As Várias Faces Da Feiticeira: Uma Análise Mítica Da Bruxa Na Peça Macbeth Escrita Por Shakespeare E Na Adaptação Fílmica de Welles
As Várias Faces Da Feiticeira: Uma Análise Mítica Da Bruxa Na Peça Macbeth Escrita Por Shakespeare E Na Adaptação Fílmica de Welles
As Várias Faces Da Feiticeira: Uma Análise Mítica Da Bruxa Na Peça Macbeth Escrita Por Shakespeare E Na Adaptação Fílmica de Welles
RESUMO: A narrativa é uma das formas mais comuns e antigas de entender o mundo, a história
tem permeado a humanidade desde tempos imemoriais e auxiliado o ser humano a compreender a
si mesmo. Isto posto, este trabalho objetiva analisar os componentes míticos das bruxas de uma
das narrativas mais consagradas, Macbeth. Para tal, utilizar-se-á da peça escrita de Shakespeare
(1623) e da adaptação fílmica de Welles (1963), ambas responsáveis por popularizar a história do
rei. A escolha dar-se por perceber a relação simbiótica entre literatura e cinema, relação que
perpassa o questionamento de como as bruxas são representadas em cada narrativa. Este trabalho
conta com as contribuições de Bazin(1991), Bulfinch(2002), Carrière (2006) e Prieto (2003) e busca,
através dos teóricos que versão sobre as relações entre a literatura e o cinema ou sobre o mito,
demonstrar como a mitologia corrobora com uma leitura mais completa sobre o componente
divino presente em ambas as narrativas. Esta proposta justifica-se por contribuir com os estudos
acerca das relações do cinema e da literatura, os quais têm se destacado nas últimas décadas, tornado
disponíveis novas ferramentas para a análise da arte nos dois ambientes, além de refletir sobre o
mito e a figura da bruxa representada em ambas plataformas.
As relações entre cinema, literatura e teatro sempre foram muito tênues, pois as três são
construídas com o objetivo de contar histórias ou retratar a história. O trabalho de adaptação é o
ponto de encontro entre as referidas áreas. Contudo, tal característica não é apenas marca das
referidas artes, mas do processo que envolve a narrativa, como é o caso das bruxas criadas por
Shakespeare na obra Macbeth, que se relacionam sobremaneira com uma forma ancestral de narrar
a história, a mitologia.
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mitológicas, buscando refletir sobre os significados das obras shakespeariana e wellesiana. Tal
escolha se dá por serem ambas as obras que popularizam a história do rei escocês idealizada
primeiramente por William Shakespeare, cada uma em seu meio artístico.
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Travessias, Cascavel, v. 11, n.3, p. 100 – 112, set/dez. 2017.
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As várias faces da feiticeira: uma análise mítica da bruxa na peça Macbeth escrita por Shakespeare e na
adaptação fílmica de Welles | Ânderson Martins Pereira; Ariane Avila Neto de Farias
Para principiar esta discussão é necessário discorrer sobre a relação das artes aqui analisadas,
literatura e cinema. Segundo Andre Bazin (1991), o cinema, conhecido como a sétima arte, nasce
de uma nova forma de linguagem e edição de imagens, até tornar-se palco à arte. Desde o cinema
mudo até o advento do som, ele foi alvo de críticas e rechaças por muitos que temiam a perca do
espaço do teatro ou da literatura. Entretanto, até os dias de hoje, isso parece não ter acontecido,
mesmo que este discurso ainda vigore.
Ainda sobre a dicotomia literatura e cinema na atualidade, não se pode dizer que é uma
relação de todo harmônica. Muitos “defensores” da primeira entendem que as versões
cinematográficas de diferentes obras se apresentam como “cópias” malfeitas ou malsucedidas da
arte maior, que teria sua perfeição no texto escrito.
Neste sentido, temos ainda um fator que conecta o cinema as demais artes fazendo com
que a comparação pareça inevitável; ele se popularizou ao adaptar narrativas advindas de outras
formas de arte. Contudo, o cinema não se prestou a uma mera transposição de plataformas, mas
brincou com seus significados, não apenas criando, mas construindo e descontruindo o já
estabelecido. Sobre tais noções Jean-Claude Carrière afirma,
Como é possível observar na citação acima, o cinema se estabelece e cria sua singularidade
de linguagem e de arte, tecendo conexões com as demais áreas; esta relação, porém, não é
meramente imitativa senão, criativa. A sétima arte não era literatura, nem representava como o
teatro. Muitos recursos de câmera, planos, ângulos e efeitos foram atribuindo a ele novos
significados. Os diferentes mecanismos de criação e de entendimento da linguagem
cinematográfica foram processos que se deram em conjunto, entre obra e expectador. As inovações
caminharam em uma direção de concepção de uma linguagem e, como prova de sua legitimidade,
tal linguagem assume um caráter mutável. Carrière pontua que
O cinema nasceu silencioso e continua a amar o silêncio. Mas também pode amar
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A partir do exposto, pode-se observar que a linguagem do cinema tem seus significados
próprios. É assim, que efeitos sonoros, de transições e de imagem se concatenam, colaborando na
formação da leitura do expectador acerca da obra a qual foi exposto. É preciso ter em mente que
a linguagem do cinema é outra linguagem, que não a literária, que não a peça teatral.
Deve-se lembrar, porém, que a arte cinematográfica sempre foi considerada menor. Os
critérios para esta diminuição começam pelo fato de que inovações tecnológicas como a fotografia
e o cinema não eram considerados veículos para arte, pois esses meios podiam reproduzir inúmeras
cópias, descaracterizando, assim, a essência do objeto que era imbuído desta “alma de arte”.
À mais perfeita reprodução sempre falta alguma coisa: o hic et nunc da obra de
arte, a unicidade de sua presença no próprio local onde ela se encontra. Não
obstante, é a esta presença única, e somente a ela, que se encontra ligada toda sua
história. Falando de história, pensamos tanto nas alterações materiais que ela
tenha sofrido quanto na sucessão de seus possuidores. A marca das alterações
materiais só é obtida por análises físico-químicas, impossíveis em uma
reprodução; para determinar as mãos sucessivas pelas quais a obra de arte passou,
é preciso seguir toda uma tradição a partir do próprio local em que a obra foi
criada. (BENJAMIM, 2000, p. 224)
Na fala de Walter Benjamim em seu conhecido texto, “A obra de arte na época de sua
reprodutibilidade técnica”, é possível observar uma visão de arte que tinha por requisito a
unicidade, algo avesso a reprodutibilidade do cinema. Tinha-se o cinema como não arte, como
massificação de algo mais acessível. Ainda que a reprodução em massa e o conceito de arte tenham
conseguido coexistir na contemporaneidade e que, de certa forma, o discurso de Benjamim pareça
avesso ao olhar contemporâneo, no que tange a essência da arte, a ideia de materialidade e unicidade
fez parte do senso comum e não se pode afirmar que tenha desaparecido totalmente. Para alguns,
o cinema mesmo fortalecendo sua linguagem e criando outros significados, nunca esteve à altura
da literatura. A adaptação cinematográfica foi muito considerada produto feito para a cultura de
massa, pois, de valor duvidoso.
Se hoje essa alma única incopiável e indivisível da qual Beijamim(2000) nos fala já não tem
mais tanta relevância, por que o medo de que o cinema tome o lugar de outras formas de arte ainda
persiste? Atualmente, narrativas audiovisuais são muito populares e têm estado cada vez mais
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presente na vida das pessoas, tomando não só as salas com projetores, como estando nos
televisores, computadores e vários eletrônicos portáteis. Seja por facilidade no consumo ou por
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demanda a partir do gosto popular, o acesso a filmes tem sido cada vez mais democrático.
No que tange a adaptação, o cinema não pode ter compromisso de fidelidade, pois se
apropria das narrativas. No momento em que o cinema se limita à lealdade ao texto de origem, ele
descredita-se como criação e, em consequência, como produtor de arte, como bem salientado na
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passagem a seguir: “O que provavelmente nos engana no cinema, é que, ao contrário do que ocorre
geralmente num ciclo evolutivo artístico, a adaptação, o empréstimo, a imitação não parecem situar-
se na origem.”(BAZIN, 1991, p. 85).
Como bem-posto por Andre Bazin, adaptação não está em ordem de subserviência ou tem
um valor artístico menos que o texto de origem; há que se observar, contudo, que o cinema é fonte
de inspiração para outras formas de arte. Nas palavras do autor:
Muitas adaptações prestam um serviço para a literatura assim como esta presta ao cinema,
muitos expectadores após ver um filme são levados a ler a obra original, trazendo um ganho à
literatura. Além disso, como já demonstrado, o processo de adaptação não é unilateral e muitos
livros vêm tomando textos cinematográficos como base para sua produção. A inspiração que o
cinema dá a literatura não se limita às narrativas, mas às questões de forma, já que é, a partir do
cinema, que os capítulos na literatura se tornam mais curtos e que fluxos de consciência, que se
intercalam com a história de maneira mais abrupta, passam a existir em romances.
Posta a legitimidade do cinema enquanto veículo a ser analisado em conjunto com a
literatura, dar-se-á vasão à análise. As obras aqui estudadas são: A tragédia de Macbeth, uma das
principais peças de Shakespeare, publicada em 1623, e o filme Macbeth, dirigido por Orson Welles
em 1936. Orson Welles é um importante cineasta de sua época, entre seus filmes está o famigerado
Citzen Kane (1941) e o próprio Macbeth, aqui analisado.
Ambas as obras aqui examinadas são devedoras da performance teatral organizada por
Shakespeare e performada por volta de 1606, segundo o biografo Claude Mourthé (2010). A peça
inspira-se na história de Macbeth, rei da Escócia, mas diferencia-se muito dos fatos reais ditados
pela história, enquanto disciplina. É neste afastamento da realidade e da aproximação da história
mitológica, que analisar-se-á a presença das bruxas em ambas as histórias de Macbeth.
Ainda sobre Shakespeare, segundo Mourthé (2010), sabe-se que o seu nome o precede não
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apenas por ser um dos principais autores da língua inglesa, mas por seus textos terem ativamente
transformado o idioma, já que o autor inventou cerca de mil e setecentas palavras, muitas delas
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incorporadas à língua e utilizadas até hoje. Shakespeare também legitima o inglês na escrita,
oferecendo em seus textos a memória viva do inglês e de suas possibilidades no século XVI.
Isto posto, elencar-se-á atributos e correspondências para as personagens Hécate e as três
bruxas. Para tanto, buscaremos primeiramente trazer um aporte sobre a mitologia grega que é a
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mais próxima da obra, já que o texto faz menção a Hécate, deusa da morte e da vida, que foi
adotada por esta mitologia, mas que emerge em um período mais antigo do que a mitologia grega
clássica.
As bruxas de Macbeth, na narrativa de Shakespeare, personificam muito do senso comum,
malvadas e adeptas à feitiçaria para brincar com o destino dos homens, dentre elas há a figura de
Hécate. A deusa pode ser encarada como uma aparição secundária, visto que só têm uma fala breve.
Seu único atributo na peça é ser a senhora das bruxas, correspondência essa que se popularizou,
pois a Deusa é até hoje cultuada com esse título.
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Como é possível observar, a apresentação das três bruxas como seres sobrenaturais e
mágicos é feita pelo autor, porém não é possível ao leitor afirmar que sejam personagens de índole
negativa. O que é possível observar é o interesse das bruxas de contar a Macbeth seu destino e
posteriormente saber-se-á que conhecimento dele de sua fortuna é parte essencial para a sua
realização.
Já na representação fílmica de Orson Welles, o imaginário da bruxa como um ser atroz se
intensifica. A obra começa de forma similar à de Shakespeare em um plano aberto, no qual podem
se ver trovões e três figuras assustadoras; as semelhanças da apresentação, contudo, se esvanecem
no próximo posicionamento de câmera. Há um close, um enquadramento destinado a mostrar
detalhes, de um caldeirão, apresentando o elemento magia que será importante para a obra de
Welles. As falas iniciais das personagens vão aparecendo na medida em que há progressivamente a
abertura do plano - zoom out – a qual se dá a partir do caldeirão. As bruxas não mostram seus rostos,
mas é possível ouvir suas vozes e saber que estão entoando feitiços. Como pode ser visto pela
transcrição do script, colocado aqui na autoria do diretor de diálogos William Alland.
seja um personagem. A deusa é uma divindade tríplice, número que a liga ao destino personificado
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em suas três formas: jovem, mãe e anciã. Além disso, segundo Claudiney Prieto (2003), o número
1 Do original: “Double, double, toil and trouble/Fire burn and cauldron bubble./ Pour in sow's blood/ that hath
eaten her nine farrow;/grease that's sweaten from the muderer's gibbet/ throw into the flame;/ finger of birth-strangled
babe,/(…) Make the gruel thick and slab,/ like a hell-broth boil and bubble,/ for a charm of powerful
trouble.”(ALLAND, 2017 [1963], online)
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três faz alusão a outros seres mitológicos que tangenciam a questão do destino. Pode-se comparar
as bruxas às Fúrias ou Erineas, na mitologia grega, que são também três: Trisífone, Alecto e Megera.
Dessa maneira, o primeiro dado que pode ser levado em consideração é a subserviência das
bruxas para com Hécate. Para Thomas Bulfinch(2002), Hécate já foi uma Fúria e foi ganhando
importância nos cultos gregos até tornar-se uma deusa. Comparando as bruxas de Macbeth com
Fúrias, aproxima-se das personagens a função de castigar os culpados principalmente os assassinos.
Tal objetivo é possível, pois em ambas as obras o protagonista é marcado pela culpa em virtude
dos vários crimes que comete, quando mata Duncan, por exemplo.
Relacionar as bruxas com as Fúrias é possível não apenas nas narrativas aqui analisadas,
mas também na relação de Hécate com essas deidades na mitologia. Neste âmbito, é interessante
notar que o anúncio da presença das Fúrias era dado pelo latido de cadelas indo ao encontro da
figura de Hécate, que é fortemente associada aos cães e ao seu uivo, fator que contribui para a
comparação das bruxas com as Fúrias gregas. Além disso, ambas são consideradas por Bulfinch
(2002) mais antigas que os deuses do Olimpo. Contudo, é difícil fazer uma correspondência de
perseguição das deidades ao protagonista Macbeth, pois os assassinatos cometidos por ele ainda
não haviam ocorrido. Assim, a existência da perseguição ao assassino não poderia ser feita, visto
que as Erineas não tinham ligação com o destino e não julgavam os criminosos previamente.
Não é explicitado na obra escrita ou na fílmica, o porquê da escolha de Macbeth para ser
rei, pode-se inferir que ele tinha internamente as características necessárias para “o desenrolar” da
trama, mas é da compreensão do leitor que quem tem o poder sobre o seu destino são as bruxas.
Elas moldam ativamente o destino do protagonista por meio de feitiços que se utilizam de rimas e
componentes relacionados à crença popular (crença essa incentivada principalmente pela igreja no
período de apresentação da peça).
A passagem acima aparece somente na narrativa de Shakespeare, na qual uma das bruxas
se gaba por enfeitiçar um marinheiro que a havia destratado. Essa é uma aparição que une a
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associação das bruxas como Fúrias gregas e, pois, fazedoras da justiça, mas também associadas ao
destino, já que se utilizam de feitiços para moldar ativamente o futuro dos personagens.
A correspondência das feiticeiras com o destino se dá ao compará-las com as
Parcas(mitologia grega), deidades em número de três, que cuidavam da tapeçaria do destino ou
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ainda pelas Nornes (mitologia nórdica) - Urd (Destino), Verdaniki (necessidade) e Skuld
(Existência), porém em ambos os casos o que falta nessas deidades é a agressividade e violência
das Fúrias, já que tanto as Parcas como as Nornes são responsáveis por manter a ordem universal.
Além disso, é interessante pontuar que elas não visitavam o mundo dos humanos, como é o caso
das bruxas nas narrativas aqui exploradas.
O dom das feiticeiras de Macbeth de poder ver o futuro também tem relação com as Parcas
e as Nornes. Essa característica, segundo Prieto (2003), aparece em um dos mitos das Parcas, o
qual atribui o domínio de cada Parca a um tempo: o passado, o presente e o futuro. Porém, as
deidades possuiriam um único olho divido entre as três, ou seja, para que as visões não se
misturassem cada uma falaria sobre seu tempo, quando estivesse de posse do olho, para que assim
pudessem tecer a tapeçaria do destino. As falas delas se complementam na mesma direção em que
passado, presente e futuro se integram para formar a história.
A passagem acima é retira do texto da peça, mas é mantida na integra no filme de Welles.
Pode-se observar que, em ambas as narrativas, ainda que em número de três, as falas das bruxas de
Macbeth complementam uma outra, como se fossem a fala de um único ser. Isto corrobora com a
associação das bruxas a entidades como as Parcas que são vistas e interpretadas apenas em
conjunto, pois existem em uma relação de simbiose uma com a outra a ponto de não haver uma
separação. Pode-se ler o nome das personagens de Shakespeare como índice de tal fato, já que elas
não recebem um nome próprio que as assegure da sua subjetividade, mas são apenas numeradas.
No filme de Welles, nem mesmo números recebem, apenas falam e a câmera demonstra quando a
fala se intercala de uma para a outra, mas não há necessidade de nomes.
Assim, para melhor analisar as características das três bruxas pode-se cogitar a fusão das
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características dos dois grupos de deidades supracitados, ou seja, pode-se fundir o caráter
perseguidor das Fúrias, cuja aparência era amedrontadora, com o caráter de senhoras do destino
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significação mágica muito forte, são notadamente seres imersos numa aura de mistério. Welles se
utiliza de elementos da bruxaria como o caldeirão, o vodu e o cetro com o triângulo, para simbolizar
o feminino - análise de símbolos com base em Prieto (2003).
Figura 1 – Bruxas no Filme Macbeth
Como é possível observar na foto acima, mesmo sem mostrarem o rosto diretamente
à câmera, a voz e a imagem das bruxas sugere que têm idade avançada e as mãos decrepitas sugerem
que o rosto se encontra no mesmo estado; são, pois, personagens atrozes. A essa representação
horrenda podemos atribuir a uma das faces de Baba Yaga, deusa eslovena, que possui tanto o
domínio da morte e da vida como a proximidade física com as bruxas de Welles, pois Baba Yaga é
velha, feia e muitos a consideram malvada, a ela foi atribuído na Rússia a crença de comer
criancinhas. Os mitos de Baba Yaga ajudaram a criar a imagem da bruxa malvada como
conhecemos hoje. O mitólogo Joseph Campbell (2003), por exemplo, a considera como possível
fonte para fábulas como “João e Maria” e que tais narrativas formataram sobremaneira a ideia
moderna da bruxa, a qual pode-se vincular, dentre outros, ao cinema.
Por fim, é interessante perceber como a inclusão do mito em ambas as narrativas oferece
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uma possível leitura do texto Macbeth. Para tal, voltar-se-á mais uma vez à Hécate. Uma das
possíveis significações do nome da deusa é “Ela que trabalha seu desejo” (PRIETO, 2003, p. 147),
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nessa questão podemos atribuir um grande significado para presença dela na peça, já que toda obra
gira em torno do desejo de Macbeth de ser Rei. Hécate, assim, seria aquela que teria o poder de
realizar os desejos, efetivamente realizando a aspiração de Macbeth através dos serviços de suas
servas.
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A partir da leitura de Hécate como a que “trabalha teu desejo” (ibidem), ex-furia e senhora
das bruxas, pode-se perceber a trama de Macbeth enquanto prova da inabilidade do homem frente
ao desejo irrefutável dos deuses. Assim, ter-se-ia Hécate, a deusa que concede os desejos aos
mortais e que se utilizaria de suas servas para cumprir os intentos de Macbeth, mas que acaba por
revoga-los, já que Macbeth transformar-se em assassino. Isto traria à deusa sua face obscura, afinal
é em virtude de seus assassinatos que Macbeth perde a cora. O rei mata primeiro Banquo, o que
leva o filho dele, possível sucessor, a exilar-se na companhia dos inimigos. Depois, mata os filhos
e a esposa de Macduff, e esses fatos acabam por incitar a ira de seu futuro assassino.
Ainda que Hécate não esteja personificada no filme de Welles, ela é referida exatamente na
passagem da morte do personagem Banquo, onde sua esposa proclama:
Ainda seja jucundo/ Antes que o morcego voasse seu claustro voaria,
Antes de pregar a convocação de Hécate/ O escaravelho/ Com seus zumbidos
sonolentos, o peito de bocejo da noite,/ Haverá uma ação de nota terrível.
(ALLAND, 2017, online; tradução nossa)2
Na passagem acima, pode-se observar que a viúva de Banquo remete-se a Hécate como
elemento de destino e de vingança. A personagem coloca as ações que se seguirão como inevitáveis,
visto que seu amado esposo fora assassinado. Na fala da personagem, o futuro, corporificado pela
deusa, é maleável pelas ações do presente, mas decidido pela deidade de maneira inescapável.
A passagem acima, retirada do filme de Welles, está em voice over, ou seja, não é falada
diretamente por nenhum personagem e demostra, além das correspondências da deusa já
mencionada, como os acontecidos durante a trama de Macbeth estão sobre o jugo da deusa Hécate.
A relação do canino com a deusa já fora observada, porém na passagem acima existe uma uma
inversão já que é o lobo que a espera, sendo a deusa sua sentinela. Pode-se inferir, com tal excerto
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que a deusa não lhe falhará, ideia reafirmada pela presença do relógio combinado aos uivos do
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2 Do original: “Yet be thou jocund:/ ere the bat hath flown his cloister'd flight,/ere to black Hecate's summons/ the
shard-borne beetle/ with his drowsy hums hath rung night's yawning peal,/ there shall be done a deed of dreadful
note. (ALLAND, 2017, online)
3 Do original: “Now o'er the one halfworld nature seems dead,/ and wicked dreams abuse the curtain'd _leep./
witchcraft celebrates pale Hecate's offerings,/ and wither'd murder, / Alarum'd by his sentinel, the wolf,/ whose howl's
his watch, / thus with his stealthy pace.” (ALLAND, 2017, online)
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lobo, o que aproxima a noção de tempo e a de natureza, mostrando que o tempo está a serviço da
ordem natural atribuída à deidade.
A partir do exposto, pode-se observar que o elemento religioso é de suma importante para
ambas as leituras de Macbeth, sejam elas a peça escrita por Shakespeare ou o filme de George
Welles. Sobre este prisma, é possível atribuir elementos de Deidades de diversos panteões e
características mitológicas para que melhor se possa lidar com o texto no que tange ao componente
divino em ambas as narrativas. Tal ideal, pode ser elaborado tanto para as bruxas quanto para a
própria Hécate, a qual já é uma deidade, porque o que diferencia os deuses ou suas diferentes faces
são arquétipos, representações de sentimentos que estão dentro de cada ser humano. A criação dos
deuses, segundo Campbell (1991), reflete em muito o humano que os cria, assim lidar com estes
elementos presentes nas figuras mágicas das obras aqui eleitas é congênere, pois a relação entre
destino e justiça divina é central para as histórias.
Em qualquer um dos textos, seja no livro ou no filme, pode-se idealizar as bruxas a
partir dos dogmas da igreja católica, dogmas estes que também demonizaram Hécate. A obra é
contemporânea da inquisição, porém, mesmo que as representações sejam aparentemente feitas a
partir do viés católico, as personagens vêm do universo mítico e é preciso observar com estes textos
mitológicos ganham uma nova roupagem.
A magia, nas duas obras, não só se entrelaça, mas se compara ao destino, já que ambos
são desconhecidos para o homem. A aura de mistério nas personagens míticas não se cria tomando
por pressuposto a magia, mas corporifica a incerteza e a estranheza do destino, bem como o medo
humano de seu (des)conhecimento. Pode-se dizer que narrativas como estas aqui abordadas
atrelam-se não somente a história que desejam contar, mas também ao uma das relações mais
intimas do ser humano que é a relação com o futuro.
REFERÊNCIAS
ALLAND, Willian. “Vodoo Macbeth Script”. 1963. Disponível em: < http://www.script-o-
rama.com/movie_scripts/m/macbeth-script-transcript-orson-welles.html>. Acesso em:
20/07/17.
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BAZIN, Andre. O cinema: ensaios. Tradução de Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense,
1991.
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BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. In: ADORNO
et al. Teoria da Cultura de massa. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Paz e Terra,
2000. p. 221-254.
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CAMPBELL, Joseph. The power of the myth. Nova York: Anchor Books, 1991.
MACBETH (Tit. Origin. ,Macbeth) Direção: Orson Weles; Roteiro Original: Orson Weles,
Estúdio Pesquisar, película, duração: 115 min. U.S.A. 1963.
MOURTHÉ, Claude. Shakespeare. Tradução de Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2010.
PRIETO, Claudiney. Todas as Deusas do mundo. São Paulo: Editora Gaya, 2003.
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Title
The many faces of the witch: a mythical analysis of the sorceress on the Macbeth play written by Shakespeare
and on the cinematographic adaptation by Welles.
Abstract
The narrative is one of the most common and ancient ways of understanding the world, the history has
pervaded humanity since immemorial times and helped the human being to understand itself. This paper
aims to analyze the witches’ mythical components of one the most consecrated narratives, Macbeth. For
that, it will be analyzed the written play of Shakespeare (1623) and of the film adaptation of Welles (1963),
both responsible for popularizing the story of the king. The choice is made to perceive the symbiotic
relationship between literature and cinema, a relation that permeates the questioning of how witches are
represented in each narrative. This work counts on the contributions of Bazin (1991), Bulfinch (2002),
Carrière (2006) and Prieto (2003) and search, from the theorists who speak about the relations between
literature and cinema or about myth, to demonstrate how the mythology corroborates with a more complete
reading on the divine component present in both narratives. This proposal is justified by contributing to
the studies about the relations of cinema and literature, which have stood out in the last decades, making
available new tools for the art analysis in both environments, besides reflecting on the myth and the figure
of the witch represented on both platforms.
Keywords
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Travessias, Cascavel, v. 11, n.3, p. 100 – 112, set/dez. 2017.
http://www.unioeste.br/travessias