Experiências Do Real No Teatro
Experiências Do Real No Teatro
Experiências Do Real No Teatro
v13i2p3-13
Em pauta
Experincias do real no teatro
Slvia Fernandes
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Resumo
O texto a apresentao do dossi Teatros do real e sintetiza algumas discusses sobre experincias
do real no circuito das artes da cena, especialmente na ltima dcada. Analisa manifestaes
teatrais e performativas que variam de intervenes diretas na realidade a modos renovados de
teatro documentrio, performances autobiogrficas e experimentos ligados a transgresses da
representao.
Palavras-chave: Autobiografia; Performatividade; Teatralidade; Teatros do real; Teatro documentrio.
O dossi que se apresenta reflexo de uma srie de discusses sobre experi-
ncias do real no circuito das artes da cena, especialmente na ltima dcada. Sem
avanar definies do real, que demandariam aportes filosficos que se est longe de
sustentar, procura-se aqui reunir anlises de manifestaes teatrais e performativas
que variam de intervenes diretas na realidade, especialmente no espao urbano,
em geral referidas como site specific, a modos renovados de teatro documentrio,
comuns no panorama recente, sem esquecer a proliferao de performances auto-
biogrficas e a incluso de no atores em cenas disjuntas, que projetam um leque
diversificado de experimentos ligados, de um modo ou de outro, a transgresses da
representao.
Considerados por tericos como Hans-Thies Lehmann irrupes do real no tecido
simblico da representao, lidos por outros como incurses radicais de performativi-
dade na moldura simblica da teatralidade, como o caso de Josette Fral, os teatros
do real foram assim nomeados por Maryvonne Saison no final da dcada de 1990. Em
seu livro Les thtres du rel, publicado em 1998, a professora de filosofia da Univer-
sidade Paris X (Universit Paris Ouest Nanterre - La Dfense) notava uma dimenso
crtica diferencial em determinadas prticas do teatro contemporneo e enfatizava que
1 Slvia Fernandes professora titular do Departamento de Artes Cnicas da ECA/USP e do Programa de Ps-
Graduao em Artes Cnicas da mesma instituio. Seu ltimo livro, Teatralidades contemporneas, foi publicado
em 2010.
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a atuao poltica de alguns coletivos caminhava em direo oposta do teatro enga-
jado mais tradicional. No perodo de publicao do ensaio, observava que determinados
artistas e pesquisadores problematizavam as prticas de representao ao pretender
que o espectador fosse colocado em confronto direto com as questes tratadas em
cena, na reivindicao de acesso imediato ao real. Desviando-se dos problemas de
definio do que seria esse real, Saison partia da distino filosfica presente em lngua
alem para dar conta do argumento, ao opor Vorstellung (representao) a Darstellung
(apresentao), na tentativa de designar a colocao em presena da prpria coisa e
no a ao psquica que a torna presente ao esprito, e define toda representao como
um gesto de envio a algo que no est ali. Segundo a autora, em determinadas expe-
rincias do teatro contemporneo priorizava-se a concretizao material da presena
do ator, do espao, do objeto e da situao, em oposio relao mimtica, abstrata,
da representao com aquilo que representa. A problematizao do representado seria
feita em proveito da presentao nica, singular, na tentativa de preservar a materiali-
dade do acontecimento e a contundncia crtica de eventos de risco.
Diante do exposto, percebe-se que o desejo de real, onipresente na pesquisa
teatral contempornea, no mera investigao de linguagem. Ao contrrio, ele parece
testemunhar a necessidade de abertura do teatro alteridade, ao mundo e histria,
em detrimento do fechamento da representao, predominante na dcada de 1980.
Por meio desse processo, algumas experincias teatrais recentes contrapem-se
tentao de insularidade que acometeu uma parcela representativa das encenaes
da referida dcada, criaes em que a autonomia da linguagem cnica, a autorrefe-
rncia, a fragmentao e a autorreflexividade levaram os artistas a debruar-se sobre
a prpria prtica do teatro. o fenmeno que Patrice Pavis (1990, p.80) considera uma
inflexo da cena do perodo sobre seu mecanismo homeosttico, em detrimento da
reflexo sobre o mundo, tendncia que Saison (1998, p.13) prefere chamar de crise
de referncia.
Em direo oposta, de intensa abertura para o mundo, os teatros do real
funcionam como sintoma de uma cena plantada diretamente no terreno do social. Mas
nem por isso filiam-se ao realismo poltico caracterstico dos anos 1960. Ainda que
optem por uma tica de confronto com o contexto em que se inserem, definem uma
atitude de resistncia de outra natureza. Seus criadores parecem lutar por um espao
aberto, um respeito mtuo, bater-se por um espao pblico comum de liberdades
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individuais e coletivas, memrias e direitos, como observa Saison (1998, p.19). Sem
dvida, a opo por abrir brechas no simblico para permitir que a matria do teatro
e do contexto social, especialmente o corpo do artista e o espao da cidade, estejam
implicados no processo crtico um modo indito de renovar a tradio de combate e
engajamento. Um dos mecanismos para isso seria a difrao, traduo limitada para
o termo usado por Saison, effraction, que ganha contundncia quando associado ao
rasgo e fratura. como se a representao da realidade fosse inoperante e devesse
ceder lugar irrupo da prpria realidade em cena.
No entanto, importante registrar os problemas conceituais que a questo do real
no teatro levanta. Para pesquisadores de inegvel seriedade, como Philip Auslander,
Herbert Blau, Jos Da Costa e Luiz Fernando Ramos, a tentativa de difrao no
passa de esperana ingnua de acesso direto s prprias coisas, uma espcie de
sonho impossvel de dispensar a mediao dos sistemas de representao, que o
simples uso da linguagem determina. O simulacro, a simulao e a palavra soprada,
para emprestar conceitos de Jean Baudrillard e Jacques Derrida, so indcios inequ-
vocos da impossibilidade de escapar do simblico.
2
De qualquer forma, ainda que se leve em conta a solidez do argumento, preciso
registrar que a crtica contundente ideologia da representao iniciada por Marcel
Duchamp com os ready-mades tem contraponto tardio no teatro, com a exploso de
realidades corporais e materiais de extrema violncia nos circuitos da representao,
o que acaba determinando seu colapso, ainda que momentneo. Segundo Roland
Barthes, a opo pela apresentao da prpria coisa que abre caminho difrao
e permite atingir uma espcie de grau zero da representao. (BARTHES, 2002,
p.1262). Saison, que se refere a Barthes em vrias passagens de seu livro, parte
desses pressupostos para associar os modos possveis de insero do real no teatro
contemporneo ao intuito de desvelar aquilo que no se quer ver. Relaciona a suspeita
contra a representao recusa da espetacularizao, da reiterao e da fetichizao
da sociedade do espetculo, adotando a linhagem crtica dos situacionistas de Guy
2 Ver a respeito: Philip Auslander, Live from cyberspace, or, I was sitting at my computer this guy appeared
he tought I was bot. In Janele Reinelt, Joseph Roach, Ann Arbour (org.) Critical theory and performance, The
University of Michigan Press, 2007, p. 526-531; Herbert Blau, Virtually yours: presence, liveness, lessnes. In Janele
Reinelt, Joseph Roach, Ann Arbour (org.) Critical theory and performance, The University of Michigan Press, 2007,
p.532-546; Jos Da Costa, Irrupes do real no teatro contemporneo. Revista Subtexto, Belo Horizonte, n. 6,
dez. 2009, p. 13-26; Luiz Fernando Ramos, Hierarquias do real na mmesis espetacular contempornea, Revista
Brasileira de Estudos da Presena, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 61-76, jan.jun.2011.
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Dbord. Como eles, acredita que a autenticidade e a fora do acontecimento configu-
rariam, em princpio, uma recusa radical da forma mercadoria.
Aceitando-se ou no os argumentos de Saison, inegvel que uma parcela consi-
dervel das prticas artsticas contemporneas opta por mecanismos de confronto
da representao com experincias testemunhais, depoimentos, cartas e entrevistas,
que hoje proliferam nas cenas de teatro e cinema, como comprova a exploso de
documentrios ou a tenso entre realidade e fico recorrente em certos filmes, como
os de Eduardo Coutinho, ou na maioria dos trabalhos de teatro de grupo. O depoi-
mento pessoal dos processos colaborativos, da mesma forma que o self as context
das teorias performativas de Richard Schechner e a performance autobiogrfica de
artistas como Marina Abramovich, talvez sejam sintomas da necessidade de encontrar
experincias verdadeiras, reais, colhidas em prticas extra-cnicas e vivenciadas na
exposio imediata do performer diante do espectador, como observa scar Cornago,
em texto que recorre a Giorgio Agamben, para credit-las ao dficit de experincia que
est na base da modernidade. (CORNAGO, 2009, p. 11-21)
No caso dos grupos de teatro brasileiros, visvel que a maioria de suas prticas
cnicas no visa apenas criao de uma pea, ou do que se poderia considerar um
produto teatral acabado e comercializvel no mercado da arte. Uma parcela signifi-
cativa desse teatro reconhecida pelo envolvimento em longos projetos de pesquisa
que, ainda que visem, em ltima instncia, construo de um texto e de um espe-
tculo, parecem distender-se na produo de uma srie de eventos pontuais. Talvez
se pudesse caracterizar essas breves criaes apresentadas em ensaios pblicos
ou produzidas em workshops internos como teatralidades episdicas, inacabadas,
imersas na realidade social, cujo carter instvel explicita uma recusa formalizao e
um movimento de interao com o outro. Essas experincias aparecem de modo mais
urgente que o desejo de finalizao num objeto/teatro, e em geral se processam numa
relao corpo a corpo com o real, entendido aqui como a investigao das realidades
sociais do outro e a interrogao dos muitos territrios da alteridade e da excluso
social no pas.
Talvez por isso os trabalhos coletivos, em geral, se desviam do domnio, relativa-
mente seguro, do produto teatral acabado, em que o assunto o mote de vinculao
ao contexto, para invadir territrios de natureza poltica, antropolgica, tica e religiosa
por meio de pesquisas de campo que, aparentemente, deixam em segundo plano
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tanto as investigaes de linguagem quanto a militncia explcita. Na verdade, so os
prprios processos que se desdobram em mecanismos recidivos de interveno direta
na realidade e funcionam como microcriaes dentro de um projeto maior de trabalho.
Essas intervenes operam um desvio no que se considera a mais genuna inteno
da criao teatral a produo de uma dramaturgia e de um espetculo - e sina-
lizam a multiplicao de prticas criativas pouco ortodoxas, cuja potncia de envolvi-
mento no territrio da experincia social tende a superar a fora da experimentao
esttica. Diversos textos deste dossi comentam trabalhos coletivos que sustentam
essa prtica, como o Teatro da Vertigem e a Socetas Raffaello Sanzio analisados por
Leonel Carneiro, e a Cia So Jorge de Variedades, investigada por Carina Moreira a
partir da noo de dilogos com o real.
A recusa da obra acabada determina o carter processual dessas criaes que,
em geral, se apresentam como esboos de cenas em construo. Em texto recente,
Jean-Claude Bernardet observa traos semelhantes no cinema e nas artes plsticas,
notando que as obras que comenta no so mais o resultado de um processo de
elaborao superado por uma finalizao. Elas so o prprio processo de criao.
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Bernardet v nesses trabalhos processuais uma atitude de resistncia obra defi-
nitiva e significativa, da mesma forma que o filsofo Jacques Rancire, para quem a
dimenso poltica dos coletivos se evidencia em prticas processuais como essas, em
que modos de discurso misturam-se a formas de vida e em que cabe aos artistas criar
condies para que uma experincia comunitria se exteriorize. Rancire considera
os artistas coletivos relacionais, por desenharem esteticamente as figuras da comu-
nidade, ou melhor, recomporem no apenas a paisagem do visvel, mas favorecerem
sua evidenciao. E conclui que essas prticas artstico-sociais no so a simples
ficcionalizao do real, pois encontram seu contedo de verdade na mescla entre a
razo dos fatos e a razo da fico. (RANCIRE, 2005, p. 52-54)
scar Cornago concorda com Rancire ao referir-se s utopias da proximidade
que resultam da crise de representao da sociedade contempornea, especialmente
a poltica. Para o ensasta, a face mais evidente dessa crise o deslocamento dos
mecanismos teatrais, representativos e polticos, para uma postura diferencial dos
artistas, que revela um desejo de ao frente ao outro e a inteno de recuperar a
3 interessante notar que Jean-Claude Bernardet comenta nesse texto, O processo como obra, a exposio A
respeito de situaes reais, realizada no Pao das Artes de So Paulo em maio de 2003. O artigo foi publicado
na Folha de S. Paulo Caderno Mais! em 13 de julho de 2003.
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possibilidade do social em termos menores, no mais de militncia poltica, mas de
tica relacional. (CORNAGO, 2008, p. 24-26).
Outro ponto de vista sobre o mesmo tema oferecido por Josette Fral em traba-
lhos recentes, em que parece associar as prticas do real no teatro ao que define
como performatividade (FRAL, 2011). Como se sabe, Fral cunhou o termo teatro
performativo para dar conta da aproximao, cada vez maior da cena contempornea
com o acontecimento nico e os gestos de auto-representao do artista performtico.
Por recusar a adoo de cdigos rgidos, como a definio precisa de personagens e
a interpretao de textos, a performance apresenta ao espectador sujeitos desejantes,
que em geral se expressam em movimentos autobiogrficos e tentam escapar lgica
da representao, lutando por definir suas condies de expresso a partir de redes
de impulso.
A oscilao entre as estruturas simblicas da teatralidade e os fluxos energ-
ticos da performatividade, detectada por Fral, interpretada por Erika Fischer-Lichte
(2007) como um equilbrio precrio entre as ordens da presena e da representao.
No ensaio apresentado na abertura do dossi, em excelente traduo de Marcus
Borja, a professora da Universidade de Berlim toma como ponto de partida diversos
exemplos da cena recente, nos quais a tenso entre real e ficcional, presente em
graus diversos em todo teatro, acentua-se quando o centro de interesse dos cria-
dores desloca-se para o primeiro polo. No entender da terica alem, o confronto entre
o corpo fenomenal e o corpo semitico do ator, o espao real da cena e o espao
ficcional da fbula, trabalhado pelos artistas no intuito de instabilizar a recepo e
contrapor-se homogeneidade dos procedimentos espetaculares da sociedade do
hiperconsumo e do espetculo. Fischer-Lichte acredita que as experincias do real
no teatro podem ser pensadas como prticas de confronto entre arte e vida. V no
fenmeno a recorrncia de procedimento caracterstico das vanguardas histricas,
que retorna com fora nos happenings dos anos 1960, adensa-se na performance dos
1970 e levada a extremos por Jerzy Grotowski, um dos artistas mais bem sucedidos
em acentuar a nfase da materialidade da atuao, ao priorizar a polmica action e
relegar a segundo plano as remisses ficcionais da interpretao.
interessante notar que a via aberta por Grotowski levaria, necessariamente,
supresso do espectador, na coerncia da nfase cada vez maior no processo
em detrimento do produto espetculo, da experincia de autoexpresso do ator em
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prejuzo da representao de personagens para um pblico. Se a teatralidade fruto
das operaes reunidas de criao e recepo, ao excluir o olhar externo do espec-
tador e, portanto, o enquadramento de um ponto de vista, Grotowski foi responsvel
por um verdadeiro abalo ssmico nos cdigos de representao, que submeteu a uma
revoluo de realidade ainda hoje pouco compreendida e explorada.
Voltando apresentao do dossi, preciso registrar que um dos pontos de
partida para a compilao dos textos foram as discusses realizadas na disciplina
Teatros do real, cuja bibliografia de referncia deu ensejo a reflexes e monogra-
fias que apresento ao leitor a ttulo de exemplo do que se trabalhou. o caso dos
artigos de Julia Guimares Mendes, Mrcia Abujamra, Vernica Veloso e Leonel
Carneiro. Julia relaciona a dimenso crtica dos teatros do real a diversas estrat-
gias de aproximao do outro, em geral elaboradas com base na incorporao de
testemunhos ou da presena de no-atores em cena. Explorando seu argumento a
partir de esclarecedores estudos de caso, menciona o espetculo Giulio Cesare, da
Socetas Raffaello Sanzio, Chcara Paraso Mostra de Arte Polcia, do coletivo suo-
-alemo Rimini Protokoll e As Rosas no Jardim de Zula, da Zula Cia. de Teatro de
Belo Horizonte. Marcia Abujamra identifica procedimento semelhante no uso cada vez
mais frequente da autobiografia no teatro, em relao ntima com o que Michael Kirby
chama de autoperformance, tambm referidas como performances autobiogrficas.
Elas so analisadas pela pesquisadora a partir do exame das criaes de Spalding
Gray, especialmente de Rumstick Road, em que o artista retoma o suicdio da me.
Mrcia menciona tambm o uso frequente da autobiografia no teatro paulistano dos
ltimos anos, referindo-se a Luis Antonio Gabriela, em que o diretor Nelson Basker-
ville rememora abusos sofridos na infncia ao refazer a trajetria do irmo, ou Fico,
da Cia Hiato, composto por seis solos em que os atores usam seus prprios nomes
para relatar experincias ntimas como a de Tiago Amaral, que contracena com o
prprio pai. Festa de Separao, um Documentrio Cnico, de Janaina Leite e Luis
Fernando Marques, que performa o fim de um casamento, tambm referido pela
autora. A prpria Janana Leite retoma alguns desses exemplos no artigo em que
aborda experincias autobiogrficas no teatro, revelando gestos diferenciais de autor-
representao em performances como Azirilhante, em que Flvia Melmam enfrenta o
problema do suicdio da me.
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Utilizado com frequncia para nomear esse tipo de trabalho teatral, o termo expe-
rincia esmiuado no texto de Leonel Carneiro, que refaz a trajetria do conceito,
referindo seu uso pioneiro no campo da recepo da arte. Para isso recorre a John
Dewey, que distingue a experincia comum da experincia esttica sem, no entanto,
dissoci-las. Segundo Carneiro, uma significao alongada da experincia do teatro,
que pode ocorrer muito tempo depois do fim do espetculo, cada vez mais comum
na cena contempornea, como demonstram os exemplos citados dos coletivos teatrais
Socetas Raffaello Sanzio e Teatro da Vertigem. Nesse ltimo, em especial, a imerso
no espao urbano, alm do carter de liminaridade entre real e ficcional, fazem do
espectador uma espcie de testemunha.
Em seu artigo, Vernica Veloso prefere reportar-se a experimentos apresen-
tados no ltimo Festival de Avignon, em julho de 2013, que analisa enquanto aes
artsticas. Segundo a pesquisadora, o termo abarca modalidades cnicas de carter
hbrido, que colocam o espectador como sujeito da experincia, o que acontece em
Remote Avignon, criado por Stefan Kaegi, La porte du non-retour, de Philippe Ducros,
e Exhibit B, de Brett Bailey.
A referncia Avignon retomada no artigo de Rafaella Uhiara, que analisa
Cour dhonneur, do coregrafo Jrme Bel, apresentado na mesma edio do festival
e motivo de ardorosos debates entre espectadores que questionavam a pertinncia ou
no do experimento categoria teatro. O trabalho polmico de Bel d continuidade a
pesquisas anteriores do artista com no atores, nesse caso centrada em depoimentos
de espectadores.
Alm dos artigos mencionados, a ampla ressonncia dos teatros do real na
contemporaneidade permitiu que a Sala Preta recebesse timas contribuies de
pesquisadores do pas e do exterior, que praticam esse tipo de experincia ou refletem
sobre ela. Assim, foi com satisfao que se incluiu no dossi o prefcio de Patrice
Pavis para o livro da pesquisadora francesa Danielle Merahi, com anlise abrangente
da cena teatral da Gr-Bretanha. Prefcio e excerto de um dos captulos da publicao,
a ser lanada no incio de 2014, fecham o dossi, apresentando ao leitor o teatro docu-
mentrio e poltico criado a partir de histrias verdadeiras por dramaturgos como
Caryl Churchill e David Greig, encenadores como Ewan MacColl, coregrafos como
Llyod Newson e criadores de devised theatre como Simon McBurney, que se apro-
ximam dos processos colaborativos dos grupos brasileiros.
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Em certo sentido, as experincias relatadas por Merahi dialogam com o argu-
mento de dois pesquisadores de ponta da rea de teoria e prtica teatral no Brasil,
Andr Carreira e Ana Maria Bulhes. No eficaz apontamento da tendncia, os autores
mencionam o biodrama, termo cunhado pela dramaturga e encenadora argentina
Vivi Tellas, o teatro autobiogrfico, o teatro documentrio, o teatro reportagem e o
docudrama, na tentativa de esclarecer a emergncia do real a partir de sentidos pol-
ticos, sociais, coletivos e individuais. Reportando-se a Jos Antonio Sanchez, um dos
maiores estudiosos do assunto, mapeiam as experincias diversificadas do teatro que
busca o real como elemento, mencionando as duas vertentes em que se configura.
Uma delas toma o real como elemento temtico, introduzindo inovaes na drama-
turgia ao tec-la a partir da compilao de materiais e documentos da realidade. A
outra privilegia o real como matria da experincia cnica e acontece quando a reali-
dade bruta irrompe no tecido ficcional para seccion-lo, desestabiliz-lo e abrir brechas
a diversos tipos de manifestao performativa. Concordando com Sanchez, Carreira e
Bulhes afirmam que a experincia permitiria a ruptura do marco representacional e
a apario imediata do real.
De fato, o livro de Sanchez (2007) Prcticas de lo Real en la Escena Contem-
pornea discrimina diversos modos de busca do real no teatro e estabelece distines
conceituais necessrias entre as representaes da realidade, comuns nas encena-
es realistas, e as irrupes do real no teatro, fiis ordem do acontecimento e no
da representao. Novamente, a crise da noo clssica de representao que est
em jogo e irrompe em experincias cnicas radicais. Segundo Snchez, estaria vincu-
lada, entre outras coisas, dificuldade de dar forma a um mundo fraturado por contra-
dies e incoerncias, que est beira do irrepresentvel. (SNCHEZ, 2007, p. 140).
Em seu estudo sobre Escenarios liminales. Teatralidades, performances y pol-
tica (2007) Ileana Diguez Caballero adota via interpretativa semelhante de Sanchez
para explorar procedimentos da performance, do ativismo e da arte-ao. Parte da
constatao de que o mundo contemporneo se define pela crise dos representados
a quem os sistemas dominantes deixaram de responder e v nas estratgias de ao
direta um modo de tornar visveis os corpos ausentes, no representados, configu-
rando uma nova estratgia de abertura de espao para as diferenas. De certa forma
ecoando Rancire e Cornago, Diguez afirma que se trata de um deslocamento da
arte em direo ao outro. (DIEGUZ, 2011, p. 181).
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Fernando Kinas aproxima-se de alguns dos argumentos de Sanchez e Diguez ao
analisar a emergncia do real nas prticas artsticas contemporneas a partir das rela-
es entre arte e sociedade, com base nos pressupostos da teoria crtica. A submisso
da fico aos esquemas produtivos do capitalismo explicaria as crticas que a ela se
dirigem, por ter funcionado, historicamente, como argamassa do teatro burgus.
Segundo o ensasta, ao optar pelo real, problematizando ou negando a fico, parte
do teatro contemporneo questiona o regime da representao por meio de estratgias
muitas vezes opostas, como teatro documentrio, artivismo, biodrama, teatro-jornal,
hipernaturalismo, performance, que podem enveredar pela hiperexposio narcsica
dos artistas, mas tambm promover crticas contundentes ao sistema. Este teatro rejeita
o consolo e o apaziguamento que a fico engendraria, conclui Kinas.
O teatro documentrio o foco da anlise de Marcelo Soler, um dos maiores
estudiosos do tema no pas. Prospectando a tradio do documentrio, retorna a
Piscator para mapear experimentaes que usaram documentos em cena no intuito
de problematizar questes sociais candentes. Recorrendo a tericos como Batrice
Picon-Vallin, para quem o documentrio um espao de informao alternativa, ou
Bill Nichols, que discute a impresso de autenticidade dos documentrios cinemato-
grficos, Soler projeta um rico panorama de experincias documentais que emergem
com fora no perodo e que vivemos, de extrema ficcionalizao da realidade.
Espera-se que a discusso apresentada no dossi, de inegvel atualidade, possa
funcionar como documento vivo, real, dos questionamentos ticos da representao
em todas as instncias.
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