Um Cinema de Cidade Imagens Do Urbanismo
Um Cinema de Cidade Imagens Do Urbanismo
Um Cinema de Cidade Imagens Do Urbanismo
Sociabilidades Urbanas – Revista de Antropologia e Sociologia, v.3, n.7, p. 97-112, março de 2019.
ISSN 2526-4702.
DOSSIÊ
http://www.cchla.ufpb.br/sociabilidadesurbanas/
contribuição para a ciência livre do “positivismo estabelecido”, dar realce aos sentidos da
imaginação, empreender o não-situado como possibilidade de investigação. A entrada na
Antropologia do Cinema de filmes de ficção se dará nesse percurso fecundo do pensamento
artístico.
Na discussão de antropologia urbana, entenderemos a cidade como um lugar propício
para a investigação de práticas complexas na ordem das relações de poder que se formam na
dinâmica das trocas estabelecidas nos espaços de interação da cidade brasileira. Os autores de
antropologia urbana e suas problematizações são redefinidas neste trabalho porque elaboram,
em modelos de entendimento do mundo social, arcabouços reprodutíveis no campo do
cinema. Por isso mesmo, a antropologia urbana nos servirá como embasamento teórico para
pensar a imagem fílmica das relações de poder no cinema brasileiro contemporâneo porque
têm apresentado como resultados a compreensão dos estados sensíveis do comportamento
humano no contexto da urbe.
Do outro lado, mas não tão distante, o cinema de ficção será empreendido aqui como
matéria prima para o esquadrinhamento do desdobramento de discursos sociais em imagens
poéticas do espaço urbano. Com sua linguagem, a representação fílmica corrobora e fomenta
o imaginário social fabricado pelas pessoas, pelos meios de comunicação e pela indústria
cultural.
Como o cinema brasileiro elabora narrativas sobre a distinção social? Como pode a
antropologia urbana auxiliar nesta missão pouco improvável de recrutamento multidisciplinar
– filosófico, antropológico, geográfico e cinematográfico – de interpretação do mundo
cotidiano simbólico? Neste passo, a análise do discurso e da narrativa fílmica cruzada com a
compreensão da imaginação simbólica das imagens poéticas dos filmes que tratam do espaço
urbano nos aportará na ressignificação do imaginário simbólico da cidade. Aqui, apuraremos
filmes solúveis na imaginação sonhadora de recriação do mundo urbano, no período
localizado de produção da pós-retomada do cinema brasileiro, de 2008 a 2018.
Antropologia urbana e a cidade simbólica
Certeau (2014), em sua dissertação sobre as práticas cotidianas, idealiza que os
indivíduos caminhantes da cidade são elevados à categoria de voyeur quando fora do contexto
– social, econômico e cultural – do lugar onde estão circulando. Eles não conseguem
visualizar o “para além” das imagens insistentes, ateadas por modelos reducionistas dos
sentidos dos indivíduos. Em sua análise, “escapando às totalizações imaginárias do olhar,
existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície, ou cuja superfície é somente um
limite avançado, um limite que se destaca sobre o visível” (CERTEAU, 2014, p. 159). A
cidade transumante, nos dizeres de Certeau, orienta os seus transeuntes em caminhos
sistematizados no arranjo complexo que é o espaço urbano, levando-os a seguir direções
mentais programadas, transportados a espaços especializados em conformidade com os seus
usuários.
Enfim, a organização funcionalista, privilegiando o progresso (o tempo), faz
esquecer a sua condição de possibilidade, o próprio espaço, que passa a ser o não
pensado de uma tecnologia científica e política. Assim funciona a Cidade-conceito,
lugar de transformações e apropriações, objeto de intervenções, mas sujeito sem
cessar enriquecido com novos atributos: ela é ao mesmo tempo a maquinaria e o
herói da modernidade (CERTEAU, 2014, p. 161).
Em pesquisa marcada por percursos na cidade, Rocha e Eckert (2015) difundiram uma
antropologia urbana que pensa a cidade e o espaço urbano em sua concretude dinâmica
temporal das relações e das trocas sociais. Destacaram a noção de que a antropologia urbana
também interfere em nós, antropólogos (as), uma acepção sensível do simbólico fundante da
cidade contemporânea. Nas palavras das autoras, tratando-se da antropologia sensível e
infraordinária na obra de Georges Perec,
1
Nomes como os de W. I. Thomas, R. Park, E. Burgess, como pioneiros, e L. Wirth e F. Whyte como os
representantes da nova fase da Escola de Chicago nos de 1930, e mais a frente, nos anos de 1950, E. Goffman e
H. Becker, somam à lista canônica da Antropologia Urbana voltada para estudos de cidades e dos seus espaços
significativos.
individuais, daquilo que faz a força da sociedade civil, dos movimentos sociais” (MARTINS,
2017, p. 52). Uma sociologia do cotidiano, dos procedimentos populares “minúsculos” que
Certeau se referia como produtoras de sentido defensivos às “maneiras de fazer” foucaultianas
– antidisciplinar para Lefebvre –, lida com noções unânimes de produção do conhecimento
popular e das interações simbólicas. Na compreensão de Martins (2017, p. 55), “a interação é
precedida pela simulação, pelo exercício que o sujeito faz de experimentar-se como outro,
numa relação de exterioridade consigo mesmo, nos segundos que constituem o preâmbulo do
seu relacionamento. Uma imensa construção imaginária define a circunstância da relação
social”.
As sociabilidades cotidianas urbanas são geradoras de símbolos e códigos situados. Na
temporalidade das interações simbólicas, os sujeitos inventam e imaginam sua realidade,
exercitam papéis, produzem o gesto – a reunião dos códigos representacionais. Nesse painel
geral, queremos justificar que os sujeitos expressam originalidades imaginativas no momento
– antecedente ou presente – dos rituais diários dos contextos em que convivem.
Nas sociedades complexas onde o urbanismo é imperativo às formas de vida, as
realidades são localizadas temporalmente porque são consequências dos ajuntamentos dos
indivíduos e grupos que as criam. Bachelard (1988) chamou de sistemas de instantes os
intervalos narrativos de existência e exibição da vida humana; somos, assim, criaturas que
imaginam o seu universo simbólico por meio de capítulos (auto)biográficos, com
narratividade linear ou metaforicamente entrecortada em atos bem delineados na semântica da
linguagem social da comunicação. Somos, igualmente, expositores do pensamento da
realidade social na arte espacialmente esculpida (GEERTZ, 2004): arquitetura, cinema,
fotografia, entre outros.
Desse ângulo, DaMatta (1997) reagiu sobre a produção dos espaços de vivência na
dimensão da temporalidade narrativa canal aonde os sujeitos contam e recontam histórias de
vida. A casa e a rua, o dentro e o fora, o alto e baixo, dentre outras temporalidades espaciais
antagônicas, reificam o dilema objetivo da construção simbólica do espaço social. Embora os
espaços se constituam como formas hierarquizadas da mobilidade dos transeuntes, o tempo
exigido na manutenção laboral dos espaços ultrapassa os seus usos e contra-usos regulares na
vida cotidiana. Nesse aspecto, DaMatta (1997, p. 32) definiu que “as atividades que
demarcam o tempo, ou ajudam a construí-lo provendo uma base para a noção de duração
diferenciada e de passagem, são as atividades que ocorrem sempre em espaços distintos”.
Em tese, os espaços sociais são temporalmente narrativos em sua substância
fenomenológica. São, portanto, históricos e voltados para a memória dos seus usuários, que
podem vivenciá-los ou negá-los, respeitá-los na forma original ou transformá-los. Esse
traçado oculto entre análise antropológica da cidade e do espaço urbano, e a iluminação dos
significados na lógica filosófica do pensamento humano (OLIVEIRA, 2018), nos encaminha
para um leque elucidativo da ciência humana dos espaços poéticos.
Primeiramente, os espaços sociais são narrativos, pois:
Cada sociedade tem uma gramática de espaços e temporalidades para poder existir
como um todo articulado, e isso depende fundamentalmente de atividades que se
ordenam também em oposições diferenciadas, permitindo lembranças ou memórias
diferentes em qualidade, sensibilidade e forma de organização. [...] No caso do
tempo, o contraste mais abrangente talvez seja o que pode ser estabelecido entre as
rotinas diárias e as situações extraordinárias, anômalas ou fora do comum, mas
socialmente programadas e inventadas pela própria sociedade (DAMATTA, 1997,
pp. 34-35).
Chegamos a um ponto onde não será possível separar a análise da produção do espaço
poético da produção do espaço social, que é narrativo e simbólico. Para Bachelard (1993), os
espaços poéticos são aqueles que reservam um significado substancial da história afetiva e
memorial, dos próprios espaços e dos indivíduos que fazem uso deles. Uma rua pode ser
considera um espaço poético: repleta de mundos possíveis2, num dia de chuva uma rua pode
mostrar como as crianças fantasiam o brincar na rua molhada que carrega até o fim dela as
folhas e os gravetos deixados pelo tempo cronológico. Na rua molhada pelo dia de chuva, a
água lava as calçadas, limpa os telhados sujos, embebeda as árvores, e na sarjeta, um rio
imenso pode ser o lugar para a navegação de um transatlântico imaginário. Dentro da casa
úmida, no mesmo dia de chuva, o espaço poético dos armários, das gavetas, dos espaços
abertos e fechados, escondidos ou descobertos, iluminados ou escuros, inventam um
imaginário simbólico da casa onírica: no dia de chuva os casacos empoeirados serão retirados
dos guarda-roupas, e à noite na hora do sono, com o som da chuva caindo no telhado, a
paisagem sonora – do silêncio noturno, da chuva caindo nas telhas, do som dos fios se
tocando,dos cobertores quentes – transportará as mentes sonolentas para uma região fantástica
da imaginação onírica. “Um dia de chuva é maravilhoso”, diz o senso comum. Esta imagem
de uma rua num dia de chuva é uma das incursões até a imaginação sonhadora da mente
humana.
Da nossa análise central, a cidade simbólica é aquela que é cidade-acervo de todos os
espaços poéticos que penetram na circularidade dos espaços sociais vividos. Se a cidade é
constituída por espaços poéticos ativados pelo contato dos indivíduos com os espaços, ela será
temporal, cotidiana e metafórica; logo, será narrativa, semblante e imagem dos/pelos
indivíduos. Algumas imagens de cidade são esclarecedoras do ponto de vista relacional.
Caldeira (2000) concluiu nos estudos de antropologia urbana a imagem da cidade-fechada,
dos enclaves fortificados gerenciadores dos espaços públicos de divertimento e lazer das
regiões de São Paulo. Leite (2002) acrescentou nos estudos urbanos a imagem da cidade-
memória, dos espaços urbanos reestruturados e geradores de gentrificação, pela visão de
progresso da cidade-futuro no Bairro do Recife Antigo. Agier (2011) discutiu nos estudos de
antropologia dafronteira a imagem da cidade-zona, dos zoneamentos planetários
institucionalizados na ordem global do controle dos fluxos imigratórios.
Strathern (2017, p. 182) resumiu bem o que as imagens de descrição de performance
querem dizer sobre as pesquisas dos(as) antropólogos(as) em campo, dizendo que “uma
imagem condensa ou rompe com o contexto no interior dela mesma, no sentido de que todos
os pontos de referência são obviados ou deslocados por sua forma única”. Se os artefatos
corroboram a enunciação de uma imagem de totalidade do interlocutor, do grupo ou da
sociedade objeto de estudo, suas narrativas incrustadas podem servir como referencial
material simbólico da história cultural a que se liga.
Como síntese,
Cada imagem é uma nova imagem. Como consequência, o tempo não é uma linha
que divide os acontecimentos; ele reside na capacidade de uma imagem evocar o
passado e o futuro simultaneamente. Se for esse o caso, então, o problema que os
produtores de imagens desse tipo se colocam, na medida em que estão preocupados
com sua própria singularidade, é de como superar a recursividade do tempo; como
criar de fato um evento que será único, particular, inovador. O que é verdadeiro para
o tempo também é para o espaço. De forma análoga, podemos dizer que o espaço
não é uma área delimitada por pontos; ele é a efetividade que uma imagem tem ao
fazer o observador pensar sobre aqui e acolá, sobre ele mesmo e os outros
(STRATHERN, 2017, p. 175).
Todos esses autores realizam pesquisas profundas no âmbito dos estudos de cidade,
espaço urbano e paisagem urbana e cultural, aproximando a empiria dos seus objetos com a
observação, participação e entrevista com interlocutores. Diante disso, pintaram, do seu
modo, na escrita dos seus trabalhos, e nas figuras-ilustração das suas páginas, a imagem da
2
Uma rua é um espaço sem fim. Em sua dimensão simbólica, a rua é um longo e poderoso espaço de interações,
reinvenção do cotidiano e imaginações oníricas. A rua é, em último fim e estado, elaboração mental e cultural
dos indivíduos, definitivamente, durável no tempo e no espaço simbólicos.
3
Segundo os estudos de Burke (2017) ocorreu uma série de mudanças em relação aos usos e formas de imagens,
durante os séculos XIX e XX. Só no âmbito da imagem impressa, ele destaca a gravura em madeira, entalhe,
gravura em água-forte etc.
4
Citação de Jean-Luc Godard: “Fotografia é verdade. Cinema é verdade vinte quatro vezes por segundo”.
5
Tradução nossa de: “a moving vantage point supplies a dense stream of information about objects slants, their
edges, their corners, their surfaces, their relations with other objects”.
6
No expressionismo alemão, por exemplo, a obra Metrópolis (Fritz Lang, 1927) e no filme noir americano, a
película final A Marca da Maldade (Orson Welles, 1958).
Imagem 1 – Frames dos filmes A Febre do Rato (Cláudio Assis, 2011) e Era Uma Vez Eu, Verônica
(Marcelo Gomes, 2012). Fonte: Belavista Cinema e Produção / Dezenove Som e Imagem.
Febre do Rato é um filme político de argumento anarquista. O diretor Cláudio Assis
filma os espaços periféricos, não-convencionais do ponto de vista do turismo litorâneo que a
região oferece. São as pontes – que ligam o centro até a praia de Boa Viagem –, as casas de
taipa, a literatura suburbana e transgressora nas paredes, o esgoto e o cheiro, os bairros
pobres, as casas caindo aos pedaços: seu norte espacial e simbólico para narrar a história de
Zizo, dono do fanzine que dá nome ao filme7, um inconformado que persegue a todos e a tudo
para esclarecer sobre a alienação na sociedade capitalista. Febre do Rato adota os espaços
poéticos da cidade, os lugares sujos e acinzentados socialmente; filmar em P&B a subterra da
cidade do Recife nos parece simbolizar as cidades invisíveis – e imaginárias – que Calvino
romantiza. As cidades invisíveis da desigualdade social, do esquecimento político, da
memória perdida, das ruínas morais reduzidas à pó pela indústria do consumo. É feito disso a
ira de Zizo – não tem como não ser vitimado pela febre do rato. Assis retoma a crítica social
iniciada pelo movimento Manguebeat em meados dos anos 1990, que anos depois torna-se
uma influência capitalizadora para produção do representante da Retomada do cinema
7
A letra de “Febre do Rato”, de Marcelo D2, tem o seguinte trecho:
“Roubaram meu sonho, acabou
Se eu fui livre, hoje, eu não sou
Se eles querem guerra, eu não
Mas é na febre do rato que eu tô
Às vezes, nada dá liga, amigo Zizo dizia
Cachaça e rapariga, cachaça e rapariga
Cachaça e rapariga essas horas é poesia”.
Fonte: https://www.letras.mus.br/marcelo-d2/febre-do-rato/. Acessado em 19 de janeiro de 2019.
pernambucano, Baile Perfumado (Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), seguido porO Rap do
Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas (Paulo Caldas e Marcelo Luna, 2000) e Amarelo
Manga (Cláudio Assis, 2002).
No longa-metragem Era Uma Vez Eu, Verônica, a personagem principal é uma
residente de medicina que convive com incertezas pessoais que a levam a questionar a vida e
suas rotinas. O trabalho, a família e o relacionamento amoroso não são complementares,
fazendo com que ela se veja enquanto produto de um sistema social que oferece diretrizes
comportamentais e projetos de vida. Seu horizonte é não ter visão a frente do momento em
que vive. Marcelo Gomes, diretor do filme, filmou Recife com planos abertos quando no
centro da cidade e do seu entorno, e na distância do urbano, a personagem Verônica,
diminuída pela imensidão dos prédios verticalizados, fortificados, fica de perfil, em meio
close-up, sendo que na outra extremidade a paisagem urbana preenche todo o espaço
geográfico da cena. Se a cidade simbólica é estrutura da mentalidade individual dos usuários
dos espaços, Verônica tenta se reencontrar nesse mar de pedra: sua identidade, Eu, Verônica,
é uma perda e um recomeço.
A cinematografia carioca é clássica. Passando por Rio, 40 Graus (Nelson Pereira dos
Santos, 1945), os filmes urbanos da cidade intercalavam suas histórias da periferia ao centro,
do suburbano até as praias famosas das canções de Vinícius de Moraes e Tom Jobim. O sol lá
em cima e a “cultura carioca” aqui em baixo: as relações sociais eram emergidas no contexto
do sol latente que parece pulsar nas personalidades das personagens em cena, vide Orfeu
Negro (Marcel Camus, 1959), que consagrou imagens de representação contingentes. As
narrativas fílmicas estrangeiras são famosas, e o discurso fílmico não se preocupou em
conceber um imaginário do Rio para além das paisagens urbanas fiéis ao turismo cultural – e
sexual – e dos espaços sociais de música e literatura (COSTA, 2018b). A boêmia, mais do que
a burguesia, era o tema alcunhado entre os anos 1950 a 1960. Desse período, temos a atuação
ferrenha de cineclubes e cinematecas na produção de filmes. Hoje, o cinema do Rio de Janeiro
ainda é devedor de Nelson Pereira dos Santos, mas outros nomes entraram no imaginário
simbólico sobre a cidade por suas virtudes socialmente contemporâneas: a biografia, a
memória e a transformação em Central do Brasil (Walter Salles, 1998), a violência, a
desigualdade e a desintegração social em Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund,
2002), e a corrupção, o crime e a instituição em Tropa de Elite (José Padilha, 2007). As duas
imagens da figura 2 são de filmes cariocas.
Figura 2 – Frames dos filmes Casa Grande (Fellipe Barbosa, 2014) e Campo Grande. (Sandra Kogut,
2015). Fonte: Migdal Filmes / Gloria Films.
Casa Grande retrata a cidade do Rio de Janeiro usando a paisagem urbana para
comparar realidades sociais distintas. Tendo como cenário central a casa grande 8 que dá nome
ao título do filme, o longa-metragem de Fellipe Barbosa constrói uma narrativa que mescla
planos abertos na primeira cena que focaliza a casa grande, e planos fechados no interior da
casa. Na rua, ou seja, fora do enclave fortificado que é a casa grande, a câmera persegue o
personagem Jean, que precisa pegar o transporte público coletivo para ir à escola do outro
lado da cidade. Nesse percurso, Jean dá de encontro com uma realidade social – que tem cor,
cheiro e sensibilidades – que desconhecia até então. Jean, carioca que fala francês, um rapaz
de classe alta, da janela do seu ônibus reencontra seu antigo motorista, que fora demitido em
razão da falência de seu pai. Conhecendo Luiza, uma moça que estuda numa escola pública
do Rio, as realidades e os espaços dos dois se confrontam: Jean é levado para a praia, e Luiza
é recebida na casa grande. A alternativa do diretor em confrontar tanto os espaços sociais
quanto as realidades das personagens leva-nos a crer na verossimilhança com que as vidas vão
se cruzando e se intercalando nos espaços “comuns”– ruas, avenidas, parques, becos... A
sequência final onde Jean visita a periferia do Rio de Janeiro, sentado à janela de manhã após
uma noite de sexo – um ritual de passagem para ele –, observando o vai e vem das pessoas, o
cotidiano, a sutileza do viver urbano, a liberdade que é estar onde se quer estar, implica
suspender por um momento a cena que abre o filme: a casa grande como um lugar do
patriarcado, do aprisionamento, da diminuição do indivíduo, da repressão; e a periferia, como
um lugar da vivência, da expressão do indivíduo, da paixão. Não seria prudente, contudo,
associar os espaços da casa grande à casa-grande, e de periferia à senzala; as imagens sociais
desse painel histórico recorrem a outras elaborações socioeconômicas da cultura brasileira.
Por sua vez, Campo Grande apresenta um Rio de Janeiro em mudança estrutural de
sua malha urbana e da paisagem9. No filme de Sandra Kogut, duas crianças são deixadas na
porta de Regina, uma senhora de classe média que mora no centro do Rio. A história do filme
fala sobre relações afetivas em ruínas: todos aqui estão desamando, sozinhos, perdidos e
confusos. Não sabem ao certo por onde recomeçar suas histórias: os móveis da casa de Regina
estão bagunçados, assim como as ruas da cidade que estão cheias de grandes máquinas de
construção. Quase não se pode andar pelas ruas do Rio de Janeiro: é, literalmente, uma cidade
em reconstrução, em processo de mudança espacial – e, por que não, social. Boa parte das
filmagens se dão nas ruas, lembrando um pouco o cinema-direto dos filmes brasileiros de
ficção do Cinema Novo e dos anos de 1980, como O Homem que Virou Suco (João Batista de
Andrade, 1981). Campo Grande mostra personagens caminhando pela cidade, procurando uns
aos outros, puxando os braços, conversando, pedindo informações.A imagem de cidade aqui
construída é de uma metrópole que faz com que seus moradores percorram grandes trajetos:
Campo Grande, por exemplo, é uma região periférica do Rio de Janeiro e, para chegar lá,
Regina precisa criar laços com Ygor. A transformação da cidade é também, interiormente, a
mudança das personagens: o relacionamento da mãe com sua filha, dos irmãos com Regina, e
das pessoas que ajudam todos eles a encontrar um caminho.
Considerações finais
Discutimos o cinema enquanto produtor de representações simbólicas da cidade
contemporânea. Provocamos como a dimensão do urbanismo nos estudos de antropologia
prometem vislumbrar um outro olhar para o espaço urbano e para as relações sociais
8
Do termo casa grande lembremos o que Gilberto Freyre indicou como casa-grande o espaço da hierarquia social
em detrimento à senzala. Por serem locais de convívio, estes espaços quando ressignificados pelo cinema
destilam oposições subjacentes à composição social das camadas econômicas da sociedade brasileira.
9
A construção da paisagem sonora fundamenta a sensação de cidade em movimento, com seus ruídos de
máquinas, com pessoas conversando, ônibus passando. Quase não se ouve nada do que os personagens falam, e
se ouve tudo o que a cidade diz.