Julio Mendonça - Holossignia
Julio Mendonça - Holossignia
Julio Mendonça - Holossignia
Percepções
Júlio Mendonça *
A poesia,
o cinema e a
holossignia
Júlio Mendonça é poeta, doutor em Co- Resumo Este artigo tem por objetivo discutir questões comuns ao cinema e à
municação e Semiótica pela Pontifícia poesia experimentais: a autoconsciência da linguagem, a atenção à materiali-
Universidade Católica (PUC) – São Paulo dade dos signos e dos meios e o interesse pela hibridização de linguagens são
e coordena o Centro de Referência Ha- os principais pontos em comum destes dois campos de criação experimental.
roldo de Campos, na Casa das Rosas. Foi Mas, sobretudo, poesia e cinema experimentais atuam balizados pela tensão
o curador da exposição “Esdrúxulo! 100 entre os limites físico-corporais da percepção humana e o desejo de uma arte
anos da morte de Augusto dos Anjos” e que presentifique o virtual. O artigo se propõe a pensar a questão com base
organizou o livro “Poesia (Im)Popular nos conceitos de intersemiose e holossignia.
Brasileira”. Publicou o livro “Democra-
tizar a participação cultural”. Palavras chave Poesia, Cinema, Percepção, Holossignia.
<[email protected]>
ORCID: 0000-0003-0842-4011 Poetry, cinema and holosignia
Abstract This article aims to discuss issues common to experimental cinema and po-
etry: self - awareness of language, attention to the materiality of signs and means and
interest in the hybridization of languages are the main points in common of these two
fields of experimental creation. But above all experimental poetry and cinema are
marked by the tension between the physical-corporeal limits of human perception
and the desire for an art that presentify the virtual. This article proposes to think the
question based on the concepts of intersemiosis and holosignia.
Introdução
O presente texto nasceu do desejo de pensar possíveis respostas
para duas perguntas: o que têm em comum as buscas da poesia e do cinema
experimentais?; de que modo influirá na poesia e no cinema o desenvolvi-
mento de formas multissensoriais de virtualização? São perguntas, prova-
velmente, ambiciosas demais para um texto de proporções reduzidas, mas
tentarei refletir um pouco sobre elas com o auxílio dos estudos semióticos,
da teoria do cinema e dos estudos da narrativa no meio digital.
Roman Jackobson 1969 caracterizou a poesia como um “estado de
autoconsciência da linguagem”; essa autoconsciência da linguagem é par-
ticularmente decisiva na poesia de caráter experimental, uma vez que ela
explora as relações entre sentido e materialidade dos signos e dos meios.
O cinema, em suas manifestações de maior autoconsciência, também tem
se voltado para a reflexão sobre os meios técnicos que condicionam sua
expressão. Ao mesmo tempo, poesia e cinema têm ambicionado, ao longo
da história e de diferentes maneiras, alcançar a “imitação integral da na-
tureza” (expressão de André Bazin), o que representa um paradoxo pois
significaria presentificar o que é virtual, dar corpo ao que é signo.
Conforme procuro demonstrar ao longo do ensaio, poesia e au-
diovisual experimentais têm se caracterizado cada vez mais pelo diálogo
entre diferentes códigos – pela multi e intermidialidade. Retomando e re-
formulando um pouco a segunda das duas perguntas iniciais, de que modos
a hibridização de linguagens proporcionada pelos meios digitais influirá
nos rumos dessas duas artes e em sua relação com o que os poetas concre-
tos chamaram de “realismo total”? O texto se propõe, ao final, a pensar a
questão com base nos conceitos de intersemiose e holossignia.
Deleuze observa, com razão, que o cinema não é uma linguagem, e sim
uma massa ou matéria plástica, a-significante e a-sintática, não lingüis-
ticamente formada, embora não seja amorfa e seja formada semiotica-
mente. ‘É uma condição, anterior, em direito, ao que condiciona. Não é
uma enunciação, não são enunciados, é um enunciável. Queremos dizer
que, quando a linguagem se apodera dessa matéria (e ela o faz, neces-
sariamente), dá então lugar a enunciados que vêm dominar ou mesmo
substituir as imagens e os signos (...)’ (PARENTE,2000, p.25)
a função poética é aquela que faz a mensagem voltar-se para ela mesma,
projetando “o princípio de equivalência do eixo de seleção sobre o eixo de
combinação” (JAKOBSON, 1969, p.130). No cinema, os realizadores da van-
guarda russa aplicarão esse princípio privilegiando a montagem – a seleção
e a combinação das imagens. É nos momentos do filme em que a monta-
gem privilegia a combinação de imagens, que reunidas no pensamento do
espectador, alcançam grande condensação de significação, que atingimos
um cinema poético. O signo volta-se sobre si mesmo e cria uma relação de
similaridade entre ele e o que ele representa. Por isso, a função poética de
Jakobson se aproxima do conceito de signo icônico de Peirce. (PLAZA, 2003)
O conceito de signo icônico, que tende para o vago e o impre-
visível, vai influir na concepção de cinema de Pasolini, mas com outras
consequências. Para ele, enquanto o cinema de prosa da tradição narrativa
“tendencialmente naturalista e objetiva” buscava a comunicação unívoca,
o cinema de poesia procurava a criação da ambiguidade e da subjetividade.
Tomando como referência as técnicas literárias do “discurso indireto livre”
e do “monólogo interior”, propõe:
– e faz com que algumas das questões para as quais seus praticantes vol-
tam sua atenção se tangenciem – é, justamente, o fato de que, para eles,
a relação entre espaço e tempo, forma e matéria e a veloz e voraz trans-
formação da experiência do mundo na linguagem é tão intrincada, hoje,
que seus instrumentos se mostram insuficientes. Como não podemos mais
dizer ou mostrar as coisas como dizíamos/mostrávamos antes e como não
se trata de fazer a mimese dessa relação intrincada, mas de construir cor-
relativos objetivos dela, o cinema e a poesia de que precisamos hoje são
os que buscam intersecção com outros campos porque seus instrumentos
tradicionais já não bastam.
A busca permanente das artes é intersemiótica e sinestésica –
porque, como dizia Fernando Pessoa, a literatura, como toda arte, é uma
confissão de que a vida não basta, e porque o desejo humano de forma é
inesgotável e ultrapassa o antropomórfico.
Nossas realidades físicas e virtuais estão cada vez mais interligadas. Tec-
nologias como Realidade Virtual, realidade aumentada, vestíveis e inter-
net das coisas estão apontando para um mundo onde a tecnologia envol-
verá todos os aspectos de nossas vidas. Será a cola entre cada interação
e experiência, oferecendo possibilidades surpreendentes, e ao mesmo
tempo controlando a forma como entendemos o mundo2 .
Esperemos que o novo espectador não assista, apenas, e possa parti-
cipar ativamente com acaso e necessidade, sofrimento e liberdade.
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