As Ciências de Polícia em Portugal: Teoria, Reformismo e Prática Nos Finais Do Antigo Regime
As Ciências de Polícia em Portugal: Teoria, Reformismo e Prática Nos Finais Do Antigo Regime
As Ciências de Polícia em Portugal: Teoria, Reformismo e Prática Nos Finais Do Antigo Regime
1
Membro integrado não-doutorado do Centro Interdisciplinar de História, Cultura e Sociedades. Bolseira
de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia, SFRH/BD/84464/2012, projecto orientado
pela Prof. Doutora Laurinda Abreu, intitulado Crime, Criminosos e Justiça Régia em Portugal nos Finais
do Antigo Regime.
2
Alexandre Mendes Cunha, “Police Science and Cameralism in Portuguese Enlightened Reformism:
Economic Ideas and the Administration of the State during the Second Half of the 18th Century,” e-
Journal of Portuguese History 8 (2010): 36–47.
180
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História e Ciência: Ciência e Poder na Primeira Idade Global. Porto, 2016, p. 180‐211
3
José Luís Cardoso e Alexandre Mendes Cunha, “Enlightened Reforms and Economic Discourse in the
Portuguese-Brazilian Empire (1750-1808),” History of Political Economy 44 (2012): 619–41.
4
No fundo está aqui presente uma nova ideia de governamentalidade, onde a polícia para além significar
uma tecnologia colocada ao serviço do Estado, corporizou igualmente um programa social vastíssimo,
quiçá utópico. Michel Foucault, Seguranç a, territó rio, populaç ão: curso dado no Collè ge de France
(1977-1978) (Saõ Paulo: Martins Fontes, 2008), 421.
5
Keith Tribe, “Cameralism and the Science of Government,” The Journal of Modern History, 1984, 263.
6
Pascale Laborier, “La «bonne police». Sciences camérales et pouvoir absolutiste dans les États
allemands,” Politix 12 (1999): 7–35.
7
Andre Wakefield, “Police Chemistry,” Science in Context 13 (2000): 231–67; Jürgen Georg Backhaus,
ed., The Beginnings of Political Economy: Johann Heinrich Gottlob von Justi (Boston, MA: Springer US,
2009).
8
Johann Heinrich Gottlob von Justi, Grundsä tze der Policeywissenschaft: in einem vernü nftigen, auf den
Endzweck der Policey gegrü ndeten, Zusammenhange und zum Gebrauch Academischer Vorlesungen
abgefasset, 3rd ed. (Göttingen: W. Vandenhoek, 1782).
9
Andre Wakefield, “Books, Bureaus, and the Historiography of Cameralism,” European Journal of Law
and Economics 19, no. 3 (2005): 312–313.
10
O que implicava conhecimentos muito vastos. “Future cameralists would need to learn about royal
domain rights, agriculture, grazing, how to draft inventories of fields and animals, brewing, regalian
rights in general, mines and salt works, coins, postal privileges, taxes, forests and fisheries, “town and
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police affairs in general”. Ibid., 312; Rui Manuel de Figueiredo Marcos, História da Administração
Pública (Coimbra: Almedina, 2016), 299-303.
11
A partir das Ordenações Filipinas podemos referir áreas como o controlo da criminalidade, da
vagabundagem, da mendicidade e da higiene pública, bem como a verificação de pesos e medidas. José
Subtil, O Terramoto Político (1755-1759): Memória e Poder, (Lisboa: EdiUAL, 2007), 65.
12
José Subtil, O Terramoto Político (1755-1759): Memória e Poder, 65.
13
José Subtil, “Inspecteurs, Intendants et Surintendants. Structures administratives portugaises au 18e
Siècle,” Robert Descimon, Jean-Frédéric Schaub e Bernard Vincent (org.), Les Figures de
L’administrateur: Institutions, Réseaux, Pouvoirs en Espagne, en France et au Portugal, 16e-19e Siècles
(Paris, Éditions de l’ÉHÉSS), 1997, 135–149.
14
Nicolas de La Mare, Traité de la Police, où l’on trouvera l’histoire de son etablissement, les fonctions
et les prerogatives de ses Magistrats; toutes les loix et tous les reglemens qui la concernent. (Paris: J. Et.
P. Cot, 1705).
15
Rui Manuel de Figueiredo Marcos, “A felicidade não rogada e a administração pública de polícia em
Portugal,” in Estudos em homenagem ao prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, vol. 4, Stvdia
ivridica vol. 102-106 (Coimbra: Coimbra Editora, 2012), 339.
16
José Subtil, “Inspecteurs, Intendants et Surintendants. Structures administratives portugaises au 18e
Siècle.”, 135–49.
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17
Na opinião do autor, o Terramoto de 1755 foi o “acontecimento com maiores repercussões no processo
político português durante o Antigo Regime […] criou situações que proporcionaram dinâmicas políticas
que, noutras circunstâncias, não teria ocorrido, sobretudo de forma abrupta e desproporcional”. Subtil, O
Terramoto Político (1755-1759): Memória e Poder, 11.
18
Subtil, “Os Poderes do Centro,” in História de Portugal. O Antigo Regime (1620-1807), ed. António
Manuel Hespanha, vol. IV (Lisboa: Editorial Estampa, 1993), 161.
19
Nuno Gonçalo Monteiro, D. José, (Lisboa: Círculo de Leitores, 2006), 167.
20
Como se sabe existe alguma controvérsia em torno desta mudança de paradigma político. Nuno
Gonçalo Monteiro, “The Patterns of Portuguese Politics in the 18th Century or the Shadow of Pombal. A
Reply to António Manuel Hespanha,” e-Journal of Portuguese History 5 (2007): 56–61; António Manuel
Hespanha, “A Note on Two Recent Books on the Patterns of Portuguese Politics in the 18th Century,” e-
Journal of Portuguese History 5 (2007): 42–50; José Subtil, “Evidence for Pombalism: Reality or
Pervasive Clichés?,” e-Journal of Portuguese History 5 (2007): 51–55.
21
José Subtil, O Desembargo do Paço: 1750-1833 (Lisboa: UAL, 1996), 198–244.
22
António Manuel Hespanha, “A Punição e a Graça,” in História de Portugal. O Antigo Regime (1620-
1807), ed. António Manuel Hespanha, vol. IV (Lisboa: Editorial Estampa, 1993), 251–252. Para um
maior desenvolvimento desta questão veja-se António Manuel Hespanha, Justiça e Litigiosidade: história
e prospectiva (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1993), 321–327.
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23
Esta reforma desenvolveu-se em cinco áreas distintas: a criação da Intendência Geral da Polícia em
1760; a publicação da Lei da Boa Razão em 1769; a reforma dos Estudos Jurídicos na Universidade de
Coimbra datada de 1772; a criação da Junta do Novo Código em 1778 e finalmente a reforma da
organização judiciária em 1790. Hespanha, Justiça e litigiosidade, 322.
24
Hespanha, “A Punição e a Graça,” 253.
25
Mário Júlio de Almeida Costa e Rui Figueiredo Marcos, “Reforma Pombalina dos Estudos Jurídicos,”
in O Marquês de Pombal e a Universidade, org. Ana Cristina Araújo (Coimbra: Imprensa da Univ. de
Coimbra, 2014), 107–139.
26
Esta lei assim denominada já no século XIX, através dos comentários de José Homem Correia Telles. É
datada de 18 de Agosto de 1769 e apela à “recta ratio jusnaturalista”, visando impedir irregularidades nos
assentos e no direito subsidiário mas também fixar normas sobre a validade do costume e os elementos a
que o interprete poderia recorrer para satisfazer lacunas. Mário Júlio de Almeida Costa, História do
Direito Português, 5a ed. (Coimbra: Almedina, 2014), 402–409.
27
António Pedro Barbas Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal,
1640-1820 (Coimbra: Almedina, 2003), 61.
28
Ibid.
184
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29
António Manuel Hespanha, Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio (Lisboa: Almedina,
2015), 358.
30
Neste texto introdutório optamos por utilizar as prelecções que se encontram impressas, deixando para
um momento posterior a consulta das Prelecções que ainda se encontram manuscritas, nomeadamente na
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Sobre estas cf. Airton Cerqueira-Leite Seelaender,
“’Economia Civil’ e ‘Polícia’ no ensino do ‘Direito Pátrio’ em Coimbra: notas sobre as ‘Prelecções’ de
Ricardo Raymundo Nogueira” Tempo 16 (2011): 35–63.
31
Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, 558.
32
Aspecto que Laurinda Abreu analisou recentemente, dando enfâse aos campos da assistência, higiene e
saúde públicas. Laurinda Abreu, Pina Manique: Um Reformador no Portugal das Luzes (Lisboa:
Gradiva, 2013).
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operacionalizar no terreno o conceito de polícia tal como ele era entendido e praticado
na época.
Este texto, produzido no âmbito do II Workshop História e Ciência: Ciência e
Poder na Primeira Idade Global, pretende, ainda que resumidamente, traçar um
percurso das ciências de polícia em Portugal, tendo em conta o significado polissémico
que o conceito adquiriu na época moderna, nas suas vertentes teóricas e institucionais.
Com base, não só na produção teórica escrita em português, ao longo da segunda
metade de setecentos, mas também observando algumas das novas práticas,
enquadradas na actuação da Intendência Geral da Polícia, em especial após 1780,
tentaremos expor uma nova maneira de pensar a política, o direito e a administração do
Estado, que se pretendia que fosse, cada vez mais, científica e racional.
Noções de Polícia
33
Hélène L’Heuillet, “La généalogie de la police,” Cultures & Conflits, no. 48 (2002): 109–32.
34
Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, 558;
Seelaender, “’Economia Civil’ e ‘Polícia’ no ensino do ‘Direito Pátrio’ em Coimbra: notas sobre as
‘Prelecções’ de Ricardo Raymundo Nogueira,” 36–37.
35
Hespanha, Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio, 333.
36
Foucault, Seguranç a, territó rio, populaç ão, 421.
37
Ibid., 425.
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38
Pascale Laborier et al., “Les Sciences Camérales, Prolégomènes à toute Bureaucratie Future ou Parades
pour Gibiers de Potence?,” in Les Sciences Camérales: Activités Pratiques et Histoire des Dispositifs
Publics (Paris: Presses Universitaires De France, 2011), 11.
39
Hespanha, Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio, 333.
40
Foucault, Seguranç a, territó rio, populaç ão, 426.
41
Keith Tribe, “Cameralism and the Science of Government,” The Journal of Modern History, 1984,
263–84.
42
Andre Wakefield, The Disordered Police State (Chicago: University of Chicago Press, 2009).
43
Keith Tribe, Governing Economy: The Reformation of German Economic Discourse, 1750-1840
(Cambridge: Cambridge University Press, 1988), 35–54.
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le modèle. Elles produisent un savoir sur l’Etat, définissent les modes de
fonctionnement des pouvoirs classiques comme la justice, l’armée, les
finances, la police, mais proposent également de nouvelles formes d’action
politique et de ce que l’on nommerait aujourd’hui des instruments d’action
publique”44.
No caso dos Estados Alemães, entre os finais do século XVII e o início do
século XVIII, foi necessário reorganizar o sistema de cobrança de impostos, para
financiar diversas guerras, provocando alterações na estrutura administrativa do Estado
para providenciar exércitos mais eficientes. Era também inevitável um crescente
número de homens para alimentar estes mesmos exércitos, ou seja, criar condições para
o aumento da população45.
Tal desiderato conseguir-se-ia através de melhores condições de vida, ao
valorizaram-se as práticas higiénico-sanitárias, mas também o incremento da agricultura
e da indústria, fundamentais para criar riqueza. Estas também seriam o meio ideal para
empregar vagabundos, vadios e ociosos, grupos populacionais em torno dos quais os
legisladores procuraram desenvolver práticas mais sofisticadas e úteis de controlo
social, dentro das quais se incluía a educação.
Há ainda que especificar que dentro das ciências de polícia emergiram três tipos
de expressões que, ainda que relacionadas, são distintas: os tratados, o debate
académico e os textos produzidos a partir desta temática concreta46.
Os tratados científicos ofereciam ao Estado novos meios de governar,
correspondendo ainda a uma nova política de regulação económica que incluía
planificação da colonização, organização do ensino, regulação do urbanismo, fomento
das artes e das ciências47.
A difusão das ideias cameralistas pela Europa não se processou de igual modo,
tendo diversas nuances consoante o país e a praxis política vigente. O caso francês é
diferente do alemão, pois apesar da grande divulgação do Traité de la Police de Nicolas
44
Laborier et al., “Les Sciences Camérales, prolégomènes à toute bureaucratie future ou parades pour
gibiers de potence?,” 13.
45
Ibid., 14–15.
46
Ibid., 13–14.
47
Marcos, “A felicidade não rogada e a administração pública de polícia em Portugal,” 363; Cunha,
“Police Science and Cameralism in Portuguese Enlightened Reformism: Economic Ideas and the
Administration of the State during the Second Half of the 18th Century,” 5.
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de la Mare48, esta disciplina não seria objecto de especialização académica, ainda que
muito se tenha escrito sobre ela49. Todavia, a França teve uma institucionalização
relativamente precoce da polícia, servindo depois como modelo para outros estados
europeus50.
A polícia francesa, nas palavras de Michel Foucault, foi concebida “sem teoria,
sem sistema e sem conceptualização”51. A sua institucionalização deu-se através da
promulgação de medidas, decretos, normas jurídicas e alguns projectos desenvolvidos
por personalidades da administração do Estado52.
O édito de criação da Polícia de Paris, datado de 1667, não deixava de
revalorizar a ideia de bem comum, no sentido de promover a abundância, controlar as
desordens e assistir aos pobres, com o objectivo de erradicar a mendicidade e a
vagabundagem, ligando-se intimamente à vida urbana e à sua correcta
regulamentação53. Ainda que a polícia estivesse sempre interligada com a justiça, esta
nova instituição colocou-a num plano de actuação distinto da justiça contenciosa, tal
como aconteceria cerca de um século mais tarde em Portugal54.
Seria então para fazer face às necessidades apontadas anteriormente, que surgiria
esta “nova” polícia, agregando as suas funções tradicionais, de vigilância e manutenção
da ordem pública, que no caso português se encontravam dispersas por diversas
jurisdições, a novas ideias com vista à manutenção de uma felicidade pública que
incluiria questões económicas, de higiene e saúde. Desta associação nasceriam
48
Esta obra iria influenciar o funcionamento de diversas polícias, entre as quais a portuguesa. Segundo
este tratado, a actuação da polícia dividia-se em três áreas diferenciadas: a economia e o comércio; a
ordem e a segurança; e a saúde e higiene públicas. Nicolas de la Mare, Traité de la Police, où l’on
Trouvera l’histoire de Son Etablissement, les Fonctions et les Prerogatives de Ses Magistrats; Toutes les
Loix et Tous les Reglemens qui la Concernent. (Paris: J. Et. P. Cot, 1705).
49
Laborier et al., “Les Sciences Camérales, Prolégomènes à Toute Bureaucratie Future ou Parades Pour
Gibiers de Potence?,” 12.
50
Jean-Marc Berlière, Dominique Kalifa, e Vincent Milliot, eds., Métiers de police : Être policier en
Europe, xviiie-xxe siècle (Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2008).
51
Foucault, Seguranç a, territó rio, populaç ão, 428.
52
Vincent Milliot, Les mé moires policiers, 1750-1850: é critures et pratiques policiè res du siè cle des
lumiè res au second empire (Rennes: Presses universitaires de Rennes, 2006).
53
Foucault, Seguranç a, territó rio, populaç ão, 452–455; Vincent Milliot, “Saisir l’espace urbain: mobilité
des commissaires et contrôle des quartiers de police à Paris au XVIIIe siècle,” Revue d’Histoire Moderne
et Contemporaine 50 (2003): 57–80.
54
Paolo Napoli, Naissance de la police moderne. Pouvoir, normes, société (Paris: La Découverte, 2003).
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igualmente novas formas de “vigiar e punir”, às quais não foram alheias novas
concepções trazidas por um direito cada vez mais racional e científico55.
Como observou Pierangelo Schiera, a abertura de “novos campos ao interesse
público” traduziu-se numa importante mutação no Estado Moderno, convertendo-o num
Estado Administrativo, sendo delimitado a partir de toda a política interna do Estado,
onde se situavam as matérias da polícia56.
Portanto, nos finais de Setecentos a ideia de polícia ligava-se de forma mais
restrita ao sentido de administração pública57. Tratou-se de um processo teórico e
intelectual, mas também de operacionalizar novas técnicas administrativas, através de
burocratas cada vez mais especializados, que proporcionaram uma progressiva, ainda
que lenta, separação entre os domínios político e administrativo, decisivas, segundo
alguns autores na transformação do Estados Absoluto em Estado de Direito58.
Este percurso consumou-se na criação ou reforma de instituições vocacionadas
para promover não só a ordem e tranquilidade pública mas também a prosperidade do
Estado. Foi com este propósito que surgiu em Portugal a Intendência Geral da Polícia59.
55
Sílvia Alves, Punir e humanizar : o direito penal setecentista. (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2014), 20–40.
56
Pierangelo Schiera, “A Polícia como síntese de ordem e de bem-estar no moderno Estado centralizado,”
in Poder e Instituições na Europa do Antigo Regime: Colectânea de Textos, ed. António Manuel
Hespanha (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1984), 307–319.
57
É este o sentido que Marcello Caetano lhe deu e mais recentemente os trabalhos de Rui Figueiredo
Marcos também estabeleceram ligações nesse sentido. Marcello Caetano, Manual de direito
administrativo, 10a ed, vol. II (Coimbra: Almedina, 2005), 1145–1153.
58
Cardoso e Cunha, “Enlightened Reforms and Economic Discourse in the Portuguese-Brazilian Empire
(1750--1808),” 7; Marcos, História da Administração Pública, 286–287.
59
Para uma visão detalhada deste assunto veja-se, entre outros, Gonçalo Rocha Gonçalves,
“Modernização policial: as múltiplas dimensões de um objecto historiográfico,” CIES e-Working Papers,
no. 116 (2011). Deve relembrar-se que o caso inglês é singular quando comparado a outros países da
Europa continental. Em Inglaterra o termo polícia foi pouco utilizado até ao início do século XIX. As
funções policiais tradicionais eram desempenhadas ao nível paroquial, através de voluntários. Em
Londres, devido à dimensão da cidade, o sistema era um pouco diferente. Algumas paróquias com maior
concentração demográfica, contratavam homens para procederem à vigilância nocturna da urbe. Em 1829
foi criada a Metropolitan Police, que traduzia uma certa visão mais liberal da sociedade, onde a polícia
tinha uma intervenção mais ligada à segurança do individuo e da propriedade. Ibid., 6.
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60
Seelaender, “’Economia Civil’ e ‘Polícia’ no ensino do ‘Direito Pátrio’ em Coimbra: notas sobre as
‘Prelecções’ de Ricardo Raymundo Nogueira,”38.
61
Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico, botanico,
brasilico, comico, critico, chimico, dogmatico, dialectico, dendrologico, ecclesiastico, etymologico,
economico, florifero, forense, fructifero...autorizado com exemplos dos melhores escritores portugueses,
e latinos, vol. VI (Coimbra: no Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712), 575.
62
António Delgado da Silva, Collecção da legislação Portugueza desde a última compilação das
Ordenações. 1750-1762 (Lisboa: Typografia Maigrense, 1830), 731–739.
63
O diploma português de 25 de Junho de 1760 consagrou assim o mesmo princípio da polícia francesa,
para que as leis relativas à segurança pública tivessem efectiva aplicação e, como consequência os
resultados pretendidos, algo que na opinião de Sebastião José de Carvalho e Melo ainda não havia
sucedido. “Ditando a razão, e tendo-se manifestado por uma longa e decisiva experiência, que a justiça
contenciosa, e a polícia da Corte e do Reino são entre si tão incompatíveis, que cada uma delas, pela sua
vastidão se faz quase inacessível às forças de um só magistrado: havendo resultado da união de ambas em
uma só pessoa a falta de observância de tantas e tão santas leis [...] sem que com tudo se pudessem até
agora conseguir os úteis e desejados fins [...] até que sobre o desengano de tantas experiências vieram
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nestes últimos tempos a separar, e distinguir as sobreditas jurisdições com o sucesso de colherem logo
delas os pretendidos frutos da paz, e do sossego público”. Silva, Collecção da legislação Portugueza
desde a última compilação das Ordenações. 1750-1762, 731.
64
O aparelho judicial de Lisboa era bastante complexo, por via do peso da demografia da cidade, superior
a qualquer outra em Portugal. Destaca-se a Casa da Suplicação, principal tribunal de última instância do
Reino. A sua actividade repartia-se por diversos domínios, entre os quais o juízo crime da corte, que
julgava as causas crime “ocorridas no local onde o Rei e a sua corte estivesse ou num raio de cinco
léguas”, Ordenações Filipinas, vol. I (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985), p. 27. Este juízo
tinha alçada sobre os corregedores e juízes do crime de Lisboa. Estes doze ministros criminais, dos quais
cinco eram corregedores e sete eram juízes do crime, exerciam funções de fiscalização, de modo a
garantir a segurança e ordem pública da cidade. Os corregedores do crime eram nomeados pelo
Desembargo do Paço e os juízes pelo Senado da Câmara de Lisboa. Nuno Camarinhas, Juízes e
Administração da Justiça no Antigo Regime: Portugal e o Império Colonial, Séculos XVII E XVIII
(Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian - FCT, 2010), 114–117.
65
Veja-se em particular Flávio Borda d’ Água, “L’Intendance Générale de Police de la Cour et du
Royaume du Portugal : Quelques Réflexions sur son Histoire et ses Références Européennes,” in
Circulations Policières : 1750-1915 (Lille: Presses de l’université du Septentrion, 2012), 139–58.
66
Rui Manuel de Figueiredo Marcos, A legislaç ão pombalina: alguns aspectos fundamentais (Coimbra:
Almedina, 2006), 147.
67
Rui Manuel de Figueiredo Marcos, História da Administração Pública (Coimbra: Almedina, 2016),
292.
192
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68
Ordenações Filipinas, vol. III (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1985), 725–730.
69
António Manuel Hespanha, Guiando a Mão Invisível: Direitos, Estado e Lei no Liberalismo
Monárquico Português (Coimbra: Almedina, 2004), 33.
70
“Sustentava que as manobras opinativas dos doutores juristas, pela sua imensa diversidade, constituíam
factor de perturbação da indispensável segurança jurídica dos cidadãos. Daí o determinar-se que a referida
lei se observasse literal e exactamente, não se consentindo em interpretação alguma, que era, de todo em
todo, proibida e nula”. Marcos, A legislação pombalina : alguns aspectos fundamentais, 149.
71
Ordenações Filipinas, III: 728.
72
Nuno J. Espinosa Gomes da Silva, História do direito português: fontes de direito, 5a ed., (Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2011), 407.
73
Marcos, História da Administração Pública, 287–289.
193
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História e Ciência: Ciência e Poder na Primeira Idade Global. Porto, 2016, p. 180‐211
81
Hespanha, Cultura Jurídica Europeia: Síntese de um Milénio, 328–329.
82
Segundo António Manuel Hespanha, “neste projeto um bom apoio teórico era constituído por estas
concepções de uma ordem geométrico-matemática do cosmos, regida por grandes princípios que podiam
servir de verdadeiros axiomas da ciência do direito, a partir dos quais se pudessem extrair, pelos métodos
de demonstração lógica, próprios das ciências naturais, as restantes regras da convivência humana”.Ibid.,
329.
83
Ibid.
84
Ibid., 332–333.
85
Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, 380.
86
Entre outros factores assinalou-se a introdução do estudo do direito nacional em Espanha, que
obedeceu a três directrizes: a elaboração de compêndios de direito local; o estudo directo das normas
legais e o estabelecimento de um sistema de concordâncias e discordâncias com o direito romano. Ibid.,
195
Gama, Maria Luísa – As Ciências de Política em Portugal: teoria, reformismo e prática nos finais do Antigo Regime.
História e Ciência: Ciência e Poder na Primeira Idade Global. Porto, 2016, p. 180‐211
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História e Ciência: Ciência e Poder na Primeira Idade Global. Porto, 2016, p. 180‐211
sua história, apontava como grave problema a preferência dada ao direito canônico e
romano91. Para além disso relacionava o atraso económico do país com a má qualidade
do ensino e da educação, sendo este o ponto de partida para uma reforma profunda92.
Para os jurisconsultos deste período, o direito nacional, no qual se incluía não só as
Ordenações Filipinas mas também a vasta legislação extravagante, começou a adquirir
grande importância, ainda que o direito romano continuasse a ser aplicado,
principalmente por ser uma fonte da legislação nacional.93
No Compêndio Histórico observamos também a directriz que condena a
preferência dada ao ensino do direito romano, em detrimento das leis nacionais, e que
aconselha o recurso permanente à história da literatura jurídica, às fontes e às ciências
auxiliares, critica que também já se observava na lei da boa razão94.
Esta ideia esteve bastante presente na reforma de 1772 e impulsionou a criação
da cadeira de Direito Pátrio95. Esta nova disciplina fio leccionada nas Faculdades de
Leis e Cânones privilegiando pois as leis nacionais através da elaboração de manuais ou
compêndios sistematizados, uma solução própria do pensamento das luzes96. A
valorização da legislação nacional como objecto do ensino superior, não só foi fulcral
para a preparação dos futuros burocratas e servidores do Estado, como também para a
autonomização do direito pátrio “enquanto objecto do conhecimento científico”97.
O desenvolvimento em Portugal de uma “historiografia jurídica em moldes
científicos”98, para além de ficar ligado a Luís António Verney e ao seu Verdadeiro
Método de Estudar inspirou-se também nas Universidades alemãs, ao visar que os
91
Luís António Verney, Verdadeiro metodo de estudar: para ser util à Republica, e à Igreja
proporcionado ao estilo, e necesidade de Portugal, vol. II (Valensa [Nápoles]: na oficina de Antonio
Balle [Genaro e Vicenzo Muzio], 1746), 139–228.
92
Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, 61.
93
Freitas, Um Testemunho na Transição para o Século XIX: Ricardo Raimundo Nogueira: Análise
Histórico-Jurídica, 51–52.
94
Mário Júlio de Almeida Costa e Rui Figueiredo Marcos, “Reforma Pombalina dos Estudos Jurídicos.”
In O Marquês De Pombal e a Universidade, Ana Cristina Araújo (org), (Coimbra, Imprensa da
Universidade, 2014), 113.
95
Assim designada por Costa, História do Direito Português, 401. Marcos, A legislaç ã o pombalina:
alguns aspectos fundamentais, 153–174.
96
Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, 422.
97
Ibid., 381.
98
Costa, História do Direito Português, 54.
197
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99
Marcos, A legislaç ão pombalina, 123.
100
Costa e Marcos, “Reforma Pombalina dos Estudos Jurídicos”, 107–39.
101
Ibid., 106–107.
102
Estatutos da Universidade de Coimbra compilados debaixo da immediata e suprema inspecção de El
Rei D. José I, vol. II (Lisboa: Na Regia Officina Typográfica, 1772), 284.
103
Freitas, Um Testemunho na Transição para o Século XIX: Ricardo Raimundo Nogueira: Análise
Histórico-Jurídica, 86–89.
104
Teófilo Braga, Historia da Universidade de Coimbra nas suas relações com a Instrucção Publica
Portugueza, vol. III (Lisboa: Typ. da Academia Real das Sciencias, 1898), 704–705.
198
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também não terminaria com sucesso esta tarefa, ainda que fosse dando conta dela à
Universidade. O seu compêndio só seria impresso algumas décadas mais tarde105.
Merece destaque a forma como Pascoal de Mello Freire introduziu a reforma da
Universidade de Coimbra na sua História do Direito Civil Português, dando ênfase à
criação da “Ciência do Direito Pátrio”106, considerando que através dela a ciência do
direito entrava finalmente na Universidade.
Por esta altura a questão do direito nacional teria consequências aquando da
elaboração do Novo Código, por se pretender que este se adequasse aos novos estatutos.
Tentava-se “delimitar com clareza a nova filosofia do direito definida
fundamentalmente pelos novos estatutos de 1772 […] com vista à elucidação da teoria
política historicamente vigente”107.
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“entendimento claro das leis, cuja inteligência se encontraria obscurecida pela sua
multiplicidade e obsoletismo”110. Seguia-se o mesmo caminho percorrido por outras
nações esclarecidas, nomeadamente as Germânicas (Áustria e Prússia) mas também a
Toscana e a Sardenha. Esta procura da codificação relaciona-se também com a nova
ideia do direito como ciência, ligada à Polícia111, em que se fundamenta não só esta
ciência da legislação, mas também a economia política e o direito público, ocupando a
segurança um lugar fundamental no funcionamento do Estado, tendo como fim último a
felicidade pública112.
Os planos para a elaboração de diversos códigos foram vários, incluindo um
criminal, um de direito público ou de direito comercial, mas nenhum foi aprovado, com
excepção, e só alguns anos depois, de um código penal militar113.
Tal como na questão dos novos compêndios universitários, que tardavam a
chegar, também o projecto do Novo Código foi sofrendo diversos atrasos em relação à
ideia original. A Junta nomeada em 1778 não produziu resultados satisfatórios e a 22 de
Março de 1783 Pascoal de Mello Freire foi nomeado para que apresentasse um plano
para dois novos códigos: um de direito público e outro criminal, correspondendo
respectivamente aos livros segundo e quinto das Ordenações. Os dois projectos,
concluídos num espaço de cinco anos, seriam já muito influenciados pelos principais
autores do pensamento penal iluminista europeu, entre os quais Beccaria114.
A tentativa de reforma da legislação durante este período fracassaria. Sabe-se
que terá continuado mesmo após a partida da família real para o Brasil, mas sem
resultados visíveis. Nesta altura o número de leis extravagantes posteriores às
Ordenações Filipinas ultrapassaria já o número de quatro mil115.
110
Silva, Collecção Da Legislação Portugueza Desde a Última Compilação Das Ordenações. 1775-
1790, 162–164.
111
Homem, Judex Perfectus: Função Jurisdicional e Estatuto Judicial em Portugal, 1640-1820, 823.
112
Ibid., 821–823.
113
Maria José Moutinho Santos, “Liberalismo, legislação criminal e codificação: O Código Penal de
1852: Cento e cinquenta anos da sua publicação,” Revista da Faculdade de Letras: História, III, 3 (2002):
97–102.
114
Sobre o projecto do Código Criminal veja-se, Paulo Sérgio Pinto de Albuquerque, A reforma da
justiça criminal em Portugal e na Europa, (Coimbra: Almedina, 2003), 66–77.
115
António Pedro Barbas Homem, “A ‘Ciência da Legislação’: conceptualização de um modelo jurídico
no final do Ancien Régime,” Legislação. Cadernos de Ciência da Legislação, no. 16 (1996): 45.
200
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116
Silva, Collecção da Legislação Portugueza desde a Última Compilação das Ordenações. 1775-1790,
255–256.
117
ANTT, Intendência Geral da Polícia, liv. 93, fls. 368-371.
201
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118
Abreu, Pina Manique: Um Reformador no Portugal das Luzes, 9-17.
119
Segundo Suplemento à Gazeta de Lisboa, nº 14, 6 de Abril de 1782.
120
ANTT, Intendência Geral da Polícia, liv. 93, fl. 331.
121
João Rosado Vilalobos e Vasconcelos, Elementos da Polícia Geral de Hum Estado, vol. II (Lisboa: Na
Off. Patr. de Francisco Luiz Ameno, 1787), 193.
122
Luís Bigotte Chorão, “O Discurso de Duarte Alexandre Holbeche : subsídios para a História do Novo
Código,” in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Manuel Gomes da Silva, Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa (Coimbra: Coimbra Editora, 2001), 1129–87.
123
Em 1791 Pina Manique descreveu detalhadamente a jurisdição do Intendente Geral da Polícia,
dividindo-a em oitenta e cinco pontos distintos. Laurinda Abreu fez a sua análise e dividiu-os em quatro
áreas distintas: controlo de comportamentos, onde cabe a mendicidade, a vagabundagem e as mulheres
mundanas; medidas sociais e de saúde pública, onde estão presentes as prisões, boticários e o combate às
pestes; controlo de espaços, ponto onde se insere a iluminação pública, limpeza de ruas, inspecção de
estradas; e finalmente salários preços e quantidades, onde se controlava desde a venda de prata e ouro, aos
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direito científico deveria ser conduzida através da simplicidade das leis, cuja clareza
deveria ser suficiente para que todos as compreendessem e assim as pudessem
cumprir127.
A ideia da clareza legislativa, pela qual a Lei da Boa Razão já pugnava, esteve
presente ao longo de todo este período e Holbeche não foi, como é evidente, o único a
defendê-la. Porém, apesar das suas referencias à noção de polícia a sua vertente mais
alargada de segurança e tranquilidade pública, a sua obra, ao contrário do que viria a
suceder com outras nos anos seguintes, não reflectia no seu conteúdo teórico a actuação
prática da polícia.
Esta surgiria, em parte, no primeiro tratado escrito em língua portuguesa sobre a
polícia, Elementos da Polícia Geral de um Estado de João Rosado de Villalobos e
Vasconcelos,128 impresso entre 1786 e 1787. Esta obra era uma tradução a partir do
francês da obra de Justi e o autor acrescentou ao texto algumas notas da sua autoria, que
reflectiam a actuação da Intendência em Portugal, assinalando que Pina Manique “tem
posto em prática regras para polir uma nação, por meio de todas as acertadíssimas
operações no seu respeitável ministério, implantando em Portugal o que em outros
países é alma da fortuna e abundância e de todas as comodidades gerais do Estado e
particulares de cada um dos indivíduos”129.
Clarificando os objetos da polícia dividiu-os entre religião, costumes, saúde dos
habitantes, edifícios públicos, formusura das cidades, segurança e tranquilidade pública,
ciências e artes liberais, comércio, manufacturas e os pobres. Na sua opinião a polícia
deveria igualmente ter sob a sua alçada os mendigos, os pobres envergonhados, os
inválidos, os doentes indigentes. Expressou algo que Pina Manique colocou em prática
desde o momento em que entrou na Intendência, como é possível verificar pela
informação que circula entre esta instituição, Secretarias de Estado e diversas
magistraturas locais: “obrigar os mendigos a entrarem em casas de trabalho, eliminando
assim a sua desprezível preguiça que os impedia de trabalhar”130.
Num sentido mais conciso, a polícia seria tudo aquilo que contribui para a
127
Chorão, “O Discurso de Duarte Alexandre Holbeche : subsídios para a História do Novo Código,”
1172.
128
João Rosado Vilalobos e Vasconcelos, Elementos da Polícia Geral de Hum Estado, II vols. (Lisboa:
Na Off. Patr. de Francisco Luiz Ameno, 1786).
129
Ibid., 6.
130
Vasconcelos, Elementos da Polícia Geral de Hum Estado, 1787, II:192–196.
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pontes e fontes; e geralmente sobre todas aquelas coisas, que se julgarem
precisas e indispensáveis para as necessidades e tracto da vida humana”136.
Na opinião de Paulo Ferreira da Cunha, o capítulo que Pascoal de Mello Freire
dedicou à polícia foi, sem dúvida, o mais importante de todo o projecto de Novo
Código, ainda que o considere utópico e até algo literário, mas não deixa de ser a génese
de um programa político esclarecido com vista à obtenção da tão propagada felicidade
pública137.
A ideia de polícia passaria albergava assim diversas dimensões, conservando não
só a noção de bem comum138, bem cara à teoria política portuguesa, mas também a de
felicidade pública139, trazendo consigo diversas considerações sobre aumento e
subsistência da população, objectivo claro das ciências de polícia140.
Mais tarde, nas Instituições de Direito Civil Português, a abrangência que deu à
polícia foi bastante maior. Para além de traçar um quadro histórico da instituição em
Portugal, definiu claramente os seus objectos e deu um corpo teórico à experiência
prática que Pina Manique vinha desenvolvendo desde 1780. Contudo, não deixou de
alertar para a necessidade de uma nova reforma para que se definisse com maior rigor a
jurisdição da polícia em relação a outros magistrados, pois os conflitos eram vários.
Mello Freire estaria certamente ao corrente dos problemas da Intendência com duas
instituições em particular: a Casa da Suplicação,141 em particular na actuação sobre o
pequeno crime e o Senado da Câmara de Lisboa, em questões de obras, limpeza e
136
Freire, O Novo Código do Direito Público de Portugal, 136.
137
Cunha, Temas e perfis da filosofia do direito Luso-Brasileira, 119.
138
Saliente-se também o alargamento deste conceito ao controlo de espaços e acontecimentos culturais,
dos quais se destacam a literatura e o teatro, mas também de locais propícios às sociabilidades ,
destacando-se os cafés, tabernas ou casas de pasto, não só com o objectivo de punir comportamentos
desviantes, mas também de os prevenir , tendo em conta a moral dominante. Laborier, “La Bonne Police.
Sciences Camérales et pouvoir absolutiste dans les États Allemands,” 8. Para o caso português veja-se
Maria Alexandre Lousada, “Espacialidade em Debate: práticas sociais e representações em Lisboa nos
finais do Antigo Regime,” Ler História, 2005, 33–46.
139
Laborier, “La «bonne police». Sciences camérales et pouvoir absolutiste dans les États allemands,” 8.
140
Nas críticas que fez ao projecto de Pascoal de Mello Freire, reflectindo os debates da Academia de
Ciências e os muitos pareceres compilados nas suas Memórias Económicas, António Ribeiro dos Santos
deu particular atenção à legislação económica, afirmando que a falta de normas neste campo constituía
um dos motivos para o empobrecimento do Estado, pelo que o novo código deveria “firmar [...] a
legislação económica, e remediar nele a falta que disso houve nas últimas compilações das nossas leis.
Neste aspecto Ribeiro dos Santos apontava como aspectos a intervir as leis da puberdade, a multiplicação
dos matrimónios, diminuição do número de celibatários, estabelecimento de novas povoações novas
políticas de saúde e a construção de casas de expostos e órfãos, pontos em que a Intendência Geral da
Polícia procurava actuar. Pereira, O pensamento político em Portugal no século XVIII, 275-277.
141
ANTT, Feitos Findos, Casa da Suplicação, liv. 19, fl. 25.
206
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ordenamento do espaço público, bem como com magistrados locais que muitas vezes
não cumpriam as suas ordens, acusados de inércia, má vontade e corrupção142.
Mello Freire deu assim particular atenção a um dos campos em que Pina
Manique mais intervinha. Interligando a criminalidade e a pobreza salientava que
nenhuma das penas previstas para mendigos, vagabundos ou ociosos na legislação teria
resultado significativo, se estas pessoas continuassem sem ter meios de subsistência143,
ideia que o Intendente defendeu por diversas vezes, atribuindo dessa forma um lugar
fundamental à emenda útil do criminoso. Nas Instituições de Direito Criminal, Freire
também defendeu que deveria ser a polícia a sustentar os presos pobres, ocupando-os
em trabalhos para que daí pudessem mais facilmente retirar o seu sustento144.
Todavia, Pascoal de Mello Freire não foi o único jurista deste período a
sustentar a necessidade de uma colaboração mais estreita e eficaz entre polícia e
magistrados.
Luís Joaquim Correia da Silva145, lente da Universidade, embora menos
conhecido que Mello Freire, distinguiu no âmbito da polícia a actuação dos
corregedores. Estes detinham algumas funções policiais, principalmente fora de Lisboa
e eram, dentro do grupo dos magistrados subordinados ao Intendente Geral da Polícia,
um dos seus principais interlocutores. Para Correia da Silva os corregedores eram os
principais promotores da felicidade pública, pois aplicavam a justiça e impulsionavam a
prática policial. Esta deveria assentar numa população numerosa e como tal o défice
demográfico português deveria ser combatido através da intervenção da policia. Porém,
apesar de relacionar a polícia com a economia, seguindo a linha dos principais tratados
sobre esta matéria, não deu particular atenção às leis económicas, ou seja ao comércio e
manufacturas146.
142
ANTT, Ministério do Reino, mç. 454, Rondas da Polícia.
143
Pascoal José de Mello Freire, “Instituições de Direito Civil Português,” trans. Miguel Pinto de
Meneses, Boletim do Ministério da Justiça, Lisboa, no. 161–66 (1966): 161–166.
144
Pascoal José de Mello Freire, “Instituições de Direito Criminal Português,” Boletim do Ministério da
Justiça 155–56 (1966): 207.
145
Paulo Merêa, Estudos de história do ensino jurídico em Portugal (1772-1902) (Lisboa: INCM, 2005),
355–364.
146
Seelaender, “’Economia Civil’ e ‘Polícia’ no ensino do ‘Direito Pátrio’ em Coimbra: notas sobre as
‘Prelecções’ de Ricardo Raymundo Nogueira,” 41–43.
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158
Veja-se o documento que resume, nas palavras de Pina Manique, a jurisdição do Intendente Geral da
Polícia. ANTT, Ministério do Reino, mç.454 Jurisdição do Intendente Geral da Polícia.
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