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PRAIAVERMELHA

Estudos de Política e Teoria Social


PERIÓDICO CIENTÍFICO
DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ

200 ANOS DE

KARL MARX
UNIVERSIDADE FEDERAL (UERJ), Lilia Guimarães Pougy, Listz Vieira
DO RIO DE JANEIRO (PUC-Rio), Ludmila Fontenele Cavalcanti,
REITOR Marcelo Macedo Corrêa e Castro (FE/UFRJ),
Roberto Leher Maria Celeste Simões Marques (NEPP-DH/
PRÓ-REITORA DE UFRJ), Maria das Dores Campos Machado,
PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Marildo Menegat, Marilea Venâncio Porfirio
Leila Rodrigues da Silva (NEPP-DH/UFRJ), Maristela Dal Moro,
Miriam Krenzinger Guindani, Mohammed
ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL ElHajji (ECO/UFRJ), Mônica de Castro
Maia Senna (ESS/UFF), Mônica Pereira
DIRETORA
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Mota (NEPP-DH/UFRJ), Myriam Moraes
VICE-DIRETORA
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Elaine Martins Moreira
Paula Ferreira Poncioni, Pedro Cláudio
DIRETORA ADJUNTA DE PÓS-GRADUAÇÃO
Cunca Bocayuva B Cunha (NEPP-DH/UFRJ),
Mavi Pacheco Rodrigues
Raimunda Magalhães da Silva (UNIFOR),
Ranieri Carli de Oliveira (UFF), Ricardo
REVISTA PRAIA VERMELHA
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(Para os membros da Equipe Editorial
Morgado, Rosemere Santos Maia, Rulian
pertencentes à Escola de Serviço Social
Emmerick (UFRRJ), Silvana Gonçalves de
da UFRJ o vínculo institucional foi omitido)
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EDITORES (PUC-Rio), Suely Ferreira Deslandes (ENSP/
José María Gómez FIOCRUZ), Tatiana Dahmer Pereira (UFF),
José Paulo Netto Vantuil Pereira (NEPP-DH/UFRJ) e Verônica
Maria de Fátima Cabral Marques Gomes Paulino da Cruz.
Myriam Lins de Barros
EDITORES TÉCNICOS
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Marcelo Braz Jessica Cirrota
Mauro Iasi
REVISÃO
CONSELHO EDITORIAL Andréa Garcia Tippi
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Pastorini Corleto, Alzira Mitz Bernardes
PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO
Guarany, Andrea Moraes Alves, Antônio
Fábio Marinho
Carlos de Oliveira (PUC-Rio), Carlos Eduardo
Montaño Barreto, Cecília Paiva Neto
Escola de Serviço Social - UFRJ
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Av. Pasteur, 250/fundos (Praia Vermelha)
Fátima Valéria Ferreira Souza, Francisco
CEP 22.290-240 Rio de Janeiro - RJ
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(21) 3873-5386
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Barbosa Garcia, José Maria Gomes, José
Ricardo Ramalho (IFCS/UFRJ), Kátia Sento
Sé Mello, Leilah Landim Assumpção, Leile
Silvia Candido Teixeira, Leonilde Servolo de
Medeiros (CPDA/UFRRJ), Ligia Silva Leite
PRAIAVERMELHA
Estudos de Política e Teoria Social
PERIÓDICO CIENTÍFICO
DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ

v. 28 n. 2
2018
Rio de Janeiro
ISSN 1414-9184

Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 28 n. 2 p. 405-736 2018


A Revista Praia Vermelha é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação
em Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, cujo objetivo é construir um
instrumento de interlocução com outros centros de pesquisa do Serviço Social e áreas
afins, colocando em debate as questões atuais, particularmente aquelas relacionadas à
“Questão Social” na sociedade brasileira.

As opiniões e os conceitos emitidos nos artigos, bem como a exatidão, adequação e


procedência das citações e referências, são de exclusiva responsabilidade dos autores,
não refletindo necessariamente a posição da Comissão Editorial.

Esta obra está licenciada sob a licença Creative Commons BY-NC-ND 4.0.
Para ver uma cópia desta licença, visite:
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ccn.ibict.br
Base Minerva UFRJ
minerva.ufrj.br
Portal de Periódicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro
revistas.ufrj.br

A imagem da capa é uma edição de Fábio Marinho sobre foto da Unesco.

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

Praia Vermelha: estudos de política e teoria social/Universidade Federal do


Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social –
Vol.1, n.1 (1997) – Rio de Janeiro: UFRJ. Escola de Serviço Social.
Coordenação de Pós-Graduação, 1997-

Semestral
ISSN 1414-9184

1.Serviço Social-Periódicos. 2.Teoria Social-Periódicos. 3. Política-


Periódicos I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-
Graduação em Serviço Social
CDD 360.5
CDU 36 (05)
PRAIAVERMELHA

A NEOMALTHUSIANA “PROBLEMÁTICA”
DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA
BRASILEIRA: CONTRIBUIÇÕES PARA
UMA CRÍTICA MARXISTA
THE NEOMALTHUSIAN BRAZILIAN DEMOGRAPHIC PENSION
“PROBLEMATIC”: CONTRIBUTIONS TO A MARXIST CRITIQUE

Thais Soares Caramuru

Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 28 n. 2 p. 615-643 2018


PRAIAVERMELHA

RESUMO
Projeções catastróficas sobre o envelhecimento são amplamente uti-
lizadas para legitimar a contrarreforma previdenciária. Como objetivo
geral, este artigo fornece contribuições para uma crítica marxista a
essa “problemática” e, especificamente, denuncia que se trata da
reciclagem dos conservadores princípios populacionais malthusia-
nos. O texto aponta que a quadra contemporânea do capitalismo é
distinta daquela em que ocorreu a generalização da expansão da
longevidade da classe trabalhadora e destaca a relevância do arca-
bouço teórico-metodológico marxiano para descortinar a ofensiva
capitalista em curso.

PALAVRAS-CHAVE
Previdência Social. Demografia. Malthus. Crítica Marxista.

ABSTRACT
Catastrophic projections about aging are largely used to justify the couter-reform
of social pension. As a general objective, this article aims to provide contributions
to a Marxist critique of this “problematic” and, specifically, denounces that it rep-
resents the recycling of the conservative Malthusian populational principles. This
text shows that the contemporary stage of capitalism is different than the one in
which occured the generalization of the expansion of working class’ longevity and
displays the relevance of the Marxist theoretical and methodological framework to
unveal the current capitalist offensive.

KEYWORDS
Social Pension. Demography. Malthus. Marxist Critique.

Recebido em 17.11.2017
Aprovado em 17.07.2018

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A NEOMALTHUSIANA “PROBLEMÁTICA” DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA CRÍTICA MARXISTA Thais Soares Caramuru

INTRODUÇÃO1
Em uma passagem do célebre Manifesto Comunista, Marx e Engels
(2010, p. 57) afirmam que “as ideias dominantes de uma época
sempre foram as ideias da classe dominante”. Tal assertiva se apli-
ca impecavelmente bem aos argumentos utilizados por porta-vozes
do capital para legitimar a imposição de regras restritivas à proteção
previdenciária no Brasil.
Como ponto de partida, este texto adota a concepção de que, des-
de a metade da década de 1990, os regimes públicos de previdên-
cia estabelecidos pela Constituição Federal de 1988 estão sendo
objeto de um processo conservador que visa restringir as condições
de acesso e a magnitude monetária dos benefícios previdenciários
de diversos segmentos da classe trabalhadora.2 Todos os governos
que passaram pelo controle do Estado brasileiro nas últimas duas
décadas contribuíram para materializar essa marcha regressiva, con-
formando-se no que Granemann (2016, p. 674) denomina “divisão
técnica do trabalho”. O termo contrarreforma parece ser o mais apro-
priado para caracterizar essa ofensiva, pois, conforme Behring (2008)
e Coutinho (2010), a palavra “reforma” esteve historicamente vincu-
lada às lutas das classes subalternas e foi ressemantificada para
facilitar a implantação de medidas neoliberais.
Na presente conjuntura de coup d’etat, com a apresentação da
Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 287/2016 pelo governo
Michel Temer, a marcha contrarreformista atingiu uma etapa dramáti-
ca, conformando-se no ataque mais avassalador sofrido pelo sistema
de proteção social estruturado pela Carta de 19883.

1 A relevância científica e social do objeto deste artigo foi originalmente


verificada em pesquisa de mestrado já finalizada, no âmbito do Programa de Pós-
Graduação em Política Social da Universidade de Brasília.
2 Militares das Forças Armadas e policiais militares estão convenientemen-
te excluídos da restrição de acesso à proteção previdenciária.
3 Apesar de a tramitação da referida PEC ter sido interrompida em

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Esse processo que restringe o acesso à proteção previdenciária


por parte de milhões de trabalhadores é posto em marcha a partir
da difusão de argumentos legitimadores por parte dos órgãos esta-
tais e prepostos do grande capital, tais como periódicos burgueses
de grande circulação, organismos internacionais e operadores da
“previdência privada”. Dois argumentos tendem a exercer tal função
legitimadora: a retórica a respeito da existência de um resultado
deficitário entre as receitas e despesas previdenciárias; e as proje-
ções de envelhecimento populacional, que estariam delineando para
o futuro um magnífico “caos” na capacidade de os regimes públicos
pagarem benefícios a uma crescente massa de trabalhadores idosos.
(GRANEMANN, 2006; BEHRING, 2008).
Diversos estudos críticos já foram feitos a respeito do argumento
da existência de déficit entre as receitas e despesas previdenciá-
rias, o qual é desconstruído a partir da análise da Seguridade Social
como um sistema que integra previdência, saúde e assistência so-
cial e cujo financiamento baseia-se no princípio da diversidade das
fontes de custeio e na estruturação de um orçamento próprio, como
demonstram Salvador (2010) e Anfip (2016). Por outro lado, apesar
da existência de várias publicações burguesas que propagandeiam
o envelhecimento como argumento legitimador da contrarreforma
previdenciária, há uma lastimável escassez de estudos que se pro-
ponham a analisar tal retórica na perspectiva da totalidade do ser
social, isto é, daquilo que Marx e Engels (2007) entendem ser a con-
cepção de história que considera o processo real da produção mate-
rial em determinada forma de organização social, que, na presente
sociabilidade, é o capitalismo.
Diante disso, este artigo tem como objetivo geral fornecer contri-
buições para uma crítica marxista ao argumento de que o envelheci-
mento populacional torna inevitável a imposição de regras restritivas
aos direitos previdenciários. Como objetivo específico, busca-se

decorrência da intervenção federal no Rio de Janeiro, acredita-se que a ofensiva


à Previdência Social será retomada após as eleições de outubro de 2018.

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A NEOMALTHUSIANA “PROBLEMÁTICA” DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA CRÍTICA MARXISTA Thais Soares Caramuru

delinear que a retórica do envelhecimento se constitui na recicla-


gem dos princípios populacionais malthusianos. A exposição está
estruturada em quatro partes, além desta introdução e das consi-
derações finais: a primeira destina-se à apresentação daquilo que,
para efeitos deste texto, considera-se a “problemática” demográfico-
-previdenciária brasileira; a segunda dimensiona os princípios popu-
lacionais malthusianos a partir da crítica marxista; a terceira aborda
a generalização da expansão da longevidade da classe trabalhadora
no século XX; a quarta problematiza as perspectivas da longevidade
dos trabalhadores no século XXI.

A “PROBLEMÁTICA” DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA


Neste texto, a denominação “problemática” demográfico-previdenciá-
ria brasileira se refere ao modo como o envelhecimento é utilizado
pelos apologistas da contrarreforma. Três dimensões da “problemá-
tica” serão exploradas: sua origem no contexto da contrarreforma
dos sistemas de proteção social; seus principais propagadores; e a
explicitação de como o argumento é apresentado no Brasil.
O uso do envelhecimento populacional remete ao contexto de
contrarreforma nos países do capitalismo central, ou, nos termos
de Boschetti (2012), ao processo que engendrou a corrosão dos
sistemas de proteção social na Europa Ocidental. Pierson (1996, p.
168; tradução nossa), por exemplo, aponta que, no cenário de aus-
teridade na Alemanha durante a década de 1980, a transformação
demográfica foi um elemento que engendrou “pressões fiscais” nos
“muito custosos” programas sociais do país, pois “com as projeções
indicando déficits de longo-prazo como o resultado de mudanças de-
mográficas, a necessidade de reforma nas aposentadorias foi am-
plamente reconhecida”.
Os principais propagadores das “ameaças demográficas” aos sis-
temas de proteção social são as agências burguesas patrocinadas
pelas potências imperialistas e pelo grande capital, como a Organi-
zação das Nações Unidas (ONU), a Organização para a Cooperação e

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o Desenvolvimento Econômico (OCDE) e o Banco Mundial (BM), com


documentos que remetem às décadas de 1970 e 1980, como Nacio-
nes Unidas (1978) e OECD (1988). Desde a década de 1990, o BM
adquiriu centralidade na propagação da retórica do envelhecimento,
especialmente com publicações como o documento Envejecimiento
sin Crisis,4 de 1994, e, ao longo dos anos, passou a realizar “estu-
dos” específicos para os diversos países. No caso do Brasil, pode-
se citar publicação de 2011, intitulada Growing Old in an Older Brazil,
constante em World Bank (2011).
No âmbito da contrarreforma previdenciária no Brasil, a retórica
do envelhecimento foi explicitamente utilizada pelo governo federal
nas exposições de motivos que subsidiaram diversas propostas le-
gislativas: a PEC nº 40, de 2003, encaminhada pelo governo Lula,
que se converteu na Emenda Constitucional (EC) nº 41, que alterou
significativamente o regime dos servidores públicos civis; o Projeto
de Lei nº 1992 de 2007, por meio do qual encaminhou-se proposta
de criação de fundos de pensão para os servidores públicos federais
civis; a PEC nº 287 de 2016. Nesses documentos, o argumento de-
mográfico é exposto a partir da apresentação de pirâmides, gráficos
e outras espécies ilustrativas que apresentam, como dado natural
da realidade, uma tendência ascendente e irreversível da expectati-
va de vida no país.
No epicentro da “problemática” demográfico-previdenciária está a
ameaça à sustentabilidade dos regimes públicos a partir da conflu-
ência de dois movimentos: a queda das taxas de fecundidade, que,
para os contrarreformistas, acarretaria a redução do número de con-
tribuintes aos regimes previdenciários; o aumento indiscriminado
da expectativa de vida da população, que ensejaria a elevação do
tempo de recebimento do benefício previdenciário. Esta é a subs-
tância da justificativa do governo federal para legitimar a feroz PEC
nº 287/2016:

4 Uma crítica marxista a esse documento está em Granemann (2006, pp.


107-128).

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A NEOMALTHUSIANA “PROBLEMÁTICA” DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA CRÍTICA MARXISTA Thais Soares Caramuru

a evolução demográfica aponta para uma maior quantidade de be-


neficiários do sistema, recebendo benefícios por maior período de
tempo, em contraponto com menor quantidade de pessoas em idade
contributiva, tornando imprescindível a readequação do sistema de
Previdência Social para garantir seu equilíbrio e, consequentemente,
a sua sustentabilidade no médio e longo prazo (BRASIL, 2016, p. 2).

Ressalte-se que, na PEC nº 287/2016, o envelhecimento não é


apenas argumento legitimador, mas um mecanismo direto de restri-
ção de acesso aos benefícios previdenciários, pois pretende-se impor
um famigerado gatilho que irá elevar periodicamente a idade mínima
da aposentadoria a partir da elevação da expectativa de sobrevida,
sendo que, à medida que a expectativa de sobrevida aos 65 anos
elevar-se em um inteiro, os contrarreformistas propõem um aumento
de, ao menos, um ano na idade mínima para aposentadoria.
Dois elementos caracterizam a “problemática” demográfico-pre-
videnciária, conforme os contrarreformistas. O primeiro é o caráter
catastrófico das projeções, delineando uma “bomba demográfica”.
Costanzi e Ansiliero (2017) estimam que, em 2060, a mudança na
estrutura etária acarretará uma despesa previdenciária da ordem de
19% do PIB, incluídos o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) e
o Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) dos servidores civis
da União. O Banco Mundial (2011) projeta que a população idosa,
que representava 11% da população economicamente ativa (PEA) no
ano de 2005, atingirá a proporção de 49% no ano de 2050, enquan-
to a população em idade escolar, correspondente a 50% da PEA em
2005, cairá para 29% em 2050, acarretando “pressões fiscais adicio-
nais” nos regimes previdenciários públicos. O governo federal estima
que “o número de idosos com 65 anos ou mais de idade crescerá
262,7%, alcançando 58,4 milhões em 2060” (BRASIL, 2016, p. 2).
Fagnani (2017, p. 10) critica esse catastrofismo ao afirmar que “é
muito gravemente preocupante que essa draconiana proposta de
reforma da Previdência seja justificada por projeções catastrofistas
para 2060!”

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O segundo elemento constitutivo da “problemática”, e que será


importante na crítica feita neste artigo, é que o argumento do en-
velhecimento tem como enfoque o aumento da expectativa de vida.
Isso se explica pelo seguinte fato: se a queda da taxa de fecundi-
dade estivesse ocorrendo no mesmo contexto de elevadas taxas de
mortalidade, ou seja, se os beneficiários estivessem morrendo rela-
tivamente cedo, a simples redução no número de contribuintes não
ensejaria, por si só, um impacto catastrófico na sustentabilidade dos
regimes previdenciários. Por isso, para os contrarreformistas, o au-
mento da expectativa de vida é fundamental, pois acarreta a tendên-
cia de “uma duração média [do benefício] maior, que precisará ser
sustentada com uma razão de dependência5 de idosos ou de contri-
buintes/beneficiários mais frágil” (COSTANZI; ANSILIERO, 2017, p. 8).
A crítica à retórica do envelhecimento pode adquirir três direcio-
namentos. O primeiro é apresentado por Gentil et al. (2017), que
apontam que os desafios demográficos podem ser resolvidos se
articulados a medidas que estimulem o crescimento econômico, o
aumento da produtividade e, com efeito, as receitas previdenciárias.
Essa abordagem enseja determinada conivência com a dinâmica do
capitalismo e com o aumento da exploração do trabalho pelo capital,
pois a elevação da produtividade implica a intensificação da jornada
de trabalho e a elevação da extração daquilo que Marx (1983) deno-
minou mais-valia relativa. Esse, portanto, não pode ser o direciona-
mento da crítica marxista a ser aqui realizada.
O segundo direcionamento crítico é que o argumento demográfico,
na forma apresentada pelos contrarreformistas, implica uma interpre-
tação equivocada em relação ao funcionamento da Previdência Social
e do mercado de trabalho, pois o aumento proporcional de idosos na
população não necessariamente enseja a elevação do número de be-
neficiários da Previdência. Estudos como o de Silva (2012) revelam
que o desafio da inclusão de trabalhadores à proteção previdenciária

5 A razão de dependência previdenciária (RDP) corresponde ao quociente entre o


total de beneficiários e o total de contribuintes de um determinado regime de previdência.

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A NEOMALTHUSIANA “PROBLEMÁTICA” DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA:
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está relacionado à sua capacidade contributiva, pois o acesso aos


benefícios previdenciários no Brasil está vinculado ao que Boschetti
(2016) denomina lógica do seguro contributivo, ou seja, é preciso
cumprir requisitos de contribuição fazer jus aos benefícios. Assim,
a variável que impacta o quantitativo de beneficiários não é a mera
quantidade de idosos na população, mas a formalização do merca-
do de trabalho, que garante certo patamar salarial e estabilidade de
vínculo, e, com efeito, capacidade contributiva para cumprir regras de
acesso. Esse também não será o direcionamento a ser aqui adota-
do por não mediar as variáveis demográficas com o modus operandi
da ordem burguesa.
O direcionamento que norteará a crítica marxista deste artigo cor-
responde à problematização da elevação da longevidade da classe
trabalhadora no âmbito das relações sociais estabelecidas entre os
homens no capitalismo. Marx (1983, p. 215) assinala que, pela ne-
cessidade de submeter os trabalhadores à sua subsunção, “o capi-
tal não tem, por isso, a menor consideração pela saúde e duração
da vida do trabalhador, a não ser quando é coagido pela sociedade
a ter consideração”. Os defensores da contrarreforma utilizam o ar-
gumento do envelhecimento de forma a-histórica e superficial, sem
problematizar questão fundamental relacionada ao aumento da lon-
gevidade dos trabalhadores nos marcos das relações de exploração
capitalistas. Estudos como os de Teixeira (2008) e Paiva (2014) são
contribuições que dimensionam o fato de que o envelhecimento da
massa trabalhadora não se constitui em determinação meramente
relacionada ao declínio biológico e ao crescimento proporcional de
idosos, mas uma componente da realidade social intrinsecamen-
te relacionada ao modo como a força de trabalho é explorada na
sociabilidade burguesa. “Não há, portanto, motivos razoáveis para
se defender uma mística da velhice ou mesmo um envelhecimento
transcendental, porque o indivíduo que envelhece não está alijado
de sua história de vida enquanto ser social” (PAIVA, 2014, p. 27).
Saliente-se que a crítica marxista a ser aqui realizada não ne-
gará o aumento da longevidade da classe trabalhadora, conforme

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alcançada no século XX, mas problematizará as condições materiais


de sua expansão, tendo em vista as relações capitalistas de explo-
ração, especialmente a partir de três dimensões: a primeira destaca
porque o uso arbitrário de variáveis demográficas possui um caráter
neomalthusiano; a segunda enfatiza que a expansão da longevida-
de da classe trabalhadora foi uma conquista social em determinado
contexto histórico; a terceira problematiza as perspectivas da longe-
vidade dos trabalhadores no século XXI.

A CRÍTICA MARXISTA AOS PRINCÍPIOS


POPULACIONAIS MALTHUSIANOS
A emissão de opiniões acerca da população e de suas inter-rela-
ções com aspectos sociais, políticos e econômicos é questão que
antecede o modo de produção capitalista, podendo ser remetida
a escritos da Antiguidade, como os de Platão, Aristóteles e Cícero
(MOREIRA, 2001). No âmbito do capitalismo e de sua ciência, a
Economia Política clássica, o debate populacional adquiriu impulso
em fins do século XVIII, e a obra do clérigo inglês Thomas Malthus
foi uma das principais expressões desse processo, especialmente
o estudo denominadado “Ensaio Sobre o Princípio da População”. 6
Malthus (1996) inicia sua exposição apresentando dois pressu-
postos. O primeiro é o de que o alimento é necessário para a exis-
tência dos homens; o segundo refere-se à necessária e permanente
“paixão entre os sexos”, que estimula a reprodução humana. A pedra
angular da argumentação malthusiana é a existência de uma lei na-
tural que rege as relações animais, vegetais e humanas, relaciona-
da com o fato de que o poder do crescimento populacional supera
o poder da terra em produzir meios de subsistência. Assim, o autor
assinala que “a população, quando não controlada, cresce numa
progressão geométrica. Os meios de subsistência, crescem apenas
numa progressão aritmética” (MALTHUS, 1996, p. 246).

6 Publicado sob o título An Essay on the Principle of Population em 1798.

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A NEOMALTHUSIANA “PROBLEMÁTICA” DEMOGRÁFICO-PREVIDENCIÁRIA BRASILEIRA:
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA CRÍTICA MARXISTA Thais Soares Caramuru

Nesse sentido, Malthus (1996, p. 252) afirma que a “desigualda-


de natural” entre os poderes de crescimento populacional e da pro-
dução alimentícia engendra uma dificuladade de subsistência, pois
a produção alimentícia deve ser dividida entre maior número de in-
divíduos e, “consequentemente, os pobres têm que viver em muito
piores condições, muitos deles submetidos a cruéis sofrimentos”.
Segundo o autor, os homens possuem um instinto natural de criar
“restrições ao povoamento”, tais como controle da fertilidade, como
o desestímulo ao casamento, e formas de crescimento da mortalida-
de, como a miséria, epidemias e doenças. Com efeito, a miséria e o
vício seriam mecanismos naturais de equiparação do descompasso
entre a expansão populacional e a produção de alimentos: “o supe-
rior poder de crescimento da população é dominado e a população
real se mantém equiparada aos meios de subsistência pela miséria
e pelo vício” (MALTHUS, 1996, p. 289).
Os princípios populacionais malthusianos acarretam as seguintes
interpretações em relação à sociedade capitalista: concepção de
que os recursos sociais estão limitados ao “poderoso” crecimento
da população; enfoque unilateral na expansão populacional, sendo
esta o motor das dinâmicas sociais; concepção de que a miséria é
uma circunstância natural e imutável da realidade; responsabilização
do indivíduo pela condição de pobreza; inevitabilidade da “explosão
populacional” (MALTHUS, 1996).
Nota-se que a análise de Malthus (1996) é fortemente positivis-
ta, liberal e conservadora: é positivista porque o autor concebe que
as leis que regulam as relações entre os homens se equiparam às
leis naturais que regem os vegetais e os animais; é liberal porque
naturaliza a miséria; é conservadora da ordem burguesa porque su-
perdimensiona a abordagem do crescimento populacional sem pro-
blematizar a inserção das classes sociais no capitalismo. De fato,
as concepções malthusianas foram e são objeto de diversas críticas
e, no âmbito da crítica à economia política, Marx (1996) e Engels
(2010) estão dentre os autores que mais fervorosamente dedicaram-
se a revelar o caráter reacionário dos estudos de Malthus (1996).

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PRAIAVERMELHA

Quanto à crítica marxiana às concepções malthusianas, é impor-


tante que se destaque o pouco respeito que Marx (1996) demonstra
ter em relação aos estudos de Malthus (1996), inclusive acusando-o
de plágio em determinado trecho7 d’O capital e denominando-o de
“economista vulgar”.
A abordagem populacional de Malthus (1996) não diferencia as
distintas formas de organização social, pois o autor aponta “o poder
superior de crescimento da população” em sociedades pré-capita-
listas diversas, como a dos índios norte-americanos em sua fase
primitiva. Marx (1996, p. 262) opõe-se a essa concepção argumen-
tando que cada modo de produção, inclusive o capitalismo, possui
leis populacionais próprias. Assim, Marx (1996) coloca em xeque a
teoria populacional malthusiana através da Lei Geral da Acumulação
capitalista, relacionada à produção progressiva da superpopulação
relativa ou exército industrial de reserva.
A análise marxiana sobre essa Lei tem como ponto de partida a
composição orgânica do capital, formada pela massa dos meios de
produção (capital constante) e pela massa de força de trabalho (ca-
pital variável). Para que haja aumento da produtividade, faz-se neces-
sário um “acréscimo da componente constante do valor do capital à
custa de sua componente variável” (MARX, 1996, p. 254), de modo
que uma massa cada vez menor de trabalho é utilizada para colocar
em movimento uma massa cada vez maior de maquinaria e maté-
rias-primas. Essa dinâmica, então, engendra a produção progressiva
de uma superpopulação relativa, processo no qual a população tra-
balhadora excedente é tornada relativamente redundante. Para Marx
(1996, p. 265), a teoria populacional malthusiana constitui-se em
uma “visão estreita [que] interpreta [a superpopulação] como con-
sequência do excessivo crescimento absoluto da população traba-
lhadora, e não de esta ter sido tornada relativamente redundante”.
Ademais, Marx (1996) aponta como a miséria e o pauperismo são

7 De acordo com Marx (1996, p. 133), a teoria populacional malthusiana é


um “plágio desavergonhado”.

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necessariamente produzidos pela dinâmica capitalista, e que estes


nada têm que ver com um instinto natural dos homens em criar obs-
táculos ao crescimento populacional, como alegava Malthus (1996),
pois o exército industrial de reserva cresce no mesmo passo que as
potências da riqueza e, “quanto maior, finalmente, a camada laza-
renta da classe trabalhadora e o exército industrial de reserva, tanto
maior o pauperismo oficial” (MARX, 1996, p. 274).
Uma passagem do livro primeiro d’O Capital expressa que seu au-
tor concebe a teoria populacional malthusiana como funcional aos
interesses da burguesia. Trata-se do capítulo XV, onde Marx (1996)
aborda as variações de duração, força produtiva e intensidade do
trabalho e reconhece que Malthus (1996) destaca, em sua obra, o
prolongamento da jornada de trabalho, enquanto outros economistas
políticos tratavam a jornada como grandeza constante. Marx (1996,
p. 156), então, afirma:
Mas os interesses conservadores, aos quais servia Malthus, impe-
diam-no de ver que o desmesurado prolongamento da jornada de tra-
balho, [...], tornava “excedente” grande parte da classe trabalhadora
[...]. Era, naturalmente, muito mais cômodo e muito mais adequado
aos interesses das classes dominantes, que Malthus de modo auten-
ticamente clerical idolatrava, explicar essa “superpopulação” a partir
das eternas leis da Natureza do que a partir de leis naturais, apenas
históricas, da produção capitalista.

Sinteticamente, Marx (1996) põe em xeque os princípios popu-


lacionais malthusianos da seguinte forma: revela ser um equívoco
abordar a dinâmica demográfica de forma a-histórica, pois cada for-
ma de organização social engendra um movimento populacional par-
ticular; a própria produção capitalista gera uma “superpopulação”;
prova que a miséria e a pobreza não são produtos de um instinto
natural dos homens para conter o crescimento populacional, mas
resultam do próprio movimento do capital.
Cabe, então, abordagem da crítica de Engels (2010), direciona-
da à forma como a teoria malthusiana da população influenciou a

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PRAIAVERMELHA

legislação social inglesa da década de 1830. É relevante, portanto,


que se faça uma breve contextualização acerca da Lei dos Pobres,
bem como da crítica de Malthus (1996) a tal lei.
Segundo Behring e Boschetti (2011), diversas legislações inglesas
do período anterior à Revolução Industrial constituíram-se nos primei-
ros mecanismos estatais de proteção social, com destaque para as
Leis dos Pobres (Poor Laws) elisabetanas de 1531 e de 1601. As au-
toras assinalam que essas leis se caracterizavam pela distinção entre
pobres merecedores, incapazes de trabalhar, e pobres não merece-
dores, que possuíam capacidade de venda de força de trabalho. Em
1795, instituiu-se a Lei Speenhamland Act, menos repressora e mais
relacionada à perspectiva do direito, que estabelecia o pagamento de
mínima ajuda financeira em complemento aos salários, cujo valor era
baseado no preço do pão (BEHRING; BOSCHETTI, 2011).
Como o texto de Malthus (1996) foi originalmente publicado em
1798, verifica-se que sua crítica à Lei dos Pobres encontra-se no
contexto do estabelecimento da Lei Speenhamland. Baseado na éti-
ca do trabalho assalariado, Malthus (1996, p. 274) alegava que tal
legislação teria o condão “de contribuir para aumentar a população
sem o aumento dos meios de subsistência para sustentá-la; rebai-
xando então a condição daqueles que não são sustentados pelos
auxílios paroquiais e, consequentemente, criando mais pobres”. Para
remediar tais efeitos, o autor propõe a adoção de medidas paliativas,
já que considera a pobreza uma circunstância imutável:8 revogação
completa das leis dos pobres então vigentes, para liberar trabalha-
dores ao mercado; incentivo à produção de alimentos; instituição de
albergues nos casos de extrema miséria, onde a comida seria reduzi-
da, e, também, “seria desejável que os albergues não fossem vistos
como confortáveis asilos para atender a todas as dificuldades, mas
simplesmente como lugares onde a extrema miséria pudesse achar
algum alívio” (MALTHUS, 1996, p. 274).

8 “Impedir o retorno da miséria está – infelizmente – além do poder do ho-


mem” (MALTHUS, 1996, p. 275).

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Tais proposições malthusinas foram adotadas na Inglaterra e se


consolidaram com a revogação do Speenhamland Act, em 1834, e im-
posição da Nova Lei dos Pobres (New Poor Law), a qual representou
“o predomínio, no capitalismo, do primado liberal do trabalho como
fonte única e exclusiva de renda, e relegou a já limitada assistência
aos pobres ao domínio da filantropia” (BEHRING; BOSCHETTI, 2011,
pp. 49-50). Os albergues propostos por Malthus (1996) foram insti-
tuídos sob o nome de Casas de Trabalho (Workhouses).
Em estudo sobre as condições de vida e trabalho na Inglaterra,
Engels (2010, p. 315) revela que a Nova Lei dos Pobres foi ampla-
mente rejeitada pelos trabalhadores e, ao abordar a atitude da bur-
guesia inglesa frente ao operariado, aponta que “não há nenhuma
dúvida de que a aberta declaração de guerra da burguesia contra o
proletariado é a teoria malthusiana da população, assim como a nova
lei sobre os pobres, que diretamente nela se inspira”.
O repúdio engelsiano aos princípios populacionais malthusianos
se manifesta de duas formas. Por um lado, o autor descreve como a
teoria de Malthus (1996) foi apropriada pela burguesia inglesa para
engendrar uma ofensiva contra os parcos auxílios financeiros que o
Speenhamland Act proporcionou ao pobre: “ele passou a receber seu
auxílio semanal como direito e não como uma dádiva, o que, ao fim,
tornou-se intolerável aos olhos da burguesia [a qual] meteu rapida-
mente mãos à obra para reformar, segundo seus próprios princípios,
a lei sobre os pobres” (ENGELS, 2010, p. 316). Por outro lado, o
autor revela as condições degradantes das Workhouses, e que isso
atendia aos requisitos malthusianos, pois “a casa de trabalho foi
pensada para constituir o espaço mais repugnante que o talento re-
finado de um malthusiano pôde conceber” (ENGELS, 2010, p. 318).
A análise de Engels (2010) é basilar para que se compreenda
que, desde as primeiras décadas do século XIX, os princípios popu-
lacionais malthusianos foram funcionais para legitimar a ofensiva
burguesa contra as legislações sociais, o que indica que a instru-
mentalização vulgar das variáveis demográficas para fins de restrição
do acesso dos trabalhadores à proteção social não se constitui em
circunstância particular da cena contemporânea.

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PRAIAVERMELHA

As críticas de Marx (1996) e Engels (2010) aos princípios popula-


cionais malthusianos implicam três inferências teóricas: a primeira é
que a teoria malthusiana da população, ao abordar de forma unilateral
e reducionista o crescimento demográfico, engendra uma interpreta-
ção equivocada acerca da forma de funcionamento da sociedade capi-
talista; a segunda é que os princípios populacionais malthusianos são
funcionais à manutenção da ordem burguesa e à opressão da classe
trabalhadora; a terceira é que, desde o século XIX, a burguesia faz uso
da teoria malthusiana para legitimar a ofensiva às legislações sociais.
Com fundamento nessas três inferências teóricas, considera-se
concebível argumentar que o uso do envelhecimento populacional
para legitimar a restrição ao acesso à proteção previdenciária cons-
titui-se em uma retórica de caráter neomalthusiano, pois, ao implicar
uma reciclagem do argumento malthusiano, enseja uma interpretação
errônea sobre o envelhecimento da classe trabalhadora no capitalis-
mo e mostra-se funcional à opressão do proletariado.

A LONGEVIDADE DA CLASSE TRABALHADORA NO SÉCULO XX


Nesta seção, propõe-se a abordagem da longevidade da classe traba-
lhadora nos países do centro e da periferia do capitalismo durante o
século XX. A hipótese que sustenta a análise é a de que ocorreu um
fenômeno peculiar nos países capitalistas: a generalização da expan-
são da longevidade das massas trabalhadoras. Nas análises dos con-
trarreformistas neomalthusianos, os dados referentes à expansão
da expectativa de vida são tratados como se fossem dados naturais
da realidade, não se problematiza a longevidade dos trabalhadores
nos marcos do capitalismo e tampouco as condições materiais que
possibilitaram sua expansão.
Para fundamentação dessa hipótese, cabe retomar a questão já
apresentada de que ao capital pouco importa o tempo de duração da
vida do trabalhador. A produção e a reprodução da riqueza no capita-
lismo estão assentadas na exploração da força de trabalho, com fins
de apropriação do trabalho não-pago pelo capital. Sob tais condições,

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Marx (1983, p. 212) identifica que “o capital não se importa com a


duração de vida da força de trabalho. O que interessa a ele, pura e
simplesmente, é um maximum de força de trabalho que em uma jor-
nada de trabalho poderá ser feita fluir”.
A análise marxiana permite inferir que a essência exploratória do
capitalismo é antagônica ao prolongamento generalizado do tempo
de vida da classe trabalhadora, pois a força de trabalho “é roubada
de suas condições normais, morais e físicas, de desenvolvimento e
atividade” (MARX, 1983, p. 212). Entende-se que o fato de a classe
trabalhadora ter conseguido alcançar um prolongamento de sua vida
não foi um elemento movido por “forças naturais”, mas produto de
uma construção social, pois, conforme afirma Paiva (2014, p. 34), “no
âmbito das sociedades de modo de produção capitalista, a velhice
é também uma produção social”. Sendo assim, nos marcos de sua
subsunção ao capital, o prolongamento da vida constituiu-se em uma
conquista social da classe trabalhadora.
Cumpre, portanto, analisar os dados que expressam tal conquista
social. A Tabela 1 apresenta dados relativos à expectativa de vida
ao nascer e seu crescimento percentual em cinco potências imperia-
listas – Japão, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos – e
em quatro países periféricos latino-americanos – Costa Rica, México,
Brasil e Colômbia –, nos anos de 1960 e 2010.
O primeiro aspecto a ser destacado é que a expectativa de vida
cresceu em todos os países selecionados, o que mostra que é corre-
to afirmar que ocorreu a generalização da expansão da longevidade
da classe trabalhadora em países centrais e periféricos no período
analisado. Um segundo elemento é que, nos países imperialistas,
a expectativa de vida já era relativamente mais elevada no ano de
1960, em torno dos 70 anos, enquanto nos países periféricos a lon-
gevidade variava entre 54 anos no Brasil e, aproximadamente, 61
anos na Costa Rica. Como os países periféricos começaram com
um patamar de expectativa de vida menor, os percentuais de cres-
cimento dessa variável sinalizam um ritmo de expansão mais forte
na periferia do que no centro. Nesse âmbito, o Brasil atingiu o maior

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PRAIAVERMELHA

patamar de crescimento entre os países selecionados, de 35%, mas


era também o que tinha o menor nível de longevidade em 1960, que
era de 54,3 anos, e o que apresentou menor grau de expectativa de
vida em 2010, de 73,4 anos. A terceira circunstância a ser destaca-
da é que, sob os marcos da tendência de generalização da elevação
da expectativa de vida, em 2010, tal variável demográfica ainda foi
relativamente menor nos países latino-americanos, onde o maior pa-
tamar foi o da Costa Rica (78,8 anos) e os menores foram os níveis
do Brasil e da Colômbia, com 73,3 anos cada.

TABELA 1 Expectativa de vida ao nascer no período 1960/2010 - países selecionados


PAÍS 1960 (EM ANOS) 2010 (EM ANOS) CRESCIMENTO (EM %)
Japão 67,8 82,9 22%
França 70,3 81,8 16%
Reino Unido 70,8 80,6 14%
Alemanha 69,1 80,5 16%
Estados Unidos 69,9 78,6 12%
Costa Rica 60,6 78,7 30%
México 57,5 74,1 29%
Brasil 54,3 73,3 35%
Colômbia 56,8 73,3 29%
Fonte: Base de dados da OCDE.9 Elaboração prória. Nota: Dados correspondentes ao conjun-
to da população, sem distinção de gênero.

Sob o contexto de generalização da elevação da expectativa de vida


ao nascer nos países imperialistas e latino-americanos selecionados,
cumpre abordar as condições materiais que permearam tal expansão,
isto é, faz-se relevante apontar as condições de vida, trabalho e prote-
ção social que permearam a materialização desse fenômeno.

9 Disponível em: <https://data.oecd.org/healthstat/life-expectancy-at-birth.


htm>. Acesso em: 14 nov. 2017.

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A segunda metade do século XX, palco em que ocorreu a gene-


ralização da elevação da expectativa de vida das massas trabalha-
doras nos países capitalistas, foi um período peculiar na história
da ordem burguesa. Sob a égide da existência da União Soviética
como proposta de sociedade alternativa ao capitalismo, nas duas
décadas subsequentes ao fim da Segunda Guerra Mundial, o capita-
lismo experimentou um período de expansão das taxas de lucro, de
crescimento econômico nos países centrais e de estruturação do
chamado Estado de Bem-Estar Social ou Estado Social. O padrão
de acumulação predominante nos anos pós-1945 caracterizava-se
pelo seguinte: orientação macroeconômica keynesiana, que conce-
bia o Estado como agente fundamental na determinação da renda,
principalmente com investimento público e subsídio ao consumo; or-
ganização taylorista-fordista da produção, que se caracterizava pela
produção e consumo de massa; integração das massas trabalhado-
ras à ordem burguesa, via projeto social-democrata, a partir da con-
formação de um “pacto” social entre capital e trabalho mediado pelo
Estado (BEHRING; BOSCHETTI, 2011; SILVA, 2012). Esse foi o chão
histórico sob o qual estabeleceram-se as condições salariais e de
proteção contra a exploração que possibilitaram às classes trabalha-
doras, em maior ou menor medida – a depender das particularidades
socioeconômicas de cada país –, a conquista social de generalização
da expansão das taxas de longevidade.
A existência de certo grau de proteção social como dimensão im-
portante na determinação da expectativa de vida é reconhecida pela
OCDE e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A
OCDE (2015, p. 46; tradução nossa) afirma que o crescimento dessa
variável nos países ocorre por vários fatores, “incluindo-se incremen-
tos nos padrões de vida e melhor educação, e progresso na proteção
social”. Tal agência burguesa, ao explicar por que os ganhos em ex-
pectativa de vida foram menores nos Estados Unidos do que em ou-
tros países membros da OCDE no período de 2000 a 2013, aponta
os seguintes motivos: a natureza fragmentada do sistema de saúde,
com poucos recursos destinados à saúde pública e aos cuidados

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PRAIAVERMELHA

primários; comportamentos que engendram a piora dos níveis de


saúde, como consumo de alimentos altamente calóricos, altos índi-
ces de obesidade e uso de drogas; e condições socioeconômicas
adversas atingindo grandes segmentos populacionais, como altos
níveis de pobreza e desigualdade de renda (OECD, 2015).
O IBGE (2015), ao tratar o contexto de queda das taxas de morta-
lidade no Brasil, enfatiza as estruturas de proteção social, especial-
mente medidas relacionadas à saúde pública, como as campanhas
de vacinação em massa, a atenção ao pré-natal, o aleitamento ma-
terno, a atenção à saúde, a elevação do nível de renda, o aumento
de domicílios com saneamento básico, programas de transferência
de renda, dentre outros. “A resultante imediata dessas ações e fa-
tores foi a diminuição dos níveis de mortalidade e o consequente
aumento da expectativa de vida dos brasileiros ao longo dos anos”
(IBGE, 2015, p. 50).
Essas análises da OCDE e do IBGE indicam que os sistemas de
proteção social e a articulação de políticas sociais são dimensões fun-
damentais na determinação das condições que ensejam a elevação
dos níveis de longevidade dos trabalhadores. Porém, tais instituições
não problematizam de forma clara que a determinante estrutural do
processo de generalização da expansão da longevidade foi a genera-
lização do acesso da classe trabalhadora à proteção social. Ou seja,
não se trata de uma circunstância genérica, como os “avanços da
medicina” (IBGE, 2015, p. 50), mas do acesso da classe trabalhadora
a essas e outras expressões do desenvolvimento das forças produ-
tivas, no Brasil e no mundo.
Nos marcos das relações de produção capitalistas, a generaliza-
ção da elevação da longevidade da classe trabalhadora, especialmen-
te a partir da segunda metade do século XX, constituiu-se em uma
conquista social historicamente datada e geopoliticamente situada.10

10 As expressões “historicamente datada” e “geopoliticamente situado” são


utilizadas por Behring (2009) em referência ao fenômeno da generalização das
políticas sociais na segunda metade do século XX.

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Historicamente datada porque ocorreu em contexto histórico parti-


cular, sob o padrão de acumulação keynesiano-fordista e estrutura-
ção dos Estados sociais, que possibilitaram melhores condições de
vida, trabalho, salário e proteção social às massas trabalhadoras.
Ademais, foi geopoliticamente situada porque se manifestou mais
expressivamente na expectativa de vida dos trabalhadores dos paí-
ses centrais, com patamares menores na periferia.
Resta evidente que a expansão da expectativa de vida não é um
dado natural, como as análises dos contrarreformistas neomalthusia-
nos tentam expor. Ao contrário, a longevidade da classe trabalhadora
no capitalismo é intrinsecamente relacionada às condições materiais
de exploração do trabalho em determinada quadra histórica. Com
fundamento nessa inferência, surge a questão: é possível projetar,
para o século XXI, a expansão incessante da expectativa de vida, tal
como o fazem os apologistas neomalthusianos?

LONGEVIDADE DA CLASSE TRABALHADORA NO SÉCULO XXI:


CENÁRIO E PERSPECTIVAS
Observou-se que a generalização da expansão da longevidade da
classe trabalhadora foi um fenômeno revestido pelas particularida-
des históricas e por suas refrações em cada realidade nacional. Os
contrarreformistas neomalthusianos não só não reconhecem a ex-
pansão da longevidade como determinação histórica, mas, conforme
já assinalado, fazem projeções catastróficas para a expectativa de
vida nas próximas décadas do século XXI sem problematizar o se-
guinte: a configuração contemporânea do capitalismo; as condições
de acesso à proteção social pela classe trabalhadora; e as formas
em que se materializa a subsunção do trabalho ao capital na pre-
sente quadra histórica.
Uma determinação constitutiva fundamental do capitalismo con-
temporâneo é o que Mészáros (2009) denomina crise estrutural do
capital. Segundo o autor, a partir da década de 1970, teve início
uma crise estrutural totalmente compressiva que se agudizou nas

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PRAIAVERMELHA

décadas seguintes e caracteriza-se por ser uma crise que atinge a


totalidade do complexo social do capital e adquire uma dimensão
particularmente destrutiva, à medida que impacta as estruturas po-
líticas do Estado capitalista, o meio-ambiente e ameaça o que o au-
tor denomina ordem sociometabólica do capital (MÉSZÁROS, 2009).
A ofensiva articulada pelo capital para enfrentar a sua crise afetou
sobremaneira as condições de trabalho e de proteção social da clas-
se trabalhadora, adquirindo três pilares. O primeiro foi a conformação
de um regime de acumulação “flexível”, que se contrapõe à “rigidez”
fordista e estrutura-se em torno da “flexibilidade” dos processos de
trabalho, dos mercados e dos padrões de consumo. O segundo foi a
reestruturação produtiva, que provocou a precarização estrutural da
força de trabalho, pois afetou diretamente sua morfologia e organi-
zação como classe, a partir da implantação da automação e descen-
tralização das plantas produtivas. O terceiro pilar foi a redefinição do
papel do Estado, materializada pelos postulados do neoliberalismo,
que propagam a orientação macroeconômica ortodoxa, a abertura
comercial, as privatizações e a flexibilização da regulação das rela-
ções capital-trabalho (HARVEY, 2005, 2008; ANTUNES, 2011). Trata-
se de um redirecionamento que reduz as ações e recursos públicos
destinados à classe trabalhadora e configura o que Netto (2012)
denomina “Estado máximo para o capital”.
Nessa conjuntura, as políticas sociais foram/são objeto de um
processo de reconfiguração que precarizou e tende a precarizar ain-
da mais as condições de proteção social da classe dominada, o que
pode causar prejuízos à longevidade dos trabalhadores no centro e
na periferia do capital nas próximas décadas do século XXI. Tal re-
configuração se materializa a partir de diversas tendências: suca-
teamento de serviços públicos universais de saúde e educação com
vistas ao estímulo à expansão de empresas privadas que mercado-
rizam esses serviços; imposição de regras restritivas e redução dos
valores de benefícios previdenciários, com vistas à indução a planos
vendidos por bancos, seguradoras e fundos de pensão; proliferação
de programas de transferência de renda mínima, focalizados nos

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setores mais indigentes, e que impõem condicionalidades e propa-


gam a ativação ao mercado de trabalho (BOSCHETTI, 2012; 2016).
Esse contexto engendrou a intensificação do grau de subsunção
do trabalho ao capital em países centrais e periféricos, incluindo-se o
Brasil, especialmente em decorrência do seguinte: rebaixamento dos
patamares salariais, que faz os trabalhadores aceitarem empregos a
qualquer custo e sob quaisquer condições; proliferação de vínculos
empregatícios precários, como os temporários e terceirizados; inten-
sificação das jornadas de trabalho, como resultante da busca inces-
sante por produtividade; fragmentação da classe trabalhadora e de
sua capacidade de organização frente ao patronato; com a redução
do financiamento de serviços e benefícios públicos, o trabalhador
se torna consumidor e passa a destinar parte de seus já rebaixados
salários à compra dessas mercadorias no mercado; desemprego
estrutural, à medida que se empurram maiores contingentes de tra-
balhadores à conformação da superpopulação relativa ou exército
industrial de reserva (ANTUNES, 2011; BOSCHETTI, 2016).
Como país capitalista periférico, o Brasil é cenário de uma condi-
ção estruturalmente rebaixada da massa trabalhadora frente ao ca-
pital. No contexto do coup d’etat deflagrado em 2016 (SOUZA, 2016),
essa circunstância vem adquirindo uma avassaladora potencialização
e terá o condão de barbarizar as condições de trabalho, proteção so-
cial e longevidade dos subalternos, por meio de uma ofensiva que
engloba três eixos. O primeiro é a privatização de empresas públicas
que oferecem serviços essenciais, como água e energia elétrica, que
precarizará a qualidade dos serviços prestados e imporá um ônus
a mais nas faturas diretamente pagas pelos trabalhadores (DIEESE,
2017b). O segundo é a intensificação da precarização das condições
de trabalho, especialmente por meio da sanguinária Lei nº 13.467,
de 13 de julho de 2017, que altera mais de uma centena de disposi-
tivos da Consolidação das Leis do Tabalho (CLT), impõe a prevalência
do negociado sobre legislado, regulamenta o teletrabalho e o traba-
lho intermitente, legaliza a terceirização em áreas fins, enfraquece
o poder dos sindicatos e amplia as possibilidades da jornada de 12

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por 36 horas. De acordo com o Dieese (2017a, p. 19), “a prevalência


do negociado sobre o legislado, na ausência de outras condições ne-
cessárias à plena realização do potencial das negociações coletivas,
trará elevados riscos para os trabalhadores”.
O terceiro eixo da ofensiva refere-se ao processo de restrição das
já reduzidas parcelas do fundo público que são destinadas ao finan-
ciamento de bens, serviços e benefícios à classe trabalhadora. Por
um lado, a visceral EC nº 95, de 15 de dezembro de 2016, que es-
tabeleceu um Novo Regime Fiscal (NRF), impede o crescimento real
dos gastos sociais, o que, segundo Vieira e Benevides (2016), im-
pactará negativamente o financiamento do Sistema Único de Saúde
(SUS) e, com efeito, o direito à saúde no país. Por outro lado – mas
também relacionado ao NRF –, a imposição de regras restritivas à
cobertura previdenciária e assistencial, da qual a PEC nº 287/2016
é a expressão mais violenta.
À luz dos objetivos deste artigo, a configuração contemporânea do
capitalismo sob a acumulação “flexível”, a precarização da proteção
social e a potencialização do grau de subsunção do trabalho ao ca-
pital ensejam os seguintes comentários acerca das perspectivas da
longevidade da classe trabalhadora brasileira nas próximas décadas
do século XXI: é uma contradição pulsante que, no mesmo passo em
que a PEC nº 287/2016 é legitimada pela retórica do envelhecimen-
to, suas propostas constituem um dos pilares da precarização do
acesso da classe trabalhadora à proteção social e, consequentemen-
te, da piora das condições materiais que engendrariam a elevação de
sua longevidade; resta evidente que a configuração contemporânea
do capitalismo e a condição da classe trabalhadora são distintas do
contexto de generalização da longevidade; para além disso, a pre-
sente conjuntura, especialmente no Brasil, mostra-se adversa para
engendrar uma ampla e incessante tendência de expansão da lon-
gevidade da classe trabalhadora, tal como afirmam as catastróficas
projeções neomalthusianas.
Diante disso, não se considera aceitável a apresentação de pro-
jeções catastróficas acerca do envelhecimento populacional com fins

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de legitimar a contrarreforma previdenciária, pois tais ilustrações


não levam em conta as relações sociais como condicionantes do
processo de envelhecimento dos trabalhadores nos marcos da so-
ciabilidade burguesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Projeções catastróficas sobre o envelhecimento populacional são
amplamente utilizadas por agentes estatais e porta-vozes do capital
para legitimar a imposição de regras restritivas ao acesso à prote-
ção previdenciária no Brasil. Diante de poucos estudos críticos sobre
o tema, este artigo teve como objetivo geral fornecer contribuições
para uma crítica marxista à retórica do envelhecimento e, especifi-
camente, buscou delinear que o uso de tal argumento para legitimar
a contrarreforma previdenciária está revestido pelos conservadores
princípios populacionais malthusianos.
O percurso percorrido desvendou o seguinte: inicialmente, delimi-
tou-se a “problemática” demográfico-previdenciária brasileira, apon-
tando que sua origem remete ao contexto de contrarreforma nos
países capitalistas centrais, que seus principais propagadores são
as agências imperialistas e que a longevidade da classe trabalhadora
deve ser variável fundamental para análise crítica do envelhecimento;
em seguida, a partir das críticas de Marx (1996) e Engels (2010) a
Malthus (1996), apontou-se que o uso do envelhecimento para le-
gitimar a restrição do acesso à proteção previdenciária tem caráter
neomalthusiano, pois intrumentaliza vulgarmente variáveis demográ-
ficas sem problematizá-las na totalidade da produção e reprodução
da ordem burguesa; posteriormente, demonstrou-se que, sob a ex-
ploração capitalista, o processo de generalização da expansão da
longevidade da classe trabalhadora na segunda metade do século XX
foi uma conquista social, determinada por condições materiais par-
ticulares; por fim, evidenciou-se que a configuração contemporânea
do capitalismo é distinta daquela na qual ocorreu a generalização da
expansão da longevidade e, mais ainda, que a presente conjuntura

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PRAIAVERMELHA

delineia para as próximas décadas do século XXI condições materiais


adversas para engendrar uma tendência ascendente e incessante da
expectativa de vida da classe trabalhadora, ao contrário das proje-
ções dos contrarreformistas neomalthusianos.
Em última instância, observou-se que, 200 anos após o nascimen-
to de Karl Marx, permanece viva a relevância do arcabouço teórico,
categorial e metodológico desenvolvido por esse incansável militan-
te político e investigador social que desvendou o caráter burguês da
economia política clássica e descortinou, dentre outros, a falaciosi-
dade dos princípios populacionais malthusianos. Em tempos de po-
tencialização da subsunção do trabalho ao capital e reciclagem do
palavreado de Malthus (1996), a obra marxiana adquire mais impor-
tância não somente para desvendar o caráter reacionário da retórica
burguesa – como se tentou fazer aqui em relação ao envelhecimen-
to – mas para que se recorde que as lutas sociais engendradas pela
barbárie capitalista podem e devem derrubá-lo. Afinal, goste-se ou
não, “a burguesia produz, sobretudo, seus próprios coveiros. Seu de-
clínio e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis” (MARX;
ENGELS, 2010, p. 51).

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Esta publicação foi impressa em 2018 pela gráfica Imos
em papel offset 75g/m², fonte ITC Franklin Gothic,
tiragem de 500 exemplares.

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