Julio Mendonça - Holossignia

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Percepções

Júlio Mendonça *

A poesia,
o cinema e a
holossignia
Júlio Mendonça é poeta, doutor em Co- Resumo Este artigo tem por objetivo discutir questões comuns ao cinema e à
municação e Semiótica pela Pontifícia poesia experimentais: a autoconsciência da linguagem, a atenção à materiali-
Universidade Católica (PUC) – São Paulo dade dos signos e dos meios e o interesse pela hibridização de linguagens são
e coordena o Centro de Referência Ha- os principais pontos em comum destes dois campos de criação experimental.
roldo de Campos, na Casa das Rosas. Foi Mas, sobretudo, poesia e cinema experimentais atuam balizados pela tensão
o curador da exposição “Esdrúxulo! 100 entre os limites físico-corporais da percepção humana e o desejo de uma arte
anos da morte de Augusto dos Anjos” e que presentifique o virtual. O artigo se propõe a pensar a questão com base
organizou o livro “Poesia (Im)Popular nos conceitos de intersemiose e holossignia.
Brasileira”. Publicou o livro “Democra-
tizar a participação cultural”. Palavras chave Poesia, Cinema, Percepção, Holossignia.
<[email protected]>
ORCID: 0000-0003-0842-4011 Poetry, cinema and holosignia

Abstract This article aims to discuss issues common to experimental cinema and po-
etry: self - awareness of language, attention to the materiality of signs and means and
interest in the hybridization of languages are the main points in common of these two
fields of experimental creation. But above all experimental poetry and cinema are
marked by the tension between the physical-corporeal limits of human perception
and the desire for an art that presentify the virtual. This article proposes to think the
question based on the concepts of intersemiosis and holosignia.

Keywords Poetry, Cinema, Perception, Holosignia.

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“(...) deve haver uma comunhão entre os impulsos da forma e da


matéria, isto é, um impulso lúdico, pois só a união da realidade com
a forma, do acaso com a necessidade, do sofrimento com a liberda-
de, torna o conceito do humano completo”. Schiller

Introdução
    O presente texto nasceu do desejo de pensar possíveis respostas
para duas perguntas: o que têm em comum as buscas da poesia e do cinema
experimentais?; de que modo influirá na poesia e no cinema o desenvolvi-
mento de formas multissensoriais de virtualização? São perguntas, prova-
velmente, ambiciosas demais para um texto de proporções reduzidas, mas
tentarei refletir um pouco sobre elas com o auxílio dos estudos semióticos,
da teoria do cinema e dos estudos da narrativa no meio digital.
    Roman Jackobson 1969 caracterizou a poesia como um “estado de
autoconsciência da linguagem”; essa autoconsciência da linguagem é par-
ticularmente decisiva na poesia de caráter experimental, uma vez que ela
explora as relações entre sentido e materialidade dos signos e dos meios.
O cinema, em suas manifestações de maior autoconsciência, também tem
se voltado para a reflexão sobre os meios técnicos que condicionam sua
expressão. Ao mesmo tempo, poesia e cinema têm ambicionado, ao longo
da história e de diferentes maneiras, alcançar a “imitação integral da na-
tureza” (expressão de André Bazin), o que representa um paradoxo pois
significaria presentificar o que é virtual, dar corpo ao que é signo.
    Conforme procuro demonstrar ao longo do ensaio, poesia e au-
diovisual experimentais têm se caracterizado cada vez mais pelo diálogo
entre diferentes códigos – pela multi e intermidialidade. Retomando e re-
formulando um pouco a segunda das duas perguntas iniciais, de que modos
a hibridização de linguagens proporcionada pelos meios digitais influirá
nos rumos dessas duas artes e em sua relação com o que os poetas concre-
tos chamaram de “realismo total”? O texto se propõe, ao final, a pensar a
questão com base nos conceitos de intersemiose e holossignia.

O cinema ainda não foi inventado


    Para André Bazin (1991, p. 27), o cinema é um fenômeno idea-
lista, como se a ideia que os homens têm feito dele já estivesse projetada
em suas mentes. Bem, sem pretender julgar anacronicamente o grande crí-
tico e pensador do cinema, os estudos realizados nos últimos anos sobre
as origens do cinema mostram uma relação mais complexa entre o que os
homens projetaram e o que o cinema tem sido. Mas o próprio Bazin diz, no
mesmo texto:

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A primazia da imagem é histórica e tecnicamente acidental, o saudosismo


de alguns pelo mutismo da tela não remonta o bastante na infância da
sétima arte; os verdadeiros primitivos do cinema, aqueles que só existi-
ram na imaginação de uns dez homens do século XIX, pensam na imita-
ção integral da natureza. Logo, todos os aperfeiçoamentos acrescentados
pelo cinema só podem, paradoxalmente, aproximá-los de suas origens. O
cinema ainda não foi inventado! (BAZIN, 1991, p.30)

A linha teleológica se quebra e nossa atenção deve se voltar para a


origem e, assim, repensarmos o percurso considerando ideias e acidentes.
Os aspectos físicos e as técnicas desenvolvidas pelos homens são decisivos
no desenvolvimento de uma arte, ainda que isto pareça, para um pensa-
mento logocêntrico (e, neste sentido mais que idealista, ideo-lógico), uma
concepção anti-humanista. O desenvolvimento das técnicas depende de
ideias e acidentes, necessidade e acaso.
    Assim, com os estudos recentes do chamado primeiro cinema,
sabemos, por exemplo, que, não só os filmes dos primeiros anos do cine-
ma praticamente não tinham narrativa, como o espectador freqüentemen-
te não estava numa posição passiva e estática diante dele, completamente
envolvido pela catarse ilusionista que marcará sua relação com o cinema
clássico. Os filmes eram exibidos em meio a outras atrações presenciais e
curiosidades no ambiente popular dos teatros de variedades.  Era uma épo-
ca de freqüentes transformações nas técnicas, nos modos de produção e
nas formas de exibição, e os filmes buscavam chamar a atenção, tanto para
a sua relação referencial para com a realidade, quanto para o caráter ilu-
sionista inerente ao dispositivo técnico. É o que um dos mais importantes
estudiosos desses primeiros anos do cinema, Tom Gunning chamou de ci-
nema de atrações:

Em primeiro lugar, é um cinema que se baseia na (...) sua habilidade


de mostrar alguma coisa. (...) Há um aspecto do primeiro cinema (...) que
representa esta relação diferente que o cinema de atrações constrói com
seu espectador: as freqüentes olhadas que os atores dão na direção da
câmera. Esta ação, que mais tarde é considerada um entrave à ilusão re-
alista do cinema, aqui é executada enfaticamente, estabelecendo contato
com a audiência. (...) este é um cinema que mostra sua própria visibilida-
de, disposto a romper o mundo ficcional auto-suficiente e tentar chamar
a atenção do espectador. (GUNNING, 1990, p.60).

    Mas, para que possamos prosseguir nossa reflexão com algum


método, voltemo-nos um pouco para os instrumentos que a semiótica pode
oferecer.  A classificação dos signos em ícone, índice e símbolo é a base fun-
damental da teoria dos signos de Charles Sanders Peirce. Um signo é um
ícone se ele apresenta alguma similaridade com o seu objeto, “expressando
uma qualidade de sentimento, na identidade formal e material entre signo
e objeto” (SANTAELLA, 1995, p.145). Uma imagem e um diagrama são exem-

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plos de signos icônicos. Por estar calcado numa similaridade qualitativa, o


ícone é marcado pela ambiguidade, pela abertura e imprevisibilidade. Um
índice é um signo que mantém uma conexão física com seu objeto, uma
relação efetiva e presencial, que guarda vestígios do objeto. Uma batida na
porta e um olhar são signos indiciais. O símbolo, por sua vez, é apenas uma
mediação, um signo “cuja virtude está na generalidade da lei, regra, hábito
ou convenção de que ele é portador” (SANTAELLA, 1995, p.172). Uma pala-
vra ou um sinal de trânsito são símbolos. Trata-se da instância sígnica mais
permeável à previsibilidade e à redundância. Mas o signo no nível simbólico
é, ao mesmo tempo, o signo responsável pelo desenvolvimento da capacida-
de conceitual da linguagem. Sem o símbolo não há metalinguagem.
    O primeiro cinema revela um predomínio de relações icônicas
e indiciais, tanto no que diz respeito às relações entre as imagens em mo-
vimento e à realidade às quais elas se referem, quanto no que concerne às
relações entre as imagens e o espectador. O regozijo com a recém-conquis-
tada capacidade de mostrar se evidencia na exposição predominante das
virtudes de similaridade e indicialidade dessas imagens. Esta é uma outra
maneira de entender o que Tom Gunning, no trecho acima citado, observa
quando fala de um cinema que mostra sua própria visibilidade e chama a
atenção para a freqüência com que os atores olham na direção da câmera.
    André Gaudreault propôs a seguinte periodização na formação do
“modo de representação fílmica”:

• período do filme em plano único: apenas rodagem;


• período do filme em vários planos não-contínuos:
rodagem e montagem, mas sem que a primeira seja
realizada de maneira verdadeiramente orgânica em
função da segunda;
• período do filme em vários planos contínuos: rodagem
em função da montagem. (1989, p.20)

É neste terceiro período que a narrativa irá começar a estabilizar o


formato-filme. Num primeiro momento, o desenvolvimento da narrativa fíl-
mica será baseado na decupagem sintagmática (montagem) e, logo, na para-
digmática (montagem paralela). Mas será a influência da narrativa de origem
verbal, do romance ou do teatro, que, a partir de um segundo momento (prin-
cipalmente com o desenvolvimento do cinema sonoro), será decisiva para a
conformação da narrativa fílmica, estabilizará padrões narrativos em “gêne-
ros” cinematográficos (quase todos eles com origem nas artes verbais), e com
esses padrões estáveis gerará produtos que, até hoje, mantêm a indústria do
cinema. O predomínio da palavra como instância estruturadora da narrativa
faz, a partir daí, recuar em grande parte as instâncias icônicas e indiciais.
É claro que elas ainda comparecem em momentos privilegiados nos filmes,
aqui e ali, em maior ou menor grau. Mas é a instância simbólico-conceitual,

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respaldada no hábito ou convenção e na maior previsibilidade, que predomi-


na por meio da quase onipresença da narrativa de origem verbal.
    Luis Buñuel, na sua conferência “Cinema: Instrumento de Po-
esia” (1958), assim se refere a esse cinema de base narrativa literária:
“Desgraçadamente, a grande maioria da produção cinematográfica atual
parece não ter outra missão: as telas se comprazem no vazio moral e in-
telectual onde prospera o cinema, que se limita a imitar o romance ou o
teatro com a diferença de que seus meios são menos ricos para expressar
psicologias” (XAVIER, 1983, p.334)
    Assim, a concepção de cinema ficou, durante bastante tempo e
para a maioria das pessoas, estabilizada na fórmula do filme. Assim se refe-
ria a ela Christian Metz, nos anos 60:

O interesse do público influiu na consolidação da ‘fórmula do espetáculo’


fílmico, sem dúvida.  O grande filme de uma hora e meia com seus com-
plementos (documentário, etc.) de narratividade inferior é uma fórmu-
la. Talvez não dure sempre, mas por enquanto ela agrada bastante, ela é
aceita. (...) A fórmula básica, que nunca foi alterada, é aquela que consiste
em chamar de ‘filme’ uma grande unidade que nos conta uma estória e ‘ir
ao cinema’ é ir assistir a esta estória. (METZ, 1972, p.61)

    Quando Billy Wilder realiza “Crepúsculo dos Deuses”, todo o con-


texto diegético da época do cinema mudo e do cinema narrativo clássico
desenvolvido após o domínio do som está ali subentendido e a narrativa do
filme pode se referir a ele de maneira muito sintética, porque sabe-se que
o espectador médio já está em pleno domínio daquele contexto (isto é, já
incorporou o hábito/convenção). Ironicamente, o personagem que narra a
história é roteirista e ao final iremos descobrir que ele a está narrando de-
pois de morto (o que nos faz lembrar Pasolini: “a morte realiza uma monta-
gem fulminante de nossa vida”; a morte, o interpretante [Peirce] conceitual
final) (SANTAELLA, 1995).  
   Entretanto, a latência de outros cinemas possíveis não deixou de
despertar o interesse de muitos realizadores. Desde 1916, pelo menos, quan-
do se publicou o manifesto “La Cinematografia Futurista” que propunha
“simultaneidades e compenetrações cinematografadas de tempo e espaço
(...) para se liberar da lógica” (PERLOFF, 1993) e anunciava a decomposição
e a recomposição do universo a partir de nossas fantasias. As ideias desse
manifesto encontram eco até hoje, como veremos.
    As experiências dos primeiros anos de Abel Gance (suas telas
múltiplas), o cinema revolucionário de Vertov, o chamado “cinema puro”
de Hans Richter, o inconformismo lúdico e perscrutador  de “Entr’Acte”, de
René Clair, de “Emak Bakia”, de Man Ray, “Um Cão Andaluz”, de Buñuel e
Dali, as animações abstratas de Norman McLaren, são apenas alguns poucos

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exemplos dentre outros tantos, retirados da produção das décadas de 20 a 50,


de um cinema inquieto que se pergunta sobre seu modo de expressão e recu-
sa do modo narrativo de raiz literária. Prioriza o movimento centrípeto – “o
ícone, onde está o âmago da criação” (Julio Plaza, in PARENTE, 1993, p. 86) –
em detrimento do movimento centrífugo da comunicação. Embora o cinema
brasileiro anterior aos anos 60 não tenha tido uma tradição experimental,
podemos lembrar as experiências marcantes, mas isoladas, de Alberto Caval-
canti (“Rien que les Heures”, 1926) e Mário Peixoto (“Limite”, 1930).
    É claro que mesmo o filme mais experimental e refratário à nar-
rativa e à influência da palavra pode ser interpretado em palavras, num
enunciado ou numa sequência de enunciados. E é. Evocando Deleuze, André
Parente escreve:

Deleuze observa, com razão, que o cinema não é uma linguagem, e sim
uma massa ou matéria plástica, a-significante e a-sintática, não lingüis-
ticamente formada, embora não seja amorfa e seja formada semiotica-
mente. ‘É uma condição, anterior, em direito, ao que condiciona. Não é
uma enunciação, não são enunciados, é um enunciável. Queremos dizer
que, quando a linguagem se apodera dessa matéria (e ela o faz, neces-
sariamente), dá então lugar a enunciados que vêm dominar ou mesmo
substituir as imagens e os signos (...)’ (PARENTE,2000, p.25)

    Parente entende que o “verdadeiro” cinema, narrativo ou não,


privilegia o imagético. Ele prefere distinguir a narrativa imagética cinema-
tográfica da narrativa conforme a abordagem semio-lingüística. Do mesmo
modo, ele distingue um cinema poético do cinema experimental não-nar-
rativo e extrai, daí, outras consequências (com base em Blanchot, ele não
reduz o narrativo ao enunciado de uma história).  Mas, aqui, vamos nos
ater ao entendimento do narrativo como o enunciado de uma intriga, de
um enredo, e vai nos interessar o fato de que o cinema experimental, não-
-narrativo, disnarrativo ou não-diegético, tem buscado um menor grau de
submissão ao discurso verbal, ao enunciado interpretativo, que seus reali-
zadores ainda viam e vêem no cinema narrativo de base diegética literária
e mesmo no cinema poético.

Cinema e poesia: caminhos que se cruzam

    Para os formalistas russos, grandes teóricos do primeiro cinema


de poesia, tratava-se de, através do emprego de procedimentos como o en-
quadramento, a decupagem e a montagem, transformar o pensamento do
espectador em movimento do pensamento – uma “linguagem interior que
reúne as imagens separadas” (PARENTE, 2000, p. 58) Para Roman Jakobson,
que propôs a bastante conhecida classificação das funções da linguagem,

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a função poética é aquela que faz a mensagem voltar-se para ela mesma,
projetando “o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de
combinação” (JAKOBSON, 1969, p.130). No cinema, os realizadores da van-
guarda russa aplicarão esse princípio privilegiando a montagem – a seleção
e a combinação das imagens. É nos momentos do filme em que a monta-
gem privilegia a combinação de imagens, que reunidas no pensamento do
espectador, alcançam grande condensação de significação, que atingimos
um cinema poético. O signo volta-se sobre si mesmo e cria uma relação de
similaridade entre ele e o que ele representa. Por isso, a função poética de
Jakobson se aproxima do conceito de signo icônico de Peirce. (PLAZA, 2003)
    O conceito de signo icônico, que tende para o vago e o impre-
visível, vai influir na concepção de cinema de Pasolini, mas com outras
consequências. Para ele, enquanto o cinema de prosa da tradição narrativa
“tendencialmente naturalista e objetiva” buscava a comunicação unívoca,
o cinema de poesia procurava a criação da ambiguidade e da subjetividade.
Tomando como referência as técnicas literárias do “discurso indireto livre”
e do “monólogo interior”, propõe:

A formação de uma ‘língua de poesia cinematográfica’ implica, por conse-


guinte, a possibilidade de criar, pelo contrário, pseudo-narrativas escri-
tas na língua da poesia: a possibilidade, em suma, de uma prosa de arte,
de uma série de páginas líricas, cuja subjetividade será garantida pelo uso
do pretexto da “Subjetiva Indireta Livre”: onde o verdadeiro protagonis-
ta é o estilo” (apud SAVERINI, 2004, p.45)

    O cinema de poesia de Pasolini, entretanto, é um cinema funda-


mentalmente narrativo (“Ao falar, no entanto, de cinema de poesia, entendi
sempre falar de poesia narrativa” (SAVERINI, 2004, p.48) Para ele, trata-se
de construir narrativas metafóricas. Como veremos mais adiante, outros ci-
nemas não-conformistas recusaram também este caminho e serão influen-
ciados pela música ou pelas artes plásticas ou pelo vídeo.
    Quando falamos de cinema, estamos falando de relações e de fron-
teiras com outras artes: com a literatura e o teatro, no que diz respeito à nar-
rativa ( a abordagem da semiologia em relação à narrativa do cinema parte
de um reconhecimento reducionista disto: Gaudreault (1989, p.12) descreve o
fílmico como um objeto narratológico “complexo”, no qual a “narração”  en-
volve o escritural e o cênico); com a fotografia, as artes plásticas, a cenografia,
as artes gráficas e os quadrinhos, no que se relaciona ao tratamento visual;
com a música e a sonoplastia, no que diz respeito ao som. Os futuristas, que
estiveram na ponta de lança da ideia de rompimento da palavra com a ordem
sintática com o slogam “palavras em liberdade”, viram o cinema como uma
arte que poderia sintetizar todas as artes tradicionais.
    A poesia experimental surge, justamente, da constatação que
Mallarmé resumiu na frase: “nomear um objeto é suprimir três quartas par-

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tes do gozo de um poema” (WILLEMART, 1999, p. 110). Este sentimento de


que a palavra não dá conta do mundo foi experimentado, também  pelos
artistas e pelos teóricos do cinema em relação à imagem.
    Durante o século XX, essa poesia que busca questionar seus limi-
tes rompeu com a sintaxe (futuristas, cubofuturistas e concretistas), frag-
mentou o texto e a palavra (e.e.cummings, concretistas), explorou o espaço
branco da página como meio expressivo (cubofuturistas, cummings, Pound,
concretistas), assumiu uma configuração estruturalmente visual do texto
e se propôs “verbivocovisual” (concretistas), incorporou a imagem (poesia
concreta, poesia visual), fêz-se objeto (poema-objeto), explorou a gravação
e manipulação da voz e dos ruídos (poesia sonora), e, com a tecnologia di-
gital, vem experimentando configurações híbridas de texto, imagem e som,
em movimento e transformação, em modo interativo ou não.
    Uma poesia que almejou presentificar a síntese estruturada das
percepções dos sentidos, organizando as “palavras-coisas” tensionadas no
espaço-tempo (plano piloto para poesia concreta, 1958), a poesia concreta –
e seus posteriores desenvolvimentos experimentais – deu prosseguimento,
por outros meios, ao sentimento que um poeta romântico como Wordswor-
th já expressava no início do século XIX, qual seja, o de que o mundo é um
organismo e de que, nas palavras de Edmund Wilson, “o que somos e o que
vemos, o que ouvimos, o que sentimos e o que olfateamos estão inextri-
cavelmente relacionados” (1987, p.12) Baudelaire respondeu à impressão
de fragmentação diante da cidade moderna, meados do século XIX, com a
impressão das correspondências entre os sentidos (“Os perfumes, as cores
e os sons se correspondem”) e Rimbaud falou em “alquimia dos sentidos”.
    Durante o século XX, a crescente multiplicação de códigos e lin-
guagens e sua convivência cada vez mais íntima no ambiente urbano, nas
artes eruditas, nas industriais e nos meios de comunicação, conduziram aos
estudos dos fenômenos da sinestesia e da intersemiose, bem como aos es-
tudos da neuropsicologia sobre as relações entre o verbal e o não-verbal.
    A poesia experimental também se valeu dos instrumentos con-
ceituais da semiótica para refletir sobre seus caminhos. Se seus praticantes
logo se interessaram pelo conceito  peirceano de ícone, vendo na noção que
Peirce associa de “qualidade de uma sensação” e na ideia de indeterminação
uma forte identificação com o que estavam fazendo, também é verdade que
algumas características dessa poesia como a de trazer traços do referen-
te  estruturalmente sugeridos e, às vezes, como que vincados, mesmo, nos
signos, assim como a de propor a manipulação direta do leitor no poema,
são características de viés indicial, na medida em que o índice é um signo
de reação que aponta para seu objeto. E, se para Peirce “o significado de um
signo é um outro signo”, (SANTAELLA,1995) no cenário contemporâneo da
proliferação de códigos e linguagens a noção de tradução inter e intracódi-
gos – o processo de intersemiose – aponta para a mutação de linguagem que
contamina, cotidianamente, a produção de sentido na vida comum.
    De qualquer modo, observando de forma mais abrangente as
relações entre cinema e poesia, acreditamos que aquilo que os aproxima

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– e faz com que algumas das questões para as quais seus praticantes vol-
tam sua atenção se tangenciem – é, justamente, o fato de que, para eles,
a relação entre espaço e tempo, forma e matéria e a veloz e voraz trans-
formação da experiência do mundo na linguagem é tão intrincada, hoje,
que seus instrumentos se mostram insuficientes. Como não podemos mais
dizer ou mostrar as coisas como dizíamos/mostrávamos antes e como não
se trata de fazer a mimese dessa relação intrincada, mas de construir cor-
relativos objetivos dela, o cinema e a poesia de que precisamos hoje são
os que buscam intersecção com outros campos porque seus instrumentos
tradicionais já não bastam.
    A busca permanente das artes é intersemiótica e sinestésica –
porque, como dizia Fernando Pessoa, a literatura, como toda arte, é uma
confissão de que a vida não basta, e porque o desejo humano de forma é
inesgotável e ultrapassa o antropomórfico.

O cinemático, o poético e a presentificação do virtual

Devemos, portanto, considerar o cinema não como um modo de expres-


são fossilizado, paralisado na configuração que lhe deram Lumière, Gri-
ffith e seus contemporâneos, mas como um sistema dinâmico, que reage
às contingências de sua história e se transforma com os novos desafios
que lhe lança a sociedade. Como tal, ele vive hoje um dos momentos de
maior vitalidade de sua história, momento esse que podemos caracteri-
zar como o de sua radical reinvenção. A transformação por que passa hoje
o cinema afeta todos os aspectos de sua manifestação, da elaboração da
imagem aos modos de produção e distribuição, da semiose à economia.
(MACHADO, 1997, p. 213)

    Para Bazin, “se o cinema nasceu, isso se deve à convergência da


obsessão deles [os técnicos-industriais e os eruditos-imaginativos]; isto é,
a obsessão em torno de um mito: o do cinema total”. E o mito do cinema
total, segundo ele, não tem a ver com a “obra de arte total”, mas com o
mito guia do “realismo integral, de uma recriação do mundo à sua ima-
gem” (1991, p.31). Bazin identificou no neo-realismo italiano um grande
passo nessa direção por “fazer entrar na tela a verdadeira continuidade
da realidade” (1991, p.79).
    Se esse realismo teve em Vertov um dos seus grandes iniciadores,
Peter Kubelka, propugnador de um cinema essencial (e, aliás, devotado a
Vertov a ponto de ser responsável pela restauração de seu filme “Entusias-
mo”), aponta para os seus limites:

Artistas como Vertov tentaram alcançar uma imagem objetiva apenas


colocando a câmera em algum lugar. Mas no momento em que se coloca

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a câmera ali, você escolhe o momento em que começa a imagem; a dire-


ção para a qual você aponta a câmera, mesmo se casual, já significa uma
decisão. Você faz uma escolha e escolhas já são pessoais, pertencem à
realidade pessoal. Nem mesmo a câmera é objetiva. A câmera é uma ima-
gem crua do olho humano, mas está muito longe dele. É uma canhestra
imitação técnica do que os olhos fazem (ADRIANO, 2002, p.62).

    Também será uma consequência do neo-realismo, que influirá no


desenvolvimento da nouvelle vague, a rarefação do enredo, a desconfiança
em relação à palavra e, até, a recusa do roteiro (em Godard, por exemplo).
Nos anos 60, período marcado pela eclosão do movimento contracultural,
vive-se uma desconfiança em relação aos excessos da interpretação, exces-
sos que Susan Sontag chamou de “vingança do intelecto contra arte” no seu
famoso livro chamado, justamente, “Contra a Interpretação. Nas artes plás-
ticas, por exemplo, se a arte conceitual adere ao discurso metalingüístico, a
pop e a op art investem no icônico e a “minimal art”, a “land art” e a “arte
povera” voltam-se para os signos indiciais (isto é, aqueles que guardam al-
gum tipo de relação mais direta com a matéria a que se referem).
    Philippe Dubois, em seu livro “O Ato Fotográfico”, mostrou como
a lógica do índice, sua relação de contigüidade existencial com seu meio,
sua tendência para o aqui e agora, está vivamente presente na arte contem-
porânea. O índice é um signo que não está voltado para as abstrações gerais.
    Do mesmo modo, há toda uma produção cinematográfica, que
tem seus precursores no chamado “cinema puro” dos anos 20, mas que
ganha novo impulso nos anos 50 e 60, que apresenta práticas cinemáticas
que, para usar uma expressão de Dubois (1994, p.95), “não representam algo
além delas mesmas, elas são por elas mesmas sua própria representação”.
Os cinemas de Peter Kubelka e Stan Brackage, por exemplo, com as grandes
diferenças que apresentam, são marcadamente icônico-indiciais. Os filmes
de Andy Warhol recusam o formato-filme (alguns duram várias horas) e
desconhecem o roteiro.
    A par das experiências do “cinema direto” e do underground
americano, multiplicam-se nos anos 60 as instalações, performances, as-
semblages e vídeo-instalações nas quais o espectador não comparece mais
de modo passivo e é chamado a associar as imagens às condições em que ele
as consome, transformando sua relação com o meio. Assim é com o trabalho
de Nam June Paik, de Valie Export e de Chris Welsky.
    Como a mente humana trabalha por associação, é imperativo que,
por exemplo, uma imagem associe-se a percepções de outros sentidos. Isto
sempre aconteceu no âmbito das artes tradicionais, de modo virtual. Quan-
do Baudelaire explora as “correspondências” (soneto “Correspondances”:
“Tendo a expansão das coisas infinitas,/(...)/Que cantam os transportes do
espírito e dos sentidos”), em meados do século XIX, ele está, no âmbito da
poesia exclusivamente verbal, anunciando a busca de conexões sinestésicas
que, logo depois, passaria a ser almejada pelas artes, não virtualmente, mas
física e materialmente.

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    As artes tradicionais superavam virtualmente seus limites físicos


para representar a vida (“Meios que não estão dotados de movimento real,
como a pintura e a escultura, podem, no entanto, representar a vida, cuja
essência é a ação” (ARNHEIM, 1962, p. 8). As artes modernas não se con-
tentam mais com a superação virtual de seus limites, por isto buscam sua
superação física. Isto está relacionado ao fato de que os atos de ver, ler ou
ouvir não estão mais abstraídos, separados do corpo físico do observador,
leitor ou ouvinte. Aliás, eles voltam a ser tudo isto ao mesmo tempo.
    A profundidade de campo, cujo desenvolvimento no cinema Ba-
zin considerou um grande avanço para o realismo, começou a ser desen-
volvida nos estudos de perspectiva de Leonardo da Vinci e já estava pre-
sente no estereoscópio, no início do séc. XIX, que produzia uma imagem
tridimensional, conforme salienta Jonathan Crary no livro “Techniques of
the Observer”, comentado por Arlindo Machado há pouco (Revista Galáxia
no.3) : (MACHADO, 2002)
Desde o início, as tecnologias da imagem em movimento estavam vol-
tadas para a superação dos limites físicos das artes da imagem tradicionais.
    O manifesto “O Cinema Futurista”, de 1916, afirmava a poli-ex-
pressividade da nova arte, previa sua capacidade de simultaneidade e in-
terpenetração de tempos e espaços e de dramatizar estados da mente e,
inclusive, de mostrar palavras em movimento e letras animadas, o que an-
tecipava a poesia digital de hoje.
    Em 1956, o inventor e empresário Morton Heilig lançou o “Simu-
lador Sensorama”, engenhoca que pretendia oferecer a sensação de expe-
riência real através do uso multimídia de imagens em três dimensões, sons
e aromas. É considerado um precursor das tecnologias da realidade virtual.
    Em meados dos anos 60, Ivan Sutherland, com financiamento
para pesquisa com finalidade militar, desenvolveu o primeiro processo
de simulação virtual.
    Em 1970, Gene Youngblood falou em “cinema expandido”, pre-
vendo a expansão do cinema para o vídeo e o computador.
    Esta é uma enumeração rápida e tosca do processo, na verdade,
muito mais rico e complexo, da busca de meios físicos para superar os limi-
tes físicos das formas tradicionais de representação. Não é objetivo deste
trabalho deter-se na história desse processo.
    As novas tecnologias da virtualidade apontam para a possibili-
dade de ampliação da interatividade e da multisensorialidade, através da
confluência de diferentes meios e linguagens.   Os computadores são má-
quinas de simulação e já incorporaram o vídeo e o cinema. Permitem, por
exemplo, sincronismo preciso entre eventos virtuais e ações reais. O tipo de
“comunicação todos-todos” (LEVY, 1997, p.113), hoje comum na Internet,
nos chats, começa a se desenhar para a produção e troca de imagens, e já é
comum a edição on-line de fragmentos de áudio e vídeo.
    Com os meios digitais, as formas narrativas devem se renovar
e as experiências multinarrativas de Resnais (“Smoking, No Smoking”)
encontram neles condições mais promissoras, como, aliás, outros já ob-
servaram. Por não serem lineares, as formas narrativas no espaço digi-

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Percepções A poesia, o cinema e a holossignia.

tal lidam com hipóteses e admitem significados plurais (MURRAY, 2003,


p.132). Esses meios são basicamente indiciais nas interfaces, fundamen-
talmente icônicos nas simulações e reconfiguram as instâncias simbólicas
das linguagens, que, como é próprio delas, continuarão a tender para a
generalidade e o convencional.
    Leonardo desenvolveu a “perspectiva complexa” – uma mistura
de perspectiva natural com a artificial – pois, como observou, “nenhuma
superfície pode ser vista como realmente é porque o olho que a vê não está
equidistante de todas as suas bordas” (RICHTER,1983, p.109); Gombrich nos
chamou a atenção para o fato de que entre a representação e a chamada
realidade o que existe é a ilusão referencial e Barthes escreveu, no livro
“Aula”, que a “linguagem humana é sem exterior: é um lugar fechado”
(BARTHES, 1997, p.16). Portanto, o virtual não é, de forma nenhuma, algo
novo na cultura humana e, particularmente, nas artes. O virtual é o que a
cultura procura atualizar (em linguística, “atual” está relacionado com o
ato de fala “[ou parole, na oposição saussuriana langue/parole]” [Dicioná-
rio Houaiss], isto é, o ato sígnico que se realiza, que se pratica). As tecno-
logias estão criando próteses para nos fazer imergir fisicamente no virtu-
al.  As transformações que elas estão trazendo para nossa percepção e nossa
atuação nos encantam continuamente pelo seu poder multifacetado, não-li-
near e não-mimético de representação, talvez como os contemporâneos do
surgimento do cinema se encantaram. É possível que logo as consideremos,
também, “canhestras imitações técnicas”. Se a experiência proporcionada
por essas próteses é uma atualização provisória e aberta de interações de
linguagens produzidas por números, é bom lembrar a observação de Peirce
de que “o mundo real não pode ser distinguido de um mundo fictício por
nenhuma descrição. Nada, a não ser um signo dinâmico ou indicial pode
realizar tal propósito” (PEIRCE apud SANTAELLA, 1995, p.159)
    Esse desejo de representação integral (“imitação integral da na-
tureza” [Bazin]; “realismo total” [poesia concreta]) foi descrito assim por
Roland Barthes:

Não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional (o real) e uma


ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é precisamente a essa impos-
sibilidade topológica que a literatura não quer render-se. Que não haja
paralelismo entre o real e a linguagem, com isso os homens não se con-
formam, e é essa recusa, talvez tão velha quanto a própria linguagem,
que produz, numa faina incessante, a literatura. (BARTHES, 1978, p.22).

O grifo na palavra topológica é meu porque acredito que, de fato, o


ponto crucial diz respeito ao tópos, o lugar, isto é: a presença. Se linguagem
e mundo não podem coincidir fisicamente no mesmo lugar, diferentes for-
mas de linguagem podem entremear-se e interpenetrar-se.
    Há poucos anos um dos poetas concretos, Décio Pignatari, voltou
a se manifestar sobre este tema tão caro aos criadores daquele movimento:

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Percepções A poesia, o cinema e a holossignia.

“Virá o movimento, cores não irisadas virão. Haverá um novo espectador. E


um som que corresponda: uma holofonia para uma holografia. Uma holossig-
nia1 . Um grande espetáculo hologrâmico, unindo foto, cine, televisão” (1995,
p.148). Aqui, também, a confluência física de diversos meios com seus códigos
aponta para a possibilidade da linguagem intersemiótica inclusiva. A ante-
visão do designer de linguagem Pignatari (era assim que ele caracterizava a
função do poeta) não é muito diferente do que o designer e diretor de cinema
Keiichi Matsuda pensa que será o que ele chama de hiper-realidade:

Nossas realidades físicas e virtuais estão cada vez mais interligadas. Tec-
nologias como Realidade Virtual, realidade aumentada, vestíveis e inter-
net das coisas estão apontando para um mundo onde a tecnologia envol-
verá todos os aspectos de nossas vidas. Será a cola entre cada interação
e experiência, oferecendo possibilidades surpreendentes, e ao mesmo
tempo controlando a forma como entendemos o mundo2 .

 
Esperemos que o novo espectador não assista, apenas, e possa parti-
cipar ativamente com acaso e necessidade, sofrimento e liberdade.

1 Décio Pignatari forjou o termo holossignia a partir da palavra grega


“holo” – que significa totalidade, unidade, o todo – e “signia” – isto é, a
condição sígnica, tão humana.
2 http://hyper-reality.co/ , página acessada em 18 de janeiro de 2018

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Recebido: 28 de fevereiro de 2018.


Aprovado: 15 de março de 2018.

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