4406-Texto Do Artigo-10270-1-10-20131023

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1

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


FACULDADE DE EDUCAÇÃO

SIRLENE MOTA PINHEIRO DA SILVA

Decifra-me! Não me devore!


Gênero e sexualidade nas tramas das lembranças e nas
práticas escolares

São Paulo
2015
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SIRLENE MOTA PINHEIRO DA SILVA

Decifra-me! Não me devore!


Gênero e sexualidade nas tramas das lembranças e nas
práticas escolares

Tese apresentada à Faculdade de Educação da


Universidade de São Paulo para a obtenção do
título de Doutora em Educação.

Área de Concentração: Didática, Teorias de


Ensino e Práticas Escolares

Orientadora: Profa. Dra. Denice Barbara Catani

Coorientadora: Profa. Dra. Diomar das Graças


Motta

São Paulo
2015

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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO,


POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E
PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

377.255(81. Silva, Sirlene Mota Pinheiro da


S586d Decifra-me! Não me devore! Gênero e sexualidade nas tramas das
lembranças e nas práticas escolares / Sirlene Mota Pinheiro da Silva;
orientadora Denice Barbara Catani; coorientadora Diomar das Graças
Motta. São Paulo: s.n., 2015.
333 p.; il.; anexo.; apêndices.

Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Educação. Área


de Concentração: Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares) - -
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

1. Gênero 2. Relações de Gênero 3. Sexualidade 3. Formação de


professores. 5. Praticas Escolares 6. Habitus I. Catani, Denice Barbara,
orient.; Motta, Diomar das Graças, coorient.

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Dedico esta Tese de Doutorado

Às professoras e professores que me ensinaram:


A ler, escrever e contar.
A compreender que existem outros países no mundo, além do meu país.
Que o Rio de Janeiro, o Maranhão, o São Paulo, o Brasil e o mundo...
Têm uma história construída no e pelo tempo.
Que aprender com as ideias de outras pessoas pode alargar nossos horizontes.
Que aprender com as pessoas, na vida ou nos livros, pode ampliar nossa mente...

Às professoras e professores que me ensinaram:


A me apaixonar pelas Ciências Humanas e Sociais, pela Pedagogia, pela Didática.
Que a realidade é complexa e vai além das fronteiras disciplinares.
E que me ensinaram a questionar a própria fronteira da Pedagogia.
Que criaram um terreno fértil para refletir sobre questões de gênero e sexualidade.
Que ensinaram à nova geração a arte de fazer pesquisa...

Sem as professoras e professores especiais que passaram pela minha vida.


No ensino “primário”, no “ginasial” e no Ensino Médio.
Na Universidade, seja na graduação ou na pós-graduação.
Sem as professoras e professores que participaram desta pesquisa como colaboradores/as.
Sem as valiosas sugestões das orientadoras deste estudo.
Sem elas e eles que deram “vida” a este trabalho...
Esta Tese de Doutorado simplesmente não existiria! 


Texto adaptado da dedicatória da Tese de Ana Flavia Madureira (2007)

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AGRADECIMENTOS

Este é mais um momento em minha trajetória de vida, que tanto me satisfaz. Uma grande
família que ultrapassa os limites da consanguinidade, que se sustenta na parceria, no afeto,
na objetividade, na subjetividade, na emoção e na razão. Pensar cada uma dessas pessoas, é
fazer uma retrospectiva de cada caminho trilhado, com seus aclives, declives e obstáculos,
alguns quase inatingíveis, mas que não deixaram de ser importantes para estabelecer outros
caminhos a serem percorridos. Então, este é um momento de muitos agradecimentos...

Meu profundo agradecimento à Profa. Dra. Denice Barbara Catani, por sua
disponibilidade, sensibilidade, seriedade, competência acadêmica, clareamento de ideias e
respeito à minha trajetória, compreendendo e aceitando minhas limitações ao assumir a
orientação dessa pesquisa. Obrigada por possibilitar-me participar de seu talento
intelectual.

À profa. Dra. Diomar das Graças Motta, porque os percursos acadêmicos me


proporcionaram reconhecer nela a eterna orientadora que com respeito, carinho e
sabedoria iluminou meu caminho sobre as questões de gênero, estabelecendo uma
relação de afetuosidade que irriga os caminhos da pesquisa.
À minha mãe Adir Motta Pinheiro e ao meu pai Joadri José Pinheiro, alicerces iniciais em
minha trajetória de vida. Mesmo sem terem concluído sequer o ensino primário,
demonstram força, persistência e sabedoria incalculáveis. Obrigada pelo incentivo em não
esmorecer diante das adversidades.
À minha querida filha Edilene, ao meu amado filho Glayson e ao adorado netinho Roger.
Obrigada por me ensinarem uma infinidade de coisas que não estão nos livros. Sem vocês
três essa árdua trajetória não teria sentido ou seria suportável.
Ao meu amado e compreensível companheiro de todas as horas Antero Frazão. Obrigada
por me acalmar nos momentos de aflição, me apoiar e incentivar a prosseguir no caminho
diante das adversidades.
Às Profas. Dras. Constantina Xavier Filha e Cynthia Pereira de Sousa pelas profícuas
contribuições a esta pesquisa por ocasião do Exame de Qualificação.
Aos/às docentes das atividades onde integralizei os créditos acadêmicos teóricos na
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), pelas contribuições à
minha compreensão do pensar, do pesquisar e do fazer educação.
Às professoras e professores colaboradores/as desta pesquisa, que compartilharam
comigo suas trajetórias percorridas, de aprendizagem, de formação e de (re) elaboração
de outros conhecimentos. Com suas preciosas narrativas este percurso ganhou sentido.
À Lucélia Neves dos Santos, tutora presencial do Curso GDE do Polo de Porto Franco,
pelos contatos iniciais e agendamento das entrevistas.

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A todos os funcionários e funcionárias da FEUSP e, sobretudo à equipe da secretaria de


pós-graduação, liderada por Marcelo de Souza Ribeiro, pela competência e atenção
sempre presentes.
À Universidade Federal do Maranhão (UFMA) pela concessão do afastamento que tornou
possível este percurso. Meu especial agradecimento às professoras e professores do
Departamento de Educação I pela torcida por um breve e exitoso retorno às atividades
acadêmicas.
A todas às colegas do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações
de Gênero (GEMGe) e em especial a Iran de Maria Leitão Nunes e Raimunda Machado pelo
respeito e exemplo de profissionais competentes que são.
Às queridas amigas do Maranhão Albiane Gomes, Zeila Albuquerque, Joelma Reis, Edith
Ferreira e Francy Rabelo, pelo apoio e incentivos constantes, deixando-me confiante
diante das adversidades do caminho e às amigas de São Paulo, Silmara Cardoso e Fátima
Brito pela acolhedora estadia sempre que precisei.
À Angélica Frazão, minha querida cunhada e amiga que muito contribuiu na leitura e
revisão deste trabalho, além das palavras acolhedoras que deram força para vencer
muitos dos obstáculos do caminho.
Aos meus irmãos, sobrinhas, sobrinhos, tias, tios, primos, primas, nora e cunhadas,
“caminhos seguros” onde encontro carinho, respeito, admiração, apoio e incentivos
constantes.
À Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do Maranhão
(FAPEMA), pelo incentivo e tranquilidade proporcionados com a concessão da Bolsa de
Doutorado Fora do Estado.
A todos/as que contribuíram na construção de minha trajetória acadêmica e profissional
como professora pesquisadora, meus sinceros agradecimentos.

Atravessar estes caminhos só foi possível com a ajuda sempre presente de cada uma, cada
um de vocês. Por isso, minha eterna gratidão!

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De tudo, ficaram três coisas:


a certeza de que estamos começando,
a certeza de que é preciso continuar,
a certeza de que não podemos ser interrompidos
antes de terminar.
Fazer da interrupção um caminho novo,
da queda um passo de dança,
do medo uma escada,
do sonho uma ponte, da procura um encontro.
Fica o desejo de boa sorte,
fica a vontade que lutes e venças.
Fernando Sabino

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RESUMO

SILVA, Sirlene Mota Pinheiro da. Decifra-me! Não me devore! Gênero e sexualidade
nas tramas das lembranças e nas práticas escolares. (Tese) Doutorado – Faculdade
de Educação, Universidade de São Paulo, 2015, 333 p.

Esta pesquisa objetivou analisar o lugar que ocupam as questões de gênero e da


sexualidade na trajetória pessoal, profissional e nas práticas escolares de docentes
egressos/as do Curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), no estado do Maranhão. A
História Oral de Vida e a História Oral Temática, conforme sugestões de Meihy e Holanda
(2011) foram utilizadas na organização do percurso metodológico, entrevistando-se
quatro professoras e três professores que realizaram o Curso GDE ofertado pela
Universidade Federal do Maranhão (UFMA) no biênio 2009-2010. As entrevistas
possibilitaram circunscrever o objeto de estudo e delinear a perspectiva de análise para
sustentar a pertinência da abordagem proposta. Como aporte teórico, adotou-se
principalmente os estudos de Pierre Bourdieu e seus conceitos de habitus, campo,
dominação masculina e violência simbólica, dentre outros que foram identificados nas
trajetórias percorridas. Destacam-se as influências da família, da escola e da igreja na
construção e constituição dos habitus dos sujeitos que colaboraram na pesquisa. São
discutidas questões de gênero e sexualidade estudadas (ou não) nos cursos de
licenciatura realizados pelos colaboradores/as do estudo. Problematizam-se as
representações que os sujeitos possuem acerca das questões de gênero e sexualidade,
tanto nos processos de formação, como em suas práticas escolares, destacando-se
indícios de construção dos gêneros e das sexualidades nos processos escolares vividos.
São discutidos alguns dos desafios enfrentados na UFMA pela equipe que integra o
trabalho pedagógico de formação continuada no curso GDE. Por fim são apresentados e
analisados os impactos do curso nas trajetórias percorridas pelos/as professores/as
colaboradores/as deste estudo, destacando-se alguns dos obstáculos encontrados no
caminho, bem como as identificações e achados nos seus percursos. Ao recorrer a noção
de habitus e ao considerar a perspectiva do gênero e da sexualidade, foi possível
identificar traços importantes na construção dos modos de agir dos/as
colaboradores/as em suas trajetórias percorridas e nas práticas escolares que
desenvolvem.

Palavras chave: Gênero. Sexualidade. Curso Gênero e Diversidade na Escola. Habitus.


Práticas Escolares.

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ABSTRACT

SILVA, Sirlene Mota Pinheiro da. Decipher me! Don´t gobble me! Gender and
sexuality in the plots of memories in the school practices. (Dissertation) PhD –
School of Education, University of São Paulo, 2015, 333 p.

The purpose of this research is to analyze the place of gender and sexuality issues in the
personal and professional trajectory and in the school practices of teachers who took the
Course on Gender and Sexuality at School (GDE), in the state of Maranhão. Oral History of
Life and Thematic Oral History, according to suggestions by Meihy and Holanda (2011),
were utilized in organizing the methodological rouse, with interviews of four female
teachers and three male teacher who took the GDE Course provided by the Federal
University of Maranhão (UFMA) in the years 2009-2010. The interviews allowed me to
circumscribe the object of study and outline the perspective of analysis, aspiring to hold
the pertinence of the approach proposed. As theoretical input, I have adopted mainly the
studies by Pierre Bourdieu and his concepts of habitus, field, male domination and
symbolic violence, among others that were perceived in the trajectories followed.
Highlights are the influence by the family, the school and the local church in the building
and constitution of the habitus of the subjects who cooperated in the research. I discuss
the gender and issues that were studied (or not) in the graduation courses taken by the
interviewees. I address and problematize the notions that the subjects have about
gender and sexuality issues both the in the processes of their teacher education, and in
their school practices, pointing out the signs of construction of gender and sexuality in
the school processes they had experienced. I discuss some of the challenges faced by
UFMA and the team that performs the pedagogical work of continued teacher
development in the GDE course. Finally, I present and analyze the impacts of the course
on the trajectories taken by the teachers who cooperated with this study/, with a
highlight to some of the obstacles found along the path, as well as the identifications and
findings in their routes. By recurring to the concept of habitus and by taking into
consideration the perspective of gender and sexuality, it was possible to identify
important features in the building of the ways the interviewees act in the trajectories
they have made and in the school practices they develop.

Key words: Gender. Sexuality. Course on Gender and Sexuality in the School. Habitus.
School Practices.

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RÉSUMÉ

SILVA, Sirlene Mota Pinheiro da. Déchiffrez-moi! Ne m´avalez pas! Genre et la


sexualité dans les trames des souvenirs et dans les pratiques scolaires. –Thèse de
doctorat à la Faculté de l’Éducation, Université de São Paulo, 2015, 333 p.

Cette recherche a pour objectif d’analyser le lieu occupé par les questions du genre et de
la sexualité dans la trajectoire personnelle, professionnelle et dans les pratiques
scolaires d’enseignants originaires du cours “Genre et diversité dans les écoles” ( GDE),
dans l’État du Maranhão. L’histoire orale de vie et l’histoire orale thématique, selon les
suggestions de Meihy et Holanda (2011) ont été utilisées dans l´organisation du
parcours méthodologique, ayant interviewé quatre (4) enseignantes et trois (3)
enseignants qui ont suivi le cours GDE à l’ Université Federal du Maranhão (UFMA) au
courant des années 2009-2010. L´analyse des entrevues a permis de circonscrire l´objet
d’étude et d’ébaucher la perspective d’analyse afin de soutenir la pertinence d’abord
proposé. Comme apport théorique, on a surtout adopté les études de Pierre Bourdieu et
ses concepts d’habitus, de champ, de domination masculine et de violence symbolique
entre autres concepts qui ont été identifiés dans la trajectoire de la recherche. Les
influences de famille se distinguent, ainsi que celles de l’école et de l’église en ce qui
concerne la construction et la constitution des pratiques scolaires auprès des personnes
qui ont collaboré á la recherche. On a discuté les questions du genre et de la sexualité
étudiées (ou non) dans les cours de licence faits par les collaborateurs et collaboratrices
à cette étude. Les représentations que les personnes ont au sujet des questions du genre
et de la sexualité ayant debatues autant dans les processus de formation que dans les
pratiques scolaires: des índices de construction du genre et des sexualités sont mis en
relief dans les processus scolaires vécus. On a discuté sur quelques défis mis á l’épreuve
á l’UFMA par l’équipe qui intègre le travail pédagogique de formation professionnelle
dans le cours GDE. Finalement, on a présenté et analysé les impacts du cours , dans les
trajectoires parcourues par les enseignants et enseignantes, les collaborateurs et
collaboratrices de cette étude: on distingue quelques obstacles sur le chemin, ainsi que
les identifications et les trouvailles dans leurs parcours. En faisant appel á la notion
d’habitus et en considérant la perspective du genre et de la sexualité, il a été possible
d’identifier des traits importants dans la construction de la façon d’agir des
collaborateurs et collaboratrices dans leurs trajectoires trajectoires parcourues et dans
les pratiques scolaires qu’ils développent.

Mots clés: Genre. Sexualité. Cours genre et diversité dans les écoles. Habitus. Pratiques
scolaires

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Produções apresentadas no Grupo de Estudo (GE) e Grupo de


Trabalho (GT) 23 da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-
Graduação em Educação (ANPEd) 48

Quadro 2 - Perfil dos/as colaboradores/as da pesquisa 75

Quadro 3 - Estudos sobre mulheres, feminismos e gênero 112

Quadro 4 - Síntese das proposições acerca da Ética e Cidadania nas


escolas 176
Quadro 5 - Modalidades do Curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE) 191

Quadro 6 - Fragmentos do Fórum sobre Gênero 1 no Ambiente Virtual de


Aprendizagem (AVA) da Universidade Federal do Maranhão
(UFMA) - (Turma de Rachel Bonfim – Imperatriz) 202
Quadro 7 - Fragmentos do Fórum sobre Sexualidade 1 no Ambiente
Virtual de Aprendizagem da UFMA - (Turma de Tatiane Sales –
Porto Franco) 212
Quadro 8 - Fragmentos do Fórum sobre Sexualidade 1 no Ambiente
Virtual de Aprendizagem da UFMA - (Turma de Maria das
Dores – Imperatriz) 217

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - O cone da Memória 70

Figura 2 - Divisão e subdivisão do grupo entrevistado 74

Figura 3 - Gráfico com ingressantes no Programa GDE no Brasil 189

Figura 4 - Antiga configuração dos cursos de formação continuada da


Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (SECADI) 190

Figura 5 - Nova configuração dos cursos de formação continuada da


SECADI 191

Figura 6 - Instituições de Ensino Superior que ofertaram o Curso GDE 192

Figura 7 - Antiga e nova configuração do Curso GDE na UFMA 198

Figura 8 - Desenvolvimento das atividades do curso GDE 199

Figura 9 - Sala Virtual do Curso GDE/UFMA 200

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AAD Análise Automática dos Discursos


AC Análise de Conteúdo
ANPEd Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação
AVA Ambiente Virtual de Aprendizagem
BM Banco Mundial
CAPES Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CCSo Centro de Ciências Sociais
CEFET Centro Federal de Educação Tecnológica
CEMES Curso de Especialização em Metodologia do Ensino Superior
CLAM Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CONSEPE Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão
DE-I Departamento de Educação I
EAD Educação a Distância
ENEPe Encontro Nacional dos Estudantes de Pedagogia
ENOEPe Encontro Nordestino dos Estudantes de Pedagogia
EPENN Encontro de Pesquisa Educacional do Norte e Nordeste
FAME Faculdade de Medicina de Barbacena
FAPEMA Fundação de Amparo à Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico do
Maranhão
FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FCT Fundação para a Ciência e a Tecnologia
FEF Fundação Educacional de Fernandópolis
FEUSP Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
FNDE Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação
FORPRED Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação em Educação
FURB Fundação Universidade Regional de Blumenau
FURG Fundação Universidade Federal do Rio Grande
GDE Gênero e Diversidade na Escola
GE Grupo de Estudo
GEMGe Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações de
Gênero
GPP-GeR Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça
GT Grupo de Trabalho
HIV Vírus da Imunodeficiência Humana
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IFMA Instituto Federal do Maranhão
LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros
MEC Ministério da Educação

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NEHO Núcleo de História Oral


PARFOR Plano Nacional de Formação de Professores
PCN Parâmetros Curriculares Nacionais
PMJP Prefeitura Municipal de João Pessoa
PROEX Pró Reitoria de Extensão
PUC Pontifícia Universidade Católica
RA Reunião Anual
REDOR Rede Feminista Norte e Nordeste de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher e
Relações de Gênero
SECAD Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
SECADI Secretaria Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão
SEDUC Secretaria de Educação do Estado do Maranhão
SEED Secretaria de Ensino a Distância
SEPPIR Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
SPE Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas
SPM Secretaria Especial de Políticas para Mulheres
TIC’s Tecnologias da Informação e Comunicação
UAB Universidade Aberta do Brasil
UDESC Universidade do Estado de Santa Catarina
UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana
UEM Universidade Estadual de Maringá
UEMA Universidade Estadual do Maranhão
UEPB Universidade Estadual da Paraíba
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFC Universidade Federal do Ceará
UFES Universidade Federal do Espírito Santo
UFF Universidade Federal Fluminense
UFFS Universidade Federal da Fronteira do Sul
UFGD Universidade Federal da Grande Dourados
UFJR Universidade Federal de Juiz de Fora
UFLA Universidade Federal de Lavras
UFMA Universidade Federal do Maranhão
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFMS Universidade Federal do Mato Grosso do Sul
UFOP Universidade Federal de Ouro Preto
UFPA Universidade Federal do Pará
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPI Universidade Federal do Piauí
UFPR Universidade Federal do Paraná
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRN Universidade Federal de Rio Grande do Norte
UFSC Universidade Federal de Santa Catarina

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UFSE Universidade Federal do Sergipe


UFT Universidade Federal de Tocantins
UFU Universidade Federal de Uberlândia
UGF Universidade Gama Filho
ULBRA Universidade Luterana do Brasil
UnB Universidade de Brasília
UNEB Universidade do Estado da Bahia
UNESA Universidade Estácio de Sá
UNESP Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNIJUÍ Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul
UNISINOS Universidade do Vale do Rio dos Sinos
UNISUL Universidade do Sul de Santa Catarina
UNIVALE Universidade do Vale do Itajaí
USP Universidade de São Paulo
UTFPR Universidade Tecnológica Federal do Paraná

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21

SUMÁRIO
p.
O PONTO DE PARTIDA ............................................................................................................ 23

CAPÍTULO 1 - CAMINHOS PERCORRIDOS NA REALIZAÇÃO DA


PESQUISA ........................................................................................................................ 43

1.1 Gênero e sexualidade na educação escolar: um levantamento


das produções acadêmicas ....................................................................... 47
1.1.1 GT 23 - “Gênero, Sexualidade e Educação” da ANPED ............................... 47

1.2 Procedimentos adotados no estudo: vários caminhos, algumas


escolhas............................................................................................................ 64
1.2.1 História oral .................................................................................................................. 66
1.2.2 História oral de vida e história oral temática ................................................. 72
1.2.3 A escolha dos/as colaboradores/as da pesquisa ......................................... 73
1.2.4 As entrevistas e seu tratamento ........................................................................... 76

CAPÍTULO 2 - O INÍCIO DAS TRAJETÓRIAS PERCORRIDAS .......................... 85

2.1 Conhecendo os/as colaboradores/as e suas histórias .................... 92

2.2 Silêncios, conselhos e diferentes verdades no processo de


socialização primária na família ............................................................. 106
2.2.1 (In) existência de diálogos sobre questões da sexualidade ..................... 108
2.2.2 Dominação masculina e relações sociais de gênero .................................... 111
2.3 Entre os muros da escola e as tramas das lembranças ................... 117
2.3.1 Gêneros e sexualidades: demarcações e (in) compreensões .................. 119
2.3.2 Sexualidade na escola: o corpo em destaque .................................................
125
2.4 A Religião e os habitus incorporados no desenvolvimento das
sexualidades .................................................................................................. 131

CAPÍTULO 3 - GÊNERO E SEXUALIDADE ENTRE A FORMAÇÃO DOCENTE


E AS PRÁTICAS ESCOLARES ...................................................................................... 139

3.1 Vidas transformadas pelo tempo: casos, acasos e paixões no


caminho da docência .................................................................................. 150
3.2 Gênero e sexualidade na formação docente: um percurso
possível ............................................................................................................ 155

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22

3.3 Possibilidades nas práticas escolares ................................................... 163


3.3.1 Ética e Cidadania como disciplina escolar? ..................................................... 173
3.4 Elementos da construção dos gêneros e das sexualidades nos
processos educativos .................................................................................. 176

CAPÍTULO 4 - O CURSO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA NAS


TRAJETÓRIAS DOS/AS ALUNOS/AS PROFESSORES/AS.................................. 183

4.1 O projeto do curso GDE: um pouco de sua história e de sua


organização curricular ............................................................................... 186

4.2 A oferta do GDE na UFMA: do proclamado ao efetivado ................. 197

4.3 Vivências nas trajetórias dos/as colaboradores/as ......................... 207


4.3.1 Identificações e achados nos percursos ........................................................... 219
4.3.2 (Des) encontros e obstáculos nos caminhos .................................................. 214
4.3.3 Subsídios nas trajetórias e nas práticas escolares........................................ 220

O PONTO DE CHEGADA: passos para um novo caminhar ............................. 229


REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 235
ANEXO - Parecer do comitê de ética da FEUSP ................................................. 247
APÊNDICE A - Roteiro de Entrevista: Cursistas egressos/as do GDE ......... 249
APÊNDICE B - Termo de consentimento livre e esclarecido ........................ 253
APÊNDICE C - Histórias vividas e contadas pelos/as colaboradores/as
(transcriações das entrevistas)............................................................................... 255
APÊNDICE D - Temas abordados pelos/as colaboradores/as ..................... 331
APÊNDICE E - Categorias identificadas e relacionadas aos temas
abordados ...................................................................................................................... 333

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23

O PONTO DE PARTIDA...

O ponto de partida deve ser: “Não sei.”


O que é uma entrega total.
(Clarice Lispector)

_____________________________________________________________________________________________________

.
24

.
25

Nesta tentativa de me explicar e de me compreender, poderei apoiar-


me, no entanto, nos fragmentos de auto objetivação que deixei
dispersos no meu caminho, ao longo de toda a minha investigação, e
que tentarei aqui aprofundar e também sistematizar.
Pierre Bourdieu (2004b, p. 13)

“Decifra-me ou te devoro". Este era o desafio da Esfinge de Tebas. O enigma foi


proposto pela esfinge a Édipo e perguntava qual era o animal que pela manhã andava de
quatro patas, à tarde, em duas, e ao anoitecer em três. Édipo o decifrou respondendo que
correspondiam ao nascimento e infância, juventude, maturidade e velhice do ser
humano. Foi quando começou a ser devorado aos poucos, de modo lento, gradativo e
contínuo. Castigado pelos deuses, ficou cego, foi preterido e abandonado pelos filhos,
passando a ser acompanhado apenas de sua filha Cassandra, que tinha o dom da
premonição, mas sobre a qual recaía uma maldição que dizia da sua boca sairia a
verdade na qual ninguém acreditaria.
Da mitologia grega emergiu a inspiração para identificação de outros enigmas: o
enigma de ser mulher, o enigma de ser homem, compreender-se mulher ou homem para
além de “um destino biológico”, o enigma em torno da sexualidade e da diversidade
sexual, dentre muitos outros que ainda parecem indecifráveis na atualidade. Tomo como
inspiração esses enigmas, bem como os constantes apelos por compreensão e aceitação
de pessoas que não são compreendidas por suas diferenças, delas se destacam as que
fogem do padrão normativo, ou melhor, heteronormativo1 imposto pela sociedade e as
que lutam contra os preconceitos e discriminações na escola e no convívio social, daí a
escolha do título desta tese: “Decifra-me! Não me devore!” Compreendo, ainda, que se
não nos decifrarmos, não teremos como crescer em consciência porque o
autoconhecimento é o primeiro passo para que possamos nos transformar em seres
livres e autônomos, que compreendem a diversidade humana, sem praticar qualquer
tipo de violência.

1
Heteronormativo: trata-se de uma palavra composta pelos vocábulos hetero e norma. Hetero significa
outro, diferente, ou seja, o antônimo de homo, que significa igual. A heteronormatividade visa regular e
normatizar modos de ser e de viver os desejos corporais e a sexualidade de acordo com o que está
socialmente estabelecido para as pessoas, numa perspectiva biologicista e determinista. Assim, há apenas
duas possibilidades de locação das pessoas quanto à anatomia sexual humana, ou seja, feminino/fêmea ou
masculino/macho. Haveria, conforme ressalta Guacira Louro (2003), uma lógica na representação
hegemônica do gênero e da sexualidade que definiria uma coerência “natural” e “inerente” entre sexo-
gênero-sexualidade; isto é, cada sexo só poderia interessar-se pelo sexo oposto (sexualidade
heterossexual) e este interesse seria ratificado pela possibilidade procriativa.

.
26

Na tentativa de me decifrar e me explicar, assim como Bourdieu (2004b) apoia-


se nos fragmentos de auto objetivação que deixou dispersos em seu caminho, ao propor
contar o ponto de partida da caminhada rumo ao desenvolvimento desta pesquisa, era
inundada por recordações da infância e da adolescência, pela forma abrupta com que
tive que assumir responsabilidades adultas, o abandono da escola, dentre outras
experiências em minha trajetória2 de vida pessoal, acadêmica e profissional. Tais
recordações, por vezes traziam angústias e tristezas, outras vezes faziam emergir uma
enorme sensação de vitória, por ter me libertado da opressão que sofria, pela conquista
do empoderamento, por inúmeros desafios vencidos e que me proporcionavam, e
proporcionam, imensa satisfação.
As objeções de Bourdieu ao caráter explicativo das histórias de vida e das
reconstruções autobiográficas dizem respeito, principalmente, à lógica que se introduz a
posteriori na história que se narra. Em “A Ilusão Biográfica”, originalmente publicada em
1986, apresenta o problema indicando que essas limitações inerentes às histórias de
vida devem servir para que os/as pesquisadores/as se acautelem a tais fontes. A questão
é complexa e no recurso à sua argumentação não pretendia invalidar as reconstruções,
depoimentos e entrevistas. Em obra posterior (Esboço de auto-análise) ele sustenta em
epígrafe que não fará autobiografia. A insistência é de novo um alerta, mas o texto é
exemplar. Trata-se de recuperar ao longo de sua própria trajetória os momentos-chave
que enraizaram a busca e a construção de explicações potentes em seu texto sociológico.
Trata-se de dar conta da aplicação dos conceitos e explicações à compreensão do
processo pelo qual a obra se tornou possível como o foi.
Assim, a questão fica sendo a de saber qual é o recurso possível às fontes
autobiográficas e qual conhecimento se pode construir mediante as mesmas. O texto
intitulado “Compreender” que integra a polêmica obra “A Miséria do Mundo” constitui
uma contribuição rica para o entendimento do problema, pois explica com propriedade
as dificuldades e riscos de se elaborar pesquisas nas quais se toma o conhecimento das
histórias pessoais como núcleo informativo. Pois bem, a história das outras pessoas e a
história de si exigem recuos e rigores e passam a integrar tentativas de interpretação
com objetivos de elaboração do conhecimento científico.

2
Refiro-me à noção de trajetória cunhada por Bourdieu (1997), considerando-a como uma série de
posições sucessivamente ocupadas em um espaço social e compreendendo-a a partir de um conjunto de
relações objetivas, vinculadas ao conjunto de outros sujeitos envolvidos: pai, mãe, marido, professores/as,
amigos/as , dentre outros.

.
27

Pretendo, ao recorrer às minhas lembranças, relatar fatos que ilustram o


processo pelo qual me constituí estudiosa das questões de gênero e da sexualidade,
temáticas que me dedico desde a graduação no curso de Pedagogia da UFMA. Todavia,
confesso as minhas apreensões – ao realizar uma tentativa de interpretação da
experiência vivida – que vão muito além do temor de ser mal compreendida, ou mesmo
de expor alguns sentimentos nunca antes revelados.
Lembro-me que nas experiências vivenciadas na infância e juventude, em
diferentes ocasiões – pessoais e sociais – pouco se falava acerca do desenvolvimento da
sexualidade ou quando se falava, era para inibir ações referentes aos prazeres do corpo,
por serem entendidos como pecado, consequentemente, proibidos. Tais fatos levam-me
a perceber contradições. Dentre elas, as que mais me chama a atenção referem-se, por
um lado, aos prazeres negados, aos segredos, mitos3 e tabus4 em torno da sexualidade.
Por outro lado, esse prazer e essa sexualidade eram espetacularizados em diversos
espaços sociais. Inquietavam-me esses desacordos entre esconder e mostrar, omitir e
permitir, viver e denegar.
Não me esqueço da sensação de impotência e do prazer da descoberta cotidiana
que fui fazendo nas experiências que tive na infância, na família, na escola, na religião, no
trabalho, no casamento, na universidade. Tudo isto no trilhar por caminhos
desconhecidos, entre culturas, obrigações, prazeres, direitos, relações, sensações,
sentimentos, que desenham o mosaico da vida humana, de minha trajetória pessoal,
acadêmica e profissional, sobretudo como professora.
Dentre as recordações da infância, destaco minha primeira escolinha, na própria
residência da professora. Havia crianças de várias idades e níveis de escolarização numa
mesma sala, ou melhor, na varanda de sua casa. A professora nos separava por idade e
sexo e nos punha sentados/as numa mesa bem grande, com bancos em volta, para que
realizássemos as atividades que já havia escrito previamente no caderno de aula. Pois à
época tínhamos dois cadernos: um de aula, outro de casa.
3
Mito é um fenômeno com sentido difuso, pouco nítido. Mythos, tem origem grega, significando “fábula”.
De acordo com Abbagnano (2007), além da acepção geral de "narrativa", na qual essa palavra é usada, do
ponto de vista histórico é possível distinguir três significados do termo: como forma atenuada de
intelectualidade; como forma autônoma de pensamento ou de vicia; como instrumento de estudo social.
“O que o Mito diz — supõe-se — não é demonstrável nem claramente concebível, mas sempre é claro o
seu significado moral ou religioso, ou seja o que ele ensina sobre a conduta do homem em relação aos
outros homens ou em relação à divindade” (p. 673).
4
Tabu é um termo de origem polinésia e significa “proibir ou proibido e que passou a indicar a
característica sagrada da proibição em todos os povos primitivos e qualquer proibição não motivada em
todos os povos” (ABBAGNANO,2007, p. 947).

.
28

Aos seis anos de idade já sabia ler, escrever e contar pequenos números. Com
isso era considerada alfabetizada e fui matriculada na primeira série primária, no Grupo
Escolar Municipal Leonor Correia no bairro onde morávamos: Trindade, situado em São
Gonçalo – RJ. Enfim, ingressei numa escola bem mais ampla, na qual as crianças eram
separadas por série e havia carteiras duplas para sentarmos: duas meninas ou dois
meninos. Achava o máximo! Estudei nesse Grupo Escolar da 1ª a 4ª série primária, hoje
denominado 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental.
Lembro-me que nessa escola, ouvia muitos cochichos sobre a diretora: uma
mulher rude, sempre zangada e temida por todas as crianças. Diziam que era uma
“mulher macho”. Recordo que acreditava que ela havia recebido essa denominação
devido ao corte de cabelo bem baixinho, a forma de se vestir – sempre com calças jeans e
camisas de manga comprida – além de suas atitudes conosco, pois gritava e brigava por
qualquer motivo. Tais características eram consideradas masculinas.
É nesta lógica hegemônica, na qual homens e mulheres devem se comportar de
modo diferenciado, porque nasceram com distintos órgãos genitais que se inserem a
maior parcela da sociedade. E aqui cabe recorrer a Louro (2004, p. 87), ao nos lembrar
de que os corpos são “produzidos através de uma série de artefatos, acessórios, gestos e
atitudes que uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados e legítimos” e
são considerados “normais” e “comuns”. As pessoas que fogem a esta regra, passam a ser
estereotipadas.
Ao concluir a 4ª série primária, tive que realizar uma prova de admissão para
cursar o ginasial no Colégio Industrial Henrique Lage no bairro Barreto em Niterói – RJ.
No ano que ingressei, havia poucas meninas na escola, apenas as da 5ª série, pois era o
primeiro ano que admitiam garotas. Então, éramos novidade, principalmente para os
meninos e rapazes, que fixavam os olhares, cochichavam, sorriam... Não entendia muito
bem aquela situação, mas nada dizia.
Outro fato que vale rememorar, foi quando conheci um rapaz, soldado do
exército e trocávamos olhares, quase todos os dias, durante o trajeto, no ônibus, até o
colégio. Na época tinha 12 anos de idade e era moda as meninas paquerarem e
namorarem “recos”5. Até que nos encontramos, por acaso, durante um desfile de
carnaval, que acontecia numa pracinha próxima a nossa residência. Minha mãe nos

5Recos são soldados novatos do serviço militar. Esses rapazes eram reconhecidos e diferenciados dos
demais devido ao corte de cabelo bem baixinho e raspado na nuca.

.
29

levava para brincar e assistir aos desfiles dos blocos carnavalescos e eu sempre dava um
jeitinho de sair de perto de seus olhares. Foi quando encontrei esse rapaz e trocamos
alguns beijinhos. Mas, para minha surpresa, minha mãe havia me seguido. Não teve jeito,
ela foi ao nosso encontro e disse: “O que você tá pensando rapaz? Ela é moça de família!
Se quiser namorar, tem que ir a nossa casa e pedir permissão a seu pai”. E, ele, muito
nervoso, pediu desculpas e agendou, com minha mãe, um dia para ir a nossa residência
falar com meu pai. Eu esperava que não fosse, mas, ele foi. Embora não tivéssemos
conversado anteriormente, ele, com a voz trêmula, disse a meu pai que tinha boas
intenções e me pediu em namoro. Eles combinaram os dias em que iríamos namorar, em
minha residência, aos olhos de minha mãe e irmãos.
Em momento algum, ele, minha mãe ou meu pai, perguntaram se eu queria
namorá-lo ou se concordava com o que estava sendo proposto. Parece que minha voz, ou
minha decisão em nada importava, como se fosse um objeto que estava sendo negociado,
diante de uma determinada situação. Hoje entendo que aquelas atitudes, tanto de meu
pai, de minha mãe e também do rapaz, corresponde a um habitus6 adquirido e refere-se
ao que Bourdieu (2010) intitula de dominação masculina, sendo esta construída a partir
de uma perspectiva simbólica, pois seria uma forma particular de violência simbólica.7
Segundo Bourdieu (2007b), agimos e nos comportamos em função do habitus, sendo
este uma interiorização da objetividade social que produz uma exteriorização de

6
Na acepção de Bourdieu (2001a), habitus é um sistema de disposições, modos de perceber, de sentir, de
fazer, de pensar, que nos levam a agir de determinada forma em uma circunstância dada. As disposições
são estruturadas (no social) e estruturantes (nas mentes). O habitus é adquirido nas e pelas experiências
práticas (em condições sociais específicas de existência), constantemente orientado para funções e ações
do agir cotidiano. O habitus inclui tanto as representações sobre si e sobre a realidade, como também o
sistema de práticas em que a pessoa se inclui, os valores e crenças que veicula, suas aspirações,
identificações etc. O habitus opera na incorporação de disposições que levam o indivíduo a agir de forma
harmoniosa com o histórico de sua classe ou grupo social, e essas disposições incorporadas se refletem
nas práticas objetivadas do sujeito (ORTIZ, 1994; NOGUEIRA & NOGUEIRA, 2002, 2004; SETTON, 2002;
VASCONCELOS, 2002; ANDRADE, 2007).
7 Segundo Bourdieu (2007b; 2010) a violência simbólica é entendida como mecanismo que cria, legitima
e reproduz a desigualdade social; seu uso é dirigido por um indivíduo, ou grupo, que controla o poder
simbólico sobre os outros, fabricando crenças no processo de socialização, induzindo os dominados a
enxergarem e a avaliarem o mundo de acordo com os critérios e padrões definidos pelos dominantes.
Segundo Bourdieu (2010, p. 47) “a adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante (e,
portanto, à dominação) quando ele não dispõe, para pensá-la e para se pensar, ou melhor, para pensar sua
relação com ele, mais do que instrumentos de conhecimento que ambos têm em comum e que, não sendo
mais que a forma incorporada da relação de dominação, fazem esta relação ser vista como natural; ou, em
outros termos, quando os esquemas que ele põe em ação para se ver e se avaliar, ou para ver e avaliar os
dominantes (elevado/baixo, masculino/feminino, branco/negro etc) resultam da incorporação de
classificações assim naturalizadas, de que seu ser social é produto.

.
30

interioridade. Não só está inscrito no indivíduo, como o indivíduo se situa em um


determinado universo social: um campo8 que circunscreve um habitus específico.
Naquele momento, eram as palavras de meu pai, o provedor da família, que
tinha mais valor. Eu e os demais membros, teríamos que nos sujeitar ao seu poder de
patriarca no campo familiar. Então, começamos um namoro que acontecia sempre na
sala, às quartas-feiras, aos sábados e domingos. No domingo era permitido que chegasse
a nossa casa à tarde, ou para almoçar conosco. Todavia, não estava apaixonada e muitas
das suas atitudes não me agradavam. Ensaiei e tentei terminar o relacionamento
inúmeras vezes, mas, me faltava coragem.
Cerca de três anos depois, quando tinha 15 anos de idade, uma “surpresa”: havia
engravidado. Logo após a notícia, meu pai teve uma conversa com meu namorado,
dizendo que teríamos que casar o quanto antes. Nos dias consequentes, minha mãe
começou os trâmites, tanto no cartório, como na igreja, para que nosso casamento
acontecesse antes da “barriga aparecer”. Marcaram a data e em menos de 2 meses
estávamos casados e morando com minha família. Com isso, também abandonei a escola
quando ainda cursava, pela segunda vez, o 1º ano do Segundo Grau, pois havia sido
reprovada no ano anterior.
Vale ainda mencionar que minha mãe não era incentivadora dos meus estudos,
pois dizia que menina não precisava aprender muito, o que precisava saber era cuidar
muito bem da casa, do marido e dos/as filhos/as. Ela própria, sempre foi dedicada ao lar,
embora, lavasse roupas de outras famílias, como forma de ajudar nos gastos da casa,
como ela mesma dizia. Conforme aponta Bourdieu (2010, p. 103):

É, sem dúvida, à família que cabe o papel principal na reprodução da


dominação e da visão masculinas; é na família que se impõe a
experiência precoce da divisão sexual do trabalho e da representação
legítima dessa divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem.

8
Os campos são o lugar de duas formas de poder que correspondem a duas espécies de capital cientifico:
de um lado, um poder que se pode chamar temporal (ou político), poder institucional e institucionalizado
que está ligado a ocupação de posições importantes nas instituições científicas, direção de laboratórios ou
departamentos, pertencimento a comissões, comitês de avaliação etc., e ao poder sobre os meios de
produção (contratos, créditos, postos etc.) e de reprodução (poder de nomear e de fazer as carreiras) que
ela assegura. De outro, um poder específico, "prestigio" pessoal que é mais ou menos independente do
precedente, segundo os campos e as instituições, e que repousa quase exclusivamente sobre o
reconhecimento, pouco ou mal objetivado e institucionalizado, do conjunto de pares ou da fração mais
consagrada dentre eles (BOURDIEU, 2004a, p. 35).

.
31

Bourdieu (2010) insiste em que há uma divisão sexual quanto às visões do


trabalho no público e no privado. A primeira visão, mais aberta ou abrangente correlata
ao corpo masculino e a segunda, mais restritiva e limitadora pertencente ao feminino.
Essa divisão dos sexos está na “ordem das coisas”, aparecendo nitidamente nos
símbolos9, expressando e manifestando relações de poder. De acordo com o autor, as
relações de poder também são influenciadas pelo habitus, ou seja, pelas estruturas
mentais incorporadas nos sujeitos por meio da socialização10 ao longo de sua vivência.
Volto a minha trajetória, lembrando que um ano depois do nascimento de nossa
filha, em 1982, pudemos alugar uma casa e nos mudar. De repente, não mais que de
repente, deixei de ser uma criança para assumir responsabilidades de uma mulher
adulta, dona de casa e mãe de família. Tais mudanças tornaram-se um desafio que
precisava enfrentar.
Assim, foram se construindo e se constituindo minhas disposições relativas a
condição feminina. Pouco a pouco fui percebendo as particularidades e os instrumentos
de conhecimento que contribuíram na construção de meu mundo objetivo. Muitas vezes,
era forçada a utilizar a linguagem da estratégia para designar as sequências das ações
que me orientava, para uma determinada finalidade. De acordo com Bourdieu (2001a, p.
169) isso “significa afirmar que o agente nunca é por inteiro o sujeito de suas práticas”.
Para ele, o senso prático nos permite agir de acordo com a necessidade. Isto porque os
esquemas de ação e do habitus, princípios de visão e divisão do mundo a que se ajustam,
“também permitem adaptar-se incessantemente a contextos parcialmente modificados e
construir a situação como um conjunto dotado de sentido” (p. 170).
Aos 18 anos, engravidei de nosso segundo filho e, como não queriam que tivesse
uma terceira gravidez, os pais de meu marido logo trataram de encontrar um médico
que aceitasse fazer uma laquEaDura de trompas após o nascimento do bebê. Decisão
com relação a qual mais uma vez, não tive voz, não tive vez e não sabia ao menos o que

9
Os símbolos são instrumentos por excelência da “integração social”: enquanto instrumentos do
conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social que
contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração “lógica” é a condição da
integração “moral”. (BOURDIEU, 2007b, p. 10).
10
Para os limites desta pesquisa, entendo socialização como um conjunto de práticas e trocas culturais
entre os indivíduos e entre estes e a sociedade. A socialização como um espaço de produção, difusão e
reprodução de formas de pensar, de sentir e de se relacionar, tende a considerar as esferas sociais, como a
família, a escola e a igreja, como matrizes da cultura. Também deve-se considerar a socialização como
processo formativo de disposições que permitem as experiências dos sujeitos. Estas disposições, de
acordo com Dubar (1997) circulam nas esferas sociais e contribuem na construção da identidade dos
indivíduos.

.
32

queria, o que podia, o que sentia... Ainda acreditava que assim como as crianças deviam
obedecer aos pais, a mulher deveria obedecer ao marido. Fato que nos foi ensinado
desde a mais tenra idade e que também legitimava certa dominação masculina.
Nesse sentido, Bourdieu percebe que muitas mulheres, apesar de terem sofrido
os efeitos da dominação, podem contribuir para a sua reprodução porque incorporam as
regras de um poder que se alastrou como algo do masculino.

Para que a dominação simbólica funcione, é preciso que os dominados


tenham incorporado as estruturas segundo as quais os dominantes
percebem que a submissão não é um ato da consciência, suscetível de
ser compreendido dentro de uma lógica das limitações ou dentro da
lógica do consentimento, alternativa “cartesiana” que só existe quando a
gente se situa dentro da lógica da consciência. (BOURDIEU, 2007b, p.
36).

Assim, estudar um conceito como dominação masculina, exige que se examinem


as categorias que constituem essa mesma dominação. Entendo que as vivi também e ao
perceber isto tento refazer as categorias incorporadas, tomando consciência dos efeitos
da violência simbólica sofrida.
Alguns anos depois, meus pais e meus irmãos mudaram-se para São Luís – MA.
Logo em seguida, eles convidaram meu marido, que na época havia perdido seu
emprego, a participar de uma sociedade num comércio que estavam montando naquele
município. Foi quando também nos mudamos para o Maranhão.
Nos anos seguintes, vivíamos com certa tranquilidade, segundo os padrões de
uma família nuclear: eu cuidava da casa, do marido, da filha e filho. Todavia, sentia-me
infeliz, notava que algo me faltava, tanto em minha vida pessoal, escolar, como
profissional. Sofria preconceitos e discriminações, sobretudo devido a não ter concluído
sequer o 2º grau, atual Ensino Médio.
Dentre as discriminações sofridas, lembro que ouvia frases e questionamentos
como: “Você é tão bonita, mas tem tão pouca instrução”. “Você parece moça rica, por que
não concluiu os estudos?”. Comecei a refletir sobre a situação vivida e decidi retomar
minha formação escolar. Assim matriculei-me, no início do ano de 1997, num curso
supletivo de Ensino Médio, concluindo-o em julho de 1998. Além de acreditar que
estudar, sobretudo à noite, seria uma forma de passar mais tempo longe do marido, haja
vista que já não suportava a convivência com ele, sobretudo pelas agressões verbais –

.
33

entendidas também como violência simbólica – tanto comigo, como para com nossa filha
e nosso filho, adolescentes com 15 e 12 anos respectivamente.
Percebia que a retomada dos estudos poderia ser um fator de mudança em
minha condição de esposa, que se sentia oprimida e infeliz. Creio que tais fatores foram
determinantes na minha constituição como mulher que atualmente se entende
audaciosa. Hoje compreendo, conforme aponta Motta (2003, p. 104) que para uma
mulher se tornar audaciosa, “a trajetória que a desvia da condição social da submissão,
da opressão é, também, condição que torna possível o conhecimento e a explicação da
submissão nas várias modalidades em que ela ocorre”. Todavia, a constituição da
audácia não é o oposto de submissão, ela é uma construção possível, a partir das fissuras
e tensões que se vivencia.
Ao assumir esse poder e essa crença, pude subverter as regras postas e realizar
outra estratégia, mesmo sem ter concluído o curso supletivo de 2º Grau, realizei o exame
vestibular e fui aprovada para o Curso Pedagogia da UFMA. Isso aconteceu no mesmo
ano em que havia solicitado a separação ao meu marido. Pude então dedicar-me com
mais constância às leituras, o que contribuiu para o desenvolvimento da paixão por
aprender e por querer alçar voos mais altos.
Entendo ainda que aqueles acontecimentos vivenciados fizeram e fazem parte
do processo de construção de minha identidade11 e de meu habitus profissional. Isto
porque nossas práticas e disposições são o produto de nossa história social, que orienta
nosso olhar sobre o mundo e sobre nós mesmos, compondo, assim, nossa identidade.
O habitus instaura-se, então, pela interação do sujeito com a sociedade. Assim, a
construção e constituição do habitus passa a ser mediada pela coexistência de instâncias
produtoras de valores e de referências identitárias. Em minha trajetória acadêmica e
profissional, essas referências relacionam-se ao campo escolar, principalmente como
estudiosa das questões da sexualidade e de gênero.
Durante a trajetória no Curso de Pedagogia, tive contato com teorias
sociológicas e psicológicas, dentre outras. E o primeiro contato com os assuntos ligados
à sexualidade se deu nas aulas de Psicologia, logo nos primeiros semestres, através da

11
Utilizo o conceito de identidade elaborado por Melucci (1997; 2004), quando diz que produzimos nossa
identidade, integrando passado e presente na unidade e na continuidade de uma biografia individual. Para
ele a identidade pessoal se insere em uma complexidade, dada à particularidade das experiências
vivenciadas por um a um dos sujeitos. “A identidade é sistema e processo, porque o campo é definido por
um conjunto de relações e ao mesmo tempo possui a capacidade de intervir sobre si e de (re) estruturar-
se” (MELUCCI, 2004, p. 48).

.
34

teoria de Sigmund Freud (1856-1939) sobre o desenvolvimento psicossexual da criança.


Identifiquei-me com esses estudos ao relembrar minha trajetória desde a infância: os
ditos, não-ditos e interditos, a ausência desses assuntos na família e na escola, dentre
outras recordações que me instigaram a buscar um maior entendimento da questão,
culminando no trabalho monográfico intitulado “SEXUALIDADE NA ESCOLA: limites e
possibilidades dos educadores do ensino fundamental”. Este trabalho possibilitou-me
repensar alguns conceitos e avançar na complexidade dessa categoria, refletindo acerca
do papel dos/as educadores/as diante da temática Orientação Sexual12 que deveria ser
trabalhada nas escolas de Ensino Fundamental.
Desenvolvi o projeto desta monografia com sujeitos que participavam de
Oficinas Pedagógicas ministradas por mim em encontros de estudantes de Pedagogia,
como: Encontro Nordestino dos Estudantes de Pedagogia (ENOEPe) em Fortaleza – CE,
no ano de 2001; na III SEMANA DE PEDAGOGIA da UFMA em São Luís – MA no ano de
2002 e no XXII Encontro Nacional dos Estudantes de Pedagogia (ENEPe) em Salvador –
BA, também em 2002. As oficinas compreendiam dinâmicas, leitura e reflexão de textos,
discussões e debates entre os/as participantes.
Durante esse percurso, busquei apreender o porquê das pessoas terem
dificuldades de falar de sexo e sexualidade com as crianças e jovens. Para tanto, foi
realizado uma breve construção histórica da sexualidade e da repressão sexual,
utilizando-se as análises de Michel Foucault (1926-1984), notadamente em sua obra
História da Sexualidade I (1993); descrição das limitações que os/as educadores/as
enfrentam em relação à própria sexualidade, culminando com sugestões de trabalho
com Educação Sexual nas escolas. O referido trabalho foi apresentado no mês de
novembro de 2002.
Convém ressaltar que durante as aulas da graduação, dentre os/as
estudiosos/as que tratam da sexualidade humana tive contato apenas com os
relacionados à Psicanálise, a exemplo de Sigmund Freud, Wilhelm Reich (1897-1957) e
Carl Jung (1875-1961). Somente quando tentei encontrar, nas inúmeras estantes da
Biblioteca Central da UFMA, livros que tratassem da História da sexualidade, foi que me

12 Emprego esse termo devido ao fato de ser um dos Temas Transversais apresentados nos PCN’s,
instituídos pelo MEC em 1997 (BRASIL, 2000b). Contudo, após a década de 1990 tem havido ampla
discussão sobre o termo e muitas linhas de pesquisa e debates conceituam “orientação sexual” como
uma natureza de identidade ou identificação sexual de gênero (heterossexual, homossexual e bissexual).
Atualmente, de acordo com a perspectiva teórica e histórica, utilizam-se diferentes termos: Educação
Sexual; Educação para a Sexualidade; Educação em Sexualidade, dentre outros.

.
35

deparei com Michel Foucault (1926-1984). Naquele momento, o volume que trata da
História da Sexualidade I serviu de aporte teórico e histórico para a construção daquela
monografia e para outras pesquisas, como por exemplo a Dissertação do Mestrado em
Educação do Programa de Pós-Graduação da UFMA.
Iniciou-se ainda na graduação a minha preocupação com a banalização da
sexualidade, com o sexismo (preconceito em relação ao sexo), com a violência de gênero,
dentre elas a violência contra a mulher, além de outras preocupações relacionadas à
temática. Com isso, disponibilizei-me a oferecer minicursos, oficinas e palestras em
escolas e igrejas da cidade de São Luís – MA. Atuei também como professora em escolas
de educação básica, desenvolvendo projetos de educação sexual com alunos e alunas da
3ª série do Ensino Fundamental ao 2° ano do Ensino Médio, abordando durante as aulas
temas específicos de acordo com a faixa etária.
Percebi durante esses trabalhos a gama de dúvidas e inquietações que crianças
e adolescentes apresentavam em relação à sexualidade e o desejo de contar com pessoas
que pudessem esclarecer tais dúvidas sem receios, medos ou represálias. Nesse trajeto
também tive contato com questões referentes às relações de gênero, através da
participação no Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Mulheres e Relações de Gênero
(GEMGe) que faz parte da Linha de Pesquisa “Instituições escolares, saberes e prática
educativa” do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFMA.
Essa experiência me incentivou a desenvolver outro estudo monográfico, no ano
de 2005, no Curso de Especialização em Metodologia do Ensino Superior (CEMES), com
o tema “As relações de gênero no Curso de Pedagogia”. Esta monografia objetivou discutir
as desigualdades profissionais entre os sexos e os preconceitos e discriminações
(sexismo) sofridos no Curso de Pedagogia.
O confronto com a prática, a inserção no GEMGe e a necessidade de teorizar
sobre essas temáticas, proporcionou-me momentos frutíferos, com reflexões acerca da
complexidade dessas categorias, fazendo-me repensar conceitos e esquemas teóricos
que respaldam meu entendimento e influenciam meu comportamento ao me deparar
com os preconceitos e discriminações, ajudando-me a enfrentá-los, ao mesmo tempo em
que aguçou minha percepção para a relevância do tema “A MULHER PROFESSORA E A
SEXUALIDADE: representações e práticas no espaço escolar”. Este estudo foi desenvolvido
na construção e reconstrução do objeto da pesquisa no Mestrado em Educação do
Programa de Pós-Graduação da UFMA, defendido em maio de 2009, objetivando analisar

.
36

questões da sexualidade, principalmente a da mulher, com ênfase nas representações de


professoras sobre a temática, destacando-se os mecanismos de controle social, os
discursos de verdade sobre a sexualidade e as influências no trabalho por elas
desenvolvido no espaço escolar. Isso porque reconhecia e reconheço a importância de
estudar a sexualidade da mulher professora, demonstrando-se a necessidade da luta
contra os preconceitos e discriminações presentes na escola e na sociedade.
Recentemente, pude vivenciar outra experiência: a elaboração do projeto e a
coordenação do Curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE)13, oferecido na modalidade
semipresencial pela UFMA nos anos de 2009, 2010 nos Polos de Imperatriz e Porto
Franco e em 2014 este curso contou com novas turmas nos municípios: São Luís,
Imperatriz e Caxias, estado do Maranhão14.
Logo nas primeiras turmas do curso, aumentaram minhas inquietações, pois me
deparei com diferentes formas de preconceitos e discriminações, especialmente
relacionadas às questões da sexualidade e sobre a diversidade sexual, materializados

13 O Curso Gênero e Diversidade na Escola - GDE é uma iniciativa pioneira e inovadora proposto pela
Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM/PR), e fruto da parceria entre a SPM, a Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR/PR), a Secretaria de Educação a Distância
(SEED/ MEC), a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC) e o Centro
Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ). O projeto piloto, realizado em 2006,
contou também com a parceria do Conselho Britânico. O Curso, destinado à formação continuada de
profissionais da Educação nas temáticas de gênero, relações étnico-raciais, sexualidade e orientação
sexual e está presente em todas as regiões do País (GDE, 2009).
14
Imperatriz é a segunda cidade mais populosa do Maranhão. Sede da Região Metropolitana do Sudoeste
Maranhense. Sua distância é de 628 km da capital do estado, São Luís. Segundo histórico do município
apresentado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o surgimento de Imperatriz
começou a ser desenhado nos fins do Século XVI, com a iniciativa dos bandeirantes, que partindo de São
Paulo, buscavam riquezas em outras localidades. Até o ano de 1958, quando foi iniciada a construção da
rodovia Belém-Brasília Imperatriz permaneceu geográfica e politicamente distante de São Luís. Na década
de 1979, “era considerada a cidade mais progressista do país, recebendo contingentes migratórios das
mais diversas procedências”. Em 2014, sua população estimada é de 252.320 pessoas. Porto Franco é
um município do estado do Maranhão banhado pelo Rio Tocantins. Sua distância da capital do estado é de
696 km. Segundo dados do IBGE seu povoamento iniciou-se em 1854, quando em suas terras se
instalaram agricultores vindos de Boa Vista, situado à margem esquerda do rio Tocantins, em Goiás. Em
1919 foi elevado à categoria de vila e em 1938 passou a ser cidade. Em 2014, sua população estimada é de
22.956 habitantes. Caxias é a quinta maior cidade do estado, com uma população em 2014 estimada em
160.291 habitantes. Sua distância da capital do estado é de 362 km. A história de Caxias inicia, no século
XVII, com o Movimento de Entradas e Bandeiras ao interior maranhense para o reconhecimento e
ocupação das terras às margens do Rio Itapecuru, durante a invasão francesa do Maranhão. A cidade de
Caxias foi palco da última batalha do movimento revoltoso existente no estado do Maranhão: a Balaiada.
“O nome de Caxias não se atribui a Luís Alves de Lima e Silva, patrono do Exército Brasileiro. Ele sim
recebeu o título Barão de Caxias, por ter sufocado a maior revolta existe no estado” (IBGE, 2015).
Posteriormente, o Barão de Caxias foi condecorado com o título Duque de Caxias.
Disponível em: http://cidades.ibge.gov.br/xtras/uf.php?lang=&coduf=21&search=maranhao. Acesso em
17 jul 2015.

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37

nas discussões dos fóruns no AVA/Moodle15 da UFMA, nos Memoriais apresentados no


final do curso e nos depoimentos durante os encontros presencias. Houve cursista que
chegou a desistir do curso, alegando que não iria fazer um curso que ensinava “formas
de incentivar os alunos a serem gays”, ou seja, não apreenderam que um dos objetivos
do curso é fomentar discussões e reflexões sobre a diversidade, incluindo a diversidade
sexual e o combate à homofobia. Foi então que comecei a me indagar: quais são os
possíveis impactos do curso GDE para a prática docente dos/as profissionais nas escolas
em que atuam? Será que as reflexões e ensinamentos propostos pelo Curso estão sendo
utilizadas nas práticas escolares?
Essas inquietações e a experiência profissional com ações de formação e a
investigação de questões relativas às interações mediadas pela sexualidade e pelo
gênero no processo educacional levaram-me a querer estudar a trajetória pessoal e
profissional dos agentes da educação que cursavam o GDE, bem como as formas de
desenvolvimento dessas temáticas em suas práticas escolares. Assim, elaborei, no ano de
2010, dois projetos de pesquisa: o primeiro intitulado “O Curso Gênero e Diversidade na
Escola no processo educativo maranhense”, proposto e aprovado pela Secretaria de
Políticas para as Mulheres (SPM) e financiado pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); o segundo projeto intitulado
“GÊNERO E SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO E NAS PRÁTICAS ESCOLARES: história e
memória de mulheres professoras”, apresentado e aprovado pelo Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), no
processo seletivo para ingresso no Curso de Doutorado e que venho desenvolvendo
desde o segundo semestre de 2011, resultando nesta tese. Vale mencionar que meu
interesse pelo Curso GDE e a escolha dos sujeitos da pesquisa, cursistas egressos/as,
deve-se ao fato de reconhecer a importância dos conteúdos estudados neste curso, para
o desenvolvimento humano, para a luta contra os mitos e tabus em torno da sexualidade
e para o combate aos preconceitos e discriminações que as pessoas que fogem do padrão
heteronormativo sofrem.

15
Os Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVA) são sistemas de gerenciamento de aprendizagem
(Course Management System – CMS), constituídos por diferentes mídias e linguagens para disponibilizar
conteúdos de aprendizagem online. É um espaço virtual de aula que favorece encontros, interação e
interatividade. O Moodle, um software livre, foi desenvolvido em código aberto e gratuito para
aprendizagem à distância (virtual ou online). Este foi o tipo de AVA utilizado na realização do Curso GDE
semipresencial. A palavra Moodle é um acronismo para Modular Object-Oriented Dynamic Learning
Environment, ou seja, Ambiente de Aprendizagem Dinâmico Orientado a Objetos (SILVA, R. S., 2011).

.
38

Para o desenvolvimento desta pesquisa foram concebidas as seguintes questões


norteadoras: 1) de que forma a família, a escola e a religião tratam questões referentes a
gênero e sexualidade?; 2) quais concepções estão presentes nas narrativas de
professores/as egressos/as do Curso GDE no que se refere ao gênero e a sexualidade no
processo educativo? 3) que subsídios o curso deixou para as práticas escolares dos/as
colaboradores/as16, especialmente em relação as questões de gênero e da sexualidade?
Isto posto, a presente tese objetiva analisar o lugar ocupado pelas questões de
gênero e da sexualidade na trajetória pessoal, profissional e nas práticas escolares de
docentes egressos/as do Curso Gênero e Diversidade na Escola (GDE), no estado do
Maranhão. Todavia, entendo que a apreensão dessas práticas não se reduz somente à
consideração da ação docente, mas também ao exame de suas relações com as diversas
esferas do sistema de ensino e com o contexto social e cultural no qual a escola está
inserida. Assim, na intenção de apreender a maior quantidade de informações relatadas
pelos/as professores/as egressos/as, colaboradores/as, narrando suas trajetórias, com
ênfase nas temáticas em destaque, desdobrou-se os seguintes objetivos específicos: 1)
identificar as prováveis influências da família, escola e religião, no desenvolvimento de
suas sexualidades17 e na construção e constituição do habitus de gênero; 2) analisar as
concepções e práticas construídas pelas professoras e professores sobre gênero e
sexualidade no contexto escolar, durante sua formação docente e nas ações educativas
desenvolvidas; 3) reconhecer os possíveis subsídios deixados pelo Curso GDE, ofertado
pela UFMA, em relação às questões de gênero e da sexualidade no caminho percorrido
pelos/as colaboradores/as, sendo estes/as egressos/as do referido curso.
No decorrer do percurso para a concretização desta tese, no primeiro capítulo
apresento os “Caminhos percorridos na realização da pesquisa”. Momento em que
exponho um levantamento das produções sobre a temática no campo educacional
apresentadas nas Reuniões Anuais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação
em Educação (ANPEd), mais especificamente no Grupo de Trabalho (GT) 23 ― Gênero,
Sexualidade e Educação. O principal objetivo foi elaborar uma caracterização e discussão
das produções acadêmicas sobre gênero e sexualidade na formação docente e nas

16
Utilizo o termo colaborador/a por reconhecer, como Meihy (2005) e Meihy e Holanda (2011) que
as pessoas entrevistadas não são meros informantes, elas são colaboradoras na pesquisa.
17Com referência aos sujeitos e suas histórias será utilizado o termo no plural, por compreender que há
uma variedade de sexualidades traduzidas nas várias formas em que elas manifestam o gênero. E sua
expressão depende do contexto social mais geral: local de moradia, convivência familiar, classe social,
profissão, dentre outros.

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39

práticas escolares. Em seguida, exponho os procedimentos adotados, destacando os


caminhos e as escolhas realizadas no desenvolvimento da pesquisa. Enfatizo a História
Oral de Vida e a História Oral Temática utilizadas na organização do percurso
metodológico, conforme sugestões de Meihy e Holanda (2011) e que permitiu
circunscrever o objeto desta pesquisa: gênero e sexualidade nas trajetórias percorridas
e nas práticas escolares. Destaco os critérios para a seleção dos sujeitos do estudo (aqui
denominados colaboradores/as), como se deu a coleta de dados e o tratamento das
entrevistas, bem como os procedimentos analíticos adotados no percurso.
No Capítulo 2, intitulado “O início das trajetórias percorridas” realizo a
apresentação de cada um dos/as cursistas egressos/as que colaboraram com a pesquisa
concedendo entrevistas. Descrevo e analiso algumas das características identificadas e
as percepções que tive acerca de cada um/a deles/as. Em continuidade, realizo as
primeiras Análises Automáticas dos Discursos (AAD), apontando aspectos evidenciados
nas narrativas. Utilizo como aporte teórico, principalmente, as análises de Pierre
Bourdieu e os conceitos de habitus, campo, dominação masculina e violência simbólica,
dentre outros que puderam ser observados nas trajetórias percorridas, destacando-se as
possíveis influências da família, da escola e da igreja na construção e constituição dos
habitus de gênero e nas tramas das lembranças dos sujeitos que colaboraram na
pesquisa.
No terceiro capítulo intitulado “Gênero e sexualidade entre a formação
docente e as práticas escolares”, realizo uma breve conceituação e caracterização de
termos utilizados: formação docente, formação continuada e educação sexual. Em
seguida são apresentados casos, acasos e paixões vividas pelos/as colaboradores/as
desta pesquisa no caminho percorrido até à docência. Dando continuidade, são
discutidas questões de gênero e sexualidade estudadas, ou não, nos cursos de
licenciatura realizados pelos mesmos/as. Por fim, são discutidas e problematizadas as
representações que possuem acerca dessas temáticas tanto nos processos de formação,
como em suas práticas escolares.
No último capítulo intitulado “O Curso Gênero e Diversidade na Escola nas
trajetórias dos/as alunos/as professores/as” inicio destacando algumas das
contribuições da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
(SECADI) do Ministério da Educação (MEC) para a criação do Curso GDE. Por uma
questão metodológica fiz a opção de realizar um breve histórico de sua criação e oferta

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40

especialmente na UFMA, apresentando sua configuração, módulos, objetivos e


conteúdos. São discutidos os desafios enfrentados nesta Instituição pela equipe que
integra o trabalho pedagógico de formação continuada do GDE. Por fim, são destacadas
as identificações e achados no percurso, comentando-se determinados obstáculos
encontrados nos seus caminhos e analisados os subsídios do curso nas trajetórias
dos/as colaboradores/as sujeitos deste estudo.
No ponto de chegada desta caminhada, apresento algumas considerações
provisórias, sem a pretensão de apontar respostas definitivas. Busco indicar os passos
para um novo caminhar, a partir do que foi possível perceber nas narrativas dos/as
professores/as colaboradores/as. Em se tratando da noção de habitus, ao circunscrever
seu conceito pelo eixo do gênero e da sexualidade, foi possível identificar traços
importantes na construção dos modos de agir dos/as colaboradores/as em suas
trajetórias e nas práticas escolares desenvolvidas.
Ao contar parte da minha trajetória pessoal e profissional procuro apontar o
fato de que uma pesquisa é realizada a partir de um contexto e um lugar social no qual
quem produz está influenciado por tudo que o compõe. Em nosso caminho encontramos
inúmeros obstáculos e adversidades, mas entendo que a forma como os encaramos é
que determina o que e quem somos hoje. Além disso, reconheço que embora a história
pessoal seja importante para a apreensão de um contexto, é preciso ter cuidado e não
permitir que um estudo científico seja enviesado pelo senso comum. Noção tacitamente
aceita, que possui um fundo de evidências partilhadas pelas pessoas e que garante, “um
consenso primordial sobre o sentido do mundo”, tornando possível o “confronto, o
diálogo, a concorrência, até mesmo o conflito e entre os quais cumpre dar lugar à parte
aos princípios de classificação, tais como as grandes oposições que estruturam a
percepção do mundo” (BOURDIEU, 2001a, pp. 118-119).
Segundo o autor é preciso romper com o senso comum para que se possa
construir um objeto científico. Pois, para se fazer ciência é preciso “[...] evitar as
aparências da cientificidade, contradizer mesmo as normas em vigor e desafiar os
critérios correntes do rigor científico” (BOURDIEU, 2007b, p.42). Enfim, assumindo as
palavras de Bourdieu (2004a, p. 118), “eu sou o que sou. Não é o caso nem de elogiar
nem de reprovar. Simplesmente, isso implica todo tipo de predisposição e quando se
trata de falar do mundo social, erros prováveis”. Com esta citação, tento explicitar que
embora esteja reportando-me à minha própria experiência, busco compreender-me

.
41

melhor, saber quem sou, minhas aspirações e limitações, além de conhecer minhas
próprias condições de produção, com minhas dúvidas e inseguranças. É preciso
compreender e desenvolver, segundo o mesmo autor, a disposição de uma investigadora
que se dedica “humildemente a um ofício”. Além disso, procuro adotar as palavras de
Freire (1996) quando diz que “a alegria não chega apenas no encontro do achado, mas
faz parte do processo da busca”. Eu continuo numa busca incessante, sentindo-me cada
vez mais envolvida com a minha opção de vida: a educação, as pessoas, suas vidas, suas
sexualidades, vêm me seduzindo.
Assim nosso caminho se inicia...

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42

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43

CAPÍTULO 1

CAMINHOS PERCORRIDOS NA REALIZAÇÃO


DA PESQUISA
Caminhante, são tuas pegadas. O caminho e nada mais;
caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar.
(Antônio Machado)
_______________________________________________________________________________________________________________

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44

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45

Tem-se a demasiada tendência para crer, que a importância


social ou política do objeto é por si só suficiente para dar
fundamento à importância do discurso que lhe é consagrado.
Pierre Bourdieu, (2007b, p. 20).

No esforço de explicar a trajetória dos modos de produção do trabalho,


apontando como foi elaborado o projeto que o originou e a forma como o mesmo foi
desenvolvido, busquei reconstruir, brevemente, a minha trajetória pessoal, acadêmica e
profissional. Tais rememorações tentam assinalar os caminhos que me influenciaram no
estudo das questões referentes ao gênero e à sexualidade, principalmente na formação
docente e nos espaços escolares. Além disso, com a leitura da obra de Bourdieu começo
a perceber a necessidade de historicizar o sujeito da historicização e objetivar o sujeito
da objetivação, o que ele denomina de “transcendental histórico cuja objetivação é a
condição de acesso da ciência à consciência de si, ou seja, ao conhecimento dos seus
pressupostos históricos” (BOURDIEU, 2001b, p. 120).
Ao considerar que para Bourdieu (2007b) o que conta, na realidade, é a
construção do objeto, posso afirmar que o objeto deste trabalho é fruto da trajetória
percorrida, conforme destacado no Ponto de partida desta tese. Entendo ainda, conforme
explica o autor, que a eficácia de um método de pensar, se manifesta na nossa
capacidade de construir objetos socialmente insignificantes em objetos científicos.
Outras questões também merecem destaque na construção do objeto de estudo:
a primeira seria a familiaridade com o universo social a ser pesquisado, vista por
Bourdieu (2004a) como um obstáculo epistemológico para o/a pesquisador/a, em
função do risco de iludir-se com o saber imediato e pela dificuldade de separação entre a
percepção do já aprendido e as descobertas do procedimento científico; a segunda
dificuldade a ser enfrentada, são as delimitações que necessariamente se impõem, face à
multiplicidade de dados, às dimensões e possibilidades de análise que o exame do
material empírico aponta. Embora seja fato o alerta de Bourdieu, é complexo pensar que
é justamente nas dificuldades apontadas por ele, ao ter que lidar com esse mundo já-dito
e não necessariamente já-aprendido, que o ato da pesquisa constitui o/a pesquisador/a.
Com esse entendimento, a vontade de construir novas trilhas em minha
trajetória acadêmica e profissional moveu-me em busca de novas metodologias. Na
pesquisa empírica, bem como na construção e reconstrução deste trabalho, desejava
estar ao lado dos sujeitos, compreendendo, além de seus relatos, seus gestos, seus

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46

silêncios, seus corpos, suas expressões, suas lágrimas – enfim, suas linguagens
percebidas e não verbalizadas. Assim, ao conhecer algumas das características da
história oral logo percebi que esta metodologia vinha ao encontro das minhas
aspirações.
Na tentativa de compreender os discursos ouvidos e percebidos pelas histórias
narradas durante as entrevistas, outras fontes foram privilegiadas com vistas à
compreensão do objeto, das quais se destacam: documentos e bibliografias específicas
que tratam das temáticas centrais desta pesquisa e algumas das atividades do curso
GDE, dentre elas os comentários postados nos fóruns de discussão, os memoriais e
projetos didáticos de intervenção elaborados ao final do curso, pelos próprios/as
sujeitos colaboradores/as.
Diante do exposto, o presente capítulo se propõe a explicar o caminho escolhido
e trilhado para o desenvolvimento desta tese, bem como os conflitos e as dificuldades
encontradas no processo. Por entender a importância de conhecer as produções
acadêmicas que vêm sendo desenvolvidos na área, inicio o trabalho com um
levantamento das que tratam do gênero e da sexualidade na educação escolar. E ao
recuperar tais produções, bem como o percurso trilhado até o momento, percebo que
nós profissionais da educação devemos repensar o espaço da educação escolar,
refletindo e questionando preconceitos, tabus, interditos e valores postos que, na
concepção de Bourdieu (1997, 2001a, 2007a, 2007b), foram construídos e constituindo-
se em habitus incorporados.
A seguir são expostos o trajeto da realização da pesquisa dividindo-o em duas
partes: a primeira apresenta o levantamento das produções na área, com descrições e
breves análises dos textos selecionados; a segunda refere-se a escolha do caminho
metodológico utilizado no estudo, momento em que são apresentados os critérios para a
seleção dos/as colaboradores/as, a coleta dos dados e seu tratamento, ressaltando os
procedimentos analíticos adotados.

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47

1.1 Gênero e sexualidade na educação escolar: um levantamento das produções


acadêmicas

Cada um, ao ouvir os outros, pensará na sua própria pesquisa,


e a situação de comparação institucionalizada que é assim criada,
os obrigará, a um tempo e sem qualquer contradição,
a particularizar seu objeto, a percebê-lo como um caso particular
e a generalizá-lo, a descobrir, pela aplicação de interrogações gerais,
os caracteres invariantes que ele pode ocultar debaixo
das aparências da singularidade.
Pierre Bourdieu (2007b, p. 33)

Por entender que ao ouvir, ou ler outras produções, poderia pensar e repensar
meu próprio estudo, inicialmente realizei um mapeamento dos Trabalhos apresentados
nas Reuniões Anuais da ANPEd, no Grupo de Trabalho (GT) 23 “Gênero, Sexualidade e
Educação”, criado em 2003, ainda como Grupo de Estudo (GE), e transformado em GT no
ano de 2006, após discussão e proposta de pesquisadoras/es, docentes e estudantes da
área. Este levantamento foi realizado por entender ser esta Associação um espaço
privilegiado para apresentação dos estudos e pesquisas educacionais. A ANPEd18 está
dividida em áreas temáticas organizadas em diferentes Grupos de Trabalho (GTs).
O Grupo de Estudo (GE) 23 – Gênero, Sexualidade e Educação iniciou no ano de
2004 e em 2006, na 29ª RA, passou à condição de GT, devido às inúmeras inscrições de
trabalhos, às férteis produções apresentadas, além de contar com a presença de uma
expressiva parcela de pesquisadores/as do país.

1.1.1 GT 23 - “Gênero, Sexualidade e Educação” da ANPEd

Neste levantamento são feitas algumas observações sobre os trabalhos


apresentados no GE até a 28ª RA que aconteceu no ano de 2005 e no GT 23 da 29ª RA
em 2006, até a 36ª RA em 2013, levando-se em conta as que mais se assemelham ao
presente estudo, com breve descrição das temáticas predominantes, das diretrizes
específicas de pesquisa, algumas das recorrências bibliográficas e a atuação do grupo de
pesquisadoras/es mais presentes no GT. Dentre essas produções há as que foram

18
Para mais informações sobre cada GT, acesse: http:www.anped.org.br

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48

apresentados nas RAs e as que ficaram excedentes, mas que foram publicadas. Foram
catalogados um total de 186 textos divulgados no site da ANPEd, perfazendo 5
Trabalhos Encomendados, 9 Minicursos, 141 textos de Comunicação Oral e 31 Pôsteres,
conforme quadro a seguir:

Quadro 1: Produções apresentadas no Grupo de Estudo (GE) e Grupo de Trabalho (GT)


23 da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd)

Ano Reunião Anual Trabalho Minicurso Trabalhos Pôsteres


Encomendado (Apresentação Oral)
2004 (GE) 27ª 01 01 13 05
2005 (GE) 28ª - 01 13 08
2006 (GT) 29ª 01 01 12 04
2007 (GT) 30ª - 01 16 01
2008 (GT) 31ª 01 01 11 03
2009 (GT) 32ª - 01 12 02
2010 (GT) 33ª - 01 15 03
2011 (GT) 34ª - 01 15 -
2012 (GT) 35ª 01 - 17 03
2013 (GT) 36ª 01 01* 17 02
Total 05 09 141 31
* Embora conste no site, um minicurso proposto na 35ª RA, este não pode acontecer naquela Reunião, sendo ministrado
na 36ª RA em 2013.
Fonte: Elaborado pela autora, a partir de dados disponíveis no site da ANPEd.

Cumpre ressaltar que Ferreira e Nunes (2010) elaboraram um levantamento


dos trabalhos com temáticas relacionadas a gênero e/ou sexualidades que foram
apresentados em diferentes GTs, da 23ª à 29ª RA da ANPEd (2000-2006). Organizaram
uma tabela com o quantitativo de produções, por ano, em cada GT da ANPEd, incluindo
Trabalhos de Apresentação Oral, Sessão especial, Trabalho encomendado, Intercâmbio
ou sessões conversa e Minicursos, totalizando 95 textos analisados.
Em 2013, na 36ª RA Ribeiro e Xavier Filha expõem o Trabalho encomendado
“Trajetórias teórico-metodológicas em 10 anos de produção do GT 23” cujo objetivo foi
mapear e esboçar uma análise dos trabalhos apresentados no decorrer dos anos de 2004
a 2013, da 27ª à 36ª RA. No texto, apresentam duas tabelas: a primeira com os dados
gerais (Ano, GE/GT, Reunião, Local, Trabalho aprovado/apresentado), totalizando 172
produções (Trabalhos de apresentação oral e Pôsteres) e a segunda, com o quantitativo
de Trabalhos por Região de origem.

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49

Segundo informações encontradas no site da ANPEd, os Pôsteres, Trabalhos de


apresentação oral e Minicursos são submetidos à Comissão Científica e sujeitos a
aprovação. Já os Trabalhos encomendados e Sessões especiais são produções elaboradas
a partir de solicitações feitas pelos/as coordenadores/as dos GTs e apoio da diretoria da
ANPEd com a colaboração do Fórum de Coordenadores de Programas de Pós-Graduação
em Educação (FORPRED).
Dos anos de 2004 a 2010 (27ª a 33ª) as RA aconteceram em Caxambu – MG.
Nos anos seguintes (34ª a 36ª), aconteceram em Natal – RN; Porto de Galinhas –PE e
Goiânia – GO, respectivamente. Em 2004, inaugura-se o GE 23 coordenado por Guacira
Lopes Louro (UFRGS), contando com 1 Trabalho encomendado, 13 Trabalhos de
Apresentação oral e 5 Pôsteres, além de 1 Minicurso intitulado “Novos tempos, novos
desejos, práticas sexuais nem tão seguras: sinais de tensão nos discursos da sexualidade, a
partir de questões trazidas pela trajetória de enfrentamento do HIV/Aids no Brasil”,
apresentado por Fernando Seffner (UFRSG) e Luis Henrique S. dos Santos (ULBRA).
O Trabalho encomendado intitulado “Gênero, Sexualidade e Educação: ‘olhares’
sobre algumas das perspectivas teóricas metodológicas que instituem um novo G.E”,
apresentado pelas pesquisadoras Dagmar Meyer, Cláudia Ribeiro e pelo pesquisador
Paulo Ribeiro, objetivou “dar início a esse diálogo teórico-metodológico, a partir da
apresentação e discussão de perspectivas que alimentam a produção acadêmica em três
dos grupos de pesquisa que constituem o G.E”. Como encerramentos provisórios, as
autoras se dispuseram a discutir a produção de diferenças e de desigualdades de gênero
e de sexualidade, fazendo uma analítica de processos sociais mais amplos que marcam e
discriminam sujeitos como diferentes, tanto em função de seu corpo e de seu sexo,
quanto em função de articulações dessas questões com raça, classe social, religião,
aparência física, nacionalidade, dentre outras, que ainda hoje são discutidas.
Dentre as temáticas dos Trabalhos de apresentação oral e dos Pôsteres
predominaram as que tratavam das questões da sexualidade e Orientação Sexual na
escola, apresentadas pelas autoras/es referidos/as a seguir, com suas respectivas
produções.
Helena Altmann (PUC-Rio) tratou “A sexualidade adolescente como foco de
investimento político-educacional”. Momento em que analisa artigos e reportagens de
jornais e televisão, além de realizar pesquisa etnográfica, com observações e entrevistas

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50

de alunos e professores da 7ª série. Versou de maneira especial acerca da gravidez na


adolescência, fundamentando-se principalmente nos estudos foucaultianos.
Tania Catharino (UERJ) em seu texto intitulado “Sexualidade, gênero e saúde
reprodutiva – elementos para uma nova proposta em orientação sexual” analisou uma
proposta de ação socioeducativa que contempla o tema transversal “Orientação Sexual”
e tomou por referência o ensino médio. Também tratou da gravidez na adolescência e
utiliza as análises de Guacira Louro em sua fundamentação.
Mirian Dazzi (UNISINOS) no texto “O saber autorizado – voz e voto para ensinar
sobre o corpo” analisou vídeos educativos, demonstrando a preocupação com a saúde do
corpo e a prevenção da AIDS, fundamentando-se principalmente em Foucault e Bauman.
Luiz Ramires Neto (USP) apresentou sua pesquisa, ainda em andamento, em
nível de mestrado, intitulada “Um silêncio desconcertante: a Homossexualidade
Permanece Invisível na Escola”. Buscou entender como a homossexualidade se produz e
reproduz no ambiente escolar utilizando-se, especialmente, dos estudos de Scott e
Bourdieu em suas análises.
Ruth Sabah (Centro Universitário Feevale) com o artigo “Educar para a
sexualidade normal” ressaltou que em nossa sociedade, a heterossexualidade é a
sexualidade considerada normal. Tomou os Estudos Culturais como base de sua
pesquisa, utilizando como corpus analítico quatro filmes infantis dos estúdios Disney: A
Bela e a Fera, Mulan, A pequena sereia e O rei leão e como aporte teórico utiliza autores
pós-estruturalistas como Foucault, Butler, Derrida, dentre outros.
Vera Siqueira (UFRJ), com seu texto “Sexualidade e gênero: mediações do cinema
na construção de identidades”, investigou as relações de sexualidade e gênero
estabelecidas em interações de mulheres educadoras com a imagem cinematográfica, a
partir de suas narrativas e comentários sobre filmes, utilizando-se dos Estudos
Culturais, numa abordagem pós-estruturalista, com principal foco nos pressupostos
foucaultianos.
Dentre os 5 Pôsteres apresentados na 27ª reunião, 3 deles referiam-se às
questões da sexualidade no espaço escolar: 1) Marilia Ferreira e Érica Araújo (UERJ)
apresentam um texto intitulado “Gênero e Sexualidade no espaço escolar – considerações
sobre a orientação sexual”; 2)Camila Galindo (UNESP) com o artigo “Orientação sexual no
limiar do século XXI: propostas para o 1º Ciclo do Ensino Fundamental”; 3) Nilton

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51

Pimentel (UFF) com o pôster “Sexualidade e cotidiano escolar”. Um deles referiu-se ao


bordado e o outro versa sobre os significados de gênero no espaço escolar.
Os demais Trabalhos versaram sobre representações de gênero (Marcia
Ferreira - FaE/UFPel); Relações de gênero nas práticas escolares (Daniela Auad –
Feusp); Masculinidades e feminilidades (Rosimeire Brito – USP); Gênero e futebol
feminino (Ligia Freitas – PMJP); História do magistério (Daiane Pincinato – FEUSP);
Mulher professora e identidade docente (Maria Celeste Andrade - UNIARAXÁ/UNIUBE);
um pôster sobre o bordado (Claudia Chagas – UERJ) e outro que versou sobre os
significados de gênero (Edna Teles – USP).
A maioria dos artigos utilizou suas problematizações embasadas nos
referenciais teóricos de Michel Foucault, Joan Scott, Guacira Louro, Judith Butler, Robert
Connell e Pierre Bourdieu. Sendo que alguns assumiam a perspectiva pós-estruturalista
de análise embasados nos Estudos Culturais e de Gênero.
Na 28ª RA realizada no ano de 2005, foi apresentado o Minicurso “Perguntas
gerando perguntas em educação sexual” pelas professoras Érica Renata de Souza,
Elizabete Franco Cruz, Helena Altmann e Maria Teresa Campos da UNICAMP, cujo
objetivo foi constituir espaços de encontro e interlocução, para a análise da temática
sexualidade humana em processos educativos na escola e nos movimentos sociais, numa
cadeia de significações. Utilizaram os referenciais teóricos pós-estruturalistas como
cerne, entrelaçando sexualidades e infâncias, adolescências, homossexualidades,
linguagens, formação docente e educação sexual. Nessa Reunião não houve Trabalho
encomendado e dentre os 13 Trabalhos de apresentação oral, 7 deles também se
referiam às questões da sexualidade.
Cláudio Adolph e Maria Regina Prata (UNESA) discutiram “A escola na produção
da identidade sexual do adolescente”. Como instrumento de pesquisa utilizam um
questionário misto composto por onze perguntas, aplicando-o para alunos da 7ª série do
ensino fundamental de duas escolas. As respostas foram analisadas com base nos
estudos de Foucault, de maneira especial acerca do conceito de “Panóptico”, destacando-
se a introdução da disciplinarização nas escolas, que instaurou a “pedagogia do silêncio”,
como forma de vigilância e controle sobre os corpos, através de métodos punitivos.
Miriam Campos (ULBRA) no texto que versou sobre “Alguns tensionamentos
acerca dos corpos e sexualidades das pessoas deficientes” realizou um levantamento em
sites de busca (Google, Yahoo e Alta Vista), páginas brasileiras em que as próprias

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52

pessoas deficientes falavam sobre suas vidas, seus corpos e sua sexualidade. Utilizou,
dentre outros autores Louro e Foucault como aporte analítico.
Jimena Furlani (UDESC – UFRGS) tratou sobre “Sexos, sexualidades e gêneros –
monstruosidades no currículo da educação sexual”. Apresentou um exercício de análise
cultural, a partir da expressão “Que bicho é esse?” usada num livro paradidático infantil
para se referir as temáticas sexo e sexualidade e utiliza “a ‘desconstrução’ como método
analítico, articulando-as com teorizações nos campos dos Estudos Culturais e Feministas
perspectiva pós-estruturalista de análise”.
Rita Lima e Flávia Ramos (FAPESP) apresentaram uma “Abordagem da AIDS na
escola: possibilidades e dificuldades com base nas representações sociais de professores da
6ª série do ensino fundamental”. Analisaram as representações sociais da AIDS entre
professores/as da 6a série do ensino fundamental de uma escola municipal, tomando
como inspiração os Temas Transversais propostos pelos PCNs. Utilizaram como aporte
teórico principalmente Moscovici e Jodelet.
Eduardo Quintana (UERJ) realizou “Reflexões sobre a gravidez na adolescência:
caminhos, diálogos e trajetórias numa pesquisa em educação”. Através de etnografia
numa escola da rede estadual, constata manifestações de resistências, mas também
vínculos de sociabilidade e de integração das alunas adolescentes grávidas.
Paulo Ribeiro (UNESP) no texto “Por minha culpa, minha máxima culpa... A
educação sexual no brasil nos documentos da inquisição dos séculos XVI e XVII”
desenvolveu uma pesquisa histórica, retratando o período em que as visitações do Santo
Ofício da Inquisição visavam descobrir e punir delitos e crimes sexuais.
Rosângela Vieira (UFSC – UNICAMP) apresentou o artigo “Juventude e
sexualidade em movimento”, fruto de observação em cinco assentamentos localizados em
uma cidade do Sul do país. O estudo abrangeu cerca de 150 famílias, promovendo um
diálogo entre os dados da pesquisa e outros estudos referentes à juventude e
sexualidade. Constatou que a sexualidade pode ser caracterizada pela heterogeneidade e
pela coexistência de valores contraditórios, havendo uma tensão constante entre o novo
e o velho, o moderno e o tradicional, o conservador e o transformador.
Em relação aos 4 Pôsteres expostos na 28ª Reunião, 2 deles referiram-se a
questões da sexualidade: Renata Libório (UNESP) desenvolveu uma “Pesquisa
diagnóstica sobre violência sexual contra crianças e adolescentes: reflexões sobre a ação

.
53

do educador” e Maria de Fátima Moreira (FCT) tratou das “Práticas de gênero e


sexualidade nas concepções de aluno(a)s do ensino médio: entre o vivido e o possível”.
Os demais Trabalhos versaram sobre: 1) “Relações Dialógicas Interculturais:
Brinquedos e gênero” (Barreto, Flavia de Oliveira – UFRJ e Silvestri, Mônica Ledo – UFF);
2) “Desempenho escolar e gênero: um estudo com professoras de séries iniciais” (DAL
IGNA, Maria Cláudia – UFRGS); 3)“Quem pode resistir a Lara Croft? Você? (Mendes,
Cláudio Lúcio – FAME/BH – UFMG); 4) “Construindo a masculinidade hegemônica:
acomodações e resistências a partir da apropriação de personagens de novelas por
adolescentes das camadas populares” (RIBEIRO, Claudia Regina Santos – UFRN;
SIQUEIRA, Vera Helena Ferraz de – UFRJ); 5) “Apropriação de novas tecnologias por
docentes: Questões de Gênero” (Teixeira, Adla Betsaida Martins – UFMG); 6) “O verso e o
reverso das relações escolares: um olhar de gênero sobre o uso dos tempos em uma escola
municipal da cidade de São Paulo” (Telles, Edna de Oliveira – USP). A 28ª RA, contou
ainda com outros dois pôsteres: “Desempenho das mulheres no indicador nacional de
alfabetismo funcional - 2001: explorando as diferenças na comparação com os homens”
(ARTES, Amélia Cristina Abreu – USP) e “Bordar no espaço/tempo feminino” (Chagas,
Claudia Regina Ribeiro Pinheiro das – UERJ).
Essa fértil produção, com grande representatividade no Comité Científico, o
trabalho comprometido do grupo, o número representativo de diferentes instituições, a
participação de membros do GE em eventos nacionais e internacionais, dentre outras
atividades que se traduziram em um movimento de consolidação acadêmica embasaram
a proposta de mudança do GE para GT 23. Essas ações estão descritas no Relatório de
Atividades da 29ª Reunião Anual da ANPEd (2006) e foram desenvolvidas
especialmente buscando atender as propostas feitas ao final da 28ª reunião. Dentre elas
destacou-se a participação dos membros do GT nos vários eventos acadêmicos que
aconteceriam ao longo de 2006, com o objetivo de ampliar a divulgação do grupo em
outros espaços; a vice coordenadora do grupo atuou sobretudo na divulgação do GT 23
nos Fóruns de Educação Infantil, preocupando-se em detectar as universidades
envolvidas na formação de educadores e educadoras na temática da sexualidade; na
realização de contato com o MEC, visavam garantir a presença de representante da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) 19 na Reunião

19
A SECAD passou a ser denominada Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão (SECADI) com a aprovação do Decreto nº 7.480, de 16 de maio de 2011,

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54

Anual para relatarem as iniciativas e programas em desenvolvimento e dialogarem com


os membros do GT, no sentido de identificar questões e encaminhar possíveis trabalhos
conjuntos, dentre outras. (ANPEd, 2006).
Além dessas ações desenvolvidas durante o ano de 2006, o Grupo não mediu
esforços para a realização da 29ª RA. Contou com uma temática específica no
Intercâmbio Científico (Sessão Conversa) intitulada “Gênero e sexualidade nas políticas
de formação de educadores e educadoras”; uma Mesa Coordenada por Claudia Maria
Ribeiro (UFLA), com a participação de Francisco Potiguara Cavalcanti Junior do MEC,
Programa Saúde e Prevenção nas Escolas; um Minicurso intitulado “Natureza, cultura e
as relações de gênero: uma proposta de formação feminista” sob a coordenação da
Professora Doutora Tânia Mara Cruz (UNISUL/SC). Este Trabalho objetivou
proporcionar uma problematização sobre o roteiro de um curso de formação feminista
ministrado durante alguns anos e desenvolvido em todo o Brasil para integrantes do
movimento social. Guacira Louro (coordenadora do GT) apresentou um Trabalho
encomendado: “Gênero, sexualidade e educação: das afinidades políticas às tensões
teórico-metodológicas”. A sua contribuição convidou à reflexão acerca dos modos como
se regulam, se normatizam e se vigiam os sujeitos de diferentes gêneros, raças e classes,
nas suas formas de experimentar prazeres e desejos. A diversidade teórica e
metodológica, bem como a pluralidade de práticas pedagógicas ou de intervenção foram
discutidas e compreendidas em seu Trabalho, bem como constituíram indicadoras da
vitalidade desses campos disciplinares, simultaneamente teóricos e políticos.
Dentre as temáticas identificadas, tanto nos Trabalhos de apresentação oral,
quanto nos Pôsteres, 8 delas referem-se à sexualidade ou a diversidade sexual:
1)Anderson Ferrari – A "bicha banheirão" e o "homossexual militante": grupos gays,
educação e a construção do sujeito homossexual; 2) Renata Libório e Luciene Camargo – A
violência sexual contra crianças e adolescentes na perspectiva de profissionais da
educação das escolas públicas municipais de Presidente Prudente; 3) Luís Henrique e Dora
Oliveira – “Gênero e risco de HIV/AIDS nas campanhas de educação em saúde através da
mídia”; 4) Meire Oliveira – Jovens, sexualidade e educação: homossexualidade no espaço
escolar; 5) Elisabete Cruz – “Infâncias, Adolescências e AIDS”; 6) Rosângela Soares – “Fica

que trata da reestruturação regimental e organizacional do Ministério da Educação, tendo sido


revogado pelo Decreto nº 7.690, de 2012 que aprova a Estrutura Regimental e o Quadro
Demonstrativo dos Cargos em Comissão e das Funções Gratificadas do Ministério da Educação.

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55

Comigo - juventude e pedagogias amorosas/sexuais na MTV”; 7) Mirian Campos –


“Identidades anormais": a (des)construção dos corpos deficientes"; 8) o pôster de Valéria
Mokwa “Representações sociais de educadores do ensino fundamental sobre sexualidade”.
Dessa forma, percebe-se que o campo dos estudos da sexualidade vem se
constituindo como um local de questionamento, de desconstrução, de contradições e
dúvidas. Isto nos faz supor que para além de discutir as sexualidades, questiona-se
também a cultura e todo processo que se estabelece no seu interior, para a construção
das identidades, bem como a própria constituição dos sujeitos.
Os Trabalhos e Pôsteres que tratavam sobre a mulher, gênero e educação
intitularam-se: 1) “O bordado no currículo como espaço-tempo/fazer educativo” (Claudia
Chagas); 2) "Qual destas moças é você? O autoconhecimento produzido pelos testes da
imprensa feminina? décadas de 50 a 70 do século XX “(Constantina Xavier Filha); 3)
“Cinema e Relações de Gênero: ouvindo mulheres idosas” (Wania Fernandes e Vera
Siqueira); 4) “Educando as novas gerações: representações de gênero nos livros didáticos
de matemática” – Lindamar Casagrande e Marilia Carvalho; 5) “Gênero, educação e
educação física: um olhar sobre a produção teórica brasileira” – Renata Simões; 6) “As
mulheres e o futebol no cotidiano escolar” - Ronaldo Macedo; 7) “A (des)construção da
maternidade” - Maria das Graças Pinto; 8) “Alfabetização no Brasil e questões de gênero:
A ideologia presente nas orientações e usos de materiais didáticos - décadas de 20 a 50-
MG” – Adla Teixeira e Solange Silva. O exame das produções não evidenciou
aproximações com a pesquisa apresentada na presente tese.
Na 30ª reunião, que aconteceu no ano de 2007, não houve Trabalho
encomendado no GT 23. Maria Eulina Carvalho (UFPB) coordenou o Minicurso “Lendo as
relações de gênero e intervindo nas práticas culturais e educativas para construir a
equidade de gênero” cujo objetivo foi ilustrar construções e desconstruções de gênero
em diversos contextos educativos, na escola, na vida cotidiana, em narrativas veiculadas
por várias mídias (publicidade, TV, cinema), discutir limites e possibilidades de
intervenção pedagógica, bem como refletir sobre nossas histórias e práticas como
sujeitos de gênero situados em múltiplas relações de poder. A pesquisadora confirmou
que gênero é uma estrutura de dominação simbólica na ordem androcêntrica. E as
relações de gênero são relações de poder em que o polo masculino seria o dominante.
Nesse contexto, entendia que as relações de gênero são produzidas e reproduzidas
educacionalmente. Habitus de gênero são aprendidos, internalizados e corporificados,

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56

em geral sob o jugo da dicotomia e assimetria de papéis e da heteronormatividade.


Conformam corpos e mentes a modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade,
de forma complexa e articulada a outras estruturas de dominação. Em relação aos
trabalhos apresentados, pode-se perceber, a partir deste momento, estudos que
articulam os de conceitos gênero e sexualidade.
Anderson Ferrari (UFJF) expôs o Trabalho “O que é loba??? é um jogo sinistro, só
para quem for homem...” – gênero e sexualidade no contexto escolar”, cujo objetivo foi
analisar os discursos e práticas que constituem os sujeitos, além das negociações
estabelecidas entre os grupos de meninos que brincavam de “loba”. O diagnóstico põe
em circulação as construções e ideias do que é ser “homem” e “mulher”, assim como os
discursos das homossexualidades. Com o estudo, o autor pretendia discutir as relações
em torno das construções de gênero e da sexualidade no contexto escolar.
Dayse Silva (UERJ) discorreu sobre o Trabalho “Gênero e sexualidade nos PCN’s:
uma proposta desconhecida”, objetivou desenvolver uma reflexão sobre uma experiência,
com material audiovisual, em um projeto de pesquisa que aborda a constituição da
identidade feminina e masculina, no espaço da socialização infantil, além de discutir o
papel da família e da escola nesse processo.
Constantina Xavier Filha (UFMS) discutiu “A Sexualidade feminina entre práticas
divisoras: da mulher ‘bela adormecida’ sexualmente à multiorgástica – imprensa feminina
e discursos de professoras”. Tratou-se de pesquisa histórica, fundamentada no
referencial teórico dos pressupostos foucaultianos e estudos de gênero, que privilegiava
duas fontes: histórias de vida de sete mulheres-professoras brasileiras e portuguesas e
textos veiculados em três revistas femininas. Objetivou entender a constituição do
sujeito e da sexualidade feminina, bem como dos discursos da sexualidade e os efeitos
produzidos na prática discursiva de professoras.
Maria Cláudia Dal'Igna da UFRGS apresentou o Trabalho “Gênero, sexualidade e
desempenho escolar: modos de significar os comportamentos de meninos e meninas”. A
autora analisou algumas normas de comportamento que funcionam no processo de
avaliação dos desempenhos de meninos e meninas, além de discutir os pressupostos de
gênero e de sexualidade que permeiam e constituem tais normas.
No ano de 2008, aconteceu a 31ª Reunião Anual da ANPEd, com o Tema
“Constituição Brasileira, Direitos Humanos e Educação”. Em se tratando do GT 23 e da
inserção das temáticas em destaque nas pesquisas nacionais, esta reunião contou com a

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57

participação de Constantina Xavier Filha (UFMS) na Sessão Especial “Cultura Visual,


gênero, educação e arte”, apresentando relato de experiência intitulado “Sexualidade (s)
e gênero (s) em artefatos culturais para a infância: práticas discursivas e construção de
identidades”. Este trabalho objetivou analisar “dados colhidos por graduandos/as de
cursos de formação inicial em Pedagogia, habilitação em Educação Infantil e em Ensino
Fundamental, visando a compreender elementos da cultura da infância, tendo como
protagonistas as próprias crianças” e por referências pressupostos dos Estudos
Culturais e da obra de Michel Foucault.
Marília Gomes de Carvalho (CEFET-PR); Lindamir Salete Casagrande (UTFPR) e
Nanci Stancki Silva (CEFET-PR) coordenaram o Minicurso intitulado “Gênero, Ciência e
Tecnologia: desconstruindo desigualdades na escola”, cujo objetivo foi sensibilizar sobre a
relevância da temática Ciência e Tecnologia. Articulam o gênero como elemento de
análise para a compreensão da construção do conhecimento científico e tecnológico e
suas implicações para a educação e a sociedade.
Maria Eulina Pessoa de Carvalho (UFPB) apresentou o Trabalho encomendado
“Construção e desconstrução de gênero no cotidiano da educação infantil: alguns achados
de pesquisa”. Investigou construções e desconstruções das relações de gênero no
cotidiano da educação infantil e na organização escolar, curricular e pedagógica, a partir
do projeto de pesquisa “Estudos de caso da prática docente” (CNPq). A autora examinou
as construções e desconstruções das relações de gênero no cotidiano da educação
infantil, tomando como base a Dominação Masculina de Pierre Bourdieu. Neste trabalho,
Carvalho (2008) apresentou estudos de caso desenvolvidos em Instituições de Ensino
Municipais nas cidades de João Pessoa e Campina Grande/PB, Carauru/PE e Belo
Horizonte/MG. Incluiu observação, entrevistas, grupos focais e oficinas de análise, além
da discussão do material coletado, com registros em vídeo, fotografia e diários de campo.
Objetivou “delinear e analisar estratégias pedagógicas de desconstrução das dicotomias
e assimetrias de gênero, criadas e testadas pelas educadoras” (2008, p. 1). A autora
constatou que as educadoras se preocupavam mais com as questões de sexualidade do
que com as de gênero, detendo-se principalmente em situações como as da exploração
do corpo, masturbação e brincadeiras sexuais entre as crianças.
Dentre os Trabalhos apresentados na 31ª Reunião Anual, também Maria Eulina
Carvalho (autora), em parceria com as coautoras Eliane Costa (UEPB) e Rosemary Melo
(UFPB), expuseram sobre “Roteiros de gênero: a pedagogia organizacional e visual

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58

gendrada no cotidiano da educação infantil”. Analisaram a organização e repartição dos


espaços, objetos e atividades no contexto da Educação Infantil, a partir de cenários e
roteiros gendrados. Argumentaram que uma pedagogia organizacional e visual, sutil ou
explícita, composta por espaços e objetos preparados e expostos às crianças, nas
atividades escolares, determina os cenários e determina as interações entre meninas e
meninos. Fato que configura o desenvolvimento de roteiros mais ou menos prescritivos,
presentes nas cenas cotidianas das crianças, reproduzindo princípios de visão e divisão
e habitus de gênero.
Por apresentar semelhanças com o estudo em pauta, sobretudo por referir-se a
um curso financiado pela SECADI/MEC, que trata das questões de gênero e diversidade,
destaco o Trabalho de Cintia Tortado (UTFPR) “Profissionais da educação infantil e
ensino fundamental diante das questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades
da literatura infantil”. O artigo mostrou os resultados de uma pesquisa acerca do recurso
a literatura infantil em um dos módulos de um curso de capacitação “Gênero e
Diversidade Sexual na escola”.
Sobre os últimos cinco anos no GT 23, Ribeiro e Xavier Filha (2013, p. 11)
observaram “recorrências, dissonâncias, proximidades, distanciamentos... de temas,
abordagens metodológicas e teorizações diversas, revelando um campo de conhecimento
com encaminhamentos teórico-metodológicos plurais”. Em seguida, acrescentam que esta
multiplicidade evidencia que gênero e sexualidade encontram terreno fértil no campo da
educação, vivenciando e consolidando o GT 23. Ressaltam que isso acontece “tanto pelo
reconhecimento da Associação, quanto por sua efetivação como espaço profícuo de
encontros, discussões, estudos, trocas teóricas e afetivas, espaço de muitas discussões e
ideias”. O que contribuiu para a produção coletiva e a criação de novos grupos de
estudos e pesquisas em todo o país.
Na 32ª Reunião Anual da ANPEd, não houve Trabalho encomendado ou Sessão
Especial no GT 23. Dentre as produções destaca-se a de Anderson Ferrari quando
coordenou o Minicurso “Homossexualidades e escola”, proposta que advém de uma
trajetória acadêmica de produção de conhecimento sobre a temática, desde a graduação,
perpassando a pós-graduação, a pesquisa e a extensão universitária. A perspectiva
teórica que norteou o Minicurso foram os Estudos Culturais e de gênero, numa vertente
pós-estruturalista, utilizando-se principalmente as análises de Foucault.

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59

Dentre os artigos apresentados, chamou-me a atenção o texto “Corpos, escola &


sexualidades: um olhar sobre um programa de orientação sexual” de autoria de Paulo
Melgaço da Silva Junior (UERJ). Expôs o Programa de Orientação Sexual em uma escola
municipal atendida pelo Projeto Saúde nas Escolas. Seu objetivo foi investigar de que
forma questões relativas à sexualidade, principalmente as que visam o conhecimento do
corpo, dos desejos, do prazer e das diversas identidades sexuais, são abordadas no
projeto pedagógico e práticas da escola.
Na 33ª RA, no ano de 2010, foi apresentado no GT 23 o Minicurso “Homens de
verdade: corpo, futebol e masculinidades na cibercultura” coordenado por Edvaldo Couto
(UFBA), cuja proposta foi tematizar homens e masculinidades a partir da discussão da
realidade da cibercultura. Demonstrou o que é se construir social, sexual e afetivamente
homem, além de analisar as múltiplas representações de masculinidades cada vez mais
misturadas com as representações de feminilidades. Nesta Reunião foram apresentados
15 Trabalhos e 2 Pôsteres. Dentre esses, tem-se o trabalho de autoria de Ferreira e
Nunes (2010) intitulado “Panorama da produção sobre gênero e sexualidades
apresentada nas reuniões da ANPEd (2000-2006)”. O estudo concretizou um mapeamento
dos trabalhos de pesquisas apresentados na ANPEd que se ocupam dos temas “relações
de gênero” e “sexualidades”. Além disso, sublinho também o texto de Maria Rita de Assis
César (UFPR) “Governando corpos e sexualidades na escola”, uma questão
contemporânea sobre a presença da sexualidade nas instituições de ensino. Abordou o
nascimento do dispositivo da sexualidade no século XIX e as ferramentas produzidas no
interior das formas de controle dos corpos e do sexo. Neste texto a autora identificou a
ação de outros agentes que convivem na instituição escolar, como organizações não
governamentais e coletivos sociais. Isto na tentativa de instituir novos lugares de
verdade sobre o sexo. Reconheço aproximações deste estudo com a temática da tese,
pois entendo que o Curso GDE também se constitui como um espaço institucional de
elaboração para verdades de gênero e da sexualidade nas escolas.
Na 34ª Reunião Anual, em Natal – RN, no ano de 2011, o GT 23 contou com um
Minicurso intitulado “Entre filmes, músicas, revistas... Discutindo corpos, gêneros e
sexualidades nos diferentes artefatos culturais” de autoria de Paula Regina Costa Ribeiro
(FURG) e 15 exposições de Trabalhos. Ressalto o texto “Nossa! Eu nunca tinha parado
pra pensar nisso!’ - Gênero, Sexualidades e Formação Docente” cuja autoria foi de Roney
Castro e Anderson Ferrari (UFJF). Análise voltada para a formação docente inicial, em

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60

duas turmas do Curso de Pedagogia de uma universidade pública, tendo sido orientada
para responder o que as discussões sobre gênero e sexualidades permitem pensar em
termos de potencialidades para a educação docente e quais as implicações políticas e
culturais da inclusão dessas questões nos currículos de formação inicial de
professoras/es.
Assim como os autores, reconheço que os currículos de formação docente, tanto
inicial como continuada, constituem-se em lugares de subjetivação que contribuem para
a construção de valores e atitudes dos/as docentes diante dessas questões no espaço
escolar.
A 35ª RA aconteceu no ano de 2012 em Porto de Galinhas – PE, sob a
coordenação de Constantina Xavier Filha (UFMS). O GT 23 contou com um Trabalho
encomendado de Jane Felipe de Souza (UFRGS): “Pesquisas sobre violência/abuso sexual
contra crianças e adolescentes e as práticas de pedofilização na contemporaneidade: uma
questão de gênero? ”, 17 Trabalhos de apresentação oral e 3 Pôsteres. Dentre esses
destaco o texto exposto por Alexandre Silva Bortolini de Castro (PUC-RJ) “Sexualidade,
gênero e diversidade: currículo e prática pedagógica”, por se tratar de um levantamento
realizado no curso de extensão que envolveu mais de 350 profissionais de educação,
“Diversidade Sexual na Escola”. Fazia parte da metodologia do curso incentivar os/as
cursistas a desenvolverem atividades pedagógicas nos seus contextos escolares e
trabalharem a questão da diversidade sexual e de gênero. O autor evidenciou que “se
não há caminho certo, o que ainda há é um longo caminho a ser percorrido, não apenas
na desconstrução das violências e desigualdades, mas na construção de uma pedagogia
que tenha o reconhecimento da diferença, a promoção da reflexão crítica e a superação
das desigualdades como meio e objetivo” (CASTRO, 2012, p. 13).
A 36ª RA aconteceu em Goiânia em 2013 e contou com o Trabalho
encomendado de Ribeiro e Xavier Filha “Trajetórias teórico-metodológicas em 10 anos de
produção do GT 23”, um Minicurso que fora proposto no ano anterior e que não pode ser
ministrado naquele momento, coordenado por Sílvio Donizetti de Oliveira Gallo
(UNICAMP) intitulado “Foucault e a ética: a constituição de si”, 17 Trabalhos, sendo 14
apresentados e 3 excedentes, além de 2 Pôsteres que também foram expostos oralmente
em cinco minutos cada, na sala do GT 23.
Entre os Trabalhos dessa RA que tratavam da sexualidade houve a prevalência
do referencial teórico de Michel Foucault e o conceito de dispositivo da sexualidade.

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61

Também pude constatar uma unanimidade na utilização da teoria Queer, referenciada


especialmente por Judith Butler, nos estudos sobre homossexualidade, transversalidade
e travestilidade.
Jackson Ronie Sá-Silva (UEMA) e Edla Eggert (UNISINOS), com o artigo
“Homossexualidade, medicina e educação: a construção de uma pedagogia dos manuais
médicos”, pesquisa que objetivou analisar livros de medicina, psicologia e educação
publicados no Brasil do século XX, argumentando sobre um conjunto de ideias sobre a
homossexualidade.
Marco Antonio Torres (UFOP) com o texto “Docência, transexualidades e
travestilidades: a emergência Rede Trans Educ Brasil”, analisou a “emergência da
identidade coletiva de professoras travestis e transexuais como um exercício de
transformação que articula significados não disponibilizados na prostituição e nos
diagnósticos do gênero”.
Dayana Brunetto Carlin dos Santos (UFPR), com o texto “A escola como
empreendimento biopolítico de governo dos corpos e subjetividades transexuais”
apropriou-se de conceitos de Michel Foucault, produtivos para o entendimento da
invenção do dispositivo da sexualidade e de um de seus deslocamentos – “o dispositivo
da transexualidade, bem como [...] os agenciamentos biopolíticos da instituição escolar
com vistas ao controle e ao governamento dos corpos e subjetividades trav e trans”.
Neil Franco (UFMT/CUA) e Graça Aparecida Cicillini (UFU) apresentaram o
artigo “Professoras travestis e transexuais brasileiras e seu processo de escolarização:
caminhos percorridos e obstáculos enfrentados”. Contextualizam sobre os caminhos
percorridos e os obstáculos encontrados por professoras travestis e transexuais
brasileiras em seus processos de escolarização e inserção na docência, cujo objetivo foi
“identificar e problematizar sobre os indícios de desestabilização que a presença de
professoras travestis e transexuais provocariam nas escolas em que atuam”.
Emerson Martins (UFFS) e Rogério Machado Rosa (UFSC) no texto “Juventude
gay na zona rural: a dobra como processo de subjetivação” apresentaram reflexões
teóricas e epistemológicas de uma pesquisa cartográfica em andamento. Os autores
tentaram problematizar o lugar da performatividade, pensando o corpo e os processos
que nele atuam.
Jamil Cabral Sierra (UFPR), expôs o ensaio intitulado “Gilda e a vida queerizada”,
realizando um cruzamento entre o que denomina de atitude queer e atitude cínica,

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62

valendo-se dos aportes de Foucault sobre a noção de ética/estética da existência e do


pensamento queer, na figura de Gilda, uma travesti que viveu em Curitiba na década de
1980. Neste trabalho, o autor questiona a lógica identitária, caracterizando as formas
atuais de contra conduta frente ao processo de normalização dos corpos e das práticas
sexuais e afetivo-amorosas LGBT.
Neste momento, farei destaque ao artigo de Sierra (2013), um rico trabalho de
cunho filosófico, por chamar a atenção para os modos de viver, de relacionar-se com o
outro e de tratar o próprio corpo, marcas do que o autor denomina de “vida vivível” de
Gilda. Sua observação das questões é bastante arguta, embora não sejam construídas
relações mais explícitas com a educação.
Tais articulações encontram sustentação nas análises de Louro (2001b) para
quem queer representa a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto,
sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora. Entende-se “queer” como
estranho, talvez ridículo, excêntrico, dentre outros adjetivos que se refere àquele/a que
não se “enquadra” às regras de uma sociedade normativa e heteronormativa. Para a
autora, a expressão também se constitui na forma pejorativa com que são designados
homens e mulheres homossexuais.
Louro (2001b, p. 550) sugere uma “pedagogia queer” e ressalta que esta se
distinguiria de “programas multiculturais bem intencionados, onde as diferenças (de
gênero, sexuais ou étnicas) são toleradas ou são apreciadas como curiosidades exóticas”.
Para a autora uma pedagogia e um currículo queer deveriam estar voltados para o
processo de produção das diferenças e trabalhariam, centralmente, com a instabilidade
e a precariedade de todas as identidades.
Nos demais trabalhos, as autoras e autores também utilizam os aportes teóricos
pós-críticos, o que instiga, segundo Ribeiro e Xavier Filha (2013, p. 16), “pensar e
repensar a pesquisa”. São elas/es : 1) Dagmar Meyer – UFRGS e Carin Klein – Pref.
Municipal de Canoas/RS, apresentam “Um olhar de gênero sobre a ‘inclusão social’”; 2)
Maria Simone Schwengber – UNIJUÍ discutiu “As imagens e a educação generificada dos
corpos”; 3) Rosalinda Ritti – UFJF expôs o trabalho intitulado “Todo dia eu penso: meu
Deus, onde foi que eu errei?”: os desafios de ser mãe na periferia”; 4) Mariana Monteiro –
FEF/UNICAMP e Helena Altmann – FEF/UNICAMP discutiram acerca das “Trajetórias na
docência: professores homens na educação infantil”; 5) Roney Castro – UFJF discute as
“Escritas-narrativas de estudantes problematizando relações de gênero e sexualidades”;

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63

6) Jeane Félix da Silva – UFRGS, discorrem sobre as “Sexualidades juvenis e diagnóstico


soropositivo: a AIDS como processo de (des)aprendizagens”; 7) Priscila Dornelles –
UFRGS, tratou dos “‘Apoios ou agachamentos?’: a normalização do gênero na educação
física escolar”; 8) Sandra Andrade – UFRGS, apresentou “Juventudes contemporâneas e
alguns de seus marcadores identitários: histórias narradas”; 9) Juliana Vargas – UFRGS e
Maria Luisa Xavier – UFRGS discutiram “A feminilidade em discurso: mídias musicais
contemporâneas produzindo modos de ser jovem e mulher”; 10) Neide Moura – UFFS,
realizou “Análise de livros didáticos de língua portuguesa na perspectiva da ideologia de
gênero” e 11) Taisa Ferreira – UEFS discorreu sobre os “Modos de ver, sentir, e
questionar: a presença do gênero e da sexualidade no curso de Pedagogia”.
Além desses trabalhos, tem-se ainda os pôsteres de Maria Claudia Dal’Igna –
UNISINOS que tratou do “Gênero e governamentalidade: uma articulação teórico-
metodológica para analisar processos de subjetivação” e Roberta Maisato – UFMS com o
texto “Concepções de corpo e gênero de crianças de uma escola especializada no
atendimento a pessoas com deficiência intelectual e múltipla”.
Destaco de maneira especial, por se assemelhar ao estudo desenvolvido por
mim, o artigo de Roney Castro (2013). Embora este autor discuta as experiências
construídas por estudantes de Pedagogia em uma disciplina que trabalha com as
categorias de relações de gênero e sexualidades, o texto apresenta análises de um dos
dispositivos20 dessa disciplina: os diários de bordo. Neste documento são registrados,
pelas alunas do curso de Pedagogia, as diferentes ideias, as conduções entre valores e
crenças, o andamento da disciplina, percorridos pelos textos, imagens, narrativas e
memórias, na produção de experiências, dentre outros instrumentos. Tais recursos
também foram utilizados pelos/as cursistas durante a trajetória no GDE. A partir das
anotações realizadas em seus diários, deveriam elaborar um memorial descritivo e
reflexivo ao final do curso. Estes memoriais foram analisados e subsidiaram as escolhas
dos sujeitos desta pesquisa, conforme mencionado anteriormente.

20
De acordo com Foucault, dispositivos são os operadores materiais do poder, isto é, as técnicas, as
estratégias e as formas de assujeitamento utilizados pelo poder. Conforme Foucault (1999, p. 244) é “[...]
um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas,
decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas. Em suma: o dito e o não dito [...]. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre
esses elementos”.

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64

Assim como a disciplina estudada e aludida no texto de Castro, o Curso GDE


também dispõe de técnicas que produzem inúmeras discussões e aprendizagens acerca
das maneiras pelas quais somos afetados/as pelas “Pedagogias da sexualidade” (LOURO,
2003), ou seja, “os modos como nos constituímos pelos discursos que anunciam
múltiplas formas de se fazer mulher e homem, sugerem e promovem várias
possibilidades de viver desejos e prazeres” (CASTRO, 2013, p. 1).
Na continuidade da pesquisa, observo que com esses mapeamentos alguns
achados indicaram a necessidade de redirecionar nossos esforços para novas
intervenções, localizando de modo mais preciso o lugar a ser ocupado pela tese aqui
descrita, no campo da produção, tais como nos orientam Souza; Sousa; Catani (2008, p.
33):
As análises que produzem mapeamentos, estados da arte ou grandes
quadros de caracterização de pesquisas num determinado território
temático ou disciplina têm proliferado bastante em nosso país, nos
últimos anos. Estratégia fecunda para ordenar e permitir distinções,
agrupamentos e identificação de problemas, perspectivas ou questões.

Assim, penso que se não há um único caminho e este não é certo, o que ainda há
é um extenso caminho a ser trilhado, não apenas na desconstrução dos preconceitos,
discriminações e desigualdades de gênero e sexualidade na escola, mas, na construção
de uma prática docente que tenha o reconhecimento da diferença, a promoção da
reflexão crítica e a superação das desigualdades como meio e objetivo.

1.2 Procedimentos adotados no estudo: vários caminhos, algumas escolhas

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o processo de pesquisa é


sempre muito complexo, envolvendo descobertas e impasses que
devem ser analisados, isto é, colocando os pesquisadores sempre em
situação de incertezas, mais do que em condições de traçar
caminhos previamente definidos.
Zeila Demartini (2006, p. 65)

Por compreender que numa pesquisa vivemos sempre em “situação de


incertezas” e por entender que vivemos em uma sociedade complexa21,
consequentemente numa realidade complexa e que o processo de pesquisa também é

21
Segundo Melucci (1997; 2004), a atual sociedade, denominada por ele de “complexa” é marcada pela
descontinuidade, com novos significados que também remetem as inúmeras formas de dominação e
controle. Para ele, a sociedade complexa possui três dimensões: espaços diferenciados, com distintas
lógicas; variabilidade dos tempos em constante ressignificação dos valores e alargamento das
possibilidades de ação e permanente incerteza.

.
65

complexo, ao percorrer os caminhos de reflexão acerca das temáticas estudadas, quer


seja sobre gênero e/ou sexualidade na formação e nas práticas escolares, percebo que
tais questões não devem ser encaradas como meras mediadoras do processo de ensino e
aprendizagem, mas, sim, como práticas atravessadas por mecanismos que constituem
posições do sujeito, normatividades, diferenças e desigualdades.
Além disso, percebo ser necessário refletir sobre o desenvolvimento da
pesquisa, em todas as suas etapas, com seus problemas e desafios. Também é preciso
pensar as demandas que a própria investigação exige, os caminhos que se apresentam e
as escolhas possíveis. Com esse entendimento a leitura e reflexão da obra de Bourdieu
(1983, 1997, 2001a, 2004a, 2004b, 2007a, 2007b, 2010) foi essencial na tentativa de
apreender os principais conceitos por ele construídos (habitus, campo, poder simbólico,
violência simbólica, dominação masculina, dentre outros).
Na análise bibliográfica acerca das questões de gênero, sexualidade, educação
sexual na escola e homofobia na escola, destacam Louro (1997a, 2001a, 2001b, 2001c,
2003, 2004), Furlani (2005, 2007, 2009, 2011), Scott (1995). Foram realizadas leituras
acerca da formação docente, com ênfase na formação contínua, saberes, práticas
docentes e currículo: Catani, Vicentini (2006), Costa (2001), Nóvoa (1997), Perrenoud
(1993, 2001, 2002), Tardif (2011). Além de pesquisa documental em fontes disponíveis
nos sites da SECADI/MEC (http://portal.mec.gov.br/), da Secretaria Especial de Políticas
para as Mulheres (SPM) (http://www.spm.gov.br/), do Centro Latino-Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) (http://www.e-clam.org/gde.php). E análise do
Relatório Final do Curso GDE da UFMA e das atividades do Curso GDE postadas pelos
cursistas e colaboradores/as deste estudo no Ambiente Virtual de Aprendizagem
(AVA/UFMA), site (http://www.nEaD.ufma.br/), das quais se destacam: os comentários
nos fóruns de discussão dos módulos Gênero e Sexualidade e orientação sexual, seus
memoriais e os projetos didáticos.
Nesse caminhar, como instrumento teórico, tento refletir e relacionar o conceito
de gênero como possibilidade de realizar uma crítica da dominação masculina e da
subordinação e opressão feminina. O gênero, conceito que nasce a partir dos debates
entre feministas e pesquisadoras das universidades, nos anos de 1960, tem sua primeira
caracterização como construção social no que se relaciona ao sexo. As críticas assentam
esta significação como incompleta, pois naturaliza o sexo e expõe o gênero como seu
equivalente cultural. Deste modo, outras proposições surgem, como a de Joan Scott, que

.
66

caracteriza o gênero como categoria histórica de análise nas relações de poder. Por
conseguinte, de acordo com Bourdieu (2010), habitus de gênero são aprendidos, e
internalizados, geralmente sob o jugo da dicotomia e assimetria de papéis e da
heteronormatividade, de forma complexa e articulada a outras estruturas de dominação.
O conceito de gênero também introduz uma mudança que ainda é objeto de
polêmicas importantes no campo feminista, conforme aponta Meyer (2010, p. 18):
“Trata-se do fato de que o conceito sinaliza não apenas para as mulheres e nem mesmo
toma exclusivamente suas condições de vida como objeto de análise”. A autora defende
ser necessário considerar as relações de poder entre homens e mulheres e as formas
culturais e sociais que os constituem “sujeitos de gênero”. Entendo ainda que tais
relações podem ser explicadas a partir dos conceitos analíticos construídos por
Bourdieu: habitus e poder simbólico.
Nesse percurso na construção da pesquisa, foi possível proceder uma
categorização observando alguns dos enfoques privilegiados: a construção do conceito
de gênero, a presença da dominação masculina na família e na sociedade e os discursos
políticos, sociológicos e religiosos acerca da sexualidade. Tudo isso, como um caminho
provável de reflexão e de problematização dos ditos, não-ditos e interditos percebidos
nas narrativas dos/as colaboradores/as.

1.2.1 História Oral

A escolha da história oral como perspectiva de trabalho deve-se ao fato de suas


técnicas permitirem o acesso e a compreensão das impressões, aspectos subjetivos,
fantasias e visões de mundo implicadas nas experiências de vida dos indivíduos. O
acesso à memória individual é assim feito em busca do conhecimento de suas dimensões
sociais.
A história oral, mais do que outros recursos, permite a recriação da
multiplicidade dos diferentes pontos de vista, pois centra-se na memória humana e em
suas possibilidades de reconstrução do passado, enquanto testemunha do vivido. Ao
recorrer à memória como recurso de reconstrução do passado, mediante narrativas
orais penso ser possível compreender eventuais impactos do curso GDE, traduzidos nos
diferentes posicionamentos de cada sujeito colaborador/a da pesquisa, no cenário
educacional, não educacional e no próprio conhecimento de si que eles/as expressam.

.
67

Ao sugerir tal perspectiva não desconheço que é preciso, como indica Bourdieu
(2005) evitar a Ilusão biográfica. Embora se saiba que a realidade é descontinua e
composta por elementos imprevistos, sem razão ou conexão, ainda é muito comum o
pensamento de que “a vida constitui um todo, um conjunto coerente e orientado, que
pode e deve ser apreendido como expressão unitária de uma ‘intenção’ subjetiva e
objetiva [...]” (BOURDIEU, 2005, p.184). Tal pensamento parte de uma lógica cartesiana,
que considera a vida como uma evolução contínua e linear na qual acontecimentos
coerentes e sequenciais se encadeiam. O entendimento unidirecional da existência pode
ser superado, segundo o autor, a partir da substituição da ideia de linearidade pela
noção de trajetória. Ele a define como uma série de posições ocupadas num espaço em
que um agente é ele próprio um devir, sujeito a incessantes transformações e não um
indivíduo posto em linha evolutiva.
Além dessa preocupação, na revisão bibliográfica acerca da história oral e de
vida, pude observar que são variadas e não existe consensos nas definições dos termos,
havendo diferentes aspectos críticos que envolvem a utilização da fonte oral. No entanto,
inúmeros/as historiadores/as e pesquisadores/as defendem a história oral e a utilizam
em suas obras, dos quais destacam-se: Thompson (1998); Le Goff (1996); Joutard
(1998); Alberti (2004); Meihy (2005) e Meihy e Holanda (2011); dentre outros/as.
Conforme observa Ferreira (1998, p. 4) a partir da década de 1990, novas perspectivas
“alargaram os horizontes da história oral”, pois:
“[...] estavam neutralizadas as críticas tradicionais, já que a
subjetividade, as distorções dos depoimentos e a falta de veracidade a
eles imputadas podiam ser encaradas de uma nova maneira, não como
uma desqualificação, mas como uma fonte adicional de significados para
o pesquisador”.

Isto me fez pensar que esse caminho se tornaria mais frutífero, principalmente
por estar em constantes mudanças, sem o perigo da estagnação. Além disso, tais críticas
e a nova maneira de encarar a história oral, impulsionou-me a retomar as considerações
de Marilena Chauí ao prefaciar o livro “Memória e Sociedade” de Ecléa Bosi (1997). Chauí
afirma que ao descrever a substância social da memória (a matéria lembrada), Ecléa mostra
que o modo de lembrar é tanto “individual quanto social: o grupo transmite, retém e reforça as
lembranças, mas o recordador, ao trabalha-las, vai paulatinamente individualizando a
memória comunitária e, no que lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique”
(p. 31). Para a autora o tempo da memória é social, não só porque é o calendário do trabalho e

.
68

da festa, do acontecimento político e do fato insólito, mas também porque reflete no modo de
lembrar.
Chauí (1997) comenta ainda que quando Ecléa inicia a interpretação da família, faz
emergir, de forma primordial, o processo de socialização, parecendo quase uma essência e a
cada passo que dava, algo se estendia “diante de nós como o alvo lençol de um coletivo
homogêneo pontilhado pelos bordados das diferenças grupais, pelos crivos familiares e
individuais” (p.32). Para a autora o bordado seria uma fronteira, pois o pontilhado das
diferenças faz aparecer uma profunda divisão que despedaça a sociedade de alto para baixo.
Mas, ao final, quando o grupo termina, “permanece junto às pedras na salvaguarda da
memória” (p. 33). Tempo e espaço são despedaçados, a lembrança se rompe e o mundo
se fragmenta, mas uma outra memória os fazem renascer: a memória do trabalho. E se
as diferenças se agravam, “já não agrava a diferenças entre os recordadores porque
todos trabalharam, antes e agora” (p. 33).
Com esse entendimento, vejo que como procedimento metodológico, a história
oral busca registrar impressões, vivências, lembranças das pessoas que se dispõem a
compartilhar suas memórias e dessa forma permitir um conhecimento do vivido muito
mais rico, dinâmico e colorido de situações que, de outra forma, não conheceríamos.
Outra questão percebida refere-se às inúmeras compreensões e divergências na
definição de história oral, pois as opiniões de historiadores/as e pesquisadores/as se
dividem. Conforme aponta Meihy e Holanda (2011), alguns/mas estudiosos/as da área a
consideram como uma ferramenta, outros como uma técnica; uns como forma de saber,
outros como disciplina e outros ainda como metodologia.
Thompson (1998) defende o uso da metodologia da história oral e afirma que “a
evidência oral pode conseguir algo mais penetrante e mais fundamental para a história.
[...] transformando os ‘objetos’ de estudo em ‘sujeitos’” (p. 137). Ele nos chama atenção
para a importância da História Oral, ressaltando ser uma metodologia tão antiga quanto
a própria história, sendo a primeira espécie de história. Para o autor, a história oral
ajuda a investigar, acessar e compreender o passado a partir de memórias lembradas e
narradas. A este respeito destaca:
A história oral não é necessariamente um instrumento de mudança; isso
depende do espírito com que seja utilizada. Não obstante, a história oral
pode certamente ser um meio de transformar tanto o conteúdo quanto a
finalidade da história. Pode ser utilizada para alterar o enfoque da
própria história e revelar novos campos de investigação; pode derrubar
barreiras que existam entre professores e estudantes, entre gerações,
entre instituições educacionais e o mundo exterior; e na produção da

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69

história – seja em livros, museus, rádio ou cinema – pode devolver às


pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental,
mediante suas próprias palavras (ibid, p. 22).

Thompson argumenta que nenhuma fonte está livre da subjetividade, seja ela
escrita, oral ou visual, pois todas podem ser insuficientes, ambíguas ou até mesmo
passíveis de manipulação. Joutard (1998) acrescenta que o progresso e difusão da
história oral possuem intensidades distintas em cada país, onde pode haver
“resistências” ou pode haver incentivos.
A história oral, de acordo com Alberti (2004) pode ser entendida como um
método de pesquisa que privilegia as entrevistas com pessoas que participaram, ou
testemunharam acontecimentos, conjunturas e visões de mundo. Ela ressalta que a
história é construída pelos próprios sujeitos. Dessa forma, é possível, encontrar sinais
dessa autoconstrução quando esses sujeitos relatam suas experiências, acontecimentos
inacabados e que ainda estão vivos na memória ou que podem vir à tona, em diálogos e
conflitos cujas marcas ainda não estavam presentes na lembrança.
Segundo Jacques Le Goff (1996) a memória e o passado são objetos da história e
motores para seu desenvolvimento. A memória, indispensável para a construção da
história, constitui-se em presença do passado, como uma construção psíquica e
intelectual de fragmentos representativos desse mesmo passado, nunca em sua
totalidade, mas parciais em decorrência dos estímulos para a sua seleção. Portanto, a
memória é uma construção feita no presente a partir de vivências ocorridas no passado.
É pela lembrança que o presente é recriado, que se foge do momento sofrido e
temível para chegar em tempos de alegria e bem estar. É quando as lembranças e
histórias se tornam também curadoras. Por exemplo, a criança que ouve o contar, que
recebe imagens vividas em outros tempos se entusiasma, tranquiliza e alcança o sono.
Isso acontece com jovens, adultos e velhos também. As mesmas lembranças que ficaram
guardadas pelo caminho, podem se tornar, também recordações. Podem ser acessadas e
recontadas de diferentes formas. São imagens que podem ser transformadas e
readequadas de acordo com o conjunto de referências do presente. A memória por meio
das lembranças tece e fortalece relações que de tão cotidianas e banais passam
despercebidas no dia a dia.
A essa maneira de guardar lembranças Halbwachs (2006) intitula de memória
individual, ou seja, a forma como são selecionadas e dispostas as imagens-lembranças
vividas, ou a forma como são organizadas internamente em todo o conjunto de
.
70

referências e memórias-hábitos (que constitui a memória coletiva) aprendidas. A


memória individual é a partícula do ‘eu’ na memória coletiva. É a subjetividade dos
detalhes, dos objetos e das construções, das imagens.
Como forma de ilustrar a questão trago como aporte Leal (2011) em seu artigo
sobre a relação entre as categorias memória e cultura. Ela retoma Ecléa Bosi (1979),
quando analisa a teorização de Prost Bergson22 acerca do cone da memória, conforme
apresentado a seguir.
Figura 1: O cone da Memória23

Fonte: Disponível em: http://www.e-


publicacoes.uerj.br/index.php/geouerj/article/viewFile/2459/1731. Acesso em: 20 jul. 2015.

Leal (2011) comenta que o interior do cone pode ser entendido como
lembranças, o círculo inicial como passado, a ponta do cone (S) como a memória-
percepção, ou seja o ato de acessar o passado e lembranças, sendo influenciadas pelo
contexto e instante do presente. O plano P, seria o presente, o instante que reconfigura
imagens, resignificando cenas acessadas pela percepção. “Percepção e presente se
entrelaçam para trazer o que já foi presente para a cena num exercício que dá vida e
movimento ao que estava estático (passado). Essa é em si uma característica da
memória, promover fluidez e vida ao que num primeiro momento parece acabado e
pronto” (p. 5).
Conforme analisa Pollak (1989, p. 8), existem nas lembranças zonas de silêncios
e “não ditos”. Para o autor, “as fronteiras desses silêncios e ‘não-ditos’ com o

22
No livro: Matière et Mémoire. Ouvres, Paris: PUT, 1959.
23
Figura extraída por Bosi (1979, 2003), do livro: Matière et Mémoire. Ouvres, Paris: PUF, 1959.

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71

esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são inevitavelmente estanques e


estão em perpétuo deslocamento”. Ele comenta que essa tipologia dos discursos, bem
como os silêncios, as alusões e as metáforas, é moldada pela angústia que a pessoa tem
em não encontrar alguém que a escute, de ser punida pelo que diz, ou mesmo de se
expor a mal entendidos. Assim, conforme as circunstâncias, ocorre a emergência das
lembranças, a ênfase que se dá a um ou outro aspecto vivido.
Em consequência, há uma lembrança de um modo de vida, que longe de ser uma
cópia mimética de um antigo cotidiano vivido, vem à tona como um mosaico de
fragmentos, em que a memória, hábito de caráter mais pontual, dá lugar à memória do
sonho, em que o passado ressurge não como o acontecimento de um fenômeno
fidedigno do que realmente aconteceu, mas, sim, como uma reelaboração do acontecido,
(re) significando as experiências vivenciadas no tempo e no espaço do presente.
No que diz respeito ao estatuto da história oral, Meihy e Holanda (2011) buscam
seu lugar no campo científico e apresentam diferentes definições, das quais se destacam:
como “ferramenta”, como “técnica”, como “método”, como “forma de saber” e como
“disciplina”. Dentre estas, defendem a tendência mais radical para a história oral
considerando-a como “disciplina”, devido ao seu caráter político-cultural, com objetivo
próprio e capacidade de gerar soluções teóricas para as questões que surgem.
De acordo com os/as historiadores/as do Núcleo de História Oral da
Universidade de São Paulo (NEHO-USP), a história oral é caracterizada em três tipos
principais: História Oral de Vida, História Oral Temática e Tradição Oral. A primeira
consiste na narrativa da experiência de vida de uma pessoa cuja trajetória é significativa
para a compreensão de eventos, períodos e de práticas culturais e históricas. Sua
história é registrada e analisada num esforço para deslindar interações entre percursos
individuais e processos coletivos. Com isso, ela também nos traz a possibilidade de
construir a história coletiva. A segunda almeja o esclarecimento de um tema ou temas
específico/s, definido como foco central da pesquisa. Enquanto que a tradição oral
consiste num estudo muito próximo da etnografia, que busca detalhar o cotidiano de um
grupo, os seus mitos, rituais e visão de mundo, dando ênfase à história e as práticas
sociais de comunidades específicas, bem como a sua cadeia de transmissão.

.
72

1.2.2 História Oral de Vida e História Oral Temática

Ao reconhecer, conforme defendem os/as historiadores/as do NEHO-USP, que


as incertezas garantem às narrativas decorrentes da memória, um corpo original e
diverso dos documentos convencionais úteis à História. E após momentos de reflexão,
dentre os gêneros da história oral descritos anteriormente (história oral de vida, história
oral temática e tradição oral), compreendi que poderia trabalhar, de forma combinada,
com os dois primeiros.
Esta percepção e consequente escolha se deu inicialmente por constatar que em
meu processo de investigação, as entrevistas configuram-se como o epicentro da
pesquisa, além de serem a força maior de minhas preocupações. Outro motivo refere-se
ao fato de a história oral de vida adotar o discurso do sujeito como centro de interesse,
possibilitando, através de relatos particulares, que outras dimensões mais amplas
possam ser articuladas, para o entendimento de fenômenos sociais. Entendo que a
história oral de vida nos permite a compreensão da trajetória familiar, escolar e
profissional da/o docente, tanto em sua complexidade e especificidade, quanto em
relação à valorização de sua experiência de vida. Além de haver, nesta pesquisa, uma
“hipótese central” a ser “testada durante as entrevistas”, uma das características da
história oral temática. Por fim, esta escolha foi também devido ao fato de os/as
professores/as colaboradores/as narrarem suas vidas e suas experiências a partir de
um assunto específico e previamente estabelecido: a construção e a vivência das
relações de gênero e sexualidade em suas trajetórias, na formação docente e
continuada, bem como em suas práticas escolares.
De acordo com Meihy e Holanda (2011, p. 40) na história oral temática
pretende-se, mesmo considerando que ela seja narrativa de um fato, que ela “busque a
variante considerada legítima de quem presenciou um acontecimento ou que pelo
menos dele tenha alguma variante que seja discutível ou contestatória”. A hipótese
central deste estudo, refere-se ao fato de sabermos que embora haja cursos de formação
docente continuada que tratem das questões da sexualidade e de gênero, como o Curso
GDE por exemplo, a mudança de comportamentos e atitudes nas práticas escolares dos
professores e professoras não depende apenas do aprendizado de conteúdos ou da

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73

aquisição de informações sobre tais questões, depende também da história do sujeito e


da sua condição no presente do exercício do trabalho educativo.
A forma como nos comportamos, pensamos e nos expressamos, desdobra-se,
conforme defende Bourdieu (2001a, 2004, 2005, 2007) a partir de um habitus adquirido
e relacionado às estratégias derivadas da crença no poder dos bens simbólicos,
construídos e constituídos desde a infância, sobretudo nos campos familiar, escolar e
religioso. Pode-se dizer que as representações e práticas desenvolvidas na escola acerca
das questões da sexualidade derivam de uma espécie de disputa entre a visão de mundo
e o habitus construído e os novos aprendizados decorrentes do Curso GDE.

1.2.3 A escolha dos/as colaboradores/as da pesquisa

Ao explicitar o “como fazer” no desenvolvimento do projeto de história oral,


Meihy e Holanda (2011) sugerem que devem ser definidos, a comunidade de destino, a
colônia e a rede. A primeira trata-se da instância que determina o comportamento dos
agentes que registrarão suas memórias, ou seja, que concederão entrevistas durante a
pesquisa; colônia pode ser definida pela parcela de pessoas de uma mesma comunidade
de destino, constituindo-se na primeira divisão do grupo. Como esta divisão é muito
ampla, é realizada subdivisão, denominada rede.
O Curso GDE ofertado pela UFMA constitui a comunidade de destino; os/as
alunos/as que concluíram o curso em 2009 ou 2010 formam a colônia. E a rede foi
integrada por 29 cursistas que elaboraram projetos didáticos ao final do curso sobre as
temáticas gênero e/ou sexualidade. A divisão e subdivisão da colônia, ocorreram através
dos seguintes procedimentos: inicialmente efetuou-se um levantamento entre os/as
egressos/as do curso ofertado pela UFMA; realizou-se leitura do Relatório final e análise
dos memoriais e dos projetos de intervenção apresentados ao final do curso como forma
de pré-selecionar aqueles/as que demonstravam maior interesse pelas temáticas
sexualidade e/ou gênero.
Na figura a seguir, são demonstradas a divisão e subdivisão do grupo.

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74

Figura 2: Divisão e subdivisão do grupo entrevistado

Fonte: Organizado pela autora

Após a pré-seleção, foram coletadas informações dos/as cursistas egressos/as


em suas fichas de matrícula como: nomes, endereços, telefones e e-mails. Em seguida, foi
feito contato e o convite para participarem neste estudo, concedendo entrevistas. Depois
de várias tentativas, algumas exitosas, outras não, foram agendados encontros com treze
egressos/as, das quais sete foram realizadas por mim 24 entre os meses de junho de 2012
e fevereiro de 2013. Dentre estes/as, quatro haviam sido cursistas do Polo de Imperatriz
e três do Polo de Porto Franco, municípios do sul do Maranhão. No intuito de preservar
suas identidades foram escolhidos pseudônimos, conforme sugerido por uma delas ou
escolhidos por mim, sendo estes nomes recorrentes na região. Cumpre ressaltar que um
dos colaboradores fez questão que fosse utilizado seu próprio nome.
A seguir temos o quadro com o perfil desses/as colaboradores/as.

24
Considerando que na época eu era uma das responsáveis pelo desenvolvimento do projeto de pesquisa
intitulado “O Curso Gênero e Diversidade na Escola no Processo Educativo Maranhense”, financiado pelo
CNPQ e vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero (GEMGe),
parte dos relatos foram analisados também para o referido projeto. E dentre as 13 entrevistas concedidas, 6 delas
foram realizadas por outros membros do GEMGe. Com isso, durante o Exame de Qualificação foi sugerido que
utilizasse nesta tese, apenas entrevistas por mim realizadas.

.
75

Quadro 2: Perfil dos/as colaboradores/as da pesquisa

Nome ou Faixa Estado Religião Formação * Tempo na


docência
Pseudônimo etária Civil PG
EM ES (anos)
(Latu e Stricto Sensu)
Pedagogia e
JÓNATA 30 Solteiro Católico Magistério Educ. Infantil 13
Matemática
Ciências
ELIAS 34 Casado Evangélico Formação Geral Ciências Ambientais 04
Biológicas
Educação Especial
Técnico em
FÁTIMA 50 Casada Espírita Letras Mestrado em Ciências 20
Contabilidade
Sociais
15
Met. da Educação
JÉSSICA 34 Casada Evangélica Formação Geral Pedagogia Superior, Informática
Aplicada a Educação
Gestão Pública
JOÃO 34 Casado Evangélico Formação Geral Pedagogia 01
Educacional
Docência do Ensino
VERA 34 Casada Católica Magistério Geografia 18
Superior
Docência do Ensino
TELMA 42 Solteira Espírita Magistério História 20
Superior

* EM = Ensino Médio - ES = Ensino Superior - PS = Pós-Graduação


Fonte: Organizado pela autora.

Didaticamente, conforme orientações de Meihy (2005) e Meihy e Holanda


(2011), o processo, desde os primeiros contatos com os sujeitos até a análise das
narrativas, pode ser dividido em pré-entrevista, entrevista e pós-entrevista. A primeira
corresponde a uma preparação na qual são feitos os primeiros contatos e aproximações
com o/a colaborador/a e com o seu contexto, além de ser o momento em que se deve
explicar o projeto de pesquisa, estabelecendo o processo de colaboração.
Esse momento se deu quando do agendamento com os sujeitos pré-
selecionados. Na ocasião foram explicados os objetivos do trabalho e o porquê de terem
sido escolhidos como colaboradores/as da pesquisa. Cumpre ressaltar que antes do
agendamento e realização das entrevistas, a súmula do projeto juntamente com o esboço
do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (Apêndice B) foram submetidos e
aprovados pelo Comitê de Ética da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
(FEUSP) (Anexo).
Foram agendados os encontros para as entrevistas e foram retomados,
cuidadosamente, os projetos e os memoriais pois considerava que seriam importantes
para o início do vínculo com as colaboradoras e colaboradores. Foi o momento em que
reuni diferentes informações e conhecimentos para que pudesse manter um diálogo
fluente com cada egresso/a.
A entrevista enquanto ponto central do estudo, foi a oportunidade dos/as
colaboradores/as expressarem-se, retomando situações pessoais como sentimentos,

.
76

sonhos e desejos. Ao iniciar cada diálogo/entrevista foi esclarecida a importância de sua


contribuição, bem como os cuidados éticos adotados. Dentre estes, ressaltei que seriam
oferecidas devolutivas do texto transcrito para que fizessem as observações e mudanças
necessárias e foi garantido o anonimato, através da utilização de pseudônimos que
poderiam ser sugeridos pelos mesmos, caso assim preferissem. Em continuidade, foi lido
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e solicitada sua assinatura, bem como a
autorização para a gravação da conversa.
A etapa denominada de pós-entrevista refere-se ao trabalho do/a
pesquisador/a na organização e tratamento das informações, o que compreende, de
acordo com Meihy (2005) e Meihy e Holanda (2011), três procedimentos: transcrição,
textualização e transcriação. Termos que serão explicitados mais adiante.
Com este breve relato, esclareço que utilizo a metodologia da história oral, com
ênfase na história oral de vida e na história oral temática justamente porque permitem a
compreensão das múltiplas especificidades e complexidades dos sujeitos e suas
trajetórias.

1.2.4 As entrevistas e seu tratamento

O procedimento fundamental da construção dos dados na história oral de vida e


história oral temática é a entrevista. Ela caracteriza-se por ser um processo de relação
interpessoal em que ocorre o encontro entre a subjetividade do/a pesquisador e a do/a
colaborador/a. A entrevista semiestruturada valoriza a presença do/a pesquisador/a e
oferece perspectivas possíveis para que o/a colaborador/a alcance liberdade e
espontaneidade necessárias, enriquecendo o processo investigativo. Com esse
entendimento, foi elaborado um roteiro prévio (basEaDo nas sugestões de Thompsom,
1998), iniciando-se por um questionário com perguntas abertas e fechadas, cujo objetivo
seria conhecer os dados sócio profissionais das/os colaboradoras/es, seguidos de 5
blocos de perguntas: 1) trajetória familiar; 2) Formação inicial – a escola; 3) Formação
Profissional; 4) Gênero e Sexualidade nas Práticas escolares e 5) Formação continuada e
o Curso GDE (Apêndice A). Durante as entrevistas foi possível subsumir, acrescentar e
modificar perguntas, conforme os diálogos iam se tecendo.

.
77

Vale ressaltar, conforme alerta Bourdieu (2005), que “produzir uma história de
vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato coerente de uma sequência de
acontecimentos com significado e direção, talvez seja conformar-se com uma ilusão
retórica” (p.188). Dessa forma, ao se tratar de narrativas, normalmente, elas se referem
à vida como uma linearidade, como um fio único, quando sabemos que na existência de
qualquer pessoa, multiplicam-se causalidades, oportunidades, escolhas e alocações
diversas que ocorrem em variados momentos. Assim, tentarei considerar que nas
narrativas, assim como nas lembranças, o passado que se reconstrói discursivamente
não é de fato linear, mas contém superposições de tempo, reflexões e espontaneidade. O
que retorna não é o passado em si, mas a (re) leitura das representações e experiências
guardadas na memória e incitadas em um dado momento, sob determinadas
circunstâncias.
Ademais, procurei ter o cuidado, conforme nos previne Bourdieu (2011) quando
retoma o papel do pesquisador na entrevista e quando destaca: “é o pesquisador que
inicia o jogo e estabelece a regra do jogo, é ele quem, geralmente, atribui à entrevista, de
maneira unilateral e sem negociações prévias, os objetivos e hábitos, às vezes mal
determinados, ao menos para o pesquisado" (p. 695). Além disso, a relação entre os
sujeitos, na pesquisa, instaura-se, na base de um acordo dos inconscientes, não sendo
possível ignorar que nosso próprio ponto de vista tende a ser um ponto de vista sobre
outro ponto de vista, conforme sublinha o autor. Assim, geralmente as narrativas são
editadas de acordo com os interesses de quem entrevista e da própria pesquisa.
Ao considerar que neste estudo, tais interesses orientam-se pelas ações e
reações dos/as colaboradores/as sobre as questões da sexualidade e do gênero, é
cabível afirmar que este fato pode definir os lugares ocupados pela pessoa entrevistada
e pela entrevistadora. Com este entendimento procurei manter uma disposição
acolhedora, deixando os/as entrevistados/as à vontade para narrarem suas histórias e
trajetórias. Não se pode esquecer do conhecimento que o próprio sujeito tem do seu
mundo social e das representações que organizam sua percepção da realidade, bem
como das formas próprias de dizer e silenciar sua história, que são fundamentais para o
estudo em pauta. Esta afirmação não introduz qualquer relativismo na interpretação,
mas, se esforça em assinalar as singularidades dos relatos dos sujeitos. Tais percepções
conforme Bourdieu (2005) são duas propriedades essenciais em relação à entrevista e
cabe ao entrevistador/a trabalhar para dominar ao máximo os seus efeitos sobre a

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78

pesquisa e sobre a pessoa entrevistada a fim de diminuir, com certo grau de sucesso, a
violência simbólica que se exerce por meio da pesquisa. Entendo, ainda, que a busca de
significados dos fatos não pode pretender alcançar o que realmente aconteceu, mas sim
a representação e a interpretação, pelas vozes de quem o vivenciou.
Além desses cuidados, ao término da entrevista foi dito que o retorno do
material para a conferência levaria um tempo incerto, dadas às dificuldades do processo
de transcrição. A preocupação em obter a revisão e a autorização de uso das entrevistas
justificava-se pelo fato de que cada narrativa seria utilizada para a confecção de um
trabalho escrito, mudando-se, conforme a necessidade, o peso das palavras. Para tanto,
fazem-se necessárias, conforme orientações de Meihy (2005) e Meihy e Holanda (2011)
as etapas pós-entrevista: transcrição, textualização e transcriação. Segue uma breve
descrição dos termos:

 Transcrição: é a passagem rigorosa da entrevista (após a escuta minuciosa de


todo o conteúdo por algumas vezes) do áudio para o papel, com todos os seus
lapsos, erros, repetições e incompreensões, incluindo as perguntas do/a
entrevistador/a;
 Textualização: etapa na qual as perguntas são suprimidas e agregadas às
respostas, passando a ser todo o texto de domínio exclusivo do/a colaborador/a,
assumindo, como personagem único, a primeira pessoa. Durante esta etapa, a
narrativa recebe uma pequena reorganização para se tornar mais clara. Nesse
momento, também ocorre a escolha do tom vital25 da entrevista, ou seja, a frase
que dá essência, que sintetiza a entrevista (MEIHY, 2005);
 Transcriação: é a etapa na qual se atua no depoimento de maneira mais ampla,
invertendo-se a ordem de parágrafos, retirando ou acrescentando-se palavras e
frases e, enfim, realizando-se o "teatro de linguagem". Para teatralizar, a própria
língua dispõe de instrumentos, como a pontuação, particularmente as reticências
e a interjeição – que se prestam como mostras de onde o/a leitor/a deve respirar,
quais as paradas estratégicas e quais as sinuosidades propostas. Recria-se, então,
a atmosfera da entrevista, procurando-se trazer ao leitor/a o mundo de
sensações provocadas pelo contato, o que não ocorreria reproduzindo-se palavra
por palavra. As transcriações das entrevistas constam no Apêndice C.

25
O tom vital, conforme MEIHY (2005) é o tema com força expressiva para guiar o/a leitor/a, e
representa sua síntese moral, sendo colocado sob a forma de epígrafe em cada narrativa.

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79

Este último é um termo de difícil definição, um neologismo inventado pelo poeta


Haroldo de Campos (1929-2003). Ele inventou a palavra e utilizou o termo em várias
acepções e de modo geral, significa “transformação do original”. Segundo Tápia (2010), o
poeta acreditava que se não se pode traduzir, pode-se transcriar a poesia. Assim,
denominou a transposição criativa, numa só palavra, transcriação, para designar a
atividade criativa. No caso dos poemas, seria a invenção de um poema a partir de outro,
“a modernização do poema original a partir da linguagem atual [...]. Fazer um novo
poema inserindo em novo lugar e novo tempo, em vez de se fazer uma ‘arqueologia’ de
sua função social, cultural ou histórica” (TÁPIA, 2010, p. 4). Seu objetivo seria ir na
direção oposta da literalidade.
Meihy (2005) e Mehy e Holanda (2011) apropriaram-se de um termo criado por
outro e o adaptaram para o uso nas pesquisas, defendendo que a transcriação é a fase
final do trabalho dos discursos, momento em que será teatralizado o que foi dito,
recriando-se o ambiente da entrevista. Tal recriação poderá levar o/a leitor/a ao mundo
de sensações geradas pelo contato. Isto não aconteceria reproduzindo-se o que foi dito
palavra por palavra, apenas na transcrição. Esse novo texto permite que se pense a
entrevista como algo ficcional e a narrativa é valorizada como um elemento
comunicativo carregado de sugestões. Esse processo não é apenas a modificação ou fase
final dos trabalhos dos discursos, mas sim uma concepção, não somente de como se
produz e se traduz um texto, mas sobre o fundamento da própria realidade e de como
podemos compreendê-la e modificá-la. No que diz respeito à valorização da história
individual, os objetivos da história oral devem se alicerçar em assuntos de amplitude
coletiva. É pertinente ressaltar que as informações obtidas mediante entrevistas,
seguem uma organização que possibilita uma compreensão, mais temática do que
biográfica dos conteúdos das narrativas. E recorre-se a nomes fictícios de modo a
preservar as individualidades.
Nas análises das narrativas devem ser expressadas as possibilidades de
desdobramento em situações específicas, a partir de cada entrevista, quer seja de
acontecimentos críticos, comuns e/ou recorrentes em cada caso. Pois entendo, conforme
aponta Meihy e Holanda (2011) que as entrevistas provenientes de projetos de história
oral devem proporcionar cruzamentos internos e externos a ela. Além disso, tais
possibilidades de desdobramento caracterizam a “sofisticação do projeto, que, quanto
mais detalhado, mais singular será” (p. 131).

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80

Em face da complexidade do problema, o qual demanda um exame em


profundidade para desvelar as múltiplas determinações e apreender sua essência, foi
adotada a Análise de Conteúdo (AC) como forma de interpretar as narrativas dos/as
colaboradores/as. A AC consiste em uma técnica de análise de dados popularizada por
Laurence Bardin (2011), a qual é definida como um método empírico. Configura-se
como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que faz uso de
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens. Para a
autora, a AC tem duas funções, sendo um heurística e uma de administração de prova: a
primeira enriquece a tentativa exploratória, aumenta a propensão à descoberta; é a
análise de conteúdo para ‘ver o que dá’; a segunda são hipóteses sob a forma de questões
ou de afirmações provisórias servindo de diretrizes.
A AC, como um conjunto de técnicas de análise das comunicações, apesar de
poder ser considerada como um instrumento de investigação, é marcada por uma
grande diversidade de formas e é adaptável a um campo de aplicação muito vasto, ou
seja, o campo das comunicações. A partir desse entendimento e seguindo as
recomendações de Bardin (2011), organizei o processo em três diferentes momentos,
sendo caracterizado pelos seguintes aspectos:

a) Pré-análise (organização) do material

Esta fase começa com a organização e escolha do material que foi analisado e a
formulação das questões norteadoras que irão fundamentar a interpretação final. Esta
fase foi subdividida da seguinte forma:

 Construção do corpus – os conteúdos levantados pelo roteiro da entrevista devem


satisfazer o critério de exaustividade. O material deve ser representativo e
pertinente aos objetivos do trabalho.

 Leitura flutuante – consiste em uma leitura exaustiva do material de análise,


tendo em vista os seguintes aspectos: a busca das impressões; a identificação dos
conteúdos presentes nas falas; o reconhecimento de elementos associados aos
conceitos, ou seja, às categorias que serão utilizadas e a busca de acontecimentos
críticos, comuns e/ou recorrentes em cada entrevista.

 Significado das hipóteses – neste momento foram escolhidos índices provenientes


das questões norteadoras, organizando-os em indicadores (normalmente os
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81

índices são os temas que se repetem com muita frequência). A partir desses
indicadores, foram elencados os temas encontrados, de acordo com os blocos das
entrevistas. Estes temas constam no Apêndice D.

Nesse percurso, a fase pré-analítica determina a unidade de contexto para a


compreensão da unidade de registro (palavras-chaves), além dos recortes, forma de
categorização e os conceitos teóricos mais gerais para orientação da análise por
categorias temáticas. Esse processo de categorização, aprofundamento e exame das
categorias temáticas, caracteriza-se como a segunda fase, na qual outros passos se
apresentam, quais sejam:

b) Exploração do material

Na segunda etapa os dados são codificados a partir das unidades de registro.


Para isso, foram desenvolvidos os seguintes passos:

 A definição de categorias específicas é realizada a partir da articulação das


palavras-chave e dos indicadores (temas) com significados similares, passíveis de
serem constituídos em elementos de análise significativas dos discursos.

 A definição de categorias gerais, ou núcleos de sentido, a partir da articulação, ou


não, das categorias específicas identificadas.

c) Tratamento dos resultados

Na última etapa, após a codificação e categorização, foi realizada a inferência e


interpretação. No que tange à codificação, “corresponde a uma transformação – efetuada
segundo regras precisas – dos dados brutos do texto, transformação esta que, por
recorte, agregação e enumeração, permite atingir uma representação do conteúdo, ou da
sua expressão” (BARDIN, 2011, p. 103). Após a codificação, segue-se para a
categorização, a qual consiste na

[...] classificação de elementos constitutivos de um conjunto, por


diferenciação e, seguidamente, por reagrupamento segundo o gênero
(analogia), com os critérios previamente definidos. As categorias, são
rubricas ou classes, as quais reúnem um grupo de elementos ... sob um
título genérico, agrupamento esse efectuado em razão dos caracteres
comuns destes elementos (ibid, p. 117).

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82

A autora apresenta as possíveis técnicas utilizadas na análise de conteúdo:


análise categorial, análise de avaliação, análise da enunciação, análise da expressão,
análise das relações e análise do discurso. Esta última, foi a escolhida por possibilitar
uma leitura profunda das comunicações, ou seja, ir além da leitura aparente, desvendar a
linguagem oculta, por trás de cada mensagem transmitida em seus diversos meios. Este
tipo de análise, tem Michel Pêcheux (1938-1983) como maior expoente e pode também
ser denominada Análise Automática do discurso (AAD). Ela nos possibilita apreender os
sentidos do discurso e não somente o conteúdo do texto; compreendendo o dito, ou seja,
a narrativa dos sujeitos pesquisados imbricada a um corpus constituído por ideologias,
história e linguagem.
Dessa forma, o/a pesquisador/a lê o texto enfocando a posição discursiva do
sujeito, sendo esta legitimada socialmente pela junção do social, da história e da
ideologia, produzindo sentidos (PÊCHEUX, 1993). Os pontos de apoio da teoria de
Pêcheux, segundo Bardin (2011, p. 221-222) estão estritamente relacionados aos
princípios e conceitos sociológicos de Bourdieu: “princípio de não transparência dos
factos sociais”. Para a autora, “a noção (central em Bourdieu bem como em Pêcheux é o
de processo de produção) de habitus [...], princípio construído de forma durável, gerador
de improvisações regulamentadas”. Esta etapa se deu a partir da retomada das etapas
anteriores:

 Análise individual do discurso: após a leitura exaustiva das entrevistas


transcriadas, procedeu-se uma interpretação vertical interna em cada discurso,
buscando-se inicialmente observar os temas abordados a partir da seleção das
categorias (palavras-chave) que representam os dados expressivos, conforme
explicitado e feito no primeiro momento (pré-análise). Inicialmente fez-se a
classificação dos elementos segundo suas semelhanças, com posterior
reagrupamento, em função de características comuns. Em seguida, tentou-se
captar os seguintes aspectos: a) ordem do aparecimento das unidades temáticas;
b) formas de expressão das narrativas: silenciamentos, recusas ou resistência a
um determinado tema, contradições, naturalidade ao relatar; c) conceitos e
palavras que representem questões de gênero e sexualidade. As categorias
relacionadas aos temas abordados constam no Apêndice E.

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83

 Análise temática dos discursos: nesta fase, houve a tentativa de executar uma
interpretação horizontal dos dados obtidos nas análises individuais, observando-
se as frequências, os temas recorrentes, os ausentes, dentre outros aspectos. As
informações foram condensadas e destacadas para exame, culminando nas
interpretações inferenciais em cada entrevista, ressaltando aspectos
evidenciados especialmente nos Estudos de Bourdieu, dos quais são ressaltados:
a construção e constituição dos habitus; a dominação masculina presente em suas
famílias; a violência simbólica vivenciada; a trajetória na formação profissional,
no Curso GDE e em suas práticas escolares, dentre outros.

 Análise Automática dos Discursos (AAD): na última foi efetuado o cruzamento das
análises individuais e temáticas, buscando-se apreender as similaridades e
diferenças, concordâncias e discordâncias, dentre outros aspectos.

Após este detalhamento dos modos de produção do trabalho, no próximo


capítulo são apresentados os/as colaboradores/as, com destaque nas questões de
gênero e da sexualidade vivenciadas em suas infâncias, bem como as possíveis
influências da família, da escola e da igreja na construção e constituição de seus habitus.

 

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84

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85

CAPÍTULO 2

O INÍCIO DAS TRAJETÓRIAS PERCORRIDAS

O caminho se faz ao caminhar.


(Damasceno & Sales)
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86

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87

Falar hoje de pessoas não significa alimentar uma visão romanceada


da educação ou recusar uma análise científica das realidades
pedagógicas; significa sim a afirmação de que é preciso conceber uma
ciência que não se imagine “contra” as pessoas, os seus
conhecimentos e sentimentos, mas que se desenvolva justamente a
partir deles. Valorizar as memórias não quer dizer o regresso a uma
definição idealista do trabalho histórico, a um simples encadeado de
descrições factuais e de narrativas pessoais; quer dizer, isso sim, que a
investigação histórica não pode ignorar a forma como os sujeitos
falam de suas vivências e as elaboram como elementos estruturantes
da sua identidade pessoal e profissional.
António Nóvoa (1996, p.206)

Inicio a reflexão deste capítulo recorrendo à citação de Nóvoa, especialmente,


porque ele apresenta subsídios fundamentais para o desenvolvimento de um estudo que
pretende utilizar relatos de docentes acerca da trajetória percorrida, com ênfase em
temáticas que no dito popular, são polêmicas: gênero e sexualidade. Temas que fazem
parte da vida privada de cada agente social, são complexos e multifacetados e se
traduzem em “elementos estruturantes da sua identidade pessoal e profissional”,
conforme aponta o autor.
E por se tratarem de temas integrantes da vida privada, ao iniciar as entrevistas,
houve certa inibição por parte da maioria dos/as colaboradores/as. Mas, no decorrer
nas narrativas, conforme íamos estabelecendo um vínculo entre entrevistadora e
entrevistado/a26, foi possível instituir um clima de confiança que contribuiu para a
rememoração de importantes e férteis acontecimentos de suas trajetórias.
No primeiro capítulo apresentei um quadro síntese com dados do perfil de cada
um desses/as sujeitos egressos/as do curso GDE. As entrevistas foram realizadas nos
municípios em que residiam, sendo que uma delas, embora fosse cursista do Polo de
Imperatriz, morava em São Luís – MA.
Os contatos iniciais para agendamento das entrevistas com os/as cursistas
egressos/as do Polo UAB de Imperatriz foram todos realizados por mim e com os/as de

26
Neste momento, retomo Xavier Filha (2005, p. 65) ao retratar a questão do vínculo e a discussão
da neutralidade do/a pesquisador/a num processo de investigação. A autora cita Ferrarotti (1998,
p. 27) quando diz que “toda entrevista biográfica é uma interação social completa, um sistema de
papéis, de expectativas, de injunções, de normas e de valores implícitos [...]. O entrevistador
nunca está ausente, mesmo que se finja ausente. É sempre recíproco, mesmo que aparentemente
se recusa a toda a reciprocidade [grifos do autor]”. Ela comenta, ainda, que um processo de coleta
das narrativas biográficas é um momento de coprodução entre a pessoa que entrevista e a
entrevistada e profissional.

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88

Porto Franco foram feitos por Lucélia Neves, uma das tutoras presenciais do curso, por
minha solicitação. Como ela residia naquele município e mantinha contato, com certa
frequência, com os/as cursistas que fizeram o GDE, havia se colocado à disposição para
contribuir agendando as entrevistas. Muito prestativa, Lucélia acreditava que desta
forma, poderia também colaborar no desenvolvimento do estudo que ora desenvolvia. A
princípio, foram agendadas por ela cinco entrevistas, entretanto duas delas foram
canceladas pelos próprios sujeitos, devido ao fato de terem outros compromissos nas
datas e horários previstos.
No que se refere às principais características dos/as colaboradores/as, é
importante frisar que a maioria, no momento das entrevistas, estava na faixa etária
entre trinta e quarenta anos, apenas uma delas tinha quarenta e dois anos e outra
contava cinquenta anos de idade. A maior parte era casada, sendo que apenas uma
professora e um professor eram solteiros. Em relação à religião, três deles/as eram
evangélicos/as, dois/duas católicos/as e duas espíritas kardecista. Sobre a formação
acadêmica e profissional, três deles/as fizeram Curso Magistério de Nível Médio, três
haviam realizado Formação Geral (antigo 2º grau) e uma delas concluiu o Curso Técnico
em Contabilidade. No Curso superior, esta mesma professora formou-se em Letras,
possui Especialização em Educação Especial e Mestrado em Ciências Sociais, o que
traduz uma formação bem diversificada. Dentre os/as demais, três delas/es são
pedagogas/os, um deles é formado em Ciências Biológicas, uma em Geografia e outra em
História. Todas as pessoas entrevistadas possuem alguma pós-graduação (latu sensu) na
área da Educação e a grande maioria possui mais de dez anos de experiência na
educação básica, conforme disposto no Quadro 2 (p. 75). Apenas um deles atua como
professor há menos de cinco anos e outro foi bolsista no Programa de Educação Tutorial
(PET)27 por dois anos.
No decorrer das entrevistas foram privilegiadas a formação docente –
sobretudo a continuada – e as práticas escolares no que refere ao tratamento das
questões de gênero e da sexualidade como foco primordial dos relatos. Tais questões,
são, portanto, demarcadas como ponto de partida e de chegada. E como os sujeitos da
pesquisa haviam concluído o GDE, curso no qual a mesma pessoa que as/os
entrevistavam havia sido também sua coordenadora, em certos momentos foi possível
27
O PET é desenvolvido por grupos de estudantes, com tutoria de um docente, organizados a
partir de formações em nível de graduação nas Instituições de Ensino Superior do País orientados
pelo princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e da educação tutorial.

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89

perceber um esforço sobremaneira, por parte delas e deles, de contar aquilo que
acreditavam que iria me agradar, o que consideravam poder ser dito e em quais
condições seria relatado.
Em certos casos as colaboradoras e colaboradores adotaram como estratégia
narrar fatos que compõem a trajetória profissional. Neste aspecto, a entrevistada ou
entrevistado revestia-se de um “ar professoral” para narrar fatos de sua vida, bem como
expressar, com certo distanciamento, de aspectos de sua intimidade. Entretanto, o que
importa numa pesquisa é notar como dizem e de que forma dizem.
Dentre os/as entrevistados/as o professor Jónata (Imperatriz) rememora sua
trajetória de vida com riquezas de detalhes, delineando profícuos aspectos por ele
vividos, estabelecendo intensos diálogos consigo mesmo para refletir acerca da
construção de sua identidade, recordando o passado e avaliando o presente, além de
colocar-se disponível e muito interessado em participar e contribuir com esta pesquisa.
Também foi possível notar, em determinados momentos da construção de sua história
de vida, certa cautela com o uso das palavras, além de tentar evidenciar sua militância
acadêmica e política. Fato este também notado na narrativa de Fátima, de maneira
especial quando ela defende a necessidade de inserção das questões de gênero e da
sexualidade no currículo das escolas. Ela faz uma comparação das escolas brasileiras
com as dos Estados Unidos, tentando demonstrar conhecimento e engajamento político
sobre a questão.
Também é importante lembrar que a figura do “outro” esteve presente em
algumas narrativas. Nestes casos, utilizam a expressão “você”, para comentar sobre si
mesmo/a. Isto aconteceu especialmente quando a/o entrevistada/o se questionava ou
criticava algo sobre si própria/o ou quando produzia uma narrativa com enunciados
cuja função é de questionar, afirmar ou solicitar a aceitação da entrevistadora.
Ao se pronunciarem sobre aspectos de sua formação docente e da vida
profissional foi possível perceber a necessidade que alguns possuem de se auto afirmar
na ocupação exercida. Com isto pude notar que ao mesmo tempo em que se fundem com
a identidade profissional ressaltando as atribuições do/a professor/a, sentem-se na
obrigação de se definirem como pessoas. Fazem referências ao modo como atuam e
fornecem elementos acerca do seu entendimento do trabalho e do seu papel ao serem
entrevistados/as.

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90

Todas essas atitudes parecem estar ligadas a um habitus professoral28. O habitus


permite que o sujeito possa aderir, ou não, às regras postas como “socialmente corretas”.
Isto porque, segundo Bourdieu (2007a, pp.201-202):
[...] o princípio unificador e gerador de todas as práticas e, em particular,
destas orientações comumente descritas como “escolha”, “vocação”, e
muitas vezes consideradas efeitos da “tomada de consciência”, não é
outra coisa senão o habitus, sistema de disposições inconscientes que
constitui o produto da interiorização das estruturas objetivas e que,
enquanto lugar geométrico dos determinismos objetivos e de uma
determinação do futuro objetivo e das esperanças subjetivas, tende a
produzir práticas e, por esta via, carreiras objetivamente ajustadas às
estruturas objetivas.

Bourdieu analisa as práticas dos agentes e suas relações com as questões sociais
e pessoais. Assim, ao comentar acerca do princípio da ação histórica, o autor estabelece,
conforme considerado por Afrânio Catani (2001, p. 98), “a relação entre dois estados do
social, a saber, entre a história objetivada nas coisas (sob a forma de instituições) e a
história encarnada nos corpos (sob a forma de disposições duráveis – habitus)”. Este
conceito refere-se portanto, ao conjunto de regras sociais incorporadas pelos sujeitos no
cumprimento de uma determinada função ou profissão. Como exemplo, vale destacar
um trecho da narrativa da professora Vera em janeiro de 2013: “Como diz a história: é
você jogar o jogo dos alunos...é ensinar e aprender junto com eles, e é claro você corrigindo
o linguajar deles” 29. Este enunciado, baseado na própria prática, permite inferir que a
opção pela terceira pessoa para comentar sobre si própria, além do tom usado na
construção da narrativa em certos momentos, são utilizados como se a entrevistada
estivesse ministrando um determinado conteúdo em sala de aula, o que também denota
um habitus professoral.

28
Nas obras de Tardif (2002) e de Perrenoud (1993, 2001, 2002), encontra-se com frequência
referência ao conceito de habitus apresentado por Bourdieu, convergindo no sentido de
conceberem o habitus como gerador de práticas dos/as professores/as. Tardif relaciona-o ao saber
da experiência e Perrenoud utiliza o conceito de habitus como um “condutor” das práticas do
professor e associa-o ao fazer cotidiano do professor, denominando-o habitus profissional. O termo
Habitus professoral foi utilizado por Marilda da Silva ao tomar como base o conceito de habitus
proposto por Bourdieu, discutindo-o na tese intitulada “As experiências vividas na formação e a
constituição do habitus professoral: implicações para o estudo da didática” (SILVA, 1999) e
publicada com o título “Como se ensina e como se aprende a ser professor: a evidência do habitus
professoral e da natureza prática da didática” (SILVA, 2005).
29
Todos os fragmentos das narrativas orais dos/as colaboradores/as são escritos entre aspas e com
fonte em itálico, como forma de evidenciar e diferenciar a mensagem descrita pelos/as mesmos/as
das que são enunciadas por mim ou por outros/as autores/as utilizados/as no trabalho.

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91

No processo de rememoração dos fatos e acontecimentos, os sujeitos


construíram narrativas não lineares, sendo notável também a própria seletividade com a
qual foram organizados os relatos. Houve momentos em que o silêncio falou mais alto;
em outros houve a tentativa de desviar-se e mudar o rumo da história narrada e houve,
ainda, aspectos esquecidos e alguns ocultados.
Com tudo isso, nas análises das entrevistas, realizei uma tentativa de tornar
evidente os elementos presentes tanto no que foi dito, como nos não-ditos, bem como os
incidentes críticos em cada narrativa e/ou trajetória individual, dentre os quais se
destacam: o início de um conflito vivido por Jónata no começo do Curso GDE ao
compreender sua bissexualidade; a iniciação sexual precoce de Elias com uma prostituta
que anos depois torna-se “uma mulher de família e evangélica”, conforme seu relato; a
humilhação sofrida por Fátima na escola devido ao uso de uma saia curta, além de ter
sido obrigada a matricular-se no curso de corte e costura; a gravidez precoce vivenciada
na família de Jéssica, sendo este fato entendido por ela como “consequência de atos
impensados”; um suposto caso de adultério ocorrido na família de João, acarretando
num sentimento de rejeição por seu pai; a violência sexual sofrida por uma aluna de
Vera, que “estava sendo abusada pelo padrasto em casa e não tinha apoio de ninguém,
nem mesmo da mãe” e a exclusão e bullying vivenciados na escola e constatado no relato
de Telma, quando destaca: “aquele mais delicadinho, os outros não querem no time”. Estes
incidentes serão detalhados e analisados posteriormente.
Na primeira subseção intitulada “Conhecendo as/os colaboradoras/es e suas
histórias” apresento cada um dos sujeitos que concederam entrevista, contando-nos um
pouco de suas histórias, seguindo uma cronologia, de acordo com as datas nas quais os
encontros foram realizados. Cada apresentação é iniciada com o nome ou pseudônimo e
um trecho do tom vital selecionado de sua narrativa transcriada (APÊNDICE F).
Descrevo e analiso outras características percebidas e contadas por eles/as e algumas
das percepções que tive acerca de cada um/a deles/as, antes e durante cada entrevista
concedida.
Na subseção intitulada “Silêncios, conselhos e diferentes verdades no
processo de socialização primária na família” são analisados os silêncios, discursos e
diferentes verdades percebidas na construção dos habitus. Tais percepções referem-se
ao desenvolvimento da sexualidade e às questões de gênero vivenciadas na socialização

.
92

primária30. Isto por entender que o habitus resulta de experiências de socialização nas
quais as estruturas externas são internalizadas. Em seguida são problematizados os
diferentes discursos, verbais e não verbais, bem como as distintas representações
apresentadas e percebidas em suas trajetórias percorridas e contadas na subseção
“entre os muros da escola e as tramas da memória”. Este capítulo é finalizado com as
análises das influências da religião no desenvolvimento das sexualidades.
Neste trajeto realizo uma tentativa de problematização de cada narrativa,
entendendo que “educar o olhar, significa aprender a pensar de forma sistemática e
metodicamente sobre as coisas, exigindo mais do que ‘ver’ as coisas e implicando
perceber o que elas são, como se apresentam e se representam” (SILVA, S. M. P., 2011, p.
25). O que também significa encontrar trilhas diferentes a serem seguidas, transformar
transgressões em práticas que supomos serem permanentes, sentidos que nos parecem
demasiadamente fixos, direções que nos parecem lineares em excesso. Pois assim,
educamos nosso olhar e seguimos em frente.

2.1 Conhecendo as/os colaboradoras/es e suas histórias

É totalmente impossível imaginar uma separação entre o sujeito da


pesquisa e o seu objeto se o sujeito é ele mesmo um ser social, se as
ações humanas que modelam e transformam a sociedade da qual o [a]
pesquisador [a] é parte integrante, podendo inclusive sofrer as
consequências de projeto social que propõe ou das transformações que
sua ação pode provocar.
Carlos Brandão (1985, p. 24)

Por entender, conforme aponta Brandão, que é impossível separar sujeito e


objeto da pesquisa, principalmente em sendo este um ser social e com o objetivo de
perceber algumas das características dos/as entrevistados/as, para que pudesse
redirecionar questões que julgasse necessárias durante cada entrevista, antes de iniciar
este processo, analisei os textos de apresentação de cada um deles/as na página do
Curso GDE no AVA da UFMA e realizei leituras das atividades por eles/as postadas,

30
Segundo Dubar (1997, p.91), George Mead foi o primeiro autor a afirmar que a socialização era a
“construção de uma identidade social na e pela interação”. Berger e Luckman (1994) prolongaram as
análises de Mead e distinguiram a socialização primária da socialização secundária, baseado na hipótese
segundo a qual em sendo um processo, a socialização nunca termina. Para eles a socialização primária
acontece na infância, quando a criança aprende a se tornar novo membro da sociedade, enquanto a
secundária se realiza posteriormente quando o indivíduo adentra novos ramos de atividades.

.
93

dentre as quais se destacam: os comentários nos fóruns de discussão, os relatos de


experiência descritos nos memoriais e os projetos didáticos de intervenção elaborados
no final do curso.
Essas análises foram fundamentais tanto para a pré-seleção dos sujeitos da
pesquisa, conforme comentado anteriormente, quanto para conhecer um pouco de suas
experiências antes e durante o desenvolvimento do curso. Na sequência, explicito as
condições de produção de cada entrevista e destaco algumas das percepções que tive
durante os encontros e na eleição dos respectivos tons vitais.

 Professor Jónata: “Quando iniciei o Curso GDE, o conflito apareceu...”

Na tessitura da entrevista concedida por Jónata cada palavra narrada por ele
revezava a razão e a paixão, a objetividade e a subjetividade, o pessoal e o coletivo. Na
medida que contava sua vida, construía novos significados para os fatos, as sensações e
as emoções.
A referida entrevista aconteceu em uma das salas do Campus Universitário da
UFMA em Imperatriz – MA e teve duração de, aproximadamente, duas horas. O local e o
horário foram agendados por telefone e, previamente, definidos por Jónata. Vale
mencionar que eu havia indicado um pseudônimo, entretanto optei por atender seu
pedido, mantendo o seu próprio nome, pois escreveu-me afirmando:
Concordo com o nome escolhido, ele se assemelha ao meu, contudo vejo
como necessária a utilização de meu próprio nome, pois minha
identidade é constituída dessas marcas, as quais, segundo Dominicé, são
relacionais e intersubjetivas, me fazendo ser o EU que venho
construindo em relação com os outros. E ainda, minha voz não pode ser
apagada com pseudônimos, ela precisa ser encarada como discurso, o
qual tem a palavra como carregada de um conteúdo e um sentido
ideológico e vivencial, como diz Bakhtin (Informação pessoal)31.

Sua entrevista foi a primeira, das realizadas por mim, cuja finalidade era
conhecer casos e acasos na trajetória dos sujeitos que concluíram o Curso GDE nos anos
de 2009 e 2010. No decurso de dois anos e oito meses, após o término do mesmo e a
entrevista, houve mudanças significativas na trajetória profissional e pessoal do
entrevistado. Dentre elas, cursava a Especialização em Gestão de Políticas Públicas em
Gênero e Raça (GPP-GeR), também na modalidade à distância, desde o mês de agosto de
2011. Obteve aprovação em dois processos seletivos para Professor substituto nos

31
Trecho extraído de e-mail enviado por Jónata no dia 13 de setembro de 2014.

.
94

Cursos de Pedagogia das Universidades Estadual e Federal do Maranhão (UEMA e


UFMA). Nestas instituições pôde atuar também como professor da disciplina Gênero e
Sexualidade na Educação, sendo que na UFMA, a mesma fora proposta por ele, e
aprovada como eletiva, durante as discussões para a reformulação do Projeto
Pedagógico do Curso. Tendo em vista tais experiências, é provável que tais fatos tenham
reforçado e influenciado sua tomada de consciência e seu posicionamento acerca dessas
temáticas.
As vivências no espaço acadêmico, também podem tê-lo incentivado a lutar pela
conquista de um lugar legítimo nos campos escolar e científico. Além disso, tentava
evidenciar, no momento da entrevista, experiência e engajamento político no processo
educativo. Jónata mostrou essa atitude de disputa de poder, por exemplo, quando
ressaltou episódios que aconteceram nas Assembleias do Curso de Pedagogia da UFMA
de Imperatriz, no período em que discutiam a reforma curricular do curso. Disse que
defendeu, com muita determinação, e conseguiu que fosse aprovada a disciplina “Gênero
e Sexualidade na Educação”.
Outra questão que vale enfatizar: após a transcrição de sua entrevista,
encaminhei o documento, por e-mail, para que fizesse as considerações necessárias.
Prontamente respondeu e nos enviou um texto de sua autoria, intitulado “A palavra me
constituindo: as relações com as minhas histórias e as outras, a partir de uma experiência
de leitura”. No texto, Jónata indicou outras experiências relevantes para o estudo que eu
desenvolvia. É provável que tais palavras tenham sido escritas na intenção de
demonstrar o lugar que ocupava, como pesquisador iniciante, que havia acabado de
ingressar no Mestrado em Educação. Embora reconheça o valor do texto, não o utilizo
em minhas análises, pois Jónata foi o único a ter essa iniciativa, não prevista pela
pesquisa. Também quando do envio do texto transcriado, para leitura e autorização de
sua inclusão nesta tese, prontamente respondeu, fez algumas sugestões e autorizou sua
utilização na íntegra.
Jónata demonstrou estar muito à vontade durante a entrevista e bastante
prestativo, comentou que seria um grande prazer poder compartilhar suas experiências.
Impressionou-me a relevância por ele atribuída ao Curso e a pesquisa. Talvez seu intuito
fosse de demonstrar o que havia aprendido, pois além de ser a entrevistadora havia
exercido a função de coordenadora do GDE. Entendo que este fato pode definir os

.
95

lugares ocupados pela pessoa entrevistada e pelo entrevistador. O que equivale a


pensar, ou dizer, conforme aponta Bourdieu (2005, p. 190):
[...] não podemos compreender uma trajetória sem que tenhamos
previamente construído os estados sucessivos do campo no qual ela se
desenrolou e, logo, o conjunto das relações objetivas que uniram o
agente considerado [...] ao conjunto dos outros agentes envolvidos no
mesmo campo e confrontados com o mesmo espaço dos possíveis.

Considerando essas relações objetivas, em outros momentos, pude perceber sua


preocupação em desvelar segredos e acontecimentos significativos em sua trajetória de
vida. Alguns aspectos de sua narrativa possibilitou-me conhecer ações e regras, muitas
delas moralizantes, impostas, principalmente, pelo campo religioso, na distinção entre “o
sagrado e o profano” 32. Tais ações e regras são incorporadas pelos sujeitos e
transformadas em disposições que constroem e constituem os habitus religiosos.
Jónata revelou o início de um conflito vivido e a inculcação religiosa vivenciada
desde a infância. De maneira quase mística fez questão de visibilizar essa mudança.
Sobre este ponto, foi possível eleger o tom vital de sua narrativa: “quando iniciei o Curso
GDE, o conflito apareceu. Até o curso não vivia um conflito, porque as questões religiosas
eram superiores a outras questões” (Informação verbal)33. Com isso, foi possível entender
a dificuldade em Jónata aceitar, a princípio, o conhecimento adquirido no curso GDE, em
particular as informações e relações pertinentes a homossexualidade, uma vez que esses
conteúdos provocaram uma mudança de atitude, notadamente na aceitação de sua
própria orientação sexual.

 Professor Elias: “É pecado, mas eu não sou Deus para condenar...”

A entrevista com Elias (pseudônimo atribuído ao colaborador por tratar-se de


nome bastante recorrente na região) ocorreu em uma das salas do Polo da Universidade
Aberta do Brasil (UAB)34 de Imperatriz – MA, e durou pouco mais de uma hora.

32
De acordo com Durkheim (1989), não existe na história do pensamento humano outro exemplo de duas
categorias de coisas tão profundamente diferenciadas, tão radicalmente opostas uma à outra. Nem sequer
a oposição tradicional entre o bem e o mal se lhe aproximam: pois o bem e o mal são duas espécies
contrárias de um mesmo gênero, isto é a moral, assim como a saúde e a doença são apenas dois aspectos
diferentes de uma mesma ordem de fatos. O sagrado e o profano sempre foram concebidos pelo espírito
humano separadamente, como se fosse dois mundos entre os quais nada existisse em comum.
33 Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em junho de 2012.
34 A Universidade Aberta do Brasil (UAB) – é um sistema constituído por universidades públicas
brasileiras, que oferece de forma integrada cursos de nível superior, na modalidade educação à distância,
para o público em geral, mais especificamente para pessoas que não tem acesso a Universidade. A

.
96

Antes da entrevista, já havíamos conversado brevemente em outros espaços


sobre a pesquisa. Nos poucos momentos de diálogo, pude perceber que ele era uma
pessoa muito extrovertida, falante e prestativa. Contudo, durante a entrevista, parecia
constrangido, sem vontade de falar. Em certos momentos, notava que o desejo de Elias
era responder o mais rápido possível e livrar-se, o quanto antes, daquela espécie de
obrigação. Mas, como ele havia aceito e se comprometido, não recuou. O fato levou-me
ao desestímulo e à vontade de descartar sua entrevista. Diante dessa situação, recorri às
palavras de Thompson (1998) ao afirmar: “A estratégia da entrevista não é
responsabilidade do informante, mas sua” (p. 262).
Durante a entrevista, contava com um roteiro básico organizado com uma
sequência dos tópicos, porém muitos deles (a maioria) foram modificados e/ou
sofreram acréscimo, de acordo com suas respostas em função das respostas obtidas.
Respondeu às perguntas com frases curtas e bem diretas. Somente ao relacionar
sexualidade e homossexualidade com a religião, Elias estendeu-se mais.
Foi muito difícil realizar a textualização, a transcriação e a eleição do tom vital.
Na tentativa de compreender a maneira como Elias encarava as questões de gênero e da
sexualidade, ouvi a gravação e reli a transcrição da entrevista por inúmeras vezes.
Depois de muita persistência, foi possível sintetizar o tom vital de sua narrativa na
seguinte frase: “É pecado, mas eu não sou Deus para condenar... hoje eu digo: a vida é tua!
Tá feliz? Amém! ” (Informação verbal)35. Em algumas das atividades realizadas por ele
no AVA do Curso GDE também foi percebida, em seus comentários, a prevalência do
discurso religioso.
Ao rememorar a trajetória de Elias no curso e revendo sua página de
apresentação no AVA, constatei que havia escrito: “Estou muito otimista ao fazer este
curso, pois a temática aqui abordada é de fundamental importância para o
desenvolvimento de práticas inclusivas e desprovidas de preconceitos”36. Assim,

prioridade é dada a professoras/es, pessoal de direção, da gestão e de trabalhadoras em geral da educação


básica no Brasil. Instituído pelo Decreto 5.800, de 8 de junho de 2006, também incentiva pesquisas nas
áreas da Informação e Comunicação, estimulando a formação permanente, através da criação dos
chamados polos de apoio presencial e dando preferência a regiões de maior necessidade educacional.
Maiores informações sobre a UAB, no link
http://uab.capes.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6&Itemid=18. Acesso em: 20
abril 2014.
35 Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em julho de 2012.
36Trecho extraído do fórum de Apresentação no AVA do Curso GDE, disponível em:
http://www.avacap.ufma.br/course/view,php?id=26. Acesso em 16 jul. 2012.

.
97

percebi uma aparente incoerência entre o que escreveu naquele momento e sua
narrativa.
Apesar dos entraves, tentei ser hábil e compreender o sentido de seu discurso, e
de sua condição no momento, sem deter-me apenas sobre o conteúdo explícito. Dessa
forma, pude manter uma conversa amigável, desprovida de julgamentos antecipados,
além de ter conseguido resistir à tentação de discordar de seus comentários. Apenas
perguntei e o instiguei a relatar sua trajetória.

 Professora Fátima: “As meninas são mais bem resolvidas...”

A entrevista concedida por Fátima (pseudônimo escolhido pela colaboradora)


apresenta uma particularidade: foi conduzida com a participação de Diomar Motta,
coorientadora desta pesquisa. O fato decorreu de Fátima ser membro, há mais de 2 anos,
do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero
(GEMGe) coordenado pela Professora Diomar.
O encontro teve lugar na tarde do dia 22 de outubro de 2012 com a duração de
mais de 3 horas. A princípio, Fátima demonstrava ansiedade e certa tensão, mas, após
alguns minutos ficou mais tranquila e muito falante, relatando importantes e férteis
detalhes de sua vida.
Vale ainda ressaltar que sua narrativa também serviu de aporte para outra
pesquisa que desenvolvíamos e que estava em fase de conclusão na época. O projeto
intitulado “O Curso Gênero e Diversidade na Escola no processo educativo maranhense”,
havia sido aprovado pela SPM e financiado pelo CNPq. Por esses e outros motivos que
serão apresentados, posteriormente, percebia a importância de agregar o vasto
conhecimento e as sugestões da professora Diomar Motta na condução da referida
entrevista.
No momento da pré-seleção dos sujeitos, pude notar que o projeto de
intervenção elaborado por Fátima no final do curso GDE, não demonstrava relação
direta com as questões de gênero ou sexualidade. “Trabalhando as diferenças no espaço
escolar,” objetivava “Estimular o respeito e o bom relacionamento entre os alunos e as
pessoas que compõem o universo escolar”. Tal era a finalidade do seu trabalho. Mas,
quando da leitura de seu Memorial, deparei-me com um trecho que me chamou especial
atenção. Fátima (2010, p. 3) havia destacado:

.
98

Houve um momento durante o curso, quando estávamos estudando


homossexualidade... quando este tema chegou até a escola em forma de
discussão sobre a quantidade de gays e seus comportamentos diante da
sociedade. Esta conversa se deu especialmente devido ao dia da “parada
gay”, e ouvi de alguns professores que isso é gerado pela mídia e que ela
é responsável por “essa pouca vergonha” e que nós temos obrigação,
como professores, de mudar esse quadro. Percebi na fala de meus
colegas uma discriminação horrível, feia e quase doentia, inclusive
houve a citação de exemplos descrevendo seus gestos e suas condutas
como algo doentio que precisava ser mudado... Parecia que estava
ouvindo pessoas de séculos atrás, falando de doença, de mal... Fiquei
estarrecida, triste... Questionei suas observações e falei do curso
convidando-os para elaborarmos um projeto e aplicar no próximo ano,
além de incluir esse tema na pauta das discussões da escola.37

Com a leitura desse trecho, percebi que demonstrava interesse e preocupação


com a temática da diversidade sexual, por conseguinte, decidi incluí-la na pré-seleção
dos sujeitos da pesquisa. Vale observar que por não selecionar os projetos e memoriais
pelos autores e autoras e sim pelas informações contidas, não sabia que Fátima era
membro do GEMGe. Somente ao retomar outros documentos e atividades do curso, pude
constatar que ela residia em São Luís e não em Imperatriz, município no qual realizou o
curso. Soube, então, que era integrante do Grupo.
A princípio este fato preocupou-me bastante, pois temia que essa aproximação
pudesse interferir, de alguma maneira, nos resultados da pesquisa. Comentei o caso com
a Profa. Diomar e a mesma se colocou à disposição para contribuir no momento da
entrevista. Lembrou da necessidade de refletir acerca dos conhecimentos adquiridos
pela ciência e da necessidade de “controlar” os resultados da própria pesquisa, antes
mesmo de iniciar a entrevista. Isto seria, segundo Bourdieu (2011, p. 694) “fazer um uso
reflexivo dos conhecimentos adquiridos da ciência social para controlar os efeitos da
própria pesquisa e começar a interrogação já dominando os efeitos inevitáveis das
perguntas”. Esse autor ressalta a importância de deixar aos pesquisadores [e
pesquisadoras] a liberdade de escolher os/as entrevistados/as entre as pessoas
conhecidas. Para ele...
[...] A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas
das condições principais de uma comunicação “não violenta”. De um
lado, quando o interrogador está socialmente muito próximo daquele
que ele interroga, ele lhe dá, por sua permutabilidade com ele, garantias
contra a ameaça de ver as razões subjetivas reduzidas a causas

37Trecho do memorial de Fátima postado no AVA/UFMA. Disponível em:


http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em: 18/07/2012.

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99

objetivas; suas escolhas vividas como livres, reduzidas aos


determinismos objetivos revelados pela análise. Por outro lado,
encontra-se também assegurado neste caso um acordo imediato e
continuamente confirmado sobre os pressupostos concernentes aos
conteúdos e às formas da comunicação: esse acordo se afirma na
emissão apropriada, sempre difícil de ser produzida de maneira
consciente e intencional, de todos os sinais não verbais, coordenados
com os sinais verbais, que indicam quer como tal o qual enunciado deve
ser interpretado, quer como ele foi interpretado pelo interlocutor
(BOURDIEU, 2011, p. 697).

Com esse entendimento e a partir dos sinais não verbais, ou seja, olhares,
sorrisos e outras expressões de interesse, aprovação e incentivo, dentre outros gestos
que atestam a participação intelectual e afetiva do/a pesquisador/a foi possível concluir,
de forma exitosa, a entrevista com Fátima.
Mulher de 50 anos, com experiência em diversas áreas do conhecimento,
casada, tem uma filha e um filho adolescentes e se reconhece feminista. Espírita
Kardecista demonstra muita serenidade em tudo que faz. A confirmação de seu
pseudônimo foi feita após leitura e retorno de sua narrativa. Declarou que gostava do
nome Fátima e se pudesse o utilizaria no dia-a-dia.
Ao reexaminar a transcriação fez pequenas ressalvas sobre certos termos que
estavam incorretos ou em desacordo com suas experiências. Dentre esses termos,
chamou a atenção para a substituição de “homossexualismo” pela palavra
homossexualidade. Com essa troca, foi possível perceber que após outros estudos e
depois de rever sua história, Fátima percebeu que havia cometido um equívoco na
utilização da palavra. Sabe-se hoje que existiu, e talvez ainda exista, a classificação
equivocada de gays como pessoas doentes 38. Além disso, tanto a origem como a
etimologia da palavra “homossexualismo” podem colaborar com a homofobia.
Constatei, ainda, que sua trajetória foi marcada pela inconstância e variadas
mudanças de residência. As mudanças, em sua infância e adolescência, aconteceram
devido à profissão e local de trabalho de seu pai, que era da Marinha. De tempos em
tempos ele era transferido de um estado para outro. Foi possível, igualmente, constatar

38 Em 1897, o inglês Havelock Ellis publicou aquele que seria um dos primeiros livros dedicados à
homossexualidade. À época, o nome que se dava ao fato de quem se relacionava e mantinha relações
afetivas com pessoas do mesmo sexo era homossexualismo. Logo à frente, indica o tratamento para a
cura desses indivíduos. Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria retirou a homossexualidade de
seu rol de doenças mentais. Em 1993, foi retirada também da lista da Classificação Internacional de
Doenças (a CID). O ismo, do ponto de visto etimológico, é um sufixo formador de substantivos abstratos.
Dos mais diversos. Das mais variadas significâncias. Atrelado à palavra homossexual, atribuía o significado
de uma doença ligada ao fato de ser gay ou “praticar” relações com indivíduos do mesmo sexo. (NAPHY,
2006).

.
100

que o processo de escolarização, formação e atuação profissional de Fátima se deram de


forma bem diversificada. Quanto à formação acadêmica e profissional, realizou curso
Técnico em Contabilidade, no antigo Segundo Grau, graduou-se em Letras Licenciatura,
cursou Educação Especial (latu sensu), Mestrado em Ciências Sociais e no momento da
entrevista fazia o Doutorado em Educação na Espanha.
Em relação à atuação profissional, no período do GDE, era professora contratada
pela Secretaria de Educação do Estado do Maranhão (SEDUC) e lecionava Literatura no
Ensino Médio. Na época da entrevista atuava como professora substituta no Campus de
Codó, município situado à 320 Km. da capital do estado. É possível afirmar que a vida de
Fátima até aquele momento foi marcada pela instabilidade e incerteza, com incessantes
mudanças na moradia, na formação e na atuação profissional, dentre outras. No entanto,
demonstrava otimismo e empenho em persistir lutando por uma vida melhor. Muito
prestativa e disponível para contribuir no que fosse necessário. Participava ativamente
de diferentes eventos científicos e acadêmicos sobre a temática gênero e diversidade,
dentre outras relacionadas à Educação.
Foi possível perceber os diferentes pontos de vista da entrevistada, seus
sentimentos, suas condições objetivas, o conhecimento e as suas concepções sobre as
questões de gênero e sexualidade. Na textualização e transcriação, identifiquei o tom
vital de sua narrativa que pode ser sintetizado na seguinte frase: “[...] as meninas são
mais resolvidas, elas são mais ‘linguarudas’, elas falam o que pensam, os meninos não.
Principalmente, os meninos denominados gays...” (Informação verbal)39. Para ela os
conhecimentos prévios que possuía sobre as questões de gênero contribuíram para um
melhor entendimento dos conteúdos do GDE. Da mesma forma, constatei sua convicção
sobre a condição da mulher na sociedade, demonstrada em diferentes oportunidades de
sua entrevista.

 Professora Jéssica: “À escola cabe orientar sobre a segurança, a prevenção, a


saúde, o cuidado...”

O primeiro contato com Jéssica (Pseudônimo escolhido por mim, sendo este
nome também muito recorrente na região) se deu em julho de 2012, durante o

39
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.

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101

Seminário Inaugural do curso GPP-GeR, também ofertado pela UFMA. Curso que ela
iniciava e do qual eu era integrante na equipe de operacionalização, sendo responsável
pela apresentação do mesmo na Mesa de Abertura do evento.
Já havia feito a pré-seleção dos sujeitos deste estudo e soube que Jéssica era
uma das matriculadas e estaria presente no Seminário. Procurei-a para conversar e
perguntar se aceitava participar da pesquisa e ela prontamente concordou. Mas, como
naquele semestre ainda estava cursando disciplinas na FEUSP, somente pude agendar
nossa entrevista para o final de novembro do mesmo ano. O local escolhido por Jéssica
foi uma das salas da UAB de Imperatriz e a entrevista foi agendada para o final da tarde
do dia 23 de novembro de 2012, conforme sugerido por ela mesma. Como não foi
possível concluir a entrevista naquele dia, a finalizamos no dia seguinte.
De sua narrativa chamou-me a atenção a prevalência da dimensão religiosa em
detrimento das questões que haviam sido estudadas no curso GDE. Evangélica da Igreja
Assembleia de Deus, contava 34 anos de idade na época da entrevista, casada e não tinha
filhos. Jéssica parecia ser muito estudiosa e gostava de manter-se informada, pois era
uma das cursistas mais participativas nas aulas.
Jéssica começou a trabalhar na educação no ano de 1997, aos 15 anos de idade,
quando ainda cursava o Ensino Médio. Além da graduação em Pedagogia, quando da
entrevista havia concluído três especializações: Metodologia do ensino superior,
Informática aplicada à Educação e Gestão educacional, além do curso GGP-GeR, em
andamento. Antes do GDE, era membro do Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas
(SPE)40. Talvez devido à crença religiosa e ao projeto do qual participava observei que
tinha concepções bem definidas com relação aos papéis exercidos pela mulher e pelo
homem na sociedade. Seu posicionamento acerca da função da escola parecia também
possuir tais marcas. Para Jéssica, a escola não deve só ensinar, cabe a ela prevenir e
cuidar e, dentre esses cuidados, a saúde é um deles. Tendo em vista esta percepção,
pude eleger o tom vital da sua entrevista: “O que cabe à escola mesmo é orientar sobre a

40
O Projeto Saúde e Prevenção nas Escolas (SPE) foi lançado em 2003 e se constitui numa parceria entre
Ministério da Saúde, Ministério da Educação, UNESCO, UNICEF e UNFRA na articulação de setores do
governo e organizações da sociedade civil para promover estratégias integradas entre saúde e educação. O
SPE tem como público‐alvo crianças, adolescentes e jovens na faixa de 10 a 24 anos matriculados/as em
escolas públicas de ensino fundamental e médio. O projeto está focado prioritariamente na discussão
sobre a saúde, sobretudo na prevenção das DST/Aids. Em 2015, o Projeto foi reformulado e incorporado
pelo Programa Saúde na Escola e definiu novas estratégias, como a ampliação das faixas etárias atendidas,
a inclusão do monitoramento das escolas no Censo Escolar, entre outras. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/). Acesso em 02 fev. 2015.

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102

segurança, a prevenção, a saúde, o cuidado... Não a reorientação e a decisão da pessoa”


(Informação verbal)41. Notei ainda sua preocupação em demonstrar que a Igreja
frequentada por ela e por sua família contribuía na formação de valores morais de seus
discípulos. Fazia questão de deixar claro que tanto sua trajetória familiar, quanto a
formação escolar e profissional, sempre se deram de forma bem “tranquila” – termo
frequentemente utilizado por Jéssica.

 Professor João: “Cada pessoa é livre para escolher o que quer ser em relação à sua
sexualidade...”

Dentre as três entrevistas realizadas em Porto Franco – MA, a primeira foi


concedida por João (pseudônimo escolhido pela pesquisadora) e aconteceu nos fins das
tardes dos dias 9 e 10 de janeiro de 2013 no Polo UAB do município e tanto o local,
quanto o horário foram escolhidos por ele.
No período em que ingressou no GDE, João era um dos tutores presenciais
naquele Polo e bolsista do Programa PET, quando ainda cursava Pedagogia. No
momento da entrevista não atuava em sala de aula e sim numa função administrativa
como servidor público de Tocantinópolis, município vizinho de Porto Franco. Como
precisavam de um pedagogo com conhecimento na área da educação, foi remanejado de
função.
Ao reler seu Memorial e o Projeto de Intervenção, bem como o texto da
narrativa, foi possível traduzir o tom vital da entrevista na seguinte frase: “Em meu
pensamento cada pessoa tem a livre escolha de ser o que quer ser na parte da sexualidade”
(Informação verbal)42. Em seu Memorial, chamou-me a atenção o trecho a seguir:

Existem diferentes situações de preconceito e discriminação que


homens e mulheres perpassam em função das suas identidades de
gêneros e pelas orientações sexuais que tiveram sendo que cada um tem
os seus direitos e mesmo assim por falta de orientação ou pela própria
cultura que vivem, não entendem ou não aceitam a diversidade de
sexualidade existente atualmente como lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros. Contudo é uma diversidade muito
grande que boa parte da sociedade ainda discrimina. Penso que o papel
da escola é muito importante e a mesma deve estar preparada para
orientar os alunos e também os pais dos mesmos, promovendo assim

41
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.
42 Trecho extraído da entrevista concedida por João em jan. de 2013.

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103

momentos de palestras, de conscientização dos direitos que as pessoas


têm de escolher a sua forma de viver a vida (Professor João, 2010) 43

Num dos objetivos do projeto de Intervenção destaca: “Respeitar a escolha


sexual de cada indivíduo”. Compreendo que para a maioria das pessoas, a orientação
sexual emerge no início da adolescência, antes mesmo de qualquer experiência sexual e
essa não deveria ser definida como uma escolha consciente, passível de ser
voluntariamente mudada. Mas, João ainda entendia ser uma “escolha” deliberada do
sujeito, contrariando o que havia sido discutido durante no curso GDE.
Outro fato a ser observado: João conta que durante sua infância, quando tinha
uns oito, nove anos, foi surpreendido com a separação dos pais. Disse que sempre os via
discutindo e que havia certos detalhes que o deixavam muito triste. Relatou que
somente depois de adulto, encontrou seu suposto pai e soube que, de fato, não era seu
filho. Esta notícia o deixou frustrado e confuso em relação aos próprios sentimentos. Ao
mencionar este episódio João demonstrou ressentimento, ressaltando que nunca
conversou com sua mãe sobre sua própria paternidade.

 Professora Vera: “jogar o jogo dos alunos...ensinar e aprender junto com eles...”

A entrevista de Vera (pseudônimo escolhido pela pesquisadora, sendo este


nome de grande recorrência na região) aconteceu nas tardes dos dias 10 e 11 de janeiro
de 2013, em sua residência. Vale mencionar que na ocasião, foi preciso interromper a
gravação algumas vezes, pois ela tinha um bebê que por vezes chorava bastante. Com
isso, precisei retornar no dia seguinte para concluir nossa conversa.
Ao chegar em sua residência, no primeiro dia, retomei os objetivos do trabalho e
conversamos um pouco sobre o porquê de Lucélia tê-la procurado e agendado a
entrevista. A princípio, Vera mostrou-se um tanto apreensiva, com receio do que iria ser
perguntado e medo de não demonstrar embasamento suficiente, mas logo compreendeu
sua importância para o desenvolvimento do estudo e dispôs-se a colaborar. Chamou-me
a atenção a forma pela qual relatava sua trajetória. Em sua vida, desde muito cedo
começou a desenvolver atividades intelectuais e ainda na adolescência já atuava como
professora.

43
Trecho do Projeto didático de intervenção elaborado por João e postado no AVA/UFMA. Disponível em:
http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em 12 out. 2012.

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104

Vera afirmou não ter dificuldades para tratar questões da sexualidade com seus
alunos e alunas. Inclusive disse que as trabalha na matéria Ética e Cidadania do 6º ao 9º
ano do Ensino Fundamental, atuando como professora desta disciplina e de Geografia.
Como esta afirmação foi repetida algumas vezes em sua narrativa, foi possível identificar
o tom vital sintetizado na seguinte frase: “como diz a história é você jogar o jogo dos
alunos... é ensinar e aprender junto com eles e é claro você corrigindo o linguajar deles.
Com isso, eu não tenho dificuldade de trabalhar a sexualidade” (informação verbal)44.
Em certos momentos de sua narrativa, Vera demonstrava receio ou
constrangimento ao comentar o assunto, silenciando ou discorrendo de forma
superficial. Ao discorrer acerca da sexualidade, disse que trata da homossexualidade, da
violência de gênero e das discriminações em Ética e Cidadania, por julgar ser esta
disciplina mais adequada. Em Geografia, ela considera que não há espaço para tratar as
questões. Conforme aponta o PCN (BRASIL, 2000b), na Geografia é possível identificar as
relações sociais que ancoram as relações de gênero, buscando entender de que modo o
espaço reflete as relações de poder e os discursos hegemônicos em torno da sexualidade
e do gênero; refletir sobre a importância dos conceitos geográficos, como espaço e lugar,
nas teorias de gênero e sexualidade; buscar o desenvolvimento de um pensamento
crítico sobre as relações mútuas de constituição e reprodução entre espaço, gênero e
sexualidade, dentre outras possibilidades de trabalho. No entanto, Vera ainda não
percebia essas possibilidades.

 Professora Telma: “aquele menino mais ‘delicadinho’, os outros não querem no


time...”

Quando cheguei no Polo UAB de Porto Franco, por volta das 15 horas do dia 12
de janeiro de 2013, Telma (pseudônimo escolhido pela pesquisadora) já me aguardava
para conceder a entrevista. Muito solícita e extremamente pontual! Lucélia tutora
presencial do curso GDE, que auxiliou no agendamento das entrevistas contou que
Telma foi uma das que mais demonstrou interesse pela pesquisa, sugerindo que o
encontro fosse à tarde em uma das salas do Polo UAB. Em seu entendimento, no Polo
ficaríamos mais à vontade e não seríamos interrompidas. No início de nossa
conversa/entrevista, retomei os objetivos do trabalho e expliquei o porquê de ter sido

44
Trecho extraído da entrevista concedida por Vera em jan. de 2012.

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105

uma das selecionadas, dizendo que havia sido pela escolha do título e conteúdo do
projeto de final do curso, em outubro de 2009: “Diferentes sim – mas iguais no respeito”.
Telma mostrou-se muito feliz em poder colaborar na pesquisa, dizendo que faria o
possível para contribuir no que estivesse a seu alcance. Todavia, em certos momentos,
demonstrou receio, silenciando ou desviando-se do tema. Esta mudança de atitude se
dava principalmente ao relatar algo sobre o desenvolvimento da sexualidade e sobre a
diversidade sexual. Como não foi possível concluir a entrevista naquele dia, a
retomamos e a concluímos no dia seguinte.
O tom vital de sua narrativa, sintetizado na expressão “aquele menino mais
‘delicadinho’ os outros não querem no time... As meninas parecem que são ditas ‘normais’...
mesmo as que são lésbicas, ‘camuflam’ muito bem...” (Informação verbal)45 foi escolhido
após leitura e releitura de sua narrativa, no momento da textualização, bem como após
nova análise do seu projeto didático46. Destacam-se no trabalho os objetivos propostos:
i. Apontar as diferenças biológicas entre os sexos masculino e
feminino;
ii. Ressaltar que as diferenças entre homens e mulheres não devem se
limitar apenas ao aspecto biológico, e que deve existir igualdade de
direitos entre ambos, independentemente de gênero, opção sexual;
iii. Estimular o respeito e a solidariedade sobre o que é ser homem e
ser mulher, gays, lésbicas, transexuais...”. (Professora Telma, 2009, p.
1 – grifos meus)

Vale mencionar que o projeto seria desenvolvido na disciplina Ética e Cidadania,


por ela ministrada no ensino Fundamental no ano de 2009. Quando da entrevista,
Telma lecionava as disciplinas História e Arte no Ensino Médio. Chamou-me a atenção
sua preocupação em demarcar as diferenças biológicas entre os sexos, a igualdade de
direitos e o respeito ao próximo, independentemente do gênero ou de sua “opção
sexual”, também comentado durante a entrevista. Da mesma forma, no Memorial
(2009)47 apresentado, Telma destaca:
No decorrer desse curso sempre procurei associar a teoria à pratica. Um
texto que muito me chamou atenção foi “O COMBATE Á DISCRMINAÇÃO
SEXUAL DE GÊNERO” que abordou o tema homofobia. Pois até então eu
considerava que uma situação homofóbica era somente se existisse
agressão física. Vi que a homofobia está presente nos ambientes

45
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em janeiro de 2012.
46 Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28/projeto. Acesso em 18 mar 2014.
47 Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28/memorial. Acesso em 18 mar 2014.

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106

escolares. Pois os homossexuais são vítimas de preconceitos e


discriminações, não só os alunos, mas também professores e
funcionários. E essa discriminação e preconceito são visíveis em
pequenos gestos e atitudes. Quando alunos e até mesmo professores
fazem piadas e comentários pejorativos sobre meninos ou meninas que
ainda nem fizeram sua opção sexual, somente porque não estão
dentro dos padrões ditos “normais”, meninos que falam fino, não gostam
de futebol, são mais delicados e meninas que ao contrário, podem ter
um timbre de voz mais grave, não terem gestos delicados... Passei a
detectar sinais de discriminação nessas situações acima citadas, que
antes do curso me passavam despercebidas (Professora Telma – grifos
meus).

Optei por grifar os termos por me parecer muito presentes nos comentários de
Telma. Tanto em seu memorial e no projeto didático, quanto em sua narrativa é possível
constatar, por um lado, certa prevalência da concepção binária em relação ao sexo e por
outro lado Telma destaca a importância de se respeitar as diferenças ao afirmar que não
concorda com as discriminações presentes na escola e na sociedade.
Assim como o poeta Carlos Drumond de Andrade (1998, p. 11) entende que “em
cada silêncio do corpo identifica-se a linha do sentido universal que a forma breve e
transitiva imprime a solene marca dos deuses e do sonho”, a busca pela compreensão de
sentidos e significados na narrativa de Telma, pôde ser realizada também pelos seus
silêncios e balbucios.

2.2 Silêncios, conselhos e diferentes verdades no processo de socialização


primária na família

Como conseguirei saber do que nem ao menos sei?


Assim: como se me lembrasse.
Como um esforço de memória,
como se eu nunca tivesse nascido.
Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro,
e a lembrança é em carne viva.
Clarice Lispector48

Esta subseção se propõe a mostrar as trajetórias iniciais das/os


colaboradoras/es e identificar as possíveis influências da família no desenvolvimento da
sexualidade e na construção e constituição dos seus habitus. E assim como Clarice

48
Trecho extraído do livro de Edgar Cesar Nolasco “Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura”. São
Paulo: Annablume, 2001, p. 70.
Disponível em: https://books.google.com.br/books?id=4Zkfn0pB_YEC&printsec=frontcover&hl=pt-
BR#v=onepage&q&f=false Acesso em 13 mar 2015.

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107

Lispector alude às lembranças como um esforço de memória para a compreensão e


interpretação de suas narrativas, percebi ser necessário buscar elementos que traduzam
as maneiras pelas quais cada um/a deles/as emprega as palavras e como se relaciona
com elas.
Nas experiências vivenciadas durante a infância, a família apresenta-se como a
primeira instituição social responsável pela socialização primária. Segundo Bourdieu
(2010), a família, enquanto importante instituição de construção da realidade possui um
papel decisivo na conservação da ordem social e na reprodução, não apenas biológica,
mas também nas relações sociais. Esta reprodução acontece na estrutura do espaço
social e das relações sociais, sendo um dos lugares “por excelência de acumulação do
capital sob seus diferentes tipos e de sua transmissão entre as gerações: ela resguarda
sua unidade pela transmissão, para poder transmitir e porque ela pode transmitir. Ela é
o ‘sujeito’ principal das estratégias de reprodução” (p. 131). As forças exercidas pela
família impulsionam os seus membros a aceitar um ponto de vista comum, conformando
a manifestação de opiniões.
Com esse entendimento, no início de cada entrevista, solicitei o relato de
aspectos do convívio familiar e escolar durante a infância. Pedi, igualmente que se
falasse sobre se e como questões da sexualidade eram discutidas entre pai, mãe e
filhos/as, bem como solicitei informações sobre o tratamento e os cuidados com os
meninos e meninas. Observei os seguintes aspectos: a ausência de diálogo sobre
questões da sexualidade foi uma constante, embora alguns/mas tenham relatado que
quando alguém da família ou da escola, tocava no assunto, era para dar informações
referentes aos cuidados com o corpo e com a prevenção da gravidez na adolescência.
A maioria comentou que o tratamento era diferenciado, de acordo com o sexo biológico,
tanto na família quanto na escola. Foi possível perceber aspectos da dominação
masculina nas ações cotidianas nos relatos de Jónata, Elias, Fátima e Jéssica. Notei
ênfase na dimensão religiosa nos relatos de Jónata, Elias, Jéssica e João. Todos/as
comentaram algum caso ou fato relacionado à homossexualidade, à homofobia ou aos
preconceitos e discriminações vivenciados em suas escolas, consigo mesmo/a ou com
algum/a colega. Jónata, Elias, Fátima e João narraram as primeiras experiências
afetivas e a iniciação da vida sexual, dentre outras percepções discutidas a seguir.

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108

2.2.1 (In) existência de diálogos sobre sexualidade

A unanimidade a referência sobre a ausência de diálogo ou sobre o fato de as


pessoas se limitarem a falar sobre prevenção e cuidado com o corpo, faz com que nos
lembremos que conversar sobre sexo ou sexualidade envolve suas próprias identidades
e suas práticas sexuais. Por essas razões, possivelmente, mães e pais tenham se omitido.
Jónata contou que o diálogo entre todos os membros da família era constante e
conversavam sobre quase todos os assuntos, “mas, sem tocar em alguma coisa, digamos
assim, mais ‘delicada’”. Em suas palavras, havia conversas superficiais, “cheias de
carinho”. Explica que seu pai era bem mais presente, porque era quem levava e buscava
as crianças na escola e era ele quem conversava com os porteiros e com as professoras,
enquanto sua mãe cuidava dos outros irmãos e da casa. Educado na igreja, Jónata diz que
sentia falta de conversas sobre sexo, entendidas por ele como “delicadas”. Apenas “ouvia
os conselhos do pai, da mãe e os do padre”. Tais conselhos recomendavam “ter cuidado”;
“devia me prevenir”; “isto ou aquilo era errado, era pecado”, dentre mais.
Elias iniciou sua narrativa dizendo que quando criança sua mãe “sempre
demonstrava afeto e conversava sobre todos os assuntos com os filhos e filhas, inclusive
sobre sexo, namoro”. Conta que durante sua infância brincou bastante e na época tinha
como obrigação estudar e trabalhar em casa e na escola que pertencia a sua mãe.
Embora Elias tenha dito a princípio que sua mãe conversava sobre todos os assuntos
com os filhos e as filhas, inclusive sobre o corpo e namoro, depois afirmou que era seu
irmão mais velho quem falava sobre as questões. Sua mãe não tratava disso e Elias
acrescentou: “aprendi o que fazer e o que não fazer e o corpo foi dizendo naturalmente
também”.
Fátima relatou que em sua família todos conversavam bastante, mas, somente o
que fosse “moralmente permitido”. Ressaltou que seu pai era bem mais “aberto” do que
sua mãe, pois conversava sobre todos os aspectos da vida, inclusive sobre menstruação,
sexo, namoro, por exemplo. Mas, sentia-se bem mais à vontade para conversar com uma
tia, que segundo Fátima era uma mulher muito afetuosa e que morava com sua família
desde que ela nasceu. Foi essa tia quem praticamente a criou e ajudou em sua educação,
enquanto sua mãe era vista como uma espécie de “capitão” da casa. Isto porque quando
as crianças faziam algo que a desagradava, geralmente chamava para “conversar” e dizia
zangada: “tu não vai sair no próximo final de semana!”. Com isso, todos/as a obedeciam e

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109

jamais falavam, por exemplo, um palavrão perto dela, mas “longe sim!”, comentou
Fátima, sorrindo.
Jéssica chamou a atenção para o fato de que teve uma infância “muito
tranquila!”, ressaltando que em sua família não havia conflitos. Não havia muita
conversa e não eram tratados assuntos relacionados a sexo e sexualidade. Jéssica
lembrou que sua mãe falou apenas sobre menstruação. Com isso, quando menstruou
sabia o que estava acontecendo, entretanto chorou muito, pois imaginava que aquilo ia
se repetir todo mês, o que seria, segundo ela, um “transtorno”. Também disse que
quando adolescente, tanto seu pai, como sua mãe conversavam sobre o assunto e davam
exemplos de gravidez na adolescência, denominando-a de “coisas”. Para ela “havia na
família coisas que tinham acontecido, de gravidez na adolescência, que foram ruins para a
adolescente. Então, as demais famílias tinham que chegar e dizer: ‘São consequências de
atos impensados’” (Informação verbal)49.
Nesse relato, Jéssica enfatizou que a gravidez na adolescência é uma situação
ruim apenas para a menina. Em nenhum momento refere-se ao pai do bebê, o que
também denota uma divisão de papéis entre os sexos, pois em se tratando da gravidez,
esta é entendida como uma responsabilidade apenas da mulher.
Como forma de compreender e exemplificar a questão, busquei na página web
da CAPES, produções que tratam da gravidez na adolescência e que destacam a
paternidade adolescente. Foi quando constatei que são poucos os trabalhos que
discutem a problemática. Dentre estes, destaco Cabral (2000) por desenvolver um
estudo com jovens que haviam se tornado pais antes dos 20 anos, tendo como marco
teórico a discussão sobre gênero, classe e geração. Os resultados mostram similaridades
entre esses jovens no que tange à pouca escolaridade, à baixa inserção no mercado de
trabalho e às carreiras reprodutivas. Indica que a gravidez nas camadas populares
ocorre mais precocemente do que em outros estratos e, por ser um fenômeno frequente,
“acaba por ser visto de modo natural, num cenário que incita os homens ao exercício da
sexualidade, ao mesmo tempo que relega às mulheres a responsabilidade pela
contracepção” (CABRAL, 2000, p. 75).
Vera ressaltou que durante a infância tinha uma “vida normal, uma vida simples”.
Sublinha que seus pais eram “muito fechados, eles eram tradicionais” e quase não
conversavam. Sua mãe aconselhava e acompanhava as crianças, principalmente na

49
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em novembro de 2012.

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110

escola, enquanto seu pai, “não deu um conselho sequer”. Acreditava que a maior
dificuldade de sua mãe conversar com os filhos e filhas estava relacionada à sua baixa
escolaridade, pois estudou apenas os anos iniciais do Ensino fundamental. Em relação às
curiosidades voltadas à sexualidade, pondera que sua mãe até tentava responder
algumas questões, mas, dependendo da pergunta, dizia: “Deixa quando crescer mais,
vocês irão saber!” . Lembrou que nas poucas conversas na família, sua mãe falava apenas
sobre menstruação e higiene corporal durante o período.
Telma disse que embora sua mãe fosse muito companheira, não conversava
sobre qualquer assunto. Em sua narrativa, balbuciou, silenciou e não utilizou certas
palavras que acenavam para a sexualidade, referindo-se apenas ao tabu e termos
relacionados ao corpo feminino e à prevenção da gravidez, conforme se observa no
trecho a seguir:
“Por exemplo, questão assim de... a gente podia até conversar no contexto
geral...mas pro particular... já tinha aquele... tabu entende? Tipo assim:
até hoje, o que eu conversei com minha mãe, a gente nunca conversou
assim... a gente não conversava. Lembro que ela só conversou com a gente
sobre menstruação. Outros assuntos... assim... era um tabu. Até que se
podia falar no geral, tipo assim: a gente falava que fulano tinha
engravidado... essas coisas. Mas, para falar de nós mesmas, até mesmo de
anticoncepcional, essas coisas, era só com amigas mesmo... ” (Informação
verbal – grifos meus)50

Sua atitude denotava temor no uso das palavras relacionadas a sexo ou


sexualidade. E quando mencionava tais questões, referia-se ao tabu existente acerca do
tema. Tubu é entendido como proibição da prática de qualquer atividade social
relacionada a moral e culturalmente reprovável. Assim, os tabus limitam determinados
atos ou evitam que se fale de assuntos considerados polêmicos ou imorais.
Comentar a sexualidade pode ser falar de si, se colocar dúvidas, repensar as
próprias concepções, valores, preconceitos, dentre outras normas e formas de controle
sociais utilizadas em diferentes espaços em nossa sociedade. O conhecimento da
sexualidade entrelaça dados da história dos indivíduos e dos grupos sociais, e envolve
valores morais construídos, principalmente, pelos campos político e religioso. Contudo,
trata-se de assunto presente no cotidiano, devido a sua relação com mitos, tabus,
crenças, cultura, dentre outros.

50
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2012.

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111

2.2.2 Dominação masculina e relações sociais de gênero

Os aspectos relacionados à dominação masculina e às relações sociais de gênero


foram identificados na maioria das narrativas dos/as colaboradores/es. E para
compreendê-los cumpre ressaltar que os gêneros, noções de masculinidade e
feminilidade, não formam uma relação de complementaridade, mas de oposição e
hierarquia, portanto, as relações de gênero são relações de poder ligadas às estruturas
da sexualidade e reprodução biológica. Conformam corpos e mentes a modelos
hegemônicos de masculinidade e feminilidade, de forma complexa e articulada a outras
estruturas de dominação. Segundo Bourdieu (2010) a dominação está na base da
violência simbólica e sua eficácia estaria no fato dos dominados se integrarem do
processo de dominação, muitas vezes sem ter consciência de sua própria dominação.
Para compreender essas questões, vale mencionar que a história dos conceitos
de gênero surgiu paralelamente à história de diferentes movimentos sociais, cujas
trajetórias têm sido partilhadas na sociedade através da implementação de políticas
públicas, decorrentes, sobretudo dos seguintes movimentos: Movimentos Feministas,
Movimento GLBT, Movimento de Mulheres Negras, Movimento de Mulheres Indígenas,
dentre outros. Ao analisar a trajetória dos estudos sobre sexualidade, não se pode
ignorar que eles tiveram maior expressividade a partir dos estudos sobre gênero. Na
verdade, o campo da sexualidade nutre uma relação próxima com o de gênero, cujo
desenvolvimento está especificamente ligado aos movimentos sociais, como os
movimentos feministas e o de liberação homossexual.
Também vale mencionar Alves e Pitanguy (2003) quando discutem o conceito
de feminismo, tratando a situação da mulher desde a Grécia Antiga, passando pelo
movimento sufragista e pelas formas de organização das mulheres no Brasil. Embora
não seja pretensão desta tese analisar as obras que tratam das mulheres e dos
feminismos, como forma de demonstrar os principais acontecimentos históricos que
antecederam a disseminação do uso da noção de gênero, retomo um quadro produzido
por Machado (2015) quando apresenta os estudos sobre as mulheres, feminismos e
gênero nas produções científicas, acrescentando outras obras não mencionadas por esta
autora, mas discutidas com grande prevalência nos estudos acerca das temáticas nas
pesquisas educacionais brasileiras.

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112

Quadro 3 – Estudos sobre mulheres, feminismos e gênero


ANO DE
AUTORES/AS E OBRAS
PUBLICAÇÃO
1762 Jean-Batiste Poquelin (1622-1673), conhecido como Molière – dramaturgo: Les
femmes savantes – As eruditas, tradução de Millor Fernandes
1791 Olympe de Gouges (1748-1793): Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã
1792 Mary Wollstonecraft (1759-1797): Reivindicação dos direitos da mulher (em
defesa dos princípios roussenianos de respeito aos “direitos naturais”).
1831 Dionísia Gonçalves Pinto (Nísia Floresta Brasileira Augusta) (1810-1885): Espelho
das brasileiras.
1843 Flora Tristan (1803-1844): União Operária.
1848 Jeane Deroin (1805-1894): Curso de Direito Social para Mulheres.
1848 1ª Convenção para os Direitos das Mulheres (marco inicial do feminismo no
ocidente).
1859 Jules Michelet (1798-1874), filósofo e historiador: La Femme
1869 John Stuart Mill (1806-1873), filósofo: A sujeição das mulheres
1949 Simone de Beauvoir (1908-1986): O Segundo Sexo (10 ed. 1980)
1969 Heleieth Saffioti (1934-2010): A Mulher na Sociedade de Classe, Mito e Realidade.
1981 Betty Friedan (1921-2006): A Segunda Etapa (1981).
A Mistíca Feminina – The feminine mystique (1963).
1986 Joan Scott: Gênero: uma categoria útil de análise histórica (a publicação foi
revisada e publicada em Educação & Realidade, v. 20, nº 2, jul./dez. 1995. Tradução
de Guacira Louro).
1990 Judith Butler: Perturbação de Gênero – Gender Trouble (1990).
Corpos que pesam – Bodies That Matter (1993) (texto publicado na obra
organizada por Guacira Louro em 2003 com o título Corpos que pesam: sobre os
limites discursivos do “sexo”).
1997 Guacira Louro: Gênero, Sexualidade e Educação: uma perspectiva pós-
estruturalista.
Currículo, Género e Sexualidade. Porto Editora, 2001.
2000 Linda Nicholson: Interpretando o Gênero – Interpreting Gender (artigo
reproduzido ao português com permissão da editora e publicado em Estudos
feministas. Florianópolis, v.2. n. 20, p. 9-42, 2000.
Fonte: Produzido por Machado (2015, p. 155) com base em Alves; Pitanguy (2003; Gonçalves (2006);
Molière (2003) e adaptado pela autora desta tese.

Conforme Machado (2015) as obras publicadas antes de Simone de Beauvoir


(1908-1986), tratam da mulher em sua condição de desamparada e que por vezes
reivindicam direitos e oportunidades iguais, de modo conservador, “naturalizando a
distribuição de papeis, destinando às mulheres o espaço doméstico e maternal” (p. 155).
Após Joan Scott (1995), os estudos revelam a centralidade do conceito de
gênero como categoria relacional de construção social e histórica do sexo. As relações
sociais de gênero entendidas como relações desiguais, hierarquizadas e contraditórias,
seja pela exploração da relação capital/trabalho, seja pela dominação masculina sobre a
feminina, expressam a articulação fundamental da produção/reprodução. Esta autora

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113

nos oferece uma das mais importantes contribuições teóricas sobre o uso da categoria
gênero e mostra seu caráter instável e relacional, articulando-o ao poder. Como forma de
não caracterizar, de maneira biológica, as diferenciações sociais entre homens e
mulheres é que se estabelece o aporte conceitual de gênero. Este por sua vez é associado
como uma categoria relacional que dialoga diretamente com classe e raça, uma vez que
tais componentes seriam importantes para melhor definir histórias e trajetórias dos
sujeitos.
A maneira pela qual esta nova história iria, por sua vez, incluir a
experiência das mulheres e dela dar conta dependia da medida na qual o
gênero podia ser desenvolvido como uma categoria de análise. Aqui as
analogias com a classe e com a raça eram explícitas; de fato as
pesquisadoras feministas que tinham uma visão política mais global,
invocavam regularmente as três categorias como cruciais para a escrita
de uma nova história. (SCOTT, 1995, p. 73).

Novos caminhos para a história das mulheres puderam ser tensionados a partir
de então. No entanto, para além das problemáticas usuais deste termo (que não é nosso
foco de discussão nesta tese), uma das consagrações do uso de gênero pelas feministas e
na academia se dá pela conotação de construção cultural sendo “uma categoria social
imposta sobre o corpo sexuado” (ibid, p.75). Uma importante contribuição deste
trabalho foi a recusa do essencialismo biológico e da anatomia como destino.
Outro conceito também relevante para os estudos sobre as mulheres e gênero é
o de patriarcado (SAFFIOTI, 2004), a partir do qual são questionadas as desigualdades
entre homens e mulheres com base em contratos sexuais não assumidos na sociedade.
A suposta autoridade dos homens sobre as mulheres acabaria sendo compreendida na
história como um direito daqueles sobre estas e a base justificativa seria o direito dos
pais, isto é, a reprodução da noção de tutela segundo a qual mulheres (tidas como
incapazes) passariam da responsabilidade (civil, moral e econômica) de seus pais para a
do marido. O patriarcado, segundo Saffioti, também seria construído historicamente e
alvo de constantes transformações. “Não se trata de variáveis quantitativas,
mensuráveis, mas sim de determinações, de qualidades, que tornam a situação destas
mulheres muito mais complexa ” (p. 115).
A articulação entre produção/reprodução nos remete à opressão de gênero
confirmada nos relatos dos colaboradores/as, o que nos faz refletir, por exemplo, sobre
a divisão sexual do trabalho e a salientar as dimensões objetivas e subjetivas, individuais
e coletivas existentes nessas relações.

.
114

Jónata, por exemplo, destaca que em sua família “seu pai era dominador” e sua
mãe aceitava essa “dominação”. Quando os filhos e filhas falavam alguma coisa “errada”,
ele repreendia oralmente, o que era suficiente para as crianças o atenderem. O mesmo
não ocorria em relação à sua mãe, visto que os filhos e as filhas não a atendiam, ainda
que fossem colocados de castigo, ou mesmo se levassem uma “surra”. Tais atitudes
denotam relação de poder e a dominação do patriarca da família.
Tal como outras mulheres, a mãe de Jónata demonstrava aceitar “a dominação”
de seu marido e suas consequências. Nesses casos as mulheres ainda contribuem para a
reprodução da dominação ao aceitarem as regras de um poder masculino que passa a
reger as suas vidas. Pensar em relações de gênero ajuda-nos a desvendar os mecanismos
sociais e de poder que constroem as diferenças, as desigualdades, a dominação, dentre
outras manifestações da violência simbólica.
Assim como esta forma de violência pôde ser constatada no relato de Jónata,
sendo sofrida por sua mãe, Elias e João também relataram tê-la vivenciada em suas
infâncias. É importante enfatizar que a conotação que deve ser dada ao adjetivo
simbólico, não pode simplesmente reduzi-lo ao oposto de real. Essa interpretação
restringiria a violência simbólica a uma violência puramente espiritual, ou seja, sem
efeitos ou marcas no corpo e na mente de quem a sofre. Também é sabido que qualquer
pessoa pode ser vítima de violência, porém é inegável que crianças e adolescentes são
mais vulneráveis51.
Elias, por exemplo, diz que quando criança, caso fizesse alguma coisa da qual
sua mãe não gostasse, apanhava, não importava onde estivesse. Repetiu o fato algumas
vezes, sustentando que no tempo da escola ficava muito envergonhado e humilhado.
Quanto ao seu pai, lembra que ele “largou” a família quando Elias tinha uns oito, nove
anos. Inúmeras vezes referiu-se ao fato de ter muita vergonha por seu pai ser “alcoólatra
e agressivo com sua mãe”. Disse também: “ele a espancava, não trabalhava e quando ia
para casa era para ‘encher o saco’ da mãe”. Daí seu desprezo pelo pai.
João comenta que sua mãe era uma mulher muito rígida, demonstra
ressentimento pela ausência de um pai, ou melhor, pelo desconhecimento de sua

51
Entre as formas de violência praticadas contra crianças e adolescentes Gomes e Fonseca (2005),
em seus estudos sobre a questão, destacam: violência física é quando causa dano físico, podendo
variar de lesão leve a consequências extremas como a morte; a violência é psicológica quando
produz um padrão de comportamento destrutivo, afetando a saúde mental; a violência sexual
envolve jogo, estimulação, contato ou envolvimento em atividades sexuais, em que crianças ou
adolescentes não compreendem e não consentem; dentre outras.

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115

paternidade, pela falta de diálogo na família e devido às agressões sofridas por sua mãe,
tida por ele como uma “mulher carrasca” que não conversava e batia muito nos filhos e
filhas.
Dos relatos de Elias e de João, constata-se que ambos sofreram tanto a violência
física, quanto a psicológica. Elias vivenciou violências praticadas pelo pai, um homem
que era agressivo com sua mãe. O termo “vergonha” foi uma constante em sua narrativa.
João diz sentir-se “rejeitado” com a ausência de um pai, pela falta de diálogo na família e
com as agressões de sua mãe.
Em sendo a violência incorporada como habitus, sua manifestação é quase
inconsciente para os agressores e agressoras. O habitus alia as práticas sociais indicando
aos indivíduos as melhores respostas em relação às condições objetivas dadas. Assim, a
atitude violenta das mães de Elias e de João ao bater nos filhos e filhas acontecia de
forma não refletida, vista como atitude “normal”, em se tratando de educação.
Ao mencionar situações do convívio familiar, Elias lembra-se de sua mãe
protegendo mais as mulheres do que os homens:
“Para nós, homens, ela dizia: “te vira!” Com as mulheres era aquele
cuidado. Até nos serviços da casa, éramos nós homens quem fazíamos. Eu
tinha que lavar o banheiro, varrer a casa... varrer a escola de minha mãe,
que era dentro de nossa casa, lavar o banheiro da escola... enquanto que
as meninas só cozinhavam e mais nada. Elas só faziam o almoço!”
(Informação verbal – grifos meus)52

A percepção de Elias refere-se ao ponto de vista dos homens, enfatizando que


sua mãe e a própria sociedade espera que eles saibam “se virar”, ou seja, ter autonomia,
saber tomar decisões, ser forte... Refere-se às mulheres como aquelas com que se deve
“ter cuidado”, pois são entendidas como delicadas, frágeis, dóceis...
O não reconhecimento social das atividades domésticas pôde ser percebido no
relato de Jéssica quando comenta sobre as atividades exercidas por sua mãe. Ela
enfatiza: “minha mãe também costurava por encomenda, ela trabalhava mesmo!”. Com
esta ênfase, é possível inferir que os afazeres domésticos não são percebidos por ela
como um trabalho, talvez por não ser remunerado, enquanto o mesmo não acontece em
relação às costuras por encomenda, pois esta atividade lhe rendia alguns trocados.
Quanto aos comportamentos de meninas e meninos na família, Fátima e Telma
ressaltam que era bem diferenciado:

52
Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em jul. de 2012.

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116

“Em minha família, diziam: ‘Isso é para menino! Isso é para menina!
Menino usa roupa azul! Menina usa roupa rosa!’. Os meninos colocavam o
lixo pra fora, as meninas enchiam as garrafas, as meninas lavavam as
calcinhas, enquanto os meninos não lavavam suas cuecas [...]“os meninos
eram mais soltos, mais livres. Assim, o tratamento dado às meninas e aos
meninos era “muito bem demarcado, bem diferenciado mesmo”
(Informação verbal)53.

“[...] eles não lavavam o tênis, não lavavam a louça... eram as meninas que
lavavam... eu não aceitava aquilo e sempre questionava... tudo era eu e
minha irmã quem fazia. Eu falava que eles tinham regalias” (Informação
verbal)54

Fátima acreditava que a diferenciação e demarcação aconteciam pelo fato da


mãe ter convivido numa família em que o avô era muito autoritário. Então, devido à
criação que teve, sua mãe reproduzia tais atitudes. Relembrou também, o caso de uma
de suas irmãs que adorava jogar bola e diz que sua mãe brigava muito com ela. Mesmo
assim, essa irmã se recusava a brincar de boneca. Tanto que acabava quebrando e
jogando fora as bonecas compradas para ela. Do trecho relatado por Telma, é possível
perceber a demarcação e a diferenciação no tratamento de meninas e meninos, homens
e mulheres. Ela não concordava com as mesmas e protestou dizendo que os homens
tinham “regalias”.
Vale aqui retomar as críticas de Scott (1995) quando esclarece que os usos
descritivos do gênero demonstram uma visão funcionalista, focalizando a diferenciação
de papeis de acordo com o sexo. No entanto essas distinções limitam e dicotomizam sexo
e gênero. Tanto a atitude da irmã de Fátima, quanto o fato de Telma não concordar e não
aceitar o tratamento diferenciado entre meninos e meninas nos permite compreender a
forma como as crianças sabem e deixam evidente que nem sempre a vigilância e o
controle por parte dos adultos vão impedi-las de burlar tais imposições e realizar os
seus desejos pessoais. Assim, constroem e reconstroem seus habitus.
Enquanto elemento constitutivo do habitus, a família implementa-se como
categoria social objetiva (estrutura estruturada) e subjetiva (estrutura estruturante). Na
primeira, os agentes familiares são “passivos” diante de algo que se encontra fora das
suas dimensões individuais. A segunda é impregnada do individual para o social, isto é,
os membros familiares tornam-se ativos, mediante as determinações estruturais. O

53
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.
54
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2013.

.
117

habitus é o elemento unificador dos múltiplos tipos de estratégias – familiares,


biológicas, culturais, dentre outras.
Para Bourdieu (2010) a família seria a protagonista da divisão sexual do
trabalho, na qual as mulheres seriam confinadas aos afazeres domésticos, à maternidade
e aos “cuidados”, a um trabalho de “reprodução”, ou realizaria atividades compreendidas
pela sociedade como “femininas”. A escola transmitiria entre seus conteúdos estruturas
hierárquicas “sexualizadas”, reforçando os destinos sociais de meninos e meninas ao
influenciarem os modos como estes se veem e a forma como percebem suas disposições
e inclinações intelectuais.55 E a Igreja pregaria um antifeminismo, difundindo valores
morais e o dogma da inferioridade “natural” das mulheres. No entanto, alguns/mas
agentes, conseguem romper e não aceitam a separação e a diferenciação em relação às
atividades e tarefas consideradas do universo masculino ou feminino; quebram
fronteiras ao lidar com modos de viver as relações de gênero nos espaços por elas
vivenciados, de acordo com o momento e o tipo de relação estabelecida.

2.3 Entre os muros da escola e as tramas das lembranças

Sexo?! Sexualidade?! Relação Sexual?!


Que fantasmas são estes?
Que a tanta gente vem assustar.
Sexualidade na Escola vem provocar,
muita tensão e mal estar.
Dizem que é melhor então,
dessa discussão se resguardar.
Mais difícil ainda é associar,
Sexualidade ao prazer e à vida.
Quando se fala em Educação Sexual,
só o biológico e o reprodutivo vão enfatizar,
ou funções de sentinela irão executar.
Quanto ao psicossocial e ao cultural,
são deixados noutro lugar.
Sirlene Silva (2011, p. 8)

Na escola as conversas dos/as estudantes passeiam nos desenhos e nas palavras


rabiscadas nas portas dos banheiros e nas paredes das salas, nas brincadeiras e nas
piadas, nos namoros, nas primeiras sensações afetivas, bem como nas salas de aula, nas

55De acordo com Bourdieu (2010), as mulheres seriam desencorajadas (e também desencorajariam a si
mesmas) a tentar carreiras acadêmicas e profissionais tradicionalmente “masculinas” e mesmo a lutar por
um posto de trabalho mais alto, de comando, sendo estimuladas a abraçar os papéis de mãe e esposa e/ou
procurar carreiras que remetem a estes papéis de “reprodução” e de “cuidado” (como empregada
doméstica, enfermeira ou professora primária, por exemplo).

.
118

narrativas e ações dos professores e das professoras. Relações de gênero e sexualidade


estão sempre ali, latentes e pulsantes, manifestando-se incessantemente, pois não há
como separá-las, nem definir onde podem e devem aparecer. Os aspectos relacionados a
gênero e à sexualidade pertencem, queiramos ou não, à vida escolar. Entretanto, a
discussão das temáticas, especialmente da sexualidade, fascina muitos e apavora outros
tantos; ou seria melhor dizer que ela fascina e apavora, ao mesmo tempo, a muitos.
Como se fosse um “fantasma na escola” (SILVA, S. M. P., 2011, p. 21):

O uso do termo “fantasma” não é sem propósito, pois, num primeiro


momento, as temáticas “sexo”, “relação sexual” e “sexualidade”
apresentam-se como questões “assustadoras”. A metáfora utilizada nos
permite considerar que na escola, essas questões são de difícil
abordagem, entretanto, ao mesmo tempo, aguçam e estimulam desejos e
prazeres de um mundo pouco explorado e “ignorado” por muitos. Ao
refletir sobre as temáticas “sexo”, “sexualidade” e “gênero” é possível
percebê-las como fantasmas curriculares – assim como todo e qualquer
assunto marcado pela polêmica, pela normalização, pelo olhar moral,
pela regulação social.

A instituição escolar, desde sua origem, organizava-se para tratar meninos e


meninas de forma diferenciada e para silenciar a sexualidade de professores,
professoras, alunos, alunas, pais, mães e daí por diante. Tentativa inglória! Discutir a
sexualidade da criança, do/a adolescente e do/a jovem de forma diferenciada do padrão
comum, (apenas aspectos biológicos), questionando seus pressupostos e apresentando
possibilidades de superação, criticando papéis “tradicionais” em prol de práticas mais
igualitárias, tem sido uma das lutas de estudiosas/os e militantes da área. Da mesma
forma, buscar alternativas de trabalho que não separem e não discriminem meninos e
meninas, deve ser uma constante nas práticas escolares.
Com esse entendimento, no decorrer das entrevistas, foi observado a
recorrência de alguns fatos, dentre os quais: manifestações das sexualidades nas
ações cotidianas de crianças e adolescentes; as primeiras experiências afetivas de
alguns/as colaboradores/as e seu relacionamento com colegas de escola; as relações de
gênero, especialmente no tratamento diferenciado para meninas e meninos na escola; a
(in) existência da educação sexual na escola e outros analisadas a seguir.

.
119

2.3.1 Gêneros e sexualidades: demarcações e (in) compreensões

A pretensão dos estudos de gênero, defendidos pelos Estudos Feministas, a


partir da década de 1980, conforme Louro (1997a, p. 24), é entender como se
constituem as identidades dos sujeitos. No entanto, a autora adverte que para isso, “nos
vemos frente a outro conceito complexo, que pode ser formulado a partir de diferentes
perspectivas”. Aproximando-se das formulações críticas dos Estudos Feministas e dos
Estudos Culturais, a autora ressalta que os sujeitos podem ser compreendidos como
tendo identidades plurais, que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que
podem, até mesmo, ser contraditórias. Em se tratando das identidades sexuais e das de
gênero, as primeiras se constituiriam “através das formas como os sujeitos vivem sua
sexualidade, com parceiros/as do mesmo sexo, do sexo oposto ou sem parceiros” (p. 26).
A identificação dos sujeitos, social e historicamente, como masculinos ou femininos
referem-se às suas identidades de gênero.
Jónata comenta que chegou a sofrer agressões físicas por colegas da escola, que
não aceitavam “seu jeito de ser”. E por não aceitar brincar com os meninos,
especialmente porque eles gostavam, segundo Jónata, de “pegar na bunda das meninas,
de fazer algum ato de saliência”, zombavam, repetindo várias vezes: “ele é gay!” “Ou
então, o viadinho!”. Assim, Jónata sofreu bullying homofóbico56 na escola.
Embora qualquer aluno ou aluna possa ser afetado pelo bullying, os alvos mais
prováveis são aqueles percebidos como diferentes da maioria. Aqueles cuja sexualidade
é vista como diferente, ou cuja identidade de gênero ou comportamento difere do seu
sexo biológico, são particularmente vulneráveis. E Jónata comportava-se de forma
diferenciada, fugindo à regra da “normalidade” imposta pela sociedade.
Em sua narrativa, Jónata confirma o que ainda hoje é discutido nas pesquisas
sobre a homossexualidade no contexto familiar e escolar, ou seja, os sujeitos que
frustram com o seu comportamento as ações socialmente esperadas para mulheres e
homens, meninos e meninas, são constantemente discriminados e sofrem com a
homofobia. Acontecimento que afeta o bem estar subjetivo do sujeito, com palavras e

56
De modo geral, conceitua-se bullying como abuso de poder físico ou psicológico entre pares, envolvendo
dominação, prepotência, por um lado, e submissão, humilhação, conformismo e sentimento de impotência,
raiva e medo, por outro. As ações abrangem formas diversas, como colocar apelidos, humilhar,
discriminar, bater, roubar, aterrorizar, excluir, divulgar comentários maldosos, excluir socialmente, dentre
outros. O bullying homofóbico pode afetar qualquer pessoa independente de sua orientação sexual. Basta
quebrar os estereótipos de gênero de nossa cultura (BRASIL, 2010).

.
120

gestos que irão marcar fortemente suas vidas, podendo, inclusive, “ter efeitos adversos
na saúde mental e psicológica dos jovens, o que por sua vez tem um impacto negativo na
sua educação” (UNESCO, 2013, p. 21). Mas, parece que isto não aconteceu com Jónata,
haja vista ele ter encontrado uma maneira de se defender usando “a tática57 de não
emprestar o caderno” (informação verbal) 58. Como ele era visto como “o nerd da sala de
aula”, muitos colegas pediam-lhe o caderno emprestado para copiar as respostas das
atividades. Embora esses mesmos colegas não aceitassem seu comportamento, levando-
os a praticar bullying, ao mesmo tempo, queriam tirar proveito da situação, copiando as
atividades prontas do seu caderno. Com isso, Jónata percebia ter um trunfo nas mãos e
realizava uma espécie de permuta: emprestava o caderno em troca da suposta amizade e
possibilidade de ganho, jogando constantemente para transformar o jogo, ou seja, as
ameaças sofridas.
Jónata percebia ter certo “poder” em relação aos colegas e utilizava-o como
forma de evitar ser constrangido e inibir as ameaças sofridas. Nesse contexto, a relação
entre habitus e prática se torna evidente porque ambos provocam e possibilitam
diferentes estratégias. O habitus expressa-se em diversas possibilidades de ação, é
inconsciente e configura-se seja no estilo de vida, nas ações desenvolvidas, nas maneiras
de ver e fazer as coisas, ou seja, desdobra-se nas ações. É através da prática que o
indivíduo aprende uma maneira de ser e de fazer, percebida como correta. Nesse
processo incorpora uma visão de mundo, um modo de ser e de fazer. Como Jónata vinha
desenvolvendo o hábito do estudo, mostrando-se aplicado na realização das atividades
propostas, detinha um lugar de prestígio e uma espécie de poder na instituição escolar e
entre seus colegas de classe.
Quando adolescente, já no Ensino Médio, Jónata começou a se interessar pelas
meninas, contudo percebia que desejava também os meninos. Isso o inquietava! Ele
comenta: “não era só olhar, olhava e sentia vontade de estar perto, de abraçar, de beijar...”.
Jónata diz que na época ninguém discutia a sexualidade, orientação sexual ou as
questões relacionadas a sexo. Parecia que “tudo era proibido”, lembra. Era proibido, por

57
Ao procurar as definições para o termo tática, optei e me inspirei no trabalho de Certeau (1998, pp. 46-
47). O autor estabelece uma diferença entre estratégia e tática. Enquanto a estratégia é um cálculo de
forças que se faz sobre um lugar, “capaz de ser circunscrito como um próprio”, e portanto visto com
exterioridade, a tática é um cálculo a ser feito sem distinguir o outro como uma totalidade visível, sem
contar com suas fronteiras. A estratégia domina o tempo. A tática, por sua vez, “depende do tempo,
vigiando para ‘captar no vôo’ possibilidades de ganho. O que ela ganha, ela não guarda. Tem
constantemente que jogar com os acontecimentos para transformá-los em ‘ocasiões’”.
58 Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

.
121

exemplo, “as meninas brincarem com os meninos”. Os meninos entendiam que brincar
com as meninas era “algo inferior”. Questões de gênero e sexualidade não eram
percebidas ou eram ignoradas pelos professores e professoras.
Fátima conta que na escola a demarcação acontecia nas brincadeiras no recreio
e nas aulas de educação física, pois havia jogos para os meninos e jogos para as meninas.
Afirma que sempre ouvia frases como: “isso é típico do homem, o homem tem essa
capacidade, tem a inteligência maior do que a mulher”. Vera também lembra que nas
aulas de Educação Física, os professores costumavam separar os meninos das meninas e
comenta: “eles diziam que esporte tal, era mais pesado... Eu tinha vontade de jogar futebol,
por exemplo, mas não podia...”. É possível perceber que Vera não aceita esta “norma”
imposta pela escola e pela sociedade. Sabe-se que com essa forma de ensinar os/as
professores/as acabam por reforçar a ideia de que os meninos são mais fortes, velozes, e
as meninas/mulheres são o “sexo frágil”, confirmando a assimetria de gênero, com a
ideia de que os homens são superiores as mulheres.
Homens e mulheres estão incluídos no próprio objeto que se esforçam para
apreender, e incorporam, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de
apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina. Segundo Bourdieu (2010, p.
82), “a dominação masculina, que constitui as mulheres como objetos simbólicos, cujo
ser (esse) é um ser percebido (percipi) tem por efeito colocá-las em permanente estado
de insegurança corporal, ou melhor, de dependência simbólica” . É certo que homens e
mulheres são diferentes na estrutura corporal, no modo de agir, pensar, porém, um não
é melhor que o outro.
Ainda em relação às questões de gênero, cabe chamar a atenção para um outro
trecho na narrativa de Fátima: um episódio que aconteceu na primeira escola que
frequentou e que se refere à atitude de sua professora, uma “mulher muito autoritária e
extremamente difícil”:
“A minha mãe era quem fazia nossa farda. Uma blusinha branca com a
gravatinha azul por dentro, uma combinaçãozinha para não aparecer o
peito, a sainha plissadinha. Eu sempre fui pequenininha e as
perninhas grossinhas e mamãe fez a saia e ficou um pouco curta,
acima do joelho. Quando eu cheguei à escola e a professora me viu entrar
na sala com a saia curta, ela pegou e colocou o dedo na bainha para
descer o comprimento. Aquilo foi uma humilhação! Ela teve a ousadia de
fazer isso. Na escola tinha aquele curso de corte e costura para as
meninas, eu me negava a fazer o curso, eu queria fazer artesanato, mas a
professora me mandou para sala de corte e costura e eu fui, mas, em
prantos. Como eu não sabia fazer bainha, ela disse: “você só vai sair daqui

.
122

quando aprender a fazer essa bainha”. E eu tive que ficar lá! Chorei muito,
mas, fiquei na sala. A professora de corte e costura era uma freira e
ela ficou muito sensibilizada com a situação. Embora não tenha
gostado, não disse nada. Ela usava o hábito todo preto comprido e aquele
paninho branco na cabeça...” (Informação verbal – Grifos meus)59.

Jéssica relembrou que na escola havia tratamento diferenciado entre os


meninos e as meninas. Ponderou que era (e ainda é) esperado que a menina seja mais
quietinha, enquanto os meninos costumam ser “os mais peraltas da turma”. E afirma que
quando uma menina faz alguma travessura, é dito: “Você é menina, não pode fazer isso ou
aquilo!”. Jéssica ainda observa:
“[...] os meninos são mais liberais mesmo, por serem mais bagunceiros,
ficam mais à vontade, fazem o que querem. A menina sempre é mais
cobrada, deve ser a mais comportada, mais meiga, menos agressiva.
Isto no sentido de dizer: “se alguém te faz alguma coisa, não pode dar um
tapa, porque você é menina...”. Lembro que na adolescência, quando
começa aquela fase que a menina começar a ter sua paixonite, ficar
apaixonada por alguém e escrevia no “diarinho”. Todas as meninas
tinham um diarinho...!”. (Informação verbal – Grifos meus)60.

Nos trechos dos relatos de Fátima e Jéssica grifei algumas palavras e termos que
podem demarcar a posição da menina e da mulher nas relações de gênero. Pretendi
enfatizar algumas profícuas questões:
a) O modo de falar com e sobre as crianças pode variar conforme o sexo. Em relação
à menina há, no vocabulário dos adultos, um uso exagerado de diminutivos, de
adjetivos e de palavras que expressam sentimentos e são percebidas como
relacionadas à mulher;
b) Na escola, a demarcação dos espaços e atividades para cada sexo. Dentre estas há
as que são entendidas como “próprias para a mulher”, como o curso de corte e
costura. Essa separação, conforme análises de Manuel (1996) se deu desde o
final do século XIX nas diferenças curriculares. Para os meninos, noções de
Geometria, Cálculo e Latim; para as meninas, bordado, costura e algumas vezes
música e etiqueta;
c) A vestimenta e o comportamento de meninas devem ser “recatados”. Sobre esta
questão, Silva, S. M. P., (2011) aponta que desde o início do Século XX, às meninas
cabia a educação dos bons modos e não a instrução, pois “a mulher na família era

59
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.
60
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.

.
123

considerada a primeira educadora das crianças. Elas aprendiam as prendas


domésticas, devendo ser obedientes e recatadas” (p. 112).
Assim, percebe-se que além do preconceito, a discriminação e a segregação
ocorrerem de maneira não-intencional e sutil, tanto nas falas, nos gestos e nas atitudes,
quanto no próprio cotidiano familiar e escolar, nos relatos de Fátima, Jéssica e Vera são
demonstradas suas percepções acerca dos papéis masculinos e femininos. Conforme
afirma Louro (1997a, p. 24) “papéis seriam, basicamente, padrões ou regras arbitrárias
que uma sociedade estabelece para seus membros e que definem comportamentos, suas
roupas, seus modos de se relacionar ou de se portar...”.
O gênero nos relatos de Fátima e Jéssica também pode ser entendido de modo
relacional, tal como o fez Simone de Beauvoir. Em sua obra “O segundo Sexo”, uma
leitura existencialista, analisa o papel da mulher na sociedade e nega qualquer essência
imutável. Em seus argumentos, destaca o caráter histórico e socialmente construído do
ser mulher, pois “ninguém nasce mulher: torna-se mulher”. A partir desta obra foi
possível compreender que “é preciso aprender a ser mulher, uma vez que o feminino
não é dado pela biologia, ou mais simplesmente pela anatomia, e sim pela sociedade”
(SAFFIOTI, 1999, p. 160).
Fátima observou: “Eu via naquela professora uma pessoa que fugia, que tentava
ser o ideal de professora, uma pessoa difícil até porque ela era solteira” (Informação
verbal)61. O comentário parece sugerir uma das representações recorrentes acerca da
mulher professora: a mulher solteirona que abdicava de si para se entregar aos alunos e
alunas como se fossem a sua família. Durante algum tempo essa representação, segundo
Louro (1997a; 2001c), fez sentido para algumas mulheres, bem como para alguns
setores sociais, levando-as a conduzirem suas vidas dessa forma. Para essa autora, as
representações podem ser diversas podem se transformar ou ser divergentes,
entretanto todas elas estão estritamente ligadas às relações de poder, sendo construídas
em seu interior e os seus significados estão relacionados ao poder.
A professora solteirona encontrava-se ligada a um conjunto de representações
nem sempre convergentes, conforme aponta Louro (2001c, p. 52) quando ressalta que,
por um lado via-se uma “mulher que falhara, pois deixara de cumprir a sua missão
fundamental ser esposa e mãe; por outro lado, pela sua condição profissional, usufruía

61
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima concedida em out. de 2012.

.
124

de algumas vantagens em relação às outras mulheres”. Exercia uma função remunerada,


podendo manter seu próprio sustento.
Fátima ainda enfatizou em sua narrativa, a percepção da professora como uma
“pessoa difícil” que aparentava “uma defesa da condição dela de mulher que não casou”. A
entrevistada disse que já não pensava mais dessa forma “mais ou menos isso: ela é mal-
amada! ”. Com essa expressão é possível perceber que Fátima relacionava (talvez ainda
relacione) a mulher professora e solteira ao estereótipo da “donzela austera e sisuda”,
conforme analisado por Nunes (2006). Esta autora estuda o exercício da docência,
desenvolvido pela mulher, a partir do que era entendido como “ideal mariano”. Sendo
este “ancorado na valorização da virgindade [...] como meio de reabilitar as mulheres
solteiras, as chamadas ‘solteironas’” (p. 207).
Utilizar a expressão “mal-amada” significa partir do pressuposto de que as
mulheres navegam apenas pelo campo do irracional, dos sentimentos, do coração. Seria
possível dizer que a “razão” é exclusividade do homem? Seria preciso um homem ao lado
da mulher, para ampará-la e mantê-la equilibrada? Infelizmente, em nossa sociedade
heteronormativa e machista, onde em muitos casos prevalece a dominação masculina,
ainda há pessoas que pensam e agem dessa forma.
Em relação à menina e à mulher Elias comenta:
“[...] os homens corriam atrás das meninas. Eu lembro que isso era
horrível, a gente corria atrás mesmo, e levava para o mato [...]. Lembro
também que fiquei meio traumatizado com o primeiro beijo, fiquei com
medo [risos]. Ela era bem mais velha que eu, uns dez anos mais ou menos,
eu tinha doze anos e ela devia ter uns vinte, vinte e dois. Na realidade,
creio que foi ela me “atacou”! Ela disse que queria falar comigo e eu fui
chegando lá ela quis me “desfrutar”. Eu peguei, mas fiquei com medo... E
depois que passou ia comentar com os colegas. Sempre comentava com os
colegas... então, eles também queriam pegar, queriam dividir a
mesma menina...” (Informação verbal)62.

Neste relato, é possível constatar que além do desejo de compartilhar o feito


com seus colegas, atitude que pode ser percebida como própria de um adolescente, a
mulher era vista por Elias como se fosse uma presa que os homens deviam caçar,
correndo atrás. Sua narrativa configurou a mulher como alguém que não tem liberdade
de escolha, devendo ser submissa às vontades do macho, inclusive ao dizer que os
colegas queriam “dividir a mesma menina”, restando-lhe apenas suprir os “instintos
sexuais” dos meninos/homens.

62 Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em jul. de 2012.

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125

Homens e mulheres vivem seus gêneros, desempenham suas sexualidades e


comandam seus corpos de acordo com as normas e os padrões coercitivos da sociedade.
Essa ordem simbólica se depara com certo grau de inconsciência nos discursos tanto de
homens quanto de mulheres, como pôde ser percebido nos relatos de Fátima, Jéssica e
Elias. Conforme se mencionou, a partir deles, é possível examinar o lugar ocupado e as
formas de tratamento diferenciado, especialmente para as meninas e para as mulheres
na escola e na sociedade.
A mulher adulta, em certos casos, é entendida como aquela que deve ser
submissa ao homem. Esses mecanismos confirmam a assimetria de gênero: a ideia de
superioridade dos homens em relação às mulheres, o medo, ou vergonha que as
mulheres sentem ao tratar determinados assuntos. Tais casos exprimem formas de
violência simbólica instituídas por intermédio da adesão da própria mulher quando não
dispõe de modos para pensar as relações sociais.
Compreendo que ao assentar-se sobre a dicotomia masculino-feminino
simplifica-se a complexidade social, e até mesmo biológica, referentes às
heterogeneidades de cada sexo. Gênero deve ser entendido como parte de uma trama
histórica e complexa de relações sociais. Nesse processo, o próprio corpo seria
interpretado por um conjunto de práticas sociais que atribuem sentido às distinções
sexuais, trazendo-as para a sociedade, a cultura e a política. Com este entendimento,
uma vez que se configuram as relações sociais de gênero, elas transcendem os corpos e
passam a significar representações culturais, processos históricos, instituições sociais,
dentre outros.

2.3.2 Sexualidade na escola: o corpo em destaque

Sobre os conteúdos referentes ao desenvolvimento do corpo e da


sexualidade estudados na escola, Jónata lembra que na quarta série, em uma das aulas
de Ciências, assistiu a uma aula cujo tema era sobre a reprodução. Fala: “todos os alunos
ficaram encantados com as figuras do corpo humano, com os órgãos e com o aparelho
reprodutor”. Depois disso, só foram rever essas questões também nas aulas de Ciências
quando já estavam na sétima série, acrescenta Jónata. Pondera que só eram tratadas as
questões biológicas, e dentre elas, a reprodução e os cuidados higiênicos com o corpo:

.
126

“Eu me lembro de que nas aulas de ciências os professores enfatizavam o


cuidado que as meninas deviam ter com o corpo e o não cuidado que
os meninos deviam ter com o corpo. Era obrigado às meninas se cuidar,
se lavar direitinho, usar calcinha...Se tivesse um sangramento, falar com
os pais, porque podia ser a menstruação... Já para os meninos parece que
era normal não usar ou usar cuecas, era normal ficar sujo, fedendo, cheiro
de suor...Então o não cuidado com o corpo dos meninos também era
explícito nas aulas de ciências” (Informação verbal – grifos meus)63.

O corpo, portanto, era concebido como pura anatomia, em que a sexualidade se


reduz ao conhecimento das estruturas do sistema reprodutor masculino e feminino. O
corpo da menina, por ser marcado pela chegada da primeira menstruação e carregado
de sentidos, desde os últimos séculos deixou de ser tema privado, passando a ser tema
público em nossa cultura. Com a chegada dos absorventes e de outros produtos
industrializados, a questão da higiene, a proteção do corpo, a limpeza e a aparência da
menina passam a ter maior destaque, tornando-se um interesse de mercado e
fundamentalmente como um marco de “passagem” da infância para a vida adulta. E isso
ainda é fato presente nas escolas atuais, como constado na narrativa de Jónata tal como
referido acima.
João também comentou que a escola não tratava esses assuntos, nem mesmo
nas aulas de ciências”. Acrescenta que estudavam apenas o corpo humano, mas ressalta:
“os meninos eram mais assanhados e diziam para o professor: ‘você não vai falar dessa
parte não? Do livro, da parte da mulher e do homem? Para que serve?’” (Informação
verbal)64. Neste relato é possível constatar a percepção de João acerca dos
comportamentos diferenciados de acordo com o sexo. Entretanto, ao classificar os
comportamentos, geralmente são naturalizadas as condutas vistas como legítima para
um e outro grupo, sendo que meninos e meninas colocam a sexualidade como algo que
seria próprio do domínio masculino, e mesmo exercida pelas meninas, não seria
adequada ao universo feminino. É possível, ainda, mencionar um trecho do relato de
Telma ao tratar de manifestações da sexualidade entre colegas na escola. Ela silenciou
em certos momentos, como por exemplo, ao rememorar:
“Imagina! A escola nessa época... Mas, lembro de um caso: estava na
oitava série... Foi uma amiga da gente, não sei como...ela tirou umas
fotos...umas fotos assim...pelada...todo mundo da escola comentava... eu
sei que.... Eu lembro que...ela era bem espevitada e mostrava essas fotos
para os colegas... parece que, se não me recordo, não sei se chegou a ser
expulsa, mas sei que ela foi suspensa da escola... e nesse tempo nem tinha

63
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.
64 Trecho extraído da entrevista concedida por João em jan. de 2012.

.
127

celular, eram fotos reveladas mesmo. Ela era muito bonita... a gente já era
mocinha... eu lembro que... foi um bafafá na escola...” (Informação verbal –
grifos meus)65.

Sabe-se que o conhecimento da sexualidade entrelaça dados da história dos


indivíduos e dos grupos sociais, e envolve valores morais construídos, principalmente,
pelos campos familiar, político e religioso. Em nossa sociedade, este conhecimento é ao
mesmo tempo controlado, selecionado e redistribuído por certos procedimentos cuja
função é conspirar seus poderes e suas ameaças, podendo ainda ser compreendido como
procedimentos de exclusão e de interdição (FOUCAULT, 1993). Embora saibamos que
não temos o direito de dizer tudo o que pensamos, em qualquer circunstância, tais
interdições revelam a relação entre desejo e poder. A repressão da sexualidade não se
realiza apenas pelo conjunto explícito de interdições e censuras, e sim pelas práticas,
ideias e instituições que regulamentam o que é permitido e o que é proibido. Ainda se
mantém presente, em certos casos, a ideia da repressão como um processo de controle
da sexualidade tida como pecaminosa, imoral, viciosa. Com isso, as normas e regras
impostas pela sociedade, transformaram-se, segundo Foucault, em discursos e
provocaram um “contra efeito”, valorizando e intensificando o “discurso indecente”.
Novas regras de decência, sem dúvida alguma filtraram as palavras:
polícia dos enunciados. Controle também das enunciações: definiu-se de
maneira muito mais restrita onde e quando não era possível falar dele;
em que situação, entre quais locutores, e em que relações sociais;
estabeleceram-se, assim, regiões, senão de silêncio absoluto, pelo menos
de tato e descrição; entre pais e filhos, por exemplo, ou educadores e
alunos, patrões e serviçais (FOUCAULT, 1993, pp. 21-22).

Notoriamente a menina recebe muito mais comandos de repressão e negativas


do que um menino. Os meninos e os homens acabam sendo instigados a afirmar seu
corpo e sua sexualidade. No âmbito educacional se aprende a pensar o corpo como um
elemento pouco valioso e que ocupa o lugar da natureza, como algo pronto e estático, e
não como uma esfera política. Este argumento, segundo Louro (2003) é parte de um
discurso ilusório, pois
[...] um olhar mais cuidadoso nos mostra que todos os processos
educativos sempre estiveram – e estão – preocupados em vigiar,
controlar, modelar, corrigir, construir os corpos de meninos e meninas,
jovens, homens e mulheres. Os corpos foram – e são – objeto da mais
meticulosa atenção, não apenas das escolas, mas de várias instâncias
sociais. Eles são alvo central de muitas pedagogias culturais que, além
das instituições escolares e por vezes de forma mais sedutora e eficiente

65
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2012.

.
128

do que essas, veiculam saberes, transmitem valores e, efetivamente,


acabam por “produzir”, os sujeitos sociais. (p. 1)

Além disso, a Igreja, através de seus dogmas, estabelece o que é “certo” e o que é
“pecado” em relação à sexualidade. As famílias que vivem sob os preceitos religiosos
tentam, de algum modo, inserir na educação dos filhos e filhas as normas impostas por
essas e outras instituições.
Com isso, as discussões sobre questões que envolvem identidades das pessoas e
suas práticas sexuais estão presentes no cotidiano, mas, são entendidas como restritas a
certos lugares e pessoas, devido a sua relação com mitos, tabus, crenças, cultura, dentre
outros. Em sala de aula, Vera ressaltou que no Ensino Fundamental...
“Os professores comentavam somente o que tinha na disciplina, no livro
didático e a gente percebia assim, que eles eram muito... tímidos para
falar a respeito do assunto. Às vezes a gente tinha curiosidade de
perguntar sobre algumas partes do corpo, às vezes eles sorriam, com
vergonha de falar. Eles eram tímidos, eles não tinham... aquela... Eu já
lembro dessa questão somente no ensino médio. Quando a gente chegou a
questionar algumas coisas com uma das professoras e era justamente pela
questão da timidez, ela não soube esclarecer direitinho, ela fugia assim do
assunto...” (Informação verbal – grifos meus)66.

Vera assinalou que suas professoras (eram todas mulheres), tinham


dificuldades para incluir temas relacionados ao corpo e à sexualidade em suas práticas
escolares. Mas, ela também demonstrava certa timidez ao silenciar e não completar
algumas frases em sua narrativa. Essas atitudes, segundo Perrenoud (2001) consistem
no “não ditos” da profissão docente. Dentre estes, o autor destaca “a sedução negada”, e
diz que “o mundo do ensino é muito puritano” e “tudo aquilo que evoca o desejo e a
sensualidade é excluído [...]” (p. 79).
Falar sobre o próprio corpo, sobre sexo e sexualidade para a mulher não
envolve timidez, mas sim toda a dominação masculina culturalmente construída.
Muitas mulheres não tocam no assunto com a liberdade que gostariam por medo de
serem julgadas de forma pejorativa. No entanto, sabe-se que não são todas
amedrontadas e da mesma forma não são todas as pessoas que as julgam por tais
comentários. Essa atitude ainda é bastante recorrente, mesmo no século XXI, após
diversos direitos conquistados pelas próprias mulheres.
Elias não se lembra de nenhum momento no qual gênero e sexualidade fosse
objeto de atenção durante as aulas, tanto no Ensino fundamental quanto no Ensino

66
Trecho extraído da entrevista concedida por Vera em jan. de 2013.

.
129

médio. Acrescenta: “normalmente, se aparecesse algum menino homossexual o


preconceito era grande, a ‘taca’ era grande... às vezes os outros meninos e até os
professores batiam”. Elias lembrou que os professores diziam: “sai daqui seu ‘boiola’!”.
Em seguida, ressalta:
“[...] os meninos tacavam pedras. Eu não me misturava! Só depois que
terminei o ensino médio, comecei a ter amizade com o povo
homossexual. Eles são gente, são superamigos, pessoas que podemos
contar. E os que eram homens mesmo, corriam atrás das meninas.”
(Informação verbal – grifos meus)67.

Elias tentava evidenciar o jogo entre “normal” e “anormal”, o que faz operar a
separação, a exclusão, a interdição e a releitura. Sobre esta questão vale rememorar
Weeks (2003) quando examina as palavras, ou melhor, a linguagem, destacando
elementos da história da criação dos dois conceitos: heterossexual e homossexual.
Termos relativamente recentes, tendo sido usados e publicados, pela primeira vez em
1869, em manuscritos clandestinos dirigidos ao governo alemão, por um escritor austro-
húngaro, Karl Kertbeny (1824-1882). Esse documento visava combater o Código Penal
Prussiano que criminalizava esta prática sexual, argumentando que não se podia
criminalizar uma condição "inata" e "natural" compartilhada por muitos homens de
“bem” na história. Kertbeny era militante dos direitos humanos e esses termos foram
desenvolvidos para colocar na pauta política da Alemanha a questão da reforma sexual e
a revogação das leis que tratavam da sodomia. Weeks (2003, p. 62) ressalta que essas
ações:
[...] eram parte de uma campanha embrionária, subsequentemente
assumida pela disciplina da sexologia, então em desenvolvimento, de
definir a homossexualidade como uma forma distintiva de sexualidade:
como uma variante benigna, aos olhos dos reformadores, da potente,
mas impronunciada e mal definida noção de “sexualidade normal”
(aparentemente, outro conceito usado pela primeira vez por Kertbeny).
Até aqui, a atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo biológico
tinha sido tratada sob a categoria geral de sodomia, a qual geralmente
era vista não como a atividade de um tipo particular de pessoa, mas
como potencial de toda natureza pecadora.

Embora o termo tenha nascido da militância contra a criminalização do


homoerotismo acabou se tornando signo de doença. Com isso, é possível alegar que a
homossexualidade foi concebida, historicamente, como uma categoria identitária
específica e em oposição a uma norma heterossexual. O termo nasceu da militância e

67
Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em jul. de 2012.

.
130

assumiu na sexologia um significado de doença. O que deveria descrever uma prática


sexual comum entre pessoas do mesmo sexo passa a delinear a atitude, uma identidade,
uma interioridade do sujeito. O que era próprio da condição humana passa a ser
interpretado como qualidade daqueles que possuem um “desvio” da sexualidade. Muitas
pessoas ainda partilham dessa ideia conforme constatado nas entrevistas de Jéssica,
João e Telma. Elas e ele referiram-se à pessoa homossexual como o outro distante, em
oposição ao heterossexual, aquele que é bem visto e esperado pela sociedade
heteronormativa. A seguir destaco alguns trechos dos relatos de Jéssica, João e Telma:
“Lembro também um caso de homossexualidade. Tinha uma colega que
disse pra mim que estava apaixonada por outra colega da sala. E ela
queria que eu dissesse pra outra. Mas, eu nunca levei recado de uma e nem
de outra... Eu disse: “te resolve com ela, não é comigo não! Não lembro
bem, mas achava estranho. De certa forma, a gente até sabia que existia
homossexualidade, embora a escola não tratasse a questão”. (Informação
verbal - grifos meus)68.

“Em relação à sexualidade, lembro que nos anos finais do ensino


fundamental os alunos discutiam entre si, falando baixinho sobre o
comportamento de tal pessoa, de mulher, de homem que parecia ser
homossexual e víamos que havia crianças que tinha uma certa
tendência, que demonstravam esse lado... Então, tais questões eram,
diretamente falando, mais tratadas no círculo de alunos. A escola não
tratava esses assuntos, nem mesmo nas aulas de ciências”. (Informação
verbal - grifos meus)69.

“ Eu lembro que tinha uma menina na escola que o pessoal chamava de


macho-fêmea... e eu lembro que ela era excluída até que ela deixou de
estudar... assim devido ela mesma ... depois ela...acho que ela era até
transexual mesmo, não sei se ela fez cirurgia... e eu acho que se ela fosse
estudar comigo, eu também não ia querer nem papo....”. (Informação
verbal - grifos meus)70.

Notam-se nesses excertos uma forma de negação. Indiretamente, confirmaram e


reiteraram a norma moralizante e percebiam a paixão por alguém do mesmo sexo como
uma transgressão de gênero, como “algo estranho”, nas palavras de Jéssica; quando uma
criança que não apresenta comportamento de acordo com as normas sociais, é vista
como aquela que possui “certa tendência”, conforme relatado por João; ou pode ser
excluída do grupo, por ser entendida como “macho-fêmea” na formulação de Telma.
Dos três comentários depreende-se que a heterossexualidade era entendida
como a norma que dispõe homens e mulheres segundo a “natureza”. A

68
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.
69 Trecho extraído da entrevista concedida por João em jan. de 2013.
70 Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2013.

.
131

homossexualidade subverteria esta norma, a partir da ocupação, no caso da


homossexualidade masculina, de uma posição inferior (dominada) (Bourdieu, 2010). Já
no caso da homossexualidade feminina, haveria a possibilidade de subversão de uma
posição de subordinação, a partir da negação do papel atribuído à mulher: subordinar-
se, também sexualmente, ao homem.

2.4 A Religião e os habitus incorporados no desenvolvimento das sexualidades

Bourdieu (2007a) argumenta que os leigos também são produtores de práticas


e discursos religiosos que, por vezes, são apropriados e transfigurados pela religião
estabelecida sendo trazidos de volta para os leigos de forma já não mais reconhecível, ao
menos aprioristicamente. Tendo em vista esse entendimento, procuro analisar aspectos
da dimensão religiosa presentes nas narrativas dos/a colaboradores/as. Destaco a
vivência do catolicismo e seus “dogmas religiosos” vivenciados na família de Jónata, a
constituição de normas e regras moralizantes relatadas por Elias, o posicionamento de
Jéssica acerca da Igreja e sua influência na constituição de uma “vida tranquila” e a
prevalência de ideias defendidas pelo pastor da igreja em certas afirmações de João.
Jónata ressalta que dentre as marcas advindas de sua mãe, uma mulher forte e
extremamente religiosa, “talvez tenha sido dela que herdou o receio pelos dogmas
religiosos e o conflito constantemente vivido, especialmente devido a sua orientação
sexual”. Ele sempre ouvia em sua casa e na igreja que não era certo ter esses desejos por
pessoas do mesmo sexo, porque: “Deus fez o homem e a mulher para viverem juntos”.
Reprimido pelos dogmas aprendidos na família e na igreja não falava com
ninguém sobre o fato de desejar igualmente meninos e meninas, porque “sabia que era
errado”, sobretudo, porque as pessoas com quem convivia, sempre diziam que ele só
fazia “coisas certas”, então não podia mostrar algo que entendia ser errado. Embora
fosse visto pela família e pela escola como um menino obediente, que seguia os preceitos
religiosos, por não compreender seus próprios sentimentos Jónata acreditava estar
cometendo um erro.
Por ter desenvolvido pela ação da mãe, certo pertencimento à religião católica
Jónata vivia em conflito. Isto porque qualquer sentimento de pertença, seja de natureza
social ou cultural, como classe, etnia, raça, país, orientação sexual, dentre outros é capaz
de posicionar socialmente o indivíduo. O fato de sua família estar vinculada a uma

.
132

crença religiosa e fazer dela uma orientação de vida, individual e coletiva, pode produzir
efeitos nas relações sociais e na construção de seu habitus. Conforme Setton (2009) a
disposição de cultura religiosa incorporada prematuramente (na socialização primária)
é passível de mudanças, é dinâmica e reitera a ideia de uma hibridização religiosa, no
sentido do indivíduo estar exposto a intercâmbios que permitem criar e reinventar as
suas próprias concepções. As palavras de Jónata confirmam:
“Eu me via em conflito para aceitar o conhecimento teórico, porque
existia algo mais forte em mim: o processo da inculcação religiosa que
me impossibilitava aceitar o que estava estudando sobre a sexualidade, a
homossexualidade, a bissexualidade, a transsexualidade [...]. Quanto mais
eu estudava, mas eu percebia que o conhecimento religioso era falho, que
não mais cabia eu aceitá-lo como o único conhecimento, pronto e
acabado. Eu passei a ver que esse conhecimento era uma imposição de
certas pessoas que queriam ver o mundo do jeito que elas queriam”
(informação verbal – grifos meus)71.

O caso de Elias é bem diferente do de Jónata, pois arrisca demonstrar seu “poder
de macho”, evidenciando, a todo momento, a diferença percebida entre ser homem, ser
mulher, ser de família. E nessa tentativa, deixa transparecer alguns preceitos religiosos.
Relembra quando tinha seus doze anos e sua turminha se juntava para ir ao cabaré da
cidade e sobre o episódio sentia-se orgulhoso:
“Vamos num cabaré!?”. Começou assim. Juntava um bando de “menino do
buchão”72 e íamos sozinhos, para o cabaré. Eu lembro que era horrível
[risos]. Primeiro, para agarrar uma mulher paguei o equivalente a um
salário mínimo de hoje. E eu não sabia nada... Paguei e fui comentar com
meus colegas que eu não sabia de nada e que fiquei assim ... [calou-se]. Aí
a mulher, a prostituta, ficou sabendo, foi bater na gente e botou todo
mundo para correr naquele dia. Hoje ela é mãe da família, evangélica,
eu a vejo na rua e acho que não se lembra de mim [risos]. Eram tantos
clientes ... e eu era só mais um “menino do buchão”. (Professor Elias –
grifos meus)

Elias enfatiza a submissão e sujeição da mulher ao homem ao ressaltar que


“para agarrar uma mulher, paguei o equivalente a um salário mínimo de hoje”. Diz que
pagou e foi comentar com os colegas. Atitude que pode ser considerada natural quando se
trata de um adolescente. No entanto, fez questão de reforçar, em sua narrativa, que a mulher
foi prostituta, entendida por ele como uma mulher impura. Sua afirmativa traduz o que

71
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.
72Considerando que a palavra bucho se refere principalmente ao estômago de alguns animais, o termo
“menino do buchão” é utilizado, pelo dito popular, para referir-se ao menino pobre, que possui um
abdômen avantajado.

.
133

acredita ser a diferença entre “sagrado” e “profano” e é provável que Elias perceba uma
“mulher de família” como aquela que se dedica à religião, ao marido e aos filhos/as.
Em relação à homossexualidade, Elias também comenta que depois do curso
GDE tenta trabalhar de forma que os alunos e alunas compreendam:
“[...] que nem todo mundo é igual a você e depois eu não aceito o
desrespeito porque a pessoa é gay ou bi. Antes eu só ria. Hoje eu não sou
contra e nem a favor. Eu só quero que não agridam, que deixem as pessoas
viverem como elas querem. Entendo que isso é pecado, mas eu não sou
Deus para condenar... hoje eu digo: “a vida é tua, tá feliz? Amém”. Nós
temos o livre arbítrio, eu não posso forçar ninguém a fazer nada, agora
preciso entender que não posso te agredir porque é uma pessoa
homossexual” (Informação verbal – grifos meus)73.

Tanto nas atividades realizadas durante o GDE, no ano de 2009, quanto em sua
narrativa na entrevista concedida em junho de 2012, Elias mostra um discurso religioso
voltado ao cristianismo. Alguns aspectos mencionados possibilita-nos reconhecer ações
e regras, muitas delas moralizantes e que foram impostas, principalmente, pelo campo
religioso. Retomo aqui outro trecho postado num Fórum do curso, quando ressalta:
A maior lição do cristianismo é o amor, infelizmente alguns pregadores
e líderes dessa religião esqueceram-se disso e perseguiram inclusive
outros cristãos por terem práticas de louvor e adoração diferentes das
suas. Não vejo no cristianismo nenhum empecilho para conviver com
respeito a quem quer que seja independente de sua religião e/ou
orientação sexual. Viver o cristianismo é uma escolha livre que se faz no
nosso país, aqueles que não aceitam os ensinamentos são livres para
professarem outra fé. Só é necessário sabermos viver, conviver e amar
ao próximo como a nós mesmos. (Professor Elias, GDE, AVA/UFMA,
2009)74.

O campo religioso é visto por Bourdieu (2007a) como um campo relativamente


autônomo, constituído a partir do desenvolvimento de uma “moralização” e de
“sistematização” das crenças e práticas e das representações religiosas.
[...] do mito como (quase) sistema objetivamente sistemático à ideologia
religiosa como (quase) sistema expressamente sistematizado e,
paralelamente, do tabu e da contaminação mágica ao pecado ou do
mana, do “numinoso”, e do Deus primitivo, arbitrário e imprevisível, ao
Deus justo e bom, guardião e protetor da ordem da natureza e da
sociedade. (p.37).

Dessa forma, são interiorizados os fenômenos religiosos e introduzidos os


critérios e imperativos éticos, que recompensam o “bem” e punem o “mal”, bem como o

73
Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em jul. de 2012.
74Trecho extraído de um dos fóruns de discussão do curso GDE. Disponível em:
http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em 12 de out. 2012.

.
134

desenvolvimento do sentimento de “pecado” e o desejo da “salvação”. Ao impor e


inculcar esses esquemas de percepção, pensamento e ação, a Igreja contribui, segundo
Bourdieu (2007a), para a manutenção da ordem religiosa e política, bem como para a
manutenção da ordem simbólica.
Os aspectos moralizantes da narrativa de Elias também foram igualmente
percebidos no relato da professora Jéssica quando destaca que viveu ...
“[...] uma infância muito inocente mesmo! Creio que só vim despertar
para essas questões na adolescência. A minha infância foi bem mais
tranquila. Não tinha nenhum assunto que possa dizer, para conversar
com outra pessoa, que não fosse em minha família. Principalmente na
infância, na escola... eu não tinha interesse por esses assuntos que hoje a
gente considera “tabu”. Era tudo muito tranquilo! Em razão de ser
evangélica também... na própria igreja fazíamos e fazemos parte da escola
do grupo dominical. A igreja teve mais essa preocupação... Temos
professores de grupos: crianças, adolescentes... e nesses grupos há muita
literatura, pesquisas, leitura... são estudados e se procura sempre seguir os
princípios bíblicos... Então para mim, tive uma infância muito tranquila.
Nasci no evangelho e continuo até hoje” (Informação verbal – grifos
meus)75.

Jéssica salienta e defende a importância da “inocência infantil” e da “pureza da


criança”. Reitera que viveu sua infância “brincando de boneca, fazendo casinha e
panelinha de barro, mesmo!”. Ressalta que era tão “inocente que quando os adultos
conversavam, nós crianças não fazíamos questão de estar juntos”. Diz que só veio a
despertar para questões da sexualidade na adolescência, período no qual sua vida
deixou de ser tão “tranquila”. O que se percebe é que Jéssica compreende sexualidade
apenas como relação sexual, sendo este um ato “impuro” o que aumenta e cerca o
assunto com tabus, preconceitos e impede uma conversa franca e desprovida de
entraves entre pais e filhos, entre crianças e adolescentes e as pessoas adultas. Além
disso, ao demonstrar uma opinião pessoal, com certos silenciamentos, reforça a ideia de
que apenas algumas pessoas são autorizadas a falar da sexualidade, demonstrando ser
esta uma abordagem que deve ser permeada por um discurso normatizante, entendido
por ela, como “princípios bíblicos”.
Ao falar sobre o tema, a Igreja exige a confissão, deves que se trata de pecado ou
desvio à norma. Bourdieu (2007b, p. 372) sublinha:
A ideia de "opinião pessoal" deve, talvez, em parte, sua evidencia ao fato
de que, construída contra a pretensão da Igreja ao monopólio da
produção legitima dos julgamentos, dos instrumentos de produção dos
julgamentos e dos produtores de julgamentos, e inseparável da ideia de

75
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.

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135

tolerância - ou seja, da contestação de toda autoridade em nome da


convicção de que, nessas matérias, todas as opiniões, seja qual for seu
produtor, são equivalentes - ela exprime, desde a origem, os interesses
dos intelectuais, pequenos produtores independentes de opiniões, cujo
papel se desenvolve paralelamente à constituição de um campo de
produção especializado e de um mercado para os produtos culturais e,
em seguida, de um subcampo especializado na produção das opiniões
políticas.

No trabalho de produção e reprodução das opiniões e da dominação masculina,


articuladas às instituições sociais, estes são garantidos, segundo Bourdieu (2010) por
três instâncias principais: a Família, a Igreja e a Escola. Estas instituições têm em comum
o fato de agirem sobre as estruturas inconscientes. Para o autor, à família cabe o papel
principal na reprodução da dominação e da visão masculinas; na família se impõe a
experiência “precoce da divisão sexual do trabalho e da representação legítima dessa
divisão, garantida pelo direito e inscrita na linguagem”. Quanto à Igreja, “marcada pelo
antifeminismo”, ela inculca (ou inculcava) explicitamente uma “moral familiarista,
completamente dominada pelos valores patriarcais e principalmente pelo dogma da
inata inferioridade das mulheres” (p. 103). E a Escola,
[...] mesmo quando já liberta da tutela da Igreja, continua a transmitir os
pressupostos da representação patriarcal (baseada na homologia entre
a relação homem/mulher e a relação adulto/criança) e sobretudo,
talvez, os que estão inscritos em suas próprias estruturas hierárquicas,
todas sexualmente conotadas, entre as diferentes escolas ou as
diferentes faculdades, entre as disciplinas [...], entre as especialidades,
isto é, entre as maneiras de ser e as maneiras de ver, de se ver, de se
representarem as próprias aptidões e inclinações [...] (Op cit, p. 104).

Estudos e pesquisas desenvolvidos na atualidade sobre a religiosidade


(CHIAVENATO, 2002; COUTO, 2005; WATANABE, 2005), têm demonstrado grande
polissemia sobre temas éticos, especialmente acerca da sexualidade. Tais estudos
explicam que há em determinadas pessoas pertencentes a uma denominação religiosa
uma necessidade crescente de diálogo entre sua vivência e as atitudes morais
consideradas pela religião com suas respectivas normas, influenciando a disposição
moral do sujeito. Watanabe (2005) entende que o exercício da subjetividade sobre
práticas religiosas e éticas, principalmente no que refere à natureza sexual, faz com que
o indivíduo adapte e modifique, a partir de suas experiências, o Sistema de Crenças
propagadas pelas autoridades religiosas. A referência à necessidade de diálogo com
ênfase nas atitudes morais, bem como acerca das práticas religiosas e da sexualidade foi

.
136

uma constante nas narrativas de Jéssica e em algumas passagens também da entrevista


de Elias.
Sobre a homossexualidade, João afirma ser esta uma questão de “escolha”, mas
em seguida balbucia ao refletir:

“[...] eu fico na dúvida: às vezes, acho que nasce...no meu ponto de vista a
pessoa já nasce. A pessoa já nasce... Eu acho que ela se conhece... elas se
conhecem...isso porque ela nasce... tem criança que a gente percebe e fala
do modo de se portar...de conversar, até de se vestir, a gente percebe
criança que já nasce com aquele estilo...Então, ela escolheu nascer
assim...não escolheu! Ela escolheu falar daquela forma? Também não
escolheu! No meu ponto de vista, já nasce assim... Tem um teólogo amigo
meu, um teólogo, conhecedor da bíblia... Eu tenho um amigo que é pastor
também, ele era padre e virou pastor, tenho amigo espírita, amigo
homossexual, amiga lésbica, eu tenho...e quando conversamos, eu falo
para eles o meu ponto de vista, eu penso que a pessoa já nasce. A pessoa já
nasce... E esse meu amigo teólogo falou: “Rapaz, eu também acho que sim
que nasce!” Agora o pastor se colocou: “não nasce, escolhe depois!”
(Informação verbal - grifos meus)76.

Evidenciam-se no caso a inconstância e a dúvida sobre a questão. Ao considerar


a influência e o posicionamento da religião em sua trajetória vivida, percebe-se que o
termo “escolha” tem prevalecido em sua representação acerca das sexualidades e mais
especificamente da homossexualidade, haja vista tê-lo repetido diversas vezes, inclusive
em seu projeto didático apresentado ao final do curso GDE.
Segundo Bourdieu (2007a), graças ao efeito de uma consagração socialmente
arbitrária, mas real do ponto de vista do sagrado, a religião consegue submeter o
sistema de disposições em relação ao mundo natural e ao mundo social a uma mudança
de natureza, em especial convertendo o ethos, enquanto sistema de esquemas implícitos
de ação e de julgamento, em ética, ou seja, um conjunto racionalizado e sistematizado de
regras explícitas. Por isso, a religião, segundo o autor:
[...] está predisposta a assumir uma função ideológica, função prática e
política de absolutização do relativo e de legitimação do arbitrário,
que só poderá cumprir na medida em que possa suprir uma função
lógica e gnosiológica consistente em reforçar a força material ou
simbólica possível de ser mobilizada por um grupo ou uma classe,
assegurando a legitimação de tudo que define socialmente este grupo ou
esta classe (BOURDIEU, 2007a, p. 46, grifos do autor).

As experiências religiosas e as formas como são vivenciadas subjetivamente


essa dimensão da vida social, moldam, variavelmente, a vida de cada pessoa e

76
Trecho extraído da entrevista concedida por João em jan. de 2013.

.
137

transformam-se no decorrer dessas vidas (DUARTE, 2006). No decurso deste estudo,


pude perceber uma forte ligação entre esses/a colaboradores/a e a religião. Orar ou
rezar a Deus, agradecer as bênçãos alcançadas, procurar ajuda na solução dos novos
problemas e, ao mesmo tempo, significado para sua vida foram atitudes observáveis em
suas narrativas. As pessoas cultivam um sentimento religioso, expressando a crença
num Deus bondoso e benevolente, sensibilizado pelos sofrimentos alheios,
entusiasmado com suas alegrias e fortalecedor de suas esperanças (GEBARA, 2008).
Nos relatos, questões das sexualidades, atreladas a aspectos da religiosidade
estão fortemente entrelaçadas e fortemente subjetivadas nos discursos de Elias, João e
Jéssica. Mas, Jónata demonstra ter rompido com valores construídos em seu processo de
socialização primária pela família e pela igreja. Com isto, reitero que há de se considerar
o habitus como um sistema flexível de disposição, não apenas resultado da separação de
uma vivência nas instituições sociais, mas um sistema em construção, em permanente
mudança, portanto, que pode ser acomodado de acordo com os estímulos do mundo
social. Um habitus de acordo com Setton (2002) é também uma trajetória, uma ponte
entre o passado e o presente; uma história em desenvolvimento; uma expressão de certa
identidade social em construção.
No capítulo a seguir, são discutidos o percurso trilhado no caminho da docência
e as questões de gênero e sexualidade na formação e nas práticas desenvolvidas.

 

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138

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139

CAPÍTULO 3

GÊNERO E SEXUALIDADE ENTRE A FORMAÇÃO DOCENTE E AS


PRÁTICAS ESCOLARES

A sexualidade e as relações de gênero não podem mais ser compreendidas


como questões que se resolvem “entre quatro paredes”.
(Guacira Louro)
_______________________________________________________________________________________

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140

.
141

[...]se se quer levar os professores a compreenderem e


dominarem as regras que organizam os processos
de formação [...] é preciso que esse processo
passe pelo conhecimento ou pela consciência
das suas próprias experiências da vida escolar
e as formas pelas quais eles/as próprios/as
foram iniciados nas suas relações com
o conhecimento, a aprendizagem ou a leitura.
Denice Catani (2005, p. 63)

Inúmeros são os desafios quando se trata dos processos de formação docente


em geral e, mais especificamente, quando se trata da formação continuada que precisa
articular-se com problemas e desafios que professores/as enfrentam em sua sala de
aula. Nesses processos, as relações de gênero, questões da sexualidade, diversidade de
gêneros e sexuais estão presentes nos espaços escolares como inerentes à condição
humana. Relações e diversidade que, muitas vezes, são silenciadas ou ausentes do
currículo escolar e das práticas pedagógicas adotadas nas escolas.
Conforme aponta Louro (2001), tais questões não podem mais ser vistas como
questões que se resolvem “entre quatro paredes”. Isso porque “o que acontece entre
quatro paredes tem a ver com o que está a acontecer lá fora e está ligado ao que está lá
fora” (p. 44). Em se tratando da sexualidade, são evidentes as “dificuldades de
educadores e educadoras, mães e pais, em associar a sexualidade ao prazer e à vida” (p.
55). No que tange à escola, essas questões têm trazido dificuldades, problemas e desafios
aos professores e professoras no seu cotidiano escolar. Insistentemente busca-se
homogeneizar comportamentos pelo apelo a pedagogia reforçadora de normas e
desigualdades.
Relativamente à formação de professores/as, assim como Catani (2005) nos
alerta sobre a necessidade de tomada de consciência das próprias experiências nos
processos de formação, sabe-se que durante os anos de vida anteriores à graduação a
pessoa vai construindo suas representações, seus significados do que seja a escola, o
ensino e o papel do/a professor/a e o do/a aluno/a nesses processos. Mas, onde se
enquadram os conhecimentos relacionados às questões de gênero e da sexualidade?
Estes seriam apenas informações recebidas em uma formação continuada? Para além da
problemática da formação inicial nos cursos de licenciatura, tem-se uma situação posta:
vencer os desafios sobre essas questões no universo educacional em todos os níveis de
ensino.

.
142

O presente capítulo analisa as concepções e práticas construídas pelos/as


professores/as colaboradores/as sobre gênero e sexualidade no contexto escolar,
durante sua formação docente e nas ações educativas desenvolvidas. Nesse caminhar,
não se pode perder de vista, o significado da formação docente para o/a próprio/a
professor/a. Ela envolve tanto a inicial, quanto a continuada, sem, no entanto, restringir-
se a um destes dois momentos, uma vez que começa a acontecer antes mesmo da
formação inicial e prossegue ao longo de todo o período da prática profissional. Sabe-se
ainda que durante a formação inicial, o exercício da autorreflexão, ou melhor, da
reflexão sobre as experiências escolares, é limitado. Somente após sua inserção na
prática profissional, quando o/a professor/a se depara com as adversidades do processo
educativo que eles/as incrementam esse processo de reflexão.
Se por um lado, as experiências de vida da pessoa, anteriores e posteriores à sua
formação inicial contribuem para o processo de profissionalização, por outro, essa
formação será mais efetiva se houver o envolvimento do/a professor/a tanto nas
experiências vivenciadas, quanto na reflexão e busca de soluções para os problemas que
surgem no cotidiano escolar. Nesta direção, Alarcão (1998) comenta que a efetividade
da formação docente depende dela estar amparada em quatro pressupostos. O primeiro
deles refere-se ao fato de o/a professor/a ser considerado construtor/a e sujeito de sua
própria maneira de ser e agir profissional, a sua experiência e a sua realidade de vida e
de trabalho devem ser vistas como elementos significativos no processo. O segundo
pressuposto trata de haver apoio para o/a professor/a, no sentido de oferecer as bases
para a superação de desafios durante o processo, e que o/a formador/a possa assumir o
papel de facilitador/a e mobilizador/a da própria formação. O terceiro, reforça a
necessidade de se considerar a escola como objeto de reflexão e como local de ação, ou
seja, é preciso conceber o/a professor/a como um profissional que pensa, reflete, toma
decisões, experimenta, atua e avalia. O último pressuposto é a necessidade de
compreender o/a professor/a como um/a profissional que também constrói saberes em
sua prática docente, pois não é um/a simples técnico/a e um transmissor/a do saber.
Conforme explica Charlot (2000, p. 86) “a relação com o saber se constrói em
relações sociais de saber. Mostrá-lo, analisar suas modalidades e seus processos talvez
seja a tarefa específica de uma sociologia da relação com o saber”. Ao me arvorar em
direção a uma proposta de educação que trabalhe gênero e sexualidade, na qual o/a
docente conduza sua prática de forma segura e fundamentada, penso também que as

.
143

proposições de cunho conceitual devam ser discutidas e reformuladas pelos/as


professores/as em suas práticas escolares. Neste sentido, parece-me importante
observar o contorno dado à ação que permeia a formação deste/a profissional. São
diversas as categorias que tangenciam a elaboração e reelaboração dos conceitos que
definem a formação docente. A categoria saber docente, por exemplo, foi criada para
tentar dar conta da complexidade do saber constituído no e para o exercício da atividade
docente. Entre os/as estudiosos/as que tratam a questão dos saberes, pode-se citar
Schön (1997); Perrenoud (1993, 2001, 2002); Tardif (2011) dentre outros. Para esta
etapa da pesquisa selecionei aqueles cujas contribuições parecem mais pertinentes.
Busquei algumas contribuições que contribuíssem para o entendimento das questões
estudadas nas práticas das professoras e professores.
Tardif (2011), por exemplo, nos chama a atenção para o fato de que o saber
docente é plural, constituindo-se de saberes oriundos da formação profissional, dos
saberes das disciplinas, dos currículos e da experiência. Os saberes da formação
profissional têm sua origem na contribuição que as ciências humanas oferecem à
educação ao investigarem o ensino e a ação dos professores. Os saberes disciplinares são
produzidos pelas ciências da educação difundidos e selecionados na academia e
transmitidos nas diferentes licenciaturas, em seus currículos. Estes, por sua vez,
constituem-se nos saberes curriculares, que a instituição escolar seleciona e apresenta
como aqueles que devem ser ensinados e aprendidos. Já os saberes da experiência,
segundo o autor, são constituídos no exercício da prática cotidiana da profissão. São
saberes que “brotam da experiência e são por ela validados. Eles incorporam-se à
experiência individual e coletiva sob a forma de habitus e de habilidades, de saber-fazer
e de saber-ser” (TARDIF, 2011, p. 39). Tais saberes não são providos nas instituições de
formação, ou pelos currículos e não se encontram sistematizados nas teorias, pois são
saberes práticos que se integram à pratica docente.
Philippe Perrenoud (1993) é outro autor que oferece uma fértil contribuição
para os estudos acerca da formação docente e sobre as transformações operadas nos
saberes que devem ser ensinados nos cursos de licenciatura. Assevera que o processo de
transposição didática é baseado numa epistemologia que se atém ao estatuto do saber,
do erro, do esforço próprio, da atenção, das perguntas e respostas, dentre outros. O
autor prioriza o conceito de saber da experiência ou da prática, além de se propor a
explicar as competências profissionais, mostrando a importância de o/a professor/a

.
144

investigar e desenvolver as próprias competências, sem invalidar ou negar o papel dos


saberes. Ao contrário, é preciso a aquisição de conhecimentos para que se possa
mobilizá-los nas competências. Da mesma forma, defende que o domínio dos saberes
não garante a competência.
Em outra obra, Perrenoud (2002) se propõe a discutir a prática reflexiva no
exercício da docência, assinalando a necessidade de o/a professor/a manter uma
disposição reflexiva na formação do habitus, sendo este uma “mediação essencial entre
os saberes e as situações que provocam uma ação” (p. 81). É importante desenvolver o
habitus devido ao fato de uma parte da ação pedagógica ser formada pelas urgências e
improvisação, sem de fato recorrer a conhecimentos, seja pela falta de tempo, seja pela
pertinência da questão. Uma prática reflexiva permite que o/a docente tome consciência
de seus atos, muitos deles inadequados, como por exemplo, ignorar de forma
involuntária alguns alunos e alunas, não perceber ou mesmo cometer ações
discriminatórias, como o racismo, o sexismo ou a homofobia em sala de aula. Nestes
momentos, o autor afirma que não são utilizados os saberes, mas sim o habitus, posto em
funcionamento e que produzem efeitos que, muitas vezes, não são entendidos e nem
mesmo há uma representação clara do que esteja acontecendo.
Partindo dos pressupostos apontados por Alarcão, das exemplificações acerca
dos saberes registrados por Tardif e da atitude reflexiva do/a professor/a, na formação
do habitus conforme sugerido por Perrenoud, vale retomar o conceito de formação
continuada, pelo qual este trabalho também se norteia.
Formação continuada refere-se às propostas ou ações, tais como cursos, estudos
e reflexões voltados, em primeira instância, para aprimorar a prática profissional do
professor e professora. Diz respeito a todas as formas deliberadas e organizadas para
este fim. No entanto, para constituir-se numa prática social transformadora, a formação
continuada deve, segundo Alarcão (1998), contribuir para o desenvolvimento
profissional individual e para o coletivo dos/as professores/as em busca da identidade
de seus saberes e para uma escola renovada.
Conforme aponta Nóvoa (1997, p. 15), torna-se possível “relacionar a formação
de professores com o desenvolvimento profissional e com o desenvolvimento pessoal”.
No entanto não se pode desconhecer tanto o caráter de profissionalidade que exige
atualizações permanentes dos conhecimentos necessários ao exercício profissional,

.
145

quanto uma perspectiva de construção de atitudes que considere a educação também


uma prática social e cultural, além do desenvolvimento intelectual e cognitivo.
Com relação aos tipos de propostas de formação continuada desenvolvidas,
atualmente, nas redes de ensino, é possível nos aproximarmos de pesquisadores/as que
têm desenvolvido férteis contribuições para a compreensão da temática e divulgado
importantes sugestões sobre os processos de formação docente vinculados aos
contextos de trabalhos, como por exemplo: 1) A formação a partir da investigação das
práticas profissionais (MIZUKAMI, 2004; MARIN, 2000); 2) A formação continuada nos
ambientes escolares (SANTOS; TERRAZZAN e LISOVSKI, 2005; CANÁRIO, 1995); 3) O
desenvolvimento profissional e o desenvolvimento escolar (MARCELO, 1999), entre
outros.
Bueno e Gomes (2011) realizam uma contextualização teórica da problemática
do uso das tecnologias educacionais nos cursos de formação continuada tendo em vista
as transformações sociais, econômicas, políticas e tecnológicas vivenciadas e a
necessidade de adaptação dos profissionais da educação ao contexto atual ao destacar
que “a educação reflete as transformações da base material da sociedade e, por isso, não
está acima da sociedade, mas consiste em uma dimensão concreta da vida material e que
se modela em consonância com as condições de existência dessa mesma sociedade. ” (p.
54). Ao concordar com a afirmação acima referida, destaco que a reflexão sobre
formação continuada à distância requer entender a educação como processo histórico e
transitório que sofre alterações de acordo com o contexto sócio econômico e as
condições objetivas em que se realiza.
Terrazan, Santos e Lisovski (2005) mostraram numa pesquisa publicada nos
anais das Reuniões Anuais da ANPED, que tais propostas são organizadas e
desenvolvidas a partir da iniciativa e do interesse de diversas instituições e de
diferentes grupos de profissionais. Chegaram à seguinte categorização:
Projetos de Pesquisa para a Formação Continuada de Professores: São
aquelas propostas elaboradas e implementadas por iniciativa de
pesquisadores ou grupos de pesquisa vinculados às Instituições de
Ensino Superior (IES). Visam investigar e apresentar resultados a partir
de intervenções junto a um determinado grupo de sujeitos (professores,
membros das equipes diretivas, técnicos das secretarias, etc.). Realizam
suas pesquisas objetivando sinalizar possibilidades e ou limitações para
a Formação Continuada segundo certos modelos, estratégias e/ou
atividades de formação.
Projetos Escolares para a Formação Continuada dos professores são
aquelas propostas elaboradas, adotadas e implementadas por iniciativa
.
146

da própria escola, de seus professores e equipe diretiva, sem vínculo


com outras instancias do sistema público. Normalmente são elaboradas
visando à reorganização ou reestruturação de algum setor ou práticas
na instituição. São restritas ao número de professores da escola ou de
uma parcela deles.
Programas de Formação Continuada de professores: São aquelas
propostas elaboradas e implementadas, por iniciativa do Ministério de
Educação e/ou das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação.
Estas propostas, normalmente, visam atender grandes demandas dos
sistemas de ensino, ou seja, são elaboradas para abranger todos os
professores, de uma determinada rede de ensino, ou uma grande
parcela deles. (ibid, p. 10)

Se, por um lado, a escola perdeu sua posição de centro irradiador do


conhecimento e o/a professor/a de detentor/a do saber, temos do outro lado o acesso
ao conhecimento de um número muito grande de pessoas que antes estavam a margem
de tudo isso. Além disso, o desenvolvimento da informática influenciou
consideravelmente a rápida expansão da Educação a distância (EAD) em todos os níveis
de ensino, principalmente pela receptividade desta modalidade de ensino pelas
autoridades públicas brasileiras, que viram aí a possibilidade de atuação educativa em
larga escala e pequeno custo em função dos interesses econômicos, das negociações
internacionais e das metas educacionais que deviam atingir, conforme exigências de
órgãos como o Banco Mundial.
O crescimento da EAD se deu devido a implementação de políticas públicas na
área de formação docente nas licenciaturas e na formação continuada através de
diferentes programas de governo entre os quais: o Proformação, a Universidade Aberta
do Brasil, os cursos oferecidos pela SECADI, dentre eles o GDE, realizado pelos
professores e professoras sujeitos deste estudo, e muitos outros. Todos estes programas
apresentam como foco a formação de profissionais nas mais diversas áreas do
conhecimento para atuar com vistas à melhoria da qualidade da educação básica, bem
como na luta contra os preconceitos e discriminações presentes na escola e na
sociedade. O curso GDE é uma realidade graças a EAD, possibilitando a formação
continuada de inúmeros professores distantes fisicamente, mas que se encontram no
AVA para discutir questões da diversidade, dentre elas a de gênero e sexualidade. Sobre
tais questões cabe indicar Giddens (1993) quando analisa as diversas transformações
pelas quais a sexualidade vem passando desde o final do século XX. Ora, se as mudanças
neste campo vêm afetando a vida das pessoas, consequentemente, afetam as interações
sociais, entre elas, em particular a dinâmica da relação docente-discente em sala de aula.

.
147

As crianças e adolescentes, direta ou indiretamente, tentam demonstrar a


seus/suas educadores/as que precisam e desejam ouvir e falar sobre o assunto. Tal fato
pôde ser observado tanto no trabalho desenvolvido na época em que eu era professora
da educação básica quanto em pesquisas já realizadas por mim. Foi e é possível
constatar que a sexualidade e o gênero constituem-se, duplamente, numa fonte
problemática, haja vista que de um lado a manifestação da sexualidade e o desejo de
saber das crianças e adolescentes têm se acentuado cada vez mais e de outro, é um fator
intrigante para os/as próprios/as docentes que, muitas vezes, não sabem, ou não
aprenderam a ensinar tais questões. Em muitos casos, os/as docentes carregam consigo
insegurança, dúvidas, desconhecimento, medos e tabus, frutos de sua própria história de
vida, incluindo a educação sexual que tiveram, seja ela intencional ou informal 77 e os
processos de formação docente e continuada que vivenciaram.
Para compreender as práticas desenvolvidas pelos/as professores/as
colaboradores/as no que se refere à sexualidade, retomo as abordagens
contemporâneas da Educação Sexual analisadas por Furlani (2005) em sua tese de
doutoramento intitulada “O bicho vai pegar! – um olhar pós-estruturalista à Educação
Sexual a partir de livros paradidáticos infantis”. Nesta pesquisa, a autora realiza um
mapeamento acerca das representações que são percebidas em relação à Educação
Sexual no ocidente contemporâneo, destacando diferentes “Cenários da Educação
Sexual”. A autora pretende:

[...] partir da análise de algumas das práticas discursivas que


possibilitam o pensar acerca da sexualidade, hoje detectáveis no
contexto social. Essas discursividades constroem distintas abordagens,
apontam para possíveis lógicas nos seus enunciados e, constroem
determinado(s) conhecimento(s). Penso que a Educação Sexual
contemporânea explicita múltiplas formas de organização de
enunciados constitutivos de seu objeto pedagógico central. (FURLANI,
2005, p. 203).

Furlani (2005; 2011) identifica oito abordagens que repercutem no cenário de


educação sexual no Brasil: a abordagem biológico-higienista, a moral-tradicionalista, a
terapêutica, a religiosa-radical, a dos direitos humanos, dos direitos sexuais, a

77 Werebe (1998) adota estes termos e defende que “a educação sexual intencional compreende as
intervenções deliberadas, sistemáticas, em geral regulares e planejadas, relativas ao domínio da vida
sexual. Essas intervenções podem se destinar a crianças, adolescentes e adultos e se realizam dentro e fora
do âmbito escolar” (p. 155). A educação sexual informal consiste num processo global, não intencional que
articula todas as ações exercidas no seu cotidiano. Acontece desde o seu nascimento, com repercussão
direta ou indireta sobre sua vida sexual.

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148

emancipatória e a abordagem queer. Demonstra que diferentes formas de educação


sexual coabitam no mesmo ambiente, por este estar atravessado, muitas vezes, por
posicionamentos contrários em torno de uma mesma questão.
A primeira abordagem discutida por Furlani (2005) é a da educação sexual
biológico-higienista que evidencia a biologia essencialista, baseada no determinismo
biológico. Caracterizada pela centralidade no ensino que promova a saúde, a prevenção
das DSTs e da gravidez indesejada, oriente sobre a reprodução e o planejamento
familiar, dentre outras questões. Nesta abordagem, as diferenças entre homens e
mulheres são decorrentes dos atributos corporais, o que contribui para diferentes
preconceitos e discriminações, dentre elas o machismo, o sexismo, a homofobia, a
misoginia, além de implicar em um currículo limitado e reducionista.
A segunda abordagem, de cunho moralista, de acordo com Furlani (2005) é
frequentemente atrelada a princípios conservadores e religiosos. Cita como exemplo o
Programa de Abstinência Sexual defendido nos Estados Unidos. No Brasil, essa tipologia
de educação sexual é encontrada em inicativas como Programa Frente a Frente, da Rede
Vida de Televisão e mencionado no site da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família
(www.providafamilia.org.br).
A abordagem terapêutica busca causas e explicações para as vivências sexuais
consideradas anormais, ou para os chamados problemas sexuais. Segundo Furlani (2011,
p. 19) essa “abordagem apresenta, geralmente, conclusões simplistas, imediatistas,
genéricas e universais para os fenômenos da vida sexual” e está mais voltada aos
aspectos psicológicos ou pode ser defendida por instituições religiosas, pela mídia, por
consultórios de aconselhamento que utilizam técnicas de terapia para alcançar a cura
sexual. A abordagem religiosa radical identificada por Furlani, utiliza o discurso religioso
como uma verdade absoluta na construção das representações acerca da sexualidade
entendida como normal.
A Educação Sexual baseada nos princípios dos direitos humanos explicita,
problematiza e desconstrói a ideia de identidade excluída e de acordo com o Programa
Nacional de Direitos Humanos II, aprovado em 2002. Reconhece e apoia Programas de
prevenção a qualquer tipo de violência contra “grupos em situação mais vulnerável”,
como a criança e adolescente, as pessoas idosas, negras, homossexuais, dentre outras.
A abordagem dos direitos sexuais entende a sexualidade como componente
incondicional de todo ser humano, sendo que os direitos sexuais são direitos humanos

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149

essenciais fundamentados na liberdade, dignidade e igualdade de todas as pessoas.


Dentre estes direitos, destacam-se: o direito à liberdade sexual, à autonomia, integridade
e à segurança do corpo sexual, à privacidade sexual, à justiça sexual, ao prazer sexual, a
livre parceria e a expressão sexual emocional. Direito de fazer escolhas reprodutivas
livres e responsáveis, ter informação baseada no conhecimento científico, acesso a
educação sexual integral e atenção à saúde sexual. Essa abordagem ainda apresenta as
causas dos direitos sexuais das mulheres, trazendo a questão do gênero para a
discussão, dos/as LGBTs que tentam modificar o contexto social e que combate a
exclusão social da infância e da adolescência, especialmente sob o ponto de vista das
violências associadas as vivências da sexualidade.
Sobre a abordagem emancipatória, Furlani (2005) afirma que ela prevê os meios
para que as pessoas desenvolvam seus próprios mecanismos emancipatórios, atreladas
ao conhecimento de si próprias e ao esclarecimento (consciência) que conduzirá à
liberdade de escolha. Esta abordagem adota ainda a Declaração dos Direitos Sexuais
como um caminho a ser seguido. Sendo derivada da corrente de pensamento histórico-
crítica, com inspiração marxista, cujos principais representantes no Brasil são Demerval
Saviani, Moacir Gadotti e Paulo Freire.
Por fim, Furlani descreve a abordagem queer78 e reconhece que “tentar
enquadrar a teoria queer, mesmo numa pedagogia que se proponha ser não-normativa,
pode não apenas parecer uma impossibilidade ... Mas uma heresia teórica” (2005, p.
231). Toma emprestado de Louro o questionamento: “Como um movimento que se
remete ao estranho e ao excêntrico pode articular-se com a Educação, tradicionalmente
o espaço de normatização e do ajustamento” (LOURO, 2004, p. 47 apud FURLANI, 2005,
p. 231).
A educação sexual fundamentada nesta abordagem poderia começar, segundo
Furlani, por se apresentar como revolucionária em relação às verdades que determinam
os “campos de produção e reprodução de relações desiguais de poder e de legitimação
das hierarquias sexuais e de gênero” (p. 40).
Após esta breve conceituação e caracterização de determinados termos
utilizados neste estudo, como formação docente, formação continuada e educação

78
No Brasil, a primeira publicação acerca da teorização queer voltada à Educação, foi publicada em 2004: “Um
corpo estranho – ensaios sobre sexualidade e teoria queer”, de Guacira Louro. Segundo Furlani (2005) esta
obra pode ser considerada a pioneira no assunto, por “institucionalizar” a temática, “mostrando como as questões
levantadas por essa teorização podem ser consideradas politicamente relevantes aos cursos de formação de
educadoras/es” (FURLANI, 2005, p. 231).

.
150

sexual, a seguir são apresentados casos, acasos e paixões vividas pelos/as


colaboradores/as no caminho percorrido até à docência. São discutidas e
problematizadas as representações que possuem sobre gênero e sexualidade tanto nos
processos de formação, quanto em suas práticas escolares.

3.1 Vidas transformadas pelo tempo: casos, acasos e paixões no caminho da


docência

Diferentes representações de professoras e professores,


nas quais alguns se reconhecem e às quais outros rejeitam e recusam.
Diferentes identidades que continuam se transformando, que escapam ou
que se contrapõem, impedindo que possamos, afinal, concluir
definitivamente sobre quem é essa mulher, ou melhor, quem é esse sujeito,
que se diz professora ou professor.
Guacira Louro (1997b, p. 83)

Tomo como ponto de partida da reflexão desta subseção, um trecho escrito por
Louro (1997b) no artigo intitulado “Gênero e Magistério: identidade, história,
representação” por compreender e ter percebido que alguns/mas dos/as professores/as
entrevistados/as ainda não se reconhecem na profissão, impedindo-nos, em certos
casos, de perceber quem são nos espaços em que atuam. A autora também nos adverte
que as teorizações construídas sobre o fazer educativo estabelecem uma representação
do que vem a ser um/a docente, contribuindo na constituição desse sujeito.
Sem pretender dar conta da multiplicidade das ações dos sujeitos que exercem a
atividade docente, sabe-se que suas práticas são diversificadas e fruto de suas inserções
em diferentes grupos sociais. Nos caminhos percorridos pelos colaboradores/as deste
estudo até chegar ao magistério, foi possível perceber que, na maioria dos casos, cursar
licenciatura não foi uma escolha. Em alguns deles houve imposição da família ou falta de
opção por outros cursos de graduação nos municípios de origem.
Elias, por exemplo, acredita que sua inserção na docência tenha se dado por
“acidente”, haja vista ter sido sua mãe quem fez a escolha, o matriculou e pagou o curso
de Ciência Ambiental iniciado numa faculdade particular. Portanto, teve que estudar o
que sua mãe escolheu, mesmo não gostando e não se identificando com o curso.
Inclusive, Elias lembra o fato de ser muito “perseguido pelos professores”. Conta que no
período em que foi reprovado (em 2005), sua mãe, que detinha certo poder político na
região, conseguiu sua transferência para uma universidade pública. Como forma de não

.
151

perder totalmente as disciplinas estudadas, dentre os cursos oferecidos pela


universidade pública escolheu Licenciatura em Ciências Biológicas, pois era o que mais
se aproximava, em termos curriculares, da graduação que havia iniciado na faculdade
particular. Com isso, poderia aproveitar algumas disciplinas.
Telma também conta que sua formação docente, tanto no magistério de ensino
médio, quanto na Licenciatura em História aconteceu, a princípio, por pressão de sua
mãe, pois dizia: “olha, quem é pobre do interior tem que fazer magistério que o campo é
maior... tem mais chance de arrumar emprego”. Sua mãe, que tinha pouca instrução,
percebia que o magistério era a escola das pessoas pobres. Telma afirma que depois de
iniciar na docência, quando ainda cursava o 3º ano do magistério, passou a gostar da
profissão. Hoje não se vê fazendo outra coisa que não seja ser professora, trabalho no
qual está há mais de vinte anos.
João realizou curso Técnico em Marketing e para o ensino superior alega que
queria se formar em Direito, mas não havia faculdade que trabalhasse esse curso na
cidade e sua família não tinha condições financeiras para custear sua formação em outro
município. Conta que quando o Programa de Capacitação de Docentes (PROCAD) da
UEMA79 chegou em Porto Franco, ele não pode se inscrever porque não era professor da
educação básica. Foi quando começou a trabalhar em Tocantinópolis e encontrou alguns
amigos que cursavam Pedagogia. Por ser este o único curso oferecido, decidiu se
inscrever no vestibular na Universidade Federal de Tocantins (UFT). Contudo, João
lembra que vivia se perguntando: “o que estou fazendo aqui? Parecia que tinha caído no
curso de paraquedas”. Mesmo sem se identificar, concluiu a Pedagogia.
Chegar ao curso de Licenciatura em Geografia pelo PROCAD não foi uma escolha
para Vera, mas sim, segundo ela, falta de opção, pois na época não havia sido ofertado
outro curso em seu município. Ao iniciar o ensino superior já era professora, pois havia
cursado o magistério no 2º grau. Diz que naquela época, acreditava ser o curso mais
adequado para as moças. Esta ideia perpassa vários discursos, desde a entrada das
mulheres no magistério, ainda no século XIX. A princípio esta entrada foi contestada com

79
A UEMA, inicialmente em parceria com a Secretaria Estadual de Educação do Maranhão (SEDUC), cria,
em 1992, o Programa de Capacitação de Docentes do Estado do Maranhão (PROCAD). Em 1993, ocorre o
primeiro vestibular especial para os docentes efetivos nas redes de ensino estadual e municipal. Na época,
foram oferecidos os cursos de licenciatura em Pedagogia, Letras, História, Geografia e Ciências (com
habilitação em Matemática, Química, Física e Biologia). A partir de 1999, acontece uma reestruturação no
PROCAD, de modo que cada curso de licenciatura atualizou sua estrutura curricular e passou a ser
denominado Programa de Qualificação de Docentes (PQD), vigorando até o ano de 2007.

.
152

o discurso científico de que as mulheres possuíam pouca inteligência por serem


possuidoras de cérebros “pouco desenvolvidos” (SAFIOTTI, 1979). Este argumento era
contraposto, segundo Louro (2002, p. 78), por outras vozes que afirmavam: “as
mulheres, tem, por natureza, uma inclinação para o trato com as crianças, elas são as
primeiras e naturais educadoras. Se a maternidade é, de fato, o seu destino primordial, o
magistério passa a ser representado também como uma forma extensiva da
maternidade”. Vera demonstra ter esta mesma representação, nos anos finais do século
XX, quando optou pelo magistério.
Jéssica declara, que, a princípio, queria realizar algum curso no campo das
ciências sociais. E como a oferta em nível de graduação era pequena no município de
Imperatriz, acabou por optar por Pedagogia. Ressalta que sua formação “foi muito
tranquila, muito saudável...”. Além disso enfatiza que sempre procurou fazer tudo muito
bem feito, evitando “conflitos”. Então, o fato de Jéssica dedicar-se ao magistério,
inicialmente, se deu ao fato de não haver outra opção em seu município. Ainda durante a
formação inicial, reconheceu-se no curso, deixando transparecer que sempre procurou
desenvolver seu trabalho, tanto na docência, como na gestão escolar, com compromisso
e dedicação.
Confirma-se pelos relatos a necessidade que esses/as colaboradores/as tinham
de uma formação acadêmica, mesmo que não fosse a que desejavam. Parece que apenas
buscavam e lutavam pela obtenção do capital institucional (aquisição de diplomas e
titulação) e certa estabilidade econômica, pois todos/as eram advindos/as de famílias
desprovidas financeiramente.
Isso pode ser justificado mediante as análises de Bourdieu (1998) que
evidenciam uma intensificação da concorrência pelos títulos escolares (relação diploma
e cargos) como numa busca do capital cultural, por conta de uma série de fatores, dentre
eles o mercado de trabalho. Segundo o autor as recentes transformações nas relações
entre as classes sociais e o sistema de ensino, com a consequente explosão escolar e as
transformações nas relações estabelecidas entre diplomas e cargos são resultantes de
uma intensificação na concorrência pelos títulos escolares, o que promove uma dialética
da desvalorização e recuperação dos diplomas.
Além da desvalorização dos diplomas, é possível perceber a desqualificação em
grande parte das instituições escolares, dos professores e professoras que nelas atuam.

.
153

A propósito Elias expõe sua representação acerca da educação, da formação acadêmica e


da prática docente:
“Eu comecei a fazer o curso de Ciência Ambiental e Licenciatura em
Ciências Biológicas. Então, fui vendo as vantagens da profissão. [...]. Hoje,
embora seja professor, posso dizer que os textos da área que eram
estudados, não me ajudaram muito, pois aprendi mesmo foi na prática.
[...]. Nesses cursos havia muita falta de profissionalismo, muita falta de
ética, muita perseguição... eles deixam o profissional de lado e partem
para o particular... Era uma faculdade particular e quando eu reprovei,
em 2005, corri para a universidade pública. Na época comecei a trabalhar
de dia e estudava a noite. O que me chamou a atenção foi reconhecer que
as coisas não são como a gente pensa. A educação, por exemplo, é uma
coisa linda na teoria, mas na realidade não é não. Eu até já tentei
fazer diferente, o que estava ao meu alcance, mais não adiantou. ”
(Informação verbal - Professor Elias)80.

Fatima realizou o antigo Científico, escolheu o curso Técnico em Contabilidade e


chegou a trabalhar como contadora. Sustenta que o magistério não fazia parte de suas
pretensões, embora fosse “muito apaixonada por literatura”. Com esta paixão, ao realizar
o exame vestibular optou por fazer Letras. E por isso, acabou “abraçando o magistério”,
fez o curso em Recife – PE, onde sua família residia à época. De forma diferenciada,
dentre os/as entrevistados/as, Jónata foi o único que referiu-se à paixão que possuía,
desde a infância, pelo magistério:

“Desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, eu já tinha essa vontade


de dar aula. [...]. Em casa eu imitava minha professora, eu falava alto,
fazia chamada, reprimia algum aluno que estava inquieto, fazia
tudo isso. Quando cheguei aos anos finais, eu tinha uma vontade enorme
de ser professor de matemática. Eu olhava o professor de matemática e
gostava muito. E continuava dando aula, para ninguém, em minha casa.
Tanto que sempre me perguntavam se eu queria ser professor. Quando
passei para o primeiro ano do Ensino Médio, começou aquela inquietação:
eu faço o quê? Formação geral ou magistério? Foi quando uma escola aqui
de Imperatriz que era escola de Ensino Médio, virou Centro de Formação
do Magistério, e eu decidi entrar lá. Passei os três anos fazendo magistério
e fiquei encantado pela Pedagogia. Aí, comecei a me perguntar: escolher
Matemática ou Pedagogia? Então escolhi os dois. Fiz Matemática na
UEMA e Pedagogia na UFMA. E, ainda quando fazia magistério eu era
professor auxiliar, na mesma escola que estudei pré-escola, antes de
entrar na escola regular. Na universidade, eu fui ser professor, educador
social no PET. Eu era estagiário da universidade. Logo que saí do PET, fui
dar aula numa escola particular, e durante quatro anos fui o único
professor homem em Imperatriz, que dava aula numa escola de Educação
Infantil” (Informação verbal – grifos meus)81.

80 Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em jul. de 2012.


81 Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jul. De 2012.

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154

Neste excerto é possível perceber o início da construção de seu habitus


professoral e faz parte, segundo Marilda da Silva (2005, p. 161), “do conjunto de
elementos que estruturam a epistemologia da prática [...]. A produção desse habitus
depende da qualidade teórica e cultural da formação dos professores, mas não é
desenvolvido durante a formação, e sim durante o exercício profissional”. Embora Jónata
tenha iniciado – nas brincadeiras de faz de conta – a construção de suas rotinas como
professor, imitando as rotinas de suas professoras e as marcas deixadas pela experiência
escolar tenham imprimido ritmos e formas de ser e estar no mundo, essas marcas
podem ter sido cristalizadas, contribuindo na construção do habitus professoral quando
da experiência realmente exercida por ele em sala de aula.
Atitudes como impostar a voz, repreender algum aluno ou aluna por ficar
inquieto/a durante a aula, por exemplo, são comportamentos reproduzidos
independentemente do componente curricular, são gestos próprios do processo ensino-
aprendizagem e podem ser relacionadas aos argumentos de Silva (2005, p. 158) quando
ressalta: “são repetidos harmonicamente sem que tenham de ser dito pelos agentes; um
conjunto de práticas repetidas coletivamente”. Jónata, desde a infância, observava as
atitudes próprias dos/as professores/as. Esses comportamentos podem ser explicados
com as noções de experiência e habitus, demostrando que a vida prática é determinada
por critérios e meios que integram as ações práticas repetidas todos os dias em um
determinado fazer docente.
Apesar dos percursos dos/as colaboradores e colaboradoras serem singulares,
há evidências de que a escolha pelo magistério não é um fato decorrente de uma escolha
livre de pressões, mas sim, produto de imposições e determinações valorativas de classe
e gênero. É perceptível que alguns/mas “escolheram” ser professor/a devido à
necessidade de se profissionalizar com pouco investimento financeiro e devido ao fato
de terem encontrado algumas vantagens na formação acadêmica e profissional.
Tendo descrito aspectos importantes dos percursos de nossos colaboradores/as
no caminho da docência, retomo a seguir as questões de gênero e sexualidade, estudadas
(ou não) nas licenciaturas que fizeram.

.
155

3.2 Gênero e Sexualidade na formação docente: um percurso possível

Em nosso país, como em vários outros, a escola foi, a princípio,


um espaço marcadamente masculino. De um lado e de outro
das carteiras circulavam meninos e homens:
a escola foi, inicialmente, conduzida pelos mestres jesuítas
e dirigida à formação de meninos brancos da elite.
Aos poucos a instituição viu-se obrigada a acolher outros grupos sociais:
os meninos de outras origens e etnias e as meninas.
Para atender esses novos grupos,
a escola também foi obrigada a se transformar.
No entanto, ela se transformou sem alterar
uma de suas características principais:
a de se constituir como um espaço diferenciador.
Guacira Louro (1997b, pp. 77-78)

Por entender, conforme aponta Louro (1997b), que a instituição escolar exercia
e ainda exerce uma ação distintiva, inicio a reflexão desta subseção observando que a
formação docente deve concorrer para uma educação cuja prática pedagógica esteja
atrelada ao respeito às diferenças e à diversidade, e à diversidade de gênero e sexual.
Assim, faz-se necessário a reflexão sobre o papel desta instituição na formação docente e
sobre sua contribuição na difusão desses saberes.
Durante o curso de Pedagogia, Jéssica e Jónata relatam que não tiveram
oportunidade de estudar gênero e sexualidade. Viram de forma muito superficial, nos
estudos do desenvolvimento humano, as fases psicossexuais da criança nas teorias de
Sigmund Freud. No entanto, ambos comentam que reconhecem tais questões como
importantes e que devem ser trabalhadas nos cursos de formação docente. O professor
Jónata ressalta:

“Ainda hoje em se tratando da inserção de questões de gênero e


sexualidade no currículo dos cursos de formação de professores, eu penso
que isso é muito complicado, tanto que na semana passada, eu passei por
uma situação muito difícil aqui na UFMA. Eu tive que desabafar no
próprio Departamento, com os colegas, dizendo que era uma covardia não
aprovarem a disciplina Educação e Sexualidade. Por quê? Aqui no curso de
Pedagogia da UFMA, não existia nem como opcional. [...]. E eu perguntei
para os colegas: Será que nós somos só cognição, psique? Ninguém possui
sexualidade? Vocês são todos assexuados? [...]. Em seguida, expliquei, disse
os motivos da relevância da disciplina...Com isso, até certo ponto, houve
uma concordância aprovando, mas chegou um momento em que uma das
professoras desabafou. Ela disse que não podia ser uma disciplina
obrigatória porque ‘ninguém aqui, além de você tem condições de
fazer isso, e quando você sair daqui? Você é substituto...’.[...]. Ela usou

.
156

um artifício real, que fragiliza o grupo[...]. Dessa forma, saiu pela


tangente e a disciplina não foi aprovada como obrigatória, mas
conseguimos aprová-la como ‘optativa’. Eu penso que devia ter, em todas
as licenciaturas, uma disciplina que trabalhasse essas questões, porque
nós saímos das licenciaturas sem entender nada sobre sexualidade e
gênero” (Informação verbal - Grifos meus)82.

Sobre o caso apontado por Jónata, percebesse ser importante ouvir o que é dito
sobre os sujeitos, mas também o não-dito, quer seja porque os sujeitos não são ou
porque não podem ser associados aos atributos desejados pela sociedade. Quando diz,
por exemplo, que uma das professoras argumentou pela não aprovação da disciplina
Educação e Sexualidade por ser ele substituto e quando seu contrato terminasse, os/as
demais professores/as não teriam condições de trabalhar a temática. Jónata suspeita ser
este apenas um artifício utilizado para ocultar preconceitos e “questões religiosas”.
Segundo Jónata, na universidade, “o próprio professor não tem conhecimento
sobre tais assuntos e muitos ainda velam essas questões”. A academia, e especificamente
os cursos de formação docente, como o de Pedagogia, ainda demonstra ausência de
conhecimento sobre a sexualidade e o gênero. Com isso, muitos deles não discutem as
questões e nem mesmo aceitam incluí-las em seus currículos. Quando esta inclusão é
defendida por algum/a professor/a, como Jónata, é preciso travar uma espécie de
batalha, utilizando-se argumentos que por vezes podem chocar, mas que também são
oriundos dos saberes disciplinares.
Os cursos de formação docente que deveriam ser um lugar de construção do
saber, produzem, muitas vezes, o seu ocultamento, evidenciando também, negligência
em relação ao tema da diversidade de gênero e sexual. Um trecho da narrativa de Elias
pode ser elucidativo a propósito. Durante o curso de Ciências Biológicas houve um
Seminário sobre a homossexualidade cujo objetivo era perceber como e porque as
pessoas se tornam homossexuais. Neste Seminário, foram realizadas dramatizações
sobre a questão e a partir do que foi apresentado, Elias comenta:

“[...] vimos cenas que as crianças, os meninos, devem se prender mais a


imagem do pai do que a da mãe, pois elas precisam ter um referencial
para poder concretizar o seu lado masculino. Eu acredito nisso! Cerca de
noventa por cento dos meninos que conheci, viraram.... por não terem o
referencial pela frente. Lembro ainda que na minha época de exército, lá
no quartel, os militares eram agressivos. Podemos ver que todo militar
bate em uma mulher... Assim, dependendo do meio que vive, o sujeito
pode vir a ser agressivo ou meio afeminado. [...]. Minha mãe diz que é

82
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

.
157

genética. Pode ser isso também... O afeminado que eu falo é pelo seu jeito
de se comportar... Eu tenho muitos alunos com jeito afeminado... e, quando
pergunto com quem você mora, eles dizem: ‘vovó, titia...’. Então eu acho
que isso influencia... Porque muitos não têm a figura do pai e isso conta
muito, especialmente naquela fase que ele está desenvolvendo sua
sexualidade. No caso das meninas, se elas não têm a mãe como referência,
ela será grosseira como o pai, ela vai ser bruta, do tipo que diz: ‘vou dar
porrada!’. Eu penso que isso interfere muito na sexualidade, na
orientação sexual.” (Informação verbal – grifos meus)83.

Para compreender as representações construídas por Elias, vale recorrer a


Guacira Louro (1999), quando menciona que as identidades não são fixas, nem se
instalam de forma automática nos indivíduos, mas vão se construindo ao longo da vida.
São constantemente desestabilizadas e desfeitas pelas complexidades da experiência
vivida, pela cultura, pelo conhecimento escolar e pelas múltiplas e variáveis histórias de
marcadores sociais como gênero, raça, nacionalidade, geração, aparência física e estilo
de vida. As identidades de gênero podem ser caracterizadas pela instabilidade, sendo,
portanto, passíveis de transformações.
Desde o nascimento somos formados/as como sujeitos, com múltiplas
identidades (de gênero, de etnia, religiosas, sexuais...), mas, muitas vezes tais
identidades são ignoradas ou vistas na perspectiva essencialista para a qual a
sexualidade é algo que todos nós, mulheres e homens, possuímos “naturalmente”.
Quando esta ideia é aceita, sem a devida reflexão, “fica sem sentido argumentar a
respeito de sua dimensão social e política ou a respeito de seu caráter construído”
(LOURO, 2003, p.11).
Da mesma forma que não existe uma relação direta e única entre anatomia e
gênero, também não existe entre gênero, identidade sexual e orientação sexual
(PARKER, 2003). Por isso, fala-se em identidade de gênero para se fazer referência à
maneira como uma pessoa se sente e se apresenta para si e para a sociedade como
masculino ou feminino, ou mesmo uma mescla de ambos, independente tanto do sexo
biológico quanto da orientação sexual. Por exemplo, uma pessoa pode ter uma
identidade de gênero – masculina, feminina, ambas ou nenhuma –, ter características
anatômicas do sexo oposto ao seu e, ainda assim, ser heterossexual, homossexual,
bissexual ou mesmo ser assexual84. Ao contrário do que frequentemente se tende a

83
Trecho extraído da entrevista concedida por Elias em jul. de 2012.
84Assexualidade é uma das formas de manifestação da sexualidade humana basEaDa na falta de atração
sexual por pessoas. Essa é uma das definições mais bem aceitas da assexualidade, entretanto, ela não
abrange todas as pessoas que adotam este rótulo. Podemos dizer que esse conceito ainda está em

.
158

acreditar, pessoas transgêneros (travestis ou transexuais) não são necessariamente


homossexuais, assim como homens homossexuais não são forçosamente femininos ou
afeminados e tampouco mulheres lésbicas são necessariamente masculinas ou
masculinizadas (JESUS et al., 2006, p. 37).
Mas, as coisas não são tão simples, ainda que gênero e sexualidade estejam
ligados à natureza humana fazendo parte da vida das pessoas, é preciso lembrar que a
própria “natureza é, também, uma construção histórica e social”, conforme ressalta
Louro (2001c, p. 39). Ela afirma que já não é possível definir um momento para a
construção e constituição dos gêneros, um momento fundador da masculinidade ou da
feminilidade. Logo, mulheres e homens são produzidos de diferentes formas, num
“processo carregado de possibilidades e de instabilidades” e são, ao mesmo tempo,
“sujeitos de diversas classes, raças, sexualidades, etnias, nacionalidades ou religiões” e
há diferentes formas de ser feminino ou masculino.
O fato de Elias acreditar e defender que a construção da identidade de gênero se
dá devido às referências masculinas ou femininas que a criança vivencia desde a
infância, remete a ideia de uma rígida divisão entre os comportamentos considerados
adequados aos sexos e ao reforço heterossexual (imposto como a norma e o modelo a
ser seguido), bem como a homossexualidade ou bissexualidade como uma negação que
confirma a norma manifesta em diferentes instituições sociais, dentre elas a escola.
A professora Fátima traz outra representação sobre o tratamento das questões
de gênero e sexualidade nos cursos de licenciatura. Ressalta ser importante trabalhar os
temas discutindo, instigando os alunos e alunas a pensarem e refletirem sobre essas
questões, uma vez que fazem parte de suas vidas.
“Em Pernambuco, estudei em uma escola privada, na Academia de
Comércio, que hoje não existe mais. Era uma escola de nível superior e a
sexualidade era um assunto meio batido nas aulas que tínhamos. Isso era
a década de setenta. Parecia que o mundo já estava mais aberto... Já se
falava... e se tinha uma compreensão diferenciada de sexualidade, e é
neste momento praticamente que a minha vida sexual começa. [...].
Entretanto, não havia nenhum evento sobre gênero, sexualidade, alguma
questão da mulher, nada disso. Lembro que tinha uma professora, que
também lecionava na Universidade Católica que fazia um trabalho sobre
arte na literatura. Trabalhei uma época com ela, mas não sobre gênero.
Eu acho que seria interessante que no curso de letras, assim como na
literatura e na língua portuguesa também, seria importante
acrescentar nem que fosse uma disciplina eletiva, para se trabalhar

construção e que ainda não há uma delimitação exata para toda a sua abrangência. Disponível em:
http://assexualidade.org/faq Acesso em: 18 mar 2015.

.
159

a questão de gênero, principalmente o papel da representação da


mulher nas obras neoclássicas, falar um pouco mais, pesquisar um
pouco mais... Eu penso também, que deveria ser trabalhada, no curso
de letras a questão da linguagem sexista, porque se utiliza até hoje,
utilizam muito mais o masculino e ainda defendem o masculino, na
gramática. Seria interessante também trabalhar essa questão”.
(Informação verbal – grifos meus)85.

Deste excerto percebe-se traços e iniciativas de preocupação e trabalho com


questões da sexualidade em cursos de nível superior, na década de setenta do século
passado, momento em que o mundo parecia estar “mais aberto”. Sabe-se que as décadas
de 1960 e 1970 representaram um período de transformação nos costumes, uma
“revolução sexual” e impuseram a chamada liberação que significou a busca de
realização no plano pessoal e a consciência de que “problemas sexuais” não teriam lugar
no mundo entendido como “normal”.
Os corpos se transformaram, principalmente os femininos, que neste período
foram desnudados. O desnudamento configurou-se com diversas maneiras de ser e em
diferentes lugares, como a música, o cinema, o teatro e também a academia: os palavrões
que antes eram proibidos passaram a ter lugar em diferentes espaços, inclusive em
algumas famílias, os meios de comunicação, sobretudo a televisão, passaram a falar de
sexo, o erotismo e a pornografia ganharam espaço nas revistas, vídeos, cinema, dentre
outros (PRIORI, 2011).
Vera sublinha que durante a graduação teve possibilidade de estudar questões
da sexualidade inseridas nos textos de algumas disciplinas. Pensa que estas questões
deveriam ser trabalhadas em todas as licenciaturas, porque:

“... são importantes. Eu já dei aula para o ensino médio e a gente vê alunos
leigos em relação a essas questões, então acho que deveria ter realmente
uma disciplina que trabalhasse vários conteúdos da sexualidade, pois isso
ajudaria muito! Hoje eu avalio que está faltando muita coisa na
formação dos professores em relação a gênero e sexualidade”.
(Professora Vera – grifos meus)

Telma estudou o gênero em Antropologia, no curso de História. Naquele


momento, teve contato com a história da emancipação das mulheres e algumas formas
pelas quais elas fazem uso de seus direitos e inclusive estudou os “direitos dos gays...
essas coisas assim... mas, era de forma bem superficial”. São temas que dizem respeito à

85
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.

.
160

diversidade humana, tratam as diferenças e causam “tanto preconceito, existem vários


outros...não só de gênero...”. Telma adverte:
“[...] os professores deviam se preparar mais... estudar mesmo, porque
ainda hoje se tem essa concepção... que quando vai se falar do assunto,
pensam que estão incentivando... tem isso ainda. Eles acham então... às
vezes o professor deixa assim de lado, devido ainda não ter esse preparo”.
(Informação verbal – grifos meus)86.

Conforme mencionado anteriormente, na formação inicial o exercício de auto


reflexão sobre a prática escolar é limitado. Mas, após o/a profissional estar inserido/a
no processo educativo, deparando-se com outras possibilidades e no próprio contexto
escolar, é possível exercitar a reflexão, tal como se percebe nos relatos de Vera e de
Telma.
Telma compreende a necessidade de o/a docente ter subsídios teóricos e
metodológicos para desenvolver, de forma mais contundente, o trabalho com a
diversidade, em particular a de gênero e a sexual. O fato é preocupante, pois, em muitos
casos, ainda não temos oportunidades institucionais suficientes e condições materiais
efetivas para preparar os professores e professoras que assumirão tais iniciativas nos
trabalhos escolares.
Sem essa formação específica o/a docente arrisca-se a cair no senso comum e
relativizar aspectos referentes ao gênero e à sexualidade, os quais deveriam ser tratados
com aparatos teóricos e metodológicos próprios. Igualmente, a educação sexual pode
ser desastrosa se os/as docentes estiverem despreparados ou forem incapazes de lidar
de modo adequado com a sua própria sexualidade, ou se os programas forem
inadequados em seus métodos e conteúdos. No entanto, é preciso compreender que
grande parte dos/as professores/as ainda guarda consigo repressões em torno da
sexualidade, fazendo com que cheguem ao ambiente escolar carregados de preconceitos,
ansiedade e insegurança, consequências de uma educação repressora, em uma
sociedade repressora.
Fátima almeja que as temáticas gênero e sexualidade sejam incluídas nos
currículos de formação docente e no curso de Letras, sua área de atuação, e que aí seja
tratada a questão da linguagem sexista. O combate aos preconceitos inscritos na língua
e perpetuados por meio da língua tem avançado no Brasil, no entanto, cresce
paradoxalmente, o preconceito contra a língua. Um exemplo disso são as atitudes que se

86
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2013.

.
161

voltam contra o uso da “linguagem não sexista”, integrante das preocupações com a
linguagem politicamente correta.
A utilização de linguagem sexista foi percebida nas narrativas de
colaboradores/as do estudo. Jéssica e Telma, por exemplo, utilizam apenas o masculino,
mesmo quando descreve algo sobre elas mesmas. E o professor Jónata, embora defenda
que sejam desenvolvidos trabalhos acerca das questões de gênero na escola, utiliza
apenas termos no masculino. Seguem-se alguns exemplos:

“[...] se não der para fazer bem feito eu não vou ficar tranquila... insisto até
conseguir... sou muito inquieta em tudo o que faço ... Então, lá na
universidade também fui do mesmo jeito. Então, não havia conflitos. Eu
não era esse tipo de aluno que teve muito conflito com o professor...”
(Informação verbal – grifo meu)87.

“[...] se o professor fosse mais bem preparado no curso dele, ele teria mais
embasamento, mais firmeza, mais segurança para tratar... porque não é
fácil...a gente sabe que não é fácil...é difícil... Eu acho que nós professores
ainda temos um longo caminho a percorrer, ainda tem muito o que ser
feito...” (Informação verbal – grifos meus)88.

“É preciso que o professor aprenda a trabalhar de forma a conceber o


masculino e o feminino num processo relacional de igualdade. Os alunos,
de forma indireta, clamam por isso. Seja menina ou menino, seja hetero,
ou não, eles clamam por isso”. (Informação verbal – grifos meus)89.

Dentre os variados espaços e instâncias em que prevalecem as distinções e


desigualdades, a linguagem é um dos campos mais eficaz e persistente. A influência de
uma estrutura androcêntrica em nossa sociedade possibilita, a constituição de uma
linguagem sexista. Conforme Louro (1999) a concordância com as regras de linguagem
habituais pode impedir que observemos, por exemplo, a ambiguidade da expressão
homem — que serve para assinalar tanto o indivíduo do sexo masculino quanto toda a
espécie humana. Sabe-se que em variadas situações, a palavra homem supõe todas as
pessoas agrupando homens e mulheres. Contudo, “a linguagem não apenas expressa
relações, poderes, lugares, ela os institui, ela não apenas veicula, mas produz e pretende
fixar diferenças” (LOURO,1999, p. 65).
Bourdieu (1996c) observa os efeitos da dominação simbólica “em cuja ordem se
reproduz a estrutura fundamental do sistema de oposições dominantes em matéria de
linguagem” (p. 19). Para ele a oposição entre o masculino e o feminino é um dos

87
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.
88 Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2013.
89 Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

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162

princípios a partir dos quais se produzem as oposições mais peculiares de um “povo”.


Além dessa representação do mundo social reter a essência da visão dominante através
da oposição entre “a virilidade e a docilidade, a força e a fraqueza, os verdadeiros
homens, ‘os machos’, os ‘valentões’ e os outros” (p. 20). Neste caso, os outros seriam as
mulheres ou os homens afeminados, cujo destino seria a submissão e o desprezo.
A partir de regras definidas pela gramática, não se questiona o uso que fazemos
de expressões consagradas historicamente e se supõe que a linguagem é apenas um
meio de comunicação. Contudo, a força do processo civilizatório e a “imposição”
democrática através de uma nova cultura organizacional tende a transformar as relações
a partir da própria linguagem. Assim, uma das formas de se opor a uma linguagem
“padrão”, seria “voltar ao modelo de toda produção linguística e redescobrir o princípio
da extrema diversidade dos linguajares que resulta da diversidade de combinações
possíveis entre as diferentes classes de habitus linguísticos e de mercados” (BOURDIEU,
1996c, p.21). Transgredir as “normas” linguísticas oficiais, no caso o uso do masculino
para designar a pessoa humana, seja ela homem ou mulher, seria então dirigido tanto
contra os/as dominados/as quanto contra os/as dominantes.
Em suas discussões, estudiosas/os feministas sugerem alternativas de
tratamento da linguagem não sexistas. A linguagem sexista chegou a ser tratada nos
mais diferentes níveis de governo e no âmbito das Nações Unidas. A UNESCO, por
exemplo, examinou a necessidade de se eliminar dos registros escritos e dos discursos
orais “todas as formas discriminatórias de linguagem” em relação à mulher e publicou
em 1996 uma série de Diretrizes para uma Linguagem Não-sexista. No entanto, se em
determinadas sociedades esses esforços vêm sendo acolhidos e incorporados, em outras
são ainda depreciados ou ridicularizados.
A consideração das relações entre todos esses aspectos reforça ainda a
importância e a necessidade dos estudos de gênero e sexualidade na formação inicial e
continuada de professores/as.

.
163

3.3 Possibilidades nas Práticas Escolares

Em termos de políticas curriculares ou até mesmo de práticas escolares,


gênero e sexualidade ainda parecem ser tratados quase que
exclusivamente como temas que devem ficar restritos
a um campo disciplinar: a Educação Sexual.
Guacira Louro (1997a, p. 127)

Inicio esta reflexão fazendo referência às políticas curriculares e práticas


escolares que tratam das questões de gênero e sexualidade, entendendo que a reflexão
crítica sobre a prática é uma exigência da praxis pedagógica e que deve buscar,
sobretudo, reconhecer o/a professor/a como sujeito de produção de saber, com a
clareza de que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a
sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 2002, p. 25). A prática escolar, e mais
especificamente uma prática que desenvolva uma educação para a vivência da
sexualidade deve ser apreendida como reflexiva, não podendo ser entendida sem uma
análise que leve em conta “as lutas, os avanços e recuos” dos grupos que se mobilizaram
e se mobilizam para fazer acontecer ações educativas inclusivas das temáticas referidas.
Nesta subseção examinam-se as modalidades de prática escolar, de forma a
categorizar e caracterizar as situações comentadas pelos/as professores/as e a relação
destes/as com as práticas exercidas nos espaços escolares. São enfatizadas as
particularidades de gênero e das sexualidades. A seguir são introduzidos e analisados os
relatos que tratam das práticas escolares desenvolvidas pelos/as colaboradores/as.
Dentre essas práticas, referimo-nos a iniciativas de trabalho com questões da
sexualidade com crianças da educação infantil, desenvolvidas pelo professor Jónata e
suas dificuldades no tratamento de aspectos relacionados ao corpo das meninas.
Igualmente analisamos a alternativa da educação sexual voltada para a saúde e
prevenção da gravidez “precoce” desenvolvida por Jéssica e o trabalho desenvolvido
por Fátima no estudo sobre as mulheres na literatura, na qual se incentivou o
desenvolvimento da criticidade acerca do sofrimento das mulheres nos romances. A
reflexão sobre a mulher na História e sobre a mulher muçulmana, desenvolvida pela
professora Telma e o trabalho realizado por Vera na disciplina Ética e Cidadania são
também objetos de exame.

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164

Em sua prática escolar, como professor da educação infantil, Jónata lembra a


primeira vez que tratou da sexualidade com crianças de cerca de seis anos de idade, num
conteúdo sobre o corpo humano e diz:

“Eu me perguntava como eu ia trabalhar, não apenas o que é mão, o que é


perna, mas sim o corpo como um todo. Eu me inquietava, porque não
sabia bem como fazer. Até que lembrei que tinha um comercial de
televisão que falava das partes do corpo humano e mostrava as imagens
em desenhos. Então, eu tive uma ideia: peguei duas folhas de papel
madeira: uma para menino, outra para menina. Eu pedi para um menino
e uma menina que se deitassem na folha para que outro colega desenhasse
o contorno do corpo e depois disso, deveriam completar os desenhos com
as partes do corpo e falar os nomes. Primeiro eu perguntei para eles. A
princípio, ficaram rindo, mas depois levaram a sério. Quando chegou às
partes dos órgãos sexuais, falaram vários nomes menos pênis e vagina.
Então eu falei: ‘olha, o nome não é esse’ e, falei para eles os nomes oficiais”.
(Informação verbal – grifo meu)90.

Naquele momento, apesar de Jónata sentir-se vulnerável, sem orientação e


preparo para enfrentar os desafios relativos à sexualidade das crianças que apareciam
no cotidiano da escola, ele percebia a necessidade de atender ao currículo da escola, mas
sabia que os conteúdos deveriam estar atrelados do mesmo modo ao interesse da
própria criança. Então, pensou em trabalhar todo o corpo, incluindo os órgãos genitais
do menino e da menina.
Sabe-se que crianças pequenas, meninos e meninas, começam a descobrir as
características do próprio corpo e querem saber por que os garotos têm pinto e as
meninas, xoxota, ou seja, utilizam apenas os apelidos. Jónata teve a preocupação, nesse
caso, de além de solicitar que desenhassem o corpo humano, aprendessem os nomes
“corretos” dos órgãos sexuais. Contudo, ele mesmo não sabia o nome da genitália externa
feminina, nomeando-a de “vagina” e não vulva.
Jónata comenta que a principal intenção daquela aula foi esclarecer alguns
nomes, tratar da higienização e do respeito ao corpo. Tudo isso, porque presenciava, de
forma constante, algumas brincadeiras como, por exemplo: “abaixar o short do colega,
olhar as partes íntimas do outro”. Pondera que este trabalho estava muito mais voltado à
orientação sobre o corpo. Demais questões da sexualidade não eram explicitadas.
Quando deixou a educação infantil e assumiu uma turma da quarta-série do
ensino fundamental, Jónata vivenciou outra experiência com sexualidade em sua prática
escolar e o fato o preocupou. Comenta que uma menina o procurou e falou que estava

90
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

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165

menstruando e não soube o que fazer. Então, pensou: “Comigo logo! O que eu vou fazer?”.
Contou o episódio a uma colega de trabalho e combinaram que ela iria dar uma aula
sobre o assunto para as meninas. Para isso, a turma foi dividida: os meninos ficariam
com Jónata e as meninas com a professora.

“Ela falou para as meninas sobre menstruação, cuidados... E, eu fiquei com


os meninos, porque não tinha nenhuma condição de falar com as meninas
sobre esses assuntos. Me sentia sem forças, tinha vergonha, não sabia o
que fazer... Os meninos só perguntavam sobre eles, queriam saber sobre
como surgem os pelos, o que fazer quando o pênis ficava..., assim... [calou].
São mais situações de curiosidade sobre eles mesmos” (Informação
verbal)91.

Jónata não se sentia à vontade, ficou envergonhado na situação e durante a


entrevista admitiu não ter conhecimento suficiente para responder à inquietação de sua
aluna. Também demonstrou receio em falar de ereção e excitação, silenciando. Sobre a
separação da turma, cabe recorrer a Daniela Auad (2006) e a sua discussão sobre a
relação entre igualdade e desigualdade entre meninas e meninos, homens e mulheres,
no espaço escolar. A autora chama a atenção para a função privilegiada que à escola
possui no que diz respeito à aprendizagem de papéis sociais e sexuais. Para ela “o
aprendizado da separação” pode discriminar meninos e meninas de forma a justificar
desigualdades ou ao contrário, promover transformações no sentido da igualdade a
partir do respeito às diferenças. Não é possível saber se a atitude de Jónata, ao separar a
turma, contribuiu para justificar mitos, tabus e desigualdades ou se contribuiu no
sentido de demonstrar a importância do respeito e do cuidado com o próprio corpo e do
respeito às diferenças no corpo do outro.
Tanto Jónata, quanto sua colega da escola tentavam desenvolver a abordagem
da educação sexual biológica higienista, apontada por Furlani (2011), com ênfase na
biologia essencialista. Constata-se, ainda, que a separação da aula sobre os corpos
masculinos e femininos, impediu que meninos e meninas pudessem conhecer e discutir
juntos as mudanças em seus corpos durante a puberdade. E, assim, informar-se sobre às
ideias vigentes na sociedade acerca das diferenças entre os sexos e também sobre as
maneiras pelas quais são socialmente determinados os comportamentos de homens e
mulheres, meninos e meninas, de acordo com as diferenças (biológicas).

91
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

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166

Jéssica iniciou seu trabalho na educação, assumindo uma turma de


alfabetização, no ano seguinte solicitou que fosse para a primeira série e logo em
seguida, foi remanejada para a coordenação. Na turma de alfabetização Jéssica lembra
que não desenvolveu atividades sobre gênero e sexualidade, pois “naquela turma ainda
não tinha esse despertar”. Quando assumiu a coordenação pedagógica, iniciou o curso
SPE e logo em seguida, o curso GDE. Sobre o papel da escola acerca da educação sexual e
das relações de gênero, Jéssica ressalta que essa é uma questão que perpassa também à
família e à religião da pessoa. Para Jéssica:

“O que cabe à escola mesmo é orientar sobre a segurança, a


prevenção, a saúde, o cuidado... Não, a reorientação e a decisão da
pessoa. Não vai ser a escola que vai dizer, ela precisa orientar para que
conheçam as possibilidades e tratar dos riscos, da questão da
segurança...mas ela precisa estar atenta para orientar, para combater o
racismo, o preconceito, a discriminação. Eu acho que o papel da escola é
mais nesse sentido, de ajudar a formar o cidadão que compreenda e
respeite as diferenças...” (Informação verbal - grifos meus)92.

Em seu comentário, não ficou claro o que quis dizer quando referiu-se à decisão
ou escolha da pessoa, mas é possível inferir tratar-se da orientação sexual do/a discente.
Jéssica enfatiza o papel da escola no combate aos preconceitos e discriminações e na
formação cidadã quanto ao respeito para com as diferenças e na orientação acerca da
prevenção, saúde e cuidado com o corpo. Nestes casos refere-se ao trabalho que vem
desenvolvendo nas escolas de Imperatriz, o projeto “Saúde e Prevenção nas Escolas”,
reforçando que um dos objetivos do projeto é combater “a perda de adolescentes por
conta da gravidez”. Esta perda alude ao aumento dos índices de evasão nas escolas pelas
meninas que engravidam.
Jéssica expõe que sua família é cristã e a sua concepção sobre educação sexual
fez-se a partir de princípios bíblicos, o que marca fortemente o significado de educação
sexual e de sexualidade. Tais questões também são apontadas por Furlani (2005)
quando salienta que no Brasil há uma forte atuação tanto das igrejas evangélicas como
de algumas vertentes que apelam para o fundamentalismo católico. As discussões em
torno da sexualidade são um ponto comum entre as diversas religiões, sempre no intuito
de estabelecer regras e controle, com maior intensidade em sua ação sobre os jovens,
mas não unicamente.

92
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.

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167

Fátima demonstra reconhecer a importância de se tratar do tema na escola e


relembra que o fazia em suas práticas escolares nas aulas de Literatura, na Escola Estado
da Guanabara. Trabalhava aspectos relacionados à mulher e sua condição na sociedade.
Dentre os clássicos, ela escolhia por exemplo...

“Camilo Castelo Branco, um clássico do Romantismo... Com a obra “Amor


de Perdição” foi trabalhada a representação da mulher na sociedade. Era
uma mulher que ele amava e em um dado momento ela vai embora. Para
se chegar até ela, saber quem era aquela mulher e quem era aquele
homem... A cultura emitia, ou não, certo comportamento, mas, por quê? O
que a sociedade impõe em relação a isso? O despertar para trabalhar a
questão de gênero na literatura, veio na verdade... bem, eu já fazia
algumas leituras, não tinha um aprofundamento... na verdade o meu olhar
era para literatura, não especificamente para gênero, mas sempre tive
minhas dúvidas em relação à forma como as mulheres sofrem nas
obras literárias. Então, resolvi trabalhar a questão. Também fizemos um
cordel para falar só sobre as mulheres” (Informação verbal – grifos
meus)93.

Ainda que de forma sutil, Fátima preocupava-se com o sofrimento das mulheres
nas obras literárias, dentre elas a poesia, o romance e outras expressões que exibem
personagens, características, valores e ideologias inscritos em contextos sociais e
históricos diferenciados. As estudiosas feministas demonstraram e denunciaram a
ausência feminina nas ciências, nas letras, na literatura e noutros espaços sociais. Elas
sempre estiveram centralmente preocupadas com as relações de poder, procurando
discutir as formas de silenciamento, submissão e opressão das mulheres. A exposição de
análises dessas situações parece ter sido essencial para torná-las visíveis.
A vitimização feminina e a concepção de um homem dominante versus a mulher
dominada, como se fosse a única fórmula possível, podem ser contestadas. Fátima
tentava, durante suas aulas, “tornar visível” aquela que foi ocultada durante séculos. Ela
expõe sua dúvida sobre as maneiras pelas quais as mulheres são apresentadas como as
sofredoras e como aquelas que se submetem aos caprichos dos homens, questionando e
buscando diferentes modos de problematizar essas ideias e práticas em suas aulas.
No que tange às práticas escolares concretizadas por Telma, ela diz que costuma
trabalhar a mulher na história. No ano anterior, por exemplo, solicitou que seus alunos e
alunas pesquisassem sobre a condição da mulher no período medieval e acerca da
mulher mulçumana, sugerindo que deviam analisar:

93
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.

.
168

“[...] quando ela casava, quando ela deixava de... até os deuses que a
família dela cultuava, os que ela deixava de cultuar após o casamento. Os
que tinha que cultuar depois, ao pertencer à família do marido... e as
meninas disseram: “professora, mais isso era muito errado...” Eu disse:
“pois é, mais qual era o século? Era o século dezesseis, século quinze e
hoje?”. Então eu trazia para o hoje e elas diziam que não é mais assim.
Então, eu procuro sempre intercalar passado e presente, porque história,
não é só o passado. O hoje, como é que está a situação da mulher...
Também fizemos um trabalho sobre a mulher mulçumana, pois sabemos
que ela é muito...coitada eu digo assim...e eu procuro sempre trazer...”
(Informação verbal – grifos meus)94.

Telma não conclui a frase ao referir-se à atividade desenvolvida sobre a mulher


na Idade Média. Talvez quisesse dizer: “quando a mulher deixava de ser virgem”. Mas, o
silêncio falou mais alto, pois “certas palavras não podem ser ditas, em qualquer lugar e
hora qualquer”, conforme nos lembra Carlos Drumond de Andrade (1998). De forma
altamente lírica o poeta insere a sexualidade em seu significado linguístico, apelando,
chamando para que ela se desoculte da sociedade, da mesma forma pela qual todas as
pessoas desejariam fazer. Refere-se a “Certas palavras”...
Certas palavras não podem ser ditas
Em qualquer lugar e hora qualquer
Estritamente reservadas
Para companheiros de confiança,
Devem ser sacramente pronunciadas
Em tom muito especial
Lá onde a polícia dos adultos
Não adivinha nem alcança.
Entretanto são palavras simples:
Definem partes do corpo, movimento, atos
Do viver que só os grandes se permitem
E a nós é defendido por sentença
Dos séculos.
E tudo é proibido.
Então, falamos.

Enquanto Fátima questiona o fato de a mulher ser percebida nos romances


como uma sofredora, Telma, nas aulas de História, problematiza a situação da mulher
mulçumana, entendida por ela, como uma coitada95. Na cultura ocidental, a mulher
muçulmana ocupa uma posição de inferioridade em sua sociedade. O harém e o véu são

94
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2013.
95 O termo coitado/a no dicionário de língua portuguesa Caldas Aulete (2008) refere-se a uma pessoa
digna de pena. No entanto, devido a palavra coitada ser derivada e estar relacionada ao termo coito, há
quem diga haver uma conotação sexual e sirva para descrever uma pessoa que sofreu o coito, ou seja, uma
violação sexual. “A etimologia da palavra coitado não está em coito e sim no verbo arcaico "coitar", do
latim coctare, que significa desgraçar ou atormentar. Assim, um coitado é alguém que sofreu coita, ou
seja, uma desgraça, dor, pena ou aflição”.
Significado disponível em: http://www.significados.com.br/coitado/. Acesso em: 13-02-2015.

.
169

dois símbolos que distinguem essas mulheres e sugerem sua subordinação ao homem. A
subordinação é demonstrada e justificada pela lei, costumes e tradição. Há ainda uma
prática consolidada na Lei islâmica 96 que acontece em países de maioria muçulmana,
considerada abominável e severamente criticada no mundo inteiro, por ser contrária aos
Direitos Humanos: a mutilação da genitália da mulher. Uma das razões defendidas pela
Lei para que a mulher seja circuncisada é para “diminuir a sua luxúria” e “dosar os seus
desejos sexuais”. Assim, é possível inferir que Telma refere-se à mulher muçulmana
como uma coitada devido à sua subordinação ao homem, bem como por causa da
exigência da mutilação defendida pela Lei.
Tomando como base os relatos de Fátima e de Telma é possível perceber traços
da abordagem da educação sexual dos Direitos Humanos apontada por Furlani (2011).
Através da literatura, Fátima problematiza, explicita e tenta desconstruir representações
negativas socialmente impostas às mulheres, ressaltando ainda a importância de se
ouvir os/as jovens e a necessidade da escola ter um projeto para trabalhar o tema como
parte do currículo. Telma relaciona a mulher do passado com a da atualidade, refletindo
sobre as mudanças de padrões sociais. Para as duas professoras, as atividades que
desenvolvem em suas aulas poderiam ajudar na formação crítica de seus alunos e
alunas, tendo em vista que, provavelmente, dentro de suas casas, eles e elas não tenham
nenhuma orientação a esse respeito.
Relativamente ao tratamento dessas temáticas nas práticas escolares de Vera,
ela afirma não ter dificuldades. Diz que procura sempre se informar, pesquisar, ver
entrevistas de pessoas, principalmente as que tratam da sexualidade. Comenta que
procura criar atividades a partir das próprias experiências das/os discentes, trazendo o
cotidiano delas/es para a sala de aula e mais uma vez ressalta:

“Eu vou atrás dos materiais, eu tento trabalhar de forma aberta,


procurando conversar com os alunos, ouvir o que eles têm a dizer, ouvir o
que eles entendem por sexualidade e tento passar o conteúdo para eles de
forma dinâmica, de forma espontânea... Mas, eu acho que ainda está
faltando muito... Eu tento conversar de forma mais aberta... é tanto que
em todas as turmas, quando se falava assim: “Ah! É aula de Ética! ”. Os
alunos gostavam bastante. Teve um dia, que chegou uma professora, uma
própria professora de ciências... e coincidiu de eu estar trabalhando num
determinado momento a gravidez precoce... e ela chegou para mim

96Lei Islâmica traduzida por Calatrava Bansharia, do livro Sharia Law For The Non- Muslim, livro escrito
por Bill Warner e editado por CENTER FOR THE STUDY OF POLITICAL ISLAM, com permissão do autor.
Disponível em: http://infielatento.blogspot.com/2011/06/lei-islamica-sharia-para-os-nao.html. Acesso
em: 13-05-2015.

.
170

perguntando: como você consegue ser tão aberta em relação a esse


assunto? ” (Informação verbal – grifos meus)97.

Na interação em sala de aula, o diálogo, o ouvir o outro, o compartilhar a


opinião, o compreender os sentimentos e a busca de uma disposição acolhedora frente a
si e aos alunos e alunas, bem como as práticas que incentivem a escuta e o acolhimento
da opinião/sentimento do outro são exemplos que enriquecem o fazer cotidiano na
escola. Organiza os “conteúdos de forma que eles entendam... que gostem! Eu trabalho
estas questões mais na disciplina Ética, na Geografia, somente em alguns momentos, com
algumas coisas... pois a geografia não nos dá espaço”. Assim como Vera ainda não
compreende ser possível realizar atividades que tratem questões de gênero e
sexualidade na Geografia, tais discussões ainda não ganharam a importância necessária
nas pesquisas brasileiras. O que há são pequenas publicações em anais de eventos que
privilegiam tal temática e um reduzido número de geógrafos com linhas ou projetos de
pesquisa que objetivam compreender os temas no domínio particular da disciplina e em
regiões determinadas. O etnocentrismo tem prevalecido nestas compreensões, e em
larga medida, não tem sido desafiado por geógrafos.
Vera também comenta, demonstrando angústia, e por vezes com lágrimas nos
olhos, o caso de “abuso sexual” 98que aconteceu com uma de suas alunas. Este caso, “foi
mais difícil”, sublinha:
“Ela tinha uns treze anos e estava sendo abusada pelo padrasto em casa
e ela não tinha apoio de ninguém, nem mesmo da mãe. Ela começou a se
comunicar comigo, através de cartas... Então eu chamei a direção da
escola e conversei. E eu mesma procurei o conselho tutelar, conversei com
ela, perguntando se ela aceitaria conversar com o conselho tutelar... A
princípio ela não queria, pois tinha medo...Foi difícil, mas... Ela não sabia
ao certo quando começou esses “abusos”, não sabia ao certo, mas dizia
assim: “desde pequena!”... Não tinha acontecido... assim o ato sexual em
si...mas aconteceu as preliminares...ela era forçada a fazer... Eu a princípio
não sabia, eu fiquei... meio desesperada... deu medo, me deu medo porque o
padrasto dela já foi indiciado em negócios de drogas anteriormente. Com
isso, me deu medo... Mas, eu dizia: “tenho que fazer alguma coisa! Peguei
as cartas que ela me mandava e entreguei nas mãos do juiz. E o Conselho
acompanhou e... seu padrasto foi preso... ela saiu da casa dela e foi pra
uma casa de parente... Depois ela saiu da cidade, foi pra casa de um outro
parente, até que seu padrasto foi solto ... isso eu fiquei sabendo no
momento que me afastei da escola, eu fiquei sabendo que ela sofreu

97
Trecho extraído da entrevista concedida por Vera em jan. de 2013.
98
Embora Vera tenha utilizado o termo abuso sexual, será considerado aqui o termo violência sexual.
Violência tem sua origem na palavra latina violentia, que significa constrangimento exercido sobre uma
pessoa para levá-la a praticar algo contra a sua vontade; pode ainda ser definido como constrangimento
físico ou moral; uso da força e coação (GABEL, 1997)

.
171

ameaças, então ela teve que voltar... Ela sofreu ameaças tanto do
padrasto, como da própria mãe, por que sua mãe parece que apoia o
companheiro. Infelizmente a mãe dela apoia... por isso é difícil! E eu
fiquei sabendo que continua... ela voltou pra casa... e creio que continua os
abusos... mas, eu não sei bem o que vem acontecendo agora... se ela
continua sendo acompanhada pelo Conselho Tutelar... Não sei!”
(Informação verbal – grifos meus)99.

Em alguns momentos, Vera silencia ou não completa a frase, denotando certo


receio em falar da questão. A violência sexual infantil envolve poder, coação ou sedução,
a partir de duas desigualdades básicas: de gênero e geração. Frequentemente é
praticada sem o uso da força física e não deixa marcas visíveis, o que dificulta a sua
comprovação, em especial quando se trata de crianças pequenas. Pode variar em termos
dos atos que envolvem contato sexual com ou sem penetração até atos em que não há
contato sexual, como no voyeurismo e no exibicionismo e supõe uma disfunção em três
níveis, segundo Gabel (1997, p. 10): “o poder exercido pelo grande (forte) sobre o
pequeno (fraco); a confiança que o pequeno (dependente) tem no grande (protetor); e o
uso delinquente da sexualidade, ou seja, o atentado ao direito que todo indivíduo tem de
propriedade sobre seu corpo”.
A violência sexual, segundo pesquisas realizadas por Saffioti (1997); Azevedo e
Guerra (1993); Cohen (1993); dentre outras100, é um fenômeno complexo e difícil de
enfrentar por parte de todas as pessoas envolvidas. É difícil para a criança e para a
família, pois a denúncia do segredo explicita a violência que ocorre dentro do próprio
espaço familiar. É difícil também para os/as profissionais que, muitas vezes, não sabem
como agir diante do problema que que envolve questões legais de proteção à infância e
punição do/a agressor/a. Exige, ainda, terapêuticas de atenção à saúde física e mental da
criança, tendo em vista as consequências psicológicas decorrentes da situação. Tais
consequências estão diretamente relacionadas a fatores como: idade da criança e
duração da prática violenta, condições em que ocorre, envolvendo ameaças, grau de
relacionamento com o/a violentador/a e ausência de figuras parentais protetoras,
dentre outras (KOLLER et al, 2005).

99
Trecho extraído da entrevista concedida por Vera em jan. de 2013.
100 Pode-se também citar o estudo que apresenta o mapeamento de fatores de risco para abuso sexual
intrafamiliar identificados nos processos jurídicos sobre a violência sexual, no período entre 1992 e 1998.
A análise de 71 expedientes apresenta o perfil das vítimas e a caracterização da violência sexual, dos
agressores e das famílias. O mapeamento foi realizado por Koller et al, intitulado Abuso Sexual Infantil e
Dinâmica Familiar: Aspectos Observados em Processos Jurídicos e o artigo foi publicado na Revista
Psicologia: Teoria e Pesquisa. Brasília, Set-Dez 2005, Vol. 21 n. 3, pp. 341-348. Disponível em:
www.scielo.br

.
172

Assim como a mãe da aluna de Vera parecia apoiar o companheiro que


violentava a filha, no mapeamento realizado Koller et al (2005), as autoras encontraram
situações semelhantes. Observam que “quando a reação da família é negativa e esta não
oferece apoio social e afetivo, a vítima apresenta-se em situação de vulnerabilidade,
podendo desenvolver problemas tais como isolamento social, depressão, pensamentos e
tentativas de suicídio, ansiedade, entre outros” (p. 347). Tanto a vítima, quanto a família
necessitam de acompanhamento psicológico para compreender o que é violência sexual
e sua dinâmica, quais são suas consequências e como é possível evitar tais situações.
Embora Vera tenha afirmado que a menina continua sendo acompanhada pelo Conselho
Tutelar do município, não foi possível constatar os resultados da violência sofrida, visto
que a própria entrevistada não teve mais contato com a adolescente.
Jónata, Fátima, Telma e Vera almejam que tais temáticas sejam incluídas nos
currículos de formação docente, bem como no currículo das escolas de Educação Básica
e contam com esta possibilidade. De acordo com Louro (2001c, p.56-57):

As práticas escolares e os currículos não são meros transmissores de


representações sociais que estão a circular nalgum lugar, “lá fora”; são
instâncias que carregam e produzem representações. O silenciamento
em torno das “novas” identidades sexuais e de gênero constitui-se numa
forma de representá-las, na medida em que marginalizam e as
deslegitimam. O silêncio e o segredo significam uma tomada de posição
ao lado de quem já detém a autoridade e a legitimidade. Quando se está
numa guerra, a omissão sempre favorece o dominante.

A autora pressupõe que é a voz socialmente autorizada que inclui e exclui as


pessoas e conhecimentos. Além disso, torna-se imperativo lembrar que estamos no meio
de uma disputa política em torno da identidade sexual e de gênero, pois há, de um lado,
o discurso hegemônico voltado à norma branca, masculina, heterossexual e cristã; de
outro lado, vemos distintos discursos advindos de diferentes grupos e movimentos
sociais não hegemônicos que lutam para se fazer ouvir, rompendo silêncios
historicamente construídos.
Fátima afirma que muitos de seus alunos e alunas a viam como “uma espécie de
confidente. Eles acabavam me contando algumas coisas que provavelmente não contariam
para outro professor ou professora, para a própria coordenação ou para os pais...”. A
entrevistada supõe que aqueles e aquelas adolescentes percebiam que “não há uma coisa
certa, que não existe um padrão...”. Para ela “esses padrões são estabelecidos pela nossa
sociedade e nós temos que compreender para poder se identificar ou entender a partir

.
173

dele”. Com essa concepção, Fátima defende a inserção das questões de gênero e
sexualidade no currículo escolar:
“Para isso teria que mudar o próprio currículo da escola, pois ele é muito
fechado. Quando eu digo currículo eu me refiro a tudo que tem que ser
dado. Por exemplo, Língua Portuguesa tem uma carga horária imensa!
Será que se diminuísse um pouco da carga horária e colocasse uma eletiva
como tem em algumas cidades, a exemplo dos Estados Unidos... onde o
aluno ou aluna poderia escolher... Por exemplo, ele ou ela teria tantas
disciplinas para escolher: química, física, teatro, teria não sei o quê...
Porque que no Brasil não pode ser assim? O aluno iria fazer sua
matrícula... Teria Português, Matemática, História e Geografia... Mas,
haveria cerca de cinco outras disciplinas, que seriam as eletivas... Assim
como há na Universidade. Assim, não seriam obrigatórias todas as
disciplinas... Mas, infelizmente, essa é a nossa formação de Colônia,
formação jesuíta que os Estados Unidos, por exemplo, não têm. Aqui, como
eu estava falando... Isso é bobagem! Eu tenho um conteúdo para cumprir...
eu tenho uma ementa... Professor de História, a mesma coisa, professor de
Química... Então, se pergunta: “Onde é que eu vou inserir isso?”. O
professor de Português e o professor de física não tem um conteúdo para
dar? Por que a essa altura... Bem! É possível tratar da igualdade, da
sexualidade em Matemática, em Ciência, em História... É como
trabalhar com educação especial, não basta só aprender, saber o que é
educação especial, mas sim estar sensível a questão da educação especial.
Eu acho que essa é uma questão de sensibilidade ou, uma questão de
desconhecimento” (Informação verbal - Grifos meus)101.

Fátima propõe que o/a docente tenha sensibilidade e trabalhe essas dimensões
em suas disciplinas. A partir de uma autonomia de atuação do/a professor/a, bem como
do suporte ofertado ao mesmo/a pela equipe diretiva e pedagógica da escola, será
possível definir o como, o quando e o porquê determinada temática será se trabalhará
com os/as alunos/as.

3.3.1 Ética e Cidadania como disciplina escolar?

Retomando as práticas desenvolvidas por Vera na disciplina Ética e Cidadania e


para compreender os objetivos da mesma, inicialmente recorro ao significado dos
termos ética e cidadania e analiso alguns estudos que tratam do referido tema nas
escolas, nos PCN’s e em Programas de Governo. Segundo Herkenhoff (1996, p. 57), a
ética representa “todo o esforço do espírito humano para formular juízos tendentes a
iluminar a conduta das pessoas, sob a luz de um critério de Bem e de Justiça”, o que

101 Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.

.
174

reforça a teorização de que através da ética o ser humano pode desenvolver relações
justas e igualitárias, acima das diferenças.
A origem da palavra ética vem do grego ethos, que quer dizer o modo de ser, o
caráter. Os romanos traduziram o ethos grego, para o latim mos (ou no plural mores),
que quer dizer costume, de onde vem a palavra moral. Portanto, ética e moral, pela
própria etimologia, dizem respeito a uma realidade humana que é construída histórica e
socialmente a partir das relações coletivas dos seres humanos nas sociedades onde
nascem e vivem (ABBAGNANO, 2007).
A origem da palavra cidadania vem do latim civitas, que quer dizer cidade.
Segundo Dallari (1998, p. 14): “A cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à
pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem
não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de
decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro do grupo social".
Nesse sentido, a cidadania não deveria ser apenas uma simples disciplina a mais
a ser ensinada. As disciplinas tradicionais não conseguiam desempenhar o papel de
formar para o exercício da cidadania. A transversalidade indica um método, um caminho
a ser adotado para se trabalhar a cidadania na escola: “A transversalidade diz respeito a
possibilidade de se estabelecer na prática educativa, uma relação entre aprender na
realidade e da realidade de conhecimentos teoricamente sistematizados (aprender
sobre a realidade) e as questões da vida real (aprender na realidade e da realidade)”
(BRASIL, 2000, p. 40).
Na justificativa dos temas transversais, propostos pelos PCN’s em 1997, a
educação para a cidadania fica ainda mais clara quando se lê: “Eleger a cidadania como
eixo vertebrador da educação escolar, o que implica colocar-se explicitamente contra
valores e práticas sociais que desrespeitem aqueles princípios, comprometendo-se com
as perspectivas e decisões que os favoreçam” (BRASIL, 2000, p. 25). Em sendo a
cidadania o eixo vertebrador, significa então que toda a escola deve pautar-se por este
eixo, ou melhor, deve ser pensada e reestruturada em função da cidadania do/a
discente, educando-o para o seu exercício.
Os PCN’s definem seis temas transversais a serem trabalhados no ensino
fundamental, a saber: Ética, Meio Ambiente, Pluralidade Cultural, Saúde, Orientação
Sexual, Trabalho e Consumo. Não se trata de novas matérias inseridas na grade

.
175

curricular. Enquanto temas transversais, eles perpassam, ou deveriam perpassar, todas


as disciplinas tradicionais.
Em relação ao tema Ética, o PCN afirma que: “Esse trabalho requer uma reflexão
ética como eixo norteador, por envolver posicionamentos e concepções a respeito de
suas causas e efeitos, de sua dimensão histórica e política” (BRASIL, 2000, p. 29). Se a
cidadania é o eixo vertebrador da educação e a Ética é o eixo norteador para se trabalhar
os temas transversais, nos perguntamos: para se trabalhar a cidadania na escola, esta
não deveria ser tratada em todas as disciplinas e não apenas numa específica? Para
compreender essa questão, realizo um breve histórico acerca da inclusão desses
conteúdos no currículo.
Em 1969, durante a ditadura militar, foram criadas as disciplinas de Educação
Moral e Cívica e de Organização Social e Política Brasileira, que perduraram até os anos
1990. A ideia era apresentar a estrutura social brasileira de uma forma mais amena para
os jovens, mas a partir de um princípio ideológico de que eles precisavam aceitar o seu
papel sem contestação. No entanto, esta proposta não melhorou a relação das pessoas
com a política. Cidadania, ética e moral não são temas que têm um cunho disciplinar e
não deveriam ser tratados de forma segmentada.
Com a Lei de Diretrizes Bases da Educação Nacional (LDB) – Lei nº: 9.294/96 e a
divulgação dos PCN’s em 1997, a discussão acerca da ética e cidadania tornou-se mais
corrente, uma vez que tais documentos apontam esses termos como elementos-chave
para a educação no país. As discussões que envolvem o conceito de ética, moral e
civismo estiveram e ainda estão presentes no campo educacional, seja mediante
disciplinas como Educação, Moral e Cívica; Organização Social e Política Brasileira;
Estudo dos Problemas Brasileiros; pela via do Ensino Religioso, ou, mais recentemente,
por meio dos temas transversais.
Na última década do século XX, alguns congressistas apresentaram proposições,
tanto na Câmara Federal como no Senado, procurando reintroduzir nas escolas o estudo
da Educação Moral e Cívica, por meio de uma disciplina curricular obrigatória. Em 9 de
junho de 1999, foi lançado por Victor Pires Franco Neto, pelo Partido da Frente Liberal
(PFL), o Projeto de Lei nº1.131, que tornaria obrigatória a inclusão da disciplina Ética e
Cidadania nos currículos escolares do ensino fundamental e médio em todo o país.
Conforme o projeto, a educação escolar constitui-se em instância de formação
da cidadania de crianças, adolescentes e jovens. Por isso, deveriam ser contempladas no

.
176

currículo escolar noções básicas de direitos e deveres, valores e atitudes, e essa tarefa
seria de competência da disciplina Ética e Cidadania. Na época, a relatora, deputada
Esther Grossi do Partido dos Trabalhadores – PT/RS, apresentou parecer contrário,
sendo acompanhado pela Comissão de Educação, Cultura e Desporto. Com isso, o projeto
foi arquivado.
Em junho de 2000, novo projeto foi apresentado à Câmara de Deputados, de
autoria do deputado Chico Sardelli do PFL de São Paulo. Previa a inclusão de um
componente curricular obrigatório Ética, Moral e Civismo, com o objetivo de promover
sistematicamente o desenvolvimento do educando. E mais uma vez obteve parecer
contrário da relatora, deputada Marisa Serrano (Partido da Social Democracia Brasileira
– PSDB/MS), aprovado por unanimidade, sendo o projeto arquivado em 31 de janeiro de
2007. Ainda no ano 2000, outro Projeto de Lei, de autoria do deputado Fernando Zuppo
do Partido Democrático Trabalhista – PDT – de São Paulo, foi apresentado ao Congresso
cuja proposta era incluir, nos currículos escolares do ensino fundamental ao superior, o
ensino da ética e da cidadania como parte de seus conteúdos. O mesmo também obteve
parecer contrário e foi arquivado. Além desses três projetos, entre os anos de 1997 e
2006, outras proposições foram feitas por congressistas que procuravam reintroduzir
nas escolas o estudo da educação moral e do civismo, ou introduzir disciplina que
contemplasse a ética e cidadania, em busca do retomada de valores supostamente
perdidos pela sociedade, conforme pesquisa realizada por Amaral (2007) e sintetizada
no quadro a seguir.

Quadro 4 - Síntese das proposições acerca da Ética e Cidadania nas escolas


Número, autor e data Relator/a Ementa Termo/s
de apresentação da utilizado/s
proposta pelo autor
PL.1.131/1999 – Dep. Ester Grossi Inclusão obrigatória da disciplina Ética e Ética e
Victor Franco Neto PT/RS Cidadania nos currículos do ensino fundamental Cidadania
PFL/PA 9/6/1999 e médio de escolas públicas e privadas
PL.3.379/2000 – Dep. Maria Constituirá componente curricular obrigatório Ética, Moral
Chico Sardelli PFL/SP Serrano Ética, Moral e Civismo no ensino fundamental e Civismo
29/6/2000 PSDB/MS
PL. 3.857/2000 – Dep. Não Inclusão nos currículos do ensino da Ética e da Ética e
Zuppo PDT/SP designado Cidadania nos níveis fundamental, médio e Cidadania
29/11/2000 superior
PL. 3964/2000 – Dep. Não Ensino de OSPB obrigatório a partir da 5ª série OSPB
Milton Monti PMDB/SP designado do ensino fundamental
14/12/2000
PL. 4.559/2001 – Dep. Não Inclusão de Educação Moral e e Cívica no Moral e
Paulo Lima PMDB/SP designado currículo do ensino fundamental nas escolas Civismo
25/4/2001 públicas e particulares

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177

Ind. 322/2003 – Dep. Costa Sugere ao Ministro da Educação a inclusão de Moral e


Davi Alcolumbre Ferreira matéria curricular obrigatória sobre direitos e Civismo
PDT/AP 15/4/2003 PSC/MA deveres dos cidadãos, moral e civismo
PL. 772/2003 – Dep. Iara Incluir no currículo oficial da rede de ensino a Moral e
Pastor Frankerbergen Bernardi obrigatoriedade do ensino da Educação para a Civismo
16/4/2003 PT/SP Moral e o Civismo
PL. 2082/2003 – Dep. Vanessa Acréscimo, ao art. 27. de item V. difusão dos Ética, Moral
Paes Landin Grazzietin valores morais, éticos, cívicos e de nacionalidade e civismo
25/9/2003 PCdoB/AM
PL 3.046/2004 – Dep. Fátima Implantação disciplina obrigatória da educação Moral e
Antonio Cambraia Bezerra moral e cívica Civismo
PSDB/₢E 3/3/2004 PT/RN
PL. 5.072/2005 – Dep. Átila Lira Inclusão da disciplina educação moral e cívica na Moral e
Carlos Nader PL/RJ. PSDB/PI grade curricular nos ensinos fundamentais e civismo
18/4/2005 médio
PL. 6.484/2006 – Dep. Átila Lira Indicar conjunto de temas transversais para os Ética
Celso Russomano PSDB/PI currículos dos ensinos fundamental e médio,
PP/SP 16/1/2006 entre eles ética e política
PL. 6.570/2006 – Dep. Ivan Incluir no currículo oficial a obrigatoriedade do Moral e
Pastor Frankerbergen Valente ensino da educação para a Moral e o Civismo civismo
PTB/PR 31/1/2006 PSOL/SP
PL. 7.425/2006 – Sen. Chico Incluir nos ensino fundamental, médio e cursos Ética e
Pedro Simon PMDB/RS Alencar de formação de professores da educação básica, cidadania
16/8/2006 PSOL/RJ componentes curricular dedicado ao
desenvolvimento de valores éticos e de
cidadania
Fonte: Oliveira (2007, p. 351)

Vale ressaltar que tais proposições não foram aprovadas pelo Congresso
Nacional. Além desses Projetos de Lei, o MEC, em parceria com Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República, lançou em 2004, o Programa de
Desenvolvimento Profissional Continuado Ética e cidadania: construindo valores na
escola e na sociedade. Esta iniciativa se deu por entender que é dever da escola ensinar e
agir fundamentada nos princípios da democracia, da ética, da responsabilidade social, do
interesse coletivo, da identidade nacional e da própria condição humana (BRASIL,
2003). Para isso, busca desenvolver ações visando a atingir dois objetivos:
a) compreender os fundamentos da ética e da moralidade e como seus
princípios e normas podem ser trabalhados no cotidiano das escolas e
da comunidade;
b) compreender e introduzir no dia-a-dia das escolas o trabalho
sistemático e intencional sobre valores desejados por nossa sociedade
(op cit, p. 8).

Sua proposta inicial seria a criação de Fóruns, constituídos conforme a realidade


de cada escola. Nesses fóruns haveria representação e participação de estudantes,
profissionais da educação, dirigentes, famílias, lideranças comunitárias, dentre outras
pessoas interessadas. Em 2006, por meio de edital, o MEC apoia o financiamento de
projetos escolares que objetivavam implementar o Programa nas escolas públicas. Os
.
178

mesmos deveriam ser desenvolvidos junto às comunidades, retomando ou


aprofundando ações educativas que conduzissem à formação ética e moral de todos os
membros que atuam nas instituições escolares. “O trabalho com ética e cidadania nas
escolas pressupõe intervenções focadas em quatro grandes eixos que, embora
independentes, mantêm uma nítida inter-relação: ética, convivência democrática,
direitos humanos e inclusão social”102.
Em novembro de 2012, a Comissão de Educação do Senado vota a proposta que
cria duas disciplinas de orientação ética e política nos currículos escolares: Cidadania
Moral e Ética no ensino fundamental e Ética Social e Política no ensino médio. O Senado
aprova a alteração da redação dos artigos 32 e 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de
1996. Mas, essa ideia foi e tem sido criticada por diversos especialistas dizendo que os
assuntos voltados à ética e à cidadania podem ser incorporados em outras disciplinas.
Muitas escolas, dentre elas as de Porto Franco – MA como a que Vera e Telma
trabalham, desenvolvem as temáticas em disciplinas específicas e não de forma
transversal, conforme proposto pelos PCN’s, ou mesmo no desenvolvimento de projetos,
segundo o Programa Ética e Cidadania, sugerido e financiado pelo MEC.
Na sequência são apresentados alguns elementos que tratam das construções
dos gêneros e das sexualidades vivenciados nos espaços escolares.

3.4 Elementos da construção dos gêneros e das sexualidades nos processos


educativos

Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,


econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade, é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre e o macho e o castrado, que se qualifica de feminino
Simone de Beauvoir (1980, p. 9)

Os conceitos teóricos assumidos nesta tese (estudos de gênero e das


sexualidades), concebem os sexos, os gêneros e as sexualidades como frutos da
construção histórica dos sujeitos, em determinados contextos sociais e culturais. No
entanto, em relação ao sexo, e consequentemente ao gênero e à sexualidade, tal

102Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5268:&catid=202&Itemid=86.
Acesso em 09 nov. 2015.

.
179

entendimento ainda não é consensual, haja vista que normas essencialistas e


biologicistas têm sido, em muitos casos, associadas a sua causalidade.
O ser mulher, e também o ser homem, são frutos de uma construção, e não de
um determinismo biológico, como já assinalava Beauvoir em 1949, quando da
publicação de sua obra O Segundo Sexo. Por sua vez, assinala Butler (2003) que se o
argumento de Beauvoir, de que não nascemos mas nos tornamos uma mulher, está
correto, depreende-se que a mulher em si é um termo em processo, um devir, um
construir do qual não se pode dizer legitimamente que tenha origem quando do
nascimento ou fim com a morte. Dessa maneira ela está suscetível a intervenções e
ressignificações:
Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas mais
reificadas, a própria “cristalização” é uma prática insistente e insidiosa,
sustentada e regulada por vários meios sociais. O gênero é a estilização
repetida no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a
qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural do ser (p. 59).

A heteronormatividade junto com o androcentrismo é a base do sistema político


subjetivo que alimenta as diferenças dicotômicas entre os sexos e busca naturalizar e
estabelecer as formas de ser homem/masculino e de ser mulher/feminina. Ela não
somente mantém a lógica dicotômica e complementar entre homens e mulheres, como
também favorece a degradação social dos e das que a subvertem. Tais pessoas sofrem,
em muitos casos, preconceitos e violências associadas à homofobia.
Considero que muitos são os apelos, especialmente de quem sofre, vivencia ou
mesmo de quem não aceita atitudes homofóbicas e luta pela aceitação, pelo respeito e
pela dignidade humana, conforme constatado nas narrativas de nossos/as
colaboradores/as acerca de suas vivências nas escolas. Embora ainda se observe a
presença de preconceitos e estereótipos, todos/as os colaboradores/as defendem que
deve haver atitudes de respeito às pessoas, independentemente de sua orientação
sexual ou das normas impostas pela sociedade.
Elias sublinha que “antigamente, a maioria das pessoas era bem mais
preconceituosa” e ressalta que hoje as pessoas têm mais liberdade para assumir o que
são, acrescentando: “tenho alguns alunos com comportamento afeminado”. Explica que
em suas aulas, quando presencia alguma atitude que pode ser considerada homofobia,
diz: “se não gosta, não critique tem que respeitar como gente”.

.
180

Vera menciona que vivenciou “uma situação, em que um menino foi alvo de
gozações por não apresentar um comportamento... digamos assim ... próprio para seu sexo
e aquilo era motivo de gozação, ele sofreu bullying por isso.”. Naquele momento, os
professores de sua escola se reuniram para ver o que poderia ser feito e optaram pelo
diálogo. Vera destaca que diminuíram as gozações.
Da mesma forma, João ressalta:
“Eu me deparei com situações lá que... alguns meninos que tinham um
jeitinho... assim... Um jeitinho de... sei lá...de homossexual e que os outros
colegas gozavam... Então, em alguns momentos eu falava: ‘por favor não
falem isso pois vai desconcentrar ele; ele quer estudar, por favor deixem
ele estudar...’. E eles diziam: ‘Mas, professor ele tem um jeitinho meigo...
acho que ele é...’. Naquele momento eu até brinquei, dizendo: “eu também
sou! ”. Mas, eu sempre evitava tocar no assunto, porque eu não conhecia, a
minha instrução foi pouca... estava recente na Pedagogia e entrei no PET
para dar aula também... Então, eu tentava respeitar e sempre exigia o
respeito dos colegas” (Informação verbal - Grifos meus)103.

Jéssica comenta, com certa preocupação, que quando atuava como professora
no ensino fundamental, teve um aluno e uma aluna que ...
“[...] apresentavam comportamentos que não eram próprios para seus
sexos, conforme esperado pela sociedade. O menino... assim... que a
sociedade diz, mas eu... sinceramente eu não conseguia ver dessa forma,
vai muito da relação que a criança tem em casa, de com quem que ela
brinca e tal...”. Também tinha uma aluna que parecia um menino, por
ela ser valente, por ela em qualquer situação querer tomar o
partido, ela queria ser a “mão de ferro” mesmo, de resolver tudo do
jeito dela e era mesmo tosco... As pessoas diziam: “Essa menina é meio
machão! ”. Ela é esquentada como tem gente que é ... Eu achava que esse
comportamento poderia ser reflexo... sei lá! De repente, da mãe, do pai
ou... ela em casa poderia ter alguém que enchia sua paciência... e ela
demonstrava aquele reflexo... mas, eu não via como atitude de... pude
presenciar situações de bullying mesmo, com provocação, piadinhas...
chacotas...com os colegas. Essas ações são coisas corriqueiras do dia–a–
dia... Eles chamam de vEaDo mesmo! Ou, ficam chamando de
menininha” (Grifos meus).

Telma também vivenciou algumas situações em que meninos foram alvo de


gozações dos colegas, por terem comportamentos que não eram entendidos como
“normais” para seu sexo, conforme sua afirmação:
“[...] os meninos... do tipo mais delicadinho, os outros não querem no time.
Às vezes quando a gente quer dividir a turma numa gincana, ou quando
tem outras atividades esportivas, eles não querem aquele menino ... mais
delicado... que gosta... Mas, assim a gente procura conversar...mas que
eles são terríveis! Adolescente, criança é terrível... eles não conseguem...
Com as meninas por incrível que pareça a gente não vê tanto assim, as

103
Trecho extraído da entrevista concedida por João em jan. de 2013.

.
181

meninas parecem que são ditas “normais”, (risos) as meninas, não... se


elas têm assim... até que seja mesmo, elas camuflam muito bem... elas
geralmente são mais... homogêneas assim... tudo delas...os interesses...
Agora, os meninos são mais excluídos por isso... Agora os que chegam e
falam o que são, parece que já mais são aceitos... incrível! Os que... os que a
gente não sabe se realmente são ou não... se ele só tem aquele jeitinho....
Pode ser que nem seja... as pessoas excluem mais” (Informação verbal -
Grifos meus)104.

É possível identificar nas palavras de Jéssica, Vera, Elias, João e Telma o


entendimento da homossexualidade como desvio, deixando transparecer ideias que
podem contribuir na manutenção de papéis sociais estereotipados em relação ao
homem e a mulher, pois delimitam gestos e papéis sociais de acordo com o sexo
biológico. Elias e João ressaltam que deve haver o respeito, por ser este um princípio
bíblico. Vera e Jéssica referem-se ao fato de não aceitarem atitudes que envolvam
qualquer situação de constrangimento e de vexame, afirmando que as mesmas as
deixam revoltadas e dizendo que tentam conversar com as pessoas que mostram tais
atitudes.
Telma nota que há uma espécie de subversão nos comportamentos das meninas
na escola, sendo estes bem diferenciados em relação aos dos meninos. A professora
afirma que as meninas evidenciavam ser “normais”, enquanto que os meninos,
especialmente os mais “delicadinhos”, demonstravam não seguir os padrões esperados
pela sociedade. Com isso, eram alvo de gozações e “excluídos” do grupo. Tais atitudes,
por parte das meninas, podem ser entendidas como uma espécie de “resistência
feminina”. Sua afirmação acerca das meninas camuflarem sua orientação sexual, me
instigou a recorrer ao estudo que desenvolvi durante o mestrado e à análise realizada do
momento em que as primeiras normalistas começaram a questionar sobre a
discriminação da mulher. Elas iniciaram as reivindicações por igualdade de
oportunidades, melhores condições de vida e de profissionalização e a articulação crítica
sobre a consciência de gênero e da sexualidade (SILVA, S.M.P, 2011).
Fátima ressalta, ainda, que dentre os papéis da escola, um deles seria trabalhar
questões de gênero e da/s sexualidade/s discutindo, instigando os alunos e alunas a
pensar, a refletir sobre essas questões, uma vez que fazem parte de suas vidas. Ela
constata que o ambiente escolar não concebe o masculino e o feminino com igualdade de
comportamento, sente-se incomodada e comenta:

104
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2013.

.
182

“Olha! Eu não sei se a escola fazia vista grossa como se aquilo não
existisse, pois não tomava partido. Ela não trabalhava essas questões e
aquilo me incomodava bastante. Eu vi inclusive casos de violência que
me incomodaram muito, mas a escola não tomava partido. Cheguei a
conversar com a coordenação sobre o caso. Mas, me foi dito: “vamos fazer
o quê? ”. Como se diz: “isso não é problema meu! ”E isso me incomodava,
inclusive porque na escola havia uma diretora e um diretor que eram
gays” (Informação verbal – grifos meus)105.
Sobre os comportamentos considerados “culturalmente adequados” em relação
ao seu sexo, Jónata comenta que vivenciou algumas situações que o deixaram indignado:

“No início eu velava. Não dava atenção. Até porque não sabia como fazer,
só quando trabalhei no Ensino Médio, quando eles queriam me atingir,
pessoalmente [...] eu me senti irritado. Por duas vezes eu falei sobre isso:
uma vez foi com uma colega na sala dos professores, quando ela chegou
dizendo: “vocês viram o fulano? Hoje ela está pior do que antes. Está até
com roupa feminina!”. Aí eu me irritei e disse: ‘o quê que tem isso? Vocês
são professoras, deviam fazer diferente! Mas, estão sendo
preconceituosas!’” (Informação verbal - Grifos meus)106.

A negação das pessoas que não se enquadram num padrão heteronormativo


acaba por expô-las às gozações, aos insultos, dentre outras formas de violência que
induzem esses/as jovens a se reconhecerem como desviantes, indesejados ou mesmo
ridículos. A normalização da sexualidade é traduzida por uma série de regras sociais que
padronizam a sociedade e os que dela fazem parte. Esses padrões seguem em uma linha
de heterossexualização dos corpos e desejos. Tudo que está fora dos padrões
considerados desejáveis são condenados, assim como as pessoas que manifestam suas
sexualidades transgredindo essas formas naturais são considerados anormais e não
desejáveis. E para que esse/a jovem possa vir a se reconhecer como homossexual, é
necessário que ele/a consiga desvincular o ser gay, ou lésbica, dos significados que
aprendeu a associá-los. Esta não é uma tarefa fácil! Inclusive, Louro (1999) ao tratar
essa questão assinala: “será preciso deixar de percebê-los como desvios, patologias,
formas não naturais e ilegais da sexualidade: Como se reconhecer em algo que se
aprendeu a rejeitar e a desprezar?” (p. 83). Tais atitudes discriminatórias contra as
sexualidades consideradas desviantes entre os/as próprios/as colegas são a
contrapartida da vigilância que se exerce sobre as sexualidades consideradas normais.

105
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.
106 Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

.
183

CAPÍTULO 4

O CURSO GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA (GDE) NAS


TRAJETÓRIAS PERCORRIDAS

Quando uma pessoa relata os fatos vividos por ela mesma,


percebe-se que reconstrói a trajetória percorrida
dando-lhes novos significados
(Maria Izabel Cunha)
__________________________________________________________________________________________________________

.
184

.
185

O campo político, entendido ao mesmo tempo como campo


de forças e como campo de lutas, que têm em vista
transformar a relação de forças não é um império:
os efeitos das necessidades externas fazem-se sentir nele
por intermédio sobretudo da relação que os mandantes
mantêm com seus mandatários e da relação que
esses últimos mantêm com suas organizações.
Pierre Bourdieu (2007b, pp 163-164).

Tomo essas palavras de Bourdieu como forma de tentar explicar que devido ao
fato do campo político ser também um campo de lutas e de forças, é sempre necessário
conhecer os objetos dessas lutas e os dispositivos e instrumentos mediante os quais elas
se realizam. Porque o campo político não é um “império”, quando se observa a presença
das questões dos gêneros e das sexualidades nas políticas educacionais é preciso
observar também que sua inserção se deu, em especial, devido às lutas e às pressões de
movimentos sociais como os movimentos de mulheres e os movimentos feministas. A
partir dessas lutas, tais questões começam a ganhar visibilidade tanto no campo político,
no campo educacional como no campo científico, especialmente nas ciências sociais e
humanas. Com isto, também entendo que se faz necessário e urgente incrementar a
produção de conhecimentos acerca de experiências educativas, endereçadas à
construção de alternativas éticas, epistemológicas e pedagógicas que promovam
mudanças de atitudes, na desconstrução de preconceitos e estereótipos que negam
direitos humanos e sociais fundamentais.
Seguem-se considerações sobre a questão da formação continuada em gênero e
diversidade na escola, tal como se configurou no GDE, sendo este fruto de uma política
pública educacional, advinda das lutas de movimentos sociais, que visou proporcionar
aos professores/as subsídios para que pudessem compreender, posicionar-se e abordar
questões voltadas às diversidades, dentre elas as de gênero e sexual, buscando o
reconhecimento e o respeito sociocultural e sexual dos sujeitos. O presente capítulo
objetiva reconhecer os subsídios deste curso, ofertado na UFMA, no caminho percorrido
pelos/as colaboradores/as deste estudo. Para isso, é cabível um breve histórico da
criação do curso e de sua oferta nas instituições de ensino superior (IES), destacando-se
a iniciativa da SECAD (atual SECADI) e da SPM em sua organização, apresentar a
configuração de cada módulo, com seus objetivos e conteúdos e retomar alguns dos
desafios enfrentados e conquistas efetivadas pela equipe integrante do trabalho
pedagógico na UFMA, além de retomar afirmações de tutoras e de cursistas dos anos

.
186

2009 e 2010. Na sequência são apresentadas a configuração, organização e


desenvolvimento do curso no AVA/Moodle, organizado pelo Núcleo de Educação a
Distância da UFMA. Por fim são discutidos os impactos do curso nas trajetórias e nas
práticas escolares dos/as colaboradores/as.

4.1 O projeto do curso GDE: um pouco de sua história e de sua organização


curricular

Os/as professores/as sentiam necessidade de formação


nesses temas, sentiam dificuldades para lidar,
em sala de aula, com a criança que chama a outra
de cabelo de “bombril”, o outro de “marica”.
Encontramos no curso GDE uma porta aberta para
adquirir o embasamento necessário para lidar
com as discriminações e coibir a violência.
(Maria Elisabete Pereira)107

Inicio esta subseção ressaltando que a LDB de 1996 propõe em seu artigo 80 o
desenvolvimento do ensino a distância nos diferentes níveis e modalidades do sistema
escolar, bem como na formação continuada, devido propiciar atendimento a um grande
número de pessoas, sendo assinalada como um dos instrumentos para atender às
exigências em relação à formação de professores/as. No mesmo ano foi criada a
Secretaria de Educação a Distância (SEED). Sua criação no MEC permitiu que o
ministério atuasse como um agente de inovação tecnológica nos processos de ensino e
aprendizagem, fomentando a incorporação das tecnologias de informação e
comunicação (TIC) e dos métodos didático-pedagógicos e técnicas de ensino a distância.
Embora esta proposta tenha encontrado resistências, as bases legais para esta
modalidade foram estabelecidas na LDB, sendo regulamentadas no Decreto 5.622, no
ano de 2005. Neste decreto, o conceito de Educação a Distância no Brasil é assim
definido:
[...] caracteriza-se a Educação a Distância como modalidade
educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos
de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de meios e
tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e
professores desenvolvendo atividades educativas em lugares ou
tempos diversos (BRASIL, 2005).

107 Diretora da Subsecretaria de Articulação Institucional da SPM/PR (GDE, 2011, p. 49).

.
187

A SEED também promove a pesquisa e o desenvolvimento voltados à introdução


de novos conceitos e práticas que utilizem as diferentes ferramentas em EaD nas escolas
públicas brasileiras. E os primeiros programas formais desta Secretaria foram a
formação continuada de professores/as da rede pública. A EaD foi concebida, segundo
Martins (1996), como uma modalidade adequada à expansão e à consolidação dessas
formações. Com o crescimento da EAD, em 2005 foi criado pela SEED o Sistema
Universidade Aberta do Brasil (UAB), com a finalidade de oferecer, prioritariamente,
cursos de licenciatura e de formação inicial e continuada para professores/as da
Educação Básica.
Ainda no ano de 1996, no governo brasileiro de Fernando Henrique Cardoso,
mesmo que de forma tímida, iniciou-se certo reconhecimento nos campos dos direitos
humanos e dos setores educacionais de que a questão da diversidade deveria estar entre
os temas de relevância político-social. Durante o governo do presidente Luís Inácio Lula
da Silva, os documentos oficiais passaram a apresentar-se melhor elaborados no que se
refere à questão da diversidade, à ampliação de políticas públicas com a promoção de
programas e de planos para a população LGBT e à inclusão das questões raciais nos
currículos escolares. Dentro de uma variedade de iniciativas relacionadas à diversidade,
uma delas ocorreu a partir da atuação do MEC, através da SECAD quando realizou e
implementou ações em relação ao tema e seus desdobramentos.
Assim, iniciou-se no governo Lula o financiamento e o incentivo à criação e
execução de cursos que atendessem a diferentes necessidades, com o objetivo de reduzir
desigualdades educacionais por meio da participação de diferentes membros da
sociedade, em políticas públicas que buscassem assegurar a ampliação do acesso a
educação, a inclusão social e a desconstrução de preconceitos e discriminações
historicamente construídos.
O GDE foi resultado de um longo processo de construção e de implantação de
políticas que visam o desenvolvimento de práticas igualitárias. De um modo geral, as
metas que o orientam estão expressas na LDB de 1996, em específico no art. 26, que
determina a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
nos currículos da Educação Básica (Lei n° 10.639), na Política Nacional de Promoção da
Igualdade Racial (de 2003), no Plano Nacional de Política para as Mulheres (de 2004), no
Programa Brasil sem Homofobia e no Programa de Combate à Violência e à

.
188

Discriminação contra GLBTT e Promoção da Cidadania Homossexual (de 2004).


(PEREIRA; ROHDEN, 2007).
Além do reconhecimento da escola ser um ambiente preconceituoso, como
argumentos para justificar a ação, foi invocada a necessidade de atualizar profissionais
da educação, complementando sua formação inicial, com temas voltados à diversidade. A
defesa da modalidade à distância se deu, especialmente, devido ao fato de muitos dos/as
docentes atuarem em localidades distantes das capitais e terem dificuldade para fazer
sua formação continuada. Em agosto de 2005, foi assinado Protocolo de Intenções entre
a SPM/PR, a SEPPIR/PR e o MEC – por intermédio da SECAD e da SEED – e o British
Council108 e o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM) 109.
O CLAM, em parceria com a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) propôs, no
ano de 2006, o curso piloto “Gênero e Diversidade na Escola – GDE”, oferecendo 1.200
vagas para professores e professoras do ensino fundamental de 5ª a 8ª séries. Essas
vagas seriam distribuídas em número de 200 para cada um dos 06 municípios de
diferentes regiões do país: Porto Velho, Salvador, Maringá, Dourados, Niterói e Nova
Iguaçu.
Naquele momento, a equipe organizadora do Projeto partia da concepção de
que os processos discriminatórios tinham suas especificidades e precisavam ser
analisados à luz dos direitos humanos, para que nenhuma forma de discriminação fosse
tolerada, na escola ou fora dela. Além disso, estavam conscientes de que:
O “Curso Gênero e Diversidade na Escola” tem um enorme desafio pela
frente. Entretanto, longe de nos desestimular, a realidade nos encoraja a
dar este importante passo, para que um dia seja possível afirmar que,
assim como nosso país, a escola brasileira é uma escola de todos/ as.
Estamos certos/as de que incorporar o debate de Gênero e Diversidade
na formação de professores/ as que trabalham com crianças e jovens é o
caminho mais consistente e promissor para um mundo sem intolerância,

108
O British Council é uma instituição pública do Reino Unido, um instituto cultural cuja missão é difundir
o conhecimento da língua inglesa e sua cultura mediante a formação e outras atividades educativas.
Promovem cooperação entre o Reino Unido e o Brasil nas áreas de língua inglesa, artes, esporte e
educação. Maiores informações em: http://www.britishcouncil.org.br/.
109 O CLAM, criado no ano de 2002, enquanto um projeto vinculado ao Programa de Estudos e Pesquisas
em Gênero, Sexualidade e Saúde do Instituto de Medicina Social, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro – UFRJ. O Centro foi criado com os objetivos de elaboração e implementação de conhecimento
relacionado a sexualidade, dentro da perspectiva dos direitos humanos. Tem como característica, o
diálogo entre academia, movimentos sociais e responsáveis pelas políticas públicas, com a coordenação de
atividades nas regiões do Brasil, Argentina, Chile, Peru e Colômbia, com a integração a outros centros
localizados nos continentes asiático, africano e nos Estados Unidos.
Há maiores informações sobre o Centro no link
http://www.clam.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=65&sid=123 .

.
189

mais plural e democrático. Formar educadores/as é apenas o primeiro


passo. (GDE, 2009. p. 10).

A execução do projeto ficou sob a responsabilidade do CLAM que coordenou a


elaboração do material didático; selecionou via Internet os/as cursistas e capacitou
professoras/es on-line; indicou orientadores de temas e em parceria com o Governo
Federal, coordenou o desenvolvimento do curso até sua etapa final.
Inicialmente, a estrutura do GDE foi organizada em quatro módulos:
Diversidade, Gênero, Sexualidade e Orientação Sexual, Raça e Etnia. Cada módulo era
dividido em unidades, acompanhadas por um material didático disponível em CD e
também impresso, além de serem disponibilizados no AVA, com atividades
diversificadas.
Mediante a avaliação da experiência do projeto piloto publicada em 2007 pela
SPM, iniciou-se uma nova fase de realização mais ampliada. Em 2008 ocorreu mais uma
parceria entre a SECAD, a SPM, a SEPPIR e a SEED. Naquele momento, ampliaram a
proposta de oferta do curso GDE, com recursos públicos federais, para todas as
Instituições Públicas de Ensino Superior do país que quisessem ofertar o GDE pelo
Sistema da UAB, através da Rede de Educação para a Diversidade. Esta Rede se
configurava como um grupo de instituições públicas dedicado à formação continuada de
profissionais da educação nas mais diversas áreas. Em quatro anos de oferta, foram
totalizados quarenta e dois mil, duzentos e cinco ingressantes em todo o Brasil,
conforme o gráfico a seguir:

Figura 3- Gráfico com ingressantes no Programa GDE no Brasil

20000
Quantidade de Cursistas

15000 15000
15000 13340

10000
5000 865
0
Piloto-2006 2008 2009 2010

Fonte: Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres – janeiro de 2010


Disponível em: http://www.spm.gov.br

A partir de então, a proposta do GDE foi gestada como formação continuada. As


universidades federais e estaduais, através da UAB, cuidaram de oferecer o curso aos/às
professores/as, gestores/as e orientadores/as pedagógicos/as das redes públicas

.
190

municipais e estaduais de ensino de todas as regiões do país. Os cursos atendiam aos


editais SECAD/UAB publicados nos anos de 2008 e 2009 e eram ofertados nos Polos
UAB, sendo financiados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e
os/as profissionais (coordenadores/as, professores/as pesquisadores e tutores/as)
recebiam bolsas da CAPES. Para melhor compreensão das mudanças ocorridas nas
ofertas dos cursos de formação continuada no período, apresento a seguir duas figuras:
a primeira com a antiga configuração da Rede de Educação para a Diversidade da
SECAD/MEC e a segunda com o novo fluxo da Rede Nacional de Formação Continuada
dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública.

Figura 4: Antiga configuração dos cursos de formação continuada da SECADI/MEC

Fonte: Coordenação Geral de Direitos Humanos e Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos
e Cidadania da SECADI/MEC, Brasília, 2013.

.
191

Figura 5: Nova configuração dos cursos de formação continuada da SECADI/MEC

Fonte: Coordenação Geral de Direitos Humanos e Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos
e Cidadania da SECADI/MEC, Brasília, 2013.

Esses fluxogramas foram organizados, apresentados em slides e explicados pelo


assessor da Gestão Nacional dos Cursos de Formação Continuada da SECADI, Daniel
Arruda Martins, na reunião de formação promovida pela Coordenação Geral de Direitos
Humanos e Diretoria de Políticas de Educação em Direitos Humanos e Cidadania da
SECADI/MEC, que aconteceu em Brasília nos dias 17 e 18 de outubro de 2013. Desde sua
implantação, o curso GDE passou por várias alterações em seu formato de oferecimento,
podendo ser a distância, semipresencial e presencial. Atualmente, os cursos são
oferecidos nas modalidades extensão, aperfeiçoamento e especialização, conforme o
quadro a seguir.
Quadro 5 - Modalidades do curso GDE
GDE GDE GDE GDE GDE
Extensão Extensão Aperfeiçoamento Especialização
Especialização
80 horas 100 horas à 180 horas à distância 360 horas 300 horas à distância
presenciais distância + 20 horas presenciais presenciais + 60 horas
presenciais
Fonte: Adaptado pela autora, com base em proposta da SECADI/MEC.

.
192

Durante todo o curso discutem-se as desigualdades relacionadas à diversidade


de raça e de gênero e as possibilidades de concretização de uma educação que
ultrapasse a estrutura curricular dos livros didáticos e seja correlacional e dinâmica,
trazendo implicações para a realidade prática dos alunos e alunas, professores/as e para
as escolas brasileiras. A proposta político-pedagógica do projeto embasa-se nas
perspectivas teóricas de Paulo Freire, Jean Piaget, Lev Vigotsky e Edgar Morin. Estes
autores, segundo as Diretrizes Político-pedagógicas do curso (GDE, 2009, p. 261) “[...]
colocam em destaque a totalidade do ser humano e sua capacidade de construir
significados socialmente importantes”. O GDE foi oferecido em 35 instituições no país, de
acordo com informações disponíveis no site da Capes, conforme a figura que segue:

Figura 6: Instituições de Ensino Superior que ofertaram o curso GDE

Fonte: Disponível em: http://uab.capes.gov.br/index.php/cursos.Acesso em 3 mai 2015

.
193

As ações pedagógicas recomendadas no Livro de Conteúdo (2009) prezam a


autonomia docente e visam formar um/a profissional capaz de atualizar-se de forma
permanente e integrar vários campos do conhecimento com habilidade para unir teoria
e prática, desenvolvendo iniciativas para enfrentar e resolver problemas e que tenha
capacidade de trabalhar em equipe. As atividades oferecidas às/aos professoras/es
participantes, de acordo com as diretrizes do GDE, estão relacionadas ao propósito de
um curso, que na sua maior parte é realizado em ambiente interativo. A intenção é
incentivar o envolvimento das/os docentes em suas produções teóricas e o
compartilhamento destas produções.
Segundo o Livro de conteúdo (2009), a opção pelos temas específicos, assim
como a disposição de seu tratamento concomitante, parte do princípio de que os
fenômenos se relacionam de modo complexo. O curso é desenvolvido de maneira que
possa permitir o debate transversal sobre a diversidade, o gênero, a sexualidade e
orientação sexual e as relações étnico-raciais. Para tanto são organizados quatro
módulos temáticos e um de avaliação.
O primeiro módulo, Diversidade, discute os conceitos de diferença, diversidade
e cultura, com foco nas múltiplas diversidades culturais. Enfatiza os conceitos de
etnocentrismo, estereótipo e preconceito estimulando os/as professores/as a pensarem
de forma a combater o determinismo biológico, promovendo uma discussão inicial sobre
respeito e valorização da diversidade (GDE, 2009).
No módulo que versa sobre Gênero, trata do conceito de gênero e de identidade
de gênero inserindo-os num contexto histórico. Em seguida, discorre sobre o contexto
da desigualdade social, de gênero e étnico-racial com a família e a escola. A gênese do
movimento feminista e sua importância na sociedade, a violência de gênero e o
conhecimento da Lei Maria da Penha, Lei nº 11.340/2006 também são estudados. Na
última unidade, voltada para a sala de aula, são tratadas formas de interação das
temáticas na escola e na família (GDE, 2009).
O módulo seguinte apresenta questões da Sexualidade e Orientação Sexual,
enfatizando os temas Sociedade e política, a conceituação dos termos “orientação
sexual” e “sexo biológico”, a concepção de corpo e as dimensões psicológicas, sociais e
culturais. A orientação sexual aparece em destaque reconhecendo-se e conceituando-se
a heterossexualidade, a homossexualidade e a bissexualidade. O Livro de conteúdo
discute ainda a noção de “heteronormatividade compulsória”. Na contextualização,

.
194

introduz o histórico do movimento LGBT brasileiro110, os direitos humanos e as


alternativas para discutir tais abordagens na sala de aula, com os desafios e
possibilidades que a temática propõe (GDE, 2009).
No módulo que trata da temática as Relações Étnico-Raciais são discutidos os
conceitos de etnocentrismo, racismo e preconceito, usando exemplos da realidade
brasileira para debater sobre imposições como o “mito da democracia racial”, por tanto
tempo entendido como uma verdade absoluta. Analisa ainda, a questão do
reconhecimento da diversidade étnico racial, das pessoas indígenas e o trabalho do
movimento negro organizado brasileiro (GDE, 2009).
Para o curso preparam-se ambientes virtuais onde é prevista a realização de
atividades síncronas e assíncronas111, previamente organizadas pelos/as professores/as
pesquisadores/as, tomando como base o Livro de conteúdo. São disponibilizadas
informações pertinentes ao curso, literatura para aprofundamento e outros materiais
atendendo as especificidades de cada módulo. Os encontros presenciais, organizados
pelas tutoras, com discussão dos conteúdos propostos e realização de oficinas didáticas,
complementam a configuração pedagógica. O GDE envolve um grande trabalho de
equipe com o engajamento de todas/os, no entanto:

[...] não bastarão leis, se não houver a transformação de mentalidades e


práticas, daí o papel estruturante que adquirem as ações que promovam
a discussão desses temas, motivem a reflexão individual e coletiva e
contribuam para a superação e eliminação de qualquer tratamento
preconceituoso” (GDE, 2009, p. 9).

Em 2011 o CLAM publica um documento cujo objetivo foi registrar a


experiência adquirida com o GDE, sendo esta “uma ação inovadora do governo brasileiro
no âmbito da promoção de uma educação inclusiva, não sexista, não racista, não
homofóbica” (GDE, 2011, p. 9). Neste documento, são sistematizadas as experiências de

110No conjunto das conquistas político-sociais da atuação do Movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros) se enquadra a sensibilização da população de modo geral para as
formas de discriminação por orientação sexual, que têm levado estudantes a abandonarem a escola por
não suportarem o sofrimento causado pelas piadinhas e ameaças cotidianas dentro e fora dos muros
escolares. Esses mesmos movimentos têm apontado a urgência de inclusão no currículo escolar, da
diversidade de orientação sexual, como forma de superação de preconceitos e enfrentamento da
homofobia (GDE, 2009, p. 35).
111 Atividades síncronas permitem que professor/a, aluno/a e outros/as participantes interajam em
tempo real, como os chats e as videoconferências. As assíncronas dispensam a participação simultânea,
não são realizadas em tempo real. Dentre estas atividades, as mais utilizadas no GDE/UFMA são os fóruns
e as tarefas como o memorial e o projeto de intervenção.

.
195

elaboração e execução do GDE em todo o Brasil. Na primeira parte, apresentam-se as


ações do governo sobre o combate à discriminação e às desigualdades. Em seguida são
abordadas a inciativa do GDE e a prática de cooperação entre órgãos governamentais e a
terceira parte, centra-se no projeto político pedagógico do curso, refletindo sobre a
importância dos temas nas escolas. Na sequência retratam-se dois momentos do GDE,
sendo o primeiro o curso piloto, seguido das experiências nos anos posteriores, até
2010. Por fim, são abordados os desafios, os resultados e as repercussões de sua
implantação em diferentes regiões do Brasil.
O documento apresenta trechos de entrevistas com coordenadoras/es do curso,
tutores/as e alguns/mas cursistas, além de descrever e analisar excertos dos relatórios
finais entregues por algumas IFES. Afirma-se que o GDE é uma “importante ferramenta
na árdua tarefa de mudança de paradigmas ao propor transformações nas percepções
individuais daqueles e daquelas que dele participam” (GDE, 2011, p. 83). Na conclusão
do documento destaca que o GDE é entendido como uma política inovadora na história
da educação brasileira, especialmente por debater os temas de modo transversal e por
ser disseminado pela metodologia a distância e, “por ter avançado ainda mais ao ser
aplicado também na modalidade de especialização passando, inclusive a integrar a grade
curricular de algumas universidades” (op cit, p. 86).
Após transcorrer cinco anos de sua implantação, como reivindicação da equipe
que idealizou o GDE, o CLAN, em parceria com a SPM/PR realizou uma avaliação do
curso, nomeando-a de GDE+5. Seu principal objetivo foi avaliar os resultados do
processo de formação no GDE, observando seus reflexos nas escolas e abrangeu 10
universidades que o ofertou (UERJ, FURG, UEMA, UFMS, UFES, UFPA, UFPI, UnB e
UNESP). Durante a pesquisa foram ouvidas as opiniões de professores/as que cursaram
o GDE entre 2008 e 2011, das equipes de coordenação, das tutoras/es e de
representantes da SPM, SEPPIR e SECADI. Os resultados foram apresentados no
Seminário GDE+5 – Processos, Resultados, Impactos e Projeções que aconteceu nos
dias 3 e 4 de fevereiro de 2014, na UERJ. Os dados da pesquisa foram discutidos com
representantes das equipes do GDE das universidades selecionadas. Foram
apresentados o contexto, a metodologia, o trabalho de campo e os dados quantitativos
da avaliação do curso GDE e os/as participantes foram convidados/as a expor as suas
experiências na execução do GDE, apresentando sucessos, dilemas e desafios. Por fim

.
196

foram discutidos os resultados qualitativos do estudo de avaliação GDE+5 e feita a


síntese de recomendações para a ação.
Embora a UFMA não tenha sido integrante do grupo avaliado, durante o Exame
de Qualificação a professora Constantina Xavier Filha sugeriu que eu participasse do
Seminário GDE+5 e realizou os contatos necessários para solicitar minha inclusão no
evento. Com isso, pude participar do Seminário e fazer anotações pertinentes para esta
pesquisa, além de gravar as apresentações dos/as integrantes das Mesas de Discussões.
Dentre os depoimentos durante o Seminário, chamou-me a atenção o fato de uma das
representantes do CLAM afirmar: “quando iniciamos, não imaginávamos a amplitude do
GDE, sua diversificação, não temos um GDE, temos vários GDEs”. Pude então constatar
que tanto o cronograma, quanto a quantidade de encontros presenciais foram
diferenciadas em cada universidade. A própria infraestrutura de EAD e as atividades
propostas apresentaram-se também diversificadas em cada instituição.
A proposta pedagógica do curso se insere numa política de inclusão social que
assume um objetivo situado na fronteira da luta pelos direitos humanos e na exigência
de um expressivo investimento na subjetividade. Pretende dar contribuição para a
transformação dos valores sociais tradicionais que têm reproduzido assimetrias e
desigualdades de gênero, preconceitos e discriminações de raça/etnia e em relação às
questões da sexualidade.
Com esse entendimento são utilizadas metodologias distintas e variadas pelas
equipes pedagógicas e coordenação do GDE em momentos diversos, que perpassaram
desde as formações de tutoras acerca dos conteúdos, metodologias e avaliação da
aprendizagem, as oficinas realizadas durante os encontros presenciais nos Polos, as
atividades on line até à certificação.

4.2 A oferta do curso GDE na UFMA: do proclamado ao efetivado

O GDE no estado do Maranhão foi ofertado em atendimento ao Edital 01/2008


SECAD/MEC. Inicialmente foi implantado em Polos de Apoio Presencial do sistema UAB,
para profissionais da educação básica. O curso havia sido destinado a profissionais da
educação, preferencialmente da educação básica pública que afirmavam ter

.
197

disponibilidade de realizar as atividades on line (cerca de 10 horas semanais) e dos


encontros presenciais que aconteceriam nos Polos UAB.
O GDE ofertado pela UFMA, nos anos de 2009 e 2010, teve lugar nos Polos UAB
de Porto Franco e de Imperatriz, com um total de 240 (duzentos e quarenta) vagas,
sendo 120 (cento e vinte) para cada ano. Considerando que haveria certa desistência
logo no início do curso, nestes dois anos foram inscritos e matriculados 263 (duzentos e
sessenta e três candidatos/as). Desses, cerca de 20% sequer o começou, outros
evadiram-se nos primeiros módulos e 88 (oitenta e oito) cursistas o concluíram, ou seja,
cerca de 45% do total inicial. No ano de 2014, a UFMA tornou a ofertar o GDE nos
municípios São Luís, Caxias e Imperatriz. Neste ano, foram matriculados/as 182 (cento e
oitenta e dois) candidatos/as. Aproximadamente 15% não iniciaram o curso, cerca de
35% evadiram nos primeiros módulos e 95 (noventa e cinco) o concluiu, ou seja, mais de
60 % dos ingressantes finalizaram o GDE.
Nos anos de 2009 e 2010 a equipe pedagógica era constituída por uma
coordenadora do curso, uma coordenadora de tutoria, um/a professor/a pesquisador/a
para cada módulo, três componentes da equipe multidisciplinar (duas assistentes
pedagógicas, um assistente tecnológico); oito tutores/as on line sendo dois/duas por
município em cada oferta e quatro tutoras presenciais, sendo duas para cada Polo.
Já em 2014 houve alteração na composição da equipe e o GDE passou a ser
vinculado ao comitê gestor institucional da UFMA. A equipe pedagógica passou a ser
composta por uma coordenadora geral, uma coordenadora de tutoria, uma
coordenadora pedagógica, quatro professores/as pesquisadores/as, oito tutores/as on
line (um/a para cada 25 cursistas) e três tutores/as presenciais (um/a para cada
município). A seguir, a antiga e a atual configuração do curso GDE na UFMA:

.
198

Figura 7 - Antiga e nova configuração do curso GDE na UFMA

Fonte: Arquivo da coordenação do curso

O GDE concentra três importantes características: agrupa quase todas as


atividades por meio da Internet, com o sistema Moodle de educação à distância, figura-se
como processo de formação continuada para profissionais de educação da rede pública
de ensino básico voltando-se para as temáticas do gênero e das diversidades, é também
marcado por encontros presenciais e uma didática relacionada com tutoria on line,

.
199

fóruns, chats, diários, ou seja, por diferentes formas de interação. Para maior
entendimento da dinâmica do GDE na UFMA, apresento a seguir um organograma que
demonstra a organização das atividades on line e presenciais.

Figura 8- Desenvolvimento das atividades do curso GDE

Fonte: Arquivo da coordenação do curso GDE – UFMA

Entendo que o ensino a distância exige uma escolha cautelosa das ferramentas a
serem usadas e das estratégias pedagógicas a serem desenvolvidas para que o aprendiz
possa interagir com o conhecimento, adquirir autonomia e, sobretudo saber
problematizar e contextualizar o saber. Partindo desse princípio, a internet mostra-se
como um fértil ambiente de aprendizagem, fornecendo recursos suficientes para
transformar o ensino não presencial, tais como bate-papo, vídeos, animações,
simulações e fóruns de discussão on-line. Esses recursos ampliam as possibilidades de
aquisição e interação com o conhecimento. Entretanto, muitos de nossos/as cursistas
ainda não têm essa compreensão e acabam deixando as atividades do curso num
“segundo plano”, sem realizá-las nos prazos estipulados, enviando textos copiados da
Internet (plágio) dentre outros aspectos observados no decorrer do curso e enfatizados
nas mensagens enviadas pelas tutoras.

.
200

Numa Sala Virtual no AVA/MOODLE, são disponibilizados links que permitem


acesso aos módulos, seus textos, vídeos, atividades, dentre outras informações
referentes ao curso, das quais se destacam: o Cafezinho Virtual; o Mural de Avisos; as
Notas e o Ebook do Curso, tal como pode ser observado na página inicial reproduzida a
seguir.
Figura 9 - Sala Virtual do Curso GDE/UFMA

Fonte: AVA/NEaD/UFMA. Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso


em 09/05/2015

O Cafezinho Virtual refere-se a um espaço de interação. Nele todas as pessoas


envolvidas no Curso podem acrescentar um tópico, escrever mensagens, recados,
atualidades, felicitações além de trocas de ideias sobre os mais variados temas. O Mural
de Avisos constitui-se num espaço em que são publicados importantes avisos e notícias,
como datas dos encontros presenciais, atividades em desenvolvimento, eventos
científicos regionais, nacionais e internacionais que tratem das áreas temáticas do Curso,
por exemplo. No link Notas, coordenadoras, professoras/es e tutoras/es podem
visualizar as avaliações de cada um dos/as cursistas, com as observações feitas pela
tutoria on line nas atividades. O último link disponível na Página de Apresentação da
Sala Virtual, se refere ao E-book do Curso, um dos materiais didáticos elaborados pelo

.
201

CLAM e disponibilizado em CD, nos anos de 2009 e 2010. Na última oferta do Curso
(2014), o mesmo foi disponível apenas online, sendo que as dúvidas quanto à sua
utilização puderam ser esclarecidas no Seminário Inaugural do Curso e pelas tutorias a
distância e presencial nos municípios durante todo o processo.
Como já se afirmou, dentre as atividades propostas pelos/as professores/as
pesquisadores/as, têm-se os fóruns de discussão. O Fórum é, depois do e-mail, um
recurso bastante utilizado em ambientes virtuais de aprendizagem, simulando
conversas presenciais, nas quais cada comentário vai se aninhando aos demais,
possibilitando uma conversa coletiva, um elo de pensamento, em que cada fio da rede é
tecido por diversas mãos. O fórum de discussão on-line é considerado parte importante
do AVA, pois permite uma navegação hipertextual, agregando múltiplos recursos e
ferramentas de comunicação em tempo real ou de maneira assíncrona (BASTOS et al.,
2005) e uma proposta pedagógica que pode facilitar a organização e construção do
conhecimento pelo aprendiz.
Na maioria das vezes as questões elaboradas para discussão partem de
proposições dos/as professores/as. Discutem-se através do fórum os conteúdos
estudados, entretanto penso que deveria existir maior investimento na autonomia da
aprendizagem com os/as cursistas, fazendo propostas de tópicos relacionando-os com o
tema em estudo e trazendo contribuições de sites, links e acesso a blogs que pudessem
fortalecer a discussão do grupo. Isto por entender que este recurso deve se configurar
em estratégias promotoras de uma discussão mais ampla, com os/as participantes
estabelecendo diálogos e trocas de saberes.
Nos fóruns, o/a aprendiz pode comparar suas ideias com as dos/as colegas,
enriquecendo-as sem perder de vista o objetivo comum do módulo. O processo, inclusive
o pensamento crítico, o trabalho de construção coletiva e espontânea do conhecimento
gera a produção de novos conhecimentos, mediante um processo relacional. É possível
observar que a participação dos/as cursistas nos fóruns de discussão pode ser
estimulada desde a construção da proposta pelo/a professor/a pesquisador/a até a
dinâmica de interação da tutora, promovendo aspectos de desenvolvimento da
criticidade, conforme exemplo apresentado a seguir.

.
202

Quadro 6 - Fragmentos do Fórum sobre Gênero 1(Turma de Rachel Bonfim- Imperatriz)


GDE/AVA/UFMA
Fórum sobre Gênero 1 - por Rachel Bonfim - quinta, 11 junho 2009, 00:29

Caras (os) Cursistas.


Os estudos da Unidade I nos aproximaram do conceito de gênero como “uma construção
social e histórica dos sexos” e diz que a maneira como a menina e a mulher se comportam
na sociedade e desempenham seus papéis, nada tem de natural ou biológico, mas, são
construções que se dão a partir das relações sociais.
A partir do estudo da referida Unidade, comente as seguintes questões: A escola e a família
têm contribuído para reforçar a hierarquia sexual? Que tipos de situações são vistas e
vivenciadas no cotidiano escolar e familiar que colaboram para o aumento da
discriminação contra as mulheres e dos preconceitos contra aqueles que não correspondem
a um ideal de masculinidade dominante? Em sua opinião, o que se deve fazer para mudar
esta prática? É importante que você considere a vivência no cotidiano escolar, familiar e
social.
Re: Fórum sobre Gênero 1
Por “Elias” – quinta, 18 junho 2009, 23h: 42min.

Sim, desde que nascemos somos conduzidos a aceitar os costumes já estabelecidos pela escola e
família. Ao nascermos já somos colocados em um ambiente que irá cobrar atitudes e
comportamentos “condizentes” com o nosso sexo biológico. Na família quando nasce uma
menina o quarto é cor-de-rosa com várias bonecas, as atividades propostas são mais de cuidados
domésticos, as orientações para escolha de profissão são direcionadas às atividades de cuidados
pessoais; quando é um menino o quarto provavelmente é azul e com vários carrinhos, bolas de
futebol e jogos eletrônicos, as atividades dirigidas são mais no espaço público e o mesmo
receberá orientações para a escolha de profissões mais técnicas. A escola também dá sua
contribuição na construção dessas diferenças, reforçando o aprendido na família, orientando
profissionalmente até mesmo nas organizações de festas e eventos em que as meninas e os
meninos têm responsabilidades distintas, enquanto elas se responsabilizam pela organização
interna, decoração... Eles cuidam da parte financeira, da estrutura do evento... Quando há algum
destes que se identificam com as atividades do outro grupo é facilmente questionado e criticado
pelos companheiro/as. Para que se consiga mudar estas atitudes é preciso um trabalho de
conscientização, de crítica, de questionamentos desses padrões pré-estabelecidos e a adoção de
práticas sociais, em que se respeitem os diversos gêneros.

Fonte: Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em 18 mai. 2015

Neste caso, ao reler o comentário de Elias no fórum de discussão é possível


perceber sua concordância em relação ao preconceito de gênero desenvolvido, em
grande parte, nas relações familiares e na escola. De forma crítica ele chama a atenção
para a necessidade de ações que questionem esses “padrões pré-estabelecidos” e para a
urgência da “adoção de práticas sociais em que se respeitem os diversos gêneros”.
No que tange à Avaliação, além de haver diferentes atividades que são
utilizadas como instrumentos avaliativos, os/as cursistas devem realizar uma

.
203

autoavaliação anotada no diário de bordo disponível em cada módulo. Faz-se a seguinte


apresentação112:

No aspecto qualitativo de avaliação devemos fazer sempre uma auto-


avaliação, ponderando o nosso próprio julgamento sobre os
resultados da nossa aprendizagem. Isto nos ajudará a identificar o
que devemos melhorar e a empreender esforço próprio para superar
ou avançar na apropriação de novos conhecimentos. Nesse
sentido, você utilizará este espaço no “Diário”, para fazer o registro
reflexivo da sua atuação, seu empenho e compromisso com o curso,
assim como deve pontuar as dificuldades conceituais e técnicas,
demonstrando as estratégias utilizadas para superá-las neste módulo.
Não esqueça que as anotações no Diário serão primordiais para a
elaboração do Memorial ao final do Curso.

Para a escrita do memorial, cada cursista deve rever, refletir e avaliar sua
trajetória no curso identificando se as leituras feitas influenciaram seu modo de ver
determinados fatos, atitudes e comportamentos e se chegaram a perceber alterações em
si. Após essa reflexão o/a cursista deve descrever as formas pelas quais os conteúdos
estudados interferiram ou não, em sua prática pedagógica, destacando fatos
significativos ocorridos na família, na escola, no grupo de amigos/as e que tenham
relação com os temas estudados. Deve identificar o que gostou, o que não gostou, os
pontos positivos e negativos, críticas e sugestões para que melhore o curso.
Tomando como base alguns depoimentos dos memoriais dos/as cursistas,
constatamos que boa parte registrou que um dos maiores desafios consistia em refletir
os “preconceitos” trazidos de casa. Alguns/mas cursistas explicaram, sistematicamente,
em seus memoriais, a contribuição do curso, como por exemplo no seguinte trecho do
memorial de Telma:

O Curso contribuiu para a minha formação profissional, proporcionando


diversificadas experiências, por meio das palestras, oficinas e das
leituras e debates, contribuindo para que possamos enfrentar e vencer
muitos desafios encontrados na vivência escolar, sobretudo no que diz
respeito às questões relacionadas a gênero, diversidade sexual e
relações étnico-raciais (SILVA, 2010, p. 20).

O Trabalho final, deveria ser elaborado sob a forma de um projeto didático de


intervenção, definido como um conjunto articulado de ações e pelo envolvimento de
pessoas motivadas para o alcance de um objetivo comum, por meio de estratégias

Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/mod/journal/view.php?id=1201 . Acesso em 26 mai


112

2015.

.
204

previstas num tempo determinado (início, meio e fim), com recursos limitados e sob
constante avaliação. Para empreender um projeto de intervenção é fundamental estar
convicto da necessidade de mudança, motivado pela relevância do tema, pelas ações a
serem implementadas e pelo desafio de levar a termo a proposta que se pretende
empreender. É também essencial estar preparado/a para convencer os outros atores e
atrizes de que o problema existe, elucidando situações reais nas quais ele se manifesta e
constituindo assim uma situação-problema. Esta situação é o foco da intervenção, uma
delimitação capaz de modificar uma realidade que é complexa, numa situação
simplificada e com a qual conseguimos lidar.
Em conversa com as tutoras, num dos encontros de formação, soube-se que a
princípio o curso foi recebido com muita empolgação e que a maioria dos/as cursistas
mostrou-se interessada/o pelos temas abordados, sobretudo por se tratar de temas
novos para discussão no ambiente escolar. No relatório final do curso (SILVA, 2010), há
alguns depoimentos das tutoras, dentre estes o da tutora Neuzanil Filgueiras que
pondera: “a discussão varia conforme o entendimento prévio do cursista em sua
militância, problemática em sala de aula ou, até mesmo, por ter desconhecimento do
assunto” (p. 16). Para as demais tutoras, os temas que suscitaram maior esforço foram a
orientação sexual e sexualidade, pois além de não serem bem esclarecidos no ambiente
escolar são sempre permEaDos por uma gama de preconceitos que os inibe de
desenvolver uma discussão no AVA ou mesmo de tirar dúvidas. Prevalecem muitas
vezes, posturas tradicionalistas e impostas pela moral e costumes da família, da
sociedade ou da religião.
Dentre as dificuldades mencionadas nos relatórios individuais das tutoras, estão
o acesso à internet e problemas em relação ao AVA/UFMA que, por vezes, saía do ar,
sistema lento ou impossibilidade de conexão. Para os que iniciavam seu processo de
informação tecnológica, o começo do curso foi ainda mais complicado pela dificuldade
nos acessos, nas postagens e na participação nos fóruns. Alguns levavam a atividade
manuscrita nos encontros presenciais com a tutora nos Polos, para que a referida
atividade fosse digitada e postada pela própria tutora no AVA.
Mas tanto os/as cursistas concluintes quanto as tutoras ressaltaram os
inúmeros conhecimentos adquiridos com o GDE. Como exemplo, a tutora Raquel Bonfim
disse: “Acrescente-se também os conhecimentos que adquiri sobre sexualidade, pois os
que tinha era em nível de senso comum e os estudos promovidos pelos/as

.
205

professores/as pesquisadores/as foram fundamentais para melhorar minha


compreensão sobre o assunto” (SILVA, 2010, p. 16). A tutora Tatiane Sales assinalou o
caráter gratificante do trabalho, por se tratar de uma educação para a diversidade capaz
de contribuir para o desenvolvimento da equidade nos espaços escolares. Em suas
palavras, “os conteúdos selecionados foram excelentes e a interatividade com os
cursistas nos deu uma amplitude de saberes e situações, as mais diversificadas” (op cit,
p. 17).
A temática Sexualidade, por sua vez, evidenciou envolver grandes implicações
para os estudos no curso. No levantamento dos conhecimentos prévios, alguns
reconheceram que esta temática constitui-se em tabu, permEaDa por inúmeros
preconceitos. Pude ainda detectar afirmações que asseguram ter havido mudanças de
posicionamento em relação à questão, em alguns memoriais disponíveis no AVA/UFMA:

Quanto à minha prática docente é possível verificar algumas mudanças:


ao trabalhar com os conteúdos referentes ao corpo humano, sistema
reprodutivo masculino e feminino, também irei abordar questões
relativas a construção da identidade de gênero e sexual, ao invés de me
deter, como antes fazia aos aspectos puramente biológicos; tenho hoje
uma postura mais acolhedora em relação ao tratamento entre os/as
alunos e alunas, no sentido de promover a construção da identidade
feminina e não visibilizá-las dando um tratamento masculino a todos/as.
Pelo exposto, afirmo que este curso foi significativo para meu
crescimento pessoal e profissional, gostei das mediações que nos fazem
repensar e melhorar as produções e as intervenções, dos textos que com
uma linguagem fácil abordou todos os temas de modo pacífico, enfim
pude repensar e refletir sobre gênero e diversidade como nunca antes
houvera feito (Cursista Elias, 2009)113.

Existem diferentes situações de preconceito e discriminação que


homens e mulheres perpassam em função das suas identidades de
gêneros e pelas orientações sexuais que tiveram, sendo que cada um
tem os seus direitos e mesmo assim por falta de orientação ou pela
própria cultura que vivem, não entendem ou não aceitam a diversidade
de sexualidade existente atualmente como lésbicas, gays, bissexuais,
travestis, transexuais e transgêneros. Contudo é uma diversidade muito
grande que boa parte da sociedade ainda discrimina. Penso que o papel
da escola é muito importante e a mesma deve estar preparada para
orientar os alunos e também os pais dos mesmos, promovendo assim
momentos de palestras, de conscientização dos direitos que as pessoas
têm de escolher a sua forma de viver a vida (Cursista João, 2010)114.

113
Trecho memorial do GDE disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28-
memorial . Acesso em: 8 maio 2012.
114 Trecho memorial do GDE disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=21 . Acesso

em: 8 maio 2012.

.
206

Desde a realização das entrevistas com esses dois professores, foi possível
perceber certas inconsistências nessas afirmações devido a pensar que ao elaborarem
um texto alusivo a um dos instrumentos avaliativos do curso, registram aquilo que
traduz o que foi estudado pois eles supõem que assim contribuem para uma “boa nota” e
consequente aprovação. No entanto, comprova-se que muitas de suas atitudes
permanecem balizadas pelo que foi apreendido na socialização primária na família, na
escola e na igreja. Embora ambos tenham deixado claro, em seus relatos, a importância
do respeito ao outro, notou-se que suas concepções estão relacionadas, especialmente, à
ideologia da igreja evangélica que frequentam.
Das maiores dificuldades encontradas durante o curso, sem dúvida, a maior
refere-se à efetiva participação dos/as cursistas, tanto nas atividades on line, quanto nas
presenciais. Para evitar e diminuir a evasão, algumas providências foram tomadas e
constam no relatório (SILVA, 2010, p. 23):
 No momento em que foi identificada a ausência de cursistas no
ambiente, foram enviadas mensagens tanto pelas tutoras on line, quanto
pela coordenação do Curso, através do Ambiente Virtual de
Aprendizagem – AVA/Moodle e pelos seus e-mails.
 Foram realizados diversos contatos por telefone com mensagens de
otimismo, destaque sobre a importância do Curso e a necessidade de
darem continuidade ao mesmo, dentre outras questões.

Após esse contato, as tutoras presenciais fizeram as devidas observações em


seus relatórios individuais. Pode-se transcrever o seguinte relato disposto no Relatório
Final do Curso GDE (SILVA, 2010, p. 24):
Diante da situação em que se encontravam a maioria dos cursistas e das
cursistas do Curso GDE foi feito por nós tutoras do polo de Imperatriz os
seguintes encaminhamentos: contatar os cursistas que não acessam há
muito tempo, os que estavam com as tarefas atrasadas e até mesmo
aqueles que nunca acessaram. Feito o contato marcou-se uma reunião
extraordinária que aconteceu na manhã do sábado dia 06 de fevereiro
de 2010, das 9h às 11h. Foram contatadas 26 pessoas das quais apenas
15 apareceram (Tutora Presencial Raimunda Sousa).

Por envolver de temas ditos “polêmicos” e pela necessidade de domínio em


computação, o curso GDE não foi muito fácil, ainda mais para os/as cursistas pouco
familiarizados com a informática. Sublinhou-se no relatório final que “todo trabalho é
sempre gratificante, ainda mais por se tratar de uma educação voltada para a
diversidade, que irá contribuir para o desenvolvimento da equidade nos espaços
escolares” (SILVA, 2010, p. 25).

.
207

Um dos problemas vivenciados na UFMA e apontado no Seminário GDE+5,


referente à evasão do curso está relacionado ao fato dos/as cursistas realizarem mais de
um curso em EaD e não darem conta de finalizar a formação no GDE. Com o aumento da
oferta de cursos dentro de um rol de formações, “se inscrevem em vários cursos ao
mesmo tempo e depois não dão conta. Tem oferta em excesso!” 115.
Contudo, face à demanda e a preocupação com o aspecto quantitativo, e
principalmente, com o aspecto qualitativo dessa formação, evidenciou-se a necessidade
da reoferta do Curso GDE na UFMA. O projeto foi refeito e enviado para análise, parecer
e aprovação, tanto da SECADI como das instâncias decisórias da UFMA: Departamento
de Educação I (DE-I), Centro de Ciências Sociais (CCSo), Pró Reitoria de Extensão
(PROEX) e Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão (CONSEPE), tendo sido
aprovado em 2013 e suas atividades iniciadas no mês de abril e concluídas em
dezembro de 2014.

4.3 Vivências nas trajetórias dos/as colaboradores/as

Estes estudos me fizeram e me fazem refletir sobre as minhas práticas,


posturas e convicções, de modo a ponderar sobre as possíveis influências
que me levaram a construir este perfil que tenho hoje. Pude compreender
que a construção da identidade é uma prática social que ocorre nas
relações cotidianas que vivemos nas várias esferas da sociedade. Nesse
contexto, durante o curso me remeti por diversas vezes ao passado para
identificar os elementos que contribuíram com
a construção da minha identidade.
Professora “Jéssica” (2009)116

Inicio esta subseção com o trecho do memorial de uma das cursistas e


colaboradoras do estudo por entendê-lo significativo para as análises acerca do
encontros e desencontros no decorrer e após a realização do curso, desde as motivações
para seu ingresso, passando pelos estudos desenvolvidos durante o processo, incluindo
a operacionalização, ou não, do projeto de intervenção construído ao final do curso até
as reflexões suscitadas sobre seus possíveis impactos nas práticas e convicções de
cursistas egressos/as.

115
Trecho de depoimento verbal de uma das coordenadoras do GDE participante do Seminário GDE+5 em
jan. de 2010.
116 Trecho memorial do GDE disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=21 . Acesso

em: 8 maio 2015.

.
208

Apresento aqui alguns dos motivos que influenciaram na realização do curso.


Jéssica, por exemplo, lembra que tinha acabado de concluir o Projeto Saúde e Prevenção
na Escola (SPE). Na época era supervisora na rede de ensino municipal e quando leu o
edital do GDE, percebeu que seria uma espécie de continuidade dos estudos anteriores,
com o acréscimo da questão racial, uma temática ainda não estudada e percebida como
necessária. Fátima soube da seleção na página Web da UFMA. À época, ela já estava
fazendo pós-graduação e era integrante do GEMGe. Acreditava que, ao realizar o curso,
poderia “alargar seus horizontes teoricamente”. João também afirma que, na época da
divulgação do GDE em Porto Franco, já tinha concluído a Pedagogia e estava trabalhando
no Polo UAB daquele município como tutor. Como havia sido um dos integrantes da
comissão organizadora de um dos Seminários de Gênero organizado pelo orientador de
seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), ao saber do GDE, logo se interessou.
Vera relembra que o curso foi divulgado em Porto Franco por Lucélia Neves e
elas trabalhavam na mesma escola. Conta que logo se interessou porque era professora
da disciplina Ética e cidadania, que continha nos conteúdos alguns temas a serem
examinados no GDE. Na época Telma também era professora no Ensino Fundamental e
ministrava a mesma disciplina e declara que quase não tinha material para fazer as
atividades.
Jónata assevera que seu ingresso no curso se deu em função da experiência que
teve numa escola de educação infantil durante quatro anos e da discriminação sofrida na
época. Ele era o único homem, nesse nível de ensino, naquele município. No primeiro
ano na escola, nenhuma menina estudou em sua turma. Isso porque as mães retiraram
suas filhas da sala e solicitaram que fossem para a outra turma onde tivesse uma
professora e não um professor. Ele afirma que a diretora da escola o apoiou bastante,
devido ao trabalho que desenvolveu naquele primeiro ano e diz:

“No ano seguinte minha sala ficou quase cheia de meninos e meninas
porque as mães viram o desenvolvimento de meus alunos do ano anterior
e ficaram ‘espantadas’. Elas diziam: “como ele conseguiu fazer isso?”. Mas,
durante os quatro anos que trabalhei nessa escola os pais me viam de
maneira preconceituosa. Perguntavam: “Por que será que ele tá dando
aula na pré-escola? Será que ele é homossexual?”. Até as colegas
também me rejeitavam, porque eu não tinha os tratos que elas tinham na
sala de aula. Elas diziam que era o jeito de se trabalhar na Educação
Infantil: cortar papel, desenhar, fazer coisas pequeninas. Mas, eu me vi

.
209

obrigado a aprender e aprendi. Agora, eu quero ver elas falarem que eu


não tenho jeito” (Informação verbal – Grifos meus)117.

Por causa da discriminação sofrida, Jónata queria entender mais sobre as


questões de gênero, por isso ao saber do curso, logo quis se inscrever. Dois meses após o
ingresso no GDE, foi remanejado para o ensino médio.
Enquanto Fátima, Jéssica, João, Vera, Telma e Jónata, por diferentes motivos,
demonstram interesse pelas temáticas do curso, Elias não comenta o que motivou o seu
ingresso. Eles/as referiram-se ainda sobre às temáticas com as quais mais se
identificaram e as que suscitaram desafios ou dificuldades no processo. Seguem-se a
observações sobre as mesmas.

4.3.1 Identificações e achados nos percursos

Sobre o que aprenderam com o GDE, Jónata diz que se identificou tanto com as
questões que tratavam das relações sociais de gênero, quanto com as que tratavam da
sexualidade. Após o ingresso no curso, escreveu um artigo sobre a desmistificação do
homem na pré-escola e o apresentou em um colóquio sobre Gênero em Imperatriz.
Chegou a conceder uma entrevista para o jornal da cidade sobre seu estudo.
Quanto às questões voltadas à sexualidade, Jónata enfatiza que se identificou
por “um bem pessoal” pois, após os estudos, conseguiu perceber sua “bissexualidade”,
enfatizando: “sabia que tinha algo diferente em mim, mas não sabia o nome que iria dar
para isso”. Acrescenta que o aprofundamento do estudo sobre orientação sexual clareou
suas ideias, dando-lhe forças para entender os conceitos, os sentimentos e a diversidade
presente na sociedade, especialmente a sexual.
Considera duas ocasiões significativas: a primeira foi a “oficina” realizada
durante um dos encontros presenciais, com a professora que tratou sobre gênero e
sexualidade. Realizou algumas atividades bem expressivas e que podiam ser replicadas
com os alunos e alunas nas escolas. A outra situação aconteceu no auditório, no
encerramento do curso, momento em que os/as cursistas puderam expressar suas
opiniões, apresentar suas experiências e fazer outras discussões. No momento das
atividades on line, no Ambiente Virtual, havia poucos comentários e debates, segundo
ele. Parecia que os/as cursistas postavam alguma coisa só para dizer que fizeram a

117
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

.
210

tarefa, pois a maioria não comentava o que os/as colegas escreviam nos fóruns, por
exemplo.
No conjunto das temáticas estudadas, Jéssica e Fátima afirmam que mais se
identificaram com “Gênero”, por acrescentar termos teóricos ao que compreendiam
apenas pelo senso comum, ressalta Fátima. Avalia que com o curso pode se apropriar e
esclarecer algumas dúvidas conceituais, além de repensar a própria prática em sala de
aula. Conta que ficava imaginando como iria trabalhar, era como se estivesse “pisando
em ovos, porque uma coisa é ter na escola uma equipe que te ajuda, outra coisa é trabalhar
sozinha... tem determinadas categorias que são marcadas pelo preconceito. E gênero é
uma delas”. Além disso afirma que as convicções que possui hoje vieram tanto do GDE
quanto do doutorado que realizava na Espanha. Comenta que aprendeu a respeitar as
pessoas como são e que naquele país, as questões da sexualidade eram muito bem
trabalhadas e havia...
“[...] um respeito muito grande... Pelo menos, eu percebia isso. Lá é comum
se ver homens ou mulheres se beijando nas ruas. E ninguém cochicha... As
pessoas podem até olhar, mas... É como se nada lhes chamasse a atenção.
Então, desde o curso de doutorado, já falávamos muito sobre sexualidade...
Mas, a princípio isso veio de encontro as minhas convicções religiosas...
Por que... Até que houve um momento, foi em um final de semana que eu
fiquei só na Universidade, então naquele momento eu tive uma conversa
comigo mesma. Foi então, que pensei: uma coisa eram as minhas
convicções religiosas e outra coisa era a minha vida acadêmica. Eu tinha
por obrigação moral definir, separar as duas coisas... E foi isso que eu fiz.
Bom, eu já tinha uma relação respeitosa tanto com gays, lésbicas... Eu
sempre tive uma relação boa, até porque eu tenho muitos amigos e amigas
gays e no curso eu aprendi a respeitar mais ainda e quando falou de
sexualidade no GDE isso aí ficou bem resolvido na minha cabeça”
(Informação verbal – grifos meus)118.

Fátima assinala o conflito em relação às convicções religiosas que possuía e o


que estudava na academia. Compreendo que as instituições religiosas instauram e
legitimam uma única forma de viver a sexualidade (a heterossexualidade),
consequentemente deve haver apenas um modelo de família: a nuclear (constituída por
pai, mãe e filhos/as). Tanto no cristianismo como no mundo por ele influenciado, foi
instaurado uma moral na qual o sexo é visto apenas como função procriadora, assim,
toda relação que não se enquadra nesta função seria contra as leis divinas. As relações
homossexuais não obedecem à ordem de Deus e não se enquadram no modelo

118 Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.

.
211

heteronormativo esperado pela igreja e pela sociedade, dessa forma são discriminadas.
Quando Fátima estudou tais questões no GDE, pode clarear suas dúvidas.
Para Jéssica, das temáticas estudadas no curso, a que mais teve ressonância foi a
do gênero e do empoderamento da mulher:

“Porque é um debate... assim, social, que se faz da questão das diferenças


ainda presentes entre homens e mulheres. Gostei muito de estudar acerca
dessa diferença, dessa hierarquia, do preconceito ainda muito forte sobre
a figura da mulher, em alguns casos [...] Olha, uma das coisas que o curso
me chamou a atenção: aqui em Imperatriz, uma das poucas cidades
maranhense que tem a Secretaria de Mulher e o que a gente ouve muitas
vezes é alguém que chega e diz: “Para que serve essa Secretaria? Ela faz o
quê?” Então, quando a gente tá na frente das escolas e percebe que a
maioria dos representantes dos conselhos, são homens! Os líderes de
turma? São homens... nós estamos atribuímos o papel de liderança de
poder aos homens. Então, eu digo: muitas de nós mulheres fazemos isso e
não nos damos conta de que estamos ajudando a reproduzir uma
desigualdade, da qual nós mesmas somos vítimas. Acho que o curso serviu
para que pudéssemos perceber essas nuances, em pequenas coisas que não
estão claras, mas que estão implícitas nas atitudes. O que a leitura do
material e a discussão que foi feita, me ajuda hoje a perceber melhor. Hoje
eu consigo perceber, em todo lugar que eu estou... por exemplo, quando
vão formar uma Mesa de autoridade, não tem jeito... eu conto quantos
homens têm e quantas mulheres (risos). E na educação? Na educação, que
é predominantemente uma área feminina... nas Mesas dos Encontros têm
mais homens... É para fazermos essa leitura mesmo... Para o professor é
bom que ele se perceba, porque a gente reproduz essas ações sem se dar
conta” (Informação verbal)119.

Jéssica fala sobre a importância de “repensar o outro com uma forma mais
respeitosa, mais consciente, menos preconceituosa”. Na Secretaria em que trabalha, pode
desenvolver projetos relacionados aos temas estudados e destaca um Programa de
Orientação Profissional para Educação de Jovens e Adultos (PROEP-EJA):
“[...] nesse trabalho, colocamos como temática para as palestras a questão
da violência contra mulheres. Foi super rico, pois pudemos descobrir e
perceber o que a mulher, jovem e adulta sofreram e sofrem com a
violência. Muitas delas não estudavam porque os maridos não deixavam...
Então, esse tipo de coisa, conseguimos detectar e conseguimos fazer mais
na educação de jovens e adultos. Mesmo com o trabalho, buscando
trabalhar com aquelas senhoras, com aquelas jovens e resgatando sua
história trabalhando a Lei Maria Da Penha e isso junto com homens e
mulheres. Isso porque eu acho interessante que os homens participem
também, pois eles precisam desconstruir algumas posturas... Hoje, nós
trabalhamos com as mulheres, com a Educação de Jovens e Adultos, um
outro segmento que infelizmente a gente, muitas vezes, não se dá conta,

119
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.

.
212

mas muitas mulheres ainda são proibidas de estudar” (Informação


verbal)120.

Refere-se sobre à existência da Secretaria de Mulheres em seu município,


lembrando que muitos ainda não sabem para que ela serve. Faz, também, observação
sobre a prevalência dos homens nas Mesas de autoridades nos eventos, inclusive nos
que tratam da educação, uma área majoritariamente feminina. Fala sobre a questão da
violência contra as mulheres, descrita especialmente nas escolas da EJA. Percebe-se que
Jéssica ensaia uma espécie de problematização das relações de gênero. Exemplifica uma
das atividades desenvolvidas que objetivava a análise acerca da violência contra a
mulher, por exemplo.
Vera e Telma afirmam que o curso GDE foi algo positivo, por ter ajudado a
compreenderem melhor a diversidade. Telma ressalta que “de modo geral o curso foi
muito bom, porque todo mundo estava lá mesmo sem barreiras a gente conversava sobre
tudo...”. Sobre a diversidade sexual, objeto de exame no curso e ao trabalho que deveria
ser desenvolvido na escola no combate à discriminação em relação ao homossexual,
bissexual, Telma reconhece houve mudanças em seus valores, pois antes tinha certa
resistência em aceitar a homossexualidade, por exemplo. Para confirmar seu relato,
recorri aos comentários postados nos fóruns de discussão do Curso, dos quais destaca-
se o disposto no quadro a seguir:

Quadro 7: Fragmentos do Fórum sobre Sexualidade 1 (Turma de Tatiane Sales - Porto


Franco) GDE/AVA/UFMA
Fórum 1 Sexualidade
Por Tatiane Sales - domingo, 27 julho 2009, 11:03
Leia o enunciado e registre sua participação no fórum. Não esqueça de estabelecer um
diálogo com seus colegas de sala.
Uma causa da resistência à adoção de propostas que abordem a sexualidade segundo
princípios do respeito à diversidade e da equidade é o conflito entre os valores políticos e
éticos inerentes a essas propostas educacionais e muito dos valores religiosos e morais,
existentes na mentalidade da maioria das famílias e das educadoras e educadores.
Por exemplo: a maioria das doutrinas cristãs considera correta apenas a
heterossexualidade. Mesmo que as ciências já não patologizem pessoas homossexuais,
lésbicas, bissexuais e transgêneros, muitas educadoras e educadores julgam negativamente
e exclui tais pessoas, desrespeitando seus direitos civis na escola, em razão de noções
religiosas, como a de pecado.
Diante disto, você já pensou se seus valores e convicções estão em conflitos com os valores
das propostas de uma educação inclusiva? E se estão, ou não, como as orientações e
identidades sexuais não hegemônicas (gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, travestis,
etc) são tratadas na sua escola? Editar | Responder

120
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.

.
213

Fórum 1 Sexualidade
por Telma O.C. - Monday, 10 August 2009, 19:50
Realmente nós ainda não estamos "preparados" para tratar desta temática com
naturalidade e neutralidade. Como foi citado no enunciado, as doutrinas cristãs condenam a
postura não heteressexual. E a maioria de nós, adeptos do cristianismo temos resistência em
aceitar o homossexualismo. Mas nós como educadores, formadores de opinião temos que
vencer essas barreiras para aceitar os outros como eles são. Temos que também conscientizar
os nossos alunos, para que sejam cidadãos livres de preconceitos. No meu âmbito profissional,
ou seja, no ambiente escolar, quando me deparo com essa temática, procuro tratar com a
maior naturalidade possível. Pois tudo que é tabu, fica mais difícil de se compreender e
consequentemente de se aceitar.
Fonte: Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em: 9
fev. 2015.

Ao desenvolver o projeto do final do curso, Telma realizou algumas dinâmicas


em meio às quais havia uma em que os papéis socialmente construídos para meninos e
meninas, homens e mulheres eram trocados. Descreveu a atividade como se segue:
“A menina fazia o papel do pai... o menino da mãe...eu lembro que era
nas quintas, sextas e sétimas séries que eu trabalhava. Então foi mais
lúdico devido à idade deles, e era isso, os meninos passavam o dia mesmo
brincando... alguns diziam assim: ‘Professora eu nem posso falar para
minha mãe que eu botei lacinho na minha cabeça’. E eu falei para eles
que não tem nada, pois estamos aqui na aula que... não tem nada você
usar um lacinho não... ‘não professora eu não posso falar para minha
mãe!’. Eu sentia o preconceito.... mas esse projeto foi lúdico mesmo, a
gente dramatizava e conversava, a gente mostrava documentários para
eles, entrevistas que eu fiz com os avós deles... Lembro que nos primeiros
momentos, eles não queriam... acho que devido ao medo... eles não
queriam nem fotografar... quando a gente desenvolve projetos são
tiradas fotos, mas, nesse eles, .principalmente os meninos não queriam...
as meninas não se incomodavam de vestir roupas de menino, executar as
tarefas do pai...mas os meninos não queriam ser... mas depois eles
gostaram....(risos) aceitaram participar do projeto... mas não aceitaram
ser fotografados como menina de jeito nenhum...” (Informação
verbal)121.

Telma pondera que pessoalmente conseguiu “quebrar muitos preconceitos que


tinha”, passando a entender melhor a pessoa, as sexualidades, passou a perceber que
não é o sexo que vai determinar a vontade do sujeito. Profissionalmente, no que diz
respeito às suas práticas escolares, Telma afirma que o GDE deu mais embasamento
teórico e metodológico.
Pode-se constatar que houve repercussões de diversas ordens a partir do GDE,
conforme apontado no documento elaborado pelo CLAM/UERJ, cujo objetivo era
analisar as “Trajetórias e Repercussões de uma Política Pública Inovadora” no país.

121
Trecho extraído da entrevista concedida por Telma em jan. de 2012.

.
214

Durante o processo de coleta de dados desta pesquisa, algumas das coordenadoras do


GDE foram entrevistadas e eu estava entre elas. No documento foi citado um dos trechos
de minhas considerações, dizendo ser “[...] bastante elucidativo no que refere às
mudanças para a vida pessoal e profissional” (GDE, 2011, p. 76):

O Curso Gênero e Diversidade na Escola possibilitou-me aprender a


‘respeitar as diferenças’. Podemos perceber que os alunos são diferentes
e carregam consigo uma bagagem cultural imensa que deve ser
valorizada e aproveitada no contexto escolar [...]. Aprendemos durante
todo o curso que para trabalhar estas questões é necessário abandonar
certos paradigmas [...], não podemos permitir que pessoas sejam
ameaçadas por causa de sua cor, da sua orientação sexual, pelo seu
modo de agir e pensar. Com esse curso hoje tenho uma visão mais
aberta a respeito do gênero, sexualidade e diversidade. É necessária
uma formação continuada para desconstruirmos uma cultura de uma
vida toda. Sei que não vai ser tão fácil e nem tão rápido os resultados,
mas se nós educadores estivermos preparados e começarmos essa
mudança dentro de nós e no nosso meio, aí sim é possível alcançar os
objetivos esperados.
Contudo, também sabemos que esta mudança não será fácil e nem tão rápida,
especialmente pelas dificuldades que se tem que enfrentar. Os relatos de Fátima e
Jónata, por exemplo, exemplificam o que está sendo dito ao referirem-se ao momento
em que tentavam desenvolver o projeto de intervenção proposto e elaborado ao final do
Curso GDE, por exemplo. Enquanto Telma obteve resultados satisfatórios na
operacionalização do projeto, Jónata e Fátima não conseguiram desenvolve-lo devido às
barreiras da própria organização das suas escolas, como por exemplo, a não colaboração
de outros/as professores/as e às exigências em se cumprir apenas o que está proposto
no currículo oficial das escolas, conforme apontado por Fátima.

4.3.2 (Des) encontros e obstáculos nos caminhos

No módulo “Sexualidade e Orientação Sexual” enfrentou-se maiores obstáculos e


questionamentos, sendo que alguns dos professores e professoras cursistas
demonstraram-se insatisfeitos/as com a perspectiva adotada, considerada por eles/as
como sendo muito “liberal” no tratamento da questão. Este módulo, segundo o Livro de
conteúdo, congrega a ideia de que a sexualidade é um fenômeno multifacetado e que
envolve diversas dimensões, das quais se destacam as sociais, as religiosas, as biológicas,
as políticas e as culturais. Promove a reflexão sobre a relação entre sexualidade e
sociedade, discutindo certas convenções relacionadas ao corpo, à identidade de gênero e

.
215

à orientação sexual, discutindo a diversidade de valores, comportamentos e identidades


de acordo com as diferentes culturas, o contexto histórico e as experiências pessoais.
Dentre os quais, foram discutidos...

[...] como a cultura ocidental moderna, por intermédio do esforço em


estabelecer categorias de identidade pessoal ligadas à orientação sexual,
levou à imposição da heterossexualidade como orientação sexual
“natural”, “normal”, “saudável”, desde que praticada entre adultos/as,
legitimada pelo casamento e associada à reprodução. E, portanto, tal
conteúdo abordou as normas sociais, neste caso, a
“heteronormatividade”, como roteiros ou mapas que orientam as
condutas e as percepções de si, sem serem, portanto, totalmente
coerentes e sem contradições. Pois, no seio de uma organização social, é
possível existir um padrão sexual dominante e muitas experiências que
fujam à norma [...]. Como frutos dessa hierarquia, surgem atitudes –
como é o caso da homofobia – discriminatórias contra a sexualidade
considerada desviante (GDE, 2011, p. 41).

Ao iniciar cada módulo era realizado um levantamento dos conhecimentos


prévios. Alguns/mas demonstravam ter fundamentos religiosos que colocavam a
questão da heterossexualidade como única realidade plenamente aceitável. Qualquer
outra maneira de expressão da sexualidade seria considerada fora de um “padrão”
divino. Foi possível perceber certos entraves e choques de ideias acerca da diversidade
sexual estudada. Tais constatações foram percebidas nos relatos de Jónata, Fátima,
Jéssica e João.
Para Jónata, ao longo do curso, a maior dificuldade encontrada foi na aceitação
dos conceitos. Diz que se via em conflito para aceitar os conhecimentos teóricos porque:

“[...] existia algo mais forte em mim. O processo de inculcação religiosa


me impossibilitava de aceitar o que estava estudando... sobre a
sexualidade, a homossexualidade, a bissexualidade, a transsexualidade....
Sobre as relações de gênero nem tanto, mas as questões da sexualidade
eram bastante difíceis de aceitar. No entanto, quanto mais eu estudava,
mas eu percebia que o conhecimento religioso era falho, que não mais
cabia eu aceitar como o único conhecimento, pronto e acabado. Eu passei
a ver que era uma imposição de pessoas para ter o mundo do jeito que
queriam” (Informação verbal – grifos meus)122.

João também relaciona alguns estudos do curso GDE com a religiosidade e


quando comenta sobre a proposta de uma educação inclusiva no que diz respeito à
diversidade sexual, enfatiza:

122
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.

.
216

“Eu sou evangélico desde os dezoito, dezenove anos... E a igreja evangélica


bate de frente com essas questões, mas meu pensamento hoje é o seguinte:
Apesar de eu ter alguns estudos embasados na Bíblia, através desse curso,
da pedagogia e tudo mais... não é que eu tenha me distanciado de alguns
detalhes da minha vida espiritual... Mas, eu aprendi a vivenciar melhor
essas questões e a respeitar o outro. Hoje eu falo para as pessoas, sem
ter medo de me posicionar e sem ter vergonha, sobre a minha
convicção... para mim, cada pessoa é livre para escolher o que quer
ser na parte da sexualidade ...” (Informação verbal – grifos meus)123.

Mas assinala que sobre questões de gênero e da diversidade sexual houve


mudanças de atitudes depois do curso GDE, afirmando que tinha um pensamento “muito
negativo”. João também assinala:

“Assim, não de forma exagerada, pois as questões religiosas... devido à


religião, aos ensinos bíblicos, alguns teólogos, alguns especialistas na área
cristã, no caso a escolha, a opção sexual... uma coisa bíblica... eu acho
que até entrar na faculdade...eu tinha assim... Eu não tinha...eu ficava na
minha, eu nunca tive preconceito com ninguém... E até tenho amigos,
amigas...meus amigos de infância... que eu sei a orientação sexual deles... e
de meninas também entendeu... mas nunca tive preconceito... só que
devido algumas pessoas tentarem camuflar... ensinar de uma forma e
querem ensinar e a gente fica meio balancEaDo... não aceitar uma coisa é
um detalhe... e não aceitar e ser preconceituoso é outro detalhe...” (grifos
meus).

Apesar de João tentar amenizar o preconceito que possui em relação à


homossexualidade, silencia em alguns momentos, balbucia em outros e deixa
transparecer algumas formas de discriminar a pessoa que não demonstra uma
orientação sexual conforme os preceitos religiosos e heteronormativos.
Ainda sobre a relação entre questões religiosas e alguns conteúdos estudados,
Jéssica comenta que ao iniciar as discussões sobre a questão da sexualidade e da
homossexualidade sofreu muitas críticas. Entende que as mesmas foram feitas pelo fato
dela ser evangélica, ao destacar em sua narrativa:

“Quando iniciou as discussões sobre a questão que tratava da


homossexualidade, muitas pessoas... criticaram os evangélicos, como se
eles fossem as pessoas preconceituosas. Mas, na verdade, nós moramos
num país que ama a liberdade também de credo... Eu não sou obrigada a
concordar com o que você faz e achar que o que você faz é para mim... Eu
também não concordo e não quero fazer o que você faz, não concordo com
sua prática e não sou obrigada a me desentender contigo e ser tua
inimiga. Eu acho que é preciso colocar isso de forma bem tranquila. Se
você não defende uma fé? Tranquilo! Você é livre para não defender essa
fé! Se você defende, você é livre para que defenda sua fé! Então a gente
precisa também compreender que há o direito de liberdade da fé. Durante

123
Trecho extraído da entrevista concedida por João em jan. de 2012.

.
217

o curso, num dos fóruns houve comentários... inclusive de pessoas... que


criticavam... e eu digo eles criticam o evangelho, mas não podem criticar o
cristianismo... Esses comentários se deram não só no fórum, mas também
fora dele, por pessoas que realizam o curso, na cidade. Então... alguém
chega mesmo a dizer que a outra pessoa é preconceituosa e tal.... Nosso
profeta usa uma fé que você não é obrigada a professar” (Informação
verbal – grifos meus)124.

No intuito de analisar as supostas críticas vivenciadas por Jéssica, recorri e


selecionei alguns trechos postados no Fórum de discussão no AVA. Segue abaixo o
enunciado da questão, elaborado pela professora pesquisadora do módulo, e alguns
comentários de cursistas que mencionam questões religiosas:

Quadro 8 - Fragmentos do Fórum sobre Sexualidade 1 (Turma de Maria das Dores –


Imperatriz) GDE/AVA/UFMA
Fórum 1 – Sexualidade
por Maria das Dores - sábado, 18 julho 2009, 08:34
Leia o enunciado e registre sua participação no fórum.
Não esqueça de estabelecer um diálogo com seus colegas de sala.
Uma causa da resistência à adoção de propostas que abordem a sexualidade segundo princípios do
respeito à diversidade e da equidade é o conflito entre os valores políticos e éticos inerentes a
essas propostas educacionais e muito dos valores religiosos e morais, existentes na mentalidade da
maioria das famílias e das educadoras e educadores.
Diante disto, você já pensou se seus valores e convicções estão em conflitos com os valores das
propostas de uma educação inclusiva? E se estão, ou não, como as orientações e identidades
sexuais não hegemônicas (gays, lésbicas, bissexuais, transgêneros, travestis etc) são tratadas na
sua escola?
Re: Fórum 1 sobre Sexualidade
por Carla da Silva125 - segunda, 20 julho 2009, 20:41
No encontro presencial que tivemos, uma colega que não lembro o nome, comentou que a
questão religiosa atrapalha um pouco para que as mudanças ocorram, e fiquei pensando
que diante de algumas situações eu fiquei insegura, principalmente, por causa de ideais
cristãos, mas tenho procurado me policiar, rever meus conceitos, para não excluir ou
ofender a ninguém. Creio que nas escolas, as identidades sexuais não hegemônicas, ainda
são tratadas com preconceitos e discriminações.

Fórum 1 – Sexualidade
por Maria das Dores - terça, 21 julho 2009, 22:26

Prezada Carla, embora tenhamos questões nortEaDoras para este Fórum, acredito que você,
como os/as demais colegas tenham várias questões que foram e serão levantadas ao longo
das discussões. Interessantes os relatos que vocês trouxeram para o debate. Em sua
resposta, você se inclui e questiona até mesmo seus valores; isso me faz lembrar o que
Paulo Freire dizia dos seres inconclusos que somos. Diante disso, destaco esta parte do
primeiro texto, do módulo 1: "[..] podemos concluir que não basta ser tolerante; a meta deve
ser a do respeito aos valores culturais e aos indivíduos de diferentes grupos, do
reconhecimento desses valores e de uma convivência harmoniosa." Sendo assim, em nossa
caminhada de construção precisamos exercitar o respeito.
Um abraço.

124
Trecho extraído da entrevista concedida por Jéssica em nov. de 2012.
125
Como forma de preservar a identidade da cursista, optei por utilizar um pseudônimo, sendo este um nome de
grande recorrência na região.

.
218

Re: Fórum 1 sobre Sexualidade


por Jéssica da Silva - domingo, 2 agosto 2009, 14:41
A compreensão do “outro diferente” sempre foi uma das dificuldades que a humanidade
sentiu. A superação da mesma não se dará de modo instantâneo ou por decretos, é na luta,
nos debates, nos movimentos sociais e resistências que esta compreensão tem sido
construída ao longo da história da humanidade. Contudo, destaco um trecho aqui já citado
no fórum pela professora Maria das Dores “ a meta deve ser a do respeito aos valores
culturais e aos indivíduos de diferentes grupos, do reconhecimento desses valores e de
uma convivência harmoniosa." Sendo assim, em nossa caminhada de construção
precisamos exercitar o respeito. ”
O questionamento é intrigante, porém não vejo na doutrina cristã nenhum ensinamento
que leve às pessoas a negarem os direitos humanos de ninguém. O maior ensinamento
cristão é o de amar a Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo.
Quanto aos ensinamentos cristãos todos e todos somos livres para aceitá-los e
pertencermos ou não às igrejas cristãs, afinal somos um país democrático e temos
liberdade de culto. O respeito, a harmonia entre homossexuais, lésbicas, bissexuais,
transgêneros e heterossexuais é possível acontecer sem preconceitos, discriminação e/ou
agressões de uns para com os outros, independente da religião e fé que cada um professe.
Re: Fórum 1 sobre Sexualidade
por Maria das Dores - domingo, 2 agosto 2009, 23:57

Olá!
Jéssica, a escola é um espaço de construção de valores, onde devemos nos expressar e
desenhar nosso projeto de vida. Diante disso, não podemos omitir as questões de
discriminação que perpassam este espaço, algumas delas relacionadas às diferenças de
gênero. Sobre isso, a identidade de gênero, segundo Glossário do Módulo 3, texto 3, "diz
respeito à percepção subjetiva de ser masculino ou feminino, conforme os atributos, os
comportamentos e os papéis convencionalmente estabelecidos para homens e mulheres.
Portanto, é preciso discutir na escola, se os/as alunos têm liberdade para expressar sua
identidade de gênero, no caso citado por você, a diretora agiu de forma positiva orientando
o pai sobre o respeito para com seu filho homossexual. No entanto, quantas escolas agem
assim e permitem que os/as alunos continuem inseridos (as) na escola?
Um abraço.

Re: Fórum 1 sobre Sexualidade


por Elisa da Silva126 - terça, 11 agosto 2009, 10:42
Oi!
Jéssica gostaria que todos (as) tivessem a sua opinião quando se trata de uma doutrina
cristã, inclusive aqueles dos movimentos sociais evangélicos que esquecem o maior
ensinamento cristão, como vc já citou. Estes movimentos ainda são os que ainda não lutam
pelo coletivo e sim pelo dogma.
Eh! Mas o que seria de nós se não fosse as diversidades?
Abraço!
Fonte: Disponível em: http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em:
28 mai. 2015.

A cursista Carla da Silva menciona que durante um dos Encontros Presenciais


no Polo, foi feito um comentário destacando que “a questão religiosa atrapalha um
pouco para que as mudanças ocorram”. Em seguida, tanto na resposta da tutora, como
no trecho descrito por Jéssica, enfatiza-se, em especial, a questão do respeito ao outro.
Jéssica reafirma que na doutrina cristã não há “nenhum ensinamento que leve às

126
Como forma de preservar a identidade da cursista, optei por utilizar um pseudônimo, sendo
este um nome de grande prevalência na região.

.
219

pessoas a negarem os direitos humanos de ninguém”. E no último trecho, a cursista Elisa


comenta a mensagem de Jéssica destacando que “gostaria que todos (as) tivessem a sua
opinião quando se trata de uma doutrina cristã...”. Esta cursista ressalta que há
“movimentos sociais evangélicos que esquecem o maior ensinamento cristão...” também
mencionado no comentário de Jéssica. As atitudes e crenças que ela demonstra parecem
ser frutos do processo de socialização, baseado na aprendizagem do evangelho e de
acordo com os princípios ideológicos propagados pela Igreja, conforme ela mesma
defende.
Outro obstáculo detectado refere-se à operacionalização dos projetos de
intervenção, dos quais se destacam as narrativas de Fátima, Jónata e Vera, quando dizem
que não obtiveram êxito durante o desenvolvimento dos mesmos. Fátima comenta que
organizou o projeto, pediu permissão à diretora para desenvolvê-lo, mas foi dito que
naquele momento não poderia ser operacionalizado porque não haveria tempo
suficiente. Além do mais teria a prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) no
final do ano e, os demais professores não iriam liberar as turmas nos horários deles,
porque estavam terminando de ensinar os conteúdos. No entanto, “pela ironia do
destino, o tema da redação do ENEM, naquele ano, foi sobre questões de diversidade”,
acrescenta Fátima. Jónata diz que ficou muito triste porque seu resultado não foi
satisfatório. Isso porque “a própria escola ficou sem vontade de fazer acontecer”. Diz que
começou a desenvolvê-lo, mas depois não pode dar continuidade, principalmente
porque o debate proposto não estava em consonância com o Projeto Político Pedagógico
da Escola. Ao ser questionada sobre o projeto de intervenção, Vera reluta, silencia, tenta
se lembrar e diz que começou a desenvolvê-lo, mas não chegou a concluir sua
operacionalização, pela “falta de tempo”. Em seguida, pondera:

“Inclusive, meu marido também não o concluiu. Apesar de trabalharmos


em turmas diferentes, a gente procurou trabalhar de uma forma que um
ajudasse o outro. E pelo fato de eu já ter desenvolvido outros projetos na
área, já estudar, me ajudou bastante... Então, eu disse: vou fazer esse
projeto, pois ele vai me ajudar na escola. Com ele, digamos assim, eu posso
procurar trabalhar de uma forma aberta” (Informação verbal)127.

Diante do exposto por Vera, é possível verificar que ao mesmo tempo em que
menciona ter recebido críticas de colegas por desenvolver atividades em sala de aula
sobre questões da sexualidade e por “jogar o jogo dos alunos”, utilizando o “mesmo

127 Trecho extraído da entrevista concedida por Vera em jan. de 2012.

.
220

palavreado que eles falam...”, afirma não ter tido tempo de desenvolver o projeto didático
intitulado “A sexualidade no âmbito escolar”. As atividades propostas neste projeto,
poderiam ter sido trabalhadas na própria disciplina por ela ministrada.
Jéssica, João e Elias também não operacionalizaram seus projetos. Apesar de
Jéssica observar que chegou a iniciá-lo, disse que não pode concluí-lo por ter saído da
escola que trabalhava, mas afirmou ter deixado o trabalho para que pudesse ser
desenvolvido por outros/as professores/as. Diante dessas constatações acerca de uma
das atividades finais do GDE, parece-nos que alguns dos/as cursistas cumpriram o
exigido apenas para a obtenção de uma nota e consequente aprovação.

4.3.3 Impactos nas trajetórias percorridas e nas práticas escolares

No processo de elaboração da presente análise, houve momentos de avanços e


recuos considerando-se todos os trabalhos da mesma natureza. Nesse quadro, algo que
parece inquestionável, diz respeito aos conteúdos apreendidos e reelaborados nos
relatos das/os colaboradoras/es, um conhecimento propositivo que me remete à
Boaventura de Sousa Santos (2002) quando nos chama a atenção para o momento de
transição paradigmática que vivemos. Momento fundamentado em uma nova concepção
de conhecimento, que aponta para uma nova forma de ler e interpretar o mundo.
Estamos tão habituados a conceber o conhecimento como um princípio
de ordem sobre as coisas e sobre os outros que é difícil imaginar uma
forma de conhecimento que funcione como princípio de Solidariedade.
No entanto tal dificuldade é um desafio que deve ser enfrentado
(SANTOS, 2002, p, 29-30).

Com estas questões pulsando passei a tratar cada uma das dimensões
constitutivas das narrativas, de forma que respeitosamente pudesse trazer, o que
solidariamente cada uma das professoras e professores havia disponibilizado no
processo onde “o professor é a pessoa; e uma parte importante da pessoa é o professor”
(NÓVOA, 1997, p. 15).
A comparação das narrativas permitiu observar alguns subsídios do curso nos
percursos e nas práticas de alguns/mas colaboradores/as. Em relação ao professor
Jónata, mesmo antes do curso, já demonstrava pensar e agir de forma diferenciada em
relação às questões de gênero. No entanto, afirma que o GDE proporcionou entender, de
forma teórica, o que não havia estudado nas licenciaturas em Pedagogia e em

.
221

Matemática. Sobre sexualidade, considera que houve grandes mudanças em seu


comportamento:
“A aceitação do outro, porque antes eu ficava um pouco inibido, não
gostava de ficar perto de quem é homossexual, não saia, não me
relacionava, não tinha como amigo; nem mesmo levava para minha casa,
porque antes tinha receio. Então, em relação à mudança de postura sobre
sexualidade, foi da água para o vinho. Foi realmente grandiosa. Com
certeza, o curso mudou plenamente minhas práticas pessoais e escolares.
Na minha formação pessoal foi muito importante. O curso mais supriu
uma deficiência pessoal e, depois foi direcionando para uma formação
profissional, que a academia não me proporcionou: entender a
sexualidade, entender essa manifestação, o que sentimos, reconhecer a
diversidade sexual” (Informação verbal)128.

Ao comparar este relato com o conflito vivenciado e comentado anteriormente


por Jónata acerca de sua própria orientação sexual, percebe-se que a inibição e o receio
que tinha em relacionar-se, mesmo como amigo, com homossexuais, ocorria porque já
notava sua condição, mas, não a aceitava, principalmente por causa dos preceitos
religiosos que havia aprendido desde a infância. Após os estudos aqui mencionados,
passou a aceitar a si mesmo e não apenas o outro, pois o curso “contribuiu para que
suprisse uma deficiência pessoal”. Ele conclui sua narrativa dizendo: “sem dúvida, minha
vida dividiu-se em dois momentos: antes e depois do curso GDE”. Jónata faz questão de
visibilizar essa mudança.
Ao reler alguns dos comentários de Elias sobre as atividades realizadas durante
o curso, senti a necessidade de relacioná-los ao que foi narrado durante a entrevista
concedida para esta pesquisa. Nessa releitura, observei sua concordância em relação ao
preconceito de gênero na sociedade, sendo este construído especialmente pela família e
pela escola. Ele comenta a questão em uma das discussões do fórum que tratava sobre
gênero. Inclusive, posiciona-se de forma crítica, ressaltando ser necessário, por parte
dos professores e professoras nas escolas, questionamentos desses “padrões pré-
estabelecidos”, sugerindo a “adoção de práticas sociais em que se respeitem os diversos
gêneros”129.
Houve momentos em que Elias demonstrou sentir-se orgulhoso, por exemplo
quando disse: “para agarrar uma mulher, paguei o equivalente a um salário mínimo de
hoje”. Vê-se aí a construção cultural da “necessidade” masculina de ter satisfeitos os seus

128
Trecho extraído da entrevista concedida por Jónata em jun. de 2012.
129Trecho extraído do fórum sobre Gênero 1 apresentado no quadro 6 desta tese. Fonte: Disponível em:
http://www.avacap.ufma.br/course/view.php?id=28. Acesso em: 18/05/2015.

.
222

desejos “instintivos” de macho, que precisam ser satisfeitos a qualquer preço. Sendo a
sexualidade um conceito histórico e mutável, é possível afirmar que este modelo não
pode mais se sustentar. Embora Elias afirme e reafirme a importância do respeito ao
outro, ao se referir à “mulher de programa”, manifesta a oposição entre esta e o que
entende por sagrado, a “mulher de família” dedicada ao marido e aos filhos/as.
Sobre a homossexualidade, Elias a percebe como “pecado” e diz que não é nem
contra, nem a favor, mas, defende que deve haver “respeito”. Para ele, o fato de termos o
livre arbítrio não implica ter o direito de forçar ninguém a fazer nada e é preciso
“entender que não se pode agredir alguém porque é homossexual”. Sobre os gêneros
ainda afirma que a mulher é a parte sensível nas relações sociais, defendendo, por
exemplo, a divisão de papéis conforme o sexo. As palavras e atitudes de Elias me remete
ao professor Danilo Streck (2001, p. 100) quando ressalta que:
Sabemos que aquilo que cada um e cada uma de nós é (ou não é) resulta
de múltiplas aprendizagens feitas ao longo da vida. Isso não quer dizer
que de modo determinista aprendemos tudo o que quiseram nos
ensinar e da maneira como pretendiam que aprendêssemos.

Considerando a narrativa de Elias, concedida em junho de 2012, bem como as


atividades realizadas durante GDE, no ano de 2009, constata-se a prevalência de um
discurso religioso voltado ao cristianismo. Isto possibilita reconhecer que suas ações e
regras moralizantes foram impostas, principalmente pela igreja, evidenciando sua
religiosidade construída desde a infância.
Em relação a Fátima, embora tenha agregado os conteúdos discutidos no GDE
aos estudos anteriores, como o do doutorado na Espanha e o do GEMGe/UFMA, com os
novos conhecimentos do curso GDE, além de trabalhar temas referentes à mulher nas
obras literárias, teve outras iniciativas como por exemplo, destinar para cada aula de sua
disciplina, no Ensino Médio, cerca de 15 minutos para falar sobre questões da
sexualidade, conforme relata:
“Falávamos sobre reprodução, homossexualidade, camisinha, gravidez na
adolescência. Eram os alunos que escolhiam o tema da semana. Nós
chamávamos de aula de conhecimentos gerais... Então cada semana...
Cada dia um trazia um tema. Sorteávamos o tema e começávamos a
conversar se não desse tempo terminávamos na próxima aula. E eu
percebia que todo mundo falava, todo mundo participava. Como já tinham
de 16 anos pra cima e para os pais eram considerados adultos, creio que
eles omitiam que tinham essa hora de conhecimentos gerais para a
família. E na escola somente eu realizava essa atividade, os demais
professores não gostavam muito dessa prática, diziam que eu “era
moderna demais para a escola” e era tachada de “feminista louca”.

.
223

Inclusive devido minha escrita, porque eu escrevia todos/todas. Mas, no


geral não se percebe isso... Todos são todos... menino e menina são todos,
no masculino” (Informação verbal)130.

Para trabalhar a questão na escola, Fátima passou a utilizar certas táticas, como
por exemplo, ao denominar as aulas sobre questões da sexualidade de “conhecimentos
gerais”. Embora saiba que não é a mesma coisa, “[...] pelo menos se trabalha de acordo
com o currículo escolar”. Com esse entendimento, Fátima acrescenta:
“[...] quer queira ou quer não, mesmo no decorrer do tempo, pela força do
preconceito essas questões ainda não estão resolvidas. Em certos casos,
podemos constatar que roubar é menos doloroso do que dizer que se
tem diversidade sexual, então podemos notar que estamos lutando há
séculos, com uma questão que não vai acabar de uma hora pra outra. É
um trabalho de formiguinha, uma fala ali outra fala aqui, e assim a gente
vai conseguindo aliados. O GDE pra mim foi importante, primeiro foi o
primeiro curso que eu fiz que tratou a questão da diversidade”
(Informação verbal – grifos meus).

Dessa forma, houve mudanças em seu comportamento, diante de situações


emergenciais em relação às diferenças individuais apresentadas na escola, além de
Fátima ter demonstrado repensar sua forma de agir em algumas situações. Ainda que
tenha dito que participou pouco dos debates com os colegas, especialmente devido a
problemas com sua internet, lembra que os poucos momentos em que participou foram
gratificantes, principalmente quanto às explicações dadas pela sua tutora online. Diz ser
dever e papel da escola trabalhar as diferenças individuais, “garantindo a seus docentes
um saber lidar com essa problemática de forma pacífica e respeitosa. Não é de hoje que
nossas instituições escolares, principalmente as do Brasil, estão precisando de projetos e de
curso como o GDE” (Professora Fátima).
Decerto, embora Fátima já tivesse algum conhecimento acerca da temática, é
inegável que o potencial de reflexão criado em cada momento do Curso GDE resultou em
novos conhecimentos que ela valoriza. Para ela, o papel deste curso foi e é esclarecer e
mostrar esses temas dentro da escola e como os alunos e as alunas convivem e vivem
diariamente com eles. Ao considerar o que acontece dentro do espaço escolar com toda
sua complexidade, carregado de preconceitos e discriminações, pode-se desenvolver a
compreensão dessas questões e buscar alternativas para reverter esse quadro,
entendido por Fátima como “triste e caótico diante de um espaço tão diferente e tão
importante para meninos e meninas em construção”. Dentre as/os professoras/es

130
Trecho extraído da entrevista concedida por Fátima em out. de 2012.

.
224

colaboradores/as, Fátima foi uma das que demonstrou reconhecer a mudança social do
papel da mulher, dizendo que busca alternativas para a desconstrução de preconceitos e
estereótipos de gênero e da sexualidade em suas práticas escolares.
Sobre a professora Jéssica, antes do GDE já havia realizado outro curso que
versava sobre a sexualidade, numa perspectiva biológica, o projeto Saúde e Prevenção na
Escola. Devido à sua crença religiosa e ao projeto que já desenvolvia, possui uma
concepção bem demarcada e definida sobre a função da escola. Eu seu entendimento, a
escola não deve só ensinar, cabe a ela prevenir e cuidar, inclusive em relação à saúde.
Jéssica relaciona tranquilidade com inocência e pureza e parece negar a
manifestação da sexualidade infantil. Também compreende a sexualidade apenas como
relação sexual e esta como um ato impuro. Em relação à gravidez na adolescência, esta é
concebida por ela como uma situação ruim apenas para a menina, sendo uma
consequência de “atos impensados”. Em nenhum momento referiu-se ao pai adolescente,
dado que parece acreditar sobre a divisão de papéis entre os sexos, pois em se tratando
da gravidez, esta é percebida por ela como uma responsabilidade apenas da mulher.
Também pude perceber a forma como delimita, reafirma e tenta legitimar os corpos
masculinos e femininos conforme o que acredita ser normal para cada sexo/gênero.
Para Jéssica, os afazeres domésticos, por exemplo, não são entendidos como um
trabalho que mereça destaque, enquanto o mesmo não acontece em relação às
atividades remuneradas. Deixa entrever que concebe o masculino como significativo
para ela quando comenta o caso de uma aluna que queria ser “mão de ferro”, com isso, as
pessoas diziam: “essa menina é meio machão!”. Jéssica, assim como Elias, demonstram
compreender e reproduzir uma divisão nos papéis sociais estabelecidos para homens e
mulheres e muitos destes papéis estão relacionados, segundo Bourdieu (2010), à
dominação masculina. A crença religiosa atravessa seus caminhos quando assumem
uma função essencializante, fixa e normativa. No entanto, as representações que
transitam nas narrativas de Jéssica e Elias revelam uma tensão entre as hierarquias de
gênero e classe, mesmo que, por vezes, não pareça percebida por ambos. Como explica
Scott (1995, p. 11) “[...] de fato, essas afirmações normativas dependem da rejeição ou da
repressão de outras possibilidades alternativas e, as vezes, ocorrem confrontações
abertas ao seu respeito”.
Jéssica afirma que dentre as temáticas estudadas no curso, identificou-se com as
questões de gênero, no que se refere ao “empoderamento da mulher”. Desenvolveu

.
225

projetos relacionados aos temas estudados quando atuou na EJA. Critica a não
participação da mulher em Mesas de eventos da área da educação e em sua opinião
algumas mulheres não voltam a estudar porque seus maridos não permitem. Posiciona-
se criticamente sobre esses casos, o que demonstra sua tentativa de problematizar as
relações de gênero. Assim como Fátima, busca alternativas para a sua superação das
violências e desigualdades de gênero na escola e na sociedade.
Sobre o professor João, cabe frisar que no momento da entrevista não exercia
nenhuma função pedagógica. De sua narrativa foi possível notar sua percepção acerca da
sexualidade relacionando-a apenas à orientação sexual de uma pessoa. E esta como uma
“escolha” deliberada do sujeito. Representação que contraria o que foi estudado durante
o GDE. Embora tenha afirmado, em diversos momentos de sua narrativa, que aprendeu
“a vivenciar melhor a questão do respeito”, deixa transparecer o preconceito que possui
em relação à homossexualidade. Reforça a ideologia da igreja evangélica, com uma
abordagem permeada por um discurso normatizante da sexualidade, acreditando que se
pode escolher o que se quer ser em relação à orientação sexual.
Independente das oposições manifestadas nas narrativas de Elias, Jéssica e João,
um exemplo de redução ou simplificação da realidade, é representado pelas respostas
dadas sobre as convicções religiosas manifestas em seus relatos. Para estes professores
e esta professora a orientação sexual é entendida como uma escolha deliberada do
sujeito, além de ser um dos conteúdos mais difíceis de ser trabalhado, devido ao fato de
a homossexualidade “não ser acolhida como uma normalidade” (professora Jéssica).
Afirmam que devemos respeitar todo ser humano, independentemente de sua
orientação sexual, por ser este um dos princípios bíblicos.
Sobre a professora Vera, embora ela afirme não ter dificuldades para tratar
questões da sexualidade com seus alunos e alunas, inclusive por trabalhá-las na
disciplina Ética e Cidadania, não percebe as possibilidades de trabalhar as questões
estudadas no GDE na Geografia, o que contradiz o próprio curso e os PCN’s. Dentre seus
relatos, chamou-me a atenção quando comenta algumas atitudes homofóbicas
percebidas na escola:
“[...] aquele aluno que mais atacava, era chamado particularmente para
conversar. Inclusive, eu cheguei a conversar com muitos. Eu separava, por
trabalhar mesmo a questão do homossexualismo, também conteúdo da
Ética. Eu tinha aquele momento em que trabalhava com a turma inteira,

.
226

depois eu procurava conversar particularmente sobre o assunto... e isso


ajudou bastante...” (Informação verbal – Grifo meu)131.

Embora tenha estudado a questão no GDE e visto que utilizar o termo


homossexualismo também pode colaborar com a homofobia, ainda o utiliza, conforme
analisado anteriormente. Mas, Vera afirma que o curso foi positivo e a ajudou bastante,
pois a partir dele, consegue perceber “a falta que faz uma disciplina dessas numa turma,
numa sala de aula”.
A professora Telma almeja a igualdade de direitos e o respeito ao próximo,
independentemente do gênero ou de sua “opção sexual”. Assim como Elias e Jéssica,
demarca as diferenças biológicas e os papeis definidos conforme o sexo e tanto em sua
narrativa, quanto no projeto didático e no memorial, prevalece uma concepção binária
em relação ao sexo. Ela ainda não compreende que a distinção biológica, ou melhor, a
distinção sexual serve para justificar a desigualdade social. E assim como João utiliza a
expressão “opção sexual” e não “orientação sexual”, proposta durante o curso GDE. Telma
também ressalta a importância de se respeitar as diferenças e diz não concordar com as
mesmas. Assim, para ela, há uma necessidade de reconhecimento das diferenças,
independente de uma ordem, normalização ou controle. Conforme explicita Furlani
(2009, p. 145):
Segundo entendo, para que a sociedade estabeleça uma política de
reconhecimento da diferença, particularidades de grupos e de
indivíduos precisam ser reconhecidas e garantidas. Mas, o
reconhecimento passa pela compreensão das reivindicações como
legítimas e merecedoras de atendimento pelo poder público. No
momento em que a sociedade reconhece a diferença do outro, ela
constrói a não segregação, a não exclusão, a não discriminação.

Telma, assim como as demais professoras e professores dizem acreditar que as


ações de formação continuada como a do GDE abrem a possibilidade para a aquisição de
novos conhecimentos necessários sobre as temáticas. Mas, como pensar esta
possibilidade sem realizar questionamentos sobre a lógica do respeito à diferença? Com
efeito, em muitos casos observou-se que as narrativas das/os colaboradoras/es não
ultrapassaram a ideia de uma diversidade ligada ao respeito e a tolerância. Furlani
(2009) e Louro (2002) criticam os princípios do respeito à diferença e à tolerância,
demonstrando o quanto é difícil superar essa lógica, mesmo nas instituições escolares.
Louro (2002) faz ponderações em relação ao imprescindível deslocamento da

131
Trecho extraído da entrevista concedida por Vera em jan. de 2013.

.
227

perspectiva de tolerância atrelada ao respeito, com atenção crítica ao que as palavras


querem dizer:
[...] os apelos em prol da tolerância e do respeito aos diferentes também
devem ganhar outra conotação: é preciso abandonar a posição ingênua
que ignora ou subestima as histórias de subordinação experimentadas
por alguns grupos sociais e, ao mesmo tempo, dar-se conta da assimetria
que está implícita na ideia de tolerância. Associada ao diálogo e ao
respeito, a tolerância parece insuspeita quando é mencionada nas
políticas educativas oficiais ou nos currículos. Ela se liga, contudo, à
condescendência, à permissão, à indulgência — atitudes que são
exercidas, quase sempre, por aquele ou aquela que se percebe superior.
A tolerância parece se inscrever, assim, numa ótica mais psicológica e
individual e, como consequência, a meta consiste na mudança de
atitude. Certamente não advogo, aqui, o monólogo ou a intolerância, mas
sim a atenção crítica que desconfia da inocência das palavras e que põe
em questão a suposta neutralidade dos discursos (LOURO, 2002, s.p.).

Também pude perceber que as narrativas sobre a diversidade sexual


configuram-se em relatos de preconceitos e violências aos quais são submetidos os
sujeitos que fogem à regra heteronomatizante imposta pela sociedade. Apresentam o
descompasso entre as proposições que estabelecem direitos dos sujeitos LGBT e o
distanciamento ainda presente na instituição escolar em relação a estes temas. Sobre
este processo, Rogério Diniz Junqueira (2009) o denominou de “homossociabilidade
homofóbica”, pois apesar de ocorrer em vários espaços sociais, na escola possui
diferentes meios de se constituir, traduzido em uma espécie de esquecimento ou
negação das agressões a que os sujeitos LGBT são submetidos por parte da instituição.
Aliás, a sociedade ainda insiste em separar as pessoas pela cor, etnia, sexo,
religião e tudo mais que possa criar grupos e muitas vezes guetos. Tais atitudes
encontram-se intrinsecamente relacionadas às experiências vividas no mundo social,
legitimando a compreensão das divisões no mundo social como se fossem naturais, o
que valida a conversão da arbitrariedade social em necessidade natural, conforme
afirma Bourdieu (2010). Porém, longe de se cristalizarem, tais esquemas estarão em
constante reformulação, consequentemente, abertos ao novo, conforme resume Setton
(2002, p. 61):
Habitus não é destino. Habitus é uma noção que me auxilia a pensar as
características de uma identidade social, de uma experiência biográfica,
um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente. Habitus como
uma matriz cultural que predispõe os indivíduos a fazerem suas
escolhas. Embora controvertida, creio que a teoria do habitus me
habilita a pensar o processo de construção das identidades sociais no
mundo contemporâneo.

.
228

É possível inferir que a força da noção de habitus provém do fato de que ele
supera a mera descrição, pois busca reconstruir a dinâmica dos processos que se
interpõem na relação entre as práticas dos agentes e o modo como representam para si
e para os outros o que são e o que fazem. Encerram-se aqui as análises sobre as
narrativas das/os professores/as colaboradoras/es.

 

.
229

O PONTO DE CHEGADA:
passos para um novo caminhar

O que vale na vida não é o ponto de partida e sim a caminhada.


Caminhando e semeando, no fim terás o que colher.
(Cora Coralina)
_____________________________________________________________________________________

.
230

.
231

A realização da pesquisa teve entre seus objetivos a explicitação das


contribuições possíveis para a educação de professores/as, numa iniciativa de formação
continuada na qual dimensões relativas ao gênero e à sexualidade nas trajetórias
percorridas e nas práticas escolares desenvolvidas pelos professores e professoras
colaboradores/as da pesquisa, ocupam um lugar central. Ao examinar os pressupostos, a
proposição, a organização e o desenvolvimento das atividades do GDE pode-se
acompanhar a construção de uma proposta cujo potencial reflexivo evidencia-se nas
avaliações e narrativas dos/as docentes.
A tentativa de compreender as configurações atuais das questões de gênero e
sexualidade em uma sociedade e a mobilização de referentes teóricos para o
entendimento das implicações pessoais e da repercussão das questões sobre as histórias
de vida puderam assinalar fatos significativos que deveriam ser levados em conta, tanto
na proposição de políticas educacionais, quanto na arquitetura dos projetos de formação
docente e, sem dúvida, nos processos de construção das práticas pedagógicas pelos/as
profissionais, no cotidiano escolar. Jónata, Elias, Fátima, Jéssica, João, Vera e Telma
fornecem com a colaboração dada ao estudo aqui finalizado, testemunhos
imprescindíveis a nossa reflexão.
Completo esta trajetória com a angústia de saber que haveria muitos outros
caminhos possíveis na investigação realizada. A escolha pela história oral (de vida e
temática) permitiu a reconstrução de elementos importantes incorparados na vida dos
sujeitos e representativos das dinâmicas sociais geradoras da atual situação de
discriminação e de exclusão das pessoas que fogem do padrão heteronormativo na
sociedade. Devo dizer que o itinerário na realização do estudo abriu perspectivas e
permitiu um aprendizado que enseja a continuidade das pesquisas em direções que aqui
foram apenas esboçadas.
A “viagem” de concretização de Decifra-me! Não me devore! Gênero e sexualidade
nas trajetórias percorridas e nas práticas escolares partiu, como se observa, de uma
retomada da minha própria trajetória de vida, desde a infância na família e na escola,
quando aluna até o exercício da docência. Visitei o passado e procurei o que nele se
coadunava com o presente. Redimensionei minha trajetória no confronto com as
narrativas dos colaboradores e colaboradoras e com as dificuldades das situações
vividas no processo. O recurso a obra de Pierre Bourdieu forneceu instrumentos para
compreender as diversas modalidades de violência simbólica que controlam o poder

.
232

sobre os outros, incluindo-se aí a dominação masculina onipresente em nossa sociedade.


O conceito de gênero configurou-se como uma possibilidade crítica à dominação
masculina.
Os primeiros passos desse caminho vêm de longas datas. Desde a graduação em
Pedagogia quando desenvolvia projetos de educação sexual, tanto nas oficinas
ministradas para estudantes deste curso, quanto na situação em que pude exercer a
docência no ensino fundamental, reconhecia o caráter discriminatório dos comentários
e atitudes de crianças e jovens, repletos de preconceitos, tabus e estereótipos
relacionados a sexualidade e ao gênero. Considerava que as pessoas reproduziam
padrões e obedeciam às imposições sociais.
Nas narrativas das colaboradoras e colaboradores observa-se que as emoções,
os desejos e os prazeres, muitas vezes são excluídos do processo escolar. O gênero e a
sexualidade são apresentados tão somente como divisão de papeis e comportamentos
masculinos e femininos, como sexos anatômicos e práticas sexuais. Este quadro me leva
a refletir que o conceito biologizante, correntemente estabelecido para os gêneros e as
sexualidades, em última consequência, implicará em violência contra os sujeitos que não
se adaptam ao ideal heterossexual proporcionado pelo próprio conceito.
Entendo essas questões como resultado de caminhos complexos em que
dialogam as configurações biológicas, os desejos íntimos e os desdobramentos sociais,
culturais, geográficos e históricos. Desta maneira, existem tantas sexualidades quanto
existem sujeitos no mundo. Mesmo que seja admitida a existência de muitas formas de
viver os gêneros e as sexualidades, o que se percebe é que a instituição escolar tem
obrigação de nortear suas ações por um único padrão, um modo adequado, legítimo,
normal de masculinidade e de feminilidade e uma única forma “sadia” e “normal” de
sexualidade, a heterossexualidade. De acordo com Louro (2001c) afastar-se desse
padrão significa buscar o desvio, sair do centro, tornar-se excêntrico e alvo de gozações,
conforme constatados nas entrevistas realizadas.
As professoras Fátima, Jéssica, Vera e Telma e os professores Jónata, Elias e
João, por meio de labirintos, revolvem o chão do que fora instituído, alguns abrem
brechas no caminho do (des) conhecido, vivem suas sexualidades e desenvolvem suas
práticas escolares buscando alternativas para romperem as barreiras do preconceito e
da discriminação; outros/as vivem e convivem defendendo o respeito como a principal
arma contra as armadilhas da sociedade heteronormativa.

.
233

As narrativas vívidas das histórias, das lembranças, das experiências,


desnudaram algumas ambivalências: a influência da religiosidade e a ameaça do pecado
e do castigo, a ruptura entre o permitido e o proibido, o sagrado e o profano, a percepção
e distinção de papeis ditos masculinos e femininos, a dúvida e a inconstância entre o
certo e o errado. Estas foram marcas expressivas nos relatos das colaboradoras e
colaboradores. No entanto, demonstraram que no decorrer de suas vidas, foi possível
realizar algumas criações, pequenos desvios, fugas imperceptíveis e formas astutas de
driblar certos princípios aprendidos nos primeiros anos de suas experiências.
A discriminação em relação à mulher constituiu-se, no dizer das professoras
colaboradoras, a forma que passou a ser melhor identificada após a realização do curso.
As representações de professoras e professores acerca das relações de gênero e
questões da sexualidade deparam-se com uma espécie de disputa entre uma visão de
mundo em função do habitus construído e o que fora proposto pelo Curso GDE. Um dos
obstáculos à mudança de atitudes nas escolas, por exemplo, é o predomínio de uma
cultura pessoal, que acaba por produzir uma supremacia do habitus construído desde a
infância, nas tomadas de posição que os/as docentes assumem na escola, na sala de aula,
na relação com a comunidade e nas práticas sociais que acabam por determinar a
relação entre docentes e discentes. O estabelecimento, ou não, de propostas
educacionais que visam “dar conta” das atuais demandas da sociedade, das quais
podemos citar as relações de gênero, questões da sexualidade, diversidade sexual e
tantas outras, por vezes são desveladas, em seus relatos, de forma discriminatória.
Dessa forma, pude reconhecer que o habitus, como um conjunto de esquemas
que norteia comportamentos e formas de percepção e apreciação dos mesmos,
predeterminados e anteriores ao sujeito. Por serem adquiridos desde a socialização
primária, tanto nas escolhas habituais, quanto nas atitudes e reações frente a situações
singulares, oscila entre a reprodução e a mudança, podendo ser observadas, de forma
simultânea ou alternada, a permanência e a ruptura.
As narrativas assinalam que vivemos uma transição no mundo acerca das
relações sociais de gênero e sobre as questões da sexualidade. Entrecruzam-se
permanências com rupturas, por vezes singelas, veladas ou mesmo anunciadas. Destaca-
se o fato de que o curso GDE, pôde ser visto por alguns/mas dos/as colaboradores/as
como uma possibilidade para que docentes se apropriem de conhecimentos que possam
contribuir na mudança de atitudes e posicionamentos sobre as temáticas estudadas.

.
234

Houve outros relatos, na perspectiva do respeito em relação à diversidade sexual, com


ênfase na homossexualidade.
Em se tratando da noção de habitus e ao relacionar seu conceito com o de
gênero e da sexualidade, foi possível identificar traços importantes na construção dos
modos de agir nas práticas escolares. Longe de ser algo estável ou um leque de papeis
sociais a cumprir, o habitus é incessantemente construído e reconstruído a partir das
experiências concretas e diversificadas dos agentes, entre si e com os demais.
Por fim, concluo esta viagem com a certeza de que outros questionamentos
surgiram e que este caminho se fez com imperfeições, ondulações, inúmeros
obstáculos... Mas, um novo caminho se inicia...

 

.
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Imagem da capa
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247

ANEXO – Parecer do comitê de ética da FEUSP

.
248

.
249

APÊNDICE A - Roteiro de Entrevista: Cursistas egressos/as do GDE

Dados de sócio profissionais:

1. Data de nascimento: _____/____/ _________


2. Estado civil: ( ) solteiro (a) ( ) casado (a) ( )União estável ( ) Outros
3. Filhos: ( ) NÃO ( ) SIM - Quantos? ( ) menino ( ) menina
4. Religião: _____________________________________________________________________________
5. Formação:
( ) Ensino Médio Especificar: ____________Ano de conclusão_________
( ) Ensino Superior Especificar: ___________ Ano de conclusão_________
( ) Pós-Graduação Especificar: ___________ Ano de conclusão_________
6. Instituição / Escola em que trabalha: ___________________________________________
7. Há quanto tempo atua como professor (a)? ______ anos
8. Ano / Série que leciona: __________ Nível/etapa: _______________________________
9. Disciplina (s) / matéria (s) que leciona: _______________________________________
10. Polo em que realizou o Curso GDE: ______________________________________________

1. Primeiro Bloco: Conversa inicial - A trajetória familiar

1.1 Fale um pouco sobre sua infância, sua família...


1.2 Sua mãe demonstrava afeto? Vocês conversavam? Tinha abertura para
conversar sobre qualquer assunto?
1.3 E seu pai? Vocês conversavam? Quais os assuntos?
1.4 Quando os adultos conversavam, você podia participar?
1.5 Havia diálogo entre a família sobre questões relacionadas à sexualidade
(corpo, menstruação, ereção, namoro, relação sexual, dentre outros).
Comente:
1.6 Em sua família o tratamento para meninas e meninos era diferenciado?
Comente:

.
250

2. Segundo Bloco: Sexualidade e Gênero na Escola

2.1 Fale um pouco sobre sua primeira escola.


2.2 Na escola (ensino fundamental) havia momentos/aulas em que questões da
sexualidade eram tratadas? Comente:
2.3 Havia tratamento diferenciado em relação aos meninos e meninas? Comente:
2.4 Você se lembra de alguma situação relacionada à sexualidade, vivenciada por
algum colega. Como foi tratada?

3. Terceiro Bloco: Formação profissional

3.1 Fale um pouco sobre o caminho percorrido para chegar ao magistério.

3.2 Agora comente um pouco sobre os motivos que o/a que influenciou na escolha
em ser professor/a. E pela escolha do Curso?

3.2 Conte sua trajetória na educação superior (amigos, professores, disciplinas...).

3.3 Durante sua formação inicial no magistério, você teve a possibilidade de estudar
ou participar de eventos sobre questões relacionadas a sexualidade e gênero?
Comente:

3.4 Em sua opinião, o que ainda precisa ser feito, para que questões de gênero e
sexualidade possam ser incluídas no currículo dos cursos de formação de
professores?

3.5 Como você avalia, atualmente, a sua formação como professor/a em relação às
questões de gênero e sexualidade?

4. Quarto bloco: Gênero e sexualidade nas práticas escolares

4.1 Fale um pouco sobre sexualidade.

4.2 E sobre educação sexual.

4.3 Para você o que significa relações de gênero?

4.4 Você trabalha questões de gênero e sexualidade em suas aulas? De que forma?

4.5 Você já vivenciou alguma situação, em sala de aula ou no recreio, em que algum
aluno ou aluna tenha sido alvo de gozações pelos colegas por apresentar

.
251

comportamentos que NÃO são considerados “hegemônicos” em relação ao seu


sexo? O que você fez? Como se sentiu?

4.6 Em sua opinião, no ambiente escolar, como trabalhar de forma a conceber o


masculino e o feminino num processo relacional de igualdade de
comportamento?

4.7 E qual a sua opinião sobre o papel da escola e dos/as professores/as em relação à
sexualidade e à educação sexual? E sobre as relações de gênero?

5 Quinto Bloco: A formação continuada e o Curso GDE

5.1 Quais motivações contribuíram no ingresso do Curso GDE?

5.2 Durante a realização do Curso GDE, quais as maiores dificuldades encontradas?

5.3 Dentre as temáticas estudadas (Diversidade, Gênero, Sexualidade e Relações


étnico raciais), qual/quais mais se identificou? Comente:

5.4 E, qual das temáticas sentiu mais dificuldades? Por quê?

5.5 Dentre as propostas do Curso GDE, temos a de uma educação inclusiva no que diz
respeito à diversidade sexual. Sobre esta questão houve mudança de valores,
convicções e em suas práticas escolares em relação às identidades sexuais não
hegemônicas (gays, lésbicas, travestis...)?

5.6 Fale um pouco sobre o Projeto de Intervenção proposto e elaborado ao final do


curso.

5.7 Em relação as temáticas gênero e sexualidade, houve mudanças nas práticas


escolares após a realização do Curso GDE?

5.8 Que avaliação você faz acerca do Curso GDE e seus impactos para sua formação
pessoal, profissional e nas suas práticas escolares?

.
252

.
253

APÊNDICE B - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Este documento visa solicitar sua participação na Pesquisa intitulada “GÊNERO E


SEXUALIDADE NA FORMAÇÃO CONTINUADA E NAS PRÁTICAS ESCOLARES: histórias e
memórias de professoras (es) egressas (os) do Curso GDE” que objetiva “compreender a
trajetória pessoal e profissional de professoras e professores, a partir de suas histórias e
representações construídas sobre gênero e sexualidade, na família e na escola, na
constituição e desenvolvimento dessas questões na formação docente e continuada no Curso
GDE e, suas possíveis contribuições nas práticas escolares, como professores /as, em escolas
do estado do Maranhão”, desenvolvida pela doutoranda SIRLENE MOTA PINHEIRO DA
SILVA, sob a orientação da Profa. Dra. DENICE BARBARA CATANI, pelo Programa de Pós
Graduação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Pretende-se com este
estudo, colaborar com a formação inicial e continuada de professores /as para lidar com
questões de gênero e sexualidade no espaço escolar. Para isso, solicitamos informações
sobre sua trajetória pessoal, profissional e no Curso GDE, a partir de realização de entrevista
individual, gravada em áudio.
Por intermédio deste Termo lhe será garantido os seguintes direitos: (1) solicitar, a
qualquer tempo, maiores esclarecimentos sobre esta Pesquisa; (2) sigilo absoluto sobre
nomes, apelidos, datas de nascimento, local de trabalho, bem como quaisquer outras
informações que possam levar à identificação pessoal; (3) ampla possibilidade de negar-se a
responder a quaisquer questões ou a fornecer informações que julguem prejudiciais à sua
integridade física, moral e social; (4) opção de solicitar que determinadas falas e/ou
declarações não sejam incluídas em nenhum documento oficial, o que será prontamente
atendido; (5) desistir, a qualquer tempo, de participar da Pesquisa.

“Declaro estar ciente das informações constantes neste ‘Termo de Consentimento


Livre e Esclarecido’, e entender que serei resguardado pelo sigilo absoluto de meus
dados pessoais e de minha participação na Pesquisa. Poderei pedir, a qualquer
tempo, esclarecimentos sobre esta Pesquisa; recusar a dar informações que julgue
prejudiciais a minha pessoa, solicitar a não inclusão em documentos de quaisquer
informações que já tenha fornecido e desistir, a qualquer momento, de participar da
Pesquisa”.

______________, ____ de _____________________ de 20___.

Colaborador/a: __________________________________________________________
Endereço:_______________________________________________________________
Tel.: ______________________e-mail: ______________________________________

__________________________________
Assinatura da/o Colaborador/a

.
254

.
255

APÊNDICE C - Histórias vividas e contadas pelos/as colaboradores/as


(transcriações das entrevistas)

_____________________________________________________________________________________________________

“Quando iniciei o Curso GDE, o conflito apareceu. Até o curso


não vivia um conflito, porque as questões religiosas eram
superiores a outras questões”.

Meu nome é Jónata, nasci em Imperatriz e venho de uma família com oito filhos.
Eu tenho três irmãos homens, mais velhos, e quatro irmãs, sendo três mais velhas que
eu. Meu pai era sapateiro, hoje aposentado, e minha mãe doméstica, também aposentada
como lavradora. Tenho 30 anos, sou solteiro, formado em Matemática e Pedagogia,
atualmente atuo como professor de ensino superior, mas já trabalhei em praticamente
todos os níveis, desde a educação infantil. Quando criança, sempre tive um contato bem
direto com meus pais. Eles sempre foram muito carinhosos. Com minha mãe havia
aquela conversa que as mães sempre conversam com os filhos, mas, sem tocar em
alguma coisa, digamos assim, mais “delicada”. Ela dava conselhos! Dizia para não fazer
isso ou aquilo... para não brigar com fulano ... para ter cuidado com a casa... ajudar o
irmão ou a irmã. Ou seja, havia conversas superficiais, mas cheias de carinho. Com nosso
pai, também havia bastante conversa. Ele era até bem mais presente, porque era quem
nos levava e buscava para a escola. Era ele quem conversava com os porteiros, com as
professoras, enquanto que a mãe ficava em casa cuidando dos outros irmãos e da casa.
Havia uma relação de “dominação” muito gritante. O pai dominava bastante e ela
aceitava essa “dominação”. Então ela fazia as coisas internamente e ele externamente ...
Quando a gente falava alguma coisa errada, ele repreendia oralmente. Isso era suficiente.
Com a mãe, não era tanto, mas também havia um castigo e, algumas vezes ela dava uma
“surra”.

Na minha casa, quando os adultos conversavam, as crianças também


participavam, a gente também conversava. E eu sempre tive vontade de ficar próximo de
pessoas mais velhas. Tanto que na minha casa, eu era o único que toda a tarde ia na casa
de uma senhora, de mais de 70 anos, para conversar com ela, o nome dela ela Maria
Joaquina, e eu adorava conversar com ela, porque ela falava de tudo, falava de quando
ela era criança, das suas experiências [...] e isso me ajudou e me deu mais força para
entender o que os adultos pensam. Hoje eu entendo que não posso ir contra meu pai,

.
256

pois ele entende a questão da orientação sexual muito diferente do que eu entendo hoje:
o que pra ele é visto como a “verdade”, para mim não é. Mas eu não tenho nenhuma
permissão e direito de agredi-lo em relação a isso, eu devo respeitá-lo e, isso eu aprendi
com essa senhora.

O diálogo entre a família era bem aberto... Menos, em relação às questões da


sexualidade. Só quando meus irmãos cresceram, é que as conversas sobre sexo se
tornaram normais. Eu tenho três irmãos homens, mais velhos, que já tinham vida sexual
ativa. Então eles conversavam normalmente, viam filmes, falavam uns com os outros
sobre suas experiências... Eu me lembro de que quando criança, não havia conversa
sobre esses assuntos, só quando fiquei mais velho é que ouvia meus irmãos
conversarem. Em relação ao tratamento dado às meninas e meninos, entre os três mais
velhos, não havia distinção nas tarefas domésticas, pois todos faziam as coisas de casa:
lavava louça, roupa.... Tanto a mãe, como o pai ordenavam e eles faziam. Quando
começaram a trabalhar fora, as tarefas de passaram a ser divididas entre eu e minha
irmã mais jovem. A separação de tarefas domésticas, tanto as meninas, quanto nós
menonos não era imposta, mas os brinquedos eram separados, havia bolas e carrinhos
para os meninos e bonecas para as meninas. Já nas brincadeiras da rua, todos brincavam
juntos.

Desde pequeno nós fomos educados na igreja, ouvindo o padre, o sermão. Eu


percebia que existia uma carência em mim para conversar sobre essas questões. Apenas
ouvia os conselhos paternos e os conselhos do padre e achava que as coisas eram assim
mesmo: devia ter cuidado, devia me prevenir, isto ou aquilo é errado, pecaminoso... E as
coisas pareciam ser “mil maravilhas!”. Não havia o desejo ou a inquietação de falar sobre
sexualidade. Desde criança, ou até a adolescência, isso era reprimido, tanto pelos
conselhos paternos, como pelos preceitos da igreja. Assim, não conversava com
ninguém, porque havia... não sei se era medo, ou se era uma “precaução” de me expor em
relação à conversa. Estava adormecido ... Eu não lembro se houve algum aprendizado
sobre essas questões. Lembro que quando estudava nos anos iniciais, eu era sempre
visto como aquele menino que fazia todas as atividades, que emprestava o caderno...
Quando eu não brincava com os outros meninos de pegar na bunda das meninas, de
fazer algum ato de “saliência”, eles já comentavam: “ele é gay”, ou então “o viadinho”.

.
257

Mas, logo isso acabava, porque eles sabiam que eu tinha algo a oferecer, emprestando o
caderno com as atividades prontas. Então, eu me sentia com um pouco mais de força,
não me sentia ameaçado por eles... eu tinha certo “poder” em relação aos outros meninos
da escola. Já nos anos finais do ensino fundamental, foi diferente. Eu tinha interesse
pelas meninas, mas também tinha um olhar diferenciado para os meninos. Não sabia por
que isto acontecia, até porque ouvia dizer que era normal um menino olhar o outro,
achar a pele bonita... Podia achar! Depois de mais um tempo, já no Ensino Médio, essa
“normalidade” começou a me inquietar, porque não era só olhar, mas sim, olhava e
sentia interesse, vontade de estar perto, de abraçar, de beijar, de fazer coisas que os
meninos faziam com as meninas, normalmente. Mas, essa normalidade eu não conseguia
perceber entre duas pessoas do mesmo sexo. E isso me inquietava! Achava que não era
certo. Isso porque sempre ouvi em minha casa e pelos preceitos da igreja, que isto não
era certo, porque Deus fez o homem e a mulher para viverem juntos...Então, eu não
queria falar com ninguém sobre o assunto porque eu sabia que era errado e as pessoas
sempre diziam que eu só fazia coisas certas. Com isso, me perguntava: como mostrar
algo de errado? Não havia condições... Eu me sentia totalmente impossibilitado de
demonstrar um erro, demonstrar que sentia atração tanto por meninas, quanto por
meninos. Às vezes nem achava que era errado ou certo, porque eu só sentia, não fazia...
não tinha ação... Como não tinha ação, meu corpo não era inundado pelo pecado. Hoje
entendo, perfeitamente, quando os jovens possuem desejos reprimidos. Desse modo
busco ajudá-los para que possam conhecer a si mesmos e com isso encontrar caminhos
que os favoreçam em seus mais diversos aspectos. Lembro-me que até o Ensino Médio
ainda não vivia um conflito, porque em nenhum momento eu fiquei triste, em nenhum
momento eu ficava num canto, ou tenha me afastado dos outros. Em nenhum momento
eu me rejeitei. Inclusive, quando eu não queria fazer parte de algum grupo na escola, eu
não ia e pronto. E nem por isso eu me senti ameaçado ou insatisfeito Mas, depois que eu
saí do Ensino Médio e entrei no Ensino Superior, comecei a me inquietar. Isso porque
alguns dos conhecimentos teóricos se conflitavam com as questões religiosas que tinha
aprendido.

Quando iniciei o Curso GDE, o conflito apareceu. Até o curso não vivia um
conflito, porque as questões religiosas eram superiores a outras questões. Até o Ensino
Médio, só namorei meninas... duas meninas. Mas, só namorava um mês, dois meses... Até

.
258

acredito que era só de “fachada”. Às vezes até acho que eu até gostava delas, mas não
tenho certeza que tipo de gostar era esse... Agora namorar rapazes foi só depois do GDE.
Agora... durante o processo todinho, nessa história de “ação”, até o Ensino Médio, eu
podia até “namorar” meninos, mas não beijava ... E isso era muito ruim! Pensava comigo
mesmo: como é que um homem pode beijar outro homem? Não tinha condições... até
porque entendia que beijar era pior do que um ato sexual... por ser um momento mais
próximo, de amor, e não um ato só de “carne”. Mas, depois do curso, comecei a entender
que as questões religiosas são impostas como uma “verdade absoluta”. Outros
preconceitos que tinha, também foram se diluindo...

Lembro ainda que depois que saí do ensino médio e comecei a dar de espanhol,
conheci o primo de um aluno da escola. Com ele descobri fui descobrindo... ou, não
queria ver... Foi com ele que as coisas foram se esclarecendo.... Tanto para mim quanto
para ele... Eu fui o primeiro namorado dele e ele foi o meu primeiro namorado, mas não
houve relação sexual entre nós. Nosso relacionamento não durou muito... primeiro era
só amizade, depois... depois que eu soube... eu negava... inicialmente eu não queria. Por
mais que tivesse desejo, havia algo que me impedia de querer... até o dia em que ele se
interessou por outro rapaz e queria namorá-lo. Quando ele me contou o fato, foi que
entendi que podia perde-lo, então eu disse: Não! Eu te quero! Você vai namorar é
comigo! Foi quando começamos a namorar. Ele falou com os familiares dele... mas o
namoro acabou. Depois ele namorou outra pessoa. Hoje estou praticamente casado.
Tenho um companheiro de quase 3 anos de convivência. E esse meu ex-namorado
continua sendo meu amigo, um é confidente do outro. Há um carinho e respeito muito
grande entre nós dois.

Sobre o processo de escolarização, inicialmente, eu e meu irmão mais novo


fomos para uma escolinha particular para aprender a ler e escrever, pois ainda não
tínhamos idade para ir para uma escola pública. Naquela época somente podia ingressar
na escola pública com sete anos. Depois eu e meu irmão entramos numa escola pública
estadual, mas as escolas municipais de Imperatriz daquela época, não tinham boa
organização, o que afetava no processo de ensino e aprendizagem. Lembro que a
primeira professora da escolinha era muito “carrasca” e eu morria de medo dela. Então,
eu fazia de tudo para não errar, porque se errasse, ela dava uma palmatória para um

.
259

colega bater na gente. Mas, eu nunca levei uma palmatória e também não dei em
ninguém. A segunda professora, eu me lembro muito vagamente, passou pela minha
vida, mas de forma bem apagadinha... Já na escola pública, eu me lembro da professora,
uma senhora muito amável. Creio que foi aí que eu comecei a gostar do magistério e a
querer ser professor. Eu a adorava! Ela me mandava escrever no quadro e eu amava
isso... Depois, tive outra professora, mais amável ainda. Inclusive, no ano passado nós
trabalhamos juntos numa escola. Algumas vezes ela também me mandava fazer
atividades no quadro e eu gostava muito. Outra professora, que também foi referência
para mim, foi a da 2ª a 4ª série. A referência que tive em relação a ela, foi sobre sua
forma de nos tratar, sua oralidade, sua disposição sempre acolhedora... A professora da
pré-escola, sempre fazia uma atividade extra, fora da sala de aula, que eu não gostava
muito. Queria mesmo era ficar dentro da sala, lendo, escrevendo, fazendo atividades... Na
primeira série, a professora fazia muito isso e eu adorava. Quando a aula não tinha essas
atividades dentro da sala de aula, eu não gostava. Eu me lembro que na quarta série, teve
um conteúdo sobre reprodução. Nós ficamos encantados com os órgãos, as figuras... Só
isso e mais nada! Depois, só na sétima série, nas aulas de Ciências, estudamos sobre o
corpo humano, víamos as questões biológicas sobre reprodução, cuidados higiênicos
com o corpo. Orientação sexual? Esclarecimentos de dúvidas sobre a identidade sexual e
as relações de gênero? Não existiam! Ninguém comentava sobre essas questões. Parecia
que tudo era proibido! Talvez a proibição fosse uma saída para as professoras que não
tiveram em sua formação, discussões sobre as temáticas. Lembro também que a escola
era bem grande. Então quando alguém queria namorar, ia para um lugar longe, menos
acessível, porque sabiam que era proibido namorar na escola. Havia algumas regras e se
essas regras fossem transgredidas, nossa! Também havia tratamento bem diferenciado
em relação aos comportamentos de meninas e meninos. Percebia, por exemplo que
primeira a quinta série isso era bem claro, pois diziam: os meninos brincam de tal coisa,
as meninas com tal coisa. Além disso, era proibido as meninas brincarem com a gente.
Quando as meninas iam brincar conosco e acontecia alguma coisa, como por exemplo,
elas se machucassem, as professoras logo diziam: “eu não falei!” “Foi benfeito!”, “Não
deviam ter ido brincar com eles, porque isso não é brincadeira de menina!”. Mas,
quando elas queriam brincar com a gente, barganhávamos dizendo: “para você brincar
com a gente, precisa nos dar tal coisa!”. Lembro também que nas aulas de ciências os
professores enfatizavam o cuidado que as meninas deviam ter com o corpo e o “não

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260

cuidado” que os meninos deviam ter com o corpo. As meninas deviam se cuidar mais,
lavar-se direitinho, usar calcinha... Se tivesse um sangramento, devia falar com os pais,
porque podia ser a menstruação... Já com os meninos parecia ser normal não usar ou
usar cuecas, ficar sujo, com cheiro de suor...Então o não cuidado com o corpo dos
meninos, de certa forma, também era explícito nas aulas de ciências.

Quanto ao fato de eu querer ser professor, lembro que desde os primeiros anos
do ensino fundamental, já tinha vontade de dar aulas. Na época estudava à tarde, e todas
as manhãs, em casa, eu imitava a professora, falava alto, fazia chamada, fazia de conta
que estava reprimindo algum aluno que estivesse inquieto, fazia tudo isso... Quando
cheguei aos anos finais, tinha uma vontade enorme de ser professor de matemática. Eu
olhava o professor de matemática e gostava muito. E eu continuava dando aula, para
ninguém, em minha casa. Com isso, todos perguntavam se eu queria ser professor.
Quando passei para o primeiro ano do Ensino Médio, começou aquela inquietação: o que
devo fazer: formação geral ou magistério? Foi quando uma escola aqui de Imperatriz
passou a ser o Centro de Formação para Formação do Magistério e eu decidi estudar lá.
Passei três anos fazendo magistério, foi quando me encantei pela Pedagogia. Então,
minhas dúvidas aumentaram. Me perguntava: e agora? Devo escolher Matemática ou
Pedagogia? Foi quando escolhi os dois cursos e prestei vestibular nas duas
universidades públicas de Imperatriz e passei em ambas. Fiz Matemática na UEMA e
Pedagogia na UFMA. Quando ainda cursava o magistério de ensino médio, já eu era
professor auxiliar na mesma pré-escola (particular) que estudei. Quando entrei na
universidade fui estagiário atuando como educador social no PET. Logo que saí do PET,
fui dar aula numa escola particular de educação infantil. Durante quatro anos fui o único
professor homem em Imperatriz que atuava nesse nível de ensino.

Quanto a minha formação no ensino superior, lembro que no curso de


matemática era meio “apagado”. Isso porque parecia que todos os alunos sabiam de tudo
em relação à matemática. A relação era de “macho” mesmo! Havia apenas quatro
meninas na turma e elas ficavam sempre de lado... Embora soubéssemos que elas
estavam no nosso nível, que se esforçavam bastante, que faziam as atividades... sempre
caçoávamos, tentando menosprezar o intelectual delas. Percebia também que apesar do
curso ser de licenciatura, saíamos dele como um ótimo matemático, mas, péssimo

.
261

professor. À noite fazia Pedagogia na UFMA. Neste curso era bem diferente! Como
éramos apenas três homens na turma, meu destaque era bem maior... minha relação com
os professores era bem melhor, nosso contato era bem mais próximo... Enquanto que na
UEMA percebia um distanciamento grande com os professores. No curso de
matemática, o mais relevante foi eu perceber o quanto não devo fazer... em relação ao
que o curso me ofereceu, ou seja, percebia atitudes de quem é matemático e não de
quem ensina matemática. Por exemplo, quando eu tinha alguma dúvida e perguntava, o
professor dizia: “não é possível! Você não quer ser matemático?”. Então não pode
perguntar! Tem que saber! Parece que ninguém podia ter dúvidas, era como se já
tivéssemos o conhecimento pronto e acabado. Estávamos lá apenas para melhorar o que
já sabíamos. Somente quando tínhamos as matérias pedagógicas era bem diferente! Na
UFMA, o que me completou ainda mais foi o tratamento dado pelos professores,
podíamos esclarecer nossas dúvidas... O curso de matemática era muito “seco”! Muito
frio! Hoje, não sei se melhorou, mas creio que não. Lembro também que durante essa
etapa da minha formação inicial, em momento algum tive a possibilidade de estudar
questões relacionadas a gênero ou sexualidade. Somente na disciplina Psicologia da
Educação, na UFMA, vimos de forma muito superficial, apenas um capítulo que tratava
sobre Freud e as fases do desenvolvimento psicossexual da criança.

Sobre a inserção de questões de gênero e sexualidade no currículo dos cursos de


formação de professores, eu penso que isso é muito complicado, tanto que na semana
passada, eu passei por uma situação muito difícil aqui na UFMA. Eu tive que desabafar
no próprio Departamento, com os colegas, dizendo que era uma covardia não quererem
aprovar a disciplina Educação e Sexualidade. Por quê? Aqui no Curso de Pedagogia da
UFMA, não existia nem como opcional. E é o Departamento que escolhe as disciplinas
para o aluno fazer. Então não é opção, é uma obrigação! Eu propus, no processo de
reformulação do Projeto Pedagógico do Curso, que tivesse a disciplina Educação e
Sexualidade porque todo curso discute a psique humana, mas não discute a sexualidade
humana. Eu perguntei para os colegas: Será que nós somos só cognição, psique. Ninguém
possui sexualidade? Vocês são todos assexuados? Não sei se foi pelo impacto do
momento... Em seguida, expliquei, disse os motivos da relevância da disciplina... Com
isso, até certo ponto, houve uma concordância aprovando, mas chegou um momento em
que uma das professoras desabafou. Ela disse que não podia ser uma disciplina

.
262

obrigatória porque “ninguém aqui, além de você tem condições de fazer isso, e quando
você sair daqui? Você é substituto...”. Ela usou um artifício importante, mas, no fundo
penso que foi por questões religiosas. Ela usou um artifício real, que fragiliza o grupo e,
além disso, o grupo não quer estudar para trabalhar uma nova disciplina...E, usou esse
argumento para a disciplina não ser aprovada e, para não ser taxada como
preconceituosa. Dessa forma, saiu pela tangente e a disciplina não foi aprovada como
obrigatória, mas conseguimos aprová-la como “optativa”. Ela disse: “depois, com o
tempo, ela pode ser aprovada como obrigatória”. E a disciplina foi aprovada por dois
votos de diferença. Inclusive, os dois votos foram de pessoas de militância negra da
cidade, do estado, pessoas que sentiram e sentem na pele o que é ser discriminado,
rejeitado, humilhado, ser colocado como inferior, minimizado... Mas, quando se trata de
outra pessoa, no caso o homossexual, ou as relações de gênero, não percebem isso.
Então eu fiquei horrorizado em ver que pessoas que sentem na pele a rejeição, o drama,
a “baixeza” dos outros, acabam fazendo a mesma coisa. Então para mim, foi uma
covardia! Na UEMA, nos cursos de licenciatura, é mais difícil ainda. Eu penso que devia
ter, em todas as licenciaturas, uma disciplina que trabalhasse essas questões, porque nós
saímos das licenciaturas sem entender nada sobre sexualidade e gênero. E, na sala de
aula, tem esses assuntos. E o que fazemos? Acabamos virando as costas! Mandamos os
alunos se calarem... Então, as coisas acontecem e por si só têm que ser resolvidas. Ou
seja, silenciamos e amordaçamos a nós mesmos e também nossos alunos. Já no curso de
Pedagogia da UEMA, tem a disciplina Educação e Gênero. Ela é optativa! É a segunda vez
que eu a trabalho. Tanto que no período anterior, as alunas disseram que ela foi A
matéria que as ajudou quando fizeram o Estágio Curricular Obrigatório na Área de
Interesse do Aluno, no Pró Jovem Urbano, com adolescentes entre 16 e 18 anos. Elas
disseram que se não fosse essa disciplina, não saberiam como trabalhar algumas
questões que apareceram no processo. Entretanto, penso que a formação geral do/a
professor/a ainda é muito ultrapassada, porque só trabalham com a psique, somente o
cognitivo. As questões da sexualidade, nem se cogita! Penso que há, ainda, uma grande
falha da universidade em não se preocupar com a sexualidade humana.

A primeira vez que trabalhei questões sobre sexualidade, foi com crianças de 06
anos, na Educação Infantil. Era um conteúdo do corpo humano. Eu me perguntava como
eu iria trabalhar não apenas o que é mão, o que é perna, mas sim o corpo como um todo.

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263

Eu me inquietava porque não sabia como fazer. Até que lembrei de um comercial da
televisão que falava das partes do corpo humano e mostrava as imagens em desenhos.
Foi quando tive uma ideia: peguei duas folhas de papel madeira, uma para menino, outra
para menina e pedi para que um menino e uma menina se deitassem na folha e outro
colega desenhasse o contorno do corpo. Depois disso, deveriam completar os desenhos
com as partes do corpo e falar os nomes. Primeiro eu perguntei para eles. A princípio,
ficaram rindo, mas depois levaram a sério. Quando chegou às partes dos órgãos sexuais,
falaram vários nomes menos pênis e vagina. Então eu falei: “olha, o nome não é esse” e
falei os nomes oficiais. Até que num outro dia, um dos meninos falou: “meu pau tá
assim...”. E um colega disse: “não é pau que se fala não, é pênis!”. A aula que eu tinha
dado no dia anterior ajudou nessa questão. Nossa intenção era esclarecer os nomes, falar
da higienização e do respeito pelo outro... porque eles faziam muitas brincadeiras do
tipo abaixar o short para olhar as partes íntimas do outro. Nosso trabalho era mais de
orientação, a sexualidade não estava muito explícita não. Mas, depois eu senti
necessidade de estudar mais sobre o assunto, especialmente porque quando dava aulas
na quarta série, uma menina me procurou e falou que estava menstruando e eu não
sabia o que fazer. Fiquei preocupado: “Comigo logo! O que eu vou fazer?”. Então, falei
com uma colega e pedi que ela desse uma aula para as meninas sobre esses assuntos.
Naquele dia as duas turmas foram separadas: ela ficou com as meninas para falar sobre
menstruação, cuidados... E eu fiquei com os meninos porque não tinha nenhuma
condição de falar com as meninas sobre esses assuntos. Sentia-me sem forças, tinha
vergonha, não sabia o que fazer... Os meninos só perguntaram sobre eles, queriam saber
como surgem os pelos, o que fazer quando o pênis ficava... assim... Eram mais situações
de curiosidade sobre eles mesmos. Em relação aos comportamentos de meninos e
meninas, aqueles que não são considerados “culturalmente adequados” em relação ao
seu sexo, quando era aluno, eu não percebia e quando comecei a lecionar parece que eu
velava, não dava atenção... Até porque não sabia como fazer, somente quando trabalhei
no Ensino Médio, parece que eles queriam me atingir pessoalmente...eu me senti
irritado. Por duas vezes eu falei sobre isso: uma vez foi com uma colega na sala dos
professores, quando ela chegou dizendo: “vocês viram o fulano? Hoje ele está pior do
antes. Está até com roupa feminina!” Eu me irritei e disse: “o quê que tem isso? Vocês
são professoras, deviam fazer diferente...Mas, estão sendo preconceituosas”. Outra vez
foi na própria sala de aula com um aluno que era discriminado, o mesmo rapaz que me

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264

incentivou a fazer o projeto sobre sexualidade no GDE. Eu dizia: “vocês não podem fazer
isso com ele”. “Vocês estão agredindo seu colega, estão sendo preconceituosos”. Ele era
até o líder da turma, era quem fazia tudo, que ajudava todo mundo... Parecia que
naqueles momentos, ele não era a “bicha”, não era o “baitola”. Em relação a mim mesmo,
por duas vezes eu sofri preconceito, mas foi antes do GDE. Depois não, até porque
aprendi como rebater. Agora, sempre que alguém vem pro meu lado com alguma forma
de agressão... quando eu sinto que querem me atacar, eu rebato com o conhecimento
que venho adquirindo. Inclusive, neste ano, estou orientando duas monografias de
graduação sobre o assunto, um na UFMA e outro na UEMA: o da UFMA trata do gênero,
sobre casos de homens que passaram no concurso público para auxiliar de magistério,
mas foram remanejados da função, porque tanto a secretaria, como os próprios pais não
queriam eles nas escolas. E eles mesmos aceitaram a situação. A da UEMA trata da
sexualidade na pré-escola. Então eu vejo não só como possível, mas como necessário
trabalhar de forma a conceber o masculino e o feminino num processo relacional de
igualdade. Os alunos de forma indireta, clamam por isso! Seja menina, ou menino, seja
hetero, ou não, eles clamam por isso. No entanto, para que isso aconteça, a primeira
coisa que se tem que fazer, é buscar alternativas para que o professor tenha esse
conhecimento, porque nós não temos. E também não é só ter conhecimento, porque
muitos velam essas questões. É preciso ver se as coisas estão caminhando. Penso qiue a
situação é emergencial. Eu vejo isso como natural, mas infelizmente o problema não é só
com professores, é também da própria academia. Hoje, aqui em Imperatriz, tanto na
UEMA, quanto na UFMA, quando as pessoas falam de gênero e sexualidade, lembram-se
de mim. Teve também uma monografia de uma aluna da UEMA, apresentada no ano
passado, que tratou da opinião de professores de Ensino Médio sobre a sexualidade. Os
resultados foram alarmantes. Todos os professores formados e a grande maioria com
um enorme preconceito. Eles dizem: “eu concordo, eu aceito normalmente, mas longe de
mim”, “não sendo alguém que chegue perto de mim, que queira algo comigo, tudo bem,
eu até respeito”.

O meu ingresso do Curso GDE se deu especialmente devido à experiência que


tive na Educação Infantil. Nos quatro anos que passei na Educação Infantil eu era o único
homem e no primeiro ano na escola, nenhuma menina estudou comigo, porque as mães
retiraram suas filhas da sala de sala. Havia duas salas sendo uma com meninas e

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265

meninos e outra só com meninos. Então na minha turma eram apenas sete meninos e eu.
A minha sorte é que a diretora me apoiou bastante e parece que fiz um bom trabalho,
tanto que no ano seguinte a sala ficou quase cheia de meninos e meninas. As mães viram
o trabalho que desempenhei com os outros meninos e perguntavam: “como ele
conseguiu fazer isso?” Mas, de qualquer forma, foram quatro que os pais me viram de
maneira preconceituosa. Eles perguntavam: “Por que será que ele tá dando aula na pré-
escola? Será que ele é homossexual?”. Até as colegas também me rejeitavam, porque eu
não tinha os tratos que elas tinham na sala de aula. Elas diziam que era o jeito de se
trabalhar na Educação Infantil: cortar papel, desenhar, fazer coisas pequeninas. Mas, eu
me vi obrigado a aprender e aprendi. Agora, eu quero vê-las falarem que eu não tenho
jeito. Então quando soube do GDE, os conteúdos que iria tratar, resolvi me inscrever,
queria entender melhor essas questões. Dois meses depois do início do curso fui dar aula
no Ensino Médio e foi quando aconteceu o fato com aluno que me motivou a realização
do projeto.

Lembro que a maior dificuldade encontrada no Curso foi para aceitar o


conhecimento. Eu me via em conflito para aceitar o conhecimento teórico, porque existia
algo mais forte em mim. O processo da inculcação religiosa me impossibilitava aceitar o
que estava estudando... sobre a sexualidade, a homossexualidade, a bissexualidade, a
transsexualidade ... As relações de gênero nem tanto, mas as questões da sexualidade
eram bastante difíceis de aceitar. Mas, quanto mais eu estudava, mas eu percebia que o
conhecimento religioso era falho, que não mais cabia eu aceitá-lo como se fosse o único
conhecimento, pronto e acabado. Passei a ver que era uma imposição de pessoas para
ter o mundo do jeito que queriam. Com tudo isso, dentre as temáticas estudadas eu mais
me identifiquei com Gênero e sexualidade. Sobre as questões de gênero foi devido ao que
vivenciei na Educação Infantil e com os estudos do curso, pude elaborar um artigo sobre
a desmistificação do homem na pré-escola. Esse artigo foi apresentado num colóquio
aqui em Imperatriz e também dei uma entrevista para um jornal escrito daqui sobre a
questão. Então, a associação do que eu aprendi sobre gênero no curso contribuiu para eu
desconstruir as falas das professoras, das mães, sobre a atuação do homem na pré-
escola. E me identifiquei com as questões da sexualidade por um bem pessoal. Devido a
minha bissexualidade, porque eu sabia que havia algo diferente em mim, mas não sabia
o nome que iria dar. O aprofundamento sobre essas questões clareou minhas ideias e me

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266

dau forças para entender o que acontecia comigo... o que sentia... aprendi a distinção
entre homo, bi, trans ... Dentre as temáticas estudadas, senti mais dificuldades com as
Relações étnico-raciais. Ainda hoje não tenho nenhuma vontade de aprofundar nessas
questões. Só estudei no curso por obrigação. Outra coisa: teve duas ocasiões no curso
que foram muito significativas para mim. A primeira foi a oficina sobre gênero e
sexualidade que realizamos durante um dos encontros presenciais, com a professora
Elizângela. Ela fez algumas atividades muito significativas e que podemos também
realizar com nossos alunos nas escolas. A outra foi no auditório, no final do curso,
momento em que pudemos dizer nossas opiniões, apresentar nossas experiências... Nas
discussões on line, no Ambiente Virtual, eu via pouca discussão. As pessoas postam
alguma coisa, mas não comentam nada. Então eu vejo isso como um tanto insignificante.
Ainda hoje no outro curso a distância que realizo, vejo que isso ainda acontece, as
atividades on line não têm muita significância. Eu gostava e gosto muito dos momentos
presenciais. Sobre o Projeto de Intervenção elaborado ao final do curso, confesso que
fiquei triste porque o resultado do projeto não foi satisfatório. A própria escola ficou
sem vontade de fazer acontecer. Eu comecei a desenvolvê-lo, mas depois não fiz mais,
por dois motivos: a escola não quis, ela achava que o debate não cabia no PPP e, também
o rapaz que era o objetivo do projeto desistiu da escola, deixou de estudar. Então eu
fiquei muito triste, porque fiquei sem saber que resultado poderia ter. Em relação a
outras mudanças de posicionamentos relacionados a gênero e à sexualidade, posso dizer
que sobre o gênero eu já tinha uma atitude diferenciada em relação à questão. Mas,
sobre sexualidade, houve grandes mudanças, como a aceitação do outro, porque antes
eu ficava um pouco inibido, não gostava de estar perto de homossexual, sair, me
relacionar ou mesmo ter como amigo. Não tinha contatos com aquele que não tem uma
orientação que a sociedade vê como normal, antes tinha receio... Então, posso dizer que
mudei, foi da água para o vinho. Com certeza, o curso mudou plenamente também
minhas práticas escolares. Na minha formação foi muito importante, primeiro porque eu
tinha uma deficiência pessoal e depois foi direcionando para uma formação profissional,
que a academia não me proporcionou. Entender a sexualidade, entender essa
manifestação, que nós temos, sexual... Sobre as relações de gênero, o curso
proporcionou entender, de forma teórica – uma grande deficiência que nós temos – que
a academia não trabalha, mas o curso GDE trabalhou. E sobre sexualidade, para eu
entender eu mesmo... o curso me fez entender quem eu sou, porque estou aqui, porque

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267

sou e devo continuar dessa maneira... O curso também favoreceu meu primeiro
namorado a entender quem ele é. O curso nos favoreceu a aceitar quem nós somos e a
aceitar o outro.

 

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268

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269

“É pecado, mas eu não sou Deus para condenar... hoje eu


digo: “a vida é tua! Tá feliz? Amém! ”.

Meu nome é Elias, nasci em Imperatriz, venho de uma família com oito filhos,
sendo cinco mulheres e três homens. Lembro que quando criança, minha mãe sempre
demonstrava afeto e conversava sobre todos os assuntos conosco, sobre sexo, namoro...
sobre tudo isso ela falava com a gente. Já meu pai ... largou a gente quando eu tinha uns
oito, nove anos, assim não lembro nada para presença dele, eu era muito criança, lembro
que tinha muita vergonha...ele era e ainda é alcoólatra, sinto muita vergonha! Com
minha mãe ele era agressivo, a espancava ... não trabalhava e quando ia para casa era
para “encher o saco” da mãe. Com os filhos, as vezes era agressivo, as vezes não. Mas,
não era um pai digamos assim, “carrasco”. Minha mãe sofria muito! Durante a infância
eu brincava muito, não conversava com ninguém além de minha mãe e meus irmãos.
Não me lembro de ter acesso às conversas dos adultos, nossa obrigação era trabalhar e
estudar em casa, limpar as coisas, ajudar a mãe e estudar. E, se fizesse alguma coisa que
a mãe não gostasse, “era tapa no pé de orelha”. Ela batia na gente em qualquer lugar.
Lembro, no tempo da escola, que eu apanhava na frente de todos, então eu ficava meio
envergonhado, humilhado... Eu lembro do dia que minha mãe me bateu na frente de uma
menina que estava paquerando. Faz tempo! Eu aprontei e ela meteu o tapa. Aí, senti
muita vergonha. [risos]. Tanto que desisti da menina. Hoje ela é formada e nem soube
que eu era apaixonado por ela.

Sobre questões da sexualidade, como corpo, namoro, menstruação, ejaculação,


eu aprendi com meu irmão mais velho. Não conversava muito com a mãe. Aprendi o que
fazer e o que não fazer e o corpo foi dizendo naturalmente também. Quando eu tinha uns
doze anos, nossa turminha se juntava e dizia: “vamos num cabaré! ”. Começou assim, um
“bando” de “menino do buxão” indo, sozinhos, para o cabaré. “Eu lembro que era
“Horrível” [risos]: primeiro para agarrar uma mulher, paguei o equivalente a um salário
mínimo de hoje. E eu não sabia nada... Paguei e fui comentar com meus colegas que eu
não sabia de nada e que fiquei assim ... [calou-se]. Aí a mulher, a prostituta, ficou
sabendo, foi bater na gente e botou todo mundo para correr naquele dia”. Hoje ela é mãe
da família, evangélica, eu a vejo na rua e acho que não se lembra de mim [risos]. Eram
tantos clientes ... e eu era só mais um “menino do buxão”.

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270

Em casa, minha mãe protegia mais as mulheres do que os homens. Para nós,
homens, ela dizia: “te vira!” As mulheres era aquele cuidado. Até nos serviços da casa,
éramos nós homens quem fazia. Tinha que lavar o banheiro, varrer a casa... varrer a
escolinha de minha mãe, que era dentro de nossa casa, lavar banheiro da escola,
enquanto as meninas só cozinhavam e mais nada. Elas só faziam o almoço.

Quando iniciei na escola, eu só lembro que eu sofri muito. Era uma escola do
tipo municipalizada, ou seja, minha mãe que era a dona do prédio o alugava para o
governo. Era uma escola grande e oferecia da primeira a oitava série. Mas, eu estudei
nessa escola somente até o sexto ano. Depois fui para uma escola municipal pública,
onde terminei o ensino fundamental. Eu lembro que meu primeiro professor era muito
fraco, não era formado, parecia que só queria enganar a gente. Era horrível! Os
professores eram do município e era um pior que outro. Não gosto nem de falar... Só é
vergonha e decepção, é que dói muito essa ferida. Às vezes havia até agressão física. Só
quando a diretora chegava é que diminuía o sofrimento. E minha mãe muito durona, do
tipo daquela guerreira que quer não saber o que aconteceu... e eu, na realidade, não
pensava em estudar, eu só queria era brincar. E com essa de brincadeira, apanhava
muito. Na escola era muito humilhado, sentia muita vergonha. Mas nunca deixei de ser
muito brincalhão, quem me conhece sabe que sou muito moleque.

Tanto nessa primeira escola, como na outra que estudei, e ainda depois da
escola municipal não lembro de nenhum momento em que foi tratado questões da
sexualidade durante as aulas. Mas, normalmente, se aparecia algum menino
homossexual, o preconceito era grande, a “taca” era grande... as vezes os outros meninos
e até as professoras batiam mesmo e isso era meio complicado. Os professores diziam:
“sai daqui seu ‘boiola’. Os meninos tacavam pedras. Eu não me misturava. Só depois que
terminei o ensino médio, comecei a ter amizade com o povo homossexual. Eles são
gente, são superamigos, pessoas que podemos contar. E os que eram homens mesmo,
corriam atrás das meninas. Eu lembro que isso era horrível, a gente corria atrás mesmo,
e levava para o mato que tinha na Cidade Operária e na Estiva, bairros próximos que
tinha muito mato e quase sem moradores. Lembro também que fiquei meio
traumatizado com o primeiro beijo, fiquei com medo [risos]. Ela era bem mais velha que
eu, uns dez anos mais ou menos, eu tinha doze anos e ela devia ter uns vinte, vinte e dois.
Na realidade, foi ela me “atacou”. Ela disse que queria falar comigo e eu fui chegando lá

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271

ela quis me “desfrutar”. Eu peguei, mas fiquei com medo... E depois que passou ia
comentar com os colegas. Sempre comentava com os colegas... então, eles também
queriam pegar, queriam dividir a mesma menina...

Em relação a minha formação como professor, posso dizer que foi um acidente...
Eu comecei a fazer o curso de Ciência Ambiental e Ciências Biológicas com licenciatura.
Então, fui vendo as vantagens dessa profissão. Com isso, disse: “vou ser é professor...
comecei e estou até hoje”. Hoje, embora seja professor, posso dizer que os papéis não me
ajudaram muito, eu aprendi mesmo foi na prática. Outra coisa: foi minha mãe quem
escolheu Ciências Biológicas. Ela fez minha matrícula pagou tudo e eu acabei tendo que
estudar o que ela escolheu. E depois que entrei no curso, depois da metade do curso, foi
que “caiu a ficha”. Até no meio do curso eu dizia “o que estou fazendo aqui? ”. Neste
curso também era muito perseguido pelos professores... havia muita falta de
profissionalismo, muita falta de ética, muita perseguição... eles deixam o profissional de
lado e partem para o particular... Na época comecei a trabalhar de dia e estudava a noite.
O que me chamou a atenção foi reconhecer que as coisas não são como a gente pensa. A
educação, por exemplo, é uma coisa linda na teoria, mas na realidade não é não. Eu até já
tentei fazer diferente, o que estava ao meu alcance, mais não adiantou.

Sobre questões da sexualidade, lembro que durante o curso de Ciências


Biológicas tivemos um Seminário para que víssemos de onde vem o homossexual, como
que isso acontece... vimos cenas que as crianças, os meninos, devem se prender mais a
imagem do pai do que o da mãe, pois elas precisam ter um referencial para poder
concretizar o seu lado... eu acredito nisso. Cerca de noventa por cento dos meninos que
conheci, viraram.... Por não tem o referencial pela frente. Lembro ainda que na minha
época no exército, lá no quartel eles serão agressivos. Podemos ver que todo militar bate
em uma mulher... e dependendo do meio à pessoa é agressiva ou meia afeminada. Eu
mesmo tenho o jeito de mulher e sou um pouco afeminado... Minha mãe diz que é
genética, pode ser isso também... O afeminado que eu falo é pelo seu jeito de se
comportar... eu tenho muitos alunos com esse jeito... e quando pergunto com quem você
mora, eles dizem: “vovó, titia...”. Então eu acho que isso influencia... porque muitos não
têm a figura do pai e isso conta muito, especialmente naquela fase que ele está
resolvendo a sexualidade. No caso das meninas, se elas não têm a mãe como referência,
ela será grossa como pai, ela vai ser bruta, daquelas que diz que vai dar “porrada” ou diz

.
272

que vai te dar um tiro. E no caso o menino que é criado só com a mãe ou só com a avó e a
menina que é criado só com o pai no caso o menino desenvolve o jeito mais afeminado e
a menina o jeito mais masculino. Eu penso que isso interfere muito na sexualidade na
orientação sexual. Antigamente a maioria das pessoas era bem mais preconceituosa,
falavam mais... hoje não comentam tanto. Hoje as pessoas têm mais liberdade para
assumir o que são.

Hoje, por exemplo, eu tenho alguns alunos que têm comportamento afeminado e
eu digo que tem que respeitar: “se não gosta não critique tem que respeitar como gente”.
Na escola, procuro conscientizar. Agora para ver essas mudanças, como a rotatividade
de professores nas escolas é grande demais, a gente acaba não vendo a mudança. Seria
preciso ficar pelo menos 2 anos, 3 anos na escola para ver mudança. Até porque, depois
de realizar o curso GDE, aquela pendência que eu via do mais afeminado, com mais
jeitinho... eu fiquei mais interessado... eu queria era conhecer um pouco mais mesmo, eu
queria entender aquela situação. Mesmo não tendo desenvolvido o projeto que
elaboramos no final do curso, após o curso, com certeza, eu tenho uma visão maior sobre
o respeito, a agressão que sofrem quem tem aquele “jeitinho”. Eu não tolero mais essas
coisas... antes eu vivia sorrindo dos outros, sorria... porque achava muito engraçado ver
os outros sofrendo. Hoje eu não tolero mesmo. Chego a parar a aula para trabalhar essas
questões... tento passar o entendimento para as pessoas que nem todo mundo é igual a
você e depois eu não aceito o desrespeito porque a pessoa é gay ou bi. Antes eu só ria.
Hoje eu não sou contra e nem a favor. Eu só quero que não agridam, que deixem as
pessoas viverem como elas querem. Entendo que isso é pecado, mas eu não sou Deus
para condenar... hoje eu digo: “a vida é tua, ta feliz? Amém”. Nós temos o livre arbítrio, eu
não posso forçar ninguém a fazer nada, agora preciso entender que não posso te agredir
porque é uma pessoa homossexual.

 

.
273

[...] as meninas são mais resolvidas, elas são mais ‘linguarudas’, elas
falam o que pensam, os meninos não.

Meu nome é Fátima, tenho 50 anos, sou casada, tenho um casal de filhos. Sou
Espírita Kardecista. Realizei Curso Técnico em contabilidade, sou Licenciada em Letras,
tenho Especialização em Educação Especial e Mestrado em Ciências Sociais. Atualmente
sou professora substituta na UFMA, no Curso de Licenciatura em Informática,
lecionando a disciplina Fundamentos da Educação. Mas, já trabalho como professora há
20 anos. Realizei o Curso GDE no Polo de Imperatriz. Na época era professora no Centro
de Ensino Médio Estado da Guanabara no município de São José de Ribamar – MA. Nasci
em São Luís e venho de uma família muito afetuosa, composta por pai, mãe, 5 irmãs e 3
irmãos. Meu pai era Agente Marítimo e Fluvial da Marinha Mercante e minha mãe
costureira. Meu pai era extremamente alegre, minha mãe também. Como meu pai
passava muito tempo fora, por conta da Marinha, minha mãe tinha que ser o homem e a
mulher da casa. Eu compreendia que esta era a forma que ela tinha de demonstrar um
pouco da presença do pai. No entanto, eu percebia que aquele “punho forte”, na verdade,
escondia uma mulher que tinha certo receio em relação ao marido, pois temia que ele
chegasse em casa e a encontrasse desarrumada, por exemplo.

Em minha família todos conversavam bastante, mas somente o que fosse


moralmente permitido (risos), sendo que meu pai era bem mais “aberto” do que minha
mãe. Ele conversava bem mais do que minha mãe, chegando até mesmo a falar sobre
menstruação, sexo, namoro, dentre outros assuntos relacionado à sexualidade. Mas,
sentia-me bem mais à vontade para conversar com uma tia, irmã de minha mãe. Ela
também costurava junto com minha mãe. Minha mãe era uma espécie de “capitão” da
casa. Quando fazíamos algo que a desagradava geralmente ele chamava para conversar.
E dizia “tu não vai sair no próximo final de semana”. Nunca falávamos um palavrão
sequer perto dela, mas longe sim [risos]. Além disso, em minha casa o tratamento sobre
comportamentos de meninas e meninos era bem diferenciado. Isso para menino! Isso
para menina! Menino usa roupa azul, menina usa roupa rosa. Tudo era bem definido.
Isso porque minha mãe veio de uma família em que meu avô era muito autoritário.
Então, percebo que minha mãe reproduzia muito acho que a criação que ela teve. Então,
ela sempre dizia isso é coisa pra menina e isso é coisa para menino. Por exemplo, jogar

.
274

bola, a minha irmã mais velha adorava jogar bola, até hoje ela gosta de jogar bola, e ela
dizia “isso não é coisa pra menina isso é coisa pra menino, isso não pega bem” minha
irmã, brigava hoje, amanhã a minha irmã já tava com bola no braço, ela se recusava a
brincar de boneca, ela nunca aceitou, nunca gostou de boneca, não dava porque ela
quebrava as bonecas e jogava fora, minha mãe dizia “isso é coisa de menino de menina,
como é que pode não gostar de boneca” e eu não sei se é com receio de ela era muito
firme e eu sempre dizia assim pra ela com medo talvez da reação dela que ela foi sempre
muito difícil minha mãe. Já os meninos eram mais soltos, mais livres. Eu digo quando a
gente saia quando era jovem que saia todo mundo saiamos juntos tínhamos que voltar
juntos, mesmo se saísse todo mundo separado, tínhamos que voltar juntos, ela não
admitia que a gente saíssemos sozinhos. Tudo era muito bem demarcado, bem
diferenciado mesmo. Percebia muito isso nas compras de presentes do final do ano, no
dia das crianças, isso era muito bem definido em casa, percebia pelo tipo de brinquedo
que recebia.

No entanto, não havia diferença em relação ao que fazíamos em casa, porque


todas as atividades domésticas eram minha mãe e minha tia, que sempre morou
conosco, quem faziam. Essa tia foi morar conosco quando eu nasci, então eu costumo
dizer que ela é minha mãe, por minha causa que ela foi morar com a gente, então ela que
me criou, então nós não cuidávamos de casa, nem os filhos e nem as filhas, mas por
exemplo, tínhamos algumas responsabilidades: todo mundo lavava suas fardas, tanto os
meninos, como as meninas, inclusive as meias. E arrumar as suas camas, essa era a
responsabilidade, só isso, porque nos estudávamos de manhã e tínhamos aula particular
de tarde, ela sempre deu muita importância para educação, ela achava que a melhor
maneira que tinha de tentar ajudar os filhos, no sentido de dar a eles um pouco de
educação. Os meninos colocavam o lixo pra fora, as meninas enchiam as garrafas (risos),
ou então, os meninos lavavam o banheiro... a única roupa que lavávamos era a farda da
escola. E as meninas lavavam as calcinhas também, enquanto os meninos não lavavam
suas cuecas. Era a minha tia que lavava as roupas de todo mundo.

Comecei a frequentar a escola quando tinha uns sete anos. Na verdade eu não fiz
o primeiro ano, o que fiz foi uma prova. Passei! Minha mãe foi quem me alfabetizou.
Então, eu fui pra escola fiz a prova, passei e entrei para o segundo ano. Era uma escola

.
275

pública e a professora muito autoritária, extremamente difícil, eu me lembro que uma


vez ela me botou de castigo, causou um friso, porque mamãe não admitia, foi aquela
confusão na escola, ela me botou de castigo. Eu era uma criança muito, muito calada,
muito calma né, e a minha mãe era que fazia a farda, que era aquela blusinha branca com
a gravatinha azul, por dentro uma combinaçãozinha pra não aparecer o peito, a sainha
plissadinha, eu sempre fui pequenininha e as perninhas grossinhas e mamãe fez a saia e
eu acho que ficou um pouco curta, ficou acima do joelho... quando eu cheguei na escola,
ela me viu entrar na sala com a saia... pegou e meteu o dedo na bainha pra descer a barra
da saia... aquilo foi uma humilhação! Ela teve a ousadia de fazer aquilo... Na escola tinha
aquele curso de corte e costura para as meninas. Eu me negava fazer o curso, queria
fazer artesanato, mas ela me mandou pra sala de corte e costura. Eu fui em prantos, mas
fui para a sala. Não sabia fazer bainha e ela disse “você só vai sair daqui quando você
aprender a fazer essa bainha”, ai eu fiquei lá, chorando. Quem dava o curso era uma
freira e ela ficou muito sensibilizada, mas, embora não tenha gostado, também não disse
nada. Lembro que usava um hábito todo preto, comprido, e aquele paninho branco na
cabeça. Naquele dia, ela me pediu para eu ficar lá até eu me acalmar, então eu fiquei lá
até a hora da minha mãe ir me buscar. Quando minha mãe chegou e me encontrou de
olhinhos pequenos, olhos puxados de tanto chorar... mamãe ficou... a diretora tentou
justificar, mas minha mãe disse que ia processar a escola, pois aquilo não era
comportamento ... sobre a saia, minha mãe disse que poderiam mandar um bilhete e ela
mesma faria a bainha... como fui humilhada na escola, passei uns três dias não querendo
ir para escola... mas minha mãe disse: “você vai sim pra escola! Vou fazer a bainha do
mesmo tamanho que estava e se ela vai voltar amanhã com a mesma história... eu quero
saber se alguém na escola disse qualquer coisa que te humilhe, minha filha!”. Minha mãe
era muito severa e disse certo! Enquanto eu me recusava em ir com a saia do mesmo
tamanho com medo de sofrer a mesma humilhação... Ela dizia: “você vai!” Eu fui e
ninguém me disse nada. Claro que eu ainda ouvi algumas piadinhas da professora Lúcia,
quando perguntou: “você vai continuar usando a saia é?” Minha mãe estava longe é
claro, então ela me disse aquilo na hora que eu cheguei na escola com a bainha, ela disse
“você vai continuar usando a saia curta?” Eu calada estava, calada fiquei! Isso foi no ano
de mil novecentos e setenta alguma coisa, não me lembro, sessenta... eu acho sessenta e
dois sessenta e três, sessenta e nove. Eu via na professora uma pessoa que fugia, que
tentava ser o ideal de professora ou uma pessoa difícil até porque ela era solteira. Na

.
276

época eu era adolescente e acreditava que o fato dela ser assim era uma defesa da
condição de mulher que não casou, hoje eu já penso diferente mas eu pensava mais ou
menos isso, e dizia: “a ela é mal amada!” Eu criei um certo medo, qualquer mulher
professora que tinha esse perfil, achava que criava uma espécie de capa... já via um
pouco essa representação ... Ela era alguém que tratava as alunas e alunos de forma bem
diversa, não só na diferenciação entre meninos e meninas mas como da condição social,
dizer quem tinha dinheiro na sala... os alunos que tinha dinheiro, que os pais
financeiramente eram providos... Ela tratava de uma forma e os que não eram...
realmente eram bem diferenciados. Como eu não tinha dinheiro não era bem vista por
ela e ainda por cima usava mini saia (risos). Essa demarcação também acontecia nas
brincadeiras. Quando íamos para o recreio, nas aulas de educação física, diziam: essa
brincadeira é para menino, essa é pra menina, ou então os jogos na sala, alguns eram
para menino, outras para menina. Quando a gente fazia alguma brincadeira dentro da
sala, ela deixava muito claro essa demarcação e eu percebia isso de alguma forma.
Quando os meninos perdiam o jogo, ela dizia que houve um lapso, eles deixaram de
perceber alguma coisa, mas quando ganhavam, dizia que isso é típico do homem, ele tem
essa capacidade, tem uma inteligência maior do que a da mulher...

Eu fiz o antigo cientifico e fiz técnico em contabilidade. Resolvi fazer curso


técnico e realmente trabalhei uma época como contadora. O magistério não fazia parte
de minhas pretensões. Na verdade eu sempre fui muito apaixonada por literatura, então
no fundo eu achava que poderia fazer um curso para ensinar literatura e quando eu
realizei o exame do vestibular optei por fazer letras, porque eu gostava de literatura.
Então, por isso, acabei abraçando o magistério. Na época morava em Recife e fiz a
graduação lá. Como meu pai era da marinha, havia muitas transferências de lugares.
Saímos de Belém viemos para São Luís, onde passamos um ano, depois fomos para
Recife. Lá em Belém, estudei em uma Escola da Marinha, dentro da Vila da Val de Cães,
que na verdade é uma escola pública com apoio da marinha. Lembro que naquela escola,
quando estava na sétima série, havia um professor, que era médico e lecionava Ciências
e ele falava muito sobre sexo, sobre sexualidade, sobre reprodução, sobre menstruação,
ereção... Então esse professor marcou muito a minha vida. Então foi lá que eu estudei,
terminei todo o meu ensino fundamental. Quando passei para o primeiro ano do
segundo grau, viemos para São Luís. Papai foi transferido pra São Luís, Barreirinhas. Nós

.
277

ficamos em São Luís e meu pai em Barreirinhas, mas só passamos um ano aqui. E logo
em seguida fomos morar em Recife. Lá foi maravilhoso! Foi uma época muito boa! Eu
estudei em uma fundação de ensino dos Padres Capuchinos, a Fundação de Ensino
Superior de Olinda. Lá foi minha melhor fase em Recife. Completei meus dezoito anos e
fiquei lá até os vinte e oito anos. Penso que foi a melhor fase por ter sido a fase da
descoberta. Estava no ensino médio e começamos a ter contato com tudo e com todos...
comecei a namorar... Enfim... Mas, minha vida sexual não começa no ensino médio e sim
na universidade.

Em Pernambuco, estudei em uma escola privada, a Academia de Comércio, que


hoje não existe mais. Era uma escola de nível superior e a sexualidade era um assunto
muito batido nas aulas que tínhamos. Isso era a década de setenta. Parecia que o mundo
já estava mais aberto... Já se falava... e se tinha uma compreensão diferenciada de
sexualidade e foi o momento, praticamente, que a minha vida sexual começou. Lembro
que na época tinha um professor, de antropologia, Fernando... ele era muito bom e me
marcou muito. A sociologia também me marcou porque foi a disciplina que se
questionava muito. Na época isso era moda! Mas, o que mais me marcou mesmo e me
incentivou no início de carreira como professora foram as descobertas: entender o que
era a educação, como era sua dinâmica, como acontecia, o que podia o que não podia, o
que podia ser dito e o que não podia. Ainda não havia nenhum evento sobre gênero,
sexualidade, alguma questão da mulher, nada disso! Lembro que tinha uma professora,
que também lecionava na Universidade Católica e ela fazia um trabalho sobre arte na
literatura que eu gostava muito. Trabalhei uma época com ela, mas não sobre gênero. Eu
acho que seria interessante que no curso de letras, assim como na literatura, do começo
até o final do curso, e na língua portuguesa também, seria importante acrescentar nem
que fosse uma disciplina eletiva, para se trabalhar a questão de gênero, principalmente o
papel da representação da mulher nas obras neoclássicos, falar um pouco mais,
pesquisar um pouco mais... Eu penso também, que deveria ser trabalhado, no curso de
letras a questão da linguagem sexista, porque se utiliza até hoje, utilizam muito mais o
masculino e ainda defendem o masculino, na gramática. Seria interessante também
trabalhar essa questão.

.
278

Em relação às minhas práticas escolares, na Escola Estado da Guanabara, por


exemplo, eu trabalhava com questões de gênero e sexualidade durante as aulas de língua
portuguesa, através dos clássicos. Escolhia um clássico, por exemplo Machado de Assis,
Camilo Castelo Branco, um clássico do Romantismo... a gente trabalhou a obra “Amor de
Perdição” e a representação da mulher. Aquela mulher foi uma mulher que amava e em
um dado momento ela vai embora. Para se chegar até ela, saber quem era aquela mulher
e quem era aquele homem... A cultura emitia, ou não, certo comportamento, mas, por
quê? O que a sociedade impõe em relação a isso? O despertar para trabalhar a questão
de gênero na literatura, veio na verdade... bem, eu já fazia algumas leituras, não tinha um
aprofundamento... na verdade o meu olhar era para literatura, não especificamente para
gênero, mas sempre tive minhas dúvidas em relação à forma como as mulheres sofrem
demais nas obras. Então, por isso, resolvi trabalhar a questão. Também fizemos um
cordel para falar só sobre as mulheres.

Na escola Estado da Guanabara havia muitos alunos que não apresentavam


comportamento hegemônico em relação ao seu sexo. Era praticamente um em cada
turma. E isso era problemático! Muito problemático! Pois os outros alunos viam esses
meninos, cuja questão sexual não era àquela esperada pela sociedade, como alvo de
gozação. E sempre que eu via esse problema, geralmente na hora do recreio... eles
empurravam, diziam piadas, jogavam deboches... Isso era apenas em relação aos
meninos, com as meninas eu não presenciei nada nesse sentido. Como as meninas são
mais resolvidas, elas são mais “linguarudas”, elas falam o que pensam, os meninos não.
Principalmente os meninos denominados gays na escola... Eu sentia que havia um certo
medo dos outros colegas, eu percebia isso. Enquanto as meninas, podiam andar de mãos
dadas, abraçar, beijar outra colega... e ninguém dizia nada. O ambiente escolar não
concebia masculino feminino com igualdade de comportamento. Olha! Eu não sei se a
escola fazia vista grossa como se aquilo não existisse, não tomava partido, ela não
trabalhava essas questões e aquilo me incomodava bastante. Eu vi inclusive violência e
me incomodou muito, mas a escola não tomava partido. Cheguei a conversar com a
coordenação sobre isso. Mas, foi dito: “vamos fazer o quê? ” Como se diz: “isso não é
problema meu! ” E isso me incomodava! Inclusive porque na escola havia uma diretora e
um diretor, que por sinal era gay. Talvez para não incomoda-las, as pessoas se tornam
um pouco tolerantes, ou não percebem... Mas, penso que o papel da escola seja também

.
279

trabalhar essas questões, levar para discussão... instigar os alunos a pensar, refletir
sobre essas questões... que eu acho não fazer parte da vida deles. Penso que é
importante que eles também sejam ouvidos, que a escola tenha um projeto, que isso
esteja no currículo... seria uma forma de ajudar na formação desses alunos, porque
dentro de casa não eles não têm nenhuma orientação a esse respeito. Dessa forma, a
escola, ajudaria o adolescente numa fase que é complicada... Eu digo isso, porque muitos
alunos viam em mim uma espécie de confidente. Eles acabavam me contando algumas
coisas que não contariam para outro professor, para própria coordenação ou para os
pais... pois tinham receio... mas, viam em mim certa confiança... pois diziam: “professora
eu posso falar com a senhora? Tá acontecendo isso, isso, isso...”. E eu ouvia... e muitas
vezes ficava sem saber o que falar... nesses casos, dizia: “Vou pensar e amanhã a gente
conversa”. Achava que assim eles também poderiam ver que não tem uma coisa certa,
que não existe um padrão... Esses padrões são estabelecidos pela nossa sociedade e a
gente tem que compreender para poder se identificar a partir dele. Dessa forma, penso
que a escola deveria incluir no currículo questões de gênero, sexualidade... mas para isso
teria que mudar o próprio currículo da escola, pois ele é muito fechado. Assim... quando
eu digo currículo eu me refiro a tudo que tem que ser dado. Por exemplo, língua
portuguesa, tem uma carga horária imensa! Será que se diminuísse um pouco da carga
horária e colocasse uma eletiva como tem em algumas cidades, a exemplo dos Estados
Unidos... que o aluno pode escolher... Por exemplo, ele tem tantas disciplinas para
escolher: ele tem química, ele tem física, ele tem teatro, ele tem não sei o quê... Porque
que no Brasil não pode ser assim? O aluno vai fazer matricula... tem Português,
Matemática, História e Geografia... Mas, tem cinco outras escolhas, que seria as eletivas...
como há na Universidade. Assim, não seria obrigatório todas as disciplinas... Mas,
infelizmente, essa é a nossa formação de Colônia, formação jesuíta que os Estados
Unidos, por exemplo, não têm. Aqui, como eu estava falando... Isso é bobagem! Eu tenho
um conteúdo para cumprir... eu tenho uma ementa... Professor de História, a mesma
coisa, professor de química... então, se pergunta: “Onde é que eu vou meter isso? ”. O
professor de português e o professor de física não tem um conteúdo para dar? Por que a
essas alturas... você pode tratar de igualdade, sexualidade em matemática, ciência,
história... Na hora da análise combinatória, a hora que você dar logaritmo, pode
trabalhar tudo isso... É como trabalhar com educação especial, não basta só aprender,

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280

saber o que é educação especial, mas sim estar sensível a questão da educação especial.
Eu acho que essa é uma questão de sensibilidade ou, uma questão de desconhecimento.

Em relação ao curso GDE, soube de sua seleção na página da UFMA. Na época, já


estava fazendo pós-graduação e era integrante do GEMGe. Então “juntei a fome com a
vontade de comer!”. Acreditava que o GDE iria alargar meus horizontes teoricamente.
Durante a realização do Curso as maiores dificuldades encontradas, foi lidar com as
ferramentas do Ambiente Virtual de Aprendizagem. Percebia que as páginas eram
“poluídas” visualmente, pois havia muita informação e muitos ícones para clicar. Então,
o primeiro entrave foi a questão tecnológica... entender a dinâmica da sala virtual.
Dentre as temáticas estudadas eu mais me se identifiquei com gênero, pois acrescentou
outros termos teóricos... havia algumas coisas eu tinha lido, outras que não tinha lido...
embora não houvesse estudos mais abrangentes, até mesmo devido ao pouco tempo do
curso. E a temática que mais senti dificuldades foi relações étnico-raciais porque eu não
conhecia muito. Eu não tinha tanto conhecimento. Até hoje tem certas coisas que eu não
consigo entender. É a questão das definições, dos conceitos... Então, precisei matar
muitos de meus neurônios para tentar entender algumas coisas (risos). Embora tivesse
também o módulo Diversidade, que falou de gênero, sexualidade, relação étnico-racial,
logo no inicio, explicando os conceitos, as definições... creio que como eu já tinha um
conhecimento prévio... ficou mais fácil de eu entender. E em relação às questões que
dizem respeito à diversidade sexual, posso dizer que as convicções que tenho hoje, já
vieram do doutorado que realizo na Espanha... Nesse Curso eu tinha cinco professoras...
eu nunca vi um curso com tantas professoras lésbicas como o meu. Naquele país, as
questões da sexualidade são muito bem trabalhadas. Eles compreendem muito bem, há
um respeito muito grande... Pelo menos, eu percebo isso. Lá é comum olhar homens ou
mulheres se beijando nas ruas. E ninguém cochicha... as pessoas podem até olhar, mas...
é como se nada lhe chamasse a atenção. No curso de doutorado já falávamos muito sobre
sexualidade, mas isso veio de encontro as minhas convicções religiosas... porque ... Até
que houve um momento, um final de semana que eu fiquei só e tive uma conversa
comigo mesma. Foi então, que pensei: uma coisa eram as minhas convicções religiosas e
outra coisa era a vida acadêmica e o conhecimento teórico. Eu tinha por obrigação moral
definir, separar as duas coisas... E foi isso que eu fiz. Então, eu já tinha uma relação
respeitosa tanto com gays, lésbicas... eu sempre tive uma relação boa, até porque eu

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281

tenho muitos amigos e amigas gays e no curso eu aprendi a respeitar mais ainda e
quando se falou da sexualidade no GDE... eu também trabalhei essas questões em minhas
aulas. Destinava cerca de 15 minutos da aula para falar sobre sexualidade... a gente
falava sobre tudo, reprodução, “homossexualismo”, falávamos sobre camisinha,
gravidez na adolescência... Eles eram quem escolhiam o tema. Nós chamávamos de aula
de conhecimentos gerais... Então cada semana... cada dia um trazia um tema. Se não
desse tempo de terminar, continuávamos com o mesmo tema na próxima aula. Eu
percebia que todo mundo falava, todo mundo participava... Como eles já tinham cerca de
16 anos e para os pais eram considerados adultos, creio que eles omitiam que tinham
essa hora de conhecimentos gerais para a família. E na escola somente eu realizava essa
atividade e os demais professores não gostavam muito dessa prática, diziam que eu “era
moderna demais para a escola”. Também era tachada de “feminista louca”. Inclusive
devido minha escrita, porque eu escrevia utilizando linguagem inclusiva, usava todos e
todas. Mas no geral não se percebe isso... Todos são todos... menino e menina são todos,
no masculino.

Sobre o Projeto de Intervenção, eu cheguei a organizar, inclusive pedi permissão


para a diretora para desenvolvê-lo na escola, mas ela disse que naquele momento não
poderia ser feito, mas poderia ser operacionalizado logo que terminasse as atividades da
escola. Ela dizia que não tínhamos tempo e além do mais tinha a prova do ENEM no fim
do ano e os demais professores não iriam liberar as turmas nos horários deles, porque
estavam acabando os conteúdos. Entretanto, pela ironia do destino, o tema da redação
do ENEM naquele ano foi sobre questões de diversidade.

Com o curso eu me apropriei demais... tinha algumas dúvidas conceituais e


repensei um pouco a questão da prática na sala de aula. Eu ficava pensando como iria
trabalhar, era como se estivesse “pisando em ovos”, porque uma coisa é ter na escola
uma equipe que te ajuda, outra coisa é trabalhar sozinha... Porque tem determinadas
categorias que é marcada pelo preconceito. E gênero é uma delas! Então é preciso fazer
algumas mudanças, trocar palavras, como por exemplo, a questão da sexualidade por
fertilidade. Sabemos que não é a mesma coisa, mas pelo menos se trabalha de acordo
com o currículo escolar. Como se faz, quer queira ou quer não, mesmo no decorrer do
tempo, pela força do preconceito essas questões ainda não estão absorvidas. Por

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282

exemplo: pudemos ver a pouco tempo, na campanha eleitoral de Haddad, não se falou do
“mensalão”, mas ele foi apontado como o Ministro da Educação que quis ensinar
pornografia na infância. Então podemos constatar que roubar é menos doloroso do
que dizer que se tem diversidade sexual, então podemos notar que estamos lutando
há séculos, com uma questão que não vai acabar de uma hora pra outra. É um trabalho
de formiguinha, um fala ali, outro fala aqui, e assim a gente vai conseguindo aliados. O
GDE pra mim foi importante e minhas observações acerca do curso foram muito além do
que foi visto nele. Percebi que houve algumas mudanças significativas em meu
comportamento, diante de situações emergências em relação as diferenças individuas
apresentadas na escola e também repensei minha forma de agir em algumas situações.

Durante o curso, participei pouco dos debates com os colegas pois tive alguns
problemas com minha internet, mas os que participei achei muito gratificante,
principalmente quanto às explicações dadas pela minha tutora-online em relação aos
assuntos estudados e quando ela fazia a ponte entre os cursistas e a aprendizagem
adquirida. Percebi neste curso que existe toda uma proposta educacional ativa por trás
das escolas, algo diferente hoje, em relação ao ontem, numa tentativa de mudar algumas
formas de pensar e agir de meninos e meninas em relação às diferenças existentes
dentro do espaço escolar, como forma de orientar pessoas em transformação. É dever e
papel da escola trabalhar essas diferenças, garantindo a seus docentes um saber lidar
com essa problemática de forma pacifica e respeitosa. Não é de hoje que nossas
instituições escolares, principalmente as do Brasil, estão precisando de projetos e de
curso como o GDE. Penso que os projetos, os seminários, os cursos e outras atividades
nessa perspectiva deviam fazer parte do cotidiano escolar para que se possa discutir
esses e outros temas tão importantes para a construção de pessoas mais dignamente
humana e saudável, onde o respeito pelo outro é um dever e obrigação. Em minha
observação particular, percebei que existe uma série de construções distorcidas em
relação às pessoas dentro e fora do espaço escolar, que geram construções
estereotipadas e difíceis de ser desconstruídos, aliás, a sociedade ainda insiste em
separar as pessoas pela cor, etnia, sexo, religião e tudo mais que possa criar grupo e
muitas vezes guetos. Aprendi o quanto é difícil e quanto ainda é mascarado a conduta
das pessoas nessa sociedade racista, xenofóbica, preconceituosa e discriminadora. O
papel deste curso foi explicar e mostrar estes temas dentro da escola e como os alunos e

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283

as alunas convivem e vivem diariamente com eles. Explicar o que acontece dentro desse
espaço com toda essa problemática, como compreender essa problemática e de que
forma reverter esse quadro triste e caótico diante de um espaço tão diferente e tão
importante para meninos e meninas em construção.

No entanto, seria ingenuidade de minha parte descrever aqui que nunca havia
percebido o grande universo diversificado que é a escola, também séria incorreto dizer
que nunca havia parado para pensar em tal assunto. Mas a partir do curso GDE, pude
observar mais atentamente o comportamento dos meninos diante das meninas e
compreender que se fazia e ainda se faz necessário mobilizar a escola para uma grande
reflexão sobre relação de gênero e suas consequências quanto não são respeitos.

Vale lembrar que houve um momento durante o curso, quando estávamos


estudando homossexualidade que este tema chegou até a escola em forma de discussão.
Comentavam sobre a quantidade de gays e seus comportamentos diante da sociedade.
Tudo isso devido a “Parada gay” na mesma semana. Ouvi de alguns professores que tudo
isso é gerado pela mídia e que ela é a principal responsável pelo incentivo a “ser gay”.
Acrescentaram que nós temos obrigação como professores de mudar esse quadro.
Percebi na fala de meus colegas uma discriminação horrível e quase doentia. Inclusive
houve a citação de exemplos, descrevendo seus gestos e suas condutas como algo doente
que precisava ser mudado. Parecia estar ouvindo pessoas de séculos atrás, falando de
doença, de mal. Fiquei estarrecida! Quanto a mim só tenho a agradecer pela
oportunidade de aprendizagem e convívio com pessoas que comunga do mesmo
pensamento e quase do mesmo objetivo.

 

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284

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285

O que cabe à escola mesmo é orientar sobre a segurança, a


prevenção, a saúde, o cuidado... Não, a reorientação e a decisão da
pessoa.

Meu nome é Jéssica, sou pedagoga, tenho 34 aos, casada e não tenho filhos e sou
Evangélica. No ensino médio, fiz Formação Geral e até hoje realizei 3 cursos de
Especialização: Metodologia do ensino superior. Informática aplicada à educação e
Gestão educacional. Comecei a trabalhar na educação desde 1997, quando tinha 15 anos
de idade. Nasci em Imperatriz e tenho apenas uma irmã. Tanto meu pai como minha
mãe, são lavradores e atualmente estão aposentados.

Tive uma infância muito tranquila! Só tenho uma irmã e ela é apenas um ano e
três meses mais nova do que eu. Com isso, muita gente achava que éramos gêmeas.
Somente depois de certo tempo viram que eu era mais velha. Em nossa família não havia
conflitos, era uma família normal! Nós íamos da casa para a escola e da escola para casa.
Brincávamos com os primos e com alguns poucos amigos... Entre os membros da
família, não havia muita relação de conversa, especialmente entre pai e filha. E por sinal,
tanto meu pai, como minha mãe sempre nos acompanharam muito bem na escola. Todo
dia tinha que fazer as tarefas, por exemplo. Meu pai apenas nos acompanhava na escola,
era ele quem orientava as atividades, enquanto a mãe, às vezes, costurava por
encomenda e também trabalhava mesmo. Por isso, era meu pai quem cuidava mais de
nosso acompanhamento na escola, até porque era ele quem tinha uma facilidade maior
para nos orientar nas atividades escolares. Durante a infância, em relação ao diálogo
com a família, não lembro bem sobre quais assuntos eram discutidos. Mas, lembro, que a
gente batia muitos “papos”, até porque a mãe passava o dia em casa conosco. Embora
não tivesse muito o que conversar, ela dava muitos conselhos. Na época brincava muito
na rua, próximo a nossa casa. Eram brincadeiras simples, como casinha, pular elástico,
dentre outras. Naquele tempo ainda era possível fazer isso numa rua, hoje já não é! Mas,
minha mãe, sempre nos orientava, dizendo que não devíamos dar atenção a pessoas
estranhas... Se alguém fizesse, ou dissesse alguma coisa, tinha que voltar logo para casa.
Então, nesse sentido, ela mais aconselhava, especialmente sobre o nosso
comportamento diante de determinada situação. Além disso, dizia que tínhamos que
ficar apenas na calçada, não longe de nossa casa. Ela também conversava sobre nossa
escolaridade. Meus pais sempre diziam: “olha, estuda porque é a única saída que vocês

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têm pra terem um trabalho melhor...” O pai era aquele que todo dia de tarde tinha que
olhar a tarefa da gente e ver se tinha feito, além de corrigi-las... Como somos nordestinos,
pernambucanos, a relação entre pai e filha é mais fria mesmo. Mas, ele acabava
conversando com a gente também, especialmente para saber como estávamos na escola,
sobre nosso comportamento... Já minha mãe ...esta sim! Sentava, dava conselhos... Este é
o papel mesmo de mãe. O pai mais fiscalizava, queria saber o que estava acontecendo....
Era ele quem ia muito as reuniões de pais... também volto a dizer…até pela sua
escolaridade.

Não eram tratados assuntos relacionados a sexo e sexualidade. Vivi uma


infância muito inocente mesmo! Creio que só vim despertar para essas questões na
adolescência. A minha infância foi bem mais tranquila. Não tinha nenhum assunto que
possa dizer, para conversar com outra pessoa, que não fosse em minha família.
Principalmente na infância, na escola... eu não tinha esses assuntos que hoje a gente
considera “tabu”. O que hoje eu considero que são tabus, entre pais e filhos, entre
crianças e adolescentes e as pessoas adultos. Eu, sinceramente, vivi minha infância
brincando de boneca, fazendo casinha e panelinha de barro, mesmo! (Enfatiza). Quando
os adultos conversavam, nós crianças não fazíamos questão de estar juntos. Como eram
muitos primos, sempre fazíamos questão de não estar com os adultos... Até mesmo
porque na hora de fazer a nossa patota, nossa brincadeira, queríamos ficar separados,
com raras exceções. Eu lembro que meu pai tinha um quintal grande, aqui mesmo na
cidade, ele criava um porco lá no quintal e às vezes matava porcos. Quando ele matava o
porco, chamava todo mundo para ver. Era uma festa! Naquela época, para mim aquilo ali
era a melhor coisa que tinha para acontecer, mas aí, a gente estava no meio da
meninada... outro caso: nós tínhamos uma tia e todo dia íamos na casa dela. Ela fazia
beijus para os sobrinhos e saía distribuindo enquanto brincávamos. Assim nós não
tínhamos o porquê de querer participar da conversa dos adultos. Não sei se isso era por
orientação deles e a gente acabava nem percebendo... mas, como tinha uma grande
turma de menino, a gente brincava muito, brincava de roda, de pega-pega, de pique-
esconde, salva-latinha... Em aproximadamente uma hora juntos, fazíamos cerca de dez
brincadeiras e não estávamos nem aí para os adultos. Era tudo muito tranquilo! Em
razão de ser evangélica também, na própria igreja fazíamos e fazemos parte da escola do
grupo dominical. A igreja teve mais essa preocupação. Temos professores de grupos:

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287

crianças, adolescentes... e nesses grupos há muita literatura, pesquisas, leitura... são


estudados e se procura sempre seguir os princípios bíblicos... Então para mim, tive uma
infância muito tranquila. Nasci no evangelho e continuo até hoje. Mas, eu não fiquei...
Então pra mim não foi aquela coisa que dizem: “Ah! Fiquei porque meus pais me
trouxeram! ” Não! Eu me encontrei no evangelho! Eu sinto prazer em servir a Deus...
Então, pra mim é gratificante estar presente, estudar, discutir, perguntar... E tudo foi
muito bem orientado... Isso era esperado para mim! O projeto de Deus na tua vida e
aquilo que você poderia, ou não aceitá-lo. Isso para mim foi bem tranquilo...

Dentre os assuntos relacionados à sexualidade, minha mãe falou, tanto para


mim, como para minha irmã sobre menstruação. Eu até menstruei cedo, por volta dos
onze anos de idade. Lembro que chorei pra caramba! Eu sabia o que estava acontecendo,
mas chorei, quando imaginei que aquilo ia se repetir todo mês [risos]. Chorava também
porque sentia muita cólica. Então, perdi o sossego! Com isso, perguntava: “Meu Deus,
para que isso? Não que eu não soubesse o que era. Além disso, eu tinha curiosidade,
tanto que já havia até comprado absorventes e queria usar... Então, esperava acontecer...
até porque minha irmã já tinha menstruado antes; uma prima morava conosco também...
Mas, quando aconteceu, não foi nada que eu não soubesse ou ficasse apavorada...

Quando éramos adolescentes, tanto meu pai, como minha mãe sentava conosco
conversavam, davam exemplos de coisas que aconteciam... havia situações na própria
família de gravidez na adolescência, de situações que foram ruins para a adolescente.
Então, as demais famílias tinham que chegar e dizer: “Oh! São consequências de atos
impensados...”

Mas, eu sempre pensei em me formar e dizia que só casaria depois disso. Só


comecei a pensar em uma relação à dois depois de formada. Eu tinha um foco: entrar na
faculdade! Sabia que seria difícil, especialmente devido as condições financeiras de
minha família. Mas, queria perseguir esse sonho. Então, enquanto muitas de minhas
amigas foram atrás de namoradinhos em festinhas, eu às vezes passava a madrugada
estudando, então... (Risos).

.
288

Ainda quando criança, se fizesse alguma coisa que meus pais não aprovassem,
tipo assim, falar um palavrão, brigar com algum coleguinha ou se fizesse alguma coisa
que eles não aprovassem, confesso que conversar olho no olho com meu pai, que tinha
um metro e oitenta, era já pra mim assustador, mas eu não tive pais agressivos que bate
nos filhos. Eu lembro que apanhei uma única vez. E isso depois de eu ter sido avisada...
que se eu repetisse o comportamento... Na época eu cantava num coral infantil na igreja
e o coral se apresentava todas as às quartas feiras e eu gostava muito de conversar,
como até hoje eu gosto. Lembro que uma vez o pastor advertiu a mim, minha irmã e
minha prima por conversar durante o culto. Com isso, meus pais falaram: “se você
novamente for chamada a atenção por causa disso...”. Mas, eu continuei a conversar, por
conta disso eu apanhei. Eu fui avisada, eu sabia que estava errada mesmo... Imagina: o
pessoal fazendo a cerimônia do culto e eu batendo papo com as colegas... Minha mãe
havia dito que se eu repetisse esse comportamento...mas foi uma única vez... Mas, assim...
a relação na família era muito na conversa mesmo... Eu lembro que uma vez ele tinha um
objeto de decoração e eu quebrei, se querer... numa brincadeira, acabei passando
despercebido, correndo, brincando com outra criança, quando passei e quebrei o objeto.
Naquele dia, tinha uma visita em nossa casa e ela perguntou pro meu pai: “Tu não vai dar
uma pisa nela?” E ele disse: “Se eu batesse e emendasse eu ia fazer... mas, como não vai
emendar...” Ele só me chamou atenção, pedindo para eu tomar mais cuidado e pediu pra
eu juntar os cacos e jogar fora...

Em relação ao tratamento dado para menina e para menino, durante minha


infância ou adolescência, lembro apenas que entre os primos havia muita brincadeira... e
os maiores acabavam virando os líderes... A diferenciação que havia era mais de
hierarquia, de tamanho. Minha mãe chegou a comprar um carrinho de presente pra
mim.... Hoje eu acho até interessante... ela me orientou a brincar... Eu disse que eu queria
um carrinho e ela comprou.... Lembro que alguém falou: “ah! Isso é brinquedo de
menino! ” E ela disse: “Não! Tem muita mulher que dirige…” (risos). E eu brinquei com o
carrinho... Lembro ainda que quando criança eu tinha as pernas meio tortas e eu chorava
para não usar a bota, dizendo que bota era sapato de homem. Mas, na verdade a bota
doía! Eu me incomodava, mas minha mãe permaneceu firme. Então tive que usar. Outra
coisa: tinha um primo que ele morava perto da gente... Minha mãe vestia eu e minha
irmã igual, tanto que parecíamos ser gêmeas! Ela achava bonito! Ela tinha tido duas

.
289

filhas gêmeas que haviam, então, creio que ela tentava ter as gêmeas em idade diferente.
E esse primo... ela fazia a mesma roupa, do mesmo tecido pra ele também (risos). Eu
dizia: “Oh, trigêmeos agora... Hoje a gente faz esta leitura quando olhamos as fotos...”.

Iniciei meu processo de escolarização, não na educação formal, iniciei com uma
professora que alfabetizava em sua própria casa numa turma de alfabetização... Até
porque na época a pré-escola, ou educação infantil ainda não era obrigatória. Só quando
iniciei o fundamental, fui para uma escola pública. Foi quando descobri que o que via nas
brincadeiras de escolinha com minha irmã e minha prima em casa, era o mesmo que a
escola ensinava. Então, posso dizer que meu processo de alfabetização iniciou com as
brincadeiras em casa.... Quando cheguei na escola, descobri que já sabia muita
coisa..(risos) E foi muito fácil aprender a ler e escrever. Essa primeira escola era
municipal, hoje ela é estadual... A estrutura não era das melhores... foi uma época em que
Imperatriz viveu acho que assim um dos seus piores períodos politicamente. A primeira
vez que eu fui a escola, eu fugi. Isso porque a professora apresentou sua proposta de
trabalho e disse que quem não fizesse a tarefa ia ficar de joelho, de castigo e que não ia
ter lanche. Com isso, na hora do intervalo eu fui pra casa, eu fugi da escola e ela nem viu.
Fiquei com muito medo, por ela ter dito que ia nos deixar sem lanchar, sem brincar e
ainda ia nos colocar de joelho na frente de todo mundo... Não quis mais voltar para a
escola naquele ano. Fiz as pazes com esse ambiente quando fui a uma festa do dia das
crianças com minha irmã. Foi quando vi que as crianças brincavam e tinham lanche.
Então no ano seguinte eu fui para a escola formal mesmo, quando eu cheguei, eu já
estava alfabetizada, enquanto a maioria da minha turma não sabia ler. Com isso, acabei
virando a monitora da turma junto com a professora. Essa minha primeira professora
hoje é uma colega de trabalho. Trabalha na Secretária de Educação e é diretora de uma
escola. Ela era um encanto, bem mais acolhedora e aí eu me apaixonei por ela...

Na época eu brincava muito de escolinha com outras crianças... e era a


professora, não tinha jeito! E como aprendi gostar de ler... gostava de ler muito e de
contar história paro os meninos... Ainda na infância posso dizer que muita coisa na
igreja. Talvez ela tenha me ajudado mais do que muitas escolas... Porque lá na igreja
depois que a gente lê um texto precisa explicar o que entendeu. Então, eu ia para a frente
e explicava o tinha entendido, contava histórias bíblicas. Eu adorava fazer isso. Também

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290

na escola bíblica, a gente fazia teatro, poesias, declamava poesias. Como eu tinha
facilidade com a leitura, os professores acabavam me convidando... Na escola gostava
muitos de estar com os amigos na verdade... em relação as aulas, estas não deixaram
saudades não... A professora que tive era carinhosa, já no segundo ano não era tanto.
Mas, eu gostava de estudar...de ouvir histórias... Odiava desenhar, não sei até hoje odeio.
Eu sempre me saía muito mal eu era péssima de arte. Em relação às questões de gênero,
diversidade ou sexualidade, nunca estudei. Nem mesmo nas aulas de ciências. Eu acho
que nem no ensino médio...talvez no ensino médio em alguma aula de Biologia... a escola
ela realmente... muito tradicional. Não lembro, mas acho que nas aulas de ciências era
apresentado o aparelho reprodutor, de um modo técnico mesmo... com alguns desenhos,
explicação de algumas partes, aprendia, respondia na prova e pronto. Ninguém discutia
essas questões. Elas eram bem distante mesmo. Como os demais conteúdos também. É
que a escola tradicional ela trata tudo de forma muito distante de nossa realidade, não é
mesmo? Além disso, naquela época havia tratamento diferenciado entre os meninos e as
meninas. A própria escola nos separava, havia o lado de menino e o lada de menina.

Em relação aos comportamentos, era esperado que a menina fosse mais


quietinha, que ela não fosse bagunceira, mesmo quando ela se enturmava com os
meninos que costumava ser os mais peraltas da turma. Ah! Era sempre aquela história:
“Você que é menina, não pode fazer isso ou aquilo! ”. Os meninos são mais liberais
mesmo, por serem mais bagunceiros, ficam mais à vontade, fazem o que querem. A
menina sempre era mais cobrada, devia ser a mais comportada, mais meiga, menos
agressiva. Isto no sentido dizer: “se alguém te faz alguma coisa, não pode dar um tapa,
porque você é menina...”. Lembro que na adolescência, quando começa aquela fase que a
menina começar a ter sua paixonite, ficar apaixonada por alguém e escrevia no
“diarinho”. Todas as meninas tinham um diarinho! A escola não sabia... eu acho que a
escola nunca parou para tentar ver o que estava ali posto. Lembro também um caso de
homossexualidade. Tinha uma colega que disse pra mim que estava apaixonada por
outra colega da sala. E ela queria que eu dissesse pra outra. Mas, eu nunca levei recado
de uma e nem de outra... Eu disse: “te resolve com ela, não é comigo não! Não lembro
bem, mas achava estranho. De certa forma, a gente até sabia que existia
homossexualidade, embora a escola não tratasse a questão.

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291

Sobre minha formação profissional e o caminho percorrido para chegar no


magistério, lembro de uma coisa: tinha certeza que eu não iria pra área de saúde, nem de
das ciências naturais e exatas, pois não era muito “minha praia”. Eu queria ficar no
campo das ciências sociais. A oferta de curso em Imperatriz era muito pequena e de
modo geral a gente não sai do ensino médio sabendo o que quer. Também não tinha esse
trabalho de orientação. Então, eu acabei entrando na pedagogia mesmo, por conta de ter
percebido, que era nessas áreas sociais que eu me daria melhor... Eu queria mesmo era
estudar e era o curso oferecido pela Universidade Federal nas áreas sociais que eu mais
me identifiquei. As outras eram Ciências Contábeis e Direito que não me atraia. No dia
em que fui na biblioteca e tudo o que eu via e que estava relacionada a pedagogia, o que
é pedagogia, história da pedagogia no Brasil, não sei o que, todos os tipos que eu vi que
relacionava que pudesse me esclarecer o que era aquilo que eu estava estudando eu fui
buscando...o terceiro, quarto período eu já estava apaixonada pelo curso e ai terminei...

Minha formação no curso de pedagogia também foi muito tranquila, muito


saudável...Eu sempre procurei fazer tudo muito bem feito. Se não der para fazer bem
feito eu não vou ficar tranquila... insisto até conseguir... sou muito inquieta em tudo o
que faço ... Então, lá na universidade também fui do mesmo jeito. Então, não havia
conflitos. Eu não era esse tipo de aluno que te muito conflito com o professor... isso não
tive...Talvez tenha tido alguns conflitos devido à falta de professores, por ter sido do
Centro Acadêmico, reivindicava muito, mas isso no sentido mesmo de lutar por um
direito que tínhamos e que estava sendo negado. Durante o curso de pedagogia, pelo
que lembro, não tive nenhuma oportunidade de estudar alguma questão relacionada à
sexualidade ou questões de gênero. Talvez, tenha visto um ponto ou outro nos estudos
do desenvolvimento humano, talvez em Freud. Mas, nada que fosse realmente fazer
aprofundar a questão... isso sobre a teoria, o porquê de estudar tais questões na
psicologia... nada que seja chamada a atenção como um fato social, eu acho que não
vimos nada nesse sentido. No entanto, eu creio que essas questões são importantes e
deviriam ser trabalhadas no currículo das licenciaturas, pois se tratam da formação da
sociedade, da compreensão desse cenário que a gente vive hoje. Hoje eu digo até que os
currículos vêm sendo reformulado, pois hoje eu trabalho na educação das relações
étnico raciais. Eu não vi nada disso quando estudei na universidade... Então o currículo
vem sendo repensado... Eu graduei em dois mil e dois, com o título do currículo dos anos

.
292

de mil, novecentos e setenta e eu saí da faculdade consciente disso. Com isso, acabamos
levando um déficit de coisas que precisa ser superado. Por exemplo, a informática na
educação eu também não vi, mas fui buscar esse conhecimento na especialização. Até
hoje, eu venho pontuando as brechas que ficaram da formação inicial e venho suprir na
formação continuada. Hoje eu avalio minha formação como professora, como pedagoga,
tanto em relação a essas questões de gênero e sexualidade ou mesmo a formação geral,
destacando que se deu de forma muito técnica, muito mais voltada às questões
metodológicas, de organização. A minha habilitação foi administração escolar, então via
muito mais a questão da gestão, da organização do espaço e dos tempos pedagógicos, a
legislação, a metodologia, as didáticas, psicologia de aprendizado. De qualquer forma,
considero que foi bacana, foi boa.

Quando iniciei meu trabalho na educação, foi com uma turma de alfabetização.
Eu procurava não repetir a experiência que tive... até porque não acho interessante ficar
fazendo a mesma coisa...eu trabalhei um ano na alfabetização, no outro ano eu solicitei
que fosse para a primeira série e no ano seguinte, a escola me colocou na coordenação.
Fiquei um bom tempo como coordenadora. Em seguida fui para a educação profissional
e da educação profissional eu voltei paro o município como pedagoga de um curso
técnico. Num ano estava numa escola, no outro ano em outra e assim... eu acho até
interessante alguém dizer que isso. Atualmente estou há vinte anos fazendo isso... Eu
fico olhando... e digo: não tenho paciência de fazer a mesma coisa por dois, três anos
seguidos... Quando passei no vestibular, me fizeram o convite pra eu ser professora de
alfabetização de uma escolinha que estavam abrindo... Nessa turma de alfabetização não
trabalhei as questões de gênero, sexualidade... Eu acredito que naquela turma ainda não
tinha esse despertar. Depois que comecei a formação continuada... antes de fazer o GDE,
eu já tinha feito o Curso SPE. Isso foi quando estava trabalhando na coordenação. Nessa
época eu comecei a trabalhar com os professores, desenvolvendo projetos, então fui me
aperfeiçoando e foi acontecendo... Em minha atuação como como professora, no ensino
fundamental, lembro que tive aluno e uma aluna que apresentava comportamento que
não era próprio para seu sexo, conforme esperado pela sociedade. O menino... assim...
que a sociedade diz, mas eu... sinceramente eu não conseguia ver dessa forma, vai muito
da relação que a criança tem em casa, de com quem que ela brinca e tal... Também tinha
uma aluna que parecia um menino, por ela ser valente, por ela em qualquer situação

.
293

querer tomar o partido, ela queria ser a “mão de ferro” mesmo, de resolver tudo do jeito
dela e era mesmo tosco... As pessoas diziam: “Essa menina é meio machão! ”. Ela é
esquentada como tem gente que é ... Eu achava que esse comportamento poderia ser
reflexo... sei lá! De repente, da mãe, do pai ou... ela em casa poderia ter alguém que
enchia sua paciência... e ela demonstrava aquele reflexo... mas, eu não via como atitude
de...

Durante o tempo em que estive na coordenação da escola, pude presenciar


situações de bullyng mesmo, com provocação, piadinhas... chacotas...com os colegas.
Essas ações são coisas corriqueiras do dia–a–dia... Eles apelidam mesmo e ficam
importunando a criança ou o adolescente que apresenta comportamento que não é visto
como próprio paro o seu sexo. Eles chamam de vEaDo mesmo! Ou, ficam chamando de
menininha. Em relação a qualquer tipo de atitude assim, eu não sei porque também eu...
Eu tenho muita revolta com qualquer situação de constrangimento de vexame...de
alguém querer ser maior que o outro... Nesses casos eu chamo para conversa, procuro
desenvolver na escola um trabalho em que se possa fazer essa leitura de uma outra
forma... Mas, infelizmente tem uma carga social já trazida da escola, da família, da
sociedade e às vezes a escola faz um projeto, tenta fazer a discussão e a meninada volta
pra ti...ouve...sabe, eles tem noção do que tão fazendo não é correto...tanto que na hora
que o coordenador aparece no corredor com professor eles saem correndo.. Eles não são
desavisados. Aquela coisa do respeito, assim como eles implicam com o menino que tem
um jeito afeminado, eles implicam com o que tem uma deficiência física, mas não tanto
assim...eu, por exemplo, não vi cadeirante... eu trabalhei numa escola que tinha uma
criança que usava cadeira de rodas. Neste caso, eu via, pelo contrário, muita vontade de
ajudar. Mas, alguém que tem um dedo torto, um nariz chato ou grande... Ou seja, falando
de uma coisa que para a criança foge do padrão que foi estabelecido... que foi
estabelecido socialmente, aquilo que é o normal... O que foge a essa regra, sobre bullyng
e é preciso que a escola esteja atenta. O negro também sofre discriminações... é chamado
de “negrinha”. E eu fui a “macaxeira descascada”. Então, talvez por isso a minha revolta
também dessa questão de ridicularização. As pessoas não querem assumir que são
brancas, também não assumem a sua negritude. Então o branco é... macaxeira
descascada. Eu mesma queria ser morena! Então, eu tinha que pegar sol para ficar
morena. Com isso, ganhei manchas de pele. Foi só o que consegui... Por que a cor pega

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294

tanto sol que três dia ou quatro dia ela vai sair, é a melanina, que determina a cor. Em
todas as circunstâncias, eu sei que sofri bastante sobre isso na infância e ficava muito
chatEaDa...

Em minha opinião, no ambiente escolar é possível sim, trabalhar a questão de


masculino e feminino num processo relacional de igualdade. Eu acho que não tem que
estabelecer padrão, primeiro, deve partir dessa questão. Eu tive um aluno que um dia,
numa atividade ele foi pintar um desenho e ele...um outro pintou a camisa do menino de
rosa era um desenho até bonito, mas o outro menino riu e disse: “oh! Esse menino é
viado! Ele está vestido de rosa”. E eu que era a professora estava de azul, como estou
hoje e perguntei: “E azul é cor de quê? ” Ele disse: “de homem! ” –“Mas, eu estou de azul!
”. Ele parou! Ficou olhando... Eu falei: azul é só de homem? Ele: “não o azul também pode
ser de mulher. ” Eu falei: “Rosa também pode ser de homem. ” Então ele também pintou
a camisa do menino de rosa, que é obvio que é também de homem... Isso foi na primeira
série. Sim! A escola precisa parar de seguir os padrões... Mas, as professoras da escola
fazem o quê? A lembrancinha do dia das crianças: para as meninas todas as coisinhas
rosinhas e para os meninos tudo azulzinho e verdinho... Assim, a própria escola
incentiva essa divisão. A gente diz pra eles: “isso não é coisa de menino! Isso não é coisa
de menina! Esses dias, antes de ontem, eu estava com um pessoal que vai fazer um
material aqui do Maranhão pra o Programa de Diretrizes em Ação de Educação Infantil...
O Maranhão vai gravar esse material e a formação será em nível nacional. O MEC vai sair
daqui para o Brasil. E Imperatriz é uma das cidades que vai participar do projeto... Então,
nós assistíamos um vídeo de uma cidade maranhense... Havia os cantinhos “do faz de
conta”, nele só as meninas passavam com ferro, na hora da comidinha eram mais
meninas, um só menino aparecia ajudando as meninas a fazer a comidinha pegando
umas verduras. Botaram um forno para as crianças fazerem uma torta de verduras... O
vídeo mostrou outra atividade, tipo o médico consultando. Nesta era um menininho e
tal... Então, eu até falei: “mas por que isso? Foi proposital essa diferença? O que vocês
tão determinando na brincadeira do faz de conta também, de homem e de mulher! ”. A
própria escola precisa parar com isso, por que homem passa ferro, varre, lava... eu acho
que a gente vive numa sociedade em que a mulher foi pra um mercado conquistar seu
espaço e o homem, acabou também por conta disso, assumindo papeis domésticos...
Então com certeza a Escola... A escola deve parar de estabelecer qual é o padrão.

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295

Em relação ao papel da escola acerca da educação sexual e relações de gênero,


penso que essa é uma questão também que perpassa pela família, pela religiosidade da
pessoa. O que cabe a escola mesmo é orientar sobre a segurança, a prevenção, a saúde, o
cuidado... Não, a reorientação e a decisão da pessoa. Não vai ser a escola que vai dizer,
ela precisa orientar pra conheçam as possibilidades e tratar dos riscos, da questão da
segurança... E eu acredito que é uma decisão, que talvez não seja escolha, eu não sei...
mas, infelizmente eu acho que é muito pessoal, não dá para a escola interferir, de dizer
não, ou de dizer sim...mas ela precisa estar atenta para orientar, pra combater o racismo,
o preconceito, a discriminação eu acho que o papel da escola é mais nesse sentido, de
ajudar a formar cidadão que compreenda e respeite as diferenças...

Sobre a inclusão dessas questões no currículo das escolas, nós temos hoje, não é
só de hoje, mas sim, trata-se de um projeto antigo da rede: nós trabalhamos com “Saúde
e Prevenção nas Escolas”. A gente abrange principalmente os alunos entre do sexto ao
nono ano. Na educação infantil esse trabalho já é mais... temos as pessoas que já
acompanham os professores... mas, não dando orientação e sim combatendo atitudes
preconceituosas... em relação as essas orientações acerca da sexualidade mesmo, nós
temos o trabalho de prevenção nas escolas, com a formação de professores e devido à
perda de adolescentes por conta da gravidez”. Então, anualmente há um trabalho
desenvolvido com os professores que fazem a formação, desenvolvem projetos... São
socializados a experiência de cada escola, que cada professor desenvolve no curso e são
indicados dois, três adolescentes pra também participarem dessa formação.

No que diz respeito ao meu ingresso no curso GDE... Bem! Eu tinha acabado de
concluir o projeto “Saúde e prevenções nas escolas”. Na época era supervisora na rede,
tinha feito o curso e um trabalho sobre ele na escola que eu trabalhava... foi quando vi o
edital do curso GDE. Olhei e percebi que dava certa continuidade àquilo que a gente já
tinha feito nos estudos anteriores. E também porque tratava da questão racial. Esta era
uma temática que eu precisava estudar, pois na escola que eu trabalhava havíamos
desenvolvido um projeto sobre o tema. Quando eu comentei sobre a proposta de fazer
um trabalho, exatamente em novembro, por conta do dia da consciência negra, alguém
que era do movimento olhou pra mim: “mas, você é branca, como é que você vai fazer

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296

um projeto sobre as questões raciais? ”. Então, disse: “agora porque eu sou branca eu
vou ser obrigada a ser racista, preconceituosa por determinação? Digo exatamente o
contrário, acho que precisa todo mundo se compreender”. Então, eu dei a volta por cima
e disse que aquela atitude também era racista, só porque uma pessoa é branca não pode
trabalhar com questões raciais. Por conta de querer uma continuidade do outro curso
que já tinha feito, além de buscar uma compreensão melhor sobre essa questão racial,
dessa discussão que era feita, decidi realizar o curso GDE. Sobre o desenvolvimento do
curso.... Nós começamos com módulo de diversidade de gênero, sexualidade e nós
tivemos alguns encontros presenciais aqui em Imperatriz e nessa época esses encontros
foram bem esporádicos. Eu participei... teve um que eu não fiquei até o final, eu estava
adoecida. O curso era à distância... Então assim... era mais a nossa leitura e produção
mesmo. E sobre os encontros presenciais, talvez... Bom, eu não tive o espaço de debate,
de conversa com outras pessoas... Mas, assim, eu fui para aprender, para compreender,
não fui para julgar, não fui para botar a minha ideia e contrapor a outra. Em relação aos
momentos online... o curso foi interessante... as discussões eram mais pautadas na
proposta.
Quando chegou na questão de... da sexualidade mesmo... da questão que tratava
da homossexualidade, então muitas pessoas... criticaram os evangélicos, como se eles
fossem as pessoas preconceituosas, mas, na verdade, nós moramos num país que ama a
liberdade também de credo... Eu não sou obrigada a concordar com o que você faz e
achar que o que você faz, o que é pra mim... Eu também não concordo e não quero fazer
o que você faz, não concordo com sua prática e não sou obrigada a me desentender
contigo e ser tua inimiga. Eu acho que é preciso colocar isso de forma bem tranquila,
assim. “Se você não defende uma fé? Tranquilo! Você é livre para não defender essa fé!
Se você defende, você é livre para que defenda sua fé! Então a gente precisa também
compreender que há o direito de liberdade da fé”. Durante o curso, num dos fóruns
houve comentários... inclusive de pessoas... que criticavam... e eu digo eles criticam o
evangelho, mas não podem criticar o cristianismo... Esses comentários de deram não só
no fórum, mas também fora dele, por pessoas que realizam o curso, na cidade. Então
assim... alguém chega mesmo a querer dizer que a outra pessoa é preconceituosa e tal....
Nosso profeta usa uma fé que você não é obrigada a professar. Eu tenho um amigo
adventista que são muito amigos meu que eles têm certeza que eu estou errada por
trabalhar pra caramba no sábado. Porém, nós vamos continuar sendo amigos eu vou

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297

continuar trabalhando no sábado porque o que eu estou fazendo no sábado não me


incomoda, não me sinto mal em fazer e pronto! Agora sim é pra ele? Ele não tem essa
tranquilidade, ele não se sente bem ao fazê-lo... ok! Eu respeito do mesmo jeito, que bom
que ele tira um dia pra Deus. E eu não tiro! Nem mesmo o domingo. Eu trabalho pra
caramba também no domingo. A gente diz que guarda o domingo, mas... e o adventista
guarda o sábado, e ninguém não guarda mais dia nenhum...a gente trabalha mesmo.

Em relação às dificuldades encontradas durante o curso. Bom! Não consegui ter


muitas dificuldades no curso não... Eu achei tranquilo, eu achei o material da leitura
muito claro, o questionamento muito bem direcionado... foi tranquilo! E dentre as
temáticas estudadas... Olha assim, naquele momento a questão do empoderamento da
mulher... que é questão de gênero foi a que eu mais me identifiquei... no caso, foi assim...
eu achei interessante inclusive para fazer as atividades. Porque é um debate... assim,
social, que se faz da questão das diferenças ainda presentes entre homens e mulheres.
Gostei muito de estudar acerca dessa diferença, dessa hierarquia, do preconceito ainda
muito forte sobre a figura da mulher, em alguns casos... E assim, foi um debate que eu
achei muito interessante. Eu acho que a escola precisava falar um pouco mais... tá
ficando muito caladinha... mas, de forma geral todas as temáticas contribuíram bastante
em minha formação. Não teve nenhuma que não tenha acrescentado... nós precisamos
repensar o outro com uma forma mais respeitosa, mais consciente, menos
preconceituosa.

E dentre as propostas do curso, sobre a questão da educação inclusiva no que


diz respeito à diversidade sexual, o que acabei de falar sobre os conflitos entre
homossexualidade, bissexualidade. Então em relação á essa diversidade sexual. Assim,
eu continuo... assim... a minha concepção do cristianismo não alterou. O curso serviu pra
que eu pudesse me reafirmar muito mais como pessoa que respeita o outro na sua
diferença... não que, jamais... Eu nunca tive atitude de preconceito. Fui coordenadora de
escola profissional SENAC, trabalhei lá cinco anos e nunca tive o menor problema, por
exemplo se chegasse um colega homossexual... e eram muitos que faziam a seleção de
currículo... eu dava oportunidade de trabalho e sentava com ele para fazer o trabalho.
Não, eu nunca disse: “eu vou preferir fulano, porque fulano não é homo... Não! Isso
jamais! ”. E ele sabia da minha postura como evangélica, como cristã... A gente até

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conversou sobre isso... Nós tínhamos um tratamento muito saudável e somos amigos até
hoje... ele me apresentou o namorado...na época o namorado dele também precisou
fazer... A gente precisou de um trabalho, de alguém que era da área dele, que era de
artes e ele foi contratado... fez um trabalho brilhante... Mas serviu pra gente se reafirmar
ainda mais é.... Com respeito a pessoa de direitos que cada um tem... Sobre as possíveis
possibilidades que o curso oferece, para que os professores possam desenvolver na
prática nas escolas a questão masculino e feminino no processo de igualdade. Por
exemplo, é...todas as questões de gênero que falei, eu sobre a questão da... do
empoderamento das mulheres... Olha, uma das coisas que o curso me chamou a atenção:
aqui em Imperatriz, uma das poucas cidades maranhense que tem a secretaria de
mulher e o que a gente houve muitas vezes é alguém que chega e diz: “Para que serve
essa secretaria? Ela faz o quê?” para nada!...Então assim, quando a gente tá na frente das
escolas e percebe que a maioria dos representantes dos conselhos, são homens! Os
líderes de turma? São homens! Então, nós estamos atribuindo o papel de liderança de
poder aos homens. Então, eu digo: Muitas de nós mulheres fazemos isso e não nos
damos conta de que estamos ajudando a reproduzir uma desigualdade, do qual nós
mesmas somos vítimas.

Acho que o curso serviu para que pudéssemos perceber essas nuances, em
pequenas coisas que não estão claras, mas que estão implícitas nas atitudes. O que a
leitura do material e a discussão que foi feita, me ajuda hoje a perceber melhor. Hoje eu
consigo perceber, em todo lugar que eu estou... por exemplo, quando vão formar uma
mesa de autoridade, não tem jeito... eu conto quantos homens têm e quantas mulheres.
(risos). E na educação? Na educação, que é predominantemente uma área feminina... a
mesa tem mais homens... É para gente fazer essa leitura mesmo... Para o professor é bom
que ele se perceba, porque a gente reproduz essas ações sem se dar conta. Em relação ao
projeto elabora do final do curso... assim, acabei nem desenvolvendo todo, porque eu
tive que saí da escola onde eu trabalhava na época e... tendo outro trabalho...Mas a gente
consegue deixar a dica, e pude deixar para que o trabalho pudesse ser desenvolvido por
outros professores. E hoje na Secretaria nós trabalhamos estas questões. E
desenvolvemos outros projetos relacionados à gênero e sexualidade. Inclusive foi
sugestão minha. Esse ano ele andou timidamente, pois a pessoa que coordenou... Nós
temos um segmento na secretaria que chamamos de PROEP-EJA, um Programa de

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Orientação Profissional para educação de jovens e adultos. E nesse trabalho, colocamos


como temática para as palestras a questão da violência contra mulheres. Foi super rico,
pois pudemos descobrir e perceber o que a mulher, jovem e adulta sofreram e sofrem
com a violência. Muitas delas não estudavam porque os maridos não deixavam... Então,
esse tipo de coisa, conseguimos detectar e conseguimos fazer mais na educação de
jovens e adultos. Mesmo com o trabalho, buscando trabalhar com aquelas senhoras, com
aquelas jovens e resgatando sua história trabalhando a Lei Maria Da Penha e isso junto
com homens e mulheres. Isso porque eu acho interessante que os homens participem
também, pois eles precisam desconstruir algumas posturas... Hoje, nós trabalhamos com
as mulheres, com a educação de jovens e adultos, um outro segmento que infelizmente a
gente, muitas vezes, não se dá conta, mas muitas mulheres ainda são proibidas de
estudar.

E em minha própria prática, como professora, como coordenadora, posso dizer,


com certeza, que houve mudanças depois do GDE. Hoje estou mais atenta, observo
melhor, tento combater as práticas preconceituosas, mais atentamente, estou mais
alerta. Por que quando a gente tem uma leitura sobre o assunto, acaba identificando
aquilo que antes era tido natural e consegue identificar o comum que não é natural, que
está acontecendo... De forma feral os conteúdos estudados no curso têm uma leitura
gostosa de se fazer, tanto que quando a gente começa a ler, quer continuar...As
atividades propostas nos faziam pensar realmente, refletir sobre as questões em nosso
dia-a-dia... fazia pensar em propostas de atividades, e eu era cheia de projetinhos, estava
desenvolvendo ações. Então acho que isso foi super bacana e me ajudou a perceber o
outro, sempre, como um ser de direitos também, apesar das diferenças, respeitar as
diferenças... Eu acho que...todas as pessoas que discutem as temáticas da diversidade e
dos direitos humanos, não continuam igual. Se essa pessoa já tinha uma postura não
preconceituosa, ela consegue se reafirmar melhor, consegue reparar algumas arestas...
Críticas?! Assim, não é crítica ao curso! Hoje a EaD dificulta muita coisa, especialmente
em relação ao ler e escrever. Então talvez não sei... A “culpa” disso não é a educação à
distância é a falta mesmo de ler e escrever... o material é bom! As pessoas que sentem
dificuldade elas fogem mesmo... Não sei se pela Informática...Eu sei que a evasão do
curso foi algo assim assustador como da especialização que realizo atualmente, também.
Mais o que eu vejo: há muita dificuldade de escrita e de leitura. Essa dificuldade não é do

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300

curso, ela é de nossa responsabilidade. O curso não tem como, não tem o curso sanar a
dificuldade da escrita e leitura das pessoas e de lidar com a Informática, que é outro
desafio... Então às vezes nem vindo a tutoria eles que vão ter que produzir o texto... ai
ajudar a enviar tudo bem...mas produzir por eles não dar (risos). Talvez se o curso fosse
presencial, os debates poderiam ser mais acalorados… e as pessoas até conseguissem...
Não sei, mas é bastante.

 

.
301

Hoje eu falo para as pessoas, sem ter medo de me posicionar e sem ter vergonha,
sobre a minha convicção... para mim, cada pessoa é livre para escolher o que quer
ser na parte da sexualidade ...”

Meu nome é João, tenho 34 anos e nasci em Tocantinópolis, do outro lado do rio,
mas sempre morei em Porto Franco. Minha mãe atravessava o rio de canoa todos os dias
para trabalhar e acabei nascendo do outro lado, no estado de Goiás, atual Tocantins, e
não no Maranhão. Agora temos a balsa e as voadeiras, agora atravesso o rio de balsa
juntamente com os carros de transporte. Meu pai separou-se da minha mãe já tem um
bom tempo, eu ainda era criança, tinha cerca de oito anos de idade. Hoje ela mora com
outro homem, mas não casou no papel e é aposentada como servidora pública do
município, serviços gerais, embora fosse professora do estado.

Sou evangélico da Igreja Assembleia de Deus. Concluí a Educação Geral, atual


ensino médio em 1999. Hoje sou pedagogo e realizo o curso de Ciências Sociais. Também
tenho Pós-Graduação em Gestão Pública pela UFMA, Metodologia da Educação infantil e
Ensino Fundamental pela UEMA. Na época em que cursava o GDE era um dos tutores
presenciais do Polo e professor de reforço escolar do Programa PET. Atualmente
trabalho em Tocantinópolis. Sou concursado como professor, mas nunca atuei em sala lá.
Eu trabalho numa biblioteca numa função administrativa, como assistente bibliotecário.
Estou num desvio de função, entende? Por questões políticas numa biblioteca pública
municipal. Precisavam de um pedagogo, uma pessoa que tinha conhecimento na área da
educação. Então eu fui encaixado nessa área. Mas, em algumas ocasiões eu substituí
alguns professores, especialmente quando estava no PET. Isso foi uma experiência muito
boa! Porque eu fazia pedagogia de uma forma bem tímida... Até então não tinha muita
queda por educação, mas quando eu entrei lá na pedagogia, logo, logo também comecei a
dar aula no programa PET. Pra mim foi uma experiência muito boa porque eu era muito
inibido. Foi uma experiência boa para eu falar em público. De forma geral foi muito bom
essa experiência. As turmas eram divididas por faixa etária de oito a quinze anos se não
me engano... E eu trabalhava de forma variada todas as disciplinas.

Os meus pais eram do interior, eu nasci no ano de setenta e oito e em setenta e


sete minha mãe mudou aqui pra Porto Franco, minha família já tinha uns sete irmãos
naquele momento e depois de mim tem mais duas, mais nova das mulheres. E ai no ano
de setenta minha mãe veio pra cá pra Porto Franco e em setenta e oito foi me ter em

.
302

Tocantinópolis e na época iniciava os estudos não sei se era seis anos ou era sete anos na
época e eu fui estudar em escola pública. Ainda hoje me recordo que naquela época tinha
o Jardim e eu fui com sete anos se não me engano. Minha família sempre foi humilde.
Minha mãe foi terminar o segundo grau, fez magistério depois de todos os filhos
nascidos. E quando tinha oito anos, oito a nove anos, fui surpreendido com a separação
dos meus pais. Por isso desde cedo eu estudava e trabalhava. Minha mãe era costureira
também e nós fomos crescendo, trabalhando e estudando... Eu estudava geralmente no
período da manhã e à tarde eu ia vender alguma coisa na rua: geladinho ou pastel. Isso
para ter mais uma renda em casa. E minha vida foi essa assim eu quase não tive infância,
quase não brinquei, sempre trabalhando e estudando... Minha mãe trabalhava na roça e
mantinha essa cultura plantar para a nossa subsistência. Assim, quando da separação ela
insistiu em fazer uma roça nas proximidades de nossa casa e quando saíamos da escola,
nos longos períodos de plantio, íamos todos pra lá. Mas, tinha uns irmãos meus que com
dezesseis anos foram embora de Porto Franco, já eram “donos do próprio nariz”. Quem
ficou como eu, tinha que trabalhar na roça também período de cultivo, mas eu não
gostava, era complicado demais...muito pesado e ai eu falava assim pra minha mãe. Eu
pensava assim...eu sempre sentia falta de...minha mãe era daquela mulher bem rígida,
entende? Tanto que para dar um abraço, para ganhar um abraço dela era complicado. Eu
sempre gostei da minha mãe, eu sempre admirei o jeito dela, mas afeto, carinho de mãe,
de mãe para filho, eu não tive. Até hoje, para dar eu um abraço na minha mãe é muito
difícil... porque eu não fui criado nesse regime... Então, as vezes invejava as crianças
brincando na rua, pois eu não tive infância. Eu pensava comigo: “poxa essa vida aqui...
será se não vou crescer um dia na vida?” Foi quando disse que queria estudar. Então
minha mãe falava: se você estudar, você vai! Ai coloquei isso na cabeça: vou estudar...vou
estudar! Nessa época ela ainda não era professora. Mas, logo em seguida, também ela
também voltou a estudar. Isso no final da década de 1980 e acabou sendo professora do
estado. Ela foi professora do estado e atuava também no município. Mas ela sempre ia
orientando, era uma mãe dura entendeu, tão dura que às vezes até agradeço a forma que
ela nos tratava... por que isso fez com que nós os filhos criássemos assim estímulos
assim para estudar. Ela era aquela mãe que não se preocupava com o filho na escola e
éramos obrigados a passar de ano. Ela alegava: “Olha, eu te dou o sustento e você tem
que se interessar na escola”. E como eu desenvolvi o objetivo não repetir de ano. E na
reunião de pais, as vezes minha mãe não ia, não ia porque ela sabia que íamos bem na

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303

escola. Ela sabia que a gente tinha aquela obrigação, então às vezes, ela não se
importava. Mas assim... mas mesmo assim com tudo isso, eu sentia um vazio na época de
minha adolescência. Sentia falta de carinho... de atenção... Eu trabalhava muito! Eu
trabalhava na rua com vendas e estudava muito porque tinha que passar de ano. Com
isso, sempre fui o mais dedicado aos estudos... e mudando... Comecei a trabalhar em lojas
em comércio na minha adolescência, comecei a namorar, não queria mais me expor em
certos serviços (risos), eu sempre quis andar bem vestido. Pra você ter uma ideia minha
mãe, eu acho que ela me deu roupa até os dez anos de idade, depois eu mesmo comprava
minhas roupas, calçados...

Quando da separação dos meus pais, até hoje eu ainda recordo de algumas coisas.
É interessante que criança lembra de muita coisa. Eu sempre via meus pais discutindo,
discutindo, durante o dia, a noite. Mais eu entendia pouca coisa, eu não sabia o foco real
da discussão. Mas, já na adolescência foi mais difícil, porque nas festas de pais não tinha
quem me representasse. Eu nem me animava quando chegava a festa dos pais. Às vezes
eu nem ia pra festa. Eu convivi pouco tempo com ele, mas lembro que ele era muito
atencioso com os filhos, ele não era de bater... Agora minha mãe era muito carrasca, ela
batia mesmo! Depois da separação ele foi embora e eu fui ter contato com ele, uns dez
anos depois, quando ele andou aqui em Porto Franco e ele não morava nem tão longe,
morava em Gurupi, Tocantins. Na época, para mim, essa visita foi estranha... como a
gente não tinha contato com ele, não tinha internet, nem telefone... ele foi embora,
construiu uma outra família, tem uma outra filha, já com dezenove anos. Mas, assim não
há relação entre nós... tanto da parte dele, quanto da minha parte também. Ele se
chateou tanto que falava que não queria que nos apegássemos a ele... Eu cheguei a
conversar com ele, mas assim... Eu tentava chamar de pai mais não conseguia. Porque eu
não fui ensinado e nem criado daquela forma, então era complicado. Eu nunca falei para
ninguém mais vou falar agora... Muitos detalhes que me deixou triste, sobre a vinda dele,
da primeira vinda, quando ele falou da ação decorrente da separação. Ele falou que eu
não era filho dele...isso eu nunca esqueci. Eu acho que isso impediu também a relação de
muitos filhos...de alguns irmãos meus com ele também. Ele falava por aí, em casas de
conhecidos que “quantidade X não era filho dele” e tudo mais... as vezes ele exagerava,
dizia que nenhum era filho dele... Até minha filha de oito anos disse que não conhece o
avô dela. Meu pai (Risos). Fico sorrindo (risos,) brinco com ela... E na festa na escola... ela

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304

estuda na escola Adventista e lá tem sempre a festa de avós. Desde os seis anos idade ela
chega para mim e diz: “pai o meu avô, o seu pai nunca veio na minha festa?!” Quando
adolescente, quando tinha os meus quinze anos, ela arrumou outra pessoa e viveu uns
dez anos com esse outro e depois arrumou o atual, que vive até agora. Mas, eu nunca
quis ter a figura de um padrasto, mesmo sentindo falta de um pai. Hoje eu tenho duas
filhas uma de oito anos e outra de dois e meio e eu tento ser o pai que não tive...

Conversar sobre sexualidade? Eu sempre fui uma pessoa curiosa. Em alguns


momentos... Eu sempre fui curioso assim ... em alguns momentos eu falava de
sexualidade... mas assim a respeito de participar mesmo, nunca falei com minha mãe, ela
sempre foi fechada comigo... Nesse ponto até hoje, até hoje ela nunca toca no assunto.
Hoje em dia ainda é comum isso acontecer!? Não que seja menino de rua, pois aqui não
tinha... mas... eu, eu, eu me colocava numa situação de trabalhar fora, na rua... e na rua
você está trabalhando, você ouve e aprende de tudo! Entende? Então, eu acho que esse
aprendizado que tive, eu acho que aprendi na rua... e um pouco na escola... mas na época
que não se falava desses assuntos. Estudei o ensino fundamental na década de noventa e
na época não se falava de sexualidade na escola e se alguém falasse, era falta de respeito
com o professor, com colegas e com as meninas também. Eu acho que na adolescência,
quer queira, quer não, você aprende e eu aprendi. Tanto que a primeira namorada eu
tive com 12 anos e a minha primeira relação, se não me engano foi com treze, catorze
anos. Era bem criança claro (risos).... eu aprendi praticamente sozinho, com participação
também de pessoas na rua... de amigos mais velhos que trabalhavam na rua... um
influenciava outro.

Em casa nosso tratamento era bem diferenciado. Era diferente por que as
meninas estudavam e tinham os afazeres da casa... elas ficavam com as tarefas
domésticas, enquanto nós meninos, íamos ganhar dinheiro, trabalhando fora de casa. O
regime de tratamento da minha família era um pouco rígido, não podíamos sair de casa,
brincar na rua. Eu era um menino muito assustado, tanto que quando fui a primeira vez
pra escola, chorei muito... Na época, tinha uns sete, oito anos... eu não queria estudar, ir
para a escola, importunava tanto que mãe acabou me tirando daquela escola. Com isso,
passei um ano sem estudar. Mas, apanhei muito por isso. No ano seguinte, ela me
colocou em outra escola, mas eu também não queria e fugia da escola e chorava muito.
Por isso, eu apanhei muito também. Outra coisa: lá em casa... quando um apanhava,

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305

todos apanhavam; se um falhasse e o outro sorrisse, apanhava também... Então


apanhamos muito e isso não é bom... as vezes a pessoa não esquece... mas, outras vezes
não ... estes são detalhes jamais esqueci. Posso até dizer que ainda guardo uma mágoa
por isso, apanhei muito e sem motivo. Eu não sei se o fato de minha mãe ser tão
agressiva conosco pode ter sido por consequência da separação, da vida que ela levava,
do ódio do meu pai ou algum rancor guardado... Hoje eu até brinco com ela... eu gosto
demais dela...hoje ela é muito carinhosa, atenciosa com os netos... e eu até brinco com
ela, dizendo: “mãe, agora você trata os netos de forma diferente de quando éramos
criança, lembra? Naquela época quando a gente apanhava muito, mesmo não tendo feito
nada... o outro errava e eu apanhava também...”. Ela lembra, mas diz: “era nada menino...
não fazia nada disso! ”. Mas, eu não tenho mágoa... eu lembro porque são coisas que não
se esquece, mas eu considero muito minha mãe...

Na escola, no ensino fundamental tinha uma professora que eu não gostava. Ela
me tratava de uma forma diferente... porque eu não sei... mas, na época a mãe tinha que
dar suporte para dez filhos. Era obrigatório utilizar a farda completa: sapato preto, meia
preta, calça e uniforme da escola ... Era uma escola pública e as vezes eu ia com outra
roupa, às vezes a farda estava suja, as vezes até rasgada... Com isso, sentia que ela me
tratava de uma forma diferente entendeu, pois brigava muito comigo na sala de aula... Eu
era um aluno que não conversava, era muito caladão e por isso, alguns professores até se
preocupavam comigo. Mas, eu sentia que era tratado de forma diferente, pois a
professora parecia maldosa comigo... me botava de castigo, dava beliscão no braço e me
botava de castigo... ficava encostado no quadro de frente pra parede, mas eu nem
entendia e ficava calado, até que minha mãe soube e me tirou da escola. Outra coisa: eu
também não gostava da rigidez no tratamento dos alunos... as vezes não podia nem
correr no pátio na hora do intervalo, a rigidez dos professores em dar suspensão... Às
vezes acontecia alguma coisa na sala de aula, um aluno fazia alguma coisa e todo o grupo
era suspenso. Em relação à sexualidade, lembro que nos anos finais do ensino
fundamental os alunos discutiam entre si, falando baixinho sobre o comportamento de
tal pessoa, de mulher, de homem que parecia ser homossexual e víamos que havia
crianças que tinha uma certa tendência, que demonstravam esse lado... Então, tais
questões eram, diretamente falando, mais tratadas no círculo de alunos. A escola não
tratava esses assuntos, nem mesmo nas aulas de ciências. Estudávamos apenas o

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306

essencial do corpo humano. Lembro que os meninos eram mais assanhados e diziam
para o professor: “você não vai falar dessa parte não? Do livro, da parte da mulher e do
homem? Para que serve? ”. Mas, eu sempre ficava na minha, ouvindo e a professora
falava: “deixa disso menino! ”. Então, o corpo humano era tratado de forma geral com
algumas interrupções que eu achava engraçado, pois todos sorriam quando ela falava...

Sobre minha formação, o caminho trilhado até o curso de pedagogia... bem, no


Ensino Médio eu realizei um curso técnico em marketing. Para o ensino superior eu
queria me formar em Direito... Era meu primeiro sonho, desde o ensino fundamental.
Também sempre gostei de geografia, de estudar o espaço... na minha adolescência eu
sabia...eu sabia...eu aprendi a pronunciar todos os países do mundo e suas capitais... eu
amava estudar mapas... as regiões os continentes... Mas, quando terminei o ensino médio
no ano de mil novecentos e noventa e nove, estava na dúvida entre Geografia ou Direito,
mas não tinha faculdade na época. Dois anos depois, chegou no município o Programa de
Capacitação de Docentes (PROCAD) da UEMA, mas eu não pude me inscrever pois ainda
não era professor. O Curso de Direito só tinha em Imperatriz, mas não tinha condições
em me deslocar de cidade. Foi quando comecei a trabalhar em Tocantinópolis. Em dois
mil e dois, dois mil e três... E lá no campus da Universidade Federal de Tocantins (UFT)
eu me deparei com muitos amigos meus que cursavam Pedagogia. Já tinha quase vinte e
cinco anos quando passei no vestibular para esse curso. Engraçado! Entrei no curso, era
tudo muito novo... e as vezes me perguntava: “o que estou fazendo aqui?”. Parecia que
tinha caído no curso de paraquedas. Tanto que um dos professores, o da primeira
disciplina, perguntou e solicitou que levantasse as mãos, quem estava no curso porque
gostava de pedagogia. Foram poucos os que levantaram as mãos, acho que uns três;
depois perguntou: “Quem não gosta de pedagogia? Quem veio por falta de opção?
Naquele momento, a galera todinha levantou a mão. E ele até brincou, dizendo: “gente
quem quiser desistir volte...pode voltar gente...quem não quiser estudar... porque não é
fácil...universidade não é fácil. Curso de pedagogia não é fácil...” Eu também tinha
entrado no curso por falta de opção, pois só tinha esse curso no campus de
Tocantinópolis e eu queria estudar. Já tinha ouvido relatos de pessoas que gostavam
muito de pedagogia e eu também queria gostar de pedagogia. Tinha um professor
homossexual que me identificava muito e aprendi a respeita-lo. Tanto que quando entrei
no curso GDE, me lembrei muito dele, porque ele organizava um Seminário de Gênero na

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307

UFT, bem divulgado na região... Ele é extraordinário e atualmente faz pós doutorado em
Portugal. Ele sempre trabalhou questões de gênero e com ele, aprendi a gostar mais da
pedagogia, aprendi a estudar mais também... eu nunca reprovei em nenhuma disciplina...
e hoje posso dizer que gosto de pedagogia tanto, que hoje eu a defendo. Posso até dizer
que a melhor coisa que aconteceu na minha vida foi em me formar em pedagogia...e as
vezes até me emociono em falar isso entendeu ... amo demais pedagogia... e tenho
saudades dos professores que me deram uma força muito grande...da luta que
enfrentava... da correria para pegar a última balsa para atravessar o rio... a última
viagem era dez horas da noite... a aula acabava dez horas, mas os professores entendiam
e deixavam eu sair mais cedo... Às vezes eu chegava atrasado também...mas eu não
faltava na faculdade...por nada nesse mundo...eu não perdia uma aula... só se acontecesse
alguma coisa grave...eu não gostava de faltar... A pedagogia foi uma das melhores
experiências que tive na vida... hoje...acho ela abriu um leque para muitas coisas na
minha vida...

Eu aprendi muito com o professor Eliseu, que também foi orientador de meu
Trabalho de conclusão de Curso (TCC) trabalhou as disciplinas Ética e Filosofia da
educação. Numa certa ocasião, eu fiz até fiz parte na organização de um dos Seminários
de Gênero que ele realizava todos os anos. Com isso, quando surgiu o curso de GDE eu
me interessei logo de início... Na minha opinião, as questões de gênero e sexualidade são
importantes e deveriam ser trabalhadas em todos os cursos de licenciatura incluindo o
curso pedagogia... Seria bom tratar de uma realidade existente que sempre existiu
porque quando estudamos passamos a respeitar, a entender e a vivenciar de perto essa
realidade... sabe o que eu analiso? Na UFT, o seminário que comentei acontece somente
Campus de Tocantinópolis... Em Palmas não tem, não tem. Mas, seria bom que os campus
das universidades direcionassem esses estudos e não só paro os acadêmicos mas para
comunidade em geral... Bem! Eu poderia resumir Gênero assim...resumindo falando... Ele
está relacionado... no meu ponto de vista, ele está relacionado ao modo de vida...a
sexualidade, as opções sexuais...eu não sei se é isso mesmo, mas minha opinião visão é
isso... nesse sentido, de forma resumida... Um ponto muito importante...em relação
assim... é muito importante porque trata diretamente a questão de vivencia, de
vivencia...de escolhas também... Sexualidade...é basicamente isso... são as opções, as
escolhas... é o modo expressivo como alguém se coloca para o outro...

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308

Em relação às minhas práticas como professor, eu fiquei quase quatro anos no


PET, trabalhando com reforço escolar e lá era complicado trabalhar com essas questões,
de gênero, de sexualidade porque eram as pedagogas quem acompanhavam a grade
curricular do PET. Eram os pedagogos e os coordenadores quem ditavam o que era para
dar em sala de aula, colocar nos planos, ensinar e tudo mais, então eu praticamente não
tratava essas questões. Mas, eu até me deparei com situações lá que... alguns meninos
que tinham um jeitinho... assim... Um jeitinho de... sei lá...de homossexual e que os outros
colegas gozavam... Então, em alguns momentos eu falava: “por favor não falem isso pois
vai desconcentrar ele; ele quer estudar, por favor deixem ele estudar...”. E eles diziam:
“Mas, professor ele tem um jeitinho meigo... acho que ele é...”. Naquele momento eu até
brinquei, dizendo: “eu também sou! ”. Mas, eu sempre evitava tocar no assunto, porque
eu não conhecia, a minha instrução foi pouca... estava recente na pedagogia e entrei no
PET para dar aula também... Então, eu tentava respeitar e sempre exigia o respeito dos
colegas.

Hoje em dia, nas escolas, já tem algumas orientações sobre sexualidade, porque
existem psicólogos que em alguns momentos atuam em sala de aula... Aqui é comum
psicólogos passarem nas escolas pra dar palestra... Mas, em sala de aula mesmo, os
professores trabalham muito pouco essa questão, acho que ainda estão se adequando
com a situação de passar ao semelhante o ensino sobre a sexualidade, mas, as vezes,
quando existe algumas palestras, eles trabalham ali, naquele momento... Eles dizem: “um
dia vou fazer palestra sobre determinada coisa, agora trabalhar diariamente isso em sala
de aula, aqui em Porto Franco não se trabalha...Eu acho que essas temáticas deveriam
estar incluídas no currículo das escolas. Eu analiso assim: na minha época de
adolescente, quase não tinha informação nenhuma. Hoje a mídia ensina muita coisa
acerca da sexualidade, então temos que acompanhar essa evolução, porque se a internet
ensina, porque não na sala de aula? A pessoa vê muita coisa na internet, tem muita
informação, então para mim não teria nenhum problema, deve ser incluso sim!

Em relação ao curso GDE, na época eu já tinha feito pedagogia e já estava


trabalhando no Polo como tutor. Isso foi em dois mil e oito, dois mil e nove... Foi quando
começaram a divulgar o Curso no Polo. Então eu fiz a inscrição, fui selecionado e gostei...
foi uma experiência boa! Um grupo de alunos do curso se reunia para debater, estudar
juntos... e um motivava o outro... Eu acho que forma geral o curso foi muito bom... Bom!

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309

E sobre as propostas do curso GDE, especialmente a proposta da educação inclusiva no


que diz respeito a diversidade sexual, sobre essa questão... Eu sou evangélico desde os
dezoito, dezenove anos... E a igreja evangélica bate de frente com essas questões, mas
meu pensamento hoje é o seguinte: Apesar de eu ter alguns estudos embasados na
bíblia, através desse curso, da pedagogia e tudo mais... não é que eu tenha me
distanciado de alguns detalhes da minha vida espiritual... Mas, eu aprendi a vivenciar
melhor essas questões e a respeitar o outro. Hoje eu falo para as pessoas, sem ter medo
de me posicionar e sem ter vergonha, sobre a minha convicção... para mim, cada pessoa
tem a livre escolha de ser o que quer ser na parte da sexualidade [...]. Mas, por outro
lado, no meu ponto de vista também, a pessoa já nasce... Ela se conhece com aquele
estilo ou jeito homossexual... Mas, de forma geral ei vejo como escolha... Até mesmo em
alguns programas de televisão, como o Altas Horas, aquele do Serginho Grosmam – altas
horas, que trata muita sexualidade lá também... Sempre é falado por escolha...que são
escolhas... Com isso, a gente passa a vivenciar um pouco... Então, eu fico na dúvida: as
vezes, acho que nasce...no meu ponto de vista a pessoa já nasce. A pessoa já nasce... Eu
acho que ela se conhece... elas se conhecem...isso porque ela nasce... tem criança que a
gente percebe e fala do modo de se portar...de conversar, até de se vestir, a gente
percebe criança que já nasce com aquele estilo...Então, ela escolheu nascer assim...não
escolheu! Ela escolheu falar daquela forma? Também não escolheu! No meu ponto de
vista, já nasce assim...Tem um teólogo amigo meu, um teólogo, conhecedor da bíblia... Eu
tenho um amigo que é pastor também, que era padre virou pastor, tem amigo espírita,
amigo homossexual, amiga lésbica eu tenho...e a gente conversando eu falo para eles o
meu ponto de vista, eu falei que a pessoa já nasce. A pessoa já nasce... E esse meu amigo
teólogo falou: “Rapaz, eu também acho que sim que nasce!” Agora o pastor se colocou:
“não nasce, escolhe depois! ”.

Sobre o projeto que elaboramos no Curso? Bem! O projeto assim da... Olha!...Não
chegamos a desenvolver não.. Na prática, não chegamos a trabalhar... Mas, pensamos
assim... porque existe essa necessidade de trabalhar na adolescência, então na época a
gente pensou... vamos tentar desenvolver o projeto, no foco que tem mais necessidade
que é o adolescente, então vamos focar nele. Eu também trabalhei com adolescentes na
época em que eu era professor e as minhas colegas davam aula no ensino fundamental,
então partiu daí essa ideia... E em relação a gênero, sexualidade eu acho que houve

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310

muitas mudanças de posturas em relação a essas questões depois do curso, pois eu tinha
um pensamento... digamos muito...negativo. Assim, não de forma exagerada, pois as
questões religiosas... devido à religião, aos ensinos bíblicos, alguns teólogos, alguns
especialistas na área cristã, no caso a escolha, a opção sexual... uma coisa bíblica... eu
acho que até entrar na faculdade...eu tinha assim... Eu não tinha...eu ficava na minha, eu
nunca tive preconceito com ninguém... E até tenho amigos, amigas...meus amigos de
infância... que eu sei a orientação sexual deles... e de meninas também entendeu... mas
nunca tive preconceito... só que devido algumas pessoas tentarem camuflar... ensinar de
uma forma e querem ensinar e a gente fica meio balancEaDo... não aceitar uma coisa é
um detalhe... e não aceitar e ser preconceituoso é outro detalhe... Então não é que eu não
aceitava, eu tinha aquele limite...poxa! Eu me perguntava: “Será que é assim mesmo? ” Eu
sempre tive minhas interrogações...

De forma geral o curso de GDE contribuiu na minha formação pessoal porque eu


passei a aprender mais sobre a questão de gênero, aprendi mais, aprendi a realidade. E
percebi algumas vivencias e alguns casos existentes e relacionei com alguns estudos...
Eu aprendi a vivenciar a questão de gênero... a respeitar melhor o outro... a entender
melhor... e ter uma sensibilidade melhor com as pessoas. Então foi muito importante
esse curso porque hoje eu sou o que sou, graças a essas orientações de graduação e
desse curso. Eu respeito, tenho afinidade, tenho amigos, amigas e respeito e não sou
contra... e há um detalhe e sou contra qualquer tipo de preconceito. E se vir a ser
professor, vou trabalhar essas questões, porque acho que isso é importante. E trabalhar
dessa forma é importante... E hoje você tem... são poucas pessoas que trabalham... No
caso da UFT aqui...em o campus do estado aqui...então são poucas pessoas... Agora o que
devia acontecer era incluir no currículo escolar. Principalmente no fundamental. É isso
que penso!

 

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311

Como diz a história é você jogar o jogo dos alunos... é ensinar e aprender
juntos com eles, e é claro você corrigindo o linguajar deles. Então, eu não
tenho dificuldade de trabalhar a sexualidade.

Meu nome é Vera, nasci no ano de mil novecentos e setenta e oito. Sou casada e
tenho um bebê que irá completar um aninho de vida daqui a dois meses. Fiz curso de
magistério no Ensino Médio e Licenciatura em Geografia, além de ter uma Especialização
em Docência do Ensino Superior. Sou professora há 18 anos e atualmente leciono as
disciplinas Geografia e Ética e Cidadania do 6º ao 9º ano na Escola Municipal Cecília
Bento. Nasci e realizei o Curso GDE em Porto Franco. Venho de uma família com 5 filhos,
sendo quatro moças e eu sou a caçula das mulheres e tem um rapaz que é mais novo que
eu. Nós morávamos no campo, próximo à cidade e estudávamos na cidade. Era bem
pertinho! E foi uma vida simples, mas era uma vida boa! Mas, tínhamos, digamos assim,
uma vida normal...uma vida simples. Tive uma boa infância, as minhas notas na escola
eram boas... eu tive a primeira nota baixa apenas na quinta série, na disciplina de inglês.
Nossa! Chorei demais!! E foi um seis e meio (risos), que até a professora depois, chegou
a rever a situação e viu que eu não merecia aquela nota. Eu tive um pouquinho de
complicação, já no ensino médio, devido já trabalhar e eu não conseguia conciliar o
estudo com o trabalho, o meu tempo de estudo era pouco e de trabalhar era mais, mas
mesmo assim eu consegui. Nunca fiquei reprovada.

Minha mãe conversava bastante com a gente, mas apenas o que se referia aos
estudos. Não conversava, digamos assim... como hoje a gente tem uma facilidade maior
para conversar hoje... sobre essas coisas... Mas, nós aprendíamos na escola, com colegas,
com professores, na mídia que mostra alguns casos. Nós também tínhamos curiosidade
de perguntar, mas algumas vezes recebia broncas por isso (risos). Os meus pais sempre
foram assim fechados. Eles eram tradicionais. Às vezes perguntava algumas coisas a
minha mãe, o meu pai, nunca foi de chegar e aconselhar essas certas coisas. Minha mãe
acompanhava mais a gente. As curiosidades que vinham eram mais sobre a questão de
estudo, na parte... assim de namoro... quando eu comecei a entrar na adolescência... Mas,
algumas coisas a gente via mesmo na mídia. Algumas coisas minha mãe respondia... de
uma forma aberta, correta; já para outras coisas ela bronqueava com a gente. Eu achava
aquilo um absurdo. Ela dizia: “Deixa quando crescer mais vocês vão saber!” Falava
assim, mas o que ela podia fazer? Ela era uma pessoa assim... o estudo dela foi pouco, ela
estudou só o fundamental menor é não sabia como mostrar, passar para os filhos

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312

assim.... A gente ia aprendendo com o tempo. Com meu pai eu não conversava, ele era
mais fechado. Ele não chegava a falar sobre futuro... essas coisas não. Acho que nossa
convivência, quando a gente era já estava na adolescência, nossa própria convivência
nos fazia aceitar tudo aquilo, mas, quando a gente começou a entender melhor as coisas,
quando fomos conhecendo melhor... as portas foram se abrindo, começamos a ter mais
curiosidades... perguntava mais... às vezes não sabiam responder, na realidade eles não
sabiam como responder. Eu acho que eles até tentavam, mas não sabia como... aquela
questão do tradicionalismo não deixava. Na época eu tinha uma tia que ela era mais
experiente. Ela nem morava tão próximo da gente. Ela já morava na cidade grande, tinha
estudado mais e tinha um trabalho mais aberto. Então era ela quem mais nos
aconselhava quando ela vinha nos visitar... ela aconselhava, perguntava como estava
nossos estudos...se estávamos pensando em namoro... Então ela nos aconselhava. Mas,
quando os adultos conversavam, nós não podíamos participar. As crianças ficavam de
fora daquela conversa e a gente se perguntava o porquê? Às vezes até tentávamos ouvir
alguma coisa, mas éramos reprimidos. Aí, perguntávamos porque que não podia, mas
eles nunca tinham uma resposta...eles só diziam assim: “ah, é porque é conversa de gente
grande!”. Ficávamos curiosos, nos perguntávamos: “o quer que será que eles estão
conversando? Por que eu não posso participar?

Eu lembro que nas poucas conversas que tive com minha mãe sobre questões
voltadas à sexualidade, ela conversava assim... Começava na questão de menstruação, ela
explicava um pouquinho, ela chegou a explicar o que era, acompanhava aquele período e
explicava que era aquilo ali... da forma que a gente tinha que aceitar, da forma de
higiene, tudo...E na questão de namoro? Só falava assim: “É cedo para namorar, deixa
pra... coloca os estudos em primeiro lugar”. Eu cresci com essa mentalidade: o estudo em
primeiro lugar. Sabia que devia colocar os estudos em primeiro lugar e deixar para
namorar quando já estiver adulta...Eles tinham esse pensamento... e o namoro só pode
ser um namoro simples, namoro de um abraçinho, um beijinho não pode...Ela dizia:
“Tem que exigir respeito do rapaz, se o rapaz tentar avançar, tem que exigir respeito e se
afastar”. Ela explicava dessa forma e a princípio a gente fazia dessa forma...” (risos). Ela
não explicava o que era “o avançar”... Mas, a gente via essa questão na mídia e eu gostava
muito de ler. Eu lia revista, aquelas revistas para moças... lá explicava muitas coisas...
Então, aos poucos eu fui entendendo o que era “o avançar”. Quando adolescente eu tinha

.
313

as minhas irmãs que eram mais experientes. Elas explicavam mais ou menos... Elas me
aconselhavam quando comecei a namorar... elas me explicavam o que tinha que
acontecer, o que eu tinha que evitar... eu ouvia... Então minha mãe foi deixando de me
aconselhar e eu ouvia mais minhas irmãs. Se nós fizéssemos assim alguma coisa que
seus pais não aprovassem. Falássemos um palavrão, alguma coisa que eles não
aceitassem, uma briga, por exemplo, alguma coisa que eles reprovassem, eles não
chegavam a bater, mas reclamavam bastante. Assim, por que eu cresci numa família
assim sem palavrões. É.... a gente achava um absurdo é quando falava qualquer palavrão
por mais simples que fosse, eles não aceitavam.

A princípio, eu sentia que havia tratamento diferenciado entre nós meninas e


nosso irmão. Pelo fato dele ser o único menino, quando ele nasceu eu comecei a
perceber...eu via que o carinho maior era para ele. Eu não me recordo direitinho algumas
coisas, mas minha mãe fala mesmo que eu tinha ciúmes. Eu queria estar sempre por
perto o todo tempo, queria fazer qualquer coisa para aparecer. As outras minhas irmãs
já eram mocinhas, com isso não sentiram tanto assim...mas ela me fala isso que eu tinha
ciúmes.... Nas atividades de casa, lavar louça, varrer casa, arrumar as coisas... todos nós
fomos ensinados, desde pequenos, a fazer as coisas, cuidar das nossas coisas,
primeiramente. Eu, por exemplo, com dez anos de idade, eu já conseguia lavar roupa, eu
já conseguia limpar uma casa, eu já conseguia fazer comida não todos os tipos, mas o
básico eu já conseguia. Meu irmão não fazia o que eu fazia... Ele fazia assim, digamos,
lavar...ele lavava as cuequinhas dele, varria uma casa... as vezes lavava louças... fazer
comida não, ele não fazia.

Sobre a escola, quando eu comecei a estudar, numa escola pública Municipal


escola. O pouco que eu lembro de minha professora... ela era uma pessoa calma, uma
pessoa carinhosa... eu era muito agitadinha, então ela era uma pessoa que...que...minha
mãe disse que ela me ajudou muito, a ter mais calma... digamos assim... a respeitar mais,
a conversar menos na escola... porque eu conversava bastante... Eu gostava da escola... eu
gostava dos momentos de recreação em primeiro lugar e pintura. E gostava demais de
pintar! Às vezes as professoras reclamavam, por que eu parava uma atividade para ir
desenhar. Meus cadernos eram todos desenhados. Tanto de ladinho, rabiscadinho
assim...era assim...bem, bem...eu usava bastante assim minha criatividade... O que eu

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314

menos gostava... tem umas disciplinas (risos) que eu nunca gostei delas. Aliás uma...que
naquela aula assim era uma aula que eu não dava atenção, e os professores eram
tradicionais e eles faziam nenhuma dinâmica para levar a gente...era matemática. Era a
hora que eu não gostava de jeito nenhum das aulas...era matemática, as outras não!

Em relação às questões da sexualidade, eu ouvi falar mais claramente a esse


respeito já no ensino médio. O meu ensino fundamental foi tradicional, é... os professores
comentavam somente o que tinha na disciplina, no livro didático, eles comentavam e a
gente percebia assim, que eles eram muito assim... tímidos pra falar a respeito do
assunto. Às vezes a gente tinha curiosidade de perguntar, às vezes eles sorriam, com
vergonha de falar. Eles eram tímidos, eles não tinham assim, aquela... Eu já lembro dessa
questão somente no ensino médio. Quando a gente chegou a questionar algumas coisas
com uma das professoras e era justamente pela questão da timidez, ela não soube
esclarecer direitinho, ela fugia assim do assunto... Quando estudamos os órgãos genitais,
perguntamos algumas coisas e ela simplesmente falou o que estava no livro, e só aquilo
num cartaz que ela levou que eu não lembro dum cartaz que ela levou... aliás até um
mural. Um mural prontinho que ela levou. Era simplesmente aquilo. Não falava mais
nada assim pra...

Sobre o tratamento dado para as meninas e meninos, eu percebia que a maior


diferença era nas aulas de Educação Física. Os professores sempre nos separavam. Os
meninos praticavam um tipo de esporte, e nós meninas, outro. Eu achava que podia ser
todos juntos. Tanto que às vezes perguntava porque éramos separados. Às vezes os
professores diziam que esporte tal, era mais pesado... Eu tinha vontade de jogar futebol,
por exemplo, mas não podia... Eu lembro que na escola acontecia muitos casos de
namoro. É questão de homossexualidade também chegou acontecer uma vez, eu já
estava no ensino médio e... havia muito preconceito em relação a isso. Tinha um rapaz
homossexual na sala, e uma colega achava aquilo um absurdo... ela queria que não
tivéssemos amizade com ele. Inclusive, tínhamos um grupo e ela fazia parte desse grupo,
e um dia, nós convidamos esse rapaz para fazer parte do grupo, até por que a gente
percebia é que ele era excluído e ela não aceitou... Ela chegou a pedir para trocar de
turma. Foi um momento assim constrangedor. Eu mesma não aceitava isso.

.
315

Sobre o caminho percorrido do ensino médio até chegar na universidade, na


licenciatura, no Curso de Geografia... confesso que na realidade eu fiz por que não tinha
opção (risos). Não havia outro curso, porque aqui só tinha uma escola de ensino médio e
continua tendo só uma e o curso só era o magistério. O curso de geografia, eu fiz pela
UEMA, Eu até gostava... mas eu não tive opção, na realidade eu queria Letras, como eu já
tava na profissão de professor, mas só foi oferecido Geografia no município. Eu já era
professora na época... e a questão financeira não me permitiu sair daqui para fazer fora e
aí eu optei pela geografia. Assim por gostar mais da geografia, dos que haviam oferecido,
o que mais me chamou atenção foi à geografia. Na realidade, eu fiz vestibular e eu
consegui passar, mas, eu falava: não vou fazer por fazer, não queria a principio, eu não
queria assim mesmo. Mas, eu comecei...eu comecei a me relacionar bem com os colegas e
tudo, é tinha alguns colegas, alguns que atrapalham um pouco, que eles são pessoas
mais diferentes, distantes e tudo mais... Era... logo, porque o nosso curso era assim, eu
comecei sem querer e sem gostar, mas no decorrer do curso, eu fui gostando... o curso foi
oferecendo... tinha muita aula de campo, então essas aulas ajudava bastante a gente... Eu
conheci coisas que eu jamais imaginava que poderia ser daquela forma...E ai aquilo ali foi
gostando, fui gostando... até que terminei o curso gostando realmente do que eu fazia. As
aulas aconteciam sempre nas férias, de forma intensiva... Na realidade, a gente não tinha
férias... Foram quatro anos sem férias! (risos). Era cansativo... Eu cheguei, no princípio a
pensar em desistir. Eu pensava na questão de estar fazendo um curso que eu não queria
fazer... Só que eu tive pessoas que me influenciaram, até mesmo colegas, e eu não sou
muito de desistir... às vezes, quase desisto de alguma coisa, mas de repente, eu volto
e...não, não é por ai!

E nessa trajetória tivemos momentos significativo que me chamou atenção e


ficou marcado na minha trajetória, na minha história: eu tinha um grupo... o meu grupo
de estudo era só de mulheres, era assim um grupo...Às vezes a gente era criticada
assim...porque eu nunca tive assim problema de chegar a frente e falar, aquela coisa
toda, e eu tinha colegas que era muito tímidas, colegas que não conseguiam falar... eu fui
muito criticada por isso também... na forma dos colegas acharem que eu estava
carregando minhas colegas, só que não era assim, era um grupo que eu era de ir mais à
frente, mas todos trabalhavam...E nesse grupo a gente formou, um grupinho de dança,
para terminar uma apresentação nas aulas... Este grupo deu certo, todos gostavam muito

.
316

de nossas apresentações por isso. Até os próprios colegas chegavam a pedir. “Ah, cadê a
apresentação do grupo, e tal?” Hoje assim, quando a gente se encontra com as colegas a
gente recorda, foi muito bom esses momentos. Até os professores, que acompanhavam
gostavam de nossas apresentações.

Durante a minha formação no Curso de Geografia tive possibilidade de estudar


questões relacionadas a sexualidade inserida nos textos... Inclusive em uma das nossas
primeiras disciplinas nós realizamos um projeto relacionado à prostituição... Em minha
opinião, estas questões deveriam ser trabalhadas em todos os cursos, porque é muito
importante, hoje em dia é muito importante porque quando a gente está em sala de aula,
digamos de ensino médio, que eu já dei aula pra ensino médio,a gente vê alunos leigos
em relação a essas questões, então acho que deveria ter realmente uma disciplina que
trabalhasse vários conteúdos da sexualidade, pois isso ajudaria muito! Hoje eu avalio
que está faltando muita coisa na formação dos professores em relação a gênero e
sexualidade. Eu trabalho a sexualidade na disciplina de Ética e Cidadania e eu vou atrás
dos materiais para trabalhar, eu tento trabalhar de forma aberta, procurando conversar
com os alunos, ouvir o que eles têm a dizer, ouvir o que eles entendem por sexualidade e
tento passar o conteúdo para eles de forma dinâmica, de forma espontânea... Mas, eu
acho que ainda está faltando muito...nós não somos preparados, tanto quando eu fiz o
GDE, mais atenção mais por causa disso, por eu estar trabalhando a Ética, e por
trabalhar muito a sexualidade. Queria ter alguma mais alguma coisa que me ajudasse...

Sobre as questões de gênero em minhas práticas escolares... Bem! Ah...eu...e


todas as formas de gênero que você fala? Eu procuro passar assim de forma... é que a
gente vê em nosso cotidiano algumas coisas, alguns exemplos, e como eu falei
anteriormente, eu busco a bagagem que eles trazem, eu procuro saber as experiências
deles, em seguida realizo debate procurando trazer o cotidiano deles para a sala de aula,
para debater, trazer a realidade para sala de aula... Só que procurando conversar de
forma mais aberta... é tanto que em todas as turmas, quando se falava assim: “Ah! É aula
de Ética! ”. Os alunos gostavam bastante. Teve um dia, que chegou uma professora, uma
própria professora de ciências... e coincidiu de eu estar trabalhando num determinado
momento a gravidez precoce... e ela chegou pra mim perguntando: “como você consegue
ser tão aberta em relação a esse assunto?”. Ela era tímida, ela não conseguia e eu falei,

.
317

não é simples é você, é como diz a história é você jogar o jogo dos alunos...é ensinar e
aprender juntos com eles, e é claro você corrigindo o linguajar deles. Que tem linguajar
que eles aprendem fora, e é claro que você não vai levar aquilo ali pra sala de aula...
então aquilo ali fica... eu não tenho dificuldade de trabalhar a sexualidade.
Em relação à Educação Sexual, na realidade eu entendo pouco, eu posso dizer
assim pouco, apesar de eu procurar sempre me informar sobre a questão. Porque a cada
dia que passa a gente vê algo novo e de repente você se surpreende com algo que você
não tinha visto falar e o aluno traz pra você algo mais... Eu procuro no meu
entendimento, digamos, o que eu entendo hoje, o que dar para eu incluir no meu
conteúdo na sala de aula. Eu procuro sempre me informar, pesquisar, ver entrevistas de
pessoas sobre a questão... e procuro sempre passar este conteúdo de forma que eles
entendam... que gostem! Eu trabalho estas questões mais na disciplina Ética, na
Geografia, somente em alguns momentos, com algumas coisas... a geografia ela não nos
dá espaço... Agora, quando a gente vai estudar a questão de gênero como espaço
geográfico, aí é o momento de trazer, mas você não vai trazer com detalhes, com
detalhes... Já com a ética eu trabalho de forma mais detalhada. Eu procuro planejar...eu
procuro levar textos... interagir o assunto, mas é aproveitado tudo o que vem deles,
porque eles trazem uma bagagem muito grande... tanto que às vezes a gente se
surpreende... No momento...o que surgi... as dúvidas... muitas vezes eles têm dúvidas... e
se eu posso esclarecer essas dúvidas no momento... eu esclareço, quando não sei, fico
devendo... e na aula seguinte eu já levo a resposta... Eu procuro não deixar eles com
dúvidas... Mas, eu procuro ter materiais... eu tenho material porque trabalho muito a
questão da sexualidade na adolescência... Eu procuro trabalhar com textos, eu procuro
trabalhar com jogos... então, tudo isso ajuda muito, nossa! Os alunos gostam demais!

Eu já vivenciei uma situação, em que um menino foi alvo de gozações por não
apresentar um comportamento... digamos assim ... próprio para seu sexo. Naquele
momento, reunimos os professores para procurar ver.... assim... um método melhor e a
gente optou pelo diálogo... O menino sofria discriminação, por ele não ter aquele
comportamento... Ele não chegou a se declarar dizendo: “eu sou um homossexual!”. Mas,
ele tinha um comportamento diferenciado, e aquilo era motivo de gozação e inclusive ele
sofreu bullying por isso. Com isso, a gente procurava trabalhar os alunos com diálogo e
aquele aluno que mais atacava, era chamado particularmente para conversar. Inclusive,

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318

eu cheguei a conversar com muitos. Até me falaram assim: “Oh, tia! A senhora tinha fazer
um curso de psicologia!”. Eu gostaria muito, mas... (risos). Com isso, a gente notou que
diminuíram as gozações. Cada professor foi fazendo a sua parte. Alguns conversavam
com a turma inteira, todos os assuntos... Eu separava, por trabalhar mesmo a questão do
homossexualismo, também conteúdo da Ética. Eu tinha aquele momento em que
trabalhava com a turma inteira, depois eu procurava conversar particularmente sobre o
assunto... e isso ajudou bastante... Eu já tive também um caso de “abuso sexual”... Foi com
uma aluna. Este caso foi mais... Digamos assim... mais difícil... Ela tinha uns treze anos e
estava sendo abusada pelo padrasto, em casa e ela não tinha apoio de ninguém, nem
mesmo da mãe. E ela era uma menina super inteligente, esforçada, mas ela não tinha...ela
era muito tímida... Ela começou a se comunicar comigo, através de cartas. Ela mandava
carta pra mim...quer dizer a princípio... Ela contava nas cartas o que acontecia ... A
princípio ela chegou a mandar cartas para outra professora, só que a outra professora
não ligou... ela achava que não deveria se meter e dizia que poderia nem ser verdade...
Depois que o assunto veio mesmo à tona, ela disse: “é eu recebi uma carta dela! Ela
escrevia cartas pra mim, contando o que acontecia... mas eu não liguei... Então, quando
eu comecei a receber as cartas, aquilo ali me... eu chamei a direção da escola e contei
tudo! Eu falei: temos que fazer alguma coisa, pois ela me pediu ajuda! Creio que isso foi
pelo fato de eu ser mais aberta com eles, trabalhar muito essa questão... com isso, ela me
pediu ajuda. Então eu chamei a direção da escola e conversei. E eu mesma procurei o
conselho tutelar, conversei com ela, perguntando se ela aceitaria conversar com o
conselho tutelar, particularmente, numa sala onde haveria somente ela e o pessoal do
conselho... A princípio ela não queria, pois tinha medo...Foi difícil, mas... Ela não sabia ao
certo quando começou esses “abusos”, não sabia ao certo, mas ela falava que acontecia
desde muito pequena. Ela dizia assim: “desde pequena!”. Até o ponto que comecei
acompanha-la, não tinha acontecido... assim o ato sexual em si...mas aconteceu as
preliminares...ela era forçada a fazer... Eu a principio não sabia, eu fiquei... meio
desesperada, mas falei: “eu tenho que ajudar, mais como?” Deu medo, me deu medo
também a principio...porque o padrasto dela já foi indiciado em negócios de drogas
anteriormente. Com isso, me deu medo... Mas, eu dizia: “tenho que fazer alguma coisa!
Vou procurar o conselho, vou me informar... vou fazer uma denúncia anônima...” Ela era
forçada a assistir filmes pornôs, então, quando eu passei esse caso para o Conselho.
Levei as cartas que ela me mandava, essas cartas foi parar nas mãos do juiz. Ele viu

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319

tudo...eu fui chamada para depor, eu fui, assim de forma discreta... fui em dia diferente,
ninguém me viu... teve o julgamento dele eu fui chamada para depor... e o Conselho
acompanhou e... seu padrasto foi preso... ela saiu da casa dela e foi pra uma casa de
parente... Depois ela saiu da cidade, foi pra casa de um outro parente, até que seu
padrasto foi solto ... isso eu fiquei sabendo no momento que me afastei da escola, eu
fiquei sabendo que ela sofreu ameaças, então ela teve que voltar... Ela sofreu ameaças
tanto do padrasto, como da própria mãe, por que sua mãe parece que apoia o
companheiro. Infelizmente a mãe dela apoia... por isso é difícil! E eu fiquei sabendo que
continua... ela voltou pra casa... e creio que continua os abusos... mas, eu não sei bem o
que vem acontecendo agora... se ela continua sendo acompanhada pelo Conselho
Tutelar... Não sei!

É...isso! ai eu contei tudo perante o juiz, tudo o que eu sabia tudo, pra poder
ajudar. Então esse meu depoimento ajudou com que ele fosse preso, mas ai um tempo
depois ele foi solto..eu me afastei da escola. Ai ela já tinha saído da cidade a menina, ai
fiquei sabendo que ele tinha sido solto, ai infelizmente no final desse ano passado, eu
fiquei sabendo que ela voltou pra cidade e que ela tava continuando... ele tava solto
continuou os abusos. Segundo o que eu soube, eu não tive oportunidade de conversar
com ela, mas ela já me mandou um recado disse que veria me visitar. Ai queria conversar
comigo. Eu falei pra ela, eu mandei de volta que estou esperando, a qualquer momento
ela vim. Que ela teve assim... ela se apegou muito a mim. A princípio eu achei bom, mas
eu fiquei receosa, assim por questão de segurança... de ameaças dele e a qualquer
momento ele sair da prisão. Por que ele ameaçou e disse que ia atrás de quem
denunciou. Só que eu fiquei de forma sigilosa, então acho que esse assunto ele não... ai eu
não conversei mais com ela, eu espero ela vim até aqui pra gente conversar, pra mim
saber... Esse ano de dois mil e doze ela saiu da escola pra concluir o nono ano..Ela já vai
paro o ensino médio, ela disse que vai vim me visitar, conversar. Eu espero a visita dela
pra gente saber o que... digamos eu não vou atrás...mas se ela vim e eu ouço ela e
tudo...Quando ela chegou de volta no ano passado, no mês de agosto, aliás, que ela
chegou no segundo semestre, quando ela não me encontrou mais lá, a principio ela não
queria mais ficar na escola, a própria direção da escola me falou, ela não queria ficar
mais lá...Ela queria ir pra outra escola, já que eu não tava lá...já que a gente teve um
vinculo muito grande por isso...Hoje, digamos assim, eu fiquei muito feliz em ajudá-

.
320

la...mas ai o final do ano quando eu soube os acontecimentos, ai me bateu aquela tristeza


novamente...eu pensei: poxa vida tudo voltou?! Na realidade ela não tem apoio da mãe...
Isso é o mais difícil..acho que a mãe devia pagar também... Ela foi morar com um tio em
Imperatriz, mas ele também sofreu ameaças, com isso ele a mandou de volta.

Em relação ao papel das escolas diante dessas questões, como não temos uma
formação especifica tentamos fazer o máximo que podemos, como eu falei a escola em
não está preparada pra enfrentar essas questões...Então a gente precisa ter a iniciativa...
no caso dessa menina, por exemplo, eu pedi... eu cheguei chorando na frente da direção
da escola dizendo: “vamos tomar uma providência!”, até porque o caso me tocou
bastante... Ela pediu ajuda até pelo amor de Deus que eu a ajudasse, mas, eles alegavam
que não sabiam como fazer... Então, tive que tentar fazer do nosso jeito...vamos procurar
um jeito pra gente... Eu acho que deveria ter cursos para especializar professores, não
apenas um curso de algumas horas... teria que especializar mesmo professores,
educadores em geral, para podermos ajudar, porque nesses casos é difícil...é fica difícil...e
só uma pessoa não quer se expor... No meu caso, eu estava praticamente sozinha, mas
acredito que se tivessem cursos de especialização para os professores nessa área, iria
ajudar bastante...

Eu acredito, digamos assim, se um professor for preparado em cada escola, fica


mais fácil... Porque além dele trabalhar aquela questão, ele pode ajudar os outros... O
meu caso com uma colega, eu às vezes dava dica pra ela de como trabalhar os conteúdos
quando ela estivesse nos órgãos genitais... Por que eu trabalho também sem... eu não
tenho conteúdo assim, órgãos genitais, mais os alunos perguntam...ai a gente trabalha. É
eu procuro me preparar... eu digo, não de forma assim, que eu acredito que não é a forma
que deveria realmente ser, mas eu procuro trabalhar da melhor forma possível...

Na época em que o curso GDE estava sendo divulgado em Porto Franco, eu e a


professora Lucélia trabalhávamos juntas na mesma escola. E ela chegou com uns folders
dos cursos e falou: “Olha gente, temos o curso tal, quem se interessar pode me procurar e
no folder tem o endereço pra vocês se escreverem”. Então eu me interessei pelo GDE por
trabalhar a disciplina Ética e Cidadania... E devido meu esposo também trabalhar na
mesma escola, a gente planejava juntos. Durante o Curso, na verdade, a minha maior

.
321

dificuldade foi em relação ao tempo. Eu cheguei até pensar em desistir do curso (risos),
porque eu trabalhava os três períodos. Com isso, eu estudava os textos, eu produzia os
textos já de madrugada. Às vezes dormia em frente ao computador, era muito cansativo.
Mas em relação aos conteúdos, aos textos... eu gostei muito, tanto que quando eu ia
produzir uns textos, sentava em frente ao computador e mandava ver e rapidinho estava
pronto. Até porque eu gosto do assunto. Eu gosto de trabalhar a sexualidade... Antes do
curso, tinha um pensamento vago em relação às questões trabalhadas... Então o curso
me enriqueceu bastante. Passei a ter mais interesse em buscar mais... Entendo que hoje a
gente precisa estar mais preparado, pra você fazer aquela junção... Por que você precisa
incluir os dois sexos de forma a trabalhar de forma igual. E as escolas não vêm
preparadas para trabalhar profundamente alguns temas. Acredito que se o professor
tiver conhecimento para fazer essa interação, dos dois sexos, sem nenhum preconceito,
sem nenhuma discriminação... teríamos uma educação melhor.

Eu comecei a desenvolver o projeto que elaboramos no curso, mas não tive


tempo de concluir. Inclusive, meu marido também não concluiu. Apesar de trabalharmos
em turmas diferentes, a gente procurou trabalhar de uma forma que um ajudasse o
outro. E pelo fato de eu já ter desenvolvido outros projetos na área, já estudar, me
ajudou bastante. O que mais me chamou a atenção durante o curso foi justamente o fato
de as escolas não terem uma disciplina especifica para trabalhar essas questões e a
dificuldade dos professores para trabalhar a sexualidade... Então, eu disse: “vou fazer
esse projeto, pois ele vai me ajudar na escola. Com ele, digamos assim, eu posso procurar
trabalhar de uma forma aberta”. Mas, acho que ainda falta mais alguma coisa.

Pela falta de experiência, infelizmente ainda tem professores que acham um


absurdo você falar de sexualidade nas salas de aula. Na realidade, eu até recebi críticas
de uma colega, por eu chegar em sala de aula e falar a respeito de... Oh, vamos trabalhar
os órgãos genitais... o correto é você chamar o nome desse órgão... o correto e esse aqui,
tal nome é incorreto. Então você não pode chamar esse aqui em determinado lugar... Eu
recebi críticas de colegas que diziam: “Ah, tu não podes falar o mesmo palavrEaDo que
eles falam...”. Naquele momento eu respondi: “Mas, para eu interagir o assunto e passar
pra eles de forma clara, eu preciso começar pelo conhecimento deles”. É, eu vou sorrir
junto com eles...só que eu vou explicar que aquela não é a forma correta. Vou dizer, por

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322

exemplo, em relação aos órgãos genitais, a gente sabe que tem os apelidos que colocam,
mas, tem o nome correto. Então eu fui criticada por uma professora, mas havia outras
que achavam interessante eu conseguir trabalhar daquela forma. Uma delas até me
disse: “Como é que tu consegues falar uma palavra dessas, sem sorrir... sem aquela coisa.”
Ela disse isso porque os alunos sorriam. Eu acho que ainda acontece essa discriminação
pela falta de conhecimento, pela falta de o professor buscar aprender... por que na
realidade hoje, os adolescentes entendem muito sobre sexualidade, coisa que você não
imagina que eles entendem. Então, você tem que buscar trabalhar com ele a respeito
disso. Então, você tem que ser uma pessoa aberta, você precisa falar a língua deles,
interagir com eles... Tem professores que são tradicionais, são professores tímidos que
não conseguem falar. Mas, de forma geral, o curso GDE foi algo positivo, que me ajudou
bastante. Hoje eu percebo a falta que faz uma disciplina dessas numa turma, numa sala
de aula e eu gostei pra mim foi um curso muito rico.

 

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323

...aquele mais delicadinho, os outros não querem no time ... Eles são
terríveis! As meninas parecem que são ditas “normais”... se elas têm assim...
até que seja mesmo, elas camuflam muito bem...

Vou contar um pouquinho de minha história. Uma história simples, como muitas
outras. Meu nome é Telma, nasci em Porto Franco, município do sul do Maranhão, no
ano de 1970. Sou filha de lavradores e tenho uma irmã e três irmãos. Minha mãe já é
falecida e meu pai aposentado. Não casei e não tenho filhos e sou espírita Kardecista.
Concluí o Curso de Magistério no ano de 1987, formei-me em história e tenho pós
graduação em Docência do Ensino Superior. Sou professora a mais de vinte anos e
atualmente leciono as disciplinas História e Arte no Ensino Médio.

Durante minha infância, na década de setenta, o tratamento que tínhamos em


nossa família era bem diferente dos que as crianças de hoje têm. Mas, posso dizer que
em minha casa sempre houve muito diálogo, principalmente com minha mãe, pois meu
pai ficava o dia inteiro, trabalhando fora, nas fazendas vizinhas. Inclusive, foi minha mãe
quem nos alfabetizou e quando fomos para a escolha, já éramos alfabetizadas, já
sabíamos tudo. Teve uma época que ela também foi professora, ela dava aula paras
crianças que moravam nas redondezas. Posso até dizer que ela tinha uma visão bem à
frente do seu tempo, era muito esclarecida. Nós morávamos em um povoado na Zona
Rural e a nossa casa, era, digamos assim, referência no lugar, isto devido minha mãe ser
a mais esclarecida do povoado. Depois que ela faleceu, parece que eu virei a referência
da família, pois para tudo, meus irmãos me procuram (risos). E eu nem sou a filha mais
velha, a mais velha é como se fosse minha filha. Tudo dela, até para comprar roupas ela
me convida para ir junto. E tipo assim, a filha dela também age da mesma forma.

Eu lembro que quando criança eu já não concordava com privilégios que eles, os
que os homens...os meninos tinham. Eram privilégios do tipo: eles não lavavam o tênis,
não lavavam a louça... eram as meninas que lavava... eu não aceitava aquilo... tudo era eu
e minha irmã que fazia. Eu falava que eles tinham regalias, mas com tudo isso, a gente
convivia bem...convive até hoje.

Em relação à minha mãe, embora ela fosse muito companheira, a gente não
conversava sobre qualquer assunto. Por exemplo, questão assim de...A gente podia até

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324

conversar no contexto geral...mas pro particular... já tinha aquele... tabu entende? Tipo
assim, até hoje, o que eu conversei com minha mãe, a gente nunca conversou assim... de
primeira vez essas coisas assim... a gente não conversava. Lembro que ela só conversou
com a gente sobre menstruação, outros assuntos... assim... era um tabu. Até que se podia
falar no geral, tipo assim: a gente falava que fulano tinha engravidado... essas coisas.
Mas, para falar de nós mesmas, até mesmo de anticoncepcional, essas coisas, era só com
amigas mesmo... amigas.

Eu sempre fui muito curiosa, eu lia e leio muito. Apesar da gente ser pobre, viver
em zona rural, a minha mãe até comprava algumas revistas pra gente. E minhas tias,
minhas primas, que tinham um poder aquisitivo melhor, elas compravam as revistas,
essas revistas da época assim... Carinho, Capricho... Não lembro bem, mas eram as
revistas da época, que as moças gostavam. Essas revistas, que explicava até de forma até
grotesca, mas a gente “aprendia” muito. Já meu pai, ele dava conselhos e a gente
conversava outros assuntos, especialmente à noite e nos fins de semana, quando estava
em casa, ele conversava bastante. Eles demonstravam muito afeto. A minha mãe preferia
que nossos amigos fossem à nossa casa, do que a gente saísse e fosse pra casa das
amigas. Porque ela dizia assim: “ Quando tá na casa do outro o que acontece lá sempre
quem é o culpado é os de fora?” E minha casa até hoje, está sempre cheia de amigos.

Há! Eu lembro também que quando os adultos conversavam, nós crianças, não
podíamos participar. Eles nem precisavam falar nada, bastava olhar... minha mãe
era...tipo assim, a gente podia até ficar na sala, mas não podia intervir... isso começou a
ser permitido somente quando já éramos adolescentes. Lembro que achava que isso era
devido sermos crianças, então já entendia. Mas, as vezes.... Bom! Teve um caso assim
quando minha avó adoeceu, ela teve câncer no útero e imagina...e ela não... E quando ela
descobriu e os familiares... na década de oitenta... quando não tinha as facilidades que
têm hoje.... e já estava assim em estado muito avançado e a gente não sabia, eles não
falavam o que que ela tinha... Lembro que tinha uma parente nossa, que era enfermeira e
ficava direto aplicando calmante o...[tenta lembrar] e eu ficava sem entender que doença
era aquela. Mas, eles não falavam, apenas diziam que não era assunto pra criança... Outra
coisa que lembro é que se fizéssemos alguma coisa que meus pais não aprovassem, tipo
brigar, falar um palavrão... é fazer alguma coisa escondida assim... a gente tinha

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325

castigos... físicos mesmo.... Eles não chegavam assim a espancar, mas a gente ficava....
Muita repreensão, eles falavam muito e às vezes chegavam a bater mesmo, era com o
cinto (risos). Eu lembro...eu sentia... eu ficava muito revoltada. Eu não aceitava... E a
gente tinha um irmão, o penúltimo que aprontava muito, mais quando sentia que ia levar
uma surra, corria e se escondia. Ele passava o dia todinho escondido e a gente dava
cobertura...levando comida escondido... E tinha um outro irmão, o mais velho, que ele
ficava tão revoltado, que quando levava uma surra, ele pegava areia e jogava nos
próprios olhos, batia a cabeça na parede. Hoje, o filho dele, que é até adotado, acho que
ele nunca levantou a mão pra ele... E também eu acho que se eu tivesse filhos, também
não bateria... Não sei, mas assim eu acho que ia procurar outros meios.... Eu não sei...até
porque a teoria é diferente da prática...

Em relação a minha primeira escola, eu lembro assim... como eu disse eu fui


alfabetizada pela minha mãe na zona rural e quando tivemos que ir para uma escola,
tínhamos que vir para a cidade. Então eu fui morar na casa de minha avó e minha irmã
foi para a casa de uma tia... eu lembro que era uma escola particular, eu até fiz o teste e
não fui para a primeira série e sim para a segunda, pois me saí muito bem, já sabia ler,
tudo... Era a única escola particular da cidade, uma escola Batista, escola evangélica e a
gente.... Então eu comecei a ter contato com pessoas de outro... mais elitizadas, aquelas
pessoas melhores de condição da cidade, inclusive hoje um deles é o prefeito... eu acho
que pela formação da minha mãe, o que ela passava para os filhos... a gente não se
achava inferior... eu lembro que gostava muito da professora. Ela era tipo missionária...
Era linda! branquinha....olho azul, ela era paranaense e estava aqui da igreja... Estudei
nessa escola uns três anos, depois fui para uma escola municipal.
Sobre questões relacionadas à sexualidade ou questões de gênero, não lembro
de ter visto na escola. Imagina! A escola nessa época... Mas, lembro de um caso, estava na
oitava série... Foi uma amiga da gente, não sei como...ela tirou umas fotos...umas fotos
assim...pelada...todo mundo da escola comentava... eu sei que.... Eu lembro que...ela era
bem espevitada e mostrava essas fotos para os colegas... parece que, se não me recordo
não sei se chegou a ser expulsa, mas sei que ela foi suspensa da escola... e nesse tempo
nem tinha celular, eram fotos reveladas mesmo. Ela era muito bonita... a gente já era
mocinha... eu lembro que... foi um bafafá na escola...

.
326

Em relação a minha formação profissional, sobre ser professora... posso dizer


que não foi assim uma escolha... eu fui pressionada! Minha mãe tinha a mania de dizer
assim: “olha, quem é pobre do interior tem que fazer magistério que o campo é maior...
tem mais chance de arrumar emprego”. Aqui tinha magistério e tinha também curso de
contabilidade. Acabei fazendo o magistério. E quando eu estava já no final... no terceiro
ano... as escolas já chamavam a gente para trabalhar.... era uma espécie de estágio e
quem gostasse, era contratada. Eu lembro que nessa época o magistério era um curso
feminino... Tinha dois ou três homens... e na escola mesmo eles eram questionados, se
achava se eles eram gays. E até porque eles nunca deixaram transparecer nada... Eu não
sei se eles eram ou não... mas também não conversavam... Era diferente de hoje, hoje
nossos alunos chegam e falam: professora eu sou gay... Eles falam numa boa...
Quando chegou aqui na cidade o PROCAD da UEMA, foi oferecido o Curso de
Letras, Matemática, Geografia e História. Como eu tinha mais habilidade para a área de
humanas... eu optei por História, eu sempre gostei assim... Nós estudávamos durante às
férias da escola, nos meses de Janeiro, fevereiro e julho... Eram três meses no ano,
durante o dia todo e tinha dia que tinha que aula a noite. Lembro que era muito
cansativo...mas...a gente tinha que ficar...Era a única oportunidade que tínhamos para
realizar um curso superior... e quando nós estudamos, parece que voltamos a ser
criança... então eu gostava das aulas... os professores eram muito bons... aprendi muito
com eles.
Nas questões e relações entre homem e mulher, eu vejo que mudou muito o
tratamento no campo de trabalho. Na minha vida acadêmica toda eu tive poucos
professores homens e hoje não a escola que eu trabalho mesmo tem bastante homens,
então esse... penso que já foi superado essa questão de homem não seguir a carreira de
magistério. Mas vejo que tem escolas que... acho que prefere... sei lá...às vezes mais... Por
exemplo, nos anos iniciais eles não colocam homens para trabalhar com crianças. E já no
ensino médio, se eles tivessem que optar, eles preferiam os homens, porque acham que
são mais firmes, tem mais firmeza para trabalhar com adolescentes... Eu não concordo.
Porque eu sou mulher e não tenho habilidade para tratar com criancinha... Eu acho que
isso aí é relativo, eu não concordo.

Lembro que durante a graduação estudamos questões de gênero em


antropologia... estudamos a trajetória... da emancipação da mulher... como a mulher usa

.
327

os direitos...a gente falava, direitos dos gays... essas coisas assim... mas, era de forma bem
superficial... As questões a gente... as relações... todo mundo devia se relacionar bem...
que o gênero às vezes assim, eu nem trato assim só a questão da sexualidade, do negro...
tanta coisa que a gente vê, hoje tantas diferenças... tanto preconceito que existe vários
outros...não só de gênero... Hoje eu acredito que os professores deviam se preparar
mais... estudar mesmo, porque ainda hoje ainda tem essa concepção assim que quando
vai se falar do assunto, pensam que estão incentivando... tem isso ainda. Eles acham
então... às vezes o professor deixa assim de lado devido ainda... Então se o professor
fosse mais bem preparado no curso dele, ele teria mais embasamento, mais firmeza,
mais segurança para tratar... porque não é fácil...a gente sabe que não é fácil...é difícil...
Eu acho assim, que nós professores ainda temos um longo caminho a percorrer, ainda
tem muito o que ser feito... ás vezes, a gente até deixa de tratar algum assunto devido
não... ter preparo mesmo...eu acho muito difícil.

E sobre sexualidade e educação sexual, até certo tempo, era estudado só o tinha
no livro de ciências, de biologia, o capítulo que falava sobre o corpo, da função da
mulher, do homem, a função sexual qual era...mas hoje eu acho que não... hoje a gente
percebe que precisa falar das diferenças, falar que a educação sexual tem que abranger
as escolhas, principalmente as escolhas, temos que entender. Hoje eu trabalho a questão
de gênero e sexualidade em minhas aulas. Agora mesmo, nesse último período, eu passei
um trabalho sobre a mulher no período medieval. Foi um trabalho muito interessante,
eles pesquisaram sobre a mulher, quando ela casava, ela deixava de... até os deuses que a
família dela cultuava... ela deixava de cultuar... tinha que cultuar... ia pertencer à família
do marido... e as meninas disseram: “professora, mais isso era muito errado...” Eu disse:
“pois é, mais oh qual era o século? Era o século dezesseis, século quinze e hoje?”. Então
eu trazia para o hoje e elas diziam que não é mais assim... então, eu procuro sempre
intercalar passado e presente, porque história, não é só o passado. O hoje, como é que
está a situação da mulher... Também nós fizemos um trabalho também sobre a mulher
mulçumana, pois sabemos que ela é muito...coitada eu digo assim...e eu procuro sempre
trazer...

E minha vivência como professora, nesses 20 anos de trajetória, pude vivenciar


algumas situações em que meninos foram alvo de gozações dos colegas, por apresentar

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328

comportamentos que não eram, digamos assim, o que a gente entende como “normal”
para o seu sexo. Por exemplo: os meninos... do tipo aquele mais delicadinho, os outros
não querem no time. Às vezes quando a gente quer dividir a turma numa gincana,
quando tem atividades também esportivas, eles não querem aquele menino ... mais
delicado... que gosta... Mas, assim a gente procura conversar...mas que eles são terríveis!
Adolescente, criança é terrível... eles não conseguem... Com as meninas por incrível que
pareça a gente vê tanto assim, as meninas parecem que são ditas “normais”, (risos) as
meninas, não... se elas têm assim... até que seja mesmo, elas camuflam muito bem... elas
geralmente são mais... homogêneas assim... tudo delas...os interesses... Agora, os meninos
são mais excluídos por isso... Agora os que chegam e falam o que são, parece que já mais
são aceitos... incrível, agora os que... os que a gente não sabe se realmente são ou não... se
ele só tem aquele jeitinho.... Pode ser que nem seja... as pessoas excluem mais. Outra
coisa: quando temos que dividir os grupos...as meninas não querem ficar no mesmo
grupo com algum menino. Elas logo dizem: “Não! Ele tem a letra feia! ”...não sei o porquê
de acontecer isso... então, a escola mesmo como um todo, poderia trabalhar essa
situação, mostrar que não existe ou não deve existir essa separação. A escola podia fazer
palestras, por exemplo. Até a educação física é separada. Tem a masculina num horário,
e a feminina em outro. Aqui no município, parece que em todas as escolas acontece
assim. Isso também é uma forma de exclusão. Eu acho que deveria ser todos juntos. Mas
na mente deles, desde pequenininhos, devem ser separados. Tem uma amiga minha
amiga que é professora de educação infantil e quando ela vai trabalhar o dia do índio,
por exemplo, tem uma lembrança de um tipo e uma cor para a menina e outra para o
menino. Então, na minha opinião, acho que não só o professor, mas a coordenação da
escola poderia deveria desenvolver ações para diminuir essa exclusão e essa separação.
Às vezes fica difícil para nós professores trabalharmos isso.

Em relação ao Curso GDE, eu lembro que levaram um folder para a escola,


falando do curso... ai eu disse vou fazer esse curso...Eu pensava: a gente quer ser livre de
preconceito....a gente tem preconceito assim de cursos online.. essas coisas, a gente acha
que não aprende, ai falei não, eu vou fazer esse curso ai...e fui..e eu gostei demais,
especialmente dos encontros presenciais, quando ia todo mundo. Na época eu estava
dando aula no fundamental, eu era professora da disciplina Ética e Cidadania. Era
horrível, pois quase não tinha material pra trabalhar. Com isso, eu decidi fazer esse

.
329

curso pra ver se aprenderia mais alguma coisa para melhorar essas minhas aulas...pois
achava que elas não eram boas... E, dentre as temáticas estudadas no curso, mais me
identifiquei com as relacionadas a gênero, ao modo como era tratado os homens e as
mulheres na sociedade... o primeiro intuito era melhorar as aulas dessa tal ética e
cidadania ... E realmente, eu já quis focar na questão da diversidade de gênero... Mas, o
que mais gostei mesmo foi da interação com os colegas... a gente falava assim...tipo como
foi a infância...o tratamento...assim tinha muito depoimento...foi interessante assim, todo
mundo... a gente passou a se conhecer mais.. E todo mundo assim se abriu... de modo
geral o curso foi muito bom, porque todo mundo estava lá mesmo sem barreiras a gente
conversava sobre tudo...

Bom, e dentre as propostas do curso, em relação à diversidade sexual, ou seja, a


inclusão na escola do tratamento sem discriminação em relação ao homossexual,
bissexual... Sobre essa questão, houve muita mudança em relação aos meus valores. Eu
lembro que desde minha adolescência... tinha uma menina, que naquela época o pessoal
chamava de macho-fêmea... e eu lembro que ela era excluída, tanto que nem estudava...
assim devido ela... acho que ela era até transexual mesmo, não sei se ela fez cirurgia... eu
acho que naquela época, se ela fosse estudar comigo, eu também não ia queria nem
papo....(risos). Se fosse agora, depois do curso, penso que seria diferente... o curso me
serviu para melhorar minhas aulas, como eu falei, mas também minha cabeça mudou
muito... Como eu falei, eu falo por mim, foi mesmo questão assim de dar mais base, como
eu falei, a gente não tinha né, e esse curso foi muito bom assim nesse ponto de dar mais
embasamento, pelo menos no meu caso. Eu passei a ter mais segurança pra falar sobre
isso...sobre esse assunto... E a partir do curso, das apostilas, que tinha muito... então, de
forma geral, o curso foi muito bom! Positivo! Eu desenvolvi o projeto elaborado no final
do curso, depois trabalhei outro projeto na mesma área... Fizemos muitas dinâmicas...
colocávamos os meninos para ter um dia de menina. E as meninas ter um dia de
menino... A menina fazia o papel do pai... o menino da mãe...eu lembro que era nas
quintas, sextas e sétimas séries que eu trabalhava. Então foi mais lúdico devido à idade
deles, e era isso, os meninos passavam o dia mesmo brincando... alguns diziam assim:
“Professora eu nem posso falar para minha mãe, que eu botei lacinho na minha cabeça”.
E eu falei para eles que não tem nada, pois estamos aqui na aula que... não tem nada você
usar um lacinho não... “não professora eu não posso falar para minha mãe!” Eu sentia o

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330

preconceito.... mas esse projeto foi lúdico mesmo, a gente dramatizava e conversava a
gente mostrava o documentário para eles, entrevistas que eu fiz com os avós deles...
Lembro que nos primeiros momentos, eles não queriam... acho que devido ao medo...
eles não queriam nem fotografar... quando a gente desenvolve projetos são tiradas fotos,
mas, nesse eles, .principalmente os meninos não queriam... as meninas não se
incomodavam de vestir roupas de menino, executar as tarefas do pai...mas os meninos
não queriam ser... mas depois eles gostaram....(risos) aceitaram participar do projeto...
mas não aceitaram ser fotografados como menina de jeito nenhum...

Então, de forma geral, na questão pessoal, consegui quebrar muitos


preconceitos que tinha. Que por mais que a gente diga que não tem a gente sabe que
tem. Eu passei a entender melhor a pessoa, que o sexo... não é o sexo que vai determinar
a vontade... já pensou a pessoa viver só que a sociedade impôs? E profissionalmente em
relação as minhas práticas, elas melhoraram bastante, me deu mais
embasamento...porque a gente falar de algo que não conhece é difícil. É isso!

 

.
331

APÊNDICE D - Temas Abordados pelos/as Colaboradores/as

TEMAS e SUBTEMAS

1. Conversa inicial – Socialização 4. Gênero e sexualidade nas


primária e a família práticas escolares
 Conversa na família sobre questões da  Educação em Sexualidade:
sexualidade práticas desenvolvidas

 “Dominação masculina” presente na  Comportamento hegemônico em


família relação ao sexo

 Tratamento diferenciado entre meninos


e meninas

 Religiosidade na família e sua relação


com a sexualidade

2. Formação inicial – Escola 5. A formação continuada e o


Curso GDE
 Inexistência da educação sexual na
escola  Motivações para o ingresso no
Curso
 Manifestação da sexualidade de colegas

 Diferenças no tratamento dado às


 Possíveis Dificuldades
encontradas durante o Curso
meninas e meninos
 O projeto de intervenção
3. Gênero e Sexualidade na Formação apresentado ao final do curso
docente  Impactos na formação
 Questões de gênero e sexualidade no continuada e nas práticas
currículo das licenciaturas escolares

 Posicionamento de professores/as em
relação às questões de gênero e
sexualidade
Fonte: Organizado pela autora.

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332

.
333

APÊNDICE E - Categorias Identificadas e Relacionadas aos Temas Abordados

JÓNATA ELIAS FÁTIMA JÉSSICA JOÃO VERA TELMA


Relações sociais de Relações sociais de Relações sociais de Relações sociais de Relações sociais de Relações sociais de
Relações sociais de gênero
gênero gênero gênero gênero gênero gênero
Questões sexuais e
Dominação masculina Dominação masculina Dominação masculina Dominação masculina Opção sexual Educação sexual
sexualidade
Disciplina: Ética e
Dimensão religiosa Dimensão religiosa Dimensão religiosa Dimensão religiosa Dimensão religiosa Tabu
Cidadania”
Incidente na formação:
Incidente na formação: Incidente na formação: Incidente na formação: Incidentes na formação:
Incidente na formação: Aluna sofreu “abuso Disciplina: Ética e
pai alcoolista - constrangimento na Gravidez na adultério na família e
conflito vivido sexual”(violência Cidadania”
sentimento de vergonha escola adolescência Sentimento de rejeição
doméstica)
“Infância inocente” Preconceitos e
Experiências afetivas Experiências afetivas Linguagem sexista Experiências afetivas Mulher na História
“Vida tranquila” discriminações
Oposição: Oposição:
Papéis sociais: Preconceitos e Preconceitos e
- certo X errado Sagrado X profano Experiências afetivas Linguagem sexista
Homem X mulher discriminações discriminações
- permitido X proibido Homem X mulher
Preconceitos e Papéis sociais: Preconceitos e
Educação sexual Escolhas Homossexualidade Educação sexual
discriminações Homem X mulher discriminações
Preconceitos e Sexualidade no Currículo Empoderamento da Oposição: Educação física
Relações de poder Homossexualidade
discriminações escolar mulher Inato X adquirido separada por sexo
Saúde e prevenção nas Sexualidade no Currículo Sexualidade no
Relações de poder Homossexualidade Diversidade sexual Homofobia
Escolas escolar Currículo escolar
Homossexualidade e Empoderamento da
“Poder de macho” Homofobia Homossexualidade Diversidade sexual Respeito
homofobia mulher
Preconceitos e
Cuidado com o corpo Identidade de gênero Homofobia Identidade de gênero Homofobia Identidade de gênero
discriminações
Mudança de
Homofobia Respeito Respeito às diferenças Respeito
comportamento
Aceitação Respeito

Fonte: Organizado pela autora.

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