D Dissertação - Ana - Pedrosa - 2020

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA- UNEB


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I- SALVADOR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS- PPGEL

ANA CAROLINA PEDROSA PONTES

POESIA É A NOSSA ESTRUTURA: árvore, luta e artevida

SALVADOR
2020
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ANA CAROLINA PEDROSA PONTES

POESIA É A NOSSA ESTRUTURA: árvore, luta e artevida

Dissertação apresentada para defesa de Mestrado no


Programa de Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade da Bahia (PPGEL/
UNEB), para obtenção do título de Mestre em Estudo
de Linguagens- Leitura, Literatura e Identidades.

ORIENTADORA: PROFA DRA MARIA DO SOCORRO SILVA CARVALHO

SALVADOR
2020
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA- UNEB


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS- CAMPUS I- SALVADOR
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS- PPGEL

ANA CAROLINA PEDROSA PONTES

POESIA É A NOSSA ESTRUTURA: árvore, luta e artevida

Dissertação apresentada para defesa de Mestrado no


Programa de Pós-Graduação em Estudo de
Linguagens da Universidade da Bahia (PPGEL/
UNEB), para obtenção do título de Mestre em Estudo
de Linguagens.

Linha de Pesquisa: Leitura, Literatura e Identidades.

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________________________________________
Profa Dra Maria do Socorro Silva Carvalho (Orientadora)
PPGEL/UNEB

___________________________________________________________________________
Profa Dra Márcia Rios da Silva
PPGEL/UNEB

___________________________________________________________________________
Profa Dra Lúcia Castello Branco
UFMG
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Ao grupo Poesia é a nossa estrutura pelas trocas e


possibilidade linda de trabalhar com vocês!!
Às/aos convivas do Centro de Convivência
Providência e Centro de Convivência Arthur Bispo do
Rosário, pela partilha – nós conseguimos!!!
À minha mãe Luciana, por ter me dado a luta e ao
meu pai Max por ter me mantido de pé!
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In memoriam
(dos que já voltaram pra casa espiritual),
Meu tio Bibinha – tio, esse gol é nosso!!!
Vó Cidoca, pelo cuidado como alimento. Vô Pereira,
pela ética. Vô Sô Hebe, por insistir no caminho dos
saberes. Tio Magu, pelas músicas que me deram
espírito.
Marcus Matraga, por ter sido enorme pra tanta
gente. Que a justiça se faça sobre a sua memória.
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Agradecida!

Eu e meu pai sempre falamos sobre ter saído da roça e hoje está inserida em um mundo
acadêmico que há pouco tempo pertencia somente às pessoas de outras classes. Eu vim do
encontro de duas famílias humildes que têm em comum a consciência humana e o histórico da
luta política. Sei com toda a potência da minha cabeça ancestral que nunca estive sozinha e que
o que trago dentro de mim, vindo dos meus mais velhos e minhas mais velhas é que me fez
“romper as esfinges das encruzilhadas”, pactuando com um verso de Aldir Blanc. Então, com
a licença de minha mãe Luciana e meu pai Max, que são um presente para a minha criação,
quero agradecer inicialmente às forças invisíveis que sempre me acompanharam e também
àquelas que não sei ainda nomear: meu Ori, minha mãe Nanã dona da minha cabeça ancestral
e minha movência, pai Oxóssi, Oyá, Obaluayiê, Laminha, Pai Joaquim, Sete Flechas, Tranca
Ruas, Joconda, Bagaceira, Dr Hans e todos de lá que acendem os caminhos de cá. À vovó
Bolinha, por ser o carinho mais gostoso que faz seguir. Ao meu pai Max pela cumplicidade,
firmeza, generosidade e espiritualização que me iluminou todas as vezes que não vi a luz- pai,
meu guerreiro adorado, sem você eu nem seria! À minha mãe Luciana pela luta antimanicomial,
pela justiça social, por ser a assistente social mais foda que conheço, por ser minha amiga, ter
me acolhido em todas as muitas encruzilhadas dessa encarnação, me guardado e me ensinado a
voar. Ao meu companheiro Talbert, meu maior interlocutor e crítico, por se fazer minha casa,
meu amor, meu sol, meu acolhimento, nem imagino isso tudo sem você e compartilho com
você o axé conquistado! À minha orientadora professora Socorro, por ser uma artista incrível,
uma pessoa admiravelmente respeitosa, ter se tornado tão marcante na minha vida e formação!
Às minhas irmãs, Luiza e Maiara, por estarem junto de mim, me levantarem e darem ânimo. À
Mamá também pela tradução sensível do resumo dessa dissertação. Ao Lucas da titia, por ser
uma ternura, um amigão lindo e por segurar a saudade. À Silvia pelas curas, cuidado, amor e
importância. À Dani por andar junto, orientar e fazer tudo mais confiante e possível. Às minhas
famílias maternas e paternas, pelo carinho e apoio. Ao Dieguin meu amigo de fé irmão
camarada, que desde a primeira ideia estava do meu lado. Ao Gandhi pelas trocas inspiradoras,
cúmplices e avante sempre. Ao meu mestre e amigo Carlos Buére, por tanto ensinamento e
apoio. À Marilda minha amiga e homeopata, por cuidar da minha essência, saúde e sanidade.
À Mayra e Bowie pela casa, família e planos compartilhados. À Renatinha e Maíra, por tantas
trocas, motes e partilhas, essa conquista é nossa! À Mari pelo verso que inspirou Naidna a dar
nome ao grupo. Às minhas amigas-irmãs e amigos-irmãos de Sabará e do Fluxo, por serem
comigo cada um(a) do seu jeito singular. À Karen e Betânia, minhas gerentes e amigas que me
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deram cara confiança e cumplicidade, Marta Soares e Míriam Abou-Yd, Marcinha e Manu pelas
trocas espirituosas. Ao meu irmão de tantos mares, Leandro, por ter me recebido na nossa
Bahia. À Lis, Maia e Bebel, pelo acolhimento e casa. À Céu, Gabriel e Vavá Batatinha que
ajudaram com sorriso e afeto a me adaptar à vida nova. À minha irmã querida e minha mais
velha no axé, Carla Nogueira, por me dar caminho, sua bença, você é luz, meu ori saúda o seu!
Ao professor Fernando Conceição pela generosa orientação e apoio. Ao pessoal da minha turma
do mestrado, sobretudo Lígia, Maria Lívia, Randra, Paulo, Rita e Mércia, quanta gratidão a
oportunidade de encontrarmos e fazermos isso juntxs! Ao pessoal do Quilombo Dandaras e
Zumbis, pelo cotidiano familiar de Axé! À professora Mônica Nunes por ter me dado trabalho
sem pestanejar, pela oportunidade do tirocínio e pela participação na qualificação. À professora
Márcia Rios por ser maior e mais bonita do que os protocolos. À professora Lúcia Castello
Branco por estar junto na defesa, trazendo tanto afeto, carinho, poesia, ensinamentos e
construtivas perspectivas, e também pelo presente da epígrafe de Llansol. À estas duas últimas
pela banca e pela indicação para publicação. E, finalmente, aos governos Lula e Dilma, pela
garantia de direito ao estudo superior. Adupé a todxs!
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“... subir no ramo mais alto da árvore e aprender a


produzir clorofila — a primeira matéria do poema”
(Maria Gabriela Llansol)
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RESUMO

Esta dissertação discute a poesia como tecnologia de vida e construção de devir para grupos
historicamente negligenciados e violentados, no caso pessoas em situação de sofrimento
mental. Aborda-se a ideologia eugenista e o controle social racializado enquanto instauradores
da instituição manicomial, não somente na qualidade de espaço físico, mas também biopoder,
pelos termos de Michel Foucault (1979), capilarizado na sociedade ordenada pela necropolítica,
segundo conceito de Achille Mbembe (2016). Como reação, a partir da reforma sanitária e da
Constituição de 1988, trabalha-se mais efetivamente para o estabelecimento de políticas
antimanicomiais, na implantação de dispositivos, como pensado por Michel Foucault (1979),
substitutivos aos manicômios e pela Lei da Reforma Psiquiátrica 10216. A Rede de Saúde
Mental de Belo Horizonte/ MG se destaca pioneiramente e se mantém como modelo complexo
nacional e internacionalmente desde o começo da década de 1990. O Centro de Convivência é
um dispositivo dessa rede que trabalha diretamente com oficinas e ações artísticas, construindo
acolhimento, sociabilidade, cuidado em liberdade, devolvendo possibilidades para a criação de
vida e subjetividades. No Centro de Convivência Providência da regional norte periférica
aconteceu a experiência “Poesia é a nossa estrutura”, uma vivência advinda da Oficina de
Poesia e Vídeo, que originou também uma compilação poética e um filme média-metragem
experimental homônimos ao grupo. A ideia de poesia trazida aqui advém da possibilidade de
partilha construída a partir de encontros geradores de condições mais criativas para a
negociação com a vida e com o próprio sofrimento, por meio da arte e da linguagem enquanto
agenciamento dessas construções, tendo em vista a experiência analisada. A dissertação é
metodológica e analiticamente subdividida em três categorias: “Árvore”, “Luta” e “Artevida”.
“Árvore” traz a vivência do grupo analisado e pautas que permearam tal experiência; “Luta”
convoca a formação política que possibilitou a instauração dos dispositivos de arte e os serviços
substitutivos aos manicômios como um todo; e “Artevida” faz referência à ideia de poesia
pensada através da reconexão com outros saberes, a arte como recurso indispensável à clínica
para se agenciar a vida, representatividade e integralidade.

Palavras chave: Experiência da arte; linguagens artísticas; modos de existir; Centro de


Convivência; saúde mental antimanicomial.
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ABSTRACT

This dissertation discusses poetry as a technology of life and builder of becoming for
historically neglected and abused groups, in this case, people in a situation of mental suffering.
The eugenic ideology and the racialized social control are addressed as instigators of the asylum
institution, not only as a physical space but also as a capillary biopower, according to Michel
Foucault (1979), in a society ordered by the necropolitics, according to the concept of Achille
Mbembe (2016). As a reaction, starting with the health reform and the 1988’s Brazilian
Constitution, work is done more effectively to establish the anti-asylum politics, implementing
replacement devices to the asylums and the 10216 Psychiatric Reform Law. The Belo
Horizonte’s Mental Health Network stands out as a pioneer and remains as a complex role
model nationally and internationally since the early 1990s. The Centro De Convivência is a
device of this network that works directly with workshops and artistic actions, building nurture,
sociability and support in freedom, giving back the possibilities to create life and it’s
subjectivities. The “Poesia é a nossa estrutura” experience took place at the regional peripheral
north Centro De Convivência Providência, an experience that comes from the Oficina de Poesia
e Video that also originated a poetry compilation and a experimental medium-length film, both
homonyms to the group. The idea of poetry brought here comes from the possibility of sharing
more creative options for dealing with life and it’s own suffering through art and language while
having in mind the analyzed experience. The dissertation is methodological and analytically
divided in three categories: “Árvore”, “Luta” e “Artevida”. “Árvore” brings the analyzed
group’s experience and the questions that were brought up in the situation; “Luta” invokes the
political background that made the implement of art and the replacement devices to asylums as
a whole, possible; and “Artevida” refers to the idea of poetry through a reconnection to other
areas of knowledge, art as a necessary resource to clinically agency life, representation and
integrity.

Keywords: Art experience; artistics languages; ways of existing; Centro de Convivência; anti-
asylum mental health.
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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO: SOBRE VOZES, FLORESTA E ENFRENTAMENTOS 13

2 E O PRINCÍPIO SE FEZ ÁRVORE: “POESIA É A NOSSA ESTRUTURA” 24


2.1 O Centro de Convivência: raiz forte em um terreno fértil 32
2.2 O cotidiano do pano azul, uma estrutura viva 38
2.3 O livro, o vídeo e outros frutos 44

3 LUTA: PARA ALÉM DOS MUROS 47


3.1 Direitos humanos, desinstitucionalização da loucura e promoção de cidadania 52
3.2 Políticas de ação entre saúde e arte 57

4 ARTEVIDA: E QUEM DISSE QUE ISSO NÃO É POESIA (?) 61


4.1 Sobre Bispos, Stelas, barcos, falatórios, invenções e resistências 65
4. 2 O corpo como “manifesto errante”: narrativas, performances e soerguimentos 70
4.3 A defesa pela linguagem banida, pela poesia de margem,
expandida e fronteiriça 76

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TUDO É CAMINHO - PLANTAMOS UMA


ÁRVORE, MAS QUEREMOS EXPANDIR A FLORESTA 83

REFERÊNCIAS 90

ANEXO A - IMAGENS 95
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1 INTRODUÇÃO: SOBRE VOZES, FLORESTA E ENFRENTAMENTO

Psiu, psiu, psiu,


Estou ouvindo vozes
(Escola de Samba Liberdade ainda que Tam-Tam)

As primeiras palavras de uma dissertação deveriam dizer de quem escreve diante do seu
objeto? Qual metodologia ou protocolo poderia prever a partilha que eu, sujeita, teci com o
objeto que escolhi, para falar dele, para falar de mim, para falar de muita coisa que está além
dele e de mim? Eu escolho começar essa narrativa na primeira pessoa porque para tecer um
saber científico sobre o que julgo relevante à ciência, à episteme, à vida, precisei me voltar para
mim mesma, dar voz ao meu desejo, ao que atravessa meu corpo enquanto experiência e causa
movimento, devir.
A intenção é de que todas as palavras tecidas aqui clamem por movimento, enquanto
existam, enquanto se lê, como uma brisa entrando nos poros, ora gélida, ora suave, ora fogo. Se
o que sai de mim, atravessar o conhecimento, virar discurso para chegar até a/o outra/o e
conseguir encontrar o seu corpo, essas páginas farão ainda mais sentido, porque a busca de
rever estruturas de pensamento terá sido aceita.
Mas tudo isso não é sobre mim, nem sobre quem dialoga quando lê. No entanto é sim
também sobre todas/os nós. É sobre narrativas desprezadas, gente enxotada socialmente como
desimportante, de quem escolhi falar, quem escolhi para ouvir. É sobre as vozes, as muitas
vozes que ficaram presas nas suas cabeças, nos porões da loucura, atrás dos muros dos
manicômios, ou pelas ruas, escondidas pelos poderes construtores de uma sociedade que não
quis ouvi-las ou lhes dar importância.
Essas páginas são sobre a ascensão de muitas destas vozes, sobre a emancipação das
vozes e das/os donas/os das vozes, sobre a busca de, através também do exercício da arte, voltar
a tocar a sua própria humanidade. Sobre o reencontro dessas pessoas consigo mesmas, com um
espaço narrativo que só pode ser ocupado por quem viveu sua determinada experiência. Essas
páginas são sobre a desautorização histórica do seu lugar de fala e sobre a luta pela autorização
de falar, de existir, de criar.
Me coloco, inicialmente, na primeira pessoa porque as/os donas/os dessas vozes me
ensinaram a falar e a pensar a humanidade a partir de quem foi usurpado de vivê-la. E essa luz
que me abriu os olhos nunca mais me deixará fechá-los enquanto eu viver, parafraseando o
poeta amazonense Thiago de Mello (1981). Partindo do meu lugar, porque só posso dizer a
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partir dele, quero falar de todas/os que vi ultrapassarem o duro cimento da exclusão, das vozes
que foram silenciadas atrás das grades segregadoras das culturas, e nunca ouviremos falando
loucura solta pela rua, mas que estarão, aquém dos choques e lobotomias, aquém dos
paradigmas culturais da loucura, do delírio e da doença, para sempre vivas e berrantes dentro
das nossas cabeças. A essas vozes que reencontraram suas narrativas prestamos homenagem na
epígrafe que abre essa introdução, com os versos do samba-enredo da Escola de Samba
Liberdade Ainda Que Tam-Tam, um coletivo de pessoas envolvidas com a luta antimanicomial,
tanto usuárias/os dos serviços de saúde mental da cidade de Belo Horizonte (BH)/ MG, quanto
artistas trabalhadores da rede.
Foi em Sabará, uma cidade histórica da região metropolitana de BH, que a ASSTRAL
(Associação Sabarense de Trabalhos Alternativos) fez casa para acolher a loucura, a saúde
mental, suas convivências e criações. Era início da década de 1990 quando minha mãe,
assistente social de formação marxista, tendo integrado o Movimento de Emancipação do
Proletariado (MEP) e a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), saiu da Zona da Mata de
Minas Gerais para se envolver com as recentes conquistas da Saúde Mental, que insurgiam pela
região da capital do Estado.
A ASSTRAL foi concebida como uma Organização não Governamental (ONG), um
projeto de Economia Solidária em Saúde Mental (Imagem 1), que oferecia oficinas de culinária,
bijouteria, cerâmica, utilitários de papel e esculturas de papel marché, a fim de promover o
acolhimento psicossocial, a convivência, o reenlaçamento afetivo e a reinserção social por meio
do trabalho criativo e não massivo, fazendo parte das iniciativas de substituição dos manicômios
por serviços humanizados, na prática do cuidado ao sujeito em situação de sofrimento mental.
Minha mãe foi da equipe multidisciplinar composta por psicólogas/os, assistentes sociais,
terapeutas ocupacionais, artistas plásticas/os e artesãs/ãos, que fundou a iniciativa, e meu estudo
é também fruto desta construção.
Foi entre o colo negro de Edmur, seus olhos de jabuticaba e a voz ponderada, que escutei
pela primeira vez, aos 7 anos, a falar sobre Dostoiévski. Foi pelas poucas palavras de Silvio,
ainda entorpecido pelo excesso medicamentoso, que acreditei que eu podia desenhar, uma
pulsão que mais tarde gerou minha formação em Artes Plásticas.
É aqui que essa narrativa sai de mim para dizer a que veio. A figura do louco, inútil,
incapaz de receber confiança, um ser perigoso se fez no entanto, imerso em uma outra partilha,
da delicadeza, do diálogo e da cumplicidade, no louco que cuida e ensina. Sair do fatídico
discurso da exclusão para repensar os modos relacionais pelos quais somos regidos, para que o
ser também possa sair da figura do adoecido, e se deslocar para a doce constatação de potência
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e ação da sua subjetividade. Foi a partir deste norte gerado pelas minhas tardes infantis na
ASSTRAL que comecei a cultivar as sementes da minha contribuição para a construção da
floresta da não-exclusão, nesse futuro que hoje se desenha.
A Saúde Mental no Brasil vem, desde a década de 1900, com o psiquiatra brasileiro
Juliano Moreira, galgando conquistas relevantes na construção de experiências para um
tratamento mental mais humanizado. Desde a década de 1940, com a psiquiatra brasileira Nise
da Silveira, começando a pensar em modelos que ultrapassem o espaço hospitalar, preze pelo
cuidado em liberdade, pela convivência geradora de enlaçamentos com a vida, pela criação
reconstrutora de subjetividades, pelo trabalho solidário que contribui para a reinserção social,
enfim, pela integralidade subjetiva, relacional e cultural do sujeito em situação de sofrimento
mental. Estas experiências nascem em resposta à lógica hospitalocêntrica degradante dos
manicômios, inteiramente ligada a interesses lucrativos e diretamente proporcionais à
quantidade de leitos nos seus hospitais psiquiátricos, mortificadores de sujeitos que são então
isolados da sociedade, como um mal que devesse ser banido.
Antes da possibilidade de se inaugurar instituições substitutivas aos hospitais
psiquiátricos, quando era somente possível se pensar em novas relações e abordagens ao sujeito
em sofrimento mental dentro do território manicomial de isolamento e punição, termos
utilizados por Michel Foucault (1979), a saída proposta por profissionais da área, foi trazer a
arte para dentro dos muros institucionais, em um encontro com o sujeito segregado. A equipe
de Juliano Moreira começou a construir o legado dos núcleos de terapias dentro dos hospitais,
no início do século XX. Já na década de 1940, a equipe de Nise da Silveira (1992) fora então
precursora do uso da pintura enquanto tecnologia de aproximação, resgate da subjetividade do
sujeito e do seu reconhecimento enquanto tal, na tentativa de recuperá-lo de uma coisificação e
anulação imposta pela realidade mortificadora dos hospitais psiquiátricos e suas práticas,
instaurando na ala de terapia do hospital, um atelier de pintura. No Brasil, Nise da Silveira foi
responsável pelo enfrentamento aos métodos hospitalares violentos impostos no internamento,
como eletroconvulsoterapias (eletrochoques), lobotomias e abusos medicamentosos, assim
como o enfrentamento ao entendimento de doença, cura e punição, e o caráter de lucro e
utilitarismo dados às/aos então chamadas/os “doentes” pelo sistema institucional.
As consequências dessa intervenção foram não só questionamentos sobre a legitimidade
da configuração oficial da psiquiatria naquele momento, como também o pioneirismo do que
veio mais tarde desencadear na Reforma Psiquiátrica e no Movimento da Luta Antimanicomial.
A contribuição científica de Nise da Silveira buscava compreender as transformações cotidianas
do sujeito a partir da experienciação da criação de imagem, dialogando com as pesquisas de
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Carl Jung (2016) sobre o inconsciente. Este, por sua vez, compreendia a produção de imagens
enquanto potência simbólica e o fazer pictórico enquanto agente do abrandamento e movimento
da mente.
Em relação ao campo das artes, as conquistas travadas pela psiquiatra e sua equipe
culminaram na criação de um circuito artístico que discutia as relações entre arte e loucura.
Respaldada sobretudo pelo crítico de arte Mário Pedrosa (2017), que afirmava valor estético
para as pinturas produzidas por sujeitos vistos como loucas/os, foram realizadas então
exposições com este conteúdo. Além disso, como consequência também se deu a fundação do
Museu de Imagens do Inconsciente (Imagem 2), inaugurado em 1952, onde estão concentradas
as memórias dos trabalhos desenvolvidos nos confins da instituição manicomial.
A experiência de criação vivida por esta equipe mostra, dentre tantas coisas, que mesmo
nas condições mais precárias, foi possível encontrar o desejo de vida no sujeito. Este desejo
remete à nomeação de Jacques Lacan (Apud FERREIRA-LEMOS, 2011) àquilo que exerce
pulsão e assim pode se estabelecer enquanto linguagem e sentido, em tentativa de respostas às
condições inscritas.
A partir da experiência da equipe liderada por Nise da Silveira, acontecimentos
importantes marcaram a tomada da discussão e do enfrentamento, para a experiência de outras
práticas que pudessem andar junto à tentativa de mudança do paradigma cultural a respeito do
sofrimento mental. Um paradigma pautado na patologia da doença, no entendimento da loucura
como doença, na dicotomia loucura versus “normalidade”, na consolidação da diferença e do
diferente a partir da ideia de que o “normal” representa o ser humano oficial e o louco seria o
“Outro”, no trato do sujeito “louca/o” como diferente e malquista/o, e na coisificação deste
sujeito histórica e analiticamente descredibilizado, penalizado e isolado da sociedade, tanto nos
manicômios físicos quanto na malha social. Uma das marcas genuínas das práticas tecidas como
enfrentamento a este paradigma é a utilização das linguagens artísticas como alargamento dos
modos de existir que reinventem a convivência inclusive com o próprio sofrimento, lidando
com este como mais um elemento que compõe a vida, e não mais o definidor desta, do seu ser
complexo e subjetivo, do seu campo relacional, da produção de sentido e devir.
Depois da experiência vivida pela equipe liderada por Nise da Silveira, muitas
proposições afins foram feitas no território nacional, e estas mais sistematizadas a partir,
sobretudo, da visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia (1979) que liderou a Reforma
Psiquiátrica na Itália. Basaglia enfrentou poderes institucionais e conseguiu impor alterações
no modelo asilar, implantando outras respostas ao sofrimento mental, através de recursos como
o diálogo, o acolhimento, a participação, a convivência e o cuidado. Além da implantação de
17

uma clínica participativa e acolhedora, também propôs os mecanismos da arte e do trabalho


como parte e continuidade no tratamento.
Na primeira visita ao Brasil, em 1978, Basaglia visitou o Hospital Colônia de
Barbacena/ MG, responsável pelo maior genocídio de pessoas em sofrimento mental em
território brasileiro, com 60 mil mortes ao longo de cinquenta anos, nomeando-o de
“Holocausto Brasileiro”. Na segunda visita ao país, já em 1979, Basaglia lidera as chamadas
“Conferências no Brasil”, a partir das quais nasceram outros encontros e conferências que
confluiram para a construção de políticas para a saúde mental, que mudassem nacionalmente o
atendimento e abordagem às pessoas em condições de sofrimento mental e suas famílias,
apontando para a Reforma Psiquiátrica Brasileira e para o Movimento da Luta Antimanicomial
(MLA).
No início da década de 1980 começaram a nascer programas e iniciativas, tanto dentro
dos hospitais psiquiátricos ou núcleos de Terapia Ocupacional, como na tentativa de consolidar
outros espaços fora do ambiente manicomial, inclusive na busca de se estabelecer enquanto
política pública substitutiva aos manicômios. Destacamos aqui a experiência no município de
Santos/ SP, gerada como consequência das conferências nacionais e regionais que produziram
debates sobre a problemática manicomial e a necessidade do estabelecimento de outros serviços
antimanicomiais que atendessem ao público da saúde mental e suas famílias. Se fazia necessário
partir de uma lógica diferente da asilar, esta pautada no isolamento, na supremacia da ação
medicamentosa, nos maus-tratos a partir da desvinculação do sujeito com todos os laços que o
conecta à vida social. Buscava-se compreender o paradigma social da loucura, a postura ética
que deveria ser absorvida pelo campo da saúde, como se dariam estruturalmente estes novos
serviços e como poderiam ser implantados a partir da substituição daqueles que se queriam
falidos.
A partir desta construção, uma das experiências mais importantes e efetivas para uma
prática antimanicomial aconteceu em Belo Horizonte (BH)/ MG. Durante a década de 1980 as
práticas antimanicomiais começaram a ser estabelecidas, inicialmente dentro do Hospital Raul
Soares, que mantinha e, em certa medida ainda mantém, as mesmas práticas da excludente e
tortuosa psiquiatria. A conquista como política pública municipal se deu em meados de 1993,
por meio de dispositivos substitutivos aos manicômios, com a formação de uma rede de
urgência e emergência; acompanhamento psicossocial para a/o usuária/o da Rede de Saúde
Mental e sua família; oferta de criação, convivência e vida cultural, relação com a cidade e com
o trabalho. A Rede de Saúde Mental de BH representa um pioneirismo complexo nas políticas
antimanicomiais, sendo referência tanto nacional quanto internacional. Afirma, dentre tantas
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coisas, que o cuidado em liberdade é uma “utopia em prática”, como a militância e as/os
trabalhadoras/es locais designam a Rede, afirma que serviços substitutivos aos manicômios,
que utilizam de outras tecnologias e recursos, são possíveis e exequíveis.
A ideia é utilizada pela própria Rede, a partir do conceito de Michel Foucault (1979) de
dispositivos estratégicos que se formam em resposta às imposições dos biopoderes. Estes, no
seu entendimento, são as capilaridades do poder regente, da ordem social, que se espalham
pelas entranhas da sociedade e fazem permanecer um controle social para além das instituições,
sendo ancorados nos campos relacionais de toda ordem. Este conceito também é pensado pela
pesquisadora e feminista negra Sueli Carneiro (2005), que o entende como um conjunto
ideológico de significantes socioculturais impostos pelos poderes hegemônicos aos corpos
negligenciados e narrativas historicamente silenciadas, como forma de opressão e de manter as
hierarquias sociais. Em tensionamento às instituições oriundas e geridas pelos biopoderes,
portanto, os dispositivos se dão como formações que podem operar em resposta a uma urgência
histórica ao estabelecido, se constituindo de funções estratégicas que atendam aos grupos
negligenciados.
Neste sentido, os Centros de Convivência (CC’s) e suas práticas artísticas foram
pensados como dispositivos estratégicos de arte, que trafegam nos encontros cruzados entre a
experiência social da loucura e a clínica. Os CC’s são nove e se distribuem um em cada regional
do município. Oferecem oficinas de linguagens artísticas, como artes plásticas (pintura,
colagem, cerâmica), poesia, vídeo, música, teatro e artesanato. No Centro de Convivência
Providência (CCProv), localizado na regional norte da cidade, mediei uma Oficina de Poesia &
Vídeo que culminou na experiência “Poesia é a nossa estrutura”, corpus dessa dissertação.
No quintal do CCProv, em uma regional periférica e de baixa renda, nos reuníamos à
sombra da árvore para viver poesia, líamos, trocávamos sobre experiências de vida e
pensamentos, escrevíamos, recitávamos, pensávamos as cenas e gravávamos vídeo-poemas,
enfim sustentamos um cotidiano onde a poesia parecia dar acolhimento às perguntas sem
respostas, às dores sem remédios, dar possibilidades de serem vivenciadas de formas mais
possíveis. Os encontros aconteciam debaixo da árvore como se essa fosse um alicerce, uma
estrutura, a própria poesia, significante reinventado em resposta ao paradigma psicanalítico da
patologização. O grupo se intitulou assim “Poesia é a nossa estrutura”, nomeando ainda o vídeo-
poema experimental média-metragem e a publicação de poemas lançados como consequência
do trabalho de vivência deste grupo. A estrutura se fez poesia, e nenhuma parte dos seus corpos
puderam mais esconder a vida que se fazia afetada e retratada por ela, a arte e a linguagem se
19

agenciaram na tentativa de relocar corpos, reinscrever narrativas, contribuir para afirmar


existências.
O livro, composto por 29 poemas, 2 poemas visuais e muitas anedotas que resultaram
em um agrupamento na seção Pesquei um poema na sua boca, reuniu 3 autoras mulheres e 9
autores homens. O filme, um média-metragem de 22 minutos, foi concebido como um vídeo-
poema experimental. Usaremos “Poesia é a nossa estrutura” para nos referirmos ao grupo e à
experiência/vivência em si, e Poesia é a nossa estrutura (vídeo-poema) e Poesia é a nossa
estrutura (livro) para nos referirmos aos trabalhos realizados, quaisquer citação feita a partir do
conteúdo destes dois últimos, será entendido como fonte e não como referência. As/os
usuárias/os do serviço da Rede de Saúde Mental de BH chamaremos de convivas, termo
sugerido pelo poeta e conviva Valtinho Folha Sêca, que coloca seu incômodo em relação ao
termo “usuária/o” comumente utilizado, por poder ser confundido com usuárias/os de
psicoativos. O termo conviva é então adotado pela pesquisa, e chamaremos de poeta(s)
conviva(s) as/os integrantes do grupo “Poesia é a nossa estrutura”. Assim, quando uma poesia
destes for citada, virá apenas com seu nome, denotando que se trata da nossa fonte.
Como um desenrolar da vivência, e considerando “estrutura” ressignificada em um
significante construtor e movente ante à patologização paralisante, essa pesquisa foi pensada
metologicamente e analiticamente nas categorizações “Árvore”, “Luta” e “Artevida”. A partir
da significância destes termos para a experiência “Poesia é a nossa estrutura” buscaremos
refletir sobre o encontro entre a experiência da arte e da linguagem com a saúde mental. Essa
experiência representa uma árvore diante da floresta que significa inúmeras experiências
cruzadas entre a arte e a linguagem, na promoção de uma saúde mental antimanicomial.
Estamos dizendo aqui sobre a árvore que regamos e esperamos que dizer sobre esta nos
possibilite defender toda a mata que está sendo plantada.
Defendemos um método de leitura e compreensão deste encontro entre arte/ linguagem
e saúde mental como confluências que se fazem na encruzilhada, no cruzo entre o que foi banido
e marginalizado porque não respondeu à razão hegemônica, porque não foi permitido pertencer
às epistemologias oficiais, porque não são compreendidos enquanto produção de saberes, nem
enquanto linguagem, nem enquanto arte. Pensaremos a partir da construção de outras razões
como nos sugere Kabengele Munanga (1999) quando compara as identidades nacionais,
aquelas oficiais, que não fazem caber as diferenças. Pensaremos que estas outras racionalidades
possam fazer caber outros modos de existir, que localize, territorialize e deixe insurgir uma
outra poesia, “de beira de estrada”, “de porta de venda”, “de banco de praça”, “de casa mal
assombrada”. Uma poesia que seja as vozes escutadas em tantas cabeças, ressignificadas em
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linguagem, uma poesia que represente narrativas expurgadas historicamente, de pessoas que
outrora ou ainda são chamadas de “doido da estrada”, “doida da venda”, “maluco da praça”,
“maluca da casa mal assombrada”.
Que esses sujeitos sem nomes possam ter nomes, passar a falar e serem ouvidos, se
afirmar através do que antes pareceu delírio e agora queremos que seja firmamento. Através de
uma poesia que não precisa parecer exótica para afirmar loucura alguma, que possa somente
ser a experiência destes sujeitos em relação à vida que os cerca e os acomete. É sobre o que
esses corpos inscrevem na vida que nos esbarra, nas arestas que nos incomoda, que
sussurraremos com a mesma intensidade que berraremos durante todo este texto, porque suas
vozes e todas as outras contidas nas suas mentes existem e precisam se fazerem escutadas.
“Árvore” significa aqui porque é princípio. Árvore foi começo, ativadora dos encontros,
ainda sem saber que além de produzir devir, estávamos também produzindo episteme. Árvore
significa para esta experiência reunião, trocas, criação de pensamento e discurso, manifestação
de vida, de fala, de pertencimento. Trataremos inicialmente de descrever e pensar a experiência
“Poesia é a nossa estrutura”, descrever para problematizar, dimensionar e lançar luz às
discussões do fazer artístico para a produção de subjetividades, de redimensionamento do viver
e ressignificações das relações consigo, com o outro e com a sociedade.
Pensaremos no conceito de “Outros”, que será utilizado durante todo o texto, a partir do
entendimento de Sueli Carneio (2005), como as existências de quem não representa a versão
padrão do ser humano oficial. Todo aquele entendido como “Outro” foi historicamente
enxotado da sociedade, como narrativa morta e desimportante, através do silenciamento das
suas vozes, do negligenciamento dos seus direitos civis, da coisificação dos seus corpos, da
abjetificação das suas existências, termo defendido por Judith Butler (2012) para dizer
daquelas/es que não serão reconhecidos como sujeitos. Pensamos a partir daí na movência,
palavra aqui também recorrente que nos diz sobre as possibilidades inventadas por estas
existências banidas, no sentido da feitura de experiências expandidas na arte e na linguagem,
que passam a alicerçar vidas para a construção de re-existências, como nos traz Renata Aspis
(2019) a partir do conceito inaugurado por Ana Lúcia Silva Souza (2009). À essa construção,
esse movimento de se soerguer, chamaremos aqui de outros modos de existir.
Ainda nesta seção, pensaremos sobre o Centro de Convivência como um terreno fértil,
território construtor de possíveis para o encontro da arte com a saúde. Apresentaremos as/os
poetas convivas e nosso cotidiano da vivência poética sobre o pano azul. Por fim relataremos,
além da experiência enquanto potente transformadora, Poesia é a nossa estrutura livro e vídeo-
poema.
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A seção “Luta” significa para nós porque este objeto só existe porque ranhura uma
política que se inscreve entre as fronteiras da arte e da saúde, requerendo para si seu lugar de
fronteira enquanto liberdade de trânsito epistemológico, forma híbrida de ação enquanto
metodologia, possibilidades de contaminação de conhecimentos que se misturam para agir
porque entendem que sozinhos são insuficientes para lutar. Constatamos nessa seção a
interpretação biologizante eugenista, herdeira de um discurso fascista, posicionado no campo
da Saúde Mental através da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM). A partir daí trazemos
Michel Foucault (1972) para compreendermos os recortes sociais atingidos pela instituição
manicomial, pensando também nos biopoderes e nas capilaridades impostas na convivência
social para a imposição do paradigma da loucura, da cura, do sofrimento mental e
periculosidade do sujeito. Apresentamos algumas obras-denúncia do sistema manicomial
brasileiro.
Dessa forma pensamos também na necessidade do que Franco Rotelli (1988) chamou
de desinstitucionalizar não somente o manicômio, mas a loucura em si, provocando o que
Marcus Vinícius Oliveira (2017) chamou de efeitos na cultura e quais as engrenagens
movimentadas pelos Centros de Convivência e pela poesia em si, para tanto. Por fim pensamos
no cruzo estabelecido entre arte/ linguagem e saúde mental, a partir sobretudo de duas figuras
referências para as políticas antimanicomiais, sendo sempre citadas na Rede de Saúde Mental
de Belo Horizonte, Nise da Silveira e Franco Basaglia, já trazidos nessa introdução.
Ressaltamos a Lei 10.216 e outros marcos definitivos para que hoje, nacionalmente,
estivéssemos organizados requerendo a garantia de direitos, asseguramento de políticas
públicas, e entendendo que não são concessão, mas conquistas arduamente travadas e
infelizmente não definitivas.
A seção “Artevida” sobretudo aqui na argumentação desse trabalho é significante
porque representa a defesa da proposta de novos modos de existir através da poesia enquanto
estado de vida. Questiona, indaga, desloca, não se conforma em não poder ser chamada de
Poesia. Nessa seção defendemos que a arte respalda, movimenta e ressignifica existências
através da ampliação de universos, da capacidade de oferecer reenlaces subjetivos e produção
de sentidos para a vida. Através da noção de Arte e Vida inaugurada por Antonin Artaud (2006)
e muito utilizada desde as vanguardas artísticas do Século XX nos campos das artes,
condensamos seu sentido em uma só palavra, como se assim também fizéssemos à arte e à vida,
para dizer da experiência que aqui analisamos, através da vivência da poesia.
Convocamos então a presença de personalidades que foram longamente internas nos
hospitais psiquiátricos, e que desenvolveram criação de arte relevante na tentativa de
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agenciamento das suas vidas, de modo a terem inclusive inscrito suas produções e resistências
na história. Sobretudo a presença de Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio foi bastante
influente para a vivência “Poesia é a nossa estrutura”. Arthur Bispo do Rosário, homem negro
sergipano, afirmou que “um homem não pode viver sem um barco, sem um barco ele estará
perdido”, trabalhou então durante os 25 anos correntes interno na Colônia Juliano Moreira (Rio
de Janeiro), na construção da vida como um barco, coletou e organizou os objetos, teceu seu
manto para o dia do Juízo Final. Stela do Patrocínio (2009), por sua vez, falava como se
recitasse, a esta fala singular deu o nome de falatório. É o barco e o manto de Arthur Bispo ou
o falatório de Stela do Patrocínio, que reverenciamos quando produzimos arte e linguagem junto
da saúde mental. Entendemos através de narrativas como estas, sobre como a experiência
poética pode de certa maneira agenciar o existir, como a criação e a invenção destes modos de
existir contribui para a invenção de possibilidades de negociação com suas vidas roubadas pela
exclusão do manicômio.
Dentro da Universidade, enquanto fazia essa pesquisa, alguém questionou “E quem
disse que isso é poesia?”. O bom das questões que nos incomodam é revertermos para a
conotação que afirme nosso posicionamento, ao contrário de agredi-lo. Foi assim que chegamos
ao enunciado dessa seção. Outra pessoa outra vez também me disse mais ou menos assim: “o
que me chama mais atenção na sua pesquisa é o fato de você levá-los {convivas} a sério”. Desta
vez isto foi dito como um elogio. Mas as duas situações convergem, na minha análise, quando
descobrem a leitura comum na sociedade, a respeito de quem deve ser levado a sério, de quais
vozes são dignas de importância, de quem está autorizado para falar, como questiona a filósofa
Djamila Ribeiro (2017), de qual fala está autorizada a ser reconhecida enquanto linguagem.
Como resposta, nossa seção “Artevida” questiona: “e quem disse que isso não é poesia?”.
Assim, reivindicamos a possibilidade de relocação de existências diante da vida, a partir
da construção, através da vivência da arte e da linguagem, de um “devir artista”, segundo os
termos de Gilles Deleuze (1997), que nos possibilite a criação de outros modos de existir, que
contribuam para a tentativa de superação em muitas medidas e intensidades às ordens
biopsicossocioculturais que influenciam o lidar com a loucura e o sofrimento, nos termos de
Mônica Nunes (2012). Pensamos no significante corpo e na afirmação das vozes enquanto
“manifesto errante”, a partir de uma expressão compartilhada pela artista Luzia Amélia Silva
Marques, em ocasião de sua fala no XV Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura-
ENECULT/ UFBA (2019).
Por fim defendemos uma poesia banida, advinda de narrativas outrora e ainda hoje
isoladas, amordaçadas. Pensamos a poesia enquanto trânsito poético, enquanto modos de existir
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que munem as vozes para dar respostas à vida, a partir de uma existência literária-performática,
se fazendo existir através de uma corporeidade poética, como entendido por Paul Zumthor
(2007). A poesia se enlaça, assim, como instrumentalizante da relação existencial e coletiva,
redimensionando a capacidade do ser e de um grupo, de sentir e agir diante da sociedade, na
perspectiva de Mário Faustino (1976).
Deste modo, também pensamos a vivência “Poesia é a nossa estrutura” como uma
comunidade inoperada, como sujeitos se relocando de outro modo na vida social, munido de
certa emancipação e empoderamento coletivo arduamente conquistado, podem deslocar o
paradigma cultural que o segregaram e toliram na subalternidade, ao mesmo passo em que
valorizarem suas singularidades, como propõe Jean-Luc Nancy (2016). Pensamos então na
necessidade da qual não podemos abdicar, de que as políticas de saúde mental tenham projetos
de arte inclusos na tessitura de sua clínica. Ao mesmo tempo, reconhecemos que precisamos de
organização política e representatividade para que as políticas antimanicomiais vinguem no
território brasileiro.
De forma mais presente na seção “Artevida”, os versos das/os autoras/es de Poesia é a
nossa estrutura (livro e vídeo-poema) dão sentido para nossas buscas e compreensões analíticas
e metodológicas, para nossa construção de pensamento. Ao mesmo passo em que convocamos
para o diálogo experiências outras na construção de políticas antimanicomiais através do punho
cerrado da arte. Também buscamos problematizar muitos aspectos das práticas que
defendemos, por honestidade à pesquisa e sobretudo ao engrandecimento das ações.
Reconhecemos o plantio, mas afirmamos que muito ainda deve ser discutido, para a mudança
de paradigmas culturais e epistemológicos da loucura, do adoecimento, da saúde, da cura, do
acolhimento.
Para o entendimento dessa arte em si como motor de profundas mudanças sociais,
precisamos pensar no reestabelecimento de grupos historicamente silenciados e abjetificados
pelo estado permanente de opressão de subjetividades, que fabrica, policia e pune as diferenças
e as/os diferentes. Em resposta ao policiamento do Estado e às frequentes e também atuais
tentativas de retrocesso das políticas antimanicomiais, insistimos em colocar em prática nossa
utopia: Plantamos uma árvore, mas queremos construir a floresta.
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2 E O PRINCÍPIO SE FEZ ÁRVORE: “POESIA É A NOSSA ESTRUTURA”

Poesia é a nossa estrutura


Estrutura de viver
Estrutura de escrever
Estrutura de vivenciar
A arte de ser
(Roseli R. Lapa)

Tudo que principia quer se fazer tronco, dar corpo, constituir substância, matéria,
estrutura. Por princípio escolhemos nascer árvore, pedir licença para brotar e se corporificar
seiva bruta, forte essência. Porque nascemos em um chão nacional que derrama sangue desde
quando existe colonizado, precisamos fazer dos nossos corpos roubados estrutura-tronco de re-
existências constantemente reinventivas em si mesmas, tronco-movimento, corpo-vivo, corpo-
livre, corpo-livro. Ao contrário de quaisquer dominações, que entorpecem e limitam o corpo e
a existência, um corpo-movimento, vivo, livre, livro é um corpo criado a partir de
oportunidades, de acontecimentos, eventos, encontros. É um corpo que busca superar a
dominação com movimento, com inscrição de subjetividade, de relações e leituras. Um corpo-
livro é um corpo que trafega a partir de um trânsito poético, um corpo que encontra modos de
existir a partir da poesia como substância movente e forma de perceber o mundo. Um corpo
que se organiza abundantemente vida, como um tronco forte, em tentativa de respostas aos
processos de mortificação que sobre ele são exercidos. “Poesia é a nossa estrutura” foi uma
experiência nascida a partir deste entendimento, utilizando da poesia para exercê-lo,
contextualizada no campo epistemológico, estético, político e assistencial da Reforma
Psiquiátrica Antimanicomial Brasileira.
Nosso lugar referencial é o território brasileiro e o lidar, neste território, com o
sofrimento mental, um lidar que está presente na condução histórica das políticas de saúde
mental, assim como nas entranhas da sociedade, nos componentes sociais, no cotidiano das
relações. Muito dessa tessitura entre as instituições de abordagem ao sujeito em sofrimento
mental e as relações sociais foram moldadas para servir aos interesses de exclusão, de criação
de um “Outro” a partir do estigma da mente. Um “Outro” que fosse portador de algum fator
biológico do qual não poderia se livrar, e que imporia a ele uma inconstância latente, sendo
entendido quase como uma “bomba-relógio”, que pudesse explodir a qualquer momento. Essa
noção em parte perdura até hoje, depois da Reforma Psiquiátrica Brasileira e de inúmeros
avanços na abordagem ao sujeito em situação de sofrimento mental. É essa noção imbricada na
sociedade que faz as pessoas terem medo de outras pessoas quando as entende como “loucas”,
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e é assim que o sujeito ainda se vê obrigado a sustentar sua imagem relacionada à periculosidade
e ameaça ao bem comum.
A formação desses “Outros” é tratada na literatura analítica de Carla Akotirene,
intercambiada pelo pensamento de Sueli Carneiro e Grada Kilomba, como “aqueles vistos pela
identidade do Ser universal, autoinvisibilizante, branca cis, heteropatriarcal como os diferentes
dos humanos normativos” (AKOTIRENE, 2018, p.114). O padrão do poder social,
representante da chamada nação civilizada, fundamentalmente eurocentrado, construtor e
reordenador de desigualdades, historicamente elegeu seus representantes como o “humano
oficial”, criando a diferença e o diferente, sem respeitar a multiplicidade ou pluralidade das
existências, e partir das impostas diferenças, denominando-as como raças e subalternizando
umas às outras. Como os “Outros” foram tratados então os corpos que não representavam o
“Ser universal”, o arquétipo oficial que traz a noção de humanidade carregada por esta
sociedade, traçada em todos os termos fenotípicos, geográficos, culturais, enfim raciais, e
consequente também de gênero e classe. Estes foram assim isentos de humanidade, e
representados pelos agrupamentos de pessoas diferenciadas em raça, classe, cultura e outras
intersecções sociais do padrão eurocentrado.
Para esse texto e análise, a representação “Outro” está relacionada ao corpo atribuído à
loucura, não por constituição patológica, mas por definição social, o louco que assim fora
definido muito por não estar em conformidade com os padrões comportamentais e relacionais
dos pactos sociais, o louco banido da convivência social, desumanizado, coisificado,
abjetificado, o louco que fora violentado da existência, excluído e segregado ainda e sobretudo
quando preta/o, mas também enquanto pobre, analfabeta/o, alcoolista, drogadita/o, travestida/o,
prostituta, desquitada. Todas estas intersecções foram condições para se (des)tratar
historicamente o sujeito do direito de exercer e garantir sua humanidade, e (re)colocá-lo como
um desvalido social.
A noção de que o sofrimento mental pertence à uma “estrutura” patológica da psicose
em um nível teórico acabou fundamentando leituras a respeito do sofrimento mental como uma
perspectiva paralisante e limitadora, no sentido de embarreirar os movimentos destes corpos
para a construção de novos modos de existir. Na experiência “Poesia é a nossa estrutura”
propomos a poesia como estruturante em resposta à patologia da doença paralisante, com uma
estrutura que seja movimento, palavra, corpo-livro, corpo vivo, estamos assim buscando
agenciar possibilidades de vida, nos propondo a construir outros modos de existir, de re-existir.
“Re-existência” é um conceito da pesquisadora Ana Lúcia Silva Souza, trazido aqui por
Renata Aspis. Este tem nos servido na produção de saberes relacionados às narrativas de grupos
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minoritarizados, vulnerabilizados e corpos abjetificados. Re-existir supõe criar outras formas


de afetar e ser afetado, a partir de possibilidades inventadas com o pressuposto dos encontros.
O encontro tem, para nossa noção de re-existência, um caro valor de grande acontecimento, que
pode gerar incontáveis e potentes possibilidades na criação de novas subjetividades,
pensamentos, forças motrizes, resistências, discursos e possíveis. Re-existência como

(...) insistência em existir, reincidência na existência. A cada captura da vida, a cada


assalto à vida, a cada tentativa de coisificação, de massificação, de assujeitamento e
distração de si, trata-se de insistir em existir, de novo e de novo. Portanto re-existência
é um movimento, reiterado em passos e piruetas, criação de caminhos e retomadas,
resistentemente, re-existentemente (...) (ASPIS, 2017, p. 81).

Re-existir se faz, portanto, não apenas um estatuto de sobrevivência, mas também uma
constante de criação de universos, ampliação de existências, invenção de caminhos, habitações
e realidades, um posicionamento de vida, possibilitado através dos encontros.

o possível não preexiste, ele é criado pelo acontecimento. É uma questão de vida. O
acontecimento cria uma nova existência, ele produz uma nova subjetividade (novas
relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho...).
(DELEUZE; GUATARI, Apud ZOURABICHVILI, 2000)

Assim, “Poesia é a nossa estrutura” se desenha como uma experiência de resistência e


re-existência, possibilitada pelos encontros-vivência na Oficina de Poesia & Vídeo, inscrita na
lógica antimanicomial dos Centros de Convivência da Política de Saúde Mental de Belo
Horizonte/ MG, cidade pioneira e referência para modelos de serviços substitutivos aos
manicômios. Este pioneirismo de Minas Gerais, mas sobretudo do município de Belo Horizonte
(BH), marca não somente a existência de uma política pública robusta, que funciona em rede
abastecendo todas as regionais da cidade, e uma complexidade em saúde, assistência e arte, que
abarca a abordagem ao sujeito desde a emergência à ressocialização. Marca também a
ambiência social, uma maior disposição da sociedade para o lidar com este sujeito que passa a
ser chamado pelo seu nome no lugar de “doida da praça”, “maluco da rua tal”, etc. Ou seja, a
estrutura de rede armada pela Política de Saúde Mental de BH responde em muitos sentidos à
luta “por uma Sociedade sem Manicômios”, mote discursivo do Movimento Nacional da Luta
Antimanicomial (MNLA). Dizemos isto porque além de dar suporte ao sujeito e sua família, a
Rede também atua nos seus territórios de pertencimento, influindo para que passem a se
apropriar deste território como reconstrução da sua identidade e subjetividade, ao mesmo passo
em que convocando cotidianamente a comunidade para o lidar com o sujeito enquanto tal, e
não com sua “doença” anterior a este, como nos ensinou Franco Basaglia (1979).
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Foi assim no território da regional norte de BH, onde está localizado o Centro de
Convivência Providência (CCProv), e onde por sua vez aconteceu a vivência “Poesia é a nossa
estrutura”. Trata-se de uma regional periférica, habitada por uma população de baixa renda. O
CCProv se situa dentro do complexo do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS),
o que significa que o público do CC também convive com o público das outras repartições
sociais da regional, como creche, escola de ensino fundamental e complexo esportivo. A
vinculação diária do CC com a comunidade se faz, em certa medida, desestigmatizante sobre o
entendimento de “loucura”, na medida em que o cotidiano do CC se enlaça ao da comunidade,
os convivas do CC trafegam pela comunidade não como doentes sem ocupação, mas como
frequentadores do CC, na medida também em que as atividades do CC recebem a comunidade
no seu próprio espaço, nas festas de final de ano, São João, Carnaval e outras, por fim, na
medida em que a comunidade se aproxima da realidade cotidiana da Saúde Mental.
A vivência “Poesia é a nossa estrutura” nasceu neste locus, a partir do desenvolvimento
da Oficina Poesia & Vídeo, que acontecia semanalmente debaixo de uma árvore no quintal do
CRAS e correspondia ao espaço externo do CC. Trabalhar debaixo da árvore foi uma ideia
acolhida pelo grupo, na qual propunha uma ambientação mais livre e em contato com a
natureza, entendendo esse deslocamento de ambiente como influente positivamente na prática
da arte e da escrita, assim como mais propiciador de encontros criativos e diálogos. Em
decorrência da potência dos encontros e da convivência, a Oficina formou um grupo de criação
que gerou, além da própria experiência, ainda um livro compilação poética e um vídeo-poema
média metragem homônimos ao grupo, a saber Poesia é a nossa estrutura (2015) e Poesia é a
nossa estrutura (Ana Carolina Pedrosa Pontes, 2015), respectivamente.
A árvore, ativadora dos encontros, foi que sentenciou como estruturante a poesia,
movência de vida ante o determinismo dos poderes, criadora dos encontros e acontecimentos
que geraram potência de existir e re-existir, que geraram poesia como estado de vida, como
estrutura, substância constituinte da movência do corpo, como organismo gerado e gerido pela
convivência poética, pelo enlaçamento coletivo, pela potência relacional e por influências
mútuas.
O grupo era constituído por oito convivas com presença mais fixa, Naidna de Souza,
Antônio Eustáquio, Cris Gomes, Rui Nonato, Deolindo de Campos, Adélcio, Roseli R. Lapa e
Paulo BH, quatro convivas menos frequentes, Marconi, Lília, Vicente Poeira da Catedral e Jet,
e algumas/ns outras/os convivas que visitavam a oficina esporadicamente, Zila, Lílian e etc.
Aqui utilizo os nomes que cada um(a) consentiu para ser usado no livro e vídeo-poema Poesia
é a nossa estrutura.
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Não poderia trazer aqui o quadro psicoterapêutico de cada um(a), primeiramente porque
essa informação é irrelevante para nossa discussão e também pela condição ética de que o
acesso aos prontuários se faz restrito ao uso dentro da Rede de Saúde Mental. No entanto para
contribuir com o recorte narrativo, estamos nos referindo a pessoas tratadas com diagnósticos
de neurose grave ou psicose. Mas, é imprescindível que esta informação seja acionada como
mais um componente na complexidade de cada ser, e não como marca suprema ou definidora.
Por isto, ressaltamos algumas características que nos importam mais a respeito das/os convivas,
e que o diagnóstico psíquico não pode tangenciar, que são suas singularidades.
Tão logo soubesse que eu chegara no Centro de Convivência Providência propondo uma
oficina de Poesia & Vídeo, já circulava o recado de que Naidna de Souza queria me conhecer.
Em uma manhã ensolarada o encontro prometido vingou, ela veio até mim com o balanço do
seu andar, seu olhar meigo, cabelos avermelhados, aquela simplicidade potente, bela e
marcante, abriu um sorriso íntimo como se me reencontrasse e recitou um poema seu:

Eu sou o que sou


Se você não é, é porque não quer, é porque não quer
Eu posso pensar, eu posso agir
Eu posso ficar ou partir
Eu posso chorar, eu posso sorrir
Eu posso perder e também ganhar
Se você quer ver
É só confiar
Que você pode tudo
Basta querer
E acreditar
(Naidna de Souza)

Esta poesia vem de um poema-performance da autora, acontece na oralidade, na


cadência, na ginga do corpo, no canto que ela imprime e nas pautas que ela silencia para as
palavras, nos suspiros, salivação, no olhar estrábico que se atenta à cena e ao mesmo tempo não
desfoca do fruidor, como se o convidasse para adentrar a um universo: “você pode tudo, basta
querer e acreditar”. A poeta mostra o que pode junto da poesia, e assim também faz
metalinguagem, diz que “é o que é”, se afirma, se expõe, mostra o que faz e o que pode fazer
com a poesia, flui como se fossem uma só. Eu saquei a câmera como se urgente fosse inscrever
na imagem coletiva aquele momento: “Posso te filmar?”, ela me respondeu sorrindo aberto,
com brilho no olhar e afirmando com a cabeça.
Antônio Eustáquio, por sua vez, chegou silencioso, um senhor alto, negro retinto, de
fala mansa, doce. Enquanto eu propunha a Oficina, me olhava sereno, com um sorriso de canto
de boca. Esperou uma pausa silenciosa e, sem dizer nada, cantou: “Poema é a luz que brilha lá
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no céu/ poema é a luz que brilha lá no céu/ poema é ter saudade de alguém/ que a gente quer e
que não vem”, e emendou: “É Altemar Dutra, você conhece? Isso é muito bonito”. Foi ali que
inauguramos a vivência “Poesia é a nossa estrutura”.
Naidna de Souza e Antônio Eustáquio eram as/os mais presentes na vivência, raro os
dias que faltavam e sempre justificados. Naidna de Souza tinha meia idade, personalidade
expansiva, cativante, alegre, divertida. Mesmo quando as coisas não pareciam muito bem, ela
buscava algo positivo para a partir dali criar. Não é dona de uma alegria gratuita, mas de uma
batalha para se manter bem. Muito reflexiva e pensante, uma filósofa e poeta nata, sempre
propunha pautas para trabalharmos e também incentivava a participação de todas/os com
carinho e sensibilidade. Seus poemas eram sopros de lucidez, surpreendiam, com a leveza e ao
mesmo tempo precisão de quem tem íntima relação com as palavras. Versava sobre sua
perspectiva de vida, sobre como pensava a arte, como entendia que deveríamos nos relacionar
com a vida, sempre uma perspectiva positiva, de superação dos sofrimentos causados pelas
relações familiares e sociais, sempre propondo a superação daquilo que afligia e angustiava.
Naidna foi talvez a maior responsável pela atmosfera criativa e superadora conquistada pelo
grupo, em todo encontro trazia para trocar algum verso ou algum pensamento versado e com
este propunha diálogos, convidava as/os outras/os convivas para a criação. Naidna contava
situações da sua vida, de como superava diariamente a condição de sofrimento, cada vez que
algum(a) conviva estivesse triste ou em um momento mais difícil da vida, do lidar com sua
circunstância mental e emocional. Por tudo isto destacamos a importância de Naidna de Souza
na vivência e construção “Poesia é a nossa estrutura”.
Antônio Eustáquio sorria da espontaneidade de Naidna e das minhas brincadeiras,
esperava o momento de falar como se não pudesse dizer nada em vão. Seus poemas sempre
tinham uma conotação mais bucólica, apreciador da natureza como era. Cris Gomes também
era bem frequente na vivência, ainda não completados os 40 anos, trazia seu violão e cantava,
contava sobre seus sentimentos, dúvidas, desejos e anseios, coletivamente sempre se mostrava
reflexivo, emotivo e sentimental. Seus poemas falavam de amor, de solidão e da própria poesia
como importante para sua vida. Deolindo de Campos tinha meia idade, inicialmente se mostrava
muito sério, desconfiado e calado, com o desenvolvimento do grupo, foi se mostrando mais
sorridente e espontâneo, nos agraciando com algumas declarações pessoais da importância
daquela vivência para seu processo pessoal. Olhava para a paisagem que circundava nossa
árvore como se fosse captar o infinito, e compunha poesias curtas, minimalistas, sintéticas e
profundas, sobre o viver e o seu relacionar com as coisas.
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Rui Nonato era um senhor fisicamente cansado, mas com uma mente aventureira.
Contava as histórias de quando morava na Bahia, pegava o ferryboat atravessando para a Ilha
de Itaparica e foi ali naquela travessia que descobriu o que era poesia. Rui escrevia muito sobre
a nossa partilha, sobre como achava grandioso nossos encontros e a importância da poesia.
Roseli R. Lapa dançava quando recitava, expansiva, era amante da rima. Paulo BH, seu
marido, era um militante da Luta Antimanicomial, experiente com a prática da poesia e com
uma escrita bem politizada. Marconi também acumulava uma trajetória de vida com a poesia,
e quando vinha para a vivência, trazia suas pastas de longos poemas, para nos mostrar o que
estava criando. Lília chegou tímida na oficina, em pouco tempo de frequência passou a se soltar
e, como ela mesmo nos disse, arriscar um poema.
O grupo era formado de pessoas de baixa renda, moradoras/es dos bairros da regional
norte, uma região periférica da cidade. Na sua maioria eram pessoas negras, apesar de
majoritariamente da pele clara. Se tratavam com carinho, respeito e dignidade sobretudo às
singularidades e momentos mais frágeis umas/uns dos outras/os. Cada um(a) trazia consigo,
para compartilhar na vivência, suas singularidades, histórias, anseios, questionamentos. E o que
seria essa prática senão produção de vida? Reverenciando Gilles Deleuze (1997), pensamos na
produção de vida para além da cessação de sintoma.
Pela manhã, sob os pés da árvore, estendíamos um pano azul marinho e sentadas/os
sobre ele dávamos início à nossa vivência poética, à criação. A dinâmica era movida pelo
diálogo, que poderia vir de um poema lido, de um autor trazido, de uma música lembrada, de
alguma questão que afligia e angustiava, ou que simplesmente despertava a vontade de escrever.
A conversa se pautava em “pensarmos juntas/os”, no meio dela um poema recitado, um
cantarolar, uma ideia, um poema que escapava da boca como se fosse fala comum. Com essa
partilha construíamos verso, linguagem e cena.
Instauramos uma atmosfera de trabalho, convivência e criação armada para expandir a
experiência criativa e a construção de vida, de modos de existir e habitá-la. Através da prática
da escuta, da abertura para o diálogo, dos reordenamentos ampliados dos desejos individuais e
coletivos, dos pensamentos e vozes compartilhadas, da prática territorial do cuidado,
produzíamos abertura para a experiência poética, subjetiva e politizada. Aqui me coloco dentro
do “nós” porque como mediadora, pude também gozar dos benefícios que os encontros
promovem, em tantos termos de fortalecimento de si e do cuidado com o outro. Ler poesia, falar
sobre a vida, trocar, conversar, escrever, recitar, criar, filmar, fazer arte e promover vida foi
prática que gerou método de abordagem psicossocial, essencialmente ligada ao sensível, à
31

experienciação expandida da vida enquanto arte, enquanto tentativa de linguagem para fazer
sentido.
Aqui pensamos a experiência como algo que fora vivenciado, experimentado, e que
atravessara os corpos a ponto de transformá-los, de contaminá-los com a substância da própria
experienciação. O entendimento das práticas artísticas como experiência expandida é um
conceito-estratégia inaugurado por Rosalind Krauss (1979) e que nos respalda para revitalizar
a relação arte e vida, este defendido por Antonin Artaud (2006). A experiência expandida vem
nos mostrar que o campo de pertencimento de determinada linguagem não se faz mais suficiente
para caber aquela linguagem, ou que a forma de ação de algo determinado a partir de uma
leitura, uma perspectiva de leitura, já tornara-se insuficiente para ler este algo. Assim, as
fronteiras do fazer artístico deixam transbordar o que não pode mais estar contido em formas e
lugares estabelecidos, recolocando a cada aparição artística, a cada experiência estética, a cada
experimentação, o que se entendera e como se entendera até então uma linguagem definida,
seja ela poesia, teatro, pintura, vídeo, performance ou outras expressões.
O campo ampliado ou expandido devolve, assim, às práticas de arte, liberdade de re-
existir, transbordando da arte para a vida e instalando trânsitos que inventam e reinventam
outros recursos, diálogos e territórios, constantemente em movimento. Este fundamento se
encontra então com o entendimento de uma poesia que em si não seja somente a palavra escrita
ou oral, ou mesmo a própria literatura, mas um estado de vida, como nos traz os estudos de Paul
Zumthor (2007).
É na pauta dessa expansão de territórios que foi vivenciada a prática “Poesia é a nossa
estrutura”, onde os desejos, as invenções de realidades se fizeram matéria e não característica
delirante que apenas precisa ser contida, como nos discursos medicalizantes biomédicos. Uma
experiência de arte e saúde mental, essencialmente já requer que a lógica de abordagem seja
em território ampliado, porque inicialmente transgride os limites da saúde e da própria arte, que
também precisam ser revisitadas para fazerem caber suas muitas vozes. As narrativas
dissonantes são ferramentas políticas de afirmação de outras existências que se movem fora das
bordas, de narrativas que gritam e que precisam de respostas da vida, precisam se fazer caber
em si, na cultura e na sociedade.
Ao mesmo tempo, a saúde também afirma assim que precisa lançar mão de outros
diálogos para que sua demanda atenda à população. A experiência dos modelos
antimanicomiais explicita que o campo da saúde é insuficiente de recursos para atender aos seus
propósitos, requer uma ampliação do campo, requer a arte trabalhando lado-a-lado, percebe-se
insuficiente em vocabulário, repertório, tecnologias e ferramentas, em partilha epistemológica
32

e prática analítica. É a partir dessa insuficiência e da constatação de necessidade do campo


ampliado que se passou a pensar também na clínica ampliada, conceito que aqui pensamos
através de Marcus Vinícius Oliveira (2017) como um território clínico dilatado pela arte.
Neste sentido, “Poesia é a nossa estrutura” lança mão, através do recurso da linguagem
e dos campos expandidos, de possíveis, de construção de possibilidades de vida, de existências
que coexistam entre o diálogo e a negociação com os pactos sociais e os anseios pessoais.
Afinal, essa negociação não é necessária, existencialmente, para todas/os? Sim, e no caso do
nosso público da saúde mental, utilizamos da arte e da linguagem para fazê-lo. Exige de nós
muito recurso político para que o ambiente necessário seja desenvolvido, e muito recurso
artístico efetivo para que a transformação seja diariamente e paulatinamente exercida.

2.1 O Centro de Convivência: raiz forte num terreno fértil

A cada dia a gente dá um murro na sorte


(Naidna de Souza)

A Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte foi possível ser pensada muito em
decorrência das pautas conquistadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), que nasceu em
consequência da luta pela redemocratização da sociedade brasileira, no período final da
Ditadura Militar de 1964-1985. No campo da saúde, a resistência dos movimentos sociais se
manifestou no Movimento da Reforma Sanitária, o que resultou na incorporação dos princípios
de “integralidade, equidade e universalidade” na Constituição de 1988, que assegura uma saúde
pública, assistencial e de qualidade como direito a toda/o cidadã/ão e dever do Estado.
A potente movimentação política de trabalhadoras/es culminou também na conquista do
que hoje chamamos de “Humaniza SUS” ou “Política Nacional de Humanização – PNH”,
trazendo como central a discussão da humanização dos aparatos de atenção e gestão da saúde
pública e coletiva, com protagonismo dos sujeitos tanto em tratamento como trabalhadoras/es,
em comunhão com o estabelecimento de práticas do cuidado como modo de gerir o campo da
saúde, e ainda com a produção de saúde concomitante à produção de subjetividades. Em
decorrência de um cenário de luta já possibilitado por um Estado Democrático de Direito, com
Saúde Coletiva e Pública pensadas na pauta da humanização e com base comunitária, foram
abertos caminhos para hastear a bandeira “Por uma Sociedade sem Manicômios”,
reinvindicação inaugurada pelo MNLA.
33

Por “uma Sociedade sem Manicômios” entendemos uma sociedade livre da lógica
manicomial, hospitalocêntrica e asilar, que assim repensa seus aparatos de tratamento a partir
não da detenção de corpos, mas da reorganização deles. Uma sociedade que não se paute na
vigilância e punição pelo encarceramento, herdeiro da escravidão, mas que proponha programas
de reintegração e atendimento psicossocial, uma estrutura social que não acione a tortura e a
abjetificação como processos lucrativos e reordenadores de poder, a partir de violências
institucionalizadas, mas que entenda que tratar é sinônimo de atenção e cuidado, e não
necessariamente pressupõe a cura. Por fim, uma sociedade que não venda corpos, sujeitos e
subjetividades no mercado capitalista, coisifique a vida e viole os direitos humanos, que não
subjugue a pluralidade das existências com exclusões por raça, classe, gênero e suas decorrentes
segregações, uma sociedade que queira derrubar os muros físicos e também culturais que
representam a instituição manicomial e a represália pelo estigma da mente. Toda organização
que se posiciona socialmente contra o projeto excludente e potencializador de hierarquias
sociais punitivistas e fundamentalmente manicomiais é um movimento, em essência,
antimanicomial. A Luta Amtimanicomial é um projeto de sociedade.
O que veio a ser conhecido como MNLA teve início no final da década de 1970, com
as intensas mobilizações sociais nacionais, e foi na década de 1980 que promoveu uma ruptura
no campo da psiquiatria brasileira, ampliando do campo assistencial articuladamente também
para os campos técnico, político-jurídico, teórico-conceitual e sociocultural, como analisou
Paulo Amarante (1988).
A Política de Saúde Mental de Belo Horizonte nasceu desta dimensão ampliada da
Reforma Psiquiátrica, que articulou assistência, política pública e movimento social, na
inauguração de novos conceitos e experimentações da atenção à Saúde Mental, através de muito
debate ético, compreensão do próprio território e trocas com outros modelos e experiências,
como Trieste (Itália), Santos e Campinas (SP). Desde o final da década de 1980, BH se faz um
locus dos mais ativos representantes da Luta Antimanicomial no país, que somado às conquistas
do SUS nacional e local, ao alcance do poder público municipal pelos movimentos sociais
progressistas, à forte representação no Conselho Municipal de Saúde, possibilitou que em 1993
a Rede de Saúde Mental de base antimanicomial fosse implantada como política pública no
município, e mais ainda, fosse mantida em contraposição às imensas intempéries de governos
posteriores que promovem o sucateamento dos serviços por uma Contra-Reforma Psiquiátrica.
Aqui, é importante ressaltar a indispensável formação política das/os trabalhadoras/es,
usuárias/os e famílias da Rede de Saúde Mental do município, expressada sobretudo pelo
fortalecimento das entidades Fórum Mineiro de Saúde Mental (FMSM) e Associação dos
34

Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (ASSUSSAM), que se movimentam
cotidianamente para que cada pessoa envolvida na Política de Saúde Mental da cidade possa
responder pelos princípios base da Luta Antimanicomial, agigantando assim a mudança no
olhar sobre o paradigma cultural da loucura.

É preciso, sobretudo, retirar o projeto antimanicomial do lugar-comum em que muitos


colocam, tratando-o como algo quase que inofensivo, como projeto de simples
reorganização da assistência, mero rearranjo do poder secularmente estabelecido que
determina e mantêm os loucos nas periferias da vida, para reafirmar as conseqüências
deste empreendimento sobre o edifício teórico-prático da instituição psiquiátrica. (...)
é preciso dizer de maneira clara que este é um projeto revolucionário, e, enquanto tal,
não produzirá calmaria e consensos. A luta antimanicomial traz a público, coloca no
centro do debate, algo que o Ocidente, há mais de três séculos, tratou como
subterrâneo: a experiência da loucura e a relação da sociedade com a mesma. Desde
sua captura pelo saber médico, a loucura foi condenada a viver anonimamente, a não
existir publicamente. Contrariando a norma, o projeto antimanicomial rompe com o
anonimato, abre espaços para a voz dos loucos, que falam em nome próprio e se
apresentam publicamente em defesa de uma causa que inventa um outro destino para
os que não integram o universo da razão. À tirania da razão, opõe a solidariedade e o
compromisso ético de recusa a todas as formas de violência, silenciamento e exclusão
das subjetividades. E, à imposição da norma, como recurso de construção da paz
pública, contrapõem-se a alegria e a inquietação da invenção de formas de vida que
recusam a ditadura da igualdade como saída. (ABOU-YD, 2007, p. 53).

É da alçada dos movimentos da Luta Antimanicomial portanto, agir cotidianamente na


restituição de direitos civis e sociais, atrelados às garantias de vida e saúde, ao passo em que
sendo “balizadores éticos (d)a defesa do direito à liberdade e à cidadania” e ativadores de
alargamentos do diálogo com as comunidades e população, entendendo a importância da
participação social na compreensão do lugar social da loucura, promovendo “uma intervenção
sobre a cultura de modo a criar espaços e possibilidades para fazer caber a diferença”, como
explica Míriam Abou-Yd (2007).
Na perspectiva dos enlaces com a sociedade e a vida, é que o Centro de Convivência
nasce, em resposta a um chão brasileiro que negou historicamente a experiência da loucura e a
presença da/o “louca/o”. Lidar com o espaço sem pertença, que historicamente enxotou o
sujeito da loucura para as quinas do espaço público, é tentar construir outros territórios para
existir e habitar. A realidade revolucionariamente conquistada dos Centros de Convivência em
Belo Horizonte vem determinar novos lugares para a loucura, descentralizando suas forças e
recursos, e manejando uma convivência comunitária que esteja presente em todas as regionais
da cidade. Assim, a cidade planejada pela razão moderna, Belo Horizonte, é relocada por outras
razões que a (re)territorializam, fazendo caber o incabível, as presenças da loucura.
Existem 9 Centros de Convivência em BH, posicionados em cada uma das regionais
geopolíticas municipais, reinserindo o sujeito social na vida comunitária, na cidade como
espaço público a ser ocupado pela multiplicidade das experiências. Os CCs tecem a Rede de
35

Saúde Mental substitutiva aos manicômios, como dispositivos estratégicos de disputas de


poderes e lugares sociais, de fala e discursos, e produção de cidadanias possíveis, integrado
atualmente ao que chamamos de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ainda junto dos Centros
de Referência em Saúde Mental (CERSAM, análogo ao CAPS) para atendimento das urgências,
acompanhamento clínico e terapêutico, das Equipes de Saúde Mental presentes nas Unidades
Básicas de Saúde (UBS), integrada ao Programa de Saúde da Família (PSF), das Residências
Terapêuticas que recebem os egressos de Hospitais Psiquiátricos que depois de anos de
internação e isolamento já não têm mais vínculos familiares, e da experiência de economia
criativa e solidária através da geração de trabalho e renda (Incubadora Suricato).
O sujeito chega ao Centro de Convivência encaminhado pelo CERSAM ou pela equipe
do PSF que o acompanha na sua UBS de referência. Este encaminhamento é feito baseado no
seu projeto terapêutico, feito pela equipe multiprofissional que o acompanha e quando
necessário, discutido nas supervisões psicanalíticas e reuniões territoriais das microáreas da
cidade. A gerência do CC, habitualmente um/a profissional da psicologia, terapia ocupacional
ou assistência social, entrevista este sujeito recém chegado, a fim de o acolher e traçar junto
dele o plano de oficinas de criação do seu interesse. A partir dali o sujeito experimenta as
oficinas nas quais foi cadastrado, podendo alterá-las. O pacto necessário para mantê-lo
enquanto frequentador do CC é que esteja em tratamento frequente na RAPS.
A equipe do CC é composta por esta gerência, mediadores das oficinas com formações
diversas em artes, ainda conta com auxiliar administrativo, serviços gerais e porteiro.

As oficinas, espaços de experimentação, de criação, convívio e trocas, são as


organizadoras do cotidiano do serviço, tendo a arte como eixo orientador. Os artistas
e artesãos, profissionais que coordenam estas oficinas, são os facilitadores que
motivam e provocam o potencial criativo dos usuários, não com a pretensão de formar
artistas, mas de possibilitar a criação de novos repertórios expressivos, explorar novas
fronteiras, transformando vidas. (NOVAES; ZACCHÉ; SOARES, 2008, p.163-164).

O CC funciona na prática como um espaço de criação, as oficinas são também


motivacionais, muitas vezes tanto quanto as conversas na varanda na hora do cafezinho, onde
surge um projeto, uma ideia para ser desenvolvida, que inclusive pode utilizar de recursos e
atores de oficinas distintas. O que se estabelece no Centro de Convivência a partir da
experiência das oficinas e das outras atividades integradas é uma atmosfera que propicia a
criação, o brotar e o desenvolver de ideias que movimentam a existência de outros modos,
desvinculado da doença e pautando o cotidiano na produção de vida.
Além das oficinas, os sujeitos são ali inseridos em outras atividades culturais como
visitas a exposições, cinema, teatro e atividades de lazer, como futebol e atividades físicas, além
36

de assembleias e festas comemorativas dentro do serviço, estabelecendo potencialidades


relacionais entre os convivas do CC e a cidade. Ainda são desenvolvidas outras práticas
integrativas entre os nove Centros de Convivência e a sociedade, que fortalecem tanto o serviço
enquanto construção de rede e trocas, como a própria abertura social e empatia da cultura local
para a experiência da loucura e as possibilidades do cuidado em liberdade. Na tomada do que
as autoras acima chamaram de “gerenciamento da vida”, aportando à arte essa possibilidade
conquistada pelos sujeitos no cotidiano dos CCs, é afirmada a relação arte e vida que aqui já
defendemos como a transgressão da poesia como modos de existir, acolhendo as subjetividades
e até mesmo as estranhezas de cada um/a, na lida das singularidades dentro do espaço da
coletividade,

um lugar de reinvenção cotidiana de suas práticas e da descoberta de possibilidades


de vida. (...) Sensibilidade e escuta são palavras que estão presentes no cotidiano desse
dispositivo – lugar onde se convive abertamente com a loucura, onde as histórias e,
muitas vezes, os absurdos das mesmas são abordadas no coletivo, compartilhando
dúvidas e soluções, medos e decisões. (NOVAES; ZACCHÉ; SOARES, 2008, p.164).

Ao exercer as práticas dos Centros de Convivência no cotidiano da cidade, o que se


transforma não são apenas os sujeitos convivas, mas as relações da cidade com a presença da
loucura e dos corpos que passam a trafegar pelas ruas com um poderio novo de si, impregnado
de uma existência que já se move diferente, emancipada em si mesma e das causas que a
movimentam, a/o pessoa lida como louca/o passa a ser um corpo político em movimento. A
sociedade então se questiona em relação às noções arraigadas historicamente no fabricado
imaginário coletivo, sobre a periculosidade da loucura e a necessidade de afastamento,
isolamento ou extermínio, chegando inclusive a poder questionar a legitimidade dos hospícios,
realidade que antes lhe parecera justificável e fora normalizada, causando agora uma certa
consciência cultural e política com alguma hegemonia no município. É necessário ressalvar que
tudo isso é feito processualmente, através de pequenas doses cotidianas que podem demonstrar
a longo prazo mais efetividade em tais transformações. Não nos iludimos com uma leitura
romântica a respeito das mudanças geradas por este trabalho, mas compreendemos sim que o
se trata de uma construção, de transformações processuais. Os Centros de Convivência, assim,
inauguram

(...) enfim, um lugar onde se produz vetores das relações sociais, que vão resultar nas
mudanças visíveis quanto à “melhora” dos sujeitos – nas suas relações familiares, na
ampliação da sua rede de amizades, na sua preocupação com a continuidade do
tratamento, no aumento da capacidade contratual, no raio de circulação das pessoas
que dele se beneficiam. (NOVAES; ZACCHÉ; SOARES, 2008, p.164).
37

Desta forma, propor trocas e decisões compartilhadas como pacto cotidiano na


abordagem à saúde mental produzem formação política e emancipação, conquistas preciosas
para uma construção antimanicomial e cidadã. A permanência viva dos Centro de Convivência
e as movências de consciências e paradigmas que estes impulsionam, afirmam assim a urgência
de se pensar a arte como dispositivo indispensável para as políticas antimanicomiais, pela sua
capacidade de transformações individuais e coletivas, pela partilha que inaugura como
alargamento das possibilidades de existir.
Ao contrário à hegemonia do discurso psiquiátrico que se ocupa da loucura, da
supremacia da doença e do paradigma da cura, os dispositivos substitutivos se ocupam da/o
sujeita/o, da loucura como experiência de alteridade, produtora de singularidades e
complexidades individuais. Porque pensa o sujeito para além da clínica, a ideia do Centro de
Convivência se inscreve em apresentar maior repertório de vida onde este possa trafegar,
produzir sentido para o campo existencial, relacional e cultural, suas experiências de vida. Já
que criar, se relacionar, pensar, sentir, inventar são primordiais para a subjetividade humana,
para a existência em si, estes recursos facilitariam uma vinculação com a vida e com a produção
de sentidos, através do estabelecimento de um “estado de poesia” (Chico César, 2015).
Aqui é preciso afirmar também que quando exaltamos a arte, não como ferramenta mas
como finalidade em si de oferta de vida, não estamos negando que concomitante a ela
permaneça o tratamento clínico da saúde mental, pois é imprenscindível que os Centros de
Atenção Psicossocial (CAPS), as equipes de PSF e demais dispositivos da Rede funcionem nas
suas especialidades, tecendo esta rede de acolhimento aos corpos em sofrimento mental,
sofrimentos que existem e que não dependem somente da arte para o seu trato, mas de uma
clínica que abarque o encontro indelével da arte com a saúde mental. A articulação em Rede,
no fortalecimento das potencialidades de cada dispositivo, é que faz da nossa estratégia de ação
social um movimento revolucionário. Há, portanto,

(...) uma espécie de “consciência elementar”, de que se não oferecermos resposta aos
casos graves e às crises, enveredamos por um caminho através do qual os dispositivos
da Reforma acabam se tornando satélites sem vida e impotentes, gravitando em torno
do hospício, justificando-se, assim, a sua existência prática e ideológica.” (SOUZA,
2008, p. 113).

Polípio Souza (2008) nos traz essa reflexão para pensarmos que a atenção nos manejos
de uma Rede que contrapõe o hospício deve ser diária, na vigília que garanta a resistência em
movimento de melhoramento das práticas antimanicomiais, para que a invenção destas práticas
perdure seus respaldos e continue operando insistências em existir. Se faz cada vez mais nítido
que a política antimanicomial é um processo transgressor aos padrões hegemônicos da
38

abordagem ao sujeito em sofrimento mental, complexo em si mesmo justamente por dever


alteração na epistemologia, cultura e nos costumes sociais criados pelos poderes, exigindo
portanto que todos os dispositivos estratégicos desta Rede funcionem com integridade e
cumprimento dos princípios antimanicomiais que a constituem, para que se afinque sua
permanência enquanto política pública e garantia de direitos.
Ao mesmo tempo, precisamos garantir que a Instituição Inventada, termo cunhado por
Franco Rotelli (1988), ou seja, a clínica substitutiva proposta pela e para a derrubada dos muros
paradigmáticos, também instaure a derrubada dos “muros manicomiais epistemológicos”,
quando a instituição que questionamos não é somente o manicômio físico, mas o manicômio
sociocultural, por isto a cada dia do estabelecimento do cotidiano antimanicomial nós
precisamos dar um murro na sorte, dialogando com Naida de Souza. Esta Instituição Inventada
exige que possamos também construir nossos métodos a partir da invenção de “um outro modo
e a criação de oportunidades, (...) em um processo de singularização e ressingularização”
(ROTELLI, 1988, p. 2.), criando possibilidades e probabilidades de inventar outros modos de
viver, por isto os serviços substitutivos aos manicômios devem entrar com toda força no
“território das engenharias culturais, se fazendo motores de sociabilidade” (ROTELLI, 1988,
p. 2.), subvertendo as cotidianas opressões através de trocas plurais exercidas também pelas
linguagens artísticas. Se trata de inventar uma clínica do cuidado oposta à violência, da criação
oposta à inutilidade, da emancipação oposta à imposição da cura, da singularização oposta à
coisificação, da relação social oposta ao isolamento, da cultura da diferença oposta à moralidade
e à punição.

2.2 O cotidiano do pano azul, em uma estrutura viva

A nossa vivência poética


É dar sentido às palavras
Que vêm do pensamento
E oferecer ao mundo a nossa poesia
O poema é como o pensamento
Que vai e volta a todo momento
Porque a palavra é sábia
E tem o poder de romper
o universo do pensamento
(Rui Nonato)

O trabalho com arte e saúde mental proposto pela política de Saúde Mental de Belo
Horizonte, através sobretudo dos Centros de Convivência, se constrói essencialmente
diferenciado quando ultrapassa muitas das expectativas do esperado enquanto mais um recurso
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da Rede de Saúde Mental, e mostra exemplos do quão essencial, indispensável e transformadora


pode ser a arte para a realidade de um sujeito e da sua família. Muitos testemunhos e estudos
de casos feitos nas reuniões de micro-áreas e supervisões das regionais da Rede, nos quais não
estamos autorizados a compartilhar aqui por motivo ético já pautado, apontam para o trabalho
das artes e o dispositivo Centro de Convivência como um pilar na abordagem ao sujeito em
sofrimento mental.
Um destes testemunhos dados então durante a experiência “Poesia é a nossa estrutura”
foi feito por Deolindo de Campos, autor do poema a seguir:

Cuia na cabeça
Cuia de sofrimento
Eu não sabia
que um dia a cuia cairia
e meus olhos brilhariam
(Deolindo de Campos)

Após a leitura deste poema, Deolindo de Campos relatou que sobre sua cabeça ficava
presa uma cuia e que um dia, ao acordar, olhou para o chão e a cuia estava caída, derrubada.
Foi assim que entendeu que não deixou de sofrer, mas que agora se sentia mais forte para lidar
com o seu sofrimento. Na seção Pesquei um poema na sua boca, ele ainda explica: “Antes eu
tinha medo, agora a poesia me fez perder isso. Se for falar do medo agora falo com mais
coragem”.
A efetividade do trabalho dos CCs se faz tão nítida que nos dá a possibilidade de
pensarmos no sujeito em recuperação da sua autonomia, sendo possível construir sua vida sem
o alicerce diário da Rede de Saúde Mental, ou seja, mantendo a Rede como suporte, mas sem a
necessidade da frequência diária aos seus dispositivos. Assim aconteceu, por exemplo, com um
membro do grupo, Antônio Eustáquio, que através de uma parceria da Política de Saúde Mental
do município com uma empresa, foi contratado com carteira assinada e passou a participar
apenas das apresentações e ensaios dos grupos de arte do CCProv nos quais integrava. Antônio
dentro do grupo “Poesia é a nossa estrutura” ditava sutilmente o tom das conversas, mediava as
euforias, abrandava os dias de chuva, e nos ensinava com sua concepção coletiva de poesia:

Poema pode ser


de grande utilidade para conviver
na certeza de cada momento
que podemos refletir
com vasta memória
Com o poema estamos sempre juntos
(Antônio Eustáquio)
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Essa coletividade representa um dos elementos mais caros e importantes no trabalho


com a saúde mental, não somente com o grupo em questão. A construção coletiva e o
envolvimento de cada ator(a), conviva ou funcionária/o da Rede de Saúde Mental, se faz
imprescindível para que seja possível executarmos uma política inclusiva, democrática, com
garantia de direitos, construção de arte e cidadania, que trabalhe na contramão das imposições
provocadas pelo sistema manicomialista representado pelos biopoderes.
Não podemos nos esquecer que o fato de existir uma política pública ou um programa
que tenha sido estabelecido através de uma luta social traz a todas/os as/os envolvidas/os a
responsabilidade diária do seu resistente funcionamento, do cumprimento da sua missão social,
mas mais ainda, da efetividade da sua prática em sintonia com as ideias da luta que a motivou
e efetivou. E esse trabalho não é fácil, é exigente, e requer que diariamente estejam suas/sues
atoras/es inteiros para as atividades, sobretudo quem o executa nas bases, como as mediações.
Na perspectiva de instauração de um cotidiano de acolhimento, fortalecimento mútuo,
poesia e criação, que extrapola a lógica da doença e do seu duplo, a cura, o grupo “Poesia é a
nossa estrutura” se estabeleceu em sua própria fortaleza. Embora nossas armas se pareçam
frágeis e lânguidas, produzimos, em contraponto ao sofrimento, a mais forte e movente de todas
as armas, aquela que mantém nossos corpos sustentados e resistentes feito árvore, produzimos
substancialmente subjetividade, modos de vida, fundamento, seiva bruta, recursos vitais,
desmantelamento da ordem que extermina. Nossos recursos artísticos, poéticos e relacionais
utilizados por dispositivos de atendimento e mediações humanizadas, nas perspectivas do
acesso, acolhimento e produção de encontros e vínculos, desenvolve tecnologia leve,
autonomização e gestão, como sugerido por Emerson Merhy (2003). Assim, estes recursos
devem ser relacionados às demais tecnologias já estabelecidas e reestruturadas, para que se
sustente a construção de um projeto mais humano de intervenção psicossocial na saúde,
sociedade e cultura, também por isso a importância do encontro definitivo entre a saúde e arte,
e do trabalho estratégico dos dispositivos em rede.
Neste sentido, nossa prática e convivência poética também é uma prática de acolhimento
em si mesma, quando propõe o compartilhamento e produção de subjetividades e a construção
a partir de trocas substanciais. A experiência coletiva da poesia também se trata de uma prática
do cuidado, quando toca com tato as dimensões individuais e coletivas do pensamento e das
emoções, quando partilha criações e invenções, quando constrói política de resistência em
coletividade, quando faz o sujeito se empoderar da sua importância no mundo, ampliando
universos e produzindo sentido para o exercício de viver. Nesta perspectiva, convocamos os
olhares vivos, os sentidos atentos, o envolvimento e importância com o outro, o interesse na
41

atmosfera que se inscreve a vivência, o desenvolvimento de pensamento, crítica, episteme,


partilha e pertencimento.
E como isso foi construído? Escolhemos nosso ambiente sobre o pano azul marinho
estendido debaixo da árvore no quintal do CCProv (Imagem 3), porque entendemos que ali, em
contato com a natureza, com a sombra da árvore, o vento que batia fresco, os passarinhos
correndo vento, a casa da coruja vizinha da árvore, poderíamos ter um ambiente mais acolhedor
para pensar poesia. Queríamos sair das paredes de concreto e dos assentos duros para vivenciar
outras possibilidades de criar, pensar e trocar. Não fomos as/os primeiras/os a compreender que
o ambiente em contato com a natureza facilita a criação, o ensino, a aprendizagem, o diálogo,
o desenvolvimento da mente, emoções e relações, isto já nos foi ensinado tanto por pintores
modernos como Monet, Manet, Seurat, aqui no Brasil sobretudo por Alberto da Veiga
Guignard, quanto pelo desenvolvimento do aprendizado proposto por Paulo Freire.
Cada um(a) também enriquecia com sua singularidade nossa convivência e experiência
poética coletiva. Cada um(a) portava um caderno de bolso que deveria acompanhá-la(o)
diariamente, contribuindo para que a poesia estivesse presente no seu cotidiano. Nos nossos
encontros essas anotações, anedotas, poesias ou ideias eram compartilhadas com o grupo.
Podiam dizer sobre medos, receios, aflições, angústias em relação à alguma situação vivida ou
despertada, ou sobre as relações com os outros:

Eu e o outro
Porque é o outro e eu
Porque é eu e o outro
Que pense eu no outro
(Deolindo de Campos)

Como também podia dizer sobre a própria poesia, a satisfação de estar envolvida/o com
a arte e a linguagem, e a constatação das transformações subjetivas advindas deste
envolvimento. Eram recorrentes, assim, poemas metalinguísticos:

A poesia já existia
Antes da imaginação
nas palavras ditas com emoção
Até antes da escrita
Estamos abertos todos os dias
A rimas e afirmações
ditas no dia-a-dia
das sabedorias vividas
(Adélcio)

Nesse processo de trocas e conversas, como mediadora, eu levava alguns livros de


poetas que julgava serem importantes para o nosso diálogo, por abordar temas ou tônicas
relacionadas à nossa vivência, ou pela forma de escrever que poderia servir à algum(a) das/os
42

convivas. Ana Cristina César, Hilda Hilst, Manoel de Barros, Roberto Piva, Waly Salomão,
Thiago de Mello, Adão Ventura, Renato Negrão, Mariana de Matos, Manuel Lua-Cheia (meu
próprio pseudônimo) e etc. Além destas/es, outros poetas convivas que já tinham uma trajetória
mais sólida com o fazer poético, por já terem lançado livros e participado de compilações, e
que significavam motivação e referência para essa vivência, Frederico Eymard e Valtinho
Folha-Sêca (vinculados então ao Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário e Suricato,
respectivamente). Visitávamos, portanto, os trabalhos de poetas diferentes em
contemporaneidades, formas da escrita, abordagem temática, mas que tinham em comum a
transgressão da existência, da narrativa e da língua. Apresentar sua poesia e dizer um pouco
sobre a/o poeta era sempre muito produtivo, os convivas queriam escolher um poema para ler
pro grupo e discutir com o grupo, e não me lembro de algum(a) leitura dessas que não tenha
gerado alimento e motivação para escrever. É importante compartilhar a percepção de quanto
esse público da saúde mental se envolve com as atividades criadoras, o quanto dão importância
para as partilhas criativas, para as atividades propostas e o quanto o contato com outros
trabalhos sempre gera criação e produtividade.
Depois dos momentos de escrita, tínhamos os momentos de leitura, de cada um(a)
apresentar para a coletividade o que tinha feito. Neste momento as trocas também eram muito
ricas e transbordavam os tabus da autoria, quando um(a) podia devolver pra/o outra/o: “acho
que você deveria melhorar essa parte”, “acho que isso aqui que você escreveu não é bem assim,
precisamos conversar sobre isso”. E quando os poemas já estavam mais bem definidos,
escolhíamos os que seriam filmados.
A partir daí entrava a concepção de imagem, cena, som, câmera, gesto, o universo da
visualidade, plástica e audiovisual. Imersas/os na atmosfera criativa, cada autor do verso já
tinha a ideia de como deveria ser a cena, a fotografia, se teria personagem ou filmaríamos um
elemento, a performance no caso da(s)/o(s) personagem(ns), o recorte da cena, definição de
cena parada ou móvel, quem filmaria, quem seria o narrador, se captaríamos algum outro som
além da própria leitura, e outros recursos que poderíamos dispor ou inventar. Todas/os
opinavam e o momento da gravação também era outra dinâmica bem interessante, tanto em
relação a quantidade de takes necessários de acordo com a concentração e sintonia de todas/os
envolvidas/os na cena, quanto quando concluíamos e íamos assistir a versão final. Era uma
verdadeira diversão, mas também criticamente comprometida com o trabalho ali desenvolvido.

Cena
Em plena cena
não há problema
não há dilema
43

me meto a cara
coração dispara
sempre tem fala
coração não cala
(Roseli R. Lapa)

A experiência deste grupo contribuiu para a construção de narrativa pessoal e coletiva,


para o reconhecimento de si e para a produção de devir, para o diálogo e o encontro, auxiliando
também o campo relacional e a possibilidade da criação definidora do seu lugar no mundo.
Estar excluído do encontro consigo, com a/o outra/o e com a arte corrói as possibilidades de
construir repertórios subjetivos para viver. É demonstrado, através da experiência deste grupo
e de outras vivências, o quão vital é o encontro entre as práticas artísticas e a saúde mental,
gerenciado por uma política antimanicomial.
A experiência “Poesia é a nossa estrutura” partiu de uma metodologia experimental
ditada e dilatada sobretudo pela sensibilidade de captar a matéria dos instantes para construir
propostas coletivas, colocando interesse em todo elemento que pudesse produzir partilha. Para
tanto foi preciso ter escuta, apostar nas subjetivações como suspensão de realidades, ampliar os
sentidos, o pensamento e os objetos, dar cama para que fluíssem ideias, ainda que
desorganizadas, entendendo que o sumo que alimenta e nutre uma lógica criativa
antimanicomial é a vida e sua urgência, a valoração de outras razões, saberes e partilhas.
Lidar com as histórias que cada um traz na mochila que carrega nas costas, e as mudas
de roupa que quer dividir com os pares e aliadas/os, roupas que por vezes não esquentam o frio,
ou fazem queimar no calor, é um constante despir-se do óbvio para acessar o próximo, para
aceitá-lo e poder dançar com ele a sua dança, que talvez seja a música mais bonita que você irá
ouvir, por mais que porte uma dúvida fabricada sobre isto. Assim, nossa construção sem método
pré-imposto, nascida e transcrita pela liberdade conquistada, essencialmente antimanicomial,
traçada pelas mãos da arte e da experiência da loucura, utiliza do acaso criativo como forma
analítica de expansão, porque todo elemento sincero, vindo da partilha da recriação de vida,
aqui é matéria de construção poética, analítica e metodológica para uma prática antimanicomial.
Muito do que temos são ranhuras da existência que estamos construindo, deixando falar as
vozes, ouvindo-as com atenção, inscrevendo, acolhendo e valorizando narrativas, ressaltando a
possibilidade de outras razões, métodos e saberes, que produzem outras estéticas, poéticas e
línguas. Simplesmente porque, aquém das supressões que tentaram emudecer as vozes em todas
as cabeças, a poesia pode ser seus modos de existir, sua estrutura.
44

2.3 O livro, o vídeo e outros frutos

Aprendi com a poesia que ao invés de destruir,


eu posso construir
(Cris Gomes)

A vivência “Poesia é a nossa estrutura” moveu vidas, transformou o lidar das dores
através da poesia, fez criar re-existências, refez asas, através do acolhimento, envolvimento,
cuidado, partilha afetiva, construção coletiva e criação. A poesia transforma, como afirmaram
os próprios poetas convivas:

A poesia nos permite viajar e


experimentar nossos sonhos e desejos
Nos faz livres para ultrapassar
Superar e aniquilar
os medos que por vezes nos faz
deixar de sonhar e conquistar
(Adélcio)

Poema pode ser


de grande utilidade para conviver
na certeza de cada momento
que podemos refletir
com vasta memória
Com o poema estamos sempre juntos
(Antônio Eustáquio)

Os poemas contidos no livro e no vídeo-poema foram selecionados pelo grupo, a partir


do material reunido durante 1 ano da vivência. Para o livro, escolhemos um número de poemas
proporcional à produção de cada um(a) das/os autoras/es. Foi feita uma sequência baseada no
processo de trabalho e discussões, juntamente com a escolha minuciosa da tipografia e
diagramação que comporia mais singularmente cada poema. Na capa (Imagem 4) foi
desenvolvida uma xilogravura do Jorge, desenhista, também conviva do dispositivo Centro de
Convivência Providência e morador de uma Residência Terapêutica da Rede de Saúde Mental
de Belo Horizonte. O custeio foi feito com verba independente do próprio CCProv, sem
financiamentos ou subsídios, com a primeira tiragem de 100 cópias, já esgotadas. O CCProv
ainda pretende fazer nova tiragem física e também disponibilizar o livro online para download.
O vídeo-poema experimental média metragem (Imagem 5), também homônimo ao
grupo, foi gravado durante um ano de duração das oficinas. As cenas foram construídas a partir
do roteiro da/o autora/o do poema com sugestões do grupo, de forma natural, harmônica e
orgânica. As cenas duram o tempo do poema e sua performance, se modificam em acordo com
a colocação discursiva de cada autor-performer, diferentes tons, cadências, entonações,
45

humores e ranhuras. Como na compilação, foi também seguido um roteiro baseado no processo
de vivência. A edição manteve quase toda a captação na íntegra, optamos por conservar as
marcas estéticas e sonoras de uma produção audiovisual feita de forma caseira, com câmeras
de poucos recursos, deixando um aspecto nada maquiado. Assim como o livro, o vídeo-poema
ainda deverá ser disponibilizado para assistir online.
A noite de lançamento (Imagens 6 e 7) foi realizada no Espaço Suricato, uma iniciativa
independente, nascida da associação de artistas e usuárias/os da Rede de Saúde Mental de BH,
que, desde a década de 1990 organizaram sua produção artística para além do Centro de
Convivência São Paulo, onde a iniciativa nasceu. Se construíram a partir de quatro principais
núcleos de produção de Economia Criativa e Solidária e Geração de Renda: carpintaria,
mosaico, bordado e gastronomia. Nos anos 2010, conquistaram um espaço cultural físico, que
abriga atualmente manifestações artísticas e culturais, com bar e restaurante, e um showroom
dos produtos dos núcleos, que têm seus ateliers em espaços físicos outros. O Espaço Suricato
tem sido uma importante casa de cultura do município da capital mineira, uma referência que
tem contribuído para o fortalecimento da cena cultural e de grupos artísticos. Sobretudo, tem
posto a vida cultural para lidar de perto com a diferença, com a experiência e desestigmatização
da loucura e da figura do louco, quando os componentes da equipe do espaço, em sua maioria,
são convivas em tratamento na Rede de Saúde Mental. A experiência da Suricato é das mais
importantes e relevantes para se pensar sobre a relação da arte com a loucura, sobre
desinstitucionalização, ocupação da cidade, economia criativa e solidária e geração de renda.
Se faz como uma experiência modelo, tanto nacional quanto internacionalmente.
Como todo evento na Suricato, a loucura não se faz motivo para segregar, mas mote
para a liberdade de existir singularmente, unindo diálogos, afetos, celebrações. Se ver e ver seu
ente deslocado do lugar lido e insistido como doença, contravenção e periculosidade para o
lugar da sensibilidade, subjetividade e reconhecimento foi o que significou a noite de
lançamento de Poesia é a nossa estrutura (livro e vídeo-poema), que recebeu um vasto público,
contando com as famílias das/os autoras/es, amigas/os, parceiras/os, público da arte e cativas/os
do próprio espaço.
Outras experiências com práticas artísticas em dispositivos de saúde mental, por todo o
território nacional e inclusive no município de Belo Horizonte/MG, têm apresentado resultados
significativos no que confere à ressocialização do sujeito, reinserção social, manutenção de
vínculos, e têm trazido resultados ainda de descobertas de habilidades artísticas, continuidade
de trabalho no mercado cultural, além do efeito terapêutico que não é o fim da atividade artística
46

assim proposta, mas se torna consequência na medida em que agrega a possibilidade de um


outro lidar mais possível com a vida e consigo mesmo.
O próprio deslocamento de leitura de si enquanto usuária/o de um serviço de saúde
mental para um(a) trabalhador(a) da cultura, um(a) artista, traz consigo inúmeros efeitos sobre
a autoestima, o autocuidado e uma maior possibilidade de enfrentamento das vicissitudes da
vida. Quanto mais investimento do poder público em modelos assistenciais que se provam
efetivos para usuárias/os dos serviços de saúde mental e suas famílias, uma maior abrangência
de público poderemos alcançar, contribuindo também de forma singular e transformadora para
a revisão de paradigmas sociais interpostos pela exclusão.
Incluir é o trabalho de viés democrático da arte, como ferramenta de emancipação do
sujeito. Desinstitucionalizar é um trabalho extramuros físicos e intramuros sociais, como
sugeriu Franco Rotelli (1988). Trabahadores da Luta Antimanicomial por todo o território
nacional já se mostraram dispostos e têm proposto tecnologias e recursos relacionais, estéticos
e multidisciplinares, como ferramentas emancipatórias para a execução das práticas
antimanicomiais. Devemos partir da emancipação de sujeitos que já não podem mais se calar,
apoiando-as/os nesse movimento gradual de se reorganizarem e se (re)inscreverem na vida e na
produção de devir, para ao mesmo tempo refazerem suas asas criadoras e seu firmamento.
47

3 LUTA: PARA ALÉM DOS MUROS

Eu nasci para libertar


(Naidna de Souza)

“Luta” é a seção que fundamenta “Árvore”. Aqui, propomos dialogar com quem
construiu a realidade antimanicomial que temos hoje, uma itinerância na fronteira da saúde
mental antimanicomial e da arte. Na seção “Árvore” apresentamos os atores da vivência “Poesia
é a nossa estrutura”, em “Luta” apresentaremos alguns atores emblemáticos e acontecimentos
definitivos para o processo de luta e conquistas das políticas antimanicomiais. Nos interessa
aqui um trânsito por experiências emblemáticas sobretudo como referências para a Rede de
Saúde Mental de Belo Horizonte, que causaram marcas imperecíveis tanto em relação à
estruturação fundante da construção dos manicômios, quanto ao nascedouro das políticas e
experiências de resistência em arte e saúde, que possibilitaram com que corpos destinados pelo
projeto manicomial ao aniquilamento físico e subjetivo, estivessem hoje em tentativa de
suspenção de si mesmos e das suas relações de vida, concomitante às propostas de mudanças
de paradigmas reivindicados à sociedade.
A seção “Luta” se faz concepção para a existência da seção “Árvore” e suas narrativas,
por isto dialogamos com experiências outras que marcaram o cerne da nossa natureza, para
demonstrar que a vivência “Poesia é a nossa estrutura” tem raiz forte, que brotou de uma terra
afagada e regada por desejos de justiças sociais e direitos humanos. Portanto é preciso
reconhecer o plantio, perpetuar o afago da terra, e fazer brotar constantemente enquanto
alimento reconstrutor de re-existências e forças vitais.
A Luta à qual nos reportamos aqui fora traçada no cruzo entre arte e saúde como política
de re-existências e encontros de possibilidades de vida, a partir de um movimento de reação à
supressão histórica de corpos e narrativas pelo projeto manicomialista. Da metade do século
XIX para o início do século XX, a organização psiquiátrica estava se consolidando, se
adentrando às instituições hospitalares e se tornando uma especialidade médica autônoma.
Desde esta gênese até os anos 1920 - 1930, período em que passou a ter mais impacto social, é
ditadora a influência da interpretação biologizante proposta pela psiquiatria organicista alemã,
que diretamente relacionada ao nazismo alemão, acreditava poder explicar e controlar o
funcionamento das instituições sociais, família e Estado, e exterminar o diferente do padrão
ariano, segundo Jurandir Freire Costa (2007).
48

A ideologia eugenista brasileira, herdeira do nazismo, foi defendida também pela


psiquiatria ortodoxa através da chamada “prevenção eugênica”, ação psiquiátrica que consistia
em ações de controle social, para dar manutenção à exclusão social racializada, através da Liga
Brasileira de Higiene Mental (LBHM). O biologismo eugênico se queria científico, mas, na
verdade, carregara ideologia moralista e fundamentalmente fascista, na qual aos alvos da clínica
psiquiátrica destinava-se uma intervenção preventiva antes do aparecimento dos sinais clínicos.
Essa prática resultara nas ações psiquiátricas ao indivíduo “normal”, para preveni-lo em um
estado chamado “pré-patogênico”, e também para prevenir a sociedade de um mal que poderia
acometê-lo.
Assim, as ações psiquiátricas extrapolaram as instituições hospitalares para agir nas
escolas, em outros meios de trabalho e na vida cotidiana, invadindo o campo social através das
práticas de higiene mental. A partir da ordem de uma psiquiatria eugenista e higienista
concubina de um controle social racializado, foram suspensos os muros das primeiras colônias,
albergues, manicômios e hospícios para isolar “loucos”, “degenerados”, “incapazes”,
“criminosos”, “anormais”, “mulheres de vida fácil”, “bêbados”, sujeitos julgados pelos
biopoderes como contaminadores morais da parte sã e produtiva da sociedade, como nos trouxe
Michel Foucault (1972). Estas instituições inicialmente recebiam subsídios federais e ajuda
filantrópica, e mais tarde receberam também forte investimento privado, tornando-se uma
máquina lucrativa da relação psiquiátrica público-privado.

Os psiquiatras da Liga se propunham criar uma sociedade nova impondo normas de


saúde mental e comportamento social. E, quando consideravam que uma determinada
herança cultural, psíquica e biológica, se mostrava rebelde a se converter a norma, o
remédio proposto era a sua extinção. (...) se diziam apóstolos da higiene mental,
referiam-se às suas campanhas eugênicas chamando-as de cruzadas e, por vezes,
comparavam suas mensagens eugênicas às mensagens evangélicas. (COSTA, 2007,
p.102).

O médico psiquiatra se tornou o sacerdote do espírito, respaldado não somente pelas


instituições estatais que demandaram sua política eugênica muito bem assimilada, mas também
por uma das instituições mais influentes na ordem social: a Igreja Católica. Se estabeleceu assim
o interesse entre a psiquiatria, o controle social eugênico pelo Estado e pelas demais instituições
de poder, incluindo a Igreja, através de uma ideologia essencialmente racializada e de princípios
atavicamente fascistas, respaldando as “cruzadas eugênicas”.
Neste período, Nina Rodrigues publicou textos sobre o ideário eugenista e dedicou a
Cesare Lombroso, criminalista e psiquiatra italiano que influenciou a LBHM e defendeu a ideia
de que negros são criminosos natos. Essa dedicatória, portanto, denota interesses mútuos entre
os processos de extermínio e exclusões por ordens raciais e a manicomialização. As orientações
49

confluiram tais interesses, e a ideologia eugenista e higienista impôs a necessidade de se


eliminar os sujeitos “considerados degenerativos e criar o brasileiro mentalmente sadio”
(COSTA, 2007). Assim, o fundamentalismo se fortaleceu em varrer e exterminar da sociedade
e dos espaços públicos qualquer sujeito que representasse o que entendia como degeneração
social, a/o “louca/o”, a/o preta/o, a/o mestiça/o, a/o pobre, a/o alcoolista, toda/o aquela/e que
não representasse, racial e/ou moralmente, a razão branca cristã eurocentrada, dominar quem
resistisse existencial, subjetiva, e relacionalmente à normatização pelo seu padrão,
consolidando em muitas instâncias o que Achille Mbembe nomeou de necropolítica (2016).
As consequências desta aliança estamos vivendo até hoje na sociedade, com a
institucionalização legalizada da loucura através dos hospitais psiquiátricos e mais
recentemente também das fazendas patrocinadas pelas igrejas evangélicas neopentecostais,
inventoras da “guerra às drogas” que dão manutenção aos “Outros” que devem ser banidas/os
da sociedade. Ainda como consequência dessa aliança, a construção dos poderes manicomiais
supressores capilarizados na sociedade, na criação da leitura destes enquanto ameaças, na
estigmatização da/o “louca/o”, na disseminação da sua exclusão em manifestações dispersas e
não organizadas da vida social, tanto em instituições como em relações pessoais. Representam
novos reordenamentos sistêmicos de um velho padrão de exclusão, desde a criação à
permanência de sujeito de direitos enquanto “Outros”.
No filme Em nome da razão (1979), Helvecio Ratton denuncia o sistema manicomial
do Hospital Colônia de Barbacena/ MG, nomeado por Franco Basaglia de “Holocausto
Brasileiro”, administrado pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG).
Traz imagens documentais das condições desumanas, insalubres e perversas em que viviam
as/os internas/os, levados pelo trem da morte, nomeado pelo escritor João Guimarães Rosa de
“trem de doido”, que carregava os deserdados sociais, homens, mulheres e crianças, advindos
de todas as partes do país, para os “porões da loucura”, termo-denúncia cunhado pelo jornalista
Hiram Firmino. Daniela Arbex parte da mesma instituição criminosa para escrever Holocausto
Brasileiro - vida, genocídio e 60 mil mortes no maior hospício do Brasil (2013):

Sessenta mil pessoas perderam a vida no Colônia. As cinco décadas mais dramáticas
do país fazem parte do período em que a loucura dos chamados normais dizimou, pelo
menos, duas gerações de inocentes em 18.250 dias de horror. Restam hoje menos de
200 sobreviventes dessa tragédia silenciosa. (ARBEX, 2013, p. 24).

Arbex narra muitas histórias de internos e trabalhadores do nomeado Hospital Colônia


(Imagem 8 e Imagem 9): um esgoto a céu aberto que cortava os pavilhões e era fonte de água
para os internos; cadáveres vendidos em lote para a Faculdade de Medicina da Universidade
50

Federal de Juiz de Fora (UFJF), por valor equivalente atualmente a R$364; vidas decepadas
pelo negócio lucrativo e abominável dos manicômios; um projeto fascista brasileiro descrito
em detalhes.
Em novembro de 2014, o Fórum Mineiro de Saúde Mental (FMSM), a Associação dos
Usuários do serviço de Saúde Mental (ASSUSAM) e a Rede de Saúde Mental de Belo
Horizonte/ SUS/ Prefeitura de Belo Horizonte (PBH), realizaram o seminário “35 Anos de
Basaglia no Brasil: a marca de uma prática revolucionária”, uma conferência que recebeu
convivas dos serviços, suas famílias, trabalhadoras e trabalhadores dos dispositivos de saúde,
militantes da Luta Antimanicomial, estudiosos da Reforma Psiquiátrica e dos modelos
substitutivos aos manicômios, estudantes e sociedade civil. Um dos momentos de comoção foi
a participação de sobreviventes do “Holocausto de Barbacena”, os chamados “meninos de
Barbacena”, que agora viviam nas Residências Terapêuticas da Rede de Saúde Mental de Belo
Horizonte/ MG.
“O muro que nos prendia é agora o muro que nos liberta” (Imagem 10, Imagens 11 e
12), sentença dada por Rui Nonato, integrante do grupo “Poesia é a nossa estrutura”, foi o nome
da exposição que fazia parte do seminário e vinha trazer duas cenas da experiência humana: a
manicomial e a antimanicomial, deste lado trabalhos plásticos dos artistas dos 9 Centros de
Convivência da Política de Saúde Mental de BH, dispostos em simulações de muros quebrados
e daquele outro lado fotos em tamanho real de corpos delimitados pelas suas silhuetas,
fotografados pelo artista e hoje Monge Ryo Kei, Napoleão Gontijo, em visita ao Hospital
Colônia de Barbacena. Assino a curadoria junto às artistas Maíra Paiva e Márcia Stanyslaw, em
que criamos uma possibilidade de habitar duas cenas distintamente bem definidas, duas
experiências, por autodefinição, vida e morte. Durante o processo de criação da exposição,
Napoleão narrou que o que mais o chocou na visita ao maior hospício do Brasil, para além das
imagens que confessou nunca mais desfocarem dos seus olhos, foi o cheiro malfazejo que até
hoje sente como sensações de terror.
No filme Bicho de sete cabeças (Laís Bodanzky, 2001), baseado na autobiografia Canto
dos malditos (1990), de Austregésilo Carrano Bueno, também podemos dialogar com a
denúncia das estruturas criminosas nos hospitais psiquiátricos em que esteve internado e suas
condições inumanas de um suposto tratamento mental. A narrativa denuncia ainda a
criminalização psiquiátrica do então adolescente e o enredo manicomial que a partir dali pautou
a sua sobrevida, imerso em internações subsequentes, por uma intervenção familiar orientada e
conduzida por “especialistas” psiquiatras. Assim como era realidade de muitas famílias que
entregaram seus familiares ao “trem de doido” para serem conduzidos ao Hospital Colônia de
51

Barbacena, o não saber lidar com uma condição de sofrimento que afligia seus entes, e a
produção de um imaginário cultural que as influenciava na condução à contenção e
confinamento.
Em Bicho de sete cabeças também é denunciado o processo lucrativo dos leitos
psiquiátricos, o que fazia com que todo motivo de suposto “desvio social” pudesse pleitear mais
uma vaga, um leito, um lucro para a malha psiquiátrica criminosa, que dominava as formas
psiquiátricas de “tratamento” em todo o país. Abominável no passado recente e ainda
abominável na atualidade, por se tratar, sobretudo, de uma lógica que deveria ter sido extinguida
das práticas psiquiátricas, as internações, abusos medicamentosos e eletrochoques, chamados
cordialmente de eletroconvulsoterapias, são práticas ainda executadas pelo aparelhamento do
estado punitivo, como continuidade do projeto da necropolítica, de extermínio dos tratados
como “Outros”, presente no Brasil desde o Império, e remodelado pelas aberrações sistêmicas
entre poder público e iniciativa privada. No poema Sequelas... e... sequelas, Austregésilo
Carrano Bueno denuncia:

Sequelas não acabam com o tempo. Amenizam.


Quando passam em minha mente as horas de espera, sinceramente, tenho dó de mim.
Nó na garganta, choro estagnado, revolta acompanhada de longo suspiro.
Ainda hoje, anos depois, a espera é por demais agoniante. Horas, minutos, segundos
são eternidades martirizantes. Não começam hoje, adormeceram, a muito custo...
comigo.
Esta espera, oh Deus! É como nunca pagar o pecado original. É ser condenado à morte
várias vezes. Quem disse que só se morre uma vez?
Sentidos se misturam, batidas cardíacas invadem a audição. Aspirada a respiração não
é... é introchada. Os nervos já não tremem... dão solavancos. A espera está acabando.
Ouço barulho de rodinhas.
A todo custo, quero entrar na parede. Esconder-me, fazer parte do cimento do quarto.
Olhos na abertura da porta rodam a fechadura. Já não sei quem e o que sou. Acuado,
tento fuga alucinante. Agarrado, imobilizado... escuto parte do meu gemido. Quem
disse que só se morre uma vez?
Poema das 4 horas de espera para ser eletrocutado... (aplicação da
eletroconvulsoterapia). (BUENO, 1957, epígrafe).

Podemos dimensionar até aqui as amarrações do projeto eugenista, higienista e genocida


do intolerante, vigilante e punitivista Estado brasileiro, que se perpetua como ideologia
fundante da sociedade, promovendo ações de caráter racializado, escravagista, classista e
manicomial. Os remodelamentos modernos e sistêmicos das suas presas e aparelhamentos de
extermínio, para banimento do diferente ainda mantém suas presas. Mas, como anunciou Lélia
Gonzalez (2017), o segregado, isolado, exterminado, o banido, “o lixo agora vai falar”.
52

3.1 Direitos humanos, desinstitucionalização da loucura e promoção de cidadania

A revolução é libertar o corpo físico, mental e espiritual


(Naidna de Souza)

Em ocasião da exposição integrada ao seminário “35 Anos de Basaglia no Brasil: a


marca de uma prática revolucionária”, a equipe do grupo “Poesia é a nossa estrutura” participou
ativamente da curadoria da exposição, tendo como suporte minha mediação. Discutimos sobre
a ressignificação dos muros, a luta que tanta gente precisou travar para fazermos a travessia
entre quebrar simbolicamente o muro violento do manicômio e suspender a construção dos
serviços substitutivos a ele. Quando Rui Nonato anunciou firmemente a sentença que nomeou
a exposição “O muro que nos prendia é agora o muro que nos liberta”, entendemos que
ressignificar o muro seria tal qual ressignificar a vida, não poderíamos esquecer que ele esteve
ali circunscrito à tantas narrativas, só afirmando-o poderíamos superá-lo. Assim, a presença
dele se fizera importante para dimensionarmos a força de transformação através da luta, e
redimensionarmos com mais firmeza a construção feita através dos seus destroços. Este assim,
representaria os caminhos trilhados pelas políticas antimanicomiais, os caminhos inaugurados
pela e para a ressignificação de tantas vidas, o triunfo, a transgressão e a suspensão de outras
possibilidades. Assim, construímos para a exposição um muro despedaçado, e o
ressignificamos dependurando sobre ele pinturas e pichando poemas, fazendo simbolicamente
existir sobre as ruínas nossa proposta de vida, de construção, para além dele e a partir da
existência dos seus destroços.
A construção ou invenção de uma lógica de pensamento e política que sobreponha a
manicomial anuncia a desinstitucionalização, conforme Franco Rotelli (1988). Esta pressupõe
que, para além da desospitalização defendida pelas políticas antimanicomiais, haja a
desinstitucionalização, quando entendemos que o trabalho pelo fim dos manicômios deveria ser
também um trabalho extramuros. Seria insuficiente pensar na derrubada institucional do
manicômio, se no lugar deste se reproduzisse um modelo tão institucionalizado quanto, fazendo
permanecer os reordenamentos das instituições de poder. Ainda, a desinstitucionalização seria
um trabalho de alteração no âmago da sociedade, quando a instituição de poder e controle
perece em sua estrutura, na construção do imaginário, da moralidade e dos valores comuns. A
conquista consequentemente seria a de desinstitucionalizar a própria loucura, extraindo-a como
experiência e limpando dela o sufoco do controle social. Desinstitucionalizar apenas o
indivíduo, desospitalizando-o, não seria o suficiente, quando a sociedade institucionalizada
53

permanece adoentada, produtora de estigmas, criminalizadora da cultura da diferença, e


criminosa nas práticas de contenção de corpos. A desinstitucionalização se afirma assim,
política e existencialmente na tentativa de derrubar também os “muros manicomiais
epistemológicos” (ROTELLI, 1988).
Em palestra no encontro de trabalhadoras/es da Política de Saúde Mental de Belo
Horizonte, em 2014, o psicólogo, professor e militante Marcus Vinícius de Oliveira, o Marcus
Matraga, disse que, sendo a Rede de BH das mais complexas e efetivas na intervenção e
transformação de vidas a partir de uma lógica criativa, inventora e antimanicomial, deveria se
educar para que seu cotidiano não replicasse a lógica institucionalizante, em uma autoanálise
diária que balizasse as práticas, o lidar, o trato, as condutas e decisões em uma direção de manter
viva e pulsante a lógica libertadora de subjetividades e corpos, da qual nasceu e pela qual
trabalham as propostas antimanicomiais. Ao mesmo tempo em que possibilitasse
dialeticamente a transformação da visão do outro sobre o sujeito em sofrimento mental e em
relação à própria loucura, produzindo o que chamara de “efeitos na cultura” (OLIVEIRA,
2017).
Os modelos defendidos pelas políticas antimanicomiais propõem um olhar diferenciado
para o sujeito, ocupando-se da sua relação complexa com o devir, incluindo a experiência de
sofrimento em relação ao corpo social, ao contrário do que faz o manicômio quando se ocupa
do que entende como doença, a loucura, aquém do sujeito, segundo Paulo Amarante (2017).
Essa substituição de leitura e lidar se trata de uma ruptura epistemológica, que substitui a
exclusão e coisificação do ser pela sua possível negociação com a sociedade, construindo e
reinventando novos territórios de existências e experiências, sendo efetiva no seu alicerçamento
para com a vida, na construção de sentidos e vínculos com a sociedade.
A institucionalização da loucura se faz, portanto, como uma colonização do devir, um
saqueamento subjetivo e simbólico das singularidades humanas, do tratado de outras
cosmogonias e relações com a existência. A ideologia manicomial coloniza o devir e corrompe
as possibilidades de existir quando atenta à vida do sujeito em todas as dimensões, em nome da
briga instaurada contra o seu sofrimento, nomeado de doença. Dizer isto não se trata de negar
as condições psíquicas de sofrimento, mas entender que o trato deste sofrimento é possível
através do acolhimento, tratamento em liberdade, convivência, arte e coparticipação do sujeito
no seu projeto de saúde. Os movimentos de resistência aos manicômios têm experimentado
projetos distintos em termos de dispositivos e funcionamentos das políticas antimanicomiais
por todo o território nacional. Estas políticas têm se mostrado efetivas para a pessoa em
sofrimento, sua família e seu campo relacional, e ainda para o desmantelo da figura
54

estigmatizada do louco. Se trata, portanto, de afirmar mais uma vez a institucionalização como
mecanismo de colonização e contenção de corpos e subjetividades, figurada tanto no
encarceramento manicomial, como também nas medidas de repetições da lógica manicomial
fora dos hospitais psiquiátricos, como no uso abusivo de ações medicamentosas e na não
tentativa de vinculação do sujeito à sociedade, através de outras práticas do cuidado e atenção
psicossocial.
A desinstitucionalização (desinsti.) da loucura é, portanto, uma ferramenta de
descolonização, um recurso de luta que pressupõe a desospitalização, mas entende que esta
sozinha é insuficiente. O manicômio se tornou muro a ser derrubado nas moradas internas dos
corpos colonizados/manicomializados pelas sociedades e poderes, exige assim que recursos
potentes e epistêmicos confluam, alicerçando a batalha descolonial/antimanicomial.
Como um desdobramento das estratégias de desinsti. propostas por Rotelli (1988),
perspectiva essa que originou a proposta da Reforma Psiquiátrica e ao mesmo tempo também
culminou no entendimento trazido pelo teórico Joel Birman (Apud AMARANTE; NUNES,
2018) de que as ações sociais do Movimento Nacional da Luta Antimanicomial carregavam de
maneira pungente um outro delinear do lugar social para a loucura no espaço cultural. A
participação social e o protagonismo dos sujeitos do MNLA nas frentes de intervenções sociais
se tornaram potentes motores de uma lógica desestigmatizante da loucura, além de propiciarem
a própria vinculação da sua pertença, identidade e empoderamento coletivo, que efetivamente
se movem na construção deste novo lugar social reinvincado. Os modelos substitutivos
requerem, assim, um enfrentamento que crie oportunidades de se instaurarem em outros modos
de vincular loucura e sociedade, no âmbito das práticas culturais.
A partir desta perspectiva podemos pensar em dois pontos essenciais para pautarmos,
primeiro, o movimento social protagonizado pelos sujeitos em situação de sofrimento mental,
que requerendo suas vozes e autoridades para falar, recuperam mobilização, representatividade
e força política; e segundo, a participação da arte e produção de cultura enquanto frente
transformadora dentro do projeto de desinsti.
O artigo A reforma psiquiátrica no SUS e a luta por uma sociedade sem manicômios
(2018) traça um itinerário desde o nascedouro do que veio a ser o MNLA à construção dos
serviços substitutivos e da própria RAPS, enquanto conquista nacional, a Lei 10.216 da
Reforma Psiquiátrica, de 6 de abril de 2001, que “dispõe sobre a proteção e os direitos das
pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”
e outras portarias em níveis municipais e estaduais que também contribuíram para o fechamento
de leitos de hospitais psiquiátricos e para a permanência dos serviços substitutivos. Ainda no
55

itinerário trazido pelo artigo, podemos mensurar a força que os Congressos, Seminários,
cadernos de saúde mental e outras reuniões de agentes do MNLA e trabalhadoras/es puderam
antes e podem hoje alimentar em relação à mudança de paradigma social proposta pela Reforma
Psiquiátrica e pela desinstitucionalização da loucura.
Quanto à mobilização por parte dos sujeitos em situação de sofrimento mental, trazemos
como referência o artigo Loucura e Cidadania (2008) escrito por militantes integrantes da
Associação dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (ASSUSSAM), que
discorre a partir de suas próprias narrativas pessoais e coletivas sobre a importância do seu
engajamento na Luta Antimanicomial. Diz também de outras associações de usuárias/os dos
serviços de saúde mental que se movimentam ativamente na sociedade, transformando
realidades para si mesmas/os, no lidar com a vida cultural e com a leitura sobre a loucura. Este
artigo aqui é metalinguístico, são as vozes dessas/es sujeitas/os afirmando a importância das
suas próprias vozes e militância. Neste assinam a Diretoria da ASSUSSAM na ocasião.

Como se pode observar, a profundidade e amplitude destes propósitos, perseguidos


pela ASSUSSAM, só podem se realizar no momento em que nós, usuários, nos
tornamos muitos, muitas vozes que demonstram ser possível, necessário e justo
substituir o manicômio por serviços abertos de saúde mental, nos quais os usuários
são tratados e reconhecidos como cidadãos e, além de receber saúde de qualidade,
também são destinatários dos direitos sociais básicos, como: trabalho, educação,
moradia, lazer, cultura, etc, garantidos nas constituições Federal, Estadual e na Lei
Orgânica do Município para todo o povo brasileiro. (...) A idéia de uma transformação
social que inclua na vida dos cidadãos a cultura, saúde, educação, política e ética é
incontestável e notória. (...) Não é fácil a travessia. Talvez a arte e toda a sua didática
subjetiva, provocativa, nos ajuda a propor novas ordens para o entendimento das
diferenças. Talvez cada um proponha, ao outro, novas formas de compreender o
mundo numa sutil fronteira entre o individual e o coletivo. A luta em defesa da vida,
de uma vida de qualidade para nós que vivemos a diferença estigmatizante do
sofrimento mental, é uma luta que não pode e não deve ser levada solitariamente. É
uma luta permanente, de um coletivo, do nosso coletivo que busca construir espaços
dignos de vida nos quais os mais diferentes modos de viver possam encontrar
cabimento. Neste caminho de ações construtivas temos encontrado diferentes
parceiros como serviços públicos, ONGs, familiares, amigos, técnicos, e juntos
trilhado caminhos para a vida, para o amor, para a dignidade, para o trabalho, para o
lazer, para a cultura, para a saúde de qualidade e, finalmente, para a nossa inclusão
social. Com a participação dos usuários na cena pública e centros de decisões vê-se a
conquista crescente de seus direitos e de sua autonomia. Nesta militância, a presença
dos usuários e seu exercício de cidadania têm assegurado a legitimidade dos desejos
e demandas que sustentam suas falas. (...) A ASSUSSAM tem uma missão que
transcende limites e aponta para a criação de uma nova cultura, baseada na ética, na
solidariedade, na justiça, gerando uma nova ordem, na qual a vida esteja no centro dos
cuidados e atenções. (FERREIRA; LOPES; SENA; MAGALHÃES; CARVALHO;
BRAGA, 2007, p. 232-234)

O engajamento em sua missão, na própria causa coletiva é também conquista do


Movimento da Luta Antimanicomial, na qual as/os usuárias/os da RAPS investem as próprias
vidas não somente por requererem garantias de direitos e mudanças de paradigmas em diálogos
56

civis e junto ao poder público, mas também por trabalharem para que seus pares se apropriem
cada vez mais deste engajamento, repensando seu próprio lugar diante do mundo e admitindo
sua força essencial e indispensável para contribuição nesta luta.
Sobre a participação da arte e produção de cultura no processo de desinstitucionalização
da loucura, que também gera emponderamento e consciência de si, se refletiria no entendimento
da arte como recurso de vida, que por ampliar as possibilidades do indivíduo e do coletivo,
promove saúde e respaldo para a instauração de políticas públicas inclusivas, na medida em que
gera ressocialização e reinserção social, desperta desejos e trocas, por consequências da sua
própria estrutura. Retomamos:

A utilização da arte e da cultura, para além de recurso meramente terapêutico ou


auxiliar da clínica, passou a assumir a dimensão de produção de subjetividade e de
vida24. Nesta linha de atuação, o processo de RP é tomado por um enorme contingente
de iniciativas artístico-culturais no sentido de promover transformações no imaginário
social e nas práticas discursivas sobre loucura, diversidade e diferença.
(AMARANTE; NUNES, 2018, p. 2071)

Um dos direcionamentos da própria luta antimanicomial, na criação e experimentação


de modelos substitutivos, e estabelecimento de uma atenção psicossocial libertária, foi o de se
pensar em práticas artísticas entendendo-as como ampliação do repertório de vida ofertada ao
sujeito, implicando em um redimensionamento do viver. Neste sentido, a Luta Antimanicomial
desde a sua gênese é essencialmente multidisciplinar e fronteiriça, quando entende que os
entrecruzamentos do conhecimento prescindem de uma ampliação substancial da vida e
alargamento de consciências, e que o próprio campo da saúde, neste caso, demanda expansão.
A derrubada dos muros manicomiais com a substituição da catatônica e isolada vida
hospitalar imposta por uma vida mentalmente ativa, foi pensada também pela sutura da saúde
com as práticas artísticas. O martelo desinstitucionalizante da justiça, utilizado para derrubar
muros e devolver liberdade à tantas vidas, fora desenhado pela política de fronteira, um conceito
estético, epistêmico e também um modo de viver, na composição e afirmação de outras razões.
A arte, estando no lugar cruzado de encontro com a saúde, e reportando a ela matéria libertadora
de subjetividades e propostas de vidas, afirma o processo desinstitucionalizante da Reforma
Psiquiátrica Antimanicomial, “por uma sociedade sem manicômios”, estabelece na sua própria
prática cidadania e direitos humanos.
57

3.2 Políticas de ação entre saúde e arte

O sujeito humano não pode não aspirar, não desejar, não


representar e não trocar.
(Ana Lúcia Cavani-Jorge)

Foi na tentativa de devolver um trânsito subjetivo sobre a vida para sujeitos internos na
lógica manicomial operante, que batalharam trabalhadoras/es como a psiquiatra Nise da
Silveira (1992) e sua equipe. Precursoras/es do enfrentamento do aparelhamento hospitalar
manicomial em um movimento para fora dos manicômios, no Centro Psiquiátrico Nacional
Pedro II, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro/ RJ, instaurou práticas que poderiam parecer
frágeis ou mínimas como recursos de transformações e emancipação, mas que se mostraram
tecnologias efetivas no resgate de sujeitos. A psiquiatra instalou um atelier de pintura dentro da
ala de terapia ocupacional do hospital psiquiátrico e, através dele, se conectou com internas/os
que passavam por processos de violência extrema, alienação e coisificação das suas existências
subjetivas e cognitivas, e controle dos seus corpos. Tecnologia esta já aplicada anteriormente
pelo psiquiatra Juliano Moreira dentro do manicômio.
Nise da Silveira e sua equipe conseguiram inúmeros avanços relacionados à
comunicação com essas pessoas, que no confinamento, sob efeito de medicação intensa e
eletrochoques, haviam perdido muito da fala e capacidade cognitiva. Mas não de forma
definitiva, já que a linguagem não-verbal da pintura, associada ao acolhimento da equipe e
cuidado no trato, pôde levar estímulos para que se manifestassem e reagissem à lógica
mortificadora imposta no ambiente.
A psiquiatra atribuiu muito da potência das práticas artísticas à capacidade de
organização cognitiva gerada pela pintura, pelo criar, pela manipulação da matéria e pela
invenção característica da experiência pictórica e de outras linguagens. Pelo ato de criar
reorganizavam “sua psique dissociada”, reorganizavam seus corpos dilacerados. Em um estado
onde o indivíduo se encontrava aterrorizado contra toda a significância violenta e perversa que
o rodeava, nos termos utilizados por Nise, “a palavra fracassa”, assim a pintura se apresentava
possibilidade de produzir sentido e resgate de vida através da linguagem não-verbal, diante do
embrutecimento do sistema de cárcere e tortura manicomial,

a necessidade de expressão, necessidade imperiosa inerente à psique, leva o indivíduo


a configurar suas visões, o drama de que se tornou personagem, seja em formas toscas
ou belas, não importa. (SILVEIRA, 1992, p. 2).
58

Entendamos que, quando trazemos a noção de que a linguagem verbal ainda seria muito
inatingível por pessoas acometidas pela tortura dos manicômios, não estamos dizendo sobre
algo distante. Primeiro porque a experiência vivida pela equipe de Nise aconteceu na década de
1940, historicamente um tempo muito curto até o atual. Segundo porque a Reforma Psiquiátrica
e as portarias que garantem direitos humanos às pessoas em situação de sofrimento mental não
asseguram o cumprimento do fim dos manicômios e das práticas manicomiais, fazendo
coexistir aos modelos antimanicomiais das redes substitutivas, o Hospital Psiquiátrico e suas
práticas. A este respeito, trazemos a referência do recente filme A loucura entre nós (Fernanda
Fontes Vareille, 2016), que mostra a configuração e funcionamento interno do Hospital
Psiquiátrico Juliano Moreira, em Salvador/ BA, com seus leitos, internações compulsórias,
prática de eletroconvulsoterapias, impregnações por abusos medicamentosos, como em muitos
hospitais ainda existentes no território nacional.
Este exemplo nos leva à terceira consideração, o fato de a lógica manicomial estar tão
estruturada na consciência da sociedade, portanto mesmo um Hospital Psiquiátrico com uma
coordenação antimanicomial que pense em diretrizes distintas, ou um CAPS que vem
embrionariamente da base antimanicomial, ainda podem repetir, e assim por vezes o fazem,
vícios de condutas arraigados nas práticas manicomialistas de repreensão e respostas não
humanizadas ao cotidiano de cuidado e sobretudo às crises.
A linguagem verbal se faz então campo trafegado como consequência de trânsitos
anteriores por linguagens talvez mais imediatas, mesmo porque o estigma da loucura pôde ser
instaurado sobretudo sobre corpos já em situação de vulnerabilidades sociais, onde se localiza
com incisão o analfabetismo funcional, o que denuncia mais uma vez o projeto racial da
necropolítica.
Assim, a prática da linguagem verbal passou a ser aplicada depois da experiência da
linguagem não-verbal inaugurada no Brasil como fazer terapêutico por Juliano Moreira e mais
tarde como linguagem e criação por Nise da Silveira. A psiquiatra se correspondia com o
pensador Carl Jung e passou a partir dessas correspondências, a dimensionar o universo das
imagens e o quanto respondiam às singularidades humanas e construções das psiquês. Além
disto, se aproximando do crítico de arte Mário Pedrosa, pôde também dimensionar o valor
estético e complexidade das pinturas feitas por aquelas pessoas negligenciadas nas noções mais
básicas de vida. A psiquiatra e o crítico realizaram exposições e a partir desses acontecimentos
inauguraram um circuito específico das artes plásticas, que no território nacional transitou pelo
que se convencionou chamar arte bruta, arte naif ou arte & loucura. Atualmente discutimos o
quanto essa produção precisa e deve estar vinculada à tais denominações, que em determinada
59

perspectiva limitam a circulação desses trabalhos e de certa forma os estigmatizam. Apesar


disto, o fato de tal prática ser reconhecida como arte a qualifica de modo a refletir também na
leitura sobre quem a produz, possibilitando que essas pessoas em certa medida se livrem da
carapuça da doença, para vestir o artista, ou seja, de inútil possa ser enxergado enquanto o
sujeito que cria, que produz.
Reconhecemos que a experiência proposta pela equipe de Nise da Silveira fora uma obra
paradigmática que representou um ponto de virada e representa ainda hoje uma ferramenta de
luta. Ressaltar esta experiência se faz cara pela influência que tem nas condutas de trabalho e
produção de saberes para o campo de encontro entre as artes e a saúde mental, onde se localiza
a vivência “Poesia é a nossa estrutura”. O cruzo entre arte e saúde se faz irrefutável, o diálogo
entre os campos na insurgência definitiva desse terceiro campo que se estabelece pelo encontro
interdisciplinar dos dois primeiros, então se mostra cada vez mais urgente.
Assim não poderíamos deixar de demarcar também a influência do psiquiatra italiano
Franco Basaglia, que alterou a forma de se pensar a clínica no seu país. Liderou os primeiros
enfrentamentos à lógica hospitalocêntrica manicomialista dos hospitais psiquiátricos, sobretudo
nas cidades de Gorizia e Trieste, fundamentando e inaugurando práticas antimanicomiais que
foram proliferadas em outros países. Em 1978, ocasião da sua primeira visita ao Brasil, esteve
em alguns Hospitais Colônias, como o de Barbacena/ MG, quando o comparou ao Holocausto.
Essa comparação nos leva à uma repulsa inicial tamanha que nos perdemos em mensurá-la. São
números de pessoas assassinadas que pela leitura racial caracterizam genocídio, e ainda
expressam a eliminação de sujeito um a um, extermínio de singularidades, de individualidades,
de existências, histórias únicas e suas importâncias.
Nos anos 1970–1980, influenciado pelo pensamento de Michel Foucault, Franco
Basaglia (2005) analisa as formas de contenção usadas pela sociedade para que o sujeito se
identifique com a instituição de vigilância, controle e alienação, e então se institucionalize.
Analisa a construção violenta de um lugar social que não serve ao cuidado e acolhimento das
diferenças, mas à punição moral e isolamento daquilo que foge ao seu controle. O manicômio
não tem o caráter de curar o portador de sofrimento mental, mas sim destruir e matá-lo com
intuito de controlar sua produtividade e suposto desvio:
A imagem do institucionalizado corresponde, portanto, ao homem petrificado dos
nossos hospitais, o homem imóvel, sem objetivo, sem futuro, sem um interesse, um
olhar, uma expectativa, uma esperança para a qual apontar; o homem aplacado e livre
dos excessos da doença, mas já destruído pelo poder da instituição; o homem que só
poderá ser impelido à busca de si mesmo, à reconquista da própria individualidade
somente pela posse da própria liberdade, se não quisermos que continue a identificar
seu vazio interior com o espaço limitado e vazio do manicômio. (BASAGLIA, 2005,
p. 27).
60

Basaglia (1979) percebeu que para humanizar e garantir direitos seria preciso enfrentar
e combater os fundamentos da permanência dos manicômios enquanto lugar de tratamento,
questionando os paradigmas psiquiátricos que centraram no saber médico a experiência da
loucura, reduzindo-a ao status de doença mental. E, para lidar de uma forma diferente com a
loucura, seria preciso colocar a “clínica entre parênteses”, ou seja, não negar a existência da
loucura, mas afirmar que o sujeito existe em sua complexidade, e que é preciso colocar sim
entre parênteses a experiência de sofrimento como mais um dado da sua existência, e não como
a totalidade da sua vida. Somente a partir do entendimento desta quebra de paradigma
epistêmico poderíamos estabelecer um tratamento humanizado, em liberdade, com garantia de
direitos e promoção de cidadania.
Assim, Basaglia também propôs que as reformas psiquiátricas combinassem a clínica e
a terapêutica às atividades criativas e solidariamente laborativas, assim como a vivência
coletiva e comunitária. Também sustentava o pensamento de que a construção subjetiva,
cognitiva e simbólica seria definitiva para a reorganização dos sujeitos. Essa ideia formadora
foi primordial para a elaboração das políticas antimanicomiais nacionais, assim como para as
pautas fundantes da Reforma Psiquiátrica.
61

4 ARTEVIDA: E QUEM DISSE QUE ISSO NÃO É POESIA?

A percepção que o homem ocidental tem de seu tempo e de seu


espaço deixa aparecer uma estrutura de recusa, a partir da qual
se denuncia uma fala como não sendo linguagem, um gesto
como não sendo obra, uma figura como não tendo o direito a um
lugar na história. (Michel Foucault)

Há tempos me pergunto intimamente se há algo no terreno da criação guardado ao


acesso de pessoas ou grupos específicos de pessoas, que determina diferença naquilo que
produzem em termos de arte e linguagem. Não saberia responder, mas penso que, se o que pode
ser dito (escrito, pintado, representado, ...) e da forma que pode ser dito, tem relação com as
narrativas vividas pela pessoa e por um grupo de pessoas da qual faz parte, existe sim algo no
terreno da criação que só é acessado por determinadas experiências. E aí a criação também pode
ser compreendida a partir do seu lugar de fala, como nos traz Djamila Ribeiro (2017), ou seja,
a partir de experiências específicas que atravessam o corpo, a existência, se poderia produzir
discursos e perspectivas de linguagens só possíveis a quem viveu tais experiências. Assim, para
quem não viveu, só seria possível tangenciar tais narrativas através da empatia e do exercício
de alteridade.
Porém as narrativas de muitos grupos não são reconhecidas a partir das suas próprias
vozes, leitura comum da sociedade porque existe um grupo dominador específico que pode
falar e terá respaldo incondicional para ser ouvido. E este grupo, pautado no “ser humano
oficial”, homem branco cis hetero cristão normativo racional, não permite que outras razões,
perspectivas, narrativas, experiências, vozes e culturas se afirmem. É por isto que quando a/o
“louca/o” fala, o senso comum diz que não pode ser levado a sério. É por isto que quando
alguém diz algo que nos parece absurdo, respondemos “você está louca/o”.
A seção “Pesquei um poema na sua boca” do livro Poesia é a nossa estrutura traz
anedotas, recortes de falas ditas durante a vivência de poesia, que entendemos como relevantes
para estarem no livro, para demonstrar um pouco sobre os pensamentos e diálogos que fizemos.
Nesta seção, temos uma passagem de Naidna de Souza: “Os poderosos desde o início quiseram
impor o padrão deles, cortar nossa liberdade de ser”. Aqui a poeta retira o termo “os poderosos”
do lugar adjetivo e o reloca para o de substantivo. Assim, apesar de parecer indeterminado,
sabemos quem é, ou melhor quem são os sujeitos, podemos identificá-los, não temos dúvidas,
são eles os criadores, donos e adoradores do padrão oficial de vida, de autoridade da língua e
da sociedade.
62

Mas Naidna de Souza coloca a questão e na mesma intensidade a soluciona: “A arte dá


o aval pra gente existir”. Ela então aponta para o lugar onde a fala deste grupo é possível, onde
é autorizada pelo próprio campo, onde trafega com aval, sem receio. A experiência da arte e da
linguagem vem aqui abrir um universo de possibilidades, porque movimenta recursos ligados
à produção e reordenação de subjetividades, à expansão do corpo sensível e à compreensão do
próprio sensível como mecanismo possível na partilha de vida e nas tessituras das relações. O
sofrimento também advém do controle do imaginário, da tentativa corrente, histórica e
geracional de corromper as pulsões de vida. Quando a resposta ao controle se faz estímulo, há
um desvio deste controle, um desvio na linguagem padrão, um desvio sobre aquilo que pode
ser dito, sobre quem pode dizer. As leituras sociais padronizadas são então corrompidas e a
confusão se manifesta: “você está levando o que eles falam a sério!”, “quem disse que isso é
poesia?”.
A confusão do outro lado, de quem desvia o controle, se qualifica, se afirma, ressignifica
e responde: “e quem disse que isso não é poesia?”. O desvio questiona o padrão e produz vida,
produz modos de existir “na cara do padrão”, de frente para “os poderosos”. E anuncia: “Eu
nasci para libertar”, como dito por Naidna de Souza, no livro Poesia é a nossa estrutura (2015).
Manifesta-se, re-existe, recupera linguagem, inaugura outras racionalidades, ressignifica a beira
da estrada, a porta da venda, o banco da praça. “A/o louca/o” deixa de representar este mesmo
personagem para se ressingularizar, para afirmar seu não-lugar como lugar onde se socializará
e anunciará a sua existência. Através da militância, da criação de arte, ou no silêncio da sua
reorganização para com a vida, o sujeito pode ultrapassar o discurso que o desqualificou e
produzir fala, representatividade, vida, manifesto.
Mas estar em território propício à colheita, facilita o arado. No Centro de Convivência
Providência, quando começamos a Oficina Poesia & Vídeo que culminou no grupo “Poesia é a
nossa estrutura”, já existia há alguns anos o grupo “Persona Grata” (Imagem 15), que trabalhava
sobretudo com performance e música, além de trafegar pelas linguagens do teatro, poesia e artes
plásticas. Além disso, a experiência de algumas oficinas anteriores já tinha sido definidora para
a abertura das/os convivas à criação, arte e linguagem. Talvez por este motivo o
amadurecimento do grupo e da vivência “Poesia é a nossa estrutura” tenha sido tão fluido e
relativamente rápido, a ponto de sequenciar também o livro e o vídeo-poema, objetos
comumente tão complexos de se materializar, sobretudo diante da coletividade e diversidade
de desejos.
No Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário instalamos o Laboratório de
Experiências Intensas em Arte (L.E.I.A.), um atelier livre de artes plásticas e visuais (Imagens
63

16 e 17). Pensar as cenas pictóricas com singularidade, desejo e invenção foi um dos motes do
atelier-oficina. No início as/os convivas estranhavam a minha resposta quando me abordavam:
“Ana, eu sei que não existe gente de pele azul, mas eu queria tanto pintar assim, vou parecer
doida né?”, quando eu respondia “A pintura é sua, ela não existe no mundo, você está
inventando a existência dela, é a sua criação, então você pode fazer do jeito que quiser.” Uma
sentença tão óbvia para os corpos que ardem liberdade, mas incomum pelos condicionamentos
sociais impostos às subjetividades e sensibilidades.
Também parte das práticas se fazia destituir a nobreza dos materiais e ferramentas, por
condições orçamentárias de não poder adquirir “materiais nobres”, mas sobretudo por
lançarmos mão do que temos, do que nos é ofertado no cotidiano para criar, também como
opção estética. Assim, fita crepe, purpurina, jornal, giz de cera também ganhavam outra
notoriedade nos objetos de arte. Ouso relatar que assisti a muitas descobertas plásticas
experimentais relevantes que nunca presenciei na academia de arte ou em outros espaços
experimentais das artes, como no L.E.I.A. A este fato atribuo uma liberdade intrínseca ofertada
pela experiência de resistência em convergência com o processo metodológico de arte que ali
se inscrevera.
Neste sentido, foi muito caro instaurar um cotidiano experimental de criação plástica
que, ao mesmo tempo em que possibilitasse o desenvolvimento dos processos artísticos e as
pesquisas individuais, também pudesse fortalecer o trabalho coletivo, a atmosfera de trocas
instaurada como mote de criação e contaminação de pares. Agregada à prática de atelier,
também nos engajamos em visitar exposições e mostras, e discuti-las extensamente, como
prática já consolidada anteriormente pelos Centros de Convivência, inclusive.
Participamos de algumas exposições coletivas em uma cidade que já propiciara certas
aberturas na cena de arte para a narrativa da saúde mental, e após dois anos de trabalho no
L.E.I.A., lançamos a exposição “Pássaros que vivem avoando, vivem avoando sem nunca mais
parar” (Imagens 18, 19 e 20), em 2015, na Galeria Mama Cadela, um espaço que está no
intermeio entre a galeria de arte tradicional e a underground, uma exposição muito bem
recebida pela mídia local, que fizera vasta cobertura, pela sociedade e público das artes, e
ovacionada por trabalhadoras/es e famílias das/os convivas.
A Rede de Saúde Mental de Belo Horizonte vem, desde que existe, buscando lugar para
escoamento da vasta produção de arte dos Centros de Convivência, ocupando os Centros
Culturais Comunitários da Prefeitura e outros espaços mais tradicionais como o Centro Cultural
da UFMG, Funarte MG, Espaço 104, CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil), com mostras
de artes, audiovisual, performance, poesia e música. Dois eventos de maior porte promovidos
64

pela Rede são o “Festival da Canção” (Imagem 21), que acontece anualmente recebendo
músicas das/os convivas dos CCs, onde uma banca de músicas/os da cidade seleciona os
finalistas para se apresentarem no evento aberto ao público, em que são selecionadas três
canções e suas/seus autoras/es premiadas/os, respeitando vários quesitos como execução,
composição e performance.
E, juntamente importante, a “Mostra de Arte Insensata” (Imagem 22) que teve sua
execução bienal durante três edições, sendo impossibilitada de continuidade pela falta de
investimento público. A “Insensata” reunia exposições, oficinas, shows, palcos abertos e
seminário de formação. O cunho revolucionário atribuído a ela, se fez justamente por oferecer
à população uma experiência de convívio com a arte e a “loucura” através da liberdade de
linguagem, transgressão artística, laços afetivos e sem discriminações sociais.
Ainda o desfile-ato-passeata do 18 de maio (Imagem 23), Dia da Luta Antimanicomial,
realizado pelo Fórum Mineiro, ASSUSSAM e Rede de Saúde Mental, através da “Escola de
Samba Liberdade ainda que Tam-tam”, reúne anualmente desde a década de 1990, convivas e
trabalhadoras/es de todos os dispositivos da Política de Saúde Mental do município, militantes,
estudantes apoiadoras/es, representantes de municípios vizinhos, movimentos sociais aliados,
grupos de artistas parceiros, outros agentes culturais e a sociedade civil sensibilizada pela causa
antimanicomial. O desfile é desenhado coletivamente, em reuniões semanais desde o início do
ano. Pensa-se mote, conceito geral, conceito das alas, fantasias, banda e trios elétricos. O
caminho percorrido pelo desfile são as vias centrais e principais da cidade, somando um
contingente de mais ou menos 5 mil pessoas.
Uma cidade ocupada pela loucura, arrombada pela afirmação de outras racionalidades,
de narrativas dissonantes, sustenta outras relações, outras partilhas, afirma que a arte pode ser
um grande empreendimento de saúde, um grande e coletivo manifesto errante, pelas calçadas,
esquinas e vielas da cidade alterada, ressignificada, fazendo outros grupos também terem direito
a ela.
65

4.1 Sobre Bispos, Stelas, barcos, falatórios, invenções e resistências

A arte como exercício experimental da liberdade


(Mário Pedrosa)

A relação arte, vida e experiência da loucura, conceitos tratados ao longo dessas páginas,
se desenvolve como uma tríade implícita para o exercício de cabimento de experiências
dissonantes em uma sociedade moldada para aceitar somente normatizações culturais, padrões
identitários e raciais bem definidos e saqueadores de existências múltiplas. Nessa dissertação
fica marcado, como um ponto riscado, que a partilha se estabelece pela construção de outras
epistemes, pela partilha do sensível, segundo Jacques Rancière (2005), como essência do campo
relacional, pela retomada engajada de si junto a um coletivo.
A busca para tal construção pressupõe um campo de saberes – semântico, estético, ético
e metodológico-analítico –, que não está contido no contrato da razão hegemônica branca
eurocentrada, mas em razões outras que transitam por outras respostas, partilhas, práticas,
desejos, culturas, povos e cosmogonias. Através dessa possibilidade de expansão das condições
de produção de pensamento, linguagem e subjetividade, desenha-se um chão que se dignifica a
ser pisado pela diversidade das experiências e multiplicidade das existências, das vozes, suas
realidades e invenções compartilhadas, que em território de controle poderia ser
pejorativamente reconhecido como delírio ou doença. Pensar no que representa o sofrimento
mental nos meandros da cultura, no imaginário social, é pensar no que se entende como loucura
e/ou a quem atende tal entendimento.
Já consideramos questionado o projeto segregacionista capilarizado na sociedade e
capitalizado pelas instituições de poder. Projeto que serviu e serve a um recorte da população
que representa o próprio poder, em termos de classe, raça e moralidade, sobretudo, um poder
branco eurocentrado, de moralidade cristã. Este projeto sistemicamente abasteceu exclusões, e
no caso do sofrimento mental, quando não internou nas condições criminosas constatadas,
excluiu nos meandros das próprias comunidades. Assim, todas/os têm uma história de infância
para contar da/o “doida/o de rua” que corria atrás das crianças, “a doida da porta da venda”, “o
doido da rua tal”, etc, uma incapacidade social fabricada para não deixar caber e lidar com
narrativas múltiplas e discordante.
Mas na relação proposta nesse texto entre arte, vida e a experiência da loucura, afirma-
se uma tríade que busca respostas para a construção de possibilidades, para a possibilidade de
escuta dessas vozes roubadas, caladas, dessas narrativas dissonantes embrutecidas pelos
66

biopoderes, suas instituições e expansões sociais. A ideia de poesia que trazemos aqui trafega
exatamente no encontro entre arte/ linguagem, vida, produção de devir e experiência da loucura.
Se constrói para além da palavra articulada, podendo se manifestar através de formatos distintos
de linguagens ou no encontro híbrido entre elas. A poesia para nós é um modo de vida, uma
forma de se relacionar com o mundo e de tangenciar a existência, podendo assim gerar
pluralidades de discursos e relações. E pretendendo ajudar a fazer caber as emoções diversas,
através do agenciamento da arte e da criação.
Joseph Beuys (Apud MAXWELL, 2019), artista visual, relacionando-se ao conceito de
campo ampliado propôs a escultura social como a dimensão digna da existência humana como
obra de arte. Beuys sobreviveu à 2ª Guerra Mundial, e através da resistência ao acometimento
da sua vida, entendeu que a pauta arte e vida poderia o salvar da morte das suas subjetividades
e singularidades. A partir disto propôs a arte como uma política de afirmação da vida, de
sustentáculo para vozes que historicamente foram interrompidas de falar sobre suas narrativas.
A poesia e a linguagem enquanto modos de existir se manifesta na experiência de vida de Arthur
Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio, duas referências de resistências e atuação dentro das
instituições manicomiais. São emblemáticas para o campo de conhecimento arte e saúde mental
e assim também para a mediação em arte e linguagem que formou o grupo “Poesia é a nossa
estrutura”.
Stela do Patrocínio esteve internada primeiramente no Hospital Engenho de Dentro, em
1962. Em 1966, foi transferida para a então Colônia Juliano Moreira, ambos no Rio de Janeiro.
Neste último, onde esteve 25 anos internada, foram recolhidas suas falas, através da artista
visual Carla Guagliardi (Apud PATROCÍNIO, 2009). Patrocínio não nomeava o que fazia de
poesia, mas falatório, até porque imersa na represália institucional e igualmente no estigma da
loucura, quem de fato se entenderia enquanto poeta (?). Apoiada na oralidade da linguagem
verbal, fazia prova de que algum agenciamento mesmo que silencioso brotava falatório criador,
por resistência, mas também talvez por conta de algo de certa ambiência de escuta, que já
começara a ser construído com a presença de Carla Guagliardi e sua equipe.
Stela do Patrocínio fazia denúncia da estrutura hospitalar mortificadora, dos abusos de
poder, das violências contra o seu corpo e dos seus pares, denunciava estupro, choque, excesso
medicamentoso, insalubridade, internações compulsórias, regime prisional, corte de liberdade
de ir e vir, de existir. Denunciava seu corpo sendo violado, sua subjetividade sendo suprimida,
em vozes múltiplas que nenhum silêncio fétido poderia calar, posto que não calou:
67

Eu estava com saúde


Adoeci
Eu não ia adoecer sozinha não
Mas eu estava com saúde
Estava com muita saúde
Me adoeceram
Me internaram no hospital
E me deixaram internada
E agora eu vivo no hospital como doente
(...)
O remédio que eu tomo me faz passar mal
E eu não gosto de tomar remédio pra ficar passando mal
Eu ando um pouquinho, cambaleio, fico cambaleando
Quase levo um tombo
E se eu levo um tombo eu levanto
Ando mais um pouquinho, torno a cair
(...)
Estar internada é ficar todo dia presa
Eu não posso sair, não deixam eu passar pelo portão
Maria do Socorro não deixa eu passar pelo portão
Seu Nelson também não deixa eu passar lá no portão
Eu estou aqui há vinte e cinco anos ou mais
(...)
Aqui no hospital ninguém pensa
Não tem nenhum que pense
Eles vivem sem pensar
Comem bebem fumam
No dia seguinte querem saber
de recontinuar o dia que passou
Mas não tem ninguém que pense
e trabalhe pela inteligência
(...)
Dias semanas meses o ano inteiro
Minuto segundo toda hora
Dia tarde a noite inteira
Querem me matar
Só querem me matar
Porque dizem que eu tenho vida fácil
Tenho vida difícil
Então porque eu tenho vida fácil tenho vida difícil
Eles querem saber como é que eu posso ficar nascendo
Sem facilidade com dificuldade
Por isso é que eles querem me matar
(...)
Eu já fui operada várias vezes
Fiz várias operações
Sou toda operada
Operei o cérebro, principalmente
Eu pensei que ia acusar
Se eu tenho alguma coisa no cérebro
Não, acusou que eu tenho cérebro
Um aparelho que pensa bem pensado
Que pensa positivo
E que é ligado a outro que não pensa
Que não é capaz de pensar nada e nem trabalhar
Eles arrancaram o que está pensando
E o que está sem pensar
E foram examinar esse aparelho de pensar e não pensar
Ligados um ao outro na minha cabeça, no meu cérebro
Estudar fora da cabeça
68

Funcionar em cima da mesa


Eles estudando fora da minha cabeça
Eu já estou nesse ponto de estudo, de categoria
(PATROCÍNIO, 2009. p. 43-61)

A poeta, dentro de uma estrutura de poder arcaica e punitiva, conseguira desenvolver


marca poética diante da vida roubada, fazer falatório com cadências, entonações, pausas e
performances orais singulares. É relevante aqui pensarmos na perspectiva de vida que
Patrocínio traz nos seus versos, se comparada ao cenário das/os autoras/es do livro Poesia é a
nossa estrutura, quando se diferenciam pela experiência vivida, pelo cenário ideológico onde
foram produzidas, a primeira dentro de um manicômio e a segunda no contexto dos serviços
substitutivos. A pulsão de vida que movimenta as palavras e os próprios questionamentos
críticos são distintos, de um contexto de represália para um contexto de acolhimento,
igualmente os versos e os verbos se distinguem entre a violência e a busca de si, mas se
encontram enquanto corpo, palavra, existência e voz munidos de resistência.
Arthur Bispo do Rosário, homem negro sergipano, que inclusive dá nome ao Centro de
Convivência da regional leste de Belo Horizonte (Imagens 13 e 14), é referência direta para o
campo epistêmico arte e saúde mental, emblemático nas discussões sobre arte e como exemplo
de transgressão estética para os convivas dos serviços relacionados, sobretudo nas oficinas de
artes plásticas, mas também de letras e bordado. Bispo foi interno na Colônia Juliano Moreira,
assim como Patrocínio, por aproximadamente 50 anos, com pouquíssimos afastamentos durante
os 20 primeiros anos.
Isolado do mundo pela acusação de “delírios místicos”, reinventou sua vida a partir da
criação, fez do espaço de isolamento e doença lugar de construção e organização do mundo.
Determinou sua política para viver com o pouco recurso que a vida lhe permitiu e com tudo que
lhe tirou. Todo material que se fazia disponível era usado como matéria para criação de objetos
de arte, que desde a década de 1970 com as vanguardas artísticas podemos denominar de ready-
mades e assemblages, composições, manipulações e ressignificações de objetos. Além de ser
precursor na invenção de ready-mades e assemblages, Bispo também representou vanguarda
artística na inauguração do diálogo das artes plásticas com a palavra e o bordado, e ainda na
composição plástica híbrida que produzia desenhos com linhas, bordados com palavras,
cruzamento de linguagens e sobreposições.
A feitura dos objetos era, como Bispo mesmo declarou, uma forma de organizar o
mundo, atividade na qual se dedicou como um estado de vida, um constante estado de criação,
construção de linguagem, performance, uma instauração híbrida de arte e vida. Neste estado,
69

teceu o manto que vestiria no “dia do juízo final”, bordando nele as palavras que narravam seus
atos e pensamentos, desenhos que alinhavavam sentidos para a sua vida, imagens e significantes
que transitaram pela sua história. Bispo também construiu um barco de madeira, remetendo à
época em que foi marinheiro, que trazia tesouros recolhidos no cotidiano, ressignificava o
próprio transitar, navegar pela vida. Ao anunciar que “um homem não pode viver sem um barco,
sem um barco ele estará perdido” (Hugo Denizart, 1982), Bispo compreendia que sem um barco
a existência não seria digna e possível.
Bispo morreu após um longo confinamento. Depois da sua morte, sua obra de vida
passou a ser compreendida como arte, a fazer parte de exposições, bienais, livros e filmes, a ser
memorizada, e junto dela muitas e distintas análises a respeito da conexão “arte e loucura”. O
paradoxo perverso que se desenha aqui, e que é relevante tangenciarmos, é como um fazer
posteriormente reconhecido como precursor de um saber específico e tão premiado na
sociedade, pôde ser encarcerado como crime na mesma existência. Ou, que projeto é este de
sociedade que reconhece e aplaude uma criação ao mesmo tempo em que aniquila a existência
do seu criador. Ou ainda, onde estavam esses olhares descobridores da obra de vida de Bispo
quando podiam tê-lo salvaguardado do confinamento antes da morte?
Estas e outras questões se relacionam à construção social advindas dos biopoderes e do
projeto necropolítico, com todas as suas consequentes exclusões. A resistência, criação e
invenção de existência feita por Arthur Bispo do Rosário e Stela do Patrocínio representam
exemplos de vida, e também para o campo interdisciplinar arte e saúde mental. Dentro das
políticas antimanicomiais contribuem muito, inclusive para que convivas hoje trabalhem para
reestruturar suas vidas e agenciar junto das artes possibilidades de existir. A poesia se faz,
assim, inseparável do território narrativo da liberdade, e essa busca se constrói tão urgente
quanto a própria vida.
70

4.2 O corpo como “manifesto errante”: narrativas, performances e soerguimentos

É dito: pelo chão você não pode ficar


Porque lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
Pelas paredes você também não pode
Pelas camas também você não vai poder ficar
Pelo espaço vazio você também não vai poder ficar
Porque Lugar de cabeça é na cabeça
Lugar de corpo é no corpo
(Stela do Patrocínio)

Desde a institucionalização da loucura nos primeiros asilos e hospitais da história


ocidental, esta é acionada como assunto apropriado sobretudo pelo domínio médico, e
internamento é sinônimo de vigilância e punição pelas leis, contratos e constructos sociais. Os
corpos-alvos eram, e ainda hoje o são em grande parte, entendidos como “alienados, devassos,
dissipadores, blasfemadores, libertinos”, afirma Foucault (1972, p. 116), então submetidos ao
internamento não como função de tratamento, mas com uma condenação, um prazo para o seu
arrependimento, uma punição moral ao “desarranjo nos costumes e no espírito”, ao desatino. A
hospitalização da loucura não deixa nenhuma perspectiva que poderia ser traçada fora da
doença, dos remédios e da eventual cura, a dita alienação teria para tal entendimento um caráter
patológico, advindo de uma imoralidade incurável, que por assim ser, só poderia ser punida, o
internamento destina-se a corrigir, por isso seu aspecto prisional.
Mas os complexos asilares e hospitalares são falhos inclusive para seu projeto de
contenção, justamente porque existe algo na “loucura” que a medicina e a prisão não podem
conter, que pertence ao domínio da experiência, jamais esgotável no conhecimento clínico-
psiquiátrico. A institucionalização da/o “loca/o” foi um investimento das instâncias médicas,
prisionais e históricas de poder, controle e alienação, uma colonização desta experiência,
quando se entende que a loucura seja em si um movimento de vida, passível de risco e erro, que
também pode acionar ferramentas múltiplas de imaginação e invenção para um negociar com a
existência. Mas a leitura e o lidar com a experiência da loucura em muitas sociedades também
se torna fator de sofrimento, o que retroalimenta o estatuto de doença em relação à experiência.
Os constructos sociais tais quais estabelecidos pelos padrões ocidentais e, na experiência
do Brasil, tendo sofrido ainda com a ocorrência da colonização, têm como base fundante uma
estrutura de pensamento, comportamento e cultura pautada na represália de muitos grupos, em
nome da totalidade da razão única, oficial e científica, e em detrimento da experiência de outras
razões, que talvez pudessem responder com mais efetividade e produção de sentido às
71

alteridades e singularidades dos sujeitos, ao mesmo tempo em que às possibilidades de


alicerçamentos, pertencimento e identidade de grupos e comunidades.
A arte então foi acionada como potência transformadora, como componente orgânico
para a construção de possibilidades de vida, de vínculos, representações, partilhas do ser para
com a existência. A arte traria a oferta para o agenciamento de um estado fluido de criação, um
estado poético que poderia ser acionado nas relações do sujeito com o mundo que o cerca e que
nele influi. Poderia ser a arte uma movência e provedora de recursos que facilitariam as
negociações subjetivas, relacionais e socioculturais, tornando-as mais possíveis. Naidna de
Souza anuncia em Poesia é a nossa estrutura (livro): “Poesia - tudo podemos com essa que nos
fortalece”, como se portasse um amuleto que a munisse de força para trilhar seu caminho e que,
ao mesmo tempo, este exercesse sobre ela, ou melhor, sobre “nós” enquanto seus pares, um
fortalecimento, um estabelecimento de capacidade, de potencial para os enfrentamentos.
A este respeito, o dramaturgo, ator e diretor José Celso Martinez Corrêa fala sobre a
instauração de algo como um “estado de criação” que supere os condicionamentos hegemônicos
instaurados pelas instituições de poder, no controle do nosso imaginário, capacidade de
invenção, movências do corpo, pulsões de vida e desejos, e assim emancipe o ser, como uma
nova política para o existir. Assim podemos retomar ao conceito de poesia como modos de
vida, já que expropriar da supressão das subjetividades e singularidades significa dar respostas
de re-existências das próprias condições de vida, de escolha em existir corpo em decorrente
criação, a despeito do aniquilamento tracejado pela sociedade, e como possibilidade de se
fortalecer diante desta.
Ao mesmo tempo, esse “estado de criação”, além de gerar um posicionamento
transformador para o ser nas relações consigo mesmo, com o outro e com a sociedade, também
pode criar outras movências, em relação às respostas desta sociedade. Quando a presença do
sujeito e do grupo emancipa suas existências, também convoca a sociedade para que se reveja,
causa reações e alterações nos padrões culturais de relação com o grupo, fazendo aparecer os
ferimentos sociais e as possíveis ressignificações. Criar se faz, assim, lutar. O discurso da
criação como mais uma ferramenta clínica ultrapassa o esperado, e passa a gerar consequências
para além da terapêutica, passa a gerar perspectivas, pulsões, planos, devires. Como constatou
Gilles Deleuze (1997), entendemos que no ato de criar, em estado de criação, o ser se encontra
em um devir artista que o afasta da doença.
A doença, para a nossa leitura, ultrapassa a imposição determinista da clínica, e é
somada também a um mal-estar em relação às influências da civilização. O sofrimento
individual é, portanto, também coletivo, quando excede o sujeito desde a origem até as
72

implicações reacionais. E a condição de sofrimento influi diretamente na psique, mas também


no corpo, nas reações emocionais, no campo relacional, na produção de subjetividades e na
vinculação de sentidos. Insurgir do sofrimento é possibilitar outras relações emocionais diante
de uma estrutura civilizatória que permanece excludente e reativa nas entranhas e imposições
cotidianas, segundo o pensamento de Sigmund Freud (2010).
Para dialogar com esse pensamento, trazemos a experiência da Rede de Saúde Mental
de Salvador/BA, através das figuras de Girlene Almeida e Raimundo, ambos retratados em
filmes do diretor Talbert Igor em parceria com o Núcleo Interdisciplinar de Saúde Mental
(NISAM/ ISC/ UFBA). Girlene Almeida, artista plástica, atriz, militante e usuária da Rede de
Atenção Psicossocial (RAPS) em Salvador, declarou no filme sobre a sua vida Eu sou aquela
planta seca, mas que está viva (Talbert Igor, 2019): “Eu não tenho medo de ser louca, eu tenho
medo de ser enlouquecida por esse mundo aí, mas da minha loucura eu mesma cuido (...) eu
sou assim, eu sou aquela planta seca, mas que está viva.”
A análise da estrutura de sofrimento através de uma leitura biopsicossociocultural
parece trazer uma perspectiva mais complexa para enxergarmos as relações do sujeito com a
experiência da loucura. As interseções entre os campos da biologia, psicologia, sociedade,
história e cultura costuram-se para compreender o sofrimento mental, porque formam juntas
um emaranhado de nuances que constroem a situação psíquica-emocional de sofrimento, “de
modo a fazer ressaltar, sucessivamente, um ou outro elemento, à moda de uma gestalt”, como
colocado por Mônica Nunes (2012, p. 912). Considerar a integralidade dos fundamentos do
sofrimento mental poderia facilitar a lida com os sujeitos em sofrimento e contribuir para a
reconexão dos seus laços sociais.

O estudo de alguns desses aspectos tem evidenciado a possibilidade que eles abrem a
uma posição de maior compreensão, comunicação, respeito, ou acolhimento da
diferença. Esses estudos reposicionam sintomas como dimensões da experiência
subjetiva e social, restituindo-lhes a possibilidade de fazerem sentido dentro de uma
lógica relacional e humana. (NUNES, 2012, p. 910).

Este reposicionamento tem relação com a estrutura ética do cuidado com o sujeito e seu
sofrimento, como com todo mal que pode perseguir sua saúde emocional e clínica. Assim, a
aplicação dos recursos deve ser pensada, sobretudo, a partir do exercício da alteridade e da
consciência de que as psicopatologias dizem muito sobre os posicionamentos coletivos, e
podem tensionar ou distensionar as situações de sofrimento e mesmo as condições de
estabilidade em relação a todo sujeito e não apenas àquele em sofrimento mental. O sofrimento
mental é um constructo, e o cuidado deve tangenciar as origens e não apenas o cessar dos
sintomas.
73

As análises empreendidas (...) favorecem a apreensão da atmosfera cultural e do ar do


tempo que matizam a experiência coletiva de mal-estares e formas de sofrimento a
partir de um campo semântico e pragmático que as circunscreve. Como campo
semântico e pragmático, entendemos um conjunto de valores, símbolos, construções
de pessoa e modos de fazer compartilhados e produzidos em contextos sociais
definidos a partir de uma conjuntura histórica, que envolve relações de poder e
econômicas, semelhante ao que Foucault chama de dispositivos ou práticas
discursivas. Nesse caso, sintomas e patologias subscrevem valores morais e se situam
em relações sociais concretas, refletindo e participando dos jogos de posicionamento
social e sofrendo os efeitos dos seus conflitos e dinâmicas sociais.(...) As descrições
antropológicas das formas pelas quais essa densa textura do social interage com
sintomas psiquiátricos informam acerca da inelutável constituição multifatorial das
doenças mentais: na construção histórica do normal e do patológico; nas condições
materiais da sua experiência e consequente incorporação das mesmas nos seus
sintomas, ou no desvendamento da sua compreensão; na recuperação dos recursos
biológicos na (re)tessitura de laços sociais; nos interesses socioeconômicos em jogo
na economia das terapêuticas e da produção das doenças. (NUNES, 2012, p. 906-909).

Nesse jogo biopsicossociocultural, a dimensão cultural se inscreve no sentido de


mensurar, orientar e mover as relações das sociedades com suas alteridades, dentre elas a
experiência da loucura. Se difere de uma sociedade para outra, de um tempo para outro, mas
também nas comunidades circunscritas dentro de uma mesma lei moral e sociocultural, muitas
vezes como um recorte destoante da supremacia social. Assim, os recursos culturais e
simbólicos dos quais se lança mão para a relação com as alteridades, o trato e o laço afetivo
estabelecido, também dependem da cosmogonia inscrita, das interpretações e formas de se
manejar os recursos.

Os usos desses recursos aparecem como formas de nomear, significar, tratar e


negociar com os vários sofrimentos da alma, e tendem a problematizar os regimes de
verdade naturalistas. (NUNES, 2012, p. 913)

Outros modos de existir, muitas vezes contra-hegemônicos, se tornam um


estabelecimento de outras racionalidades, de outros modos de lidar com a loucura, como
experiência complexa, como mais um componente da complexidade humana. E a alteridade se
faz como necessidade de compartilhamento e trato com essa experiência, ativando novas
possibilidades de vínculos socioculturais, emocionais, existenciais, relacionais, afetivos e,
portanto, epistêmicos. Novas reações à sociedade e à civilização produzem outras respostas ao
padrão, e conclamam outra linguagem, outro modo de pensar a vida, outras partilhas de
pensamento.
Neste sentido, a/o sujeita/o deixa de se entender obrigada/o a responder ao padrão, a
responder a quem Naidna de Souza nomeou como “eles”, e “eles” passam então a não poder
mais dizer o que pode ser dito, por quem pode ser dito, onde o sujeito deve estar, por onde cada
corpo pode ficar, qual o lugar de cada cabeça. O que Stela do Patrocínio conclama no poema
epígrafe dessa subseção, tem relação com esse lugar da linguagem e do desejo, relação com a
74

singularidade das vontades que não podem se estabelecer por conta das limitações dos pactos
socioculturais e institucionais. A instituição da loucura executa a exclusão dos desejos, das
criações e invenções de outras cosmogonias, de outros pactos subjetivos e movências.
Diante da institucionalização da loucura, da coisificação das subjetividades e da
aniquilação das alteridades, a poesia, a linguagem poética, a experiência da arte, se colocam
como um direito mínimo. Se por todos os lados que olharmos para as tramas sociais, nos
sentirmos cercados, muralizados, é preciso que o direito à transgressão subjetiva nos seja
resguardado, no mínimo por sobrevivência. Mas é justamente pela instauração da miséria
humana por parte dos dominadores das instâncias sociais, que não se instaura apenas a escassez
dos recursos sociais – bem como materiais – básicos, mas também a privação de todo recurso
e atividade subjetiva, que poderia agenciar o alicerçamento do ser à vida no sentido de tentar
suportar as faltas estabelecidas pela condição civilizatória imposta.
A arte se faz assim munição, recurso de resistência e re-existência sociais. Augusto Boal
(1991), ator e diretor, quando propôs o Teatro do Oprimido, munia-se também das experiências
e discursos das vanguardas artísticas do século XX, e dialogava com o Teatro Pobre de Jerzy
Grotowski e com o Teatro da Crueldade de Antonin Artaud (2006). Este defendia um teatro que
fosse duplo da vida, ritualístico, que se voltasse às formas teatrais originárias das culturas. É
sua noção de Arte e Vida que foi largamente utilizada desde então nos campos das artes para
estreitar as relações entre elas, entendendo a arte enquanto experiência e a vida movida pela
arte. Para a experiência que trazemos elas se tornam uma palavra só – Artevida - porque se
fundem igualmente em significante. Grotowski (Apud PONTES, 2009), por sua vez, anunciava
um teatro que abolisse supérfluos acessórios, que se voltasse para a reinvenção de arquétipos,
um teatro que perturbasse suas testemunhas. Ambos apontavam para a destituição do
espetáculo, para a atenção à teatralidade, ao corpo como elemento central, plástico, que deveria
comunicar até mesmo sem o verbo, sem a palavra articulada.
Boal subverteu a modernidade europeia dessas e de outras influências, se abastecendo
delas para transcender o palco italiano, a distância do espectador, a transgressão de elementos
espetaculares que mantinham a arte afastada da vida. Fez então política quando ofereceu ao
sujeito comum o direito de atuar, quando desconstruiu a cena e confundiu verdade e mentira. O
Teatro do Oprimido foi inaugurado e ainda atualmente é aplicado como subversivo, tanto como
um recurso político que democratiza o sistema de arte, de formação, fabricação e comunicação
de discursos, quanto para o métier elitista das artes, que precisou chamar de ator o cidadão
comum.
75

O Teatro proposto por Augusto Boal inaugurou no Brasil um espaço democrático para
muitas vozes, para o encontro de grupos narrativos que acharam caminhos de soerguimento
pelo reconhecimento de pares, da performance, da representatividade, da construção narrativa
advinda das suas histórias, do reconhecimento e valoração de si, do ofício de atuar e do lidar
com a substância cênica como recurso político, como discurso. Boal formou multiplicadores
que reverberam durante várias gerações e em distintos espaços sua metodologia discursiva
estética e politicamente inclusiva. O Teatro do Oprimido é um exemplo de como narrativas
dissonantes podem se soerguer e re-existir por meio da arte, e também é exemplo de como o
binômio arte-vida constrói tecnologia e existência utilizando-se da performance.
Para a experiência “Poesia é a nossa estrutura”, o Teatro do Oprimido é um alicerce,
porque demonstra uma das primeiras experiências de arte e linguagem onde as/os atoras/es
representam um grupo negligenciado, oprimido pela sociedade, que cria e produz linguagem a
partir da sua narrativa, e essa produção é divulgada enquanto arte.
Paul Zumthor (2207), por sua vez, quando fala da poesia e da oralidade, evoca uma
forma de estar no mundo, de se relacionar, comunicar, de se portar. Entende que poesia não é
apenas a palavra articulada, o verso, a escrita, e nem mesmo a oralidade, mas algo que a
atravessa, ao existir no transverso da relação entre o fazer e o ser, entre a existência e o ofício.
Como o repentista que tem no verso o ofício, e também a narrativa da sua vida, do que o
circunda, logo, quando versa, performa a própria vida. O verso e o ato de versar são assim a
essência do viver, que não termina onde a vida começa, mas se enlaça a todo tempo com ela, e
faz da poesia a performance da existência. Este emaranhado entendido por Zumthor quando lê
a oralidade do cantador de rua, também se relaciona ao Teatro do Oprimido, a esta performance
enlaçada na vida, a arte como experiência, a criação e a linguagem enquanto duplas da
existência.
A poesia se faz, assim, algo como um modo de estar no mundo, que transgride a
literatura em forma, entrecruza linguagens e soergue se construindo performance. O corpo
sendo significante que exprime fala enquanto trafega transformado por sua emancipação,
performa conquista. As vozes, a partir do mesmo movimento, deixam de significar delírio
esquizofrênico e, emancipadas pela linguagem, produzem discurso e se reorganizam cabíveis
na fala e no corpo.
Raimundo, anteriormente trazido enquanto personagem retratado no filme do diretor
baiano Talbert Igor, é também ator do grupo de teatro Os Insênicos (Salvador-BA), usuário da
RAPS e da Rede de Saúde Mental do município de Salvador/ BA. Trazemos a experiência de
Raimundo para dialogarmos mais uma vez com outras iniciativas de arte e saúde mental, e
76

especificamente com influências do Teatro do Oprimido, que geraram reconhecidas benesses à


vida de pessoas em sofrimento mental. Raimundo explica no filme sobre sua vida O monstro
brilhou comigo (Talbert Igor, 2019) sobre sua relação de soerguimento através do teatro:

[o teatro] fez de mim um sujeito que tem nome e identidade, começo, meio e fim (...)
é uma loucura que deu certo (...) eu tenho a capacidade hoje em dia de acordar e saber
que não estou bem e saber o que fazer (...) eu fiz uma junção na minha vida do teatro,
o serviço substitutivo CAPS e a minha religião, o Candomblé. Eu fiz uma junção disso
tudo pra modelar esse sujeito que sou hoje, eu tenho a plena capacidade de saber quem
eu sou, eu sou Raimundo. (Talbert Igor, 2019).

A experiência da arte tem devolvido dignidade de vida para essas pessoas que foram
agrupadas socialmente pelo paradigma loucura x normalidade, e que tiveram suas existências
violadas pela violência dos maus-tratos, tanto institucionais quando socioculturais. É possível
perceber as movimentações que têm sido feitas para a reconstrução de vida, a partir da política
de base até as conquistas e investimentos públicos. Todo este movimento influi diretamente nos
alicerces do pensamento, nas condutas de escuta e de vozes historicamente silenciadas que têm
voltado a se erguer e produzir discurso. Assim, segundo Naidna de Souza em Poesia é a nossa
estrutura (livro), “hoje nós estamos libertos pela arte”.

4.3 A defesa pela linguagem banida, pela poesia de margem, expandida e fronteiriça

O que poderia ser mais importante do que a poesia?


Tudo, mas não é.
(Naidna de Souza)

Ao afirmar que nada pode ser mais importante do que a poesia, Naidna de Souza sustenta
a arte e suas linguagens como mecanismos imprescindíveis na busca e proteção do sujeito,
sustenta a potência de vida guardada no estado de poesia, na experiência da arte.
A poesia, sobretudo como experiência, gera consequências tanto para os universos
individuais quanto para os coletivos. Em um nível individual, provoca algo como “catarses
individuais”, instrumentalizando a realização existencial da/o própria/o poeta, que através dela
se organiza, afirma e negocia com a humanidade e o universo. A poesia tem um caráter efetivo
de transformações dos sujeitos na relação com a sociedade, influenciando na sua capacidade de
senti-la, pensá-la e agir sobre ela.
77

Por isso que, em estado de poesia, elas [as pessoas] influirão sobre outros indivíduos
(a poesia ensina) até contribuírem para a modificação da tradição ética da sociedade.
O poeta deve formar sua própria ética no entrechoque de sua luta contra o universo.
(FAUSTINO, 1976, p.57)

Nesta perspectiva, a vivência da poesia estimula a sua própria propagação, além de uma
ação política para o ser diante do que o cerca, devolvendo a este interesse íntimo de ressignificar
e interesse social, e contribuindo para construir laço entre sujeito e sociedade. Tal nova ordem
ética estabelecida oferece ao sujeito emponderamento, reconhecimento de si e das suas
capacidades, a partir de um “conhecer poeticamente o mundo”, nos termos de Faustino (1976).
Ainda em Faustino, ao mesmo tempo, em um nível coletivo, a experiência poética age
sobre as pessoas como notícias de cataclismos e revoluções, tamanha sua intensidade e
capacidade de movência, contribuindo ativamente para a formação de utopias, de onde podem
brotar sistemas de vida, ideias, criação de um clima social e alimentação de um movimento
pautado na transformação das coisas que o circunda, dos laços sociais.

A poesia vem ao lápis nesta noite fria


e conforta o coração de quem sofria
Com um copo de café ao lado imagino
a fumaça trançando seu rosto maquiado
Coloco as letras pra fora e presumo que realmente
você não está lá fora
Minha mente perturbada te adora
rimas e versos você me dá vitória
(Cris Gomes)

A poesia atua na reinvenção e contribui por redefinir o espelho do sujeito, seu olhar e
reconhecimento de si mesmo, enquanto reestabelece vínculos relacionais e sociais, a partir de
uma ética poética compartilhada. Retomando Faustino, a poesia inventa, e seu caráter de
invenção perfura a vida nas suas instituições simbólicas, sociais, culturais e relacionais,
partindo da consideração do poema como um objeto vivo, na medida em que age sobre as
consciências como palavras vivas, como palavras coisas, que se agitam e modificam o que
existe. O estado poético ou a experiência da poesia se fazem movimento, não se estabelecem
como algo estático, propício à uma fruição passiva. A poesia, a linguagem poética, a palavra e
sua estética se articulam movimento a todo tempo, porque vivem nos emaranhados da escrita,
da leitura, interpretação, representação, comunicação, criação de pensamento, produção
estética, invenção de sentidos, arte. Todos os mecanismos de movimento da linguagem são
mecanismos vivos, nunca exatos, influem e transformam a si como a tudo o que existe. A
linguagem se constrói assim como um organismo vivo, como as palavras, palavras coisas. “A
poesia é a matéria do desejo”, como Jet afirma no livro Poesia é a nossa estrutura.
78

Retornando a Faustino, a linguagem, porque movimenta, modifica, perfura os padrões


e reestabelece éticas, se faz utensílio único e requisito indispensável ao desenvolvimento da
cultura. Na tessitura dessa linguagem-movimento, dona de si, transformadora da língua assim
como do pensamento, a comunidade que a utiliza como pauta também se ressignifica, se
emancipa e proclama. Essa resposta coletiva vem ao encontro do conceito de “comunidade
inoperada”, criado por Karl Marx e aplicado na literatura por Jean-Luc Nancy, que responde à
experiência “Poesia é a nossa estrutura” em relação ao lidar com o estado poético como um
projeto ético coletivo e também na relação política fundante do Centro de Convivência.
Aqui analisamos então a política de saúde mental antimanicomial de BH e sua estrutura
de Rede, o que quer dizer que é a consciência política da existência desta Rede e a concordância
da própria comunidade, que constrói emponderamento, consciência coletiva, proatividade e
disposição para o envolvimento nas atividades propostas pelo grupo. Ademais, a intimidade,
gerada pela política pública estabelecida, com a experiência da arte e o universo da linguagem,
também contribui para uma pré-disposição favorável do grupo em relação às atividades e
coletividades propostas. Assim, a consciência da comunidade antecede a prática literária, o que
gera uma consciência coletiva em que todas/os as/os agentes vão se movimentar pelo bem
estabelecido do grupo, e desta forma, inaugura-se uma comunidade inoperada.
Também possível de ser aplicada ao grupo “Poesia é a nossa estrutura”, dentro do
pensamento da comunidade inoperada, é a análise da invenção de modos de existir. O
nascimento da literatura dentro do espaço coletivo se dá como uma resistência, como uma
língua inaugural, um novo modo de pensar, que se quer resposta à coletividade tanto quanto à
articulação das singularidades dos indivíduos. As narrativas se inscrevem na estrutura e forma
desta comunidade, gerando assim uma certa resistência coletiva, uma ambiência à capacidade
de reinscrição da vida, de afirmação de existências e discursos. Esta por sua vez, então pode
também agenciar a necessidade coletiva de reconhecimento, pertencimento e identidade, ao
mesmo passo que responder à partilha de vozes, às alteridades. E a literatura, poesia, linguagem,
fazer criativo, nascem justamente como consequência dessa articulação entre o comunitário, as
singularidades e a busca de reinscrição resistente.
A comunidade rasura então a sociedade, e o grupo comunitário da saúde mental,
sobretudo quando tem respaldo público para se organizar, faz das ranhuras novos desenhos. A
organização estratégica enquanto grupo de resistência, como a Rede de Saúde Mental de BH,
contribui no reerguimento de corpos que estavam historicamente lançados às margens, nas valas
da sociedade. O “maluco da praça”, “a fulana doida da beira do rio”, “a sicrana da venda”, passa
não só a ressignificar seus corpos, vozes, nomes, como a própria margem. Assim ensinam
79

muitos grupos que têm se reorganizado e inclusive reutilizado termos banalizados e


pejorativamente usados pela sociedade. Maluca/o, doida/o, louca/o são termos
metonimicamente construídos para nomear as pessoas sem nomes, os corpos sem lugares. Hoje
são termos cada vez mais reutilizados pelas/os usuárias/os dos serviços de saúde mental, não
como depreciativo de si mesmas/os, mas como rearranjos da língua, ressignificação, devolutiva
à sociedade da utilização a favor de uma nomeação que foi consolidada contra as mesmas
existências.
Ressurgir desta não-nomeação é o mesmo movimento de ressurgir deste não-lugar para
o estabelecimento de lugares que agora serão habitados pela loucura, não como linchamento
social, mas como direito à cidade, direito à sociedade. Uma habitação agora não mais banida,
mas performática, política, ética, que convoca à partilha das alteridades.
Em resistência, uma resposta de vida diante do aniquilamento se faz a partir da
reinvenção deste lugar marginalizado, na reestruturação dos corpos banidos, em um processo
de cura de feridas abertas. Corpos com vozes arrancadas se reinscrevem na existência enquanto
potência motora, sensível, dilatada para uma ressignificação de si mesmos e da própria margem,
da vala, da esquina, da encruzilhada, transformando o não-lugar ou o lugar negado em
assentamento de forças resistentes para a construção de novas existências. A beira da estrada
se faz agora lugar afirmativo ou, como queria Naidna de Souza em Poesia é a nossa estrutura
(vídeo-poema), “o mundo é uma saga poética”.
Essa língua distinta, esses outros modos de existir, em outros locos de saberes, e porque
não em outras literaturas, mesmo que ainda desautorizadas pelos poderes socioculturais
hegemônicos reivindica vida, expansão, e constata diante de tudo o que já lhe fora negado, que
ela vingou. Essa outra língua não significa conjunto de palavras e sentidos articulados, mas
conjunto de pessoas, narrativas e diferenças. Também não significa léxico definidor, mas
construção e transformação constante. Quando pensamos em uma outra poesia, pensamos em
outros modos de existir e negociar com a vida, roubada e reinventada, as negligências e as
possibilidades criadas. A poesia existe dialeticamente ao ser, ou como queria Naidna de Souza
em Poesia é a nossa estrutura (livro): “A cultura da poesia está dentro de nós”.
Nesse momento trazemos Naidna de Souza com o devido destaque já ressaltado
anteriormente, por força definidora de sua presença no grupo “Poesia é a nossa estrutura” e
porque através dos seus versos podemos respaldar muito do que se desenha como argumento
aqui. A poeta personifica muitas vezes essa poesia que atravessa a margem e brinca sobre a
encruzilhada. Onde a palavra e a margem parecem ser da mesma matéria íntima e pertencê-la.
80

Palavra
São sete letras jogadas no ar
Sete letras sim
(d e s) o r d e n a d a s
(Naidna de Souza)

Quando a dose do remédio foi mais forte e a cabeça pareceu “vazia”, no seu termo, a
poeta escreveu:

Eu não sei o que pensar


Estou com a cabeça vazia
Vem pensamento, vem
Eu quero te juntar e fazer um poema
Vem pensamento, vem
(Naidna de Souza)

Quando a cabeça estava cansada e não tinha pauta para propor, ela dialogou com a falta
de ideias, como se estivesse caminhando devagar na caça delas, como se falasse com elas:

Ideias
de
onde
vem
as
ideias
ideias vem
ideias vão
Ideia, porque você não pára,
ideia?

Eu quero te conhecer
eu quero te mostrar
(Naidna de Souza)

Em dias mais introspectivos, Naidna de Souza escrevia de forma mais existencialista,


mas mantinha a atmosfera da leveza, da intimidade com os saberes que circundavam a
existência, as palavras e a língua:

OS NOSSOS EUS
Eu, o que é o Eu?
Eu, de onde vem o Eu?
Eu, onde foi parar o meu Eu?
O que vem depois
do eu?
(Naidna de Souza)

Em uma manhã fria, com o vento gelado, o grupo quase todo se ausentou, e Naidna teve
mais espaço para versar como gostava de fazer. Ela versava e eu transcrevia, também captamos
81

o áudio para que não perdêssemos os versos. Naidna tecia com suas linhas nossas manhãs e
trazia assim mais poesia para nossa leitura de vida:

Linhas
Há muitas linhas e cada uma tem o seu sentido
Há a linha do horizonte que é a linha de maior profundidade que vemos ao fundo
de uma paisagem
Essa linha é onde o sol nasce e onde ele se põe
É a linha da contemplação da realização do imaginário
A linha do horizonte é onde o olho repousa
onde ele vê novas perspectivas

A linha do Equador é a linha que divide o Mundo: Mundo Norte e Mundo Sul
Separa o rico do pobre o branco do preto o claro do escuro
uma linha de penumbra
uma linha sombria
entre quem manda e é mandado
Uma linha entre o choro e o riso
entre a saúde e a doença
entre o louco e o são
Uma linha que separa realidades
Uma linha imaginária pode se apagar?

A linha de tecer pode fazer coisas maravilhosas também


Pode vestir desde o bebê até o idoso
Pode costurar emendar coser remendar bordar construir criar
não só a matéria mas a mente
Pode também inventar lindos planos
Planos mirabolantes
Ela supera o tempo e a sua própria linguagem

A linha da escrita
É uma linha que sai de dentro do ser e dá forma ao íntimo
É a linha que fala
que esclarece através da palavra
que conta seu pensamento
que conta tudo que pode e o que não pode
que te transporta para a lua e para o abismo
A linha da escrita não tem limite
sobe e desce conta riso e lágrima
te faz transgredir
A linha da escrita é a mesma linha da vida

A linha do risco
é a linha da arte
a linha da criação
a linha onde tudo é processo
e não se tem conclusão
é a linha do porvir
da matéria da elaboração
a linha da corda bamba
onde não podemos mais fugir uma vez que a-riscamos

A linha da vida tem muitos sentidos


ela vem desenhada na palma da mão
e você pode mudá-la esticá-la tecê-la traçá-la remendá-la pintá-la
A linha da vida é a linha mais mutável
Ela é como água como terra como ar como fogo como carne como
espírito como vida como morte
82

Ela depende de como você traduz


a própria vida

A linha da morte
Eu já passei por ela
e saltei dela
entendi que transcender a morte
quer dizer vida
(Naidna da Souza)

A ideia de poesia que sobretudo Naidna de Souza fez afirmar foi aquela possível de ser
percorrida como um universo plural que faz comunicar dialeticamente e criativamente as
realidades externas e internas, inventando formas de cabimento de existências e,
concomitantemente, reconstruindo a arte e a experiência da linguagem, infringindo e
modificando-a também. Somos por essa poesia de encruzilhada, de margem, de banco de praça,
de porta de venda, de casa mal-assombrada. Somos por essa poesia que responda às pluralidades
e ao mesmo tempo às singularidades de cada um(a), à língua que destoa, à palavra que arranha.
Somos pelos lugares e narrativas ressignificados porque precisamos dar respostas à vida.
83

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TUDO É CAMINHO - PLANTAMOS UMA ÁRVORE,


MAS QUEREMOS EXPANDIR A FLORESTA

Nós que acreditamos na Liberdade


não podemos descansar até que ela seja alcançada!
(Ella Baker)

Quando um povo, um grupo social se reconhece, se reestabelece diante dos


enfraquecimentos históricos que agiram sobre ele, violando sua existência, e em um movimento
de mote compartilhado, convoca a sociedade a se reaver com suas dores, reivindica seu espaço
de fala, de devir e porvir. É preciso que os recursos escolhidos para essa reconquista de si e da
comunidade diante da represália social sejam assegurados, é preciso que se construa a garantia
destes recursos, como um direito conquistado, como uma negociação retomada com a
excludente sociedade.
Em nenhum momento durante o desenvolvimento desse texto negamos a existência do
sofrimento mental, uma existência que inclusive definimos como estruturalmente
biopsicossociocultural, segundo termo trazido por Mônica Nunes (2012). Mas sim cobramos
que o mal histórico causado pela sociedade no trato paradigmático com a loucura, assim como
nas instâncias de poderes público-privado patrocinadoras dos manicômios e da supremacia
psiquiátrica de abordagens violentas e sabidamente genocida, seja reparado.
Se as instituições abrandaram suas abordagens e hoje não temos mais em território
brasileiro um Hospital Colônia como o de Barbacena/ MG, que matou 60 mil pessoas, isto
primeiro deve-se a um movimento antimanicomial nacional muito bem articulado e organizado.
Segundo, sabemos que estas mesmas instituições, ainda servis dos biopoderes, se reaparelharam
sistemicamente na manutenção e perpetuação da mesma lógica de exclusão, lucro e extermínio
dos “Outros” apontados pelo “ser humano oficial”, a serviço da necropolítica. Atualmente se
rearranjaram, por exemplo, na “guerra às drogas” e na aliança com a igreja evangélica, se
estabelecendo como os novos manicômios quanto à lógica de isolamento social, internação
compulsória, abuso medicamentoso, ausência de acolhimento e cuidado, e de um projeto de
acompanhamento psicossocial e terapêutico.
Na contramão desta lógica abusiva, lucrativa, articuladora de instituições de poderes
sociais e fornecedora de contribuições para a permanência das exclusões e hierarquias sociais,
os movimentos antimanicomiais se constroem por diversas vias públicas, através de apoios e
subsídios ainda não definidos como projeto de Estado, como deveria.
84

A escolha de afirmar e discutir a Política de Saúde Mental do município de Belo


Horizonte/ MG se faz importante para que localizemos os avanços que podemos fazer no trato,
assistência e acolhimento ao sofrimento mental, ao sujeito e à sua família. É relevante perceber
que a convergência de possibilidades que contribuíram para que em BH se estabelecesse uma
rede complexa com respaldo para de fato substituir a lógica manicomial. Mas também é
importante que essa constatação não paralise a busca de outras articulações, não nos deixe
passivas/os à espera do ambiente político ideal. Esta experiência mostra sobretudo a capacidade
de invenção a partir do “nada”, do vazio, do não-lugar, da não garantia. Afirma mais uma vez
a força advinda de uma comunidade organizada para inventar seu lugar, e mais do que isto,
reinventá-lo cotidianamente e renovar suas tecnologias e metodologias sempre que preciso.
Como política municipal, a Rede em BH também fica exposta a interesses divergentes,
ao projeto que o governo municipal atual representa. Nos últimos mandatos não só municipais,
mas também sob influência dos estaduais e federais, muito retrocesso aconteceu em relação aos
recursos que pareciam já estabelecidos. Perdendo-se portarias e garantias de direitos, se
enfraquece as conquistas, sucateia-se os serviços até que estes se declarem sem subsídios para
continuar, e então a justificativa para o desmonte se faz armada. Resistir diariamente, ano após
ano, para que os serviços da rede se mantenham, permanecendo fortes e transformadores é uma
luta cotidiana, assim como em outras experiências antimanicomiais que se estabeleceram como
política pública ou programas com articulações afins.
Defender as práticas das artes e linguagens como indispensáveis para um serviço
substitutivo antimanicomial, até internamente nestes serviços por vezes é entendido como
supérfluo. O pensamento estático e arraigado é de que talvez urgente seja mesmo garantir o
estabelecimento do serviço substitutivo clínico e psicossocial e, quem sabe de maneira
secundária, pensar nas atividades artísticas. Nem sempre se pensa no estabelecimento deste
serviço incluindo à clínica, assistência e arte. Ou ainda compreenda que a clínica deva ser
ampliada, e que essa expansão também diga respeito à arte.
Talvez aí esteja um diferencial do nascedouro da política de Saúde Mental de Belo
Horizonte, onde o primeiro Centro de Convivência começou como um espaço de criação dentro
do Hospital Raul Soares e a partir da resposta positiva daquela experiência, lutou-se para que a
arte fosse um membro, um braço dessa árvore frutífera originada pela Rede de Saúde Mental
do município. O Centro de Convivência e CERSAM são dispositivos que caminham juntos, a
arte e a atenção psicossocial caminham juntas e se sabem codependentes.
A garantia da arte é direito de fala, entendemos, é construção de mundo, de vida, de
projetos de existência e felicidade, de negociação com as circunstâncias e com o sofrimento.
85

Fazer arte é construir devir, é ampliar a conexão com a realidade, ampliar o repertório
relacional, é inventar modos de existir, modos de partilhar. A partir deste preceito
categorizamos este trabalho através dos marcadores “Árvore”, “Luta” e “Artevida”, nos
apoiando nos significantes essenciais à experiência “Poesia é a nossa estrutura”.
“Árvore” é de onde partimos para narrar a defesa de que é possível e preciso inventar
outros modos no lidar com o sofrimento mental, modos de existir onde caibam pactos da poesia,
da experiência estética na inscrição de outras partilhas, com enredo afetivo, valorização das
singularidades e produção de subjetividades. Defendemos, a partir da experiência vivida e
contada, que é preciso derrubar os muros manicomiais não só físicos, mas também simbólicos
e relacionais, enriquecendo o olhar e a discussão sobre a/o “louca/o”, desmistificando e
tensionando a ideia de loucura, buscando expandir os condicionamentos culturais no lidar social
com as diferenças e a multiplicidade das existências.
Para tanto utilizamos uma metodologia do afeto e acolhimento na experiência realizada,
uma prática do sensível, costurada por uma linha afetiva da escuta, do lidar com a arte e a
linguagem como experiências cotidianas. Sustentamos esta prática enquanto método analítico
de se fazer política pública inclusiva, como forma de atenção psicossocial para além da
terapêutica, como promoção de vida em si e criação de devir.
A experiência da arte se faz, ao mesmo tempo, como reconexão de laços, geração de
saúde, criação de episteme e movência dos paradigmas culturais. O grupo “Poesia é a nossa
estrutura” propiciou a escuta de muitas vozes que agora saíram das cabeças de gente entendida
como desimportante. Vozes que outrora pareciam delirantes, se afirmaram enquanto ativas e
ocupantes de um espaço social, mas também existencial, conquistados. O princípio “Árvore”
nos ensinou a plantar para multiplicarmos frutos fortes e doces de uma bela e exequível utopia.
“Luta” nos trouxe as raízes de onde partimos, de quem precisou cerrar os punhos para
que hoje pudéssemos ter mais respaldo para lutar. “Árvore” é “Luta” em movimento, é
reconhecer a memória que nos constitui e fazer dela continuidade, estrutura da construção
cotidiana de uma lógica antimanicomial, não só para o projeto institucional substitutivo, mas
também para a expansão das consciências culturais.
A Política de Saúde Mental de Belo Horizonte tem sido foco também de estudos, trocas
e intercâmbios nacionais e internacionais. As equipes herdeiras de Franco Basaglia na Itália
estão se estabelecendo no município de BH para entender como os dispositivos da Rede podem
funcionar na realidade cotidiana. Positivamente isto demonstra também como a Política
municipal tem se estabelecido coerente com suas ideias fundantes. No entanto, ainda
precisamos pensar nas falhas internas, questionar se as decisões e condutas têm respeitado ao
86

mesmo tempo que as ideias fundantes, também as movimentações contemporâneas, as questões


divergentes que o presente e o próprio mecanismo de movimento que o trabalho traz e que é
preciso discutir, colocar em pauta, revisar, dar a devida importância, para que não tornemos
obsoleto um projeto libertário, reproduzindo sintomas institucionalizantes adoecedores.
Uma das implicações neste sentido seria a “replicação de sintomas” em relação à própria
estrutura coletiva, que adoece caso não tenha mediação constante. Da mesma maneira, o risco
do adoecimento das/os funcionárias/os dos serviços, que através de alguma falha por excesso
ou falta de mediação, adoecem mental, emocional e até mesmo fisicamente, pela delicadeza
não monitorada no trato dos serviços. As mediações e negociações precisam ser monitoradas
de maneira constante, por equipe qualificada não só clínica, mas sobretudo eticamente, para
que de fato ajamos através do cuidado e acolhimento que defendemos.
Este propósito também se relaciona à construção de outras racionalidades, que viemos
apresentando aqui, os tratos e tratados devem se fazer cama acolhedora às singularidades e
coletividades, ao mesmo tempo em que não devem falhar com a presença e mediação necessária
para que estas mesmas singularidades e coletividades não adoeçam. Nossa prática mediadora,
pautada no cuidado e acolhimento precisa se fazer implacável, e construir outra ética, análise e
saberes.
Finalmente “Artevida” se faz aqui através de outras propostas de partilhas e saberes da
arte para com a vida. Delineia poesia enquanto literatura produzida, que em si demarca falas,
narrativas, representatividade e espaços conquistados, mas também para além da palavra
escrita, enquanto inscrição performática, corporeidade, estado latente de relação com a
existência, presença e voz. As duas compreensões são duplas e inseparáveis.
Essa tomada de si é irregular, está propícia a derrapagens, crises, desequilíbrios, mas
por se construir conquista, é também definitiva. Assim, quando defendemos o estado de poesia
propiciado pela feitura cotidiana de arte e linguagem, não estamos afirmando lançar mão de um
tipo de “antídoto”, uma “cura”, um “milagre”. No entanto, estamos pensando em agenciamento
das existências através da experiência da arte como uma tecnologia potente na reorganização
de subjetividades, transformação de realidades e possibilidades de influência com outros
elementos narrativos nos constructos sociais, inventando lugares para que outras existências
sejam possíveis. Hoje, as propostas substitutivas aos manicômios têm como uma base
metodológica a ação da arte para além da terapêutica, como modos de vida, emancipação,
construção de crítica individual e coletiva, e até mesmo como geração de renda. Arte é uma
tecnologia leve, utilizada pelos dispositivos antimanicomiais nas relações de produção de
vínculos, autonomização e acolhimento, como base prática e ferramenta discursiva.
87

Quando entendemos que a “doença” não é portabilidade do sujeito, mas deve ser
compartilhada com a sociedade que contribuiu para produzi-la, a reestruturação do ser e sua
desinstitucionalização se fazem óbvia justiça. Tão irrefutável quanto a derrubada dos muros
sociais e simbólicos para a construção de cidadania, integralidade e sociabilidade, que podem
reorganizar os corpos antes banidos em criadoras/es e inventoras/es de si mesmas/os, das
próprias falas e do mundo que habitam e influenciam.
Outras realidades, outras narrativas e perspectivas de vida trazem transformações sociais
junto de si. Quando um grupo minoritarizado se autoriza a falar, derruba sua carapuça
excludente de desqualificado, faz influir também sobre a sociedade outras perspectivas, outras
inscrições, epistemes, modos de viver, outra língua. Por isso que mudar a língua é concomitante
com mudar o mundo, como nos ensinou Roland Barthes (2013).
Ao mesmo tempo, a insurgência de uma outra escritura, outra poesia, outra língua
ressignifica dialeticamente as existências e também os lugares sociais. A “beira da estrada”, “a
porta da venda”, “o banco da praça”, “a casa mal-assombrada” se fazem moradas de corpos
agora apropriados de si mesmos, afirma o não-lugar, ressignifica a negação. As quinas destes
corpos, os desvios que impõem para a vida que nos arranha, passam a ter nomes e pronunciar
histórias. Só não escutam quem se fechou para a troca honesta com o mundo e para o
entendimento de que todas as vozes devem ser compartilhadas já que representam partilha do
todo, de experiências distintas advindas dos constructos enquanto seres sociais.
O não-lugar reorganizado espacializa então o corpo que se reorganiza nos escombros de
si mesmo e nos destroços da humanidade jogados sobre si, para se soerguer vida ativa.
Espacializa quando ressurge dos desvios, da encruzilhada, das quinas da sociedade e se
reinscreve narrativa política singular, lugar incomum. Sua fala passa a ser a tentativa de
apropriação de si mesma/o, de reinvenção do seu lugar roubado, performance de si. Passa a
representar um grupo narrativo e sua reação construída, uma espécie de “performance do
soerguimento”, conceito que aqui estou forjando e deverá ser desenvolvido na continuidade
deste estudo.
Nessa política de fronteiras, mudanças sociais profundas também são acionadas, em
resposta ao silenciamento e abjetificações históricas, como reestabelecimento de existências e
subjetividades, como exercício de alteridades. O conhecimento de fronteira responde então
como a instauração de um compartilhamento de saberes, forma analítica de se pensar a guarda
do lugar da exclusão ressignificado em ação, fala, criação de arte, razões e epistemes,
reestabelecimento de vida e produção de devir. De forma coletiva, empodera corpos
88

emancipados, como força motriz, para se reerguerem em políticas de ações inclusivas, em


poesia, em Artevida.
Se ocupar da loucura é um fazer do discurso psiquiátrico. Para a perspectiva da
experiência da arte, nos ocupamos do sujeito, da produção de subjetividades e invenção de
modos de existir a partir da sua experiência, que contém também a loucura. Os corpos
performáticos se reconstituem enfrentamento aos poderes, institucionalizados ou não, porque
se impõem como existência poética em contraponto ao Estado e aos estados de confronto,
contenção e extermínio.
É importante que enegreçamos nossos argumentos e demarquemos que as/os alvos do
projeto manicomial, preponderante e historicamente, foram e ainda o são definidos primeiro
por raça e gênero, e segundo por classe. Majoritariamente pessoas pretas e pobres formaram e
ainda formam o recorte social mais atingido pelos manicômios. A exclusão do sujeito entendido
como “louco” é também uma consequência da segregação e hierarquização racializada imposta
pela sociedade brasileira, que se reordena de maneira sistêmica para manter desigualdades,
baseadas na criação do “Outro” como sujeito e grupos sociais coisificados e desumanizados. A
interseccionalidade no Brasil, discutida sobretudo pelo feminismo negro e enfaticamente pela
intelectual Carla Akotirene (2018), nos permite dimensionar e relacionar opressões às vozes e
aos corpos subalternizados como um projeto de controle social, que os baniu para o lixo social,
a margem, a encruzilhada. E para este lugar de isolamento para onde foram varridos, segregou
o direito à vida, à civilidade, à humanização, à existência e fala, e à exercer episteme.
Esse “Outro” social e historicamente marcado por exclusões advindas do racismo, nos
leva a pensar em outras cosmogonias que partam da sustentação de outras racionalidades,
atendendo analítica, metodológica, estética e eticamente mais aos recortes sociais que
representam narrativas impedidas de se exercerem enquanto existências e saberes. Pensamos
então em um princípio criador de libertação psíquica e cognitiva, que se sustente em matéria de
criação e comunicação. A encruzilhada, a margem, lugar onde os tantos “Outros” foram jogados
e impedidos de exercer fluentemente suas realidades, se ressignifica quando a partir dela
propomos tomar de volta domínio de narrativa e exercer trânsitos criadores, culturais e
epistêmicos.
Mais uma vez em Interseccionalidade (2018), Carla Akotirene defende a encruzilhada
como um lugar epistêmico e metodológico, que produz suas próprias oferendas analíticas,
oferecendo “no espaço público o alimento político para os Outros, proporcionando o fluxo entre
teoria, metodologia e prática aos acidentes durante a colisão, amparando-os (aos Outros)
intelectualmente na própria avenida do acidente” (AKOTIRENE, 2018, p. 18). Nesse sentido,
89

pensamos em uma metodologia de resistência, de assentamento, reinscrição, uma Metodologia


da Encruzilhada, comprometida com o desenterrar das línguas esquecidas, das razões
assassinadas, comprometida com cuspir o sangue e ressignificar a terra onde pisar, dançar,
celebrar, morar, se fazer árvore, brotar criação, cultura e conhecimento, comprometida com
existir, construir devir e exercer alteridades.
Um outro conceito forjado por mim durante a elaboração da pesquisa que é a base desta
dissertação, apontando inclusive para sua continuidade é a Metodologia da Encruzilhada, que
se insurge então como lugar de reerguimento e ressignificações de corpos jogados,
abjetificados, movência de vozes banidas, violentadas, silenciadas, escuta, diálogos e trocas. A
encruzilhada se refaz como potência motriz, construída por libertação cotidiana das presas
criadoras, que possam interromper desejos e quereres, lançando mão de tecnologias que
respeitem e respondam às necessidades de narrativas expurgadas como pragas de um chão, que
voltam para se replantar estrutura viva e produtora de sentidos. A partir da égide da encruzilhada
como lugar prático, analítico e epistêmico, a travessia dos desviados, dos acidentados pelo
padrão hegemônico, dos “Outros”, propomos compor seiva elaborada, movência de outras
práticas, do sensível, da experienciação, da língua enquanto poética de tronco, sustentáculo,
corpo desenterrado, árvore, estrutura. A reconquista da linguagem é a reconquista de mundo, e
a travessia do acidente prevê uma metodologia traçada pela linha afetiva da escuta, pela partilha,
pela cultura da diferença e promoção de vida. Plantaremos, incansavelmente.
90

REFERÊNCIAS

A CLÍNICA ampliada da “coisa mental”: desinstitucionalização e subjetividade. Palestra:


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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely
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95

ANEXO A - IMAGENS

Imagem 1: Jornal Hoje em Dia, sobre a ASSTRAL

Fonte: Arquivo pessoal Luciana Pedrosa


96

Imagem 2: Museu de Imagens do Inconsciente

Fonte: Centro Cultural do Ministério da Saúde <ccms.saude.gov.br>

Imagem 3: Escritoras/es do grupo “Poesia é a nossa estrutura” em manhã de trabalho, no quintal do Centro de
Convivência Providência/BH, sobre o pano azul, debaixo da árvore. Setembro de 2015.

Fonte: Arquivo pessoal Ana Pedrosa


97

Imagem 4: Capa do livro “Poesia é a nossa estrutura”, compilação de poemas do grupo homônimo, a partir da
Oficina Poesia & Vídeo do Centro de Convivência Providência

Fonte: Arquivo pessoal <http://anapedrosa.com.br/outrosatos/>

Imagem 5: Frame do vídeo-poema média metragem “Poesia é a nossa estrutura”

Fonte: Arquivo pessoal


98

Imagens 6 e7: Noite de lançamento do livro e do filme homônimos “Poesia é a nossa estrutura”, na casa de cultura
Espaço Suricato, Leitura de poemas feita pelas/os autoras/es, com a participação das/os artistas Manu, Isaac,
Mariana de Matos e Renato Negrão.

Fonte: Arquivo pessoal Ana Pedrosa

Imagem 8: Silvio Savat, menino interno no Hospital Colônia de Barbacena (1979). Foto de Napoleão Gontijo.

Fonte: ARBEX, 2013


99

Imagem 9: Cemitério da Paz, em Barbacena/MG, onde 60 mil corpos vítimas do Holocausto Brasileiro estão
enterrados. Fotos: Roberto Fulgêncio/ Tribuna de Minas.

Fonte: ARBEX, 2013

Imagem 10: Exposição “O muro que nos prendia é agora o muro que nos liberta”, fotos do artista Napoleão Gontijo,
de internos do Hospital Colônia de Barbacena, no final de década de 1970.

Fonte: Arquivo pessoal < http://anapedrosa.com.br/outrosatos/>


100

Imagens 11 e 12: Exposição “O muro que nos prendia é agora o muro que nos liberta”, trabalhos de artistas dos
Centros de Convivência de Belo Horizonte. Curadoria de Ana Pedrosa, Maíra Paiva e Márcia Stanyslaw.

Fonte: Arquivo pessoal <http://anapedrosa.com.br/outrosatos/>


101

Imagens 13 e 14: Fotos da fachada do Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário (CC), em Belo Horizonte/
MG. Mural de pinturas feito por artistas do CC, coordenado por Maíra Paiva e Renata Corrêa. Na Imagem 13 se
lê: “Com doido respeito”, frase emblemática de autoria do conviva Claudio Márcio. Na Imagem 14 a figura
masculina da pintura representa e homenageia Arthur Bispo do Rosário.

Fonte: Arquivo pessoal Maíra Paiva


102

Imagem 15: Grupo “Persona Grata” no Centro de Convivência Providência, se preparando para uma apresentação,
em 2014.

Fonte: Arquivo pessoal Ana Pedrosa

Imagem 16 e 17: L.E.I.A em processo de atelier, no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, em 2015.
Imagem 16: Parte das/os integrantes do L.E.I.A. e Imagem 17: Amaral e Otoniel posando diante do mural do
grupo.
103

Fonte: Arquivo pessoal Ana Pedrosa

Imagem 18, 19 e 20: Exposição “Pássaros que vivem avoando, vivem avoando sem nunca mais parar, promovida
pelo CC Arthur Bispo do Rosário, na Galeria Mama Cadela, 2015. Imagem 18: Mural do Amaral; Imagem 19:
Carlinhos, Clarita e Lucília, respectivamente; Imagem 20: Lambe-lambe coletivo da Oficina de Letras coordenada
por Maíra Paiva.
104

Fonte: Arquivo pessoal <http://anapedrosa.com.br/outrosatos/>

Imagem 21: Festival da Canção Ideia Sonora. Apresentação da música Sara-cura, de Edmundo Veloso Caetano,
campeã do Festival de 2015. No palco da esquerda para a direita: Bruno, Ludmila, Diego Hemétrio (mediador da
Oficina de Música do CC Arthur Bispo do Rosário e Edmundo Veloso Caetano ao fundo).

Fonte: Arquivo pessoal Ana Pedrosa


105

Imagem 22: Performance de Juliano da Silva, artista multilinguagens vinculado ao CC Arthur Bispo do Rosário,
na 2ª Mostra de Arte Insensata.

Fonte: Mostra de Arte Insensata <http://mostradearteinsensata.pbh.gov.br/galeria_fotos2010.php>

Imagem 23: Desfile da Escola de Samba Liberdade Ainda Que Tam-tam, ala “Somos todos Basaglia”, 18 de maio
de 2015.

Fonte: Arquivo pessoal Ana Pedrosa

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