se pertence ou
a que se presta serviços. Por isso a corrupção dos políticos é tão nociva em uma
democracia, já que constitui uma mostra inequívoca de sua deslealdade para com
o sistema democrático. A consciência dessa deslealdade faz com que, em quinto
lugar, os atos de corrupção tendam a ocultar-se, isto é, são cometidos em sigilo, ou
ao menos com grande discrição.264

261 FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política. In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo
A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 45.
262 GARCÍA MEXÍA, Pablo. Ética y gobernanza. Estado y sociedad ante el abuso de poder. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2008. Citação extraida de FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política.
In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion.
Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 45.
263 Citação extraida de FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política. Op. cit., p.
45.
264 Malem Seña destaca que o esquema conceitual que formula não somente tem a vantagem de oferecer uma
melhor explicação das teses em uso, mas que permite atribuir diferentes tipos de responsabilidades aos
agentes intervenientes nas distintas corrupções, sem fazer que estas responsabilidades dependam umas das
outras. MALEM SEÑA, Jorge F. La corrupción: algunas consideraciones conceptuales y contextuales. Revista
Vasca de Administración Herri-Arduraritzako Euskal Aldizkaria, n. 104.2 (Exemplar extra dedicado a la lucha
contra corrupción), p. 27, 2016.
democracia
119

A corrupção política é uma modalidade da corrupção. Seguindo a lição de


Malem Seña, os atos politicamente corruptos são aqueles que reúnem as seguintes
características: 1) um ato de corrupção implica na violação de um dever posicional.
Aquele que se corrompe transgride, ativa ou passivamente, alguma regra que
rege o cargo que ostenta ou a função que cumpre; 2) para que exista um ato de
corrupção política, deve haver um sistema normativo de caráter político que lhe sirva
de referência; 3) um ato de corrupção política nem sempre é uma ação antijurídica,
já que dependerá do tratamento que o sistema jurídico apresenta com respeito à
regulação de tais condutas.265
Já Garzón Valdés apresenta análises do fenômeno sob duas perspectivas: a
da modernização e a da moralidade. Para a primeira, define a corrupção como um
fenômeno próprio de regimes políticos não evoluídos, isto é, quanto maior for o grau
de desenvolvimento ou de modernidade de uma sociedade política, tanto menor será
o grau de corrupção nesta sociedade. Lembra que Max Weber já havia sustentado
a tese segundo a qual el dominio universal de la absoluta escrupulosidad en la
búsqueda de intereses egoístas para hacer dinero ha sido precisamente un rasgo muy
específico de aquellos países suyo desarrollo capitalista burgués ha permanecido
“rezagado’ de acuerdo con las pautas del desarrollo occidental. Algum tempo depois
Colin Leys relativizava essa tese: a corrupção não seria uma ‘característica específica’
dos países em desenvolvimento, mas neles existiria uma maior probabilidade de que
se produzissem tais atos. Sustenta e conclui Garzón Valdés que a realidade cotidiana
dos países altamente industrializados pôs em manifesto a falsidade dessas teses. A
segunda perspectiva: a da moralidade, é sustentada por afirmativas como a de Carl
J. Friedrich:

Aponta dez contextos favorecedores da corrupção: 1) quando o sistema punitivo é ineficaz; 2) quando os
atos de corrupção não são tipificados como delitos; 3) Quando as instituições e os órgãos anticorrupção
carecem de eficácia, cumprindo função meramente decorativa no plano jurídico-político; 4) quando os juizes
não prolatam sentenças condenatórias aos corruptos; 5) quando os juizes se veem obrigados a sentenciar
de conformidade com acordos estabelecidos entre o Ministério Público e a defesa dos acusados; 6) quando
se confirmam os atos jurídicos que são objeto de acordos corruptos; 7) da mesma forma os incentivos para
a corrupção se produzem quando não se recupera, por parte do Estado, os ativos subtraidos ou envolvidos
através da corrupção; 8) quando se criam vazias e fúteis comissões parlamentares de investigação para
determinar a responsabilidade política por atos de corrupção; 9) a reabilitação política dos suspeitos e
inclusive condenados por corrupção, também constitui uma forma de alimentar a ideia de que ser corrupto
gera insignificantes custos políticos , ao contrário, produzem certo reconhecimento e êxito político-social; 10)
as chamadas ‘portas giratórias’ também facilitam a proliferação da corrupção. Através delas se produz um
circular e incessante translado de pessoas que passam do mercado privado a organismos estatais e destes
às empresas de origem, uma vez cumprido seus mandatos. Neste caminho, quando ocupam cargos públicos,
costumam beneficiar as empresas de onde procedem e para onde voltarão, generosamente recompensados.
MALEM SEÑA, Jorge F. ‘La corrupción: algunas consideraciones conceptuales y contextuales’. Op. cit., p.
35-36.
265 MALEM SEÑA, Jorge F. La Corrupción Política. Jueces para la democracia, n. 30, p. 27, 2000. Seña dá
especial atenção a corrupção política na medida em que os partidos políticos se constituem o principal ator
das democracias contemporâneas. Claro que há outros atores políticos, tais como os movimentos cidadãos,
associações de empresários, sindicatos, etc., mas os partidos políticos são organizações complexas que
necessitam de recursos elevados para poderem funcionar adequadamente (alto custo de propaganda eleitoral,
necessidade de especialistas que lhes ajudem a tomar decisões políticas tecnicamente aceitáveis, descenso
dos afiliados e dos militantes políticos). Isso provoca que, em algumas ocasiões, busquem financiamentos
irregulares, ou inclusive, ilegais. Uma das atuações mais frequentes tem sido a compensação na conceção
de obras públicas (construção de estradas, linhas férreas, portos, aeroportos, edifícios públicos, etc.)
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
120 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Es posible constatar una ‘regularidad’ o una regla general y puede


decirse que el grado de corrupción varia inversamente con el grado
en que el poder es consensuado […] en aquellas situaciones en
donde una apariencia de consenso oculta la realidad coercitiva,
hay que contar con la corrupción. El poder del que se supone que
es ejercido con el consentimiento de los gobernados pero que se
ha transformado en coacción en grado considerable, conduce a la
corrupción.

Aqui também contesta Garzón Valdés afirmando que essa correlação entre
maior democracia e menor corrupção não é empiricamente sustentável. Lembra que
é sabido que havia menos corrupção sob o regime de Stalin que sob os regimes
soviéticos posteriores e que as democracias ocidentais abundam de exemplos de
corrupção governamental.266
O que se observa é que não se trata de um regime ou de um modelo. São os
homens, quando se desviam do dever de disporem de sua própria vida ao serviço
público, quando se convertem em vítimas da acumulação e se apropriam do bem
comum para si mesmos, quando adotam uma atitude negligente ante a participação
política e desviam o olhar para os assuntos de interesse privado, quando arriscam
a segurança de todos em benefício próprio ou de poucos, enfim, quando a virtude
cívica fraqueja, e que se criam as condições para que apareça e se desenvolva a
corrupção.267 Cidadão corrupto seria aquele que é incapaz de reconhecer os reclamos
que sua comunidade lhe apresenta, uma vez que prefere, em lugar de sustentá-los,
optar pela defesa de seus próprios interesses.268
É essa patologia social – como a define Leal – que conduz à indiferença ou à
perda de interesse em participar nos assuntos públicos, o que é a causa principal
da ruína de uma sociedade civil republicana. A corrupção supõe a reclusão ao
espaço privado, deixando os cidadãos ante a possibilidade de serem submetidos a
governantes sem escrúpulos que acabarão pisoteando suas garantias constitucionais.
É vital atentarmos para o alerta de Simon: se a sociedade entra em processo de
corrupção, a vida do indivíduo também se vicia; quando a sociedade é devassa, os
indivíduos começam a perder a capacidade de cultivar a virtude que os torna cidadãos
de verdade; e se alguém perde a capacidade de cidadão, perde a de homem, porque
uma vida humana digna somente pode-se viver sendo cidadão. Por isso um cidadão
não deve permanecer passivo ante a destruição de sua cidade, seu dever é atuar
para evitar.269

266 GARZÓN VALDÉS, Ernesto. El Concepto de corrupción. In: ZAPATERO, Virgilio. (Comp.). La Corrupción.
Mexico: Mexico D.C, 2007. p. 11-13
267 SIMON, María I. Wences. Republicanismo cívico y sociedad civil. In: SAUCA, J. María; SIMON, María I. Wences.
Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Madrid: Trotta, 2007. p. 194.
268 OVEJERO, Félix; MARTÍ, José Luis; GARGARELLA, Roberto (Comp.). Nuevas ideas republicanas. Autogobierno
y libertad. Barcelona-Buenos Aires-México: Paidós, 2004. p. 25.
269 SIMON, María I. Wences. Republicanismo cívico y sociedad civil. In: SAUCA, J. María; SIMON, María I. Wences.
democracia
121

González comenta uma grande dificuldade que se apresenta no combate à


corrupção: ocorre que a vítima se dilui, não há um sujeito diretamente afetado, ao
tratar-se de um dano coletivo, todos os cidadãos são prejudicados, mas nenhum
percebe o dano na primeira pessoa, de forma mediata, junto a si. Ao contrário,
sentem que o fato é alheio e distante, ao afetar a todos não afeta a nenhum em
particular. Não afeta a propriedade privada de ninguém. As vítimas da corrupção não
costumam mobilizar-se motivadas pela indignação ou comoção, como ocorre nos
casos de crimes contra crianças, bárbaros ou cruéis, onde pressionam os poderes
públicos por um endurecimento no sistema penal.270
Contudo, as consequências da corrupção são demolidoras, não unicamente
do ponto de vista ético, mas também da perspectiva econômica, social e política. A
corrupção, afirma Fernández García, é um monstro que tudo devora.271 Os Direitos
Humanos e os Direitos Fundamentais dos cidadãos são profundamente afetados
pelos atos de corrupção e, evidentemente, os indivíduos mais necessitados serão
os mais atingidos, na medida em que hospitais reduzem o atendimento, escolas
reduzem vagas, assistência social reduz pessoal e investimentos, programas sociais
são abandonados, tudo porque os recursos foram ilicitamente desviados para
atender interesses vis de alguns. A ocorrência dessa situação pode levar a outra
forma de corrupção, que afetará a sociedade como um todo, levando-a justificar
comportamentos condenáveis, aos poucos alterando a cultura ética e moral. Isso se
dá quando um cidadão ‘precisa’ subornar o médico para atender seu filho antes dos
demais, ou oferece algo ao funcionário da escola para conseguir uma vaga para seu
filho. O meio justifica o fim? E essa atitude, como um câncer contamina a sociedade,
que começa a aceitar atitudes corruptivas.
Pode-se dizer, então, que a usurpação do patrimônio público, a corrupção
e todas as demais patologias corruptivas, na maior parte das vezes, surgem e se
desenvolvem diante do silêncio, da conivência e da cumplicidade da sociedade.272
E a corrupção atinge duramente a cultura moral da democracia, pois corrói a
confiança dos cidadãos nas instituições e afeta seu otimismo na administração do
Estado. Pensadores republicanos advertem que, com a chegada da corrupção, há
terra fértil para que germine um governo despótico que tentará perpetuar-se mediante
a sistemática destruição da virtude cívica. E, quando este poder atinge seus objetivos,
começa um processo de desnutrição que torna anêmica a consciência civil, tal como
ocorre em muitas sociedades atuais, cujos habitantes aceitam silenciosamente

Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Op. cit., p. 194.
270 PARRA GONZÁLEZ, Ana Victória. Medios, opinión pública y corrupción. In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A.;
PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 45.
271 FERNÁNDEZ GARCÍA, Julio. Algunas reflexiones sobre la corrpción política. In: FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo
A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion. Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 43.
272 LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade:
causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013. p. 217.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
122 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

práticas ilícitas por parte de um governo de homens que sigilosa e astutamente vão
afastando o governo das leis. A verdadeira definição de República deve ser o império
das leis e não dos homens.
E, como bem alerta Touraine, a democracia está sempre ameaçada pelos
regimes autoritários e totalitários, mas há outra séria ameaça, que não procede de
nenhum poder omnipotente que reduza a sociedade a sua vontade, mas surge da
própria sociedade quando já não vê na ordem política outra coisa do que burocracia
arbitrária ou corrupção.
Corrupção, diz, é o termo mais exato se admitirmos que a democracia deve
ser representativa e, portanto, as forças políticas e os partidos em particular,
devem estar a serviço dos interesses sociais e não servir a si mesmos. Passando
ao largo da corrupção pessoal de certos políticos, assevera que a corrupção mais
perigosa para a democracia é a que tem permitido aos partidos políticos acumular
recursos tão consideráveis e tão independentemente da contribuição voluntária de
seus membros que lhes permite eleger os candidatos que lhes interessam, rindo,
desse modo, do princípio da livre escolha dos candidatos pelos filiados. Que não
há democracia sem partidos e sem atores políticos é algo que ninguém nega. Mas a
partidocracia – como Touraine define a situação – destrói a democracia, privando-a
de sua representatividade e a conduzindo ou ao caos, ou à dominação de fato por
grupos econômicos dirigentes, à espera da intervenção de um ditador. Por fim alerta:
o perigo da partidocracia é grandessíssimo no momento em que, em um país, os
atores sociais se fragmentam e se debilitam.273
Peces-Barba sustenta que um das características mais estáveis que identificam
a modernidade é a distinção entre a ética pública e a ética privada. O fim a alcançar,
ou o objetivo da ética pública, moralidade do direito ou justiça,

es orientar la organización de la sociedad para que cada persona pueda


alcanzar el desarrollo máximo de las dimensiones de su dignidad:
capacidad de elegir, capacidad de razonar y de construir conceptos
generales, capacidad de dialogar y de comunicarse, y capacidad para
decidir libremente sobre su camino para buscar la salvación, el bien,
la virtud o la felicidad. Este último aspecto es el que directamente se
refiere a la ética privada.274

Destaca, ainda, que os conteúdos da ética pública, situados no primeiro nível


são sempre procedimentais, isto é, não estabelecem condutas para a salvação, nem
regulam conteúdos de bem, virtude ou de felicidade, campo que corresponde à ética
privada.275

273 TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? París: Librairie Arthème Fayard, 1994. p. 126/128.
274 PECES-BARBA, Gregório Martinez. Ética pública y ética privada. In: Anuario de Filosofia del Derecho. T. XIV.
Madrid: BOE - Ministerio de Justicia, 1997. p. 534.
275 Esquematicamente Peces-Barba destaca as seguintes dimensões:
democracia
123

Contudo, a corrupção é tão antiga quanto a vida em sociedade, aliás, afirma


Benito Sánchez que se trata do segundo ofício más viejo del mundo.276 Também para
Malem Seña, a corrupção é um fenômeno que existiu em todas as épocas, percorreu
todos os sistemas jurídicos-políticos e não se encontra um único canto deste planeta
onde seja desconhecida.277 Resalta que:

Parece ser uma constante histórica la existência de um maridaje, no


siempre bien avenido, entre la política y el dinero. Tanto la uma como
el outro se buscan mutuamente com el fin de mantener, assegurar o
incrementar sus respectivas áreas de influencia. Y tanto la uma como
el outro exploran caminhos no siempre legítimos para alcanzar esse
objetivo.278

Seguindo essa reta linha, Gil Villa afirma que a corrupção é tão velha como
o homem e que esse comportamento sempre acompanhou a humanidade. Apesar
disso, lembra que nossos sistemas sobreviveram e se desenvolveram, então parece
que o fenômeno não é tão grave e vital assim como entendemos; nossa época
tende a exagerar devido a mecânica dos sistemas políticos democráticos ocidentais
modernos, que estabelecem o império da lei.279
Estudos e pesquisas internacionais como o Bribe Payers Index, realizado pela
ONG Transparência Internacional, demonstram que nenhum país esta livre das práticas
de corrupção. O fenômeno atinge tanto a países como Suíça, Suécia, Austrália ou
Áustria, (ainda que minimamente) quanto as grandes potências exportadoras como a
China, Rússia e Índia (de forma contundente).280 A América Latina e a África têm sido
duramente atingidas por este câncer social, mas a corrupção infesta tanto os países
desenvolvidos como os subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. O financiamento
da política, a realização de grandes obras públicas, o tráfico de armas e inúmeras
atividades mercantis privadas são exemplos comuns de práticas que ocorrem na

1. Dimensão de limitação do poder: (a) submetimento do poder ao direito (Estado de direito, Estado
constitucional). Considera que não há ruptura entre os dois modelos. O Estado Constitucional é um Estado
de Direito aperfeiçoado; (b) direitos humanos individuais, civis e políticos, que possuem como objetivo criar
âmbitos de autonomia individual e favorecer a participação social e política dos indivíduos.
2. Dimensão de organização de poder: (a) separação funcional de poderes; (b) separação territorial de pode-
res (autonomias, federalismo); (c) sistema parlamentar representativo; (d) Independência do poder judiciário;
(e) neutralidade da administração; (f) garantia da constituição (Tribunal Constitucional).
3. Dimensão de promoção através do poder: direitos econômicos, sociais e culturais. Satisfação das neces-
sidades básicas (educação, previdência social, saúde, etc.).
4. Dimensão de funcionamento do poder. Neste âmbito é relevante a análise dos princípios da maioria e da
negociação, que devem atuar conjuntamente. p. 543.
276 BENITO SÁNCHEZ, C. Demelsa. Notas sobre la corrupción transnacional. Sus efectos y su combate. In:
FABIÁN CAPARRÓS, Eduardo A.; PÉREZ CAPEDA, Ana Isabel (Coord.). Estudios sobre corrupcion.
Salamanca: Ratio Legis, 2010. p. 237.
277 MALEM SEÑA, Jorge F. Comercio internacional, corrupción y derechos humanos. In: CAMPUZANO, Alfonso
de Julios. (Ed.). Dimensiones jurídicas de la globalización. Madrid: Dykinson, 2007. p. 141-154.
278 MALEM SEÑA, Jorge F. La corrupción política, p. 26.
279 GIL VILLA, Fernando. La Cultura de la Corrupción. Madrid: Maia Editores, 2008. p.19-20.
280 www.transparency.org
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
124 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Europa, Japão e Estados Unidos. As denúncias de casos de corrupção nos partidos


políticos, nos sindicatos, na administração pública em todos os níveis e, mesmo nos
congressos está se convertendo em prática habitual.
O atual processo de globalização contribui para agravar ainda mais esse
panorama, já que aguça fatores econômicos que operem em situações cada vez mais
assimétricas. A tecnologia, que dispõe o sistema financeiro internacional, facilita aos
meios de pagamentos e à rapidez das cobranças que se modernizem, potencializando
as transações internacionais, mas também facilita a lavagem de dinheiro.
A isso se acrescenta a debilitação geral do Estado quanto a ineficácia punitiva
às modernas formas delituosas, que podem ser planejadas em um lugar, executadas
em outro e obter o benefício em um terceiro, através de entidades bancárias de
diferentes lugares.
As manifestações da corrupção são variadas e afetam diversos interesses, de
maneiras diferentes. A corrupção administrativa, mercantil ou judicial se apresenta
com peculiaridades específicas, de maneira que tanto sua compreensão como as
medidas de controle devem ser, também, particulares.281

Virtude cívica - A virtude cívica não é algo natural no homem. O republicanismo


cívico não professa que a natureza humana seja boa, ao contrário, reconhece que a
virtude é um bem escasso. Daí a preocupação de como formar cidadãos virtuosos,
isto é, como fazer com que os cidadãos se comprometam com uma vida pública
ativa e priorizem o bem comum sobre o particular. Em um Estado democrático é
necessário um marco legal e institucional mínimo que promova a virtude. A educação
possui um papel vital para se alcançar este objetivo. Mas não basta unicamente um
desenho institucional; o demos, o povo, a sociedade civil, deve comprometer-se com
tal objetivo, aceitando tanto a autonomia como o autocontrole, o debate como a
construção do consenso.
Com propriedade Leal defende que a deliberação pública, realizada fora do
âmbito estatal constitui a base de legitimação para as ações políticas de gestão
do interesse público e permite a todos os potencialmente envolvidos o poder de
opinar comunicativamente ante uma decisão a ser adotada. Assegura que onde
estiver ausente a capacidade de manifestação da vontade do cidadão como artífice
de sua própria história, se reforça a situação de anomia societal no âmbito do
poder institucionalizado e de seu exercício, fortalecendo a situação confortante dos
encastelados nas hordas da máquina estatal.282

281 Ver MALEM SEÑA, Jorge F. Globalización, comercio internacional y corrupción. Barcelona: Gedisa, 2000; e
LAPORTA, Francisco; ÁLVAREZ, Silvia (Ed.). La corrupción política. Madrid: Alianza Editorial, 1997.
282 LEAL, Rogério Gesta. Patologias corruptivas nas relações entre Estado, administração pública e sociedade:
causas, consequências e tratamentos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2013. p. 206-208.
democracia
125

Contudo, lembra Subirats, há uma forte e importante corrente de ascetismo,


sobretudo no que concerne à opção que preconiza aumentar a participação,
considerando que, ante a urgência, a complexidade e a gravidade dos problemas
que enfrentam as sociedades modernas, não há espaço para “alegrias” participativas.
Essas resistências insistem que: (a) a participação aumenta a lentidão na tomada
de decisões; (b) aumenta os custos na tomada de decisões; (c) não incorpora
necessariamente valores à decisão; (d) provoca um excesso de particularismos;
(e) somente leva em consideração o curto prazo; (f) enfraquece as instituições e
os partidos políticos. Ademais, os cidadãos de fato não querem participar, quando
participam, o fazem de forma muito inconstante, os que participam são sempre os
mesmos, na maioria das vezes ao participarem defendem unicamente seus próprios
interesses.283
É uma sociedade constituída de indivíduos ativos, que designamos como
sociedade democrática, entendendo como tal, não a sociedade que possui um
regime político denominado de democrático, mas aquela sociedade organizada a
partir de parâmetros instituídos por indivíduos participativos e incorporados em todas
as instituições dinâmicas da mesma sociedade. O modelo da sociedade, ensina
Fernández-Largo, é responsabilidade de todos seus membros e somente quando
estes estão integrados nos diversos elementos do tecido social que podemos falar de
uma sociedade participativa e de indivíduos ativos. Somente quando as instituições
de exercício do poder político estão abertas a todos os cidadãos é que teremos uma
sociedade democrática e promotora dos direitos humanos.284 Cidadania então, nesse
âmbito, pressupõe um conceito de participação já que não mais se concebe a figura
do cidadão passivo, pois

los ciudadanos no deben ser sólo sujetos pasivos de las potestades


públicas, sino que deben aspirar a ser legítimos colaboradores y
protagonistas de la propia Administración para la gestión de los
intereses que les afectan.285

Mas, em que pesem as inúmeras formas de participação social disponíveis,


o comodismo e a apatia dos atores sociais é evidente. E isso está profundamente
enraizado em nosso caráter cultural. Ocorre que o Estado, para constituir-se, para
manter-se e se fortalecer, avançou tão profundamente na jurisdição privada, e de
forma tão marcada, que sucumbiu o particular a essa contundente intervenção
estatal. Vivemos a clara primazia do Estado sobre o individuo, com o consequente

283 SUBIRATS, Joan. Nuevos mecanismos participativos y democracia: promesas y amenazas. In: FONT, Joan
(Coord.). Ciudadanos y decisiones públicas. Barcelona: Ariel, 2001. p. 37-38.
284 FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna. Los derechos humanos. Ámbitos y desarrollo. Salamanca: San Esteban;
Madrid: Edibesa, 2002. p. 41.
285 Rodríguez-Arana In: DELPIAZZO, Carlos E.. Dimension tecnologica de la participacion del administrado em
derecho uruguayo. In: LEAL, Rogério Gesta (Org.). Administração Pública e Participação Social na América
Latina. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2005, p. 118.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
126 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

esquecimento da autonomia da vontade e da autodeterminação. Vivemos o


paternalismo estatal em todas as esferas da sociedade e assim também se aceitou
e se atribuiu ao Estado a responsabilidade de governar nossas vidas. Práticas
seculares introjetaram no imaginário social a ideia de que o Estado é o responsável
pela satisfação dos desejos e das necessidades sociais e individuais.
Este Estado, bem intencionado e paternalista, gera cidadãos heterônomos
e dependentes, com as consequentes sequelas psicológicas que produz. Cortina
esclarece o porque:

El sujeto tratado como si fuera heterónomo acaba persuadido de su


heteronomía y asume en la vida política económica y social la actitud de
dependencia pasiva propia de un incompetente básico. Ciertamente
reivindica, se queja y reclama, pero ha quedado incapacitado para
percatarse de que es él quien ha de encontrar soluciones, porque
piensa, con toda razón, que si el Estado fiscal es el dueño de todos
los bienes, es de él de quien ha de esperar el remedio para sus males
o la satisfacción de sus deseos. 286

Pode-se então afirmar que o Estado paternalista gera um cidadão dependente,


não crítico, passivo, apático e medíocre. Longe dele está o pensamento da livre
iniciativa, da responsabilidade e da criação.
Seguindo a mesma linha, mas referindo-se especificamente à situação brasileira,
Leal justifica a apatia da cidadania:

O problema é que, historicamente, no Brasil, até em face das


particularidades de exclusão social, miserabilidade e fragilização de
sua cidadania, o Estado fora chamando para si, de forma concentrada,
um universo de atribuições com caráter protecionista, paternalista e
assistencialista, promovendo ações públicas de sobrevivência social
com poucas políticas preventivas, educativas e de cogestão com a
sociedade dos desafios daqui decorrentes, induzindo a comunidade
a uma postura letárgica e de simples consumidora do que lhe era
graciosamente presenteado, sem nenhuma reserva crítica ou
constitutiva de alternativas das mazelas pelas quais passava e ainda
vive.287

Por outro lado, para quem governa sem a ética intenção de fazer o bem coletivo,
mas apenas de defender meros interesses privados, a omissão popular é providencial,
já que, quando não há cobranças ou participação/fiscalização, os administradores
atuam a seu bel-prazer, enquanto que os administrados assistem a tudo de forma
apática. Isto acaba por fortalecer o caráter assistencialista dos governos, de modo

286 CORTINA, Adela. Ciudadanos del mundo. Hacia una teoria de la ciudadanía. 3. ed. Madrid: Alianza Editorial,
2009. p. 71.
287 LEAL, Rogério Gesta. A quem compete o dever de saúde no direito brasileiro? Esgotamento de um modelo
institucional. Trabalho inédito. 2008.
democracia
127

que enquanto todos tiverem “pão e circo”, ninguém irá cobrar mais nada. Porém, esta
concepção, de mera participação passiva, como dito, enfraquece a democracia e
fortalece o surgimento das patologias corruptivas. Afinal já nos referimos anteriormente
que:

Cidadania pressupõe democracia, liberdade de manifestação,


contestação, respeito ao indivíduo, à sua cultura e à sua vontade. Mas
não só os modelos autoritários inibem a cidadania. Nas democracias,
o assistencialismo, o paternalismo e a tutela do Estado, aceitos que
são pela maioria das pessoas por comodismo, também não permitem
o desenvolvimento de uma cidadania plena, porque cidadania plena
não pode ser dada ou outorgada, só é alcançada pela participação,
pela luta e pelo empenho dos próprios indivíduos interessados.288

Em resumo, é claro o déficit, por parte da sociedade, de um firme envolvimento


no âmbito decisório dos Estados. Essa omissão e passividade indubitavelmente
abrem caminho para que homens sem alma se apropriem das coisas públicas, para a
execução de políticas públicas equivocadas, para as tributações injustas, os direitos
sociais sonegados, os privilégios de grupos, as desigualdades e injustiças sociais, a
inoperância dos governos.

2.6 A crise da democracia

A autonomia e a autodeterminação é a matéria que forja a cidadania moderna -


como sustentava Marshall. E para conseguir-se concretizar esta cidadania, há certos
elementos que são básicos, tais como um conceito igualitário de pessoas (pessoas
consideradas como seres livres e iguais, responsáveis por suas ações), a regulação
democrática da vida pública (incluídos o consentimento, a deliberação e a votação)
e a necessidade de garantir que, efetivamente, se deseja proteger esta igualdade
na participação, deve-se dar especial atenção àqueles que carecem da capacidade
plena de participar, de atuar nas instâncias de poder e nas instituições políticas (isto
é, deve haver uma relativa proteção social).289 A democracia torna possível que se
possa desenvolver adequadamente a cidadania. Entretanto, modernamente, vem se
discutindo que a democracia está em crise. Isto significa que a cidadania também está
em crise? O termo crise é utilizado muito frequentemente e aplicado a numerosos
conceitos: crise do direito, crise econômica, crise de valores e tantos outros. Convém
analisar que é justificada sua utilização na democracia. Para examinar esta questão
vamos enumerar as cinco principais ameaças que enfrentamos.

288 GORCZEVSKI, Clovis. Direitos Humanos, Educação e Cidadania. In: LEAL, Rogério Gesta; REIS, Jorge Renato
dos. Direitos sociais e políticas públicas - desafios contemporâneos Tomo 5. Santa Cruz do Sul: EDUNISC,
2005. p. 1285.
289 HELD, D.; PATOMÄKI, H. Diálogo entre David Hekld y Heikki Patomäki. Los problemas de la democracia global.
Papeles, n. 95, Trad. de B. Wang, 2006. p. 92. Disponível em: <www.fuhem.es/media/cdv/file/biblioteca/.../95/
Dialogo_Held_Pottomaki.pdf>.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
128 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Em primeiro lugar, há diversas opiniões que sustentam que a democracia é um


luxo prescindível, ou inclusive como um mau sistema de governo, inferior a certas
formas de autoritarismo. Assim, frente aos economistas que sustentavam que a
democracia era condição necessária para o desenvolvimento de uma economia de
mercado e para poder alavancar um crescimento econômico, a decolagem da China
comunista-capitalista demonstra que estavam equivocados e, inclusive, demonstra
que a democracia pode ser menos competitiva. Defensores da justiça marxista ou
socialista continuam sustentando um regime como o cubano de Fidel Castro como
se a democracia fora um luxo de segunda ordem, que deveria estar subordinada à
consecução da igualdade socioeconômica ou inclusive, que se trata de um dos mitos
inventados pelo imperialismo capitalista norte-americano.
Uma segunda ameaça para a democracia é a globalização (econômica, cultural,
social e, também política). A globalização é um processo inexorável, portanto o
recomendável é analisar seus efeitos perniciosos para tentar neutralizá-los. Um
dos mais negativos é o esvaziamento de poder das instituições políticas do Estado-
nação. Temas como a mudança climática, a segurança nuclear, o terrorismo global
e outros, levaram a que nossos governos e parlamentos cada vez tenham maiores
dificuldades para regular e frenar esses desafios e perigos, e de assegurar o bem
estar dos cidadãos. O surgimento de novas instituições internacionais ou globais, o
fortalecimento das já existentes, e o convencimento de que ainda são necessários e
mais fortes organismos políticos globais, conduz a um esvaziamento do poder local.
Isso leva a ideia de que a democracia é fundamentalmente um ideal de distribuição
horizontal de poder. Os Estados e governos atuais seguiram detendo o poder,
assim como os governos municipais, mas esta situação evoca a conveniência de se
desenvolver novas estruturas democráticas.
O terceiro problema, que deve enfrentar a democracia atual, é o do populismo.
Não se trata de uma nova forma de exercer a democracia posto que tem sido uma
constante ao longo da história. É degeneração demagógica a serviço da manipulação
do povo com a intenção de levá-lo a obedecer a um tirano em potencial. Os exemplos
são muito claros: Maduro na Venezuela, Kirchner na Argentina, Berlusconi na Itália, Le
Pen na França e Trump nos Estados Unidos. Este e outros exemplos são expoentes
de uma perigosa tendência antidemocrática.
O populismo, diferentemente de como normalmente é apresentado, não é o
contrário do governo das elites. Trata-se, sim, de uma variante do governo das elites:
se baseia na manipulação da informação e nos juízos da cidadania e o faz a serviço
de uma determinada elite. O populismo é sempre contrário aos ideais democráticos.
Seus líderes se apresentam como baluartes da democracia e da participação do
povo, mas quando chegam ao poder não se preocupam, por introduzir bons
mecanismos de participação deliberativa democrática e de estabelecer governos
abertos e transparentes (Berlusconi e Trump são dois bons exemplos dessa maneira
democracia
129

de proceder). Alguns mecanismos que utilizam a manipulação da cidadania são o


racismo, a exclusão de imigrantes, o medo frente à insegurança e o terrorismo, o que
acaba desembocando uma repressão dentro do Estado e nacionalismo excludente.
Um quarto perigo para a democracia é a revolução digital e tecnológica.
A revolução digital pode levar a consequências negativas, tais como as novas
possibilidades de dominação digital por parte das grandes companhias tecnológicas,
bem como ao esvaziamento da privacidade humana e ao surgimento de novas
modalidades de desigualdade entre inforricos e infopobres. Mas também pode trazer
grandes efeitos positivos, como abrir novas formas de comunicação e portanto de
deliberação, dando lugar a um novo modelo de cidadania: o cibercidadão.290
Uma vez identificados os perigos e ameaças que provocam situações de crise
na democracia, vamos nos deter na análise da crise da democracia por excelência
em nossos dias, a representativa.

2.7 A crise da democracia representativa

A nova ordem mundial surgida a partir dos anos 80 do século XX, levou os Estados
a uma profunda crise, obrigando-os a rever seus pilares; evidentemente que, como
parte do sistema, a democracia representativa também entra em questionamento.
Há algumas décadas se fala e cada vez com maior insistência de uma crise
de representação política que seria responsável pela fragilização da participação
cidadã nos rumos do Estado e consequentemente da democracia contemporânea.
Sim, muitos sinais nos levam a pensar que os regimes democráticos se debilitam.
Na verdade, os Estados estão se debilitando, mas nosso objetivo não é analisar a
situação dos Estados e sim discutir a democracia.
A queda do muro de Berlim, em 1989, simbolizou o colapso dos regimes
estabelecidos na Europa do Leste, o que levou a se imaginar que a democracia se
estenderia amplamente a partir desse momento, especialmente com a participação
ativa da cidadania na tomada de decisões políticas. Entretanto as coisas não
ocorreram bem assim, e para Alday isso, provavelmente, decorreu de dois fatores:
(a) a integração europeia ou latino-americana, fez com que o cidadão fosse levado

290 MARTÍN, Nuria Belloso. Nuevas tecnologías: proyecciones sociales, iusfilosóficas y políticas. In: VILLAR, A.
Murillo; PAREDES, S. Bello (Coord.). Estudios Jurídicos sobre la Sociedad de la Información y Nuevas Tecnologías.
Libro conmemorativo del XXº Aniversario de la Facultad de Derecho, Servicio de Publicaciones de la Universidad
de Burgos, 2005. p.151-172; também, ver PEREZ LUÑO, Antonio Enrique. ¿ciberciudadania o ciudadania.
com?, cit.. Em que pesem as dificuldades de controlar o uso de dados no ambiente da informação, há
uma tendência de converter-se o espaço virtual da Internet em um lugar onde as pessoas possam praticar
sua cidadania virtual com uma participação imediata na deliberação política, através da votação eletrônica.
O autor analisa as modalidades dessa suposta ‘teledemocracia’, mostrando suas vantagens frente às
deficiências da democracia representativa, mas também advertindo de seus graves inconvenientes. Lembra
que esta democracia ‘direta’ comporta também o perigo de uma democracia vertical, onde os partidos e
líderes políticos podem influenciar indevidamente na opinião do cidadão além de manipulações diversas,
distorcendo o sistema.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
130 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

cada vez para mais longe do lugar onde se tomam as decisões que diretamente o
afetam; assim, sua participação no processo de tomada de decisão se tornou cada
vez menor; (b) o processo de globalização fez com que a economia essa fugisse do
controle dos Estados e, portanto, do jogo político onde são chamados a participar os
cidadãos.291
Além dessas causas “macro”, Aliende apresenta outras, que seguramente
contribuem para a chamada crise da democracia:
a) Falta de transparência e de legitimidade dos partidos políticos;
b) O declínio de filiações e identificação dos cidadãos com os partidos políticos;
c) A crescente volatilidade eleitoral;
d) A diminuição da participação política em geral e em particular a abstenção
eleitoral;
e) A ausência de relação e de responsabilidade dialética entre os eleitos e
eleitores;
f) A falta de receptividade da classe política das demandas dos cidadãos;
g) Os problemas de governabilidade no contexto da globalização e a chamada
‘crise do Estado’;
h) Falta de autênticas lideranças da classe política.292
Esses fatos fazem com que muitos setores da cidadania sintam certo rechaço
com relação aos instrumentos tradicionais de participação, próprios da democracia
representativa. Este rechaço se traduz em descrédito da política e, consequentemente,
na baixa participação eleitoral. O que se está demandando é mais e melhor
democracia. Arguem o modelo tradicional de democracia representativa por que: (a)
limita a participação em votar a cada 4 ou 5 anos; (b) suas instituições estão afastadas
da cidadania e de seus interesses; (c) seus poderes são estabelecidos através de um
sistema de partidos, com pouca democracia interna, cada vez com menos debates
e mais mídia; (d) produz políticos profissionais; e, (e) ao invés de cidadãos o sistema
gera consumidores e súditos. 293

291 ALDAY, Rafael Escudero. Activismo y sociedad civil: los nuevos sujetos políticos. In: SAUCA, J. María;
SIMON, Maria I. Wences (Ed.). Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Madrid:
Trotta, 2005. p. 256. Ver também MARTIN, Nuria Belloso. Movimientos sociales actuales? Emancipación
o resistencia? In: Direitos fundamentais e justiça. Porto Alegre: Revista de Pós-Graduação em Direito da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. n. 12, jul./set. 2010. p. 25-77.
292 ALIENDE, José Manuel Canales. Algunas reflexiones sobre la representación y la participación ciudadana en
el ámbito local. In: ALZAMORA, Manuel Menéndez. Participación y representación política. Valencia: Tirant lo
Blanch, 2010. p. 267.
293 FERNÁNDEZ, Ernesto Ganuza; SOTOMAYOR, Carlos Álvarez. Democracia y presupuestos participativos.
Barcelona: Icária, 2008. p. 17-18.
Para aprofundar o tema da crise da democracia representativa, ver também: ALIENDE, José Manuel Canales.
Algunas reflexiones sobre la representación y la participación ciudadana en el ámbito local. In: ALZAMORA,
Manuel Menéndez. Participación y representación política. Valencia: Titant lo Blanch, 2009. p. 266-302;
MARTINÉRZ, Antonia. Representación política y calidad de democracia. In: MARTINÉZ, Antoni (Coord.).
Representación y calidad de la democracia en España. Madrid: Tecnos, 2006. p. 13-36; NADALES, Antonio
Porras. El debate sobre la crisis de la representación. Madrid: Tecnos, 1996.
democracia
131

Seguindo a reta linha, Touraine apresenta uma razão a mais para a fragilização
da democracia. Ocorre que, igual aos regimes autoritários, os sistemas democráticos
estão submetidos às exigências do mercado mundial que é regulado e protegido
por acordos entre os principais centros de poder econômico. Esse mercado mundial
aceita igualmente e sem restrições a participação de países que possuem governos
autoritários duros ou regimes autoritários em decomposição, assim como regimes
oligárquicos e os regimes democráticos. Esse reconhecimento igualitário no âmbito
internacional, assim como uma classe política cujo objetivo primeiro é a manutenção
de seu próprio poder, quando não o enriquecimento pessoal de seus membros, é
uma das razões da baixa participação política, o que denominamos de uma crise de
representação política.294
A consciência de cidadania se debilita porque os indivíduos se sentem
mais consumidores que cidadãos, mais cosmopolitas que nacionais, sentem-se
marginalizados ou excluídos em uma sociedade onde não são ouvidos, quer por
razões sociais, econômicas ou políticas.
Assim, alerta Touraine, fragilizada, a democracia pode ser destruída, ou de cima,
por um poder autoritário, ou de baixo, pelo caos, a violência e a guerra civil, ou por ela
própria, pelo controle exercido sobre o poder pelas oligarquias ou por partidos que
acumulam recursos econômicos ou políticos para impor sua eleição aos cidadãos,
reduzidos ao simples papel de eleitores.295
Também Bobbio, ao analisar o Futuro da Democracia,296 apresenta o que
denomina de promessas não cumpridas da democracia, que auxiliam no descrédito
do modelo. Indica como uma promessa não cumprida a representação dos interesses.
A democracia moderna, nascida como democracia representativa, deveria ser
caracterizada pela representação política, isto é, uma forma de representação na
qual o representante sendo chamado a perseguir os interesses da nação não pode
estar sujeito ao mandato vinculado. Contudo, a representação dos interesses sobre
a representação política tem se instalado na maior parte dos estados democráticos,
entre os grandes grupos de interesses contrapostos e o parlamento. Tal sistema se
caracteriza por uma relação triangular na qual o governo, idealmente representante
dos interesses nacionais, intervém unicamente como mediador entre as partes
sociais e, no máximo, como garantidor do cumprimento do acordo realizado. Este
modelo nada tem a ver com a representação política, é sim uma expressão típica de
representação de interesses.
Uma outra promessa não cumprida, e que leva a democracia ao descrédito,
refere-se à derrota do poder oligárquico. Afirma que, a julgar pelo número de leis

294 TOURAINE, Alain. Qu’est-ce que la démocratie? París: Librairie Arthème Fayard, 1994. p. 22-23.
295 Idem.
296 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. 10. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006. p. 29 e ss.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
132 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

aprovadas anualmente, cada cidadão deveria exprimir seu voto ao menos uma vez ao
dia. Esta impossibilidade é suprida pela democracia representativa, mas esta já é, por
si mesma, uma renúncia ao princípio da liberdade como autonomia, e o preço pelo
empenho de poucos e a indiferença de muitos. Reforça a ideia, citando Schumpeter,
que a característica de um governo democrático não é a ausência de elites, mas a
presença de muitas.
Refere-se, ainda, ao espaço limitado como outra promessa não cumprida. Para
se aferir o desenvolvimento da democracia, a pergunta primeira deve ser: onde se
vota? É certo que já se conquistou o sufrágio universal, contudo, unicamente para
legitimação e controle das decisões políticas, em sentido estrito, ou do governo
propriamente dito. Mas, há democracia no cotidiano do cidadão? Na multiplicidade
de seus papéis específicos como membro de uma igreja, como trabalhador,
estudante, soldado, consumidor, etc.? Vê-se que o âmbito de atuação da democracia
e participação é ainda muito restrito.
Bobbio ainda refere como promessa não cumprida da democracia a eliminação
do poder invisível. Lembra que a democracia, nasceu com a perspectiva de eliminar
para sempre das sociedades o poder invisível e dar vida a um governo cujas ações
deveriam ser públicas e transparentes. Invocando a situação particular da Itália –
onde afirma que o poder invisível é visibilíssimo – refere-se à atuação das máfias, da
maçonaria, dos serviços secretos e outros similares no exercício e controle do poder.
Com o não controle dessas instituições estamos diante de uma tendência contrária
às premissas: a tendência do máximo controle dos cidadãos por parte do poder ao
invés do controle do poder por parte dos cidadãos.
Por fim, mais uma promessa não cumprida, que diz respeito à educação dos
cidadãos. Narra que, nos discursos sobre democracia, nunca esteve ausente o
argumento segundo o qual o único caminho para transformar o súdito em cidadão
seria pela educação, e que esta surgiria no próprio exercício da democracia. A
realidade tem nos mostrado a não concretização dessa aspiração. Nas democracias
mais consolidadas observa-se a apatia política e um crescente desinteresse dos
cidadãos pela coisa pública. Bobbio lembra Mill quando este afirma que a democracia
necessita de cidadão ativos, enquanto os governos, em geral preferem cidadãos
passivos. Esta situação é bem exemplificada por Enguita quando lembra que a
burguesia francesa, impondo-se contra a Igreja e as elites tradicionais, alardeava
a ideia de educação generalizada – fazia porque necessitava dela para enfrentar o
poder da Igreja, preparar e garantir seu próprio poder e conseguir a manutenção
da nova ordem que se instalava. Por outro lado, temia as consequências de educar
demasiadamente aqueles que, na realidade, iriam continuar ocupando os mais
baixos níveis da sociedade, pois isso poderia despertar neles ambições indesejáveis,
transformando o povo, talvez, em contestadores do novo sistema, portanto novos
democracia
133

revolucionários, pondo em risco a nova sociedade que se formava. 297


Esclarece, contudo, que, as promessas não cumpridas são justificadas porque o
projeto político democrático foi idealizado para uma sociedade bem menos complexa
que a atual e que as transformações ocorridas na sociedade civil dificultaram
sobremaneira sua realização. Destaca três alterações/obstáculos ocorridos, que
dificultaram o cumprimento das promessas:
Primeiro a mudança das sociedades de uma economia familiar para uma
economia de mercado e de uma economia de mercado para uma economia protegida,
planejada, controlada, planificada. Com isso aumentaram os problemas políticos
que exigem competências técnicas. Os problemas técnicos exigem, por sua vez,
especialistas, um número cada vez maior de técnicos especializados. Assim o governo
dos técnicos aumentou desmesuradamente. Ora, diz, tecnocracia e democracia são
antitéticas, pois, a democracia parte do pressuposto que todos devem decidir sobre
tudo, enquanto a tecnocracia, ao revés, exige que sejam convocados para decidir
apenas aqueles poucos que detêm conhecimentos específicos.
Uma segunda alteração ocorrida, não prevista, foi o gigantesco crescimento do
aparato burocrático, um aparato de poder ordenado hierarquicamente do vértice à
base, inversamente oposto ao sistema de poder democrático. Ora, em uma sociedade
democrática o poder vai da base ao vértice enquanto em uma sociedade burocrática,
ao revés, vai do vértice à base.
Uma terceira alteração que Bobbio denomina de ingovernabilidade da
democracia, refere-se às demandas da sociedade. O Estado liberal, e depois
o democrático, contribuíram para a emancipação da sociedade. Tal processo
de emancipação fez com que a sociedade se tornasse cada vez mais uma fonte
inesgotável de demandas dirigidas ao governo. E pergunta-se, pode um governo
atender a todas as demandas, cada vez mais numerosas, urgentes e onerosas? A
quantidade e a rapidez dessas demandas são de tal ordem que nenhum sistema
político, por mais eficiente que seja, pode atendê-las adequadamente. Daí deriva
uma sobrecarga e a necessidade de os governos fazerem opções. Exora que uma
opção exclui a outra e as opções não atendidas geram descontentamento e repúdio.
Tudo isso, acrescido a uma maior capacidade intelectual dos cidadãos –
conseguida através da universalização do sistema público de educação, pelas novas
tecnologias de informação e pelo maior contato com outros Estados – contribui para
que, atualmente o olhar cidadão seja dirigido para a sociedade civil, isto é, para as
associações, os movimentos sociais, os foros de cidadania, as cooperativas ou as
ONG’s, como espaços a partir dos quais se pode pressionar politicamente para se
alcançar melhorias econômicas, sociais ou jurídicas.

297 ENGUITA, Mariano Fernández. A face oculta da escola. Educação e trabalho no capitalismo. Trad. Tomaz
Tadeu da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. p. 110-112.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
134 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Por outro lado, há que se reconhecer que as democracias modernas introdu-


ziram inúmeras formas de participação cidadã nos processos políticos decisórios. E
isso nos leva a um grande paradoxo: quanto mais surgem oportunidades de partici-
pação, mais se afasta o cidadão das decisões. Em resumo, o incremento dos meios
de participação não contribuiu para uma melhora da democracia.
Há ainda outra contundente e importante crítica dirigida ao modelo democrático
de Estado. Trata-se da distribuição de poder a pessoas ignorantes e incompetentes.
Lembra Comparato, que a própria democracia ateniense suscitava um misto de
escândalo e desprezo. Plutarco relata que Anakharsis dizia-se surpreso “de ver que,
entre os gregos, embora os oradores sejam exímios na palavra, são os ignorantes
que tudo decidem”.
Argumentava-se que os pobres, os ignorantes e os parvos revelavam uma
violência incontida e imprevisível quando empoleirados em posições de mando. No
diálogo famoso, reportado por Heródoto que Dario teve com outros líderes persas
sobre vantagens e desvantagens dos diversos regimes políticos, Megabizo diz que a
violência do populacho é pior que a de um tirano, pois “se este age conscientemente,
aquele é incapaz de compreender as razões de seu comportamento” e toma sempre
decisões precipitadas e impulsivas, à semelhança da “torrente de um rio impetuoso”.
Em outra metáfora Menelau, na tragédia Orestes de Eurípedes, assegura que o
povo “no maior ardor de sua cólera, é semelhante a um fogo forte demasiado para
ser extinto”. Platão, por sua vez, compara-o a um animal grande e robusto “cujos
impulsos coléricos e apetites devem ser minunciosamente observados, a fim de se
saber como dele se aproximar e onde tocá-lo, quando e por que ele se comporta de
maneira raivosa ou pacata”.298
Alguma razão assiste aos críticos. Em uma sociedade não educada como
poderemos falar em justiça, igualdade, participação e democracia? A educação é
uma ferramenta de libertação e de emancipação do indivíduo, o que torna a sociedade
verdadeiramente protagonista consciente de seus direitos e deveres, e que vem ao
encontro das propostas de um Estado Democrático de Direito, voltado à participação
e consequentemente à transformação social. Como assevera Morin:

A educação deve contribuir para a auto-formação da pessoa (ensinar


a assumir a condição humana, ensinar a viver) e ensinar como se
tornar cidadão. Um cidadão é definido, em uma democracia, por sua
solidariedade e responsabilidade em relação a sua pátria.299

298 COMPARATO, Fábio Konder. Ética. Direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006. p. 656-658.
299 MORIN, Edgar. A cabeça bem feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Tradução de Eloá Jacobina.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 65.
democracia
135

Já nos manifestamos em outras oportunidades que:

Difícilmente podremos lograr un perfil adecuado de ciudadano


– independiente da tradición filosófica de la que se trate, liberal,
comunitarista o republicano – si no tiene la adecuada formación e
instrucción para formar su propio criterio, para que se forje sus propias
convicciones, para que adquiera una responsabilidad cívica, para que
sea capaz de resolver conflictos sin utilizar medios violentos, y tantas
otras posibilidades a las que sólo una adecuada instrucción abre las
puertas.300

É a educação o pressuposto para a emancipação dos indivíduos, com vistas a


proceder sua constante autonomia e libertação.301 O papel fundamental da educação
está justamente na formação do cidadão que, capacitado para gozar de seus direitos
civis e políticos, estará efetivamente fazendo parte do Estado Democrático, não sendo
apenas um “cidadão de papel”.302
Fica, pois, evidente a importância da educação: é ela que torna as pessoas
preparadas para a vida, para a convivência e para a reivindicação de seus direitos
fundamentais. Somente com educação o homem poderá ser livre para exercer seus
direitos, inclusive o mais fundamental deles, aquele que [...] hace al hombre dueño
y actor de su propia historia, le pone en tesitura de elegir entre el bien y el mal y de
determinar lo que es bueno y lo que es malo[...,]303 ou nas palavras de Barcellos:
“faz com que o cidadão seja o autor de seu próprio destino, que assuma a sua
dimensão histórica, cuidando da vida, da sua, dos outros, de todos, numa dimensão
horizontal”304, que diga não à escravidão de todo tipo, que defenda a liberdade, a
democracia e a paz.
Neste tema Mamede é contundente e radical:

Deixando de dar formação educacional (crítica e política) à parte da


população, mantém-se a prática espoliatória que beneficia uma elite
(narcísica, incompetente e inconsequente) em proveito de milhões de
pessoas (miseráveis e trabalhadores das classes baixas). Permite-se
uma certa ordem de privilégios para a classe intermediária (classe
média) que, na estrutura social, funciona como suporte para as

300 MARTÍN, Nuria Belloso. Ciudadanía, democracia, constitución y educación: no basta la afición, se necesita virtud.
In: Mª.Susana Bonetto (Ed.). En torno a la democracia. Perspectivas situadas Norte-Sur. Córdoba (Argentina):
Universidad Nacional de Córdoba y Grupo Editor, 2009. p. 71-96.
301 PINILLA, Ignacio Ara. La difuminación institucional del objetivo al derecho a la educación, Madrid: Editorial
Dykinson, 2013.
302 DIMENSTEIN, Gilberto. O Cidadão de papel. 21. ed. São Paulo: Ática. 2008.
303 MARTIN, Nuria Belloso. Política y Humanismo en el siglo XV. Valladolid: Secretariado de Publicaciones de la
Universidad de Valladolid, 1998. p. 76.
304 BARCELLOS, Carlos Alberto (Coord.). Educando para a cidadania – os direitos humanos no currículo escolar.
Porto Alegre/São Paulo: Seção Brasileira da Anistia Internacional/Centro de Assessoramento a Programas de
Educação para a Cidadania, 1992. p. 15.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
136 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

classes dominantes: fornece-lhes profissionais que administram seus


interesses (neste incluído tanto os negócios particulares, quanto
os ‘negócios de Estado’, ou seja a administração do aparelho do
Estado, sempre no estrito respeito à conservação de seus benefícios)
assim como assimila (motivada pelo desejo de conservar sua própria
parcela – ainda que limitada – de benefícios) a fobia – e a luta – contra
um possível levante das massas exploradas.305

Mais uma vez fica evidente a importância da educação. Já em inúmeras


oportunidades nos manifestamos: não há cidadania, não há direitos humanos, não
há democracia sem educação.

2.8 Desafios para uma democracia no século XXI

Uma contextualização completa da democracia atual exige, além de destacar


os fatores que contribuíram para a crise da democracia em nossos dias, fazer
referência a alguns dos grandes desafios da democracia nos século XXI, tais como a
desobediência ao direito, a democracia na ordem global, a problemática do “discurso
de ódio” e dos nacionalismos.

2.8.1 Desobediência ao Direito

Atualmente vivemos em uma sociedade na qual as manifestações de protesto,


as paralizações, as negativas de pagamento de impostos, e as reivindicações de
diferentes direitos por parte da cidadania são cada vez mais frequentes. E, na maioria
desses casos, tais ações são ilegais, isto é, ações que de alguma maneira violam uma
lei vigente no sistema jurídico. A isso se deve somar outra característica, a de que
os agentes de tal desobediência consideram que existem boas razões morais que
justificam tais atos. Inclusive, em alguns casos estas razões se apresentam como um
imperativo de consciência, que exige desobedecer. Surge assim a polêmica questão
de quando se pode considerar aceitável – a partir da moralidade, já que não vamos
entrar na justificativa jurídica ou política – a desobediência à lei.
A história do pensamento filosófico-jurídico nos oferece boa doutrina a respeito,
contudo deve-se destacar que não se trata da desobediência civil como o direito
à revolução, isto é, o direito à supressão dos fundamentos de uma ordem jurídica
positiva vigente. Lembremo-nos do mítico episódio da morte de Sócrates,306 assim
como, no pensamento antigo, o secular debate da escolástica medieval sobre o valor

305 MAMEDE, G. Hipocrisia: o mito da cidadania no Brasil. Revista de Informação Legislativa, Brasilia, n. 134, p.
11, abr./jun. 1977.
306  A este respeito ver RIVAS PALÀ, Pedro. Justicia, comunidad, obediencia. El pensamiento de Sócrates ante la
ley, Pamplona: Ediciones Universidad de Navarra, 1996; e também , do mesmo autor, “La triple justificación de
la desobediencia civil” In: Persona y Derecho. Revista de fundamentación de las Instituciones Jurídicas y de
Derechos Humanos n. 34. Universidad de Navarra: Servicio de Publicaciones, 1996. p. 177-199.
democracia
137

da lei positiva e a obediência à autoridade civil.


No mundo moderno pode-se diferenciar alguns grupos de autores segundo sua
resposta ao problema da obediência. Em primeiro lugar há alguns, como Hobbes e
Spinoza, que costumam serem reconhecidos como os principais teóricos do Estado
absoluto e, portanto, também como autores contrários ao direito de resistência frente
ao soberano. Em outro grupo situam-se aqueles autores que, apesar das diferenças
existentes entre os mesmos, elaboram sua reflexão sobre a obediência a partir da
análise da relação entre o Estado e os cidadãos, buscando estabelecer os limites de
ação de uns e outros. Entre esses se destaca Locke, como autor mais representativo
da concepção de Estado limitado pelos direitos individuais; também Kant, como
autor que defende a ideia de Estado de Direito e advoga que somente a liberdade
de expressão pode ser garantia da mesma, frente ao abuso do poder estatal. Por
último pode-se destacar outra corrente que, desde a perspectiva utilitarista, pretende
estabelecer, tal como fez Hume, as razões que os indivíduos podem ter tanto para
obedecer como para desobedecer ao Direito.
Também não podemos esquecer-nos das Declarações e textos positivos de
Direitos Humanos, onde se expressa uma clara defesa do direito de resistência, se o
governo não respeita o acordo do contrato social. Por exemplo, o parágrafo terceiro
da Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776) estabelece:

Que o governo é instituído, ou deveria sê-lo, para o comum proveito,


proteção e segurança do povo, nação ou comunidade; que de todas
as formas e modos de governo, é o melhor, aquele capaz de produzir
o maior grau de felicidade e segurança, e o que está mais garantido
contra o perigo de um mau governo, e que quando um governo
resulta inadequado ou é contrário a este princípios, uma maioria da
comunidade tem o direito indiscutível, inalienável e irrevogável de
reformá-lo alterá-lo ou aboli-lo, da maneira que julgar mais conveniente
para o bem público.

Na Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) depois


de citar os direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à busca da felicidade, se destaca
que:

Para garantir esses direitos se instituem entre os homens os governos,


cujos poderes legítimos derivam do consentimento dos governados;
que sempre que uma forma de governo se faça destruidora desses
princípios, o povo tem o direito a alterá-lo, modificá-lo ou aboli-lo e
instituir um novo governo que se funde nesses princípios, e a organizar
seus poderes na forma mais adequada para alcançar a segurança e
a felicidade.

Por último, a Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789)


inclui em seu artigo 2º, a resistência à opressão junto com outros direitos naturais e
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
138 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

imprescindíveis como a liberdade, a propriedade e a segurança.


Assim, a legitimidade contratualista fundamenta tanto a obrigação moral, política
e jurídica de obedecer ao direito como a obrigação moral e política (não jurídica) da
desobediência civil. E isso se manifesta tanto no contratualismo clássico como no
neocontratualismo.
Uma revolução não é concebível sem um ato de desobediência, mas nem todo
ato de desobediência é, necessariamente, um ato revolucionário. Como destaca
Hoerster, una teoría que limite la problemática de la desobediencia o de la resistencia
político-moral a cuestiones vinculadas con la revolución (por ejemplo el caso del
tiranicidio) es insuficiente desde un doble punto de vista.307 Em primeiro lugar porque
não explica satisfatoriamente os problemas ético-morais que se apresentam com
respeito às desobediências jurídicas naquelas comunidades nas quais as normas
fundamentais não são objeto de objeções ou protestos. Em segundo lugar, porque
tampouco serve para explicar o fato de que em alguns ordenamentos jurídicos
vigentes exista o chamado Direito-positivo-de resistência. É o caso, por exemplo,
da Lei Fundamental da República da Alemanha que, desde 1968, em seu artigo 20,
Parágrafo 4º, outorga um direito de resistência aos cidadãos quando não tenham
outro recurso legal de defesa contra aqueles que pretendem eliminar a ordem
constitucional alemã.
Definitivamente, o problema reside em saber qual é o fundamento ético da
obediência à lei, problema largamente debatido na teoria do pensamento jurídico-
positivo. E, como costuma ser habitual na filosofia jurídica, duas têm sido as doutrinas
que apresentaram as posições mais significativas: o jusnaturalismo e o positivismo.
Segundo a primeira posição, o dever de obediência às leis é consequência de
uma dupla suposição: a existência, por um lado, de um direito superior, derivado da
natureza humana ou da natureza das coisas ou estabelecido por uma autoridade
divina, e a possibilidade, por outro, de seu conhecimento por meios racionais,
intuitivos ou através da revelação. O direito natural é único, imutável, eterno e válido
para qualquer tempo e lugar, e os direitos históricos ou positivos creem que o homem
não deve opor-se ao direito natural, por isso existe um dever de obediência.
Por outro lado, há uma corrente da doutrina que outorga especial importância
à segurança jurídica, segundo a qual há o dever especial de se respeitar as leis
vigentes porque são as leis da sociedade em que se vive. Reflete a relação entre
Estado e cidadão de maneira que, como consequência do trabalho em comum,
cada um dos membros recebe certos benefícios ou goza de algumas vantagens,
devendo, por isso, participar no custo das cargas necessárias para seu normal

307 HOERSTER, Norbert. Obligación moral y obligación jurídica. In: Dianoia (1976), trad. al castellano de E. Garzón
Valdés.
democracia
139

desenvolvimento.308 Nesse sentido, Hobbes utiliza um argumento similar para justificar


o dever de obediência ao Direito, afirmando que o Estado é uma instituição que
existe em interesse de todos os cidadãos. Estes cidadãos de um Estado, ao gozar
da segurança que lhes proporciona o soberano ao cumprir as funções de árbitro nas
contendas sociais mediante o exercício monopolizado da violência, devem suportar
a carga que supõe a obediência à lei, inclusive as manifestamente injustas. Enfatiza:
"nadie tiene libertad para resistir a la fuerza del Estado [...] porque semejante libertad
arrebata al soberano los medios de protegernos y es, por consiguiente, destructiva de
la verdadera esencia del gobierno.309
A divergência entre as duas doutrinas pode ser considerada superada, em parte
pelo surgimento dos Estados democráticos e seus renovados esforços destinados
a fundamentar a obediência às suas leis. Assim é a proposta de Locke, pela qual o
consentimento dos cidadãos e o reconhecimento e respeito dos direitos essenciais
constituíram os novos argumentos que serão utilizados para abonar as teses da
obediência à lei dentro do marco de uma organização jurídico-política (o Estado
democrático-liberal) considerada como causi-justa.
Se admitirmos que existe o dever de obedecer ao direito, fica outra questão
polêmica por resolver: de saber se este dever moral é absoluto ou se admite algumas
limitações. Partimos da concepção de uma sociedade onde existem valores, um
universo axiológico, onde os indivíduos baseiam suas próprias concepções morais
assim como as jurídicas e políticas. Nessas circunstâncias, não é estranho que, no
que se refere ao âmbito moral, haja valores contraditórios que, em um determinado
momento, possam entrar em colisão ao prescrever um deles determinada ação que
o outro proíbe, de forma que, ao não existir um princípio que regule a hierarquia de
valores contraditórios, não poderá concluir-se que sempre se deve seguir o princípio
de obediência. Dessa forma, a violação do direito constitui sempre um ponto em que
há de se levar em consideração a valoração moral. Assim, o dever de obediência
ao direito não é absoluto, e pode ser deixado em segundo lugar ou marginado por
obrigações morais mais importantes. Portanto, existe por um lado o dever ético de
obedecer ao direito, e por outro, boas razões para desobedecê-lo.
A desobediência civil pode ser estudada a partir de três níveis: o moral, o político e
o jurídico, que destacam até que ponto a desobediência pode ou não ser justificada.310

308 MALEM SEÑA, Jorge. Concepto y justificación de la desobediencia civil. Barcelona: Ariel, 1988.
309 HOBBES, Thomas. Leviatán. Trad. al castellano de M. Sánchez Pardo, 2. ed., México: Fondo de Cultura
Económica, 1980. p. 179.
310 GARZÓN VALDÉS diferenciou a desobediência civil de outros possíveis atos que podem estar conectados com
ela e dar margem a confusões. Este seria o caso da desobediência revolucionária, do direito de resistência, da
desobediência criminal, da objeção de consciência, da atitude anarquista, da mera desobediência ideológica,
da desobediência militar e da desobediência eclesiástica. Assim, enquanto o objetivo do desobediente civil
é conseguir a modificação de uma determinada norma e sua substituição por outra mais justa, segundo sua
consciência, a finalidade do desobediente revolucionário é a de “derrubar a ordem legal existente e substitui-
la por outra”. Enquanto a desobediência civil se refere a normas que derivam do sistema jurídico, o direito
de resistência tem a ver com o sistema jurídico-político em seu conjunto. Há também que se distinguir o
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
140 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Com respeito ao primeiro nível, o moral, deve-se considerar tanto os argumentos


contrários (mal necessário, violência, universalidade, etc.) como os argumentos
a favor (centrados na conservação da integridade moral, no dever de combater a
imoralidade ou em ser um meio de progresso social, etc.) para aceitar que a atuação
do desobediente civil, moralmente é justificada. Como solução mais satisfatória
poder-se-ia afirmar que sempre temos obrigação moral de obedecer a lei, mas que,
em algumas circunstâncias muito especiais, esta norma geral é compensada por
uma obrigação moral mais forte de desobedecê-la.
Em relação ao segundo nível da justificação política da desobediência civil,
deve-se destacar que não apresenta qualquer dificuldade se estamos pensando
em um sistema ditatorial, mas sim, é mais complexo no caso de sistemas políticos
liberais-democráticos, onde estão juridicamente garantidos os direitos relativos à
possibilidade de participação legislativa e de alteração das leis e os cidadãos podem
exercer livremente tais prerrogativas.311 Mesmo quando se tratar de um sistema
democrático, se as regras do jogo forem rompidas em prejuízo de um setor minoritário
da população ou, se o sistema elabora leis injustas e não existem meios apropriados,
eficazes e rápidos para protestar e evitá-las, então entendemos que também se pode
considerar justificada politicamente a desobediência civil.
Em terceiro e último lugar, a possibilidade de justificar juridicamente a
desobediência civil é tarefa mais difícil. Aqui não se trata de buscar argumentos
morais, sejam deontológicos ou teleológicos ou de aduzir violações das regras do
jogo do compromisso político e pode-se entrar em campo de enormes contradições
conceituais. Se admitirmos que uma conduta esteja juridicamente proibida quando
é punida pela lei e aqueles que desobedecem a lei sabem que é assim, sustentar
que a ação também está permitida legalmente é uma contradição incompatível com
o conceito de obediência e de permissibilidade. A desobediência civil seria uma
estratégia para obter-se a declaração judicial de inconstitucionalidade. O procedimento
judicial se inicia através de ações que prima facie parecem se antijurídicas ou que
assim foram consideradas pela jurisprudência dominante até então.
Mas, uma vez que se tenham esgotado as instâncias judiciais – neste nível a
solução que se busca é sempre legal – ante a presunção de que uma determinada norma
seja inconstitucional mas tenha sido declarada juridicamente válida a referida norma,
qualquer tentativa de que o próprio sistema jurídico justifique o descumprimento ou a
desobediência a suas normas significaria abrir uma perigosa via para sua destruição.
Nos casos em que a validade de uma lei tenha sido firmemente estabelecida pelos

desobediente civil que viola criminalmente uma lei ou do objetor de consciência, que “em geral não aspira
modificar a lei em questão e sim que circunscreve o efeito de sua desobediência ao caso particular” e que nos
casos onde a objeção de consciência está prevista no ordenamento jurídico como um direito não há nenhum
fato de desobediência às leis. Cfr. GARZÓN VALDÉS, Ernesto. Acerca de la desobediencia civil. Sistema, n.
42,1981. p. 79-92.
311  Ver SINGER, Peter. Democracia y desobediencia. Barcelona: Ariel, 1985.
democracia
141

tribunais, não há forma jurídica de justificar a desobediência. É o caso do governador


Wallace, em Tuscaloosa (Alabama), que se negava a aplicar as leis de integração
racial que os tribunais haviam declarado obrigatórias.
A desobediência civil, a juízo de Rawls, consiste em um ato ilegal, público, não
violento, de consciência, mas de caráter político, realizado habitualmente com o fim
de provocar uma mudança na legislação ou na política governamental. Trata-se, pois,
de uma ação voluntária intencional cujo resultado (a violação da lei) se supõe esteja
vinculada ao progresso moral ou político de uma sociedade. O desobediente civil
pretende fazer as autoridades verem que uma determinada política não é a mais
adequada ou que uma norma jurídica ou conjunto delas deve ser modificada ou
derrogada. Por sua vez, a motivação de seus executores não é outra que a do dever
moral de violar a lei por ser julgada imoral ou injusta. Outra distinção se refere ao
caráter aberto e público, já que o desobediente deseja que, a publicidade de seu ato,
influa não somente os poderes públicos, mas toda a opinião pública. Deve-se também
destacar o caráter não violento de seus atos, é que sua manifestação costuma ocorrer
mais através de atos coletivos do que mediante atividades individuais.312
Deve-se ainda considerar que a desobediência civil apresenta duas modalidades
no que se refere às sanções estatais. Alguns desobedientes, como Sócrates, estão
dispostos a mostrar seu respeito à lei e aceitar suas sanções. Outros, como alguns
jovens americanos que se negaram a ir ao Vietnã, não aceitavam as sanções e se
refugiavam no exterior. O primeiro caso mostra seu respeito pela lei e seu desinteresse;
a ação do segundo caso sempre se mostrará suspeita de egoísmo ou falta de
solidariedade. O mais frequente é a primeira atitude, quer dizer, a aceitação voluntária
das consequências jurídicas a que está exposto o ator desobediente, e a submissão
às penas que o ordenamento jurídico lhe impõe. Isto significa que, em ultimo caso,
respeita a ordem jurídica e que vela por sua justiça.

312 RAWLS apresenta três requisitos para se avaliar se a desobediência é justificada. Em primeiro lugar, se a
violação da lei é realizada apelando-se ao sentimento de justiça da comunidade, é razoável se pensar em limitar
sua justificação a casos claramente injustos, ou à aqueles que impõem um obstáculo quando se trata de evitar
novas injustiças. Esta é a razão pela qual uma presunção a favor de restringir a justificação da desobediência
civil quando se a utiliza exclusivamente para protestar contra graves infrações ao primeiro princípio de justiça
(o princípio de igual liberdade) e as violações manifestas da segunda parte do segundo princípio de justiça
(princípio da justa igualdade de oportunidades). Em segundo lugar, a desobediência civil deve ser o último
recurso político. Somente depois de recorrer-se aos órgãos competentes do Estado com o objetivo de conseguir
as alterações pretendidas e haver recebido uma resposta negativa porque a maioria permanece impassível ou
apática, fica aberta a possibilidade de desobediência civil. Por último, a terceira condição decorre de que em
algumas circunstâncias o “dever natural de justiça” – a que se refere Rawls – impõe certas restrições que os
cidadãos devem observar. Esta limitação poderia justificar-se da seguinte forma: se uma determinada minoria
se encontra legitimada para manifestar sua desconformidade através de uma violação à lei, qualquer outra
minoria em idênticas circunstâncias estaria igualmente justificada. Mas isso seria perigoso se muitos grupos
se encontram na mesma posição e recorrem a desobediência civil, já que provocariam uma séria desordem
e poderia debilitar a eficácia da constituição e do restante das instituições justas. Deve-se ainda acrescentar o
problema que se apresentaria aos tribunais já que entrariam em colapso. (RAWLS, John. Teoría de la Justicia.
Traducción al castellano de M.D. González. México: Fondo de Cultura Económica, 1979).
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
142 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

2.8.2 O “discurso do ódio”

Em um sistema democrático, a liberdade de expressão constitui uma das


liberdades públicas características. Contudo, nos últimos anos estamos assistindo
a sua utilização como pretexto para a difusão de expressões e opiniões que podem
ser consideradas vulneradoras dos direitos dos outros indivíduos. É o denominado
problema do ‘discurso do ódio’.313 O desprezo pelo pertencimento de um indivíduo
a uma raça ou grupo, unida a uma radicalização da linguagem e da generalizada
difusão, mediante as redes sociais, fazem com que as ameaças – às vezes veladas,
outras explícitas – aumentem significativamente. Nos Estados Unidos as ideias
racistas são as que têm dominado o discurso do ódio. Na Europa continental, a
negação do holocausto judeu.314 Em ambos os casos têm-se discutido a possibilidade
de sancionar a difusão de ideias ou opiniões que sejam consideradas ofensiva a
grupos especialmente vulneráveis, como as mulheres, o coletivo GLVT, os imigrantes/
estrangeiros, os pobres/mendigos, a cristianofobia (o ódio aos cristãos), a hispanofobia
(o ódio a Espanha ou aos espanhóis).315 Esses comportamentos, que atentam contra
a dignidade e a igualdade, buscam cobrir-se com o manto da democracia (liberdade
de opinião, de expressão) e suas condutas eventualmente são fronteiriças (entre o
legal e o ilegal) o que dificulta sua identificação, seu ajuizamento e sanção.
A Recomendação Geral nº 15, referente à luta contra o discurso de ódio, adotada
pelo Conselho da Europa, em 08 de dezembro de 2015, estabelece:

O uso de uma ou mais formas de expressão específicas – como, por


exemplo, a defesa, promoção ou instigação do ódio, a humilhação
ou o menosprezo de uma pessoa ou grupos de pessoas, assim
como o bullying, descrédito, difusão de estereótipos negativos ou
estigmatização ou ameaças com respeito a alguma pessoa ou grupo
de pessoas e a justificativa dessas manifestações – baseadas em uma
lista não exaustiva de características pessoais ou estados que incluem
a raça, cor, idioma ou crenças, nacionalidade ou origem nacional ou
étnica, assim como a ascendência, idade, deficiências, sexo, gênero,
identidade de gênero e orientação sexual.316

313 O termo “discurso do ódio” provém da jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) a
qual o Conselho da Europa normatizou em sua doutrina legal.
314 Sua origem legal se encontra na Recomendação R (97) 20 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, de
30 de outubro de 1997, onde “insta aos Estados atuarem contra todas as formas de expressão que propaguem,
incitem ou promovam o ódio racial, a xenofobia, o antisemitismo ou outras formas de ódio baseados na
intolerância que se manifestam através do nacionalismo agressivo, o etnocentrismo, a discriminação e a
hostilidade contra as minorias e os imigrantes ou pessoas de origem imigrante”. E esta tem sua origem na
interpretação feita pelo Comitê do artigo 10 do Convênio Europeu de Direitos Humanos (1950) que em seu
parágrafo 1º declara que toda pessoa tem direito à liberdade de expressão e complementa em seu parágrafo
2º que o exercício de tal liberdade, que trás em si deveres e responsabilidades, poderá ser submetida a certas
condições, restrições ou sanções, previstas em lei, que constituam medidas necessárias em uma sociedade
democrática, para a segurança nacional, a integridade territorial, a segurança pública, a defesa da ordem e a
proteção da reputação ou dos direitos alheios.
315 <http://www.interior.gob.es/web/servicios-al-ciudadano/delitos-de-odio>. Acesso em: 25 nov. 2017.
316 Versão Espanhola. “Recomendación General nº 15 relativa a la lucha contra el discurso de odio y Memorandum
democracia
143

Os elementos essenciais dos atos constitutivos do discurso de ódio são:

- O fomento, promoção ou instigação em qualquer de suas formas, ao


ódio, à humilhação ou ao desprezo, assim como o bullying, descrédito,
difusão de estereótipos negativos, estigmatização ou ameaça;
- Atos e ações que somente tem por objetivo incitar o cometimento
de violência, intimidação, hostilidade ou discriminação, assim como a
prática de atos e ações onde se espera, razoavelmente, que produzam
tal efeito;
- motivos quem vão além da raça, cor, idioma, religião ou crença,
nacionalidade, origem étnica, ou nacionalidade e ascendência.

Contudo, como bem adverte Moretón Toquero, qualificar como delito uma
emoção – como é o ódio – é bastante complexo já que não corresponde propriamente
a uma categoria jurídica.317 O termo ‘ódio’ se refere a emoções intensas e irracionais
de opróbio inimizade e aversão de grupo objetivo.318
O ‘discurso de ódio’, recebeu a tipificação penal dos ‘delitos de ódio’. O
primeiro elemento de um delito de ódio é a execução de um ato constitutivo de
delito, conforme a legislação penal ordinária, de maneira que se não há uma infração
regulada no Código Penal, não há delito. O segundo elemento do delito de ódio é
que o ato delituoso se comete para ‘prejudicar’. É esta motivação, para prejudicar,
que distingue um delito de ódio de um delito ordinário. Isto significa que o autor
escolhe intencionalmente sua vítima por alguma característica protegida, como sua
origem, crença, etnia ou nacionalidade. Como regra, o maior número de delitos de
ódio versam sobre deficiências, ideologia, orientação sexual, racismo/xenofobia.319
Grande parte das condutas que poderiam ser classificadas como ‘delitos de ódio’
não são denunciadas pelas vítimas.320 Assim torna-se difícil confirmar as estatísticas

explicativo”, adoptada el 8 de diciembre de 2015, Comisión Europea contra el Racismo y la Intolerancia


(ECRI) Consejo de Europa. Estrasburgo, 21 de marzo de 2016. p.18. Disponível em: <https://www.coe.int/t/
dghl/monitoring/ecri/activities/.../REC-15-2016-015-SPA.pdf>.
317 “Apesar destas expressões não corresponderem propriamente a categorias jurídicas ainda há setores que
defendem sua incorporação na legislação penal. Contudo, sua utilização estendeu-se à literatura científica,
e mesmo para alguns convênios internacionais e na jurisprudência (particularmente no Tribunal Europeu
de Direitos Humanos) para referir-se e dar destaque a um grupo de condutas que orbitam em torno do
ódio discriminatório como elemento comum, motivador das mesmas que, por vezes, dão sustentação para
trazer à luz novas ações típicas e, outras, serve para qualificar condutas já tipificadas”. Ver TOQUERO, M.
Aránzau Moretón. El “ciberodio”, la nueva cara del mensaje de odio: entre la cibercriminalidad y la libertad de
expresión. Revista Jurídica de Castilla y León, n. 27, p. 4, mayo, 2012.
318 Principio 12.1 dos Principios de Camdem sobre a Libertade de Expressão e a Igualdade. Definição extraida
de: “Recomendación General nº 15 relativa a la lucha contra el discurso de odio y Memorandum explicativo”,
op. cit., p.16.
319 Podem se consultar três orientações da Oficina para las Instituciones Democráticas y Derechos Humanos
(ODHIR), organismo integrado da Organización para la Seguridad y Cooperación en Europa (OSCE). Se
trata de: 1) «Legislación sobre los Delitos de odio (Guía Práctica)». Disponível em: <www.empleo.gob.
es/oberaxe/ficheros/documentos/legislacionDelitosVinculando.pdf>; 2) «Herramientas de Recogida de
Datos y Monitorización de Delitos de Odio. Disponível em: <blog.educalab.es/cniie/2017/07/18/19051/>;
3) «Persecución penal de los delitos de odio» Disponível em: <www.empleo.gob.es/oberaxe/ficheros/
documentos/PersecucionPenalDelitosOdio.pdf>.
320 Pesquisa realizada pela Agência de Direitos Fundamentais da União Europeia (FRA), realizada com 23.500
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
144 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

porque, por um lado, não existem dados oficiais, e por outro, um grande percentual
de vítimas deste tipo de delito não costumam apresentar queixa ante as autoridades,
o que revela falta de confiança no sistema como também no desconhecimento e sua
tipificação penal.321

2.8.3 Democracia global322

A democracia, como forma de governo, sempre esteve vinculada ao conceito


de Estado-nação e de soberania dentro de um território nacional. Contudo, diversos
fatores, tais como o protagonismo dos grupos minoritários, a globalização e outros,
devem ser considerados.
Na Idade Média, como herdeira da cristandade, o poder soberano era atribuído
a Deus, de maneira que os preceitos religiosos eram os que ditavam as normas de
conduta ao Rei e aos governantes, estabelecendo um código ético e que, ainda que
em numerosas ocasiões fosse violado, era ele que regulava as relações entre os
Estados.
Os grupos minoritários reivindicam construir suas identidades para marcar suas
diferenças com relação à cultura nacional e reclamam um conjunto de direitos, não
de caráter individual, e sim coletivos. Com isso, questionam os critérios de justiça e
de igualdade liberais, derivados das revoluções dos séculos XVII e XVIII. Frente a eles
exigem novos critérios de justiça: um tratamento desigual para os desiguais e uma
ordem jurídica diferenciada que reconheça a desigualdade existente na comunidade
política.
O sistema de guerra entre as nações emana da Paz de Westfália de 1648, que
estabelece o princípio de soberania territorial nos assuntos internacionais. A partir
de Westfália, “cada Estado afirma possuir direitos exclusivos de jurisdição sobre
um território e uma população em particular”.323 A reação ao nazismo e a II Guerra
Mundial calou fundo na Europa a ideia de uma nova ordem global. Desde então,
particularismo e universalismo constituem duas forças civilizatórias da Modernidade.
Os processos de globalização oriundos dos centros de decisão para as

pessoas, cidadãos europeus e pertencentes a grupos de minorias étnicas, raciais ou imigrantes, divulgada
em dezembro de 2009, destaca que 12% das pessoas entrevistadas haviam sofrido no último ano algum
constrangimento que na legislação penal de seu país constitui infração penal. Destas, 82% não haviam
apresentado qualquer denúncia e, dentre estas, 64% não sabia que tal fato constituía crime. “Informe Anual
sobre la situación del Racismo y la Xenofobia en España 2017”. Op. cit. cit., p. 21.
321 Cuarto Informe de la Comisión Europea contra el Racismo y la Intolerancia (ECRI), publicado en febrero de
2011, p. 31 Ibidem, p. 45. In: <www.empleo.gob.es/oberaxe/es/normativa/internacional/ce/ecri/index.htm>.
322 Ver HELD, David. La democracia y el orden global. Del Estado moderno al gobierno cosmopolita, Madrid:
Paidós, 1997.
323 Idem, p. 101. Held destaca que, a partir de então, o que importará será a busca sistemática do interesse
nacional. Um exemplo disso é a corrida para opoderar-se de territórios coloniais protagonizada pelos Estados
Europeus mais avançados so séc. XIX.
democracia
145

unidades supranacionais – como as Nações Unidas, ou a União Europeia – levou a


um questionamento da soberania nacional. Por isso Held, no final dos anos noventa,
seguindo a tradição kantiana e a proposta de uma paz cosmopolita, propôs como
alternativa a democracia cosmopolita: “la creación de un poder legislativo y un
poder ejecutivo transnacionales; efectivos en el plano regional y en el global, cuyas
actividades estarían limitadas y contenidas por el derecho democrático básico”.324
Esta democracia global325 não está isenta de problemas. Conseguir uma
democracia além do âmbito do Estado-nação provoca inúmeras tensões. Costuma-
se também atribuir certo eurocentrismo no questionamento teórico da democracia
global, na medida em que se consideram somente as experiências e aspirações
europeias e, para se configurar uma democracia na ordem global, haveria de se levar
em consideração outras perspectivas. Por evidente há que se levar em consideração
outras experiências, mas sempre ao considerar este diálogo, há que se constatar
se estas outras experiências são democráticas. Para isso, terão que cumprir
certas condições, tais como o respeito à autonomia de todos e de cada um dos
cidadãos, o respeito ao valor moral de todos, reconhecer que resulta imprescindível
o consentimento (não a coação) na vida democrática, entre outras.326
De qualquer maneira, para se entender adequadamente a democracia na ordem
global, deve-se estar consciente das transformações que experimentam os Estados
no mundo globalizado. A clara influência da economia global no direito e na política
fez com que a autoridade formal de um Estado, para intervir e dirigir sua economia
no contexto de um sistema internacional, obrigue-se a levar em consideração outros
atores extraestatais. As transformações do Estado nacional impuseram visível
impacto sobre a noção de cidadania. A transnacionalização da política no marco da
globalização (migrações, direitos humanos, ecologismo, feminismo, pobreza) afetou
a cidadania legal, já que nem sempre conserva a igualdade e a plenitude dos direitos
de pertencimento.
As consequências da globalização na esfera política deram lugar a um
enfraquecimento da realidade territorial do Estado e a um aparente vazio de poder
dos Estados nacionais, para transladá-lo a centros decisórios supranacionais.
Não obstante os Estados nacionais não possam desaparecer como bem aponta

324 HELD, David. La democracia y el orden global, op. cit., p. 120.


325 A Organização Não Governamental “Democracia Global”, uma organização independente e pluralista, com
sede em Buenos Aires, tem como objetivo: “implulsionar a democracia global promovendo a existência de
instituições democráticas a nível continental, internacional e mundial seja através da reforma das organizações
existentes ou mediante a criação de novas”. Afirma que tudo foi globalizado, menos a democracia. Isto
tem causado um desequilíbrio de poder entre uma tecno-economia globalizada e um sistema político
nacionalmente centrado que opera através de instituições territoriais de tipo nacional. Esta é a primeira razão
para globalizar a democracia. Uma segunda razão refere-se as mudenças climáticas, aos genocídios e delitos
lesa humanidade, ao terrorismo internacional, ao tráfico de pessoas, as guerras e invasões, as pestes e
epidemias e as operações financeiras que já não respeitam as fronteiras nacionais. Disponível em: <http://
www.democraciaglobal.org.ar>.
326 HELD, D.; PATOMÄKI, H. Diálogo entre David Hekld y Heikki Patomäki, op. cit., p. 94.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
146 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Gómez, dadas as funções que possuem de distribuição política e seus mecanismo


jurídico-políticos, há que se reconhecer que os direitos estão dependentes de uma
dinâmica de interdependência com os centros de poder supranacionais.327 Por isso,
a segurança jurídica e a garantia dos direitos exigem uma especial relevância na
democracia global. A configuração de Tribunais Internacionais – como o Tribunal
Penal Internacional, para crimes contra a humanidade – têm ajudado a forjar novas
garantias no marco das renovadas exigências derivadas da ordem na democracia
global.328

2.8.4 Os nacionalismos

Por nacionalismo pode-se entender uma exaltação da nação.329 E, como


qualquer exaltação, significa levar a dimensões que excedem o ponto de equilíbrio,
descompensando outra parte. O fundamento último dos nacionalismos é a existência,
em certas regiões, de elementos linguísticos, culturais, etnográficos e institucionais
particulares.330
Como fatos discriminatórios em distintos lugares pode-se apontar: a) legislações
que proíbem o exercício de cargos públicos aos não nascidos no local onde residem;
b) legislações que estabeleçam limitações de propriedade em algumas partes do
território nacional; c) obstáculos em créditos e empréstimos em instituições bancárias;
d) contratação para trabalho de imigrantes com residência legal com maior jornada,
menor salário, férias e outras condições de trabalho dependendo da ação de origem;
e) trato desigual na equiparação de títulos, licenciaturas, doutorados, e outros; f)

327 GÓMEZ, María Isabel Garrido. Las transformaciones del Derecho en la sociedad global. Navarra: Thomson
Reuters, 2010. p. 33.
328 Ver FERRAJOLI, Luigi. La crisis de la democracia en la era de la globalización. In: ESCAMILLA, Manuel;
SAAVEDRA, Modesto (Ed.). Derecho y justicia en una sociedad global – Law and Justice in a Global Society.
Anales de al Cátedra Francisco Suárez, n. 39, 2005, p. 37-57. Disponível em: <https://dialnet.unirioja.es/
ejemplar/254703>.
329 Para diferenciar expressões como Nação, Nacionalismo, Pátria, que costumam ser utilizados de maneira
indistinta nos meios de comunicação, ver GARCÍA ARVELO, J. L. "Nacionalismos e independentismo: breve
historia y alguna reflexión desde el mensaje televisivo" en Concha Mateos Martín, Francisco Javier Herrero
Gutiérrez, (Coord.). La pantalla insomne, 2016, p. 1494-1507. Disponible en: <https://dialnet.unirioja.es/
servlet/articulo?codigo=6061704>. Em geral o termo nacionalismo possui três significados diferentes: a)
como o afeto particular que se tem a um lugar onde a pessoa tenha nascido. Neste sentido o nacionalismo
pode ser identificado com o patriotismo; b) com a ideia ou ideologia pela qual se atribui um valor superior às
pessoas que nasceram em uma determinada comunidade, cidade, nação ou Estado, em relação às pessoas
que nasceram em outra comunidade, cidade, nação ou Estado. O nacionalismo, neste sentido não somente
está fundado no fato de se haver nascido no mesmo local, mas que o nascimento no mesmo local traz consigo
um conjunto de identidades de natureza cultural: costumes, formas de ver a vida, etc. O nacionalismo, nesse
sentido, tem por base a etnia, isto é, pessoas que por terem nascido e crescido no mesmo local formam um
grupo étnico ao terem a mesma cultura. Destacamos que a etnia não se identifica com a raça, posto que
esta implica ter traços biológicos comuns, enquanto que a etnia implica em ter-se traços culturais similares;
c) a aspiração de uma comunidade, cidade, nação ou Estado de alcançar a independência em todos os
sentidos: política, cultural, econômica, etc. em relação a outras comunidades, cidades, nação ou Estado
de que dependem em algum desses sentidos políticos, culturais, econômicos, etc. Das três acepções de
nacionalismo, nos referimos, aqui, é à segunda, por ser uma das causas da discriminação social.
330 Por exemplo, no caso espanhol, existem duas Comunidades Autônomas que têm fomentado o sentimento
nacionalista de forma prevalente sobre as outras quinze Comunidades Autônomas. Trata-se da Catalunha e
do País Basco que destacam a singularidade de suas línguas, seu direito, e sua história.
democracia
147

obrigação, dentro do mesmo estado, de utilizar, em determinadas regiões, a língua


da região, em detrimento da língua oficial do Estado.
Como exemplo, podemos utilizar neste último aspecto, a política linguística
Catalã.331 Paradoxalmente, a primeira argumentação do nacionalismo Catalão invoca
a igualdade.332 Apela-se à discriminação positiva para justificar a política linguística
da Catalunha em nome da igualdade. A verdade é que esta política condicionou
o acesso às oportunidades sociais e, nesse sentido, o princípio da igualdade de
oportunidades tem sido violado. A esta discriminação positiva não faltam críticos.
Lembram que sua aplicação impôs uma discriminação inversa: penalizando, em suas
oportunidades, indivíduos com méritos reconhecidos e que não eram responsáveis
por discriminação alguma.
Os efeitos negativos do nacionalismo são vários: a) promove uma injusta
exclusão das pessoas e grupos dando lugar a uma flexibilização dos direitos
humanos para as pessoas excluídas, assim como impondo diversos sofrimentos e
humilhações que vão contra a dignidade das pessoas; b) vai contra o pluralismo
social que propicia o desenvolvimento dos valores individuais; c) cria o homem-
massa, como resultado da anulação das diferenças; d) propicia a criação de
guetos, áreas separadas para residência de indivíduos de determinada origem
étnica, cultural ou religiosa; e) pode acabar gerando enfrentamentos violentos entre
distintas facções.

331 A Lei 7/193 de normatização linguística na Catalunha, abriu a porta a uma única linha de educação em
Catalão. Um modelo linguístico inspirado na experiência de Quebec, no Canadá. A ação prática deste ato
se realizou adotando diversas medidas, como o desenvolvimento de programas de imersão linguística nas
escolas (onde mais de 70% falavam o espanhol) Simultaneamente este modelo monolinguístico foi vinculado
a todas as propostas de catalanização, estendendo-se à Administração Pública (saúde, justiça, transporte,
turismo) e seus serviços públicos, exigindo uma certificação de “competência linguística” em catalão para se
acessar a determinados postos de trabalho no setor público.Também se aplicou esta medida aos meios de
comunicação – Televisão, jornais, emissoras de rádio, etc. Também foi subvencionado pela Comunidade a
publicação de vasta literatura em catalão, edições de multimídia, como Windows 98, a produção de espetáculos
artísticos, e outros. Assim, a lingua catalã se transformou em um elemento claramente diferenciador, que
permite se atingir a determinados postos de poder ou ter certo status em instituições públicas. Dessa forma
se instalou uma identificação perversa entre língua e nação. SOLER COSTA, Rebeca. “La lengua catalana en
la construcción de la identidad social de Cataluña: análisis de este nacionalismo lingüístico”. In: REIFOP, 12,
2009, p.114-127. Disponible en: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3086764.pdf>.
332 Uma segunda argumentação catalã refere-se à necessidade de se evitar o desaparecimento de uma
língua com um número limitado de falantes. Enquanto o espanhol tem assegurada sua sobvevivência, o
catalão necessitaria de medidas de apoio, entre as quais a penalização pelo uso – em etiquetas, rotulações
comerciais – do espanhol. A terceira estratégia argumentativa invoca o direito de ‘viver sua própria língua’.
Refere-se à liberdade de expressar-se em sua própria língua, um direito indiscutível. OVEJERO, Félix.
“¿Razones (nacionalistas) de izquierda?” (14.07.2004). Disponível em: <https://elpais.com/diario/2004/07/14/
opinion/1089756009_850215.html>.
3 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA

3.1 O que é participação política

Participar, do latim participare, significa tomar parte em algo, pertencer a, mas


também significa fazer saber, informar, anunciar, comunicar. Participação política
seria, pois, tomar parte na sociedade política, informar e fazer todos saberem de
suas opiniões. Partindo disso, Aliende sentencia que a participação dos cidadãos
na vida política constitui, por sua vez, um instrumento, um princípio, um requisito e
uma manifestação de democracia, que a legitima; e também um meio para um maior
debate e uma melhor tomada de decisões políticas.333
O homem, já disse Aristóteles, está destinado a viver em sociedade e esta
necessidade não decorrer unicamente por uma questão de segurança ou necessidade
alimentar, são as carências afetivas, psicológicas e espirituais que o condicionam a
agir dessa maneira. Viver, ou conviver com outros homens é da natureza humana.
Mas, como lembra Dallari, cada indivíduo possui necessidades próprias de sua
individualidade, elas decorrem da sua forma de criação, de seus valores, da maneira
como vê o mundo, de suas crenças, de sua ideologia, etc.334 Então, se cada indivíduo
possui necessidades diferentes e todos convivem juntos, é inevitável a ocorrência de
tensões e conflitos e estes serão, não apenas de ordem individual, mas de grupos e
até mesmo de toda sociedade.
As diferenças e as necessidades decorrem do parentesco, da divisão social do
trabalho, da hierarquização social, da diversidade das culturas, das crenças religiosas
ou das ideologias. Cada indivíduo e cada um desses grupos possuem atividades
próprias, buscam alcançar seus próprios fins, defendem interesses que lhes são
próprios no emaranhado das relações sociais. Os diferentes objetivos produzem
tensões que podem, em situações críticas, converter-se em antagonismos. Os
conflitos vão surgir quando as atividades de uns contrariam as dos demais, quando
os interesses de uns não são compatíveis com os dos demais. Trata-se, portanto, do
enfrentamiento o lucha que se presenta cuando personas o grupos se oponem entre si
porque sus propósitos son o parecen incompatibles335 e, como bem lembra Moore,336
todas as sociedades, comunidades, organizações e relacionamentos interpessoais
experimentam conflitos em um ou outro momento no processo diário de interação.

333 ALIENDE, José Manuel Canales. Algunas reflexiones sobre la representación y la participación ciudadana en
el ámbito local. In: ALZAMORA, Manuel Menéndez (Ed.). Participación y Representación Política. Valencia:
Tirant lo Blanch, 2009. p. 267.
334 DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. 15. reimp. São Paulo: Brasiliense, 2004. p. 13.
335 “La Justicia de la Gente”, Cartilha editada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Rede
de Solidariedade Social da Presidência da República da Colômbia, Bogotá, s/d, p. 3.
336 MOORE, Christopher. W. The mediation process – practical strategies for resolving conflict. San Francisco:
Jossey-Bass Inc., 1996. p. 7.
participação política
149

Desde a formação das primeiras hordas o homem tem sido protagonista e vítima de
conflitos com seus semelhantes, basta lembrar Caim e na solução dramática que
deu a seu conflito com o próprio irmão. Portanto, a única regra comum e inflexível em
todas as sociedades humanas é que nenhuma, jamais, está sem tensões e conflitos.
Sem essas tensões e conflitos entre os diversos grupos que a compõem, a
sociedade humana seria como um formigueiro – e já disse Hobbes, o homem
não é social como as abelhas ou formigas.337 Mas as tensões e conflitos não são
necessariamente ruins, na verdade são eles muitas vezes os agentes causadores das
transformações sociais. Não é incomum que importantes acontecimentos em uma
sociedade surjam de uma saudável e produtiva negociação de seus conflitos: de los
conflictos pueden salir ideas, soluciones y respuestas que favorezcan a las personas
involucradas.338 Logo, há necessidade de se mediar esses interesses diversos.
Essa mediação, a participação na prevenção ou gestão dos conflitos sociais é que
denomina-se política. Trata-se, portanto, de um conjunto de regras, atos e ações que
permitem ao homem viver com seus semelhantes; é o instrumento de mediação que
permite a vida em sociedade ou, como define Dallari, trata-se da “conjugação das
ações de indivíduos e grupos humanos, dirigindo-as a um fim comum”. Portanto,
independente da forma, sistema, modelo ou regime adotado, pode-se definir
política como toda ação humana que produza algum efeito sobre a organização, o
funcionamento e os objetivos da sociedade.339 Dito de outro modo, política é a arte

337 “É certo que há algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente umas
com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção senão
seus juízos e apetites particulares, nem linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que
consideram adequado para o beneficio comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber por que a
humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a responder o seguinte. Primeiro, que os homens estão
constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela dignidade, o que não ocorre no caso dessas
criaturas. E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que
entre aquelas criaturas tal não acontece. Segundo, que entre essas criaturas não há diferença entre o bem
comum e o bem individual e, dado que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o
bem comum. Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só pode tirar
prazer do que é eminente. Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o
uso da razão, elas não vêem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum. Ao
passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios, e mais capacitados que
os outros para o exercício do poder público. E esses esforçam-se por empreender reformas e inovações,
uns de uma maneira e outros doutra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil. Quarto,
que essas criaturas, embora sejam capazes de um certo uso da voz, para dar a conhecer umas às outras
seus desejos e outras afecções, apesar disso carecem daquela arte das palavras mediante a qual alguns
homens são capazes de apresentar aos outros o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a
aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando o
descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que os outros vivem. Quinto, as
criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e, consequentemente, basta que estejam
satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo
quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar
as ações dos que governam o Estado. Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo
que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar
que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo:
ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do beneficio
comum. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de
João Paulo Monteiro. São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 146-147.
338 “La Justicia de la Gente”, Cartilha editada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e Rede
de Solidariedade Social da Presidência da República da Colômbia, Bogotá, s/d. p. 11.
339 DALLARI, Dalmo de Abreu O que é participação política. Op. cit., p. 10-11.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
150 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

de conciliar interesses, ela substitui o combate pelo debate, a violência física pela
violência das palavras, a guerra pela paz.
O regramento dos conflitos é o teste derradeiro da arte da política: consiste
em fazer coexistir, na mesma sociedade, grupos antagonistas, impedindo-os de
recorrer à violência. Evitando, pois, que o conflito social se converta em uma guerra
civil que ameaçaria a existência da própria sociedade. É responsabilidade da própria
sociedade, através de seus governos, instituir instrumentos de mediação que permitam
arrefecer estes conflitos, ou, ao menos temporariamente, pôr um fim, através de
compromissos aceitáveis para as forças que os enfrentam. Temporariamente, porque
novas tensões surgirão, ou as velhas ressurgirão – afinal como já afirmamos, sem
tensões e conflitos não há vida social – e a regulação social para evitar conflitos
se opera de infinitas maneiras, segundo as diferentes culturas, algumas inusitadas,
como apresenta Lapierre baseado na antropologia política: a) ritos religiosos que
periodicamente reúnem toda sociedade e exigem uma reconciliação geral, onde
as compensações costumeiras são negociadas; b) casamentos entre indivíduos de
grupos diferentes; c) exigências de sangue; d) duelos de cânticos ou poesias entre
grupos e até competições esportivas.340
Entretanto, é o regramento dos conflitos através da lei, sob o controle do poder
político, que caracteriza as sociedades politicamente organizadas. Isso significa que
os conflitos são institucionalizados e são resolvidos através da aplicação da lei. A
regulação política desta sociedade é o resultado de um debate organizado, seguindo
as regras do jogo, escritas ou consuetudinárias, independente da vontade daqueles
que governam. Em um Estado de Direito, a política é o campo de ação onde tem lugar
a competição e as regras deste jogo social – artificiais e convencionais – não caem
do céu, são obras da sociedade de homens, que possuem seus desejos, paixões,
interesses e ambições.
Sob esse ângulo, divergindo de Foucault – que se referiu à política como a
continuação da guerra apenas com outros meios – Bovero refere-se à política como
um jogo de adultos, mas reconhece, extremamente conflitivo. E essa dimensão
conflitiva não pode ser eliminada porque está ligada à luta pela conquista do poder
e o poder político tem uma razão de ser que não é propriamente conflitiva, aliás, é
anticonflitiva: “impedir que os conflitos, de interesses, de aspirações, de ideais, etc.,
entre os indivíduos e grupos desagreguem a sociedade, causem dano à convivência
civil da qual depende a existência de cada um”.341
O jogo político possui muitas variantes, Bailey as denomina de regras do jogo
político e as classifica em regras normativas e pragmáticas: as primeiras estabelecem
como são organizadas as fases da competição, que são as eleições, os debates,

340 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 72-74.


341 BOVERO, Michelangelo. ?Crepúsculo de la democracia? In: BOVERO, Michelangelo; PAZÉ Valentina. La
democrácia en nueve lecciones. Madrid: Trotta, 2014. p. 16.
participação política
151

as negociações, como são computados os pontos e como se decide quem ganha


e quem perde. As regras pragmáticas – assim como em uma competição qualquer
– referem-se às estratégias e às táticas que podem ser usadas para que se tenha
maiores chances de vitória.342 Fazer política é estar ativo nesse jogo, participar desta
competição, pôr em prática as regras pragmáticas, respeitando as normativas.
Para o cidadão é poder escolher, entre as possibilidades, a que atente melhor suas
expectativas e interesses.
A participação política tem sido considerada, durante muito tempo, por sua
forma de expressão mais habitual: o voto. Contudo, o voto é apenas mais um dentre
muitos outros recursos de que dispõe o cidadão para influenciar no mundo político.343
Pois bem, além do voto, o que é participação política? A participação política pode-se
definir como “o comportamento que afeta ou busca afetar as decisões do governo”.344
No final dos anos 80, Conge, em seu trabalho The concept of political
participation, apresentou algumas questões que ajudam a esclarecer em que
consiste a participação política, destacando que as discrepâncias entre as diferentes
conceituações ocorrem em razão de seis pontos:
1. Formas ativas vs. passivas: a participação política deveria ser definida
enquanto ação – votar, fazer campanha para algum candidato ou partido
– ou deveria incluir formas passivas, como o sentimento de patriotismo ou
interesse pela política?
2. Condutas agressivas vs. não agressivas: a definição de participação política
deveria incluir a desobediência civil e a violência política, ou deveria limitar-
se às ações mais convencionais?
3. Objetos estruturais vs. não estruturais: os esforços para mudar ou manter
a forma de governo deveriam estar incluídas na definição de participação
política ou a definição deveria limitar-se aos esforços para mudar ou manter
as autoridades governamentais e/ou suas decisões?
4. Objetivos governamentais vs. não governamentais: a participação política
deveria limitar-se às ações dirigidas para as autoridades governamentais, a
política e/as instituições, ou deveria incluir os fenômenos que se encontram
fora da esfera de governo?
5. Ações dirigidas vs. voluntárias: as ações patrocinadas e dirigidas pelo
governo para aumentar sua participação ou prestações sociais deveriam ser

342 BAILEY, F. G. Les règles du jeu politique. París: PUF, 1972. p. 31. Apud LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce
qu’être cotiyen? Op. cit., p. 77.
343 Seguimos com a exposição de: DELFINO, G. I.; ZUBIETA, E. M. Participación política: concepto y modalidades.
In: Anuario de investigación, Ciudad Autónoma de Buenos Aires,  v. 17, p. 211-220, dic.  2010.
Disponível em: <http://www.scielo.org.ar/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1851-16862010000100020&ln
g=es&nrm=iso>. Acesso em:  14 nov. 2017.
344 MILBRATH, L. Political participation, University of Harvard, 1965. p. 1.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
152 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

denominadas participação política, ou o termo deveria restringir-se às ações


de iniciativa dos cidadãos com o objetivo de alcançar seus interesses?
6. Resultados previstos vs. não esperados: as ações que levam a consequências
imprevistas para o governo deveriam ser definidas como participação
política?
Como resultado desses questionamentos, Conge define a participação política
como a ação individual ou coletiva em nível nacional ou local que apoia ou se opõe às
estruturas, autoridades e/ou decisões relacionadas com a distribuição ou designação
dos bens públicos.345 E esclarece que a ação pode ser: a) verbal ou escrita; b) violenta
ou não violenta; c) de diferentes intensidades.
Com um posicionamento muito próximo de Conge, Sabucedo346 atribui à
participação política as características de: instrumental, voluntária e não limitada
pelos critérios de legalidade. Defende que a ação política deveria ser entendida
como qualquer comportamento intencional realizado por um indivíduo ou grupo com
o fim de lograr algum tipo de incidência na tomada de decisões políticas. Assim, [...]
aspectos tais como o pagar impostos ou os sentimentos de patriotismo, entre outros,
não poderiam (sic) considerar-se formas de participação política.347

3.1.1 As modalidades de participação política

A participação política pressupõe, necessariamente, vários elementos tais como


a referência a indivíduos como cidadãos, a alusão a uma atividade, a presença de
uma ação volitiva e a referência à política e ao governo.
As diversas tentativas de aferição e de classificação da participação política
evidenciam, de forma clara, a evolução que sofreu este conceito. O repertório de
atividades políticas dos sujeitos não se limita a atividades convencionais, como recorrer
a comícios ou tentar convencer outras pessoas para votar em algum candidato ou
partido. Observando-se o comportamento político da população é fácil constatar que
o cidadão recorre, também, a outras estratégias para influenciar nas decisões do
poder político: greves, manifestações, passeatas, etc.
Assim, autores como Campbell348 apresentam uma escala de participação

345 CONGE, P. J. The concept of political participation, op. cit., p. 247.


346 SABUCEDO, José Manuel. Factores psicosociales asociados a las formas de participación política institucional
y no institucional. In: VILLAREAL, M. (Dir.). Movimientos sociales. San Sebastián: Servicio Editorial Universidad
del País Vasco, 1989. Sobre os direitos que comprendem a participaçâo política, ver: MIGUEL, Alfonso Ruiz.
Los derechos de participación política. In: BETEGÓN, Jerónimo; LAPORTA, Francisco; DE PÁRAMO, Juan
Ramón; PRIETO SANCHÍS, Luis (Coord.). Constitución y derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios
Políticos y Constitucionales, 2004.
347 SABUCEDO, José Manuel. Factores psicosociales asociados a las formas de participación política institucional
y no institucional, op. cit., p. 55.
348 CAMPBELL, Angus; GURIN, Gerald; MILLER, Warren E. The voter decides. White Plains, New York, Row,
Peterson & Company, 1954.
participação política
153

política composta por cinco itens que refletem as atividades desenvolvidas durante as
campanhas eleitorais: votar, participar de comícios, apoiar economicamente algum
candidato ou partido, trabalhar para algum partido e convencer aos outros para votar
por algum candidato e/ou determinado partido.
A distinção mais habitual costuma se estabelecer entre participação política
convencional ou não convencional.349 Para Kaase e Marsh,350 a participação política
convencional inclui “aqueles atos de compromisso político que estão direta ou
indiretamente relacionados com o processo eleitoral.” Quanto à participação política
não convencional, o que mais se destaca é a heterogeneidade de atividades que se
executam sob este rótulo.
Sabucedo e Arce351 utilizaram a técnica de escalonamento multidimensional,
obtendo duas dimensões: dentro-fora do sistema e progressivo-conservador;
e efetuaram uma análise que os leva a sustentar a existência de quatro tipos de
participação política: a) Persuasão eleitoral, que inclui atividades, tais como convencer
aos outros para que votem em um determinado candidato e/ou partido e participar/
organizar comícios; b) Participação convencional, que se caracteriza por aquelas
atividades que se mantêm dentro da legalidade vigente e que tratam de influenciar
o curso dos acontecimentos político-sociais. Exemplos deste tipo de participação
política são: votar, enviar matéria para a imprensa, manifestações e greves autorizadas;
c) Participação violenta, que integra ações como danos à propriedade e violência
armada; d) Participação direta pacífica, que inclui atividades que, ainda que possam
eventualmente derivar para a ilegalidade, não são necessariamente violentas.
Exemplos desta forma de participação seriam: ocupação de edifícios públicos,
boicotes, bloqueio de trânsito, manifestações e/ou greves não autorizadas.
O voto constitui a modalidade de participação política por excelência. Mas se
partirmos do pressuposto da obrigação (moral) que o cidadão tem de informar-se e
forjar um saber fundamentado para poder votar, cabe perguntar se está obrigado a
votar. O dever moral que o cidadão tem de informar-se antes de exercer seu direito
ao voto não significa que tenha um dever de votar. Inclusive se não cumpriu com sua
obrigação de informar-se, com seu dever de conhecer, parece que seria melhor que
não fosse votar.
A tradição liberal rechaça a obrigatoriedade do voto e defende seu caráter
voluntário. Em sua obra Considerações sobre o Governo Representativo, Mill ataca
a ideia de que o voto é um direito individual outorgado ao eleitor para seu próprio
uso e benefício pessoal. Sustenta que se trata de um ato de confiança, uma espécie

349 SABUCEDO, José Manuel. Psicología política. Madrid: Síntesis, 1996.


350 KASSE, M.; MARSH, A. Measuring political action. In: BARNES, S. H.; KAASE, M. et al. Political action: mass
participation in five western democracies. Beverly Hills, California: Sage, 1969, p. 84.
351 SABUCEDO, José Manuel; ARCE, Constantino. Types of Political Participation: a multidimensional analysis.
In: European Journal of Political Research, n. 20, 1991. p. 93-102.    
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
154 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

de fideicomisso que a sociedade deposita em cada cidadão. Este fideicomisso


comporta deveres epistêmicos no sentido de que o eleitor deve exercer seu voto
com responsabilidade e tendo como finalidade não seu interesse pessoal e sim o
bem comum.352
Portanto, como se observa, as modalidades e os graus de participação são
incontáveis. Para Lapierre, a mais restrita é o voto, onde as motivações são mais
complexas e sob diversas influências. A mais completa é a carreira política profissional.
Entre estes dois extremos estão a adesão a um partido e, num grau mais elevado,
a militância a serviço deste partido, mas também a atividade em grupos de pressão
(lobbies) que impõem sua força (inclusive econômica) para obter decisões conforme
o interesse particular de grupos, categorias, comunidades ou corporações.353 De La
Fuente, seguindo lição de Anduiza e Bosch reconhece cinco formas de participação
política:
1) Participação eleitoral: o simples ato de votar, quer em eleições, referendum
ou plebiscito;
2) Participação em campanhas: participar ativamente em campanhas eleitorais
(trabalhando para um partido e/ou candidato, financiando, distribuindo
bottons, cartazes e “santinhos”, visitando residências e/ou empresas na
tentativa de convencer as pessoas a votar de determinada maneira, etc.);
3) Participação em organizações políticas: ser membro ativo e\ou participar das
atividades de um partido ou grupo, associação ou qualquer plataforma de
caráter político (sindicato, organização ecológicas, pacifistas, pró-direitos
humanos, grupos feministas, etc.) A definição inclui apresentar-se como pré-
candidato a cargos da própria organização ou como candidato a um posto
eletivo institucional, excluindo-se expressamente o desempenho de cargos
públicos;354
4) Participação-contato: contatar diretamente com os representantes políticos
e/ou os meios de comunicação, sobre questões públicas (pedir audiências

352 MILL, Stuart. Consideraciones sobre el gobierno representativo. Madrid: Edición, Librería de Victoriano
Suárez, 1861. cap. 10.
Em relação a essa questão Linares propõe a “promessa pública do votante”, segundo a qual os cidadãos
votantes, antes de lançar o voto na urna (ou apertar o botão) devem pronunciar publicamente ante o
presidente da mesa eleitoral (ou selecionar uma janela no computador) com o seguinte enunciado: “Prometo
publicamente fundar meu voto em juízo reflexivo sobre as propostas dos candidatos e exercer meu poder de
cidadão com responsabilidade” E, se algum cidadão se negar a tal promessa, o votante deveria pronunciar
publicamente o seguinte ditame: “Me nego publicamente a pronunciar a promessa por razões de objeção de
consciência”. Se se negar a utilizar qualquer uma das modalidades, não pode ter o direito de votar. LINARES,
Sebastián. Democracia participativa epistémica, Madrid: Marcial Pons, 2017. p. 295.
353 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 78.
354 Com isso, diz Fuente evita-se abordar aqui o fenômeno da corrupção política; uma situação ilegal, onde um
dos participantes é sempre uma autoridade exercendo funções políticas ou administrativas. Em alguns casos
a iniciativa procede do cargo público e visa incrementar o poder daquele (corrupção ascendente), em outros
casos, a iniciativa parte dos cidadãos para a autoridade a fim de obterem benefícios econômicos (corrupção
descendente).
participação política
155

ou entrevistas, mandar mensagens, cartas, telefonar aos jornais, etc.);


5) Participação-protesto: expressar rechaço a uma determinada situação ou
circunstância política (participar de manifestações, boicotar determinados
produtos e/ou empresas por razões políticas, ocupar prédios, fazer passeatas,
bloquear o trânsito, etc.).355
Em resumo: O âmbito político é aquele de todas as iniciativas que buscam o
futuro bem-estar de um povo e sua gestão deve ser incumbência de toda sociedade
organizada, daqueles que possuem autoridade e daqueles que não a possuem, pois,
como diz Fernández-Largo, “todos devem ser elementos ativos na promoção do bem
comum”. Assevera que no próprio conceito de pessoa humana está incluída a condição
de ser membro ativo de uma sociedade que deve, em qualquer circunstância, ser
personalizada e personalizadora.356
Por evidente que nos referimos aqui a uma participação política autêntica, isto
é, aquela que leva em consideração as relações de poder e a luta pela igualdade
de direitos. Há formas de participação que são verdadeiras negação à participação,
são formas de não participação: a participação manipulada (o nível mais baixo de
participação), a participação decorativa (quando os indivíduos se fazem presentes
objetivando um espetáculo, um lanche, um sorteio de brindes) ou a participação
simbólica (quando alguns indivíduos são chamados para manifestar-se e a sua
manifestação não terá qualquer influência no curso do evento).357
Referindo-se à participação autêntica e plena em projetos que levem à
efetiva solução de problemas reais, assevera Hart que os indivíduos desenvolvem
capacidades de reflexão crítica e comparativa das perspectivas que são essenciais
para a autodeterminação de suas opções políticas, além de fomentar a democratização
da sociedade. Então, com a autêntica participação ocorrem dois benefícios: um
individual, que atinge a autoestima e permite que o indivíduo se desenvolva como
cidadão, mais competente, mais responsável e seguro de si, ao mesmo tempo em
que se dá um benefício social, a melhoria da organização e o funcionamento da
comunidade através da democratização.358

355 ANDUIZA, Eva; BOSCH, Agustí. Comportamiento político y electoral. Barcelona: Ariel. 2004, Apud DE LA
FUENTE, Íñigo González. Antropología de la Participación Política. Salamanca: Amarú Editores, 2010. p. 24-
25.
356 FERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuma. Los Derechos Humanos. Ámbitos y desarrollo. Salamanca: San
Estebam: Madrid: Edibesa, 2002. p. 39.
357 HART, Roger. La participación de los niños: de la participación simbólica a la participación autentica. Florença:
UNICEF/ICDC, 1993. Ver também GOMES DA COSTA, Antonio Carlos. Protagonismo Juvenil. Adolescência,
educação e participação democrática. Salvador: Fundação Odebrecht, 2000. p. 28-30.
358 Idem.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
156 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

3.1.1.1 A iniciativa legislativa popular como um instrumento do direito de


participação política

As possibilidades que as Constituições democráticas outorgam para tornar


realidade os direitos de participação política, como bem destaca Gómez, se forjam no
exercício dos direitos de participação direta e de sufrágio ativo e passivo. O primeiro
reconhece, mediante o exercício de métodos de democracia direta compreendidos na
iniciativa legislativa popular e na possibilidade de se convocar referendum, pelo que
sua força é bastante reduzida. Ainda que as técnicas da democracia representativa
estejam mais potencializadas,359 atualmente tem-se acentuado significativamente os
mecanismos de democracia direta frente à democracia representativa, impulsionando
os instrumentos que os textos constitucionais oferecem para permitir a possibilidade
de participação popular.
Podemos entender a democracia participativa como um contrapeso para que
os partidos políticos deixem de possuir o monopólio da política. As vantagens da
democracia participativa é que, através dela, pode-se melhorar a gestão pública.
Assim, onde existem instituições participativas, os recursos do Estado são utilizados
de forma mais eficiente, já que o funcionamento obrigatoriamente possui mais
transparência de forma a possibilitar a deliberação cidadã.360
Foi através de algumas experiências nos orçamentos participativos municipais
que se pretendeu conciliar as instituições representativas com as participativas,
fundadas principalmente na informação, na deliberação e, sobretudo na prestação
de contas dos poderes públicos para os cidadãos, fazendo não somente com que a
gestão pública dos recursos seja mais transparente – informando a administração aos
cidadãos sobre as contas públicas, – e assim dando um grau maior de confiança a
estes – como também estreitando a relação entre os representantes e representados.
De fato, é cada vez maior o número de cidades que têm introduzido a experiência
dos orçamentos participativos361 surgidos em Porto Alegre (Brasil) a partir dos anos

359 Estas técnicas de democracia representativa se dividem, tradicionalmente, em vários níveis: 1) O originário
de debate, onde se produz a formação da vontade popular que desemboca nas urnas, ao efetuar-se as
votações; 2) O comunicativo, por meio do mandato, concebido como instrumento jurídico que condiciona
conteúdos e limites do processo representativo; 3) O de controle ou responsabilidade, onde se estabelece
o processo que vai dos eleitores aos seus representantes;e, 4) O da emancipação de decisões gerais ou
atuações governamentais na esfera pública convergente com a governabilidade. GÓMEZ, María Isabel
Garrido. Derechos fundamentales y Estado social y democrático de Derecho. Madrid: Editorial Dilex, 2007. p.
95-96.
360 Ibidem.
361 Os Orçamentos Participativos se constituem em uma ferramenta de participação e gestão da cidade,
mediante o qual a cidadania pode propor e decidir sobre o destino de parte dos recursos municipais. Deve-se
considerar que é um dos muitos instrumentos que podem serem utilizados para incrementar a presença dos
cidadãos na adoção de políticas públicas. Fomenta uma aproximação entre os governantes e a sociedade
civil, assim como facilita o conhecimento das reais necessidades e aspirações da cidadania.
O sistema de Orçamento Participativo consiste em uma serie de reuniões nas quais se definem as demandas
regionais, as prioridades da cidade e os critérios de destinação de recuros e o programa de investimentos
do municipio. Cada etapa contém mecanismos que permitem a circulação de informações entre as
autoridades políticas do governo, seus técnicos, profissionais e a cidadania. Ver. FREITAS, A. La experiencia
participação política
157

noventa e que se estenderam pelo contexto latino-americano e europeu a partir do


ano 2.000. Paulatinamente, esses orçamentos participativos têm sido implantados
como mais um instrumento dentro da gestão pública.
Assim, os movimentos sociais e os grupos de interesse são os que, através do
exercício da democracia participativa, definem a agenda política e tomam o lugar das
organizações partidárias. Outro exemplo são as iniciativas legislativas populares – às
quais vamos nos referir a seguir – que podem incentivar os cidadãos a se envolverem
mais nas decisões políticas, e, por sua vez, originam uma maior democratização da
agenda política. O objetivo principal das iniciativas populares é que os interesses dos
cidadãos prevaleçam sobre os interesses partidários.362
Uma das críticas fundamentais e o que justifica o escasso protagonismo ou
importância dessas instituições participativas é que, na hora de regulamentar e
limitar essas instituições, sempre se tem alegado o perigo da fácil manipulação dos
indivíduos na tomada de decisões. De fato, arguir à possibilidade de manipulação
dos indivíduos nas democracias participativas para justificar a importância dessas
democracias têm sido um recurso muito utilizado, e ainda mais reforça o papel dos
partidos políticos.
Na Espanha o direito de participação política é um direito fundamental,
contemplado no artigo 23 CE.363 Por sua parte, a participação política dos cidadãos
na função legislativa está prevista no artigo 87.3364 e na Lei Orgânica 3/1984, de 26
de março,365 reguladora da iniciativa legislativa popular, modificada pela Lei Orgânica
4/2006 de 26 de maio. No âmbito da União Europeia, o Tratado de Lisboa – firmado
em 13 de dezembro de 2007, para substituir a Constituição da Europa, depois
do fracassado tratado constitucional de 2004, também contempla uma iniciativa
legislativa por parte dos cidadãos.366

de Democracia Participativa en Porto Alegre. Disponível em: <http://www.bocc.ubi.pt/pag/freitas-andrea-


experiencia-democracia.pdf>.
362 LIMA GETE, B. de. Democracia, ciudadanía y participación. Temas para el debate, n. 152, p. 41-43, (julio)
2007. (Exemplar dedicado à Participação Política e Democracia).
363 Artigo 23 CE:. Os cidadãos possuem o direito a participar em assuntos públicos diretamente ou por meio de
representantes livremente escolhidos em eleições periódicas por sufrágio universal. Assim como possuem
direito a acender em condições de igualdade às funções e cargos públicos, com os requisitos que estabelece
a lei. <http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/sinopsis/sinopsis.jsp?art=23&tipo=2>.
364 Artigo 87.3 CE: A Lei Orgânica regulará as formas de exercício e requisitos da iniciativa popular para a
apresentação de projetos de lei. Em qualquer caso serão exigidas 500.000 assinaturas comprovadas. Não
poderá esta iniciativa versar sobre matéria própria de Lei Orgânica, tributária ou de caráter internacional,
nem relativo a prerrogativas reais. (tradução livre). Ver: <http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/
sinopsis/sinopsis.jsp?art=87&tipo=2>.
365 Esta lei estabelece uma série de requisitos para se exercer a iniciativa popular bem como os trâmites
necessários à sua aprovação final. Nesta legislação se regulamenta a iniciativa legislativa do Governo, do
Parlamento, das Comunidades Autônomas e, por último a iniciativa legislativa popular. Salientamos que,
desde que se promulgou a Lei Orgânica de 1984, que regula as iniciativas populares, somente duas, das mais
de noventa, chegaram até o final e foram convertidas em lei, (Lei nº2/1988 que alterou a Lei nº 49/1960 que
regulava a reclamação de dívidas em condomínios e Lei nº 18/2013 relativa à restrição da tauromaquia como
patrimônio cultural).
366 Título II. Disposições sobre os Princípios Democráticos. Artigo 8 B.4. “Um grupo de, pelo menos um milhão
de cidadãos da União, que sejam nacionais de um número significativo de Estados membros, poderá tomar
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
158 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

No Brasil, depois de quase 30 anos da promulgação da Constituição somente


quatro iniciativas populares se converteram em leis (Lei Ordinária n° 8.930/94, Lei
Ordinária nº 9.840/99, Lei Ordinária nº 11.124/05 e a Lei Complementar nº 135/10).
Um dos projetos de iniciativa popular, coordenado pelo Ministério Público, foi o
conjunto de propostas de emendas legislativas denominado “Dez medidas contra a
corrupção”. Este projeto se constituiu em uma das principais mostras do exercício
da democracia direta no Brasil, através da iniciativa popular.367 Este projeto começou
a ser desenvolvido em 2014 e culminou em 29 de março de 2016, depois de mais
de oito meses de coleta de assinaturas, com a entrega ao Congresso Nacional da
documentação contendo 2.128.263 (dois milhões, cento e vinte oito mil e duzentas e
sessenta e três) assinaturas de cidadãos que o apoiavam.
É importante destacar que ao longo de sua tramitação, a maioria das iniciativas
legislativas populares – tanto no Brasil como na Espanha – acabam se desvirtuando.
Convinha realizar um profundo estudo sobre as razões pelas quais, no Brasil, as
iniciativas populares, em sua tramitação, ou não prosperam ou se convertem em leis
quase irreconhecíveis em relação ao propósito original (lobbys de pressão? perda do
interesse por parte da cidadania?).

3.2 O fundamento da participação política

A ideia de participação constata-se, ainda que incipiente, acompanha a


sociedade desde seus primeiros grupos organizados. Mas o questionamento teórico
da democracia e da participação política somente vai iniciar com a ideia do contrato
social, baseado na igualdade de todos os homens no estado de natureza e a criação
do Estado, por esses. Os iluministas fundamentaram a igualdade entre os homens
em um hipotético estado de natureza e na criação do Estado através de um Contrato
Social. Para Locke o homem livremente agregou-se em sociedade, criando o Estado,
desejoso de conservar seus direitos naturais fundamentais. Mas é claro que, ao
entrar no novo estado civil, não renunciou aos direitos naturais: ele os quer ainda

a iniciativa de exigir da Comissão Europeia, no marco de suas atribuições, que apresente uma proposta
adequada sobre questões que estes cidadãos julguem requererem um ato jurídico da União para os fins de
aplicação dos Tratados. Os procedimentos e as condições para a apresentação de uma iniciativa deste tipo
serão fixados em conformidade com o Parágrafo Primeiro do Artigo 21 do Tratado de Funcionamento da União
Europeia”. Tratado de Lisboa pelo qual se Modifica o Tratado da União Europeia e o Tratado Constitutivo da
Comunidade Europeia. (2007/C 306/01). Disponível em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri
=CELEX%3A12007L%2FTXT>.
367 As dez medidas propostas eram: 1) Prevenção à corrupção, transparência e proteção à fonte de informação;
2) Criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; 3) Aumento das penas e crime hediondo
para a corrupção de altos valores; 4) Eficiência dos recursos no processo penal; 5) Celeridade nas ações de
improbidade administrativa; 6) Reforma no sistema de prescrição penal; 7) Ajustes nas nulidades penais; 8)
Responsabilização dos partidos políticos e criminalização do caixa 2; 9) Prisão preventiva para assegurar a
devolução do dinheiro desviado; 10) Recuperação do lucro derivado do crime. Disponível em: http://www.
dezmedidas.mpf.mp.br/>. O teor das Dez Medidas tem provocado debates em diversas esferas e já foi
criticado por juristas que entendem que o pacote é mais repressivo do que punitivo, tocando em cláusulas
pétreas da Constituição Federal, porque medidas de combate à corrupção não podem suprimir direitos. Para
ampliar a informação: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-11/saiba-o-que-e-o-projeto-que-
cria-dez-medidas-de-combate-corrupcao>.
participação política
159

mais garantidos do que no estado de natureza. Esse é o limite e a função do Estado


e, usando o direito natural, o homem fixa os limites do poder. Os homens devem ser
livres para escolher sua forma de vida, seu governo e sua própria comunidade.368
Então, é no exercício da sua liberdade natural que o indivíduo participa para regular
a sociedade por ele criada.
Também Kant defende a participação popular na tomada de decisões “por sua
pureza de origem”, uma vez que tal condição resulta da ideia do contrato originário.
O Estado, lembra, foi instituído

primeiramente segundo os princípios da liberdade dos membros


de uma sociedade (como homens), em segundo lugar segundo os
princípios da dependência de todos a uma única legislação comum
(como súditos) e, terceiro, segundo a lei da igualdade dos mesmos
(como cidadãos). Esta é, portanto, no que concerne ao direito, aquela
que é em si mesma originalmente fundamento de todos os tipos de
constituição civil.369

Assim, em qualquer modelo, onde o indivíduo não participa da decisão política,


não há cidadania. E, as revoluções civis de 1789 e 1848 convertem esse ideal em
um postulado do pensamento político. Lembra Kelsen que nem entre os estadistas
mais destacados nem na literatura política das décadas anteriores a I Guerra Mundial
encontra-se qualquer defesa séria a favor da autocracia. Não obstante a luta de classes
entre a burguesia e o proletariado, que nesse período se intensificou, não houve
discrepâncias sobre a participação política e a forma democrática de Governo.370
A participação política, como elemento da própria natureza humana, foi
igualmente defendida pela Igreja Católica, como ficou expresso no Concílio Vaticano
II:

É plenamente conforme com a natureza do homem que se encontrem


estruturas jurídico-políticas nas quais todos os cidadãos tenham a
possibilidade efetiva de participar livre e ativamente, de um modo
cada vez mais perfeito e sem qualquer discriminação, tanto no
estabelecimento das bases jurídicas da comunidade política, como
na gestão da coisa pública e na determinação do campo e fim das
várias instituições e na escolha dos governantes[...]
Todos os cidadãos lembrem-se, portanto, do direito e simultaneamente
do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção
do bem comum. 371

368 LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. Texto Integral. São Paulo: Martin Claret, 2002.
369 KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 24-30.
370 KELSEN, Hans. Esencia y valor de la democracia. México: Cayoacán, 2005. p. 11.
371 Concílio Vaticano II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, Sobre a Igreja no Mundo Atual, Capítulo IV – A
Vida da Comunidade Política, item 75 - A colaboração de todos na vida política.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
160 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Também o Papa João XXIII expressou na Carta Encíclica Pacem in Terris que:
“coere com a dignidade da pessoa o direito de participar ativamente da vida pública,
e de trazer assim a sua contribuição pessoal ao bem comum dos concidadãos”.372
Reafirma mais tarde: “É certamente exigência da sua própria dignidade de pessoas
poderem os cidadãos tomar parte ativa na vida pública”.373 Por evidente que a este
direito corresponde o dever de todo o cidadão e de todos os grupos intermediários
em contribuir para o bem comum. Disto decorre que, antes de qualquer coisa, devam
ajustar seus próprios interesses às necessidades dos outros, empregando bens e
serviços na direção indicada pelos governantes, dentro das normas da justiça e na
devida forma e limites de competência.374 Então, a participação política nos destinos
da sociedade é um direito, mas também um dever do indivíduo com seus semelhantes.
A sociologia vê na participação um valor e um direito do homem que vive no
seio de um grupo. Como diz Valle, se aceitarmos os princípios de igualdade e de
liberdade do homem, faz-se evidente o direito de todos à participação nas decisões
relativas aos assuntos que lhe concernem. Esse direito é o mesmo seja qual for o tipo
de comunidade ou associação na qual o indivíduo está inserido. Pelo princípio da
igualdade de direito assim como da necessidade de que cada indivíduo desenvolva
ao máximo seus próprios talentos, tem-se que cada homem deve participar nas
atividades de todas as instituições políticas, sociais e educativas que o afetam.
Participar é assumir responsabilidades para, construir conjuntamente uma sociedade
na qual o homem é o principal protagonista.375
Para Dallari, é fácil compreender a razão deste direito universal de participação
política:

Se todos os seres humanos são essencialmente iguais, ou seja, se


todos valem a mesma coisa e se, além disso, todos são dotados de
inteligência e de vontade, não se justifica que só alguns possam tomar
decisões políticas e todos os outros sejam obrigados a obedecer.376

Pode-se, ainda, buscar outras razões para fundamentar a participação política.


Para Nino, pode-se dizer que ela permite o exercício da soberania popular ou que
assegura o consentimento dos governados às medidas que adotarem os governantes.
Pode-se lembrar, também, das consequências benéficas da participação: o fato de
que ela amplia as oportunidades dos indivíduos para exercerem sua autonomia,

372 Carta Encíclica Pacem in Terris, Papa João XXIII – A Paz de todos os povos na base da verdade, justiça,
caridade e liberdade. Primeira Parte – Da Ordem entre os seres humanos, item 26 – Dos direitos de caráter
político. 16 Abril de 1963.
373 Idem. Item 73 - Da participação dos cidadãos na vida pública.
374 Idem. Item 53 - Da atuação do bem comum constitui a razão de ser dos poderes públicos.
375 VALLE, Ángeles del. Importancia de la pedagogía social como programa político. In: MARDONES, José María
(Dir.). 10 Palabras Clave sobre Fundamentalismos. Navarra: Verbo Divino, 1999. p. 310.
376 DALLARI, Dalmo de Abreu. O que é participação política. Op. cit., p. 26.
participação política
161

ou que promove o autorrespeito e espírito de independência ou que assegura a


realização de um maior número de prioridades, etc.377
Entretanto, é pelo fato de os indivíduos viverem em sociedade, com interação
diária, que todos, em maior ou menor grau, de forma direta ou indireta, sofrerão
as consequências de qualquer decisão política. O indivíduo influencia na sociedade
pelo simples fato de pertencer à ela, pelo simples fato de ocupar um espaço físico,
mesmo sem manifestação, sem ser visto ou ouvido. É por essa razão, lógica, racional
e moral, porque todos sofrerão as consequências de qualquer ato, que se justifica
que todos devam participar na tomada da decisão.378

3.3 A legitimidade da Participação Política

A etnologia e a história nos demonstram que toda comunidade é um conjunto


de indivíduos com interesses em comum. Esses interesses são os mais variados
e a necessidade de concretizá-los unindo forças é o elo que une os indivíduos. “A
ação coletiva é a gênese do vínculo social” diz Lapierre, lembrando que assim era
na caça aos bisões pelos índios cheyenns ou na caça a baleias pelos esquimós; nas
expedições de conquista dos mongóis, tártaros e vikings; nas migrações dos pastores
nômades na Ásia; na construção de canoas pelos índios do Panamá; mais tarde na
colonização e na cristianização do mundo pelos europeus; na resistência contra o
nazismo, etc.379 Em todas estas ações coletivas organizadas e muito diferentes entre
si, é a busca da concretização de um objetivo maior que justifica, segundo aqueles
que delas participam direta ou indiretamente, uma obediência às regras do jogo e à
liderança dos dirigentes.
Então, o questionamento que sempre intrigou os teóricos políticos, de Platão
a Marx, assim como o fazem diariamente a maioria dos cidadãos, sobre o que
fundamenta a obediência ao poder político e à participação, pode ser respondido
como a busca de realização de um interesse coletivo.
Para Hobbes, a segurança individual era a razão do poder político.380 O indivíduo
abre mão de sua liberdade individual e a transfere ao Estado para que esse a garanta,
através da sua defesa contra os perigos externos e internos. Locke assevera que a

377 NINO, Carlos S. La paradoja de la irrelevancia moral del gobierno y el valor epistemológico de la democracia.
In: NINO, Carlos S. El Constructivismo Ético. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1989. p. 114.
378 É assim que interpretamos Kant, quando, usando a razão para condenar a guerra, ao apresentar os
artigos definitivos para A Paz Perpétua defende a participação do povo no ato de declaração de guerra: as
consequências serão para todos; todos sofrerão as consequências, logo, todos devem participar da decisão.
379 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 25.
380 Para Hobbes, enquanto os homens pudessem fazer o que bem quisessem, viver-se-ia em constante guerra,
motivo pelo qual foi imprescindível renunciar ou transferir seu direito através de uma declaração ou expressão
voluntária para a manutenção da ordem e da paz social. “A transferência mútua de direitos é aquilo que se
chama de contrato”. HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil.
São Paulo: Nova Cultura, 2000. p. 114.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
162 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

garantia dos direitos naturais (vida, propriedade, liberdade) serve como fundamento
determinante. Rousseau tenta fundamentar a legitimidade na maioria absoluta dos
cidadãos, considerada como a vontade geral. Defende que os homens chegaram
a esse estágio depois que os fatos que ameaçavam sua própria conservação no
estado de natureza lhes levaram, por sobre as forças de cada indivíduo, a mudar seu
modo de ser.381
Mas, para o período do Estado moderno (final do século XV ao final do século
XX?), Lapierre arrisca outra fundamentação: O desenvolvimento das sociedades; com
a condição de não reduzir esse desenvolvimento ao crescimento econômico, e de
incluir, também, o progresso do conhecimento e das técnicas, do urbanismo, a melhora
da saúde e da educação pública, da criação literária e artística e das instituições
democráticas. E no século XXI, qual a ação coletiva que poderá fundamentar a
obediência e a participação política? No mundo globalizado, de Estados débeis,
de individualismo exacerbado, de sociedade desarticulada e valores esquecidos, a
ideologia dominante – que é não ter ideologia – nos dá uma resposta prêt-à-porter:
a ação coletiva que se deve realizar é o crescimento econômico mundial através do
livre mercado global.382
Contudo, assistimos, diariamente às manifestações contrárias aos dirigentes
políticos, à exacerbada queda de credibilidade dos governos, ao desencantamento e
à aversão aos modelos e sistemas políticos e, efetivamente, não se identifica uma ação
coletiva específica e definitiva. Então o questionamento: por que o povo obedece e
tolera a transferência do fruto de seu trabalho aos governantes? Afinal, governos com
pouco apoio popular correm o risco de serem derrubados, ou pelo povo oprimido
ou por novos-ricos ansiosos por substituir os governantes e que buscam apoio das
massas com a promessa de uma melhor distribuição de serviços em relação aos
frutos obtidos.
Diamond ensina que, em todas as épocas, os governos recorreram a uma
mistura de quatro recursos:
1. Desarmar a plebe. Isto é muito mais fácil em tempos de armas de alta
tecnologia, produzidas unicamente em fábricas controladas pelos governos
e monopolizadas pela elite do que nos tempos das lanças e porretes feitos
em casa;
2. Fazer a massa feliz, redistribuindo parte dos tributos recebidos em coisas de
reivindicação popular;

381 Para Rousseau a ordem social é o principal direito, pois através dela decorrem os demais. Todavia, quem a
determina não é a natureza humana e sim a vontade: “cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o
seu poder em direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível de
um todo”. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002.
382 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 26.
participação política
163

3. Usar o monopólio da força para manter a paz social, a ordem e a segurança;


4. Elaborar uma ideologia ou religião que justifique o seu poder e sustente sua
autoridade.383
Entretanto, para que ocorra a participação política e a obediência às leis sem
coação, não é só imperioso que essas sejam lógicas e razoáveis. Há necessidade,
também, de que o poder que a estabelece, a aplica e a sanciona tenha legitimidade.
E qual é o fundamento dessa legitimidade? Lapierre apresenta uma tese interessante.
Para ele, o que dá legitimidade ao poder não é a razão e sim a imaginação. Invocando
a tese de Castoriadis,384 sustenta que a fundamentação das instituições sociais e
políticas deve ser buscada nas significações imaginárias e sociais. Essas expressam
simbolicamente um mito fundador. Trata-se de relatos imaginários, atemporais,
sem referências empíricas nem históricas. Referem-se ao início (mito de origem),
como por exemplo, a história de Adão e Eva na Bíblia, a passagem do homem do
estado de natureza para o estado social em o Leviatã, de Hobbes, ou Contrato
Social, de Rousseau; ou a um tempo não determinado, ou ao fim dos tempos (mito
escatológico), como, por exemplo, o Apocalipse de São João, na Bíblia, a greve
geral revolucionária, de George Sorel, ou a sociedade sem classes do marxismo.
Há, ainda, os mitos que Lapierre denomina de lendas, que se situam num tempo
histórico: A canção de Roland, os cavalheiros da Távola Redonda, a fundação de
Roma por Rômulo e Remo.385 Todas as sociedades tradicionais possuem um mito

383 DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço. Os destinos das sociedades humanas. 2. ed. Rio de Janeiro – São
Paulo: Record, 2001. p. 275-277.
Um bom exemplo de coesão através da religião é apresentado por Sebastián e refere-se à formação e à
organização da nação judaica. Os israelitas acabaram de sair do Egito e vagam pelo deserto buscando
uma terra onde assentar-se e dedicar-se a atividades permanentes como a agricultura, o artesanato e o
comércio e levar uma vida como a que haviam conhecido no Egito. Unia-os unicamente o fato de serem
descendentes de um conjunto de tribos nômades dedicadas ao pastoreio descendentes de Jacó e possuírem
uma religião monoteísta. Sabiam os lideres que a mudança no sistema de produção do pastoreio nômade
para a agricultura exigia uma mudança na organização social e que para se constituir uma ‘nação’ sedentária
e um Estado era necessário manter a unidade e a coesão entre todos, um tanto fragilizada em razão das
estreitas relações mantidas com egípcios e outros povos quando no cativeiro, trabalhando e vivendo junto a
culturas que adoravam outros deuses, com práticas religiosas, sociais e sexuais decadentes, desordenadas e
alheias a seus costumes ancestrais. Isso os contaminou, razão das brigas, violações, desordem de conduta,
desunião.
Os líderes políticos pretendem mantê-los sob controle, fazer deles um povo novo, dar-lhes um novo começo
– algo assim como quiseram fazer os puritanos que imigraram para os Estados Unidos, dar-lhes um new
begining – mas para isso era necessário estabelecer rígidas regras para manter a ordem, a coesão e a
organização desse povo em formação, regras de comportamento, leis fundamentais, tanto para manter a
perseverança dos caminhantes e sobreviver no deserto como para consolidar-se como nação na terra que
os lideres chamavam de ‘terra prometida’. Mas, para fazer com que essas leis fossem aceitas por um povo
primitivo, religioso e rebelde era necessário um respaldo divino até porque a autoridade dos lideres estava
bastante enfraquecida. É nesse contexto que surgem os dez mandamentos: Moises retira-se ao Monte Sinai
onde grava laboriosamente em táboas de pedra os mandamentos que seu sentido religioso, seu olfato
político e seu sentido comum lhe ditaram. Essas necessidades políticas e sociais são apresentadas ao povo
como um Pacto ou um Tratado entre Deus e o Povo de Israel, através do qual os israelitas se comprometiam
a seguir fielmente as regras ditadas por Deus, enquanto Este os tornaria o povo eleito e lhes daria uma terra
onde formar uma nação. Os Dez Mandamentos não são mais que o conteúdo desse pacto em forma de
preceitos, que serviram para unir um povo e constituir uma nação que se mantém coesa há mais de 2000
anos. SEBASTIÁN, Luis de. Los Diez Mandamientos. Una versión secular. Barcelona: Ariel, 1998.
384 CASTORIADIS, Cornélius. L’institution imaginaire de la societé. París: Seuil, 1975. p. 233-370.
385 LAPIERRE, Jean-Willian. Qu’est-ce qu’être cotiyen? Op. cit., p. 28.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
164 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

de origem, que fundamenta sua organização social, legitima seu direito e o poder
político.
Pesquisadores da evolução humana corroboram com esta teoria. Harari sustenta
que toda cooperação humana, em grande escala – seja um Estado moderno, uma igreja
medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica – se baseia em mitos partilhados
que só existem na imaginação coletiva das pessoas. As igrejas se baseiam nos mitos
religiosos compartilhados; os Estados se baseiam nos mitos nacionais partilhados;
os sistemas judiciais se baseiam nos mitos jurídicos partilhados. Nada disso existe,
exceto na imaginação das pessoas. Não há deuses no universo, nem Estados, nem
dinheiro, nem direito, mas é a crença nesses mitos que faz com que um grande
número de estranhos coopere entre si, de maneira eficaz. Ao contrário da mentira,
o mito é uma realidade imaginada, é algo em que todo mundo acredita e, enquanto
persistir esta crença partilhada, a participação e a cooperação será plena e eficaz.
Destaca Harari, como toda cooperação humana é baseada em mitos, a maneira
como as pessoas cooperam pode ser alterada, modificando-se os mitos – contando-
se fantasias diferentes. Nas circunstâncias adequadas os mitos podem ser alterados
muito rapidamente. Cita como exemplo a Revolução francesa de 1789. Quase do
dia para a noite a população deixou de acreditar no mito do direito divino dos reis e
passou a acreditar no mito da soberania popular.386
A filosofia política moderna, ensina Lapierre, mesclou dois mitos: um herdado
da teologia escolástica, que buscava conciliar o mito judaico-cristão do paraíso
perdido e o outro greco-latino, onde os homens passam do estado de natureza ao
estado social graças a um contrato. Não há mais personagens invencíveis ou heróis
fundadores, os autores do mito são homens anônimos.
Já no século XIX, outros três grandes pensadores forjaram seus mitos: Marx,
Nietzsche e Freud. O marxismo funda-se em um mito de origem e em um mito
escatológico que se mesclam – a história humana inicia com o comunismo primitivo
e se cumpre no comunismo final de uma sociedade sem classes. Esse duplo mito
legitima o poder do chefe de um partido revolucionário considerando que representa
a classe social investida na missão histórica de realizar a última revolução: o
proletariado. Nietzsche resgata o mito antigo do Eterno Retorno e, anunciando a
morte de Deus, fundamenta a legitimidade na vontade de onipotência de uma elite
encarregada de edificar a morada ao sobre-humano para preparar a vinda à terra dos
animais e das plantas e, por isso mesmo, seu próprio declínio. Por sua vez, Freud
fundamenta sobre o mito da morte do pai na horda primitiva o vínculo político de não
agressão entre os homens e a legitimidade de todo poder que fortalece este vínculo,
reprimindo a agressividade.

386 HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. 25. ed. Porto Alegre: L&PM, 2017. p. 34 e
ss.
participação política
165

Importante destacar que a tese sustentada por Lapierre, de que o fundamento


da legitimidade do poder é sempre místico ou legendário e que surge do imaginário
social, não significa afastar de plano a moral, apenas que ela não participa, no
primeiro momento, da formação do mito. A moral surgirá em ato contínuo e é ela
que vai exigir da política que os poderes instituídos que legislam, governam e julgam
sejam justos. É nessa linha que surge a derradeira questão: Para legitimar um poder
eficazmente justo, não seria melhor renunciar aos mitos e voltar-se para a razão?
Alguns pretenderam, responde Lapierre. Na história da França ocorreu uma vez,
quando se instituiu a razão para legitimar um poder político; foi quando a guilhotina
funcionou ininterruptamente.
Seguindo essa reta linha, Lapierre vai além em sua análise: a crise atual da
política é uma crise de legitimidade sim, uma impotência do imaginário social,
manifestada pelo vago consenso sobre as instituições, a anulação individual sob a
força dos interesses corporativos, a insignificante participação na vida pública. Onde
estão os poetas, filósofos, pensadores, criadores de significações imaginárias para o
século XXI? Onde estão os novos iluministas? Onde estão os novos Goethe, Voltaire,
Grócio, Victor Hugo? Revelando seu desencanto com a sociedade contemporânea,
assevera que na sociedade pós-moderna os poetas e os artistas continuam a existir,
mas, marginalizados e banalizados pela moda, se encerram na abstração ou no
ridículo. É essa carência de poesia o segredo do desencantamento em relação à
política que se observa no mundo ocidental. Não falta tecnologia, cálculos precisos,
computadores nem compiladores; falta entusiasmo no coração e no ventre.387

3.4 A participação política como um direito fundamental

A política, como vimos, é a arte da gestão dos assuntos públicos e a tomada de


postura sobre as decisões fundamentais que comprometem a vida e o futuro de uma
comunidade. Temos que sua fundamentação pode ser buscada no hipotético estado
de natureza quando, vivendo como indivíduo isolado, o homem possuía o direito
natural de autoconduzir-se. Ao entrar no estado de sociedade, o direito permanece,
agora coletivamente: o direito de nos auto conduzirmos. Possui, consequentemente,
uma importância decisiva na vida de um povo e é a forma mais comprometida e
responsável da dimensão social e temporal da pessoa. O campo de suas decisões
é o que se denomina de o bem comum, que está integrado pelos bens públicos
(segurança, respeito aos direitos, justiça social), pelas condições de desenvolvimento
econômico e de prosperidade e pelo conjunto de valores morais e culturais de que
seja depositário um povo.
Como veremos adiante, formas de governo com alguma participação ocorreram
em diferentes épocas e lugares da história: nas polis da antiga Grécia, na Europa

387 Idem, p. 36.


Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
166 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

das comunas livres e das Repúblicas, nas estruturas políticas africanas baseadas no
consenso, nas tradições de tolerância, nos regramentos políticos de imperadores
Hindus como Ashoka e Akbar, na Corte de Saladino, etc.388 Mas é a partir das
revoluções democráticas do século XIX, que se vai conquistando progressivamente
o direito a uma participação política de todos os cidadãos. A base racional em que
se sustentavam tais direitos de participação era a de igual condição de todo cidadão.
O poder político, as funções públicas e os cargos políticos devem estar abertos, a
princípio, a todos os cidadãos em igualdade de condições. Somente quando o poder
e a gestão pública estão abertos a todos, em igualdade de condições, podemos falar
de uma democracia efetiva e livre.
O enunciado jurídico dessa participação incide, antes de tudo, na participação
no poder legislativo, por si mesmo ou por seus representantes, nas manifestações do
poder estatal e no estabelecimento dos objetivos políticos e programáticos do poder.
A primeira Declaração de Direitos no sentido moderno, a Declaração do
Bom Povo da Virgínia, elaborada em 12.01.1776, sob a influência do pensamento
iluminista, principalmente de Locke, Montesquieu, Burlamaqui e Pufendorf,
expressava os “direitos que devem pertencer a nós e à nossa posteridade, e que
devem ser considerados como o fundamento e a base do governo”. Após expressar
que “toda a autoridade pertence ao povo e por consequência dele se emana” e de
declarar que “O governo é ou deve ser instituído para o bem comum, para a proteção
e segurança do povo, da nação ou da comunidade”, prescreve que “as eleições
dos membros que devem representar o povo nas assembleias serão livres; e todo
indivíduo que demonstre interesse permanente e o consequente zelo pelo bem geral
da comunidade tem direito geral ao sufrágio”.
Nesta mesma linha segue a Declaração da Independência Americana
(04.07.1776) que, inspirada na teoria lockeana dos direitos naturais e na ideia do
contrato social, ratifica os direitos já expressos pela Declaração do Bom Povo da
Virgínia e agrega outros, como o de insurreição contra governos que abusem de seus
poderes. Declaram os revolucionários como verdade evidente por si mesma que os
governos são estabelecidos pelos homens para garantir seus direitos naturais e que
seus legítimos poderes derivam do consentimento dos governados. Assim,

toda vez que uma forma de governo se torna destruidora desses


princípios, o povo tem o direito de mudá-la, abolir ou estabelecer novo
governo, que se fundamente nos ditos princípios, e de organizar-se
pela forma que lhes pareça mais apropriada[...]

Mas é a partir das revoluções democráticas do século XIX, que se vai

388 RIGOTTI, Francesca. Epistemología monocultural y epistemología multicultural. In: GALLI, Carlo. (Comp.).
Multículturalismo, ideologías y desafíos. Tradución de Heber Cardoso. Buenos Aires: Nueva Visión, 2006. p.
45.
participação política
167

conquistando progressivamente o direito a uma participação política de todos os


cidadãos e a ideia de democracia domina os espíritos durante os séculos XIX e XX.
A base racional em que se sustentavam tais direitos de participação era a de igual
condição de todo cidadão. O poder político, as funções públicas e os cargos políticos
devem estar abertos, a princípio, a todos os cidadãos em igualdade de condições.
Somente quando o poder e a gestão pública estão abertos a todos, em igualdade
de condições, podemos falar de uma democracia efetiva e livre. A livre participação
dos cidadãos na vida pública é um aspecto iniludível do que hoje entendemos por
sociedade democrática.
A Declaração Americana sobre os Direitos e Deveres do Homem, aprovada pela
Resolução XXX, na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de
1948, expressa em seu artigo 20:

Toda pessoa, legalmente capacitada, tem o direito de tomar parte


no governo do seu país, quer diretamente, quer através de seus
representantes, e de participar de eleições, que se processarão por
voto secreto, de uma maneira legítima, periódica e livre.

De igual forma, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada por


unanimidade pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de
1948, expressa em seu artigo XXI:

Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu


país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente
escolhidos[...]
A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta
vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio
universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a
liberdade de voto.

Assim também o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, adotado


pela Resolução n. 2.200-A (XXI) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 19 de
dezembro de 1966, prescreve, em seu artigo 25, que todo o cidadão tem o direito
e a possibilidade, sem nenhuma discriminação e sem restrições: (a) de tomar parte
na direção dos negócios públicos, diretamente ou por intermédio de representantes
livremente eleitos; (b) de votar e ser eleito, em eleições periódicas, honestas, por
sufrágio universal e igual e por escrutínio secreto, assegurando a livre expressão
da vontade dos eleitores e, (c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às
funções públicas do seu país.
Como se observa, o reconhecimento do direito de participação no governo
e nos assuntos públicos, que delineiam o destino da comunidade, encontra-se
expressamente reconhecido nos principais documentos internacionais e também nas
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
168 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

constituições da maioria dos Estados Modernos.389 Na verdade, é ela, a participação


política, que transforma o indivíduo em cidadão, que lhe dá a possibilidade de
determinar sua própria sorte, de participar do poder, de fazer as leis e de obedecer
unicamente a estas.

3.5 A participação política coletiva: movimentos sociais390

Por várias razões que analisaremos no próximo capítulo, a democracia não


conseguiu cumprir plenamente seus objetivos, apresentando o que Bobbio denomina
de promessas não cumpridas, causando rechaço e decepcionando os cidadãos.391
A consequência é a articulação em outras formas de se fazer política, através de
canais e instrumentos diferentes daqueles tradicionalmente oferecidos pelos partidos
políticos. Confirma esta tese a ampla proliferação de associações, movimentos
sociais, foros de participação e protesto, assembleias cidadãs e tantas outras. Estas
entidades não se constituem em um fenômeno novo, mas é sim novidade a vocação
com que atuam que é a de converter-se em sujeitos políticos; pretendem influenciar
na tomada de decisões que afetam a coletividade e fazê-lo através de canais de
participação política distintos dos modelos tradicionalmente institucionalizados. Em
resumo, buscam mais e melhores formas de participação cidadã, diferentes das típicas
da democracia representativa. Pretendem situar a sociedade civil – os movimentos
sociais, cívicos e os cidadãos que os integram – no centro da discussão política.
Essas práticas associativas e os movimentos populares, de caráter espontâneo
e autônomo, ganham impulso a partir dos anos 70, ensina Wolkmer, articulando-
se em torno de interesses imediatos referentes às condições de vida e moradia,

389 Como exemplo citamos:


A Constituição dos Estados Unidos da América, aprovada na Convenção Constitucional da Filadélfia (Pensil-
vânia), entre 25 de maio e 17 de setembro de 1787, ao estabelecer o Estado Federal a separação de poderes
e os direitos fundamentais, expressa em seu artigo 1 que todos os poderes legislativos serão confiados a
um Congresso, composto de um Senado e de uma Câmara de Representantes. Todos eleitos pelo povo dos
diversos Estados.
Também a Constituição Francesa, de 04 de outubro de 1958, expressa em seu art. 2° ser uma República cujo
princípio é “um governo do povo, pelo povo e para o povo”. E em seu artigo 3° declara que a soberania na-
cional pertence ao povo que a exerce através dos seus representantes. O sufrágio pode ser direto ou indireto,
mas sempre universal, igual e secreto, e que são eleitores todos os cidadãos franceses maiores de idade, que
estejam em plena faculdade dos seus direitos civis e políticos.
A Constituição Espanhola (1978) – artigo 23.1: - “Os cidadãos possuem o direito a participar nos assuntos
públicos, diretamente ou através de seus representantes, livremente escolhidos em eleições periódicas por
sufrágio universal”.
Assim também a Constituição Brasileira - que rompe com uma tradição totalitária de anos de repressão e
usurpação de direitos. Depois de aclarar no art. 1° que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de representantes eleitos ou diretamente, prescreve no art. 4° que “a soberania popular será exercida pelo
sufrágio universal e pelo voto direito e secreto, com valor igual para todos.”
390 O conceito e o próprio termo ‘movimento social’ inicia a partir da leitura conservadora e perplexa de Lorenz Von
Stein que defendia a necessidade de uma nova ciência para estudar a sociedade, em especial os movimentos
sociais a partir do socialismo e das movimentações francesas. A expressão é utilizada pela primeira vez em
sua obra História dos Movimentos Sociais Franceses 1978-1850. Von Stein entendia o movimento social,
basicamente como um mecanismo de determinados setores da sociedade para influenciar nas políticas do
Estado.
391 BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. São Paulo: Paz e Terra, 2000. p. 29 e ss.
participação política
169

desvinculadas de instituições do Estado e de partidos oficiais. Tratava-se de alternativas


que partiam da sociedade civil, independentemente dos parâmetros institucionais
oferecidos pelos canais de representação tradicional. Isto representou a ruptura com
toda a herança política, como produto de um espectro elitista, antipopular, autoritário
e corporativista.392
São denominados de novos movimentos sociais e vêm representar um
paradigma alternativo de cultura política, na medida em que rompem com as antigas
formas de organização e representação da sociedade (classes sociais, partidos
políticos, sindicatos). Na atuação dos novos atores coletivos há que se “pensar na
sociedade e na política já não como objetivação das estruturas ou da ação social do
Estado, mas como um cenário criado e recriado por práticas de sujeitos em conflito”.
Por evidente, não se trata de um novo fenômeno, como veremos mas, enquanto
os antigos movimentos projetavam intentos essencialmente materiais, relações
instrumentais, orientações para com o Estado e organização vertical, os novos
movimentos sociais buscam conduzir-se por critérios de efetividade, relações de
expressividade, orientações comunitárias e organização horizontal.393 Para Scherer-
Warren a diferença entre os velhos e os novos movimentos sociais está em sua
forma de organização e no encaminhamento das lutas. Os primeiros incorporavam
formas clientelistas e paternalistas de fazer política, eventualmente utilizavam-
se da democracia representativa e não excluíam o recurso da violência. Os novos
movimentos valorizam a participação ampliada das bases, a democracia direta
sempre que possível e opõem-se, ao menos no plano ideológico, à centralização do
poder e ao uso da violência. Quanto ao conteúdo dessas lutas, ambos apresentam
demandas específicas e, por vezes, defendem transformações sociais mais gerais.
O que há de inovador nos novos movimentos é a luta pela ampliação do espaço da
cidadania, o que conduz, necessariamente, à modificação das relações sociais.394
Ibarra vai além da divisão dos movimentos sociais em velhos e novos, ele os
classifica em 4 grupos: (1) os velhos movimentos sociais, que surgem no séc. XIX
formados fundamentalmente por operários e nacionalistas; (2) os novos movimentos
sociais, que surgem depois da II Guerra Mundial, onde estão situados os movimentos
de defesa do meio ambiente, dos direitos civis, o movimento feminista, etc.; (3) os
novíssimos movimentos sociais – surgem a partir de meados dos anos 80 e são
basicamente grupos organizados sob o princípio da solidariedade para defender
interesses específicos (desde povos subdesenvolvidos do terceiro mundo a
grupos marginais das sociedades ocidentais, como drogados, idosos, portadores

392 WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de una nueva cultura del derecho. Trad. David
Sánchez Rubio. Sevilla: MAD, 2006. p. 117.
393 LACLAU, Ernesto. Os novos movimentos sociais e a pluralidade do social. In: Revista Brasileira de Ciências
Sociais n. 2. São Paulo. 1986. p. 47. Ver também GUATTARI, Félix. Revolução molecular: pulsações políticas
do desejo. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
394 SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de Movimentos Sociais. 4. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2009. p. 67-68.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
170 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

de necessidades especiais, imigrantes clandestinos, etc.); e, (4) os movimentos


antiglobalização, que surgem às portas do séc. XXI e se mobilizam contra as
consequências nocivas da globalização. A divisão idealizada por Ibarra pode ser
apresentada no seguinte quadro-resumo:395

Novíssimos Movimentos
Velhos movimentos Novos movimentos
movimentos sociais
sociais sociais
sociais antiglobalização
-Movimento operário: -Ecologista -Solidariedade -Diversos
defesa dos interesses e cooperação movimentos
da classe trabalhadora. -Feminista internacional contrários aos
efeitos negativos
-Movimento -Antirracismo da globalização
-Pacifista
Objetivos nacionalista: defesa
da identidade e -Apoio a grupos
-Direitos Civis
autogoverno nacional excluídos
-Opção sexual
Surgimento Inicio séc. XIX Década de 60/70 Década 80/90 Séc. Década 90 Séc.
Séc. XX XX XX

Voltando à tradicional dicotomia de velhos e novos movimentos sociais, como


comumente referem-se os estudiosos, como novos podemos citar todos aqueles
surgidos após a II Guerra Mundial: o movimento pacifista e o antimilitarista, o ecologista
(incluindo o movimento antinuclear), o de solidariedade com o terceiro mundo, o
de defesa dos direitos humanos e civis de minorias (incluindo o homossexual e o
antirracista) e o movimento alternativo urbano (okupas ou squatters). Devemos também
citar os contramovimentos sociais, como os antiecologistas, o pro life ou movimentos
contra o aborto, etc. Não podemos nos olvidar também dos movimentos nacionalistas
de base étnica ou movimentos etnonacionais, assim como o movimento operário.
Evidentemente que, como lembra Offe, os movimentos sociais, como
paradigmas de uma nova cultura político-jurídica, devem passar necessariamente
“por la apreciación de varios requisitos, tales como contenido, valores, formas de
acción y actores sociales”.396
Assim, os novos movimentos sociais são, ao mesmo tempo, forjadores da
modernidade e seu próprio produto. Como ensina Ibarra, eles expandem a cultura
jurídico-política moderna enquanto impõem o protagonismo cidadão, o desejo
político cívico dos cidadãos de decidir voluntariamente porque, como e quando
devem organizar-se para defender seus interesses coletivos e, eventualmente,
transformar a sociedade e o próprio poder político. São eles, os movimentos sociais,
a forma moderna predeterminada de canalizar a participação política e os conflitos
dentro da modernidade.397

395 IBARRA, Pedro. Sociedad Civil y Movimientos Sociales. Op. cit., p. 81-82.
396 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimientos sociales. Madrid: Editorial Sistema, 1988.
397 IBARRA, Pedro. Sociedad Civil y Movimientos Sociales. Madrid: Síntesis, 2005. p. 97.
participação política
171

As demandas surgem a partir de necessidades fundamentais e, a elas há


que se dar respostas. Quando um grupo de pessoas, convencidas de que nem o
Estado, nem os partidos políticos ou grupos de interesses estabelecidos abordam
corretamente suas reivindicações, organizam uma ação coletiva e suscitam a adesão
de um grupo numeroso de ativistas para atrair a atenção dos poderes públicos. A
este grupo denominamos movimento social, que se incorpora à sociedade.398
Por evidente, nem todas as mobilizações sociais podem ser denominadas de
movimento social. Os episódios de protestos pontuais, de reivindicações efêmeras,
mesmo intensas, não se caracterizam como movimentos sociais, devido a ausência
de conexões pessoais ou organizativas que garantam uma mínima continuidade
no tempo. Gallardo distingue em três grandes formas os movimentos populares:
(1) as explosões sociais – reúnem diversos setores populares (desempregados,
funcionários públicos e privados, estudantes, grupos religiosos...) que podem gerar
crises de governabilidade, trata-se de um levante com baixo nível de organização e não
ideológico; (2) as mobilizações sociais – também reúnem diversos setores populares.
Seu nível de organização, a busca de objetivos precisos e uma condução ideológica
são os fatores que as diferenciam das explosões sociais; (3) os movimentos sociais
– que podem surgir de uma conjuntura específica, mas não se esgotam nela. Sua
continuidade e acumulação de forças são dadas por suas raízes populares: a relação
salarial ou a exploração da mão de obra, no caso do movimento de trabalhadores,
a terra como valor cultural, familiar e econômico, no caso dos movimentos de
pequenos agricultores e comunidades indígenas, as diversas discriminações de
gênero como no caso do movimento feminista, a incompatibilidade entre a produção
e sustentabilidade do habitat como no movimento ecologista, etc.399
Pode-se definir um movimento social como uma rede interativa de indivíduos,
grupos e organizações que, dirigindo suas demandas à sociedade civil e às
autoridades, intervêm com relativa continuidade no processo de mudanças sociais,
mediante o uso prevalecente de formas não convencionais de participação; ou, dito
de outra maneira: trata-se de um conjunto de redes de interação informais entre uma
pluralidade de indivíduos, grupos e organizações comprometidas com conflitos de
natureza política ou cultural, sobre a base de uma específica identidade coletiva.
Já Ibarra e Letamendia o definem como

una red de interacciones informales entre individuos, grupos, y/o


organizaciones que, en, sostenida y habitualmente conflictiva, contienda
con autoridades políticas, elites y oponentes – y compartiendo una

398 A questão dos ‘direitos’, nasce a partir de carências e necessidades fundamentais. Como assevera Eunice
R. Durham, o “acontecimiento, entre nosotros, de un proceso de construcción colectiva de un conjunto de
derechos, que está siendo realizado por los movimientos sociales. Y ello, no a través de una codificación
completa de una realidad existente, sino como el reverso de una definición de carencias que son definidas
como inaceptables”. Ver WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de una nueva cultura
del derecho. Trad. David Sánchez Rubio. Sevilla: MAD, 2006. p. 93.
399 GALLARDO, Helio. Siglo XXI. Producir un mundo. San José C.R.: Arlekin, 2006. p. 120-125.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
172 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

identidad colectiva – demandan públicamente cambios en el ejercicio


o redistribución del poder a favor de intereses colectivos.400

Destas definições podem-se extrair algumas considerações:


a) os movimentos sociais são redes mobilizadas de indivíduos, grupos e
organizações com um sentido muito desenvolvido da identidade coletiva, que
perseguem objetivos cujo logro têm consequências para toda a sociedade e não
somente para o grupo portador da reivindicação ou o conjunto de reivindicações;
b) deliberada ou inadvertidamente, os movimentos sociais seguem uma
estratégia dualista, isto é, dirigem suas demandas às autoridades encarregadas
de dar soluções a seus problemas, mas simultaneamente, problematizam
os modelos culturais, normas, identidades ou instituições presentes em uma
sociedade. Assim, os movimentos sociais entram em interação com ambas as
esferas da vida social: o Estado e a sociedade civil;
c) outra característica dos movimentos sociais e que os distingue não somente
dos grupos de interesses, mas também dos partidos políticos, é que exibem
pautas organizativas menos formais, diferenciadas e integradas. Isto é,
costumam apresentar uma estrutura organizativa mais informal, descentralizada
e horizontal do que os demais atores coletivos;
d) em sua prática cotidiana, os movimentos sociais enriquecem o repertório de
formas de ação ao agregar às formas convencionais de participação, típicas dos
grupos de interesses e partidos políticos (competição nas eleições, pressionar
as autoridades para uma determinada direção, ou o recurso aos tribunais) outras
formas não convencionais (tanto legais, como a princípio é a manifestação,
como ilegais, como a desobediência civil) pelas quais mostram uma especial
preferência;
e) os movimentos sociais se constituem como ensaios deliberados de intervir
nas mudanças sociais. Tais mudanças podem afetar as estruturas de um Estado-
nação em particular (mudança local), a estrutura de relações internacionais
(mudança global), ou ambos conjuntamente. Junto com os movimentos
progressistas (ecologia, feminismo, pacifismo, solidariedade com o terceiro
mundo, direitos humanos, homossexuais, antirracismo, etc.) há também
movimentos que nascem com o objetivo de conservar o status quo, ou inclusive
retroagir a épocas anteriores (neofascismo, antiecologismo, etc.);
f) para poder se caracterizar um movimento social é necessário que exista um
grau de continuidade na ação coletiva (vários anos). Isto exclui da categoria de
movimento social outras manifestações coletivas episódicas e efêmeras, como
o pânico ou a moda;

400 IBARRA, Pedro; LETAMENDIA, Francisco. Los movimientos Sociales. In: BADIA, Miquel Camina. Manual de
Ciencia Política. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2008. p. 402.
participação política
173

g) não são entidades uniformes ou homogêneas, em todos eles convivem uma


variedade de tendências a princípio discordantes entre si em relação a aspectos
importantes como a ideologia ou a estratégia.401

Para Touraine, todo movimento social, para assim ser caracterizado, deve reunir
três princípios:

a) de identidade – um movimento social deve dar-se uma identidade, dizendo


a quem representa, em nome de quem fala/age, que interesses protege ou a
quem defende;
b) de oposição – o movimento social existe porque determinadas ideias
não são admitidas, ou porque certos interesses particulares são reprimidos,
portanto combate sempre contra uma resistência, contra um bloqueio ou
contra uma força de inércia. Em resumo, possui necessariamente adversários;
c) de totalidade – tratam da defesa de valores superiores, de grandes ideais, de
uma determinada filosofia ou teologia que creem. As razões que um movimento
social aduz para motivar sua ação pode ser: o interesse nacional, o bem
comum, a liberdade humana, o bem-estar coletivo, a saúde de todos, os direitos
humanos, etc.402
Antes de aprofundarmos a questão, convém estabelecer a diferença entre
movimentos reivindicatórios, movimentos políticos e movimentos de classe. Para
Pasquino e Melucci, os primeiros tentam impor mudanças nas normas, nas formas e
nos procedimentos de destinação dos recursos sociais; os segundos, tentam incidir
na modalidade de acesso aos canais de participação política, enquanto os terceiros
tentam transformar o modo de produção e suas relações.403
Referindo-se à dinâmica dos movimentos sociais, Rubinstein também faz um
comparativo de semelhanças e diferenças destes com os grupos de pressão e com
os partidos políticos. Com os primeiros, os movimentos sociais se assemelham no
que concerne à natureza informal de atuação e ao fato de que, a princípio e em
primeiro lugar, buscam influir nas políticas públicas, mas declinando de aceitar
uma responsabilidade direta nos processos de decisão e direção do país. Com
os segundos, por apresentar em pautas de interesses gerais. No que tange às

401 Ver LARAÑA, Enrique; GUSFIELD, Joseph (Ed.). Los nuevos movimientos sociales. De la ideología
a la identidad. Madrid: CIS, 1995. Ver também MARDONES, José María (Ed.). Diez palabras clave sobre
movimientos sociales. Estella - Navarra: Verbo Divino, 1996.
402 TOURAINE, Alain. Una introduzione allo studio dei movimenti sociali. In: COHEN; MELUCCI; OFFE; PISSORNO;
TILLY y TOURAINE (Coord.). I nuovi movimenti sociali. Milano: Ed. Franco Angeli, 1987. p. 101-133. Também
TOURAINE, Alain. Movimientos sociales de hoy. Actores y analistas. Barcelona: Ed. Hacer, 1990.
403 PASQUINO, Giuseppe. Movimenti sociali. In: BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO (Coord.). Dizionario di
Politica. Milano: Ed. Tea, 1992. p. 650-655.
MELUCCI, Antonio. La sfida simbólica dei movimenti contemporanei. In: COHEN; MELUCCI; OFFE; PISSOR-
NO; TILLY; TOURAINE (Coord.). I nuovi movimenti sociali. Milano: Ed. Franco Angeli, 1987. p. 134-156.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
174 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

diferenças com os grupos de pressão, estes defendem interesses setoriais concretos,


enquanto os movimentos sociais apontam para interesses gerais e difusos. É esta
última característica que os diferencia também dos partidos políticos, que defendem
interesses igualmente gerais, mas concretos.404
De forma didática, Ibarra e Letamendia apresentam um quadro para visualizar
melhor as diferenças e semelhanças:405

Partidos Grupos de Interesse Movimentos Sociais


Orientação para o Poder Exercê-los Pressioná-los Mudá-los
Político
Relações com os partidos e - Complementar Conflitiva
instituições políticas
Organização Hierárquica formalizada Formalizada Horizontal, Informal
Interesses/grupos Indeterminados; Determinados Indeterminados;
representados Determinados
Indetermináveis
Meios de Ação Eleitoral Convencional Não convencional
Tipo de ação coletiva Agregar interesses Agregar interesses Interesses. Junto com
gerais setoriais a identidade coletiva
Estratégia Competição Cooperação Conflito
Objetivos finais Sistêmicos Assistêmicos Antisistêmicos

Quanto às funções dos movimentos sociais, Rocher destaca que são três as
principais:
a) de mediação – os movimentos sociais são agentes ativos de mediação entre
as pessoas, de um lado, e as estruturas e as realidades sociais, de outro. São
agentes socializadores e se constituem em um poderoso meio de participação;
b) de esclarecimento da consciência coletiva – permitem desenvolver e manter
uma consciência coletiva clarificada e combativa em uma sociedade em geral
ou em um setor em especial;
c) de pressão – os movimentos sociais exercem uma influência sobre o
desenvolvimento histórico das sociedades, pelas pressões que podem exercer
sobre as pessoas constituídas em autoridade e sobre as elites de qualquer tipo
de poder.406

404 RUBINSTEIN, Juan Carlos. Sociedad Civil y Participación Ciudadana. Madrid: Editorial Pablo Iglesias, 1994. p.
116-117.
405 IBARRA, Pedro; LETAMENDIA, Francisco. Los movimientos Sociales. In: BADIA, Miquel Camina. Manual de
Ciencia Política. 3. ed. Madrid: Tecnos, 2008. p. 415.
406 ROCHER, G. Introducción a la sociología general. Barcelona: Ed. Herder, 1983.
Não se pode confundir um movimento social com o caráter que podem assumir outros grupos de pressão.
Os denominados lobbies, por exemplo, tentam influenciar as autoridades governamentais da mesma
maneira que os movimentos sociais. Entretanto, há várias diferenças entre ambos: os lobbies normalmente
exercem influência na busca de interesses muito particulares. Neste sentido, somente cumprem as funções
de mediação e de pressão, como os movimentos sociais, mas nunca a de esclarecimento da consciência
coletiva.
participação política
175

Junto a essas funções, que Rocher apresenta como principais, Melucci destaca
outras quatro, de natureza simbólica:
a) os atores do conflito são sempre agentes premonitórios e sua função é a
de ‘abrir o jogo’, anunciar à sociedade que em uma área específica existe um
problema fundamental. Deste modo cumprem uma função simbólica crescente.
Poder-se-ia falar de uma função profética. Buscam ou tentam mudar a vida das
pessoas, creem poder mudar a vida moderna lutando por mudanças gerais na
sociedade;
b) também se destacam efeitos democratizadores, contribuindo para adiantar
ciclos ou ondas de democracia;
c) contribuem para a construção de uma autêntica cultura de resistência em
determinados momentos históricos;
d) paulatina construção de uma identidade coletiva, que permite que seus
membros e simpatizantes falem de ‘nós’.407
Rocher refere-se ainda aos meios de ação que utilizam os movimentos sociais
e destaca três modalidades:
a) o esforço de persuasão – pode tomar a forma de redação de relatórios,
informes, documentos, petições dirigidas aos poderes públicos, notícias aos
meios de comunicação, etc;
b) as ameaças – podem adquirir diversas formas: ameaças de boicote, de
greves, de chantagem, de sanções físicas, etc;
c) o dinheiro – este meio, tendente a se ganhar os favores dos poderes públicos
pode ser lícito (adesão a partidos políticos, publicação) ou ilícito (corrupção de
funcionários).408
As linhas de ação que correspondem às perspectivas político-estratégicas dos
novos movimentos sociais refletem três posturas:
a) Postura reivindicativa – se encarrega de pressionar o Estado para a obtenção
de melhores condições de vida e de direitos básicos que não são atendidos. Tal
postura possui um alcance limitado no que se refere a criar soluções criativas.
Dada a prioridade de lutas segmentadas, acaba caindo no corporativismo ou
em práticas clientelistas ou populistas;
b) Postura contestatória – refere-se àquela opção que se utiliza das carências e
das privações materiais como forma de mobilização das grandes massas para
realizar uma oposição sistemática ao poder estatal constituído. Nesse caso

407 MELUCCI, Antonio. La sfida simbólica dei movimenti contemporanei. In: COHEN; MELUCCI; OFFE;
PISSORNO; TILLY; TOURAINE (Coord.). I nuovi movimenti sociali. Op. cit.
408 ROCHER, G. Introducción a la sociología general, Barcelona: Ed. Herder, 1983.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
176 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

o movimento se limita a denunciar a ausência de respostas governamentais


concretas para a solução dos problemas, deixando de aproveitar o espaço
institucional para engranzar propostas alternativas e criar mecanismos de
participação popular;
c) Postura participativa – esta postura aponta uma nova perspectiva para os
novos movimentos já que, sem deixar de lutar por melhoras na qualidade de
vida, avança, não somente para uma redefinição da própria cidadania, mas
contribui positivamente para redefinir estes novos sujeitos coletivos como
“instrumento essencial na construção de uma democracia capaz de assegurar
aos cidadãos formas de controle do Estado e canais de participação popular,
descentralizados do poder”.409

A base social desses novos movimentos sociais é identificada por Offe como
uma nova classe média. Uma classe média onde as exigências carecem, em grande
parte, da tipicidade da classe já que suas metas são dispersas e universalistas, como
as pretensões que atingem o pacifismo, a proteção do meio ambiente e a defesa
dos direitos humanos. A nova classe média compõe alianças estáveis com outros
elementos sociais, como os grupos periféricos e setores da antiga classe média.410
Tais movimentos de massas organizados que emergem frente à fragilidade e à
inoperância das instituições oficiais, buscam defender a subsistência e a identidade
de seus membros, promovendo a mobilização contra a exploração, a opressão e a
exclusão.411
Os novos movimentos sociais, mesmo sendo absolutamente heterogêneos,
apresentam um conjunto de características comuns:
a) primazia na busca da identidade – o eixo dos conflitos relevantes nas
sociedades contemporâneas já não é eminentemente político ou econômico
como ocorria com o velho movimento de trabalhadores, mas é cultural e
simbólico e gira em torno do sistema de pertencimento a um grupo social
diferenciado (identidade coletiva) de modo que tal pertencimento redefine
a identidade individual;
b) mobilização sem referência específica de classe – os novos movimentos
sociais não mobilizam seus militantes e simpatizantes de acordo com a
posição destes na estrutura social;
c) caráter defensivo – enquanto o velho movimento de trabalhadores
almejava reestruturar a sociedade capitalista transcendendo sua natureza

409 VERAS, Maura P. B.; BONDUKI, Nabil G. Política habitacional e a luta pelo direito à habitação. In: COVRE,
Maria de Lourdes M. (Org.). A cidadania que não temos. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 67-69.
410 Os grupos periféricos ou desmercantilizados, são as categorias sociais cuja situação na sociedade não se
define necessariamente pelo mercado de trabalho, como os estudantes, mulheres, aposentados, etc.
411 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimientos sociales. Op. cit.
participação política
177

exploradora ou avançar para uma sociedade capitalista com bases mais


igualitárias, os novos movimentos sociais se diferenciam por defender
reivindicações de menor calado: seus desafios à ordem estabelecida são
mais limitados, específicos e tangenciais (reivindicações de igualdade de
sexos, o diálogo como alternativa nas relações internacionais, etc..);
d) politização da vida cotidiana – os novos movimentos sociais politizam
a vida cotidiana ao invés de focar-se na apresentação de demandas
específicas ante as autoridades econômicas e/ou político-resolutivas.
Apresentam uma série de problemas que emanam de aspectos pessoais
da vida cotidiana, tais como a sexualidade, a defesa da natureza ou a
igualdade de gênero; a opulência econômica os permite;
e) os novos movimentos sociais não são simplesmente instrumentos para
a consecução de objetivos pré-fixados, mas são fins em si mesmos –
daí que se distinguem por funcionar com critérios de democracia direta,
com estrutura não hierárquica e com uma parca diferenciação no rol de
reivindicações;
f) meios não convencionais de participação – se distanciam dos canais
rotineiros de participação política (parlamentar e eleitoral) e recorrem a
formas não convencionais de participação;
g) radicalismo autolimitado – os novos movimentos sociais podem ser
interpretados como projetos para a defesa e aprofundamento democrático
da sociedade civil.
Nas sociedades capitalistas avançadas, novas condições estruturais acompan-
ham a emergência e o desenvolvimento de novas ou renomadas formas de ação co-
letiva, como exposto nos trabalhos de Habermas e Offe. Para estes autores, hodier-
namente, uma das questões centrais dos movimentos sociais é promover novas
formulações simbólicas e estimular uma renovação dos valores sociais da moderni-
dade. Um valor básico desta modernidade tem sido a busca de crescentes espaços
de autonomia individual e social para que os indivíduos construam e defendam, tanto
sua identidade pessoal como uma multiplicidade de identidades coletivas.412
As organizações e grupos que configuram estas novas formas emergentes
de movimentos sociais atuam no âmbito da solidariedade com os setores menos
favorecidos ou marginalizados das sociedades ocidentais, assim como com grupos
que se viram obrigados a emigrar em busca de melhora em sua condição econômica
ou de sua segurança. Associações antirracistas ou de apoio e colaboração ao
desenvolvimento, mostram sinais de relevante contribuição com os movimentos

412 TEJERINA, Benjamín. Los movimientos sociales y la acción colectiva. De la producción simbólica al cambio
de valores. In: IBARRA, Pedro; TEJERINA, Benjamin (Ed.). Los movimientos sociales. Transformaciones
políticas y cambio cultural. Madrid: Trotta, 1998. p. 11-138.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
178 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

sociais mais consolidados. É assim que,

este grupo de movimientos por la solidaridad ha conseguido tal grado


de expansión y tal reconocimiento social que la opinión pública tiende
a confundirlos con la totalidad de los movimientos sociales […] La
opinión pública les confiere el papel de expresar la ‘auténtica sociedad’,
aquella que no ha claudicado ante la cultura de la irresponsabilidad, la
atomización y la soledad generada por los excesos y efectos perversos
del Estado de bienestar” 413

Então, como poeticamente apregoa Alberoni, a vida social é um processo que


vai desde a efervescência da mobilização, às águas remansas da instituição e deve,
pois, incorporar essa nova realidade dos movimentos sociais que adotam, desde
suas origens, formas mais institucionais.414
E, como vimos, estes movimentos podem ser agrupados em diferentes
correntes: movimentos de vizinhança, antinuclear, ecologista, pacifista, alternativo,
de minorias como os homossexuais ou portadores de necessidades especiais,
religiosos, antitributos, feministas, nacionalistas ou etnolinguísticos. Segundo
Habermas, alguns desses movimentos possuem um caráter emancipador, enquanto
outros adotam uma atitude conservadora ou de resistência. Apresentam um novo
paradigma, defendendo novos conteúdos e valores. Os conteúdos dominantes se
centram no interesse por um território (físico), um espaço de atividades ou mundo
de vida, como o corpo, a saúde, a identidade sexual, a cidade, o entorno físico, a
herança e a identidade cultural, étnica, nacional, linguística.415 Para Offe, os valores
mais importantes fazem menção à busca de autonomia e identidade, tanto pessoal
como coletiva, em oposição à manipulação, ao controle, à dependência, à regulação
e à burocratização.416
É indiscutível que os movimentos sociais fazem parte e se constituem em
importantes atores no jogo político-democrático, sua incorporação na reivindicação
de demandas tornou-se imprescindível para se alcançar objetivos concretos e
determinados. Os partidos políticos foram o elemento central na hora de configurar
o Estado de Direito, mas, hoje, devem dividir este protagonismo com outras formas
de conjunção de interesses políticos e sociais. Os movimentos sociais possuem
ampla capacidade para generalizar demandas ou opiniões mediante diversos
mecanismos de articulação e transmissão de ideias e propostas que surgem na
modernidade. Efetivamente as sociedades atuais proporcionam uma farta tecnologia
de comunicações, como a internet e outros meios eletrônicos que estão a serviço dos

413 IBARRA, Pedro; TEJERINA, Benjamin (Ed.). Los movimientos sociales. Transformaciones políticas y cambio
cultural. Madrid: Trotta, 1998. p. 10.
414 ALBERONI, Francesco. Movimento e instituzione. Bolonha: Il Mulio, 1977.
415 HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. V. II. Madrid: Taurus, 1998.
416 OFFE, Claus. Partidos políticos y nuevos movimientos sociales. Op. cit.
participação política
179

interesses desses novos movimentos sociais.417


O espaço que a sociedade civil oferece encontra dificuldades para ser
preenchido unicamente pelos partidos políticos. Nesse cenário, os movimentos
sociais podem jogar um papel de protagonistas, fomentando um ativismo na
sociedade civil, encaminhando a construção de uma cultura política e social contra-
hegemônica, como diz Santos, que está inexoravelmente comprometida com
os valores da democracia participativa, a igualdade social e o desenvolvimento
sustentável, apenas para citar alguns, frente ao capitalismo predatório, o
consumismo, o individualismo e o descrédito dos mecanismos coletivos.418
As formas para desenvolver com êxito as demandas dos novos movimentos
sociais são variadas, já que respondem a distintos interesses e se articulam sob
diferentes fórmulas. Também são diversas suas formas de relação com o poder:
uns se articulam como redes muito flexíveis, outros, não poderiam existir sem uma
forte estrutura centralizada. Contudo, a característica comum desses grupos é sua
forma particular de participação política: sua falta de vinculação orgânica com os
tradicionais mecanismos de participação política, principalmente com os partidos
políticos; o que buscam é um espaço diferente daquele que disputam os partidos.
O que pretendem é gerar hegemonia no âmbito em que atuam, de maneira que os
cidadãos interessados ou afetados possam ver neles o referencial para a ação.419
Frequentemente sua luta política vai além de enfrentar aqueles que gozam da
hegemonia política e cultural em uma sociedade, devem também vencer as reticências
dos partidos políticos afins, que os vêem como competidores.
Enfim, em uma democracia, os movimentos sociais podem em muito contribuir
para minimizar a fragmentação da sociedade civil, assim como impulsionar a
democracia participativa. Isto acaba redundando em benefício da própria democracia,
que será reforçada por uma maior proximidade com as esferas onde se adotam
as decisões que afetam a todos os cidadãos. Trata-se de reforçar o paradigma da

417 ALDAY, Rafael Escudero. Activismo y sociedad civil: los nuevos sujetos políticos. In: SAUCA, J. María; SIMON,
María I. Wences (Ed.). Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Op. cit., p. 276.
Embora sem profunda análise, não podemos deixar de fazer referência ao recentíssimo movimento social
denominado de 15-M (15 de Maio de 2011), a revolução dos indignados, ou Spanish Revolution. Iniciou com
acampamentos e mobilizações em todo território espanhol; imediatamente ultrapassou fronteiras e expandiu-
se para toda Europa ocidental, convocado sob a plataforma “Democracia Real Já”. Autodefinido como um
movimento composto por “cidadãos de diferentes idades e classes sociais” que se sentem “indignados”
ante a falta de representação e “as traições realizadas pelos políticos com o nome de democracia”. Exige
uma reforma na Lei Eleitoral “que devolva à democracia seu verdadeiro sentido: um governo de cidadãos.
Uma democracia participativa”. Argúi que não se pode manter o atual sistema eleitoral com a imunidade do
sistema bancário – a que atribui a responsabilidade pela atual crise econômica – e com candidatos acusados
de corrupção. Têm utilizado a internet e as diversas redes sociais para suas convocações e a divulgação de
suas propostas. Em meados de junho quando concluímos este trabalho, os acampamentos permanecem nas
principais cidades espanholas e europeias e o movimento busca expandir-se, estruturando-se nos bairros e
cidades menores.
418 SANTOS, Boaventura de Sousa. El milenio huérfano. Ensayos para una nueva cultura política. Madrid: Trotta,
2005. p. 281-284.
419 ALDAY, Rafael Escudero. Activismo y sociedad civil: los nuevos sujetos políticos. In: SAUCA, J. María; SIMON,
María I. Wences (Ed.). Lecturas de la sociedad civil. Un mapa contemporáneo de sus teorías. Op. cit., p. 278.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
180 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

democracia participativa, de combinar adequadamente as instâncias de decisões


locais com as globais.
Por fim, parece-nos mister consignar, ao menos de forma breve, o pensamento de
James Petras sobre o grande inimigo dos movimentos sociais: as ONGs. Acoima que
no princípio dos anos oitenta, as classes neoliberais dominantes deram-se conta de que
suas políticas estavam polarizando a sociedade e provocando um descontentamento
social em grande escala. Começam então a promover e financiar uma estratégia
paralela: a promoção de organizações “de base”, de ideologia “antiestatista” para
intervir entre as classes potencialmente geradoras de conflitos, a fim de criar um
“colchão social”. Estas organizações, dependentes financeiramente dos recursos
neoliberais estão diretamente envolvidas em competir com os movimentos sociais
pela lealdade dos líderes locais e de comunidades de ativistas.
Na medida em que crescia a oposição às políticas neoliberais, os governos
europeus, norte-americano e o Banco Mundial incrementavam seu financiamento
às ONG´s. Há uma relação direta entre o crescimento dos movimentos sociais que
reivindicam direitos e contestam o sistema, e os esforços para subvertê-los mediante
a criação de alternativas de ação social através das ONG´s. No fim dos anos 90 estas
Organizações Não Governamentais consistiam em milhares e recebiam mais de
quatro bilhões de dólares, convertendo-se na “cara comunitária” do neoliberalismo.
Para Petras o “não governamental”, significa “não” mesmo, isto é, se traduz em
atividades contra a intervenção estatal, contra o gasto público, permitindo assim que
o Estado libere o grosso dos fundos para subsidiar o capital internacional.
Depois de algumas décadas de atividade, as ONG´s atingiram seus objetivos:
anestesiaram, desestruturaram, despolitizaram e desradicalizaram muitos movimentos
sociais de mulheres, de jovens, de agricultores, de ecologistas etc. Através de uma
postura apolítica e seu enfoque de autoajuda, desmobilizaram toda uma história de
lutas e reivindicações das classes e/ou setores oprimidos. Seus projetos – para os
quais cooptaram líderes potenciais – mobilizam os participantes para produzir “as
margens” do sistema, mas não para enfrentá-lo, lutar, libertar-se e controlar os meios
básicos de produção e de riquezas. Com o tempo aquele setor acaba se tornando
dependente destes “projetos” e, por consequência, do capital internacional que o
financia, criando-se uma nova relação de dependência.420

420 PETRAS, James. Imperialism and NGOs in Latin America. Monthly Review v. 49, n. 7, New York, p. 10-27, dec.
1997.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As reflexões finais sobre as noções de cidadania, democracia e participação


política apontam, com muita clareza, para os desafios que se colocam diante de cada
um de nós para o século XXI.
Com respeito à cidadania, podemos afirmar que o maior desafio é o que se
refere à inclusão. Revisamos os diversos tipos de cidadania, tanto a que se forjou
no passo do progresso para a consecução dos direitos humanos (cidadania civil,
cidadania política e cidadania social) até aportarmos às novas formas de cidadania da
modernidade (pós-nacional, cosmopolita, transnacional, transcultural, multicultural).
Essas diversas formulações evidenciam que na evolução e nos modelos de
cidadania influem outras noções, como as de Estado e as transformações do Estado
nacional, e que têm um impacto direto sobre a noção de cidadania. A evolução
socioeconômica, a transnacionalização, a globalização, são fenômenos que incidem
absolutamente no Estado, e repercutem diretamente na cidadania. Assim, pode-se
esperar a emergência de novas formulações dos direitos e do status de cidadania;
algumas teorias apontam, inclusive para concebê-la como instituição parcialmente
desnacionalizada ou em processo de desnacionalização e, inclusive, há correntes
que centram suas análises em sua dimensão transnacional no sentido de que surgem
novas formas de transnacionalização política no marco da globalização (migrações,
direitos humanos, ecologismo, feminismo).
A cidadania legal nem sempre comporta a igualdade e a plenitude dos direitos
de pertencimento porque estes, com frequência, se veem condicionados pela posição
de diferentes grupos dentro do próprio Estado-nação. Portanto, surgem novos
sujeitos políticos apartados do sujeito formal (segundo a definição que vincula os
direitos de cidadania a, por exemplo, ao exercício do voto e às garantias trabalhistas).
Em nossas grandes cidades emerge uma multiplicidade de sujeitos ‘informais’ quem
ficam excluídos do status de cidadão.
Gênero (mulheres, coletivos GLTB), migrantes, pobres, ficam excluídos do
conceito legal de cidadania. As situações de pobreza, de exclusão, de falta de opção,
de acesso a recursos e de violência obstaculizam a capacidade de demandar direitos.
A partir dos Estados se formulam políticas de inclusão, mas, simultaneamente,
junto às forças centrípetas de inclusão florescem propostas centrífugas de exclusão
(partidos políticos ultradireitistas, cidadãos que se recusam a compartilhar os
serviços sociais que pagam com seus impostos com aqueles que não colaboraram
com o sistema). A aporofobia, o rechaço ao pobre, é um sintoma sobre a aversão
visceral dos que vivem na indigência e atinge o membro pobre de uma família ou a
própria família. Lembramos que Adam Smith – o economista criador do liberalismo
econômico – disse em sua obra A teoria dos sentimentos morais, que a corrupção
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
182 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

do caráter consiste em admirar os ricos e desprezar os pobres, em vez de admirar


os sábios e as boas pessoas e desprezar os estúpidos. Isto é a corrupção de uma
sociedade: quando uma sociedade despreza os que fracassaram na vida, e os que
não tenham tido boa sorte, é patológico.
O muro no México, as cercas de Melinha, as fronteiras da Europa e tantos outros
muros de separação que se estão levantando no mundo, nos lembram daqueles
muros onde as cidades antigas isolavam indivíduos por delitos cometidos, que ficavam
desprotegidos do conforto da cidade, hoje podemos relacionar isso diretamente com
a aporofobia. A democracia se assenta em um princípio que é a dignidade dos seres
humanos. De outra parte, um dos valores supremos da democracia é a igualdade,
todos possuem os mesmos direitos. A existência dessas desigualdades radicais
significa destroçar a democracia.
Os modelos de cidades que estão se forjando, correspondem a esse processo
de desigualdade. Este processo evidencia claras dinâmicas de desigualdade ou
polarização social, como nas grandes metrópoles que albergam, na parte alta da
pirâmide, aqueles vinculados aos fluxos internacionais do capital financeiro, e, na
base da mesma, setores cada vez mais amplos da população em clara situação de
desvantagem. A confluência de todos esses processos constituem espaços propícios
ao surgimento de novas práticas cidadãs e os novos sujeitos políticos, nem sempre
formalizados. Nas cidades globais, há uma miscelânea, certa homogeneização (por
exemplo, de estilos de vida) ou características compartilhadas da marginalização e a
exclusão social, assim como pautas similares de desigual distribuição de bens e de
acesso aos meios.
Enfim, a cidadania exige políticas públicas de inclusão para superar um dos
grandes desafios do século XXI, que é a crescente desigualdade social. Somente
assim se poderá conseguir um status de cidadão, tanto formal como real.
Em relação à democracia, o maior desafio que se enfrenta no século XXI é
a sua consolidação em alguns contextos (latino-americano) e o reforço em outros
(Europa). Os lamentáveis casos de corrupção política – tanto no contexto latino-
americano como europeu – têm provocado um asceticismo dos cidadãos com os
mecanismos próprios das democracias. É mister uma cidadania ativa, que lute
contra as patologias corruptivas mediante a virtude cívica, assim como constituir-
se mecanismos efetivos para a total transparência nos processos e sistemas para
controle da cidadania. Tardamos séculos para construir sistemas democráticos e não
podemos deixá-los ruir por essas menosprezíveis condutas. A falta de legitimidade
das lideranças democráticas (“já não há lideres com características intelectuais e
morais como antes” – é a frase mais ouvida). Não podemos permanecer com visões
simplistas nem generalizadoras. Há que se detectar e analisar as causas e fatores
que levaram à crise da democracia para, imediatamente, freá-las, apontar soluções
e reconstituí-la.
considerações finais
183

As modalidades de democracia (representativa, direta, deliberativa) abriram as


portas para a implementação de uma política pública participativa, e esta pode ajudar
ao menos para que o cidadão recupere seu interesse pela política. Os meios de
informação públicos e privados e o papel que desempenham no jogo democrático
também devem ser levados em consideração.
Territorialidade, nacionalismos, xenofobia, migrações são alguns dos temas
com os quais as democracias terão que lidar nos próximos anos para garantir sua
consolidação.
Quanto à participação política, a história recente tem se caracterizado pela
incapacidade dos Estados em conectar-se com seus cidadãos. Tendência esta
que se aprofunda com a crise econômica na Europa e com os riscos implícitos nos
discursos populistas e o personalismo na direção das políticas públicas na América
Latina. O desafio, portanto, radica em serem os Estados capazes de criar efetivas e
confiáveis vias de comunicação e interação entre os cidadãos e as instituições.
A cidadania tem apresentado um novo desafio: frente à aversão política, o
inconformismo, a incapacidade para suportar os efeitos da crise ou a má gestão
pública exige participação, mudanças nas regras do jogo e retomada dos espaços
públicos.
Nos últimos anos, a Europa tem gerado importantes instrumentos de
participação e de coesão social, ampliados com os notáveis avanços introduzidos
pelo Tratado de Lisboa, mas os utilizam pouco (como a iniciativa legislativa popular).
Por sua parte, a América Latina vem construindo, há alguns anos, espaços de
participação cidadã para propiciar que o ambicionado desenvolvimento, mais
perto agora ante as novas perspectivas econômicas, tenha um caráter inclusivo e
participativo.
Os partidos políticos devem retomar seu papel vital na democracia, pois são
a instancia idônea para mediar e formalizar a relação entre o Estado e a sociedade
civil. Contudo, para que possam cumprir com sua função, devem superar a crise de
legitimidade e desconfiança que os afeta. Os movimentos cidadãos também têm
um importante rol a desenvolver nos próximos anos, já que conseguem canalizar
adequadamente, seja o descontentamento dos cidadãos com a classe política, sejam
as aspirações dos cidadãos quanto ao que deve ser o conteúdo da democracia e da
participação política.
Por fim, os desafios que a cidadania, a democracia e a participação política têm
diante de si para este século XXI são numerosos: inclusão social, com uma cidadania
integradora; participação cidadã, com mais e melhores formas de representação e
participação em todos os setores, local e global; democracias sólidas, lutando contra
a corrupção política que levou a um descrédito dos cidadãos pela vida política.
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
184 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Encontramo-nos em um momento crucial, tanto a economia europeia está se


recuperando de uma profunda crise econômico-financeira, como alguns países latino-
americanos, como o Brasil - que havia iniciado um caminho de bonança econômica,
e também foi atingido por uma crise financeira e política que provocou um alarme
nos mercados globais. A justiça e a equidade, que exige a sociedade do século XXI,
não podem ser esperadas do mercado global, cuja função não é precisamente a
solidariedade. É a partir do Direito, da Política e também da Economia que deve-se
lutar para a consecução do bem comum. Trata-se de um projeto difícil, talvez utópico,
mas para o qual todos estamos dispostos a participar.
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TRATADO DE LISBOA POR EL QUE SE MODIFICAN EL TRATADO DE LA UNIÓN EUROPEA
Y EL TRATADO CONSTITUTIVO DE LA COMUNIDAD EUROPEA. (2007/C 306/01). Disponível
em: <http://eur-lex.europa.eu/legal-content/ES/TXT/?uri=CELEX%3A12007L%2FTXT>.
CLOVIS GORCZEVSKI

Doutorado pela Universidad de Burgos, pós-doutorado pelas universidades


Universidad de Sevilla (CAPES – 2007) e Universidad de La Laguna (Fundación
Carolina – CAPES 2011).
Advogado laureado pela Ordem dos Advogados do Brasil com a Comenda
Oswaldo Vergara (2015). Iniciou sua carreira acadêmica na Universidade do Vale do
Rio dos Sinos – UNISINOS, onde foi Chefe de Departamento e Pró-Diretor do Centro
de Ciências Jurídicas. Também foi professor e Coordenador do Curso de Direito da
Universidade Luterana do Brasil – ULBRA e da Universidade Estadual do Rio Grande
do Sul - UERGS
É autor de artigos científicos, publicados no Brasil e no exterior, autor de livros,
dentre os quais se destacam: Direitos Humanos – Dos primórdios da humanidade ao
Brasil de hoje (Imprensa Livre, 2006); Jurisdição Paraestatal: solução de conflitos
com respeito à cidadania e aos Direitos Humanos na sociedade multicultural
(Imprensa Livre, 2007); Direitos Humanos, educação e cidadania. Conhecer educar
praticar. (EDUNISC. 2. ed., 2016); A necessária revisão do conceito de cidadania:
movimentos sociais e novos protagonistas na esfera pública democrática
(EDUNISC. 2011), Educar para os Direitos Humanos. Considerações, obstáculos,
propostas (Atlas, 2016) e, Direitos Humanos e o tráfico internacional de pessoas.
A atuação do Estado Brasileiro (Multideia, 2016). É coautor de Para uma nova
cidadania: Ciência Política, Teoria do Estado e da Constituição. (Verbo Jurídico,
2007).
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
202 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

Tradutor e organizador de dezenas de obras jurídicas. Foi consultor do Programa


das Nações Unidas para o Desenvolvimento (2010/2013). Atualmente é professor-
pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da
Universidade de Santa Cruz do Sul/RS.
NURIA BELLOSO MARTÍN

Doutora pela Universidad de Valladolid (Espanha); Professora Catedrática de


Filosofia do Direito da Universidad de Burgos (Espanha); Especialista em Mediação
Civil e Mercantil; Diretora do Departamento de Direito Público; Presidente do Comitê
de Ciências Jurídicas e Econômicas para Avaliação de Complementos Retributivos
Individuais aos docentes e pesquisadores da Universidad do País Basco (UNIVASQ).
Possui o reconhecimento de seis quinquênios docentes e quatro sexênios
de pesquisas. Participou em várias edições de programas de mobilidade docente
em Universidades do Brasil. Professora colaboradora de inúmeras Universidades
da América Latina (Brasil, Argentina, México), ministrando aulas em programas de
mestrado e de doutorado, além de participante assídua em Congressos Internacionais
no espaço latino-americano.
Suas pesquisas dirigem-se principalmente a quatro eixos temáticos: 1) O
pensamento filosófico e político da Escola Espanhola do século XVI; 2) Cidadania e
fortalecimento dos Direitos Humanos; 3) Formas de gestão de conflitos e mediação;
4) Correntes contemporâneas de Teoria do Direito: pós-positivismo jurídico,
neoconstitucionalismo e doutrina principiológica.
Integra o Grupo de Pesquisas Ordenación Territorial y Urbanística, Medio
ambiente y Desarrollo Sostenible – ORDITER, da Universidade de Burgos. Atuante
Clovis Gorczevski, Nuria Belloso Martin
204 CIDADANIA, DEMOCRACIA E PARTICIPAÇÃO POLÍTICA: OS DESAFIOS DO SÉCULO XXI

em vários projetos de pesquisa nacional espanhola I+D+I. Orientou inúmeros


projetos de pesquisa no marco do Programa da Agência Espanhola de Cooperação
Ibero-americana PCI. Diretora de Relações Internacionais e Cooperação do Núcleo
de Pesquisa “Minga. Constitucionalismo democrático latino-americano, novas
intersubjetividades e emancipação social”. Pesquisadora convidada do Centro de
Estudos Sociológicos da Universidade de Coimbra – CES (Portugal).
Autora de numerosas obras e artigos científicos com publicação internacional, das
quais se destacam algumas publicadas no Brasil: Os novos desafios da cidadania,
trad. de C. Gorczevski, Universidade de Santa Cruz do Sul – Brasil. 2005; Diálogos
jurídicos Brasil-Espanha: da exclusão social aos direitos sociais. Algumas estratégias
de políticas públicas (Coautora M. M. Moraes da Costa), Porto Alegre: Imprensa Livre,
2008; Educar para os Direitos Humanos. Considerações, obstáculos, propostas.
(Coautor C. Gorczevski). São Paulo: Atlas, 2014; Teoria da decisão judicial e teoria
da justiça: jusfilosofías e novos paradigmas constitucionais. (Coautores com Paulo
Bonavides et al.). Curitiba: Juruá, 2015; Constitucionalismo e Decolonialidade.
(Coautor S. Tarso Rodrigues). Cuiabá: Editora Sanches Ltda., 2017; Aprender com o
sul sobre Direitos Humanos. (Coautor: S. Tarso Rodrigues). Cuiabá: Editora Sanches,
2017.

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