Julio Bressane

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Rio de Janeiro, RJ – 4 a 7/9/2015

O OLHAR MARGINAL DE JÚLIO BRESSANE versus O OLHAR DO


ESPECTADOR COMUM: construção e subversão de uma nova linguagem poética1

Ana Beatriz Buoso MARCELINO2

Universidade Estadual Paulista, Bauru, SP

Resumo

O presente estudo propõe-se a debater, analisar e argumentar ideias que visam elucidar a
linguagem marginal desenvolvida por Júlio Bressane em sua construção poética presente
em seus três primeiros longas, parte do escopo do Cinema Marginal, em anteparo ao olhar
singular do espectador comum tendo em vista os estudos sobre as influências exercidas pela
ação hegemônica do olhar, passível de alterar os processos de produção de sentido de tais
filmes. Contudo, a complexidade dos elementos narrativos e estéticos presentes em tais
obras caracterizadas principalmente pela fragmentação, tanto da narração quanto da forma,
afetam o entendimento lógico das ações trazendo à tona a ideia de uma constante postura
ativa do espectador, caracterizando a singularidade de uma nova linguagem poética
cinematográfica.

Palavras-chave

Júlio Bressane; Cinema Marginal; Cinema poesia; Recepção; Sentido.

Seja marginal, Seja herói.

Em uma das sequências de planos do filme “Matou a família e foi ao cinema”


(1969) de Júlio Bressane, o filho caminha lentamente por trás do sofá, passa a mão sobre a
cabeça do pai, puxa seu cabelo e lhe deflagra a navalha no pescoço. O pai grita curtamente.
Depois o filho sai do enquadramento e ouve-se em off um grito de horror feminino,
sugerindo a morte da mãe. Com a tomada em close up, sempre perambulando, a câmera
segue o personagem que limpa a navalha suja de sangue no braço do sofá e sai do
enquadramento, o sangue traça uma linha vertical ao escorrer lentamente pela superfície.
Toda sequência de planos aparece ao som de uma TV ligada. No plano que segue, o
personagem caminha na rua até parar, comprar um bilhete e entrar num cinema.
A descrição de tal trecho do segundo longa de Bressane apresenta ao espectador uma
forma complexa e inovadora de se fazer cinema. É possível que o olhar iniciante do

1
Trabalho apresentado no GP Cinema, XV Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento componente do
XXXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2
Mestranda em Comunicação Midiática pela UNESP, e-mail: [email protected].

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espectador da obra de Bressane possa entrar em uma espécie de catarse. Ao ver pela
primeira vez imagens que não se equivalem, fragmentos, cenários precários, a exploração
do grotesco e temas de forte apelo emocional faz com que o espectador se posicione ora
chocado ou no mínimo desconfortável, ora tentando buscar nexos prováveis, porém que
somente produzirão algum sentido a partir do olhar sobre o todo da obra. Esse fenômeno da
busca de apreensão através da estética marginal entra diretamente em conflito com o olhar
do cineasta, uma espécie de olhar anti herói – empresto aqui o conceito ideológico utilizado
também por Hélio Oiticica3.

Dessa forma, o olhar de Bressane entra em conflito com o olhar do espectador, e ao


mergulhar no universo de significações propostas por seus primeiros longas: “Cara a cara”
(1967), “Matou a família e foi ao cinema” (1969) e “O anjo nasceu” (1969), tem-se a
possibilidade de sistematizar os processos de produção de sentido presentes, que acabam
por se desdobrar em rotas variadas de significação através da análise de seus elementos
audiovisuais e narrativos, ampliando-se as possibilidades de fruição. Para tal iniciação,
entretanto, torna-se pertinente entender a complexidade contextual que abarca a época em
que tais filmes foram produzidos, assim como suas raízes precursoras.

Marginália tropical

Dentro de um cenário explosivo cultural marcado por fortes conflitos políticos e


ideológicos, a Tropicália e demais movimentos engajados, o Cinema Marginal (Ramos,
1987) aparece como uma nova vertente do cinema brasileiro moderno, considerado outra
fase do Cinema Novo, nitidamente inspirado no cinema underground americano aliando a
invenção estética ao debate político, somando-se a outras tradições como o cinema de
Mário Peixoto, Orson Welles, Godard e a Chanchada, junto à literatura de Lima Barreto e
Machado de Assis, além do cancioneiro popular dos anos 30. Tal ousadia gerou um
rompimento radical com o público, acostumado ao distanciamento do espetáculo, com o
exclusivo objetivo de provocar e promover o ato reflexivo para um espectador que tenta
juntar peças de um quebra-cabeça a princípio sem nexo.
3
Artista visual brasileiro com significativa representação no cenário artístico da segunda metade do séc. XX. Perpassando
a fase concreta, na primeira metade da década de 1960, Oiticica investiu na produção de obras com forte apelo ideológico,
unindo a Tropicália e o engajamento político à arte conceitual. Em uma de suas obras, homenageia o bandido “Cara de
Cavalo” em um estandarte serigrafado com a imagem do mesmo morto intitulado: ”Seja Marginal Seja herói”.

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A perspectiva adotada por Favaretto (2007) sobre a Tropicália nos ajuda a


compreender a complexidade do cenário cultural do qual Bressane se inspirou para eliciar
sua estética marginal. “Mais do que um movimento estético e semiológico (...) uma
extraordinária escola de filosofia aplicada” (Matos in Favaretto, 2007, nota de capa). Tal
pressuposto leva-nos a pensar no cinema marginal como uma tentativa de levantar
proposições políticas através de uma estética ideológica impregnada de nacionalismo, que a
autora fomenta à Tropicália como uma espécie de “platonismo revés”, no sentido em que
projeta a tentativa de superação da deglutição causada pela hegemonia cultural global,
como o “primeiro mundo e sua reprodução mais ou menos degradada no
subdesenvolvimento” (Matos in Favaretto, 2007, nota de orelha). Essa abordagem traz à
tona o importante papel da arte como forma de contestação de uma cultura sedentária,
elevando o banal à dignidade estética. Assim, “o tropicalismo alegoriza o nacionalismo e os
produtos da indústria cultural” (Matos in Favaretto, 2007, nota de capa), ressignificando
seus mais diversos objetos culturais, como o cinema aqui em pauta.

Nos primeiros longas de Bressane é possível se deparar com temas que vão além de
um universo estético universalizado. Sem obsessão por uma identidade cultural homogênea,
se constroem pautados pela heterogeneidade em meio ao perfil de um país marcado pela
ânsia de superação cultural, na tentativa de firmar sua identidade ao resgatar suas imagens
“hiper-reais”, no sentido em que acentua o caráter grosseiro e violento da realidade, como
uma espécie de racionalismo exacerbado.

O conflito de cenários que pintam o Brasil no período da Tropicália é bastante


visível, pois conforme coloca Tatit (in Favaretto, 2007) tratava-se de um país por um lado
“enriquecido por maniqueísmos que se infiltravam nos setores artísticos, coibindo diversas
formas de criação” (Tatit in Favaretto, 2007, p. 11), e por outro, um “Brasil democrático,
heterogêneo e avançado sobre certos aspectos (estético), mas incapaz de equacionar seus
problemas e de conciliar suas diferenças num projeto de alcance internacional” (Idem, pp.
11 e 12).

Dessa forma, o Cinema Marginal, apoiado pela Tropicália aparece como uma
espécie de fratura da hegemonia cultural imposta pela Indústria Cultural e a Cultura de
Massa. Permeado por paradoxos adota a própria contradição como afirmação de sua
identidade, caindo no campo conceitual: “É a parte paradoxal - em constante conflito com a

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melancolia, o escárnio e a corrosão - que só encontra harmonia e coerência no todo” (Tatit


in Favaretto, 2007, p. 13).

Embora fortalecida pela arte musical, a Tropicália também se traduziu na linguagem


audiovisual, ecoando procedimentos de mistura, próprios da linguagem carnavalesca,
associado à prática antropofágica oswaldiana. A exploração do kitsch4 ao cafonismo5, junto
ao psicodélico, ao pop, punk e hippie, tem-se uma bricolagem de estilemas cujos
significados evocam um caleidoscópio de sentidos por vezes vertiginosos, que Bressane não
economizou em seus primeiros longas.
Segundo Favaretto (2007) os tropicalistas assumiram ambiguidades implícitas
provocadas pelas contradições da modernização também como uma forma de confirmação
de ruptura, conforme aponta:

Quando justapõe elementos diversos da cultura, obtém uma suma cultural de caráter
antropofágico, em que contradições históricas, ideológicas e artísticas são
levantadas para sofrer uma operação desmistificadora. Esta operação, segundo a
teorização oswaldiana, efetua-se através da mistura dos elementos contraditórios -
enquadráveis basicamente nas oposições arcaico-moderno, local-universal - e que,
ao inventaria-las, as devora. Este procedimento do tropicalismo privilegia o efeito
crítico que deriva da justaposição desses elementos. (Favaretto, 2007, p. 26)

O vômito que Bressane devolve em resposta a tal processo de deglutição é


justificado pelas estratégias que ele usa para ressignificar sua obra: o sujo, o fétido, o
putrefato de suas cenas causam horror e empatia a um espectador domesticado pelo olhar
hegemônico. Tais produções, segundo o cineasta, se dirigiam a um público determinado,
seleto e intelectualizado, como estudantes, cinéfilos e artistas (Bressane, 2000). A atividade
gerida por esses grupos de intelectuais com nítida atitude maniqueísta manteve acesa a
chama da oposição entre a arte alienada e a participante, gerando uma forma de consciência
participante, um público esclarecido e politicamente avançado.
Além da nítida inspiração que a Tropicália exerceu sobre a construção poética do
cineasta, outras raízes teóricas advindas de estudos cinematográficos aliados a outras
discussões trouxeram à tona material para a construção de uma linguagem singular
legitimadora de uma auto poiésis6.

4
Longman (1995) define o termo alemão kitsch como um objeto ou estilo que, simulando uma obra de arte, é apenas
imitação de mau gosto para desfrute de um público que alimenta a indústria cultural da cultura de consumo ou cultura de
massa; atitude ou reação desse público em face de obras ou objetos com essa característica.
5
“... uma revivescência de arcaísmos brasileiros" (Favaretto, 2007, p. 23).
6
Do grego auto “próprio” e poiésis “criação”.

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Raízes precursoras: construindo uma nova linguagem poética

Em meio a tantas teorias e métodos que se arriscam por caminhos diversos para
explicar a complexidade do cinema, podemos questionar dentro da linguagem
cinematográfica marginal o conceito de estética7. Dentro desta perspectiva surgem
inúmeros questionamentos como o que seria verdadeiramente belo dentro das
representações cinematográficas? Ou o que poderia ser considerado de fato uma “obra
prima” para a arte ou repugnante para a ética? Como o olhar do espectador deve se
comportar diante das informações apresentados por um determinado filme? Como ele deve
melhor degluti-las? Entre tantas outras perguntas – não menos importantes – que poderiam
ser apontadas dentro da complexidade de um filme marginal pode-se apontar, na história do
cinema nomes de profunda relevância para possíveis elucidações.

Sergei Eisenstein (2002) em sua teoria do cinema destaca uma estética que vai além
de uma simples mimese, ampliando o olhar eurocentrista para nichos que levam desde o
rasa hindi ao kabuki japonês, que por meio da montagem altera a forma no filme,
produzindo relevantes significados e alterando percepções à luz do modernismo: “a
montagem tornou-se o axioma inquestionável sobre o qual se construiu a cultura
cinematográfica internacional”. (Eiseinstein, 1957, p. 257).

Tal predominância do olhar hegemônico sobre o cinema também é apontada por


Stam (2013) ao afirmar que

A forma dominante euroamericana de cinema não apenas herdou e propagou um


discurso colonial hegemônico, como também criou uma poderosa hegemonia por
intermédio do controle monopolístico da distribuição e da exibição
cinematográficas em grande parte da Ásia, da África e das Américas. Assim, o
cinema euro colonial mapeou a história não somente para as audiências domésticas,
mas para o mundo inteiro, de uma maneira que apresenta profundas implicações
para as teorias da espectatorialidade cinematográfica. (...) Para o espectador
europeu, portanto, a experiência cinematográfica promovia uma gratificante
sensação de pertencimento nacional e imperial, mas para o colonizado, o cinema
deflagrava uma sensação de extrema ambivalência, mesclando a identificação
provocada pela narrativa cinematográfica com um intenso ressentimento. (Stam,
2013, p. 34).

7
Vale lembrar a concepção adotada por Kant (1993), para explicar o conceito de beleza desfocada do objeto para o sujeito,
segundo juízos de valor, gosto e de conhecimento advindos do receptor da informação. Para o filósofo tais juízos são
dotados de paradoxos que dificultam a solução dos problemas estéticos que acabam por distanciar-se da objetividade, já
que os considera como pura sensação subjetiva.

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Um olhar, entretanto, ressentido e que desejava ser quebrado por um visual sujo,
áspero, e de grosso trato parece levar os planos de Bressane a uma necessidade de resgate e
superação à dependência pragmática que se instaurou na sétima arte ao longo dos anos.

Os teóricos estruturalistas soviéticos já chamavam a atenção para a importância da


montagem como geradora de sentidos. Para Lev Kuleshov “a arte cinematográfica consistia
em exercer o controle sobre os processos cognitivos e visuais do espectador por meio da
segmentação analítica de visões parciais”. (In Stam, 2013, p. 55). Para o fundador da
primeira escola de cinema do mundo, seria a montagem a responsável por organizar
fragmentos dispersos gerando sentido e sequência rítmica, distinguindo assim o cinema das
demais artes. Tais fragmentos encontrados nos filmes marginais de Bressane estão longe de
um ritmo sequencial. Aturdido com a diacronia das cenas o espectador tenta buscar
caminhos sintagmáticos para sanar o desconforto mental que fora instaurado, porém que
somente ao final da obra estarão conexos.

Contudo, está na teoria de Eisenstein, considerada altamente estilizada e


intelectualmente ambiciosa, os reflexos mais nítidos da obra bressaneana. Ecletismo,
sinestesia, antinaturalismo, dialética da forma, multiculturalismo, entre outras
características parecem descrever as próprias obras de Bressane, conforme coloca Stam
(2013):

Mais que por uma construção linear da trama, fundada sobre a causa e o efeito.
Eisenstein interessava-se por uma diegesis truncada, disjuntiva, fraturada,
interrompida por digressões e materiais extra diegéticos como os planos do pavão
mecânico de Outubro, metaforizando a vaidade do primeiro-ministro Kerensky.
Vislumbrava o potencial do cinema para estimular o pensamento e o
questionamento ideológico por meio de técnicas construtivistas. Em um lugar de
contar histórias através de imagens, o cinema eisensteiniano pensa através de
imagens, utilizando o choque entre planos para provocar, na mente do espectador,
chispas de pensamentos resultantes da dialética de preceito e conceito, ideia e
emoção.” (Stam, 2013, p. 57).

“Chispas”, um termo bastante adequado para elucidar o quanto os neurônios do


espectador da obra de Bressane deve faiscar durante o processo de fruição de sua obra,
assim como em Eisenstein, no sentido figurado, tal lampejo de ideias - em meio ao
brilhantismo de seus autores.

Todavia a obra de Eisenstein fora julgada como totalitária, asfixiante e sujeita a uma
espécie de despotismo formal. Machado (1997) chega a afirmar que a obra do cineasta

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aproxima-se mais do vídeo contemporâneo do que ao cinema. Tal característica também


poderia elucidar a obra de Bressane, justamente pelo modo como nos apresenta a forma de
seus filmes, ou uma suposta “crise da forma” (Xavier, 2001). Entretanto, Eisenstein
superaria tais críticas ao firmar a montagem em sua teoria como a chave para o domínio
estético e ideológico. Segundo o autor, “o cinema era acima de tudo transformador,
catalisando, em sua forma ideal, não a contemplação estética, mas a prática social, ao
submeter o espectador a um choque de consciência com relação aos problemas
contemporâneos.” (In Stam, 1913, p. 58). Assim também o fizera Bressane, porém,
subvertendo a própria forma, evocando a crise como solução estética, e diferentemente de
Eisenstein, que acreditava numa vanguarda experimental popular acessível às grandes
massas, dedicava seus experimentos a grupos específicos de espectadores: como amigos ou
cinéfilos.

Em Vertov (1984) a sétima arte ganha o status de tropos8, de modo a transformar a


realidade social dos sujeitos, como uma máquina catártica do pensamento, cujo principal
objetivo estaria no “deciframento comunista do mundo” (Vertov, 1984, p. 79). O autor
propôs a denúncia do cinema como veículo de encantamento “cine magia”, entorpecedor
“cine-nicotina” ou “ópio elétrico” e sacral “os altos sacerdotes do cinema”. Com tal repúdio
ao drama artístico, o cineasta tentava “uma forma cinematográfica concebida para intoxicar
o espectador e incutir noções reacionárias em seu inconsciente” (Stam, 2013, p. 62). Apesar
de todo o seu significativo escopo, o regime oficial stalinista, que pregava o “realismo
socialista” acabou atacando a obra de Vertov, como idealista, formalista e elitista.

Todavia, a teoria proposta por Vertov dotada de intensões funcionais politizadas se


anteparo à obra de Bressane, que apesar de abarcar a um período intenso de conflitos
políticos vividos durante os anos de chumbo no Brasil, postula mais o experimento artístico
ao engajamento partidário, apesar da abordagem de temas que remetem a tal cenário.

Com a posição formalista russa e a Escola de Bakhtin temos a possibilidade de


meditar sobre os aspectos formais da literalidade, por meio de dimensões expressivas e
autônomas, diferentemente da perspectiva adotada por Eisenstein, considerada pelos
formalistas como essencialmente tecnicista. Para os formalistas, “a arte intensifica a
percepção e provoca um curto circuito nas respostas automatizadas” (Stam, 1913, p. 65)

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Do grego τρόπος ou trópos, do verbo trépo, "girar". Figura de linguagem ou da retórica responsável pela mudança de
significado, seja interna (em nível do pensamento) ou externa (em nível da palavra).

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dificultando assim, a forma e esmerando como função principal da arte poética ao


rompimento rotineiro da percepção. Esse desvio de normas técnicas e estéticas, uma espécie
de “antigramática” ou “antinorma” traduz muito da obra de Bressane, cujo entendimento
espectatorial estaria, segundo os formalistas, baseado em um discurso interior – que
Vygotsky chamaria de “discurso egocêntrico”; responsável por uma espécie de
contemplação íntima e solitária, como se o espectador tivesse que se tornar surdo e mudo
para uma melhor compreensão.

A poesia proposta por Bressane nos faz mergulhar em um universo infinito de


proposições que poderiam ser instrumentalizadas por várias vertentes teóricas que tangem a
semiótica do cinema, como a tradução intersemiótica de Jakobson, a teoria semiótica da
autonomia estética de Mukarovsky, as análises morfológicas de Propp e posteriormente os
estudos em metapsicologia da espectatorialidade de Metz e a semiótica da cultura de
Lotman.

Todos esses métodos de análise propostos configuram itinerários de leitura


possíveis, mas qual deles um espectador da obra de Bressane deve adotar? Como ele deve
direcionar seu olhar? Estaria a resposta dentro do próprio filme, como nos propõe a
semiótica, ou nas particularidades do espectador? Ou ainda com mais ousadia, haveriam de
fato respostas? Ora, se pensarmos pela perspectiva da anti-arte9, talvez não. Daí levanta-se
o conceito de anti-herói, que fundamenta o caráter antropofágico do cineasta.

Para Siegfried Kracauer o cinema assumiria uma posição de engajamento social,


promotor de uma espécie de pessimismo ativista. Seu discurso marxista lança dúvidas
quanto à influência exercida pela hegemonia cultural que prevê sob a perspectiva crítica um
cinema de “abate ao gado”, precursor da antidemocracia.

Apocalíptica, dotada de ideologia, e considerada pelos pensadores contemporâneos


como ultrapassada, é curioso como ainda a Teoria Crítica pode ecoar no processo de
esclarecimento sobre a hegemonia do olhar no cinema. Stam (2013) cita Duhamel para

9
O conceito anti-arte apoia-se na ideia dadaísta da determinação do valor estético não como procedimento técnico, mas
como um puro ato mental, uma atitude diferente em relação à realidade: “Com suas intervenções inesperadas e
aparentemente gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora, com o fito de colocar o sistema em crise, voltando
para a sociedade seus próprios procedimentos ou utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor.” (Argan,
1999, p.356). O estilo inventivo e provocativo de Duchamp chamou a atenção da crítica pelo caráter enigmático de suas
obras, consideradas quebra-cabeças desafiadores a estudiosos e o grande público: “Precisa-se apenas de virar o
caleidoscópio da interpretação para descobrir que os fragmentos da vida de Duchamp e da sua obra, formaram um novo
padrão.” (Mink, 2000, p.8).

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elucidar a ideia “de que o cinema convertia o público em uma entidade bovina e passiva”
(p. 83), um legítimo “matadouro da cultura”. Para Duhamel, a massificação do cinema
estupidificara as mentes elevando a espetacularização à falsa sensação de abastamento. Tal
posição ridicularizante fez Walter Benjamin discordar, já que considerava tal postura
positivista como uma semente para a abolição da posição passiva do espectador. Para o
autor, o cinema enriquecia as percepções, além de disponibilizar acesso a um grande
contingente de público:

A distração não implicava passividade; era, em lugar disso, uma manifestação


liberatória da consciência coletiva, um sinal de que o espectador não estava
“enfeitiçado na escuridão”. Por meio da montagem, o cinema administrava efeitos
de choque instauradores de uma ruptura com as circunstâncias contemplativas do
consumo da arte burguesa. (Stam, 2013, p. 85).

Contudo, Theodor Adorno considerou as proposições de Benjamin como ingênuas.


Para ele, o cinema estava provido da crença de um poder focado na negação crítica,
produzindo espectadores como consumidores. Tanto Adorno quanto Horkheimer estavam
preocupados coma legitimação ideológica do cinema, “as massas iludidas, hoje, deixam-se
cativar pelo mito do sucesso muito mais que as próprias pessoas bem-sucedidas. Imóveis, se
obstinam na própria ideologia que as escraviza.” (In Stam, 2013, p. 88). Tal apontamento
pessimista eleva a arte difícil como uma ferramenta necessária para o aprimoramento
perceptivo e crítico legitimador da democracia.

Essa ideia de contracinema postulada pelos teóricos críticos veste efetivamente estes
objetos de análise. Os filmes de Bressane, aqui estudados, nos dão matéria-prima para a
execução do pensamento, posicionando o espectador ativamente, como participante do ato
criativo, e, pensando-se em arte contemporânea, possíveis coautores das obras. Ecos da
Teoria Crítica na obra deste cineasta apresentam-se principalmente sobre o aspecto da
subversão, sobretudo a formal, e enquanto antiarte ou antiestética, na rejeição ao conceito
clássico de beleza, em favor de uma estética de fragmentos e de restos.

Já o neorrealismo bazineano, que conceituou a liberdade para o espectador, traz à


tona a exploração ilimitada de elementos através da planificação da imagem na busca de
sentidos. O uso de planos-sequências é bastante explorado por Bressane. No entanto, por
vezes monótonos, como em um dos planos finais de “O anjo nasceu” (1969), na qual o
espectador fica cerca de 8 minutos observando o carro dos protagonistas partir de um ponto

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na estrada, até se perder de vista e depois retornar. Durante esse intervalo temporal, o
espectador posiciona-se entre a paciência e a tortura, buscando sentido, ou mesmo
distraindo-se com outros pensamentos. Esse momento que beira ao existencialismo
proposto por Bressane também pode ser elucidado pela fenomenologia de Merleau-Ponty, a
mesma que argumentou sobre a obra de Bazin, ao apontar para a riqueza da produção de
significados sobre experiência perceptiva da representação, o filme assim, torna-se mais
real do que a realidade. Para o espectador de Bressane, entretanto, tem-se algum ponto que
fica entre o olho e a navalha10.

Já a questão do autorismo traz para a obra de Bressane uma tentativa de clarificar


sua apreciação. A partir do momento que Jean-Paul Sartre e André Bazin apontam a
filosofia no cinema como uma premissa para a fenomenologia, o autorismo aparece como
solução imaginária de esclarecimento. A busca pela autenticidade, que por ora beira ao
romantismo, traz momentos de compreensão ao receptor da obra.

O paralelismo à obra de Glauber Rocha trouxe de certa forma desconforto a


Bressane (mais a ele do que ao primeiro). O cinema novo no Brasil partiu do pressuposto do
autorismo para se firmar, elegendo características revolucionárias à linguagem
cinematográfica, como a intensão nacionalista, a liberdade de execução, o racionalismo
brechtiniano11, um cinema dialético e antropofágico12. A imperfeição, a dissonância
dramática, a rebeldia e a imprecisão eram características fundamentalistas do cinema de
Glauber, que acreditava que somente através da dialética da violência seria possível se
chegar ao lirismo.

Tal vínculo paterno aos primeiros longas de Bressane são difíceis de serem
quebrados. Bernadet (1991) aponta que a partir desses filmes, Bressane se instaura como
“filho ilegítimo”, na tentativa de se libertar das influências que serviam de inspiração para a
execução de tais obras. Ao analisar os filmes, o autor aponta uma série de elementos que à
luz da psicanálise remetem à independência maioritária de Bressane a Glauber. Para
Bressane, entretanto, o autorismo aparece mais como um engajamento artístico do que a

10
Como na cena de “Matou a família e foi ao cinema” (1969) em que o personagem gesticula a lâmina sobre os olhos,
numa espécie de ritual, antes de matar os pais.
11
Berthold Brecht (2005) postulou uma forma de encenação realística, baseada na valorização de cenas do cotidiano que
investiam na crítica social e temas polêmicos, na fragmentação narrativa e na bricolagem como elementos cênicos, além
do rompimento com a quarta-parede, que inspirou a interatividade da plateia como participante do ato teatral.
12
O Manifesto Antropofágico, postulado por Oswald de Andrade, em 1928, partia do conceito de deglutição das
influências culturais existentes no Brasil, como uma tentativa de buscar a identidade nacional.

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ambição de superar tal hegemonia consolidada no cinema, daí uma possível justificativa
para a negação de sua “paternidade”. Bernadet (1991), entretanto, comenta sobre tal atitude,
apontando as influências como indissociáveis do processo criativo do cineasta:

Esses novos cineastas tinham uma herança cinematográfica inelutável na sua


própria sociedade (...). Não que esses cineastas não tenham criado um cinema tão
inovador, tão poderoso quanto o Cinema Novo, não que Júlio Bressane seja um
realizador ou autor criador secundário em relação a Glauber Rocha, longe disso. É
que os cineastas que começaram nos anos 70, por mais que tivessem logo atrás
deles esse vigoroso movimento deslanchado por Ozualdo Candeias, Bressane,
Sganzerla e outros, não tinham uma herança única. (Bernadet, 1991, p. 21)

Todavia, é inegável que tanto o cinema novo com o marginal se instauram com
força autoral, na tentativa de romper com a estética hegemônica, em prol de uma estética da
fome e do lixo, antipopular e descontínua.

O chamado estruturalismo-autoral, vertente teórica que surgiu na década de 1960,


colocou o autor como um construtor crítico, “uma lâmpada expressiva” a “um espelho
reflexivo” (Stam, 2013). Tanto o estruturalismo quanto as vertentes semióticas,
representadas por teóricos se esforçaram para destacar a importância da linguagem para o
desenvolvimento do pensamento humano, como Peirce, Saussure, Greimas, Heidegger,
Bakhtin, Merleau-Ponty e Derrida, elevaram a posição do autorismo à de artista, vista que
todo filme deveria ser concebido como uma obra de arte. Nesse ponto de vista temos
Bressane como um legítimo artista (ou antiartista) e tais filmes como legítimas obras de
arte. Sendo assim seus espectadores são automaticamente transmutados a fruidores,
mergulhando no complexo universo de significação da arte, daí, seria ingenuidade buscar
uma única resposta correta, vista que os processos subjetivos não devem ser desprezados.

Em meio ao “pânico ideológico” instaurado pelos esquerdistas, na época, o cinema


acabou sendo compreendido como um dispositivo de maneira não dialética e isento de
contradições. Dessa forma, por cair na alçada da ideologia e da subjetividade, tais
pressupostos acabaram se enfraquecendo, conforme elucida Stam (2013):

... a teoria do dispositivo dotava o mecanismo cinematográfico de uma


intencionalidade abstrata e malévola, incidindo em uma espécie de condenação
neoplatônica da manipulação emocional. Mas os espectadores da vida real não

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foram jamais os iludidos patéticos e os prisioneiros cativos de uma versão high-tech


da caverna de Platão, tal como decretado pelos teóricos do dispositivo. (p. 161) 13

Os filmes de Bressane, entretanto, estão longe de um espectador passivo. Dos


estudos de Bertold Brecht podemos destacar as principais raízes precursoras da construção
de sua obra, conforme aponta Stam (2013), como a rejeição ao voyeurismo, o “vir a ser” ao
“ser”, a rejeição ao óbvio, a negação ao entretenimento, a crítica à empatia e ao phatos14, a
superação de uma estética totalizante, a contradição, a imanência do sentido, a crítica, o
realismo, ou o estranhamento. Já com Jean-Luc Godard, temos a concepção de
contracinema, a intransitividade, a opacidade, a diegesis múltipla, a abertura intertextual, e
o desprazer como características intrínsecas à obra de Bressane.

O perfil hedonista que marca o olhar (hegemônico) do espectador entra em conflito


com a marginalidade desses filmes, capazes de promover outro tipo de prazer – um tanto
sádico, o de conhecer. Metz (In Stam, 2013) argumenta que “as satisfações tradicionais são
substituídas pelos prazeres do domínio intelectual, por um sadismo do conhecimento” (p.
173). Esse processo de mediação ao conhecimento faz com que tais filmes de Bressane
possam cair no seio da educação (ou deseducação), na medida em que trazem à tona
situações para análise, que por seu caráter contraditório e conflituoso, poderiam provocar
debates frutíferos. Tal caráter reflexivo afirma a arte como um meio transparente de
comunicação, um caleidoscópio de possibilidades.

Edgar Morin (2013) argumenta sobre a atividade espectatorial, enfatizando sua


capacidade de receber, pensar e agir sobre as informações apresentadas por um filme.
Segundo o autor, “o espectador não assiste simplesmente, a um filme, mas vive-o com uma

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O Mito da Caverna trata de uma alegoria que explica como, através do conhecimento, é possível se captar a existência
do mundo sensível (conhecido através dos sentidos) e do mundo inteligível (conhecido somente através da razão). O mito
aborda sobre as representações de sombras de estátuas projetadas nas paredes de uma caverna por uma fogueira vistas por
prisioneiros acorrentados desde o nascimento. Os simulacros da realidade impressos pelas imagens com temática cotidiana
instigam a interpretação de tais indivíduos que analisam e julgam tais situações. Uma suposta fuga faria com que o sujeito
entrasse em contato com a realidade e então descobriria a farsa. Ao voltar à caverna, ávido em relatar seu novo
conhecimento adquirido, seria questionado já que os demais prisioneiros somente teriam como modelo de realidade a
crença absorvida por seus sentidos. Platão (2002) nos concebe a ideia de que os seres humanos têm uma visão distorcida
da realidade, e que segundo o mito, os prisioneiros na realidade poderíamos ser nós mesmos, já que enxergamos e
acreditamos apenas em imagens criadas pela cultura, conceitos e informações que recebemos durante a vida. A caverna
simbolizaria o mundo, pois nos apresenta imagens que não representam a realidade. Só sendo possível conhecer a
realidade, quando nos libertamos destas influências culturais e sociais, ou seja, quando saímos da caverna.

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Dos estudos de Aristóteles, Ethos, Pathos e Logos; Pathos se refere à sensibilidade do auditório (aquele que recebe a
informação), a variável em função das características do mesmo. A ideia é que o orador deve selecionar as estratégias
adequadas para provocar em seu receptor as emoções e as paixões necessárias para suscitar sua adesão e assim, induzi-lo a
mudar de atitude e comportamento. Para tanto é necessário que o orador use de argumentos racionais sem deixar de usar o
seu carisma e a sua habilidade oratória. (Aristóteles, 2006)

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intensidade neurótica, como uma forma de regressão socialmente aprovada” (In Stam,
2013, p. 182). Essa vertente de pensamento levou os psico-semioticistas adotarem uma
postura de investigação da receptividade pela forma como os sujeitos se constituem
intelectualmente. Resgatando as ideias de Freud e Lacan, houve uma tentativa de se
explicar as reações comportamentais dos espectadores, conforme as dimensões
egocêntricas, do desejo, do voyeurismo, da identificação, do fetichismo, do narcisismo e
outras subjetividades. Para os filmes de Bressane, Bernadet (1991) adota esta linha de
pensamento com o intuito de justificar através de uma análise detalhada dos elementos
presentes na constituição dos filmes, o resgate de múltiplos significados, como o da
“desfiliação paterna” em relação a Glauber Rocha, até o nascimento de uma nova
linguagem, como em “O anjo nasceu” (1969). Assim, Bressane nos dá outras possibilidades
de olhar sobre novas perspectivas, com base num movimento de liberdade de pensamento,
como uma espécie de espectador interativo e coautor do sentido de sua obra.
Dessa forma, os olhares do cineasta e do espectador adentram um território
conflituoso e transformador de significados exponenciais. Nem sempre o que um artista
materializou de seu pensar é o que se contempla ou vice-versa. O processo de fruição
artístico é em demasia complexo por sua natureza, de caráter imprevisível, multidirecional,
dinâmico e auto transformável. Pensar um objeto artístico, entretanto, significa traçar um
itinerário libertador e independente, marcado por impressões arbitrárias de livre pensar.
Esse caráter “interminável”, de seguir percursos imprevistos e conclusões inusitadas, como
se o espectador não obtivesse o controle, permite a ampliação de possibilidades e um
enriquecimento da compreensão, com crescente proporção do entendimento, um
pensamento que infla em anteparo à burocracia do saber permeada por paradigmas fixos e
regras ortodoxas, como um caleidoscópio de ideias sensíveis e inteligíveis.

Considerações finais

O impulso emergente de artista experimental de Júlio Bressane questiona a própria


forma de fazer cinema, um suposto cinema de invenção (Ferreira, 2000), acentuado pelo
ajuste formal e o tratamento dado às cenas que indica ao telespectador o avesso de soluções,
prejudicando um entendimento linear das ações, multidirecionando caminhos de leitura e
apreciação, um estilo marcado pela heterogeneidade e disjunção (Xavier, 2012), uma
espécie de olhar corrosivo que percorre livremente os espaços e cria seu próprio interesse.

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Assim, esta dialética de fragmentação intenciona a suspeita de uma possível crise formal,
pois o olhar da câmera de Bressane é como uma máquina que tudo observa a seu próprio
tempo, uma câmera que está longe de ser “tranquila”. Suas imagens trazem uma dimensão
polêmica, intertextual, na recusa de envolvimento sob uma imobilidade que pode ser
considerada dialógica.
A liberdade da câmera de Bressane traz à tona uma diegese, enunciadora de um
espaço off de reflexão independente das ações, com um olhar amplificador enriquecido pela
disjunção. A parataxe aparece como elemento crucial para a diacronia das cenas. Sem
encadeamentos ou subordinações, as séries são descontínuas e nem sempre olhar e objeto se
encontram. Sendo assim, cada sequência é um recomeço através da liberdade do olhar a
princípio sugerindo ser arbitrário, mas que no conjunto da obra produzirá sentido. Dessa
forma, o fluxo de estímulo das ações é desencadeado fazendo com que o espectador tome
uma suposta postura de decifrador da mensagem.
Contudo, a condição do cineasta como um representante social imaginário torna
ainda mais aguda esta discussão em vista dos desafios do cinema na contemporaneidade,
assim, entender suas origens torna-se de suma importância que indubitavelmente são
cruciais a compreensão de sua complexidade.
Os apontamentos e reflexões aqui apresentados problematizam como o olhar
marginal de Júlio Bressane pode ser absorvido por um público cujo olhar é marcado pela
hegemonia, e como uma possível crise formal e narrativa são passíveis de intervir na
fruição desses filmes, alterando a produção de sentido e desafiando o entendimento lógico
do espectador, libertando ou aprisionando-o. A obra de Bressane, entretanto, parece se
assemelhar a um caleidoscópio, quantificando um exponencial semântico ao espectador,
investindo em sua elaboração perceptiva, crítica, sensível e inteligível.

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