Barbara Weedwood. História Concisa Da Linguística

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Barbara Weedwood

história concis da
,

og

lf.ZAUUC,I\O

Marcos Bagno

EOITOR: Marcos Marcionilo


CAPAE PROJETO GRÁfiCO: Andréia Custódio
CONSELHO EDITORIAL: Ana Stahl Zilles [Unisinosl
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]
Gilvan Müller de Oliveira [UFSC.Ipol]
Henrique Monteagudo [Univ. de Santiago de Compostela]
Kanavillil Rajagopalan [UNICAMP]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre rUFES]
Rachei Gazolla de Andrade [PUC-SP]
Roxane Rojo (UNICAMP)
Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB)

CIP-BRASIL. CATALOGAÇAO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
W394l
Weedwood, Barbara
História concisa da lingulstica / Barbara Weedwood; [trad.]
Marcos Bagno. - São Paulo: Parábola Editorial, 2002.
168pp.; 12x18cm - (Na ponta da Hngua; v. 3)

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-88456-03-7

1.linguística - História. I. Bagno, Marcos. 11.Título. 111. Série.

(DO: 410

Direitos reservados à
PARABOLA EDITORIAL
Rua Dr. Mario Vicente, 394
04270-000 São Paulo, SP
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por escrito da Parábola Editorial Ltda.

ISBN: 978-85-88456-03-7
1" edição - 7" reimpressão - fevereiro/2012

(ç) do texto: Barbara Weedwood


(é) desta edição: Parábola Editorial, São Paulo, março de 2002

,
SUMARIO

NOTA DOS EDITORES................................. 7

INTRODUÇAO 9

1. A LINGUÍSTICA E SUA HISTÓRIA....... 17


-
2. A TRADIÇAO OCIDENTAL ATE 1900.
,
21
2.1 Grécia: a linguagem corno ferramenta
para entender a realidade.. 2:~
2.2 Roma: codificação e transmissão 36
2.2.1 A teoria da littera 43
2.2.2 Etimoloqia 46
2.3 A gramática na Idade Média.................... 50
2.3.1 Experimentação: qra máticas
vernáculos medievo lS........ 60
2.4 O Renascimento e além: universal e
particular .. 66
2.5 A descoberta do particular 69
2.5.1 A forma 11([ I inqna: a cmcrqéncia
da fonética c da morjoloqia 79
2.5.2 Primeiros passos rumo à iinquistica
h istôrica: a h ipôtrsc indo-cita e a
ascensão da filoíoqia compara ti l'a ... 84
2.6 A abordagem universal a partir do
Renascimento 95
3. A LINGUÍSTICA NO SÉCULO XIX 103
3.1 Desenvolvimento do método
comparativo 104
3.2 O papel da analogia 106
3.3 A contribuição de Hurnboldt 107
3.4 A Iinguística histórica (ou diacrônica)... 109
3.4.1 Mudança fonética 109
3.4.2 Mudança sintática........................... 113
3.4.3 Mudança semântica 114
3.5 O método comparativo 115
3.5.1 A lei de Grimm 116
3.5.2 Etapas no método comparativo 119
3.5.3 Críticas ao método compa rati 1'0... 121
3.5.4 Reconstrução Íl1tcrna....................... 123

4. A LINGUÍSTICA NO SÉCULO XX 125


4.1 () estruturalismo 12G
4.1.1 A linqu.;..stica rstrutural na
Europa 126
4.1.2 A linquistica estrutural nos
Estados Unidos 129
4.2 A gramática gerativo-transformacional.. 132
4.3 Reação às ideias de Chomsky 135
4.5 A Escola de Praga e o funcionalismo 137
4.6 A guinada pragmática 143
4.7 Bakhtin e as três concepções ele língua.; 148

GUIA DE LEITURA 157


,
INDICE DE AUTORES E DE OBRAS F
UNDAMENTAIS 161
NOTA DOS EDITORES

A Iinguística, tal corno hoje conhecida, flores-


ceu a partir de 1950, sob influência da visão estru-
tural defendida por Ferdinand de Saussure.
Mas para transmitir noções bem fundadas do
que seja a linguística, é preciso refazer um percurso
mais longo e completo, desde os gramáticos gregos e
romanos até Bakthin. Esse é o trajeto aqui oferecido,
para que os leitores possam fazer ideia exata do mo-
tivo pelo qual a linguística vem causando profundo
efeito sobre muitas disciplinas, especialmente sobre
a antropologia, a psicologia e a teoria literária, e
desenvolvendo interfaces com outras ciências so-
ciais, tais quais história, sociologia, bem como com
a filosofia e a psicanálise.
Por outro lado, a crescente produção Iinguística
e sua fecunda influência sobre o ensino de língua
no Brasil não podem ser subestimadas, assim corno
não se podem ignorar os desafios que se apresen-
tam a pesquisadores e professores que encaram a
Iíngualgem) corno atividade psicossocial, cuja nota
dominante e inerente é a transformação.
Para fornecer apoio teórico a esses pesquisado-
res e professores é que integramos à nossa coleção

7

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

"Na ponta da língua" esta História concisa da lin-


quistica. Nesta obra de síntese, que não abdica da
profundidade de abordagem, Barbara Weedwood
lança um olhar à história da conformação da ciência
Iinguística. Motivação de seu escrito é pôr à disposi-
ção dos leitores um relato em nada anódino, capaz
de fazê-los mergulhar no dinamismo da língua (gern]
como quem imerge em si mesmo, para daí se afirmar
em seus atos individuais de fala como feitores da
mudança histórica.

8
INTRODUÇÃO

A linguística é o estudo científico da língua (gem) I.


A palavra linquistica começou a ser usada em mea-
dos do século XIX para enfatizar a diferença entre
urna abordagem mais inovadora do estudo da
língua, que estava se desenvolvendo na época, e a
abordagem mais tradicional da filologia. Hoje em
dia, é comum fazer uma distinção bem nítida entre
a Iinguística como ciência au tônorna, dotada de
princípios teóricos e de metodologias investigativas
consistentes, e a Gramática Tradicional, expressão
que engloba um espectro de atitudes e métodos en-
contrados no período do estudo gramatical anterior
ao advento da ciência linguística. A "tradição",
no caso, tem mais de 2.000 anos de idade, e inclui
o trabalho dos gramáticos gregos e r0111anO da
Antiguidade clássica, os autores do Renascimento
e os gramáticos prescritivistas do século XVIII. É

1. Como o inglês só dispõe da palavra la11/fllt~(j(' para se


referir tanto à lil1//lU({Jf'117 (capacidade humana de se comunicar
por meio da fala e ela escrita) quanto à !f/l/lua (sistema linguístico
particular, idioma), traduziremos o termo inglês ora por "língua",
ora por "linguagem" e, eventualmente, por "língunfgem]", quando
ambas as noções estiverem, a nosso ver, contempladas no discurso
da autora (N. do '1'.).

9
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTlCA

difícil generalizar sobre uma variedade tão ampla


de abordagens, mas os linguistas em geral usam a
expressão Gramática Tradicional um tanto pejora-
tivamente, identificando um exame não científico
do fenômeno gramatical, em que as línguas erarn
analisadas com referência ao latim, pouca atenção
sendo prestada aos fatos empíricos. No entanto,
muitas noções básicas usadas pelas abordagens
modernas podem s r encontradas naquelas obras
muito antigas, e hoje existe um renovado interesse
pelo estudo da Gramática Tradicional como parte
da história das ide ias Iinguísticas. A linguística, tal
como é hoje compreendida, inclui todos os tipos de
exame dos fenômenos da linguagem, inclusive os
estudos gramaticais tradicionais e a filologia.
De fato, a distinção entre linguística e filologia
tinha que ver, no século XIX, e em grande medida
ainda tem, com questões de atitude, ênfase e obje-
tivo. O filólogo se preocupa pritnordialmente com
o desenvolvimento histórico das línguas tal corno
se manifesta em textos escritos e no contexto da
literatura e da cultura associadas a eles. O linguis-
ta, embora possa se interessar por textos escritos e
pelo desenvolvimento das línguas através do tempo,
tende a priorizar as línguas faladas e os problemas
de analisá-las num dado período de tempo.
O campo da linguística pode ser dividido por
meio de três dicotomias:
(1) sincrónica 1'8. diacrônica;
(2) teórica vs. aplicada;
(3) microlinguística 1'8. macrolinguística.

10
INTRODUÇÃO

FIGURA 1
Microlinguística e macrolinguística

Uma descrição sincrônica de uma língua des-


creve esta língua tal como existe em dada época.
Uma descrição diacrônica se preocupa com o desen-
volvimento histórico da língua e com as mudanças
estruturais que ocorreram nela. Hoje em dia, no
entanto, essas duas abordagens estão cada vez mais
em convergência, e muitos estudiosos até conside-
ram impossível separar o sincrônico do diacrônico.
O objetivo da linguística teórica é a constru-
ção de uma teoria geral da estrutura da língua ou
de um arcabouço teórico geral para a descrição das
línguas. O objetivo da Iinguística aplicada é, como
diz o próprio nome, a aplicação das descobertas
e técnicas do estudo científico da língua para fins

11
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

práticos, especialmente a elaboração de métodos


aperfeiçoados de ensino de língua.
Os termos microlinguística e macrolinguística
ainda não se estabeleceram definitivamente, e de fato
são usados aqui por pu ra conveniência. O primeiro
se refere a uma visão mais restrita, e o segundo, a
uma visão mais ampliada, do escopo da Iinguística,
Pela visão da microlinguística, as línguas devem
ser analisadas em si mesmas e sem referência a sua
função social, à maneira como são adquiridas pelas
crianças, aos mecanismos psicológicos que subjazem
à produção e recepção da fala, à função literária
ou estética ou comunicativa da língua, e assim por
diante. Em contraste, a macrolinguística abrang
todos esses aspectos da linguagem.
Dentro da microlinguística, então, poderíamos
incluir os estudos que se preocupam com a "língua enl
si": fonética e fonologia, sintaxe, morfologia, semân-
tica, lexicologia. É COU1Uln a referência a essas áreas
de estudo COlTIO o "núcleo duro" da linguística (em
referência ao termo inglês hard-core).Representam
também boa parte do conjunto mais antigo e tradi-
cional de estudos da linguagem: basta ver que boa
parte da terminologia técnica até hoje empregada na
microlinguística (substantivo, adjetivo, preposição,
verbo, pretérito, antônimo, pronome etc.) remonta
aos estudos lingüísticos da Antiguidade greco-romana.
Diversas áreas dentro damacrolinguística têm
recebido reconhecimento sob forma de nomes pró-
prios: psicoli ngu ística, sociolingu ística, lingu ís rica
12

INTRODUÇÃO

antropológica, dialetologia, Iinguística matemática


e computacional, estilística etc. Não se deve confun-
dir a macrolinguística COlTI a linguística aplicada.
A aplicação de métodos e conceitos Iinguísticos ao
ensino da língua pode muito bem envolver outras
disciplinas de um modo que a microlinguística
desconhece. Mas existe, em princípio, um aspecto
teórico etn cada parte da macrolinguística, tanto
quanto da rnicrolinguística.
A especulação e investigação linguísticas, tal
como as conhecemos até hoje, foram levadas a cabo
somente num pequeno número de sociedades. Embora
as culturas mesopotâmica, chinesa e árabe tenham se
preocupado com a gramática, suas análises estiveram
tão entranhadas nas particularidades de seus próprios
idiomas, e se mantiveram tão desconhecidas do mundo
europeu até pouco tempo atrás, que na prática não
tiveram impacto algum sobre a tradição linguística oci-
dental. A tradição Iinguística e filológica dos chineses
remonta a mais ele2.000 anos, mas o interesse daque-
les eruditos se concentrava amphmente na fonética,
na ortografia e na lexicografia; sua consideração dos
problemas gramaticais estava estreitamente vinculada
ao estudo da lógica.
Sem dúvida, a tradição gramatical não ocidental
mais interessante - e a mais original e independente
/

- é a da India, que remonta a pelo menos 2.500 anos


e que culmina com a gramática de Panini, do século
/

V a.C., que analisava a língua sagrada da India, o


sânscrito. Foram três os modos principais de impacto
13

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

da língua sânscrita sobre a ciência linguística mo-


derna. Tão logo o sânscrito se tornou conhecido
do mundo intelectual ocidental, ocorreu a eclosão
incontida da gramática comparativa indo-europeia,
e foram lançadas as bases para todo o edifício da
filologia comparativa e da linguística histórica do
século XIX. Mas, para esse edifício, o sânscrito era
simplesmente parte dos dados; a doutrina gramatical
indiana não desempenhou nenhum papel influent
direto. Os estudiosos do século XIX, porém, reco-
nheceram que a tradição de fonética da Índia antiga
era amplamente superior ao conhecimento ocidental
neste campo - e isso teve importantes consequên-
cias para o crescimento da ciência fonética no Oci-
dente. Em terceiro lugar, nas regras ou definições
isutras] de Panini existe uma descrição notavelmen-
te refinada e penetrante da gramática sânscrita. A
construção das frases, dos nomes compostos e assim
por diante é explicada por meio de regras ordenadas
que operam sobre estruturas subjacentes de maneira
espantosamente semelhante a diversos aspectos da
teoria Iinguística contemporânea. Corno se pode
imaginar, esse perspicaz trabalho gramatical indiano
suscitou grande fascínio na Iinguística teórica do
século XX. Um estudo da lógica indiana vinculada
à gramática de Panini junto com a lógica aristoté-
lica e ocidental vinculada à gramática grega e suas
sucessoras poderia trazer descobertas iluminadoras.
Enquanto na China antiga praticamente não
se firmou um campo autônomo de estudo que pu-

14
INTRODUÇÃO

desse ser chamado de gramática, na Índia antiga


uma versão sofisticada desta disciplina se desenvol-
veu bem cedo ao lado das demais ciências. Mui to
embora o estudo da gramática do sânscrito possa
originalmente ter tido o objetivo prático de manter
"puros e intactos" os textos sagrados dos ,Vedas e
seus comentários, o estudo da gramática na lndia no
primeiro milênio antes de Cristo já tinha se tornado
uma prática intelectual em si mesma.
O presente livro, escrito por uma pessoa forma-
da na tradição ocidental e que tem como público-alvo
leitores também vinculados a essa tradição, tratará
exclusivamente da história da linguística no Oci-
dente, observando, porém, sempre que necessário e
cabível, fatos relevantes para essa história decorren-
tes do influxo do pensamento linguístico de outras
tradições não ocidentais.

15
1 • A LINGuíSTICA
E SUA HISTÓRIA

Pensa-se frequentemente na história da


lingu ística como uma disciplina muito nova.
Afinal, a própria linguística só se stabeleceu
etn sua forma atual há algumas décadas. Mas
as pessoas vêm estudando a linguagem desde a
invenção da escrita e, sem dúvida, muito antes
disso também. Como em tantos outros campos, o
uso e, em seguida, o estudo da língua corn finali-
dades práticas precedeu o processo de reflexão da
análise científica. Na Índia antiga, por exemplo,
a necessidade de manter viva a pronúncia correta
dos textos religiosos ancestrais levou à investiga-
ção da fonética articulatória, enquanto na Grécia
clássica a necessidade de um vocabulário técnico
e conceitual para ser usado na análise lógica das
proposições resultou num sistema das partes do
discurso que acabou tendo um desenvolvimento
que ultrapassou em muito as exigências imediatas
dos filósofos que primeiro sentiram a necessidade
de tais categorias. A formação retórica em Roma,
a preservação dos textos religiosos no judaísmo,

17
HISTÓRIA CONCISA DA L1NGuíSTICA

a difusão das novas religiões proselitistas como o


cristianismo e o islamismo, o estabelecimento de
tradições literárias vernáculas nos Estados-nações
da Europa renascentista - são todos contextos em
que a língua, a princípio uma ferramenta, se tornou
um objeto de estudo.
Para obter um quadro abrangente de como e
por que a Iíngualgem] foi estudada no passado, todas
essas diversas tradições - e várias outras - devem
ser levadas em conta, por mais diferentes que sejam
das atuais noções do que se entende por "Iinguistica"
Cada tradição tenl seus próprios historiadores: Bacher
no estudo da lfnguaígem] entre os judeus; Sandys na
filologia clássica; E.J. Dobson (1957) na obra precur-
sora sobre a pronúncia do inglês; H. Pedersen (1931)
em filologia comparativa, e muitos outros. Con10 a
linguística no sentido pós-saussuriano passou a ser
considerada como urna disciplina distinta dos estudos
de linguagem dominantes no século XIX - a filologia
comparativa e a histórica -, também ela encontrou
seus historiadores. Mas enquanto a maioria dos primei-
ros historiadores se concentraram propositadamente
em tradições de estudo linguistico individuais, quase
sempre nacionais, os historiadores recentes têm defi-
nido de maneira mais ampla seu campo de trabalho.
Se a Iinguística é o estudo da linguagem em todos os
seus aspectos, raciocinam eles, então a história da lin-
guística deve abranger todas as abordagens passadas
do estudo da linguagem, quaisquer que tenham sido
os métodos usados e os resultados obtidos. Esta nova
18
1. A LlNGuíSTICA E SUA HISTÓRIA

postura impõe enormes exigências ao pesquisador


individual, que idealmente teria de ser um poliglota
versado em todos os ramos da história intelectual e
cultural, bem corno ern todos os aspectos da linguística
moderna. Na prática, a maioria dos estudiosos têm se
concentrado numa área relativamente circunscrita,
na doutrina ou na escola com a qual tem afinidade.
Uma nova disciplina, a epistemologia histórica
- o estudo dos diferentes modos de pensamento,
perspectivas e pressuposições que caracterizam
diferentes épocas e diferentes povos -, tem dado
boas contribuições para a história da linguística.
Os historiadores da Iinguística estão cada vez mais
dispostos a considerar o passado sob urna ótica fa-
vorável, prontos a aceitar noções que nos parecem
fantasiosas mas que, na época em que foram elabo-
radas, faziam muitíssimo sentido. Para entendê-las,
para apreciar sua contribuição à cultura ocidental,
precisamos aprender a nos despojar de alguns dos
postulados centrais de nossa visão de Inundo do
século XX e, no lugar deles, tentar incorporar al-
guns dos hábitos de pensamento das pessoas de um
outro tempo, Diversos aspectos dessa abordagem
historiográfica extremamente desafiadora fOra1TIde-
senvolvidos dentro de diferentes tradições nacionais.
Os estudiosos anglo-americanos têm se inclinado
a enfatizar a importância do ambiente histórico e
sociocultural, enquanto o trabalho dos franceses se
concentra mais nas ideias linguísticas no contexto
da história intelectual mais geral. Recentes trabalhos

19
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

de pesquisadores de língua alemã têm mostrado uma


tendência a aplicar o instrumental de uma formação
filosófica à história da linguística. Cada abordagem
precisa das outras: elas são complementares, não
concorrentes.

20
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL
ATÉ 1900

A história registrada da Iinguística ocidental começa


em Atenas: Platão foi o primeiro pensador europeu a
refletir sobre os problemas fundamentais da linguagem.
As questões levantadas em suas obras são cruciais, uma
agenda à qual a tradição europeia tem retornado, cons-
ciente ou inconscientemente, muitas e muitas vezes ao
longo de seu desenvolvimento, Embora diversas ideias
tenham sido emprestadas de fontes externas - da
tradição judaica no início do primeiro milênio depois
de Cristo, da Iinguística
,
hebraica e árabe durante o
Renascimento, da India por volta de 1800, para citar
apenas as mais signiíicativas -, a tradição ocidental
tem seu próprio e claro padrão de desenvolvimento.
Manifestações de um modo de pensar característico,
de uma visão de mundo distintiva, muito mais do que
o produto acidental do clima e das circunstâncias, as
tendências recorrentes da linguística ocidental podem
ser identificadas na maioria dos campos da investi-
gação intelectual: mais marcadamente nas ciências
naturais, mas também na filosofia, na cosmologia e
21
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

no estudo do homem, Isso tem consequências para


nossa narrativa, e para a historiografia linguística
em geral, em dois planos, o geográfico e o temporal.
No plano geográfico, é vão tentar ligar todas as
grandes tradições linguísticas numa única sequência
cronológica, saltando da Índia à China, à Grécia e a
Roma, aos povos semíticos e de volta ao Ocidente.
Cada tradição tem sua própria história e só pode ser
explicada à luz de sua própria cultura e de seus mo-
dos de pensamento. Cada uma tem sua contribuição
particular a dar à percepção humana da linguagem.
Um relato tão abrangente da "história mundial da
linguística'', de todo modo, tem um efeito distorcivo:
colocar um capítulo sobre a linguística na Índia antiga
antes de um capítulo sobre a linguística na Grécia po-
deria sugerir, inevitavelmente, ou que o trabalho dos
indianos foi o progenitor da tradição greco-romana, ou
que esta tradição substituiu a anterior, duas interpre-
tações históricas tremendamente errôneas. Ambas as
tradições se desenvolveram independentemente, e não
podem entrar em relação histórica uma com a outra a
não ser de maneira artificial. Elas e as demais grandes
tradições continuaram a se desenvolver paralelarnen-
te até os dias de hoje.
No plano temporal, em contrapartida, embora
alguns modos de pensamento permaneçam carac-
terísticos de uma tradição particular por um longo
período de tempo, outros se sucedem um ao outro
mais ou menos rapidamente com efeito cumulativo
ou cíclico. A tradição ocidental é marcada por uma

22
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

importante e irreversível mudança de direção que


ocorreu durante o século xv. A linguística, como
todos os outros campos da atividade intelectual, teve
seu caráter fundamentalmente alterado no Renasci-
mento. C0111 isso, a "transição" da Antiguidade para
a Idade Média se prolongou de tal modo e é tão difícil
de localizar que podemos mesmo nos perguntar se a
periodização tradicional tem alguma validade neste
caso: uma divisão entre linguística pré-renascentista
e pós-renascentista é, quase sempre, mais adequada.
Subdivisões são necessárias para o bem do leitor,
mas frequentemente são muito arbitrárias nos ró-
tulos que lhes são anexados. A linguística grega e a
romana formam um continuum C0111 a medieval: os
romanos se basearam nas iniciativas dos gregos (e,
de maneira limitada, desenvolveram-nas), enquanto
os pensadores medievais estudaram, digeriram e
transformaram a versão romana da tradição lin-
guística antiga. Alguns aspectos do pensamento
pré-renascentista, sobretudo a etimologia e a teoria
da littera, são mais facilmente apreendidos se as
ideias antigas e medievais forem consideradas em
conjunto; para outros temas, uma discussão crono-
lógica oferecerá urn arcabouço adequado.

2.1 Grécia: a linguagem como ferramenta


para entender a realidade

A história registrada da linguística ociden-


tal começa com um confronto entre duas visões

23
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

da linguatgem] fundamentalmente opostas: a


Iinguaígern ) corno fonte de conhecimento, e a
línguatgern) como um simples meio de comunica-
ção. A língua tem algum vínculo direto e essencial
com a realidade, espiritual ou física, ou é puramen-
te arbitrária? As implicações são consideráveis:
se a língua, de algum modo, contém ou espelha a
realidade, então o estudo da língua é um caminho
possível para o conhecimento da realidade. Mas se
é arbitrária, então nada de maior importância pode
ser obtido C0111seu estudo: o objetivo da linguística
será o entendimento da línguaígem) e nada mais,
Embora esta seja a opinião dominante - no mais
das vezes, a suposição tácita - na Iinguística de hoje,
nem sempre ela foi ponto pacífico. O primeiríssimo
texto ocidental sobre a linguagem, o Crátilo de Pla-
tão, trata precisamente desta questão.
A atmosfera na cidade-Estado de Atenas per-
to do final do século V a.C. era de questionamento,
Explorando as causas que subjazem ao ambiente
físico e cosmológico do homem, os filósofos pré-
-socráticos identificaram duas forças vitais: phusis,
a natureza, o poder inexorável que governa o
mundo visível; e nômos, a crença, costume ou lei
instituída por ação divina ou humana. Os papéis
relativos de phusis e nomos (ou thésis, convenção)
em várias esferas da vida humana levantavam para
os filósofos vários problemas difíceis: os Estados
surgiam da necessidade ou do COstU111C humano? As
leis morais eram uma necessidade natural ou simples

24

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

convenções? No plano da linguagem, os gregos se


perguntavam se a conexão entre as palavras e aquilo
que denotavam provinha da natureza, phgsei, ou era
imposta pela convenção, thései. Havia dois aspectos
na questão: primeiro, a natureza da atual relação
entre as palavras e seus denotata; e segundo, como
esta relação viera a surgir - a origem das palavras.
Platão (c. 429-347 a.C.) consagrou um de seus
diálogos, o Crátilo, a este problema. Dos três inter-
locutores que ele retrata, Crátilo sustenta que a
língua espelha exatamente o mundo; Hermógenes
defende a posição contrária, a de que a língua é
arbitrária; e Sócrates representa a instância inter-
mediaria, ressaltando tanto os pontos fortes quan-
to as fraquezas dos argumentos dos outros dois e
levando-os, por fim, a urna solução conciliatória. A
afirmação inicial de Herrnógenes de que os nomes
são inteiramente arbitrários e podem ser impostos à
vontade é refutada por Sócrates, que assinala que as
palavras são ferramentas: assim como U111alançadei-
ra defeituosa não pode ser usada para tecer, também
as palavras precisam ter propriedades que as tornem
apropriadas ao uso. Sócrates pede a Hermógenes que
faça duas suposições, que se manterão ao longo do
diálogo: a de que as palavras, em algum sentido,
são corretas, pois do contrário não cumpririam sua
função; e a de que, tendo surgido por convenção,
elas devem ter sido inventadas por alguém, humano
ou divino: o nomoteta ("legislador"). A correção
natural dos n0111es, contestada por Herrnógenes,
25

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

é ilustrada por Sócrates numa demorada série de


etimologias baseadas ern associação semântica. Por
exemplo, o corpo (sôma) é assim chamado porque
é o túmulo (sêma] ou o sinal (também sêma) da
alma, enquanto o relâmpago (ustrapê] é assim cha-
mado porque atrai nosso olhar para o alto (tà opa
anastréphei). Algumas palavras, os prata onámata,
"nomes originais", provam não serem suscetíveis
desse tipo de análise semântica. Para eles, Sócrates
propõe a análise por meio do simbolismo sonoro. Se o
L, por exemplo, representa "deslizar" ou "resvalar",
podemos esperar que as palavras que contêm este
som tenham algum elemento de "deslizamento" em
seu significado, e este é o caso de liparán ("liso"),
gIJJk)) ("doce"), qlishhcron ("viscoso"). Mas contra-
-exemplos, como a presença de um L em sklcrôtés,
que significa "dureza", mostra que os enganos se
insinuaram, ou talvez que alguns nomes foram
atribuídos de forma errada logo de início.
Pouco a pouco, Platão leva o leitor a se dar
conta de que há um elemento de verdade em ambas
as posições. Embora muitas palavras possuam uma
correção intrínseca, de acordo com a phvsis, aque-
las palavras em que tal estrutura natural não pode
ser detectada - seja por terem sido malformadas
logo de saída ou corrompidas pela passagem do
tempo - são entendidas por convenção, thésci. Ele
sugere que o nomoteta teve acesso ao conhecimento
direto da realidade - as Formas platônicas -, mas
apreendeu esta realidade de modo imperfeito. Se o
26
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

nomoteta pudesse estudar a realidade diretamen te,


também nós o poderíamos, porque a língua não pas-
sa de uma imitação imperfeita. Em suma, embora a
língua, na origem, tenha estado ligada diretamente à
realidade - e vestígios dessa conexão ainda possam
ser encontrados -, agora ela já seria um caminho
muito tortuoso para o conhecimento da realidade.
Uma vez que já fora aceito que a conexão entre
palavras e coisas não era direta, mas indireta, ainda
faltava determinar a natureza exata de seu relacio-
namento. Aristóteles (384-322 a.C.), discípulo de
Platão, em seu Peri hermenêias (De interpretatione],
delineou um processo em três etapas: os signos escri-
tos represen tam os signos falados; os signos falados
representam impressões (pathcmata) na alma, e as
impressões na alma são a aparência das coisas reais.
As impressões e as coisas, observa Aristóteles, S80 as
mesmas para todos os homens, ao passo que dif rem
as palavras que representam as interpretações. Como
seus comentadores logo apontaram, esse esquema
levantava muitas dificuldades. Os estoicos (séculos
IH-lI a.C.), e vários autores a seguir, preferiram
acrescentar uma etapa entre a recepção passiva
da impressão e a fala: o conceito, uma noção que
pode ser verbalizada (grego: lcktón; latim: âicibile),
Assim, embora todos os homens possam receber
as mesmas impressões das coisas que percebem,
como sustentava Aristóteles, os conceitos que eles
formam dessas impressões diferem, e são eles que
estão representados na fala.

27
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Segundo os estoicos, um conceito (lektón) era


representado num enunciado significativo (= com
significado), lÓBOS. Lógos foi definido por Diógenes
de Babilônia (um estoico do século 11 a.C., cujo pen-
samento é esboçado para nós por Diógenes Laércio
[século In a.C.] em seu Vidasdosfilósofos) como "um
enunciado significativo dirigido pelo pensamento
racional". A substância física do ló,gos era phõnê,
"voz", o enunciado considerado corno mero som,
articulado ou inarticulado, sem referência a sig-
nificado. Um enunciado (phõnê) que pudesse ser
representado na escrita - um enunciado articulado
- era chamado de léxis. Um léxis diferia de um toqos
porque, enquanto o significado era essencial para um
lôqos, um léxis não precisava obrigatoriamente ter
significado. Assim, a palavra "dia" em português é
um léxis na medida em que é uma palavra de três
letras que forma seu plural pelo acréscimo de -s; de
igual modo, a palavra grega sem sentido blí(yri é um
léxis na medida em que pode ser soletrada e assume
o artigo definido feminino. Nem "dia" nem blítJjri
é um lógos, blítyri inerentemente; por ser um léxis
asêmantos, uma palavra-forma sem sentido, e "dia"
porque ainda não entrou en1 combinação com outra
palavra ou palavras para formar Uln enunciado signi-
ficativo corno em "já é dia". A distinção entre lô/jos,
a palavra ou enunciado visto como uma entidade
significativa, e iéxis, a palavra vista corno forma, é
fundamental para o pensamento linguístico estoico
c pós-estoico.
28
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

Seus efeitos são vistos imediatamente no pro-


cesso gradual pelo qual o enunciado foi sendo ana-
lisado em elementos cada vez menores, as "partes
do discurso". A expressão grega mére toú loqou deixa
claro que o ponto de partida da análise era o lôqos,
o enunciado visto como significativo, um fato que
explica algumas das aparentes anomalias no antigo
sistema das partes do discurso. Os filósofos se viram
olhando bem de perto a estrutura dos enunciados
significativos. Se uma proposição era verdadeira ou
falsa, em qual de suas partes residia sua verdade ou
falsidade? Para discu tir tais problemas, precisava-se
de um vocabulário conceitual. Platão, em seu diálogo
O Sofista, apresenta o caso de um enunciado como
"um homem aprende". Este enunciado pode ser
dividido em UlTI nome e no que se diz acerca dele,
onoma e rhêma. (Fora desse contexto, ônoma era a
palavra usual para "nome", e rhêma tinha o sentido
de "palavra", "dito", "provérbio".) A mesma estru-
tura podia ser encontrada numa frase COlTIO "Clínias
é ignorante", onde "Clínias" ocupa uma posição
paralela à de "homem", e "é ignorante" é paralelo
a "aprende". Desse modo, ônoma, normalmente
"nome", e rhêma, "palavra", "dito", "frase", vieram
a assumir sentidos técnicos amplamente correspon-
dentes a sujeito (= nome ou substituto do nome) e
predicado ( = verbo ou cópula mais adjetivo). A base
dessa divisão é funcional e semântica, não é formal.
Do ponto de vista formal, não se poderia esperar que
adjetivos e verbos pudessem ser classificados juntos

29
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

numa língua como o grego, em que as flexões do


adjetivo e do verbo são totalmente diferentes; mas
se apenas sua função for considerada, é uma divisão
bastante natural.
Filósofos posteriores - como Aristóteles, dis-
cípulo de Platão, e os estoicos - observaram mais
atentamente os constituintes semânticos do enun-
ciado. Segundo a notícia mais clara que temos dos
estoicos, tal como reportada por Diógenes Laércio,
vemos que eles restringiram o termo ónoma, "nome", l
àquilo que a gramática tradicional viria a chamar de
"nome próprio", introduzindo o termo prosêqoria, ..:t.
"apelativo", para os nomes comuns. O rhêma foi 3
descrito como sem caso e significando algo dito sobre
alguém. Duas novas categorias foram identificadas:
o syndesmos (conjunção), que não tinha caso e ligava 4
as partes do discurso, e o árthron (artigo), que tinha -s
caso e distinguia o número e gênero dos nomes.
Este sistema foi refinado por sucessivas gera-
ções de estudiosos. Seu desenvolvimento total pode
ser visto num fragmento de papiro do século I d.C.
(P. Yale 1.25, inv. 446), que preserva os parágrafos
iniciais de uma gramática que dá as definições das
nove partes do discurso. Aqui, o particípio [metochê]»
é caracterizado como uma parte do discurso que
recebe artigos e casos como o nome, mas também
flexões de tempo como o verbo. O pronome ianio- r
nomasia, mais tarde antônumiai é usado no lugar
de um nome, tem função dêitica e mostra relações
entre as pessoas. O termo svndesmos fica restrito
30
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

às conjunções. A preposição (próthesis) é definida !


como um parte do discurso que tem somente uma
forma (invariável), colocada antes de outra parte do
discurso e entrando numa íntima relação com ela.
O advérbio [epirrhêma], outra parte do discurso g
com uma só forma, é colocado antes ou depois de
um verbo, mas carece de qualquer conexão sintática
íntima com ele, e indica quantidade ou qualidade,
tempo ou lugar, negação ou concórdia, proibição ou
exortação, questionamento ou desejo, comparação
ou dúvida.
Em todas essas definições, a importância
preponderante do significado é visível tanto nos
critérios predominantemente semânticos usados
para distinguir as partes do discurso quanto nas
categorias mesmas a que se chegou. A separação
entre nome próprio e nome comum, a relutância
em reconhecer o adjetivo como uma parte distinta
do discurso - pois sua função substantival, corno
nas expressões portuguesas "o bom" ou "os bons",
torna-o equivalente em função a um nome - e a
classificação do particípio como urna parte do discur-
so em si, embora aos nossos olhos ele seja claramente
derivado do verbo - todas essas características das
definições das partes do discurso emergem da ênfase
dos gregos nos aspectos de significado do enunciado,
e não nos aspectos formais. Transmitido a nós em
sua versão elaborada pelos romanos, este sistema
levantou para os linguistas posteriores o problema
de conciliar um sistema de classes de palavras de
31
HISTÓRIA CONCISA DA lINGuíSTICA

base semântica com a necessidade, frequentemente


incompatível, de classificar a palavra segundo sua
forma. É o que se vê, por exemplo, em português
quando se tenta classificar a palavra "bonito" num
enunciado como: "Ela canta muito bonito" - a clas-
sificação pela forma levaria a incluir bonito entr os
adjetivos, embora neste enunciado a palavra exerça
clara função de advérbio. Este apego à classificação
tradicional, que não leva em conta os papéis de-
sempenhados pelas palavras no contexto em que se
inserem, é uma das razões que levam à condenação
de enunciados desse tipo como "errados" (alegando
que o "certo" seria "Ela canta muito bonitamente"),
embora eles sejam de uso antiquíssimo na língua,
UlTI uso que remonta, aliás, ao próprio latim,
Esta mesma ênfase no aspecto semântico do
discurso é visível num notável tratado sobre sintaxe
grega, a Sintaxe [Pcri suntáxeõs} de Apolônio Dís-
colo, que data do século II d.C. Apolônio traça um
paralelo entre os diferentes níveis de linguagem: as
mesmas regras de organização se aplicam às unida-
des sonoras mínimas, às sílabas, às palavras e, de
fato, aos enunciados completos, Como diz ele, "o
significado que subsiste em cada forma da palavra
é, num certo sentido, a unidade mínima da frase".
Assim como o estudo da ortografia pode ajudar a re-
cuperar a forma correta de uma palavra mal grafada
ou mal pronunciada, também o estudo da sintaxe
pode ajudar a recuperar a estrutura verdadeira de
uma frase defeituosa. Apolônio se dedica a mostrar

32

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

os princípios racionais, a regularidade inerente, que


subjazem à sintaxe da frase grega. Fazendo isso, ele
ocupou um lugar quase e clusivo entre os autores
pré-modernos do Ocidente. No entanto, seu trabalho
exerceu influência apenas indireta. Entre os séculos VI
e XV, a língua grega foi praticamente ignorada no Oci-
dente. Os escritos gregos sobre gramática - e, de fato,
'obre qualquer outro assunto - ficaram inacessíveis, a
menos que tivessem sido traduzidos ou adaptados para
o latim na Antiguidade tardia. A doutrina sintática de
Apolônio foi aplicada ao latim por Prisciano (c. 500),
que modelou os dois últimos livros de sua grande
gramática do latim, as lnstiuaiones qrammaticae, com
base no Peri suntáxcõs de Apolônio, e foi nessa versão
filtrada que os ensinamentos de Apolônio sobrevive-
rarn no Ocidente, dando origem ao trabalho posterior
sobre sintaxe na alta Idade Média.
Padrão semelhante pode ser observado no caso
da morfologia. Embora tenham sido os gregos os
elaboradores do sistema das partes do discurso e de
vários dos conceitos associados que ainda desempe-
nham um papel essencial na linguística moderna,
o trabalho deles não se transmitiu ao Ocidente por
via direta, mas' por intermédio dos romanos. A
gramática grega conheceu sua codificação defini-
tiva na gramática de autoria atribuída ao erudito
alexandrino Dionísio Trácio (século II a.C.). Na
verdade, somente os cinco primeiros capítulos são
de Dionísio: hoje se admite que o resto da obra date
talvez de um período tão recente quanto o século
33
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

IV d.C., o ápice (e não o ponto de partida) de uma


longa cadeia de desdobramentos. Embora frequente-
mente saudada como a fonte da tradição gramatical
do Ocidente, a história dessa gramática pertence
mais propriamente à tradição linguística bizantina
do que à ocidental. Ela foi o livro didático do Oriente
grego, sendo traduzida, no todo ou em parte, para o
siríaco e o armênio, e oferecendo a base para nume-
rosos comentários e adaptações dos bizantinos. Em
contrapartida, ela ficou praticamente desconhecida
no Ocidente até sua primeira edição impressa, em
1727. Na verdade, foi através dos gramáticos rorna-
nos da Antiguidade tardia que a doutrina gramatical
grega, filtrada pela língua latina, se incorporou à
tradição ocidental dominante.
Uma importantíssima consequência da filtra-
gem da doutrina gramatical grega pelos romanos,
consequência visível até hoje nos compêndios gra-
maticais normativos, é o que poderíamos chamar
de "teoria da frase autossuficiente". Nas obras de
Apolônio Díscolo e Dionísio Trácio, a frase (ou
oração, ou sentença, ou cláusula) é definida como
um autotclõs ló<-qos.Um problema de interpretação-
-tradução da palavra autotclõs gerou uma concepção
distorcida de "frase" que permanece praticamente
intacta até hoje no ensino gramatical tradiciona-
lista. Enquanto aqueles autores gregos tinham em
men te, com autotelõs loqo«, a ideia de "expressão
autossustentada" graças a seus elementos semânticos
e à sua função dentro de uma situação comunicativa,

34
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

isto é, dentro da totalidade de um texto, a tradição


latina associou auiotelõs a "completo, acabado,
perfeito", o que levou a tratar a frase como in-
dependente do texto em que ela aparece e como
objeto suficiente para o conhecimento das relações
.-
sintáticas '. E por isso que os manuais de sintaxe
escritos e publicados até nossos dias se limitam
a fazer análises sintáticas de frases isoladas do
texto: o ponto final gráfico é também o ponto final
da análise gramatical. A moderna análise Iinguís-
tica insiste na necessidade de tomar o texto como
unidade básica de análise, levando em conta as
propriedades de coesão e coerência, entre outras.
O estudo de uma frase isolada só faz sentido se
for associado ao estudo de todas as demais frases
do texto e das articulações que se estabelecem
entre elas. As gramáticas de feitio tradicional, no
entanto, continuam a transmitir a crença de que
a frase contém uma totalidade semântica própria,
que dispensa uma análise mais ampla do contexto
em que surgem: "Frase é um enunciado de sentido
completo, a unidade mínima de comunicaçâo'".

1. A respeito deste problema da definição tradicional de frase,


o leitor brasileiro pode consultar o excelente estudo de Ataliba T.
de Castilho em A !inlillafalada no ensino de purtllguês (São Paulo,
Contexto, 1998: 83-87) (N. elo T.).
2. Celso Cunha & Lindley Cintra, Nova qramática do portu-
quês CO 11 temporã neo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, H)85: 116). A
autora oferece como exemplo uma definição praticamente idêntica
extraída de um manual gramatical inglês contemporâneo (N. elo'1'.).

35

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

2.2 Roma: codificação e transmissão

Tal como se deu com a maior parte dos ele-


men tos de sua vida intelectual, os romanos atri-
buíarn aos gregos a introdução da gramática na
cultura latina. Su tônio (c. 69-140), em sua obra
sobre os mais famosos professores de gramática e
retórica (De grammaticis et rhetoribus), relata corno
o estoico Crates de Malos quebrou a perna durante
urna missão diplomática em Roma em 169 ou 168
a.C. e se entreteve durante sua convalescença dando
palestras sobre gramática. Embora registre os no-
mes de uns vinte gramáticos entre aquela época e a
sua própria, Suetônio nos deixa extremamente mal
informados sobre a história inicial da gramática em
Roma. A sugestão de Karl Barwick de que a doutrina
estoica foi a influência predominante em Roma, ao
passo que no mundo grego a escola alexandrina de
filologia tinha suplantado os estoicos, já não é tão
amplamente aceita.
Não obstante, as reflexões estoicas e pitagóricas
são visíveis na obra do filósofo-historiador-antiquá-
rio Marcos Terêncio Varrão (116-27 d.C.). De suas
mais de setenta obras somente duas sobreviveram,
incluindo seis livros dos vinte e cinco originais de
seu grande compêndio sobre o latim, De linqua
latina. Depois de um livro introdutório, os livros
11 a VII continham uma exaustiva discussão da
etimologia latina, os livros VIII a XIII da flexão, e
os livros XIV a XXV da organização das palavras

36

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

em enunciados (sintaxe, presumivelmente). Somen-


te os livros V a X sobreviveram, preservados num
único manuscrito do século X, redescoberto por Bo-
cácio em Monte Cassino em 1355. Não surpreende
que a obra fosse desconhecida e não tenha exercido
nenhuma influência durante toda a Idade Média.
Na Antiguidade, porém, seu impacto foi imenso.
As inclinações de Varrão como historiador e filósofo
conferem a seu trabalho um sabor muito diferente
do das outras obras romanas sobre linguagem que
chegaram até nós. Nas porções remanescentes do
IJe linqua latina, Varrão estabelece duas dicotomias
problemáticas: o papel da natureza e da convenção
na origem das palavras, e a questão da analogia e
da anomalia na regulação do discurso. Tal COIllO
Platão, Varrão conclui que o significado original das
palavras, imposto em concordância com a natureza,
foi obscurecido em diversos casos pela passagem do
tempo, e que a etimologia pode frequentemente aju-
dar a recuperar o significado verdadeiro e original.
Por etumoloaia Varrão entend um tipo de explicação
semântica, em vez do tipo de explicação primor-
dialmente fonológica da etimologia histórica a que
estamos habituados. Ele chega mesmo a elaborar
alguns princípios formais úteis nessa investigação.
A maior parte dos livros VI e VII é ocupada por uma
série de etimologias de palavras arranjadas segun-
do as categorias fundamentais pitagóricas: corpus
("objeto físico"), locus ("lugar"), tempus ("tempo")
e actio ("ação, processo"). Nos livros VIII a X, ele

37
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGUfSTlCA

aborda a questão dos papéis respectivos da analogia


e da anomalia. Procedendo por meio da reductio ad
absurdum, de uma maneira diferente da de Platão,
ele derruba a necessidade de uma controvérsia sobre
a importância relativa da analogia e da anomalia,
mostrando que ambos os princípios decorrem do
uso. Traça uma importante distinção entre a natu-
reza subjacente, original, da línguaígcm) e o uso, e
entre os usos descritivo e prescritivo da analogia.
Em suas palavras, "uma coisa é dizer que é possível
encontrar analogias em palavras, e outra coisa é
dizer que devemos segui-las" ux, 4). Seu conselho
é pragmático: os neologismos devem ser guiados
pela analogia, mas se uma forma anômala já estiver
bem estabelecida, deve-se p rmitir que permaneça.
A flexão, dcclinaiio naturalis, é uma área da língua
em que se poderia esperar analogia, ao passo que
a derivação, declinatio voluntaria, frequentemente
funciona de modo arbitrário. A importância de
Varrão reside na clareza COIU que formulou e seguiu
até o fim algumas das implicações da dicotomia
significado-forma, UIU legado em que se baseariam
gerações posteriores de gramáticos latinos.
São pouquíssimas as gramáticas do período
entre Varrão e Quintiliano (de 30 a.C. a 100 d.C.)
que sobreviveram até nós, embora gramáticos do
século I como Q. Rêmio Palernào, Valério Probo e
Pansa tenham sido fartamente citados por autores
posteriores. A educação romana sob o Império era
destinada à formação de oradores. Depois de se alfa-

38
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

betizar com o litterator ou maqister ludi, as crianças


estudavam gramática e aplicavam-na a análise de
textos literários sob a tutela do qrammaticus. e final-
mente eram guiadas pelo rhetor na composição de
discursos elegantes. Diversos qrammatici compila-
ram seus próprios manuais de ensino. A maioria dos
que sobreviveram, e que remontam sobretudo aos
séculos IV e V, se tornaram acessíveis na edição em
sete volumes de Heinrich Keil, Grammatici Latini
(Leipzig 1855-1880). Afora as obras sobre ortogra-
fia e métrica, esses manuais pertencem a dois tipos
principais: a aramática escolar [Schulqrammatik] e
a de regras (reLqulae).
A Schulqrammatih continha uma exposição
sistemática das categorias gramaticais; exernplifica-
das por meio do latim. Estruturada como as moder-
nas gramáticas de referência, isto é, consistindo de
uma série de capítulos dedicados exaustivamente a
cada tópico (mas sem exercícios - um acréscimo
do século XIX - nem trechos para leitura), uma
obra típica, a Ars maiorde Donato (c. 350 d.C.), era
dividida em três livros: o livro I incluía capítulos
sobre l'O.X ("voz, som, substância fónica"): liitcrae
("som da fala, letra"); sílaba; pé métrico; acentos:
e pontuação. O livro 11 tratava das partes do dis-
curso: nome, pronome, verbo, advérbio, particípio,
conjunção, preposição e interjeição. E o livro IH
apresentava barbarismos (erros na forma das pala-
vras), solecismos (colocações erradas das palavras),
ou tros erros, e várias figuras de retórica. A ênfase

HISTÓRIA CONCISA DA LINGuíSTICA

de obras desse tipo incidia, não na descrição das


formas do latim - que o estudante, falante nativo
da língua, já conheceria -, nem nas regras com que
gerá-las, mas na rotulação e classificação das formas
conhecidas. Uma vez que as categorias elaboradas
°
para grego eram em grande medida de natureza
semântica, elas podiam ser transferidas para o
latim sem dificuldade. As obras mais célebres do
gênero foram as de Donato: a Ars minor, uma
breve introdução à gramática, e a mais detalhada
Ars maior. Outras obras remanescentes deste tipo,
atribuídas
,
a Escauro, Ásper, Dositeu, Agostinho,
Audax, Vitorino e outros, tiveram influência mui-
°
to menor. Sem dúvida, fato de lerónimo, um dos
Padres da Igreja (junto com Agostinho, Ambrósio
e Gregório Magno), ter sido aluno de Donato deu
às obras deste gramático uma vantagem doutrinaI
num Império cada vez mais cristão. À medida que
a educação romana foi gradualmente estreitando
seu escopo, o foco de atenção se transferiu para
as gramáticas em si mesmas, abandonando os
textos literários que elas supostamente deviam
acompanhar. Gramáticos do final do século IV em
diante (Sérvio, Sérgio, Cledônio, Pompeu) passa-
ram a escrever comentários sobre a Ars maior de
Donato, etu vez de sobre a Eneida de Virgílio, uma
tendência que foi prosseguida na Idade Média por
estudiosos que exerciam a exegese bfblica.
O segundo principal gênero de gramática era o
tipo requlae, que normalmente tomava o aspecto de

40

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

uma obra de referência destinada a ajudar na iden-


tificação das formas do latim. Escritas sobretudo
por autores que trabalhavam em zonas bilíngues
do Império - Prisciano, Êutico e Focas no Oriente
grego, bem como ,
Marciano Capela e o Pseudo-
-Agostinho na Africa -, tais obras permitiam que
o estudante procurasse a terminação de um nome
ou verbo estranho numa lista alfabética, a fim de
descobrir a que gênero, declinação ou conjugação
ele podia pertencer. Esse tipo parece ter sido mais
COn1UlTI fora da Itália, particularmente no Oriente
grego, onde, na Antiguidade tardia, as pessoas que
desejassem ascender na administração imperial
precisavam ser fluentes em latim. Como elas inicia-
vam seus estudos é algo incerto, pois além ele alguns
exercícios preservados em fragmentos de papiro, as
gramáticas sobreviventes pressupõem um conheci-
mento avançado do latim, Isso vale principalmente
para as mais célebres gramáticas do Oriente grego,
as obras de Prisciano (Constanti nopla, c. 500).
Três de suas obras foram especialtnente influentes
nos séculos posteriores: a Institutio de n01Jl111C ct
pro nomi nc et verho, Ut11 rápido panorama das classes
flexionais do latim; as Partitioncs, uma obra minu-
ciosa que analisa (na forma de pergunta e resposta)
as palavras da primeira linha de cada um elos doze
livros da Eneida; e as lnstitutionrs granunaticae, uma
exaustiva gramática de referência em dezoito livros
(quase mil páginas). Nesta obra - sobre a qual repousa
sua reputação -, Prisciano combinou informações do

41
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

tipo Schulgrammatik (a maioria tirada de Donato)


com algumas do tipo requlac, construindo deste
modo uma descrição do latim praticamente completa
(e ainda útil), reforçada conl um amplo número de
citações ilustrativas de autores literários. Seus dois
últimos livros, sobre sintaxe, se baseiam fortemente
no Peri suntáxcõs de Apolônio Díscolo, e fazem fre-
quentes comparações entre o uso latino e o grego.
A dependência de Prisciano para com fontes gregas
fica também visível em sua preferência por uma
versão modificada da sequência grega das partes do
discurso: nome, verbo, particípio, pronome, prepo-
sição, advérbio, interjeição e conjunção.
Sob vários aspectos, o conteúdo de uma gra-
mática antiga' não é diferente do de uma gramática
de língua materna atual, como a Nova gramática do
português contemporâneo de Celso Cunha e Lindley
Cintra, que lista e exemplifica categorias de natureza
amplamente semântica, e cataloga as irregularidades
morfológicas (por exemplo, verbos irregulares). Mas
não se vá pensar que todos os aspectos da linguística
antiga têm uma contrapartida moderna tão próxima.
Dois domínios, em particular, sobressaem como ten-
do se desenvolvido numa direção totalmente diversa
de qualquer coisa a que estejamos acostumados hoje
em dia: a teoria da liucra e a etimologia. Embora as
sementes das modernas disciplinas da fonética e da
morfologia estejam latentes nestes dois importantes
campos de estudo, elas permaneceram dormentes
por toda a Antiguidade e Idade Média, eclipsadas por

42
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

urna abordagem muito diferente do estudo dos sons


da fala e das palavras. Antes de entrar na história
do desenvolvimento da gramática durante a Idade
Média, vamos examinar as visões antiga e medieval
da littera e da verdadeira natureza das palavras.

2.2. J A teoria da littera


Gregos e romanos compartilhavam concepções
semelhantes da natureza da littcra (grego: qrámmat ,
a menor unidade da fala (vox; grego: ph6n&). Havia
duas visões distintas, frequentemente expostas lado
a lado. De acordo com uma, a iittera era o símbolo
escrito, a representação do som da fala (latim: elc-
mentum; grego: stoihhcioni. Esta visão, a precursora
da moderna dicotomia letra-som, foi menos im-
portante na Antiguidade (e, de fato, até por volta
de 1800) do que a segunda visão, mais compl ixa.
Estoicos e romanos descreviam a littera CalDO urna
entidade com três propriedades: seu nome (nomen],
sua forma ou aspecto escrito (figura) e seu som ou
valor [potestas], Esta visão mais flexível, suscetível
de extensão e refinamento num grau muito maior do
que a crua oposição entre letra e som, foi a base para
uma série de abordagens multifacetadas e infinita-
mente variadas da liuera por parte dos estudiosos
antigos e, mais ainda, dos medievais.
Potcstas era a propriedade da liticra cujo do-
mínio mais se aproximava do moderno campo da
fonética. Platão, Aristóteles e os latinos classificam
as litterae do seguinte modo:

43

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

iittrrae

.. ~~
vogais consoantes

semivogais

(A categoria das "sernivogais" incluía o que


modernamente chamamos de continuantes: Donato
inclui F, L, M, ,R, S, x sob esta rubrica.)
Só uns poucos estudiosos sentiram a neces-
sidade de ir mais fundo na fonética articulatória.
Entre eles estavam Dionísio de Halicarnasso (em
atividade entre 30 e 8 a.C.), cuja notável descrição
da articulação dos sons do grego ficou desconhecida
do Ocidente latino até sua primeira edição em 1508
pelo grande impressor veneziano Aldo Manúcio, e o
metricista Terenciano Mauro (século 11),cujo relato
em versos dos sons e metros latinos foi pouco lido
antes do Renascimento. Na prática, as vinhetas de
uma linha oferecidas por Marciano Capela (século
V) em sua enciclopédia alegórica, O casamento de
jiloloBia e Mercúrio (IH, 261), foram as únicas des-
crições articulatórias dos sons do latim disponíveis
para a maioria dos estudiosos medievais. Caracteri-
zações do tipo "o D surge do ataque da língua perto
dos dentes superiores" ou "o L soa docemente com
língua e palato" ou "Ápio Cláudio detestava o Z
porque imita os dentes de um cadáver" ainda eram
citadas no século XVI. Somente depois de se familia-

44

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

rizarem com as descrições articulatórias muito mais


detalhadas, que eram lugar-comum nas gramáticas
medievais do hebraico e do árabe, é que os cristãos
do Renascimento começaram a se interessar pela
fonética articulatória.
Em contrapartida, as propriedades do nomen
e da figura despertavam um interesse mais ativo
e criativo entre os estudiosos medievais. Coleções
de alfabetos exóticos - grego, hebraico, "caldeu",
gótico, runas, ogamos, vários códigos e cifras -
circulavam amplamente, bem como breves tratados
sobre a invenção de várias escritas. Uma antiga for-
ma de taquigrafia, as notas tironianas, era praticada
em alguns centros monásticos nos séculos IX e X,
enquanto em outros os escribas adicionavam subs-
crições em latim transliterado em caracteres gregos.
Um notável pequeno tratado do século VII ou Vlll,
atribuído a certo Sergílio (um irlandês chamado
Fergil?), descreve o movimento da pena ao formar
cada letra e dá o nome de cada gesto e 111 latim, grego
e hebraico: "Quais são os nomes dos três gestos da
letra A nas três línguas sagradas? EnI hebraico, abst
ebst ubst. COlTIOsão chamados em grego? Albs elbs
ulbs. E em latim? Duas linhas oblíquas e urna reta
traçada entre elas".
Mas o que interessava aos autores medievais
não era a littera corno urna unidade de fala fisica-
mente visível ou audível, e sim, muito mais, sua
possível importância na iluminação dos aspectos
superiores da ordem do mundo. Um autor do século
45
HISTÓRIA CONCISA DA LINGuíSTICA

VII, Virgílio Gramático, explicava: "Tal como o ho-


rnem consiste de corpo, alma e uma espécie de fogo
celeste, assim a littera é constituída de corpo - isto é,
sua forma, sua função e sua pronúncia (suas juntas e
membros, por assim dizer) - e tem sua alma em seu
sentido, e seu espírito em sua relação com as coisas
superiores". Outros autores aplicavam interpretações
tipológicas e alegóricas a vários aspectos da tiucra, no
mais das vezes à sua forma. Seu som era de menor im-
portância: era a parte terrena da littcra, seu "corpo". Só
lentamente, à m dida que a Idade Média se encerrava,
é que os pensadores ocidentais começaram a voltar seu
interesse para a parte física da fala, tal como passaram
a levar mais a sério as manifestações físicas do mundo
natural. O ímpeto para tal iniciativa não veio de dentro
da própria tradição ocidental, mas de fora dela: primei-
ro, durante o Renascimento, do mundo semita; ITIai-
tarde, por volta de 1800, da Índia.

2.2.2 Etimologia
A reflexão antiga e medieval sobre a palavra
se caracterizou pela mesma relutância em levar em
conta o aspecto físico da língua. A morfologia, estu-
do da forma das palavras, é um ramo da linguística
que levou urna existência obscura na periferia dos
estudos da linguagem: corno campo de investigação
científica de pleno direito, é um desdobramento pós-
-renascentista. Na realidade, quando os estudiosos
antigos e medievais pesquisavam a verdadeira natu-

46
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

reza de uma palavra, não era sua forma original o que


eles buscavam, mas seu significado original. Os prin-
cípios da etimologia antiga, tal como formulados por
Varrão, mantiveram seu poder de influência durante
toda a Antiguidade e além. Varrão reconhecia aos
gregos o mérito da distinção entre o estudo da origem
das palavras, ou etimologia propriamente dita, e o
estudo do que elas representavam, mais ou menos
o que entendemos por "semântica". Ele estabeleceu
quatro níveis diferentes de explanação etimológica,
que iam das palavras cuja origem era transparente
às que encerravam UlTI profundo mistério. Vários
fatores podiam obscurecer a relação entre a origem
da palavra e seu significado: o tempo, a influência
estrangeira e as inexatidões na imposição primitiva
dos nomes. Mudanças na forma da palavra podiam
ocorrer por meio de diversos processos: acréscimo,
apagamento, transposição e mudança de sons ou
sílabas individuais. Varrão e seus sucessores enfa-
tizaram os processos pelos quais a mudança ocorria
e não os sons reais envolvidos (embora Prisciano,
o mais formalista dos gramáticos, tenha catalogado
as mudanças sofridas por cada uma das litterae em
suas Institutiones qrammaticac, 20,9-43,19). Em
outras palavras, a semelhança entre as formas de
duas palavras (voccs] não era o elemento importante;
ern vez disso, o foco estava na relação semântica. Os
tipos de relação semântica eram catalogados pelos
autores antigos e medievais com o mesmo zelo que
mais tarde se dispensaria às mudanças nos sons. Um

47

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

catálogo conciso, mas amplamente lido, se encon-


trava nas Etimoloqias de Isidoro de Sevilha (t 636),
uma enciclopédia de vinte livros, cujo objetivo era
elucidar o significado da terminologia em cada área
do conhecimento humano. Isidoro lista três tipos
de nome: os derivados de uma causa, como reges
("reis") de recte aqendo ("agir corretamente"),
pois um rei não seria um verdadeiro rei se não
agisse corretamente (uma suposição com drásticas
implicações políticas desenvolvidas pelos teóricos
políticos medievais); os que rndicam a origem
de uma coisa, como homo ("holnem") de humus
("terra"), uma etimologia usada pelos teólogos
para enfatizar a natureza terrena do homem e sua
separação da natureza divina; e os surgidos de seus
opostos, como tutum ("lodo") "de lavare (" lavar").
Isidoro e seus seguidores medievais, portanto,
viam as relações semân ticas como a chave para o
verdadeiro significado de uma palavra. Se a des-
coberta de um vínculo entre homo ("homeln") e
humus ("terra") pudesse iluminar o significado
verdadeiro, superior do homem e seu destino, a
etimologia teria cumprido sua tarefa. A origem
da forma pronunciada e escrita homo não tinha
qualquer importância.
Essa atitude ajuda a explicar a ausência de in-
teresse pela morfologia no estudo Iinguístico antigo
e medieval. A distinção de Varrão entre dcclinatio
naturalis - correspondente à morfologia flexional
(declinações de nomes, conjugações verbais etc.)

48
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

- e declinatio voluntaria - correspondente à mor-


fologia derivacional (a formação de novas palavras
a partir das já existentes por acréscimo ou supres-
são de certos elementos) - nunca foi obedecida
completamente. Mesmo no século VIII, Bonifácio
(que mais tarde embarcaria em sua célebre missão
de catequese dos povos germânicos) ainda incluía
nomes formados de bases verbais como emptio ("a
compra") e emptor ("comprador") no paradigma
do verbo emerc ("comprar"). Nern Varrão nem
qualquer outro gramático antigo chegou a formular
os conceitos de "raiz", "radical" ou "afixo": quando
Varrão usa o termo radix ("raiz"), é num sentido
não técnico. As regras derivacionais do tipo habitual
nos livros didáticos de hoje - por exemplo, "para
formar o presente do indicativo, toma-se a raiz do verbo
e acrescentam-se-lhe as terminações de pessoa" - são
desconhecidas das gramáticas antigas e medievais.
Em lugar delas, os gramáticos adotavam o mode-
lo de descrição palavra e paradigma: a palavra
era vista corno a unidade mínima. Cada forma
flexionada era considerada distinta e unitária.
Essa atitude decorre, naturalmente, da primazia do
aspecto semântico: como é que se poderia, no plano
semântico, derivar "tu C0111praS"de "eu compro"? Mais
U1l1avez, os conceitos necessários para isso entraram
na tradição linguística ocidental vindos de fora, da
tradição gramatical sernítica e, mais tarde, indiana.
Só quando essas noções fundamentais entraram
em circulação é que puderam surgir as modernas

49
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

disciplinas da morfologia e da filologia histórico-


-comparativa.

2.3 A gramática na Idade Média


De que maneira, então, os primeiros estudiosos
medievais se ocuparam com o ensino do latirn? Pois
o latim, o idioma da Igreja ocidental, era uma língua
estrangeira para os novos convertidos da Irlanda,
Inglaterra, dos países de língua alemã, da Escandi-
návia e da Europa oriental. A orientação semântica
e taxionômica de gramáticas como a de Donato era
de pouca valia para aqueles alunos: as formas latinas
que Donato considerava óbvias eram precisamente
o que eles precisavam aprender. Como as regras
derivacionais eram desconhecidas, tornaram -se es-
senciais os paradigmas - modelos que explicitavam
cada forma flexionada das partes do discurso numa
sequência padronizada. No começo, os mestres sim-
plesmente compilaram essas informações separada-
mente, reunindo paradigmas de incontáveis nomes
e verbos com longas listas de exemplos tirados do
vocabulário cristão. Cada possível subtipo - cada
sufixo derivacional, cada gênero, cada terminação
nominal- era exemplificado separadamente, Mas,
por força da experimentação, os mestres identifica-
ram importantes subtipos morfológicos, e com isso
restringiram sua seleção de paradigmas. Por volta
de 700, ocorrera uma fusão desse material com a
Ars minor de Donato: nas gramáticas elementares
insulares (assim chamadas por terem origem nas
so
2. A TRADiÇÃO OCI DENTAL ATÉ 1900

ilhas britânicas) que daí resultaram os alunos po-


diam encontrar os conceitos gramaticais ensinados
por Donato dispostos junto com os paradigmas de
que necessitavam para aprender a escrever a língua
ou compreendê-la plenamente. Essas obras foram
as primeiras gramáticas sistemáticas do Ocidente
elaboradas para estudantes de uma língua estran-
geira - as ancestrais de nossas gramáticas esco-
lares tradicionais. Como tal, é muito importante
para a linguística a contribuição que elas deram
- a passagem de uma gramática primordialmente
semântica e taxionômica para urna gramática des-
critiva, baseada na forma. Assim, os primórdios
do lento processo que a linguística ocidental em-
preenderia para se haver com a forma devem ser
buscados nas escolas monásticas das ilhas bri tânicas
nos séculos VII e VIII.
Tão inadequado quanto a orientação teórica
das gramáticas latinas tardias era o material de exem-
plificação que usavam. O objetivo do jovem aluno ro-
mano fora apropriar-se dos textos mais prestigiados
de sua época; o jovem monge irlandês ou anglo-saxão
considerava a gramática corno uma ferrarnenta para
a compreensão da Bíblia. Os exemplos tirados da
literatura clássica, usados pelos antigos gramáticos,
foram substituídos em grau maior ou menor pelos
diferentes mestres: alguns, como Bonifácio (c. 675-
754), não viam objeção em usar breves excertos da
Eneida ao lado de versículos da Bíblia, enquanto
outros, como Aspório (c. 600), chegaram mesmo a
51

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

substituir a "Roma" e o "Tibre" de Donato por


"Jerusalém" e "]ordão". Poucos gramáticos conse-
guiram empreender uma síntese mais bem acaba-
da de gramática e fé. Virgílio Gramático (c. 650),
um autor enigmático que se deleitava em explorar
os recursos de formação de palavras do latim
para acomodar suas sutis apercepções (inventou
o verbo v idare, "ver com os olhos do espírito",
para contrastar COIn o mais usual vidcre. "ver
com os olhos físicos"), empregava a tradicional
arsqrammatica como um arcabouço para mostrar
corno a linguagem das Escrituras apontava aí!
sublimiora, "para coisas mais elevadas". Por volta
de 800, Esmaragdo, mais conhecido por sua obra
devocional Diadema monachorum, incluiu em
sua gramática um apanhado das técnicas de força
ilocutória empregadas enl diferentes COll texto.
escriturísticos corno parte de seu projeto de ofe-
recer urna introdução simultânea à compreensão
da gramática e das Escrituras.
Sob a chefia de Carlos Magno e dos mestres
que reuniu em sua corte por volta do ano 800, o
renascimento carolíngio trouxe não somente uma
revivescência do interesse pelas obras literárias da
Antiguidade, 111astambém uma mudança nos inte-
resses dos gramáticos. As gramáticas elementares
insulares foram descartadas, sendo substituídas ou
por uma versão ligeiramente expandida da Ars mi-
nor ou por gramáticas analíticas, manuais escritos
na forma de perguntas e respostas, inspirados nas
52

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

Partitiones de Prisciano, que anali a um espécime


representativo de cada parte do discurso:
Que parte do discur o é a palavra codex?
Um nome.
Como sabes'?
Porque denota algo identificável e tem flexão de caso.
É próprio ou comum?
Comum.
Por quê?
Porque existem muitos códices.

Esse gênero se manteve popular e produtivo


até o final da Idade Média: as gramáticas analíticas
Dominus quae pars e a Ianua (Poeta quae pars) ,
ambas impressas regularmente, estiveram entre as
gramáticas mais comuns em uso nos éculos XIV e
XV,e foram o modelo para sátiras políticas e sociais
como Nummus quae pars:
Que parte do discurso é "moeda"?
U ma preposição.
Por quê'?
Porque ela é pré-posta a todas as outras parte do discurso
e ramos do conhecimento baseados nelas ...
De que número é?
Singular e plural.
Por quê?
Porque é singular entre os pobres e plural entre os ricos.

De igual importância para a alta Idade Média


foi a redescoberta de outra obra de Prisciano, as
I nstitutiones Lqrammaticae. Detalhada e enfadonha
demais para o uso pedagógico nos séculos VI e

53
HISTÓRIA CONCISA DA L1NGuíSTICA

VIII, foi apreciada pelos eruditos mais ambiciosos


do século IX. De Alcuíno (c. 735-8(4) em diante,
gerações de mestres se dedicaram à tarefa de tornar
a doutrina das lnstitutiones mais acessível a seus
alunos, preparando versões resumidas, paráfrases,
excertos e comentários, tudo isso elaborado para
ajudar o aluno a apreender sua doutrina divagante,
mas dotada de autoridade. Sua terminologia tam-
bérn exigia explicação, apresentando uma nítida
semelhança com a da lógica, urna área de estudo até
então muito pouco difundida.
Mas a própria lógica estava prestes a penetrar
no currículo e a se tornar urna poderosa influência
no desenvolvimento da gramática no final da Idade
Média. Duas das obras de Aristóteles sobre lógica,
as Categorias e o De inierpretatione, acompanhadas
pela lsagoge (Introdução) de Porfírio, entraram em
circulação na tradução latina de Boécio e foram
avidamente estudadas por Alcuíno e seu círculo. O
paralelo entre categorias lógicas e linguísticas, tão
visível nessas obras, não deixou de surpreender
seus leitores do século IX. Un1 deles, no mosteiro
de Sankt Gallen, na Suíça, tentou situar todos os
tipos de nomes listados por Prisciano em uma ou
outra das dez categorias aristotélicas. Por meio de
experimentos como esse é que se chegou a uma in-
terpenetração quase perfeita de gramática e dialética.
O estudo ela dialética provocou um questionamento
crítico e avassalador dos pressupostos da gramática
tradicional, da qual Prisciano foi considerado o

54
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

representante por excelência. Como se queixava


Guilherme de Conches, no início do século XII, "as
definições [de Prisciano] são obscuras e ele não dá
explicação nenhuma, e omite as razões para a inven-
ção das partes do discurso e de suas propriedades".
Isso lançou as bases para o trabalho subsequente.
No entanto, a introdução abusiva da dialética no
âmago da gramática não encontrou aprovação
universal. Em meados do século XII, o influente
gramático Pedro Helias, que ensinava em Paris, fez
um retorno deliberado aos recursos e métodos tracli-
cionais da gramática (profundamente enriquecida,
de todo modo, por seus namoros com a dialética)
em seu comentário, amplamente estudado, sobre as
lnstitutiones qrummaticae. Gramáticos posteriores
seguiram seus passos, e a gramática e a dialética
tornaram rumos de desenvolvimento diversos. Os
gramáticos continuaram a fazer de Prisciano a base
para seu estudo e dedicaram particular atenção aos
livros sobre sintaxe. Devido às exigências feitas por
certas universidades, como Paris e Toulouse, de que
todos os estudantes ouvissem, durante o curso, dado
número de exposições das lnstitiuiones qrammaticac,
uma quantidade enorme de energia foi dispendida
na composição de comentários e textos que aborda-
vam pontos específicos, quaestiones.
Num nível mais modesto, os gramáticos tam-
bém produziram muito material didático novo,
elementar e intermediário, muitas vezes em verso.
Entre esses livros escolares estavam o Doctrinale

ss
HISTÓRIA CONCISA DA L1NGuíSTICA

(1199), de Alexandre de Villa Dei, e o Graecis-


mus (1212) de Eberhard Bethune, conhecidos em
toda a Europa católica, bem como diversas obras
geograficamente mais restritas: as gramáticas de
Alexandre Neckham, João de Garland, Nicolau
Kempf, Johannes Schlispacher, Johannes Balbi
(João de Gênova), Gutolfo de Heiligenkreuz, o Fun-
damcntum puerorum de Tomás de Erfurt, e várias
outras. Gradualmente, o livro didático gramatical
se metamorfoseou, da estrutura tripartite da antiga
Schulqrammatih para uma nova estrutura em quatro
partes: orthoqraphia (as propriedades da littrrai;
prosodia (as propriedades da sílaba, como duração e
tonicidade): etumoloqia (as oito partes do discurso) e
diasunthetica (sintaxe). Essa estrutura progressiva,
que avança desde a menor unidade até a maior, é a
ancestral da moderna hierarquia de fonética, fono-
logia, morfologia e sintaxe. Nessas obras, pode-se
ver um estreitamento de foco da gramática, que se
afasta das preocupações universais e semantica-
mente enviesadas da Antiguidade para se dedicar
aos pormenores de urna língua particular, o latim,
Nas circunstâncias, esse estreitamento era inevitá-
vel: sempre que existir uma ampla necessidade de
aprendizado da gramática de uma língua específica, o
foco se fechará na gramática descritiva, "particular".
No final do século XII, a restrição (cada vez
mais consciente) do foco da arammatica foi con-
trabalançada por urn novo impulso ao estudo do
aspecto universal da linguagem. À medida que obras

56
2. A TRADIÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

de Aristóteles até então inacessíveis entravam em


circulação desde a Espanha e a Sicília em traduções
latinas recentes, a partir da década de 1140, os es-
tudiosos experimentaram as novas ideias em cada
um dos ramos tradicionais de conhecimento. Com a
AI/ctafísica e outras obras, eles aprenderam a questio-
nar a própria natureza das disciplinas tradicionais.
Aristóteles tinha oposto as disciplinas especulativas
(ou teóricas) às habilidades práticas: "O objetivo do
conhecimento teórico é a verdade, enquanto o do
conhecimento prático é a eficácia" (Metafísica, II
993b 21-2). Assim, o arquiteto entende os princípios
subjacentes ao desenho dos edifícios, ao passo que o
construtor simplesmente possui o conhecimento téc-
nico relativo à mistura da argamassa. Essa dicotomia
entre ramos teóricos e práticos do conhecimento foi
estendida à linguagem por diversos autores a partir
de Rogério Bacon (c. 1214-1292). A /framrnatica
speculativa investigava os princípios universais da
gramática, enquanto earammatica positiva se preo-
cupava com os detalhes de uma língua particular. A
qrammatica speculativa se concentrava no essencial
e universal, e e qrammatica positiva, no acidental e
particular. Os praticantes medievais tardios da<qrafn-
matica positiva levavam adiante uma tradição bem
estabelecida que se perpetuou no Renascimento. Os
gramáticos especulativos, por seu turno, estavam
cientes da novidade de seu empreendimento.
Os mais conhecidos adeptos da gramática espe-
culativa foram os modistas (modistae), um pequeno

57
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

grupo de eruditos em atividade na universidade


de Paris entre 1250 e 1320. Martinho da Dácia e
Miguel de Marbais estão entre os mais renomados
representantes da primeira geração de modistas; To-
más de Erfurt e Sigério de Courtrai, da segunda. Sua
doutrina se baseava na noção dos modi significandi,
"modos de significação", que fornecia um arcabouço
para se descrever o processo de verbalização. Na
concepção modista, o objeto do mundo real, externo
ao entendimento humano, podia ser apreendido como
um conceito pelo entendimento, e o conceito podia
ser dado a conhecer por um signo falado, tornando-se
dessa maneira um significado (no sentido saussuria-
no de s(qnifié), res siqnlficata. As propriedades da
res siqnificata, seus modi siqnificandi (diretamente
derivados das propriedades do objeto no mundo
real) serviam para diferenciar gramaticalmente as
unidades semânticas (dictioncs], Por exemplo, várias
dictioncs diferentes veiculam a ideia básica de dor:
dolor ("dor"), dolco ("sinto dor"), dolens e'doente"),
dolenter ("dolorosamente"), heu ("ai!"). Elas só
podem ser diferenciadas funcionalmente quando
a dictio se torna parte de um enunciado completo
- uma pars orationis, "parte da oração" - pelos
modi siqnificandi das diferentes partes do discurso.
Dolor, o substantivo "dor", se distingue do verbo
doleo ("sinto dor") por ter o modus entis, o modo
de estabilidade e permanência - pois a dor é um
fenômeno permanente que existe no Inundo -, ao
passo que a dor inerente em doleo pode mais tarde

58
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

ser substituída pela alegria, pois doleo possui o modus


esse, o modo da mudança e da sucessão.
A teoria sintática modista (que recentemente foi
objeto de comparação com a moderna teoria das valên-
cias) só pode ser avaliada adequadamente quando se
sabe mais acerca de ideias não modistas sobre sintaxe,
como as que se preservaram em comentários sobre as
lnstitutioncs/Jrcunmaticae. Pode ser que os modistas te-
nham recebido o crédito de ideias que, na época, eram
lugar-comum. Certamente, foi o sustentáculo cognitivo
de sua teoria, a estrutura subjacente aos próprios modi
siqnüicandi, que atraiu a crítica da posteridade, mais
do que sua teoria propriamente sintática. Em meados
do século XIV, o modismo sofreu o ataque de filósofos
nominalistas como Guilherme de Occam (c. 1285-
-1349). Ele negou a existência de qualquer conexão
intrínseca entre palavras e realidade, pressuposto
em que repousavam os modi siqniiicandi, e demons-
trou as diferenças entre as propriedades da lingua-
gem mental e da língua falada. A língua, concluiu
Occam, não serve corno um espelho da cognição
ou da realidade exterior; seria muitíssimo melhor
estudar diretamente o pensamento - ou a realida-
de -, dispensando a mediação traiçoeira da lingua-
gem. Nesse ínterim, contudo, a doutrina dos modi
siqnijicandi se infiltrara nos níveis mais elementa-
res do ensino, sobretudo na Alemanha, e alguns de
seus termos e conceitos - em forma simplificada
- se tornaram lugares-comuns gramaticais. Mesmo
séculos depois, a expressão "maniete de silJnifier"

59

HISTÓRIA CONCISA DA LINGuíSTICA

ainda era fartamente utilizada pela Grammaire


générale et raisonnée (1660) de Port-Royal.

2.3.1 Experimentação: gramáticas


vernáculas medievais
É na tradição latina que devemos buscar a
corrente dominante do pensamento linguístico
medieval, pois o latim era a língua de toda a intelec-
tualidade e erudição - a língua internacional que
unia todos os cristãos letrados, bem como a língua
mais bem descrita à disposição do linguista e do
filósofo. Na teoria, o grego e o hebraico possuíam o
mesmo status do latim, reverenciados conjuntamente
como as "três línguas sagradas" inscritas na cruz
de Cristo", mas na prática poucos ocidentais antes
do Renascimento tinham um conhecimento dessas
línguas que fosse além da simples capacidade de
decifrar seus alfabetos. Quanto aos vernáculos, isto
é, às várias línguas faladas na Europa ocidental, só
pouco a pouco vieram a ser escritas; e somente então,
quando as pessoas estavam habituadas a ler em sua
própria língua, é que houve alguma necessidade de
gramáticas escritas no ou sobre o vernáculo.
A expressão "gramáticas medievais vernácu-
las" é usada em geral de modo pouco preciso para

3. "Pilatos redigira um letreiro que mandou afixar sobre a


cruz: ele trazia esta inscrição: 'Jesus, o Nazore I, rei dos judeus'.
Muitos judeus puderam ler este letreiro, porque o lugar onde Jesus
°
tinha sido crucificado ficava próximo da cidade, e texto estava
escrito em hebraico, latim e grego" (Ioâo 19,19-20) (N. do T).

60
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

denotar três gêneros literários bastante diferentes:


1) livros didáticos preparados para ensinar latim a
falantes não nativos, escritos em vernáculo; 2) obras
escritas numa língua vernácula que explicitam os
princípios gerais da gramática - quase sempre os
princípios de natureza semântica e funcional- e ex-
traem seus exemplos da língua em que são escritas; 3)
obras que descrevem a estrutura do vernáculo, usando
normalmente o vernáculo como meio de expressão.
Embora a maioria de nós hoje em dia acredite
que uma língua estrangeira é mais bem descrita por
meio da língua materna, este pode não ser o caso
numa sociedade em que o vernáculo não é escrito
e carece do vocabulário técnico para lidar com as
minúcias gramaticais. Os primeiros gramáticos me-
dievais mantiveram o latim corno meio de expressão
de seus próprios manuais, em parte seguindo as
pegadas de Donato (embora a gramática dele, que
tinha um público-alvo falante de latim, fosse em
sua própria época do tipo 2 acima), em parte favo-
recendo a solução que mais rapidamente trouxesse
seus alunos ao ponto de serem capazes de ler a Bíblia
em latim. O primeiro a romper com essa tradição
bem estabelecida foi Elfrico (JElfric), que escreveu
no sul da Inglaterra perto do ano 1000. O inglês
antigo tinha, por essa época, sua própria tradição
literária florescente, e Elfrico podia contar com UlTI
público-alvo já capaz de ler em sua língua nativa. Por
essa razão, ele traduziu uma paráfrase (radicalmente
abreviada e rearranjada) das lnstitutiones qrammaii-
61
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

cae de Prisciano em inglês antigo, acrescentando um


amplo número de peculiaridades locais à medida que
escrevia. Ele mostra pouco interesse pela gramática de
sua própria língua, pois este não era seu objeto. Apenas
observa que ambas as línguas têm oito partes do discurso,
que o impessoal é raro em ambas, e que a atribuição de
gênero aos nomes nem sempre é a mesma. Embora a gra-
mática de Elfrico tenha se tomado muito popular durante
o século XI, o desenvolvimento ulterior eleurna tradição
gramatical inglesa foi interceptado pela chegada dos
normandos", que trouxeram consigo suas próprias
gramáticas latinas favoritas. Foi preciso esperar até o
final do século XIV para que o inglês novamente fosse
usado como meio para as aulas de latim, na mesma
época em que as línguas vernáculas cobravam seu lugar
na instrução gramatical em todo o Ocidente.
As gramáticas que visam estabelecer os princí-
pios gerais ou universais da gramática tendem a ser
escritas na língua habitualmente usada pelos intelec-
tuais da comunidade para as quais foram planejadas.
Somente quando e onde existe uma tradição de cul-
tura escrita vernácula é que se sente a necessidade de
que tais gramáticas sejam escritas no vernáculo. A
Irlanda, a Islândia e a Provença possuíam tradições
literárias vernáculas muito dinâmicas, e nessas três
áreas foram escritas gramáticas desse tipo.

4. No ano de 1066, o duque da Normandia (norte da França)


Guilherme, apelidado o Conquistador, reclamando direitos de he-
rança, invadiu a Inglaterra, tornou-se rei (Guilherme 1) e instituiu
o francês como língua oficial do país (N. elo T.).

62
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

A mais antiga conhecida é a porção canônica


da Auraicept na n-Éces, "A cartilha do erudito", uma
gramática em irlandês antigo, cujas porções mais
antigas devem remontar ao século VII. Embora mol-
dada, ao fim e ao cabo, sobre os gramáticos romanos
da Antiguidade tardia, a doutrina da Auraicept é
singularmente independente e excêntrica. Concei-
tos gerais se mesclam com pormenores próprios ao
irlandês antigo. Por exemplo, o conceito de caso é
estendido dos seis do latim para incluir algo corno
28 no irlandês antigo. Os gramáticos posteriores
das escolas dos bardos se concentraram nas com-
plexidades das flexões, na formação de palavras e
na sintaxe do irlandês.
Na Islândia, o norueguês arcaico rapidamente
estendeu seu domínio das sagas originalmente orais
para obras eruditas traduzidas do latim. Em mea
dos do século XIII, Óláfr Thórdharson adaptou o
conteúdo dos livros I e III da Ars maior de Donato
(com uma grande quantidade de doutrina adicio-
nal colhida em Prisciano e outras fontes) para o
norueguês arcaico nos assim chamados Terceiro e
Quarto Tratados Gramaticais (designados pela or-
dem em que aparecem nU111importante manuscrito
que contém os quatro tratados gramaticais, o Codex
Wurmianus [AM 242]). Tanto o vocabulário técnico
quanto a substância da doutrina são adaptados às
condições islandesas (muito diversas da romana},
de UlTIH maneira notavelmente bem-sucedida. Sob a
rubrica da littera, por exemplo, Thórdharson inclui
63

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

uma detalhada discussão das runas': além disso, em


vez de usar os tradicionais trechos de poetas latinos
para exemplificar as figuras de estilo, ele apresenta
passagens adequadas colhidas em escaldos" norue-
gueses e em versículos cristãos.
O Primeiro Tratado Gramatical, mais conheci-
do, de autoria de um islandês anônimo que escreveu
UITIageração antes, contém uma proposta de reforma
da ortografia do norueguês arcaico que deriva boa
parte de sua inspiração dos alfabetos rúnicos con-
temporâneos. Ao justificar os numerosos símbolos
que acrescenta ao alfabeto latino usado para o no-
rueguês, o autor faz recurso a pares mínimos para
demonstrar a fonemicidade dos sons que deseja dis-
tinguir. Embora às vezes vá longe demais, admitindo
vários alofones em seu alfabeto, seu procedimento
é notavelmente sistemático. Este texto exernplifica
a natureza profundamente utilitária da maioria das
obras medievais dedicadas a uma língua vernácula,
textos do terceiro tipo mencionado acima. Enquanto
atacavam problemas práticos como o da reforma
ortográfica, autores como o Primeiro Gramático
frequentemente descobriam por acaso técnicas que
associamos com uma teoria altamente sofisticada;

5. As runas eram os 24 sinais gráficos que compunham


um alfabeto usado no noroeste da Europa, especialmente na Es-
candinávia e nas Ilhas Britânicas, entre os século' I1I-XVII d.C.,
possivelmente derivadas do alfabeto latino (N. do T).
6. Escaldo (do norueguês skald): poeta escandinavo medieval
( ~.do T.).

64
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

mas a semelhança entre o uso de pares mínimos pelo


Primeiro Gramático e a~ moderna análise fonológica
é mera coincidência. E sabido que a tecnologia e a
ciência se desenvolvem em ritmos diferentes e ao
longo de trilhas diferentes; de igual modo, a "tec-
nologia" linguística tal como encontrada em obras
medievais sobre ortografia, em gramáticas que ensi-
navam línguas estrangeiras, em dicionários e assim
por diante, frequentemente tem pouca relação com
as preocupações da linguística teórica de hoje em dia.
As primeiras tentativas de escrever uma gra-
mática abrangente de um vernáculo medieval ocor-
reram na Provença (sul da França), no século XIII-
-XIV. A alta consideração de que gozava a poesia dos
trovadores criara uma erupção de aspirantes a poeta
do gênero na Itália e na Catalunha, pouco familiari-
zados com os refinamentos do uso provençal. Mais
tarde, depois do desastre cultural que foi a cruzada
contra os albigenses", os próprios falantes nativos
do provençal precisavam instruir-se sobre a língua
dos primeiros trovadores. Das obras, relativamente
numerosas, produzidas em auxílio deste público, a
mais notável são as LeJjs d 'Amors, um tratado sobre

7. Os albigenses (da cidade de Albi, na Provença) eram


membros de uma facção da seita dos cátaros, que professavam
doutrina maniqueísta, pregavam a austeridade ~ a não violência,
tendo surgido no sul da França no século XI. Foram exterminados
no início do século XIII por uma cruzada movida pelo papado e
empreendida por nobres franceses. Com isso, a Provença perdeu
sua autonomia política, o que acarretou também a decadência da
cultura provençal (N. do T).

65
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGUfSTICA

gramática e poética publicado em 1336. É a primei-


ra descrição sistemática de um vernáculo europeu
medieval e, de longe, a mais detalhada descrição de
qualquer língua ocidental (com exceção do latim
e do grego) até bem adentrado o século XVI. O re-
pertório de conceitos gramaticais disponibilizado
por Donato, Prisciano e pelos modistas oferece
uma infraestrutura teórica explorada com sensibi-
lidade. O autor admite sem constrangimentos que
o provençal difere do latim por lhe faltar todo um
conjunto de casos indicados formalmente, embora,
como sublinha, a função de caso possa ser indicada
de modo igualmente claro em provençal. Somente o
uso provençal pode ser definitivo para o provençal,
insiste ele.
As Leus d 'Amors anunciavam um grau de in-
teresse cada vez maior pelos vernáculos europeus
enquanto avançavam os séculos XIV e XV. Dife-
rentemente de várias gramaticas renascentistas do
vernáculo, as gramáticas vernaculares medievais
pertencem nitidamente ao domínio da gramática
particular (e não da universal) e prática (e não teó-
rica ou polêmica). A atitude dos eruditos renascen-
tistas para com o vernáculo foi bem mais ambígua.

2.4 O Renascimento e além: universal e particular


Para entender a fundamental diferença de
caráter entre a Iinguística pré e pós-renascentista é
preciso ter em mente o ponto de vista - tão estranho
para o século XXI - daqueles que estavam envolvi-

66
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

dos com os estudos intelectuais na Idade Média. As


pessoas em todas as épocas preferem investir seu es-
forço na aquisição do conhecimento que será verda-
deiro, certo e duradouro; contudo, paradoxalmente,
o tipo de conhecimento que satisfaz esses critérios
muda de uma época para outra. Os eruditos medie-
vais buscavam tal conhecimento no universal e no
eterno - nos princípios que embasam e transcen-
dem os fenômenos terrenos, em vez de nos próprios
fenômenos transitórios. O pensamento, aguçado
pelo estudo da lógica, era para eles uma ferramenta
muito mais valiosa do que qualquer outra. Uma vez
que os princípios inerentes aos fenômenos terrenos
- como os ciclos de vida das criaturas animadas
ou os movimentos dos corpos celestes - tinham
sido formulados por um pensador da envergadura
de Aristóteles, a observação empírica servia apenas
para exemplificar esses princípios estabelecidos.
Não quer dizer que os estudiosos medievais fossem
incapazes de fazer observações empíricas, como nos
mostram os perspicazes comentários de Beda (c. 673-
-735) sobre as marés - simplesmente, parecia-lhes
que a observação era um caminho menos seguro
para o conhecimento do que o oferecido pela lógica
e pelas ciências matemáticas.
Essa atitude foi estendida também para a
linguagem, na distinção entre grammatica specu-
lativa e urammatica positiva. Suas implicações,
a princípio, foram só parcialmente percebidas, e
várias gramáticas medievais tardias, como as LCIJS
67
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

d 'Amors, contêm elementos de ambos os tipos.


Mas essas duas perspectivas de consideração da
linguagem cada vez mais foram divergindo. Com
nitidez crescente ao longo do século XVI e além,
podemos discernir duas abordagens bem diferentes
da linguagem: a abordagem "particular", que se
concentra nos fenômenos físicos que diferenciam
as línguas, e se aproxima muito das recém-surgidas
ciências biológicas em seus métodos e resultados; e
a abordagem "universal" que, concentrando-se nos
princípios subjacentes à linguagem, continuou a
buscar muito de sua inspiração e de seu método na
filosofia e especialmente na lógica.
A Iinguística desde o Renascimento tem se ca-
racterizado pela constante inter-relação e alternân-
cia dessas duas abordagens, às vezes na forma de
uma competição declarada entre escolas opostas,
às vezes de forma mais sutil dentro do trabalho de
UITI indivíduo. A corrente dominante da pesquisa
científica é, nonnahnente, controlada por uma das
abordagens; a outra, depreciada pela corrente domi-
nante, torna-se clandestina, fomentada por alguns
"excêntricos" ou por pequenos grupos periféricos,
isto é, geográfica e intelectualmente distantes do
centro. Apesar dos inconvenientes impostos à con-
tinuidade da tradição clandestina desprezada - pois
muitas intuições são esquecidas durante o período
de latência, e a separação geográfica muitas vezes
resulta em pesquisadores isolados duplicando as
descobertas uns dos outros -, ela invariavelmente

68

2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

ressurge como a corrente dominante. Desde mais


ou menos 1500, o foco da pesquisa linguística tem
alternado entre a abordagem particular e a univer-
sal, em intervalos de aproximadamente um século
e meio. Narrar o desenvolvimento da Iinguística
desde o Renascimento em nacos de um século seria
obscurecer a continuidade de cada abordagem. Em
vez disso, vamos tomar primeiro a abordagem parti-
cular e em seguida a universal e examinar cada uma
delas sistematicamente.

2.5 A descoberta do particular


Talvez o aspecto mais característico da lin-
guística ocidental pós-medieval seja a investigação
cada vez mais sistemática do particular na língua.
Enquanto no final da Idade Média a divisão entre
gramática especulativa e gramática positiva cor-
respondia grosso modo à divisão entre ciência e
tecnologia medievais, essa equação já não funciona
bem a partir do Renascimento. A visão medieval de
que os fenômenos terrenos transitórios não conti-
nham nenhum sistema perceptível e, portanto, não
eram dignos de estudo foi substituída pela certeza
cumulativa de que as regularidades eram inerentes
ll1eSlTIOnos fenômenos superficialmente arbitrários
e irregulares do mundo físico. A ordem do cosmo
era reproduzida na terra: o sistema e a regularidade
previamente associados somente COITI o reino celeste
imaterial eram agora buscados no plano físico. A
crescente atenção dedicada ao mundo natural en-

69
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

quanto transcorriam os séculos XV e XVI teve seu


paralelo no progressivo interesse despertado pela
investigação do que havia de individual e particular
na língua (gem) . Em vez de se concentrar naquilo
que transcendia as línguas individuais, os estudiosos
começaram a examinar os aspectos que diferiam
de uma língua para outra. O elemento semântico,
assumido como universal, foi se tornando um ponto
cada vez mais pacífico à medida que os estudiosos
se apercebiam da complexidade e diversidade dos
aspectos físicos da Iíngualgem) - o elemento em
que o significado estava "encarnado", para usar
os termos do pensamento medieval. As modernas
disciplinas da fonética, fonologia, morfologia e filo-
logia histórico-comparativa emergiram todas dessa
recém-sentida urgência de encontrar sistematicidade
nos aspectos físicos da Iingualgem).
No nível mais básico, as gramáticas descritivas
eram uma necessidade premente. Os vernáculos eu-
ropeus ocidentais estavam se apoderando das áreas
outrora dominadas pelo latim: primeiro as crônicas
e os estatutos, em seguida manuais populares e
obras de entretenimento e, por fim, até mesmo a
pesquisa erudita eram registrados no dialeto local
ou na recém-padronizada língua nacional. A partir
do momento em que a alfabetização já não implicava
o aprendizado do latim, a leitura-escrita se tornou
uma habilidade acessível a um espectro bem mais
amplo da população, e um mercado considerável de
manuais ortográficos e de dicionários do vernáculo
70
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

surgiu e cresceu durante o século XV. As gramáti-


cas eram uma necessidade bem menos urgente: as
traduções vernáculas da Ars minor de Donato, que
proliferaram durante o século XV, visavam em sua
grande maioria ajudar o jovem aluno às voltas com
seu latim. O Donatfrançois (Donatofrancês) de Iohn
Barton (c. 1400), a mais antiga gramática conhecida
do francês, é uma exceção notável; mas sua intenção
era ajudar os falantes de inglês a aprender o francês
correto. A maioria das gramáticas do final do sécu-
lo XV e início do XVI era, como a obra de Barton,
escrita em benefício de estrangeiros, mais do que
de falantes nativos. Afinal, com que frequência os
falantes nativos, hoje em dia, consultam gramáticas
de sua própria língua?
De vez em quando, porém, as gramáticas eram
escritas com vistas a uma finalidade diferente: de-
monstrar (a despeito das alegações em contrário) que
os vernáculos eram tão capazes de ser sistematizados
em regras quanto as línguas clássicas. Na Itália, por
exemplo, muita gente achava difícil acreditar que o
latim clássico jamais tivesse sido a língua diária do
populacho romano. Usando a situação linguística
da própria época como modelo, argumentava-se
que o latim dos discursos de Cícero era uma língua
altamente complexa e artificial, conhecida somente
por um pequeno grupo de eruditos versados em gra-
mática; em casa, Cícero usaria decerto o vernáculo
local- talvez o próprio italiano, sugeria-se, ou uma
forma antiga dele - que "não tinha nenhuma regra".
71
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Para combater essa visão, o polígrafo Leon Battista


Alberti (entre cujos numerosos escritos havia obras
sobre óptica e arquitetura) escreveu uma sucinta
gramática do italiano (c. 1450, mas só impressa em
1973) com o propósito manifesto de mostrar que o
italiano também tinha regras. De igual modo, o in-
fluente gramático alernão lohannes Claius enfatizou
que sua abrangente gramática (1578), baseada nas
obras de Lutero, demonstraria o erro da opinião
comum de que a língua alemã era extremamente
difícil e não sujeita a quaisquer regras gramaticais,
De fato, ele deliberadamente tornou suas regras o
mais semelhantes possível às do latim, a fim de dis-
sipar qualquer dúvida acerca da natureza "regular"
do alemão. Essa ambição - que não se restringe, de
modo algum, a Claius - está entre as que distinguem
muitos dos primeiros gramáticos modernos do ver-
náculo de seus antecessores medievais. Enquanto
as obras anteriores eram compostas com um fim
determinantemente prático em vista - e, na maioria
dos casos, notavelmente desembaraçadas do latim
-, muitas gramáticas do Renascimento, seja de
línguas europeias ou de línguas mais exóticas, foram
escritas com a intenção de demonstrar a "regulari-
dade" inerente da língua examinada, A equiparação
de "regularidade" COIU as regras do latim se tornou
cada vez mais explícita ao longo do século XVI8, de
modo que as gramáticas mais tardias dos vernáculos
são em geral mais artificialmente constrangidas pelo
modelo latino do que as anteriores - um exemplo

72
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

da tradição universal ultrapassando a particular, em


detrimento desta.
A recém -despertada consciência linguística
não se restringia de modo algum aos vernáculos
europeus. O grego, até então, tinha permanecido
quase tão inacessível quanto a mais remota língua
asiática; agora, com a chegada à Itália de erudi-
tos gregos vindos de Constantinopla habilitados
a ensinar sua língua, ao menos Platão e o Novo
Testamento podiam ser estudados em seu idioma
original. Gramáticas do grego, primeiramente em
grego, como as de Constantino Láscaris e Manuel
Crisóloras, e, em seguida, de modo mais acessível,
em latim (COlTIO a de Aldo Manúcio), logo estavam
escoando das prensas italianas.
E quanto ao hebraico, a terceira das "três
línguas sagradas"? Uns poucos estudiosos, com o
risco de enfrentar o opróbrio da Igreja, procuravam
judeus que pudessem ser persuadidos a ensinar-lhes
o hebraico. As dificuldades envolvidas em apr nder
hebraico eram consideráveis. Não só era impossível,
no mais das vezes, encontrar professores adequada-
mente preparados e dispostos a colaborar - afinal,

8. Exemplo do procedimento descrito pela autora se encontra


na obra do português Duarte N unes de Leão, ()l'(tjCIII riu linqua por-
(U!}llCSU (1606), onde se lê: "E por a muita semelhança que a nossa
língua tem com ella la latina] e que he a maior que nenhua língua
tem com outra, & tal que em muitas palavras & períodos podemos
fallar, que sejão juntamente latinos & portugueses" (N. do T).
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

pouquíssimos eram os judeus do século XV que


tinham um bom conhecimento da língua, e mui tos
deles suspeitavam dos motivos de seus aspirantes
a alunos -, como também, mesmo quando se en-
contrasse um professor, não havia livros didáticos
utilizáveis. As gramáticas elementares usadas dentro
das comunidades judaicas eram escritas, natural-
mente, em hebraico, tal como as gramáticas do latim
eram escritas normalmente em latim, as gramáticas
bizantinas do grego eram em grego, e assim por dian-
te. Uma gramática hebraica desse tipo era totalmente
inacessível a alguém que não tivesse o conhecimento
mínimo da língua. Um humanista do Renascimento,
Conrad Pellican, deixou-nos urna vívida descrição de
suas agruras para aprender o hebraico no ano de 1500.
Ele tinha conseguido uma cópia dos Profetas e dos
Salmos em hebraico e estava aprendendo a língua por
conta própria, usando como método a comparação entre
o texto hebraico e a tradução latina. COlTIOsabia que em
latim e grego a forma verbal de maior importância era a
primeira pessoa do singular do presente do indicativo,
saiu em busca de verbos de primeira pessoa no texto
hebraico, mas encontrou pouquíssimas. Desesperado,
recorreu a um erudito que visitava sua universidade,
em Tübingen, o célebre humanista e hebraísta alemão
Johannes Reuchlin, que lhe explicou - com mais de
uma risadinha abafada, corno relata Pellican, cons-
trangido - que em hebraico é a terceira pessoa que é
crucial, não a primeira. Pellican labutara durante vários
meses sem saber esse fato elementar, um dos primeiros
74
2. A TRADIÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

que um iniciante de hoje aprenderia. Este episódio e


outros semelhantes dão alguma ideia das dificuldades
envolvidas em se obter mesmo algumas migalhas de
hebraico, uma situação exacerbada pela expulsão dos
judeus de várias partes da Europa por volta dessa épo-
ca. Nas primeiras décadas do século XVI, imprimiu-se
certo número de gramáticas hebraicas eITIhebraico,
ocupando destaque entre elas a de Moshe Qimhi com
um comentário de Elias Levita, e se experimentou
diversos meios de torná-las acessíveis aos iniciantes.
Uma solução tentada foi itnprimir uma tabela para o
alfabeto, presumindo que o estudante, uma vez capaz
de decifrar a escrita, estava preparado para aprender os
conteúdos do livro. Outra foi imprimir uma tradução
latina em face do texto hebraico (ou, como fez Sebas-
tian Munster em sua edição e tradução da gramática
de Qimhi, imprimir a versão latina na primeira metade
do volume e o original hebraico na segunda). Somente
quando o próprio Reuchlin deu à luz uma gramática
hebraica em latim u» rudimeniis hebraicis, 1506) -
uma obra bem planejada e lindamente impressa, que
seguia de perto os métodos tradicionais de descrição
do hebraico desenvolvidos pelos gramáticos judeus
- é que o hebraico se tornou acessível a um pú-
blico mais amplo. Gramáticos posteriores fizeram
de tudo para tornar o hebraico o mais conforme
possível ao molde latino familiar: a gramática de
Nicolas Clénard (1529), sucessora da de Reuchlin
em popularidade, é notavelmente mais latinizada
que sua antecessora.
75
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

À medida que as viagens de descobrimento


se aventuravam cada vez mais longe, os europeus
foram encontrando um vasto número de línguas
exóticas. Relatos das línguas do Oriente Médio e,
em seguida, das da costa africana, das Américas
/

e da Asia gradualmente se difundiam conforme


os capitães e mercadores voltavam com pequenos
glossários, e os missionários mandavam para casa
gramáticas e suas primeiras traduções da Bíblia e da
literatura devocional. Se no início do século XVI o
hebraico ainda era uma aquisição rara e difícil, um
século mais tarde as gramáticas do japonês, do tupi"
e de outras línguas jamais sonhadas antes estavam
em circulação (de modo limitado, obviamente).
Os europeus, cujo trabalho os levava para lugares
distantes, necessitavam, é claro, de gramáticas e di-
cionários como auxiliares práticos. Os que ficavam
em casa usavam esses instrumentos, junto com
as abundantes traduções da Bíblia, como fonte de
materiallinguístico. Agora que o espectro das lín-
guas tinha se ampliado para além da capacidade de
imaginação de qualquer pessoa, o caos prevalecia.
Quem restauraria a ordem? A descoberta de Babel,
um problema que o século XVI legou ao XVII,
suscitou várias tentativas de solução, algumas de
dentro da tradição particular e algumas de dentro da

9. A autora se refere, decerto, ü obra cio padre José de An-


chieta, Artes dc qramática da linquo mais usada na costa do Brasil,
publicada em Coimbra em 1595 (N. cio T).

76
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

universal. Os estudiosos que se moviam dentro da


tradição particular tentaram se haver com as línguas
em si mesmas: quantas línguas havia? Como eram
chamadas? Quem as falava? Que escrita usavam?
Qual era sua história? As línguas, tal como as plantas
e os animais, davam ensejo a uma caracterização e
categorização sucinta. De fato, foi um naturalista,
o médico suíço Conrad Gesner, que acrescentou um
dicionário de línguas (Mithridates, 1555) a sua série
de dicionários enciclopédicos, organizados quase
sempre em ordem alfabética, na qual oferecia relatos
minuciosos de todo o conhecimento que se tinha
então de flora, fauna, rochas e minerais, criaturas
marinhas e assim por diante. No Mithridates (assim
chamado por causa de Mitridates, o mítico rei do
Ponto que, segundo o historiador grego Heródoto,
podia conversar com seus súditos em cada uma
das 22 línguas faladas em seus domínios), Gesner
dá uma breve notícia da localização e da história
externa de cada língua, junto com outros fatos de
que tivesse conhecimento. O inglês, por exemplo,
é descrito corno a mais híbrida e corrompida de
todas as línguas, devendo sua origem a uma mis-
tura do antigo bretão com o saxão e empréstimos
lexicais tomados de mercadores franceses e, na
época de Gesner, do latim. No final do volume
havia uma tabela desdobrável que mostrava o
pai-nosso etn 22 línguas. Gesner foi o primeiro
de uma longa linhagem de cientistas naturais a se
interessar pelo aspecto "particular" das línguas.
77
HISTÓRIA CONCISA DA LINGuíSTICA

A coleta de dados entre os Iinguistas do século


XVI frequentemente se resumiu à compilação de
versões do pai-nosso no maior número possível
de línguas. Esta é uma tradição que se perpetua
até hoje, com diversos sites da Internet oferecendo
milhares de traduções desta oração. As 22 versões
de Gesner eram todas extraídas de línguas do Velho
Mundo, sem se aventurar muito além da Pérsia e da
Etiópia. Por volta de 1593, Hieronymus Megiser
conseguiu listar umas quarenta línguas, incluindo
várias escandinavas e eslavas, uma língua indígena
americana e o chinês. A abrangência se ampliou
enormemente ao longo dos séculos XVII e XVIII,
culminando na grande coleção de mais de mil lín-
guas publicada em 1806 por J. C. Adelung em seu
Mithridatcs (urna retomada intencional da obra de
Gesner}, Tais coleções ofereciam aos candidatos
a filólogos histórico-comparativistas sua fonte de
dados primordial. Embora seja um texto curto, o
pai-nosso contém vocabulário suficiente para per-
mitir ao linguista ousado lançar hipóteses sobre as
relações entre as línguas. Mas seu espectro de formas
gramaticais é tão limitado que não é de surpreender
que comparações morfológicas sistemáticas rara-
mente tivessem sido feitas, até que os estudiosos
se habituassem a trabalhar com textos mais longos.
As coletâneas de espécimes linguísticos e os
dicionários enciclopédicos de línguas como o de
Gesner ou (no início do século seguinte) o Thrésor

78
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

de Z'histoire des Zangues de cest univers, de Claude


Duret, sinalizam o recém-nascido entusiasmo pela
grande variedade das línguas - um fenômeno até
então considerado um estorvo, uma punição divina,
e indigno de atenção séria. Tudo isso anunciava UtTI
aumento de interesse pelos aspectos que diferenciam
uma língua da outra no tocante à forma, e não na
função comunicativa ou epistemológica: uma mu-
dança radical de percepção.

2.5.1 A forma na língua: a emergência


da fonética e da morfologia
Uma mudança mais sutil, mas não menos
radical, estava ocorrendo no modo como a língua
era estudada. O elemento semântico, a "alma" en-
carnada no "corpo" da palavra, já não parecia tão
interessante; tomado a princípio corno coisa óbvia
pelos linguistas que trabalhavam dentro da tradição
particular e, em seguida, desprezado, ele murchou
nos arrabaldes da investigação, suplantado pelos
aspectos formais da palavra.
Uma área que conheceu um desenvolvimento
notável (apesar de esporádico) a partir de meados do
século XVI foi a fonética. Embora já se encontrasse
uma base para uma classificação articulatória dos
sons nas Institutiones qrammaticae de Prisciano, ela
mal foi notada durante a Idade Média, o que não sur-
preende: muito distante do já baixo valor atribuído a
esta parte mais obviamente física da palavra, havia
pouco estímulo prático para a investigação dos sons

79
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

do latim, conhecido apenas em sua forma escrita.


Somente no final da Idade Média, com as primeiras
descrições dos vernáculos, é que os sons passam a
ser sistematicamente descritos. Um dos estímulos
para isso foi o desejo de registrar os sons peculiares
a um dado vernáculo; outro foi a descoberta da
classificação hebraica tradicional segundo seu ponto
de articulação: guturais, palatais, linguais, dentais
e labiais. Os estudiosos ocidentais experimenta-
ValTIagora aplicar essas categorias a línguas mais
familiares. Infelizmente, apesar das detalhadíssirnas
descrições articulatórias disponíveis em gramáticas
do hebraico como as de Agathius Guidacerius (1529)
e Augustus Sebastianus Novzenus (1532), a maioria
dos gramáticos nunca foi além da rotineira atribuição
de cada letra a uma ou outra daquelas categoriais, Em
geral, pessoas com uma inclinação mais prática -
professores de surdos-mudos, e não gramáticos - é
que foram mais a fundo no estudo da articulação.
Descrições anatômicas dos órgãos vitais,
recém-postas à disposição do estudioso, como as
do anatomista italiano Fabrício de Aquapendente,
forneceram uma base sólida para tal trabalho. Aqua-
pendente publicou três obras de interesse para a fo-
nética: IJe visione. Foce, auditu ("Sobre a visão, a voz
e o ouvido") (1600), contendo uma detalhada des-
crição da estrutura, movimento e função da laringe;
De locutione ct eius instrumentis ("Sobre a fala e seus
órgãos") (1624), um resumo bastante convencional
da doutrina fonética contemporânea salpicada COlTI
80
2. A TRADIÇÀO OCI DENTAL ATÉ 1900

um pouco de fonética articulatória; e De brutorum


loquela ("Sobre a linguagem dos animais") (1624),
uma comparação dos sistemas de comunicação dos
animais com a linguagem humana.
A notável contribuição de Aquapendente e de
foneticistas como o dinamarquês J acobus Mathiae
de Aarhus CDelitteris, 1586) e do holandês Pedro
Montano (De Sprecchonst, 1635) permaneceu tão
afastada da corrente dominante da pesquisa linguís-
tica que poucos de seus sucessores tiveram notícia
de suas intuições. Com a publicação dos Elemcnts
ojSpecch, de WilliamHolder (1669), da Grammati-
ca linquae anglicanae, de John Wallis (1653), e do
Essag towards a Real Character and a Philosophical
Lanquaqe, de John Wilkins (1668), inaugurou-se
uma tradição inglesa de fonética. No entanto, até
mesmo noções elementares como ensurdecimento
e nasal idade continuaram a desconcertar muitos
autores, até o estabelecimento da fonética como
disciplina autônoma, na esteira da descoberta do
sânscrito e das obras indianas de fonética.
Já a morfologia era um aspecto formal da língua
investigado corn muito maior confiança. Antes do
Renascimento, a ide ia de que uma forma podia ser
derivada de outra ficou praticamente inexplorada.
Cada palavra era vista corno lUTIaunidade semânti-
ca; estava fora de questão isolar unidades menores,
corno sugere a ausência de termos correspondentes a
"raiz", "radical", "afixo" etc. Assim, nas gramáticas
renascentistas não havia regras de derivação como

81
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

as familiares ao leitor de hoje em dia: "Para formar


o pretérito imperfeito da primeira conjugação verbal
do português, tome o radical do presente do indicati-
VO, acrescente -ava- e as terminações de pessoa". Em
vez disso, esperava-se que o estudante observasse o
padrão exibido em paradigmas (listas) e aplicasse
a analogia a qualquer verbo que viesse a encontrar
posteriormente. Os estudiosos renascentistas, ao
contrário, se concentravam mais demoradamente na
forma. O humanista espanhol Antonio de Nebrija,
autor da primeira gramática do espanhol (1492),
oferece um exemplo desta abordagem em sua gra-
mática latina (1481). Em vez de aconselhar o pobre
aluno a memorizar páginas e páginas de paradig-
mas verbais, ele fornece um capítulo que resume a
formação dos tempos. Começa COIU o presente do
indicativo que, diz ele, não é formado de nenhum
outro tempo; ao contrário, os outros é que se formam
com base nele. O imperfeito é formado ou da segun-
da pessoa do singular do presente com a supressão
do -8 e o acréscimo de -ham (amas_ama_amabam),
ou da primeira pessoa, mudando o -()final em -e e
acrescentando -bam (JegoIege Iegebarn). Eis uma
regra que tenta "gerar" as formas do verbo latino
- uma regra do tipo que raramente se encontrava
na Antiguidade e na Idade Média. E, no entanto,
Nebrija trabalha somente com formas existentes (no
caso, a primeira e segunda pessoas do singular do
presente do indicativo) e não, como esperaríamos,
com a raiz ou o radical. A coisa permanecerá assim
até a descoberta da noção indiana de raiz no início

82
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

do século XIX. Postular e trabalhar com urna forma


sem existência autônoma na língua é algo que exige
um grau de abstração que ainda não se tinha no
início da idade moderna. Regras semelhantes às de
Nebrija, derivacionais em princípio, mas sempre
baseadas em formas existentes, se encontram nas
gramáticas mais amplamente difundidas na época.
E, é claro, muitos autores continuavam a recorrer
aos paradigmas.
O que provocou a mudança de perspectiva
que levou Nebrija e tantos outros a começar a pen-
sar na formação de palavras em termos de regras
derivacionais? Embora uns poucos gramáticos
antigos (sobretudo Diornedes e o Pseudo-Palemão)
tivessem usado esporadicamente regras de um tipo
semelhan te, as ferramentas essenciais para a análise
morfológica das palavras foram desenvolvidas fora
da tradição ocidental, entre os estudiosos judeus e
árabes. Conscientes, desde época muito mais remota,
do fenômeno da derivação (assim como nas ciências
médicas e biológicas seu conhecimento da ana to-
mia estivera muito mais avançado), os estudiosos
semitas dedicaram muito esforço à sistematização
da morfologia de suas respectivas línguas. Já pelo
século X, o conceito de "raiz" - um núcleo con-
sonantal invariável com um conteúdo semântico
básico estável - estava plenamente elaborado. Por
exemplo, em árabe, a raiz J(rI B, contendo a noção de
"escrever", pode se tornar, pela adição de vários afi-
xos, uma entre várias palavras: KiTaB, "um livro";
maKTaBa , "uma biblioteca'" "" KaTaBtu "escrevi'"
83
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

aKTuBu, "escreverei"; maKTuB "estava escrito",


e assim por diante. No entanto, KTB em si mesmo é
um grupo consonantal abstrato e impronunciável,
sem existência como tal na língua. Os estudiosos
árabes e judeus bem cedo instituíram hábito de °
se referir às raízes na forma verbal mais simples
(terceira pessoa do singular do passado): KaTaBa.
Os gramáticos ocidentais só entenderam parcial-
mente esta convenção. Supuseram que Ka'Talsa
em si mesmo fosse a raiz e concluíram que as raí-
zes verbais em qualquer língua seriam idênticas
à forma da palavra normalmente citada. Assim,
amo em latim ej'airne em francês - o "tema" ou
forma básica - foram identificados como formas-
-raízes. A natureza abstrata da raiz na análise
morfológica semítica foi, portanto, vítima de um
mal-entendido. Apesar disso, mesmo essa noção
entendida pela metade permitiu uma descrição
da complexa morfologia do latim e do grego mais
econômica do que a praticada até então.

2.5.2 Primeiros passos rumo à linguística


histórica: a hipótese indo-cita e a
ascensão da filologia comparativa
Visto que as ferramentas básicas essenciais
para qualquer tipo de análise linguística formal já
estavam disponíveis _. algumas noções rudimen-
tares de fonética articulatória e de morfologia -,
elas forneceram os meios pelos quais as pessoas
poderiam começar a pesquisar o desenvolvimento

84
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

histórico e as filiações das línguas. Com a crescente


consciência da diversidade e multiplicidade das
línguas do mundo - algumas delas reivindicando
uma antiguidade considerável-, tornou-se urgente
uma reavaliação das relações entre as línguas. Des-
cenderiam todas as línguas do hebraico, como se
imaginara durante toda a Idade Média? Ou a língua
original da humanidade teria se perdido em Babel?
Falan tes do italiano faziam sua língua rernon tar, com
muita segurança, ao etrusco, do etrusco ao grego e
daí ao hebraico: é o que se lê na obra do tosca no
Pierfrancesco Giambullari, Il Gello:Ragiunamenti
della prima et antica origine della Toscana et parti-
cularmente della tinouaFiorentina (1546). Europeus
ao norte dos Alpes eram mais hesitantes. Um deles,
Goropius Becanus, demonstrou que os argumentos
comumente usados para provar a natureza primitiva
e original do hebraico se aplicavam muito melhor ~
sua própria língua, o flamengo (flennathena, 1580).
A etimologia, concentrando-se cada vez mais na
comparação das formas do que na dos significados,
se tornou uma ferramenta vital para se provar ou re-
provar uma hipótese depois da outra, e os autores se
gabavam do número de línguas que tinham analisado
para elucidar o vocabulário de seu próprio idioma.
Já em 1597 algumas páginas de palavras persas ti-
nham sido publicadas na miscelânea linguística de
Boaventura Vulcânio, A escrita e a língua dos qodos.
Com base nisso, Cláudio Salmásio (conhecido dos
historiadores por seu panfleto em defesa do rei inglês
Carlos I, o que o mergulharia nurn duelo verbal com
85
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

o poeta J ohn Milton) elaborou a teoria indo-cita 10 ,


precursora da hipótese indo-europeia. Segundo
essa teoria, lançada numa obra sobre o status dos
dialetos gregos (De hellenistica, 1643), o latim, o
grego, o persa e as línguas germânicas eram todos
descendentes de um ancestral comum perdido. Para
demonstrar isso, Salmásio empregou técnicas que
hoje nos são familiares graças à filologia comparativa
do século XIX:
(1) a comparação de formas cognatas como o grego patér,
o alemão Vater, o persa nadar ("pai");
(2) as correspondências fonológicas, como o fato de as
línguas germânicas terem regularmente um h- inicial
onde o latim tem um C-, como no inglês antigo heajod,
dinamarquês hofluit, holandês hoojlt para o latim caput
("cabeça"); e
(3) a reconstrução, tal como quando ele usa certo número
de formas cognatas - grego pénte, pérnpe e pénke, latim
quinque, alemão jlinj; inglês antigo fij: holandês vijj; persa
ben,qh ("cinco") - para reconstruir duas protoformas
possíveis: fenjlflJ1lf e fcnllh.

A obra de Salmásio suscitou uma geração de


cuidadosos estudos históricos e comparativos. Base-
ando-se nas descobertas de Salmásio, o erudito sueco
Georg Stiernhielm delineou alguns princípios impor-

10. Cita: povo nômade, notável na arte e na guerra, desapare-


cido por volta do séc, II a.C., e que entre os sécs, Ve II a.C, habitou
a Cítia, denominação dada pelos antigos gregos a regiões próximas
ao mar Negro e ao mar Cáspio (N. do T).

R6
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

tantíssimos para o desenvolvimento da Iinguística


histórica no prefácio de sua edição da Bíblia gótica
(1671): introduziu critérios para definir o parent sco
das línguas, enfatizando que a mudança linguística
é inevitável por causa ou da distância temporal ou
da geográfica (uma afirmação que tem a drástica
implicação de que não existe a mais remota chance
de que a língua original da humanidade ainda possa
existir em sua forma primeira), e estendeu a lista
de Salmásio de línguas do tronco cita para incluir
nela (além do latim, do grego, do alemão, do gótico
e do persa) também o que então se chamava de
romances", as línguas eslavas e célticas, enquanto
excluía expressamente o húngaro, o finlandês, o
estoniano e o lapão.
No trabalho de Stiernhielm, a hipótese indo-
-cita atingiu seu ponto culminante de desenvolvi-
mento. Na época em que foi publicado, já havia
surgido uma reação contra a ênfase talvez exagerada
posta na semelhança do persa e do alemão. De todo
modo, a atenção da corrente dominante estava se
dirigindo de volta à gramática universal. No final
do século XVII, o grande filósofo Leibniz retornara
à hipótese monogenética (uma única língua original)
e lançou a hipótese de que o parentesco linguístico

11. Romance: cada uma das variedades surgidas da evolução


do latim vulgar falado pelas populações que ocupavam as diversas
regiões da Europa, e que se constituiu na fase preliminar de uma lín-
gua românica (italiano, francês, espanhol, português etc.) (N. do T).

87
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

era determinado pela proximidade geográfica. Assim,


reuniu todas as línguas europeias ("jaféticas") num
só grupo, desconsiderando as dessemelhanças con-
sideráveis - reconhecidas por Stiernhielm - entre
as línguas fino-úgricas e as línguas indo-europeias
da Europa; e incluiu o turco e o tártaro (idiomas não
indo-europeus) entre as línguas jaféticas porque são
falados na Europa, excluindo ao mesmo tempo o per-
sa que, embora asiático, é uma língua indo-europeia.
Com Leibniz, a visão genética das relações entre
as línguas estava cedendo lugar a uma abordagem
potencialmente mais próxima da moderna tipologia
baseada na distribuição geográfica.
Embora tenha sido suplantada no final do
século XVII pelas tendências universalistas que
emanavam da França, absorvidas com especial
entusiasmo na Inglaterra, a corrente "particularis-
ta" continuou seu desenvolvimento ao longo dos
séculos XVII e XVIII em diversas áreas: no estudo
cada vez mais pormenorizado da fonética, na notável
doutrina do Stammwort ou Wurzelwort (palavra raiz
ou palavra radical) que dominou o estudo linguísti-
co na Alemanha, e no estudo constante de línguas
individuais e grupos de línguas, com foco específico
na etimologia. Uma análise muito mais cuidadosa
e sensível pode ser encontrada nas gramáticas ver-
náculas dos séculos XVII c XVIII. Os estudiosos
que trabalhavam com línguas germânicas individu-
ais faziam uso rotineiro de material comparativo
colhido em outras. Esse estudo atingiu seu ponto
88
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

culminan te na extraordinária obra de Lambert ten


Kate sobre o holandês, Aenleiding tot de Kennisse van
het Verhevene Deel der Nederduitsche Sprake ("Intro-
dução à porção elevada do idioma baixo-alemão")
(Amsterdam, 1723). A fim de fornecer uma sólida
base teórica para o dicionário etimológico do holan-
dês, que ocupa a maior parte do segundo volume, ele
lança os princípios que deveriam, a seu ver, governar
a Gereqelde Ajleiding, "derivação principal", que,
sozinha, deveria dar conta das etimologias corretas
das línguas germânicas, em lugar da Af- en Aen-ln-
en Uit- en Om-werpinq van Letters, a tradicional adi-
ção, remoção, transposição e mutação de letras. Ele
promete não admitir uma única mudança em uma
"letra essencial", isto é, nas sílabas tônicas, sem uma
regra convincente ou senl uma inquestionável prova
semântica que a justifique. Suas regras consistem de
listas de correspondências fonológicas em sete diale-
tos germânicos: holandês, gótico, norueguês antigo,
frâncico, alemânico, inglês antigo e alto-alemão.
A exortação de Ten Kate a que se abandonas-
sem as técnicas da etimologia antiga foi repetida ao
longo do século. Charles Brosses, em seu lidíssimo
Traité de la jormation méchanique des lanques, et
des principes physiques de I 'étumoloqie ("Tratado
da formação mecânica das línguas e dos princípios
físicos da etimologia", 1765) reitera aquele pedido
e tenta, por sua vez, chegar a princípios confiáveis
para uso da etimologia. O etimologista deve levar em
consideração a identidade do significado, a forma
89
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

gráfica (jiqurc} - que pode ser um auxiliar valioso


quando a pronúncia sofreu mudança rápida - e o
som. As terminações flexionais devem ser desconsi-
deradas e, no estabelecimento de derivações, "a vogal
quase não deve ser levada em conta", enquanto as
consoantes do mesmo ponto de articulação podem
ser consideradas intercarubiáveis.
Na segunda metade do século XVIII, os recur-
sos conceituais disponíveis desde o Renascimento
já tinham sido experimentados em vários contextos.
Suas limitações estavam sendo cada vez mais for-
temente sentidas: a etimologia baseada na forma
(que se apoiava nas noções rudimentares de foné-
tica articulatória correntes desde o Renascimento)
suscitava a mesma crítica a que estava sujeita a
etimologia semântica dos antigos. Os linguistas
históricos do século anterior tinham chegado a
conclusões surpreendentes, mas não tinham meios
técnicos para justificá-las; assim, suas descobertas
foram descartadas em prol de hipóteses muito me-
nos perspicazes. A insatisfação com as técnicas e
os postulados da época vem à tona nos escritos de
vários investigadores sérios desse período.
Novamente, foi o contato com uma tradição
exterior que trouxe o estímulo necessário para um
novo desenvolvimento.
,-
Graças ao contato repetido
com sábios da India, os missionários franceses e
administradores coloniais britânicos começaram a
se interessar tanto pela língua sânscrita quanto pela
tradição gramatical indiana. Inicialmente assustados
90
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

com a com plexidade do sistema - pois os paradig-


mas habituais da gramática ocidental simplesmente
não existiam e exigia-se do estudante que dominasse
uma série cada vez mais complexa de regras deriva-
cionais -, os funcionários da administração britâni-
ca, em sua maioria habituados à análise tradicional
do latim e do grego, logo conseguiram reconhecer sua
precisão, e modelaram suas próprias gramáticas do
sânscrito COIll base naquele sistema: Carey (1804),
Colebrooke (1805), Wilkins (1808) e Forster (1810)
realizaram seus trabalhos tomando como base, em
maior ou menor grau, as gramáticas indianas nas
quais eles mesmos tinham aprendido (quase sempre
adaptações da gramática de Panini, como a Mu,-qdha-
bodha de Vopadeva). Por causa disso, os estudiosos
europeus (quando podiam obtê-las) acharam essas
primeiras gramáticas ocidentais do sânscrito muito
estranhas em sua formatação e obscuras e, com
poucas exceções notáveis, não conseguiram tirar
muito proveito delas. Somente com o surgimento da
segunda geração de gramáticas - as de Yates (1820)
e Frank (182:3) e a mais influente de todas, a de Bopp
(1824-37) - foi que o sânscrito, filtrado através do
modelo habitual ocidental de paradigmas junto com
uma série restrita de regras derivacionais, se tornou
acessível a um número maior de pesquisadores.
Portanto, apenas um número limitado de con-
ceitos do modelo gramatical sânscrito penetrou na
linguística ocidental, mas esses poucos já foram de
91

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

importância decisiva. A análise indiana dos sons


do sânscrito, muito mais refinada, foi no princípio
apenas parcialmente entendida, mas suas noções
centrais, os conceitos de eixo horizontal de zonas
de articulação (já conhecido pela tradição semita) e
de eixo vertical de processos articulatórios (sonori-
zação, aspiração, nasalização) - essenciais para
uma compreensão das assimilações (sândis) que são
um aspecto importante da morfofonologia sânscrita
- foram rapidamente absorvidos e integrados no
trabalho gramatical e fonético subsequente. (Mais
avançado o século XIX, W. D. Whitney, A. J. Ellis,
Henry Sweet e outros importantes foneticistas se
inspirariam no estudo dos textos sânscritos sobre
fonética, os pratisohhuas).
O conceito de raiz foi refinado de um modo que
tornou possível seu papel subsequente na filologia
indo-europeia. Franz Bopp assim o definiu:
Raízes são os elementos primitivos das palavras, não
encontráveis como tais na língua, mas identificáveis a
partir de formas derivadas deles que contêm uma base
comum ou radical.

Ao enfatizar sua natureza abstrata e sua não


equivalência com qualquer forma existente, Bopp
deu os toques finais na noção semítica de raiz, até
então apenas parcialmente entendida, e tornou
possível o tipo de etimologia que Salmásio e seus
sucessores tentaram estabelecer. A gramática COlTI-
parativa do próprio Bopp (Ver,qleichende Gramma-
92
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

tik des Sanskrit, Zend, Griechischen, Lateinischen,


Litthauischen, Gothischen und Deutschen, Berlim,
1833-54) lançou o programa para o trabalho futuro:
Neste livro, pretendo fazer uma descrição comparativa,
incluindo tudo o que for relevante, do sistema das línguas
listadas no título [sânscrito, zende, grego, latim, lituano,
gótico e alemão], uma investigação de suas leis físicas e
mecânicas e da origem das formas que indicam relações
gramaticais. Deixaremos intocado somente o segredo
das raízes e as razões por trás dos nomes dos conceitos
originais; não investigaremos, por exemplo, por que a raiz
I significa "ir" e não "ficar", ou por que os sons STHA/
STA significam "ficar" e não "ir".

A abordagem científica particularista alcançara o


ápice. Embora o aspecto semântico não pudesse jamais
ser totalmente desconsiderado, o foco agora estava
declarada e irremediavelmente voltado para a forma.
A abordagem histórica da língua - movi men to
dominante na lingufstica na maior parte do século
XIX, como veremos no próximo capítulo - foi uma
só das muitas manifestações da tendência contempo-
rânea de encarar o Inundo em termos evolucionistas.
Os filólogos perceberam - e até acharam divertido
- que fazia já muito tempo que consideravam óbvias
algumas ideias que Darwin (e também seus oposito-
res) julgavam inéditas e controversas. O respeitado
indo-europeísta alemão August Schleicher, em seu
panfleto O darwinismo testado pela ciência da iinqua-
qem (1863), escrito em reação à Origem das espécies
(1859) de Darwin, observava:

93
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

o que Darwin agora defende acerca da variação das


espécies no curso do tempo [... ] tem sido há muito
tempo e em geral reconhecido em sua aplicação aos
organismos da fala [...] Traçar o desenvolvimento de
novas formas com base em formas anteriores é muito
mais fácil, e pode ser realizado em escala bem maior,
no campo da língua do que nos organismos de plantas
e animais [...] O parentesco das diferentes línguas pode
servir, por conseguinte, [... 1 como uma ilustração pa-
radigmática da origem das espécies, para os campos de
investigação que carecem, ao menos até o momento, de
oportunidades semelhantes de observação.

Esses paralelos suscitaram uma questão


ulterior: se as línguas, o objeto do estudo linguís-
tico, se comportavam como os objetos do estudo
científico, então a linguística era uma ciência?
Ou, para colocar a questão nos termos usados na
época, era uma ciência histórica ou física'? Max
Müller, um indo-europeísta alemão, que passou
a maior parte da vida na Inglaterra, argumentou
com base na natureza da disciplina bem como na
natureza da própria língua (gern), dizendo que, já
que a ciência da linguagem tinha passado pelos
mesmos estágios de desenvolvimento - empíri-
co, classificatório e teórico - das ciências físicas
como a botânica e a astronomia, então ela devia
se incluir entre as ciências físicas (Lectures on the
Science of Lanquaqe, Royal Institution, Londres,
1816, 1863). Mas essa visão do assunto não foi,
de modo algum, amplamente aceita. Em 1875,

94
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

o linguista americano W. D. Whi tney, famoso


igualmente por sua ainda respeitada gramática do
sânscrito e por suas contribuições à fonética e à
filologia comparativa, escreveu: "A ciência física,
de um lado, e a psicologia, do outro, estão compe-
tindo para tomar posse da ciência Iinguística, que
na verdade não pertence a nenhuma delas" (Life
and Growth ofLanguage, New York, 1875). Esta
demanda pela autonomia da linguística ecoaria
ao longo do século XX, como veremos na parte
final deste livro.

2.6 A abordagem universal a partir do


Renascimento
As preocupações universalistas dos modis-
tas, inspiradas e reforçadas pelo estudo atento da
filosofia aristotélica, foram suplantadas, no CalTIpO
filosófico, pelo nominalismo e, no campo gramatical,
pelo humanismo. Gramáticos humanistas como
Guarino Veronese, Antonio de Nebrija, Thomas
Linacre, Philipp Melanchthon e Lorenzo Valla (para
citar só alguns), preocupados com o domínio de uma
prosa clara e elegante, se vincularam fortemente à
tradição antigo-medieval da qrammatica positiva
bem corno aos autores antigos recém-descobertos
como Quintiliano, Varrão e vários elos gramáticos
latinos tardios. As observações que depreciavam a
tendência especulativa por misturar dialética COITI
gramática se tornaram um lugar-comum. Em con-
95
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

trapartida, J. C. Scaliger, um estudioso italiano que


trabalhou na França, embora insistisse na separação
dos domínios da gramática e da dialética, aplicou a
doutrina aristotélica das quatros causas (material,
formal, eficiente e final) à língua em sua minuciosa
crítica da gramática contemporânea (De causis linquac
latinae, 1540), e foi seguido pela não menos filosofi-
carnente orientada e influentíssima Minerva (1587)
de Franciscus Sanctius (Sánchez) Brocensis. O trata-
mento dado por Sanctius à sintaxe, tema praticamente
desprezado por Scaliger, lidava com o uso figurativo
e, em particular, com a elipse, assunto abordado por
diversos gramáticos na tradição dominante.
O aristotelismo estava longe de ser o único ins-
trumental teórico para os gramáticos de tendência
universalista. A crescente consciência do uso dos
vernáculos europeus e da multiplicidade de línguas
recém-descobertas fora da Europa foi contra-ataca-
da, no início do século XVII, por uma desconfortável
percepção de que o meio tradicional de manter Babel
sob controle, a língua latina, até então a inquestiona-
da língua universal, estava rapidamente perdendo
eficácia. O latim, desafiado por um vernáculo após
o outro como veículo de produção intelectual, e
totalmente inútil fora da Europa ocidental, estava
empenhado numa batalha desesperada. Defronta-
dos com a perspectiva iminente da fragmentação
Iinguística numa escala desconhecida na Europa
ocidental desde a partida dos romanos, os eruditos
e também o público reagiram, lançando o foco do

96
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

interesse sobre o aspecto universal da linguagem.


Onde se poderia achar um remédio contra Babel?
Num dos extremos do espectro estava Jakob
Bõhrne e sua inspirada narrativa (LJe signatura
rerum, 1635) da Natursprache, a língua divina ori-
ginal, "raiz ou mãe de todas as línguas do mundo e
chave para um conhecimento verdadeiro e perfeito
de todas as coisas". Adão, vislumbrando as obras do
Verbo divino criador na Natureza, nomeara todas
as criaturas de acordo com suas próprias qualidades
essenciais, usando a linguagem humana como meio.
Essa capacidade de ler a língua da Natureza foi per-
dida em Babel. A partir de então, a lingualgem) foi
apanhada numa crua substância exterior, com suas
palavras arbitrárias e carentes de qualquer conexão
intrínseca com a natureza. No entanto, corno Rai-
mundo Lúlio, antes dele, e Rudolf Steiner no início
do século XX, Bõhme enfatizava que a signatura re-
rum, as indicações contidas nos fenômenos terrenos
quanto à sua verdadeira natureza, estava aí para ser
lida por quem estivesse disposto a se submeter ao
treinamento necessário.
No extremo oposto estava a notável tentativa
feita por john Wilkins de construir uma língua artifi-
cial baseada numa classificação racional da realidade
- essencialmente, um sistema aristotélico reforçado
com dados empíricos colhidos em filósofos naturais
como o zoólogo Francis Willoughby e o botânico
John Ray (que criticava a base filosófica irrealista do
esquema de Wilkins). Urna língua assim, esperava
97
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Wilkins, seria ao mesmo tempo um meio de comu-


nicação claro e não ambíguo e uma ferramenta para
a investigação científica. Este remédio definitivo
contra Babel - recriar a realidade, por assim dizer,
impondo categorias arbitrárias (ou "convencionais")
sobre ela e em seguida atribuindo a essas categorias
rótulos igualmente arbitrários - nasceu morto,
tendo recebido pouco entusiasmo por parte da Royal
Society, que encomendara originalmente o projeto.
Apesar disso, o Essay Towards a Real Character
and a Philosophical Lanquaqe (1668) de Wilkins
foi amplamente lido, tanto na Inglaterra quanto no
continente, e forneceu a P. M. Roget a inspiração
para o sistema usado em seu Thcsaurus of Enqiish
Words anel Phrases (1852).
Nem Wilkins nem Bôhme, por mais represen-
tativos que fossem das diferentes manifestações
da busca do universal na linguagem, contribuíram
diretamente para o que viria a se tornar a versão
dominante de gramática universal. A própria origem
da Grammaire qénértüc et raisonnée (1660) de Port-
-Royal espelha os elementos conflitantes em ação:
o encontro da gramática particular com a filosofia.
Enquanto escrevia livros didáticos de latim, grego,
espanhol e italiano, Claude Lancelot observou a
existência de aspectos comuns a estas e (supôs) a
todas as outras línguas. Um colega filósofo, o beli-
coso Antoine Arnauld, trouxe a confirmação indu-
tiva da base cognitiva da linguagem. As operações
mentais foram transformadas na base das distinções

98
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

gramaticais: as três operações primárias - formar


um conceito como "redondo", fazer um julgamento
como "a terra é redonda", e raciocinar - forneciam
um arcabouço para distinguir as várias partes do
discurso e para o estudo da sintaxe. Corno essas
operações e suas consequências linguísticas são
universais, elas podem ser exemplificadas por meio
de qualquer língua, e o francês e o latim oferecem
a maioria dos exemplos. Dessa maneira, a célebre
análise da oração "Deus invisível criou o Inundo
visível" mostra simplesmente como três proposições
mentais distintas - que Deus é invisível, que Ele
criou o mundo, e que o mundo é visível - estão
incluídas nesta única proposição verbal.
Uma distinção entre linguagem mental e lingua-
gem verbal, província dos gramáticos, tinha sido parte
da tradição teológica e filosófica por séculos. Buscar
derivar sentenças gramaticalmente analisáveis de
proposições mentais não era um empreendimento que
surpreendesse alguém que julgava essa tradição digna
de estudo. Já a análise da justificação para as partes
do discurso era de importância mais imediata. Tendo
definido o verbo como uma palavra cujo uso princi-
pal é significar a afirmação - como em "o mundo é
redondo" -, os autores de Port-Royal concluíram
que somente no verbo "ser" essa função se realizava
em sua forma mais simples; outros verbos, "viver"
por exemplo, são analisados como consistindo do
verbo "ser" mais um atributo: "é vivente". Esta
análise, encontrada também nas obras dos modistas

99
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

e alhures, é característica da tradição universalista


- uma consequência natural da análise lógica, em
vez de gramatical, do enunciado.
A Grammaireqénérale et raisonnée é a precursora
reconhecida de uma longa série de gramáticas "gerais",
"filosóficas", "universais" ou "especulativas", cujos
autores estavam preocupados em demonstrar a pre-
sença marcante dos princípios lógicos na linguagem,
dissociados dos efeitos arbitrários do uso de qualquer
língua particular. Na Inglaterra, o Hermes, or a Philo-
sophical Inauiru concerning Universal Grammar (1751)
de James Harris, mais explícita em sua aplicação das
categorias filosóficas à linguagem do que várias outras
obras do gênero, e na Alemanha os Anfangs(qründe
der Sprachwissenscha]t ("Rudimentos da Iinguística'',
1805), representam extremos do desenvolvimento
deste gênero fora da França l~.
Mas a gramática filosófica, tal como desenvol-
vida a partir da Grammaire de Port-Royal, não foi a
única portadora da tradição universal do estudo da
linguagem entre 1660 e 1800, embora tenha sido o
sistema teórico mais especialmente difundido e de
reconhecimento mais geral. Iniciando-se com Locke,
Condillac e os philosophcs do Iluminismo francês, a
questão da origem da língua e da natureza de sua

12. A Gvamáticajiiosojica da liiutua portuqucsa, deIerónirno


Soares Barbosa, escrita em 1803 mas só publicada em 1822, é a
representante mais notável dos princípios da Grammairc aénéra!«
de Port-Royal em nossa língua (N. do T.).

100
2. A TRADiÇÃO OCIDENTAL ATÉ 1900

relação com o pensamento foi motivo de muita re-


flexão. A gramática de línguas exóticas era estudada
com atenção cada vez maior, pois as línguas de povos
primitivos (era o raciocínio então) necessariamente
lançariam luz sobre a língua da humanidade num
estágio igualmente primitivo de desenvolvimento.
Estes foram os primórdios da tipologia linguística,
isto é, a tentativa de classificar as línguas de acordo
com tipos específicos. O problema mesmo da ori-
gem da língua teve um destino bem interessante: o
prêmio oferecido pela Academia de Berlim em 1771
para um ensaio sobre o assunto atraiu 31 inscrições
e - apesar da contribuição vencedora de Herder
(Abhandlung über den Ursprunq der Sprache, "Ensaio
sobre a origem da língua") - continuou a provocar
vívida discussão até o final do século XVIII e além.
O fato de a Sociedade de Linguística de Paris ter
julgado necessário proibir a inscrição de estudos
sobre o tema numa data tardia corno 1866 mostra
claramente que o interesse popular no assunto ainda
estava muito vivo e, ao mesmo tempo, que a corrente
acadêmica dominante tinha perdido a esperança
de jamais encontrar uma solução para o problema.

101
, ,
3. A LINGUISTICA NO SECULO XIX

Concorda-se em geral que a mais extraordinária


façanha dos estudos Iinguísticos do século XIX foi
o desenvolvimento do método comparativo, que
resultou num conjunto de princípios pelos- quais as
línguas poderiam ser sistematicamente compara-
das no tocante a seus sistemas fonéticos, estrutura
gramatical e vocabulário, de modo a demonstrar
que eram "genealcgicamente'' aparentadas. Assim
como o francês, o italiano, ° português, o romeno,
o espanhol e as outras línguas românicas tinham
se originado do latim, também o latim, o grego e o
sânscrito, bem como as línguas célticas, germânicas
e eslavas e várias outras línguas da Europa e da Ásia
tinham se originado de alguma língua mais antiga,
à qual é costume aplicar o nome de indo-europeu ou
protoindo-curopeu. O fato de as línguas românicas
descenderem do latim e assim constituírem uma
"família" era coisa sabida havia séculos. Mas a
existência da família linguística indo-europeia e a
natureza de sua relação genealógica foi demonstra-
da pela primeira vez no século XIX pelos filólogos
comparativistas.
103
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTlCA

3.1 Desenvolvimento do método comparativo

o ímpeto principal para o desenvolvimento


da filologia comparativa chegou no final do século
XVIII, quando se descobriu que o sânscrito - a
antiga língua dos livros sagrados da cultura indiana,
já não mais falada e preservada apenas na escrita -
tinha algumas semelhanças espantosas com o grego
e o latim. Um orientalista inglês, Sir William Iones,
embora não fosse o primeiro a observar tais serne-
lhanças, recebe em geral o crédito de tê-las trazido à
atenção do mundo intelectual e lançado a hipótese,
em 1786, de que aquelas três línguas deviam ter
"jorrado de alguma fonte comum, que talvez não
exista mais". Por aquela época, certo número de tex-
tos e glossários das línguas germânicas mais antigas
(gótico, antigo al to-alemão e norueguês a rcaice)
tinham sido publicados, e Jones se deu conta de
que o germânico, bem como o persa antigo e talvez
o céltico, tinha evoluído desde aquela mesma "fon-
te C0111Unl". O próximo passo importante foi dado
em 1822, quando o pesquisador alemão J akob
Grimrn - na esteira do linguista dinamarquês
Rasmus Rank (cuja obra escrita, em dinamarquês,
era pouco acessível à maioria dos estudiosos eu-
ropeus) - demonstrou, na segunda edição de sua
gramática comparativa do germânico, que havia
diversas correspondências sistemáticas entre os
sons do germânico e os sons do grego, do latim
e do sânscrito em palavras de sentido semelhante.

104
3. A LlNGuíSTlCA NO SÉCULO XIX

Grimm observou, por exemplo, que onde o gótico


(a mais antiga língua germânica sobrevivente) tinha
um F, o latim, o grego e o sânscrito frequentemente
tinham um p (por exemplo: gótico FOTUS, latim PE-
DIS, grego PODÓS, sânscrito PADÁS, todas significando
"pé"). Quando o gótico tinha um P, as línguas não
germânicas tinham um B; quando o gótico tinha um
B, as línguas não germânicas tinham o que Grimm
chamou de "aspirada" (latim F, grego PH, sânscrito
BH). Para dar conta dessas correspondências, ele
postulou uma "mudança sonora" (Lautverschie-
bung) cíclica na pré-história do germânico, em
que as "aspiradas" originais se tornaram oclusivas
sonoras não aspiradas (BI-I tornou-se B etc.), as
oclusivas sonoras não aspiradas originais se tor-
naram surdas (B tornou-se p etc.), e as oclusivas
surdas originais (não aspiradas) se tornaram "as-
piradas" (p tornou-se F). É bom notar que o termo
"aspirada" usado por Grimm cobria categorias tão
foneticamente distintas quanto oclusivas aspiradas
(131-1,PH), produzidas com um emissão de ar audível,
e fricativas (F), produzidas com uma fricção audível
em consequência da oclusão incompleta do trato
vocal. (Trataremos com mais vagar da chamada "lei
de Grimm" quando, na seção 3.5.1, formos analisar
detalhadamente a metodologia da linguística histó-
rica praticada nesse período.)
No trabalho dos cinquenta anos seguintes, a
ideia de mudança sonora se tornou mais precisa
e, na década de 1870, um grupo de pesquisadores

105
HISTÓRIA CONCISA DA LINGuíSTICA

conhecidos coletivamente como junggrammaúker


("jovens gramáticos" ou neogramáticos] lançou a
tese de que todas as mudanças no sistema fonético
de uma língua, enquanto esta se desenvolvia ao
longo do tempo, estavam sujeitas à operação de leis
fonéticas regulares. Embora a tese de que as leis
fonéticas fossem absolutamente regulares em sua
operação (a menos que fossem inibidas em instâncias
particulares pela influência da analogia) tivesse sido,
a princípio, considerada muito controvertida, já no
final do século XIX estava aceita de modo bastante
generalizado e se tornara o fundamento do método
comparativo. Usando o princípio da mudança fonéti-
ca regular, os estudiosos puderam reconstruir formas
"ancestrais" comuns das quais se podia derivar as
formas mais tardias encontradas em línguas particu-
lares. Por convenção, essas formas reconstruídas são
marcadas, na literatura técnica, com um asterisco
(oAo). Assim, com base na palavra reconstruída indo-
-europeia para "dez", 'l,°DEKM, foi possível derivar o
sânscrito DASA, o grego DÉKA, o latim DECEM e o gótico
TAIHUN, postulando certo número de diferentes leis
fonéticas que operaram independentemente nos
diferentes ramos da família indo-europeia,

3.2 O papel da analogia


Mencionamos acima a analogia em conexão
COIn seu poder de inibir a operação regular das
leis fonéticas em formas lexicais particulares. Era

106
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

assim que os neograrnáticos pensavam acerca dela.


Ao longo do sé culo XX, porém, ficou reconhecido
que a analogia, tomada em seu sentido mais amplo,
desempenha um papel muito mais importante no
desenvolvimento das línguas do que simplesmente o
de esporadicamente inibir aquilo que, do contrário,
seria uma transformação completamente regular
do sistema fonético de uma língua. Quando uma
criança aprende a falar, tende a regularizar as for-
mas anômalas, ou irregulares, por analogia com os
padrões mais regulares e produtivos de formação na
língua. Por exemplo, a criança tende a dizer "eu fazi"
em vez de "fiz" , tal como diz "comi" " "abri" "vendi"
etc. O fato de a criança proceder assim é uma prova
de que ela aprendeu ou está aprendendo as regula-
ridades ou regras de sua língua. Ela prosseguirá seu
aprendizado "desaprendendo" algumas das formas
analógicas e substituindo-as pelas formas irregu-
lares correntes na fala da geração anterior. Mas,
em alguns casos, ela manterá uma forma analógica
"nova", e pode ser então que esta se torne a forma
reconhecida e aceita pela comunidade de falantes.
No português arcaico, por exemplo, o particípio
passado de PRENDER era PRIS, mas a forma analógica
PRENDIDO acabou prevalecendo.

3.3 A contribuição de Humboldt


Um dos linguistas mais originais, senão o de
influência mais marcante, em todo o século XIX
foi o erudito e diplomata alemão Wilhelm von

I07
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Humboldt (1767-1835). Seus interesses, diferente-


mente dos da maioria de seus contemporâneos, não
eram exclusivamente históricos. Seguindo o filósofo
alemão Johann Gottfried von Herder (1744-1803),
ele enfatizou o vínculo entre línguas nacionais e
caráter nacional, o que, no entanto, era um lugar-
-comurn do movimento romântico. Mais original
foi a teoria de Humboldt sobre a forma "interna"
e "externa" da língua. A forma externa da língua
seria a matéria bruta (os sons) com base na qual as
diferentes línguas são moldadas; a forma in terna seria
o padrão, ou estrutura, de gramática e significado que
é imposto sobre essa matéria bruta e que diferencia
uma língua da outra. Essa concepção "estrutural"
da língua viria a tornar-se dominante, ao menos por
algum tempo, em muitos dos principais centros de
estudo linguístico até meados do século XX. Outra
das ide ias de Humboldt era a de que a língua é algo
dinâmico, e não estático, sendo em si mesma uma
atividade (uma enerqcia, como ele escreveu, usando
um termo grego) e não o mero produto de uma ati-
vidade [erqon]. Uma língua não é um conjunto de
enunciados prontos produzidos pelos falantes, mas
os princípios ou regras subjacentes que possibilitam
aos falantes produzir tais enunciados e, mais que
isso, um número ilimitado de enunciados. Esta
ideia foi absorvida pelo filólogo alemão Heymann
Steinthal e, o que é mais importante, pelo fisiologista
e psicólogo Wilhelm Wundt, influenciando desse
modo as teorias psicológicas da linguagem do final do

108
3. A LlNGUfSTICA NO SÉCULO XIX

século XIX e início do XX. Sua influência, bem como


a da distinção entre forma interna e externa, tam-
bém pode ser sentida no pensamento de Ferdinand
de Saussure (1857-1913). Mas suas implicações
plenas provavelmente só viriam a ser percebidas e
tornadas precisas em meados do século XX, quando
o linguista americano N oam Chomsky reenfatizou-
-a e fez dela uma das noções básicas da gramática
gerativa (da qual trataremos mais adiante).

3.4 A linguística histórica (ou diacrônica)

Todas as línguas mudam no curso do tempo. Os


registros escritos deixam claro que o português do
século XV é diferente, de maneira bastante notável,
do português do século XXI, tal como o francês ou o
alemão do século XV é diferente do que se fala hoje.
A principal realização dos linguistas do século XIX
não foi apenas perceber mais claramente do que seus
antecessores a uhiquidade da mudança Iinguística,
mas também colocar sua investigação científica em
base mais sólida por meio do método comparativo.

3.4.1 Mudançafonética
Desde o início do século XIX, quando os es-
tudiosos observaram que havia certo número de
correspondências sistemáticas em palavras apa-
ren tadas entre os sons das línguas germânicas e os
sons das que mais tarde foram reconhecidas como
109
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

outras línguas indo-europeias, prestou-se atenção


particular, na linguística diacrônica, às mudanças
nos sistemas fonéticos das línguas.
Alguns tipos comuns de mudança fonética,
sobretudo a assimilação e a dissimilação, podem
ser explicados, ao menos em parte, em termos de
condicionamento sintagmático ou contextual. Por
exemplo, o s do artigo os terá sua pronúncia condi-
cionada pelo som que vier em seguida no sintagma:
assim, por exemplo, em os DOIS, o S soa Iz/, enquanto
em os TRÊS soa Is/, devido ao caráter sonoro do /d/
e surdo do It/.
Por assimilação se entende o processo pelo qual
um som se torna semelhante, em seu ponto ou modo
de articulação, a um som vizinho. Por exemplo, na
passagem do latim para o português, o ditongo latino
I aw I, escrito AU, em grande parte das palavras se
transformou em low/, escrito ou, porque a sernivo-
gal /w/, sendo mais fechada que a vogal /a/, trouxe
esta vogal para mais perto de seu ponto e modo de
articulação. Isso explica por que o latim AURU, PAUCU,
LAURU tenha resultado no português OURO, POUCO,
LOURO. Como o processo de mudança fonética não
se interrompe, a assimilação prossegue seu curso, e
é por isso que o antigo ditongo low/ já se pronuncia
hoje, tanto no Brasil quanto em Portugal, como a
vogal simples fechada /0/, apesar da forma escrita,
que ainda conserva a grafia ou. Temos aqui um caso
de assimilação total, em que dois sons acabaram se
fundindo nUIU só: /aw/ > /ow/ > 10/.
110
#I

3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

A assimilação também é responsável pelo


fenômeno chamado metafonia (ou Umlaut, em
alemão). Característica das línguas germânicas, a
metafonia se dá quando a vogal alta /i/ dos sufixos
provoca a elevação das vogais baixas anteriores - o
caso mais comum é o da transformação de um / a/
em lei, como acontece até hoje na formação dos
plurais em alemão: MANN ("homem") é MÀNNER no
plural, em que o A se pronuncia lei. Em inglês o
fenômeno deixou suas marcas em algumas formas
irregulares corno MAN/MEN ("homem/ homens", do
arcaico *MANNIZ) ou FOOT/FEET ("pé/pés", do arcaico
* FOTIZ) . Em português temos exemplos de metafonia
na alternância de vogal fechada/vogal aberta em
casos como o de PORCO/PORCOS, FOGO/FOGOS, porque,
em latim, o singular apresentava uma vogal fechada
final (PORCU, FOCU), mas uma vogal aberta no plural
(PORCOS, FOCOS), o que provocou a abertura do timbre
da vogal anterior.
A dissimilação se refere ao processo pelo qual
um som se torna diferente de um SOIn vizinho,
para que haja nítida distinção entre os dois. É o
que ocorre, por exemplo, no português arcaico (e
em variedades populares até hoje) com a palavra
MANHÃ pronunciada (e às vezes escrita) MENHÃ. No
português de Portugal, o ditongo escrito EI, como ern
QUEIJO, é pronunciado / ay/, por dissimilação, ao pas-
so que no Brasil, por assimilação, é pronunciado / e/.
Um caso especial de d issirnilação é a haplo-
loqia, em que, havendo duas sílabas idênticas ou

111
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

semelhantes, a segunda é eliminada. Em português


temos muitos exemplos desse fenômeno: SAUDOSO (de
SAUOADOSO), BONDOSO (de BONDADOSO), lOÓLATRA (de
IOOLÓLATRA). É a haplologia que explica o verbo brasi-
leiro DEDURAR, proveniente da expressão DEDO-DURO.
Tanto a assimilação quanto a dissimilação
costumam ser explicadas pelo princípio geral da
"lei do menor esforço". Esta se aplica claramente
em exemplos típicos de assimilação. Fica menos
óbvio, porém, como ou por que uma sucessão de
sons dessemelhantes em sílabas contíguas deveria
ser mais fácil de pronunciar do que uma sucessão
de sons idênticos ou semelhantes (a pronúncia
portuguesa "lâite" [LEITE], por exemplo, não revela
um "menor esforço" por parte do falante). Mas um
entendimento mais acurado desse fenômeno, bem
como de outros "lapsos da língua", pode resultar do
trabalho atual nos aspectos fisiológicos e neurológi-
cos da produção da fala.
Nem todas as mudanças fonéticas podem ser
creditadas ao condicionamento sintagrnático. A
mudança de Ipi, Itl e /k/ em Ifl e 181(o SOI11 do TH
inglês em THINK, "pensar") no antigo germânico,
por exemplo, não pode ser explicada nesses termos.
Houve tentativas de se desenvolver uma teoria
geral da mudança fonética, sobretudo por parte do
Iinguista francês André Martinet. Mas nenhuma
dessas teorias obteve até hoje a aceitação universal,
e é provável que as causas da mudança fonética
sejam múltiplas.

112
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

3.4.2 Mudança sintática


Uma língua pode adquirir uma distinção gra-
matical que não tinha antes, como quando o portu-
guês [e as outras línguas românicas) desenvolveu os
artigos definidos, inexistentes em latim. Ela também
pode perder uma distinção, como acontece no fran-
cês moderno, em que a mesma forma verbal indica
o presente e o passado do modo subjuntivo Cil faut
queje sorte / il a fallu que je sorte: "é preciso que eu
saia" / "foi preciso que eu saísse"). No português
popular do Brasil acontece coisa semelhante, com
o presente do indicativo substituindo o presente do
subjuntivo ("você quer que eufaço isso?"), ao passo
que em Portugal o futuro do pretérito é muitas vezes
expresso pelo imperfeito do indicativo ("eu gostava
de morar aqui", no lugar de qostariai, fenômeno
que também se verifica no Brasil ("se eu tivesse
dinheiro, comprava um carro novo"). O que era ex-
presso por meio de um dispositivo gramatical pode
vir a ser expresso por meio de outro. Por exemplo,
nas línguas indo-europeias mais antigas, a função
sintática dos nomes e dos sintagmas nominais numa
oração era expressa primordialmente por meio das
terminações de caso (como no conhecido paradig-
ma latino: ROSA, ROSAM, ROSAE, ROSIS, ROSARUM etc.).
N a maioria das modernas línguas indo-europeias,
essas funções são expressas por meio da ordem das
palavras na frase e pelo uso de preposições (o latim
ROSAE equivale ao português DA ROSA, por exemplo).
É possível argumentar (embora não se possa dizer

113
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTlCA

que isso já tenha sido demonstrado satisfatoriamen-


te) que as mudanças sintáticas que ocorrem numa
língua no curso do tempo deixam em geral intacta
sua estrutura profunda e tendem a modificar os
modos como as funções e distinções sintáticas mais
profundas são expressas (seja morfologicamente,
pela ordem na frase, pelo uso de preposições e ver-
bos auxiliares etc.), sem afetar as próprias funções
e distinções. Diversas mudanças sintáticas são
geralmente atribuídas à ação da analogia, de que
já tratamos acima.

3.4.3 Mudança semântica


Perto do final do século XIX, um estudioso
francês, Michel Bréal, se dispôs a determinar as leis
que regem as mudanças no significado das palavras.
Esta foi a tarefa que dominou a pesquisa semântica
até a década de 1930, quando os semanticistas come-
çaram a voltar sua atenção para o estudo sincrônico
do significado. Diversos sistemas para a classificação
das mudanças de significado foram propostos, e
uma variedade de princípios explanatórios foram
sugeridos. Até agora, não se descobriu nenhuma
"lei" de mudança semântica comparável às leis de
mudanças fonéticas dos fonologistas, Parece que as
mudanças de significado podem ser ocasionadas por
diversos fatores. O mais importante, talvez - e aque-
le que mais foi enfatizado pelo chamado movimento
"palavras e coisas" na semântica histórica -, é a
mudança sofrida no curso do tempo pelos objetos ou

114
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

instituições que as palavras designam. Por exemplo,


a palavra CARRO remonta, através do latim CARRUS, a
um termo celta que designava uma carroça de quatro
rodas. Hoje ela designa uma espécie de veículo muito
diferen te; confrontado com unl modelo da carroça
celta num museu, um contemporâneo nosso não a
descreveria como um carro.
Algumas mudanças no significado das palavras
são causadas por seu uso habitual em contextos
particulares. O verbo PENSAR provém de um verbo
latino (PENSARE) que significava "pesar, calcular o
peso"; o uso específico de PENSAR como "pesar as
ideias" originou seu sentido atual. De igual modo, a
palavra VEADO adquiriu um significado especializado,
designando um tipo especial de animal selvagem, DO
passo que o latim VENATU significava "caça morta"
de maneira geral. Nesses exemplos, o sentido mais
restrito se desenvolveu do uso constante da palavra
num contexto mais particularizado, e as pressupo-
sições contextuais da palavra se tornaram, com o
tempo, parte de seu significado.

3.5 O método comparativo

o método comparativo, na linguística histórica,


se preocupa com a reconstrução de uma língua mais
antiga ou de estágios mais antigos de uma língua
com base na comparação das palavras e expressões
aparentadas em diferentes línguas ou dialetos deri-
115
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

vados dela. O método comparativo se desenvolveu ao


longo do século XIX para a reconstrução do protoindo-
-europeu e foi posteriormente aplicado ao estudo das
demais famílias Iinguísticas, Ele se apoia no princípio
da mudança fonética regular - um princípio que,
como explicamos acima, encontrou violenta oposição
ao ser introduzido na Iinguística pelos neogramáticos
na década de 1870, mas que, já no final do século, se
tornou parte do que poderíamos chamar sem exagero
de abordagem ortodoxa da Iinguística histórica. As
mudanças nos sistemas fonológicos das línguas eram
apreendidas sob a forma de leis fonéticas.

3.5.1 A lei de Grimm


A mais famosa das leis fonéticas é a lei de Grimm '
(embora o próprio Grimm não tenha usado o termo
"lei"). Algumas das correspondências apreendidas
pela lei de Grimm se encontram na tabela abaixo:

TABELA 1: OCLUSIVAS LABIAIS E DENTAIS


NAS LfNGUAS INDO-EUROPEIAS

Grego Latim Gótico Sânscrito Eslavo


p p f p p
b b p b b
ph fib b bh b
t t q t t
d d t d d
th f/d d dh d

116
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

Na tabela 1.1 abaixo damos alguns exemplos


dessas correspondências:
Grego Latim Gótico Sânscrito Eslavo
phero fero biru bharami bera "eu levo"
phrater frater brodhar bhratar bratru "irmão"
pád-
v.
pous,podós pes, pedis fotus pesi "pé"

A reconstrução das oclusivas labiais e dentais


do protoindo-europeu é bastante aceitável. Mais
controvertida é a reconstrução dos sons do protoin-
do-europeu que subjazern às correspondências
mostradas na Tabela 2 abaixo:

TABELA 2: OCLUSIVAS VELARES E


PALATAIS NAS LrNGUAS INDO-EUROPEIAS

Grego Latim Gótico Sânscrito Eslavo


k k h sh s
g g k j z
kh h/g/f g h z
p/t/k qu wh k k
b/dlb v/~u q g g
ph/th/kh f/v/gu w gh g

Segundo a hipótese mais geralmente aceita,


havia no protoindo-europeu pelo menos duas sé-
ries distintas de consoantes velares (ou "guturais"):
velares simples (ou palatais), simbolizadas por "h,
*Lq e "qh, e labiovelares, simbolizadas por *klt', *Lqlt' e

117
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

*glflh. As labiovelares podem ser consideradas como


oclusivas velares articuladas simultaneamente com
arredondamento dos lábios. Em um grupo de lín-
guas, julga-se que o componente labial foi perdido;
em outro grupo, o componente velar se perdeu.
Somente no reflexo latino da surda *kIF é que a labia-
lidade e a velaridade se mantiveram (cf latim quis,
derivado de *kll'i-). É notável que as línguas que têm
uma velar para as oclusivas labiovelares protoindo-
-europeias (p. ex., sânscrito e eslavo) têm uma
sibilante ou palatal (5'ou s) para as velares simples
protoindo-europeias. Os primeiros pesquisadores
deram grande importância a esse fato e julgaram
que ele representava urna divisão fundamental da
família indo-europeia num grupo oriental e num
ocidental. O grupo ocidental - que inclui o celta,
o germânico, o itálico e o grego - é designado em
geral como o grupo centum; o grupo oriental - que
inclui o sânscrito, o iraniano, o eslavo e outros -
é chamado de grupo satem. (As palavras centum
[pronunciada kenturn] e satem significam "cem" enl
latim e iraniano, respectivamente, e exemplificam
os dois tratamentos diferenciados dados as velares
simples do protoindo-europeu.) Hoje em dia, dá-se
menos importância à distinção centum-satem. Mas
ainda se considera que num período remoto do
indo-europeu houve uma lei fonética em operação
no dialeto ou dialetos dos quais se originaram o
sânscrito, o iraniano, o eslavo e as outras chamadas
línguas satem, que teve o efeito de palatalizar as

118
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

velares originais protoindo-europeias até convertê-


-las finalmente em sibilantes.

3.5.2 Etapas no método comparativo


As informações dadas acima pretendem ilus-
trar o que se entende por lei fonética e indicar o tipo
de considerações levadas em conta na aplicação do
método comparativo. O primeiro passo é encontrar
conjuntos de formas cognatas ou supostamente
cognatas nas línguas ou nos dialetos que estão sendo
comparados. Por exemplo: latim decem = grego deka
= sânscrito dasa = gótico taihun, todos significan-
do "dez". A partir de conjuntos de formas cognatas
como essas, é possível extrair conjuntos de corres-
pondências fonológicas. Por exemplo: (1) latim d =
grego d = sânscrito d = gótico t; (2) latim e = grego
c = sânscrito a = gótico ai (na ortografia gótica,
isso representa o som e); (3) latim c (pronunciado
k) = grego k = sânscrito s = gótico h; (4) latim
em = grego a = sânscrito a = gótico uno Pode se
postular uma série de fonemas "reconstruídos"
(marcados com um asterisco pela convenção padro-
nizada) aos quais os fonemas em línguas atestadas
podem ser sistematicamente vinculados por meio
das leis fonéticas. A palavra protoindo-europeia
reconstruída para "dez" é "dehm. Com base nessa
forma, a palavra latina pode ser derivada por meio
de uma única mudança fonética, * m muda para em
(mudança simbolizada como "m > em); a grega,
por meio da mudança * m > a (isto é, vocalização

119
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

na nasal silábica e perda da nasalidade]; a sâns-


crita, por meio da lei de palatalização, * k > .~ e
da mudança fonética * m > a; e a gótica por meio
da lei de Grimm (*d > i, *k > h) e pela mudança
fonética * m > uno
A maioria dos linguistas do século XIX não
tinha dúvidas de que estava reconstruindo as formas
reais das palavras de alguma língua mais antiga, e de
que * dekm, por exemplo, era uma palavra protoindo-
-europeia pronunciável. Muitos de seus sucessores
se mostraram bem mais céticos quanto à realidade
fonética das formas marcadas com asterisco corno
* dekm. Disseram que elas não eram nada mais do
que fórmulas que sintetizavam as correspondên-
cias observadas entre formas atestadas ern línguas
particulares e que eram, em princípio, impronun-
ciáveis. Desse ponto de vista, seria uma questão de
decisão arbitrária qual letra usar para se referir às
correspondências: latim d = grego d = sânscrito d
= gótico t, e assim por diante. Qualquer símbolo
serviria, desde que um símbolo distinto fosse usado
para cada conjunto distinto de correspondências. A
dificuldade com esta visão da reconstrução é que ela
parece negar a verdadeira razão de ser da linguística
histórica e comparativa. Os Iinguistas querem saber,
se possível, não só que o latim dccem, o grego dena
etc. são aparentados, mas também a natureza de seu
relacionamento histórico - como essas palavras se
desenvolveram de uma forma ancestral comum. Eles
também quereln construir, se viável, alguma teoria

120
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

geral da mudança fonética. Isso só pode ser feito se


algum tipo de interpretação fonética puder ser dada
às formas marcadas com asterisco. O ponto impor-
tante é que a confiança com que uma interpretação
fonética é atribuída aos fonemas reconstruídos va-
riará de um fonema para outro. Deve ficar claro da
discussão acima, por exemplo, que a interpretação
de * d como uma dental sonora ou oclusiva alveolar
é mais segura do que a interpretação de * k como
uma oclusiva velar surda. Nem todas as formas COIU
asterisco se encontram num plano idêntico de um
ponto de vista fonético.

3.5.3 Críticas ao método comparativo


Uma das críticas dirigidas contra o método
comparativo é que ele se baseava numa metáfora
genealógica enganosa. Em meados do século XIX,
o linguista alemão August Schleicher introduziu
na Iinguística comparativa o modelo da "árvore ge-
nealógica". Obviamente, não existe nenhum ponto
no tempo em que se possa dizer que novas línguas
"nasceram" de uma língua-mãe comum. Tampouco
é normal ° caso de que a língua-mãe "viva" por
algum tempo, relativamente inalterada, e em se-
guida "morra". É bastante fácil reconhecer a ina-
dequação dessas expressões biológicas. Não menos
enganosa, por outro lado, é a suposição de que as
línguas descendentes de uma mesma língua-mãe
divergirão necessariamente, sem jamais conver-
gir de novo, ao longo do tempo. Essa suposição está

121
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

embutida no método comparativo tal como tradicio-


nalmente aplicado. E, todavia, existem vários casos
nítidos de convergência no desenvolvimento de lín-
guas bem documentadas. Os dialetos da Inglaterra,
por exemplo, estão desaparecendo rapidamente e
hoje são muito mais semelhantes na gramática e no
vocabulário do que eram só uma geração atrás. Eles
foram pesadamente influenciados pela língua padrão. O
mesmo fenômeno, a substituição de formas não pa-
drão ou menos prestigiadas por formas emprestadas
da língua padrão, tem ocorrido em muitos lugares
diferentes e em muitas épocas distintas. Parece, por-
tanto, que é preciso contar tanto com a divergência
quanto com a convergência no desenvolvimento
diacrônico das línguas: divergência quando o contato
entre duas comunidades de falantes é reduzido ou
interrompido, e convergência quando as duas co-
munidades permanecem em contato e quando uma
é política ou culturalmente dominante.
O método comparativo pressupõe comunidades
de fala Iinguisticarnente uniformes e um desenvol-
vimento independente depois de uma separação re-
pentina e radical. Os críticos do método comparativo
mostraram que essa situação geralmente não ocorre.
Em 1872, um pesquisador alemão,Johannes Schmidt,
criticou a teoria da árvore genealógica e propôs, no
lugar dela, o que passou a ser chamado de "teoria da
onda", segundo a qual as diferentes mudanças linguís-
ticas se difundirão, como ondas, a partir de um centro
política, comercial ou culturalmente importante, ao
longo das principais vias de comunicação, mas as

122
3. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XIX

sucessivas inovações não cobrirão necessariamente


a mesma área de maneira exata. Por conseguinte,
não haverá distinção nítida entre dialetos contíguos,
mas, enl geral, quanto mais distantes forem duas
comunidades de fala, mais traços Iinguísticos haverá
distinguindo-as.

3.5.4 Reconstrução interna


O método comparativo é usado na reconstru-
ção de formas antigas de uma língua, com base nos
indícios oferecidos por outras línguas da família.
Ele pode ser suplementado pelo que é chamado de
método de reconstrução interna. Este se baseia na
existência de padrões anômalos ou irregulares de
formação e na suposição de que eles devem ter se
desenvolvido, em geral por mudança fonética, a par-
tir de padrões regulares anteriores. Por exemplo, a
existência no latim antigo de um padrão como honos :
honoris ("honra", "da honra") e outros em contraste
com orator: oratoris ("orador", "do orador") e outros
pode levar à suposição de que honoris se desenvolveu
de uma forma mais antiga "honosis. Neste caso, as
informações de outras línguas mostram que "s se
tornou r entre vogais num período mais remoto do
latim. Mas teria sido possível reconstruir o *s in-
tervocálico arcaico com um bom grau de segurança
com base somente nos indícios internos. É claro
que a reconstrução interna depende da abordagem
estruturalista da língua, que viria a desenvolver-se
somente no século XX.
123
4. A LINGUfSTICA NO SÉCULO XX

Na Iinguística do século XX, vamos encontrar


a mesma tensão das épocas anteriores entre o foco
"universalista" e o foco "particularista" na aborda-
gem dos fenômenos da língua e da linguagem. Esta
tensão aparece explicitamente nas dicotomias de
Saussure (Zangue e parole; significado e significante)
e de Chomsky (competência e desempenho; estrutura
profunda e estrutura de superfície), sendo que em
ambos os autores o objeto da linguística é definido
pelo viés do elemento "abstrato", "universalista",
"sistêmico", "formal" (a Ianque para Saussure, a
competência para Chomsky), no que serão duramen-
te criticados já no último quartel do século pelos
linguistas e filósofos da linguagem que se dedicarão
à abordagem funcionalista da língua e aos aspectos
pragmáticos do uso da língua, bem como pelos de-
fensores da língua como uma atividade social, sujeita
portanto à pressão da ideoloqia (ver abaixo 4.7).
Também é no século XX que, ao lado dos
estudos que chamamos de microlinquistica (ver
Introdução) surgirão grandes campos de investiga-
ção em níveis que ultrapassam o chamado "núcleo
duro" da Iinguística e avançam em direção a uma
125
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

interdisciplinaridade crescente, a uma intersecção


com a filosofia e com outras ciências humanas como
a sociologia, a antropologia, a psicologia, a neuro-
ciência, a semiologia etc. Neste capítulo, porém,
não entraremos na análise desses grandes campos
- psicolinguística, sociolinguística, análise do dis-
curso, antropologia Iinguística, filosofia da lingua-
gem -, que hoje já contam com ampla bibliografia
específica. Sendo esta uma obra histórica, vamos
nos limitar a retraçar algumas das grandes linhas
seguidas pela Iínguística ao longo do século.

4.1 O estruturalismo

o termo estruturalismo tem sido usado corno


um rótulo para qualificar certo número de diferentes
escolas de pensamento Iinguístico e é necessário fa-
zer ver que ele tem implicações um tanto diferentes
segundo o contexto enl que é empregado. Convém,
antes de tudo, traçar uma ampla distinção entre o
estruturalismo europeu e o americano e, em seguida,
tratá-los separadamente,

4.1.1 A linguística estrutural na Europa


I

E comum dizer que a Iinguística estrutural na


Europa começa enl 1916, com a publicação póstu-
ma, corno já mencionamos, do Curso de linquistica
geral de Ferdinand de Saussure. Como também já
dissemos, muito do que hoje é considerado como

126
4. A LlNGUfSTICA NO SÉCULO XX

saussuriano pode ser visto, embora menos clara-


mente, no trabalho anterior de Humboldt, e os
princípios estruturais gerais que Saussure desenvol-
veria com respeito à linguística sincrônica no Curso
tinham sido aplicados quase quarenta anos antes
(1879) pelo próprio Saussure numa reconstrução
do sistema vocálico indo-europeu. A plena impor-
tância deste trabalho não foi reconhecida na época.
O estru turalismo de Saussure pode ser resumido
em duas dicotomias (que, juntas, cobrem aquilo a
que Humboldt se referia em termos de sua própria
descrição da forma in terna e externa): (1) la ngue
em oposição a parole e (2) forma em oposição a
substância. Embora ianque signifique "língua" em
geral, como termo técnico saussuriano fica mais bem
traduzido por "sistema Iinguístico'', e designa a to-
talidade de regularidades e padrões de formação que
subjazem aos enunciados de uma língua. O termo
parcle, que pode ser traduzido por "comportamento
linguístico", designa os enunciados reais. Segundo
Saussure, assim COlTIO duas interpretações de uma
peça musical feitas por orquestras diferentes em oca-
siões diferentes vão diferir numa série de detalhes
e, todavia, serão identificáveis como interpretações
da mesma peça, assim também dois enunciados
podem diferir de várias maneiras e, contudo, ser
reconhecidos COlTIO ilustrações, em certo sentido,
do mesmo enunciado. O que as duas interpretações
musicais e os dois enunciados têm em COmUlTIé
uma identidade de forma, e esta forma, ou estrutu-

127
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

ra, OU padrão, é em princípio independente da subs-


tância, ou "matéria bruta", sobre a qual é imposta.
"Estruturalismo", no sentido europeu, então, é um
termo que se refere à visão de que existe uma es-
trutura relacional abstrata que é subjacente e deve
ser distinguida dos enunciados reais - um sistema
que subjaz ao comportamento real - e de que ela é
o objeto primordial de estudo do Iinguista.
Dois pontos importantes sobressaem aqui:
primeiro, que a abordagem estrutural não fica, em
princípio, restrita à linguística sincrônica; segundo,
que o estudo do significado, tanto quanto o estudo
da fonologia e da sintaxe, pode ter uma orientação
estrutural. Em ambos os casos, "estruturalismo" se
opõe a "atomismo" na literatura europeia. Foi Saus-
sure quem traçou a distinção terminológica entre
Iinguística sincrônica e diacrônica no Curso. Apesar
da orientação indubitavelmente estruturalista de seu
trabalho anterior no campo histórico-comparativo,
ele sustentou que, enquanto a Iinguística sincrôni-
ca devia lidar con1 a estrutura do sistema de uma
língua num ponto específico do tempo, a Iinguística
diacrônica devia se preocupar com o desenvolvi-
mento histórico de elementos isolados - devia
ser atomística. Quaisquer que sejam as razões que
tenham levado Saussure a assumir essa postura
bastante paradoxal, sua doutrina neste ponto não
foi aceita de modo geral, e os estudiosos logo come-
çaram a aplicar os conceitos estruturais ao estudo
diacrônico das línguas.

128
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

Entre as mais importantes das diversas esco-


las de Iinguística estrutural surgidas na Europa na
primeira metade do século XX se destacam a Escola
de Praga, cujos representantes mais notáveis foram
Nikolai Sergeievitch Trubetzkoy (1890-1938) e
Roman jakobson (1896-1982), ambos russos emi-
grados, e a Escola de Copenhague (ou glossemática],
que girou em torno de Louis Hjelmslev (1899-1965).
john Rupert Firth (1890-1960) e seus seguidores, às
vezes citados como Escola de Londres, foram menos
saussurianos em suas abordagens, mas, num sentido
mais geral do termo, seus estudos também podem
ser descritos apropriadamente como linguística
estrutural.

4.1.2 A linguística estrutural nos Estados Unidos


O estruturalismo americano e o europeu com-
partilharam um bom número de características. Ao
insistir na necessidade de tratar cada língua como
um sistema mais ou menos coerente e integrado, os
linguistas europeus e americanos daqu le período
tenderam a enfatizar, senão a exagerar, a incorn-
parabilidade estrutural das línguas individuais.
Havia razões especialmente boas para assumir
este ponto de vista, dadas as condições em que a
linguística americana se desenvolveu a partir do
final do século XIX. Havia centenas de línguas
indígenas americanas que nunca tinham sido des-
critas. Muitas delas eram faladas por somente um
punhado de falantes e, se não fossem registradas

129

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTlCA

antes de se extinguir, ficariam permanentemente


inacessíveis. Sob tais circunstâncias, linguistas como
Franz Boas (1858-1942) estavam menos preocupados
com a construção de uma teoria geral da estrutura da
linguagem humana do que na prescrição de firmes
princípios metodológicos para a análise de línguas
pouco familiares. Receavam também que a descrição
dessas línguas ficasse distorcida se fossem analisa-
das à luz das categorias derivadas da análise das
línguas indo-europeias mais familiares.
Depois de Boas, os dois linguistas americanos
mais influentes foram Edward Sapir (1884-1939)
e Leonard Bloomfield (1887-1949). Tal como seu
mestre Boas, Sapir estava perfeitamente à vontade
na antropologia e na linguística, e a junção destas
disciplinas tem perdurado até hoje em várias univer-
sidades americanas. Boas e Sapir eram muito atraídos
pela visão humboldtiana da relação entre linguagem e
pensamento, mas coube a um dos discípulos de Sapir,
Benjamin Lee Whorf (1897-1941), apresentar esta
relação numa forma suficientemente desafiadora para
atrair a atenção geral do mundo intelectual. Desde a
republicação dos ensaios mais importantes de Whorf
en1 1956, a tese de que a linguagem determina a
percepção e o pensamento tem sido conhecida como
a "hipótese de Sapir- Whorf".
O trabalho de Sapir sempre exerceu atração
sobre os linguistas americanos com maior inclinação
antropológica. Mas foi Bloomfield quem preparou
o caminho para a fase posterior do que hoje é con-

130
4. A LINGuíSTICA NO SÉCULO XX

siderado como a manifestação mais distintiva do


estruturalismo americano. Quando publicou seu
primeiro livro em 1914, Bloomfield estava forte-
mente influenciado pela psicologia da linguagem de
Wundt. Em 1933, porém, publicou uma versão pro-
fundamente revista e ampliada com um novo título,
Lanquaqe. Este livro dominou os estudos da área
durante os trinta anos seguintes. Nele, Bloomfield
adotou explicitamente uma abordagem behavioris-
ta do estudo da língua, eliminando, em nome da
objetividade científica, toda referência a categorias
mentais ou conceituais. Teve amplas consequências
sua adoção da teoria behaviorista da semântica, se-
gunda a qual o significado é simplesmente a relação
entre um estímulo e uma reação verbal. Como a
ciência ainda estava muito distante de ser capaz de
explicar de forma abrangente a maioria dos estímu-
los, nenhum resultado importante ou interessante
poderia ser esperado, por muito tempo ainda, do
estudo do significado, e era preferível, tanto quanto
possível, evitar basear a análise gramatical de uma
língua em considerações semânticas. Os seguidores
de Bloomfield levaram ainda mais adiante a tentativa
de desenvolver métodos de análise linguística que
não fossem baseados na semântica. Assim, um dos
aspectos mais característicos do estruturalismo ame-
ricano pós-bloornfieldiano foi seu completo desprezo
pela semântica.
Outro aspecto característico, e que seria muito
criticado por Chomsky, foi sua tentativa de formular
131
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGUrSTICA

uma série de "procedimentos de descoberta" -


procedimentos que poderiam ser aplicados mais ou
menos mecanicamente a textos e poderiam gerar
uma descrição fonológica e sintática apropriada da
língua dos textos. O estruturalismo, neste sentido
mais restrito do termo, está representado, com dife-
renças de ênfase ou detalhe, nos mais importantes
livros publicados nos Estados Unidos durante a
década de 1950.

4.2 A gramática gerativo-transformacional

Em 1957, Avram Noam Chomsky (nascido em


1928), professor de linguística no MIT (Massa-
chusetts Institute of Technology), publicou o livro
Suntactic Structures, que veio a se tornar um divisor
de águas na linguística do século XX. Nesta obra, e
em publicações posteriores, ele desenvolveu o con-
ceito de uma gramática qerati va, que se distanciava
radicalmente do estruturalismo e do behaviorismo
das décadas anteriores. Chomsky mostrou que as
análises sintáticas da frase praticadas até então eram
inadequadas em diversos aspectos, sobretudo porque
deixavam de levar em conta a diferença entre os
níveis "superficial" e "profundo" da estrutura grama-
tical. No nível de superfície, enunciados COlTIojohn is
eaqer to please ("João está ávido por agradar") ejohn
is casu to pleasc ("João é fácil de agradar") podem ser
analisados de maneira idêntica; mas do ponto de vista

132
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

de seu significado subjacente, os dois enunciados


divergem: no primeiro, J ohn quer agradar alguém;
no segundo, alguém está envolvido em agradar John.
Um dos objetivos principais da gramática gerativa
era oferecer um meio de análise dos enunciados que
levasse em conta este nível subjacente da estrutura.
Para alcançar esse objetivo, Chomsky traçou
uma distinção fundamental (semelhante à dicotomia
lunque-parole de Saussure) entre o conhecimento
que urna pessoa tem das regras de urna língua e o
uso efetivo desta língua ern situações reais. Àquele
conhecimento ele se referiu como competência (com-
petence) e ao uso como desempenho (performance). A
linguística, argumentou Chomsky, deveria ocupar-se
com o estudo da competência, e não restringir-se
ao desempenho - algo que era característico dos
estudos linguísticos anteriores em sua dependência
de amostras (ou corpora) de fala (por exemplo, na
forma de uma coleção de fitas gravadas). Tais alTIOS-
tras eram inadequadas porque só podiam oferecer
uma fração ínfima dos enunciados que é possível
dizer numa língua; também continham diversas
hesitações, mudanças de plano e outros erros de de-
sempenho. Os falantes usam sua competência para ir
muito além das limitações de qualquer corpus, sendo
capazes de criar e reconhecer enunciados inéditos, e
de identificar erros de desempenho. A descrição das
regras que governam a estrutura desta competência
era, portanto, o objetivo mais importante.

133
,
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

As propostas de Chomsky visavam descobrir


as realidades mentais subjacentes ao modo como as
pessoas usam a língualgem]: a competência é vista
como um aspecto de nossa capacidade psicológica
geral. Assim, a linguística foi encarada con10 uma
disciplina mentalista - uma visão que contrastava
com o viés behaviorista da linguística feita na pri-
meira metade do século XX e que se vinculava aos
objetivos de vários linguistas mais antigos, como os
gramáticos de Port-Royal (ver 2.6 acima). Também
se defendia que a linguística não deveria se limitar
simplesmente à descrição da competência. A longo
prazo, havia um alvo ainda mais ambicioso: ofere-
cer uma gramática capaz de avaliar a adequação
de diferentes níveis de competência, e ir além do
estudo das línguas individuais para chegar à na-
tureza da linguagem humana coruo um todo (pela
descoberta dos "universais linguísticos"]. Deste
modo, esperava-se, a Iinguística poderia dar uma
contribuição a nosso entendimento da natureza da
mente humana.
A essência da abordagem foi sintetizada por
Chomsky num livro de 1986 (Knowledge oj I.anaua-
ge) como uma resposta para a seguinte pergunta:
"Como é possível que os seres humanos, cujos con-
tatos com o mundo são breves, pessoais e limitados,
sejam ainda assim capazes de conhecer tanto quanto
conhecem?" Pelo estudo da faculdade humana da
linguagem, deveria ser possível mostrar como uma
pessoa constrói um sistema de conhecimento a partir
1:34
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

da experiência diária e, assim, dar algum passo na


direção da solução deste problema.
Um aspecto importante da proposta de
Chomsky foi o aparato técnico que ele elaborou
para tornar explícita a noção de competência - o
sistema de regras e símbolos que oferece uma repre-
sentação formal da estrutura sintática, semântica e
fonológica dos enunciados. Uma noção primordial
- a regra transformacional - fez que essa aborda-
gem fosse designada comumente como qramática
transformacional. A partir da década de 1950, boa
parte da linguística se encarregou de desenvolver a
forma das gramáticas gerativas, e a teoria original
já foi reformulada diversas vezes. Durante o mesmo
período, também houve várias propostas de modelos
de análise gramatical alternativos aos expostos por
Chomsky e seus seguidores, algumas das quais têm
recebido considerável apoio.

4.3 Reação às ideias de Chomsky

o efeito das ideias de Chomsky tem sido


fenomenal. Não é exagero dizer que não existe
nenhuma questão teórica importante na linguís-
tica de hoje que não seja debatida nos termos em
que Chomsky optou por defini-la, e cada escola de
Iinguística tende a definir sua posição em relação à
dele. Não só por suas ideias acerca da linguagem,
mas igualmente por sua atuação política de crítico

135
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

radical do imperialismo norte-americano, Chomsky


é um dos pensadores mais importantes da história
contemporânea. Estatísticas mundiais revelam que
ele se encontra entre os dez autores mais citados
em todas as ciências humanas (à frente de Hegel
e Cícero e depois de Marx, Lenin, Shakespeare, a
Bíblia, Aristóteles, Platão e Freud, nesta ordem).
Entre as escolas rivais do gerativismo estão
a tagmêrnica, a gramática estratificacional e a Es-
cola de Praga. A tagrnêmica é o sistema de análise
linguística desenvolvido pelo linguista americano
Kenneth L. Pike e seus colaboradores em conexão
com seu trabalho de tradutores da Bíblia. Suas bases
foram lançadas durante os anos 1950, quando Pike
se distanciou, enl vários aspectos, do estruturalismo
pós-bloomfieldiano, e desde então têm sido progres-
sivamente elaboradas. A análise tagmêrnica tem sido
usada para analisar um grande número de línguas
até então não registradas,
~
sobretudo na América
Central e do Sul e na Africa ocidental.
A gramática estratificacional, desenvolvida
nos Estados Unidos pelo linguista Sydney M. Lamb,
tem sido vista por alguns linguistas como uma al-
ternativa à gramática transformacional. Ainda não
totalmente exposta ou exemplificada de modo abran-
gente na análise de línguas diferentes, a gramática
estratificacional talvez seja mais bem caracterizada
COlTIO uma modificação radical da linguística pós-
-bloomfieldiana, mas tem diversos traços que a ligam
ao estruturalismo europeu.

136
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

A Escola de Praga foi mencionada anterior-


mente por sua importância no período imediata-
mente posterior à publicação do Curso de Saussure.
Várias de suas ideias características (em particular,
a noção de traços distintivos em fonologia) foram
assumidas por outras escolas. Mas tem havido muito
desenvolvimento ulterior na abordagem funcional
da frase, uma herança de Praga. O trabalho de M.
A. K. Halliday (nascido em 1925) na Inglaterra se
inspirou originalmente na obra de Firth (jã citado),
mas Halliday ofereceu uma teoria mais sistemática
e abrangente da estrutura da língua que a de Firth.
A teoria de Halliday recebe a designação de lin-
guística sistêmica e vem sendo desenvolvida desde
os anos 1960. Nela, a gramática é vista como UlTIa
rede de "sistemas" de contrastes inter-relacionados;
dá-se particular atenção aos aspectos semânticos e
pragmáticos da análise, e também ao modo como a
entonação é usada na expressão do significado.

4.5 A Escola de Praga e o funcionalismo

O que hoje é designado em geral como Escola


de Praga compreende um grupo bastante amplo de
pesquisadores, sobretudo europeus, que, embora
possam não ter sido membros diretos do Círculo
Linguístico de Praga, se inspiraram no trabalho
de Vilém Mathesius, Nikolai Trubetzkoy, Roman
Jakobson e outros estudiosos baseados em Praga na
década que antecedeu a II Guerra mundial.

137

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

o aspecto mais característico da Escola de


Praga é sua combinação de estruturalismo com
funcionalismo. Este último termo (tal como "es-
truturalismo") tem sido usado numa variedade de
sentidos na Iinguística. Aqui ele deve ser entendido
como implicando uma apreciação da diversidade
de funções desempenhadas pela língua e um reco-
nhecimento teórico de que a estrutura das línguas
é, em grande parte, determinada por suas funções
características. O funcionalismo, tomado neste sen-
tido, se manifesta em muitos dos postulados mais
específicos da doutrina da Escola de Praga.
Uma célebre análise funcional da linguagem
que, embora não oriunda de Praga, teve muita in-
fluência ali, foi a do psicólogo alemão Karl Bühler,
que reconheceu três tipos gerais de funções desem-
penhadas pela línguaígem]: Darstcllungfuntkion,
Kundqahejunhuon e Appelfunktion. Esses termos
podem ser traduzidos, no atual contexto, por função
cognitiva, função expressiva e função conativa (ou
instrumental). A função cognitiva da linguagem se
refere a seu emprego para a transmissão de informa-
ção factual; por função expressiva se entende a indi-
cação da disposição de ânimo ou atitude do locutor
(ou escritor); e por função conativa da linguagem
se entende seu uso para influenciar a pessoa com
quem se está falando, ou para provocar algum efeito
prático. Alguns pesquisadores vinculados à Escola
de Praga sugeriram que essas três funções corres-
pondem, em várias línguas, ao menos parcialmente,

138

4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

às categorias gramaticais de modo e pessoa. A fun-


ção cognitiva é desempenhada caracteristicamente
pelos enunciados não modais de 3<1 pessoa (isto é,
enunciados no modo indicativo, que não fazem
uso de verbos modais como poder, dever); a função
expressiva, por enunciados na la pessoa no modo
subjuntivo ou optativo, e a função conativa por
enunciados de 2a pessoa no imperativo. A distinção
funcional dos aspectos cognitivo e expressivo tam-
bém foi aplicada pelos linguistas da Escola de Praga
em seu trabalho sobre estilística e crítica literária.
Um de seus princípios chave é o de que a língua está
sendo usada poeticamente ou esteticamente quando
predomina o aspecto expressivo, e de que é típico da
função expressiva da linguagem manifestar-se na
forma de um enunciado e não simplesmente nos
significados das palavras que o compõem.
A Escola de Praga é mais conhecida por seu
trabalho na fonologia. Diferentemente dos fono-
legistas americanos, Trubetzkoy e seus colabora-
dores não consideram o fonema corno a unidade
mínima de análise. EITI vez disso, definem os fone-
mas como feixes de traços distintivos. Por exemplo,
em português, Ibl difere de Ipi da mesma maneira
como /d/ difere de Itl e Igl de /k/. De que modo
exato eles diferem em termos de sua articulação
é uma questão complexa. Para simplificar, pode
se dizer que existe um único traço, cuja presença
distingue Ibl, /d/ e Igl de /p/, Itl e Ik/, e este traço
é a sonoridade ou vozeamento (vibração das cordas

139
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

vocais). De igual modo, o traço de labialidade pode


ser deduzido de Ipi e /b/ quando comparados a Itl,
/d/, /k/ e Ig/; o traço de nasalidade, de Inl e /rn/
quando comparados com Itl e /d/, de um lado, e com
/p/ e Ibl, do outro. Cada fonema, então, é composto
de um número de características articulatórias e se
torna distinto de cada outro fonema da língua pela
presença ou ausência de ao menos um traço. A
função distintiva dos fonemas pode ser relacionada
à função cognitiva da linguagem. Esta análise dos
traços distintivos da fonologia da Escola de Praga,
tal como desenvolvida por J akobson, se tornou parte
do arcabouço criado para a fonologia gerativa,
Dois outros tipos de função fonologicarnente
relevan te também são reconhecidos pelos linguistas
da Escola de Praga: a expressiva e a demarcativa. O
primeiro termo é empregado aqui no sentido em que é
empregado
,
acima (isto é, em oposição a "cognitivo").
E característico do acento, da entonação e de outros
traços suprassegrnentais da língua que sejam frequen-
temente expressivos do ânimo ou atitude do falante
neste sentido. O termo demarcativo é aplicado aos
elementos ou aspectos que, em línguas particulares,
servem para indicar a ocorrência de fronteiras de
palavras e frases e, presumivelmente, tornam mais
fácil identificar essas unidades gramaticais no fluxo
da fala. Existem, por exemplo, diversas línguas em
que o conjunto de fonemas que podem ocorrer no
início de uma palavra difere do conjunto de fonemas
que podem ocorrer no fim de uma palavra. Este e
140
4, A LlNGuíSTlCA NO SÉCULO XX

outros dispositivos são descritos pelos fonologistas


de Praga como tendo função demarcativa: são indi-
cadores de fronteiras que reforçam a identidade e a
unidade sintagmática de palavras e frases.
A noção de marcação foi desenvolvida, pri-
meiramente, na fonologia da Escola de Praga, mas
em seguida se estendeu à morfologia e à sintaxe.
Quando dois fonemas são distinguidos pela presença
ou ausência de um único traço distintivo, diz-se que
um deles é marcado e o outro, não marcado para o
traço em questão. Por exemplo, Ibl é marcado e /p/
é não marcado com respeito à sonoridade. De igual
modo, na morfologia, o verbo regular inglês pode
ser chamado de marcado no tempo passado (pela
sufixação de -ed), mas não marcado no presente
(cf. jumped versus jurnp). Frequentemente, uma
forma não marcada tem um espectro mais amplo
de ocorrência e um significado menos definido
do que a forma morfologicamente marcada. Pode
se alegar, por exemplo, que enquanto o tempo
passado inglês (em períodos simples ou na oração
principal de períodos compostos) se refere defini-
tivamente ao passado, o assim chamado presente
do indicativo é muito mais neutro com relação à
referência temporal: ele é não passado no sentido
de que deixa de marcar o tempo como passado,
mas não é marcado como presente. Existe também
um sentido mais abstrato da marcação, que é inde-
pendente da presença ou ausência de um traço ou
afixo explícito. As palavras cavalo e égua dão exem-

141
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

plo de marcação deste tipo no vocabulário: aliás, nas


línguas, como o português, que distinguem morfo-
logicamente as palavras masculinas e femininas, é
comum dizer que o feminino é a forma marcada.
Enquanto o uso da palavra gata se restringe às
fêmeas da espécie, gato é aplicável tanto a machos
quanto a fêmeas. Égua é a forma marcada, e cavalo
a forma não marcada e, como é muito usual, a forma
não marcada pode ser neutra: ao avistar diversos
animais da espécie, alguém dirá que viu "muitos
cavalos" e não "muitas éguas". O uso negativo da
forma não marcada também é frequente: "Não é
um cavalo, é uma égua". O princípio da marcação,
entendido neste sentido mais geral e abstrato,
hoje está amplamente aceito pelos linguistas de
diferentes escolas, e é aplicado enl todos os níveis
da análise Iinguística,
O trabalho dos funcionalistas atuais leva
adiante as propostas fundamentais da Escola de
Praga. A mais valiosa contribuição feita pelo fun-
cionalismo do pós-guerra é talvez a distinção de
tema e rema e a noção da "perspectiva funcional da
frase" ou "dinamismo comunicativo". Por tema de
um enunciado se entende a parte que se refere ao
que já é conhecido ou dado no contexto (também
chamado às vezes, por outros teóricos, de tópico ou
assunto psicológico). Por rema, a parte que veicula
informação nova (o comentário ou predicado psico-
lógico). Tem -se mostrado que, em línguas com uma
ordem de palavras livre (como o tcheco e o latim), o
tema tende a preceder o rema, a despeito de o tema

142
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

ou O rema ser OU não o sujeito gramatical, e que este


princípio pode operar ainda, de modo mais limitado,
em línguas, como o português, com uma ordem de
palavras relativamente mais fixa (cf. "Esse livro eu
nunca vi antes"). Mas outros dispositivos também
podem ser acionados para distinguir tema e rema.
O rema pode ser enfaticamente acentuado ("Páulo
viu Maria"), ou pode se tornar o complemento do
verbo "ser" naquilo que é normalmente chamado de
frase clivada ("Foi Pedro que viu Maria").
O princípio geral que tern guiado a pesquisa na
"perspectiva funcional da frase" é o de que a estru-
tura sintática da frase é em parte determinada pela
função comunicativa dos vários constituintes e pelo
modo como eles se relacionam com o contexto do
enunciado. Um aspecto do funcionalismo na sintaxe
(algo diferente, mas relacionado) é visto no trabalho
atual no que se cha ma gramática de casos. f\ gra-
mática de casos se baseia num pequeno conjunto de
funções sintáticas [agentivo, locativo, benefactivo,
instrumental etc.}, expressas de modo variado nas
diferentes línguas, mas que determinam a estrutura
gramatical das frases. Embora a gramática de casos
não derive diretamente do trabalho da Escola de
Praga, é muito semelhante a ele em inspiração.

4.6 A guinada pragmática


,
E comum dizer que a Iinguística sofreu, na
segunda metade do século XX, uma "guinada prag-

143
HISTÓRIA CONCISA DA LINGuíSTICA

mática": em vez de se preocupar com a estrutura


abstrata da língua, com seu sistema subjacente (com
a Zangue de Saussure e a competência de Chornsky),
muitos linguistas se debruçaram sobre os fenôme-
nos mais diretamente ligados ao uso que os falantes
fazem da língua. Para retomar a metáfora saussuria-
na, em vez de se preocupar em conhecer a partitura
seguida por diferentes músicos na execução de urna
mesma peça musical, o linguista quer conhecer
precisamente em quê e por quê houve diferenças na
execução, de que forma elas se manifestaram e que
efeito tiveram sobre o público ouvinte.
A pragmática estuda os fatores que regem nos-
sas escolhas linguísticas na interação social e os efei-
tos de nossas escolhas sobre as outras pessoas. Na
teoria, podemos dizer qualquer coisa que quisermos.
Na prática, seguimos um grande número de regras
sociais (a maioria delas inconscientemente) que
constrangem nosso modo de falar. Não há lei alguma
que diga que não se pode contar piadas durante um
enterro, mas em geral não se faz isso. De modo menos
óbvio, existem normas de formalidade e polidez que
assimilamos intuitivamente e que seguimos quando
falamos com pessoas mais velhas, do sexo oposto, e
assim por diante. Nosso comportamen to ao escrever
e usar sinais é regulado da mesma maneira.
Os fatores pragmáticos sempre influenciam
nossa seleção de sons, de construções gramaticais
e de vocabulário dentro dos recursos da língua.
Algumas coerções nos são ensinadas em idade
144
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

muito tenra - no inglês britânico, por exemplo, a


importância de dizer please ("por favor") e thankyou
("obrigado"), ou (em algumas famílias) de não se
referir a uma mulher adulta em sua presença como
ela. Em várias línguas, as distinções pragmáticas de
formalidade, polidez e intimidade estão espalhadas
ao longo dos sistemas gramatical, lexical e fonológi-
co, refletindo, ao fim e ao cabo, questões de classe,
status e papel social. Um exemplo bem estudado é °
sistema pronominal, que frequentemente apresenta
distinções que veiculam força pragmática - como
a escolha entre tu e l'OUS em francês, ou entre você e
o senhor/ a senhora no português brasileiro (o inglês
apresenta apenas a forma you, para qualquer refe-
rência à segunda pessoa do discurso).
As línguas diferem grandemente a esse respei-
to. As expressões de polidez, por exemplo, podem
variar em frequência e significado. Diversas línguas
europeias não usam seu termo equivalente a please
com a mesma frequência do inglês; e a função e força
do thankyou também podem se alterar de língua para
língua (por exemplo, em resposta à pergunta: "Acei-
ta mais bolo?", o inglês thanli uou significa "sim",
enquanto o francês merci significaria "não"). As
convenções de saudação, de despedida e de refeição
também diferem muito de língua para língua. Em
alguns países é polido comentar com o anfitrião que
estamos apreciando a comida; em outros, o polido
é ficar calado.
Os erros pragmáticos não infringem as regras
da fonologia, da sintaxe ou da semântica. Todos os
145
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTlCA

elementos da frase E aí, governador, o que é que tá


pegando? podem ser encontrados nos livros didáticos
de português, mas para a maioria dos falantes da
língua esta sequência seria inadmissível do ponto
de vista pragmático. A pragmática, portanto, tem de
ser vista como algo separado dos "níveis" de língua
representados nos modelos Iinguísticos de análise
(nível fonológico, morfológico, sintático, semânti-
co...) - ela não faz parte da "estrutura" da língua.
A pragmática, até o momento, ainda não é um
campo de estudo coerente. Um grande número de
fatores governa nossa escolha de língua em interação
social, e ainda não está claro o que eles todos são,
como se inter-relacionam, e como devemos distingui-
-los de outras áreas reconhecidas da investigação
Iinguística. Há diversas áreas importantes que se
sobrepõem.
A pragmática e a semântica levam em conta
noções como as intenções do falante, os efeitos de
um enunciado sobre os ouvintes, as implicações que
seguem o expressar alguma coisa de certo modo, e
os conhecimentos, crenças e pressuposições acerca
do mundo sobre os quais os falantes e ouvintes se
baseiam quando interagern.
A estilística e a sociolinguística se sobrepõem à
pragmática em seu estudo das relações sociais que
existem entre os participantes, e do modo como o
contexto extralinguístico, a atividade e o tema da
conversa regulam a escolha de aspectos e variedades
Iinguísticas.

146
4. A LINGuíSTICA NO SÉCULO XX

A pragmática e a psicolinguística investigam


os estados psicológicos e as habilidades mentais
dos participantes que terão um maior efeito sobre
seu desempenho verbal - fatores como atenção,
memória e personalidade.
A pragmática e a análise da con versação com-
partilham várias das noções filosóficas e linguísticas
que foram desenvolvidas para lidar com o exame das
interações verbais (o modo como a informação é
distribuída dentro de urna frase, as formas dêi ticas,
a noção de "máximas" conversacionais etc.).
Em consequência dessas superposições de
áreas de interesse, diversas definições conflitantes
do escopo da pragmática têm sido propostas. Uma
abordagem se concentra nos fatores formaltnente
codificados na estrutura da língua (formas hono-
ríficas, opção tu/vaus, e assim por diante). Outra
relaciona a pragmática a uma visão particular da
semântica: aqui, ela é vista como o estudo de todos
os aspectos do significado que não os envolvidos
na análise das sentenças em termos de condições
de verdade. Outras abordagens adotam uma pers-
pectiva muito mais ampla. A mais ampla de todas
vê a pragmática como o estudo dos princípios e
práticas que subjazem a todo o desempenho lin-
guístico interativo - incluindo aí todos os aspectos
do uso da língua, compreensão e adequação.
A pragmática linguística nasceu, primeira-
mente, no campo da filosofia e por isso os nomes
mais importantes, nesta área, são os de três filóso-
147
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

fos de língua inglesa: John L. Austin (1911-1960),


J ohn Searle e H. P. Grice. Por ser uma corrente de
estudo em pleno desenvolvimento, não admira que
a pragmática ainda não tenha fixado seus cânones,
o que indica que ela talvez seja o campo de estudo
mais fértil para a Iinguística do século XXI.

4.7 Bakhtin e as três concepções de língua

Não poderíamos encerrar esta breve história


da ciência linguística sem mencionar o importante
trabalho do pensador russo Mikhail Bakhtin (1895-
-1975). Por questões pessoais e políticas, várias de
suas obras foram publicadas sob o nome de amigos
e discípulos. Assim se deu com seu livro Marxismo
c filosofia da linquaqem, publicado na Rússia em
1929 sob o nome de V. Voloshinov. Durante várias
décadas, a obra permaneceu desconhecida dos es-
tudiosos ocidentais. Quando, porém, na década de
1970, surgiram as primeiras traduções europeias, o
impacto do pensamento de Bakhtin foi enorme e até
hoje não diminuiu. O mundo acadêmico ocidental
surpreendeu-se ao ver que, nas primeiras décadas
do século XX, aquele quase desconhecido intelectual
soviético já assumia posturas teóricas que só viriam
a cristalizar-se no Ocidente a partir da década de
1960 no trabalho dos sociolinguistas, dos teóricos
da pragmática linguística e das diversas escolas de
análise do discurso. Embora suas obras tratem igual-
148
4. A LINGuíSTICA NO SÉCULO XX

mente de outros temas, como a psicanálise e a teoria


e crítica literárias, vamos nos concentrar aqui em
suas reflexões mais estritamente Iinguísticas.
Uma das principais contribuições de Bakh tin
ao pensamento linguístico contemporâneo está em
sua crítica às duas grandes concepções de língua e
de linguagem que, segundo ele, sempre dominaram
os estudos filológicos, gramaticais e linguísticos até
sua época. Essas duas grandes concepções se iden-
tificam, em boa medida, COIU o que até agora viemos
chamando de tendências universal e particular de
abordagem dos fenômenos linguísticos.
A primeira dessas concepções de língua é cha-
mada por Bakhtin de "subjetivismo idealista". É a
percepção da língua como uma "atividade mental",
em que o psiquismo individual constitui a fonte
da língua. Bakhtin sintetiza essa concepção nas
seguintes afirmações:
1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininter-
rupto de construção ("cncrJjfÍa "), que se materializa sob
a forma de atos de fala individuais.
2. As leis de criação linguística são essencialmente leis
indi vid ual- psicológi caso
3. A criação linguística é uma criação racional análoga
à criação artística.
4. A língua, na qualidade de produto acabado ("ergon"), na
qualidade de sistema estável (léxico, gramática, fonética)
se apresenta como um depósito inerte, tal como a lava
esfriada da criação linguí .tica, abstratamente construída
pelos linguistas em vista de sua aquisição prática como
ferramenta pronta para o uso.

149
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Bakhtin identifica o alemão Wilhehn Hum-


boldt como um importante (talvez o maior) re-
presentante e defensor dessa primeira concepção
de língua. Os críticos atuais da gramática gerativa
também costumam incluir Noam Chomsky entre
os que veem a língua dentro de um "subjetivis-
mo idea1ista". De fato, é conhecida a proposta de
Chornsky de classificar a linguística como um ramo
da psicologia cognitiva, de basear suas análises na
produção verbal de um "falante ideal", abstraído de
toda realidade histórica e social, e de empreender
a busca de uma "gramática universal", igualmente
infensa às investidas da ideologia e da vida social
dos seres humanos.
A segunda concepção de língua criticada por
Bakhtin é a que ele chama de "objetivismo abstra-
/

to". E basicamente a concepção da língua como um


sistema de rcqras passíveis de descrição. A crítica de
Bakhtin se dirige agora explicitamente a Saussure
e ao estruturalismo que então nascia a partir dos
postulados saussurianos. Segundo o filósofo russo,
a linguística saussuriana, que acredita distinguir-se
dos procedimentos da filologia tradicional, na ver-
dade só faz reiterá-los e perpetuá-los, ao desdenhar
a produção individual dos falantes (a parole) e ao se
concentrar num construto teórico abstrato, homogê-
neo, impossível de verificação empírica la Ianque, ou
sistema, ou sincronia). Tal como faz para a primeira
concepção tradicional, Bakhtin também sintetiza o
"objetivismo abstrato" numa série de postulados:

150
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas


linguisticas submetidas a uma norma fornecida tal e qual
à consciência individual e peremptória para esta.
2. As leis da língua são essencialmente leis linguísticas
específicas que estabelecem vínculos entre os signos
linguísticos no interior de um sistema fechado. Essas
leis são objetivas em relação a toda consciência subjetiva.
3. Os vínculos linguísticos específicos nada têm que ver
com valores ideológicos (artísticos, cognitivos ou outros).
Não se encontra na base dos fatos de língua nenhum
motor ideológico. Entre a palavra e seu sentido não existe
vínculo natural e compreensível para a consciência, nem
vínculo artístico.
4. Os atos de fala individuais constituem, do ponto de
vista da língua, simples refrações ou variações fortuitas
ou mesmo deformações das formas normalizadas. Mas são
justamente esses atos de fala individuais que explicam a
mudança histórica das formas da língua; enquanto tal,
a mudança é, do ponto de vista do sistema, irracional e
mesmo desprovida de sentido. Entre o sistema da língua
e sua história não existe nem vínculo nem comunhão de
motores. O sistema e sua história são estranhos um à outra.
A essas duas concepções de língua Bakhtin
opõe a urgência de se considerar a língua como
uma atividade social, em que o importante não é o
enunciado, o produto, mas sim a enunciação, o pro-
cesso verbal. Para Bakhtin, a língua é (tal como para
Saussure) um fato social, cuja existência se funda
nas necessidades da comunicação. Mas, contraria-
mente à Iinguística saussuriana e pós-saussuriana,
que faz da língua um objeto abstrato ideal (um
"arco-íris imóvel sobre o fluxo da língua", como
151
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

escreve Bakhtin), que se consagra à língua como


sistema sincrônico homogêneo e rejeita suas mani-
festações (a fala, parole) como individuais, Bakhtin
enfatiza precisamente a fala, a parole, a enunciação,
e afirma sua natureza social, não individual: a
parole está indissoluvelmente ligada às condições
de comunicação, que estão sempre ligadas às es-
tru turas sociais.
Na análise essencialmente marxista de
Bakhtin, todo signo é ideológico. A ideologia é um
reflexo das estruturas sociais. Portanto, toda modifi-
cação da ideologia acarreta uma modificação da lín-
gua. A evolução da língua obedece a uma dinâmica
conotada positivamente, ao contrário da concepção
saussuriana. A variação é inerente à língua e reflete
variações sociais (e nessas afirmações Bakhtin se
antecipou em meio século à sociolinguística). Se
é verdade que a mudança obedece, em parte, a leis
internas da língua, o fato é que essa mudança é re-
gida sobretudo por leis externas, de natureza social.
O signo dialético, movente, vivo, se opõe ao "sinal"
inerte que se depreende da análise da língua como
sistema sincrônico abstrato.
A palavra-chave da linguística bakhtiniana é
diáloqo. Só existe língua onde houver possibilidade
de interação social, dialogal. A língua não reside na
mente do falante, nem é um sistema abstrato que
paira acima das condições sociais. A língua é um
trabalho empreendido conjuntamente pelos falantes,
é uma atividade social, é enunciação. A enunciação,
152
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

compreendida como uma réplica do diálogo social,


é a unidade de base da língua, que se trate do dis-
curso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior.
A natureza da língua é essencialmente dialógica, e
isso se reflete nas próprias estruturas linguísticas.
A enunciação é de natureza social, portanto ideo-
lógica. Ela não existe fora de um contexto social, já
que todo falante tem um "horizonte social". Temos
sempre um interlocutor, ainda que seja potencial.
O falante pensa e se expressa para um auditório
social bem definido. Se a língua é determinada pela
ideologia, a consciência (portanto, o pensamento),
a "atividade mental", que são condicionadas pela
linguagem, são modeladas pela ideologia. A mente
é um produto social- e nisso Bakhtin se aproxima
de um compatriota e contemporâneo seu, o psicólogo
Lev Vygotsky (1896-1934) que sempre postulou "a
construção social da mente".
Num outro livro, O Freudismo (publicado em
1927 e também assinado por V. Voloshinov), em
que critica duramente a recém-nascida psicanálise
freudiana, Bakhtin enuncia de forma muito clara
o eixo teórico fundamental de sua concepção de
linguagem:
Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída ex-
clusivamente a quem a enunciou: é produto da interação
entreitúantes e, em termos mais amplos, produto de toda
uma situação social em que ela surgiu. [...] Todo produto
da linguagem do homem, da simples enunciação vital
a uma complexa obra literária, em todos os momentos

153
HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

essenciais é determinado não pela vivência subjetiva do


falante mas pela situação social em que soa essa enun-
ciação. [...] O que caracteriza precisamente uma dada
enunciação - a escolha de certas palavras, certa teoria
da frase, determinada entonação da enunciação - é a
expressão da relação recíproca entre os falantes e todo
o complexo ambiente social em que se desenvolve a
conversa. As mesmas "vivências psíquicas" do falante,
cuja expressão tendemos a ver nessa enunciação, são de
fato apenas uma interpretação unilateral, simplificada e
cientificamente incorreta de um fenômeno social mais
complexo. É uma espécie de "projeção" através da qual
investimos (projetamos) na "alma individual" um com-
plexo conjunto de inter-relações sociais. A palavra é uma
espécie de "cenário" daquele convívio mais íntimo em
cujo processo ela nasceu, e esse convívio, por sua vez, é
um momento do convívio mais amplo do grupo social a
que pertence o falante. Para compreender esse cenário,
é indispensável restabelecer todas aquelas complexas
inter-relações sociais das quais uma dada enunciação é a
interpretação ideológica. A questão não muda se em vez
de discurso exterior temos discurso interior. Esse dis-
curso também pressupõe o ouvinte eventual, constrói-se
voltado para ele. O discurso interior é tanto um produto e
expressão do convívio social quanto o discurso exterior' .

o impacto do pensamento de Bakhtin sobre a


linguística do século XX, como dissemos, tem sido
tremendo, sobretudo porque veio influenciar, no

l. Citamos a tradução brasileira (diretamente do russo, por


Paulo Bezerra): O [rcudismo, São Paulo, Martins Fontes, 2001, pp.
79-80 (N. do T.).

154
4. A LlNGuíSTICA NO SÉCULO XX

momento em que surgiam, toda uma série de abor-


dagens do fenômeno Iinguístico que, precisamente,
criticavam a visão da língua como um sistema ho-
mogêneo e estável - capaz de ser descrito satisfa-
toriamente pelas disciplinas tradicionais: fonologia,
morfologia, sintaxe, semântica - e postulavam um
entendimento mais abrangente da língua, em que
não é possível descartar as condições de produção
que presidiram à constituição do enunciado lin-
guístico.
Essas novas abordagens ganhall1 cada vez
mais a dianteira sobre as análises estruturalistas e
gera tivistas, que caracterizaram a ciência linguística
na primeira metade do século XX. Estamos nos
referindo aqui, além da já citada pragmática, à
sociolinguística (em suas vertentes "quantitativa"
e "interacional"}, à psicolinguística, à análise da
conversação, à semântica argumentativa, à aná-
lise do discurso (em suas diferentes "escolas"),
à linguística do texto. Todas essas disciplinas
são campos de estudo profundamente dinâmicos
nos quais vêm ocorrendo verdadeiras revoluções
científicas que caberá a uma futura história da
linguística registrar e descrever.

155
GUIA DE LEITURA

N. B.: Para reforçar o caráter didático do presente livro, e


por sugestão da própria autora, oferecemos ao leitor brasileiro
um pequeno guia de leitura, com obras publicadas em portu-
guês e que permitem um aprofundamento nos diferentes temas
abordados nesta História concisa da linquistica,

I. Abordagens históricas

CÂMARA jr., J. Mattoso. História da linquistica. Petrópolis,


Vozes, 4a ed., 1986.
DESBORDES, Françoise. Concepções sobre a escrita na Roma
antiga. São Paulo, Ática, 1995.
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Tradição qra matical e ara-
mática tradicional. São Paulo, Contexto, 1994.
NEVES, Maria Helena M. A vertente IJre{]ada Gramática Tra-
dicional. São Paulo/Brasília, Hucitec/UnB, 1987.
ROBBINS, R. Pequena história da linauistica. Rio de Janeiro,
Ao Livro Técnico, 1979.
SCHLIEBEN-LANGE, Brigitte. Histôria do [alar e história da
linauistica. Campinas, Unicamp, 1993.

11.Obras gerais e introdutórias

ARNAULD & LANCELOT, Gramática de Port-RoJjal. São


Paulo, Martins Fontes, 1992.
BORBA, Francisco. Introdução aos estudos linquisticos. Campi-
nas, Pontes, 1975.

157

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

CÂMAR jr.,j. Matto O. Princípios de iinquistica qcral. Rio de


Janeiro, Padrão, 1989.
LEPSCHY, Giulio. A linquistica estrutural: e .tudos. São Paulo,
Perspectiva, 1975.
LEROY, Maurice. As grande' correntes da 1inguí uica moderna.
São Paulo, Cultrix, 5a ed., 1986.
LOPES, Edward. Fundamentos da linguí tica contemporânea.
São Paulo, Cultrix, 1995.
LYONS,john. Linquaqem e linauistica: urna introdução. Rio d
janeiro, LTC, 1987.
MUSSALIM, F. & BENTES, A. (org.] Introdução à linquistica
(2 volumes). São Paulo, Cortez, 2001.
ORLANDI, Eni P. O que é iinquistica. São Paulo, Brasiliense,
1986.
SAPIR, Edward. Linpuistica como ciência. Rio de janeiro, Li-
vraria Acadêmica, 1961.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linquistica qeral. São Paulo,
Cultrix, 20a ed., 1997.
SCLI R-CABRAL, Leonor. Introdução à linquistica. Porto le-
gre, Globo, s- ed., 1982.

IH. Dicionários
ALMEIDA P,josé. Glossário de linquistica aplicada. Campinas,
Pontes, 1998.
CÂMARAjr.,j. Mattoso. Dicionário de linquistica eqramática.
Petrópolis, Vozes, 22<1ed., 2001.
CRYST L, David. Dicionário de linquistica e fonética. Rio de
janeiro, Jorge Zahar, s.d.
DUBOIS, Jean. Dicionário de linguí tica. São Paulo, Cultrix,
1997.

IV. Sobre autore e pecíficos


BOUQUET, Simon. Introdução à leitura de Saussure. São Paulo,
Cultrix, 2000.
BRAIT, Beth (org.), Bakh tin: dialoqismo e construção do sen tido.
Campinas, Unicamp, 2001.

158
GUIA DE LEITURA

CALVEr, Louís-Iean,Saussure pró e contra. São Paulo, Cultrix, 1977.


CARVALHO,Castelar de. Para compreender Saussure. Petrópolis,
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CLARK, K. & HOLQUIST, M. i\1ikhail Bakhtin. São Paulo,
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FREITAS, M. Tereza A. VlJljOstky & Bahhtin. São Paulo, Ática,
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LYONS,john. As ideias de Chomsky. São Paulo, Cultrix, 1973.
MONTEIRO, José L. Para compreender Labov, Petrópolis,
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v. Abordagens diversas
ALTMAN, Cristina. A pesquisa linquistica no Brasil: 1968-1988.
São Paulo, Usp Humanitas, 1998.
ARRIVÉ, Michel. Linguagem e psicanálise: linauistica e incons-
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BAGNO, Marcos. Dramática da linaua portuguesa: tradição qra-
matical, mídia & exclusão social. São Paulo, Loyola, 2000.
BAGNO, Marcos [org.}. Norma linquistica. São Paulo, Loyola,
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BAGNO, Marcos. Portuquês ou brasileiro? Um convite à pesquisa.
São Paulo, Parábola, 2001.
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Paulo, Loyola, s- ed., 2001.
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São
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CAGLIARI, Luiz C. Alfabetização e Iinquistica. São Paulo,
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CHOMSKY, Noam. Estruturas sintácticas. Lisboa, Edições 70,
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FARACO, Carlos A. [org.]. Estranqeirismos: guerras em torno
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GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo,
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ILARI, Rodolfo. A linguística e o ensino de língua portuguesa.
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160
fNDICE DE AUTORES
E DE OBRAS FUNDAMENTAIS

A B
Aarhus, jacobus Mathiae, 81 Bacher, 18
Ahnandlusu; uber den Ursprunq Bacon, Rogério, 57
der Sprache, 101 Bakhtin, Mikhail, 148-153
Adelung, J. C., 78 Balbi, Johannes, 56
Acntriduu; tot de Kennisse VCl/1 Barton, john, 71
het verhevcne Deel der Ne- Barwick, K., 36
dcrduitschc Sprakc, 89 Becanus, Goropius, 85
Agostinho, 40 Beda, 67
Alberti, Leon Battista, 72 Bethune, Ebherard, 56
Alcuíno, 54 Blommfield, Leonard, 1~W-131
Ambrósio, 40 Boas, Franz, 130
Anfan,qs.qründc der Sprachwis- Bocácio, 37
senschaft, 100 Boécio, 54
Apolônio Díscolo, 32, 33, 34, 42 Bõhme, jakob, 97-98
Aquapendente, Fabrício de, 80, 81 Bonifácio, 49, 51
Aristóteles, 27, 30, 43, 54, 57, Bopp, Franz, 91-93
67, 136 Bréal, Michel, 114
Arnauld, Antoine, 98 Brocensis, Franciscus Sanctius, 96
Ars maior, 39, 40, 63 Brosses, Charles de, 89
Ars minor, 40, 50, 52, 71 Bühler, Karl, 138
Artes deqra mática da língua mais
usada na Costa do Brasil, 76 c
Asper, 40 Capela, Marciano, 41, 44
Aspório, 51 Carey, 91
Áudax, 40 Carlos Magno, 52
Auraiccpt na n-Éces. 63 Casa menta de .Iilalo/lia e
Austin, .Iohn L., 148 Mercúrio, 44

161

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Castilho, Ataliba T. de, 35 Diomedes, 83


Categorias, 54 Dionísio de Halicarnasso, 33, 44
Chomsky, Avram Noam, 109, Dionísio Trácio, 33-34
125, 131-1'36, 144, 150 Dobson, J. E., 18
Cícero, 71, 136 Doctrinale, 56
Cintra, Lindley, 42 Dominus quae pars, S3
Círculo Lingüístico de Praga, 137 Donat jrançois, 71
Claius, johannes, 72 Donato, 39-40, 42, 50, 52, 61,
Cláudio, Ápio, 44 63,71
Cledônio, 40 Dositeu, 40
Clénard, Nicolas, 76 Duret, Claude, 79
Codex Wormianus, (i3
Colebrooke, 91 E
Condillac, 101
Elements of speech, 81
Crates de Malos, 36
Elfrico, 61-62
Crátilo, 24,25 Ellis, A. ]., 92
Crátilo, 25 Eneida, 40-41, 51
Crisóloras, Manuel, 73 Escauro,40
Cunha, Celso, 42 Escola de Copenhague, 129
Curso de linquistica qcral, 126- Escola de Londres, 129
128. 137 Escola de Praga, 129, 136-143
Escrita e a língua dos gados, A, 8S
D Esmaragdo, 52
Darwin, 93-94 Essay towards a Real Charactei
Darwinismo testado pela ciência and a Philosophical Lan-
da linguagem, 94 guage, 81, 98
De brutorum loquela, 81 Etimologias, 48
De causis linquac latinae, 96 Êutico, 41
De grammaticis et rhetorihus, 36
i» heuenistica, 86 F
De inierpretatione, 27, 54 Fergil, 45
De lingua latina, 37 Firth, john Rupert, 129, 137
De liueris, 81 Focas, 41
De iocutione et eius instrumen- Forster, 91
tis, 81 Frank, 91
De rudimentis hebraicis, 75 Freud, Sigrnund, 136
De siqnatura rerum, 97 Freudismo, 0, lS3
De Spreeckonst, 81 Fundamentum puerorum, 56
De visione, voce, auditu, 80
Diadema monachorum, 52
Diógenes de Babilônia, 28 G
Diógenes Laércio, 28, 30 Gesner, Conrad, 77-79

162
f

íNDICE ONOMÁSTICO

Giarnbullari, Pierfrancesco, 85 Institutio de nomine et prono-


Graecismus, 56 mine et verbo, 41
Gramática filosófica da linqua Institutiones arammaticae, 33!
portuguesa, 100 41,47, 53-55, 59, 61, 79
Gramático, Virgílio, 52 lsaqoq«, 54
Grammaire lIénéraLe et raison- Isidoro de S vilha, 48
néc, 60, 98, 100
Grammatica li npua r analica-
nae, 81
J
jakobson, Roman, 129, 137
Grammatici latini, 39
Jerônimo, 40, 100
Gregório Magno, 40
João de Garland, 56
Grice, H. P., 148
João de Gênova, 56, 58
Grimm, jakob, 104-105, 116
J ones, William, 104
Guidaceriu , Agathius, 80
Guilherme de Conches, 55
Guilherme de Occam, 59 K
Gutolfo de Heiligenkreux, 56 Keil, H., 39
Kempf, Nicolau, 56
H Knowledqe of Lanquaqe, 134
Ha1liday, M. A. K., 137
Harris, james, 100 L
Hegel, Wilhelm Friedrich, 136 Lamb, Sidney M., 136
Helias, Pedro, 55 Lancelot, Claude, 98
Herder, johann Gottfried von, Lanquaqe, 131
101, 108 Láscaris, Constantino, 73
Hermathema, 85 Lectures 011 the Science of Lan-
Hermes, 01" a Phiíosophicai In-
lJuage, 94
quiru concernir/li Universal Leibniz, 37
Grammar, 100
Lenin, 136
Herrnógenes, 25
Levita, Elias, 75
Heródoto, 77
L(lJS d 'Amor,', 66,68
Hjelmslev, Louis, 129
Holder, William, 81 LU'e anti Growth of Lanquaqe, 95
Humboldt, Wilhelm VOI1, 107- Linacr , Thomas, 95
108, 127, 150 Locke, 100
Lúlio, Raimundo, 97
I Lutero, Martinho, 72

lanua, 53
Il {/ello: raqionamcnti della pri-
M
ma et antica origine della Manúcio, Aldo, 44, 73
Toscana et particularmente Martinet, ndré, 112
âella linqua florentina, 85 Martinho da Dácia, 58

163

HISTÓRIA CONCISA DA LlNGuíSTICA

Marx, Karl, 136 Peri hermeneía , 27


Marxismo e filosofia da lingua- Peri slJntáxeos, 32-3342
gem, 148 Pike, K nneth 1., 136
Mathesius, Vilém, 137 Pilatos, 60
Mauro, 'B renciano, 44 Platão, 21, 24-27, 29-30, 37-38,
Megiser, Hieronymus, 78 43, 73, 136
Melanchton, Phillipp, 95 Pompeu, 40
Metafísica, 57 Porfírio, 54
Miguel de Marbais, 58 Port-Royal, 60, 98-100, 134
Milton, john, 86 Primeiro Gramático, 64, 65
Minerva, 96 Primeiro tratado gramatical, 64
Mithridate , 77-78 Prisciano, 33, 41, 47, 53-55,
Mitridates, 77 62-63, 79
Montano, Pedro, 81 Probo, Valério, 38
Mugdhabodha, 91 Pseudo-Agostinho, 41
Müller, Max, 94 Pseudo-Palemão, 83
Munster, Sebastian, 75
Q
N Qimhi, Moshe, 75
Nebrija, Antonio de, 82-83, 95 Quintiliano, 38, 95
Neckham, Alexandre, 56
Nova qramática do portuquês R
contemporâneo, 42 Rank, Rasmus, 104
Novo Testamento, 73 Ray, john, 98
Novzenus, Sebastianus Augus- Reuchlin, Johannes, 74-76
tus, 80 Roget, P. M., 98
Nummus quae pars, 53
s
o Salmásio, Cláudio, 86
Origem da língua portuguesa, Sandys, 18
73 Sapir, Edward, 130
Origem das espécies, 94 Saussure, Ferdinand de, 109,
125-128, 133, 137, 144,
p 150, 152
Palemão, Q. Rêmio, 38 Scaliger, ]. C., 96
Panini, 13-14, 91 Schleicher, August, 93-94, 121
Pansa,38 Schlispacher, johannes, 56
Papiro Yale, 30 Schmidt, Johannes, 122
Partitiones, 41, 48 Searle, John, 148
Pedersen, H., 18 Sergílio, 45
Pellican, Conrad, 74-75 Sérgio, 40

164

íNDICE ONOMÁSTICO

Sérvio, 40 v
Shakespeare, 136
Valla, Lorenzo, 9S
Sigério de Courtrai, 58 Varrão, Marcos Terêncio, 36-
Suntactic Structures, 132 38, 47-49, 95
Sintaxe, 32 Vergleichende Grammatik des
Sócrates, 25 Sanskrit, Zend, Griechischen,
Sofista, 29 Lateinischen, Litthauischcn,
Steiner, Rudolf, 97 Gothischen und Deutschen, 93
Steinthal, Heymann, 108 Veronese, Guarino, 95
Stiernhielm, Georg, 88
Vidas dos filósofos, 28
Villa Dei, Alexandre de, 56
Suetônio, 36
Virgílio, 40, 45, 52
Sweet, Henry, 92 Vitorino, 40
Voloshinov, v., 148, 153
T Vopadeva, 91
Ten Kate, Lambert, 89 Vulcânio, Boaventura, 85
Thesaurus of English Words and Vygostky, Lev, 153
Phrases, 98
Thórdharson, Óláfr, 63-64 W
Thrésor de Vhistoire des Ianques Wallis, john, 81
de cest univers, 79 Whitney, W. D., 92, 95
Tomá de Erfurt, 56, 58 Whorf, Benjamin Lee, 130
Traité de la [ormation mécha- Wilkins, John, 81, 91, 97-98
nique des lanuues, et eles Willoughby, Francis, 97
príncipes physiques de Wundt, Wilhelm, 108, 131
I 'étymologie, 89
Trubetzkoy, Nikolai Sergei-
y
evitch, 129, 137, 139 Yates, 91

165

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