Anais ENDIPE 2020
Anais ENDIPE 2020
Anais ENDIPE 2020
COMITÊ
COMITÊ ORGANIZADOR SECRETARIA
Andrea Vilella Mafra da Silva – ISERJ Helena Amaral da Fontoura – FFP/UERJ
Antonio Flavio Barbosa Moreira – UCP Silvana Soares de Araújo Mesquita – PUC-Rio
Claudia Miranda – UNIRIO
Débora Barreiros – UERJ
Edméa Oliveira dos Santos – UFRRJ PRODUÇÃO EXECUTIVA
Inês Barbosa de Oliveira – UNESA Cristina Lucia Lima Alves – EB/SME-Rio
Luis Paulo Cruz Borges – EB/CAp-UERJ Fernanda Lahtemaher Oliveira – EB/CAp-UFRJ
Maria das Graças C. A. Nascimento – UFRJ Leticia Costa da Silva Mesquita – Graduanda IQ/UFRJ
Maria Inês Marcondes – PUC-Rio Leticia Oliveira Souza – EB/SME-Araruama
Mônica Vasconcellos – UFF Luis Paulo Cruz Borges – EB/CAp-UERJ
Naiara Miranda Rust – IBC Talita da Silva Campelo – EB/SME-Caxias (Coord.)
Patrícia Bastos de Azevedo – UFRRJ
Sandra Maciel – UFF APOIO TÉCNICO
Talita Vidal Pereira – FEBF/UERJ Alessandra do Nascimento dos Santos Moraes
Vania Finholdt Angelo Leite – FFP/UERJ Guilherme de Azeredo Coelho
Yrlla Ribeiro de Oliveira C. Silva – INES Larissa da Cunha Gama
COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandra Garcia Ferreira Lima – FFP/UERJ Maria das Graças C. A. Nascimento – UFRJ
Ana Ivenicki – UFRJ Maria Inês Marcondes – PUC-Rio
Andrea Rosana Fetzner – UNIRIO Naiara Miranda Rust – IBC
Adriana Hoffman – UNIRIO Patricia Raquel Baroni – UFRJ
Anelise Monteiro do Nascimento – UFRRJ Rosanne Dias Evangelista – UERJ
Antonio Flavio Barbosa Moreira – UCP Talita Vidal Pereira – FEBEF/UERJ
Carmen Teresa Gabriel Le Ravallec – UFRJ Vania Leite – FFP/UERJ
Claudia Fernandes – UNIRIO Vera Maria F. Candau – PUC-Rio
Edméa Oliveira dos Santos – UFRRJ Victor Giraldo – UFRJ
Giseli Barreto da Cruz – UFRJ Walcéa Barreto Alves – UFF
Graça Regina Reis – EB/CAp-UFRJ Wânia Gonzalez – UNESA
Inês Barbosa de Oliveira – UNESA Yrlla Ribeiro de Oliveira C. Silva – INES
Marcia Denise Pletsch – UFRRJ
ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO
F82
Didática(s) entre diálogos, insurgências e políticas / organização: Giseli Barreto da Cruz; Claudia
Fernandes; Helena Amaral da Fontoura; Silvana Mesquita. - 1. ed. - Rio de Janeiro/Petrópolis: Faperj;
CNPq; Capes; Endipe /DP et Alii, 2020.
641 p. E-book
Inclui bibliografia
digital
ISBN 978-85-8427-051-4
CDU: 37.02
20/07/2020
XX ENDIPE - 2020
Avenida Pasteur, 250 – Urca – 22290-902
RIO DE JANEIRO – RJ – BRASIL
Tel: (21) 2542-2281
E-mail: [email protected]
Homepage: http://www.xxendiperio2020.com.br/home
Rio de Janeiro
2020
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO - 10
PARTE 1
PARTE 2
PARTE 3
PARTE 4
CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS. PELO CONTRÁRIO, SÃO
QUALIDADES POSITIVAS: SUPERANDO A HEGEMONIA VIDENTE PARA UMA PRÁXIS
INCLUSIVA DE ENSINO - 350
Eder Pires de Camargo (UNESP)
PARTE 5
PARTE 6
Em tempos tão desafiadores, organizar um livro com textos que buscam didáticas outras,
formas de pensar e fazer a educação escolar de maneiras insurgentes, diferentes, nos pareceu de
grande importância e compromisso com a área e com nossos(as) colegas professores(as),
especialmente aos colegas da educação básica.
Todos os textos aqui presentes foram elaborados a partir de um convite por ocasião da
realização do XX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (XX Endipe-Rio). Os textos
foram escritos a partir dos temas para os quais os simposistas foram convidados, mas vão além de
suas falas no evento, portanto não se configura, esse livro, em anais de Endipe. Nossa ideia foi
produzir um livro que trouxesse reflexões sobre a Didática e as Práticas de Ensino com temas
contemporâneos e urgentes.
A produção do livro se deu em meio às incertezas trazidas pela pandemia mundial causada
pela Covid-19. Os desafios para sua produção foram enormes, inclusive para os autores que
buscaram inspiração, muitos já em isolamento social em suas casas. Esperamos que sua leitura seja
tão instigante e desafiadora quanto foi sua produção.
O texto de Flavia Medeiros Sarti, intitulado “Estágio, Pibid e Residência Pedagógica: entre
convergências e disputas na formação inicial docente” discute os temas presentes no título, tanto os
dois programas federais como o estágio e suas especificidades, diferenciando o que cada um dos
três espaços formativos traz de legislação específica e de área de atuação dentro do campo da
formação docente, questionando o produtivismo associado aos programas governamentais,
enfatizando a necessidade de estratégias efetivas de enfretamento dos problemas identificados no
desenvolvimento dos estágios supervisionados no país.
O texto de Lucília Augusta Lino, “Base Nacional Comum da formação como proposta de
desmonte e descaracterização da formação” desvela o papel da Associação Nacional pela Formação
dos Profissionais da Educação (Anfope), que defende a educação pública, gratuita, laica, estatal,
universal e inclusiva, democrática e republicana, de qualidade socialmente referenciada nas
necessidades formativas das crianças, jovens e adultos brasileiros, comprometida com a proposição
de políticas públicas de formação de professores e de valorização do magistério, ancorada nas lutas
e movimentos dos educadores, reforçando a necessidade de resistência dos profissionais da
Educação.
Luiz Fernandes de Oliveira escreveu o texto “E quando a Lei n. 10.639 acabar, o que fazer?
Insurgência política e epistêmica?”, que discute a conjuntura política e econômica do Brasil após as
últimas eleições presidenciais, apontando para o nível de denúncia, a ser superado pelas ações,
especialmente em temas como o antirracismo nas escolas, nas universidades e nos espaços
comunitários, apontando para caminhos insurgentes de reconhecimento e superação de situações de
invisibilização.
Marli André traz em seu título uma pergunta: “O que dizem as pesquisas sobre inserção
profissional docente?”, suscitando a discussão de questões relacionadas à inserção profissional
docente, discorrendo como o grupo de pesquisa por ela coordenado vem investigando este assunto;
para tal retoma os dados do último projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo, indicando os
principais questionamentos que dele emergiram, trazendo ainda proposições para novos estudos.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
APRESENTAÇÃO
O texto de Monique Andries Nogueira, “Ouvir, apreciar, cantar, tocar: experiências musicais
arrebatadoras na formação de professores”, apresenta experiências musicais ocorridas em curso de
Pedagogia, como idas a concertos e ensaios abertos e composição musical de raps com temas do
cotidiano, que se revelaram experiências formativas potentes.
Finalizando essa parte, temos o texto de Patricia Cristina Albieri de Almeida, intitulado “A
Didática Fundamental na perspectiva da Educação Inclusiva: tensões, fragilidades e possibilidades”,
no qual a autora revisita obras fundantes no movimento que pensou a Didática e que está na origem
dos Endipes, observando que questões que estavam em pauta no início ainda merecem nossa
atenção, especialmente a necessária articulação do método didático em oposição à segmentação,
focando na educação inclusiva.
Márcia Strazzacappa escreveu o texto a seguir, intitulado “Um, dois, três... E já!!
A importância das Artes Cênicas na formação humana”, que propõe uma mudança de paradigma
em relação à relevância das artes cênicas na formação humana, especificamente o teatro e a dança,
linguagens artísticas nas quais o corpo é o centro, da educação infantil aos estudos universitários,
destacando a urgência de tomada de atitude diante das conjunturas atuais.
A seguir temos o texto “O ensino religioso como disciplina escolar: contendas entres os
campos da educação, da política e da religião”, de Andréia Martins, que problematiza as buscas das
instituições religiosas e políticas pela implementação do Ensino Religioso como uma disciplina
escolar, atentando para a importância de pensarmos a formação de professores e os concursos
públicos para essa “nova disciplina escolar” e como a mesma será trabalhada nas escolas públicas.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
APRESENTAÇÃO
luta por direitos, assegurando que as diferenças dos indivíduos sejam respeitadas, sem serem
anuladas ou omitidas.
A seguir, Paulo Cesar Carbonari escreve o texto “Qual educação em Direitos Humanos?
uma contribuição para pensar os desafios das pautas da educação em direitos humanos no Brasil em
travessia” , que pontua os desafios das pautas da educação em direitos humanos na educação básica
e superior nos dias atuais, considerando o contexto no qual este debate está inserido, retomando
elementos do contexto atual apontando para desafios na travessia.
Reinaldo Matias Fleury, no texto “Paulo Freire e as cosmovisões dos povos originários”,
retoma estudos anteriores sobre as possíveis relações do pensamento freireano com os princípios
não coloniais inerentes às cosmovisões dos povos originários, que resistem e reexistem aos
genocídios e epistemicídios perpetrados no mundo de Abya Yala pelos processos colonizatórios nos
últimos cinco séculos.
Fechando esta parte, temos o texto de Stela Guedes Caputo, “No coração de Xangô tem um
tambor de fogo. Parecia uma guerra”: notas com crianças de terreiros para metodologias
antirracistas” que compartilha narrativas de crianças como forma de pensar na interseccionalidade:
raça/classe/gênero/religião, desafiando a escola a pensar em como aprender com diversas
religiosidades dos alunos e alunas e, ao mesmo tempo, assegurar uma educação laica.
O texto de Léa Tiriba, “Desemparedar em busca de uma pedagogia nativa ‘diálogos entre a
filosofia de Spinoza e saberes de povos indígenas brasileiros’”, propõe um diálogo entre as práticas
tupinambá de educação infantil, os conceitos da filosofia de Baruch Espinosa e a visão de mundo de
etnias indígenas brasileiras, apontando questões que desafiam a criação e o exercício de
metodologias de formação decoloniais teórico-brincantes, com vistas a insurgir e reinventar a
escola.
Lucia Vignoli apresenta o artigo intitulado “A brotação das coisas: processos e táticas para
encontros entre arte e agroecologia com alunos surdos”, trazendo o tema da diversidade e práticas
insurgentes na perspectiva da surdez; a partir da narrativa de experiências e práticas desenvolvidas
com crianças e jovens surdos, o texto aponta as relações dialógicas e decoloniais como formas
possíveis para a tessitura e (re)significação do conhecimento escolar.
descolonização dos saberes e dos currículos com suporte em pesquisas no campo da Educação
Ambiental, das Relações Étnico-Raciais e da Educação Quilombola, evidenciando possibilidades no
incremento de insurgências e insubordinações capazes de promover currículos descolonizadores
desde a educação infantil à universidade, com saberes, didáticas e práticas educativas que
promovem uma educação para o/no cuidado de todas as formas de vida.
Tiago Ribeiro, em trabalho intitulado “Uma carta sobre inclusão... (ou sobre algumas
palavras titubeantes em torno de uma pedagogia nas diferenças)”, apresenta o formato de um texto-
carta que compartilha uma experiência vivida no cotidiano com estudantes jovens e adultos de uma
escola especializada na educação de surdos, objetivando convidar o leitor a pensar sobre inclusão e
alteridade, problematizando uma suposta necessidade de estar formado, preparado, capacitado para
incluir.
O texto que encerra a parte quatro, de Umberto de Andrade Pinto, “Educação e poder:
pedagogias emancipadoras e a insurgência da escola democrática”, resgata o debate sobre as
relações entre educação e política, posicionando a pedagogia crítica como uma referência teórica
fértil para os dias de hoje, capaz de articular organicamente a educação emancipadora com o papel
da escola na perspectiva de construção de uma sociedade efetivamente democrática.
Gilka Girardello, em seu texto “Para pensar imagem, imaginação e crítica na mídia-
educação”, retoma algumas possíveis relações entre imagem, imaginação e a dimensão crítica da
mídia-educação, no âmbito da cultura visual contemporânea, se orientando pela questão: Como
podemos distinguir entre usos encarceradores e usos emancipadores da imagem?, refletindo sobre a
necessidade de se trazer imagens para pensar, mais que para ilustrar, reconhecendo que as imagens
são geradoras, que desencadeiem, que inspirem, que produzam fios de narrativas e teçam pontes
com a memória.
Tânia Maria Hetkowski escreve o texto “Cibercultura e Tecnologias: substituição das aulas
presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Covid-19”, em
que problematiza a imersão na cultura digital e o uso dos instrumentos tecnológicos diante do
isolamento imposto por uma pandemia mundial, sugerindo repensar as formas de se comunicar,
trabalhar, conviver, ensinar e aprender, diante do uso desenfreado e necessário das tecnologias
digitais e dos serviços online e o uso das TIC na educação.
Conclui-se esse livro com a parte seis, intitulada Tensões e perspectivas na relação entre
infâncias, juventudes e vida e adulta, que traz desde análises críticas da realidade até a socialização
de práticas insurgentes identificadas nos contextos da educação infantil, da alfabetização, da
educação de jovens e adultos. Estão presentes textos que proporcionam reflexões sobre a educação
em diferentes fases da vida e suas formas de insurgências cotidianas. O primeiro texto da parte seis
é de Ana Paula Venâncio, “Alfabetização antirracista: movimentos de pensamentos, experiências e
narrativas infantis”, que adota uma escrita narrativa em interlocução com as crianças que integram
os resultados de uma produção investigativa na sala de aula, espaçotempo na qual a pesquisa é
tecida. O que pensam as crianças sobre racismo? O que sabem sobre isso? O que sentem? são
debates trazidos no texto que se propõe a refletir sobre a alfabetização antirracista nas narrativas
infantis.
A seguir, Cecília M. A. Goulart traz o trabalho intitulado “Por uma sociedade democrática: o
processo de alfabetização”, no qual apresenta aspectos da história da alfabetização com base em
estudos de autores brasileiros com foco na questão do método, vista na perspectiva da prática e da
teoria, refletindo sobre a prática pedagógica como prática política e também considerações acerca
da Política Nacional de Alfabetização de 2019.
Maria Cristina Soares de Gouvêa escreve o texto “A infância nos tempos de cólera”, no qual
apresenta uma reflexão a partir de duas questões: como a criança compreende e significa a
dimensão política da vida social? Como compreende e significa um mundo social num contexto
disruptivo?, debatendo sobre as dimensões políticas dos conceitos de ator e agência infantil em
diálogo singularidade da linguagem infantil contextualizadas com as situações políticas e sociais
dos tempos atuais.
A parte seis se encerra com o texto de Rosaura Soligo, “De cada um conforme suas
possibilidades, a cada um conforme suas necessidades – o único método possível para alfabetizar”,
que trata do processo de alfabetização inicial e dos procedimentos essenciais para quem se
alfabetiza e para os professores que alfabetizam, discutindo procedimentos específicos de
alfabetização a partir das experiências de professores que assumiram o desafio de desenvolver uma
prática pedagógica focada na aprendizagem, em contextos de uso significativo da leitura e da escrita
em situações diversificadas de letramento.
Esperamos que as leituras sejam proveitosas para os que se aventuram pelo campo
desafiador da Educação, como nós. Fechamos com Freire, que nos lembra que “A alegria não chega
apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode
dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.”
Com amorosidade,
As organizadoras
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”:
NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO
INSTITUCIONAL POSSÍVELi
O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte
do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente
de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um entre-lugar
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O passado-presente torna-
se parte da necessidade e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 1998, p. 27).
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
As recentes políticas públicas na área educacional (BNCC, Novo Ensino Médio, Diretrizes
de Formação inicial dos professores da educação básica/ Resolução n. 2 de 2019) operam com os
efeitos performativos das estatísticas, assumindo de forma acrítica o diagnóstico de “crise da
qualidade de educação”. Mas qual o sentido de qualidade que tende a ser hegemonizado nos
discursos favoráveis à implementação dessas reformas? Reconhecendo a impossibilidade de
estabelecer sentidos unívocos entendidos como “o mais verdadeiro” ou “mais correto” para
qualquer termo, esta escrita defende que o jogo político implica, justamente, disputar, em meio aos
múltiplos processos de significação em torno do significante qualidade, a hegemonização de um
sentido particular desse termo em função dos interesses que sustentam os projetos de escola, de
universidade e de sociedade pelos quais apostamos e lutamos.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
Nessa lógica, as escolas e as universidades não são apenas percebidas como empresas
concorrenciais, mas igualmente como espaços de produção de subjetividades e como tais precisam
ser altamente reguladas e controladas. Nessa mesma linha argumentativa, os sujeitos que ocupam a
posição de professor nesses espaços precisam ser formados para se enquadrar nesse “ethos”
marcado por princípios, como os da concorrência, da competição, da eficiência e do individualismo.
Não é, pois, por acaso, que responsabilizados pelas mazelas que afligem a educação
brasileira, os docentes se tornam alvo de ataques, sua formação passa a ser questionada, reformas
curriculares salvacionistas são apresentadas como verdadeiras panaceias, reforçando algumas teses
que pautam a lógica da razão neoliberal e alimentam os debates políticos contemporâneos. Para fins
da reflexão aqui pretendida, destaco pelo menos duas dessas teses que tendem a ser mobilizadas de
forma articulada: (i) a da necessidade e urgência em superarmos a “crise” da educação sem
necessariamente questionar substantivamente o sentido particular desse termo que se quer
hegemonizar nessas políticas educacionais e (ii) a da crença desmesurada dos efeitos positivos da
mudança curricular na definição de “qualidade do ensino”.
Sem negar os graves problemas e desafios enfrentados pelo sistema educacional brasileiro,
tampouco desconsiderar que a luta pela melhoria de sua qualidade não é apanágio ou monopólio de
um grupo ou setor particular da sociedade, este texto se propõe a entrar nessas disputas de formar a
ir além da linguagem de denúncia dos efeitos da ordem neoliberal no campo educacional e propor
uma outra leitura possível para o enfrentamento dos desafios que interpelam a educação, em
particular no que ela concerne à formação dos professores da educação básica.
Ele está organizado em dois conjuntos de notas inconclusivas com o intuito de deixar
transparecer mais a postura epistêmica que embasa a política de construção do Complexo de
Formação de Professores do que certezas sobre qual “o” caminho que deve ser tomado. No primeiro
momento, o texto explora essas duas teses e os pressupostos teóricos que as sustentam e, em
seguida, apresenta, em linhas gerais, outras possibilidades de enfrentamento com as questões
levantadas.
Basta atentarmos para os argumentos sustentados pelos defensores das atuais políticas
educacionais nos debates contemporâneos sobre as reformas curriculares para nos darmos conta da
presença recorrente da tese da necessidade articulada à da urgência salvacionista como uma verdade
consensual e, portanto, inquestionável. Pautados na descrição de um cenário de precariedade
generalizada, seja da aprendizagem dos(as) alunos(as) da educação básica, seja da formação inicial
docente, sem discriminação dos diferentes modelos formativos – público e privado; presencial e à
distância existentes no contexto nacional, o diagnóstico de crise (e da urgência em superá-la) se
mostra implacável e prepara o terreno para o argumento da “solução milagrosa” e supostamente
inovadora a ser apresentada.
Assim como anteriormente explicitado para os termos “crise” e “qualidade” e sem entrar,
por ora, no conteúdo proposto nessas reformas – BNCC, Reforma do Ensino Médio, BNC-
Formação/ Resolução n. 2/ 2019 – a forma como elas vêm sendo conduzidas, sem uma discussão
ampla e democrática com os profissionais e as entidades da área, já é suficiente para questionar a
urgência preconizada. Como tive oportunidade de questionar em outra oportunidade (GABRIEL,
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
2018a): o que justifica essa urgência, em meio a tantos outros desafios que se apresentam hoje para
a educação brasileira, a ponto que isso seja feito de maneira tão desrespeitosa e aligeirada?
Essa pergunta se torna mais pertinente quando sabemos que as questões que envolvem essas
reformas foram e continuam sendo objeto de discussão e até mesmo de propostas alternativas como,
por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais produzidos nos anos de 1990 e a Resolução de
2015 que trata da formação inicial e continuada dos professores da educação básica, revogada no
final do ano passado. No caso desta última, a despeito das críticas que possam lhe ser endereçadas,
ela foi resultante de um longo processo de revisão crítica das políticas educacionais de formação
docente ao longo de mais uma década, aprovada no Conselho Nacional de Educação e homologada
pelo MEC, encontrando-se, até então, ainda em fase de implementação, o que inviabilizaria a
alegação de seu fracasso e a necessidade, portanto, de sua reformulação.
De forma semelhante, o que há de novo sob o sol da BNCC que justificaria tamanha pressa e
investimento por parte das políticas públicas? E sob a Reforma do Ensino Médioii? No que diz
respeito à BNCC, a retórica em torno da sua suposta potencialidade inovadora e transformadora,
apresentada como uma proposta curricular consensual e abrangente – incluindo as referentes à
formação inicial dos professores – como deixam entrever as últimas Diretrizes Curriculares de
Formação inicial e continuada dos professores da educação básica (Resolução n. 2 de 2019),
conhecida, não por acaso, como a BNC-Formação – basta uma leitura atenta de seu texto oficial
para compreender que o que é chamado de ineditismo por seus defensores, pode ser também
entendido tanto como retrocesso dos avanços dos debates na área educacional, quanto como a
assunção de perspectivas políticas aliadas à razão neoliberal.
Essas são algumas das interrogações que permeiam os debates acadêmicos educacionais
indicando que a produção de currículos não se limita a selecionar um conhecimento disciplinar
objetivado a partir de um padrão de objetividade hegemonizado ao longo da modernidade e que se
encontra, hoje, no alvo das críticas às leituras essencialistas e deterministas de mundo. Produzir
currículo implica, sobretudo, explorar o tipo de relação com o mundo, com os diferentes sujeitos e
consigo mesmo, que esses saberes/ conhecimento escolar / universitário permitem estabelecer.
Outro aspecto que merece destaque é a forma como a Resolução de 2019 equaciona a
desvalorização das licenciaturas no âmbito da cultura universitária. Como desenvolverei mais
adiante, embora esse aspecto não possa ser silenciado, sendo seu reconhecimento e sua autocrítica
condição inclusive para a sua superação, isso não significa negar o potencial dessa instituição na
formação desses profissionais, por meio da indução, como o faz a BNC-Formação – do
deslocamento do lócus de formação docente da Universidade Pública para outras instituições. Em
vez de defender o entendimento das licenciaturas das IES públicas como curso de identidade
própria no seio do espaço acadêmico, a Resolução de 2019 aponta caminhos que colaboram para a
fragilização desses cursos, reforçando outros espaços cuja proliferação encontra terreno fecundo nas
instituições privadas.
A despeito das particularidades de cada uma dessas reformas em função do nível de ensino a
que elas estão endereçadas, elas possuem em comum o fato de reatualizarem tanto perspectivas
teóricas consideradas ultrapassadas pelos estudiosos da área quanto posicionamentos políticos que
assumem discursos de não responsabilização do Estado acerca da baixa atratividade da carreira do
magistério em função das condições objetivas que são oferecidas para o exercício dessa profissão,
de enfraquecimento das universidades públicas como lócus de formação desse profissional, de
alinhamento das escolas aos modelos de avaliação em larga escala, de culpabilização do docente
pelo fracasso da instituição escolar. Outro ponto convergente dessas reformas é o fato de
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
A segunda tese anteriormente mencionada e bastante difundida nesses debates diz respeito à
reafirmação da crença desmesurada nos efeitos positivos de uma mudança curricular na melhoria da
qualidade de ensino. Interessante observar que essa afirmação não se pauta em estudos científicos e
evidências empíricas que permitam articular diretamente mudanças curriculares (aqui tomado no
sentido restrito da seleção e distribuição dos conhecimentos, conteúdos legitimados e validados
como objeto de ensino) e melhoria da aprendizagem, acarretando um melhor rendimento escolar e,
consequentemente, a melhoria da qualidade do sistema de educação. Por que a reforma curricular
tem sido, pois, uma estratégia recorrente das políticas educacionais para “solucionar” crises nessa
área? Afinal, segundo os textos dessas propostas de reforma curricular nos diferentes níveis de
ensino, bastaria aplicar corretamente “a base” para garantimos os direitos de aprendizagem das
crianças e jovens escolarizados, bem como colocarmos no mercado professores da educação básica
devidamente preparados e eficientes. Embora em meus estudos e pesquisas (GABRIEL; CASTRO,
2013; GABRIEL, 2013; 2016; 2017; 2018; 2018b; 2018c) tenho defendido e apostado no lugar
político incontornável do conhecimento escolar nas políticas educacionais, essa associação deve ser
analisada de forma mais cuidadosa e contextualizada com as diferentes variáveis que contribuem
para a reflexão sobre o sistema educacional brasileiro.
A primeira premissa faz referência ao lócus privilegiado para essa formação e pode ser vista
como o eixo estruturante dessa política. Ao contrário das políticas públicas educacionais em curso,
o CFP assume que a universidade pública tem como uma de suas funções sociais e políticas
estratégicas a formação inicial e continuada de professores da educação básica. Esse
reconhecimento, no entanto, não significa reatualizar relações de poder hierárquicas historicamente
construídas entre esses dois contextos de formação. O mesmo movimento que está na base da
construção dessa política universitária, ao chamar para si a responsabilidade da formação desse
profissional, reconhece paradoxalmente que o papel crucial da universidade pública nesse processo
depende igualmente da reconfiguração desse lócus de formação para além dos muros universitários.
O que está em jogo pois, é a invenção de um novo arranjo institucional que favoreça a criação de
um terceiro espaço (ZEICHNER, 2010) o de “uma casa comum” (NÓVOA, 2017; 2019), que possa
funcionar como um “entre-lugar”, entendido tal como proposto por Bhabha (1998) na epígrafe
escolhida para este texto. Um espaço entre a cultura universitária e a cultura escolar que se
caracteriza pela lógica da incompletude e não da complementação. Um espaço que não opera com a
ideia de novo, como continuidade do passado tampouco como sua negação; um espaço que não
entende a emergência do presente como resultado do fazer tábua rasa do passado. Um espaço que se
quer novo na medida em que seu desenho institucional busca romper com certas tradições da
cultura universitária, bem como com o modelo hegemônico da sua articulação com as escolas, mas
que não pretende inventar a roda em relação às análises sobre os desafios já apontados pelos
estudos sobre formação de professores, em particular no que eles decorrem da consolidação das
políticas de universitarização. (NÓVOA, 1995; 2017; 2019; ZEICHNER, 2010; SHULMAN,1989;
2004; 2005; SARTI, 2012; 2013; 2019 ).Trata-se, assim, de menos inovar no que diz respeito aos
eixos de discussão sobre essa temática do que criar as condições institucionais que permitam
efetivar ou explorar estratégias de enfrentamento apontadas pelas pesquisas empíricas dessa área.
O Complexo de Formação pode ser, assim, visto como a materialização institucional desse
entre-lugar ou terceiro espaço, emergindo como ato insurgente em meio às políticas educacionais
que insistem em negar a potência criativa da universidade e das escolas públicas. Ao operar com o
entendimento que a formação inicial de professores se faz em articulação com o espaço de atuação
desse futuro profissional – as escolas de educação básica – o CFP assume os princípios de
horizontalidade, pluralidade e integração entre saberes, sujeitos e territórios, abrindo novas
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
De modo semelhante, a docência é percebida como uma profissão que estabelece uma
relação particular com o conhecimento científico, e como tal não se reduz à transmissão de saberes
produzidos em outros espaços, mas sim exige uma produção singular e contextualizada no
cotidiano, envolvendo a articulação crítica e epistemologicamente fundamentada entre diferentes
saberes. A valorização desse profissional da educação básica pressupõe, portanto, diferente do
entendimento predominante nas reformas curriculares em curso, o reconhecimento do docente
como formador e produtor de conhecimento específico (TARDIF, 2002; TARDIF; LESSARD;
A segunda premissa que subjaz a construção do CFP é o fato dele se inscrever também na
ordem do político, e não apenas da política. Ainda que não caiba, nos limites deste texto, um
aprofundamento teórico sobre essa distinção conceitual, interessa destacar as implicações da
diferenciação entre a lógica do político e a lógica da política. para pensar os problemas políticos
(RETAMOZO, 2009), como os que envolvem a questão da formação inicial e continuada dos
professores da educação básica. Essas duas lógicas permitem compreender a operação hegemônica
da instituição contingencial de uma ordem social específica bem como os mecanismos para sua
manutenção e mudança. O político possui uma função instituinte, enquanto a política supõe uma
lógica instrumental de administração do instituído (RETAMOZO, 2009, p. 79). Ou, ainda, nas
palavras de Marchart (2008): “enquanto a política se refere ao nível ôntico (a multiplicidade de
práticas da política convencional) o político se relaciona com o plano ontológico (a dimensão
instituinte)” (MARCHART, 2008, p. 91).
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
Esse novo arranjo institucional não se reduz, portanto, à apresentação de uma proposta de
política de formação docente pautada em uma reconfiguração epistemológica e pedagógica dos
currículos de licenciatura em articulação com as escolas da educação básica. Ao operar com a ideia
de um terceiro-espaço ou entre-lugar, essa política institucional se inscreve igualmente nas lutas
pela significação do termo “comum”, produzindo deslocamentos e outros antagonismos
(GABRIEL, 2019; GABRIEL, 2019a). Com efeito, o CFP mobiliza um entendimento de “‘comum”
que não oscila entre a perda e a universalização das particularidades de cada contexto que participa
de sua construção. Inspirada nas contribuições de Dardot e Laval (2017) e, longe de pretender
definir ou impor “o”, tampouco “um melhor”, significado para esse termo, o que está em jogo, na
construção dessa política é entrar na disputa pelo termo “comum” a partir do reconhecimento da
potência analítica do deslocamento de seu sentido do registro jurídico para o registro político
defendido por esses autores. Isso pressupõe que, em vez de continuar investindo na cadeia de
equivalência que articula o termo “comum” à ideia de apropriação-pertença (bens e direitos),
investir em processos de significação que associam esse termo à ideia de “apropriação-destinação
(relação de finalidade dessa apropriação)" (DARDOT; LAVAL, 2015, p. 269). O primeiro tipo de
associação – a interface comum-apropriação, historicamente construída no mundo ocidental
capitalista em torno da ideia de propriedade individual e/ou coletiva – se acirra, sem dúvida, com a
hegemonização da lógica neoliberal a partir dos anos 1980. A articulação comum-apropriação-
destinação, defendida por esses autores, por sua vez, investe na desestabilização desse sentido
particular de “comum” fixado hegemonicamente em torno da ideia de “propriedade como direito”,
colocando no jogo político de sua definição, o argumento do “imperativo social do uso comum”,
isto é do “exercício de direito de uso coletivo”.O “comum” passa a ser percebido como um
princípio político a ser aplicado e não mais apenas como uma qualidade de pertencimento a ser
instituído. O que está em jogo, nesse caso, é menos a defesa de um “direito comum” do que o
“direito do comum” ou de “comuns”. Como afirmam esses autores:
(...) é preciso por um lado evitar entender o comum no sentido restrito de bens comuns
e, por outro, desenvolver um direito do comum como um novo tipo de direito de uso,
onde apropriações se distinguem dos usos proprietários e levem a criação de
instituições do comum (DARDOT, LAVAL, 2016, s/p).
Assumir essa postura não tem sido tarefa fácil (GABRIEL, 2019; GABRIEL, 2019a). No
entanto, como afirmou Nóvoa (2019) em publicação recente ao se referir ao Complexo de
Formação de Professores: “Se tal vier a concretizar-se, a UFRJ dará um sinal forte de compromisso
com a escola pública e com a renovação da formação de professores. Precisamos desses sinais, no
Brasil e no resto do mundo” (NÓVOA, 2019, p. 14). Na conjuntura política atual, isso, sem dúvida,
não é pouca coisa.
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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL
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Notas de fim
i
Texto produzido no âmbito dos projetos Currículo como espaço biográfico: subjetivação e profissionalização docente
em múltiplos tempos e espaços e Currículo como espaço biográfico: conhecimento, sujeitos e demandas em diferentes
contextos de formação financiados respectivamente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e pela fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), no âmbito do
programa Cientista do Nosso Estado.
O conjunto de diretrizes voltadas para o Ensino Médio, antes de ser sancionado em lei (16 de novembro de 2017), foi
ii
apresentado pelo governo federal em 22 de setembro de 2016 sob a forma de Medida Provisória (MP).
iii
Grupo de escolas que integram o espaço formativo do CFP, isto é, que habitam essa “casa comum”. Isso significa
poder propor e compartilhar ações de formação – ensino/estágio, pesquisa e extensão – envolvendo todos os sujeitos
que participam da construção permanente dessa rede: professores universitários, professores da educação básica,
licenciandos(as), alunos(as) da educação básica.
Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ); Instituto Federal Fluminense (IFF); Colégio Pedro II, Instituto Benjamim
iv
Constant (IBC); Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-RJ);
Fundação Oswaldo Cruz.
v
Constituído por representações das unidades acadêmicas da UFRJ diretamente ligadas à formação inicial de
licenciandos(as), os Núcleos de Planejamento Pedagógico das Licenciaturas têm como principais atribuições: (i)
Elaborar um plano de ação a partir da oferta expressa na cartografia de percursos formativos elaborada pelo Comitê
Permanente para as 1000 horas do curso de Licenciatura constitutiva da formação do(a) licenciando(a); (ii) Interagir
com o Núcleo Docente Estruturante (NDE) da respectiva unidade/ curso da IES de origem do(a) licenciando(a); (iii)
Coordenar as atividades dos Núcleos de Orientação Pedagógica (NOP) e as Redes de Educadores de Prática de Ensino
(REP).
vi
Constituído por representações diretamente ligadas à formação inicial de licenciandos(as), em sua formação
pedagógica geral e específica, assim como em sua inserção nas instituições-campo, os Grupos de Orientação
Pedagógica têm como principal atribuição acolher e orientar academicamente a escolha do percurso acadêmico do(a)
estudante de licenciatura, desde o início do seu curso, em relação às 400 horas de prática como componente curricular e
200 horas de atividades acadêmicas complementares a partir da cartografia de ações do CFP.
vii
Constituído por representações diretamente ligadas à Prática de Ensino dos(as) licenciandos(as), seja da sua IES
como das escolas-campo, as Redes de Educadores de Prática de Ensino têm como principal atribuição orientar e
acompanhar o estudante em relação às 400 horas do Estágio Supervisionado (grupos de 10 a 25 estudantes por REP).
O texto discute questões sobre pesquisa (auto)biográfica, ao destacar modos próprios como
temos trabalhado, a partir de uma rede de pesquisa com as narrativas, no campo da formação inicial
e continuada de professores, destacando proposições e desafios formativos e autoformativos.
Intenciono situar questões relacionadas ao contexto político brasileiro e suas implicações para o
campo educacional e a formação de professores, assim como sistematizar aspectos epistemológicos
e metodológicos da pesquisa (auto)biográfica, ao analisar as implicações das narrativas como
dispositivo de pesquisa-formação, no contexto da aprendizagem da docência e do desenvolvimento
profissional.
A formação tem sido utilizada como palavra de ordem nas reformas contemporâneas. São
diversos os princípios e as concepções apresentados no contexto atual sobre formação de
professores, os quais traduzem mecanismos de controle e de desvalorização da formação e da
profissão em função dos interesses econômicos. É pertinente compreender que a formação de
professores se configura como um problema político, porque se vincula ao sistema de controle e de
regulação social pelas relações que se estabelecem entre poder e saber. Também é a formação um
problema filosófico (HONORÉ, 1980), visto que se articula ao conceito de homem e das suas
relações com o mundo e com o projeto social. É também a formação de professores um processo
histórico situado, o qual reflete os interesses e as perspectivas atuais referendadas pelas políticas e
contexto nacional e internacional que estamos vinculados. Por fim, apreendo que a formação de
professores se inscreve numa problemática mais ampla que envolve dimensões científicas e
epistemológicas sobre os saberes da profissão e sobre a profissão.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A despeito de todas essas questões e tendo em vista a situação atual em que vivemos em
relação à democracia do país, frente à crise política e ao golpe de estado como um acontecimento
político que presenciamos, compreendendo-o como uma crise política e como uma ameaça, implica
metaforicamente na ideia de uma democracia doente, a qual configura-se como uma cronicidade
antidemocrática, que com certeza trará consequências irremediáveis para o povo brasileiro. O golpe,
inscreve-se numa patologia autoritária e antidemocrática, através das formas como se forjou uma
cisão social e política contra a democracia no país. Cabe verificar, por exemplo, a posição do
Ministro da Saúde do governo interino – Michel Temer – pós-golpe e pró-impeachment, quando
levanta bandeira em nome da privatização da saúde, com base numa lógica mercadológica e em
defesa, mesmo que de forma subliminar, dos planos privados de saúde, com questionamentos e
possíveis limitações do Sistema Único de Saúde (SUS).
Além desse cenário anterior, o atual tem sido instalado com ênfase nas políticas de
desmonte, as quais incidem na lógica de privatizações e de desestatização de políticas sociais,
aprovação da reforma da previdência, congelamento e cortes de recursos para as áreas de saúde e
educação, desmonte da política de ciências, tecnologia e inovação (CT&I), corte de verbas e da
autonomia das universidades e do Sistema Único de Saúde (SUS), acirramento da crise do meio
ambiente e de uma crise jurídica que se alinha à lógica do governo em curso. Cabe ainda destacar a
irresponsabilidade do governo brasileiro em relação ao coronavírus (Covid-19), especialmente,
atitudes do presidente e a negação da pandemia mundial como se fosse uma histeria coletiva. Ações
do Ministério da Saúde, de alguns governadores de estados com casos de incidência do vírus e da
pandemia que se alastra, revelam intenções políticas, sanitárias e epidemiológicas para contenção
do processo de infecção da população e de alastramento de seu adoecimento.
O que nos interessa saber é o que nos espera na condição de cidadãos e cidadãs, que
assistimos e vivenciamos as articulações e conchavos que ferem a vida e a democracia, e que, sem
dúvidas, trarão consequências desastrosas para o país. As relações entre educação, produção de
conhecimento e democracia não podem ser abaladas, em função de interesses corporativos e
pautados em retrocessos políticos, com base em articulações nepotistas e que instalam uma certa
cronicidade na democracia brasileira.
A análise que aqui apresento não pode se eximir de considerar a situação política em que
vivemos e a necessidade de continuar lutando por princípios democráticos, universais que possam
restaurar “uma nova ordem nacional”, para além dos ditames da “nova ordem mundial”, que
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
considere e reafirme princípios éticos, numa reforma política nacional a favor de uma sociedade
mais justa e igualitária.
Tal digressão política é fundamental, pois demarca um lugar de fala, um modo de ler
histórias e memórias, de contar a vida, a profissão, de pensar e fazer pesquisa como ato político de
resistência. Narrar a vida é um desafio que se inscreve nas nossas experiências e nos modos como
tecemos a vida, como aprendemos em processos de pesquisa e de pesquisa-formação colaborativa.
Ampliar diálogos em redes de cooperação acadêmico-cientifica é, sem dúvida, um fértil caminho de
reaproximação e reafirmação de vínculos entre grupos de pesquisas que têm construído caminhos
outros para se pensar a vida, a formação, a profissão, as condições de trabalho e outras
possibilidades, diante de crises sucessivas e de políticas de desmonte da educação pública e da
democracia no país.
Narrar é uma das formas de resistir, uma forma de não esquecer, de enfrentar e de entender
que nossas utopias não serão apagadas, que nossos sonhos não serão vilipendiados, que nossa ação
política é pedagógica e que nossa ação pedagógica é política. É necessário manter a força, a crença
e a capacidade de existir para resistir, sempre.
Discutir sobre pesquisa (auto)biográfica, numa disposição que implica pensar em modos
como o singular e o plural ou mesmo o individual e o coletivo se inserem numa arena política, são
fundamentais para entendermos os desafios que se colocam para lutarmos, mesmo que no luto, em
defesa da memória e da cultura brasileira, da história das diversas instituições e das experiências
dos diferentes sujeitos, como ancoradas em processos civilizatórios que carregam a diversidade
constitutiva do povo brasileiro.
É desse lugar e com base nessas reflexões que busco situar princípios epistemológicos da
pesquisa (auto)biográfica para o campo da formação e possíveis contribuições para pensa-la como
prática de resistência, de enfrentamento e modos outros de entre(ver) a formação, as condições de
trabalho dos professores e outros sentidos para a construção identitária, a prática docente implicada,
numa democracia que se esvai a cada dia, mas que, a despeito de todas as manobras políticas e
ideológicas que vêm sendo construídas, continuamos a luta em defesa da educação pública, gratuita
e universal e da formação como uma das chaves para a transformação social.
Com o advento dos métodos (auto)biográficos nas ciências sociais em meados do século XX
e, posteriormente, nas pesquisas educacionais, anuncia-se um período de ressignificação da
subjetividade humana, em que as pessoas passam de estatuto de objeto das análises para o de sujeito
protagonista da investigação. Desse modo, o sujeito passa a “produzir um conhecimento sobre si,
sobre os outros e o cotidiano, o qual revela-se através da subjetividade, da singularidade, das
experiências e dos saberes, ao narrar com profundidade” (SOUZA, 2006, p. 54).
Nesse sentido, tal perspectiva metodológica alinha-se aos estudos de vertente qualitativa,
desenvolvidos no âmbito das ciências sociais. Assim sendo, por considerar fenômenos
eminentemente humanos e situados em um contexto, o campo da pesquisa narrativa demarca outros
movimentos epistemológicos e paradigmáticos, que envolvem princípios ontológicos, éticos e
subjetivos. Neste sentido, a pesquisa (auto)biográfica constituiu-se como uma perspectiva fértil de
investigação, permitindo romper com o antigo paradigma entre o cientista e o objeto estudado, e, do
mesmo modo, capturar, compreender e interpretar experiências humanas, inscritas numa realidade
subjetiva (olhar para si) e intersubjetiva (relação com o contexto).
Por meio deste método de pesquisa, por conseguinte, de suas perspectivas epistêmico-
metodológicas, compreende-se a experiência humana e suas (re)significações como estrutura
fundante do processo de narrar. Nesse sentido, a produção da narrativa biográfica torna-se um ato,
uma disposição ontológica. Isto porque os sentidos produzidos pelos sujeitos sobre si e sobre seus
mundos sociais revelam modos de apreensão e interpretação do vivido. Tais narrativas colocam em
evidência a experiência humana, marcada por motivos, escolhas, valores e princípios que orientam
as ações dos narradores, que, ao assumirem a “condição biográfica”i, anunciam compreensões de si,
circunscritas em um espaço social.
Com base nas reflexões epistemológicas aqui apresentadas, observa-se que a pesquisa
(auto)biográfica se insere em um campo que legitima outros modos de produção de conhecimento,
por vezes menosprezados pela ciência conservadora, a partir de um movimento hermenêutico,
subjetivo e qualitativo. Portanto, não se trata de considerar a realidade narrada como uma verdade
científica, no seu sentido objetivo, mas de compreender os significados de cada relato na produção
da existência narrada.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
É nesse sentido que se inscreve o trabalho com narrativas (auto)biográficas, tal como temos
empreendido no Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (Grafho/Uneb),
consolidando, assim, a produção de um conhecimento mais próximo da vida, das experiências de
formação e das trajetórias profissionais dos diversos sujeitos em seus respectivos espaços
socioeducacionais (SOUZA; MEIRELES, 2017). Há uma variedade de fontes no trabalho com a
pesquisa biográfica ou biográfica-narrativa, que se organizam em três campos distintos que
dialogam entre si, a saber: narrativas orais (entrevistas, relatos), escritas (cartas, diários, ateliês
biográficos) e imagéticas (fotografias, imagens, desenhos, pinturas).
A consolidação desta abordagem de pesquisa vem sendo marcada por diversos estudos
(PASSEGGI; SOUZA, 2017; MIGNOT; SOUZA, 2015; SOUZA, 2008; SOUZA; SOUSA;
CATANI, 2008; STEPHANOU, 2008; BUENO et al., 2006) empreendidos nos diferentes
programas de pós-graduação, os quais se voltam para os domínios das pesquisas (auto)biográficas
na vertente da socialização de experiências em contextos de formação e de aprendizagens
profissionais de professores em formação inicial e/ou continuada.
A narrativa remete o sujeito para uma dimensão de autoescuta, como se estivesse contando
para si próprio suas experiências e as aprendizagens que construiu ao longo da vida, através do
“conhecimento de si” (SOUZA, 2006; 2010). É com base nessa perspectiva que a pesquisa
(auto)biográfica se instaura como um movimento de investigação-formação ao enfocar o processo
de conhecimento e de formação que se vincula ao exercício de tomada de consciência, por parte do
sujeito, das itinerâncias e aprendizagens construídas ao longo devida.
O ato de narrar possibilita ao sujeito organizar a sua narrativa através do constante diálogo
interior, através do processo de formação e de conhecimento. A narrativa permite ao sujeito
compreender, em medidas e formas diferentes, o processo formativo e os conhecimentos que estão
implicados nas suas experiências ao longo da vida porque o coloca em transações consigo próprio,
com outros humanos e com o seu meio natural. Essas relações oferecem condições fundamentais
para a escrita da narrativa, para a ampliação do conhecimento de si e para uma outra compreensão
da formação de professores como um movimento epistêmico-político de investigação-formação.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
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Paulus, 2008. p. 18-53.
Notas de fim
i
Num sentido antropológico, remete a uma das dimensões constitutivas da experiência humana: a capacidade que tem o
ser humano de configurar narrativamente sua existência e de biografar sua experiência singular do mundo histórico e
social (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 17).
ii
O Congresso inicia em 2004 com o I Cipa (PUCRS-Porto Alegre), o II Cipa (Uneb-Salvador, 2006), o III Cipa
(UFRN-Natal, 2008), 0 IV Cipa (USP-São Paulo, 2010), o V Cipa (PUCRS-Porto Alegre, 2012), o VI Cipa (Uerj-Rio
de Janeiro, 2014), o VII Cipa (UFMT-Cuiabá, 2016), o VIII Cipa (Unicid-São Paulo, 29018) e em planejamento o IX
Cipa na UnB, em para setembro de 2020, contribuindo para a ampliação de uma rede de pesquisa que toma as fontes
(auto)biográficas como domínio de pesquisa, de formação e de práticas de formação.
48
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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA:
ENTRE CONVERGÊNCIAS E DISPUTAS NA
FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE
Uma tal formação, profissional ao mesmo tempo que universitária, requer o estabelecimento
de uma “pedagogia da alternância” (ALTET, 2009), capaz de aliar a aproximação com a prática
docente desenvolvida nas escolas com o emprego de saberes teóricos, no sentido de uma articulação
de espaços formativos, que possibilite aliar “duas aventuras humanas fundamentais, a da ação e a da
reflexão” (LESSARD; BOURDONCLE, 2002, p. 146). A alternância na formação docente aponta
para um processo de “fertilização mútua entre a universidade e as escolas, na construção de um
lugar de diálogo que reforce a presença da universidade no espaço da profissão e a presença da
profissão no espaço da formação” (NÓVOA, 2017, p. 116). Prevendo a instituição de uma
verdadeira formação universitária com finalidade profissional, que se caracteriza por aportes
universitários e cursos apropriados, mas também pela estruturação de saberes profissionais
específicos que ofereçam lugar às práticas, posturas, valores, práticas sociais de referência (ALTET,
2009, p. 222, tradução livre a partir do original francês, grifos meus).
Uma formação desse tipo envolve desafios importantes, entre os quais está a superação da
lógica disciplinar como fundamento da formação, passando a considerar outras lógicas, incluindo
50
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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]
aspectos relativos à socialização profissional, que pressuponham uma relação complexa com os
saberes de diversas fontes (TARDIF, 2006). A alternância segue, pois, em direção à constituição de
uma formação pensada a partir da “criação de espaços híbridos nos programas de formação inicial
de professores que reúnem professores da Educação Básica e do Ensino Superior, e conhecimento
prático profissional e acadêmico em novas formas para aprimorar a aprendizagem dos futuros
professores” (ZEICHNER, 2010, p. 487). A criação desses espaços híbridos, concebidos como
“terceiros espaços”, pressupõe “uma rejeição das binaridades tais como entre o conhecimento
prático profissional e o conhecimento acadêmico, entre a teoria e a prática, assim como envolve a
integração, de novas maneiras, do que comumente é visto como discursos concorrentes” (p. 486).
A constituição de uma formação docente híbrida (ZEICHNER, 2010) com fins profissionais
e ancorada pela perspectiva da alternância (BOURDONCLE, 2000; BORGES, 2008; ALTET,
2009) pressupõe uma forte articulação entre os espaços formativos, que devem possibilitar aos
estudantes universitários a apropriação de saberes da formação profissional, como também a
imersão em processos de socialização na cultura ocupacional de referência, requerendo para tanto a
participação ativa de professores em exercício (SARTI, 2009; 2013).
No contexto brasileiro, esse horizonte da alternância na formação docente tem sido almejado
e vem orientando grande parte de nossos discursos sobre o tema, consubstanciando-se inclusive em
textos normativos recentes. Nessa direção, o recém-publicado Parecer n. 22/2019 do Conselho
Nacional de Educação aponta para a centralidade da prática por meio de estágios que enfoquem o
planejamento, a regência e a avaliação de aula, sob a mentoria de professores ou coordenadores
experientes da escola campo do estágio, de acordo com o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) (art.
7º, inciso VIII).
Assim, seguindo na mesma direção da normativa anterior referente ao tema (CNE 02/2015),
as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores (CNE 02/2019) mantém
o mínimo de 800 horas de “prática” para os cursos de licenciatura, sendo 400 horas de Estágio
Supervisionado, “em situação real de trabalho” (CNE n. 22/2019, p. 23) e 400 horas de “prática”
vinculadas aos demais componentes curriculares do curso, como Prática como Componente
Curricular (PCC).
formação dos licenciandos, tal presença tem se dado mais comumente por três vias principais, que
se mostram portanto convergentes nessa direção, quais sejam: os estágios supervisionados,
tradicionalmente presentes na formação profissional; e dois programas federais, específicos da área,
que integram a Política Nacional de Formação de Professores (2009), o Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) e o mais recentemente criado Residência Pedagógica (RP).
Os textos normativos que se seguiram àquela LDB pautaram-se em tal ideia nuclear de
associação entre teoria e prática e se orientavam em direção ao princípio mais amplo da alternância,
também presente, como antes mencionado, no debate internacional da formação docente. Nesse
sentido, os Referenciais para a Formação de Professores (1999) já indicavam a necessidade da
criação de “[...] dispositivos de articulação entre o trabalho da instituição formadora e o trabalho
das escolas do sistema de ensino, como, por exemplo, o estágio planejado e acompanhado pelas
duas instituições [...]” (p. 65), viabilizado por uma “ação conjunta” entre a instituição de formação
inicial e a escola do sistema que recebe os professores em formação, que se reverta em “um projeto
compartilhado onde as duas instituições assumam responsabilidades e se alimentem mutuamente”
(p. 67).
cooperativo onde forem estagiar. A ida às escolas pode ocorrer a partir do segundo
ano com uma intensidade passível de garantir a imersão no contexto profissional,
sempre organizada pelo espaço de supervisão (MEC, 1999, p. 130).
Vê-se, pois, que há mais de duas décadas nossos textos normativos vêm preconizando que
os estágios supervisionados atuem para o estabelecimento de uma “articulação entre os espaços
formativos” (ALTET, 2009) na formação docente. Em que pese o alto grau de sofisticação desses
discursos e a sintonia que estabelecem com os avanços internacionais sobre o tema, não logramos
avanços muito significativos nesse período quanto aos modos pelos quais os estágios efetivamente
são realizados nos cursos de licenciatura no país. Assim, como destaca Gatti (2014), esses estágios
“[...] mostram-se, em sua maioria, sem um planejamento que diga de seus propósitos e ações.
Também não explicitam as formas de relação com a rede escolar e não oferecem condições para um
acompanhamento efetivo por parte de docentes que são designados para sua supervisão.” (p. 40-41).
Ademais,
Em geral os estudantes, isoladamente, procuram escolas e professores da educação
básica que os recebam, e o estágio desenvolvido configura-se como observação
passiva de salas de aula. Não se tem registro das horas efetivadas. As IES atribuem a
É falsa, portanto, a sensação que tal programa concorre com o estágio no espaço da
formação docente. Sua proposição, assim como ocorre com o Pibid, ratifica os princípios que já há
algum tempo tem fomentado nossas discussões acerca da importância dos estágios supervisionados
para a formação docente. Programas como o Pibid e o RP, fomentados pela Capes, trazem para a
cena formativa dos professores brasileiros ideias e direcionamentos que há bastante tempo circulam
no espaço internacional da formação docente, acerca da necessidade de envolvimento das equipes
escolares na formação, sobretudo os professores, no acompanhamento dos licenciandos que podem,
por meio da participação em atividades diversas que compõem o cotidiano escolar, desenvolver
sentimentos de pertencimento ao grupo, importantes para sua socialização profissional. Tais
pressupostos, no entanto, estão presentes nas discussões internacionalmente empreendidas sobre os
estágios na formação docente. É cada vez mais consensual na área a percepção de que os estágios
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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]
docentes devam fomentar a articulação entre os espaços formativos, de modo a possibilitar aos
futuros professores a apropriação de saberes da formação profissional, como também a imersão em
processos de socialização na cultura docente (BOUTET; ROUSSEAU, 2002; MOLINA;
GERVAIS, 2008; BOUTET; PHARANT, 2008; SARTI, 2009; 2013; PIMENTA; LIMA, 2011;
LACOSTE; LOARER; MONNANTEIUL, 2011; GUILEMETTE; L´HOSTIE, 2011; GERVAIS;
DESROSIERS, 2013; ALMEIDA; PIMENTA, 2014; CYRINO; SOUZA NETO, 2014; ARAÚJO;
SARTI, 2014; AROEIRA; ALMEIDA, 2014; BENITES; SARTI; SOUZA NETO, 2015; CYRINO;
BENITES; SOUZA NETO, 2015, entre outros).
O primeiro e mais óbvio aspecto a considerar diz respeito à abrangência. Tais programas não
atendem a todos os cursos e nem mesmo a todos os estudantes dos cursos em que são
implementados; enquanto já alcançamos a obrigatoriedade de 400 horas de estágio para todos os
licenciandos do país. Nesse sentido, o investimento na “reformulação e aperfeiçoamento” dos
estágios supervisionados docentes (CAPES, 2018) deveria alcançar a todos os futuros professores –
não somente os chamados pibidianos e residentes – de modo que pudessem experimentar a
formação preconizada em nossos textos normativos.
Um outro aspecto, articulado com o primeiro, refere-se a uma certa pulverização das
discussões sobre a dimensão prática da formação nas licenciaturas, distraindo-nos do debate amplo
e coletivo sobre a necessidade de estratégias mais efetivas de enfretamento dos problemas
identificados no desenvolvimento dos estágios supervisionados no país. Uma política nacional de
formação de professores deveria centrar esforços para a efetivação desse debate, considerando a
questão em sua dimensão política e não como um problema a ser solucionado por meio de
intervenções de natureza técnica, pontuais, por meio de programas.
supervisionados. A proposição dos mesmos ocorre por meio da apropriação desses discursos que,
demarcados e, de certa maneira, tangibilizados sofrem processos de produtificação para seu
lançamento, como “programas” por meio de editais. As IES recorrem então ao Pibid e ao RP para
agregarem a seus cursos princípios sobre a formação docente (valorização da dimensão prática,
parceria com as escolas e redes públicas, participação de professores formadores, sistematização
das práticas, etc.) que orientariam um estágio de qualidade.
Cabe-nos questionar as razões pelas quais optamos no país por criar produtos em torno de
práticas formativas que internacionalmente são ligadas ao estágio curricular supervisionado. Por
que optamos, desse modo, por uma via alternativa, em que tais produtos são consumidos pelos IES
e, caso equiparados ao estágio supervisionado, possam ocupar o lugar de um componente curricular
nas licenciaturas?
A opção por criar programas, como o Pibid e o RP, que “entreguem” – seguindo com o
vocabulário gerencial – a “parte prática” da formação inicial docente pode nos levar,
inadvertidamente, a uma situação de terceirização curricular, com a substituição dos estágios
supervisionados, desenvolvidos necessariamente pelas instituições de ensino superior, por produtos
formativos concebidos por outras instâncias (públicas, até o momento, mas não necessariamente) e
implementados por meio de contratos que prevejam uma participação meramente incidental dos
agentes da instituição responsável pela formação.
Esse caminho, pautado por uma perspectiva de produtificação das práticas formativas, vai
ao encontro da ampliação, diversificação e aquecimento do mercado da formação docente que se
configura no país há alguns anos. Trata-se de um mercado, entendido sob a perspectiva
bourdieusiana (2005), onde bens simbólicos são produzidos, disputados e consumidos e onde atos
econômicos são transfigurados em atos simbólicos, legitimados por aqueles que detêm capitais
considerados mais valiosos no campo educacional. (SOUZA; SARTI, 2014). Atualmente, esse
mercado, em suas dimensões materiais e simbólicas, reúne diversas instâncias e agentes como
universidades – públicas e privadas; secretarias de educação; agências de avaliação e fomento do
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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]
Até o momento, a formação inicial docente vem participando desse mercado de um modo
um tanto conservador. As disputas que a envolvem se referem, basicamente, ao oferecimento por
instituições superiores distintas do ponto de vista acadêmico (universidades, centros universitários,
faculdades) e de financiamento (público e privado), sob diferentes modalidades (presencial e a
distância) implicando na ampliação dos agentes formadores nela envolvidos (BUENO, 2016). No
entanto, considera-se que a vida de produtificação da formação docente, aqui explorada, reverta-se
em aquecimento também para esse nicho do mercado, que passaria então a demandar novos
produtos formativos a serem consumidos por instituições de formação, que poderão assim
terceirizar elementos de seu trabalho formativo.
Tem-se, pois, que a existência desses programas, embrionariamente produzidos pela Capes,
não se configura como mera disputa entre diferentes estratégias formativas. Trata-se da criação de
demanda por novos produtos no mercado da formação docente; o que diz respeito a disputas mais
amplas, que incidem sobre o lugar da universidade e das outras instituições de ensino superior nessa
formação, levando-nos a uma das questões centrais em jogo: a quem compete formar os
professores? (SARTI, 2012).
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Notas de fim
i
Definido pela legislação como “ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa
à preparação para o trabalho produtivo de educandos [...]” (Lei n. 1.1788/08, Artigo 1º), prevendo “acompanhamento
efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente” (artigo 3º, parágrafo 1º).
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO
PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO
DA FORMAÇÃO
Fiel à sua história, a Anfope, mais uma vez, conclama à resistência propositiva e contra-
hegemônica em defesa da formação e valorização dos profissionais da educação, contra o desmonte
da escola pública efetivada pela edição de medidas que configuram intenso retrocesso nas políticas
educacionais.
Nesse sentido, participar desse evento é um desafio, pois sabemos que a lógica da
padronização tem sido apresentada como a panaceia para os problemas da educação brasileira, e
hoje tem hegemonia, não só no MEC e no CNE mas também entre os dirigentes das redes públicas
estaduais e municipais, pois o Consed e a Undime integram o movimento “todos pela base”,
ajudando a construir uma hegemonia cujos pressupostos equivocados nos cabe denunciar.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
Caracterizamos, inicialmente, nosso repúdio à forma como esse processo transcorreu, desde
2015, e especialmente após 2016, em que a falta de diálogo, a pressa e a adesão a concepções
pedagógicas ultrapassadas, a par de propagandas enganosas sobre os efeitos positivos de tais ações,
foram um padrão. Nesse período, o país mudou com o golpe parlamentar-jurídico-midiático-
empresarial que amplifica ao invés de reduzir, como prometido, a crise institucional: vimos o
recrudescimento de medidas autoritárias, ataques à democracia, retirada de direitos sociais, com
destaque para os trabalhistas e para a redução do direito à educação, altas taxas de desemprego,
piora nos serviços públicos, em um processo eleitoral marcado por polarização ideológica inédita,
intervenções do judiciário suspeitas, uma avalanche de fake news e ataques e discursos de ódio
contra diversos segmentos mais vulneráveis da população. A par da instabilidade política amarga-se
crise econômica que as medidas de austeridade não conseguem diminuir.
Em meio a esse cenário, a educação tem centralidade: sofre ataques em três instâncias
importantes: a gestão do MEC, a descaracterização do Fórum Nacional de Educação (FNE) e a
revogação de portarias de nomeação de Conselheiros do CNE. Esta última medida é importante
Em resposta ao anúncio pelo MEC, em 13 de dezembro de 2018, de que proporia uma Base
Nacional Comum para Formação de Professoresii dentro da “nova” política de formação de
professores, a Anfope e o Forumdir publicaram nota, endossada por mais 8 entidades nacionais, em
que denunciaram a “imposição de propostas curriculares desvinculadas das demandas formativas de
estudantes e professores e da realidade concreta da escola pública brasileira”, e que esta
[...] desconsidera a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, os avanços do
conhecimento no campo educacional e a autonomia universitária corporificada nos
seus projetos de formação e não estabelece o necessário diálogo com os principais
atores da formação de professores, os professores e estudantes tanto dos cursos de
licenciatura, dentre os quais se destaca a pedagogia, quanto da escola básica a que esta
formação se destina (ANFOPE; FORUMDIR, 2018).
Na mesma direção, a Anped elaborou nota, assinada por 10 entidades nacionaisiii, que
explicitava que a BNC da Formação seria “a melhor forma de não enfrentar os problemas reais da
educação brasileira” e clamava que o CNE retomasse “o diálogo verdadeiro com a comunidade
educacional brasileira” (ANPED et al., 2018). Na nota, as entidades denunciavam a “imposição
contínua de políticas sem debate”, e a adoção por parte do MEC, a partir de 2016, de uma posição
unilateral, cuja tônica era “a ausência de participação da sociedade, a negação da possibilidade de
diálogo, a interdição da possibilidade de negociação”, como ocorreu com a tramitação reforma do
ensino médio, a BNCC e as DCNs do ensino médio. O mesmo processo se instaurou na tramitação
e aprovação das DCNs e da BNC da Formação.
entidades, que reafirmaram a relevância das DCNs para a formação dos profissionais da educação
no país, e que a construção de projeto institucional de formação inicial e continuada dos
profissionais da educação era fundamental e precisava ser concluído, não havendo necessidade de
alteração do prazo, que comprometia a materialização da Resolução, o CNE permaneceu surdo a
esses reclames.
Destacamos a seguir as normativas do CNE que efetivaram processos que dificultaram que
os dispositivos da Resolução CNE/CP n. 2/2015 fossem plenamente respeitados, institucionalizando
diversos adiamentos do prazo inicial de 1º julho de 2017, para 1º julho de 2018 (Parecer CNE/CP n.
10, de 10 de maio de 2017/Resolução CNE/CP n. 1, de 9 de agosto de 2017); depois para 1º julho
de 2019 (Resolução CNE/CP n. 3, de 3 de outubro de 2018), determinado como “prazo
improrrogável”, e por último para 22 de dezembro de 2019 (Resolução n. 1, de 2 de julho de 2019).
Antes deste último prazo, a Resolução n. 2/2015 foi finalmente revogada pela Resolução n. 2/2019.
A ampliação dos prazos provocou a procrastinação de muitas IES e cursos na materialização da
reformulação proposta, a par das notícias que esta seria efetivamente revogada, sendo que dada a
extensão de prazo, muitas IES que efetivaram o processo de reformulação, não conseguiram que
este fosse finalizado com a aprovação dos Conselhos Superiores até 20 de dezembro.
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
Ademais, a Anfope defende uma concepção formativa de base comum nacional, que em
nada se assemelha à proposição da BNC da Formação.
A base comum nacional, que defendemos historicamente e que está contemplada nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação para a Formação Inicial e
Continuada de Professores (Resolução CNE n. 2/2015), é uma concepção básica de
formação do educador e um corpo de conhecimento fundamental em que a docência se
constitui como a base da identidade profissional de todo educador, e, portanto, não
pode ser confundida como um currículo mínimo ou um elenco de disciplinas
(ANFOPE, 2018).
Tal proposição era assegurada pela Resolução n. 2/2015, e sua revogação aborta rico processo de
construção de projetos institucionais de formação em curso em IES de todo o país, como
apresentam Dourado e Tuttman (2019).
Sem querer estender o debate sobre a qualidade educacionalv, analisaremos, brevemente, os,
argumentos apresentados pelo MEC.
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
de que a proposta de reformulação não está voltada pera o cerne do problema: a disseminação de
cursos sem qualidade mínima que, sem maior controle, formam a maioria dos licenciados no país.
As IES públicas ostentam níveis de excelência no ensino, associam ensino, pesquisa e extensão, e
apresentam elevada produção acadêmica, e hoje sofrem ataques a sua autonomia e cortes de verbas
sem precedentes. A BNC-Formação propõe reduzir currículos e descaracterizar a formação,
desmontando e desqualificando os cursos exitosos, em um processo que equalizará por baixo a
qualidade dos cursos de licenciatura, o que certamente não elevará a qualidade da educação básica.
O mesmo é proposto pela BNCC.
Começamos 2019 com a BNCC da educação básica aprovada e com prazo para a sua
implementação. Nos estados da federação, apenas o Rio de Janeiro, por meio do seu Conselho
Estadual de Educação (CEE), fez uma proposição para que as diretrizes curriculares respeitassem a
autonomia dos sistemas e da diversidade de público e instituições no estado, em um processo
democrático, envolvendo o FEE e as entidades nacionais, em uma ampla e rica discussão.
Não trataremos aqui das concepções equivocadas de currículo que imperam na BNCC e
agora na BNC da Formação, nem da ultrapassada pedagogia das competências, que dá a base
conceitual a essas propostas e nem dos danos que uma padronização imposta e descontextualizada
trará para as redes de ensino e que será a base curricular dos cursos de licenciatura. Para este texto,
abordaremos, ainda que brevemente, a questão da falsa dicotomia teoria-prática, um dos
argumentos exaustivamente utilizados para justificar a “reformulação” da formação, atribuindo aos
cursos de licenciatura um excesso de teoria e uma ausência da prática. Dada a escassez de tempo,
este será, doravante, o recorte utilizado.
entre teoria e prática, mas o excesso da primeira e a carência da segunda, e defendendo a primazia
da prática sobre a teoria, se propõe a inversão dessa simetria. Atribui-se à dicotomia teoria-prática,
isoladamente, a determinação da qualidade dos cursos e da atuação dos professores e, também de
forma isolada, a inversão deste binômio, a solução dos problemas atuais da formação.
Cabe destacar dois princípios da base comum nacional, indissociáveis, e que não podem ter
primazia um sobre o outro, pois são complementares e igualmente importantes:
– sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus
fundamentos históricos, políticos e sociais, bem como o domínio dos conteúdos da
educação básica, de modo a criar condições para o exercício da análise crítica da
sociedade brasileira e da realidade educacional e o pleno desenvolvimento das
aprendizagens dos estudantes da educação básica;
Cabe pontuar, agora, como a Resolução n. 02/2019 vê essas duas questões. Segundo as
novas DCNs, em seu art. 5º, citando a LDB, a formação dos professores teria como fundamentos:
I. a sólida formação básica, com conhecimento dos fundamentos científicos e sociais
de suas competências de trabalho;
Note-se que a sólida formação teórica e interdisciplinar é reduzida à formação básica, logo,
apenas elementar, e que os conhecimentos dos fundamentos científicos e socais também referem-se,
apenas, às competências de trabalho. Da mesma forma, não há mais a proposição da unidade
teoria/prática mas a associação entre teorias e práticas, não necessariamente articuladas. A premissa
do aproveitamento de formação e experiências anteriores, é mais um elemento preocupante, pois
reduz mais ainda a formação.
O campo educacional, nas últimas décadas, avançou bastante nas teorizações sobre a
importância da interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, em uma tentativa de superar a
multidisciplinaridade e a fragmentação de saberes. Da mesma forma, tem se ampliado a tendência
de que a dimensão da prática perpasse todo o curso, sendo cada vez mais comum atividades de
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
A fronteira, no campo acadêmico, entre a teoria e a prática, é cada vez mais fluida, como
comprovam inúmeros estudos, sendo que a aprendizagem é mais eficaz quanto mais se eliminam as
barreiras que colocam teoria e prática, artificialmente, em campos opostos, principalmente na
formação de professores.
Como anunciamos, não trataremos nesse texto do conceito de competências, que permeiam
toda a Resolução n. 2/2019, mas cabe fazer alguns destaques em itens que chamam a atenção pelo
absurdo da proposição. Assim, não cabendo aqui espaço para analisar itens do art. 8º, que elenca os
fundamentos pedagógicos dos cursos destinados à Formação Inicial de Professores para a Educação
Básica, em número de nove, destaco, pelo estranhamento que provoca, o último, que expressa como
fundamento: “IX. decisões pedagógicas com base em evidências”.
Ainda que de forma breve, é necessário apontar a questão da carga horária e da distribuição
desta entre os componentes curriculares. A inversão proposta conceitualmente entre a teoria e
prática se materializa na distribuição da carga horárias dos cursos, por reduzir ao mínimo (25%) as
disciplinas a que se atribui a formação teórica.
II. Grupo II: 1.600 (mil e seiscentas) horas, para a aprendizagem dos conteúdos
específicos das áreas, componentes, unidades temáticas e objetos de conhecimento da
BNCC, e para o domínio pedagógico desses conteúdos.
III. Grupo III: 800 (oitocentas) horas, prática pedagógica, assim distribuídas:
b) 400 (quatrocentas) horas para a prática dos componentes curriculares dos Grupos I
e II, distribuídas ao longo do curso, desde o seu início, segundo o PPC da instituição
formadora.
Cabe destacar outro estranhamento, que se refere ao estágio, em situação real de trabalho, o
que induz a pensar na precarização do trabalho do licenciando, que está em atividade de estágio,
logo de aprendizagem, e não de trabalho. No art. 7º, que trata dos princípios norteadores da
organização curricular dos cursos, aponta no inciso VI, o fortalecimento da responsabilidade, do
protagonismo e da autonomia dos licenciandos com o seu próprio desenvolvimento profissional.
Perguntamos se essa responsabilização, autonomia e protagonismo não embutem a
desresponsabilização da instituição com o estudante, substituindo profissionalização e
profissionalidade por precarização.
No art. 13, há a discriminação das temáticas do Grupo II, em que a carga horária de 1.600
horas deve efetivar-se do 2º ao 4º ano. Aqui há uma questão muito grave, pois menciona três tipos
de cursos, separando, assim, a formação do professor multidisciplinar ou generalista, hoje realizada
na Pedagogia, em dois cursos distintos: I. formação de professores multidisciplinares da Educação
Infantil; e II. formação de professores multidisciplinares dos anos iniciais do Ensino Fundamental.
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
As licenciaturas, seriam o tipo de curso III. formação de professores dos anos finais do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio.
Segue-se uma discriminação das habilidades a serem incluídas nos chamados “estudos
comuns” a esses três cursos, nas 1.600 horas; além do aprofundamento nas áreas e nos componentes
curriculares da BNCC de cada curso específico de formação de professores (1) para a Educação
Infantil; (2) para os anos iniciais do Ensino Fundamental, (3) para os anos finais do Ensino
Fundamental, e do Ensino Médio, além dos saberes específicos: conteúdos da área, componentes,
unidades temáticas e objetos de conhecimento previstos pela BNCC e correspondentes
competências e habilidades.
O proposto pela Resolução n. 2/2019 é totalmente diverso do até hoje experienciado pelos
cursos de formação de professores, desde o Estatuto das Universidades Brasileiras. Uma mudança
tão radical não pode ser implementada, apenas baseada em evidências, desprezando os avanços do
conhecimento pedagógico. As concepções, princípios e fundamentos dessas “novas” diretrizes,
ademais de confusa leitura e precária compreensão, partem de pressupostos equivocados, falsas
evidências, e um completo desrespeito pelas IES comprometidas com a elevação da qualidade da
formação.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Como destacado pela Anfope (2016, p. 34), a Resolução n. 2/2015 constituiu um importante
avanço para a formação de professores, e não somente para as series iniciais, mas para toda a
educação básica, por “incorporam a formação para a gestão no percurso formativo de todos os
estudantes, de todas as licenciaturas, para todas as áreas, níveis e modalidades de ensino”. No que
tange à valorização dos profissionais da educação, elas são uma conquista relevante, ao propor “a
articulação entre a formação inicial e a continuada, levando, também, em consideração as condições
de formação acadêmica, as condições materiais de trabalho, os planos de carreira e de salários”
(ANFOPE, 2016, p. 34).
As atuais DCNs e a BNC da Formação (Resolução n. 2/2019) trazem uma drástica mudança
de concepção formativa e uma fundamentação ancorada em pedagogias ultrapassadas. Partindo do
falso pressuposto de que a teoria e a prática, ao invés de articuladas indissociavelmente, são
dicotômicas e a primazia deve ser ofertada à prática, quando ambas são primordiais, produz uma
proposta de curso que, se implementada, destituirá os futuros professores da capacidade de formular
e refletir sobre a sua prática, pois terão, como o “Velho do Restelo”, cantado por Camões, um
“saber só de experiências feito”.
Ademais, não haverá a garantia dos direitos de aprendizagem tão propagandeados como
objetivos da BNCC, e nem da equidade prometida, a menos que o padrão de equidade seja a penúria
intelectual e o conhecimento reduzido a evidências, à alienação de estudantes e de professores que
executam tarefas sem sentido e significado, tão distante da utopia de uma educação emancipadora,
que alimentou de esperança gerações de educadores.
Esperançamos, se não desesperamos.
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO
REFERÊNCIAS
ANFOPE. Documento Final do XVII Encontro Nacional da ANFOPE. Políticas Nacionais de Formação no Sistema
Nacional de Educação. Base Nacional Comum para a educação básica e a formação de professores. Brasília, DF:
Anfope, 2014. Disponível em: http://www.anfope.org.br/wp-content/uploads/2018/05/17%C2%BA-Encontro-
Documento-Final-2014.pdf. Acesso em: 17 fev. 2020.
ANFOPE; FORUMDIR. Manifesto em defesa da formação de professores. [S.l.: s.n.]: 14 dez 2018. Disponível em:
http://www.anfope.org.br/cartas-e-manifestos/2018. Acesso em: 17 fev. 2020.
ANFOPE. Documento referente à Reunião da Comissão Bicameral do Conselho Nacional de Educação sobre a
Formação Inicial e Continuada de Professores. Brasília: [s.n.], 2018. Disponível em: http://www.anfope.org.br/wp-
content/uploads/2018/05/ANFOPE-CNE-9abr-2018-.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.
ANPED et al. Nota sobre a Base Nacional Comum para Formação de Professores. [S.l.: s.n.]: 17 dez. 2018.
Disponível em: http://www.anped.org.br/news/nota-sobre-base-nacional-comum-para-formacao-de-professores Acesso
em: 17 fev. 2020.
ARRUDA, M. da C.C.; LINO, L.A.L. Editorial. Formação em Movimento, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 7-10, jan-jun. 2019.
Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/FORMOV/issue/view/93. Acesso em: 17 fev. 2020.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de Dezembro de 2019. Define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional
Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União: seção
1, Brasília, DF, p. 87-90, 10 fev. 2020. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/. Acesso em: 17 fev. 2020.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 2/2015, de 1º de julho de 2015. Define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação
pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. Diário Oficial da União:
seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 8-12, 2 de jul. 2015. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/. Acesso em: 17 fev.
2020.
DOURADO, L.F.; TUTTMAN, M.T. Formação do magistério da Educação básica nas universidades brasileiras:
institucionalização e materialização da Resolução n. 2/2015. Apresentação Dossiê. Formação em Movimento, [s.l.], v.
1, n. 2, p. 197-217, jul-dez. 2019. Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/FORMOV/issue/view/108/DA.
Acesso em: 17 fev. 2020.
Notas de fim
i
Há uma mudança significativa na metodologia, aumentam as reações contrárias intensificadas a partir da divulgação de
uma terceira versão da BNCC, diferente da primeira e da segunda versão. Os canais de diálogo com o campo acadêmico
são substituídos por um simulacro de participação em audiências em que inexiste a possibilidade do contraditório,
desconsiderando críticas qualificadas ao documento.
ii
A “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação dos Professores da Educação Básica” foi apresentada à
imprensa pelo Ministério da Educação, em 13 de dezembro de 2018.
Anped, Anfope, ABdC, Abrapec, Anpae, Cedes, Fineduca, Forumdir, SBEnBio e Movimento Nacional em Defesa do
iii
Ensino Médio.
iv
A Comissão Bicameral de formação inicial e continuada de professores foi recomposta pela Portaria CNE/CP n. 10,
de 8/4/2019, com o objetivo de acompanhar, monitorar, orientar e apoiar a implementação de diretrizes curriculares
nacionais, por meio de ações articuladas entre o CNE, o MEC, as Instituições Ensino Superior, o INEP, a CAPES, as
entidades de campo, as Secretarias de Educação (seus sistemas e redes), visando à consolidação de política nacional de
formação dos profissionais da educação, bem como promover a revisão das licenciaturas de formação de professores.
Compõem a Comissão, os conselheiros: Maria Helena Guimarães de Castro (presidente), Mozart Neves (relator),
Alessio Costa Lima, Antonio Carbonari, Aurina Santana, Luiz Curi, Marilia Ancona, NilmaFontanive, Suely Menezes e
Tania de Almeida. (Portal do MEC/CNE).
v
A avaliação da qualidade da educação é por demais complexa para ser reduzida apenas aos resultados dos estudantes,
mas deve considerar diversos fatores, a maioria de ordem material, que requerem recursos e investimentos, e que
determinam a elevação ou o rebaixamento dessa qualidade, assim como do desempenho dos estudantes.
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E QUANDO A LEI N. 10.639 ACABAR, O QUE FAZER?
INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
Em primeiro lugar, gostaríamos de fazer dois esclarecimentos sobre o título deste texto. O
primeiro é que a denominação da Lei é meramente política, pois o que existe de fato (ainda) são as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER), que regulamentam e normatizam o
artigo 26o da LDBEN. O segundo esclarecimento é que este texto começou a ser escrito menos de
uma semana após a posse do novo governo federal de ultradireita, conservador e composto por
militares, ruralistas do agronegócio, fundamentalistas religiosos, banqueiros e defensores da Escola
Sem Partido, nos principais postos de comando do Estado Brasileiro. Em seguida, foi desenvolvido
ao longo do ano de 2019.
O que a atual conjuntura nacional nos demonstra, com a vitória eleitoral da ultradireita e
com sucessivos fatos e interpretações deles, é que vivemos um período de grandes retrocessos
políticos, sociais, econômicos e, no que diz respeito à temática deste texto, culturais, racial e
ideológico.
Nesta conjuntura, quando pensamos em elencar vários pontos de reflexão, nos parece
rememorar velhas lutas que estavam superadas e algumas, inclusive, superadas há séculos. Não nos
cabe aqui analisar todas, mas ao menos elencar algumas como “a terra é plana”, o “fantasma do
comunismo”, “o fim do socialismo no Brasil”, “povos indígenas emperram o desenvolvimento
brasileiro”, “não há dívida histórica com os povos africanos e seus descendentes, pois estes se
deixaram escravizar”, “professores são doutrinadores e as universidades são formadoras de
subversivos”. No aspecto de políticas de estado, “o mercado deve ser o propulsor de políticas
sociais”, as leis trabalhistas e os direitos “são fechaduras para desenvolver o país e não combate o
desemprego”, a previdência social “um monstro que dá prejuízo ao Estado” e,enfim, um retorno de
meio século: “os militares são os que sabem como desenvolver o Brasil”.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
doenças”, “o comunismo ainda existe no Brasil”, enfim, proposições expressas naquilo que José de
Abreu (ator teatral) narra como “ignorância orgulhosa”.
O confronto de ideias nesse nível suscita até mesmo novas formulações conceituais como a
“pós-verdade” e a “auto-verdade” (D’ANCONA, 2018), ou seja, o que é dito, narrado e divulgado
por autoridades, sejam elas governamentais ou não, sem nenhuma referência fundamentada em
pesquisas ou estudos, se qualificam como se fossem realidade, embora sejam meras interpretações.
Nesse confronto, as tarefas colocadas pelos movimentos sociais e pela esquerda, em geral,
se limitam ao campo da denúncia, da contraposição argumentativa e retórica, com muito pouco
poder de reversão de políticas públicas ou proposição e implementação de novas. No plano
governamental, legislativo e jurídico, retrocessos sociais são implementados, legislações e
regulamentações de políticas públicas são cortadas naquilo que são sua materialidade: recursos
humanos e financiamento. Por outro lado, leis são reinterpretadas na medida em que os movimentos
sociais tenham forças de resistência.
Entretanto, nos parece que o horizonte da resistência, numa perspectiva de médio e longo
prazo, ainda se torna pior na medida em que os sujeitos políticos contra hegemônicos com maior
capacidade de ação política, têm como limite de ação somente o processo eleitoral, embora realizem
ações políticas de conscientização. Porém, esta história não é nova. Não vivenciamos, neste aspecto
de limites de horizontes, uma novidade, desde que tenhamos evidentemente conhecimento histórico
e sociológico.
A perspectiva que trabalharemos neste texto é aquela de que o horizonte da utopia igualitária
está sempre presente, pois aprendemos com a história que aquilo que foi impossível e inimaginável
um dia, se concretizou a partir da ação política concreta de sujeitos coletivos que assumiram a tarefa
de transformar sua realidade, pois não satisfeitos com ela, inventaram novos horizontes de vida e
novas possibilidades comunitárias, sejam elas culturais, tecnológicas, políticas ou sociais.
Com a entrada do novo governo de ultradireita, logo nos primeiros meses se instalou uma
crise que, ao contrário do que se pensa, não é conjuntural, mas um projeto pensado, articulado e
divulgado para mais a frente pode se constituir numa ação de Estado permanente, especialmente na
educação, em que o futuro é o que está em disputa.
Os ataques à educação brasileira nos mais diversos meios de comunicação e nas redes
sociais evidenciam que este governo não quer somente privatizar a educação, mas, principalmente,
evitar a constituição e crescimento de uma massa crítica num futuro bem próximo. Portanto,
divulgações esdrúxulas como o terraplanismo, a ineficiência das vacinas, o anti-intelectualismoo
exacerbado, a improdutividade das universidades, o doutrinarismo de docentes na educação básica
etc., não são sintomas de ignorância medieval ou falta de caráter de certos ideólogos de extrema-
direita. Pelo contrário, é um projeto de poder de médio e longo prazo.
A guerra ideológica se expressa como numa guerra real tradicional, ou seja, a cada trincheira
e front uma granada para cegar o inimigo, confundi-lo, distraí-lo ou chamar atenção para embaçar a
visão dos “inimigos da nação”. A cada granada, uma preocupação, uma tensão que, cotidianamente,
tenta desnortear a massa daqueles que podem ser a coletividade crítica e numerosa contra as
iniciativas estratégicas de manipulação dos oprimidos.
Essas ações, enquanto projeto, não têm nenhum pudor de enfrentar as reações, pelo
contrário, do lado da ultradireita há também uma militância que imprime um ritmo colossal, seja
nas redes sociais, seja nas ações diretas em nível governamental. Quando estudantes e profissionais
da educação vão as ruas, com milhões de pessoas, imediatamente os sujeitos governamentais
formulam uma reação midiática e vão para os meios de comunicação e, além de ignorarem os
protestos, partem para convocar a massa menos crítica para desqualificarem os manifestantes. São
táticas de guerra intensiva. Enfim, neste cenário, se faz urgente e necessário reaprender e
rememorar cotidianamente as experiências que nos fizeram avançar e construir o que foi
conquistado democraticamente em tantas lutas populares que travamos nos últimos 30 anos.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
A lei 10.639/2003 não foi um presente de parlamentares e do governo Lula à época, sobre
políticas de combate ao racismo na educação. Há um histórico de reflexões que tem início no
período pré e pós-abolição, que alcançam os intensos debates sobre a identidade nacional no final
do século XIX e início do XX, e são incorporadas pelos diversos setores negros e intelectuais ao
longo do século XX, até a emergência das questões atuais em educação.
Observando movimentos mais recentes, os movimentos negros a partir dos anos de 1980
atribuíam à educação um papel prioritário na superação do racismo. Segundo Gonçalves e Silva
(2000), o Movimento Negro Unificado estimulou no seu interior organizações e militantes capazes
de formular propostas em relação ao tema da educação. Essa mudança na capacidade de formulação
de propostas está relacionada ao crescimento de militantes com nível superior. Aqui se inicia um
maior intercâmbio e trocas de experiências entre espaços acadêmicos e militância.
Não podemos esquecer que, além das alianças acadêmicas, a partir de 1982, com a eleição
de alguns representantes de oposição à ditadura militar em alguns governos estaduais, muitos
militantes do movimento negro ingressaram em assessorias para assuntos da comunidade negra e
em secretarias estaduais de educação e cultura. Em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia,
muitos desses assessores militantes buscavam interferir nos currículos escolares e nos livros
didáticos.
Um dado fundamental para se pensar a conjuntura do movimento negro e suas relações com
a educação no período subsequente é a sua relação com o movimento dos professores na década de
1980:
Na medida em que o movimento negro se engajou nas lutas pela valorização da escola
pública, ele pôde sensibilizar o setor educacional na defesa de suas reivindicações
contra o racismo (GONÇALVES, 1997, p. 499).
A partir dessa conjuntura histórica é que surgem também as discussões no campo das ações
afirmativas na década de 1990, como por exemplo, a polêmica que envolve a sociedade acerca das
cotas para negros nas universidades públicas e outros setores governamentais e produtivos.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
Além disso, a prescrição da Constituinte que transformou racismo em crime a ser punido
com pena de prisão por meio do artigo 5º, inciso XLII, e foi regulamentada pela Lei n. 7.716/89,
consolidou a chamada “Lei Caó”. Este fato foi considerado pelo Movimento Negro um grande
avanço. Foi criada neste momento também a Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao
Ministério da Cultura e que tem como principal objetivo lutar pela preservação dos valores
culturais, sociais e econômicos oriundos da influência africana na formação da sociedade brasileira.
Em 1995, o Movimento Negro comemora os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares.
Nesse momento, deflagra-se um intenso processo de discussões sobre a população negra. A
Universidade de São Paulo, por exemplo, produz um documento chamado “Zumbi, tricentenário da
Morte de Zumbi dos Palmares” com proposições sobre políticas antirracistas, as chamadas Ações
Afirmativas com ênfase na educação, culminando na Marcha Zumbi dos Palmares: Contra o
racismo, pela cidadania e a vida, na qual cerca de 30 mil negros e negras foram à Brasília, no dia 20
de novembro, com um documento reivindicatório que foi entregue ao então presidente Fernando
Henrique Cardoso. Dentre as reivindicações no campo educacional, ressaltamos: monitoramento
dos livros didáticos, manuais escolares e programas educativos controlados pela União;
desenvolvimento de programas de treinamento de professores e educadores que os habilite a tratar
adequadamente com a diversidade racial, identificar as práticas discriminatórias presentes na escola
e o impacto destas na evasão e repetência das crianças negras e; o desenvolvimento de ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de
tecnologia de ponta.
numa resposta-proposta às ambiguidades classificatórias que tanto pesaram e pesam sobre os negros
e seus descendentes no Brasil.
A conferência abriu uma agenda no Brasil que impulsionou debates e reflexões acadêmicas
muito além das propostas de cotas. Para Carneiro (2002, p. 213),
[...] o que Durban ressalta e advoga é a necessidade de uma intervenção decisiva nas
condições de vida das populações historicamente discriminadas. É o desafio de
eliminação do fosso histórico que separa essas populações dos demais grupos, o qual
não pode ser enfrentado com a mera adoção de cotas para o ensino universitário.
Precisa-se delas e de muito mais.
Para muitos militantes do movimento negro, a SEPPIR foi a materialização de uma histórica
reivindicação do movimento negro em âmbito nacional e internacional. De fato, foi a primeira vez
que o Estado se colocou como responsável pelo enfrentamento estrutural das relações de
desigualdades raciais.
A lei, de início, trouxe consigo uma intensa polêmica: para alguns significava imposição,
para outros uma concessão. Porém, com a realização de diversos fóruns estaduais e nacionais
promovidos pelo MEC e o empenho de diversos educadores e dos movimentos negros, os debates
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
sobre o ensino da História da África e dos negros no Brasil nos currículos escolares foi
conquistando espaços significativos de luta antirracista na sociedade brasileira.
Ao lado das discussões sobre as ações afirmativas, em especial a polêmica sobre as cotas, as
reflexões acadêmicas foram se ampliando e adentrando outras discussões já presentes no campo
educacional como currículo, práticas de ensino, multiculturalismo, educação inclusiva etc.
Publicações que começaram a tomar corpo no cenário acadêmico, assim como nas revistas de
divulgação científica e também na mídia, as iniciativas da Anped na formação de um Grupo de
Estudos Afro-brasileiros e Educação em seus encontros anuais a partir de 2002, a recorrência de
publicações de artigos nas principais revistas acadêmicas de educação a partir dos anos 1990 e a
fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) em 2000, são algumas das
iniciativas que vêm se afirmando na área de educação. Destaca-se também a ampliação,
principalmente após a publicação da Lei n. 10.639/2003, de cursos de pós-graduação lato-sensu
sobre História da África, relações raciais e educação em diversas universidades.
Em 2005, temos a edição do projeto “Cor da Cultura”, veiculado pela TV Futura em parceria
com o governo federal que, através de programas educativos, contribuiu para divulgar ações e
iniciativas de educadores, escolas e ONGs no campo das relações raciais e educação, dando
prioridade às metodologias pedagógicas para aplicação das diretrizes curriculares para a educação
das relações étnico-raciais.
Faz-se necessário destacar, ainda, a presença dos pesquisadores negros em algumas das
principais universidades e programas de pós-graduação do Brasil. Sem dúvida alguma, a presença
desses pesquisadores nestas instituições acadêmicas representa uma força institucional de
legitimação de suas elaborações científicas e militantes.
Nos últimos 15 anos, foram publicadas centenas de pesquisas, artigos, revistas e foram
realizadas centenas de eventos acadêmicos e de movimentos sociais negros que, por sua vez,
geraram milhares de artigos e textos. Sem contar a abertura de editais para elaboração de propostas
de cursos de aperfeiçoamento e/ou especialização, manutenção de permanente diálogo com
associações de pesquisadores tais como ABPN, Anped, Núcleos Estudos Afro-brasileiros (Neabs) e
organizações do movimento negro e, a inclusão dessas reflexões no Sistema Nacional de Formação
de Professores, sob a coordenação da Capes. Muitas dessas iniciativas viraram textos de políticas de
Estado, como por exemplo, a proposta do “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei n. 10.639/2003” (BRASIL, 2008).
A professora Mônica Lima da UFRJ, em uma entrevista para uma pesquisa de doutorado em
2009, afirmou que “Essa lei foi acompanhada de uma pouco comum pressão da sociedade [...]”
(OLIVEIRA, 2012, p. 181). Essa afirmação deve ser interpretada como uma atenção especial
naquilo que descrevemos acima, ou seja, as legislações antirracistas só conseguiram ganhar força
nas universidades e nas escolas porque ocorreu uma militância ou guerrilha permanente, onde cada
espaço, permitido ou não, foi ocupado para promover denúncias e proposições antirracismo.
A princípio, parece que em milhares de escolas foi implementada a Lei n. 10.639/2003 como
formulada e intencionada pelos movimentos sociais negros. Entretanto, o que observamos em
diversas pesquisas, e o que ocorreu e ocorre ainda hoje, é que onde há debate e ações educativas
sobre racismo e antirracismo, isso só foi possível devido à presença direta ou indireta de militantes
ou profissionais engajados nas lutas antirracistas (PEREIRA, 2013).
A força da legislação está viva até hoje e foi forjada no coração, nas veias e na vitalidade
utópica da militância. Sem isso, jamais teríamos condições de presenciar essa história. Conceitos
foram forjados, novas formulações foram edificadas, padrões epistêmicos de pensamentos sobre
relações sociais brasileiras foram profundamente questionados e outros ascenderam como
fundamentos educacionais e pedagógicos.
Nos próximos anos que virão, não podemos nos esquivar de tudo o que fizemos enquanto
sujeitos coletivos. Não podemos ser ingênuos e pensar que partimos do zero, e mais, não podemos
nos dar ao luxo de não aprender com as novas realidades, com novos desafios, com novas
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
demandas, pois foi assim que várias gerações passadas aprenderam e produziram o que temos hoje.
Eles não partiram do zero, mas também souberam, no seu tempo, inventar e reinventar ações,
pensamentos, conhecimentos para intervir no mundo, sem jamais deixar de pensar na conexão entre
tática e estratégia e, o mais importante, não se limitando unicamente na dimensão do Estado e dos
aspectos jurídicos dos direitos.
Assim, chegamos à atual conjuntura em que está posta uma ameaça real e dolorosa para
muitos militantes, docentes, estudantes e intelectuais, que é o fim das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (DCNERER), que regulamentam e normatizam o artigo 26a da LDBEN. Essa
ameaça surge como um monstro atrás da porta, prestes a nos engolir e sepultar definitivamente
nossas energias de luta. Mas é um monstro virtual ainda, um espectro que ronda nossas mentes e
cotidiano que também nos informa o cuidado que temos que ter para saber agir e resistir.
Esse discurso autorizado de acusação de “vitimismo” precisa ser denominado com todas as
letras por tudo que analisamos neste texto, ou seja, ele significa uma militância, um engajamento
político. Entretanto, esse discurso não é novidade histórica, a diferença é a intensidade legitimada
oficialmente pelo chefe de governo e pela conjuntura de guerrilha implementada pelo
neoconservadorismo fascista. Quando afirmamos que não é novidade, devemos aqui descrever
alguns episódios que vivenciamos junto a outros docentes na educação básica no Rio de Janeiro.
Durante 4 anos (entre 1999 e 2002) de atuação como professor de sociologia, um dos temas
prioritários do currículo eram as relações raciais no Brasil. Os conteúdos que trabalhávamos não se
limitavam aos aspectos formais ou meramente conceituais, muito menos ficávamos restritos a
atuação em sala de aula. Realizamos junto aos jovens estudantes debates com militantes do
movimento negro, organizávamos palestras, exposições, oficinas, reflexões com vídeos de
entrevistas e documentários e, por outro lado, junto os nossos pares docentes, reflexões pedagógicas
acerca do antirracismo necessário às práticas pedagógicas de forma interdisciplinar.
À época, nossas ações e discursos não possuíam um lugar de legitimidade, pois o conceito
de raça, por exemplo, era rechaçado por muitos colegas; por outro lado, a força do mito da
democracia racial era muito forte dentro das escolas. Alguns docentes muitas vezes afirmavam que,
por exemplo, a África já constava nos currículos de história quando se abordava a escravidão no
Brasil colônia e o período de descolonização da África e da Ásia. Tínhamos essa reflexão por conta
de nossas histórias de vida, próxima da luta antirracista e anterior ao nosso encontro na escola
enquanto colegas.
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
dignidade humana. Era um trabalho de Sísifo, pois ao mesmo tempo não existia uma legitimidade
política e jurídica.
Esta situação, anos mais tarde, foi pensada por militantes negros que passaram a caracterizar
essas ações como iniciativas dos “agentes da Lei”. Este termo foi utilizado pelo professor Amauri
Mendes Pereira no XXIV Simpósio Nacional da Associação Nacional de História (ANPUH) em
2007 e refere-se à condição dos divulgadores e dos cobradores da aplicação da Lei n. 10.639/2003.
Ironicamente, este professor afirmava que se, em anos anteriores, muitas das ações dos movimentos
sociais se encontravam na ilegalidade, agora, com uma Lei que “instrumentaliza” negros e negras a
lutarem contra o racismo, os defensores dessa legislação são mais do que “militantes” são os
“agentes da Lei”, ou seja, sujeitos que, numa condição análoga a dos militares, governos ou juízes,
exigem o cumprimento da Lei n. 10.639/2003, se encontrando numa posição “contraditória”, pois
ocorre uma inversão de papeis sociais, ou seja, são os “governados” que exigem a aplicação jurídica
da Lei n. 10.639/2003 e punição dos infratores. Este momento da ANPUH foi a primeira vez que
ouvimos este termo, mas, segundo o mesmo professor, esta expressão já estava sendo recorrente em
diversos espaços acadêmicos e políticos.
Entretanto, com esta pequena história, o mais importante na análise é o fato de explicitar a
militância, a dedicação organizada em ações múltiplas, a insurgência cotidiana que educa gerações
e corações, a desobediência epistêmica e política, muito além do aspecto formal escolar ou
acadêmico. Obviamente que um instrumento poderoso expresso numa legislação contribui muito
numa ação militante, porém, como queremos argumentar, leis e normativas, no plano
governamental ou jurídico, são decorrências da vida real, sentida, pulsada e experienciada com dor
e emoção.
Convivemos no atual período histórico com duas gerações de educadores, uma que foi
socializada em ambientes educacionais em que legislações antirracistas não existiam e outra que
entrou nos sistemas de ensino (sendo estudante ou docente) presenciando ações militantes e
governamentais a partir das legislações antirracistas que os conscientizaram (em vários níveis).
Demarcar esta diferença é importante para se pensar ações coletivas insurgentes nos espaços
educacionais diante de uma conjuntura extremamente desfavorável. Isto porque as experiências dos
sujeitos formam expectativas e enunciações possíveis sobre ações que visam possibilidades de
transformações pedagógicas.
Por um lado, os sujeitos que se formaram sob o espectro do mito da democracia racial e não
tinham o apoio político de legislações e de direitos jurídicos minimamente garantidos, ou tiveram
que necessariamente optar por uma militância a contrapelo, ou seja, se engajar cotidianamente
numa luta ou, não tinham consciência, por força daquele mesmo mito, de que a questão racial era
uma questão relevante nos processos educacionais. Decorre daí, para aqueles sujeitos antirracistas,
uma experiência de engajamento que os formou a partir de uma perspectiva cognitiva e emocional
utópica, no sentido de que um horizonte de possibilidade e espera (de esperançar ativo) mobilizava
suas ações e intenções pedagógicas e políticas. Esses sujeitos têm em sua formação geracional,
experiências marcadas fortemente pela militância e pelo engajamento tático e estratégico em suas
intencionalidades. Vimos, anteriormente, o que eles foram capazes de produzir, embora as relações
estruturantes do racismo na educação não tenham se transformado substancialmente desde então.
Por outro lado, existem os sujeitos mais jovens, com outras experiências marcantes em suas
formações. Formaram-se e se engajaram a partir de uma mobilização das gerações anteriores,
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
porém não vivenciaram, como dissemos anteriormente, o trabalho de “Sísifo”. Quando adentram
aos espaços educacionais, as legislações e direitos jurídicos adquiridos já existiam e mobilizavam (a
partir de sua e das gerações anteriores) intencionalidades e ações pedagógicas. Diferente de
gerações anteriores, esses sujeitos se amparam naquilo que está instituído legalmente, não tendo
experenciado nenhuma relação de engajamento duro e, por vezes, violento contra o racismo, mas
tendo como recurso o amparo da Lei. A consciência formada não foi a partir de processos de
engajamento “fora da Lei”, mas na defesa da Lei. Não que essa consciência seja menos significativa
ou inferior às gerações anteriores, mas sua característica tem uma certa base de sustentação, ou seja,
está amparada por dentro das instituições estatais com suas hierarquias e limites. Porém, há que se
destacar que esta geração “formada pela lei” também vivenciou profundos processos de
conscientização, na medida em que foi percebendo os limites institucionais do estado racista e
colonial. Muitas dessas experiências, num primeiro momento, se acenderam com a crescente
mobilização antirracista na educação, porém, com uma reflexão coletiva, junto ou não às gerações
anteriores, começaram a perceber os limites, os entraves, os desafios e os profundos conflitos que
pesam sobre uma intencionalidade antirracista na educação.
Esta reflexão deveria ser objeto de mais pesquisas, pois, como estamos tentando desenvolver
aqui, mais do que proposições e retóricas antirracistas, a experiência da luta antirracista requer uma
profunda vontade utópica daqueles que pretendem agir no mundo para construir processos
formativos transformadores. E isto não requer somente uma formação pedagógica e teórica
fundamentada em processos cognitivos formais, pois
Em muitas situações de ação de movimento, os sujeitos que dele participa, colocam
em jogo sua condição existencial ou parte importante de sua vida. Em algumas
situações, suas vidas são colocadas em situações de risco. Pois, algumas mobilizações
sociais se caracterizam como situações de risco para certos indivíduos e coletivos:
arriscando o emprego, a segurança, a identidade, a vida. Essas ações e riscos deixam
marcas viscerais e estas as fazem aprender e ensinar para novas ações e geram
conhecimentos sobre a realidade, constroem memórias coletivas, ou seja, constroem
sua própria história (OLIVEIRA, 2015, p. 177).
Mais do que uma tarefa acadêmica, analítica e descritiva, o que se coloca para um conjunto
significativo de militantes, docentes, estudantes e intelectuais negros e não negros, é uma tarefa
política de insurgência permanente na realidade educacional brasileira e, aqui, tentamos arriscar três
níveis de intervenção insurgente: nas escolas junto aos docentes, as crianças e aos jovens; nas
universidades junto aos jovens e na militância política comunitária cotidiana.
Com as crianças é o saber cuidar, proteger e defender suas vidas. Crianças não são tábula
rasa, elas são carregadas de razões, emoções e observações atentas sobre os adultos que estão ao seu
redor. Mas há “crianças” e “crianças”. Nosso foco político, numa perspectiva antirracista, deve girar
para as crianças mais vulneráveis e negras. Há que se investir nossas energias pedagógicas na
defesa intransigente dos direitos delas, há que se combater toda a forma de violência, racismos e
exclusões contra as crianças. Obviamente, não temos o poder de interferir em todos os momentos de
socialização das crianças, entretanto, o exemplo ético e político deve permear todas as nossas ações
pedagógicas. Por uma questão simples: educadores são também sujeitos que marcam a
ancestralidade das novas gerações, pois todos nós temos uma história marcante de vida em que os
que nos educaram sempre estão impressos em algum momento de nossas narrativas de coração.
Dessa disputa de futuro, não podemos nos esquivar, pois somos finitos e são as novas gerações que
nos manterão vivos e que poderão manter a chama utópica do bem viver.
Cara senhora,
Você nem se lembra do meu nome. E você reprovou muitos. Mas tenho pensado
muitas vezes em você, nos seus colegas, nessa instituição que se chama escola, e nos
meninos que foram “rejeitados".Nos rejeitaram nos campos e nas fábricas e nos
esqueceram. Dois anos atrás, no primeiro ano, você me intimidava.
Além disso, a timidez me acompanhou durante toda minha vida. Desde pequeno não
levantava os olhos do chão. Rastejava pelas paredes, para não ser visto. No começo eu
pensei que era uma doença minha ou da minha família. Minha mãe era daquelas que
diante de um telegrama se intimidava. Meu pai observava e escutava, mas não
falava.Mais tarde, eu acreditava que a timidez era apenas um mal dos camponeses [...]
Agora eu vi que os trabalhadores deixam aos filhos mimados todas as posições de
responsabilidade nos partidos políticos e todos os postos no parlamento.Então, eles
são como nós. E a timidez dos pobres é um mistério muito antigo. Eu não sei como
explicar [...]. Talvez a timidez não seja nem covardia nem heroísmo. É apenas falta de
prepotência (SCUOLA DI BARBIANA, 1996, p. 9-10).
Quando pensamos no trabalho com jovens nas universidades, uma reflexão preliminar se faz
necessário do nosso ponto de vista: a produção de conhecimento é para que e para quem? Essas
perguntas são cruciais para uma perspectiva política que defendemos aqui. E isto nos leva a uma
reflexão recente:
Nas ciências sociais e da educação aprendemos que não podemos ser militantes em
nossas pesquisas, isto por que aquilo que estudamos e pesquisamos devem ser objetos
de análise, ou seja, ter um caráter analítico e não normativo, pois a pesquisa tem como
horizonte saber investigar aquilo que não conhecemos e não aquilo que queremos para
nossas vidas. Na esteira dessa concepção se encontra o significado daquilo que
Esta concepção ainda é dominante nos espaços acadêmicos e, na atual conjuntura política,
falar em militância dentro do contexto universitário parece dar armas e argumentos para a
ultradireita, já que esta também é herdeira da matriz colonial de poder defensora da neutralidade
axiológica.
Entretanto, a realidade é muito mais complexa do que possamos imaginar e o que nos cabe
num contexto extremamente adverso é a postura da desobediência epistêmica, como formulado por
Mignolo (2008), qual seja: permitir e fomentar que pensamentos não hegemônicos adquiram status
científicos a partir de seus próprios enunciados e que dialoguem entre si e com os conhecimentos
hegemônicos, porém, não se curvando diante das hierarquias preestabelecidas pelo pensamento
ocidental eurocêntrico.
Fanon (apud MIGNOLO, 2008, p. 186) afirmava que para um negro que trabalha numa
plantação de açúcar [nas Antilhas], a única solução é lutar, mas que ele “a empreenderá e a
conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá
conceber sua existência através de um combate contra a exploração e a fome”.
Essa afirmação de Fanon, formulada a partir de uma análise das relações sociais entre negros
e brancos no colonialismo, também pode ser referenciada para pensar a nossa época e os nossos
contextos de aprendizagens institucionalizados na academia com os jovens. Pois, diante de tantas
opressões cotidianas, também presentes nos espaços universitários, não há como não lutar, não há
como concordar com o paradigma da neutralidade. Na medida em que os movimentos sociais se
posicionam e se afirmam como existentes, o campo do conhecimento hegemônico é posto à prova e
não há mais como negar a presença das mulheres, dos jovens das periferias, dos negros, dos
homossexuais, dos trabalhadores do campo etc., nas diversas universidades brasileiras. Em
movimento, esses sujeitos anunciam que existem outras formas de pensar o mundo, outras formas
de projetar a vida e que é necessário reorganizar a condição humana superando a condição sub-
humana. Assim, o foco no trabalho acadêmico com as juventudes deveria nos conduzir a ideia e
práxis de que quaisquer processos educacionais, que se pretendem focar numa educação crítica e de
qualidade, só têm a possibilidade de serem como se pretendem se forem engajadas einsurgentes. No
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mais, a possibilidade de não realização desta perspectiva, significa nossa própria derrota geracional
diante dos ataques neoliberal/conservador/fundamentalista/racista/capitalista à educação brasileira.
Todos nós somos sujeitos produtores de conhecimento e somos mobilizados por uma
inquietação intelectual, que tem sua matriz na realidade concreta em que ele está implicado. Paulo
Freire (1987) nos diz que a cultura não pode ser arrancada do sujeito, pois este só existe porque a
cultura lhe é constitutiva. Implicado em sua realidade, este sujeito não tem como ser objetivado para
fora de si. Portanto, a neutralidade não existe e o combate a ela é a desobediência epistêmica.
A luta antirracista insurgente fora dos espaços institucionais de ensino, mas conectados a
estes, requer a compreensão de duas dimensões fundamentais: a força do mito da democracia racial
e a colonialidade do ser.
Segundo Munanga (1999), o discurso da mestiçagem foi uma estratégia inteligente das elites
para evitar tanto o aparecimento explícito do racismo quanto a dominação cultural branco-europeia.
O autor afirma que a miscigenação não foi voluntária, mas fator do desequilíbrio demográfico entre
homens e mulheres brancas. O “mulato”, afirma o autor, nasce de uma relação imposta pelo branco
sobre a mulher negra e índia. Nesse sentido, estabelece-se, desde a colônia, um contingente
populacional mestiço grande que cumpriu um papel intermediário na sociedade com tarefas
econômicas e militares na opressão aos africanos escravizados e seus descendentes. Esse fator
crescente de miscigenação imposta exerceu direta influência no pensamento social brasileiro e no
imaginário popular. A decorrência desses movimentos foi a teoria da democracia racial, ou seja, a
ideia de que a diferença entre grupos étnicos não se constitui como fator de desigualdade.
Ainda segundo Munanga (1999), a contribuição de Freyre (1971) nos anos de 1930 é ter
demonstrado que negros e mestiços tiveram contribuições positivas na cultura e identidade
nacional; entretanto, ao transformar a mestiçagem em valor positivo, e não negativo sob o aspecto
da degenerescência, Freyre formula os contornos de uma identidade nacional que há muito tempo
vinha sendo desenhada. Ou seja, ele consolida a possibilidade de uma interpretação de um mito de
origem da sociedade brasileira, baseado na harmonia das três raças, onde, da dupla mistura –
biológica e cultural – brota lentamente o mito da democracia racial.
Este mito, apesar de ter sofrido significativos ataques culturais, epistêmicos e políticos,
ainda se mantém como base explicativa da constituição das relações sociais brasileiras. O
movimento social negro que fez com que os debates raciais na sociedade brasileira ganhassem
visibilidade, evidenciando que existe uma condição racial subalterna em relação àquela construída
sob a hegemonia branca, estabelece muitos conflitos subjetivos e sociais. O mito da democracia
racial ainda é forte, e tende a se acentuar numa conjuntura conservadora. Ele se constitui, ainda,
como uma retórica mobilizadora de explicação da realidade brasileira.
Catherine Walsh (2005) recorda as palavras de Frantz Fanon (1983) para relacionar
colonialismo a não existência: “em virtude de ser uma negação sistemática da outra pessoa e uma
determinação furiosa para negar ao outro todos os atributos de humanidade, o colonialismo obriga
as pessoas que ele domina a perguntar-se: em realidade quem eu sou?” (FANON apud WALSH,
2005, p. 22). E mais:
O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colonizador limitar
fisicamente o colonizado, isto é, com seus policiais e guardas, o espaço do colonizado.
Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do
colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade colonizada não é apenas
descrita como uma sociedade sem valores. [...] O indígena é declarado impermeável à
ética. Ausência de valores, e também negação dos valores. Ele é, ousemos dizer, o
inimigo dos valores. Neste sentido, ele é o mal absoluto. Elemento corrosivo,
destruindo tudo de que se aproxima, elemento deformante, desfigurando tudo o que se
refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas […] (FANON, 2005, p.
57-58).
A colonialidade do ser é pensada como uma negação de um estatuto humano para africanos
e indígenas, por exemplo, na História da modernidade colonial. Esta negação, segundo Walsh
(2007), implanta problemas reais em torno da liberdade, do ser e da História do indivíduo
subalternizado por uma violência epistêmica.
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relega o diferente, o converte em um não ser. Esta, portanto, foi a experiência vivida na
colonialidade.
Nos anos de 1970, ele estava procurando uma escola para lecionar Educação Física. Um de
seus amigos (branco) lhe disse que foi chamado numa escolar particular e, em sua entrevista, além
de terem ficado satisfeitos com seu perfil e sendo admitido, lhe perguntaram se ele conhecia algum
professor de Educação Física, pois a escola estava precisando de um, urgentemente. Esse amigo
imediatamente indicou o professor Amauri. Dias depois, Amauri se dirigiu à escola e se apresentou
para a vaga ofertada. Entretanto, ao vê-lo, o entrevistador afirmou ao professor Amauri que a escola
não precisava de nenhum professor de Educação Física. A reação do professor foi de estranheza,
pois seu amigo tinha lhe informado sobre a urgência da escola em ter um profissional em sua área.
Em seguida, o professor Amauri voltou a conversar com seu amigo sobre o ocorrido. O que fez esse
seu amigo? Retornou à escola para perguntar o por quê Amauri não foi contratado. A resposta foi
típica: “ele não se encontra no perfil da escola”. Imediatamente, esse amigo percebeu que a questão
não era o perfil profissional, mas a postura racista da escola. Depois dessa conversa, esse amigo
(branco) disse que não pretendia mais trabalhar numa escola racista e que não aceitaria jamais um
trabalho onde o critério de seleção de docentes fosse a cor de pele branca.
O professor Amauri, com esta resposta a indagação feita por parte de uma estudante, quis
dizer explicitamente que o problema racial no Brasil não é uma coisa “só do negro” e que brancos
antirracistas precisam ser fortes aliados junto à população negra. E pergunta: quantos estão
dispostos a fazer isso? E quando fazem isto, precisamos desconfiar dos brancos por que são
brancos? Essa pequena história nos diz que a luta racial deveria significar uma luta de toda a
sociedade brasileira. Outra história vem de um município do interior do estado do Rio de Janeiro, o
município de Macaé.
Era o ano de 2005. Dois professores realizavam um minicurso sobre relações raciais numa
escola dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Neste minicurso, se abordavam temas como
racismo, raça, história da África e relações raciais em sala de aula. Debates profundos durante 4
semanas seguidas. Na última semana, no momento de finalização e avaliação coletiva, uma
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professora alfabetizadora deu o seguinte depoimento: “esse curso me fez perceber uma coisa
chocante. Nunca tinha percebido que minhas dez crianças que alfabetizo são negras”. E mais:
“depois deste curso entendi que o conceito de ‘negro’ não é pejorativo. Antes eu ficava com medo
de expressar esta palavra, pois sabe como é, era um receio de estar ofendendo alguma criança”.
Apesar da satisfação que os professores que ministravam este curso tiveram, pois
representou um avanço nos debates sobre consciência antirracista, alguns minutos depois a mesma
professora fez uma pergunta que ficou sem resposta: “mas, professor, aprendi aqui a não mais ter
medo de classificar uma criança negra de negra. Mas se os pais dessa criança não gostarem dessa
classificação e tentarem me intimidar ou denunciar? O que devo fazer?”
Essa última fala perturbou a todos ali presentes. A resposta não era simples, pois exigia mais
16 horas de curso, ou, como refletimos alguns anos depois:
Depois de alguns dias, me dei conta de que as professoras tinham muitas ideias sobre
o racismo no Brasil, mas também interpretei que elas me deram um recado: como
discutir a História da África, o racismo, os preconceitos, se nós temos muitas coisas
para resolver, principalmente os preconceitos contra nós mesmos e contra nossas
crianças? Essa questão me perseguiu durante os anos subsequentes. E fui
amadurecendo a ideia de que para se discutir a Lei n. 10.639/03 com os professores,
era necessário ir além, ou seja, na complexidade da formação docente em termos
subjetivos e objetivos (OLIVEIRA, 2012, p. 264).
Dez anos após esta história, vivenciamos outra, agora num contexto envolvendo a relação
entre professor e estudante de pós-graduação.
Era o ano de 2014 e uma pedagoga se apresenta ao professor numa disciplina de mestrado
na UFRRJ denominada “Colonialidade e Racismo Epistêmico: formação docente e relações
raciais”. Seu objetivo não era somente cursar uma disciplina de um tema que ela nunca havia
estudado, mas também conhecer o professor que poderia ser seu futuro orientador.
Nos primeiros debates, ela quase não se expressava. Quando o fazia, descrevia suas
dificuldades em debater sobre racismo e sobre sua identidade racial (dizia ela que outras pessoas a
atribuíam, às vezes como mulata, às vezes como parda). Os colegas em torno, a abordavam
carinhosamente no sentido de tentar mobilizá-la para todo um debate já acumulado por eles,
afirmando que essa reflexão é um processo longo e doloroso, pois não é fácil o reconhecimento da
própria condição racial. Não fizeram uma abordagem agressiva no sentido de exigir que ela se
assumisse enquanto negra, mas na perspectiva de que somente ela poderia perceber se é negra ou
não. Cabe ressaltar aqui que esta pedagoga se apresentou com seus belos cabelos lisos e, por algum
tempo, continuou assim.
Durante esses primeiros momentos, ela iniciou seu processo de seleção ao mestrado e, após
provas e entrevistas, conseguiu ser selecionada em 2015 para o mestrado em educação. A partir daí
muita coisa mudou, pois começou a priorizar a compra de livros, a leitura de textos, a participação
em eventos acadêmicos e de movimentos sociais negros, a participação em grupos de pesquisa e, o
mais importante, a fazer do debate sobre o racismo uma rotina na família e nos seus círculos de
amizade. Outra mudança, foram os diversos eventos dos quais ela participou enquanto protagonista
(sendo palestrante, mediadora ou apresentando trabalhos). Decorre daí também, a mudança
corporal: não alisou mais os cabelos e adotou o visual “natural”, a saber, os “cabelos afros”.
Outro exemplo pode ser considerado nesta perspectiva, que desenvolvemos recentemente
(OLIVEIRA, 2019, p. 57-58):
No samba de roda todas as pessoas são chamadas a dança, mesmo que algumas delas
não saibam mexer o corpo, ou seduzir o grupo. Além disto, o elemento principal da
dança não é a demonstração das habilidades de cada um, da capacidade de dançar, mas
a confraternização do grupo, criar a harmonia comunitária através da linguagem
corporal, pois o corpo é um dos centros sagrados do mundo.
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As dinâmicas das culturas negras de matriz africana podem nos mostrar que existem outras
formas de construir pedagogicamente uma sociedade mais justa e mais igualitária. O Samba de
Roda e as danças africanas, nos permitem e exibem um outro método de convivência democrática
entre pessoas e grupos.
Samba de Roda é um folguedo e uma herança africana, constituído de danças, passos muito
requebros, umbigada e cantoria. O ritmo é marcado por atabaques, pandeiros, berimbaus e batidas
de palmas. No Recôncavo Baiano o samba de roda é uma forma típica de samba, geralmente
dançado somente por mulheres, cuja coreografia se desenvolve no círculo de participantes, tendo ao
centro uma solista, que executa movimentos ágeis e graciosos, acompanhados de instrumento de
percussão e de palma. Oliveira (2019, p. 55) ainda afirma:
Nestas manifestações culturais, se expressa uma visão de mundo muito peculiar
trazida pelos africanos escravizados e reconstruído pelos afrodescendentes. Ou seja, a
dança negra é um meio de identificar um consenso comunitário, uma harmonia
participativa, onde todas as pessoas devem colocar suas qualidades e potencialidades
em benefício do grupo. Além disso, não podemos esquecer que a dança negra, no
contexto da opressão escravista, era também um meio de afirmação pessoal, graças ao
qual o descendente de escravo deixava de sentir-se objeto da ação para converter-se
em agente do mundo.
Para Muniz Sodré (1988), a dança negra faz parte de um elemento da cosmologia africana, é
um “sentir, mas de uma experiência radical, de uma comunicação original com o mundo, que se
poderia chamar de cósmica, isto é, de um envolvimento emocional dado por uma totalização
sagrada de coisas e seres” (1988, p. 137). E mais:
O samba de Roda expressa muito bem essa maneira de ser de um povo, que procura se
construir na coletividade, não tendo outra alternativa. E a roda respeita cada
participante como ele é, e com a contribuição que ele tiver. Em todos os momentos,
cada um é o centro e nesse momento e por alguns momentos ele ou ela é o dirigente
máximo do processo, ou melhor dizendo, da roda. No centro da roda cada um faz o
que pode e o que sabe, não existe uma exigência. De certa forma é um exercício da
plenitude humana e da construção da cidadania, é um movimento alegre e festeiro,
como tem que ser a vida nessa visão de mundo, em que a cada momento, uma pessoa
é o centro da roda, é observado por todos, como também de certa forma, ensina a
todos. Nesse momento dar-se a plenitude da pessoa. O samba de roda nos ensina a
Estes exemplos nos permitem especular: por que não aprendemos a desenvolver um trabalho
político insurgente semelhante aos processos de resistências e afirmações de nossos ancestrais?
Estes fizeram política permanente e num período histórico em que, por exemplo, políticas públicas
de Estado eram inimagináveis.
Por fim, este texto se apresenta como uma pequena contribuição epistêmica e política, na
medida em que a conjuntura histórica que presenciamos exige de nós um debate mais amplo e
profundo com aqueles aos quais a modernidade ocidental invisibilizou e tentou exterminar.
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?
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Notas de fim
i
Alberti e Pereira (2007), num artigo para a Revista Estudos Históricos, vão, brilhantemente, ressaltar que o Movimento
Negro a partir da década de 1970, descobre a África como um poderoso processo de instrumentalização da militância
negra para ampliar a consciência sobre as origens do povo negro no Brasil e propiciar novas possibilidades de ação
antirracista. Recolhendo depoimentos de velhos militantes negros deste período, até os dias atuais, eles vão constatar
que um dos objetivos desses era reescrever a História do Brasil. E chegam às seguintes conclusões, depois de identificar
diversas cooperações entre militância negra e estudiosos da História da África em algumas universidades brasileiras:
“Não há dúvida de que a busca de uma África livre dos estereótipos dos animais selvagens e da miséria foi importante
para a consolidação dos movimentos negros a partir dos anos 70 [...]”. (p. 43) “O conhecimento do passado africano e
dos acontecimentos recentes envolvendo populações negras espalhadas pelo mundo teve uma função importante no
processo de construção e consolidação da identidade negra do militante. [...] importava buscar uma África livre de
estereótipos, um passado que fosse motivo de orgulho para militantes, crianças e jovens negros. [...] O debate e a
socialização dos novos conhecimentos, tanto no interior das entidades como entre elas, foram fundamentais para a
formação de uma massa crítica capaz de expandir a causa do movimento para diferentes setores da sociedade, o que
culminou com a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino desse conteúdo nas escolas do país” (p. 47-48).
Entretanto, a SEPPIR resultou de um processo de construção de longos anos, que envolveu as ações e reivindicações
ii
dos movimentos negros e as ações dos governos de Fernando Henrique Cardoso como a criação, em 2001, do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação; o Programa Diversidade na Universidade; o Programa Brasil Gênero e Raça,
Ações Afirmativas no Ministério do Desenvolvimento Agrário e o programa Bolsas-Prêmio de Vocação para a
Diplomacia (BRASIL, 2007).
Santos (2005) descreve que antes da apresentação do Projeto de Lei n. 259/1999, que culminou na aprovação da Lei
iii
n. 10.639/03, já existiam diversas legislações estaduais e municipais que, em função das pressões dos movimentos
negros, incluíam nos currículos da educação básica a História dos negros no Brasil e do continente africano, tais como:
a constituição do Estado da Bahia em 1989, a Lei orgânica de Belo Horizonte, de 1990, a Lei n. 6.889, de 1991, em
Porto Alegre, a Lei n. 11.973, de 1996, na cidade de São Paulo, entre outras.
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO
PROFISSIONAL DOCENTE?
Marli André
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Este texto discute questões relacionadas à inserção profissional docente. Inicia com uma
justificativa da importância do tema e de como o grupo de pesquisa, por mim coordenado, vem
investigando a temática. Em seguida, retoma os dados do último projeto de pesquisa desenvolvido
pelo grupo, indicando os principais questionamentos que dele emergiram. Na sequência, refere-se a
alguns pontos críticos apontados pela literatura sobre o momento de inserção profissional dos
professores novatos. Conclui retomando os pontos comuns aos diversos autores e faz proposições
para novos estudos.
A temática dos professores iniciantes vem sendo um dos focos de pesquisa do nosso grupo
nos últimos anos. Por que é importante o estudo de professores iniciantes? Por um lado, porque é
um tema ainda pouco estudado no Brasil, como apontado por vários mapeamentos da literatura,
embora venha recebendo maior atenção nos últimos anos (MARIANO, 2006; PAPI; MARTINS,
2010; CORRÊA; PORTELLA, 2012; PERRELLI, 2013; MIRA; ROMANOWSKI, 2016;
GONÇALVES, 2016). Por outro lado, esse período da carreira docente tem que ser considerado em
sua especificidade. É um momento que se diferencia da formação inicial e continuada, pelas suas
peculiaridades, de fase de transição, de integração na cultura docente, de inserção na cultura
escolar, de aprendizagem dos códigos e das normas da profissão.
Em um texto muito provocativo sobre os desafios do trabalho docente, Nóvoa (2006) aponta
a necessidade do cuidado com os professores iniciantes como um dos maiores desafios da profissão
docente. Segundo ele, cuidamos muito mal dos jovens professores, pois ao ingressarem na docência
eles vão para as piores escolas, têm os piores horários, recebem as piores turmas e são “lançados às
feras”, sem qualquer tipo de apoio. Ele nos chama a atenção e adverte:
[...] se não formos capazes de construir formas de integração, mais harmoniosas, mais
coerentes, desses professores, nós vamos justamente acentuar, nesses primeiros anos
de profissão, dinâmicas de sobrevivência individual que conduzem necessariamente a
um fechamento individualista dos professores (NÓVOA, 2006, p. 14).
Esse fechamento ou isolamento profissional de que nos fala o autor torna-se um fator de
impedimento da socialização do iniciante na profissão. A diversidade e a complexidade de situações
com as quais ele se depara podem dificultar seu percurso profissional, gerar sentimento de
insegurança e desejo de desistir da profissão.
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?
Os dados da survey foram ilustrativos para se conhecer quem são os egressos dos três
programas de iniciação à docência: são professores iniciantes jovens, a grande maioria frequentou o
ensino fundamental e médio todo em escola pública, o que mostra que esses programas deram
oportunidade a egressos do ensino público de terem uma formação profissional qualificada. Esses
egressos completaram a licenciatura em diferentes áreas, mas a maior parte em Pedagogia, Ciências
Biológicas, Letras, História, Matemática, Física e Educação Física.
Quanto à destinação profissional dos egressos, os dados indicaram que, em 2016, 67%
estavam atuando como docentes na educação básica (64% ex-pibidianos, 83% do programa Bolsa
Alfabetização e 87% ex-residentes). Grande parte desses em escolas públicas (60%), fato que revela
um retorno do investimento do governo federal e das Instituições de Ensino Superior, já que esses
programas objetivavam prover formação docente qualificada, tendo em vista a melhoria do ensino
nas escolas públicas.
Isso nos deixou mais motivados para a realização dos estudos de caso, em que pudemos
acompanhar, por meio de observação, entrevistas e análise documental, o trabalho dos egressos em
suas escolas. Os dados das entrevistas com os iniciantes revelaram que, embora tivessem tido uma
recepção amistosa nas escolas, como por exemplo, os gestores os saudavam e indicavam
brevemente as turmas em que atuariam, não havia um acompanhamento sistemático de seu trabalho.
Em nenhuma das dezoito escolas distribuídas por nove estados do país foi localizado um programa
institucionalizado de acompanhamento e apoio sistemático ao iniciante. Isso nos provocou, por um
lado, a fazer questionamentos sobre a persistência e manutenção do entusiasmo e do engajamento
profissional dos egressos (mesmo quando enfrentavam situações adversas) detectados nos estudos
de caso. Perguntávamos: Até quando eles resistirão? Sua capacidade de refletir sobre a prática e de
buscar recursos de superação das dificuldades serão suficientes? A escola não teria o papel de
acolhê-los e acompanhá-los? Por outro lado, tais constatações nos instigaram a querer investigar
mais profundamente os processos de acompanhamento – ou de indução – para os professores
iniciantes nas escolas, o que veio a se tornar o tema do novo projeto.
Os dados do estudo realizados por Gonçalves (2016) indicaram que, embora tenha
enfrentado dificuldades, a maioria das iniciantes conseguiu sobreviver na profissão. Com uma base
de conhecimentos teóricos e capacidade de mobilizá-los em sua prática ou, ainda, com capacidade
de refletir sobre a prática e confrontá-la com os conhecimentos teóricos, as iniciantes foram
percebendo que conseguiam dar boas aulas e que seus alunos estavam envolvidos em aprendizagens
significativas. Favoráveis ao diálogo, à problematização e ao questionamento, tinham os alunos
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?
como balizadores de suas práticas. Seus relatos mostraram que não aceitavam algumas das práticas
naturalizadas na rotina escolar e reagiam a isso, criando situações mais críticas e criativas de ensino
e aprendizagem e implementando propostas desafiadoras tanto a elas como aos alunos.
Para a maioria das professoras, o clima institucional não facilitou a chegada à escola, pois
lhes faltaram maior consideração e atenção e elas mesmas tiveram que buscar equilíbrio interno
para enfrentar a situação. Mesmo sendo situações distintas, as análises foram mostrando que o
contexto escolar, marcado pelas condições em que se dá a atuação profissional e pelo clima de
trabalho, são elementos-chave no processo de inserção das professoras.
É de Nóvoa (2013, p. 16) o argumento adequado para esta situação, de que é preciso
promover novos modos de organização da profissão, que ainda é marcada por fortes tradições
individualistas ou por rígidas regulações burocráticas. O autor defende que o campo profissional
dos professores precisa se abrir, flexibilizar ações coletivas e grupos de compartilhamento,
implementar uma cultura colaborativa, aspectos que têm maior conexão com a autonomia que é
requerida hoje pelas escolas e seus professores.
Acolhendo as proposições de Nóvoa e revendo agora com mais distância os achados das
pesquisas acima descritas, busquei novas leituras sobre formas (ou programas) de apoio e
acompanhamento aos iniciantes na sua inserção profissional.
Os autores revistos são unânimes em apontar quão complexa é a situação que os professores
encontram no momento da inserção profissional. Por mais que tenham tomado consciência dos
principais desafios do início da carreira nos cursos de formação inicial, só quando, de fato,
assumem a docência é que vão colocar suas capacidades, competências, motivações à prova. Isso
porque, como alerta Ávalos (2016) ao fazer uma revisão de 463 artigos, publicados nos últimos 15
anos sobre professores iniciantes, são muitos os fatores que estão em jogo na aprendizagem da
docência: são conhecimentos, disposições, crenças, visão de si mesmo e do outro, assim como,
formas de conceber e de atuar na profissão. Além disso, como Ávalos (2016) argumenta, o trabalho
docente envolve interagir com propostas curriculares específicas, com os colegas, com grupos de
alunos, os mais diversos, e com a comunidade. A gama de combinações desses vários fatores ou as
possibilidades e restrições de cada contexto, diz a autora, serão certamente novos para cada
iniciante. Isso nos faz concluir que a proposição de programas para o período de inserção
profissional – chamados de programas de indução – precisa levar em conta o enfrentamento dessas
múltiplas condições.
Ainda na busca de conhecer melhor a temática, recorri à leitura dos textos de Tickle (1994;
2000), pesquisador britânico que nos traz muitas provocações, decorrentes de dados de pesquisa e
análise de políticas referentes a um país (Reino Unido) que tem programas de indução há cinquenta
anos. No primeiro texto (1994), o autor relata que, ao ser convidado para desenhar e implementar
um currículo de indução para iniciantes na docência, começou por fazer uma ampla revisão de
literatura e verificou que os resultados eram pouco consistentes. Também percebeu que o
conhecimento sobre o período pós-indução, em termos do que é esperado de um professor
qualificado e de como ele aprende a partir de sua experiência de sala de aula, não estava claro nas
pesquisas e que valia a pena investigar isso.
O autor buscou, então, definir certos princípios para orientar seu trabalho e chegou à
conclusão de que dois aspectos eram bastante defendidos na literatura especializada: a prática
reflexiva e a pesquisa do professor. Mas como esses conceitos também não eram suficientemente
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?
explicitados nas pesquisas por ele revistas, decidiu realizar um trabalho de campo, uma pesquisa-
ação com 6 professores em processo de indução e um estudo de caso com outros 5 professores
iniciantes. Manteve contato por um ano com os grupos e coletou registros escritos, fez observação
diária e grupos de discussão com os participantes, de modo a obter subsídios para o projeto de
indução que seria implantado no ano seguinte, com 150 iniciantes. O livro relata o desenvolvimento
do projeto e a análise dos dados.
No segundo livro, Tickle (2000) deixa mais explícitas suas provocações: por um lado propõe
que não se considere a indução como uma ponte que leva, de maneira tranquila, da formação inicial
ao início da docência e, posteriormente, à expertise. Isso porque ainda não se tem muita clareza
sobre o que é ser um bom professor, qual é realmente a função da escola, qual o tipo de educação
que deve ser proposta para o futuro... O autor sugere que antes de uma preocupação com o
delineamento de um programa específico de indução, deve-se pensar e definir qual a concepção de
formação que orientará o programa. E, nesse sentido, defende a formação centrada na reflexão da
prática e na investigação.
Por outro lado, ele também alerta que o uso da expressão professor iniciante pode refletir
uma tendência a considerar apenas as deficiências do principiante quando comparado com o
experiente. Essa tendência pode levar ao não reconhecimento do potencial criativo e profissional
dos recém-formados. E acrescenta que seria interessante que os jovens professores fossem vistos
como pessoas com capacidade intelectual e potencial para enfrentar os desafios e transformar a
educação. Se essa imagem positiva do iniciante for adotada, a indução será vista como um processo
que se estenderá para o desenvolvimento profissional dos jovens professores e não apenas como um
momento pontual.
Essas ideias, segundo Tickle (2000, p. 3), resultam de seus estudos das políticas e de
projetos que buscaram “conciliar as necessidades dos novos professores como aprendizes, com seu
potencial de educadores qualificados, profissionais, dedicados”. O autor esclarece, ainda, que o
reconhecimento das capacidades e potencialidades dos iniciantes, assim como das necessidades e
oportunidades de desenvolvimento profissional será muito maior se for um empreendimento
compartilhado, algo a ser discutido e negociado entre os novos professores e os demais colegas e
gestores da escola. A concepção do autor é de uma indução profissional que seja calcada nas
práticas educacionais, num processo de aprendizagem de todos que fazem parte do coletivo escolar
e na constituição de comunidades investigativas.
Outros autores que investigaram o assunto foram Marcelo e Vaillant (2017). Analisaram
programas de indução em países da América Latina (Brasil, Chile, México, Peru e República
Dominicana) e concluíram que as experiências são relativamente recentes, variadas em extensão e
em estratégias, mas sinalizam que a aprendizagem da docência para os iniciantes requer processos
formativos dentro e fora da escola, observação, retroalimentação, reflexão e colaboração tanto com
docentes experientes quanto com os que se iniciam na carreira.
Outro autor que tem inspirado nossos estudos sobre o acompanhamento dos iniciantes é o
norte-americano Wong (2004), que fez uma revisão exaustiva de pesquisas sobre os programas de
indução e também enfatiza a necessidade de envolvimento de todos que fazem parte do coletivo
escolar, no processo de inserção profissional. Uma das contribuições importantes desse autor é a
distinção bastante clara que faz entre indução e mentoria. Diz ele:
A indução é um processo – um processo abrangente, consistente e detalhado de
desenvolvimento profissional abrangente, coerente e contínuo – que é organizado por
um distrito escolar para formar, apoiar e reter novos professores e faze-los progredir
em um programa de aprendizagem ao longo da vida. Mentoria é uma ação. É o que os
mentores fazem. Um mentor é uma pessoa singular, cuja função básica é ajudar um
novo professor. Normalmente, a ajuda é para a sobrevivência, não para a
aprendizagem profissional sustentada que leva a se tornar um professor eficaz.
Mentoria não é indução. Um mentor é um componente do processo de indução
(WONG, 2004, p. 42).
O autor afirma que a mentoria em si não é um problema, mas que ao se propor um programa
de apoio aos iniciantes tem-se que ir além da mentoria, integrá-la em um processo longo e contínuo
de desenvolvimento profissional.
Com base nos resultados de uma pesquisa citada em sua revisão, que analisou programas de
indução em 1.027 escolas, Wong (2004, p. 50-51) assevera que os professores aprendem mais em
programas que são longos, permanentes e intensivos; quando a participação é coletiva; e quando os
novatos percebem a aprendizagem da docência como parte de um programa coerente de
desenvolvimento profissional.
professores observar e serem observados, e fazer parte de redes ou de grupos de estudos em que
todos os professores compartilham, crescem e aprendem a respeitar uns aos outros (p. 52).
Concluindo, podemos dizer que os escritos dos vários autores, que analisaram experiências e
programas de indução implantados em países diferentes, assinalam aspectos comuns quanto à
inserção profissional dos docentes: esse é um momento especial, que merece atenção e cuidado por
parte dos gestores das escolas, dos formadores e dos agentes políticos. As contribuições importantes
trazidas pelos autores, com base em estudo dessas experiências indicam que tão importante quanto a
existência de apoio e acompanhamento aos jovens professores é que eles estejam envolvidos em um
processo formativo centrado na escola, que leve em conta as peculiaridades do contexto, que seja
calcado na reflexão das práticas e no desenvolvimento de uma postura investigativa. Esse processo
deve envolver professores iniciantes e experientes, gestores e os demais profissionais que atuam na
escola, num ambiente de colaboração e de aprendizagem conjunta. Além disso, as experiências
mostraram que esse trabalho será mais efetivo se estiver inserido em um processo de
desenvolvimento profissional duradouro e coerente e se puder contar com o apoio dos gestores das
políticas.
Concluo o texto com a proposição de que muito mais do que um conjunto de técnicas a
serem seguidas, os projetos de inserção profissional aos iniciantes devem ser fundamentados numa
concepção de formação voltada para as questões de cada escola, com suas peculiaridades, seu
contexto, os profissionais que nela atuam, suas formas de funcionamento e suas vinculações
institucionais. Além disso, não se pode mais esperar que cada um, individualmente, encontre
respostas para questões tão complexas que se fazem presentes hoje, e futuramente, no dia a dia das
escolas. É preciso empenhar-se na constituição de comunidades de aprendizagem (COCHRAN-
SMITH; LYTLE, 1999), que compartilhem saberes, concepções, explicações e que juntos possam
encontrar os melhores caminhos para o aperfeiçoamento da prática pedagógica e para que os
objetivos educacionais sejam alcançados.
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WONG, H. Induction Programmes that keep new teachers teaching and improving. National Association of
Secondary School Principal, NASPP Bulletin, n. 88, p. 41-59, 2004.
INTRODUÇÃO
“Mas a menos que ela queira ser infiel à sua função social, a arte precisa mostrar o
mundo como possível de ser mudado. E ajudar a mudá-lo”.
(Ernst Fischer).
Há cerca de uma década, desenvolvi pesquisa acerca do lugar da Música nos currículos de
Pedagogia do Rio de Janeiro (NOGUEIRA, 2010), a partir da análise dos currículos das quatro
maiores universidade públicas do estado (UFRJ, Uerj, UniRio, UFF). Naquela ocasião, foi possível
comprovar que neles a Música tinha presença irrisória, quando não inexistente. Na totalidade dos
casos, apenas uma disciplina, genericamente nomeada Arte e Educação ou Educação Estética,
tratava de todas as linguagens artísticas. Nas ementas, quase nunca algum conteúdo musical era
explícito, confirmando a hegemonia já tradicional das Artes Visuais. A exceção era uma única
disciplina eletiva, na Faculdade de Educação da UFRJ, da qual posso dar maiores informações por
ter sido responsável por sua criação. Embora de boa procura entre os estudantes, permanece até hoje
como eletiva.
Mesmo reconhecendo a dificuldade do lugar de defesa de algo que permanece sendo visto
como irrelevante nos currículos, mas que paradoxalmente ocupa espaço preponderante no cotidiano
(e este termo não é fortuito...) das estudantesi, passarei agora a apresentar experiências musicais
ocorridas no curso de Pedagogia, nos últimos anos.
OUVIR E APRECIAR
“[...] para aquele que também pensa com o ouvido, os elementos individuais da escuta
se tornam imediatamente atuantes como elementos técnicos, sendo que nas categorias
técnicas se revela, essencialmente, a interconexão de sentido”
(Adorno).
Há alguns anos, decidi que para além das práticas de apreciação musical ocorridas no espaço
da sala de aula, nas quais buscava ampliar os referenciais estético-musicais das alunas, trazendo
repertório diversificado e abrangente, das diversas matrizes culturais, preferencialmente pouco
presentes nos meios de comunicação de massa, sistematizaria idas a concertos e ensaios abertos.
Para tanto, estabelecemos parceria com a Orquestra Petrobras Sinfônica (OPES), agendando datas
previamente, para que constassem no programa da disciplina Arte e Educação.
O “Ensaio aberto” se configura em uma prática comum por parte de orquestras ao redor do
mundo. No Brasil, apesar de já usual, esta prática costuma ficar restrita a estudantes de música,
sendo pouco conhecida por educadores. Nessas ocasiões, a orquestra (ou grupo de câmara) usa dias
anteriores de concertos para “abrir” seus ensaios ao público. Dessa forma, divulga o repertório a ser
futuramente apresentado, motiva a ida à apresentação e, sobretudo, estabelece uma proximidade
com o público.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Já no início do semestre, as alunas eram informadas de que uma das atividades extraclasse
seria a frequência a um ensaio aberto de uma orquestra e, para as que se interessassem, a
possibilidade de ingressos para o concerto que aconteceria posteriormente. A simples enunciação
era suficiente para despertar atitudes que iam do interesse e excitação quase infantis à desaprovação
ostensiva, passando por uma maioria de posturas de surpresa: “Ensaio de orquestra? Nós? Para
quê?”.
À simples entrada no espaço, as alunas demostram um encantamento, pois para muitas delas
era a primeira experiência com uma orquestra ao vivo. Antes mesmo de começar a música, o
deslumbre visual: excitam-se com a visão dos diferentes instrumentos, o brilho dos metais, o
tamanho dos contrabaixos e tuba, o grande contingente de violinos e violas, a elegância das flautas
e oboés, tudo novo e desconhecido. Além disso, a presença descontraída dos músicos afinando seus
instrumentos, conversando, examinando as partituras traz a elas uma visão mais corriqueira
daqueles que em geral parecem tão distantes, para quem não os tem no convívio.
crianças por ter feito o “dever de casa”. Minhas alunas também se surpreendem com o
conhecimento das crianças: a maior parte delas só teve acesso a esse tipo de aprendizado
recentemente, nas aulas de Arte e Educação no curso de Pedagogia. Por fim, uma última peça,
novos conhecimentos e as duas horas e meia de puro deleite passam rápido.
Ao término do ensaio, as alunas tardam a sair do recinto e alguns músicos se oferecem para
maiores explicações. Como crianças em loja de brinquedos, vejo aquelas jovens mulheres
avançarem em direção aos instrumentos: recebem informações sobre como segurá-los, quais suas
potencialidades, experimentam fazê-los soar. Os músicos também se divertem, respondem
perguntas sobre com que idade começaram a estudar, sobre quanto tempo treinam por dia, causando
surpresa às alunas. A proximidade faz com que a reflexão sobre as condições objetivas do trabalho
dos profissionais se misture à admiração pelos momentos anteriores de fruição musical.
Dias depois, em aula, as alunas contam aos colegas como foram suas experiências e
impressões sobre o ensaio. Falam das sensações, dos timbres diferentes, dos instrumentos, dos
músicos. Falam da emoção de entender mais a obra e sua estrutura, informações que as auxiliam a
fruir melhor a música. Comentam a vontade de ir ao concerto futuro para ouvirem tudo de novo e
ficam felizes quando confirmo que conseguimos ingressos gratuitos para a apresentação da
orquestra no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Para muitas, será a primeira vez naquele recinto
que, embora público, permanece inacessível a muitas pessoas das classes populares. Apenas esse
fato – a primeira vez em uma sala de concertos – originaria muitos outros textos, mas me deterei
aqui na experiência, já por demais rica, do Ensaio aberto.
E então, ocorre algo que sempre se repete: uma aluna faltosa comenta que não pensa em ir a
esse tipo de atividade, que não gosta de música clássica. Imediatamente, muitas vozes se voltam e
explicam: eu também não gostava, achava chato, mas adorei! Você precisa ir, é muito legal, você
vai se surpreender! Até que alguém se lembra do texto estudado em classe anteriormente e
pergunta: como é mesmo aquilo que Adorno falou? Que a gente gosta do que reconhece? E assim
aproveito para voltar ao texto sobre o fetichismo na música (ADORNO, 1983) e assim retomar o
debate sobre a questão da democratização do acesso à arte e à cultura, sobre a construção do gosto.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
O mais significativo ocorre ao fim da aula: na saída, um grupo de alunas se aproxima e uma delas
me diz: quando eu me formar e tiver a minha turma, também vou querer levar ela em coisas assim!
Nessa atividade, percebe-se que na união entre a emoção proporcionada pela apreciação
musical e a reflexão sobre as desigualdades sociais que promovem desigualdades também no acesso
à cultura, um outro patamar de experiência ocorre. Como destaca Fischer (2002, p. 20): “a arte é
necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é
necessária em virtude da magia que lhe é inerente”.
CANTAR E TOCAR
Outra dimensão de atividades que ocorrem junto às alunas de Pedagogia é aquela que
envolve a execução musical, a improvisação e a invenção, a performance. Ainda que não sejam
profissionais, nem mesmo amadoras, busco proporcionar experiências em que o trato com os
elementos da linguagem musical possam ser apropriados por elas e organizados criativamente.
Obviamente se contasse com uma disciplina obrigatória, específica para a linguagem musical ou,
pelo menos, de maior carga horária para os conteúdos musicais na disciplina Arte e educação, estas
ocorreriam com maior frequência. Trago aqui uma dessas atividades para exemplificar.
Em um primeiro momento, a surpresa: “vamos ter mesmo que compor um rap? A letra
toda? E tem que encaixar nessa base? Ai, não quero me apresentar, não”. Fica evidente a baixa
autoestima que grande parte das alunas de Pedagogia demonstram, como se já antecipassem a
desvalorização profissional do professor que certamente encararão mais tarde. Após desmistificar a
ideia da composição, relembrando textos sobre o fetiche do talento (ADORNO, 2000) e repetir
exaustivamente que seria uma atividade simples, sem pressão, sabendo que ninguém ali era
profissional da música, a resistência se esvai. Os grupos se afastam, fecham-se em si e passam a
raciocinar sobre o tema e rascunhar a letra. Enquanto isso, as bases de rap continuam ao fundo e
vez por outra uma aluna se aproxima e cantarola alguns versos para ver se “dá certo”. Quando
percebo a dificuldade, me aproximo e auxilio, fazendo com que a aluna sinta no corpo a batida e os
acentos. Em geral, em pouco tempo, as alunas conseguem atingir o resultado, encaixando os versos
na base rítmica, e voltam excitadas para o grupo.
Após o tempo necessário para que cada grupo finalize as duas quadras (e alguns produzem
até mais que isso), há o momento do ensaio: o grupo se aproxima e canta, baixinho, para não
prejudicar o ineditismo na hora da apresentação. Após cada grupo fazer seu ensaio, todos voltam
aos seus lugares e começa a apresentação.
O primeiro grupo se apresenta com o tema Racismo e narra a situação que foi objeto do rap
composto. No início do semestre letivo, no dia em que foram à escola onde fariam o estágio
curricular obrigatório nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, tiveram que se apresentar ao
porteiro. No entanto, apenas o aluno negro teve sua mochila revistada. Essa discriminação, vivida
pelo aluno em seu cotidiano, indignou as colegas que protestaram inutilmente junto à escola. O fato,
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que ficou marcado para o grupo, é apresentado sob forma de Arte e recebe o título “13 de maio, 22
de março”, numa alusão à data da pretensa libertação dos escravos e ao dia em que se deu a
discriminação com o colega negro. Ainda cantam: “Só porque eu sou preto, sou revistado? Tudo
que eu faço é sempre mais visado”. A plateia vibra e ao fim canta junto o refrão: “13 de maio, 22 de
março...”.
Outro grupo se apresenta, com o tema violência. Também se baseiam em fato vivido por
algumas: a falta de merenda nas escolas de estágio, em função do desvio de verbas ocorrido.
Interessante notar que a apropriação do tema por parte das alunas, majoritariamente de classes
populares, não caminha pelas já cansativas lamúrias de classe média e mostram também terem sido
estimuladas pelos raps contestadores apreciados no primeiro momento da aula. Preocupadas em
garantir o entendimento da mensagem, optam por primeiro declamar a poesia, sem a base rítmica,
talvez também por se sentirem inseguras. Isso evidencia que, embora potente, esse tipo de
experiência poderia obter resultados muito mais satisfatórios se a linguagem musical pudesse de
fato ser aprendida e ensinada por mais tempo, como indica a legislação. Apesar da insegurança, as
alunas empolgam a plateia com a letra engajada: “Bandido bom é bandido morto; bandido grande é
bandido solto?”. E continuam: “engravatado, com sobrenome e perfume importado, comprado
com dinheiro da merenda, enquanto o pobre é o marginal que paga a prenda”.
E assim continua a apresentação dos grupos, sempre impressionando a plateia, formada não
só pela própria turma, mas a essa altura, também por funcionários terceirizados da limpeza, que
chegam à porta para ouvir. Ao fim da aula, as alunas saem muito excitadas, combinando de fazerem
novos raps para apresentações de trabalho de outras disciplinas.
À GUISA DE CONCLUSÃO
“Quando você ouvir essa canção que eu fiz, não se esqueça de sonhar...“
(Lô Borges e Ronaldo Bastos).
Foi exatamente isso que aconteceu com as alunas de Pedagogia quando se deixaram
envolver pela Arte, em espaços/propostas não usuais para elas. Puderam, naqueles momentos,
exercitar o saber sensível (ENTEL, 2008), unindo emoção e razão, sensibilidade e raciocínio para
apreciar e para compor.
Muitas vezes, durante as aulas de todas as disciplinas, as alunas tratam de vários assuntos:
checam mensagens no celular, respondem às redes sociais, buscam arquivos de textos das aulas
anteriores. Em meio a tudo isso, ouvem o professor, quando sobra tempo. Os muito otimistas
afirmam que as novas gerações desenvolveram essa habilidade que lhes permite fazer várias coisas
ao mesmo tempo, com efetividade. Türcke (2010) discorda e, na sua reflexão acerca da distração
concentrada, desvela com propriedade esse fenômeno, demarcando o quanto são descartáveis certas
vivências contemporâneas. Concordamos com Türcke (2016) quando, ao contrário da maioria,
afirma que esse comportamento aponta para uma superficialidade, podendo ser em parte
responsável pela onda de transtornos de déficit de atenção visto nas escolas. Para esse autor,
vivemos uma “cultura de hiperatividade” (TÜRCKE, 2016), isto é, estamos cultivando crianças e
jovens cada vez mais dispersos, ansiosos e superficiais.
Nas atividades aqui descritas, procurei trilhar o caminho contrário. Na apreciação privilegiei
o silêncio, a escuta ativa, a atenção, o zelo, o respeito pelo trabalho do artista. Na composição,
busquei o rigor, a artesania, o cuidado, o preparo cuidadoso. Oxalá fossem esses momentos não
exclusivos da linguagem musical, mas firmemente presentes nas artes, mais frequentes nos cursos
de Pedagogia.
Como afirmei no início desse texto, trago aqui a defesa de algo que é visto pela maior parte
dos curriculistas e dirigentes educacionais como irrelevante, frente aos imensos desafios que se
colocam contemporaneamente à Educação. Contudo, creio que as hierarquias são falsas e é preciso
buscar em outros campos do saber alternativas para o envolvimento das futuras professoras. É por
seguir acreditando no papel de professores e professoras na transformação da sociedade que aposto
na ampliação de sua formação cultural, concretizada, por vezes, na presença de experiências
musicais arrebatadoras, que lhe ofereçam material racional e sensível, na direção da construção de
um ser humano integral e integrado a um mundo mais igualitário.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
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[Coleção “Os pensadores”].
ADORNO, Theodor. W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. 2. ed. São Paulo: Ática,
1994. [Coleção “Grandes Cientistas Sociais”].
ADORNO, Theodor. W. Educação e emancipação. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2000.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997.
BRASIL. Conselho Nacional da Educação. Resolução n. 2, de maio de 2016. Brasília, DF: CNE/CEB, 2016.
ENTEL, Alicia. Dialectica de losensible – imagenes entre Leonardo y Walter Benjamin. Buenos Aires: Aidos, 2008.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.
NASCIMENTO, Milton. A música brasileira hoje está uma merda. [S.l.: s.n.], 2019. [Entrevista concedida à Folha
de São Paulo em setembro de 2019].
NOGUEIRA, Monique Andries. A música nos currículos de Pedagogia: espaço em disputa. In: CONGRESSO ANUAL
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL (ABEM),10., Goiânia, 2010. Anais [...]. Goiânia:
[s.n], 2010.
TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
TÜRCKE, Christoph. Hiperativos: abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.
Notas de fim
i
Utilizamos as referências a estudantes e alunas de Pedagogia sempre no feminino, uma vez que nas turmas observadas
neste texto, o percentual de mulheres ultrapassou 90%.
INTRODUÇÃO
Assim, imbuída da tarefa de escrever o texto que comporá o e-book do XX Endipe, fui
tomada pela necessidade de reler as produções do movimento de revisão da Didática que teve início
no 1º Seminário − A Didática em questão −, realizado na PUC-Rio, em 1982. Reler, pois, essas
produções fizeram parte da minha formação e influenciaram meu pensar e fazer como professora de
Didática e de Prática de Ensino. Foi um prazer revisitar A Didática em questão; Rumo a uma
nova Didática; Didática: ruptura, compromisso e pesquisa; Didática: o ensino e suas relações;
Alternativas do ensino de Didática; A Didática e as contradições da prática.
A questão básica que fundamentava a revisão da Didática era a de que ela se relacionava
com a aprendizagem escolar das classes populares em um momento em que muitas crianças,
adolescentes e jovens não tinham acesso à escola ou não permaneciam nela. Hoje, mesmo
Nas últimas décadas, contamos com medidas, ações e programas que demandaram não só
significativo investimento do poder público, bem como o empenho dos atores envolvidos nesses
processos. Ainda assim, o retorno na qualidade das aprendizagens dos estudantes tem estado sempre
aquém do esperado (GATTI et al., 2019). Na contramão dos esforços empregados por aqueles que
trabalham pelo aprendizado dos estudantes e por uma formação de professores de qualidade, tem a
tradição de se ofertar cursos de licenciatura aligeirados, programas de formação de professores
simplificados e, para piorar, apostou-se na modalidade a distância, sem a necessária regulação e
monitoramento.
Desde as primeiras proposições do movimento de revisão da Didática, a luta tem sido contra
o peso das desigualdades no sentido de possibilitar que todos os alunos adquiram os aprendizados
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
fundamentais, que sejam removidas as barreiras à aprendizagem e fornecido o apoio adequado para
todos, tendo em vista facilitar a aprendizagem e o desenvolvimento. Para garantir tais condições é
fundamental não só que o professor e toda a equipe escolar estejam atentos às necessidades de cada
criança, adolescente ou jovem, mas que saibam o que e como fazer para promover intervenções que
superem, sobretudo, práticas que ratificam a desigualdade.
Fiz uso deste preâmbulo para contextualizar e apresentar, na sequência, como estruturei
minha contribuição para os “movimentos insurgentes na formação docente”, o que implica dizer
como vislumbro práticas, propostas, resistências e (re)existências.
Quando relatei, no início deste texto, que o XX Endipe me desafiou a “superar a falta de
ânimo, o cansaço e a desesperança”, é porque há em mim uma impaciência frente a algumas
questões que, a priori, já deveriam ter sido superadas. Por outro lado, estou aprendendo a ter
“paciência histórica”. Trata-se de um termo utilizado, segundo Cortella (2014, p. 15), por Paulo
Freire, que define como sendo “a percepção do momento adequado em que as coisas podem ser
alteradas”. Isso significa saber identificar “o momento em que as coisas acontecem e observar se
estão suficientemente maduras para poderem ser mexidas”.
professores. Creio que há mais espaço e receptividade, hoje, nos cursos de licenciatura, para a
construção de caminhos alternativos. Como já mencionei, têm crescido as iniciativas no sentido de
ressignificar as práticas de formação inicial.
A NOÇÃO DE INCLUSÃO
A inclusão nessa perspectiva não é trivial, pois como explica Braslavsky (1985, apud
AGUERRONDO, 2008), há três tipos de marginalização educativa. A primeira é a marginalização
por exclusão total, ou seja, o não ingresso no sistema educativo que resulta na total exclusão ao
acesso ao conhecimento escolar. A segunda é referente à marginalização por exclusão precoce ou
evasão do sistema escolar antes das habilidades básicas serem consolidadas pelo aluno. E a terceira
é a marginalização por inclusão, que implica na permanência no sistema escolar sem assegurar o
aprendizado. E, mesmo quando o processo de escolarização é concluído, não há garantias de
aquisição dos conhecimentos escolares.
E, no sentido contrário a essa lógica, caberia à escola lutar contra o peso das desigualdades
de origem social, levando todos os indivíduos a adquirirem os aprendizados fundamentais. Assim, a
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
democratização do ensino, no contexto da educação inclusiva, supõe três grandes etapas, a saber: (i)
o acesso à educação, ou seja, garantia do acesso à escola e ao conhecimento sistematizado; (ii) o
acesso à educação de qualidade, o que pressupõe a qualidade do ensino oferecido e o
prolongamento do tempo de permanência na escola, para que os estudantes possam se preparar para
estudos posteriores. Para tanto, é fundamental o aperfeiçoamento dos currículos, da formação
pedagógica e do material didático; (iii) e, a terceira etapa, somente é possível depois de estabelecer
essas estruturas básicas e contar com um sistema de educação que considere as necessidades
individuais dos estudantes (HALINEN; JÄRVINEN, 2008).
A educação inclusiva a que nos referimos garante igualdade de acesso à escola, bem como
currículos e ambientes de aprendizagem de qualidade e professores capazes de ensinar a grupos
heterogêneos (HALINEN; JÄRVINEN, 2008), o que implica em criar ambientes de aprendizagem
que sejam versáteis, bem como incentivar a cooperação entre diversos profissionais para o
desenvolvimento de práticas de ensino inclusivas e colaborativas.
Um elemento que vem produzindo impacto mais direto nas características objetivas e
subjetivas do trabalho docente é a universalização do atendimento escolar de crianças, adolescentes
e jovens na escola pública obrigatória e gratuita, o que pressupõe ensino de qualidade e o
atendimento às diferenças de toda natureza. Nesse processo, os docentes enfrentam um duplo
desafio: o de atender mais alunos e atender outros alunos (FANFANI, 2007). São outras as vidas
que buscam “a escola – além daquelas oriundas das classes média e alta, clientela por excelência
dos períodos anteriores – e que, portanto, exigem um novo projeto de escola que atenda a essas
vidas diferentes e que tenha como norte a superação das desigualdades sociais” (MIZUKAMI et al.,
2002, p. 11).
Esse cenário complexo de demandas que hoje pesam sobre as escolas, bem como a carência
de respostas eficazes, colocou em evidência “[...] certa inadequação do sistema educativo, quer para
formar cidadãos capazes de responder à pluralidade de desafios com que actualmente se deparam,
quer para atenuar algumas assimetrias e desigualdades que continuam a proliferar socialmente”
(MORGADO, 2011, p. 795).
professores, “que continuam a ser vistos como agentes efectivos de mudança, deles dependendo, em
grande parte, tanto as transformações que urge imprimir na escola e no ensino, quanto o sucesso
educativo dos estudantes e a sua realização como pessoas” (MORGADO, 2011, p. 439). Porém, é
preciso ressaltar que não basta os professores assumirem esse compromisso, é essencial que estejam
preparados para isso. Dito de outro modo, que estejam preparados para o exercício de “uma prática
educativa contextualizada, atenta às especificidades do momento, à cultura local e ao alunado
diverso em sua trajetória de vida e expectativas escolares” (GATTI, 2013, p. 53).
Desse modo, formar para a educação inclusiva implica promover uma formação que articule
e harmonize os elementos estruturantes da Didática e que evite, sobretudo, a polarização entre a
formação política e a técnica, ainda presente em nossas discussões e práticas. É importante
considerar que, se por um lado, colocar a especificidade da educação descolada da sua compreensão
histórica significa “introduzir disfarçadamente [...] na escola o gérmen do esvaziamento do seu
papel social e político, reduzindo-a ao cumprimento de suas funções técnicas” (GADOTTI, 1984, p.
22), por outro, “deixar de insistir na necessidade da competência técnica do educador significa não
atender as necessidades formativas das classes populares” (GADOTTI, 1984, p. 33).
Candau já advertia, nos anos de 1980, que “a dimensão técnica da prática pedagógica, objeto
próprio da Didática, tem de ser pensada à luz de um projeto ético e político-social que a oriente”
(CANDAU, 1988a, p. 15), pois a reflexão Didática tem um compromisso com a transformação e a
justiça social. É esse comprometimento que, segundo Candau (1983), orienta a busca por práticas
pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente para todos os alunos. Mas o que seria
“eficiente”? Candau (1983; 1988a; 1988b) não só usa a expressão “eficiente”, como destaca no
texto que não se deve ter medo da palavra eficiente e a busca pela eficiência não deve ser negada
pela Didática. É preciso perguntar o que se entende por eficiência e a serviço do que e de quem ela
está.
Mesmo considerando que são vários os fatores que interferem na qualidade da educação
oferecida às crianças, adolescentes e jovens, a influência do professor no desempenho dos alunos,
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
para além de estar no imaginário coletivo, é retratada em vários estudos, como o de Darling-
Hammond e Bransford (2019, p. 12). Os autores explicam que, normalmente, se pressupõe “que o
histórico dos alunos – como renda, educação dos pais e outros fatores familiares – seja o principal
motivo para grandes diferenças no desempenho deles”, entretanto, há evidências de que “a
qualidade dos professores pode ter um efeito igualmente importante” (p. 12). As pesquisas
apresentadas pelos autores indicam que estudantes que, por anos seguidos, estudam com
professores que desenvolveram expertise na disciplina ou segmento de ensino em que atuam, têm
ganhos significativos no aproveitamento escolar.
No entanto, como bem ressaltam Darling-Hammond e Bransford (2019, p. 4), seria ingênuo
achar que melhorar a qualidade da formação docente é suficiente para mudar os resultados da
educação. Para os autores, é preciso atender simultaneamente a ambos os lados da moeda: “[...] as
escolas precisam continuar se transformando para criar as condições dentro das quais um ensino e
uma aprendizagem poderosa possam ocorrer, e os educadores devem estar preparados para fazer
parte desse processo de transformação”.
Logo, como bem ressaltam os autores, o contexto do ensino cumpre um papel fundamental,
pois é esperado que os professores trabalhem em escolas que lhes possibilitem não só a usar o que
sabem, mas, acima de tudo, que possam aprender e se desenvolver com os seus pares.
formação inicial docente para as pedagogias de inclusão em sete países: Argentina, Brasil,
Colômbia, Chile, Guatemala, México e Peru. O estudo apresentou um diagnóstico e uma análise
comparativai sobre a situação da formação de professores dos anos iniciais do ensino fundamental
em pedagogias para inclusão.
Todos os sete países contam com uma política de formação que valoriza a inclusão, a
diversidade e prevê a necessidade de acesso equitativo às oportunidades de aprendizagem, incluindo
fatores socioeconômicos e culturais, necessidades especiais, bem como fatores de raça, gênero e
orientaçãosexual. Todavia, essa conscientização política sobre a relevância da inclusão educacional
não tem seu equivalente no nível pedagógico, no desenvolvimento de conhecimentos e habilidades
mais próximas ao ensino em sala de aula que devem ser adquiridas na formação. Logo, o
aprendizado de práticas pedagógicas que contribuam para viabilizar um ensino equitativo não tem
uma presença clara ou proeminente nos currículos ou nas práticas das instituições estudadas.
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Nesse sentido, o lugar da dimensão técnica na formação docente, tendo em vista a educação
inclusiva, que inclui, dentre outros aspectos, conhecimentos e habilidades para um ensino eficaz no
contexto da diversidade, não pode mais ser confundido com “tecnicismo”. Superar esse tipo de
reducionismo é uma prática de resistência e (re)existência em prol do ensino equitativo.
Desde os anos de 1980, são inúmeros os estudos que buscam não só compreender e estipular
os conhecimentos profissionais dos professores, mas, também, entender como os docentes
aprendem em diferentes momentos do seu desenvolvimento profissional. Essas pesquisas têm
disponibilizado conceitos e estratégias, já bastante difundidos no campo da formação de professores
no Brasil, para fundamentar a preparação inicial e continuada dos docentes.
Darling-Hammond e Bransford (2019, p. 19) argumentam que o “que sabemos sobre como
os alunos aprendem deve influenciar as práticas de ensino, e o que sabemos sobre práticas de ensino
eficazes, bem como sobre a aprendizagem de professores, deve influenciar a formação de
professores”. Esse movimento e articulação entre as pesquisas parece ser uma prática necessária
para o aperfeiçoamento da formação dos professores. Assim, compreender e definir o que é próprio
da ação docente vai além de estabelecer uma tipologia de conhecimentos que estão na base da
docência. Os autores apresentam sólidos argumentos e muitos exemplos para analisar a importância
de se investir, no campo da formação docente, na articulação entre a pesquisa básica sobre
aprendizagem, a pesquisa sobre o ensino e a formação de professores.
Os equívocos presentes nessas análises devem ser historiados e é preciso enfrentar o desafio
de discutir os limites e possibilidades dessas áreas e de outras na formação de professores e as
interfaces com a Didática e as Práticas de Ensino.
Especialmente no caso da Psicologia, o viés psicologizante contribui, até hoje, para que ela
não seja reconhecida, por muitos, como um conhecimento necessário à formação de professores e
como constitutiva da profissionalização docente.
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Larocca (2007, p. 302) explica que o “formato de fundamento conduz o ensino de Psicologia
à simples assimilação de conceitos, princípios e teorias que os aprendizes de professor apenas
devem reproduzir nas aulas, nos textos, nas avaliações”. E esse formato dificulta o processo de
conduzir o futuro professor à teorização da prática pedagógica.
Assim sendo, a presença da Psicologia nos cursos de licenciatura deve ser pensada no
conjunto do curso tendo em vista as suas peculiaridades e necessidades, e não exclusivamente no
interior da disciplina de Psicologia da Educação e/ou Psicologia do Desenvolvimento e/ou
Psicologia da Aprendizagem, seja qual for a sua denominação.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
incluindo as específicas, e dessas com o estágio curricular supervisionado é crônico nos cursos de
licenciatura. Esse parece ser um indicativo de que um dos desafios mais eminentes para os cursos
de formação inicial continua a ser o de superar uma organização disciplinar pouco flexível e
promover um efetivo diálogo entre as disciplinas, o que implica um diálogo entre os professores
formadores, pois a possibilidade de avanços passa necessariamente pelas mãos daqueles que
protagonizam essa história (ALMEIDA, 2005).
EM SÍNTESE
“Uma verdadeira viagem de descoberta não é a de pesquisar novas terras, mas de ter
um novo olhar.”
(PROUST, apud MORIN, 2000).
Escolhi esta epígrafe para finalizar, pois penso que ela define bem a minha intenção de dar
um novo olhar para velhas questões colocando em destaque a educação inclusiva.
E pensar a Psicologia da Educação como uma das fontes que estão na base do conhecimento
do ensino é fundamental para compreendê-la a partir da intersecção com outras ciências e com a
prática, para que o futuro professor possa adquirir, paulatinamente, consciência das suas crenças,
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
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ALMEIDA, P.C.A. Os saberes necessários à docência no contexto das reformas para a formação de professores: o
caso da Psicologia da Educação. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade
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ANDRÉ, M.E.D.A.; ALMEIDA, P.C.A.; HOBOLD, M.S.; AMBROSETTI, N.B.; PASSOS, L.F.; MARINQUE, A.L.
O trabalho docente do professor formador no contexto atual das reformas e das mudanças no mundo contemporâneo.
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Competencias para el Siglo XXI y Pedagogías para la Inclusión en América Latina: análisis comparativo de siete casos
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Notas de fim
i
Em cada um dos países em que o estudo foi realizado, a metodologia contemplou: a) políticas referentes à formação
inicial docente dos sete países nas últimas duas décadas; b) currículos de 22 instituições formadoras (três por país, mas
houve casos, em que se estudaram quatro); c) entrevistas a acadêmicos e autoridades das respectivas instituições para se
conhecer suas percepções sobre as oportunidades formativas oferecidas, aqui, em relação às pedagogias de inclusão; d)
entrevistas grupais a estudantes, que se encontravam em fase final de sua formação.
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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO
EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM
Inicio esse capítulo com a epígrafe acima, pois há algum tempo me pergunto o que a
pesquisa em avaliação escolar tem produzido sobre as implicações dos exames de larga escala para
a escola, os docentes, as práticas, os estudantes, desde uma perspectiva crítica? O que a pesquisa
tem revelado acerca das práticas avaliativas na educação básica? Parece-me que algumas questões
já foram respondidas inúmeras vezes, a partir dos vários apontamentos das pesquisas realizadas.
Entretanto, poucas mudanças têm ocorrido na prática. Considerando que, não somente uma, mas
muitas são as razões para que as práticas não se modifiquem – e não estou aqui generalizando ou
dizendo que não há práticas diferenciadas/novas/criativas, pois também há inúmeras – mas
argumento que, desde o ponto de vista da pesquisa e sua relação com sua função social, talvez seja
necessário, nesse momento, instaurar novos olhares para a mesma temática.
No texto, pretendo explorar algumas novas possibilidades, novos olhares para essa não mais
tão nova temática. Olhares que pretendem ver através das brechas, dos não ditos, dos invisíveis,
presentes nos cotidianos das escolas, das salas de aula e dos sujeitos.
Pensar sobre avaliação é sempre desafiador. Por ser um termo de múltiplos significados,
fortemente relacionados aos propósitos a que pretende com a avaliação, é necessário delimitar,
inicialmente, a qual função e qual dimensão da avaliação trataremos aqui. Não se trata de menor
importância tratar das dimensões macro ou meso da avaliação educacional, mais relacionadas com
as políticas de avaliação, as avaliações externas ou as instituições, mas trataremos aqui da avaliação
na dimensão micro, ou seja, a dimensão da sala de aula e, portanto, das aprendizagens. O convite
para esse texto será pensar a partir da possibilidade de uma avaliação que organize e reorganize os
processos de aprendizagem, de forma que ela própria, a avaliação, torne-se aprendizagem.
Ao longo do texto, serão levantados alguns aspectos que compõem um necessário quebra-
cabeça em torno do qual se constrói a avaliação, posto que avaliar é uma atividade complexa,
totalmente desprovida de neutralidade e de objetividade, como ingenuamente desejaríamos que
fosse. Os pontos destacados pretendem trazer a relação entre currículo e avaliação e as escolhas
pertinentes à essa relação. Procuram, também, provocar a reflexão acerca:
1. Da separação que existe entre currículo e avaliação, e mais, entre avaliação e processos de
aprendizagem;
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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM
Por fim, a provocação do texto será no sentido de dizer que não mudamos os paradigmas na
educação e, consequentemente, na avaliação, salvo raras exceções.
Alerto, também, que o texto se constitui numa aproximação escrita da intervenção oral
preparada para o Simpósio Por uma relação outra entre didática, currículo, avaliação e qualidade da
educação básica no XX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – Endipe-Rio 2020.
Insisto em pensar a avaliação na sua relação como lugar que a escola ocupa na sociedade e,
nesse caso, a sociedade contemporânea. Qual o papel da escola hoje na vida das pessoas? Para que e
por que as crianças e os jovens do século XXI vão à escola? Estabelecido esse debate, outro se faz
em seguida: por que e para que avaliamos as aprendizagens dos estudantes na escola?
Discutir avaliação escolar numa perspectiva outra, só faz sentido se relacionarmos sua
concepção e práticas com a concepção de mundo, de pessoas, de vida, de meio ambiente, de cultura
e, em última e primeira instância, à concepção de escola que temos. Só faz sentido pensar e
pesquisar sobre a avaliação da/na escola, se estranharmos as práticas naturalizadas de avaliação que
permanecem em nossas escolas e salas de aula e que afetam sobremaneira o papel social de
estudantes e professores(as) no processo educativo.
Embora estejamos na segunda década do século XXI, a relação entre avaliação, aprovação,
reprovação, notas e provas é forte e tem papel central em todos os processos pedagógicos na escola.
À crença pedagógica de que a reprovação é uma forte e importante estratégia pedagógica para que
os estudantes aprendam os conteúdos escolares que não aprenderam ao longo de todo um ano
letivo, soma-se a crença social de que uma escola de boa qualidade reprova. O ideal de passar de
ano é uma construção social e histórica que tem como ideia de fundo uma concepção classificatória
e, portanto, quase sempre, excludente. A crença de que se não há prova, o aluno não estuda e,
consequentemente, não aprende está diretamente relacionada à crença de que se estuda para fazer
prova. Essa lógica linear habita o cotidiano escolar e guia, majoritariamente, as ações dos
professores e professoras, alunos e alunas. Digo, na maior parte das vezes, pois há práticas
avaliativas significativas e libertadoras sendo realizadas nas escolas. Entretanto, a compreensão de
que a avaliação é um processo e não uma medida ou um produto ainda precisa ser construída. A
ideia de que se avalia para aprender também ainda está em construção. Há um descompasso entre
discursos e práticas (FERNANDES, 2012). É possível uma avaliação sem fins de reprovação? É
possível uma avaliação sem classificação?
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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM
Tradicionalmente, nossas experiências em avaliação têm sido marcadas por uma avaliação
classificatória, seletiva e, muitas vezes, excludente. Dessa forma, pensar um sistema de avaliação
mais coerente com uma perspectiva democrática de escola implica, por parte dos professores e
profissionais da educação, um comprometimento pedagógico e político marcado pela lógica da
inclusão, do diálogo, da construção da autonomia, da mediação, da participação, da construção da
responsabilidade com o coletivo.
Mas para isso, um desafio se impõe: como tornar a avaliação dos processos de aprendizagem
mais interativos, dialógicos? Como abrir mão da ideia de que no momento em que o estudante está
sendo avaliado formalmente, não se pode interferir, como por exemplo, responder a uma dúvida
estudantil no momento de realização de um teste ou uma prova? Essa interferência interferirá no
resultado? E, se interferir, qual o problema que se coloca? O estudante está sendo posto à prova?!
Esse é um dos dilemas que vivem os docentes. Muitas horas são gastas na escola, em reuniões de
acompanhamento e de planejamento, em que os(as) professores(as) discutem os procedimentos para
o momento da prova. Discutem se devem ou não atender uma dúvida do estudante na hora da
realização do exame. Não seria esse um momento ótimo de aprendizagem? Afinal, para que se
avalia? Para provocar mais e mais possibilidades de aprendizagens, não!?
No âmbito desse texto, entendemos que a avaliação deve orientar os estudantes para a
realização de seus trabalhos e de suas aprendizagens, ajudando-os a localizar suas dificuldades e
suas potencialidades, redirecionando-os em seus percursos.
planejamento a aprendizagem? Numa concepção mais tradicional, cujo foco do processo de ensino
e aprendizagem é o(a) professor(a), há coerência com uma prática de avaliação cujos critérios e
expectativas estejam somente a cargo do(a) docente. No entanto, orientar a avaliação para uma
prática mais emancipatória e libertadora, contemplando a autoavaliação, torna-se um pressuposto.
Um exemplo diz respeito ao uso das notas escolares que colocam os avaliados em uma
situação classificatória. Nossa cultura de uma avaliação somativa naturaliza o uso das notas a fim
de classificar os melhores e os piores. Em termos de educação escolar, os melhores seguirão em
frente, os piores voltarão para o início da fila, refazendo todo o caminho percorrido ao longo de um
período de estudos. Essa concepção é naturalmente incorporada em nossas práticas e nos
esquecemos de pensar sobre o que, de fato, está oculto e encoberto por ela.
Uma prática com ênfase no processo e não somente no desempenho, que não utilize a prova
como o seu único instrumento, coloca a avaliação no centro das aprendizagens. A avaliação,
entendida como um elemento fundamental do processo de ensino e de aprendizagem, não deve ser
confundida com prova ou teste. Provas e testes não são sinônimos de avaliação, mas são
instrumentos que podem ajudar no processo de avaliação dos alunos, dependendo da forma como
são utilizados. É importante ainda que exista uma grande variedade de instrumentos para que o
processo de avaliação seja o mais diversificado possível.
construir sentido em função das informações disponíveis em sua estrutura cognitiva. Leitura não é
medida, ela é orientada por um sistema de expectativas julgadas legítimas, que constitui o referente
da avaliação.
Tal questionamento, a princípio, parece ter uma simples resposta: é importante que nossas
crianças e nossos jovens aprendam aquilo que a escola os ensina e que a avaliação os ajude nessa
tarefa, pois é para isso que vão à escola. Porém, ao escutarmos os estudantes, eles nos dizem que
estudam para fazer provas e não para aprender coisas novas. Os professores, por sua vez, dizem aos
alunos que devem estudar para fazer as provas e testes. A naturalização na cultura escolar em
relação à realização de provas e exames denuncia o papel social que, na prática, fica destinado à
escola: aprovar ou reprovar para certificar.
MUDAMOS DE PARADIGMA?
“Modificar la enseñanza en las escuelas nunca ha sido una tarea sencilla pero resulta
más complicada si alos naturales conflictos que despierta la innovacción, se le agregan
dificultades provocadas por el modo como en que se intentan promover las reformas”
(FELDMAN, s/d, p. 16)
normatizações concretas dos sistemas escolares e das escolas. Esses dados nos permitem dizer que
ainda não mudamos o paradigma da avaliação. Falamos de um jeito e fazemos de outro. Por quê?
Fica-nos o questionamento, uma vez que as respostas exigem reflexões complexas, advindas de
uma rede de conhecimentos gerados pelas inúmeras pesquisas no campo.
Entretanto, para além da avaliação proposta oficialmente pelos desenhos curriculares das
redes e escolas, há as experiências avaliativas cotidianas que não se revelam nos planejamentos e
documentos oficiais. As experiências de sala de aula, revelam práticas tanto conservadoras quanto
que rompem com os padrões de avaliação já estabelecidos. É importante, nessa análise, considerar
que há inúmeros motivos e motivações para que não mudemos as práticas ainda muito corriqueiras
de avaliação, como, por exemplo, os testes-surpresa, os pontos atribuídos ao bom comportamento,
os prêmios e estrelinhas nos cadernos por bons trabalhos e boas notas. O campo da avaliação é fértil
em chamar para si todas as mazelas da educação, como, por exemplo, avaliação como objeto
disciplinador e mantenedor da ordem acadêmica; como objeto mantenedor do poder do docente
sobre os estudantes e até mesmo sobre o conselho escolar; como prática de fazer os alunos
estudarem e se dedicarem às demandas escolares. Tais mazelas, afastam a educação escolar de seu
propósito primeiro, qual seja, incentivar e despertar o desejo por conhecer e aprender e legitimar
práticas que nos colocam na direção contrária a uma prática de avaliação para as aprendizagens.
Entretanto, quando as pesquisas se propõem a desvelar o cotidiano de práticas avaliativas, distintas
daquelas que estão presentes nos documentos oficiais como portarias e resoluções, mas que estão
nas salas de aula, sendo o currículo praticado, encontramos indícios de um processo de avaliação
informal preocupado com as aprendizagens, com a construção de autonomia e de conhecimentos
relevantes para as crianças e os jovens.
Dessa forma, avaliar para aprender (FERNANDES, 2009) tem sido a tônica dos discursos
oficiais, das palestras proferidas por especialistas, dos textos críticos e não críticos. Vivemos um
tempo em que os discursos se homogeneízam. Entretanto, as bases epistemológicas são bastante
distintas, e consequentemente, as bases políticas. O papel da teoria para uma prática refletida torna-
se cada vez mais fundamental na formação do(a) professor(a) que tem se tornado, nos últimos
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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM
tempos, aplicador de testes, atividades, exames, feitos e elaborados por terceiros, ou seja, aplicador
de um currículo oficial da avaliação (FERNANDES, 2014; 2015; 2017). O papel da pesquisa é mais
uma vez fundamental, pois pode revelar o currículo praticado de uma avaliação mais viva e
próxima do cotidiano das salas de aula. Concordo com Costa (2002, p. 143): “Para um objeto ser
pesquisado é preciso que uma mente inquiridora, [...] O olhar inventa o objeto e possibilita as
interrogações sobre ele. Assim, parece que não existem velhos objetos, mas sim, olhares
exauridos.”
REFERÊNCIAS
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?
Guilherme de Alcantara
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Os discursos de crítica à escola no Brasil e no mundo têm se expandido nas últimas décadas,
vindos de diferentes instituições, atores individuais e coletivos, com diversas perspectivas
ideológicas e teóricas. Contudo, mesmo entre muitos que contestam diferentes dimensões da Escola
na atualidade, são menos comuns críticas mais consistentes acerca do papel da avaliação na
sustentação das práticas e da estrutura escolar as quais se questiona. Ao contrário, em muitas dessas
críticas percebe-se certa naturalização ou apagamento do papel da avaliação na estruturação da
relação pedagógica. Em certa medida, muitos discursos acerca da escola, críticos ou não a esta,
tendem a realizar um descolamento entre práticas sociais e estruturas organizacionais e sociais. Por
exemplo, muitos argumentarão que professores, gestores, alunos e/ou famílias devem mudar ou
melhorar suas práticas para gerar mais aprendizagem. Porém, nem sempre este clamor estará
associado ao entendimento de quais são os condicionantes sociais e organizacionais que contribuem
para que os atores ajam desta ou daquela forma em relação à escola e à aprendizagem.
Há pelo menos duas décadas esta escola é amplamente reconhecida como uma escola de
qualidade e democrática. Fundada em 1987, após um movimento da associação de moradores de
luta pelo direito à educação das crianças do bairro, ao longo de sua primeira década de existência, a
escola construiu um projeto político-pedagógico voltado para a busca da garantia do direito à
educação – significado como direito à aprendizagem e à cidadania – dos estudantes atendidos. Nos
últimos 20 anos, a escola tem realizado um trabalho reconhecido por diferentes atores (comunidade
escolar, gestores e professores da rede, comunidade acadêmica e mídia) como promotor de
qualidade da educação, especialmente focado na formação cidadã, na melhoria das aprendizagens e
na redução das desigualdades educacionais. Este projeto se baseou em mudanças significativas nos
processos de coordenação das ações entre os atores escolares e na organização escolar, incluindo,
entre outros movimentos, uma ressignificação do sentido da avaliação escolar no estabelecimento
de ensino (ALCANTARA, 2017).
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?
A ESCOLA, O PROJETO
alunos na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental nas modalidades regular e
Educação de Jovens e Adultos, esta última à noite.
Esta mudança parece algo simples, banal, inclusive por ser atualmente um discurso comum
na mídia e em muitos estabelecimentos de ensino. Entretanto, sua busca, efetivação e sustentação na
longa duração numa localidade como aquela, nas condições dadas pelas dinâmicas de
funcionamento da sociedade e do Estado numa periferia metropolitana de um país extremamente
desigual como o nosso, exige um engajamento vigoroso. Mais do que isso, pôr em prática essa
mudança passou, naquela escola, porprocessos de mudança identitária e de reelaboração dos
princípios de justiça e da ética profissional predominantes que orientariam a organização escolar e
as relações entre os atores, bem como destes com o conhecimento (ALCANTARA, 2017). A
vontade de fazer valer o direito à educação estimulou a busca coletiva por conhecimento e
formação. O grupo predominante de profissionais, bastante apoiado pela comunidade, e por uma
política de formação continuada criada pela prefeiturai, se empenhou no estudo de pedagogias
emergentes à época. A empolgação da maioria levou à adoção de novas práticas e a propostas de
mudança da organização escolar. Aos poucos, a escola foi ganhando uma reputação muito particular
na rede municipal. Era a escola identificada pelos de fora como atuante no movimento sindical, nas
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?
lutas pela qualidade da educação e “construtivista”, que tinha um trabalho pedagógico diferenciado,
em que os professores atuavam e estudavam coletivamente.
A AVALIAÇÃO NA ESCOLA
Antes das mudanças promovidas pelo grupo, a avaliação, pontual e rigidamente definida no
espaço e no tempo escolar exercia a função de auferir e certificar o desempenho, entendido como
sinônimo de aprendizagem. A avaliação, entendida como testagem, constituía-se a etapa final de um
processo ou ciclo de ensino-aprendizagem. A prova e a nota assumiam um lugar central nesta
estrutura organizacional, boa parte das ações pedagógicas se orientavam a partir delas e tinham a
testagem e a certificação como finalidades.
Desde meados dos anos 1990, com as mudanças político-pedagógicas implementadas pelo
grupo de profissionais e comunidade escolar, a avaliação passou a funcionar como um instrumento
diagnóstico de práticas de ensino e de aprendizagem voltado para a reflexão do que se deve fazer
para incrementar o trabalho pedagógico e as aprendizagens de docentes e de discentes. O PPP de
2004, ano anterior à implementação da Prova Brasil, já apontava as características da avaliação na
escola:
• A avaliação, em nossa escola, é entendida não como um fim em si mesma, mas como
um processo permanente de reflexão e ação, investigativa e diagnóstica, que busca
abranger todos os aspectos do processo de ensino e aprendizagem e todos os
elementos envolvidos nele;
Ressalto que a escola se inspirou em uma série de iniciativas progressistas à época, ou seja,
há cerca de 30 anos atrás. Em especial, a escola conseguiu aplicar a reflexão trazida pela
psicogênese e por outros teóricos não somente na relação estrita entre professor e educando na sala
de aula, mas na reflexão sobre os modos de coordenação das ações e de organização escolar
compatíveis e capazes de pôr em prática e sustentar essa forma de pensar a educação e as relações
de ensino e aprendizagem.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?
Este caráter da avaliação da escola nos ajuda a entender o porquê a escola decidiu não
aplicar a Prova Brasil. Decerto, são vários os fatores que influenciaram nesta decisão.
Primeiramente, uma clara compreensão de que “não há competição justa” nos sistemas de ensino de
sociedades capitalistas desiguais (BROWN et al., 2010). E, em consequência, por mais que uma
escola com grande concentração de estudantes com poucos recursos faça um ótimo trabalho, e estes
aprendam num ritmo acima da média de crianças em condições semelhantes, dificilmente a nota se
equiparará a de escolas com alta concentração de estudantes com muitos recursos. Embora a forte
influência dos recursos culturais e econômicos sobre o desempenho escolar seja um fenômeno
social identificado pela ciência há mais de meio século (BOURDIEU, 1964), ela é ignorada pelo
sistema de avaliação do governo federal.
Os atores da escola entendiam que num contexto social e educacionalmente tão díspar
quanto o brasileiro, estes dispositivos contribuem intensamente para a estigmatização de certos
estabelecimentos e seus atores e para a produção da segregação educacional (ALCANTARA,
2017). Outro fator fundamental consiste no entendimento de que testes padronizados em larga
escala não condizem com a proposta político-pedagógica da escola, que não tem mais as provas
como elemento central da avaliação, do controle e da dinâmica de fluxo de estudantes. Além disso,
existia certo receio do efeito da participação na prova sobre a dinâmica de funcionamento da escola,
devido ao poder de indução deste tipo de dispositivo, ao poder de afetar as subjetividades dos
sujeitos e suas práticas pedagógicas (OZGA; GREK, 2013).
Por fim, estava claro que o tipo de informação que a Prova Brasil disponibiliza à
comunidade escolar tinha pouquíssima ou nenhuma relevância para o esforço de melhora dos
processos internos e da aprendizagem dos alunos. O coletivo de profissionais conseguiu
desenvolver um sistema de produção de informações das práticas pedagógicas escolares que os
atores consideram muito mais efetivo – no sentido de prover mais subsídios para as ações de
melhora da qualidade do ensino e da aprendizagem.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?
O caso aqui relatado traz à luz um outro conflito que subjaz as relações no sistema de
ensino, em especial, em escolas com perfil semelhante ao do estabelecimento analisado, refletido na
tensão que representa o foco na mensuração e na certificação (nota/desempenho), frequentemente
estimulado por certas políticas públicas e ações da burocracia das redes de ensino, em oposição à
valorização dos processos de ensino-aprendizagem individuais e coletivos (ALCANTARA, 2017).
Em muitas escolas, um número razoável de profissionais tende a centrar as discussões acerca da
trajetória escolar dos estudantes em números, que não necessariamente representam o processo de
desenvolvimento e de aprendizagem, ou a condição em que o indivíduo se encontra. A nota operaria
como um critério de equivalência, mas, pela própria natureza do processo de ensino-aprendizagem,
os critérios de valoração e quantificação podem variar bastante de um docente para outro.
CONSIDERAÇÕES
A partir da análise do caso de uma escola pública que acumula mais de 30 anos de reflexões
sobre possibilidades de construção de uma educação de qualidade, mais justa e igualitária, para
estudantes de bairro da periferia da metrópole do Rio de Janeiro, este texto procurou trazer algumas
reflexões sobre o papel que exerce o sistema de avaliação sobre a organização da prática
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?
REFERÊNCIAS
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Notas de fim
i
No início dos anos 1990, a Prefeitura de Duque de Caxias implantou um projeto piloto de uma política de formação
continuada que visava difundir o construtivismo nas escolas da rede municipal, o Repensando a Alfabetização. A escola
aqui analisada foi uma das poucas a participar do projeto piloto, e a única a constituir uma participação mais engajada
na iniciativa, que incluía aulas para os docentes no Colégio de Aplicação da Uerj e o acompanhamento de tutores da
Secretaria de Educação durante alguns anos. Após a experiência com as escolas piloto, o governo seguinte optou por
não expandir a política aos demais estabelecimentos da rede.
Márcia Strazzacappa
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
UM EPISÓDIO
Como toda boa contadora de histórias, inicio minha fala narrando um episódio ocorrido em
2004, por ocasião do XII Endipe realizado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em
Curitiba, cujo tema era “conhecimento universal e conhecimento local”.
Era a primeira vez que participava de um Endipe. Recém-credenciada no Programa de
pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp, estava na capital do Paraná
acompanhada por dois mestrandos do Laborarte, Cristina Decico e Conrado Federici.
Havíamos proposto uma mesajuntos e estávamos entusiasmados pela perspectiva de
apresentar nossas pesquisas sobre personagens, faz de conta e clowns na escola. No
entanto, ao pegarmos a programação, constatamos que nossa mesa estava locada no
último horário do último dia do encontro. Testemunhei a mudança de expressão dos
mestrandos à medida que localizava no mapa impresso a sala de nossa sessão: no
último andar do prédio mais distante da Faculdade de Medicina. Do entusiasmo por
estarmos lá com um trabalho aprovado, para o descontentamento (quase desilusão) ao
ter ciência da conjuntura espaço-temporal de nossa sessão. De fato, após 4 dias de
encontro e já com o certificado de participação em mãos, quem restaria no evento para
ir à nossa comunicação?
O tema por nós proposto era “Quando o corpo ganha voz na sala de aula”. Havíamos
preparado uma comunicação fora dos padrões convencionais para tratar do assunto.
Ao invés de slides de Power Point, cada qual iria realizar sua exposição por meio de
seus respectivos personagens: Conrado Federici iniciaria a mesa com seu clown, o
Lord, todo formal e fazendo citações em alemão. Em seguida, Cristina Decicofalaria
sobre como trabalhar com o faz de conta na hora da leitura em sala de aula pela
presença da professora-personagem, transformando-se, durante sua fala, em Nona
Carmela. Eu, até então ausente da sala, chegaria de surpresa com minha personagem
clownesca, Dona Clotilde – uma faxineira que fala o que lhe vem à cabeça –, para
fechar a discussão. Porém, palhaçaria, faz de conta e personagens só funcionam na
interação com o outro. De que adiantaria trazer os personagens sem público? Com
pouquíssimas pessoas presentes? Ou ainda pior, estando apenas entre nós?
Rapidamente, propus aos mestrandos que fôssemos até a Feira de Livros que acontecia
no saguão central da universidade para anunciar a nossa sessão. Mas, divulgar como?
Com filipetas? No tête-à-tête? Não. Sugeri que levássemos os próprios personagens.
Num primeiro momento, eles toparam, mas na hora, apenas Dona Clotilde ocupou o
espaço e, gritando em meio às pessoas, foi chamando a atenção para si e tumultuando
a feira. Em poucos minutos, um círculo se formou ao seu redor com várias pessoas
querendo saber o que estava acontecendo. Neste momento, os mestrandos
interpelavam os curiosos convidando-os para assistirem à continuação da cena em
nossa sessão, fornecendo hora e local.
Ao narrar esse episódio ocorrido há quase duas décadas, tenho um duplo intuito: Primeiro,
mostrar, àquela época, o lugar que a arte ocupava dentro de eventos no campo da educação;
segundo, evidenciar o próprio poder da arte ao ter sido o meio de comunicação para conduzir as
pessoas à sessão oral e à reflexão.
Após esta primeira comunicação sobre personagem e faz de conta na escola, participei da
edição seguinte do Endipe, no Recife/PE, ao lado de duas doutorandas, Lívia Brasileiro e Valéria
Figueiredo,com uma sessão intitulada “Educação, Corpo e Arte: sensibilização à flor da pele”.
Nesta ocasião específica, não foi necessário ir à Feira de Livros para divulgar a mesa. Pelo
168
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
contrário, havia outras sessões que abordavam o ensino de arte, provavelmente pelo tema do
encontro: “Educação, Questões Pedagógicas e Processos Formativos: compromisso com a inclusão
social”. Embora não seja meu desejo adensar tal discussão aqui, gostaria, no entanto, de salientar o
quanto a arte costuma ser o carro-chefe quando se trata de projetos sociais e/ou projetos de inclusão,
mas perde esse status no instante seguinte, quando o(a) jovem egresso(a) do projeto decide fazer da
arte sua profissãoii.
No referido Endipe, apresentei uma comunicação em parceria com Eliana Ayoub, na qual
compartilhei as experiências acerca de uma disciplina do curso de Pedagogia da Faculdade de
Educação denominada “Educação, Corpo e Arte”. Esta disciplina, criada em 1998 como optativa,
três anos mais tarde tornou-se obrigatória na Pedagogia e eletiva para as demais licenciaturas. Uma
disciplina de cunho prático que, justamente por isso, não permitia (nem permite) exercícios
domiciliares. O conhecimento nela é construído pela práxis. Minha participação na mesma se dava
por meio de discussões sobre a Dança e o Teatro. Além do Endipe, já discorri sobre as
contribuições dessa disciplina em congressos e eventos como Anped, Confaeb, Enaef, Coleiii, dentre
outros.
Embora não possa chegar (ainda) a uma conclusão, ouso sinalizar alguns acontecimentos
que podem ter influenciado a mudança ocorrida nos últimos quinze anos, em que o corpo foi
marcando presença nas escolas de diferentes níveis da educação, seja na sala de aula de artes, seja
nos projetos educacionais.
Um dos primeiros pontos que destaco é a própria LDB n. 9.394/96. Nos primeiros anos de
sua promulgação, pouca coisa ocorreu, no entanto, quando se aproximava 2006, prazo limite para a
adequação à nova legislação, houve uma grande mobilização por parte de universidades públicas e
privadas, centros de formação, secretarias de educação, visando à certificação dos professores e/ou
a complementação curriculariv.
Dentro deste contexto, deixo registrada aqui a minha satisfação ao participar do XX Endipe
e testemunhar a Arte em posição de destaque num dos mais importantes encontros de educação do
país. Ver a Arte se deslocar da última hora no último dia em 2004 para ser tema de um dos
simpósios integradores no Endipe de 2020, não tem preço. Esse destaque comprova que as lutas
valem a pena!
DOIS CONCEITOS
O teatro, assim como a dança, também é uma produção humana. Compartilho a explicação
dada pelo teatrólogo inglês radicado na França, Peter Brook, que, em sua obra de referência
intitulada “O Espaço vazio” (1977/2015), afirma que basta um espaço vazio, alguém que atravessa
enquanto outro o observa para se ter o teatro. Compactuo igualmente com a definição do saudoso
diretor teatral campineiro, Luis Otávio Burnier, para quem o teatro é a arte de ator (BURNIER,
2001). Para nossa discussão, especificamente, chamo outro brasileiro, Augusto Boal, que via no
fazer teatral um ato político (BOAL, 1999).
170
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Tanto a dança quanto o teatro se materializam no/com o corpo. Linguagens nas quais o
corpo está em cena, em evidência, em movimento, em ação. Linguagens em que o corpo se
apresenta como suporte. São linguagens artísticas de um o corpo vst (BURNIER, 2001). Ao me
aproximar e pesquisar a educação somática (FORTIN, 1999; 2008) sobretudo em sua interface com
as artes cênicas, opto por substituir o verbo “ter” da máxima – “temos um corpo” –, pelo verbo ser –
“somos um corpo” – e, desta forma, defendo o ponto de vista de que nós somos nosso corpo. O
corpo visto e compreendido como um todo, como um soma. É por meio do corpo e seus sentidos
que nos relacionamos com o mundo, intervindo nele e aprendendo com ele (ROBINSON, 2015).
Essas duas linguagens artísticas, dança e teatro, nas quais o corpo está no centro, foram
reconhecidas como conteúdos a serem contemplados dentro do espaço escolar com a LDB n.
9.394/96, mas ainda estão sendo paulatinamente incorporadas à prática escolar, como citado
anteriormente. Majoritariamente, ainda se presencia nas escolas o ensino de arte como sinônimo de
artes plásticas (desenho, pintura, colagem, modelagem) ou de artes visuais (incluindo-se aí a
fotografia, o vídeo, o cinema). Em algumas regiões do país, além das artes visuais, a música
também ocupa um lugar de destaque por meio da criação de fanfarra marcial. Em outros casos, com
aulas específicas de banda rítmica e de canto coralvi.
Diferentemente das artes visuais e da música que demandam materiais (papéis, tinta, cola,
argila, tecidos, dentre outros) e instrumentos musicais, poderíamos afirmar que as artes cênicas são
as “primas pobres” do ensino de arte, pois necessitam única e exclusivamente do corpo em
movimento e de um espaço vazio. Essa percepção das artes cênicas como “primas pobres” não são
por mim apelidadas. O teatrólogo polonês, Jerzy Grotowski, em sua obra “Em busca de um teatro
pobre” (1987), defendia justamente a eliminação de todos os aparatos como cenário, figurino,
adereços, iluminação, sonoplastia, mantendo apenas o necessário, ou seja, o(a) artista em sua
vulnerabilidade, diante de uma plateia. Para ele, a essência do teatro está na ação do(a) artista em
cena e sua relação com o público.
Numa pesquisavii realizada entre 2007 e 2010, identifiquei que as escolas que tinham aula de
teatro (e, em alguns casos, aulas de dança) não o faziam por opção. Pelo contrário, faziam
justamente diante da falta de opção. Em outras palavras, era a ausência de material básico para as
aulas de música como instrumentos musicais, e para as aulas de artes plásticas como papéis, tinta,
pincéis, dentre outros, que impulsionava os(as) professores(as) a trabalharem o teatro e a dança. De
fato, basta um espaço vazio e a presença de estudantes com seus corpos em movimento para que o
teatro e a dança aconteçam.
Ocorre, no entanto, por muitas vezes, professores e estudantes utilizarem parte da aula
justamente empurrando cadeiras e mesas para criar o espaço vazio dentro da sala e, em seguida,
utilizarem outra parte da aula para recolocar o mobiliário no lugar, restando apenas 30 dos 50
minutos da aula para os jogos teatrais e para os processos de criação cênica e coreográfica em si.
TRÊS PREOCUPAÇÕES
A preocupação mais incisiva diz respeito à conjuntura política atual em que o corpo e a arte
passaram a ser clara e abertamente ameaçados, tendo sido colocada em cheque a autonomia dos
cidadãos. Não se podia imaginar que, em pleno século XXI, iríamos presenciar situações de
cerceamento da liberdade de expressão e de tentativas de aprisionamento dos corpos, com a volta da
censura, tanto nas artes quanto na imprensa, e afirmações como “meninas vestem rosa e meninos
vestem azul”.
Para citar apenas alguns atos governamentais contundentesviii, assistimos estupefatos esta
gestão extinguir o Ministério da Cultura e substituí-lo pela criação de uma secretaria subordinada ao
Ministério de Turismo (?), explicitando claramente que visão de cultura é por ela sustentada. O
então secretário desta nova secretaria divulgou, no dia 16 de janeiro, um edital para o Prêmio
Nacional das Artes por meio de um vídeo no qual fez referência a uma “arte heroica e nacional”,
parafraseando Joseph Goebbles, ministro de Hitler. A sociedade civil e políticos de diferentes
partidos se posicionaram de forma categórica contra o vídeo e escreveram críticas e manifestos
sobre esse episódio nas mídias sociais e nos jornais. O protagonista do vídeo acabou sendo
exonerado do cargo. Gostaria, porém, de focar no edital em si, que foi cancelado alguns dias após a
saída do secretário. O conteúdo do mesmo acabou ficando em segundo plano com tamanha
polêmica sobre sua divulgação. No referido edital, havia premiação para ópera (indicada em
primeiro lugar), para teatro, música, literatura, conto, história em quadrinhos, mas absolutamente
nenhuma premiação para dança, circo nem performance. Ora, por que essas linguagens
explicitamente do corpo não foram contempladas?
Não é apenas a recém-criada secretaria que vem realizando ações nefastas. Poderia seguir
citando impropriedades de outras pastas como as do Ministério da Educação ou as do Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, porém optei em destacar apenas três das muitas
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
preocupações, selecionando as que tocam diretamente a arte. Passo, então, à segunda, que não está
ligada ao governo e sim à globalização e diz respeito ao uso das tecnologias.
Por mais que as tecnologias já estejam incorporadas ao nosso cotidiano, que estejam aí para
nos ajudar e, de fato, nos ajudam, preocupa-me o tipo de uso que grande parte da sociedade tem
feito delas a ponto de alterar seu comportamento. São alguns desvios observados quando, por
exemplo, uma pessoa considera mais importante registrar um momento que vivê-lo. Assim, em
restaurantes, parques, museus, festas, ao invés de se estar nos lugares, de se contemplar, provar,
admirar, degustar ou simplesmente conversar, a prioridade é fazer pose, fotografar e postar a foto.
Pior ainda, estar nestes lugares e ficar a ver a foto do outro, a pose do outro, o corpo do outro pelo
celular.
Vivemos a era do choque entre o real versus o virtual. Um fenômeno que começou com os
jovens e que hoje os adultos assumiram para si. Neste contexto, deparamo-nos com pessoas
aparentemente esclarecidas que privilegiam os interlocutores virtuais, com quem dialogam pelo
celular, que o amigo real sentado à frente à mesa. Neste diálogo virtual (algumas vezes, com mais
de uma pessoa ao mesmo tempo), a manifestação das emoções é feita por meio emojis,
substituindo-se a expressão corporal e vocal por “carinhas amarelas”.
Para além da crítica às tecnologias das mídias sociais, gostaria de falar sobre a Inteligência
Artificial (HARARI, 2019). Não sou pesquisadora do campo, mas como uma hábil observadora das
pessoas no mundo, gostaria especificamente de refletir sobre os aplicativos de uso pessoal voltados,
em teoria, à saúde dos indivíduos. Refiro-me aos monitores de atividade física (fitbit), aqueles
“relógios de pulso” que medem a frequência cardíacaix, as horas de sono, que alertam o usuário para
a hora de beber água, de se mexer etc. Digo “em teoria” pois acredito que se trata de um desserviço
do aplicativo ao retirar do indivíduo a percepção de si. Ao invés de sentir suas necessidades através
dos sinais em seu próprio corpo, passa-se à terceirização dos sentidos. Esses acessórios podem
colaborar para a saúde, sobretudo de idosos que, justamente pela idade avançada, perderam a
percepção da sede e acabam não se hidratando corretamente, por exemplo. Mas,e para o indivíduo
comum? O aplicativo acaba por deseducar a pessoa sobre si própria.
Destaco que não podemos negar as tecnologias, nem rejeitar os avanços que elas
representam em nossas vidas. As tecnologias estão aí e a tendência é que elas sigam sendo
aprimoradas, evoluindo, avançando e inovando. O problema, afinal, não está nas tecnologias em si,
mas no uso que se faz delas, sobretudo quando elas influenciam o desenvolvimento e/ou
manutenção de nossas habilidades e sentidos, como afirmei acima.Quanto mais se usa a tecnologia,
menos se usa o corpo (incluindo aqui a mente) e isso leva a consequências tanto físicas quanto
psíquicas. E assim, chego à terceira e última preocupação.
A desesperança é grande.
Mas, qual a relação destas três preocupações com as artes cênicas? Com o tema do presente
simpósio? O que isso tudo tem a ver com nossa discussão sobre a arte na escola e na universidade?
174
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Não sou profissional do campo da filosofia, nem da psicologia, nem das Ciências Sociais.
Sou artista da cena e clown, logo, é a partir do lugar da imaginação, do sonho, da criação e da ação,
que faço minha reflexão. O tempo urge. Estamos sendo atropelados e não podemos perder o passo.
Por isso afirmo que é para já!
Defendo a necessidade de as artes cênicas estarem presentes de forma prática e vivencial nos
diferentes níveis da educação básica, da educação infantil ao ensino superior, passando pelo ensino
fundamental, ensino médio e ensino técnico, pois defendo a importância da arte do corpo na
formação de todo e qualquer indivíduo. Por quê? Qual sua relevância?
Sua importância se encontra no fato de que, na atualidade, estes dois fazeres, teatro e dança,
são dos poucos a colocar o indivíduo em contato consigo próprio, com seu corpo, com suas
emoções, com suas sensações e sua individualidade. E as pessoas estão carentes de si próprias.
Não se trata de uma visão romântica, nem de uma solução milagrosa. Não se trata sequer de
crer que as artes cênicas sejam salvadoras do mundo. Longe disso. Trata-se de reconhecer o
potencial que estas linguagens têm para se trabalhar questões primordiais para a vida dos
indivíduos, lembrando que, historicamente, a vida cotidiana das pessoas envolvia a totalidade do
corpo em movimento (LABAN, 1990), seja no ambiente doméstico, seja no ambiente de trabalho.
No âmbito social, as pessoas se ocupavam de projetos criativos e faziam-no tanto de forma
individual quanto coletiva.
O século XX trouxe a revolução digital, permitindo maior agilidade nas ações, facilitando a
comunicação e acelerando a vida dos cidadãos para, em teoria, oferecer uma melhor qualidade de
vida às pessoas, porém, a maior preocupação foi com o aumento da produtividade. Já estamos na
segunda década do século XXI, era da inteligência artificial. Será que aprendemos com os erros e
acertos de nossas escolhas passadas?
O historiador israelita Yuval Noah Harari, grande pensador da atualidade, afirma que a
tecnologia nos dá um poder imenso, mas ainda somos nós que decidimos o que fazer com ela
(HARARI, 2019). Cursos de meditação, mindfulness, yoga e tantas outras propostas apontam
caminhos para superar (e em alguns casos suportar) as preocupações apontadas anteriormente que
representam alguns dos desafios deste novo século. Cada dia que leio, estudo, ouço um podcast, me
informo, identifico os benefícios e vejo as conexões que existem entre estas práticas sugeridas e as
artísticas, como o teatro e dança. Pessoalmente, ainda não fiz nenhuma destas formações, porém,
tenho ao meu redor colegas que vêm flertando com algumas dessas práticas e, ao ouvir atentamente
seus relatos, reflito sobre as constatações e confirmo algumas suposições. Identifico que a prática
artística da cena trabalha, por principio, com vários dos aspectos contidos nestas técnicas agora tão
em voga, estudadas e divulgadas.
Como artista da cena, por exemplo, eu danço, interpreto e represento. Eu coloco meu corpo
em estado de atenção. Busco um estado de presença e, para tal, dilato meus sentidos. Para conseguir
esta ampliação da presença, preciso, primeiramente, me ocupar de minha consciência corporal.
Pensar em meus apoios, minhas articulações, minha respiração, os músculos ou as cadeias
musculares envolvidas em determinada postura e/ou movimento. Preciso ter consciência da
distribuição do meu peso entre os apoios, preciso ter noção do espaço que ocupo na sala, na cidade,
no mundo. Preciso aguçar todos os meus sentidos. Preciso estar com os olhos, ouvidos, olfato, tato,
paladar atentos para perceber o mundo.
Quando assumo um papel, seja numa improvisação teatral seja quando incorporo minha
clown, Dona Clotilde, isso me obriga a estar dentro e fora de mim ao mesmo tempo. Como um
corpo dilatado em que se está dentro do personagem, em cena, jogando com o outro e, ao mesmo
tempo, se está fora de si, assistindo a cena de outro ângulo e imaginando a próxima ação.
Para se improvisar em cena, é necessário ampliar os sentidos para permanecer atento a todo
e qualquer acontecimento, pois a mínima ocorrência pode ser o estopim para outro desfecho da
cena. Ao realizar o exercício de estar dentro e fora de mim no ato da improvisação, acabo por
incorporar essa prática e realizo a mesma ação em muitos momentos do cotidiano. Assim, a prática
teatral acaba por ser um ensaio para a vida. E, ao fazer isso, posso prever reações do outro e pensar
em minhas próprias ações, posso me colocar no lugar do outro, posso pensar e me apropriar de um
discurso, posso me conhecer melhor.
tempo – ora, por que ele fica duas horas “sem fazer nada” ao invés de estar lendo? Produzindo um
texto? Preparando sua próxima palestra? O historiador responde que consegue ter uma produção
intensa justamente por passar todo este tempo meditando, abrindo espaços para que novas conexões
se estabeleçam e se conhecendo melhor.
Defendo, mais do que nunca, nos dias atuais, a necessidade de estudos acerca das artes
cênicas, teatro e dança, estarem presentes nos cursos de formação de pedagogos, aqueles
profissionais que trabalharão com crianças de zero a dez anos de idade.
Defendo a necessidade de estudos acerca das artes cênicas estarem presentes também nos
cursos de licenciaturas, que formam professores especialistas que trabalharão com as disciplinas
específicas no Ensino Fundamental 2, no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA).
Defendo a necessidade de estudos acerca das artes cênicas igualmente estarem presentes nos
diferentes cursos superiores, seja como atividades de extensão, extracurriculares, seja como
disciplinas obrigatórias nos distintos bacharelados como já fazemos no caso da Faculdade de
Medicina na Unicamp.x
Compreendo a palavra “estudos” aqui para além da aquisição de saberes racionais, teóricos,
históricos, por meio de leituras, reflexões abstratas, filosóficas. Reconheço a palavra “estudos” no
sentido da experiência prática em si, da vivência, da experimentação. Enfatizo a importância de se
por “a mão na massa”, ou melhor, o corpo em movimento. Afinal, o teatro e a dança compõem uma
área em que a forma de se construir conhecimento passa, necessariamente, pela ação, pela práxis.
Uso como analogia para falar sobre o ensino de arte a ideia de que só se aprende a nadar, nadando.
Assim, só se aprende a fazer teatro, teatrando. Só se aprende a dançar, dançando.
Assim, vamos nos colocar em movimento! Vamos abrir espaços na escola, empurrar
cadeiras dentro da sala de aula. Fazer um círculo com as pessoas, estudantes, professores e demais
agentes escolares, todas pessoas de mãos dadas (ninguém solta a mão de ninguém), percebendo sua
individualidade no círculo, como elo único que compõe a corrente e, ao mesmo tempo,
reconhecendo a força do coletivo. Vamos fazer teatro! Vamos improvisar cenas nas quais possamos
colocar nossas questões e problemáticas em evidência e assim possamos, no coletivo, pensar outras
soluções possíveis. Vamos dançar! Vamos mover nossos corpos de acordo com os movimentos dos
colegas, seguindo os sons do ambiente, ou as músicas propostas, vamos expressar pelo gesto nossas
sensações vividas e, assim, vamos experimentar novos ritmos e outras vibrações. Vamos criar com
o corpo!
178
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
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https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643346. Acesso em 11 jan. 2020.
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Notas de fim
i
A mesa fez sucesso junto aos estudantes do campo da Saúde. Eles pediram meu contato e convidaram, posteriormente,
Dona Clotilde para a abertura de um evento no Centro Acadêmico da Medicina, no mesmo ano. Concluíram que era
muito interessante discorrer sobre um assunto de forma crítica por meio da personagem.
ii
Sobre esse tema, aconselho a leitura da dissertação de mestrado de Alexandre Randi intitulada: “Palco, Academia,
Periferia: a dissonante polifonia da Banda Bate Lata na (trans)formação de um educador”, com orientação de Ana
Angélica Albano, 2006.
Arte e de Educação Física (Enaef); Confederação Nacional de Arte Educadores do Brasil (Confaeb); Congresso de
Leitura do Brasil (Cole).
iv
O Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação/Laborarte, grupo de pesquisa do qual faço parte, foi
convidado por mais de uma ocasião a ministrar cursos voltados aos professores de arte da rede pública (graduados na
antiga Educação Artística ou em Artes Plásticas) para complementar sua formação e permitir que também trabalhassem
noções de teatro, música e dança na escola.
v
Dados obtidos em consulta ao portal do MEC (emec.mec.gov.br) em 29/01/2010.
Lembrando que isso ocorre não pela importância ou relevância das linguagens artísticas em si, mas pelo fato de que
vi
pesquisas demonstraram o quanto o ensino de artes visuais contribuiu para a melhoria do aprendizado da escrita e a
música para a aquisição de conhecimentos no campo da matemática.
“Visão de Arte das professoras da rede pública da Região Metropolitana de Campinas/SP”. Pesquisa de Iniciação
vii
Científica com bolsa Capes. Estudantes bolsistas: Gustavo Valezzi e Lucia Kakazu.
Trata-se de um texto datado, que estava sendo redigido em janeiro de 2020, quando diversas ações ocorreram no
viii
campo da cultura. Num futuro próximo, alguém pode acreditar que esses fatos não aconteceram. Optei em não citar
nomes, apenas cargos para não dar visibilidade a estas pessoas.
ix
Yuval Harari em sua palestra em Davos, em 24 de janeiro de 2020, fez um alerta sobre como as informações obtidas e
armazenadas por esses aplicativos poderiam num futuro ser usadas de forma nefasta por políticos, empresas e pessoas
mal-intencionadas. Vide o Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=gG6WnMb9Fho&feature=youtu.be).
x
Desde 2012, introduzimos uma disciplina obrigatória no currículo do curso de formação de médicos na Universidade
Estadual de Campinas/Unicamp, oferecida para o segundo ano (4o semestre). A princípio, a disciplina visava o
desenvolvimento da comunicação médica. Com o tempo, desenvolvemos uma metodologia que intitulamos Medical
Education Empowered by Theater (MEET), que contribui para a formação do indivíduo.
xi
Encontro “Poéticas do Fazer”, promovido pelo Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação/Laborarte da
Faculdade de Educação da Unicamp em 2010.
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE
PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS
E... O QUE HÁ NO MEIO DO CAMINHO?
O que há no meio do caminho? O poema que escolho para me acompanhar e que incita a
reflexão sobre a formação de professores e suas possibilidades formativas, usualmente é trazido à
baila quando se faz referência a problemas/obstáculos encontrados, mais que em interrupção, ele me
incita a pensar em desvios, atalhos; caminhar pensando que as pedras fazem parte do caminho.
Entre possibilidades/impossibilidades, lá está ela, a pedra/Base Nacional Comum Curricular,
promulgada pelo Conselho Nacional de Educação em dezembro de 2017, após um processo que
contou com a divulgação de diferentes versões, discussões, audiências públicas, num delineamento
de uma tendência que se adensa no desenrolar de ações subsequentes nas políticas educacionais:
uma forte guinada às perspectivas de centralização das decisões e a dicotomização das esferas de
produção e “implementação” de políticas educacionais.
Se tal perspectiva já indicava que o alinhamento à BNCC se coloca como “pedra angular”
para as ações e políticas públicas em elaboração e/ou desenvolvimento no país, também expressa a
vinculação e atrelamento de propostas no âmbito da formação de professores à BNCC, tal como se
materializou na promulgação da Resolução n. 2/2019, do Conselho Nacional de Educação, que
institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica –
BNC-Formação.
Ao longo das pesquisas que tenho desenvolvido nos últimos anos (FRANGELLA, 2016;
2019) acerca de políticas de currículo tanto para a educação básica quanto para a formação de
professores, observo que essas, a partir do diálogo com a obra de Homi Bhabha, são movimentos
que se dão sob rasura, não como significantes em si, mas imbricamento de rastros discursivos que
abalam a ideia de uma anterioridade que ampara as iniciativas em prol de um ou outro.
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...
Sendo assim, a falácia das justificativas, que apontam que a existência da BNCC da
Educação Básica exige que se faça a adequação e alinhamento da formação de professores a essa, se
erige na possibilidade de traçar uma trajetória sequencial que culmine num determinado ponto, no
caso, a busca da qualidade na educação que, em sua transparência, parece se constituir máxima para
qual convergem todas as ações e se dá partir de passos objetivos, racionais, num sentido unívoco
que congrega e direciona uniformemente os esforços para consecução desses objetivos.
Ainda que pese a necessidade de aprofundar a discussão sobre os sentidos de qualidade que
estão postos na BNCC, o que busco destacar é o atrelamento aqui posto. De fato, também não
acredito que seja possível a dissociação entre projetos para educação básica e para a formação de
seus professores, até por entendê-los atrelados a um disputa de significação de mundo, como
projetos culturais, mas o que assistimos é uma cadeia articulada de projetos submetidos a uma
lógica de entendimento de qualidade mensurável, balizada por índices de desempenho e controle,
além do adensamento do caráter instrumental das políticas curriculares contemporâneas, que se
expressam ainda mais na própria BNC-Formação como estratégia de disseminação da BNCC da
Educação Básica. O que se depreende dos movimentos em curso não é a relação dialógica entre
propostas para a Educação Básica e Formação de professores, mas uma submissão que reduz a
formação a ser a portadora da boa-nova que é a BNCC.
curricular como tradução da BNCC em documento local, o ponto focal muda, ou seja, a “pedra
angular” da produção curricular.
§ 5º. São princípios da Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica:
I. a formação docente para todas as etapas e modalidades da educação básica como
compromisso público de Estado, buscando assegurar o direito das crianças, jovens e
adultos à educação de qualidade, construída em bases científicas e técnicas sólidas em
consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica;
IX. a articulação entre formação inicial e formação continuada, bem como entre os
diferentes níveis e modalidades de educação;
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...
BNCC da Educação Básica, o currículo da formação com a descrição das temáticas a serem
abordadas nos três grupos que organizam a matriz curricular para a formação, bem como indicação
das competências específicas em cada dimensão das competências gerais da formação docente.
Trata-se da retomada de modelos já discutidos e criticados, como sinalizam Dias e Lopes (2003) em
estudo sobre as reformas curriculares para a formação de professores nos fins dos anos 1990 e
início dos anos 2000, sobre o que não há de novo na pretensão de atrelamento entre desempenho do
professor e desempenho do aluno, desequilibrando a balança na/da formação, uma vez que o como
ensinar, a dimensão prática, adquire supervalorização como foco central da formação.
Assim, a partir desses questionamentos, tomo para leitura, além da Resolução n. 2/2019 que
institui a BNC-Formação, os textos preliminares apresentados em 2018 (Proposta para a BNC da
Formação de Professores da Educação Básica) e 2019 (Texto referência – 3a versão do Parecer)
para discutir a construção de argumentos para justificar o investimento na formulação de tal
proposta, o que observo como alinhamento ao movimento observado no processo de produção da
BNCC da Educação Básica: o indicativo de falta de qualidade da educação. No caso da formação de
professores a questão da falta é articulada à questão de que é decisivo para o avanço da qualidade a
atuação do professor, a despeito das condições de trabalho docente ou das condições desfavoráveis
que o aluno tenha, tal como preconizado no texto apresentado em 2018:
Muitos estudos têm sido realizados a partir de dados estatísticos e avaliações que nos
permitem fazer análises mais profundas a respeito das aprendizagens.
b) os fatores que podem ser controlados pela escola ou pelo sistema educacional, dentre
os quais o professor é de longe, o que mais pesa na determinação do desempenho do
aluno; e
Para corroborar com tais argumentos são apresentadas pesquisas da Ocde e outras que
indicam que a qualidade dos professores e seu ensino é o fator mais preponderante no desempenho
186
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...
dos alunos. Tal nexo argumentativo é construído de forma que a questão do contexto
socioeconômico não é desconsiderado, mas é tratado de forma individualista, sem inserir nesse
debate o próprio contexto socioeconômico dos professores e as condições contextuais de produção
da docência, que então se materializa independente dos contextos em que se insere. Sendo assim, à
escola é possível descolar-se de questões socioculturais e garantir a qualidade a partir do
desempenho dos professores. Para tanto, é preciso qualificar esse desempenho, uma vez que esse é
um dos fatores possíveis de serem controlados.
O controle se dará exatamente pela via do desempenho, numa lógica de gestão de resultados
que, apesar do discurso em favor da qualidade da educação e garantia de direitos de aprendizagem,
aqui apresenta-se com o sentido próprio dado a aprendizagem: desempenho passível de ser
mensurado.
Esse discurso que, de forma linear, associa ação docente ao desempenho do aluno
desconectada de tantos outros fatores que não são necessariamente “controláveis”, estabelece uma
relação biunívoca entre desempenho docente e desempenho discente, tal como se observa nas
significações de docência e trabalho docente que se depreende da BNCC da Educação básica,
adensando o discurso de responsabilização praticamente exclusiva dos professores sobre o
desempenho dos alunos (FRANGELLA; DIAS, 2018).
Então, se
[...] chama a atenção o fato de o cuidado com a aprendizagem dos estudantes ser a
principal incumbência do professor, ou seja, a centralidade do tradicional processo de
ensino e de aprendizagem não está mais na atividade meio, ou no simples repasse de
informações, mas na atividade fim que compreende o zelo pela aprendizagem dos
alunos, uma vez que a finalidade primordial das atividades de ensino está nos
resultados de aprendizagem (CNE, 2019, p. 7, linhas 281-283).
Art. 3º. Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela
BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes
competências gerais docentes. (BRASIL/DOU, n. 247, CNE/Resolução n. 2/2019,
p.116).
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...
Nesse sentido, isso se faz também a partir de resposta ao que estudos selecionados e
indicados como referenciais e experiências internacionais trazem como parte de uma revisão dos
conhecimentos já elaborados sobre a formação e que, dentre as evidências, indicam uma
secundarização das didáticas e metodologias e uma formação muito teórica (MEC, 2018;
MEC/CNE, 2019).
De forma perversa, acaba surgindo uma cisão que polariza as questões postas em debate,
criando pares binários em oposição – técnica ou conhecimento, teoria ou prática e que parecem
tratar de uma escolha entre um dos polos e não permite pensar no deslizamento e na ambivalência
que constitui o social. Tal polarização tem a pretensão de estabelecer uma verdade e com Bhabha
(2001, p. 269), é possível afirmar que não há verdade transparente, “as verdades vão sendo
substituídas por verdades que são apenas parciais, limitadas e instáveis. Cada movimento da maré
local revê a questão política do ponto de vista de todas as redes políticas.”
Esse é um ponto importante a ser destacado: a oposição entre teoria e prática desliza para o
que implicitamente se coloca também como outro binarismo posto: política-técnica, o que se
exacerba na ênfase em decisões com base em evidências científicas, que as dotaria então de
racionalidade, a salvo da política, aí alinhadas a posições que não se balizam pela objetividade, lida
como acesso a essência do real.
Sobre a polarização se observa outra: o professor como prático numa esfera que tem como
seu par binário, em oposição, o lugar do teórico, da decisão curricular que dele é subtraída.
Venho defendendo ao longo dos meus trabalhos que fazemos currículo na e com a escola,no
atravessamento de múltiplos contextos que se interconectam e põem em disputa a produção de
sentidos para a prática pedagógica onde currículo, conhecimento, avaliação, entre outros
significantes, são disputados, confrontados, negociados nesses atravessamentos e que caracteriza
essa produção como política, na perspectiva em que me ancoro, política-discursiva. Sendo assim,
não há sentido garantido, mas uma feitura contínua que nos faz pensar no currículo como ato de
tradução e, como na expressão de Bezerra (2012) que afirma que toda tradução é uma criação, essa
se dá nas invenções e desinvenções que se dão no terreno do indecidível. Essa é uma ideia potente
para pensar a produção curricular que também se dá como reinscrição e deslocamento que
desestabilizam uma ideia de lugar/tempo próprio de produção e exige negociação, que “não é nem
assimilação, nem colaboração. Ela possibilita o surgimento de um agenciamento instersticial que
recusa a representação binária” (BHABHA, 2011, p. 91), o que rompe com um sentido de
causalidade/inevitabilidade, uma vez que essa negociação se dá pela contingência. E a BNC-
Formação tenta – porque é sempre uma tentativa falha – eliminar o que seria contingente.
Das muitas inferências possíveis de serem feitas, quero pôr em destaque uma questão que
subliminarmente se põe na BNC construída, numa articulação com a ideia de direito de
aprendizagem que sustenta toda a discussão que fundamenta a proposição de bases: a noção de
direito que, objetivado e possível de ser descrito, garantirá justiça, no caso, a justa qualidade ao
ensino.
Ou seja, o direito de aprender se coloca como marco regulatório da ação docente e tendo em
vista que há a definição clara e precisa do que ensinar, há então a definição clara e precisa do que se
trata a ação docente. De certa forma, a BNC-Formação, ao flertar com tal perspectiva, poderia
transmutar-se em possibilidade de operar como estratégia de assunção de uma lógica restritiva e que
fere a autonomia docente, regulando e impondo interditos à prática docente.
O texto de referência apresentado em 2019 e a própria resolução aprovada pelo CNE tratam
dessa questão de forma oblíqua, indicando o direito como foco/marco que baliza princípios de
formação, organização curricular dos cursos de formação e, de forma interessante, explicitamente é
mencionado no detalhamento das competências específicas da matriz proposta para a formação, na
dimensão do conhecimento profissional: “Dominar os direitos de aprendizagem, competências e
objetos de conhecimento da área da docência estabelecidos na BNCC e no currículo” (BRASIL,
2019, p. 23).
Direito objetificado; direito como lei que se impõe, e aí a força da lei, fazendo referência a
Derrida (2010), que permite o delineamento do direito como via de acesso à justiça, mas uma
justiça que, ao reforçar o mesmo, o comum, o sentido de igualdade como mesmidade, afasta-se, se
assim for possível, do sentido de justiça e se configura como normatização impositiva, na força da
lei.
A ideia da força, a partir do diálogo com Derrida, também pela inferência posta no subtítulo
de uma de suas obras – Força da Lei – fundamento místico da autoridade – traz importante
perspectiva de problematização. Nessa obra, o autor distingue direito e justiça, afirmando que o
direito é da ordem do calculável e que o direito como justiça, não é justiça. Tem a ver com
determinações, com “ficções legítimas sobre as quais se funda a verdade da sua justiça”
(DERRIDA, 2010, p. 22). Discute que a instituição de um direito não tem fundamento em si, mas
tem a ver com a força/ violência do seu êxito performativo e um apelo à crença, sob a qual se erige
sua autoridade. Para Derrida, a noção de místico põe em xeque a ideia de autoridade fundada em
essências/verdades uma vez que o princípio da contradição que sustenta a racionalidade objetiva em
termos de é – não é se desfaz no que o autor traz como jogo, lance de inscrição que, em sua
imprecisão e impossibilidade de predição, mantém a indecibilidade. Ao mesmo tempo, nos permite
entender que o investimento na transparência do direito como justiça é uma tentativa de conter a
proliferação de sentidos possíveis, de regular a própria força performativa que também a constitui
sem fundamento. Assim, a questão do limite – do que está fora/dentro, próprio/não próprio se esvai,
na leitura de Derrida, mantém aindecidibilidade entre real e ficção dada a impossibilidade de
fundamento sem álibi do real da realidade (HADDOCK-LOBO, 2013).
Ao trazer a perspectiva derridiana para o esse jogo, ponho em destaque para o necessário
investimento no debate, na problematização e na exposição de argumentos que permita refutar
binarismos imobilizantes e das primazia de evidências objetivas sobre as quais a BNC-Formação
versa e diz se apoiar, como se isso a revestisse de uma aura de inevitabilidade e certeza que
fundamenta a autoridade de suas proposições e a possibilidade de dizer de forma assertiva e
objetiva o que é a docência unificada.
Nessas políticas, o que observamos é que não se leva em conta o que, nos termos de Bhabha,
é o “enquanto isso” – uma sucessão sem sincronia, uma ambivalência que destaca liminaridade e as
possibilidades de divergir. Mesmo que a normatividade não normalize tudo e todos, mesmo que não
faça dos “muitos” como “o único”, ela ainda se normaliza em maior ou menor medida. Ainda
apaga. É por isso que discutir/problematizar ou, a partir dos aportes com os que opero, desenvolver
estudos desconstrutivos funciona como uma ação política responsável. Afinal, se no começo havia
uma pedra no meio do caminho, retomo a pedra, mas para pensar que ainda que seja pau, pedra,
resto de toco.não é o fim do caminho, é passo, é ponte, é promessa de vida...i que se faz no
embate/debate democrático.
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...
REFERÊNCIAS
BEZERRA, Paulo. A tradução como criação. Estudos avançados, [s.l.], v. 26, n.76, p. 47-56, 2012.
BHABHA, Homi. O Bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
BRASIL. Resolução n. 2, de 1º de julho de 2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial
em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação pedagógica para graduados e cursos de segunda
licenciatura) e para a formação continuada. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 8-12, 2 jul. 2015.
BRASIL. Resolução n. 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação
Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores
da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 247, p. 115-119, 23 dez.
2019.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Proposta para a base nacional comum para a formação de professores
da Educação Básica. Brasília, DF: MEC, 2018.
BRASIL. MEC/CNE. Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial e
Continuada de Professores da Educação Básica. 3a. versão do Parecer. Brasília, DF: MEC/CNE, 2019.
DERRIDA, Jacques. A força da lei – o fundamento místico da autoridade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
DIAS, Rosanne Evangelista Dias; LOPES, Alice Casimiro. Competências na Formação de Professores no Brasil: O que
(não) há de novo. Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 85, p. 1.155-1.177, dez. 2003.
HADDOCK-LOBO, Rafael. Derrida e a oscilação do real. Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 4, n. 7, p. 25-46, 1º sem.
2013.
FRANGELLA, Rita de Cássia. Políticas de currículo, alfabetização e infância: entre paradoxos e antíteses,
renegociando o(s) pacto(s). Projeto de Pesquisa: Uerj, 2019.
FRANGELLA, Rita de Cássia. Políticas de currículo e alfabetização: negociações para além de um pacto. Projeto de
Pesquisa: Uerj, 2015.
VIEIRA, Jarbas Santos; FEIJÓ, José Roberto. A Base Nacional Comum Curricular e o conhecimento como commodity.
Educação Unisinos, [s.l.],v. 22, n. 1, jan./mar. 2018.
Notas de fim
i
Faço referência à letra de “Águas de Março”, canção de Antônio Carlos Jobim.
Este ensaio traz considerações sobre avaliação e currículo da escola básica com foco em
iniciativas do governo federal, implementadas no Brasil, que tendem a se materializar, de modo
mais articulado, com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Preparado como
apoio para apresentação no simpósio “Políticas de Currículo e de Avaliação para a Educação
Básica: quais caminhos?”, integrante da programação do XX Encontro Nacional de Didática e
Prática de Ensino, condensa elementos que pretendem caracterizar, em suas linhas gerais, caminhos
que vêm sendo trilhados em avaliação e currículo no âmbito de políticas educacionais, apontando
para possíveis desdobramentos no que tange à regulação da educação básica.
Em textos anteriores, de nossa autoria ou coautoria, tomou-se esse debate como nuclear. São
escritos que reúnem evidências de que usos de resultados das avaliações em larga escala, com
frequência, a situam como instrumento privilegiado de ação pública (LASCOUMES; LE GALÈS,
2012) na gestão educacional (SOUSA, 1997; MAZZOTTA; SOUSA, 2000; SOUSA;OLIVEIRA,
2003; SOUSA, 2009; SOUSA; LOPES, 2010; BONAMINO; SOUSA, 2012; SOUSA, 2013;
SOUSA, 2014; SOUSA, 2018; TRIPODI; SOUSA, 2018).
As razões declaradas pelo Estado, desde os anos 1930, para fazer uso da avaliação no
governo da educação básica nacional, são diversas, o que é explorado em Freitas (2007, p. 72-73).
Em síntese, a autora destaca:
Nos anos 1930 e 1940, os motivos para “medir, avaliar e informar” foram enunciados
em termos de necessidade e importância de o Estado conferir e verificar resultados
frente a objetivos da educação nacional, aplicando a ciência para “formar a
consciência técnica” no âmbito escolar, posto que condição necessária à expansão e à
melhoria da educação. No período 1950-1963, o motivo principal declarado foi o de
instrumentar a reconstrução da educação nacional, consoante ao princípio de
promoção de autonomia no setor educação, devido ao que “medir, avaliar e informar”
seriam meios para “conhecer a realidade”, fazer “diagnósticos”, com vistas a que o
Estado central, em lugar de acentuar a regulação legal, pudesse fornecer “indicações e
sugestões” para a qualificação da expansão do atendimento, da administração escolar e
do ensino. No período 1964-1984, os motivos para “medir, avaliar e informar”,
decorrentes da lógica técnica e econômica que orientou o planejamento centralizado
do desenvolvimento nacional, ressaltavam a instrumentação da racionalização, da
modernização e da tutela da ação educacional no País. Desde os anos 1985, os
motivos declarados reportaram-se às tarefas de reajustar a regulação estatal e de criar
uma cultura de avaliação no país.
Há que se assinalar que a noção de “cultura de avaliação” que vem sendo apregoada desde
meados da década de 1980, pautada nos moldes em que usualmente vêm sendo conduzidas as
avaliações em larga escala no Brasil, não é nova. Ela vem reiterar e fortalecer uma cultura de
avaliação há muito presente na escola, que se pauta na ideia da “avaliação como medida de
conhecimento, com fins classificatórios” (SOUSA, 2010, p. 107).
196
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
subnacionais, com princípios e delineamentos semelhantes aos assumidos pelo governo federal.
Estudos recentes registram 23 unidades federadas com avaliações próprias, além do Distrito Federal
e a criação de Índices de Qualidade em dez desses estados (SOUSA, 2013; MACHADO;
ALAVARSE; ARCAS, 2015; PERBONI, 2016; SOUSA; KOSLINSKI, 2017).
Nos municípios, além da adesão aos exames elaborados pelas instâncias federal e estadual,
se verifica o desenvolvimento de propostas próprias de avaliação em larga escala. Conforme
resultados de survey (BAUER et al., 2016), em que se coletou manifestações de gestores de 4.309
municípios do país (77,4% do total), 30% dos municípios contavam com iniciativas próprias de
avaliação e 21% indicaram intenção de implantar uma proposta própria de avaliação. (BAUER et
al., 2017, p. 5).
Do mesmo modo, o estudo conduzido por Brooke e Cunha (2011) registra que resultados
das avaliações em larga escala vinham sendo utilizados, dentre outros propósitos, para que redes de
ensino implantassem um “currículo oficial”.
Portanto, há que se indagar sobre motivações que levaram à proposição de uma Base
Nacional Comum Curricular, que define competências e habilidades, bem como conteúdos,
chamados “objetos de conhecimento”, no caso do ensino fundamental, por meio da padronização do
“que os estudantes devem aprender na Educação Básica, o que inclui tanto os saberes quanto a
Parece ser nesta direção que Lascoumes e Le Galès (2012) afirmam que a recomposição do
Estado contemporâneo, nas políticas sociais, foi acompanhada da utilização de uma série de
instrumentos de ação pública, que se interagem e se articulam, orientadas particularmente pelo
princípio da escolha racional e da microeconomia clássica, empregados à gestão pública. Não
parece ser outra, senão, a relação de instrumentação que se estabelece entre a utilização de
avaliação externa, padronização curricular e foco em gestão por resultados. Para os autores, a
instrumentação da ação pública nada mais é do que:
[...] o conjunto dos problemas colocados pela escolha e o uso dos instrumentos
(técnicas, meios de operar, dispositivos) que permitem materializar e operacionalizar a
ação governamental. Trata-se não somente de compreender as razões que levam a se
reter certo instrumento muito mais que outro, mas de considerar igualmente os efeitos
produzidos por essas escolhas (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012, p. 20).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A BNCC foi construída, entre os anos 2015 e 2018v; as versões I e II do texto definiram
“direitos e objetivos de aprendizagem” enquanto a versão final, aprovada e vigente, define
“competências e habilidades” (Resolução CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017 e Resolução n.
4, de 17 de dezembro de 2018). Não se trata apenas de nomenclaturas, o que já demandaria muito
debate. Há também implicações importantes para a avaliação das aprendizagens.
Essa mudança na concepção de currículo anuncia qual avaliação deve se realizar, colocando
a ênfase apenas no sujeito da aprendizagem; reforçando-se todos os elementos para a manutenção
das avaliações externas e em larga escala, descontextualizadas e voltadas exclusivamente para a
aferição de resultados.
[...] não se trata de desprezar as avaliações e tão pouco seus resultados, cabe, antes,
analisar os processos avaliativos, objetivando compreender seus limites e ressaltar
suas potencialidades, principalmente aquelas que podem contribuir com a construção
de alternativas pedagógicas para as políticas e as escolas cumprirem suas funções
junto à sociedade democrática, no sentido de oferecer educação pública de qualidade
para todos seus alunos e alunas.
Além desses limites, cabe reiterar que estabelecer padrões de desempenho e implantar
mecanismos de concorrenciais e de incentivos, com base em resultados de testes, para induzir a
melhoria da qualidade da educação, tem como fundamento a aceitação da desigualdade entre os
resultados educacionais o que é inconciliável com o compromisso de educação de qualidade para
todos, suscitando o acolhimento e legitimação da desigualdade escolar e social (SOUSA, 2010),
pois “políticas educacionais formuladas e implementadas sob os auspícios da classificação e seleção
200
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
incorporam, consequentemente, a exclusão, como inerente aos seus resultados, o que é incompatível
com o direito de todos à educação” (SOUSA, 2009).
A defesa do posicionamento da Escola Sem Partido ganha respaldo do governo federal com
a eleição de Jair Bolsonaro para presidente. Sob um discurso de conduzir as políticas “sem viés
ideológico” (NEHER, 2019)vi, recurso discursivo reiterado por integrantes de seu governo,
incluindo-se Ricardo Vélez Rodriguez, que inicialmente assumiu o Ministério da Educação e o seu
sucessor ministro Abraham Weintraub, difundem e defendem uma concepção de educação e de
mundo ultraconservadora e antidemocrática, que reflete uma ideologia de extrema direita.
Tratar dos graves ataques e iniciativas governamentais que ameaçam a democracia, o Estado
de Direito e a educação pública extrapola o escopo deste texto. No entanto, a menção a esse
arcabouço político e ideológico vigente no país é necessária, dado que tende a trazer graves
consequências na seleção do “conteúdo” a ser legitimado pelas avaliações. Não se trata de
elucubração.
São ilustrativas as reações e ações em relação ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Ao comentar uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio de 2018, sobre “dialeto secreto de
gays e travestis”, o então candidato a presidente Jair Bolsonaro afirmou que, a partir do ano
seguinte, iria tomar conhecimento do conteúdo do Exame antes da aplicação da prova. Em uma de
suas entrevistas, à época, disse: “Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta
de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum. A não ser obrigar para que no
futuro a garotada se interesse mais por esse assunto. Temos que fazer com que o Enem cobre
conhecimentos úteis” (FSP, 2018).
Na primeira edição do Enem sob o governo Jair Bolsonaro, em 2019, a prova não incluiu
qualquer questão relativa à ditadura militar (1964-1985), o que ocorreu pela primeira vez desde que
a prova adquiriu o atual formato (PINHO; MAIA; MOREIRA, 2019). Ao ser indagado sobre as
razões da ausência de questões sobre a ditadura militar no Brasil no Exame, o ministro Abraham
Weintraub disse que o objetivo do teste “não é polemizar” e a questão da ditadura não está
“pacificada” (AGÊNCIA ESTADO, 2020). A propósito, lembra-se que o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais, por meio de Portaria, constituiu uma Comissão para “realizar
leitura transversal dos itens disponíveis no Banco Nacional de Itens” para a montagem das provas
do Enem desta edição, com o objetivo de “verificar a sua pertinência com a realidade social, de
modo a assegurar um perfil consensual do Exame” (BRASIL, 2019).
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Outro caminho apontado pelo presidente para incidir nos currículos escolares e nas
avaliações é efetuar alterações nos livros didáticos. Em recente declaração, afirmou que os livros
didáticos têm “muita coisa escrita” e que é preciso “suavizar” o material pedagógico. Anunciou:
“Em 2021, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira
do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional” (VARGAS, 2020).
Nesse cenário, a pressão exercida pela avaliação externa sobre a escola se mantém, assim
como os traços da gestão por resultados, que incita a competição e a meritocracia, mas, agora,
ancorados em um contexto ultraconservador de ataque ao caráter público da educação. É certo, no
entanto, que as propostas estabelecidas não se enraízam no cotidiano escolar “por decreto”. O
currículo vivido pelas escolas, por meio da atuação e interação dos profissionais, alunos e pais,
nunca é a pura expressão do que está prescrito. Há disputas, no cotidiano escolar, de projetos de
educação e de sociedade.
É preciso insistir e lutar para que esses mecanismos, especialmente aqueles decorrentes da
assimilação do princípio da eficiência, introduzido ao texto constitucional, sejam estabelecidos
sobre bases democráticas e não se apartem de um princípio maior que é o da justiça social.
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livros-didaticos-tem-muita-coisa-escrita-e-pede-estilo-mais-suave,70003142807. Acesso em: 22 jan. 2020.
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WAISELFISZ, Jacobo. Sistemas de avaliação do desempenho escolar e políticas públicas. Ensaio: Avaliação e
Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, Cesgranrio, n. 1, p. 5-22, dez. 1993.
Notas de fim
i
Ver WAISELFISZ, Jacobo, 1993 e 2016.
Ver a EC n. 19/1998, que altera o art. 37 da CF, introduzindo o princípio da eficiência na administração pública. No
ii
mesmo artigo, os incisos e parágrafos trazem os instrumentos e ferramentas que levariam ao alcance desta eficiência.
Esse tratamento não dá conta de uma concepção ampla de currículo, compreendido como o conjunto de proposições,
iii
práticas e interações que se realizam no âmbito escolar, que extrapola a definição de objetivos, conteúdos e habilidades,
estabelecidos para serem trabalhados no processo educativo. Como diz Alves (2014, p. 1478), “os currículos – no plural
– são formados por aquilo que os docentes e discentes fazempensam nas salas de aula de cada escola brasileira”.
iv
A definição de conteúdos mínimos, assim como a avaliação dos sistemas são de prerrogativa legal da União,
conforme art. 210 da CF e art. 9˚ da LDB. A questão que se coloca é como a União passa a implementar esta
prerrogativa legal.
v
Primeira versão em 2015, segunda versão em 2016 e versão final em 2018, aprovada com manifestações contrárias das
Conselheiras Márcia Angela da Silva Aguiar, Aurina Oliveira Santana e Malvina Tania Tuttman (ver AGUIAR, 2018).
vi
Clarissa Neher, em matéria intitulada “Bolsonaro e a ideologia”, publicada em 19/01/2019, trata de modo sintético e
elucidativo essa questão. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-e-a-ideologia/a-47053263. Acesso em:
21 jan. 2020.
206
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO
PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
Walkiria Rigolom
Paolo Nosella
DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
O objetivo do presente artigo é analisar as repercussões das tensões, contradições, bem como
as perspectivas de insurgências nos fazeres-saberes pedagógicos, a partir da retrospectiva da
trajetória profissional de uma professora alfabetizadora ao longo de mais de três décadas como
docente na Educação Básica da rede pública estadual paulista. Deste modo, pretende-se discutir os
desafios da ação educativa diante dos rumos das transformações empreendidas pelas políticas
educacionais, levando-se em conta os vínculos com a lógica gerencialista que têm permeado a
esfera educacional brasileira nas últimas décadas.
Para tanto, o referencial deste artigo ancora-se, dentre outros, em Norbert Elias (1897-1990),
sociólogo alemão pautado na sociologia dos processos. Seu construto teórico de interpretação
sociológica apoia-se no conceito de processos sociais, que pode servir à análise aqui proposta, haja
vista que se refere a amplas e contínuas transformações, nos oferecendo a possibilidade analisar
inter-relações complexas, por meio do conceito de interdependências entre os indivíduos, que unem
os sujeitos de uma figuração.
Para Elias, todo grupo social, como os docentes, por exemplo, constitui figurações
específicas, tecidas a partir das inter-relações que estabelecem. É importante ressaltar que a noção
de figuração construída pelo autor surgiu de sua crítica a uma teoria social que dissociava indivíduo
e sociedade, desconsiderando as dependências mútuas que se alteram e que modificam também as
relações de poder nelas instituídas, e que, na perspectiva elisiana, toda relação humana envolve
poder. Dessa maneira, evidencia-se o caráter relacional do poder em uma série de disputas que
emergem no cotidiano da escola.
Norbert Elias, a partir de sua teoria, nos fornece importantes contribuições que podem servir
inclusive às investigações dos fazeres-saberes pedagógicos, nos auxiliando na percepção e
compreensão das tensões, contradições, perspectivas e possíveis insurgências que se impõem à
dimensão didática do trabalho docente e sua relação com os rumos da Educação, envolvendo assim
as práticas sociais, pedagógicas e políticas. Como afirma Le�
o (2007, p. 10): “No campo dos
estudos educacionais, o trabalho de Norbert Elias abre caminhos para a compreensão da formação
dos indivíduos e suas implicações com as apropriações dos objetos de cultura”.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
Nesta perspectiva, o autor centra o foco na relação entre as ações individuais e os processos
sociais, que, para ele, são inseparáveis, “dessa interdependência contínua resultam
permanentemente transformações de longa duração na convivência social, que nem um ser humano
planejou e que decerto também ninguém antes previu” (ELIAS, 2006, p. 31). Desta forma, este
referencial – que permitiu a busca pela superação das polarizações comuns nas interpretações de
cunho sociológicos – instituiu a possibilidade de unidade entre o desenvolvimento processual e o
figuracional, que se tornam importantes ferramentas para análise, tanto das estruturas individuais
quanto das ações sociais, apreendendo o que une os indivíduos uns aos outros e evidenciando que
possíveis singularidades se originam nas figurações sociais e vice-versa.
Embora a proposta deste artigo não seja tecer uma análise de longa duração em torno dos
saberes e fazeres pedagógicos, contamos com este referencial, a fim de buscar compreender o
constante o processo de organização e de reorganizaçãoda prática pedagógica que não pode ser
compreendida por meio de uma ótica exclusivamente tecnicista e/ou metodógica, desarticulada da
função social da escola e de sua ação educativa, mas que precisa ser pensada a partir de processos
sociais mais amplos e complexos.
Assim, forma-se uma espécie de tradição, que, por sua vez, torna-se um hábito, efetivando
uma espécie de modus operandi, que só poderá ser superado por meio do fortalecimento de um
processo coletivo e dialógico de reflexividade crítica, participativo e democrático.
Isso posto, este artigo contará com a retomada da trajetória profissional de uma professora
(autora deste texto) com mais de três décadas de experiência na educação pública, nos anos iniciais
do Ensino Fundamental, atuando em região periférica da capital paulista e analisará a partir de seu
Vale ressaltar, por esse motivo, que dada a natureza discursiva do texto de cunho crítico-
memorialístico, optou-se pelo emprego de seu registro em primeira pessoa.
A recordação mais antiga que tenho da escola é a de que ela surgiu em minha vida como
uma rival. Este fato se deu quando meu único irmão, mais velho do que eu, deixou, aos meus olhos,
de ser criança, para tornar-se aluno.
De repente, me percebi sem ele. Quando indaguei minha mãe sobre sua ausência ela
respondeu: “Ele foi para a escola”. Eu não entendi e pensei: “Nossa!? Que lugar será este?” Só tive
a possibilidade de conhecer tal espaço três anos depois. Naquele momento, em plena infância,
nunca me ocorreu que minha vida se enraizaria tão profundamente nesta instituição e, tampouco,
que parte de seus conflitos, desafios, alegrias, tensões e contradições seriam, de alguma forma,
também meus, no decorrer de minha trajetória de vida.
210
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
nas famílias em relação ao que fora possível fazer por parte de pais e avós. Como afirmam Castro e
Regattieri (apud BRASIL, 2009):
No mundo familiar as crianças são filhos; no mundo escolar elas são alunos. A
passagem de filho a aluno não é uma operação automática e, dependendo da distância
entre o universo familiar e o escolar, ela pode ser traumática.
Em meados da década de 1970, eu e meu irmão íamos para a escola a pé, andávamos cerca
de 25 minutos, em ruas ainda sem asfalto, em um bairro de trabalhadores da periferia da zona leste
paulista. Ao chegar à antiga 5ª série, construíram na frente da minha casa uma escola pública
estadual e lá passei a estudar.
Meu pai foi um trabalhador rural vindo do interior em busca de trabalho em São Paulo,
como tantos outros, tornou-se metalúrgico e conseguiu trabalhar toda sua vida em uma única fábrica
no bairro da Mooca, tal qual Enrico, na obra A corrosão de caráteri de Sennett (2006). Trabalhava
sem queixar-se, tendo sua subjetividade capturada pelo mundo do trabalho, seu tempo rotinizado de
forma quase frenética, tanto que chegou a passar dez anos sem férias, já que vendia todas elas para
poder ganhar um pouco mais e construir, ele mesmo, aos finais de semana, a nossa casa. Minha mãe
não trabalhava fora. Essa foi a configuração inicial que forjou minhas primeiras interações com a
escola, durante um período histórico em que o país estava sob um regime militar.
Ao término do antigo ginásio, me matriculei em outra escola estadual, situada cerca de uma
hora de caminhada da minha casa. Cursei o Magistério de Nível Médio, em 4 anos, com habilitação
para atuar como docente tanto na Educação Infantil, quanto nas séries iniciais do Ensino
Fundamental. Contudo, minhas incursões como professora começaram muito antes, com base no
ensaio e erro, ancorada fortemente nas matrizes pedagógicas que havia experimentado, na condição
de aluna, até então. Os saberes e fazeres pedagógicos praticados em sala de aula, como professora-
estagiária, eram cópias repaginadas de minhas experiências como aluna, sem qualquer reflexão ou
rigorosidade metódica.
Assim, mesmo antes de me formar, eu já ministrava aulas em uma escola pública estadual,
substituindo os professores que faltavam ou que tiravam licença, na escola em frente à minha casa.
Desde aquela época já não havia professores substitutos suficientes nas escolas de bairros
periféricos. Dessa forma, a entrada da carreira ocorreu estritamente ligada ao processo de
precarização da profissão docente, pois atuava voluntariamente, sem qualquer orientação, apoio ou
condição para fazê-lo. Hoje, percebo de forma bem mais nítida o peso das condições objetivas de
trabalho e da formação inicial na organização do trabalho pedagógico no começo de minha carreira.
Como havia me inscrito para fazer o meu estágio obrigatório na mesma escola onde havia
sido aluna, a direção da escola tomou como hábito me chamar cada vez que faltava uma professora
ou um professor. Em média, dava aulas pelos menos 3 vezes por semana no período da manhã, sem
nenhuma remuneração e antes da idade permitida por lei, 18 anos. Não posso aqui deixar de
expressar as contradições que permearam a constituição de minha profissionalidade desde o início,
que em sua origem esteve extremamente associada à noção de missão, de cuidado, dedicação e
doação.
Hoje, percebo que minha própria formação, no Magistério, contribuiu para uma
representação equivocada acerca da natureza do trabalho docente bem como da concepção de
docência ancorada numa visão maternal e filantrópica. Além disso, ao tratar de escolas públicas, os
diversos professores que tive, em sua maioria, abordavam a carreira docente na perspectiva
assistencialista e compensatória, na qual educação não era um direito. Minha entrada formal oficial
no magistério ocorreu um ano depois do final do período ditatorial que perdurou por vinte e um
anos. Para Machado (2007, p. 279):
O mundo da educação e da escola, por exemplo, também se vê implicado e permeado
pelas mesmascontingências e contradições; sua história – com as especificidades que
lhe sãopróprias – não transcorre �margem desse processo de mudanças e ajustes na
organização da produção e da gestão do trabalho.
Tomando os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental como exemplo, é possível
observar que estes formam uma figuração particular, já que “devemos considerar a heterogeneidade
da categoria e suas divisões internas” (ENGUITA, 1991, p. 45), constituindo, assim, uma rede de
interdependência específica, que vai formando diferentes figurações e que são atravessadas pelas
condições sociais, políticas, econômicas e culturais de cada época.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
Nesse sentido, vale a pena ressaltar ainda que, na década em que me formei professora, o
Brasil vivia um processo de universalização da educação, bem como a maioria dos países da
América Latina. Tal processo foi caracterizado por intensa dubiedade, haja vista que, por um lado,
ampliou o acesso à educação, todavia, por outro, instituiu uma educação provida, em grande parte,
de conhecimentos simplificados e compreendidos por Sampaio (2002) como mínimos. Desse modo,
a universalização impôs novos impasses à política educacional, já que o acesso à educação não foi
acompanhado por ações econômicas, políticas e pedagógicas que permitissem às camadas populares
conhecimento capaz de contribuir para a mobilidade social.
Conforme apontam Biccas e Freitas (2009), na atualidade, são incontáveis os discursos que
buscam legitimar a ideia de que o Brasil é: “um país assentado em desigualdades em decorrência da
escola pública que fizemos, quando, na verdade, fizemos a escola pública que fizemos, justamente
porque fizemos um país assentado em desigualdades, por vezes gritante” (BICCAS; FREITAS,
2009, p. 31).
Por outro lado, o enfoque didático-pedagógico era abordado para que tivéssemos condições
de iniciar a carreira conhecendo de alguma forma alguns dos procedimentos e rotinas da sala de
aula. Percebo, ainda, o quanto a falta de politização, aliada a uma formação inicial insuficiente me
levou a compreender, inicialmente, a minha profissão como um sacerdócio, uma missão, muito
mais apoiada nos vínculos emocionais estabelecidos com as crianças, do que na dimensão política e
intelectual da docência.
de mérito), mudanças das matrizes curriculares, alterações nas formas de gestão e organização do
trabalho docente, entre tantas outras.
Neste período, a política educacional, segundo a própria SEESP teria como finalidade
garantir uma “revoluç�
o na produtividade dos recursos públicos, que em última instância deverá
culminar na melhoria da qualidade do ensino” (SÃO PAULO, 1995, p. 303), e promovendo um
amplo processo de reforma na educaç�
o paulista, intitulado “Escola de Cara Nova”. Esta política
aportava inicialmente dois grandes objetivos: o primeiro era a necessidade de aumentar a
produtividade do trabalho docente, e o segundo, mudar os padrões de gestão do sistema
educacional.
Na mesma escola onde atuava como professora substituta voluntária, ao me formar, assumi,
logo de início, turmas de reforço. Este modelo de ação, ao longo de mais de três décadas, teve sua
nomenclatura alterada, de reforço, para grupo de apoio, recuperação paralela. Tal ação era a
alternativa oferecida aos estudantes que apresentavam as maiores dificuldades no processo de
aprendizagem, e justamente essa turma era atribuída sempre aos professores sem os conhecimentos
necessários, sem qualquer formação específica. Assim, sem a experiência e os saberes necessários,
me encontrava com crianças que há anos tentavam alfabetizar-se, e confesso que, como elas
também me sentia à deriva.
Diante daqueles olhares esquivos e semblantes tristes passei a investir muito do meu tempo
“privado” no preparo de aulas, atividades, procurando com professores mais experientes
alternativas que os ajudassem a superar aquela condição. A primeira sala que me foi atribuída em
meu primeiro ano como professora formada tinha um total de 49 crianças. Havíamos optado por
fazer uma espécie de triagem das crianças-acreditando na falácia das classes homogêneas.
Diante deste panorama, o Magistério rapidamente tomou conta do meu tempo, como afirma
Linhart (2007, p. 43): “o trabalho é o grande ordenador do tempo. Ao impor sua própria duraç�
o,
ele anula, apaga o tempo que o indivíduo dedica a si mesmo”.
A opção pelo trabalho docente fez com que grande parte de minha vida privada fosse
permeada pela vida profissional. Muitas noites e finais de semana eram tomados pelo planejamento,
organização e busca de atividades e/ou projetos que pudessem ajudar os estudantes a aprenderem
mais e melhor. Certeau afirmava que “�medida que se adquire experiência, o estilo se afirma, o
gosto se apura, a imaginaç�
o se liberta.” Entretanto, diante da complexidade dos desafios
enfrentados cotidianamente em sala de aula, sobretudo nos fazeres e saberes pedagógicos, novas
angústias, dúvidas e contradições sempre se ampliavam em maior medida do que as alternativas
para sua superação.
Depois de atuar por mais de 18 anos como alfabetizadora, sempre na mesma unidade
escolar, onde até hoje estou lotada, tive a oportunidade de me tornar formadora, em um programa
de formação continuada de professores alfabetizadores. Pela primeira vez teria de enfrentar, de
forma mais direta, os embates metodológicos de forma mais aberta e sob uma nova perspectiva e
também enfrentar os meus pares que já não me viam da mesma forma. Ao abordar as disputas de
poder, Elias (1980, p. 80) afirma que:
O equilíbrio de poder não se encontra unicamente na grande arena das relações entre
os estados, onde é frequentemente espetacular, atraindo grande atenção. Constitui um
elemento integral de todas as relações humanas. [...] também deveríamos ter presente
que o equilíbrio de poder, tal como de um modo geral as relações humanas, é pelo
menos bipolar e, usualmente, multipolar.
Assumir essa nova posição exigia o enfrentamento dos desafios do caráter relacional e,
assim, precisaria desenvolver um conhecimento muito mais aprofundado não só sobre os fazeres e
saberes docentes. Esse deslocamento de professora para formadora me trouxe novas angústias e
contradições. Em contrapartida, também me possibilitou observar os nós mais recorrentes da prática
educativa na educação pública.
A alternativa encontrada para lidar com os novos desafios foi justamente de retomar os
estudos, investir no que Mills denomina como “artesanato intelectual”, buscando aprimorar meus
saberes. Voltei a estudar, agora pela primeira vez adentrando ao Ensino Superior, realizando um
movimento assim como muitos outros colegas professores, que por terem apenas o antigo curso do
magistério, buscaram a mesma formação, agora no ensino superior.
Somente quinze anos depois de ter concluído o curso de Magistério, tive a oportunidade de
ingressar no curso de Pedagogia, uma vez que consegui conciliar o trabalho em dois turnos: na
escola estadual e numa escola particular de Educação Infantil, tendo as condições financeiras
necessárias, além de duas filhas. A alternativa possível foi frequentar uma faculdade privada que
ficava próxima a uma das escolas onde trabalhava, pois assim conseguia chegar a tempo nas aulas
do período noturno.
Esta mudança, trouxe em seu bojo inúmeras questões que implicavam na necessidade de
análises mais aprofundadas, posto que, pela primeira vez, me distanciaria da escola para atuar no
campo da formação continuada de professores. Neste período de minha vida profissional tive
oportunidade de conhecer outras professoras, já que a totalidade das turmas para as quais ministrei
o referido curso, eram compostas por mulheres que, como eu, tinham inúmeras dúvidas, angústias e
queixas e que, preocupadas com aqueles alunos que não conseguiam se alfabetizar, viam no curso a
possibilidade de encontrar alternativas para que eles avançassem em suas aprendizagens. As
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
expectativas que elas alimentavam sobre o curso, ampliavam minhas angústias, já que o mesmo não
possibilitava levar em conta aspectos relativos às condições objetivas de trabalho.
Entendia este processo formativo, em primeiro lugar, como um direito das professoras,um
espaço de diálogo e estudo coletivo entre docentes que compartilhavam suas dúvidas, tensões,
desgastes e problemas muito similares. Por este motivo, este ambiente de compartilhamento
experimentado na formação, segundo as professoras participantes do curso, era o que faltava em
muitas escolas, razão pela qual, a meu ver, esse processo formativo de longa duração (3 semestres,
com encontros semanais presenciais de três horas) tivesse alcançado tanta repercussão no âmbito
estadual, sendo um curso bem avaliado pelos participantes.
Elias, traça uma boa analogia ao observar a dança para reiterar a noção de figuração ao
remeter-se à mobilidade das figurações que se submetem �aç�
o conjunta dos que a praticam, ou
seja, as relações de interdependência s�
o inseparáveis do equilíbrio das tensões que engendram o
processo de figuraç�
o: “[...] as mesmas figurações podem certamente ser dançadas por diferentes
pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos reciprocamente orientados e dependentes, n�
o há
danças” (ELIAS, 1994, p. 249). É difícil romper com as figurações instituídas, todavia, essas
figurações não são estáticas, elas se alternam, como na dança, em diferentes formas, modos e
ritmos. Desta forma, ações cotidianas podem promover formas de insurgências, sobretudo quando
podemos contar com o trabalho coletivo e com a convergência de ações de engajamento
profissional.
No decorrer dos encontros de formação era possível perceber o quanto muitas das
professoras cursistas se culpabilizavam individual e exclusivamente, pelo fato dos alunos e alunas
não terem alcançado as expectativas definidas para as suas turmas pela Secretaria de Educação.
Essa “culpa” gerava um sentimento intenso de incapacidade, de incompetência e desqualificaç�
o
profissional.
mulheres. Diante deste cenário, decidi retornar à universidade, agora como pesquisadora. Retornar à
Universidade, agora como pesquisadora em um curso de pós-graduação – Mestrado, me ajudou a
tomar distância da minha atividade profissional, tanto como formadora como professora,
possibilitando o exercício de reflexão crítica sobre a prática docente. Foi muito importante poder
contar com a pesquisa. Naquele momento, o retorno à universidade me possibilitou um reencontro
com a docência e com meus saberes e fazeres.
POR QUÊ? PARA QUÊ? COMO? A PROFESSORA E SEU ENCONTRO COM A PESQUISA
Ao iniciar a pesquisa, vivi todo o conflito e angústia que poderia, haja vista que em minha
constituição identitária habitava a aluna, a professora, a formadora e a pesquisadora. Entretanto, a
percepção das contradições nos discursos político-pedagógicos, nos embates metodológicos, as
relações de poder, apesar dos documentos tratarem sobre a formação de um plantel de formadores
da própria rede, o que na realidade acontecia era o pagamento de institutos, e até mesmo de
especialistas independentes, que disputavam os projetos de formação e que desqualificavam todo o
trabalho feito pelos professores que atuavam na rede estadual de ensino.
Depois de ter atuado por 18 anos consecutivos em sala de aula, essas experiências
possibilitaram aprofundamento acerca da organização do trabalho docente e das políticas de
formação continuada destinadas a professores alfabetizadores.
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
As dificuldades vividas durante o Mestrado foram inúmeras. Por um lado, porque não me
afastei das minhas atividades profissionais. Contudo, foram elas que me permitiram elaborar as
análises realizadas a partir da produção das informações que resultaram na dissertação. Por outro
lado, trabalhei com diferentes procedimentos de coletas de informações: análise documental,
entrevistas e filmagens de aulas desenvolvidas pelas professoras participantes da pesquisa, que
fizeram com que o processo de elaboração do trabalho fosse complexo, exaustivo, mas ao mesmo
tempo, muito enriquecedor.
A conclusão do Mestrado em 2007 coincidiu com outro convite, desta vez para atuar na
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), antigo órgão da SEESP. Fui compor a
equipe responsável por implementar na rede estadual um novo Programa de Alfabetização,
denominado Ler e Escrever. O curso de Mestrado contribuiu fortemente para o fortalecimento da
minha formação inicial, sobretudo acerca das questões relativas à formação continuada e que de
certa forma também envolvem a tríade Estado, sociedade e educação.
Esta nova jornada aportou também novas indagações, na mesma medida em que ampliou
significativamente meus horizontes profissionais. Essa experiência na SEE proporcionou uma maior
compreensão da gestão, do planejamento e dos processos de avaliação externa da educação no
sistema de ensino público paulista e suas interseções com a política nacional de educação.
Principalmente, permitiu conhecer as relações entre o trabalho no âmbito da secretaria de educação,
das Diretorias de Ensino e nas escolas, e as formas como a política educacional determinava a
organização do trabalho nestas instâncias repercutindo diretamente no planejamento, na gestão das
escolas estaduais.
Durante este período em que atuei na CENP, tive a oportunidade de acompanhar de perto a
implementação do referido programa, o que possibilitou observar como as políticas educacionais
A tese de Doutorado permitiu ampliar meu olhar acerca do trabalho docente e dos efeitos
das políticas empreendidas a partir dos anos 2000 na rede pública estadual paulista. A pesquisa
corroborou ao que afirma Nóvoa sobre os rumos que a Educação tem trilhado com o:
[...] regresso de ideologias que afirmam a possibilidade de atribuir funções docentes a
pessoas que tenham notório saber de uma dada matéria, como se isso bastasse,
também contribui para o desprestígio da profissão.
A partir do segundo ano do Doutorado, solicitei uma licença sem vencimento, para poder
concluir o curso. Logo que a tese foi defendida, retomei o trabalho na escola, na mesma escola onde
me efetivei em 1989, pois me pareceu necessário retomar o trabalho em sala de aula, justamente
para tentar empreender as insurgências possíveis, em busca de uma educação pública, laica, gratuita
e de qualidade social para todos.
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
Regressar à escola, por um lado, foi uma grata satisfação, poder voltar a conviver com as
crianças dos anos iniciais, rever amigos, antigos alunos, alguns inclusive agora como pais de
alunos, retomar o trabalho docente me impunha novos desafios e me trazia grandes esperanças.
Entretanto, nem tudo foi flores. Muitos ironizavam o fato de, depois de tanto estudo e pesquisa, eu
ter retornado a lecionar no ensino fundamental, nos anos iniciais, como se fosse um demérito. Isso
era compreendido, por alguns pares, como uma forma de fracasso.
Durante um tempo, enfrentei várias indiretas e colegas que ironizavam o meu retorno à sala
de aula. Mas, com o tempo, foi possível reconstruir vínculos com meus pares. Foi possível ir aos
poucos desfazendo alguns equívocos, lançando alguns questionamentos à equipe gestora, propondo
novos caminhos junto com a equipe. A chegada de outros professores, que tinham outras vivências,
como a militância sindical, outros estavam na pós-graduação, esses outros vínculos destes
profissionais também fomentaram um processo de fortalecimento do coletivo. Os momentos
coletivos foram aos poucos se tornando novamente momentos de estudo, de compartilhamento de
experiências, de angústias.
Tive o apoio de muitos colegas e juntos fomos questionando algumas lógicas. Fomos aos
poucos discutindo e revendo alguns fazeres-saberes. Cada vez mais, o espaço para o diálogo foi se
abrindo. No ano em que retornei à escola, a mesma não havia atingido a meta propugnada pela
secretaria no SARESP. Os profissionais (direção, professores e funcionários) ficaram sem a
bonificação por mérito e isso feriu a equipe profundamente. Não pela falta do bônus em si, mas pelo
que isso representava, por toda a desqualificação do trabalho realizado, pela culpabilização que
implicitamente nos era imputada.
A experiência de voltar à escola, sob essas condições, me fez buscar a unidade teórico-
prática, me instigou a lidar com a realidade de forma ainda mais aprofundada. As novas
experiências foram se constituindo em aprendizagens que fomentaram novos saberes e fazeres. A
necessidade de refletir sobre os processos de formação inicial e/ou continuada, visando a analisar
até que ponto estes priorizam o conhecimento como objeto de estudo, pois como afirma Mills
(2009. p. 9):
O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira;
quero saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que
trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício.
A análise de Tardif, neste momento, ganhou ainda mais concretude em nosso cotidiano
escolar, percebíamos de forma cada vez mais nítida como o campo da formação de professores é
mesmo um fenômeno complexo e multifacetado, diante de saberes tão plurais e heterogêneos:
Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais, compósitos,
heterogêneos, pois trazem à tona, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e
manifestações do saber-fazer e do saber-ser bastante diversificados e provenientes de
fontes variadas, as quais podemos supor também que sejam de natureza diferente
(TARDIF, 2003, p. 61).
Outra dimensão importante que foi uma grande lição aprendida, que sigo perseguindo, é a
questão do conhecimento didático-metodológico, tanto para a dimensão da minha prática
profissional, quanto como campo de conhecimento. Mais do que aprofundar meus conhecimentos
em metodologias e práticas de ensino, tenho percebido o quanto retomar o conhecimento como um
grande objeto agregador e transformador, aliado ao engajamento na luta pela Educação como um
Direito de todos(as), pode ser a melhor forma de insurgência na busca pela qualidade social da
educação.
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
trabalho coletivo. Essa clivagem instituiu diferentes categorias de professores entre os não efetivos
estabelecendo diferentes formas de contratação, que faz com que tenhamos, além das diferentes
formas de contratação precarizadas, as condições de trabalho precárias em que muitos docentes
efetivos se encontram, dentro da própria carreira. Além disso, a desvalorização do Magistério.
Dessa forma, vão se forjando ainda mais clivagens, entre os efetivos e contratados, entre
professores iniciantes e os “mais experientes”, entre os que trabalham em escolas centrais e os que
trabalham nas periféricas, entre os que trabalham em escolas de tempo integral e os que trabalham
em escolas de tempo reduzido, em entre os que alfabetizam e os demais, pedagogos e especialistas,
etc. Conforme afirma Rigolon (2013, p. 110):
Há os professores estabelecidos (os efetivos) e os outsiders (n�
o efetivos),
instaurando-se, assim, entre esses profissionais, uma clivagem remarcada pela falta de
concursos e contratações de temporários, devido �
s diferenciações nas formas de
contrataç�
o.
Assim, poderia afirmar, utilizando a teoria elisiana, que, ao longo de mais de três décadas,
na maior parte do tempo, estive aos lados dos outsiders.
Neste momento em que temos de lidar com tantas investidas contra a Educação, como
Escola Sem Partido, com moralismo conservador, ausência da ética, desqualificação do campo
científico, patrimonialismo e gerencialismo, temos sentido mais fortemente os efeitos da
precariedade subjetiva que segundo Dani�
le Linhart, socióloga francesa do trabalho:
�o sentimento de n�
o ter ajuda em caso de problemas graves de trabalho, nem do lado
dos superiores hierárquicos [...] nem do lado dos coletivos de trabalho que se
esgarçaram com a individualizaç�
osistemática da gest�
o dos assalariados e o estímulo
�concorrência entre eles. �um sentimento de isolamento e abandono (LINHART,
2009, p. 3).
Uma das formas de seguirmos em frente, portanto, requer de nós associar ao exercício da
denúncia das coisas que não vão bem, a coragem para ousar fazer coisas novas, seguir acreditando
que é possível lutar por uma sociedade menos desigual, mais justa por meio da educação pública. E
no cenário atual, na base da insurgência, está a disponibilidade para trabalhar coletivamente, para
ver e ouvir os outros, apesar de todo o movimento que incita e valoriza o individualismo e a
competitividade. Neste sentido, que possamos juntos, como categoria profissional, seguir buscando
novas formas de insurgências.
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS
REFERÊNCIAS
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Margareth Castro e Marilza Regattieri). Brasília: [s.n.], 2009.
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ENGUITA, Mariano. A ambiguidade da docência: entre o profissionalismo e a proletarizaç� �o,
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FREITAS, Marcos Cezar de; BICCAS, Maurilane de Souza. História social da Educação no Brasil (1926-1996). São
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SEGNINI, Liliana (org.). Organização, trabalho e gênero. São Paulo: Senac, 2007. p. 277-312.
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166, 2017.
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alfabetizadores. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Unicamp, Universidade de Campinas,
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SAMPAIO, Maria das Mercês Ferreira. O cotidiano escolar face às políticas educacionais. Araraquara: JM Editora,
2002.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho do novo capitalismo. Rio de Janeiro:
Record, 2006.
TARDIF, Maurice. Saberes docentes & formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2003.
VELHO, G. A grande cidade brasileira: sobre heterogeneidade e diversidades culturais. Revista do Serviço do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, [s.l.], 1986.
Notas de fim
i
Nesta obra, Richard Sennett, sociólogo e historiador americano, nos desafia a analisar se a flexibilização do
capitalismo moderno oferece condições melhores condições para organização do trabalho ou se é apenas uma nova
forma de opressão. Para tanto, o autor apresenta uma série de reflexões acerca das novas condições de trabalho que se
impõem, vinculadas ao atual modelo capitalista e pautadas na lógica neoliberal.
ii
O Projeto Inovações no Ciclo Básico (IEB), criado em 1983 passou a vigorar na rede em 1984, visava, segundo a
Seduc/SP, melhorar a qualidade do sistema educacional do Estado. Porém fora planejado, a princípio, para atender
apenas às duas séries iniciais do Ensino Fundamental, 1ª e 2ª séries, conforme denominação à época, com o intuito de
diminuir tanto a repetência como a evasão escolar. Esse projeto abrangia apenas a grande São Paulo, priorizando
escolas em região de baixa renda. Teve o financiamento do Banco Mundial e previa construção e reformas dos prédios
das unidades escolares públicas estaduais, além de oferecer capacitação às equipes de recursos humanos, aquisição de
materiais didáticos e escolares e desenvolver também projetos destinados aos municípios de fomento à Educação
Infantil. O recurso utilizado na implementação desse projeto e concedido pelo Banco Mundial foi da ordem de US$ 245
milhões. O IEB foi alterado em 1995 por Neubauer, que instaurou, tanto nos objetivos quanto na estrutura do programa,
novas medidas e modificações, que ampliaram as atividades financiadas pelo Banco Mundial.
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR:
INTERAÇÕES POSSÍVEIS
A narrativa que ora apresento têm o propósito de tecer fios de significado quando entram em
cena, para a construção de bases curriculares para o Ensino Fundamental, no âmbito municipal, a
Escola, o Movimento Social, a Universidade e as equipes de formadores de uma Secretaria de
Educação.
Trata-se de uma tessitura que vai se delineando, para mim, no momento em que, no
exercício de minha participação na gestão pública municipal da Secretaria de Educação de Juiz de
Fora, passo a viver intensamente um processo de reconstrução curricular motivado pelo movimento
para a “implementação” da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Para trazer tal movimento
de interação entre Instituições e Organizações distintas, faz-se necessário retomar a minha
passagem por uma escola pública municipal, onde vivi intensamente a construção de um Projeto
Político-Pedagógico e a experiência com práticas escolares pautadas na valorização da diversidade,
da cultura popular e da promoção da igualdade étnico-raciali.
Desde o final dos anos 1990, a Escola Municipal José Calil Ahouagi iniciou um trabalho
pedagógico articulado com sua equipe de professores, comunidades do entorno e movimento social
(Movimento Negro) envolvendo ações e reflexões em torno de temáticas que abordavam as relações
étnico-raciais. Percepções em torno do ambiente escolar nos levavam a supor que muitas crianças
de ascendência negra negavam sua origem. Enquanto algumas traziam narrativas sobre uma “avó
italiana” que morava, quase sempre, num lugar distante, outras viviam atormentadas pelas
discriminações e preconceitos que sofriam na escola, como também fora dela, motivadas pelos
traços fenotípicos característicos de sua herança afro-brasileira. A grande maioria se calava frente a
situações que as expunha ao preconceito, à discriminação e ao racismo, mas se ressentia. Foi
quando enfrentar a questão nos pareceu necessário para a construção de um tempo/espaço escolar
mais justo e promovedor de equidade nas relações étnico-raciais.
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS
Em minha pesquisa de Doutorado, optei por buscar a Escola José Calil como campo de
investigação, tendo como foco os movimentos de Memória impactados pela documentação das
práticas escolares e, de maneira mais refinada, buscar os modos de lembrar, de narrar e de ser de um
grupo de crianças do terceiro ano do Ensino Fundamental, com entrada na escola desde a Educação
Infantil.iv
Para além da especificidade dos objetos da cultura e das culturas infantis projetadas nos
espaços de brincar naquela escola, os enredos puderam ser interpretados como alegorias, e,
portanto, como conteúdos que muitas vezes se referiam a um cotidiano que envolvia diferentes
temporalidades, o que acabou apontando questões que se tornaram plausíveis para pensar uma
cultura de escola possível. Como aqueles enredos ali constituídos, na materialidade dos objetos que
interagiram com as crianças no contexto da pesquisa, poderiam se tornar potentes para uma
experiência histórica? Como pensar a cultura daquela escola em relação às práticas de memória
vivenciadas? Como relacionar outras culturas de escola e potencializar maneiras de repensar
culturas escolares, currículos e programas?
Tais questões se tornaram uma inquietação para mim, bem como para aquela equipe escolar
desde o término da pesquisa. A relação com a Universidade tornou-se mais forte e potente, uma vez
que passamos a receber muitos pesquisadores interessados em investigar aquele espaço de
experiências. Mas uma pesquisadora em particular, a professora Sonia Miranda, orientadora
daquela tese e, posteriormente de outros professores pesquisadores da mesma escola, foi
fundamental para a ampliação das questões acima referidas. Isto porque, para além das parcerias
constituídas no âmbito da pesquisa em torno das práticas escolares que tinham interface com o
Ensino de História, a professora coordenou a equipe de História na reorganização curricular que a
rede municipal propunha nos anos de 2010 a 2012.
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS
Aberturas de diálogos com professores de uma rede, disparados a partir de uma experiência
que enfrentou o desafio de se efetivar como educação básica tal como propõe Jamil Cury, como
“um momento privilegiado em que a igualdade cruza com a equidade”, como também o de tomar
para si a “formalização legal do atendimento a determinados grupos sociais, como as pessoas
portadoras de necessidades educacionais especiais, como os afrodescendentes, que devem ser
sujeitos de uma desconstrução de estereótipos, preconceitos e discriminações”. Agregando à
construção de conhecimentos significativos, a escola também tem papel socializador (CURY, 2008,
p. 300-301).
Faz-se necessário buscar o fio condutor desse processo amplo de construção curricular,
porque ele acaba se tornando importante no contexto da política educacional da rede municipal de
Juiz de Fora, no tocante, principalmente, à proposta curricular para o Ensino de História. Isto
porque, frente a sua experiência educacional inovadora na busca de metodologias importantes para
promover construções em torno da História e da Memória, a Escola José Calil Ahouagi passou a
desempenhar um papel importante na comunidade educacional quando se expõe relatando e
compartilhando suas práticas e bem como as suas estratégias de mudança curricular na escola. Ela
contribuiu no passado e ainda hoje, com reflexões acerca de perspectivas curriculares e práticas que
garantem a valorização das diferenças e da origem étnico-racial, da cultura popular e das afirmações
de identidades.
O desenho de uma Política Pública se mostra para além dos gabinetes das gestões públicas.
Ele nasce de uma confluência de interesses e necessidades que orientam as opções do Estado, e “são
expressos pelos atores que compõem o todo social”. Nascem, portanto, de processos de “escolhas
sucessivas, que envolvem confrontos, atritos, pressões e contrapressões: nesse processo são muitas
as forças envolvidas” (ABRANCHES, 1987, p. 11). Por isto, as escolhas sobre a elaboração e a
adesão a determinadas políticas educacionais precisa ser pensada, articulada, respeitosa frente ao
trabalho coletivo de profissionais sérios e comprometidos com a Educação.
O texto da Proposta Curricular da rede municipal de Juiz de Fora traz, logo de início, uma
questão cara ao Ensino de História: “em que reside o caráter formativo da História, na erudição
formativa ou numa educação histórica baseada nos nexos possíveis que podem ser estabelecidos
entre o procedimento histórico e o saber escolar?”
No campo do conhecimento histórico, as relações com o passado são importantes para uma
experiência histórica voltada para a compreensão de passado aberto, passível de ressignificações no
presente, e, ao mesmo tempo interpretável do ponto de vista dos sentidos que lá se constituíram.
Enfrentar essa maneira de interpretar um passado, tomado como aberto, requer pensar que os
processos imaginativos que dão voz às inferências e às indagações sobre as fontes nas suas relações
com o passado são válidos na composição dos procedimentos e operações históricas.
Nesse sentido, encenar Mynemosine com objetos e/ou artefatos, quer seja no espaço privado
e/ou público, como a instituição museu e/ou a escola, “tornando diáfana a solidez de seus
testemunhos, pondo em suspensão as histórias, os objetos e palavras de sentido único” (PEREIRA;
SIMAN, 2009, p. 282), pode significar um modo de ensinar sobre as versões da verdade,
necessárias para romper com o paradigma da História única. Implica imaginação, do mesmo modo
que implica o colocar-se no lugar do outro. Desse modo, as maneiras de olhar para o mundo se
ampliam nas relações de alteridade.
promovedores de aprendizagens históricas, uma vez que o cotidiano pode proporcionar questões
instigadoras para a construção de diferentes modos de olhar para a contemporaneidade em relação
ao passado, por exemplo. Evidenciar tais práticas pode significar uma mudança significativa no
olhar das crianças e dos jovens para o que acontece no cotidiano em espaços distintos. Tal
procedimento pode ser estruturante para o “desenvolvimento da capacidade de pensar
historicamente” (MIRANDA; ALMEIDA, 2012, p. 51).
Quando Ricouer (2010, p. 182) se refere à marcação temporal que define o tempo de
calendário, ele indica que mesmo ela sendo “apoiada nos fenômenos astronômicos que dão sentido
à noção de tempo físico, o princípio da divisão do tempo do calendário escapa a física e a
astronomia”. A percepção da mudança histórica a partir de um ponto do contínuo histórico (ponto
axial) está sujeito a uma fenomenologia do presente, para qual há noção de existir um ontem e
existir um amanhã. Sem isto não seria possível dar o “menor sentido à ideia de um acontecimento
novo que rompe com uma era anterior e inaugura um curso diferente de tudo o que precedeu”
(RICOUER, 2010, p. 182). Tal perspectiva seria fundamental para a noção de tempo histórico e a
isto se acrescenta o entendimento da duração que está vinculada ao pensamento matemático no que
diz respeito à construção da noção de número. Esta habilidade, que não é somente histórica,
“permite-nos olhar não só para o tempo presente, mas também para tempos outros, já vividos, e
pensar em suas durações e ritmos comparativamente” (MIRANDA; ALMEIDA, 2012, p. 52).
afetiva, múltipla e vulnerável” assume papel importante (GALZERANI, 2008, p. 227). Sobre isto a
professora denuncia as amarras culturais, presentes tanto nos círculos acadêmicos quanto nos
escolares que instigam propostas de educação histórica voltada para a “imagem da História como
senhora absoluta do passado [...] centrada na racionalidade técnica” (GALZERANI, 2008, p. 228-
229).
Uma consideração sobre a Memória, como uma entre as demais marcas do humano, indica a
organização e a movimentação de suas configurações na relação direta com a cultura (MIRANDA;
ALMEIDA, 2010, p. 71). Isto crava as relações de Memória no curso das experiências vividas. Na
vida cotidiana, nos processos de linguagem, sociais e coletivos, ela se consubstancia. Nesse sentido,
os movimentos de seleção, preservação e/ou descarte daquilo que se pretende guardar, o
acontecimento das lembranças espontâneas, que eclodem ao acaso, como também o das lembranças,
pautadas no reconhecimento, são dinâmicas que potencializam as produções de sentidos que pulsam
no presente em direção ao passado vivido e/ou narrado por outros. Daí o aspecto da alteridade que
se transforma conforme a interação com os afetos. Da mesma forma, na percepção dessas
dinâmicas, importa perceber as relações de poder entranhadas nas manifestações da memória
coletiva quando se trata de fazer perdurar algumas práticas em detrimento de outras. A luta pela
hegemonia de determinadas configurações de memória levada ao extremo corrobora para práticas
intimistas, podendo disseminar um dever de memória que se fortalece nas artimanhas dos abusos do
esquecimento, e de certa forma, nos abusos da memória (RICOEUR, 2007, p. 508-509).
Saindo desse panorama mais abrangente e levando as práticas de memória para a escola, a
opção dos autores foi a de apresentar três formas de abordagem para a efetivação da educação para
a compreensão da memória, quais sejam: memória e narrativa; memória e identidade; memória e
objetos.
Desse modo, a releitura dos objetos da cultura se abre como uma perspectiva de reescrita de
uma história que congrega a produção de todos os que dela participam, transformando o sonho em
despertar, conforme diria Walter Benjamin. O despertar enfraquece e dilui a dimensão mítica que
prepondera na perspectiva factual e triunfalista de História. Considerá-lo como procedimento apura
o olhar para os elementos minúsculos do cotidiano na montagem da História, que, em migalhas,
inclui o vencedor e o vencido na congregação do humano, assim como congrega o fluxo insondável
de todas as coisas (BENJAMIN, 2007, p. 501, [N, 1ª, 3].
O giro ao qual a professora faz referência tomou nosso olhar quando da exigência de uma
“implementação” que sempre nos pareceu aligeirada, uma vez que para além de objetivos de ensino
é preciso levar em conta os modos como crianças e adolescentes constroem conhecimentos: que
referências evocam? Como se posicionam frente ao conhecimento novo? Como processam suas
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS
aprendizagens? Nesse sentido, o que menos ajuda é o parâmetro de conteúdos prescritivos como
uma lista a ser seguida.
Quando constituímos um grupo específico de trabalho para análise dos dois documentos em
pauta: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Proposta Curricular da Rede Municipal de
Juiz de Fora, com foco na História, fizemos a opção pela leitura dos dois documentos buscando
encontrar pontos em comum e/ou discrepantes entre eles. Logo percebemos que a diferença entre as
duas proposições não permitia aproximações. Então, partimos para elaborar um texto orientador,
apresentando para a rede as nossas perspectivas de análise registrando, de modo sintético, a nossa
posição frente a um documento e outro. Elaboramos, paralelamente, algumas tabelas que trouxeram
análises sobre as proposições da BNCC. Propusemos, em seguida, alternativas para o trabalho
metodológico sob a orientação dos eixos curriculares conforme a Proposta Curricular de História da
Rede Municipal de Juiz de Fora. Procuramos colocar em foco a proposta curricular da rede e
buscamos, no paralelismo com a BNCC, uma linha de ação que favorecesse pensar as culturas e os
sujeitos nas suas diferenças, bem como nos seus modos singulares de inserção nos tempos e nos
espaços da construção históricav.
Ousamos discordar das proposições do BNCC e do formato que ela se apresenta aos
professores. Para melhor expor nossa avaliação, procuramos organizar em forma de tópicos, os
pontos de vista que nos pareceram relevantes levando em conta as pesquisas e as proposições no
campo do Ensino História.
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS
distintas. A outra prática, intitulada “Sensíveis olhares para um violeiro cantador. Movimentos de
Pesquisa e Educação para compreender a Cidade”, traz a transformação de uma prática escolar que
abordava o tema da Cidade na data de comemoração de seu aniversário. A partir de um jornal que
trazia em uma de suas reportagens alguns “personagens do cotidiano da cidade de Juiz de Fora”, um
planejamento voltado para algumas habilidades e para as possibilidades das crianças construírem
inferências a partir de fontes (o jornal) que informam sobre a realidade tomou forma. Para além de
uma concepção de História pautada na valorização dos “Lugares de Memória”, as crianças, sob a
orientação de sua professora de quarto ano do Ensino Fundamental, puderam rever pontos de vista
sobre as pessoas que ocupam o cotidiano das cidades e perceber diferentes padrões de vida e
comportamentos distintos, resultantes de processos culturais diferentes. Nosso intuito foi o de
possibilitar a análise das práticas tendo como referência a perspectiva metodológica da Proposta
Curricular de História da Rede Municipal de Juiz de Foravi.
Fúlvia Rosemberg (2003) nos fala sobre a maldição de Sísifo como metáfora para as
políticas nacionais de educação infantil analisadas por ela desde os anos 1980. Podemos nos valer
da sua habilidade em buscar afinidades eletivas na linguagem estética para abordar as políticas
educacionais. Não deixar que forças contrárias façam despencar “morro abaixo” construções
históricas nos campos disciplinares, na defesa da ética e de uma escola de educação básica que de
fato promova o entrecruzamento entre igualdade e equidade. Nossa opção é, num esforço coletivo,
levar a política pública de revisão curricular para o topo, compreendendo que as escolhas de
determinadas perspectivas teóricas e metodológicas precisam se colocar, para os professores, em
movimentos de diálogo e de construções coletivas.
REFERÊNCIAS
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ABREU, Martha. Parecer sobre a BNCC. Componente Curricular História/ dezembro 2015. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/Martha_Abreu.pdf. Acesso em: jan. 2019.
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no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Brasília, DF:
[s.n.], jun. 2005.
BRASIL. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Disponível em: www.leidireto.com.br. Acesso em: 22 jan. 2020.
CURY, Carlos Roberto Jamil. A Educação Básica como direito. Cadernos de Pesquisa, [s.l.], v. 38, n. 134, maio/ago.
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SELIGMANN-SILVA, Márcio. Ler o livro de mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica literária. São Paulo:
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS
Notas de fim
i
ESCOLA MUNICIPAL JOSÉ CALIL AHOUAGI. Revendo a caminhada: uma forma de construir o Projeto
Político-Pedagógico da escola. In: PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO. Juiz de Fora, nov. 2006. [Mimeografado].
Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
ii
Andréia Martins
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
Com uma representação política cada vez maior no Estado Brasileiro de mandatários que se
identificam como evangélicos, tem-se percebido mais a presença de valores religiosos, sobretudo
cristãos dentro da esfera política que governa o Brasil. É importante reafirmamos que a
Constituição Federal Brasileira de 1988 afirma que o Estado Brasileiro é laico. Segundo o
dicionário Larrousse Cultural (1999): laicidade é a “concepção e organização da sociedade
fundadas na separação entre Igreja e Estado e que excluem as Igrejas do exercício de todo o poder
político e administrativo e, em especial, da organização do ensino” (LARROUSSE CULTURAL,
1999, p. 556).
com as religiões, dependendo das tradições políticas e sociais e culturais dos países, uma sociedade
pode ser secular e normativamente laica.
A palavra secular para o cristianismo tem uma acepção negativa, significando “momento
presente”, este século, fazendo contraponto à eternidade, ao futuro, que é a ideia da Igreja, para a
mesma vivemos para o futuro, para o reino de Deus. A palavra secular é usada para indicar o
mundo dos pagãos, e para definir a degradação humana em seu afastamento do divino (CATROGA,
2010).
Nas pesquisas nas áreas de ciências da religião e ensino religioso, a palavra secularização
vem sempre associada à palavra laicidade: para Catroga (2010, p. 273), isso se dá “porque esta
terminologia, nasceu primordialmente, no interior da religião judaico-cristã”. É necessário entender
a diferença existente entre estes dois conceitos. Há três entendimentos para a palavra secularização:
[...] a que se refere ao distanciamento dos atores sociais em face das tradições
religiosas; a que conota a tendência moderna para se privilegiar a pertença ao mundo;
e a que traduz o processo de diferenciação estrutural e funcional das instituições, a que
se chamou laicização (CATROGA, 2010, p. 274).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A laicidade está mais associada aos aspectos institucionais e políticos, sempre que nos
referimos ao laico estamos nos reportando às instituições. Um Estado laico é um lugar público que
não possui referência à fé religiosa, um espaço que se utiliza da racionalidade científica. E a
discussão da escola enquanto espaço laicizador afirma-se como uma prioridade do Estado Moderno:
O processo laicizador afirmar-se-á, com prioridade, no terreno da educação e do
ensino, sinal inequívoco de que ele visava separar as Igrejas da Escola e do Estado,
também o fazia para socializar e interiorizar ideias, valores e expectativas. Daí que as
suas facetas jurídico-políticas apareçam sobre determinadas, em última análise, por
finalidades de matriz mundividencial (CATROGA, 2010, p. 275).
O princípio do Estado Brasileiro afirma-se por este ser laico, sem interferência de doutrinas
religiosas, e a educação escolar pública deverá se basear no conceito de laicidade em seu ensino.
Temos um grande desafio de reafirmar este princípio no cenário atual brasileiro, em que temos uma
Câmara Federal com 512 deputados, sendo que destes 84 que representam de maneira direta os
interesses dos evangélicos, valores que se fundamentam em uma tradição judaico-cristã, que
envolvem diversas linhas religiosas como católicos, protestantes, pentecostais, neopentecostais,
entre outras.
Como podemos ler na citação acima, a Lei da Instrução Pública previa que os professores
deveriam ensinar nas escolas públicas os princípios da moral cristã, e, especificamente, a doutrina
da religião católica apostólica romana, dentro dos currículos das escolas públicas brasileiras. Esta
situação permaneceu até a promulgação da segunda Constituição em 1891, após a Proclamação da
República em 1989. A referida Constituição estabeleceu que o Brasil era um país laico, que não
possuía uma religião nacional, separando de forma definitiva a relação entre Igreja e Estado
(MARTINS, 2013).
O decreto realizado por Francisco Campos foi resultado de pressões de décadas anteriores,
como exemplo, podemos citar a Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme em 1926 e as reformas
realizadas, em Minas Gerais, por Antônio Carlos, que afirmava que “a fonte de todos os males do
país seria a “ignorância religiosa” e o remédio estaria na instrução religiosa da população” (BAHIA
HORTA, 2001, p. 148).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Francisco Campos, na época deputado federal por Minas Gerais, procurou difundir a ideia
da necessidade da Educação Moral e Cívica via Ensino Religioso:
Certamente a educação moral e cívica pode concorrer para a formação e
esclarecimento da consciência nacional. Mas quais os fundamentos dessa educação
moral, no meio da anarquia das doutrinas contemporâneas e na desorientação geral das
inteligências, sem pontos de mira ou de referência por que orientar-se ou dirigir-se?
Só a religião pode oferecer ao espírito pontos de apoio e motivos e quadros de ação
moral regulada e eficiente. A educação moral não é mais do que um subproduto da
educação religiosa. A educação moral resulta da cultura dos sentimentos de veneração,
de admiração, de entusiasmo, de reconhecimento e de temos, que só a religião, que
está na raiz do espírito, pode alinhar, nutrir e aprimorar. O de que precisamos, se
precisarmos de educação moral, como não se contesta, é de educação religiosa
(CAMPOS, 1925, p. 1).
Campos foi muito criticado por este discurso, e respondeu afirmando que “a crise pela qual
passava o Brasil era que ao Estado brasileiro faltava uma doutrina na qual fundamentar e legitimar a
sua autoridade, e esta doutrina era a católica” (BAHIA HORTA, 2001, p. 149). Com este ponto de
vista, que a doutrina católica seria a responsável por alinhar o comportamento da sociedade
brasileira, que a luta para a inserção do Ensino Religioso nas escolas públicas era a “salvação” do
país. Não é de se estranhar que uma de suas primeiras ações como ministro da educação tenha sido
a inserção do Ensino Religioso nas escolas primárias brasileiras, já que, como deputado federal não
conseguiu em 1926.
Como podemos ler ao longo do texto, não é de hoje que os governantes brasileiros buscam
legislar para impor a crença de um determinado grupo religioso majoritário. Em uma busca
recorrente de governar a mentalidade da nação, trazendo um conceito de religião, fé e padrão
comportamental único. Foucault (1979) descreve a legislação como:
Razão do Estado, entendida não só no sentido pejorativo e negativo que hoje lhe é
dado (ligado à infração dos princípios do direito, da equidade ou da humanidade por
interesse exclusivo do Estado), mas no sentido positivo e pleno: o Estado se governa
segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis
A relação de força entre Igreja e Estado na história brasileira se fez e faz presente como
afirmado anteriormente, se construindo e reconstruindo de maneiras diferentes ao longo do tempo.
A busca de se fazer presente na arena educacional é uma forma da Igreja assegurar o seu
proselitismo religioso em uma instituição que funciona como um dos aparelhos ideológicos do
Estado. Esta questão sempre foi motivo de muitas discussões no seio da sociedade e revela que é
muito mais do que apenas a discussão sobre uma disciplina escolar. Ela perpassa por uma forma de
controle social pelas instituições políticas e religiosas.
A religião nas escolas, impostas como norma legislativa, é uma das formas de governo das
almas, dos indivíduos que compõem a sociedade. O governo de almas traz algumas “doutrinas”
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
confessionais utilizadas pelo Estado para inculcar condutas sociais nos indivíduos, como os valores
morais para as famílias, como afirma Foucault (1979).
A governamentalidade nasceu a partir de um modelo arcaico, o pastoral cristão,
apoiou-se em seguida em técnicas diplomático-militar e finalmente como esta
governamentalidade só pode adquirir suas dimensões atuais graças a uma série de
instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da arte de governo
(FOUCAULT, 1979, p. 293).
O Ensino Religioso faz parte de uma tradição na história da educação escolar brasileira,
quando utilizo o conceito de tradição me refiro ao conjunto de sistemas simbólicos que são
passados de geração a geração, ela possui um caráter repetitivo, mas é dinâmica e vai se
organizando no mundo dentro de cada tempo histórico.
Hobsbawm e Ranger (2002) observaram que toda tradição é uma invenção que surgiu em
algum lugar do passado, e ao longo do tempo vai passando por alterações, as tradições estão sempre
mudando, de acordo com as relações sociais e as mudanças no mundo, elas vão se reinventando, o
que as mantém como tradicional é a integridade de sua resistência, sua continuidade frente aos
contratempos e às atualizações da modernidade.
Nesse sentido, afirmamos que o Ensino Religioso sempre fez parte da tradição escolar
brasileira, dos conteúdos ensinados na escola, desde o século XVI, se afirmando em 1827 na
primeira lei da instrução pública, tendo como objetivo da disciplina, história sagrada, a formação
moral da sociedade. Ao retornar como disciplina escolar em 1931 há uma reinvenção da tradição,
colocando-o agora enquanto disciplina escolar, com conteúdo específico, objetivos de formação
dentro do currículo escolar, nesse momento ela volta com o mesmo intuito do século anterior: a
formação moral da população.
Luiz Antônio Cunha (2014), em seu texto “Hegemonia e confronto na produção da segunda
LDB: o Ensino Religioso nas escolas públicas” apresenta como ocorreu o posicionamento dos
grupos políticos ao longo dos oito anos que antecederam a publicação da Lei de Diretrizes e Bases
Na primeira redação podemos entender que o Ensino Religioso é colocado como uma
disciplina dentro dos currículos escolares, do ensino fundamental, há uma questão aí importante de
ser entendida, passa a ser obrigatório para a escola a oferta do ensino religioso, e continua sendo
facultativo para os alunos e alunas, e deve ser ministrado de acordo com as preferências religiosas
da criança e da família, chama a atenção a questão referente aos custos do mesmo, pois a lei afirma
que este não pode causar ônus para o Estado. É muito confuso de se entender, como a lei coloca
uma disciplina escolar obrigatória sem pensar em uma formação docente e em pagamento por este
trabalho?
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Ao lermos o artigo 33, é evidente a pressão da Igreja Católica e uma parcial vitória, e o
ponto de vista dos legisladores contrários ao trazer a questão que a disciplina não poderia exercer o
proselitismo religioso, que também é uma parcial vitória, mas com a falta de objetividade e clareza
do texto os dois grupos saíram perdendo, pois até hoje no cotidiano das escolas públicas a disciplina
não se efetivou.
Essa foi a primeira vez que o ER entrou de forma efetiva nos currículos escolares
brasileiros, normatizado pelo legislativo. Até 2015, nunca se tinha colocado em diretrizes
curriculares nacionais conhecimentos específicos para serem ensinados nas escolas para o ER. Foi
uma surpresa quando saiu a primeira versão da BNCC e constatamos que se fazia presente os
conteúdos para esta disciplina. Cunha (2016) faz esta discussão de maneira profunda, apresentando
os atores sociais envolvidos neste processo de construção e efetivação do ER na BNCC.
Foi uma vitória dos movimentos religiosos e dos grupos políticos que defendem a Frente
Parlamentar Evangélica inserir na BNCC o Ensino Religioso como disciplina escolar, definindo
como em outras disciplinas a organização em unidades temáticas, objetos de conhecimento e
habilidades. Vitória esta dos campos políticos e religiosos, mas fica uma indagação: E para a
educação escolar? Como isto irá se efetivar? É realmente uma vitória?
Para a implementação de uma disciplina escolar, faz-se necessário pensar em primeiro lugar
na formação de professores. Quem irá ministrar esta disciplina? Qual será a formação solicitada?
Quem pagará esses professores? Como irão compor os horários escolares? Quantas horas-aulas por
semana? São muitas perguntas, e até o momento não temos resposta.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
educação escolar pública como laica, em que as interferências religiosas não devem se fazer
presentes.
Finalizo estas reflexões reafirmando a luta por uma escola pública, gratuita e laica, dentro de
um estado laico. Temos um grande desafio hoje no Brasil com um governo de direita, que se diz
liberal na economia e conservador nos costumes, que tem se amparado na forte Frente Parlamentar
Evangélica na Câmara e no Congresso para votar ou barrar direitos essenciais ao povo. Se no
campo do estado e da religião experienciamos todas estas questões, na educação escolar precisamos
estar cientes e resistentes em nosso propósito de efetivarmos uma escola para todos, e para isso é
fundamental que esta tenha qualidade, que seja gratuita e laica.
REFERÊNCIAS
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CATROGA, Fernando. Entre deuses e Césares: secularização, laicidade e religião civil: uma perspectiva histórica. 2.
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CURY, Carlos R. Jamil. Ideologia e educação brasileira: católicos e liberais. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores
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CURY, Carlos R. Jamil. A educação na revisão constitucional de 1925-1926. Bragança Paulista: EDUSF, 1996.
CURY, Carlos R. Jamil. A educação como desafio na ordem jurídica. In: LOPES, Eliane Marta T., FARIA F., Luciano
Mendes, VEIGA, Cynthia G. (orgs.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p. 567-584.
HILSDORF, Maria Lúcia Spedo. História da educação brasileira: leituras. São Paulo: Thomson Editora, 2003.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2002.
HORTA, José Silvério Baía. O hino, o sermão e a ordem do dia; regime autoritário e a educação no Brasil. Rio de
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LARROUSE CULTURAL. Nova Enciclopédia. São Paulo: Nova cultura Ltda, 1999.
MARTINS, A.O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: um olhar histórico para uma questão
contemporânea. In: TEIXEIRA, Rosiley; BIOTO-CAVALCANTI, P. A. (orgs.). História da Educação Brasileira. 1.
ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p. 1-200.
Notas de fim
i
Este texto constitui parte da pesquisa de Doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em
2016, a tese teve como título “O ensino religioso nas escolas públicas paulistas: relações entre Estado, Igreja e
Educação (1931-1961)”. Contou com financiamento da Capes. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/
handle/10519/. Acesso em: 29 jan. 2020.
256
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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA
NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE
CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE
INTRODUÇÃO
Formados a partir das lutas contra a escravidão e por liberdade, os quilombos constituíram-
se em grupos de resistência negra espalhados em todo o território nacional. Segundo Ratts e
Damascena (2008, p. 51), “para melhor compreender a participação do segmento negro na
formação brasileira, três dimensões são de fundamental importância: a histórica, a memória e as
práticas”. Essas dimensões foram historicamente silenciadas e os quilombolas e suas lutas
invisibilizadas.
Mesmo após o reconhecimento formal dos quilombos como sujeitos de direitos pela
Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro ainda não respondeu o que determinou a Carta
Magna. Um exemplo disso é que até hoje não se sabe ao certo quantos quilombolas são. O censo
demográfico de 2021 tem como expectativa saber efetivamente quantos quilombos e os
quilombolas existem no Brasil. Não se sabe ao certo onde vivem, suas práticas, memórias,
patrimônios materiais e imateriais e as demandas por políticas públicas que os quilombolas
demandam. Os números atuais de quilombos apresentam poucos dados e informações capazes de se
planejar políticas públicas mais efetivasi.
Assim, as décadas de luta organizada por meio de várias estratégias pelos segmentos do
Movimento Negro por direitos, levou à constituição de organizações negras, que antes, durante e
pós a abolição foram as ferramentas de lutas antirracistas cuja resposta do Estado brasileiro deveria
ser a consolidação de políticas públicas.
Ocorre que no Brasil algumas questões ainda não foram tratadas ou, quando tratadas, foram
pouco valorizadas, como é o caso da vida organizacional e as práticas dos/nos quilombos. Esses
fatos têm se tornado um dos empecilhos para os quilombolas acessarem direitos. Isso pode nos
levar a algumas indagações: quais são as razões do silêncio em relação à existência dos quilombos e
seus processos educativos e organizativos? Por que o reconhecimento dos direitos dos quilombolas
ainda é tão conflitoso, inclusive nas instituições públicas?
Mesmo que aprofundar essa questão não seja uma meta deste texto, vale refletir e identificar
pontos e tensões no debate para entender esses sujeitos, a partir das suas próprias perspectivas e
processos educativos. Esses elementos podem ser usados para construir um currículo específico,
situações didáticas que possibilitam outros caminhos para o ensino e a aprendizagem e, ao mesmo
tempo, fortalecer a identidade e a territorialidade quilombola.
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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE
Isso nos mostra que a CF/88, ao reconhecer no seu texto constitucional a expressão
“comunidades remanescentes de quilombos”ii, trouxe desafios mais profundos do que já se
mensurou na perspectiva de formular políticas públicas. No campo educacional, residem grande
parte dos desafios. Esses desafios estendem-se por diversos campos e perspectivas. Como fazer
educação nos e com os quilombos que promova, valorize e fortaleça a identidade quilombola a
partir de seus territórios, tendo-os como espaços didáticos constituídos e constituintes de saberes e
fazeres e modos de vida, valorizem os patrimônios culturais materiais e imateriaisiiiainda
invisibilizados e uma forma de territorializar conhecimentos.
O Conselho Nacional de Educação (CNE), demandado pelos quilombolas por meio da sua
organização representativa, CONAQv na CONAEvi de 2010, elaborou e publicou a Resolução 08 do
CNE que, em 20 de novembro de 2012 estabeleceu as Diretrizes Nacionais Curriculares para a
Educação Escolar Quilombolavii com o objetivo de incluir e valorizar a história, os saberes e os
modos de vida dos quilombos para superar os desafios ainda existentes na educação brasileira, no
que se refere à inclusão da história dos quilombos na educação brasileira.
Esse movimento vem construindo pontes entre os saberes locais e globais e normatizando
processos. A luta do quilombo de Conceição das Crioulas mudou os marcos normativo do
município de Salgueiro/PE, criando a categoria de professor quilombola, sendo reservado aos
quilombolas atuarem como professores(as) nas escolas do território.
As mudanças nos marcos normativos fez com que hoje todos os professores(as) sejam do
território (por concurso público ou seleção pública); que todos(as) tenham curso superior e 90%
possuam pelo menos uma especialização, além de duas mestras em sala de aula. Todos esses
O certo é que essa exatidão de onde as mulheres vieram ou não nunca foi uma coisa tão
relevante para os quilombolas e sim, a história e as estratégias das mulheres que fundaram e
defenderam esse território: Mendencha Ferreira, Emília Ferreira, Francisca Presidente, Germana,
Romana e Francisca Ferreira, sendo Francisca Ferreira líder do grupo. Esses são os nomes
lembrados através da oralidade dos mais velhos e, posteriormente, o que outras mulheres fizeram na
defesa e manutenção das crioulas nesse espaço, a exemplo de Agostinha Cabocla (ARAÚJO, 2008;
NASCIMENTO, 2017)ix.
Esse pensar “quilombola e feminino” tem sido constante e se alimenta nos atos de
resistência de um povo que, mergulhado num mundo real de exclusão, consegue “fincar-se naquele
espaço”, contrariando às lógicas postas no seio da história oficial. Sua própria história de encanto e
desencanto, de encontro e (re)encontro, sugere um processo de resistência e insurgência no
caminhar coletivo do quilombo – o território das crioulas.
Por isso, a busca da liberdade e a conquista das crioulas são processos de superação dos
limites físicos, geográficos, organizativos, de gênero e de raça. Pensar que há cerca de três séculos
atrás, mulheres negras, analfabetas conseguiriam dar passos tão largos só é possível se
reconhecermos a capacidade de superação e resistência dos(as) negros(as) frente a todos os
obstáculos impostos pelo racismo desde a sua chegada ao Brasil até os dias de hoje.
260
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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE
E é nesse contexto de negação de direitos aos negros no Brasil que, até 1995, os quilombolas
de Conceição das Crioulas, com poucas exceções, não estudavam além da 4ª série do ensino
fundamental I, hoje denominado de 5º ano. Em maio do mesmo ano (1995), se inaugura a Escola
Professor José Mendes , de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental II. O que em outros distritos do
município de Salgueiro era rotina, em Conceição das Crioulas era a primeira oportunidade de
ampliar os estudos que aquele povo tinha em mais de 200 anos de existência e (re)existência. Esse
fato demonstra explicitamente a natureza do racismo institucional e como ele se manifesta de forma
prática, muitas vezes silencioso e silenciado por aqueles(as) que por ele são afetados(as), direta ou
indiretamente.
É como um projeto de liberdade que nasce a Escola Professor José Mendes. Inicialmente, o
projeto ancorava-se na oralidade e na memória coletiva da comunidade e, aos poucos, foi se
modelando o pensar e o fazer a educação em Conceição das Crioulas. Esse pensar ou projeto foi
denominado de “educação diferenciada. A base inicial de formulação eram os conhecimentos do
próprio quilombo, seus saberes, sua cultura e seus modos de vida.
Os argumentos para que quilombo ficasse tanto tempo sem acessar um direito básico – o
direito à educação – era a distância da cidade, cerca de 50 km de distância. Porém, outras narrativas
eram ainda mais violentas, pois sustentavam que não era preciso que povo de Conceição das
Crioulas fosse à escola, já que não era necessário avançar nos estudos para dominar a técnica de
votar (SILVA, 2012)x.
Além disso, foram construindo um currículo com espaço para a cultura local, as
manifestações da comunidade e, sobretudo, as lutas por direitos. Nesse currículo, também se
incluíram os lugares e os significados que compõem o repertório de luta e resistência de Conceição
das Crioulas, como, por exemplo, as pedras, caldeirõesxi, serras, plantas nativas, danças, festas,
igreja, sede da associação, centro comunitário, entre outros.
Esse processo, que se iniciou em 1995. Em 2017, Márcia Jucilene do Nascimento,
educadora e pesquisadora quilombola, descreveu e defendeu como a “Pedagogia Crioula”. Portanto,
o objetivo e esforço da Pedagogia Crioula é escutar, escrever e trazer para o currículo escolar as
vozes e perspectivas do quilombo, criando situações didáticas que quebrem o silêncio e superem as
fortes tentativas de apagamento da memória, das lutas e da história do quilombo de Conceição das
Crioulas. Essa iniciativa fez com que a educação se transformasse em uma ferramenta para
fortalecer a luta pelo acesso a terra.
Após anos de luta, resistência e insurgência, o quilombo de Conceição das Crioulas retoma
parte de seu território (indenizados pelos governo federal), anteriormente invadido por fazendeiros.
Em 2012, o quilombo de Conceição das Crioulas começou a receber os primeiros títulos definitivos
de suas terras tradicionalmente ocupadas, baseado no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT).
A Pedagogia Crioula toma a luta coletiva dos quilombolas como mais um tema gerador de
aprendizagens e incorpora ao Projeto Político-Pedagógico (PPP) do território de Conceição das
Crioulas estruturado em sete eixosxii, criando situações didáticas que permitiram que alunos(as),
pais e mães, lideranças comunitárias, façam o reconhecimento do território, compartilhem achados,
identifiquem os pontos e marcos históricos e turísticos e se apropriem dos espaços criando com ele
e nele novas perspectivas e sentidos para a vida no território. Os eixos que compõem o PPP de
Conceição das Crioulas estruturam e organizam o currículo escolar, além de ser o espaço de escuta
e materialização dos saberes quilombolas e universais, sempre em sintonia com as lutas territoriais
por direitos.
Uma das estratégias mais importantes nesse processo tem sido o diálogo com as pessoas
mais velhas para troca de conhecimentos e saberes, além de com eles traçarem estratégias para
superar os desafios que devem ser enfrentados no planejamento e na preservação de um território
coletivo. É por meio da memória coletiva dos mais velhos que muitas coisas resistiram já que esses
espaços ficaram por mais de 60 anos sob domínio de fazendeiros e que o grande esforço dos
fazendeiros durante décadas foi para apagar a história e a luta de Conceição das Crioulas para
defender seu espaço como espaço de liberdade.
Nesse contexto de escuta e aprendizagem dessas histórias, os relatos são capazes de
reconstruir um passado fazendo ele se tornar presente, como é para todos de
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Conceição: além dos mais velhos, os adultos, os jovens e crianças, todos nós hoje
conhecemos e narramos a história das seis crioulas. Com isso também aprendemos
que não existe uma memória passada, o que existe é uma memória que está sempre ali
permanente, que através da oralidade pode trazer narrativas que nos fazem
compreender contextos atuais, nos fazendo refletir sobre nossa própria história
(NASCIMENTO, 2017, p. 28).
De posse de parte das terras do território, cujos registro e domínio são da Associação
Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC) várias ações e projetos começaram se desenvolver
nas escolas visando compreender a gestão do território e compartilhar com as crianças e jovens e a
comunidade de cada localidade. Um exemplo para ilustrar é o projeto desenvolvido pela Escola
Bevenuto Simão de Oliveira, no Sítio Paula.
A escola Bevenuto Simão de Oliveira fica localizada no Sítio Paula, um dos núcleos que
compõem o território quilombola de Conceição das Crioulas. A escola atende do ensino infantil ao
5º ano do ensino fundamental I e leva o nome de uma das figuras mais importantes da cultura de
Conceição das Crioulas, Bevenuto Simão, pai Nuto, como a comunidade conhecia. Tocador e líder
da Banda de Pífano, símbolo de Conceição das Crioulas, pai Nuto ou Bevenuto Simão de Oliveira é
o patrono da escola.
A prática e a luta para colocar e memorizar os nomes em escolas e/ou outros equipamentos
públicos de pessoas da comunidade são umas das formas de se garantir a memória viva de seus
moradores e poder contar por dentro da escola as histórias de cada um(a) deles(as). Esses espaços
antes recebiam os nomes dos Santos de devoção dos fazendeiros ou de seus familiares.
O Sítio Paula sempre foi um núcleo que apresentava baixo nível de organização e pouca
inserção de seus(uas) moradores(as) na luta por direitos dentro o território de Conceição das
Crioulas. A escola, a partir do momento que foi assumida por quilombolas daquele mesmo núcleo,
tomou como ponto de partida a relação da comunidade com a educação, uma das características da
Isso só foi possível a partir do momento em que as pessoas da comunidade passaram acessar
a educação como um direito e ingressaram em cursos superiores. Desde então, a educação em
Conceição das Crioulas tem apresentado bons resultados. O principal deles é o envolvimento
dos(as) moradores(as) com as lutas do território.
É nesse contexto e com o desafio de vivenciar a Pedagogia Crioula que a Escola Bevenuto
Simão, de posse da área desapropriada conhecida como “Fazenda Conceição” fruto de lutas de anos
da comunidades (mapas e titulo) e constrói seu planejamento para o ano letivo de 2019 de forma
que toda a comunidade escolar e a comunidade, em geral, passasse a conhecer essa área do
território. Para muitos, aquela área sempre foi um lugar intocável, por estar sob domínio do
fazendeiro.
Para dar conta dessa tarefa, a escola envolve a comunidade através da Associação local e
juntos planejam uma ação de reconhecimento do território. A escola leva as crianças para conhecer
o território em uma ação coordenada e a Associação os(as) demais moradores(as).
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e que deve ter a participação da comunidade escolar também. Então a partir desse
momento traçamos como seria a participação da escola nesse processo de luta e
conquista que julgamos muito importante para a comunidade, uma vez que já é hábito
da escola trabalhar as especificidades que garantem o nosso currículo escolar (Rita
Luiza da Silva – Presidente da Associação do Sítio Paula, em entrevista em junho de
2029).
Essa afirmação reflete no papel que a escola tem na territorialização de conhecimentos que
se relacionem com as lutas locais e contribuam com o fortalecimento da identidade dos estudantes e
com a gestão do território. São ações pedagógicas como essas que podem fazer da escola e a
educação ferramentas para fortalecer a relação dos(as) alunos(as) quilombolas com seus territórios,
para conhecer e valorizar seus potencias e suas lutas. É notável que as conquistas que acontecem em
Conceição das Crioulas e na sociedade, em geral, assim como todas as conquistas, são frutos de
lutas sociais para consolidar direitos.
Por isso, uma proposta de educação que inclua as necessidades, os interesses e as visões de
mundo dos quilombolas demonstra que é possível diminuir as dicotomias entre escolas,
comunidades e lutas locais. O que se percebe é que, muitas vezes, a escola se distancia do “chão”,
da vida e da realidade na qual estão inseridos os quilombos. Romper com esse modelo ainda é um
desafio, talvez um dos mais significativos nos tempos de hoje.
CONCLUSÃO
A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da
identidade negra e na luta por direitos. O homem e a mulher negros não podem ser considerados
fora de suas características, de modos de ser e de pensar. Quando deixamos de considerar tais
aspectos, automaticamente estamos fugindo de princípios básicos da escola, que são assegurar que
as diferenças dos indivíduos sejam respeitadas, sem serem anuladas ou omitidas. O olhar lançado
sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças
quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las, negá-las e até matá-las.
A nosso ver, estão em disputa duas concepções de educação. Em uma delas, a comunidade
quer manter vivas suas raízes, seus valores. Em outra, a comunidade é o objeto e por meio da escola
anula suas especificidades. Não nos parece estar a escola fora desse embate, e o filtro de uma ou de
outra é o currículo.
Entendemos, portanto, que há espaço não somente na escola, mas também nela para abrigar
as duas “naturezas de saberes” sem perder os valores existentes em ambos – os saberes locais e
globais. Porém, respeitando aquilo que a comunidade acredita ser importante e pelo que vem
lutando há anos – por uma escola em que crianças, jovens e adultos possam se ver nela e com ela e
como parte dela.
Se a identidade de uma pessoa, de um grupo social não é algo fixo, se ela vai se construindo
a partir de questões práticas e subjetivas, ao mesmo tempo, no dia a dia, é possível construir o
fortalecer uma identidade positiva das pessoas negras e quilombolas e demais grupos com
marcadores raciais declarados, sem distanciá-las da vida cotidiana e sem negativar sua identidade,
fazendo com que esses sujeitos se vejam dentro desses espaços sem se sentir um(a) estranho(/a),
menor ou inferior.
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Os esforços a serem feitos agora devem ser no sentido da “desconstrução desse imaginário
negativo em relação aos negros(as) de formas também concretas”, na busca de diminuir a distância
entre os negros e não negros, entre urbanos e rurais no Brasil. Então, estimular as crianças
quilombolas a compreender o que significa seu território, que lutas e desafios são inerentes às suas
vidas, é tarefa da escola que se coloca como instrumento de luta política e disputa de outras
narrativas – narrativas menos excludentes.
A busca por uma educação mais inclusiva na comunidade quilombola de Conceição das
Crioulas e, pela própria comunidade, definida como educação diferenciada, não é feita apenas por
aqueles(as) que estão diretamente ligados(as) aos espaços escolares (salas de aulas, gestão escolar)
e, sim, por um conjunto maior de pessoas em um processo de participação ativa e busca de
autonomia, de liberdade e de mudança no fazer da educação e da escola.
Notas de fim
i
Disponível em: Fundação Cultural Palmares.
ii
“Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
iii
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem – as formas de expressão; II. os modos de criar, fazer e viver;
III. as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV. as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
iv
“Art. 26. A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório
o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena (Redação dada pela Lei n. 11.645, de 2008)”.
v Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Brasil (CONAQ).
vi
Conferência Nacional da Educação Básica 2010 (CONAE).
vii
Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.
ARAÚJO, E. F. A. Agostinha Cabocla: por três léguas em quadra – a temática quilombola na perspectiva global-
viii
local. 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 2008.
ix
NASCIMENTO, Márcia Jucilene do. Por uma pedagogia crioula: memória, identidade e resistência no Quilombo de
Conceição das Crioulas – PE. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Mestrado em Sustentabilidade
junto a Povos e Territórios Tradicionais – MESPT) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
x
SILVA, Givania Maria. Educação e luta política no Quilombo de Conceição das Crioulas. Curitiba: Apris, 2016.
xi
Espaços formados entre rochas que guardam água e são usados em épocas de seca.
xii
Território; História; Identidade; Organização; Saberes e conhecimentos próprios; Gênero e Interculturalidade.
xiii
Projeto Político-Pedagógico do Território Quilombola de Conceição das Crioulas (PPPTQ), versão 2017.
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR OS DESAFIOS
DAS PAUTAS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL EM TRAVESSIA
Tentar talvez nos custe a vida, mas não tentar certamente nos levará à morte
Maria Stewart, apud Collins, 2019
Esta reflexão faz três movimentos: uma rápida análise do contexto atual; uma busca de
referências, em Adorno; e a identificação de desafios esboçados como aprendizagens a serem
trabalhadas na travessia. Espera-se colaborar com o processo reflexivo e com a prática da educação
em direitos humanos.
CONTEXTUALIZANDO...
Difícil de caracterizar de modo sucinto o tempo que nos é dado viver em nosso Brasil.
Ensaiamos alguns traços. Assim, o caracterizaríamos nos seguintes sentidos principais: o de um
populismo de direita, o de uma “racionalidade fascista” e o de um ultraneoliberalismo, combinados
e funcionais um ao outro.
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...
O texto Educação após Auschwitz resulta de uma palestra feita por Theodor W. Adorno pela
rádio de Hessen, em 18 de abril de 1965. Foi publicado em Zum Bildungsbegriff der Gegenwart, em
Frankfurt, em 1967. No Brasil foi publicado em Educação e Emancipação (1995). Nele, buscamos
apoio de referência.
A experiência da leitura deste texto é muito profunda. Uma das questões-chave revela
quanto as posições que vêm de Sigmund Freud, e que são por lembradas por Adorno (2003, p. 120),
seguem atualíssimas: “a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é
anti-civilizatório”. Opor-se a isso “tem algo de desesperador” visto que “a barbárie encontra-se no
próprio princípio civilizatório” (ADORNO, 2003, p. 120). O que “apavora” é que “a barbárie
continuará existindo enquanto persistirem noque tem de fundamental as condições que geram esta
regressão” (p. 119). Muito próximo do que diz Walter Benjamin na VII das teses Sobre o Conceito
de História (1940): “Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um
documento da barbárie” (BENJAMIN, 2005, p. 70). Também próximo do que é construído na
célebre Dialética do Esclarecimento (1947), que redigiu com Horheimer. Isso significa que a
“regressão à barbárie” não é apenas uma ameaça, mas é uma realidade. Nisso há uma atualidade e
uma consistência difíceis de serem suplantadas pelos progressismos ou pela excessiva confiança no
humanismo que, por vezes, cega ao que efetivamente vai acontecendoxiv.
O desejo de Adorno (2003, p. 119), expresso já na primeira frase de seu texto, o de que a
exigência primeira para a educação é que “Auschwitz não se repita”, soa, diante do que já foi dito,
como um desejo do impossível. E talvez este seja exatamente o principal desejo a ser qualificado
pelo processo de educação, ainda que o autor nem trate explicitamente disso.
A convocação feita por ele vai no sentido da superação do que chamou da “ausência de
consciência” (ADORNO, 2003, p. 121) e, depois, de “consciência coisificada” (Verdinglichung) (p.
130)xv, que guarda várias expressões, entre elas: a “índole dos algozes” (p. 124), o ideal da
“severidade”, a educação “baseada na força e voltada à disciplina” (p. 128-129)xvi, o “véu da
técnica” (p. 132)xvii, a naturalização do “ser-assim” (p. 132)xviii, a indiferença e a falta de empatia (p.
134)xix, o individualismo (p. 134)xx, a neutralidade (p. 136)xxi e os “assassinos de gabinete” (p.
137)xxii.
João Guimarães Rosa dizia em Grande Sertão, Veredas (1956) que quem fica entretido nos
lugares de saída ou de chegada nada vê no meio da travessia. Mais, se “Digo: o real não está na
saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1994, p. 86),
então, o risco é de, por apegar-se demais à saída ou à chegada, não se situar adequadamente no
meio da travessia e, dessa forma, ter mais dificuldade de achegar-se à realidade. Ora, quem se
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...
propõe à travessia é como quem “[...] quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra
banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou” (p. 43).
Estes elementos servem nesta reflexão para o propósito de reforçar o que também encontra
eco na compreensão de Adorno de que não há uma separação absoluta entre civilização e barbárie.
E, se esta é uma posição aceitável, e concordamos que é, então, com Guimarães Rosa, o que está
posto é a necessidade de permanecer atento ao longo de toda a travessia, não só “entre” saída e
chegada, mas com o que se põe “no meio da”, visto que, para quem está “no meio da travessia”, o
meio nunca é um ponto fixo, dado que ele mesmo está em travessia, em movimento, com toda vênia
ao “paradoxo de Zenão”.
Se sempre chegamos à margem do outro lado do rio num ponto “bem diverso do em que
primeiro se pensou”, então uma travessia não aponta um lugar, uma margem, para a qual seguir; há
sempre alguma alternativa possível a ela e certamente será a uma destas a que se chegará e não à
que primeiro se planejou. Isso para dizer que enfrentar o totalitarismo, o fascismo, a barbárie, é uma
luta que se quer fazer, mas não se pode ter a certeza de que definitivamente se chegará à sua
superação definitiva, numa “margem segura”. O que pode ser “algo desesperador” é a condição na
qual se dá o processo educativo depois de Auschwitz, de modo que não se pode deixar de
permanecer em vigilância para fazer frente à ameaça permanente de “regressão à barbárie”.
Mas esta não é uma luta do bem contra o mal, até porque, ainda que se queira que “[...] o
bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados...”, na verdade,
“A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao
que, este mundo é muito misturado... (ROSA, 1994, p. 307).
Adorno, combinado com Guimarães Rosa, inspira a pensar que os tempos autoritários não
são obra passada e nem lugares ou situações estanques. Eles são parte do processo civilizatório, já
que a barbárie não lhe é seu oposto e sim sua outra face constitutiva. Esta é a principal dificuldade
para a educação em geral e para a educação em direitos humanos: saber que, por mais que se
eduque, sempre estará posta a tarefa de seguir educando; saber que, por mais que humanize, sempre
estará posto o desafio de humanizar; saber que, ao formar sujeitos(as), sempre estará posta a
exigência de formar sujeitos de direitos. Este exercício é uma espécie de “querer o impossível”,
como já apontamosxxiii.
Outra aprendizagem é a respeito daquilo que a educação em direitos humanos, assim como a
luta contra o autoritarismo e o fascismo, tem que enfrentar. E esta não é uma agenda pequena. Não
se trata de uma ou outra prática isolada ou uma dinâmica pontual ou residual; trata-se de uma
racionalidade, de um modo de ser, de uma proposta de vida (ou de morte). O fascismo está
entranhado, como já vimos, e, se assim o é, seu enfrentamento exige compreender no profundo o
que significa e, como sugere Adorno, conhecer a “personalidade autoritária”, mas não só, porque
não é suficiente, já que há uma cultura cujo “mal-estar” é estruturante, como lembra Freud. Estudar
os traços característicos do modo de ser fascista é um dos desafios da educação em direitos
humanos. Assim que, não basta saber se há direitos, quais são eles, se estão sendo realizados ou
não. A educação em direitos humanos há de ajudar a compreender as razões do “mal-estar” de sua
irrealização.
A educação em direitos humanos há de ajudar a entender a perversidade que faz com que,
ainda que não suprima os direitos de direito, os destrua de fato. Esta contradição mais contundente
do fascismo atual é o que desafia de modo ainda mais difícil. Os direitos humanos não foram
retirados da Constituição. O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)xxiv e o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH)xxv, o Parecer e a Resolução do Conselho
Nacional de Educação com as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos xxvi,
seguem vigentes, mas não para serem realizados. Seria no mínimo ridículo fazer estudos destes
instrumentos como se efetivamente permanecessem existido “para valer”, quando, a rigor, são parte
da história recente, e isso não é pouco, a ser apagada pelos que estão nos postos do poder, ainda que
por enquanto não tenham sido revogados ou substituídos. Seu estudo talvez possa servir para
mostrar como a civilização e a barbárie convivem! E para alimentar práticas de resistência.
Há uma agenda difícil de ser enfrentada e para a qual se faz necessário aprender, mais do
que ensinar. Não há modos elaborados que indiquem caminhos e talvez tenhamos que fazer um
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...
trabalho imenso de pesquisa sobre o que se fez nos vários lugares do mundo que já passaram ou que
estão passando por travessias como as nossas. O que parece certo é que já não se pode seguir
fazendo mais do mesmo na educação em direitos humanos.
A autonomia exige construir um tipo de posição que escapa aos modos esquadrinhados e
formatados. Ítalo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972), traz o diálogo entre Marco Polo e
Kublai Kahm que se segue a Aglaura. O grande Kahm comenta que: “– Entretanto, construí na
minha mente um modelo de cidade do qual extrair todas as cidades possíveis”. Segue: “– Ele
contém tudo o que vai de acordo com as normas. Uma vez que as cidades que existem se afastam da
norma em diferentes graus, basta prever as exceções à regra e calcular as combinações mais
prováveis” (1990, p. 67). Em resposta, Marco Polo sugere: “– Eu também imaginei um modelo de
cidade do qual extraio todas as outras”. E segue: “– É uma cidade feita só de exceções,
impedimentos, contradições, incongruências, contrasensos. [...]” (1990, p. 67).
O embate entre o grande Kahm e Marco demonstra uma tensão que também é própria dos
direitos humanos e da educação em direitos humanos: estar de acordo com as normas ou estar do
lado das incongruências, aderir ao sistema ou, como sugere Henri Lefebvre (2001, p. 9), “abrir o
pensamento e a ação na direção da possibilidade”, fazer dos direitos humanos mais um recurso de
regulação ou trabalhá-los como emancipação.Nossa tendência é mais ao modo Marco, na tradução
de Manu Chao, “clandestino, ilegal”xxvii.
Aprender e seguir ensinando que os direitos humanos são a afirmação de que a humanidade
é um bem comum a todos(as) é primordial para a educação em direitos humanos. A humanidade
que está em cada ser humano é exatamente a mesma: são iguais. Mas, ainda que a humanidade que
está em cada um(a) seja a mesma, o modo como ela se apresenta é singular: humanos(as) são
únicos(as), distintos. Por isso, aprender a não discriminaçãoxxviii. Mas é também aprender a querer o
usufruto de todos os bens e as condições necessárias ao bem-viver (o direito à saúde, à educação, à
cultura, à moradia, à alimentação saudável, à liberdade de expressão, à mobilidade, a não sofrer
violência, a seguir a religiosidade que quiser, ao trabalho decente, à remuneração justa, ao lazer, à
previdência e assistência social, enfim...). Por isso, aprender a se opor a todas as formas de
imposição de austeridades destruidoras de direitos e de vidas.
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...
PARA SEGUIR...
Bell Hooks, inspirada em Paulo Freire, traduz o que dissemos, ainda que noutros contextos,
por uma “pedagogia engajada” num processo através do qual o desafio é educar “para transgredir”.
No final da abertura de seu livro Ensinando a transgredir ela pede que todos(as) “[...] abram
a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável, para pensar e
repensar, para criar novas visões, celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento
contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma educação na prática da
liberdade” (HOOKS, 2013, p. 24).
Enfim, com Eva Schloss (2013), autora de Depois de Auschwitz, que no Prólogo, expressa o
desejo de seu testemunho, podemos afirmar: “Quero que elas saibam o que aprendi: apesar de todo
o desespero, haverá sempre esperança. A vida é muito preciosa e bonita – e ninguém deve
desperdiçá-la”. Ela certamente está falando da esperança do verbo esperançar...
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e Emancipação. 3. ed. Tradução: Wolfgang Leo
Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 119-138.
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Tradução:
Guido Antônio de Almeida. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
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leitura das teses Sobre o Conceito de História. Tradução: W. N. Caldeira Brandt [Tradução das teses por J. M.
Gagnebin e M. L. Müller]. São Paulo: Boitempo, 2005.
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partir da condição da vítima. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, 2015.
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DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: por que oito famílias têm mais riquezado que a metade da
população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.
FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FOUCAULT, M. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Tradução: Fernando José Fagundes Ribeiro.
Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Clínica da PUC-SP, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 198-200, 1993.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
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WMF Martins Fontes, 2013.
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Master Language. Oxford: Oxfam Internacional, Jan. 2020. Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-
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SCHLOSS, Eva. Depois de Auschwitz: o emocionante relato da irmã de Anne Frank que sobreviveu ao horror do
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278
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...
Notas de fim
i
Ladislau Dowbor (2017, p. 246) defende que vivemos um “capitalismo improdutivo”. Em A Era do Capital
improdutivo diz: “O rentismo é hoje, sistematicamente mais explorador, e pior, um entrave aos processos produtivos e
às políticas públicas. O seu poder é grande, trata-se da estrutura de poder mais presente nos processos decisórios
públicos e privados. Sua grande vulnerabilidade está no fato de ser improdutivo, de constituir dominantemente uma
dinâmica de extração sem contrapartida à sociedade”.
ii
Foucault (2008, p. 222) dizia, em Nascimento da biopolítica, cursos de 1979, que a estratégia neoliberal é de construir
uma “formalização da sociedade com base no modelo da empresa”. E mais, o neoliberalismo defende que o ser humano
seja reduzido: “O homo o economicus é um empresário, e um empresário de si mesmo” (p. 311). Há muitos estudos a
este respeito e que são chave para compreender o neoliberalismo atual, mas não temos como deles nos ocupar neste
ensaio.
Ayn Rand, em Egoismo como Virtude (1991), desenvolve a tese de que a verdadeira ética é o “egoísmo universal”
iii
(ver referência completa). Esta obra trata sob o ponto de vista ético o que está no bestseller A Revolta de Atlas (1957).
iv
No relatório Tempo de Cuidar a Oxfam diz que, em 2019, os bilionários do mundo eram 2.153 pessoas e elas
detinham jutas mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas; e que os 22 homens mais ricos do mundo detém mais
riqueza do que todas as mulheres que vivem na África; e que o 1% mais rico do mundo detém mais do que o dobro da
riqueza de 6,9 bilhões de pessoas (ver: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-
davos/tempo-de-cuidar/). Para o Brasil, a Oxfam diz que, entre 2016 e 2017, pela primeira vez o Índice Gini estagnou e
está estagnada também a equiparação de renda da população negra (desde 2011) e das mulheres; os 40% mais pobres
registraram renda pior do que a média, o 1% mais rico ganha 72 vezes mais que os 50% mais pobres e mais, a metade
mais pobre da população perdeu 1,6% de seus rendimentos entre 2016 e 2017, enquanto o 10% mais rico teve
crescimento de 2% em seus rendimentos no mesmo período (ver: www.oxfam.org.br/pais-estagnado).
v
O relatório do Painel sobre Mudanças Climáticas (IPCC/ONU) recentemente divulgado é forte indicador desta questão
e chama à atenção para desafios gigantescos. Para um resumo dos dados atualizados, ver:
www.bbc.com/portuguese/geral-46424720. Para acesso ao relatório especial do IPCC, ver: www.ipcc.ch/sr15/
vi
Exemplo disso é a proposta de um suposto “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, uma cláusula condicionante
da realização dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. Na verdade, um direito para negar
direitos. O tema está na Proposta de Emenda Constitucional sugerida pelo Ministro da Economia (PEC nº 188, de
05/11/2019) (ver: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8035501&ts=1576105226634&disposition
=inline).
vii
Reforça o que chamamos de “Racionalidade Vitimária” em nossa tese, cujas características principais características
são: “(1) naturalização da condição de vítima: vítimas são necessárias e inevitáveis; (2) culpabilização daqueles/as que
estão na condição de vítimas:vítimas merecem ser vítimas e devem “pagar” por sua culpa; (3)impotência daqueles/as
que estão na condição de vítimas: vítimas, por elas mesmas, não podem deixar de ser vítimas” (ver:
www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/4517).
Para um estudo do fascismo atual, ver, entre outros, o curso Psicologias do Fascismo, ministrado pelo professor
viii
Vladimir Safatle na USP, em 2019. O material do curso está disponível em: www.academia.edu/39801006/
Psicologias_do_fascismo_-_curso_completo_2019_?auto=download. No prefácio à edição americana de Anti-Édipo,
Michel Foucault (1993) faz uma sugestão de “princípios essenciais” do que chama de “Essa arte de viver contrária a
todas as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou próximas de sê-lo”. A coletânea Fascismo Tropical,
organizada por Pablo Ornelas Rosa (2019), também sugere questões sobre o tema.
ix
Necessário retomar o debate sobre o tema do populismo em geral e do populismo de direita em particular. Há
divergências sobre a adequação do uso desta terminologia para definir o que seja a situação da política atual e que aqui
não temos condições de trabalhar adequadamente.
x
A filósofa alemã Carolin Emcke é enfática: “O problema dos últimos anos foi a falta de desejo político. Parece que só
a extrema direita tem uma utopia. É uma utopia regressiva, de morte e destruição, mas utopia. Conservadores e social-
democratas não têm nenhuma”. Entrevista a El País em 12 nov. 2019 (ver: https://brasil.elpais.com/brasil/
2019/11/01/cultura/1572612640_359278.html?%3Fssm=FB_BR_CM&hootPostID=510df47c4f698da62cc2b062beb6d
b21).
xi
Em entrevista à Nexo, “O que é ‘guerra cultural’. E por que a expressão está em alta”, feita por Juliana Sayuri, e
publicada em10/03/2019, Eduardo Wolff e Esther Solano explicam o assunto. Segundo Eduardo Wolff, “‘Guerra
cultural’ se refere a um tipo especial de tensão social e política em determinada sociedade. Como o nome diz, esse
conflito ocorre na dimensão da cultura – da produção artística, pensamento e reflexão, no universo dos valores e
símbolos”. Esther Solano lembra que “É basicamente uma nomenclatura cunhada nos Estados Unidos, na década de
1990, para se referir a um deslocamento no debate público. Nos anos 1960 e 1970, tínhamos o debate mais clássico
entre esquerda e direita, fundamentalmente a partir de pautas econômicas. Depois, temos o deslocamento para pautas
mais morais, por exemplo, a questão do aborto, uma perspectiva mais punitiva e autoritária do Estado”. Ela também
observa que “Bolsonaro é uma peça simbólica da guerra cultural. Na campanha, por exemplo, não apresentou propostas
programáticas e se pautou por questões morais, privilegiando argumentos em defesa de Deus, da família e dos
costumes, de uma forma muito superficial” (ver: www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/10/O-que-%C3%A9-
%E2%80%98guerra-cultural%E2%80%99.-E-por-que-a-express%C3%A3o-est%C3%A1-em-alta).
xii
No momento da redação desse ensaio fomos surpreendidos pela notícia de mais uma manifestação do que aqui
estamos tratando e que veio pelo Secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim (agora ex). Chocado o escutei citando
Goebbels, sem o menor pejo, em pronunciamento feito em 17 de janeiro de 2020 em rede social (ver:
https://twitter.com/i/status/1217941233412321286). Felizmente foi demitido no mesmo dia.
Esta é a análise de Roberto Dutra Torres Jr, em entrevista ao IHU OnLine, de 06/01/2020, que diz: “O ponto mais
xiii
importante desse primeiro ano de governo é justamente a força desse modelo de fazer política, em que o governo
encontra na guerra cultural o seu principal instrumento de mobilização, em uma estratégia que parece ser uma
continuidade da campanha eleitoral” (ver: www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/595340-o-ponto-mais-
importante-desse-primeiro-ano-de-governo-e-a-forca-desse-modelo-de-fazer-politica-entrevista-especial-com-roberto-
dutra).
xiv
“Isto [milhões de pessoas inocentes foram assassinadas de uma maneira planejada] não pode ser minimizado por
nenhuma pessoa viva como sendo um fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não
importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente”
(2003, p. 120).
xv
“O caráter manipulador [...] se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências
humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura
praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que
ele e, possesso pela vontade de doingthings, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser
atuante, da atividade, da chamada efflciency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo.
Este tipo encontra-se, entrementes [...], muito mais disseminado do que se poderia imaginar” (2003, p. 129). E mais:
“No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o
conseguem, tornam os outros iguais a coisas” (2003, p. 130). No texto A filosofia e os professores (publicado na mesma
coletânea pela Paz e Terra), diz que “Uma das características da consciência coisificada e manter-se restrita a si mesma,
junto a sua própria fraqueza, procurando justificar-se a qualquer custo. E sempre admirável a esperteza de que até os
mais obtusos conseguem lançar mão quando se trata de defender malefícios” (2003, p. 71)
Incrível como tem relação com a proposta de educação “cívico-militar” que vem sendo implementada pelo governo
xvi
federal (ver programa num hotsite próprio, certamente dada sua importância central para o governo, em:
http://gov.br/escolacivicomilitar). Adorno diz: “Essa ideia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos
podem até acreditar, é totalmente equivocada. A ideia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de
suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que – como mostrou a psicologia – se identifica
com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de ‘ser duro’ de uma tal educação significa indiferença contra a
dor em geral” (2003, p. 128).
“Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fimem si mesmo, uma força
xvii
própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens” (2003, p. 132)
280
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...
“Esta [a consciência coisificada] é, sobretudo, uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser,
xviii
frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um
determinado modo” (2003, p. 132).
“[...] se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras,
xix
excetuando o punhado com que mantem vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses
concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito” (2003, p. 134).
xx
“A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o
pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se
assegurar disto” (2003, p. 134).
“Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem
xxi
dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo” (2003, p. 136).
xxii
“Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter
Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam.
Havia. Apesar disto, a pergunta e profundamente justificável. Benjamin percebeu que, ao contrário dos assassinos de
gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses
imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o
reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais” (2003, p. 137).
Como sugere a respeito de Adorno o que propõe Vladimir Safatle no controverso Dar corpo ao impossível: o
xxiii
(Decreto Federal n. 4.229, de 13/05/2002). A única coisa que foi revogada foi o artigo 4º que previa um Comitê de
Acompanhamento e Monitoramento (Decreto Federal n. 10.087, de 05/11/2019).
xxv
Elaboração iniciada em 2003 com a instalação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, publicado
em 2006. Ironicamente foi republicado em 2018 pelo então Ministério dos Direitos Humanos (ver: www.mdh.gov.br/
navegue-por-temas/educacao-em-direitos-humanos/DIAGRMAOPNEDH.pdf). O incrível é que, para quem se orienta
pelo portal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é como se tudo seguisse como dantes,
inclusive com a existência do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (ver: www.mdh.gov.br/informacao-
ao-cidadao/participacao-social/comite-nacional-de-educacao-em-direitos-humanos-cnedh/comite-nacional-de-
educacao-em-direitos-humanos, acesso em 18 de janeiro de 2020), criado pela Portaria n. 98, de 09/07/2003,
reestruturado pela Portaria n. 372, de 25/08/2015 e extinto pelo Decreto Federal n. 9.759, de 11/04/2019, que, além
deste, extinguiu vários outros espaços de participação em todas as áreas do governo. Mantém inclusive uma
Coordenação-Geral de Educação em Direitos Humanos, com pessoa nomeada para a função como se pode ver no
“quem é quem” do MMFDH (ver: www.mdh.gov.br/quemequem acesso em 18 de janeiro de 2020, sendo que o
currículo vitae do coordenador à época pode ser encontrado em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do
?id=K4360372Z0).
xxvi
Trata-se de decisão do Pleno do Conselho Nacional de Educação (CNE), através do Parecer CNE/Pleno n. 8, de
06/05/2012 e da Resolução CNE/Pleno n. 1, de 30/052012 (ver: www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/educacao-em-
direitos-humanos/DiretrizesNacionaisEDH.pdf).
xxvii
Ver na versão playing for change: www.youtube.com/watch?v=WvPmNdNc2-E.
Angela Davis pede que: “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Na
xxviii
conferência magna que pronunciou na Reitoria da UFBA, em 25/07/2017 (transcrição de Naruna Costa, tradução de
Raquel de Souza e notas de Juliana Borges, publicada no Blog da Boitempo) diz: “Afirmamos que, na medida em que
nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-
patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se
dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista que valoriza mais o lucro que
seres humanos”. E mais adiante “[...] quando as vidas das mulheres negras importam, então o mundo será transformado
e teremos a certeza de que todas as vidas importam” (ver: https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/28/ angela-davis-
construindo-o-futuro-da-luta-contra-o-racismo/).
xxix
Ver “Brasil, país do futuro do pretérito”, Aula Inaugural do CTCH, PUC-Rio, 14/03/2019 (ver:
www.academia.edu/38756036/Brasil_pa%C3%ADs_do_futuro_do_pret%C3%A9rito). Ele diz, referindo-se à
resistência indígena: “E falo em resistência imanente porque os povos indígenas não podem não resistir sob pena de não
existir como tais. Seu existir é imanentemente um resistir, o que condenso no neologismo rexistir”.
xxx
Ver o poema completo traduzido em: www.geledes.org.br/maya-angelou-ainda-assim-eu-me-levanto/.
xxxi
E vem mais uma vez Guimarães Rosa (1994, p. 440/448), de Grande Sertão, Veredas: “Todo caminho da gente é
resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta! [...] O correr da vida
embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da
gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza”.
282
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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS
ORIGINÁRIOS
Com este texto, gostaria de retomar algumas anotações i sobre as possíveis relações do
pensamento freiriano com os princípios nãocoloniais inerentes às cosmovisões dos povos
originários, que resistem e reexistem aos genocídios e epistemicídios perpetrados no mundo de
Abya Yala pelos processos colonizatórios nos últimos cinco séculos.
Paulo Freire é considerado um marco importante do pensamento decolonial, uma vez que se
soma a autores profundamente conectados com a realidade própria das classes subalternas latino-
americanas.
284
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS
Neste sentido, “[...] reestablecer y reconstruir la comunión entre la naturaleza y las personas
es acto de decolonización y de liberación para la sociedad en su conjunto” (WALSH, 2009, p. 215).
Trata-se de uma atitude proativa de reconstrução das relações humanas e ecológicas expressas pelas
milenares cosmovisões ancestrais não coloniais. Segundo Mario Valencia (2015),
Lo no-colonial refiere a la generación, auspicio y dinamización de saberes-haceres
inspirados en el pensamiento crítico latino-americano y del Sur Global que encara los
retos civilizatorios actuales y de la investigación, con una actitud imaginativa-creativa.
En este sentido comparte con lo decolonial el punto de partida de la conciencia de
estado de colonialidad y su total rechazo, pero se diferencia de algunas de sus
versiones, para las cuales, la actitud y sus esfuerzos se concentran en una analítica
crítica de lo colonial, en términos de refutación, socavamiento, rechazo y
desprendimiento. Dis-tinto de ello, lo no-colonial se entiende aquí, como una
afirmación autodeterminada y creativa de la conciencia crítica y de todas sus
dimensiones de humanidad; para lo cual se concentra más que en desprenderse – de…,
en prenderse – de… la construcción de lo propio, esto determina que se concentren los
esfuerzos más en la imaginación epistémica para la autoconstitución y constitución
colectiva de escenarios sociales, culturales, políticos, de la sensibilidad otros, que en
la refutación dialéctiva de los patrones dominantes (VALENCIA, 2015, p. 12, nota 2 –
grifos nossos).
favorece a interação dialógica com os povos originários, o que nos possibilita aprender com eles a
“Bem-Viver”.
O Bem-Viver se refere à inteira comunidade de todos os seres que compõem o cosmos e não
apenas aos seres humanos. “No se trata del tradicional bien com�n reducido o limitado sólo a los
humanos, abarca todo cuanto existe, preserva el equilibrio y la armonía entre de todo lo que existe”.
(HUANACUNI, 2010, p. 50). Em síntese, “Vivir bien es la vida en plenitud. Saber vivir en armonía
y equilibrio; en armonía con los ciclos de la Madre Tierra, del cosmos, de la vida y de la historia, y
en equilibrio con toda forma de existencia en permanente respeto”.
Luis Macas, equatoriano, indígena Kichwa Saraguro, afirma que os modos de vida das
nações originárias na América Andina têm por base o conceito de Sumak Kawsay:
Sumak significa plenitud, grandeza, lo justo, completamente, lo superior. Kawsay es
vida en realización permanente, dinámica y cambiante; es la interacción de la totalidad
de existencia en movimiento; la vida entendida desde lo integral. Es la esencia de todo
ser vital. Por tanto, Kawsay es estar siendo (MACAS, 2014, p. 184).
Macas esclarece que a tradução da expressão kichwa Sumak Kawsay para o espanhol, Buen
Vivir, não corresponde à concepção original, pois “[...] Buen Vivir en la lengua original kichwa
significa Alli Kawsay, que hace relación a lo bueno, a lo deseable, a la conformidad. Por lo tanto,
Alli Kawsay no guarda el mismo significado que el Sumak Kawsay” (MACAS, 2014, p. 184). Para
o autor, o conceito de Sumak Kawsay expressa uma filosofia de vida inerente a um sistema de vida
comunitário, enquanto o conceito de Buen Vivir corresponderia a uma visão ocidental cujo objetivo
seria melhorar o sistema vigente, estruturado com base no individualismo e na competição.
Maldonado (2014), também equatoriano indígena Kichwa Otavalo, assim como Macas
(2014), chama a atenção de que “[...] el riesgo consiste en que se adopte un término, una categoría
de los pueblos indígenas y se lo vacíe de contenido para llenarlo de un contenido extraño que sea
funcional al sistema” (MALDONADO, 2014, p. 198). É com este cuidado que utilizamos aqui o
conceito de Bem-Viver.
Fernando Huanacuni enfatiza que o Viver Bem só pode ser concebido em comunidade.
Deste modo “[…] irrumpe para contradecir la lógica capitalista, su individualismo inherente, la
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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS
monetarización de la vida en todas sus esferas, la desnaturalización del ser humano y la visión de la
naturaleza como un recurso que puede ser explotado, una cosa sin vida, un objeto a ser utilizado
(HUANACUNI, 2010, p. 51).
[…] la cosmovisión indígena, que considera a la naturaleza como un todo, que abarca
lo material, lo espiritual y humano [...] tiene una serie de principios que parten de la
idea de que se debe: cuidar y respetar al conjunto de seres vivientes que coexisten en
el ecosistema; conservar y fomentar la tierra; proteger los productos de consumo
humano, para mejorar el nivel de vida de la familia y de la comunidad; proteger los
recursos no renovables; incentivar a la comunidad para que cuide su propio ambiente;
socializar a nivel de la organización y las comunidades acerca de la conservación del
entorno como garantía de una vida digna tanto para las actuales generaciones como
para las futuras (TIB�N, 2000 apud HIDALGO-CAPIT�N et al., 2014, p. 49).
(2014), por sua vez, traz os mesmos quatro princípios, porém denomina integralidade o que Walsh
(2009) apresenta como correspondência.
288
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS
acontecimiento tienen como contraparte un complemento, como condición necesaria para ser
completo y ser capaz de existir y actuar. Los diversos se complementan” (MALDONADO, 2014, p.
204).
Es la constitución de dos elementos componentes en uno, la concepción del mundo de
la dualidad complementaria. Esto expresa lo indispensable del complemento, el ajuste
entre unos y otros para dar validez a un elemento de la realidad. Por cuanto nada es
incompleto, todo es integralidad, relacionalidad y complementariedad; desde su
complejidad y desde la dinámica de los principios, se genera la armonía y el equilibrio
(MACAS, 2014, p. 187).
Assim, o mal, a doença, a morte são entendidas como desequilíbrios na interação entre os
diferentes seres e entre seus respectivos contextos. São “passagens” fluidas de um padrão relacional
para outro, na busca de reequilíbrio e vitalidade. Não são propriedades fixas inerentes aos
elementos isolados. A potencialização da complementariedade entre os seres é o que permite
estabelecer o fluido equilíbrio vital, em harmonia e correspondência com o cosmos.
Por fim, o quarto princípio, o da reciprocidade, estabelece que a cada ação corresponde uma
reação, tanto na relação entre os seres humanos, como na relação destes com o universo (WALSH,
2009). Trata-se de uma prática social e econômica de organização da vida comunitária pautada em
relações solidárias e de assistência mútua (MACAS, 2014). A prática da reciprocidade é
fundamental e sustenta a organização comunitária de povos indígenas andinos exigindo que “a cada
acto humano o divino se debe corresponder, como finalidad integral, con un acto recíproco y
complementario equivalente entre sujetos. Dar para recibir es una obligación social y ética”
(MALDONADO, 2014, p. 204).
Assim, nos perguntamos: o que estamos aprendendo com os povos originários para viver e
conviver bem. E que implicações os princípios do “viver em plenitude” trazem para os próprios
processos educacionais?
EDUCAR NO BEM-VIVER
A cosmovisão do Bem-Viver entende que tudo faz parte da comunidade, formada não
apenas por seres humanos, mas por todos os seres que constituem o cosmos. Assim, os processos de
aprendizagem não acontecem de modo isolado dos contextos humanos, ecológicos e espirituais,
pois na natureza tudo está conectado, a vida de um é complementar à vida de outros. Na educação
comunitária se deve ensinar, compreender e respeitar as leis do cosmos.
A educação é permanente, porque se constrói durante toda a vida, para além dos contextos
escolares; permanentemente vamos aprendendo e ensinando.
A educação é circular, pois se aprende ensinando e se ensina aprendendo: “el ni�o también
le ense�a al maestro; le ense�a su alegría, su inocencia, su actuar sin temor, sin estructuras, una
educación de ida y de vuelta, donde ante todo, compartimos la vida (HUANACUNI, 2010, p. 66).
A educação é cíclica “porque todos y cada uno de los participantes asumirán en un momento
dado todos los roles que se requieran de manera rotativa” (HUANACUNI, 2010, p. 66). Assim, as
crianças e os jovens podem exercitar todas as suas capacidades naturais e, ao mesmo tempo,
valorizar o trabalho que os outros realizam.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS
Nos encontros pessoais com Paulo Freire, por várias vezes o ouvi dizer: “Não me copiem!
Me reinventem”. Assim, para concluir este ensaio, gostaria de levantar algumas hipóteses para
“reinventar” ou se “reencontrar com” Paulo Freire desde as cosmologias, filosofias e pedagogias
cultivadas milenarmente pelos povos originários do “sul global”.
Muitos povos originários do continente de “AbyaYala”, bem como dos continentes africano
e austral, foram dizimados ou subalternizados pelos violentos processos de colonização e
escravização impostos ao longo da história da humanidade. Entretanto, muito de suas cosmovisões
resistem e reexistem de múltiplas formas. Mediante escuta intensa e sensível podemos aprender
com estes povos a restabelecer nossos modos de vida e de produção segundo os princípios
ancestrais, que aqui indicamos com o conceito de “Bem-Viver”.
Por outro lado, desde o ponto de vista não colonial das culturas ancestrais, somos
convidados a reconfigurar a própria pedagogia crítica, ultrapassando a concepção antropocêntrica e
racionalista de teóricos existencialistas e materialistas a que Paulo Freire faz referência ao longo de
sua obra.
O “mundo”, que sustenta as próprias relações entre os seres que o constituem, não se reduz à
dimensão humana, mas incorpora as dimensões cosmológica e espiritual. O cosmos é constituído
pela relação harmoniosa entre todos os seres do universo, que a própria ciência moderna hoje vai
descrevendo desde o infinitamente pequeno (como a teoria quântica) até o infinitamente grande,
como as relações entre as galáxias, que mesmo a bilhões de anos-luz de distância estão
sistemicamente conectadas ao nosso planeta Terra.
visão, audição, tato, sabor ou odor). A vida de cada ser é gerada e sustentada pelas complexas
conexões com todos os seres presentes no cosmos que, por sua vez, contém as conexões com todos
os seres pelos quais foram gerados e com todos os seres que serão gerados pelas relações entre os
seres vivos no presente.
Por conseguinte, o diálogo problematizador a partir dos temas geradores pode ultrapassar o
enfoque econômico-político dos processos de opressão e dominação, questionando seus
fundamentos epistêmicos moderno-coloniais. O diálogo crítico entre as culturas ancestrais pode
permitir processos transculturais e transmodernos de empoderamento epistêmico-ético dos
diferentes povos e gerações, no sentido de “[...] desarollar las potencialidades, las possibilidades de
essas culturas y filosofias ignoradas; acciones llevadas a cabo desde sus propios recursos [...]”.
(DUSSEL, 2017, p. 29).
Querida leitora, leitor, o que lhe apresentei neste ensaio são apenas indícios da formulação
ético-epistêmica de princípios cosmológicos e educacionais que intelectuais orgânicos de povos
originários andinos vêm construindo em torno da concepção do Bem-Viver. E mesmo as indicações
comparativas com o denso pensamento de Paulo Freire são ainda hipotéticas. Espero que a
“situação-limite” do caráter ensaístico deste texto lhe seja um convite a promover o “inédito-viável”
de escuta intensa e de diálogo intercultural crítico com os povos originários ancestrais, cuja vida e
convivência atravessam também o território e o povo brasileiro. Ao traçarmos juntos estes
percursos de buscas, entendo que estamos nos educando como “pessoas em relação, mediatizadas
pelo mundo”, ao mesmo tempo em que, enraizando nossas reflexões, ações, relações dialógicas nas
culturas originárias ancestrais, estaremos contribuindo para “educar” ético-epistemicamente nossos
próprios “mundos” a viver e a conviver em plenitude.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS
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WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad – Luchas (De)Coloniales de Nuestra Época. Quito:
Universidad Andina Simon Bolívar/Abya Yala, 2009.
Notas de fim
i
Uma versão reelaborada deste texto compõe também o livro “Paulo Freire Hoje – em AbyaYala”, coeditado por
Camila Wolpato Loureiro, CheronZanini Moretti, João Colares da Mota Neto e Reinaldo Matias Fleuri.
ii
Boaventura de Sousa Santos também nos convida a “aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a
partir do Sul e com o Sul” (SANTOS, 1995, p. 508). O “Sul” metaforicamente indica um campo de desafios
epistêmicos emergentes das relações coloniais estabelecidas historicamente entre a Europa Moderna e outros povos,
bem como pelas relações de exploração, dominação e subalternização entre diferentes grupos sociais, seja nas
metrópoles europeias, seja nas próprias nações colonizadas. Nesta direção, as epistemologias do Sul são constituídas
pelo conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão de muitas formas de saber próprias dos
povos e/ou nações colonizados, “valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um
diálogo horizontal entre conhecimentos” (SANTOS; MENEZES, 2010, p. 13).
Teko porã, para os Guaranis no Brasil; Suma qamaña, para os Aymara bolivianos; Allikawsay ou Sumakkawsay para
iii
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL SOBRE
ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS
CONTINUA?
Roseli Fischmann
Sobre a sombra que sou gravita
A carga do passado. É infinita.
Jorge Luís Borges
All our yesterdays
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
O presente trabalho procura oferecer dados obtidos e vividos com relação ao debate
histórico em torno do ensino religioso em escolas públicas, tendo em vista a presença na
Constituição Federal de 1988, após intenso e forte debate público, de dispositivo que propõe que a
oferta de ensino religioso seja obrigatória para as escolas públicas, garantida a matrícula facultativa
para os alunos e alunas. Mais recentemente, em 2017, independentemente do resultado, foi de
grande importância histórica o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, impetrada em julho de 2010 pela Procuradoria Geral da
República.
A escola pública foi marcada por quatrocentos anos de união legal e de fato entre a Igreja
Católica Apostólica Romana e a monarquia brasileira – primeiramente como colônia de Portugal
como reino e como reino unido e mesmo depois da Independência, como Império do Brasil. Era
uma ordem social estabelecida sobre uma base em que o Estado mantinha união absoluta com a
religião. Convém lembrar que as grandes navegações, em busca de “descobertas” de novas terras,
tinham tanto motivação econômica, como vinculação direta ao conflito religioso aberto com a
Reforma de Lutero, contestando a hegemonia os dogmas, a doutrina e a organização católica.
300
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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...
Na prática, o Direito do Padroado, entre outros componentes, permitia que o rei português
recolhesse o dízimo dos fiéis católicos, a título de garantir recursos para cuidar da obra divina. Ou
seja, o dízimo, como compromisso religioso, era recolhido pelo rei e por ele empregado nas obras
do reino, pode-se dizer que na prática funcionava como um imposto recolhido em nome de uma
divindade. No caso da ação jesuítica na então Colônia, para a efetivação da educação catequética da
população indígena foi destinada a redizima de todos os dízimos, parcela determinada após
reivindicações vigorosas do padre Manoel da Nóbrega, que chefiou o primeiro grupo da Companhia
de Jesus no Brasil.
Por 210 anos os jesuítas estiveram à frente da escola pública, que, ao longo desse tempo,
paulatinamente foi sendo desenvolvida aos moldes do que se fazia em Portugal, destinada aos filhos
dos colonizadores portugueses, por reivindicação desses que atuavam como conquistadores e
queriam para seus filhos o que teriam em Portugal, onde os jesuítas eram responsáveis pela então
chamada instrução pública, como também pela Universidade de Coimbra. Contudo, as fontes das
verbas continuavam a ser parcelas de redizima dos dízimos.
Ora, a expulsão dos jesuítas de Portugal e Colônias em 1754, por obra de Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, o déspota esclarecido de Portugal, à época do Iluminismo,
fez dele o patrocinador e supervisor das chamadas Reformas Pombalinas que, na prática, no Brasil
como colônia, pouco alteraram o sistema de vinculação da instrução pública aos ditames da Igreja
Católica, retirados apenas os jesuítas.
Tampouco o Império viria alterar essa situação, pois a primeira Constituição do Brasil, a que
foi outorgada por D.Pedro I em 1824, assim estabeleceu:
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do
Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo
(BRASIL, 1824).
Num quadro em que havia, como já mencionado, união total entre o Império e a Igreja
Católica, a instrução pública era integralmente submetida a esse desígnio, assim como os docentes,
pensados para atuar nessa atividade, tida como missão. As verbas para educação pública, contudo,
por essa época, já começavam a escassear, a despeito de promessas, manifestações de valorização e
mesmo de legislação a respeito.
Observa-se assim, ainda que numa síntese muito apertada, que dos 400 anos iniciados no
Brasil a partir da conquista portuguesa, três aspectos permaneceriam como pontos cruciais da
temática da religião na escola pública: a missão; a formação e atuação do professorado vinculadas à
determinação religiosa; e o financiamento do ensino, então em simbiose com o religioso.
Federal, que viria a ser promulgada em 1988; quase uma década antes da promulgação da nova Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei n. 9394/96.
Vale lembrar que, dentre as bases jurídicas a que se vincula o debate sobre o ensino religioso
nas escolas públicas, devem ser incluídos aqueles dispositivos que se referem tanto à laicidade do
Estado, conforme proposta no Art. 19 da Constituição Federal, como às garantias de direitos e
deveres individuais, presentes no Art. 5º.
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
Processo social e político mais amplo, descrito e analisado em artigos anteriores, ampliou o
interesse acadêmico sobre o tema, levando a um aumento substancial de áreas e pesquisadores
dedicados a investigar diretamente o problema, ou tópicos ligados a ele. Pesquisa realizada com
apoio do CNPq, por esta pesquisadora, indicou, mesmo, aumento de número de grupos de pesquisa
ligados ao tema da laicidade do Estado e ao ensino religioso nas escolas públicas a partir desse
processo, ocorrido em duas etapas: a primeira no final de 2006 e maio de 2007; a segunda, ao longo
de 2009.
Refiro-me ao Acordo Brasil – Santa Sé, conhecida também como Concordata com a Santa
Sé. A primeira fase do debate público ocorreu quando, em novembro de 2006, após receber convite
para participar de um encontro no MEC que trataria de ensino religioso nas escolas públicas “no
âmbito da Concordata com a Santa Sé”, ao ligar para o telefone de contato fornecido no convite,
perguntei se conheciam minha posição, como pesquisadora compromissada com a democracia e a
República. Disseram que sim, mas que por isso seria importante que lá estivesse. Como ocorrera
uma situação prévia, minha atenção elevou-se.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...
faltava informação, e foi complementada pelo advogado da Nunciatura Apostólica no Brasil, que
afirmou que estava praticamente pronta uma concordata “muito completa”, que seria assinada pelo
então Presidente Lula da Silva, quando da visita do Papa Bento XVI, programada para maio de
2007, durante a cerimônia de canonização de Frei Galvão.
Assim, o convite para aquele evento no MEC sobre ensino religioso nas escolas públicas
tornou-se a evidência empírica de algo que, até então, era uma fala durante um evento, sem
qualquer documento escrito, propiciando-me vir a público por meio de um artigo no jornal Folha de
S. Paulo. A repercussão desse artigo foi tal, que mobilizou setores os mais variados, pois estavam
em jogo muitos elementos, não apenas o ensino religioso nas escolas públicas, tema tão caro a
quem pertente à área da Educação. Houve mobilização da Anped, SBPC, Anpocs, Andhep, além de
programas de pós-graduação de diferentes áreas, de diferentes universidades, movimentos de
mulheres, movimentos negros, movimentos indígenas, movimentos de procuradores, de juízes,
entre outras categorias, bem como aproximação de diferentes religiões e diversas outras
denominações cristãs. Essa grande mobilização levou a que não fosse assinada a referida
concordata durante a visita do papa ao Brasil, a qual ocorreu, mas sem o impacto que era
pretendido.
Resulta que, após complexo e tenso processo, o acordo foi aprovado no Congresso Nacional,
sendo promulgado pelo Presidente da República em fevereiro de 2010, por meio do Decreto n.
7.107/2010. Especificamente para a questão do ensino religioso nas escolas públicas, foi adicionada
a seguinte controvérsia, indicada pelos grifos:
A ADI 4.439
Após apresentar as modalidades de ensino religioso que extraiu da primeira redação do Art.
33 da Lei n. 9394/96, ou seja, confessional, interconfessional e inter-religioso, lembrando a
mudança havida com a alternativa adotada na LDB a partir da Lei n. 9.475/97 (que adiante será
tratada). Percebe-se que a Procuradora Geral da República em exercício acolhe como constitucional
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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...
o texto atual do Art. 33, ressaltando, contudo, que há problemas na sua aplicação, por todo o
território nacional, inclusive em termos da situação de quem pode ministrar ensino religioso nas
escolas públicas.
Assim, aponta que a questão é que se tem aplicado de modo inconstitucional o referido
dispositivo, situação que poderia ser sanada se a interpretação permitisse adotar o que denomina
como “modalidade não confessional” garantido que fosse ministrada por professores que não
fossem representantes das confissões religiosas. Assim está exposto no texto inicial da ADI 4439:
(6.) A tese a ser aqui desenvolvida é a de que a única forma de compatibilizar o caráter
laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas é através da
adoção do modelo não-confessional, em que o conteúdo programático da disciplina
consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais
das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o
agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores. Estes, por
outro lado, devem ser professores regulares da rede pública de ensino, e não pessoas
vinculadas às igrejas ou confissões religiosas.
A AUDIÊNCIA PÚBLICA
Atendendo sugestão apresentada na ADI 4.439, o Ministro Luís Roberto Barroso decidiu,
em março de 2015, convocar Audiência Pública para 15 de junho do mesmo ano.
Observe-se que em 2010 e início de 2011, logo após a Procuradoria Geral da República ter
ajuizado a ADI 4.439, o movimento que havia ocorrido foi de diversas e diferentes instituições
peticionaram, cada uma delas, para intervir no processo como amicus curiae.
cada instituição requerente, como amicus curiae, e de instituições que já estavam presentes,
individual ou como coletivo de organizações, no processo como amicus curiae.
A audiência pública trouxe grande volume e qualidade de novos documentos para subsidiar
o trabalho do Ministro Relator, já que as entidades participantes apresentaram documento por
escrito, nem sempre idêntico ao que foi exposto na audiência pública, a qual, por sua vez, está
integralmente postada no canal do STF do Youtube. Tive a honra de ser uma das preletoras,
representando a Confederação Israelita do Brasil.
Houve 31 participantes na Audiência Pública, sendo que as seguintes dez entidades foram
convidadas previamente pelo Ministro Roberto Barroso, que convocou a referida audiência: (i)
Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed); (ii) Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE); (iii) Confederação Israelita do Brasil (Conib), (iv)
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), (v) Convenção Batista Brasileira (CBB), (vi)
Federação Espírita Brasileira (FEB), (vii) Federação das Associações Muçulmanas do Brasil
(Fambras), (viii) Igreja Assembleia de Deus – Ministério de Belém, (ix) Liga Humanista Secular do
Brasil (LIHS), e (x) Sociedade Budista do Brasil (SBB). Além destas, o Ministro Barroso deferiu a
participação de outros 21 órgãos e entidades, inscritos nos termos do edital de convocação
publicado pelo STF: (i) Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação; (ii) AMICUS DH -
Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da Faculdade de Direito da USP; (iii) Anis – Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero; (iv) Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-
Israel (Anajubi); (v) Arquidiocese do Rio de Janeiro; (vi) Associação Inter-Religiosa de Educação e
Cultura (Assintec); (vii) Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em
Teologia e Ciências da Religião (Anptecre); (viii) Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris; (ix)
Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ; (x) Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados; (xi) Comissão Permanente de Combate às
Discriminações e Preconceitos de Cor, Raça, Etnia, Religiões e Procedência Nacional
(CPCDPCRERPN); (xii) Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República; (xiii) Conectas Direitos Humanos; (xiv) Conselho
Nacional de Educação do Ministério da Educação; (xv) Convenção Nacional das Assembleias de
Deus - Ministério de Madureira; (xvi) Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (Fenacab) em
conjunto com Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno; (xvii) Fórum Nacional
Permanente do Ensino Religioso (Fonaper); (xviii) Frente Parlamentar Mista Permanente em
Defesa da Família; (xix) Igreja Universal do Reino de Deus; (xx) Instituto dos Advogados
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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...
Por outro lado, dos 31 participantes, 8 defenderam a improcedência da ação, a saber, CNBB,
Conamad, Arquidiocese do Rio de Janeiro, Deputado Marco Feliciano, Fambras, Fenacab, Assintec,
Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família. A maior parte dessas 8 participantes
apresentaram seus argumentos em defesa do Acordo Brasil – Santa Sé, enquanto outros procuraram
trazer interpretações alternativas de como entender a laicidade do Estado, buscando destacar,
ampliar e mesmo sobrepor à Constituição Federal, valores religiosos de suas confissões religiosas.
Esses posicionamentos anunciavam perspectivas de novos embates na relação entre o Estado
e as religiões, no âmbito dos quais o tema do ensino religioso nas escolas públicas pode passar a ser
apenas uma das ameaças à laicidade do Estado brasileiro, como definido na Constituição Brasileira,
em seu Art. 19.
Após relatório que trouxe reflexão aprofundada sobre o tema da religião na atualidade, bem
como uma revisão dos aspectos legais relacionados ao tema, foi na terceira parte do relatório que o
Ministro Barroso apresentou sua tese, como Ministro-Relator, para votação do Plenário:
Portanto, Presidente, eu concluo lendo a ementa do meu voto e a minha tese de
julgamento:
2. O ensino religioso nas escolas públicas, em tese, pode ser ministrado em três
modelos: confessional, que tem como objeto a promoção de uma ou mais confissões
religiosas; interconfessional, que corresponde ao ensino de valores e práticas
Dessa forma, o Ministro-Relator Luiz Roberto Barroso votou pela procedência do pedido
apresentado pela PGR na ADI 4.439 (DF), ou seja, seu voto considerou inconstitucional o modo
como vinham se dando as aplicações do Art. 33 da Lei n. 9.394/96, que têm sido realizadas em
escolas públicas por todo o território nacional, assim como o Art. 11 do Acordo Brasil – Santa Sé,
entendendo que a oferta de ensino religioso não confessional apresenta-se como o único modo
constitucional de cumprir o § 1º do Art. 210 da Constituição Federal (1988). Vale destacar, ainda,
que o Ministro Barroso, em seu relatório, dedicou cuidadosa atenção ao fato de que a matrícula
facultativa na “disciplina” ensino religioso nas escolas públicas tem sido desconsiderada de muitos
modos, violando os direitos fundamentais de crianças e adolescentes que cursam o Ensino
Fundamental.
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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...
Embora os que votaram pela improcedência da ADI 4439 tenham apresentado diferentes
argumentações para fundamentar sua divergência, essa diversidade de posicionamentos não se
refletiu no texto final do acórdão, para o qual foi designado como Relator, pela Presidente do STF,
o Ministro Alexandre de Moraes. De fato, a ênfase recaiu sobre a polarização entre “modelo
confessional” e “modelo não confessional”.
Tratando-se de texto enxuto, são apresentados a seguir alguns trechos do acórdão relativo ao
julgamento da ADI 4439:
5. A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se
matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental,
ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos
dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como
história, filosofia ou ciência das religiões.
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para
os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por
seus responsáveis, em caráter:
Ora, o parecer apresentado pelo Deputado Padre Roque Zimmermann (PT-PR) sobre 3
projetos de lei apresentados sobre o tema do ensino religioso, foi aprovado pela Câmara dos
Deputados, estritamente por acordo de lideranças, no último dia antes do recesso parlamentar de
julho de 1997, resultando na aprovação da Lei n. 9.457/97. Os 3 projetos antes referidos foram 2 de
autoria de deputados federais, a saber, deputado Nelson Marchezan e deputado Mauricio Requião, e
o terceiro de autoria do Poder Executivo, voltado para garantir financiamento público apenas à
oferta de ensino religioso ofertado em caráter ecumênico.
Nesse parecer sobre os três PLs, o Deputado Padre Roque afirma, por exemplo:
A análise dos três projetos evidencia importantes convergências que merecem ser
destacadas. Todos adotam o princípio de que o ensino religioso é parte integrante
essencial da formação do ser humano, como pessoa e cidadão, estando o Estado
obrigado a promovê-lo, não só pela previsão de espaço e tempo na grade horária
curricular do ensino fundamental público. Mas, também pelo seu custeio, quando não
se revestir de caráter doutrinário ou proselitista, possibilitando aos educandos o acesso
à compreensão do fenômeno religioso e ao conhecimento de suas manifestações nas
diferentes denominações religiosas.
E também:
[...] pela primeira vez no Brasil se criam oportunidades de sistematizar o ensino
religioso como disciplina escolar que não seja doutrinação religiosa e nem se
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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...
confunda com o ensino de uma ou mais religiões. Tem como objeto a compreensão da
busca do transcendente e do sentido da vida, que dão critérios e segurança ao exercício
responsável de valores universais, base da cidadania. Esse processo antecede qualquer
opção por uma religião.
Ora, os trechos acima deixam claro que o espírito da Lei n. 9.475/97, ao alterar o Art. 33 da
LDB, incluindo no texto da lei, que “compilou” os três projetos abarcados no relatório do Deputado
Padre Roque, explicitamente pronunciou-se contra o ensino religioso confessional, por fim
aprovado pelo Pleno do STF por maioria apertada de votos, ao mesmo tempo que reconhece a
constitucionalidade do Art. 33 da LDB. Que desdobramentos podem ocorrer com a afirmação, pelo
STF, daquilo que é negado pela Lei? Como se define, nessa circunstância, o tema do financiamento
da oferta de ensino religioso nas escolas públicas em caráter confessional? Como lidar com a
questão de quem deve ministrar ensino religioso nas escolas públicas? Se o vínculo com as religiões
e denominações é inevitável no modelo confessional, dificultando a seleção de professores e
professoras, como permitir que crie ônus para os cofres públicos?
Observe-se que, quando da aprovação da BNCC/EF, já havia sido julgado pelo Pleno do
STF a ADI 4.439 e considerada improcedente, sendo a data da decisão constante no Acórdão a de
27 de setembro de 2017. Repetindo, explicitamente já havia sido considerado inconstitucional o
Estado definir conteúdo para o ensino religioso nas escolas públicas, o que foi feito, contudo, pela
BNCC/EF (MEC, 2017). Seria esse, já, um desdobramento da inconsistência da decisão vitoriosa no
STF, como acima indagado? Que outros desdobramentos poderão ocorrer dessa evidente e objetiva
divergência entre o decidido pela mais alta corte do Poder Judiciário, e a mais alta instância, em
nível ministerial, do Poder Executivo?
Para ficar na linguagem da ADI 4.439, a definição híbrida que faz o Art. 11 do Decreto n.
7.107/2010, procurando compor o ensino religioso confessional com os pressupostos do Art. 33 da
LDB, não significaria uma volta ao passado no qual a Igreja Católica encontrava-se ligada ao poder
do Estado monárquico? No qual estariam interligados confissão religiosa, professores e
financiamento da missão?
Parece ser plausível, portanto, afirmar que a controvérsia constitucional continua, com
graves e complexos desdobramentos a partir de 2017, sendo incerto como e quando se poderá
encaminhar alguma alternativa a um quadro que, sem dúvida, não poderá continuar.
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES,
DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
Susana Sacavino
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
As duas últimas décadas do século XX e todos esses anos do século XXI estão marcados
pelo surgimento da ideologia neoliberal e seu fortalecimento na implementação das políticas e dos
princípios hegemônicos e imperativos sobre os sistemas nacionais de educação da América Latina e
do Caribe e, apesar da forte manifestação de vozes e movimentos de resistência, a mercantilização e
a privatização têm proliferado nos diferentes setores da sociedade.
Este sistema funciona e se constitui como uma nova colonização no continente e uma de
suas áreas importantes de penetração é através da educação. As reformas educativas neoliberais são
impulsionadas pelas instâncias de poder internacional e nacional como resposta aos problemas de
qualidade dos sistemas educativos da região. A reorganização neoliberal dos sistemas econômicos e
produtivos no continente tem se projetado também no campo da cultura, da educação em seu
conjunto, e especialmente no campo das universidades, sendo constantemente submetidas a
enfoques e políticas mercadológicas.
Consideramos que para que nossas universidades e também a escola sejam capazes de criar
não só conhecimentos hegemônicos que causem impacto na trama produtiva da sociedade, mas
também conhecimentos outros que respondam aos desafios que enfrentam nossas sociedades (a
segurança alimentar, a mudança climática, a gestão da água, o diálogo intercultural, as energias
renováveis, a saúde pública, entre outros), devem apostar na abertura, no acesso e na permanência
dos grupos que historicamente foram subalternizados, invisibilizados ou expulsos de suas salas de
aulas (indígenas, afrodescendentes, imigrantes, sujeitos com deficiências e aqueles que procedem
de setores populares, entre outros).
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
visão empresarial impregna a maior parte das políticas educativas dos países do continente,
inclusive o Brasil.
Segundo Taubman (2009), que realizou uma ampla análise do discurso dos reformadores
empresariais nos Estados Unidos, essa formulação se desenvolve na confluência de uma série de
ciências, entre elas: a psicologia behaviorista, as ciências da informação e a neurociência. Com o
apoio desses campos se constrói uma cultura da auditoria. Nas palavras do autor, uma “cultura da
auditoria que se refere à emergência de sistemas de regulação nos quais as questões de qualidade
ficam subordinadas à lógica da administração e na qual a auditoria serve a uma forma de meta
regulação através da qual o foco é o controle do controle” (TAUBMAN, 2009 apud FREITAS,
2012, p. 108).
Essa cultura da auditoria da agenda neoliberal é a que alimenta e sustenta a prática das
avaliações sistemáticas de longa escala (PISA e outros exames), com especial atenção à produção
de dados quantitativos, promovida pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) e por outros organismos internacionais.
Nesse sentido, as três ideias fundamentais da educação neoliberal são: eficiência, eficácia e
qualidade, acolhidas e reforçadas pela pedagogia estadunidense, provenientes do eficientismo
industrial, como já mencionamos. Com o aumento da eficiência, se pretende aumentar a capacidade
de resposta de todo ator educativo, consequentemente se dá uma desesperada procura pela
qualidade educativa e, dessa forma, se tenta subordinar o sistema educativo ao aparelho produtivo.
Esses enfoques também trazem uma visão e uma necessidade do gestor educativo capaz de
administrar as instituições educativas, desvalorizando certas competências docentes como a
experiência prévia do educador e o saber docente, e afirmando práticas de gerenciamento como a
inovação e o empreendedorismo. Dessa forma, tanto as escolas como os docentes são estratificados
e julgados a partir da lógica empresarial de profissionais, bem ou malsucedidos, em função do seu
próprio mérito.
que monopolizam o poder político, econômico, social e cultural, e os piores, as grandes maiorias
cada vez mais submetidas ao aumento das condições de pobreza e a uma violência repressiva que
nega não só os direitos sociais, mas, principalmente, o direito mais elementar, que é o da vida
digna.
Essas políticas educativas neoliberais que se centram na qualidade total com enfoque
empresarial, de acordo com Giroux (2018), reduzem a cultura escolar a uma cultura empresarial e a
um acampamento armado. Nesse sentido, impõem uma ameaça real e simbólica de violência nas
escolas, nos docentes e nos estudantes, e nas quais o pensamento se torna inimigo da liberdade e o
lucro cobra mais importância que a vida humana.
Também Giroux (2018, p. 2), num artigo sobre as greves de docentes nos Estados Unidos,
que consideramos que pode ser aplicado à realidade atual de vários países da América Latina e do
Caribe, ao fazer referência às políticas educativas neoliberais, afirma que:
Os professores estão cansados de ser vítimas implacáveis de um capitalismo de casino,
no qual eles e os estudantes são tratados com pouco respeito, dignidade e valor. Eles
se cansaram de políticos corruptos, administradores de fundos de investimento e
analistas civicamente analfabetos seduzidos pelo poder de empresários demagogos e
políticos que estão desenvolvendo uma guerra contra o ensino crítico, a pedagogia
crítica e a criatividade e a autonomia dos professores na sala de aula. [...].
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor do mercado é o que vai matar a
universidade. Uma universidade que é “sustentável” porque financia a si própria é uma
universidade insustentável como bem comum, porque se torna uma empresa, é o que nos adverte o
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2018), e eu faço extensiva essa afirmação
também para a escola.
Desde essa perspectiva, considero que precisamos encontrar meios para a educação e a vida
que nos ajudem a construir enfoques e práticas lúcidas, críticas e transformadoras com vistas a
democratizar, desmercantilizar, despatriarcalizar, decolonizar e interculturalizar.
Não é a mesma coisa olhar para a realidade que saber ver e ler a realidade. Olhar é sempre
seletivo e desde um lugar, não só como espaço físico, mas também como determinado espaço
mental que é condicionado pela história de vida, pela educação, pelo lugar social, pelas pertenças
culturais, etc. Esses elementos e essas dimensões condicionam o modo de se ler a realidade.
Uma educação intercultural e decolonial deve ajudar a questionar o ponto de vista em que
nos situamos para ver a realidade, para problematizar as visões etnocêntricas e estimular o sentido
crítico a fim de sermos capazes de questionar nossa cultura e nosso lugar social. Saber ver é ver
com os olhos do coração postos na humanidade sofredora. Este ver não é neutro. É preciso se deixar
afetar por tudo e por todos. O sofrimento do outro provoca um impacto no nosso interior e nos
comove quando somos capazes de olhar com o coração. Fazer o exercício de destravar e desvelar
nosso olhar, focado em nós próprios, nos nossos interesses e apegos e ampliá-lo em direção ao
outro. Esta forma de ver nos impulsiona para um compromisso liberador e solidário e ajuda a
construir a identidade do outro e a nossa própria identidade, porque se olha de uma maneira única e
singular a cada um. É um olhar que revela as identidades daqueles que estavam invisibilizados,
daqueles que eram ignorados e silenciados. É um olhar que desperta confiança, que dignifica e
reconhece o outro, que fortalece sua autoestima e que o afirma para a vida, para caminhar e
expandir as energias. É um olhar que outorga humanidade e dignidade, possibilidade de ser àqueles
considerados objetos e não sujeitos e, por isso mesmo, secularmente negados, violentados e
colonizados.
Mas também tem um movimento de irmandade: ao ver outro preto na rua, você olha,
dá um sorriso, balança com a cabeça. É um reconhecimento de pessoas que estão se
achando e viram outros iguais a ele (PORTELA, 2020, p. 1).
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
Esta forma de olhar e ver é transformadora e humanizadora e nos leva a olhar para além dos
nossos preconceitos, estereótipos e discriminações.
Descobrimos as pessoas e os grupos que habitualmente estão excluídos por [do] nosso olhar
e invisibilizados. Temos que educar nosso olhar, tentando descobrir e revelar aquilo que o outro tem
para aprender dele e enriquecermos com sua história e sua cultura.
Não é suficiente saber olhar, é importante também saber escutar as vozes que historicamente
foram silenciadas e ficaram sem capacidade para dizer sua palavra, devido a um sistema racista,
colonizador e patriarcal.
A palavra, desde um sentido performativo, esboça nosso mundo, porém,
recursivamente, temos a possibilidade de incidir, de subverter os signos, as palavras,
os discursos, em suma, a linguagem e, por conseguinte, de recriar esse mundo
(COSTAS; MANZUR, 2018, p. 3).
Quando falamos do direito à existência digna, à voz, estamos falando de lócus social,
de como esse lugar impostodificulta a possibilidade de transcendência.
Contudo, saber ver e escutar supõe também saber analisar e captar criticamente a realidade.
Concebemos a educação como uma prática social e, nesse sentido, os processos que desenvolve
devem sempre se referir ao contexto em que vivemos. Nossa vida cotidiana no tempo presente vai
além do local. Ela se encontra atravessada por outras dimensões que não podemos perder de vista
ao elaborar e desenvolver nossas propostas educativas.
Nesse sentido, Freire (1997) afirma que a educação é uma forma de intervenção no mundo e,
por essa razão, implica compreender os diferentes mecanismos de construção social, política,
histórica, econômica da realidade e das estruturas sociais, assim como também desenvolver o
sentido crítico para pôr de manifesto a ideologia dominante.
A prática pedagógica não é neutra, ela exige uma opção e uma definição por parte do(a)
educador(a):
Não posso ser professor e não perceber, de forma crescente, que pelo simples fato de
não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma posição. Decisão.
Ruptura. Exige que eu escolha entre isto ou aquilo. Não posso ser professor em favor
do que quer que seja, em favor de não sei o quê (FREIRE, 1997, p. 115).
Freire também afirma que não é possível ser professor(a) e fazer opções em sentido amplo,
abstratas, como, por exemplo, em favor da humanidade. Essas opções devem ser contextualizadas
em cada momento histórico porque a prática educativa não é vaga, mas um ato concreto, situado,
localizado. Daí a importância de saber ver, escutar e aprender a ver com a mente e o coração no
momento presente.
Nas sociedades, naquelas onde, cada vez mais, se exige a consciência acerca das diferenças,
é de especial importância que se aprofunde em a quem incluímos na categoria “nós” e a quem na
categoria “outros”. Estes são temas que nos desafiam a trabalhar em todas as relações sociais e de
modo especial desde a ótica da formação de educadores(as) como agentes culturais. Nossa posição
diante do “outro” surge “naturalmente” e é construída a partir de uma perspectiva etnocêntrica. Na
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
categoria “nós”, incluímos todas aquelas pessoas e grupos sociais, cujas referências de vida são
semelhantes às nossas; cujos hábitos, valores, estilos, visões de mundo se parecem com os nossos e,
de alguma forma, nos ajudam a reforçá-los.Os “outros” são aqueles(as) que enfrentam essa
perspectiva, em função da sua classe social, sua etnia, sua religião, seus hábitos, geração a qual
pertencem, bem como de seus valores, suas tradições, etc. Acreditamos que questionar e favorecer
processos que contribuam com a tomada de consciência e com a superação do etnocentrismo são,
na atualidade, desafios que temos para a formação dos(as) educadores(as) desde as perspectivas
críticas, transformadoras e interculturais.
Skliar e Duschatzky (2001) destacam três formas de ver e três versões discursivas em
relação à alteridade e à diversidade. São elas: “o outro como fonte de todo mal”, “o outro como
sujeito pleno de um grupo cultural” e “o outro como alguém a ser tolerado”.
“O outro como fonte de todo mal” simboliza o modo predominante da relação cultural,
social e política do século XX e do século atual. A demonização do outro pode apresentar diferentes
versões, desde a sua transformação num sujeito ausente, invisibilizado, até a invenção para as
traduções oficiais, desde a ventriloquiai, ou sua mais perversa exclusão, sempre assentado numa
lógica binária para assegurar e garantir as identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis,
essencialistas, etc. O outro diferente funciona como um depositário de todos os males, o centro de
todos os males, como o portador das falhas sociais. E, por esse motivo, deve ser combatido,
excluído, inferiorizado e, muitas vezes, exterminado.
“O outro como sujeito pleno de um grupo cultural” supõe uma perspectiva em que as
culturas representam comunidades homogêneas de crenças e estilos de vida, em que cada sujeito
adquire identidades plenas a partir de marcas únicas de identificação, como se as culturas se
estruturassem independentemente das relações de poder e hierarquia. Essa ideia implica que as
diferenças são absolutas, plenas e que as identidades se constroem com referenciais únicos, étnicos,
de gênero, de religião, classe social, etc. Nesse contexto, a diversidade cultural supõe o
reconhecimento de conteúdos e costumes culturais preestabelecidos, sem possibilidades de misturas
e contaminações. O outro é incorporado tendo em vista perspectivas assimilacionistas, dependendo
de sua capacidade de adaptação e de renúncia de sua própria cultura e identidades.
“O outro como alguém a ser tolerado” constitui uma visão que, segundo os próprios autores,
apresenta muitas ambiguidades. Dela se destacam duas formas de tolerância: a assimilação
individual e o reconhecimento do grupo. Dentro dessa visão, o princípio de reconhecimento é
sempre colocado na homogeneidade, na nivelação e não na diferença. Ser cidadão ou sujeito como
indivíduo igual e não como sujeito diferente. A tolerância é uma atitude fraca que nos exime de nos
posicionarmos e de nos responsabilizarmos por essa posição. A tolerância, segundo os autores,
enfraquece as diferenças discursivas e encobre as desigualdades.
Outro aspecto importante, quando são trabalhadas as visões do outro nos processos
educativos e que ainda são pouco trabalhadas na América Latina e no Caribe, é a problematização
da branquitude como um paradigma histórico de dominação, dentro da construção social, cultural,
econômica e política.
Mesmo que a identidade racial branca seja diversa, Cardoso (2010) define genericamente a
branquitude como a identidade racial branca. A branquitude se constrói e se reconstrói histórica e
socialmente no nível local e global. Não se trata de uma identidade homogênea e estática, pois vai
se modificando ao longo do tempo. Ser branco, dentro da construção democrática, no contexto
nacional dos nossos países latino-americanos, significou, historicamente, ter poder e estar no
poder. Por problemas de extensão do presente texto nos limitaremos simplesmente a enunciá-lo,
mas é importante aprofundar e trabalhar esse tema também desde a construção das visões do outro
(SACAVINO, 2013, p. 61).
Como afirma Siqueira (2020, p. 1), que se autodefine como homem, negro, trans, ativista, “a
branquitude é uma estrutura tão forte que, às vezes, a gente é invisível, mesmo que tenha dinheiro
para pagar alguma coisa”.
Uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que
acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou
considerados apenas como esforços próprios. Perceber-se é algo transformador. É o que permite
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
situar nossos privilégios e nossas responsabilidades diante de injustiças contra grupos sociais
vulneráveis e/ou excluídos (RIBEIRO, 2019, p. 32).
Santos (2020, p. 2), que se define como mulher negra, cis, hetero, desde a experiência dos
sujeitos, confirma essas afirmações,
O que é bem irritante é as pessoas perguntarem de onde eu sou. Respondo que sou
daqui, mais do que ela, pois sou como 53% da população brasileira, que se declaram
negros.
Tem uma coisa da beleza diferente, de me colocarem num lugar mais do exótico, do
que do sexual.
Eu gosto de frequentar lugares bons. Sou chamada de preta pobre patrícia. Fico feliz
de ver outras pessoas pretas nesses espaços. Fico triste com o discurso de “esse lugar
não é para mim”...
Precisamos estar em todos os espaços. Não é agir como branco. Mas é ser a gente
mesmo nos lugares que são nossos por direito. É não ter vergonha de ter
possibilidades de acesso.
Do ponto de vista dos processos educativos, Candau (2012, p. 237) nos lembra que:
Se queremos potencializar os processos de aprendizagens escolares desde a garantia
para todos(as) do direito à educação, devemos afirmar a urgência de trabalhar questões
relativas ao reconhecimento e à valorização das diferenças culturais nos contextos
escolares.
Emilia Ferreiro (2001) segue o mesmo raciocínio ao fazer referência a nosso continente e à
dificuldade da escola pública, desde o começo de sua institucionalização, de trabalhar com as
diferenças. Considero que tanto a citação de Candau quanto a de Ferreiro (2001) podem ser
extensivas, guardando as distâncias, aos espaços universitários e à escola:
A escola pública, gratuita e obrigatória do século XX é herdeira da escola do século
anterior, encarregada de missões históricas de grande importância: criar um único
povo, uma única nação, anulando as diferenças entre os cidadãos, considerados como
iguais diante da lei. A tendência principal foi equiparar igualdade a homogeneidade.
Se os cidadãos eram iguais diante da lei, a escola devia contribuir a gerar esses
cidadãos, homogeneizando as crianças, independentemente de suas diferenças de
origem. Encarregada de homogeneizar, de igualar, essa escola mal podia apreciar as
diferenças.
E conclui dizendo:
É indispensável instrumentalizar didaticamente a escola para que trabalhe com a
diversidade.ii Nem a diversidade negada, nem a diversidade isolada, nem a diversidade
simplesmente tolerada. Também não se trata da diversidade assumida como um mal
necessário ou celebrada como um bem em si mesma, sem assumir seu próprio
dramatismo. Transformar a diversidade conhecida e reconhecida numa vantagem
pedagógica: me parece ser este o grande desafio do futuro (FERREIRO, 2001 apud
LERNER, 2007, p. 7).
• Dentro da sala de aula, qual é a minha posição diante dos meus alunos? Afirmo que
são todos iguais ou reconheço as diferenças? A construção da igualdade entra em
tensão com as diferenças? O que implica assumir as diferenças como uma vantagem
pedagógica?
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
Contar outras histórias significa apoiar, valorizar e visibilizar a produção e o fazer história
dos sujeitos subalternos da sociedade capitalista, suas próprias leituras do passado e do presente
como uma forma de luta contra as diversas formas de dominação e colonização a que foram
submetidos. São diferentes concepções e práticas historiográficas, na maior parte feitas desde “o
avesso da história”, comprometidas com as lutas e aspirações dos excluídos, oprimidos, colonizados
e “condenados da terra” (TORRES, 2014, p. 9).
É importante destacar, partindo dos enfoques que estamos trabalhando, que até pouco tempo
atrás a epistemologia ocidental (euro-usa-cêntrica) se caracterizava não só por privilegiar o cânone
de pensamento do homem ocidental (o gênero é proposital), mas também por estudar o “outro”
como objeto e não como sujeito que produz conhecimentos, ocultando, assim, a “geopolítica” e a
“corpo-política” do conhecimento por meio da qual os acadêmicos e intelectuais brancos pensam
(GROSFOGUEL, 2013, p. 18).
Grada Kilomba (2019, p. 51), mulher negra, artista, escritora e professora da Universidade
de Humbolt, em Berlim, Alemanha, o expressa assim:
Dentro dessas salas (refere-se à universidade) fomos feitas(os) objetos “de discursos
estéticos e culturais predominantemente brancos” (HALL, 1992, p. 252), mas raras
vezes fomos os sujeitos. [...]
Somos capturadas/os em uma ordem violenta colonial. Nesse sentido, a academia não
é um espaço neutro nem tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e
sabedoria, de ciência e erudição, é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS
Além do mais, é importante destacar e perceber que essa hierarquia epistêmica tem seus
próprios discursos, narrativas, ideologias e seu próprio marco institucional. O pensamento ocidental
(euro-usa-cêntrico), como perspectiva epistêmica, privilegia os conhecimentos, as memórias e as
histórias dos homens colonizadores ocidentais ao redor do mundo. E com a mesma amplitude, essa
epistemologia continua sendo globalizada institucionalmente, especialmente através da
universidade ocidentalizada, da escola e das produções bibliográficas.
Qualquer pensamento crítico, desde as ciências sociais, produzido por e a partir de uma
perspectiva/episteme situada em algum espaço não ocidental (euro-usa-cêntrico), com muita
frequência, é inferiorizado, percebido como suspeito e considerado pouco sério e consistente, ou
• É bom também fazer esse mesmo exercício com relação às referências que usamos
hoje nas nossas aulas, ou na seleção que fazemos para o currículo. Que
conhecimentos ensino e valorizo? Onde se situa essa geopolítica do conhecimento e
a “corpo-política” dos(as) autores(as) selecionados(as)?
Talvez, depois de realizar esse exercício, possamos tomar consciência de que não se trata
unicamente de uma questão de representação ou de reconhecimento, não se trata de políticas
identitárias, mas de algo mais complexo, reconhecido como geopolíticas do saber e do poder.
No contexto atual, as políticas educativas neoliberais que dominam nosso continente não
questionam o formato educativo dominante, seja qual for o nível, nas escolas ou nas universidades,
o foco – como já demonstramos neste artigo – é colocar a ênfase em dois aspectos: na gestão e na
avaliação, que são o marco do modelo educativo hegemônico.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
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Notas de fim
i
Ventriloquia, segundo Mario Rufel, significa falar pelo outro e em nome do outro, tirando deste a sua capacidade de
sujeito e de ter a sua palavra, o que aconteceu e normalmente acontece nos processos colonizadores.
ii
A autora utiliza os termos diferença e diversidade como sinônimos.
Desde esses enfoques epistémicos o sujeito e o objeto de pesquisa se interpenetram. Também é importante reconhecer
iii
o “lugar de enunciação” de cada discurso, lugar que ao mesmo tempo é social, político e geográfico.
iv
O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalternizado ao projeto eurocêntrico da modernidade.
Em lugar de recusar a modernidade para se esconder em um absolutismo fundamentalista, as epistemologias de
fronteira redefinem a retórica emancipatória da modernidade, a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno,
as que se situam do lado do oprimido e explorado da diferença colonial e procuram lutar pela liberação decolonial para
que o mundo possa superar a modernidade eurocentrada (GROSFOGUEL, 2008, p. 74).
336
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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE
FOGO. PARECIA UMA GUERRA” NOTAS COM
CRIANÇAS DE TERREIROS PARA METODOLOGIAS
ANTIRRACISTASi
A primeira chuva deste ano foi dia 4 de janeiro, depois não parou mais de chover. No dia da
festa, a chuva deu uma trégua. Quintal limpo, barracão todo arrumado, as pessoas foram chegando e
se acomodando nos bancos. Eram parentes e amigos dos novos iniciados. Porque pesquiso com
crianças de terreiros, minha percepção estava nos dois meninos do barco. Contudo, como acontece
geralmente, havia outras crianças na festa. Eram crianças iniciadas, integrantes desse mesmo
terreiro e crianças visitantes, que frequentavam a casa ocasionalmente. Existiam, ainda, as abiãsviii,
crianças ligadas ao terreiro e ainda não iniciadas. Dandara Sophia, 7 anos, era abiã. Ela ajudou a
enfeitar o barracão, ajeitou flores, arrumou laços, espalhou folhas. Também ela se enfeitou. Banho,
cabelo penteado e um vestido novo. Na hora da festa, dançou, cantou, bateu palmas, saudou os
novos iaôs e os orixás. Quando Xangô chegou no barracão ela correu, abriu espaço por entre as
pessoas e abraçou o Deus iorubano. No intervalo do ritual, a procurei e perguntei porque ela
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...
abraçou o orixá e o que ela sentiu naquele abraço. Foi quando a menina respondeu: “Eu gostei
muito. No coração de Xangô tem um tambor de fogo. Parecia uma guerra”.
Há muito o que refletir sobre o período que vai de 2 a 21 de janeiro de 2020, tempo em que
Cauã e Vitor Hugo estiveram recolhidos, bem como a respeito do que pensei com as crianças no dia
da saída de ambos. Isso ficará para outro momento. Quando resolvi colocar parte da fala de
Dandara como título desse capítulo, no fundo, estava resolvendo seguir com ela, e com Xangô em
pensamento mais demorado. As reflexões, sempre provisórias, que entrego, se inserem no que
chamo de Estudos com Crianças de Terreiros (CAPUTO, 2006; 2012; 2018) e em nossa
Fotoetnografia Miúda (CAPUTO, 2018). Elas também são praticadas naquilo que George J. Sefa
Dei chama de Metodologias de Investigação antirracistas (2008). Aqui, no contexto de nosso
simpósio, desse XX Endipe, elas me ajudarão a defender tanto as culturas religiosas como a
laicidade, como um direito das crianças.
filha e, juntas, passamos para minha neta. Eu não seria nada sem Oxum. Minha filha não seria nada
sem Iansã. É por isso que a gente raspa, faz o santo, para avivar o orixá que tem dentro. Mas
também não obrigamos ninguém a ficar. Eu levei a mãe da Dandara, levei a Dandara, a irmã e o
irmão de Dandara, mas os irmãos dela não quiseram ficar, só ela, então é direito dela seguir no
candomblé até quando ela e os orixás quiserem”, dizia Elenita, no dia 10 de janeiro, enquanto
arrumava o cabelo da neta, antes de uma das “queimas de efunx”, do barco de Cauã começar.
Terreiros, como o Ilê Omon Oyá Legi, também chamados roças, casas de santo, casas de
candomblé, são denominações correntes utilizadas para nomear tanto os espaços como o grupo de
culto aos deuses africanos, como ensina José Flávio Pessoa de Barros (1999). “Estes locais, onde
são reverenciados também os ancestrais ilustres, recebem denominações (Ketu, Angola, Jeje, etc.)
de acordo com as tradições culturais predominantes advindas de suas relações com grupos étnicos
africanos” (BARROS, 1999, p. 51). Raízes (ou herança, como disse Elenita há pouco), buscadas no
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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...
continente africano, de acordo com o pesquisador, foram e são reelaboradas no contexto brasileiro,
nessas associações liturgicamente organizadas, em que conhecimentos são compartilhados e
identidades forjadas.
O ABRAÇODE XANGÔ
“Eu sonhei com Xangô, ele falou assim no sonho: quando eu for no terreiro você me abraça
não esquece. Eu esperava ele não ia. Eu esperava ele não ia. Quando eu esqueci é que ele foi e
lembrei no susto: Ihhh Xangô! Kábíyèsílé! Corri e abracei, foi por isso, por causa do sonho e eu
quase esqueci”, disse-me Dandara na mesma conversa sobre o abraço de Xangô. Eu perguntei a ela,
porque queria saber porque vi quando ela estava cantando e dançando na festa da saída de Cauã e,
de repente, como num susto mesmo, disparou em direção ao Orixá.
Xangô é orixá masculino da justiça, do fogo, dos raios e dos trovões. Foi o quarto rei da
cidade yorubana de Oyó. Quando Dandara corre em direção ao rei, ela grita Kábíyèsílé! A saudação
ao grande orixá que significa: “Saudamos sua majestade que veio do céu!” Na foto, a primeira desse
texto que guarda a momento do abraço, vemos Xangô segurando dois oxês, os machados duplos
com os quais o Xangô enfrentava seus adversários.
José Flávio Pessoa de Barros (1999) ensina que narrativas míticas falam das incursões
guerreiras de Xangô que anexa ao território de Oyó, inúmeras cidades vizinhas, através das guerras
e das alianças políticas, ampliando a hegemonia e o poderio de seu reino. Seu poder era tanto que
lhe eram atribuídas forças sobrenaturais como o fato de atirar pedras de fogo e raios contra seus
inimigos. Os atos de cavalgar e de lançar as pedras de raio são representados até hoje nos terreiros
quando Xangô retorna e dança o alujá, ritmo forte e acelerado, tocado com grande entusiasmo pelos
ogans. Todos os presentes também saúdam alegremente, como fez Dandara: Kábíyèsílé!
Uma das qualidades atribuídas a Xangô, diz Pessoa de Barros (1999), era a de punir os
transgressores das regras oriundas do consenso da sociedade. Em suas palavras:
Neste caso incluíam-se os mentirosos, ladrões, assaltantes de estrada, perjuros e
muitos outros pequenos e grandes delitos que colocavam em risco o convívio social.
Esta característica lhe confere a imagem de distribuidor da justiça divina. Quando um
raio atingia uma casa, podia ser um sinal de que a justiça de Xangô estava sendo
aplicada, devendo aquele que fora desta maneira denunciado provar sua inocência e
oferecer sacrifícios e oferendas, no sentido de aplacar sua ira (BARROS, 1999, p.
139).
O domínio do fogo, sempre presente nos mitos das mais diferentes sociedades humanas, diz
Pessoa de Barros, adquire significado especial quando relacionado a Xangô:
Não é o fogo tecnicamente controlado e que possibilita o avanço da metalurgia e a
conservação dos alimentos, mas o fogo incontrolável originado dos fenômenos
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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...
naturais, como raio, meteoritos e aquele produzido pela ação dos vulcões. A morte de
Xangô, inexplicável para seu povo, o torna tão especial e lhe confere a faculdade de
distribuir, agora, na condição de orixá, a justiça através do domínio da natureza
(BARROS, 1999, p. 139).
Toda criança tem direito de acreditar ou não acreditar em Deus. Toda criança tem o direito
de acreditar em um Deus que chega prestigioso, lançando suas pedras de fogo e brandindo seu oxê.
“Eu gosto muito da dança de Oxóssi, que é o meu orixá. Mas eu também acho lindo quando Xangô
dança, porque ele pula com o machado e fica muito forte”, diz Dandara. Toda criança tem o direito
de acreditar em um Deus que pula com seu machado e fica muito forte. Em 2019, a Convenção
sobre os Direitos da Criança completou 30 anos. Adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 20 de
novembro de 1989, é o instrumento de Direitos Humanos mais amplamente ratificado (196 países).
Artigo 30. “Nos Estados Partes que abrigam minorias étnicas, religiosas, linguísticas,
ou populações autóctones, não será negado a uma criança que pertença a tais minorias
ou a um grupo autóctone, o direito de ter sua própria cultura, professar ou praticar sua
própria religião ou utilizar seu próprio idioma em comunidade com os demais
membros do grupo,
Sobre esse último artigo, destacamos que, no caso do Brasil, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) diz textualmente que o direito ao respeito abrange, entre outros aspectos, a
preservação da identidade, dos valores e das crenças das crianças e adolescentes. Além disso, a Lei
13.257/2016, que alterou o ECA, assegurou aos pais o direito de transmissão familiar de suas
crenças. Ao longo de anos de pesquisas, no entanto, temos verificado o quanto crianças e jovens de
religiões de matrizes africanas são discriminadas e discriminados na sociedade e nas escolas, em
função do racismo religioso. Além disso, o desrespeito à laicidade colabora com a prática do
racismo religioso.
Para o professor de Direito Constitucional Daniel Sarmento (2007), a laicidade não significa
a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade. Pelo contrário, a
laicidade, diz o pesquisador, impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes
concepções religiosas, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o
favorecimento ou embaraço de qualquer crença.
A laicidade estatal, que é adotada na maioria das democracias ocidentais
contemporâneas, é um princípio que opera em duas direções. Por um lado, ela
salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do
Estado. De outro, a laicidade protege o Estado das influências indevidas provenientes
da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e
democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão
religiosa, inclusive a majoritária (SARMENTO, 2007, p. 4).
Concordamos com Sarmento, no sentido de que defender a laicidade não significa proibir a
circulação das diversas religiões nas escolas. Significa (ou significaria) impedir que apenas as
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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...
religiões hegemônicas cristãs transitassem com liberdade nas escolas, ocupando, inclusive, os
currículos, não só nas disciplinas de Ensino Religioso, como em outras disciplinas e espaços.
Não só a laicidade não é respeitada nas escolas, como as religiões de matrizes africanas são
as mais perseguidas. Não há justiça curricularxii onde há racismo. A luta por uma educação laica e a
luta por uma educação antirracista deveriam ser uma só. Para mim, enquanto existir racismo e,
portanto, racismo religioso no Brasil, não haverá educação laica nas escolas. Direitos de crianças
como Dandara continuarão sendo ignorados, ainda que o Brasil tenha ratificado a Convenção sobre
os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990.
Como disse no início deste texto, inscrevemos nossos estudos no que o sociólogo George J.
Sefa Dei chama de “Metodologias de Investigação Antirracistas”. Para ele, todo pesquisador deve
reconhecer o impacto crucial da raça e da diferença social e, junto com isso, reconhecer as relações
de poder assimétricas estruturadas no contexto da diferença. De acordo com o sociólogo, a busca da
investigação antirracista suscita uma enormidade de questões teóricas e metodológicas complexas.
O anti-racismo tem que ver com relações de poder. O discurso anti-racismo afasta-se
de discussões sobre a tolerância da diversidade e aproxima-se da noção de diferença e
poder. Vê a raçaxiiie o racismo como centrais em relação ao modo como
reivindicamos, ocupamos e defendemos os espaços. A tarefa do anti-racismo é a de
identificar, desafiar e mudar os valores, as estruturas e os comportamentos que
perpetuam o racismo sistemático e outras formas de opressão social (DEI, 2008, p.
17).
Para Sefa Dei, a investigação (ou pesquisa) antirracista é operacionalizada como uma
investigação sobre a dominação racial e a opressão social e requer uma nova mudança de
paradigma, “um paradigma distante da investigação colonial e próximo de uma abordagem
relacional genuína com os sujeitos locais para desvendar as relações de poder na produção,
interrogação, validação e disseminação do conhecimento” (DEI, 2008, p. 25).
Nos limites desse texto, indicaremos algumas características das metodologias de pesquisa
antirracista sugeridas por Sefa Dei:
• Reconhecimento do pesquisador de um entendimento de que as características pessoais
influenciam o sucesso da investigação e das parcerias significativas com os sujeitos de
estudo;
• Colocam questões sobre quem está a falar, sobre o quê e para quem;
• Reconhecemum código ético para investigar a opressão social e de raça. Um código que
reconhece o impacto do racismo sobre os quadros teóricos e conceituais, as epistemologias e
as metodologias de investigação nos chamados “estudos científicos”;
• Assim, a ética e os conceitos chave que subjazem aos objetivos da investigação, e ao ethos,
desenho, orientação, aplicação e disseminação do conhecimento de investigação devem ser
guiados por princípios anti-racistas de múltiplos modos de saber e pela necessidade de
procurar uma representação plena e a inclusão de experiências variadas;
A historiadora Gwendolyn Midlo Hall enfatiza que o tráfico transatlântico de escravos foi,
certamente, o exemplo mais cruel e duradouro de brutalidade e exploração humana da história
(HALL, 2017, p. 39). A maior parte da população do Brasil colonial era formada por escravizados
vindos do Continente Africano que, como destaca Carlos Moore, “por quase quatro séculos
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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...
serviram como mão-de-obra principal a partir da qual foi gerado o grosso das riquezas que tornaram
possível a constituição do Brasil como Nação” (MOORE, 2010, p. 22). Mão de obra, aliás, descrita
por Hall como muito habilidosa.
Muito foi arrancado, desmantelado, destruído pelo racismo que sustentou o projeto colonial
e sustenta até hoje a colonialidade (QUIJANO, 2010). Ainda assim, os terreiros, com seus
sofisticados conhecimentos, seus modos de perceber e conhecer, seus valores e suas práticas, sua
educação e maneiras de ensinar e aprender foram e são lugares estratégicos na diáspora africana
para proteção, continuação e ressignificação desse legado africano. Acredito e tenho defendido que,
justamente por isso, os terreiros são testemunhos contundentes de que o projeto colonial não
venceu. Tivesse vencido, um Deus iorubano não abraçaria uma criança, ainda hoje, em um terreiro
brasileiro, ouvindo seu pedido de proteção.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...
Notas de fim
i
Iniciei esse texto ainda em Braga/Portugal, quando atuava como bolsista professora visitante sênior, no Instituto de
Estudos da Infância da UMINHO. Contexto do Programa CAPES/PRINT. Terminei o texto, já no Rio, vivenciando,
aterrorizada, o mundo em plena pandemia pelo coronavírus. E será graças ao trabalho dos pesquisadores que a
venceremos.
ii
O barracão é parte do terreiro, sendo a sala onde acontecem as festas públicas.
Casa dos filhos de Iansã e Omolu (Iansã: orixá do vento, da tempestade. Omolu: senhor da terra, rege as doenças),
iii
PRINCÍPIO 1: CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS, MAS
QUALIDADES POSITIVAS
Certo grupo de animais instalara-se num local em que os melhores alimentos localizavam-se
no topo das árvores. Para Lamarck, a fim de comê-los, os bichos, cada vez mais, esticavam-se. Ano
após ano, imperceptivelmente, seus pescoços alongavam-se. Seus descendentes, mantendo tal
tendência, nasceriam com pescoços ligeiramente mais compridos até a ocorrência de estabilidade.
Disso teria resultado o animal que conhecemos hoje como girafa.
Para Darwin, a girafa não se originou do supracitado processo evolutivo. Segundo sua
teoria, os animais de pescoço um pouco maior comeriam, com mais facilidade, as melhores folhas,
enquanto os de menor pescoço possuiriam dificuldade de se alimentarem. Os animais de maior
pescoço também levariam vantagem no processo de reprodução. Assim, ao longo de muitos anos,
os bichos pescoçudos teriam sido favorecidos pelo ambiente (foram selecionados naturalmente), e
os de pescoço pequeno acabariam extintos, ou migrariam para outro ambiente com condições mais
adequadas de alimentação e reprodução.
Suponhamos agora que em vez de animais de pescoços grandes e pequenos houvesse seres
com visão e sem visão, e que no lugar de um ambiente com o melhor alimento no topo das árvores
existisse um local em que as melhores condições para sobrevivência (alimentação, proteção contra
predadores, etc.) se localizasse no fundo do mar ou no interior de uma grande caverna. Com o
passar dos anos, qual dos seres levaria vantagem de adaptação pelo processo de seleção natural?
Recorramos à ficção para responder a esse problema. No filme Bird Boxiv, pessoas videntes
cometem suicídio ao verem algo enigmático. Malorie, personagem interpretada por Sandra Bullock,
e duas outras crianças encontram uma alternativa para se salvarem: vendar os olhos para realizarem
as ações como deslocamento, procura de alimento etc. No contexto descrito, podemos supor que,
com o passar de muitos anos, o sujeito que melhor se adaptará ao ambiente mencionado será aquele
que não possui a visão. Bird Box mostra um sentido da evolução que favorece aos cegos,
explicitando que a posição de vantagem será definida pela relação dialética entre as condições do
indivíduo e do meio.
Notemos agora o que afirma Darwin sobre animais que vivem em ambientes em que a visão
não desempenha papel fundamental:
Os olhos das toupeiras e de alguns roedores que vivem em tocas têm tamanhos
rudimentares e, em alguns casos, são completamente cobertos por pele e pelos. Isso se
deve provavelmente à redução gradual causada pelo desuso, mas talvez auxiliada pela
seleção natural. Na América do Sul, um roedor que vive em tocas, o teco-teco (ou
Ctenomys), tem hábitos ainda mais subterrâneos que a toupeira; e foi-me assegurado
por um espanhol que, tendo apanhado muitos deles, notou que eram frequentemente
cegos, eu criei um que certamente estava nessa condição, e a causa, como pareceu pela
dissecção, foi uma inflamação da membrana nictitante. Já que a frequente inflamação
dos olhos deve ser prejudicial a qualquer animal e já que os olhos não são certamente
indispensáveis para animais com hábitos subterrâneos, a redução de seu tamanho com
a adesão das pálpebras e o crescimento de pelos sobre eles seria, neste caso, uma
vantagem; e, se assim for, a seleção natural constantemente auxiliaria os efeitos do
desuso (DARWIN, 2018, p. 152).
Para a teoria da seleção natural, se adaptarão a um determinado meio aqueles que possuírem
melhores condições de alimentação e reprodução. Essas condições não são absolutas, mas
dependerão da relação entre as características do indivíduo e do meio. Ter visão, por exemplo, pode
representar vantagem para o desenvolvimento, entretanto, não ter também pode. Tudo estará
condicionado, em termos biológicos, à estrutura natural onde o vidente ou o invidente vive.
Portanto, a visão não deveria ser interpretada como o resultado da melhora ou do avanço do
processo de desenvolvimento de homens e mulheres, uma vez que ver e não ver são características
humanas. Cegueira e baixa visão não são doenças nem defeitos, são diferenças belas de alguns
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Mostramos até aqui que a visão, em termos biológicos e de forma unilateral, não pode ser
considerada um atributo de superioridade de um organismo vidente em relação ao de um invidente.
Isto dependerá das condições ambientais em que este organismo vive. Abordaremos na sequência
que o ser humano não se encerra nos seus limites biológicos de desenvolvimento. Traremos, para
tanto, fatos sociais da relação entre pessoas com e sem deficiência visual. Argumentaremos que
essa relação é mediada por instrumentos psicológicos (VIGOTSKI, 1997) que definem padrões de
percepção, comportamentos e capacidades.
Esse fato mostra que as pessoas invidentes ou com visão reduzida não devem ser percebidas
como anômalas, doentes ou defeituosas, pois “assim se apresentam todos os seres, naturalmente
heterogêneos, variados, distintos. Se assim é, então ser diferente é natural, e aí está toda a riqueza
humana” (SOUZA, 2014, p. 14).
O modelo médico sobre deficiência negligencia que o ser humano planeja e constrói os
contextos onde vive e se desenvolve, não aceitando que homens e mulheres são constituídos por
múltiplas diferenças. Representa a fobia que o vidente possui do cego: uma projeção a qual busca
evitar e fugir, ou o antimodelo humano que jamais pretende ser. Legitima o padrão de normalidade,
posicionando de forma hegemônica o vidente frente ao invidente. O cego, segundo esse referencial
ideológico, tem por características naturais a fragilidade, a incapacidade e a limitação. Em suma, o
modelo médico exprime a ideologia de que homens e mulheres são constituídos pela
homogeneidade e que diferenças devem ser evitadas, desconsideradas e eliminadas. Consideremos,
ainda, que o ser humano e o mundo são o produto de um processo dialético de modificação e
formação social. Homens, mulheres e as estruturas físicas e simbólicas atuais representam um tipo
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Os seres humanos nunca serão réplicas, sempre possuirão, em maior ou menor escala, em
relação a qualquer característica corporal (física, sensorial, intelectual, etc.) e culturais diferenças
entre si. Segundo essa perspectiva, incapacidades e limitações para realizar alguma atividade
específica atribuída aos indivíduos cegos e com baixa visão devem ter sua responsabilidade
deslocada para o meio social, planejado e construído para a atuação protagonista, plena e
hegemônica do homem ocidental branco, heterossexual, sem deficiência e magro, pois a produção
de exclusão das pessoas invisuais e com visão reduzida é um fato socialmente equivalente à
construção de exclusão das mulheres, dos negros e dos indígenas.
Um cego, numa manhã de domingo, caminhava com sua bengala ao lado do campo de
futebol. Um senhor de aproximadamente 80 anos de idade, que fora diretor da escola onde o cego
estudara quando criança no ensino fundamental, posicionado no lado oposto da rua, subitamente,
chamou-lhe aos gritos. O cego seguiu a direção da voz, encontrou o senhor, o reconheceu e deu-lhe
um longo abraço. Então, o senhor lhe disse: “não fique triste, meu filho, tem gente numa situação
bem pior que a sua, meu irmão acabou de falecer de câncer”. O cego deu-lhe um beijo no rosto e
continuou seu trajeto. Na quadra seguinte pensou: “mas eu não estou triste, estou feliz!”
“As coisas ‘se pensam’ em cada pessoa, porque não é um pensar intelectual, no sentido de
funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto, posto que ao entrar em
contato com o objeto, o sujeito entra em contato consigo mesmo” (MASINI, 2008, p. 73).
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“O que é percebido por uma pessoa (fenômeno) acontece num campo do qual ela faz parte; a
identidade do mundo percebido vai ocorrendo por intermédio das suas próprias perspectivas e vai se
construindo em movimentos de retomada do passado e abertura para o futuro, sempre sendo
possível novas perspectivas” (MASINI, 2008, p. 73).
Assim, é importante a tomada de consciência acerca de que quando o vidente fala do cego,
na verdade está falando sobre sua projeção do ser cego. Essa projeção pode ser equivocada e
produzir preconceitos. Descrevemos um desses preconceitos, ou seja, a percepção hegemônica
vidente frente ao cego ou ao que possui baixa visão.
Traremos quatro apontamentos cujo objetivo é contribuir para a promoção de uma práxis
inclusiva no contexto educacional da escola.
I) Uma práxis inclusiva deverá tomar como referencial teórico que a deficiência visual é um
fenômeno social. Fragilidades, limitações e incapacidades não devem ser consideradas atributos
intrínsecos de estudantes cegos e com baixa visão. Como os espaços físicos e simbólicos da sala de
aula foram historicamente planejados e organizados segundo a cultura de videntes (MASINI, 1994),
esses estudantes vêm experimentando dificuldades metodológicas, linguísticas e atitudinais que lhes
colocam em posição de inferioridade frente ao vidente. Transformado o meio não natural da sala de
aula, os estudantes cegos e com baixa visão passarão a ter possibilidades sociais de aquisição e
produção de conhecimento.
II) Deve-se superar o valor hegemônico de que há seres humanos inferiores a outros.
Analisamos o caso do cego frente ao vidente e argumentamos que tal preconceito é justificado pelo
modelo médico de deficiência. Esse é um valor construído socialmente e transmitido pela
linguagem às gerações, o que responsabiliza o processo educacional duplamente: a) no sentido de
não atuar como reprodutor desse valor; e b) no sentido de eliminá-lo.
III) Deve-se considerar que as relações dos estudantes se dão por agrupamentos entre
elementos comuns e diferenciações entre incomuns. Temos aqui a fundamentação para a elaboração
de processos comunicativos, metodológicos e de materiais de ensino (representações e
experimentos), fundamentados no paradigma identidade e diferença.
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Finalizamos afirmando que perceber as relações entre alunos videntes, cegos e com baixa
visão, segundo aquilo que lhes são comum e incomum, contribuirá para a construção de ambientes
de ensino/aprendizagem acessíveis, metodologias interativas/participativas, atividades
experimentais multissensoriais, avaliações diagnósticas e formativas. A práxis inclusiva reconhece
que a cegueira e a baixa visão não são doenças nem defeitos. Pelo contrário, são qualidades
positivas de quem as possui, uma vez que implicam em: a) diferentes possibilidades de organização
e transformação social; e b) construção de linguagem em torno das relações de identidade e
diferença.
REFERÊNCIAS
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física e da deficiência visual. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016. p. 256.
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Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Amazonas,
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de Defectología. 2. ed. Madrid: Aprendizaje visor, 1997. p. 213-234.
Notas de fim
i
Consideramos os conceitos: cego, invidente e não vidente como sinônimos.
Consideramos os conceitos: baixa visão e visão reduzida como sinônimos.
ii
“A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação
iii
conta as diferenças de percepção entre o deficiente visual e o vidente. “Pode-se supor que a desconsideração
(supracitada) tenha sido determinada pela desatenção à predominância da visão ou àquilo que ficou encoberto pela
familiaridade, oculto pelo hábito, linguagem e senso comum numa cultura de videntes” (MASINI, op. cit., p. 29).
Nos cotidianos periferizados do Rio de Janeiro vivem “as histórias que a História não
conta”i, de tantesii “mulheres, tamoios, mulatos”, “marias, mahins, Marielles, malês” e outres
sujeitos que os poderes instituídos insistem em não querer ouvir nem narrar e nós, cotidianistas,
buscamos desinvisibilizar, trazendo para o centro da cena essas vozes silenciadas dos “avessos dos
lugares” que a modernidade trata como sendo os seus mesmos, ou seus erros e desvios, os
invisibilizando, negando, subalternizando e/ou aniquilando. Onde a “luz” da hegemonia só vê o que
sua racionalidade indolente (SANTOS, 2000) permite e comporta, nós buscamos perceber as redes
complexas de “chiarosescurosiii” que torna a vida cotidiana rica, plural, bonita e potente
(OLIVEIRA, 2007, 2012). Com isso, contamos essas histórias “para saber quem somos” – como
aprendemos com Manguel (2010) – e para buscar vislumbrar as realidades para além do que já são,
naquilo que “ainda-não” são (SANTOS, 2000), mas que nossa ação e imaginação sociológica e
democrática permitem conceber e lutar por.
A história vitoriosa dessas mulheres inspirou grupo musical criado em março de 2004
com a intenção de preservar a memória cultural e musical de Itapuã, bairro de
Salvador (BA).
Seguindo com os conhecimentos que a modernidade negou e nega, que a hegemonia tenta,
ativamente, invisibilizar, por meio de diferentes expedientes epistemicidas, por meio do
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Imagem 2. Fotografia tirada no primeiro dia da Oficina da UPMS, com o conjunto dos intelectuaismilitantes presentes.
Assim, nesses quase vinte anos de existência, a UPMS tem permitido acessar modos
inventados cotidianamente pelos militantes dos diferentes movimentos sociais, seus atores e suas
causas invisibilizadas, para sobreviverem às iniquidades sociais, ao fascismo social e a tantas outras
formas de negação de suas existências e questões, sempre com criações próprias que tendem a
permanecer do outro lado da linha abissal. Nesse processo, percebemos a formação de redes de
conhecimento como solidariedade – ponto de chegada do conhecimento-emancipação (OLIVEIRA,
2008) – por meio da construção de pontes entre reivindicações e problemas distintos, permitindo
que arquipélagos político-epistemológicos se formem. São pontes formadas de redes de
conhecimentos e de reconhecimentos mútuos, tecidas pela busca dos diferentes participantes por
aproximações entre os movimentos nos quais atuam e pela compreensão dos distanciamentos e
conflitos que permanecem.
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É ela mesma quem resume a pauta acima me dizendo que o respeito ainda é o principal.
“Respeito para permanecer na família, respeito para permanecer na escola, respeito para ocupar
postos de trabalho, respeito para não sermos violentadas e assassinadas!”
Vânia se declara “militante e ativista dos direitos humanos para população em situação de
rua. E uma batalhadora, que prossegue na luta desenvolvendo atividades e investindo na
desinvisibilização dessas populações, suas lutas e vivências cotidianas”. Fundou e lidera o Projeto
JUCA (Juntando os cacos com arte), que desenvolve “Arteterapia com mosaicos para pessoas em
situação de rua e tratamento de dependentes químicos”. Frequenta as calçadas, como ela mesma diz.
Além disso, mais formalmente, depois de integrar por três anos o Movimento Nacional de pessoas
em situação de rua (MNPR), por desavenças com o grupo gestor, acabou por deixar esse coletivo
em 2018. Desde então, integra o “Fórum permanente sobre população adulta em situação de rua
[RJ]” e, desde 2019, integra o Conselho Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro. Em seu
folder de apresentação, o Fórum afirma sua visão da questão:
Morar nas ruas é resultado de processos estruturais de exclusão. Compreendermos que
é necessária uma reformulação substancial da leitura secular, às vezes paternalista, às
vezes discriminatória. Toda ação destinada a essa população precisa considerar sua
heterogeneidade e estar pautada na concepção de cidadania e direitos. Defendemos o
protagonismo dos próprios sujeitos que vivenciam a experiência de vida nas ruas
(Folder do Fórum).
Aprender com Vânia e sua luta tem sido um privilégio. A invisibilidade dessa população é
monstruosamente cruel, são vítimas de um sistema que as produz e exclui, como percebemos
cotidianamente, e o Fórum denuncia, na sua visão, o problema. Os conhecimentos que tem da
situação, permitem a Vânia trabalhar com Arteterapia e estar na militância institucional, dentro e
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fora do espaço do Estado, mostrando a quem tem o prazer de ouvi-la e aprender com ela, o quanto
se pode fazer e as inúmeras possibilidades de trabalhar pela desinvisibilização dessas populações,
seus problemas, conhecimentos e modos de (sobre)viver! São práticas sociais de solidariedade e de
diálogo, que mostram ao ocidente colonizador, branco, masculino e burguês o que há para além do
que ele quer ver, do que ele aceita como existente.
Foi também nessa oficina na/da/comviii a Academia que Eronilde Fermin, cacique Kambeba
levada ao evento por Leonardo Peixoto, nos ensinou o que é ser parente, e viabilizou para aquele
grupo, e outros que se seguiram a ele, como o nosso, renomear os modos pelos quais tentamos
ser/estar solidários, sempre, sentindo e lutando a luta que seria do outro, mas que passa a ser a
nossa, estabelecendo uma forma radical de solidariedade inscrita nessa compreensão do parentesco.
A solidariedade entre parentes é aquela na qual somos solidários sentindo a dor do outro, lutando a
luta do outro.
Pudemos, naquele momento, aprender um pouco sobre a luta de indígenas brasileiros pelo
reconhecimento de suas culturas, valores, conhecimentos e modos de estar no mundo e o modo
como a etnia Kambeba percebe e união entre aqueles que lutam.
de falar com o prefeito sobre tal coisa. Como que a gente pode fazer?” A nossa
estratégia é de nunca deixar o cacique sozinho. A gente tem que ir como grupo para
pressionar. Se você for sozinho, com certeza a resposta será não. Aí chama fulano,
reúne rapidinho um grupo de gente e vamos lá. “Aqui, nós viemos trazer o cacique da
comunidade São Tomás. Ele veio conversar com o senhor sobre determinado assunto
e por essa questão a gente gostaria de saber qual posição o senhor vai tomar”. Eu já
faço toda a fala. A primeira é minha. Já dou uma injeção nele antes do cacique falar.
Aí o cacique fala e o prefeito não pode correr. Essa é a estratégia nossa. Eles nunca
vão sozinhos, a gente vai em busca de uma forma melhor de ajudar a comunidade e eu
ganhei esse respeito da sociedade paulivence (FERMIN apud PEIXOTO, 2020, p. 91).
O modo com Eronilde expressa suas táticas – que ela chama de estratégia – de luta pela
emancipação envolve ainda a questão da linguagem, e não por acaso, ela hoje estuda linguística e
línguas indígenas, em nível de mestrado, buscando consolidar seus conhecimentos de língua
Kambeba para difundi-la nas comunidades. Eronilde também percebe a importância da língua e
entende que foram os processos violentos de colonização e de civilização das cidades amazônicas
que levaram a esse aparente apagamento da história de seu povo, de sua língua e de sua cultura. E
por isso se engaja na recuperação da língua como tática emancipatória.
Ainda na tese de Leonardo Peixoto (2020), encontramos outras lutas importantes, como a da
etnia Kokama. Sem estar ligado formalmente à Universidade, um professor indígena Kokama,
Prudêncio, também reafirma a importância da língua para os processos emancipatórios das
populações indígenas.
A narrativa de Prudêncio revela a dificuldade que kokamas e kambebas possuem em
ser reconhecidos como indígenas, por conta do processo histórico de apagamento de
suas línguas e culturas. Suas histórias fazem parte daquelas que a História não conta,
suas culturas são invisibilizadas pelos modos hegemônicos de se definir e de se
compreender os indígenas em nosso país, sua língua é considerada inexistente. E o
esforço de Prudêncio é exatamente para subverter esta lógica e desinvisibilizar não só
a língua kokama, mas, a partir dela, reafirmar essa identidade que é cultural, étnica e
social (PRUDÊNCIO apud PEIXOTO, 2020, p. 84).
em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro
lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto
realidade, torna-se inexistente e é produzido como inexistente. Inexistência significa
não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é
produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao
universo que a própria concepção aceite de inclusão considera sendo o Outro. A
característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença
dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o
campo da realidade relevante (SANTOS, 2010, p. 31-32).
E é isso que nossa história nos ensina, com as situações narradas acima e com tantas outras,
ainda na invisibilidade. No Brasil, para pensarmos a emancipação social, além de recuperar as
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dimensões da razão que a modernidade acabou por subalternizarix quando a racionalidade cognitiva
se hegemonizou, precisamos, portanto, transcender essas formas e buscar compreender os processos
de apropriação e violência que nos trouxeram até aqui.
A apropriação e a violência tomam diferentes formas na linha abissal jurídica e na
linha abissal epistemológica. Mas, em geral, a apropriação envolve incorporação,
cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material,
cultural e humana. Na prática, é profunda a interligação entre a apropriação e a
violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes
locais como guias e de mitos e cerimónias locais como instrumentos de conversão, à
pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquanto a violência é
exercida através da proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, da
adopção forçada de nomes cristãos, da conversão e destruição de símbolos e lugares
de culto, e de todas as formas de discriminação cultural e racial (SANTOS, 2007, p.
8).
Este é o cenário que ganha cada vez mais espaço no mundo atual, depois de um século XX
de melhorias, em diferentes países e com diferentes rostos. No Brasil de herança colonial, e,
Assim sendo, na discussão do tema deste simpósio, nos aliamos às lutas emancipatórias de
populações subalternizadas de diferentes etniase gêneros ou situação social, buscando demonstrar
que esse continuum de “pequenas” lutas cotidianas é, em si, emancipatório, como aprendemos com
Santos (1995) e Galeano (1999).
[...] a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim
definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da
processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a
ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais
da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada
(SANTOS, 1995, p. 277).
Na urdidura da realidade, por pior que seja, novos tecidos estão nascendo e
essestecidos são feitos de uma mistura de muitas e diversas cores. Os movimentos
sociais alternativos se expressam não só através dos partidos e dos sindicatos: também
assim, mas não só assim. O processo nada tem de espetacular e ocorre, sobretudo, em
nível local, mas por toda parte, no mundo inteiro, estão surgindo mil e uma forças
novas. Brotam de baixo para cima e de dentro para fora. Sem estardalhaço, estão
contribuindo expressivamente para a retomada da democracia, nutrida pela
participação popular, e estão recuperando as maltratadas tradições da tolerância, ajuda
mútua e comunhão com a natureza. Um de seus porta-vozes, Manfred Max-Neef,
compara-as a uma nuvem de mosquitos atacando o sistema que trocou os abraços
pelas cotoveladas:
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Fazendo de outros modos, no plural, temos sido capazes não só de resistir, mas de existir e
de criar, conhecimentos, políticas, currículos, pesquisas e tantas outras coisas boas que fazemos,
juntos, esperançando e criando pontes entre movimentos sociais, lutas específicas, práticas
educativas em múltiplos contextos, criando identificações entre lutas diferentes e aprendendo com
as estratégias uns dos outros! Como aprendemos com Freire, esperançar é algo que só se pode fazer
coletiva e solidariamente.
Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não
desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de
outro modo... (FREIRE, 1992).
Um dos motivos porque a esperança permanece viva em tantes de nós é o fato de que, apesar
das múltiplas formas de controle político e epistemológico da vida e das instituições sociais,
diferentes práticas sociais e lutascontinuam, insistente e desobedientemente, presentes no mundo,
nos mais diferentes contextos educativos.Aprender com esses movimentos de resistência, de
presença, significa perceber a democracia para além da Democracia de Baixa Intensidade, como é a
democracia liberal, representativa, com seus vícios, “baseada na privatização do bem público por
elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre representantes e representados e uma
inclusão política abstrata feita de exclusão social” (SANTOS, 2003, p. 32).
É disso que tratamos quando trazemos para este texto as lutas que decidimos trazer, de
práticas sociais em busca de democracia de mais alta intensidade, visando à inclusão social, que
“vão desenvolvendo vínculos de interconhecimento e de interação”, como nos mostra a experiência
da UPMS e das lutas que elencamos aqui. Nessa forma democrática, é o conjunto das relações
sociais que se democratiza, assumindo a forma de relações de autoridade partilhada nas quais todes
e cada ume são e se sabem responsáveis por todes e por cada ume, numa perspectiva de
solidariedade, que sabe sua responsabilidade com o outro, a assume por consciência e, sobretudo,
por amor e, por isso, pratica a “cidadania horizontal”, outra noção central para a reflexão atual sobre
a democracia. São solidariedades entre parentes, que sentem com e, por isso, ao fazer como fazem
amorosamente e comprometides umes com outres, como se fossem ume só.
Aprendemos com Maturana que “A história da humanidade mostra que o amor está sempre
associado à sobrevivência, que nós sobrevivemos na cooperação”. Sobrevivemos porque amamos –
Darwin que me desculpe! Foi por isso que sobrevivemos e chegamos aqui. É ainda Maturana que
segue dizendo que “O amor nos dá a possibilidade de compartilhar a vida e o prazer de viver
experiências com outras pessoas.”, com gentes, como a gente ou diferente da gente, mas gente.
Gente que “sente com” e, por isso, é parente, como aprendemos com Eronilde e sua cultura.
Aprendemos, também, e desta vez com Margareth Meadx que o primeiro sinal de uma
civilização é o cuidado com o outro, conforme narrativa abaixo. O texto aparece na postagem entre
aspas, o que permite supor que vem de alguma publicação acessada pela colega.
Há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que ela
considerava ser o primeiro sinal de civilização numa cultura. O aluno esperava que
Mead falasse a respeito de anzóis, panelas de barro ou pedras de amolar.
Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um
fêmur (osso da coxa) quebrado e cicatrizado. Mead explicou que no reino animal, se
você quebrar a perna, morre. Você não pode correr do perigo, ir até o rio para beber
água ou caçar comida. Você é carne fresca para os predadores. Nenhum animal
sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar.
Um fêmur quebrado que cicatrizou é evidência de que alguém teve tempo para ficar
com aquele que caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que
se recuperasse. “Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa”
disse Mead.
Os enredos carnavalescos e aqueles que por eles são homenageados, a tese de Leonardo
Peixoto (PEIXOTO, 2020) e as oficinas da UPMS com as aprendizagens que permitem são meios
de desinvisibilização de conhecimentos e formas de luta contra os epistemicídios, um dos grandes
crimes cometidos contra a humanidade, segundo Boaventura (SANTOS, 1995) que entende que
estes produzem
[...] um empobrecimento irreversível do horizonte e das possibilidades de
conhecimento [...], o novo paradigma propõe-se revalorizar os conhecimentos e as
práticas não hegemónicas que são afinal a esmagadora maioria das práticas de vida e
de conhecimento no interior do sistema mundial (SANTOS, 1995, p. 329).
São múltiplos contextos sociais, políticos, culturais e epistêmicos, nos quais a dimensão
educativa se faz presente, mas jamais como processo “bancário” (FREIRE, 2017) de ensino-
aprendizagem. São processos dialógicos que, por meio da criação de pontes e do encontro de
similitudes entre lutas travadas por aqueles que estão do outro lado da linha abissal, invisibilizades,
permitem a “invasão” do lado visível da linha pelos seus outres, desestabilizando a equação que a
mantém soberanamente hegemônica. Aprendendo umes com outres sem que ninguém ensine,
movimentos sociais e intelectuais, educadores acadêmicos ou “populares”, penetram,
astuciosamente, nos espaços próprios do poder, da hegemonia burguesa, branca e europeia, criando
resistências e (re)existências nas quais podemos investir sempre, acreditando que podem finalmente
extinguir a invisibilidade de que são vítimas ao dizer em alto e bom som, como aprendemos mais
uma vez com as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, do que se trata a luta pela libertação – na
perspectiva da democracia de alta intensidade e da ecologia de saberes – pela superação da
“escravidão” imposta pelas metrópoles às colônias e seus povos, da violência e da apropriação de
que foram vítimas.
Não sou escravo de nenhum senhor.
É sentinela na libertaçãoxi.
Uma libertação que, nos dias de hoje, seria da subalternidade, da invisibilidade, da negação
e da exclusão social, do fascismo social e da dominação epistemológica e cultural, sem o que não há
democracia possível. Estaria, só então, extinta a escravidão!
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[S.l.: s.n., s/d]. No prelo.
Notas de fim
Fragmentos do samba da Estação Primeira de Mangueira, vencedora do Carnaval-2019 com o enredo: História para
i
por meio de uma estratégia de criação de neologismos, juntos e em itálico, evidenciando nossa percepção de que são
indissociáveis e complementares, formando uma unidade.
O enredo “De alma lavada” trouxe a luta e a resistência de mulheres negras baianas do século XIX e do coletivo de
iv
mulheres nelas inspiradas que vem recuperando suas canções e trajetórias de vida.
v
Disponível em: https://www.ibahia.com/ondeestameutrio/detalhe/noticia/quem-sao-as-ganhadeiras-de-itapua-as-home
nageadas-da-escola-vencedora-viradouro/. Acesso em: 06 mar. 2020.
vi
Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/02/26/ganhadeiras-de-itapua-
fazem-jus-ao-nome-com-vitoria-da-viradouro-no-carnaval-do-rio.ghtml. Acesso em: 06 fev. 2020.
Associação nacional de pesquisa e pós-graduação em educação. A 39ª reunião anual ocorreu em 2019, na cidade de
vii
Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Mantendo a estrutura que define a UPMS, de participação de mais pessoas ligadas a
movimentos sociais do que à academia, a oficina da UPMS foi realizada dentro de um evento acadêmico pela primeira
vez e seu sucesso não deixa dúvidas do potencial da proposta, idealizada pela Professora Maria Luiza Süssekind junto
ao estudante de doutorado Fábio Merdalet, orientando do Professor Boaventura de Sousa Santos (idealizador da
UPMS), responsável por muitas oficinas ao longo do tempo.
Retomamos aqui a fórmula preposicional que assumimos na nossa metodologia de pesquisa, nomeada como pesquisa
viii
nos/dos/com os cotidianos.
ix
A racionalidade moderna, que permitiria a emancipação dos sujeitos, tem três dimensões: a racionalidade cognitiva, a
racionalidade moral-prática e a racionalidade estético-expressiva. Segundo Boaventura (SANTOS, 1995), dentre as
expectativas frustradas do projeto da modernidade ocidental está a subalternização e apagamento das formas não
cognitivas da racionalidade e o monopólio desta em relação às demais que opera na realidade social.
x
O texto, belíssimo, foi obtido numa postagem de facebook da Professora Elisete Tavares dos Santos Jorge, da
FFP/Uerj. Disponível em: https://www.facebook.com/elisete.tavares.5/posts/4016706745012424. Acesso em: 16 mar.
2020. Em 18 mar. 2020, foi acessada uma versão quase idêntica, que está disponível em: https://www.carta
capital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/empatia-esperanca-e-fe-o-que-podemos-aprender-com-a-crise-do-coronavirus/.
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Fragmento do samba enredo do G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti no Carnaval-2018. Disponível em: https://www.letras.
mus.br/gres-paraiso-do-tuiuti/samba-enredo-2018-meu-deus-meu-deus-esta-extinta-a-escravidao/. Acesso em: 15 mar.
2020.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA
NATIVA – “DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DE
SPINOZA E SABERES DE POVOS INDÍGENAS
BRASILEIROS”
Léa Tiriba
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
Dados da Unicef, de 2019, revelam que o processo de globalização alimentar – tanto a fome
oculta (deficiências de vitaminas e minerais), quanto o sobrepeso e a obesidade infantil – está
diretamente vinculado ao aumento da disponibilidade de alimentos baixos em nutrientes e ricos em
calorias, evidenciando elos estreitos entre penúria das crianças e interesses poderosos do
agronegócio e da mineração. As investidas do capitalismo ferem a integridade dos infantes
humanos como ferem a integridade da Terra. É neste contexto planetário que identificamos
conexões entre práticas escolares que desrespeitam os apelos infantis de convívio com o ambiente
natural e o modelo de desenvolvimento econômico que simultaneamente produz desequilíbrio
ambiental, desigualdade social e sofrimento psíquico (GUATTARI, 1990). Consideramos que as
formas de organização dos espaços e das rotinas, ao distanciar as crianças da natureza, produzem
sentimentos de desconexão física e emocional, necessários a uma visão do ambiente como objeto de
conhecimento, domínio e controle, em consonância com os interesses do capitalismo.
Para pensar a conexão, trazemos o conceito de biofilia, segundo o qual os humanos têm uma
atração inata, uma tendência a associar-se à outras formas de vida, condição para um processo de
evolução que sempre se deu em coevolução com os demais seres e sistemas vivos (BOFF, 1999;
WILSON, 1984; PROFICE, 2016). Segundo os autores, essa atração depende de modos de viver e
de educar: uma cultura que alimenta a proximidade gera sentimentos de afeição e,
consequentemente, práticas de proteção à natureza; uma cultura que alimenta o distanciamento
produz sentimentos e atitudes de desapego, indiferença e mesmo práticas de agressão. Assim, o
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DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA
conceito de biofilia revela relações entre sentir-se parte da natureza e desejar protegê-la; isto é,
entre sentimentos e comportamentos pessoais e as condições ambientais do planeta.
Desde o primeiro contato – com um olhar etnográfico atento ao que não é espelho,
surpreendidas por dinâmicas pedagógicas, marcadas por andanças cotidianas pelas praias, praças e
matas de Olivença – nos impressionava a liberdade das crianças circularem livremente pelos
espaços e escolherem as atividades de que desejavam participar; e ainda a disponibilidade dos
adultos frente aos interesses e propostas das crianças; a escuta delicada, o acolhimento (TIRIBA;
PROFICE, 2012). Revelando uma proximidade com a filosofia de Spinoza (2009, Ética II), em que
a mente é uma ideia das afecções do corpo, na Katuana, o conhecimento é de corpo inteiro, está
relacionado à livre circulação das crianças na aldeia. Tal como descrevem os estudos do campo da
antropologia da criança, a liberdade de movimentos é condição para o pleno desenvolvimento
humano. O princípio da autonomia relaciona-se ao exercício de enxergar-se e manter-se ativo no
mundo; diz respeito à criação de condições para tornar-se capaz de tomar suas próprias decisões, a
partir de suas próprias necessidades, de seu bem-estar e do outro (TASSINARI, 2007;
NASCIMENTO; URQUIZA; VIEIRA, 2011; SILVA; NUNES; MACEDO, 2002).
Embora a cada etnia corresponda um modo próprio de conceber a vida, é possível afirmar
que, de modo geral, os grupos indígenas concebem a infância como uma etapa cujas
particularidades devem ser valorizadas e respeitadas (BRANDT, 2011; LANDA, 2001;
BERGAMASCHI, 2011; GOMES; SILVA; DINIZ, 2001).
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DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA
Não há separação entre adultos e crianças: desde pequenas, são educadas no coletivo,
participando das tarefas religiosas/culturais e de sustentação material da aldeia, são elementos-
chave na socialização e na interação de grupos sociais.
Entre os Tupinambá, como entre outros povos originários brasileiros, não existe
diferenciação entre natureza e cultura. O princípio de conexão é consoante com a concepção
monista de que tudo está em rede, matéria-espírito são expressões indissociáveis, são atributos do
ser que se manifestam como extensão e/ou como pensamento (SPINOZA, 2009, Ética IV). Em
oposição à visão antropocêntrica, em diferentes cosmologias brasileiras e andinas, o cosmos é
habitado por várias categorias de seres: todos os seres têm uma essência, uma alma (SANTOS,
2017; LOPES, 2017). Entre os quéchua, povos andinos, “tudo tem [...] um espírito grande ou
pequeno, [...] que dá vida, energia – KALLPA – a todas as coisas deste mundo e do universo
(GUIMARÃES; PRADO, 2014, p. 104).
O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e,
com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um
alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso,
ainda que se componha com as nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que
correspondem à nossa essência: por exemplo, um veneno que decompõe o sangue
(DELEUZE, 2002, p. 28).
A integridade é mantida ou aumentada quando realiza bons encontros, ou seja, faz contato
com outros modos de expressão da natureza que se compõem favoravelmente com ele,
fortalecendo-o; e é diminuída quando realizam maus encontros.
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DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA
dinâmica pedagógica que organiza os processo educativos por áreas de conhecimento ou por
experiências promotoras de aprendizagens, como é o caso dos Campos de Experiência,
recentemente adotados pela BNCC (REBELO, 2020). Essas formas de organização curricular não
atendem à necessidade de conexão com o que afeta, aqui e agora, porque subordinam a potência do
agir infantil à intencionalidade do adulto. Ao contrário, podemos dizer que, ao desemparedar, a
pedagogia tupinambá “não apenas […] contribui para interrogar currículos prescritos/oficiais, mas
fornece bases conceituais para a construção de olhares e propostas outras para a educação da
infância em contextos de creches e pré-escolas” (REBELO, 2020, p. 260). A vivência na praia,
anteriormente descrita, não obedece à definição prévia de objetivos e/ou habilidades a serem
alcançadas; a intencionalidade pedagógica não é predefinida, está colada no desejo, responde aos
chamados da natureza, das crianças, de seus corpos (TIRIBA, 2010; TIRIBA; PROFICE, 2012;
2019).
A via do desejo também permite uma aproximação do modo de ser tupinambá com
conceitos espinosanos. Para o filósofo, o desejo é a inclinação por algo que julgamos útil para nossa
conservação. Assim, o desejo não é falta, ao contrário, é potência que orienta a vida afetiva, sempre
no sentido de fortalecer o conatus, conceito que define o esforço de perseverar na vida, pois “[...]
nenhuma coisa tem em si algo por meio do qual possa ser destruída, ou retirada a sua existência. E
esforça-se assim, tanto quanto pode e está em si, por perseverar em seu ser” (SPINOZA, 2009, p.
105).
conexão profunda com os sentimentos, uma inteireza que se só constitui em condições de liberdade,
sem a qual é impossível sentir-pensar-agir a partir de causas próprias. Como em Spinoza, a
submissão a forças alheias fere a essência do ser, o colocam à deriva, por isso entristecem. Essência
entendida como natureza existente, imanente, pois a consciência do que se sente/é, a cada momento,
guiará em relação aos encontros que faz; em sintonia fina com o desejo, orientará na escolha de
afetos que potencializem, que assegurem a alegria. Porque “[...] somente a alegria é válida, só a
alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A paixão triste é sempre
impotência” (DELEUZE, 2002, p. 34).
Como os Guarani Mybia, as crianças da Katuana têm a liberdade de buscar bons afetos e
bons encontros com o que compõem e as faz alegres. Na educação nativa a liberdade é imperativo
pedagógico porque favorece o pertencimento ao cosmos; e, por aí permite uma contraposição a
concepções e práticas antropocêntricas que agridem os ambientes naturais porque atribuem ao ser
humano uma posição de centralidade em relação a todo o universo.
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DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA
Ao se insurgir contra uma perspectiva metodológica que afirma o divórcio entre sujeito e
objeto de pesquisa, a pedagogia do desemparedamento desmonta o imperativo epistemológico
racionalista, que gera um mundo desencantado, isento de paixões, afetos, sensibilidade. Interessado
na ampliação de conhecimentos e domínio de instrumentos de controle, a dualidade produz
indiferença e insensibilidade à comunidade do ser e à unidade primordial com a Natureza, gera
alienação do mundo e de si, reduz a confiança no próprio corpo, a potência frente à vida (LOWEN,
1979).
CONSIDERAÇÕES E APONTAMENTOS
vir nos espaços escolares, o livre brincar nos pátios, nos parques, praias e praças da cidade
desarmada!
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA
REFERÊNCIAS
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392
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA
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WILSON, E. Biofilia. México: Fondo de Cultura Económica, 1989.
Lucia Vignoli
As palavras: Nada têm a ver com as sensações, palavras são pedras duras e sensações
delicadíssimas, fugazes, extremas.
Clarice Lispector
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A Brotação das Coisas revela modos de operar do grupo de pesquisa Artegestoação, criado
em 2016 no Instituto Nacional de Educação de Surdos. Com Joana Lyra, professora da equipe de
Artes, Aline Gomes e Tiago Ribeiro, pedagogos, trabalhamos na “busca de relações dialógicas e
decoloniais, acreditamos na conversa como forma possível para a tessitura e (re)significação do
conhecimento escolar e para além dele” (GONÇALVES; RODRIGUES; RIBEIRO, 2019, p. 23).
Na troca de ideias sobre nossos processos, vão surgindo, nascendo propostas e interligações que,
por vezes, nos espantam por reciprocidades sintonizadas e nos direcionam para outras paisagens, as
quais dizem de um viver assentado na corrente dinâmica das vivências de uma “feira”, na qual, num
balaio, são oferecidas indagações: o que nos volta são novas dúvidas e desejos.
“Navegando” em dinâmicas do “ir fazendo”, vão se configurando projetos e táticas nas quais
o experimento-jogo, aberto ao que nasce na interação com os participantes, norteia as práticas,
reflexões e passos a seguir. Artegestoação brota do desejo de transitar entre as línguas, a língua
brasileira de sinais e a língua portuguesa, criando repertórios para acessar as poéticas da produção
artística de diversos povos, vivenciando a escrita-desenho, seus desdobramentos permeados por
histórias de vida e o inquietar-se no grave cenário do agora, de tantos silenciamentos, assolamentos
que violentam nossos cotidianos nesse espaço – a sala de aula, a aula... vivenciados por nós como
obra: Obra de Arte.
A experiência, em seu caráter contemporâneo, desloca-se do que há bem pouco – de
toda a modernidade: do século XVI a quase completo século XX – se denominou de
saber-fazer, sob designações correlatas, como habilidade, preparo técnico de toda
espécie. Opera-se a experiência pelo processo de dispor-se a, e, no “ir trabalhando”,
vão-se abrindo os problemas; não se tem, no exercer da experiência, o problema
prévio: criam-se os problemas no decorrer (SANTOS, 2015, p. 40).
Tecer este texto é passear por ideias-bússolas, para viver esse espaço-obra, obra de arte,
compreendido como os encontros-aulas. Apostando em atravessamentos com o que nos inquieta,
surgiu o desejo de plantar, ver brotar, nascer... E tudo que se espraia nessas ações para agregar
significados novos. Assim, iniciamos uma horta, nomeada horta-oca, para o cultivo de ideias e da
amizade, para o buen vivir, o “com-viver”. Possibilidade de viver a amizade que encontramos em
Skliar: “uma relação essencial, em que conhecer não é apenas uma opção entre várias, mas, a
própria vontade de renunciar a conhecer, de declinar a interpretar, traduzir ou explicar: uma relação,
então, na qual a voz de um e de outro se escutam mutuamente” (SKLIAR, 2014, p. 49).
O espaço da horta-oca foi criado com o objetivo inicial de aproximar crianças e jovens
surdos da natureza, proporcionando a experiência-aula num ambiente que pudesse escapar da sala
entre paredes e divisórias, para favorecer vivências plurais, significativas e sensibilizadoras.
Encontros-aulas, nos entre-espaços, para acionar discursos no “já” da vida. Falar do que ingerimos,
do que é uma semente... De repente, surge uma minhoca transitando na terra; o susto, o medo, o
nojo, mostrando a responsabilidade e carga de participação de cada ser em processo. Uma vontade
de alfabetização ecológica, com sentido, para lembrar Capra, partindo de nosso corpo, que é
natureza, e alimentar a disposição de experimentar, pesquisar em fluxos contínuos, redes de
intercâmbio entre professores e alunos.
Através da horta também nos tornamos conscientes de que fazemos parte da teia da
vida; com o tempo, a experiência da ecologia na natureza nos proporciona um senso
de lugar. Nós nos damos conta de que estamos inseridos em um ecossistema, numa
paisagem com flora e fauna peculiares, em um sistema social e uma cultura próprios
(CAPRA, 2003, p. 28).
396
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Marcam essas práticas, vividas no contexto do cultivo da horta, a atenção aos mínimos
movimentos, aos “instantes-já”, cheios da vitalidade. A vitalidade ressaltada por Adrianne Ogêda
Guedes e Tiago Ribeiro em suas metodologias minúsculas: “Vitalidade como aquilo que alimenta o
ato mesmo de investigar, que dá sustentação à pergunta, ao assombro” (GUEDES; RIBEIRO, 2019,
p. 38).
ESTANDARTE
A Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia acontece há 11 anos no Polo da
Borborema, Paraíba. O evento mobiliza milhares de camponesas de diversos municípios, com
demandas urgentes contra a violência e pela luta por justiça, igualdade e liberdade. Uma
convocação para produzir estandartes para essa marcha nos possibilitou trazer esse tema para as
aulas de arte, no início do ano letivo de 2015. Elevar um estandarte é um grito, é investir em algo
que nos mobiliza, nos move. Partindo dessa primeira experiência, fomos nos contaminando pela
vontade de expressar coletivamente demandas da comunidade surda e da luta por uma educação
antirracista. Brotam coisas nos encontros, invertem-se posições para o exercício de um jogo.
Para escrever a escritura-arte muitos e distintos dispositivos devem ser acionados:
disponibilidade de espírito, concentração, capacidade de observar e de se pôr no fora,
viver intensamente o vivido, guardar, selecionar, espostejar, deslocar, redimensionar,
sair de si, ver de outros pontos, recolher-se, ficar atento, sondar as almas e mapear a
sinuosidade de cada rede de sentimento; ler, deixar-se contrapor, esquadrinhar os
recursos e os processos já por outros inventados e postos em uso na mesma arte ou em
artes diferentes (SANTOS, 2015, p. 158).
Brotar coisas... Brotam coisas nos encontros, nas partilhas, nos afetos. Em meio à brotação,
vamos nos constituindo na miudeza do cotidiano, das relações, do olho no olho, do sorriso no rosto,
REFERÊNCIAS
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Século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.
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GUEDES, A. O.; RIBEIRO, T. Revelar-se ou Ocultar-se? Apontamentos para pensar uma pesquisa educativa. In:
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GONÇALVES, R. M.; RODRIGUES, A.; RIBEIRO, T. Por que pensar e pesquisar com narrativas docentes? Em forma
de convite a leitura. In: GONÇALVES, R. M.; RODRIGUES, A.; RIBEIRO, T. (orgs.). Cotidianos e Formação
Docente: Conversas, Currículo e experiências com a escola. Rio de Janeiro: Ayvu, 2019.
Fotos
A horta-oca
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Placas-poemas
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NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À
DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E
FAZERES POLÍTICOS
Marcio Caetano
(...) a educação, qualquer que seja ela, é sempre uma teoria do conhecimento posta em
prática.
Paulo Freire
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Ao observar alguns desses embates que disputam a hegemonia em torno dos projetos de
Brasil pela imprensa, redes sociais virtuais ou nos diálogos das inumeráveis filas e serviços que
acesso, constato, se priorizo a escuta, que inúmeras pessoas defendem que é fundamental a
ampliação e garantia de direitos para segmentos sociais específicos da sociedade que foram
historicamente alijados integral e/ou parcialmente do modelo de cidadania liberal no Brasil. Para
outras, o maior rigor penal e a aplicabilidade das leis dariam conta de conter as violências
ocasionadas pela homolestransfobiai, o racismo, o sexismo e o capacitismo. Existem aquelas que
defendem que é preciso debater as temáticas cidadania, gênero, raça, sexualidade, mobilidade e
direitos humanos, por exemplo, nas escolas. Entretanto, para outras, algumas dessas temáticas
devem ser conversadas no interior da família mononuclearii androcêntricaiii sem a mediação do
Estado Brasileiro. Não obstante, ainda existem aquelas que defendem que o fortalecimento dos
valores preconizados pela fé religiosa judaico-cristã e/ou monoteísta darão a solução para a
violência crescente a que a sociedade está, em maior ou menor número, submetida nas cinco regiões
brasileiras. Em outro grupo, ainda existem aquelas pessoas que defendem que o respeito à
Constituição será a única forma de garantir a pluralidade de crenças e enfrentamento às
desigualdades sociais na sociedade. Para elas, a Constituição garante que todos são iguaisiv perante
a lei e que as crenças e existências são igualmente válidas e garantidas por meio da Constituição,
não seriam necessárias legislações específicas, a exemplo do Estatuto da Igualdade Racial ou Lei
Maria da Penha.
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empresas, da política e dos meios de comunicação. Atualmente, de modo mais intenso e, por vezes,
democrático, os debates sobre os projetos de Brasil são vividos na sociedade digital, e penso que
seja necessário reexaminar tudo o que se sabe sobre a sociedade, porque se está em outro contexto.
Nesse emaranhado político, a força e a forma com que são divulgadas as informações
tornam difíceis, inclusive para sujeitos com maior experiência, a identificação de fake news, como
são nomeadas as mentiras que são divulgadas por meio dessas tecnologias de difamação. As fake
news são tantas vezes reiteradas que acabam assumindo o estatuto de verdadev. “Uma mentira
repetida mil vezes torna-se verdade”, conforme foi dito pelo ministro de Adolf Hitler, Joseph
Goebbelsvi. Assim sendo, as sociedades vivenciam um período em que a revolução da comunicação,
fruto da era digital, potencializou as práticas políticas de compartilhamento de fake news tornando
demasiadamente progressivos e, consequentemente, severos os problemas sociais gerados por elas.
Não há dúvida: as notícias falsas veiculadas são divulgadas com a intenção de acirrar os debates
entre os polos que disputam as verdades políticas, econômicas, sociais, culturais, sexuais que
também irão incidir sobre a escola.
Sem Partido”, o intuito é proteger estudantes de docentes dispostos a propagar suas concepções de
mundo. Alegando que cabe aos pais, sempre no masculino, o direito de assegurar que suas proles
tenham uma educação condizente com suas convicções familiares. Com seus argumentos, o
“movimento” consegue persuadir muitas pessoas. Tal como ensina Gaudêncio Frigotto (2017, p.
31):
O que propugna o Escola sem Partido não liquida somente a função docente, no que a
define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em manuais ou
apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. A função docente no ato de
ensinar tem implícito o ato de educar. Trata-se de, pelo confronto de visões de mundo,
de concepções científicas e de métodos pedagógicos, desenvolver a capacidade de ler
criticamente a realidade e constituírem-se sujeitos autônomos. A pedagogia da
confiança e do diálogo crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova função:
estimular os alunos e seus pais a se tornarem delatores.
Ainda que com forte resistência de sindicatos de docentes, ativistas LGBT, feministas e
movimentos negros da região, os discursos do “Movimento Escola Sem Partido” se alastraram e
conquistaram adeptas(os). Particularmente, acredito que seu relativo sucesso na região tenha sido
produzido pelo (A) protagonismo atribuído as famílias sobre a definição do que deve ser priorizado
no currículo escolar; (B) a naturalização da desqualificação do trabalho docente; (C) a defesa do
poder familiar sobre as crianças e (D) arsenal fascista de suas propagandas.
postuladas na neutralidade pedagógica. Contrariando o que nos ensinou Paulo Freire (2018) quando
afirma que:
[...] a neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete
apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta
de um “compromisso” contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que
se dizem neutros. Estão comprometidos consigo mesmos, com seus interesses ou com
os interesses dos grupos aos quais pertencem (FREIRE, 2018, p. 23).
Ao considerar os ensinamentos de Paulo Freire (2018), olhando de forma mais detida para
as propostas que tramitam nas casas legislativas pelo Brasil a fora, é possível questionar, com muita
seriedade, suas intencionalidades. E não é por menos que elas, em algumas experiências em que
foram aprovadas e sancionadas, quando judicializadas, foram consideradas inconstitucionais pelo
Superior Tribunal Federalx. Inês Barbosa de Oliveira e Maria Luiza Süssekind (2019) ao refletir as
ações desses movimentos de direita na educação irão argumentar que:
Esse conjunto de intervenções sobre o sistema educacional, sua estrutura e
funcionamento, busca assegurar a unificação, homogeneização, controle e
desideologização dos processos de escolarização. O controle sobre a escola, por ser
uma impossibilidade, acaba sendo exercido por meio da sua produção como espaço de
ausências, como uma instituição ruim, inadequada, insuficiente e, por isso, incapaz de
levar nossa embarcação a bom porto. Desestabilizando-a, o Tsunami conservador
espera levá-la ao naufrágio, substituindo-a por uma espécie de arca de Noé ao
contrário que só permite a entrada de iguais, enquanto afoga no dilúvio do tsunami
tudo aquilo que não se enquadra nos desígnios de seu criador, o ideário capitalista,
heteropatriarcal e colonialista, neoconservador (OLIVEIRA; SÜSSEKIND, 2019, p.
07).
Se saio da bolha de notícias das redes sociais, percebo que a Nova Direita (aliança entre
neoliberais e neoconservadores) e Progressistas coincidem, com perspectivas distintas, em vários
assuntos e quero refletir orientado pelo intenso debate em torno da chamada ideologia de gênero.
De um lado, a Nova Direita diz que defensoras, quase sempre mulheres, da ideologia de gênero
desejam desmantelar os valores judaico-cristãos que reverberam as relações sexuais assimétricas e
complementares heterossexuais das famílias mononucleares. Assumindo esse pressuposto, a Nova
Direita, ao menos no Brasil, elegeu os estilos de vida LGBT como os principais inimigos dos
valores da família e da fé cristã. De outro, as(os) progressistas denunciam que não existe ideologia
de gênero, à medida que são bem objetivas as desigualdades produzidas com e a partir das
diferenças sexuais. E ainda complementam,indicando que não se pode chamar de falsas as
condições violentas e, por vezes, degradantes, vividas por mulheres e LGBT frente ao modelo
androcêntrico e homolestransfóbicos de sociedade.
Quando observo os setores progressistas neste embate, ganha relevo, para mim, a forma
como encaram a família e a negação da existência da “ideologia de gênero”. Se estrategicamente os
discursos da ideologia de gênero utilizam a natureza da existência para dizer que o homem e a
mulher são opostos e essa binaridade é fundamental para o equilíbrio da família, setores
progressistas denunciam, de forma tímida, as violências cotidianas produzidas pelas relações
assimétricas e complementares sofridas pelas mulheres e, sobretudo, LGBT.
Particularmente, penso que o alvo é novamente atacar a emancipação das mulheres, o que
diferencia os tempos atuais com os de outrora é que os setores neoconservadores não vão ao núcleo
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de seus interesses, eles comem pela beirada. Como? Mobilizando socialmente o pânico moralxii e
em vez de atacar a emancipação feminina e sua inserção no mundo do trabalho, preferem acusar as
intelectuais feministas e o movimento LGBT de quererem destruir as fronteiras sexuais ao
afirmarem que as pessoas não nascem homem ou mulher e que as heterodesignações deterministas
atribuídas às(aos) bebês no momento do nascimento podem não corresponder as suas designações
quando do desenvolvimento cognitivo das crianças e adolescentes.
A própria história da LDBEN de 1996 é um espelho das forças que integram e disputam o
debate das diretrizes políticas da educação brasileira. Desde o início da década de 1980,
profissionais da educação protagonizavam a luta pela criação de uma legislação que criasse e
organizasse o Sistema Nacional de Educação, o que resultou, inicialmente, no Projeto de Lei
1.258/1988, do Deputado Otávio Elísio. No ano de 1993, o projeto foi aprovado na Câmara dos
Deputados e seguiu para o Senado com a relatoria de Cid Sabóia, sob o número Projeto de Lei
101/93. No entanto, após meses de amplo debate entre parlamentares e a sociedade civil, os
movimentos populares foram surpreendidos com uma “nova” proposta do Senador Darcy Ribeiro
com a anuência de Fernando Collor e em vários aspectos, no meu entender, mais centralizadora do
que as legislações que regiam a educação criadas no período militar.
Educação) e do Ministério da Educação (MEC),o Projeto de Darcy Ribeiro começou a tramitar e foi
arquivado o substitutivo de Cid Sabóia.
O jogo no tapetão e as alianças políticas para restringir direitos são coisas que fazem bem à
direita no Brasil. Mesmo derrotados nos fóruns populares na elaboração da LDBEN xiii, buscaram
nos corredores do MEC e do Congresso Nacional, os acordos políticos e a garantia de sua
hegemonia. Algo semelhante ocorreu com os planos decenais da educação dos entes federativos
entre os anos de 2014 e 2015. Como se sabe, no Brasil, foram realizados, no início dessa década,
vários fóruns de educação que culminaram em duas conferências nacionais (2010 e 2014). O
objetivo era garantir a participação da sociedade nas discussões pertinentes à melhoria da educação
nacional e subsidiar a elaboração dos Planos Decenais de Educação (PNE), já previstas a serem
realizadas na LDBEN/1996. Se nas conferências de educação, a agenda das populações LGBT,
negras, indígenas e com deficiências e de mulheres, foi aprovada com amplo apoio de congressistas,
nos corredores e mesas do MEC e do Congresso Nacional as propostas foram redimensionadas ou
retiradas.
A interação entre o governo, a escola e as políticas educacionais sempre foi complexa. Ela
traduz a historicidade de relações sociais e as formas como os projetos ideológicos buscam a
hegemonia. Contudo, a análise do atual cenário de construção das políticas públicas de educação
configura-se tarefa desafiadora frente à ausência de transparência e os limites à democracia. Como
ativista dos direitos humanos e professor-pesquisador das políticas de identidades, sobretudo,
aquelas lideradas pelas reivindicações de mulheres e LGBT, penso que não é possível discutir uma
agenda política de enfrentamento aos setores neoconservadores e neoliberais se não trazendo ao
cenário a defesa da educação pública. Ao fazer um balanço sobre os debates dos planos decenais de
educação, penso que os setores progressistas caíram em algumas armadilhas e elas precisam ser
debatidas a fim de que seja possível a definição de táticas de enfrentamento. Em vez de ser feita
uma ampla discussão sobre a qualidade socialmente comprometida da educação escolar, foi
retroalimentada a estratégia neoconservadora alicerçada no pânico moral em torno das categorias
“gênero” e “diversidade sexual”. Nesta lógica, a Nova Direita propagou a chamada “ideologia de
gênero” e elegeu estrategicamente os movimentos feministas e LGBT como inimigos número um
da família e da fé judaico-cristã. Para ela, ambos os movimentos contrariavam as crenças judaico-
cristãs e a perspectiva de assimetria e complementaridade sexual, bases da família colonial
eurocêntrica.
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Ao pensar neste eixo, me lembro dos ensinamentos preconizados pelo equatoriano Anibal
Quijano (2005). O autor, em um exercício de análise sobre as relações sociais pautadas na
exploração colonial, discorreu sobre como estas estabeleceram a dinâmica relacional de
constituição do(a) outro(a) colonizado(a). Ao fazer uma crítica aprofundada da construção das
identidades a partir de um viés decolonial sublinhando a constituição do termo raça, Quijano(2005)
ressaltou a existência de uma Europa e de um europeu, sempre no masculino, a partir da criação da
América colonizada. Para ele, na América, a ideia de raça foi uma maneira de legitimar as relações
de dominação impostas pela barbárie. A posterior constituição da Europa como nova identidade
depois da América conduziu a elaboração da perspectiva eurocêntrica de conhecimento e com ela a
elaboração da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais e, posteriormente,
burguesas de dominação.
Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas
de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominadas(os). O binarismo
eurocêntrico criticado por Quijano (2005) tem sido a base sobre a qual as diferentes identidades têm
se construído, a partir do pensamento colonial, na relação de subalternização de um(a) outro(a) cuja
inferioridade é estrategicamente naturalizada. Esse mecanismo se depreende e se relaciona aos
ideais eurocêntricos de modernidade que buscou universalizar uma concepção de mundo em que,
em primeiro plano, a história da civilização humana é retratada como uma trajetória que parte da
ideia de natureza desordenada e culmina na ideia de uma Europa ordenada que espelha o
androcentrismo cristão, branco, burguês e heterossexual de racionalidade; e, em segundo plano, são
outorgadas enquanto diferenças da natureza e, portanto, incontestáveis, as desigualdades produzidas
pela racialidade e pelo sexo, por exemplo. Essa estratégia de governo da vida legitimou-se a
dicotomia e a essencialidade identitária, escondendo hierarquias que buscavam e ainda buscam, na
colonialidadexiv em que a sociedade ainda vive, em seu fundamento, a manutenção da racionalidade
refém do ideário de totalidade e complementaridade e todo o debate produzido até aqui sobre os
princípios da Nova Direita de bem, penso eu, dessa lógica.
Quando penso nas implicações desses debates nas escolas, de imediato sou levado a refletir
nas lutas que cotidianamente são travadas com o conhecimento hegemônico que, dada sua força,
buscou e ainda busca difundir a colonialidade, o Movimento Escola Sem Partido e o debate em
torno da ideologia de gênero me parecem exemplos dessa dinâmica. No entanto, com o tema da
mesa, fui estimulado a pensar que as verdades curriculares não se limitam aos interesses da
academia, das dinâmicas do capital e suas(seus) representantes na definição de políticas, das(os)
religiosas(os) e/ou das(os) governantes, elas também recebem contribuições de movimentos sociais,
responsáveis de estudantes, docentes e alunas(os). Nas últimas décadas, foi possível conhecer
diversas histórias-memórias que produziram verdadeiras ressignificações político-curriculares em
torno das experiências, interseccionadas pela classe, de pessoas com deficiências, negras, indígenas
e LGBT no Brasil. Não tenho dúvida que isso ajuda a entender a forte reação neoconservadora e
neoliberal no país, mas também elucida as lutas históricas dos movimentos sociais, profissionais da
educação e estudantes.
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12-42.
Notas de fim
i
Ao considerar as reivindicações dos movimentos sociais de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans (LGBT) não
nomeio as violências cotidianas vividas por essas populações como homofobia. Essa decisão decorre das
especificidades e intersecções que cada segmento vivencia em suas lutas cotidianas para conquistar e/ou ampliar suas
cidadanias ou enfrentar as violências físicas a que estão sujeitas(os) na sociedade brasileira.
ii
Modelo de família que se apresenta com amplo apoio religioso judaico-cristão constituído obrigatoriamente pela
figura paterna, materna e proles. Caetano, Silva Jr. e Goulart (2016) ao dialogar no Petzold (1996), irão propor o
entendimento de família como sendo um grupo social, caracterizado pela intimidade e por relações intergeracionais. Os
autores irão destacar a possibilidade de catorze variáveis de família, dentre elas: casais casados ou não; com partilha ou
separação de bens; moradia juntos ou separados; dependência ou independência financeira; com ou sem crianças; com
prole biológica ou adotada; genitoras(es) morando juntos ou separadas/os; relação hetero ou homossexual; cultura igual
ou diferente. Essas variações, combinadas, podem oferecer cerca de 196 tipos diferentes de arranjos familiares. Isso
significa dizer que o modelo mononuclear de família de tipo judaico-cristã não é suficiente para a compreensão das
multiplicidades familiares que integram o Brasil.
Para Rosa M. R. de Oliveira (2004), o termo androcentrismo postula que todos os discursos e práticas sejam
iii
enfocados a partir de uma perspectiva masculina e que ela seja tomada como válida para a generalidade dos seres
humanos e da lógica de governo do público e do privado.
iv
Neste caso, o gênero que designa o sujeito é sempre o masculino. Qualquer ação que o flexione e o torne inclusivo é
entendida como divisionista ou duramente criticada pelos defensores da isonomia política.
v
Com vista a ilustrar o debate, sugiro a leitura de Amanda Castro e Marcio Caetano (2018).
vi
Goebbels foi responsável por difundir a ideia de que o povo judeu era o inimigo da Alemanha. Ministro da
Propaganda de Hitler montou a estratégia de comunicação e cultura para disseminar o nazismo. Entre os anos de 1933 e
1945, conseguiu extinguir a imprensa livre, controlando a informação e as expressões artísticas na Alemanha. A frase
de Goebbels foi dita originalmente em um pronunciamento para diretores de teatro no dia 8 de maio de 1933. Dois dias
depois, houve uma grande queima de livros na Alemanha. Esse ato – que teve grande repercussão na época – é
considerado o auge da perseguição nazista a intelectuais, especialmente escritores. Recentemente, o Secretário de
Cultura, Roberto Alvim, utilizou trechos do discurso de Goebbels em seu pronunciamento sobre o Projeto de Cultura do
Governo Bolsonaro. Após ampla repercussão e pressão popular e judaica, Alvim foi demitido.
vii
Segundo Iana G. Lima e Álvaro Hypolito (2019), a Nova Direita constituiu-se a partir da aliança, principalmente,
entre neoconservadores e neoliberais. Ela se constitui como um grupo central no desmantelamento do Estado de Bem-
Estar e criação de forma distinta de administrar o Estado. Os neoconservadores são aqueles que definem os valores do
passado como melhores que os atuais e lutam pelas tradições culturais. Ao dialogar com Apple (2000), Iana G. Lima e
Álvaro M. Hypolito disse que a Nova Direita, nos EUA, se constitui de quatro grupos: neoliberais, neoconservadores,
populistas autoritários e a nova classe média profissional. Liderados pelos neoliberais, são eles que representam o grupo
que se preocupa com a orientação político-econômica atrelada à noção de mercado. Já os populistas autoritários seriam
grupos da classe média e trabalhadora que desconfiam do Estado e se preocupam com a segurança, a família, o
conhecimento e os valores tradicionais e são formados, de forma significativa, por grupos evangélicos. Por fim, a nova
classe média profissional se centraria na mobilidade social.
Reconhecendo a multiplicidade de leituras e definições, estou entendendo a categoria “movimento social” como
viii
sendo ações coletivas de coletivos de sujeitos organizados que objetivam alcançar alterações sociais, culturais e/ou
econômicas por meio do embate político, conforme seus valores e ideologias dentro de uma determinada sociedade e de
contextos específicos, permeados por tensões sociais. Neste sentido, ao usar as aspas quero duvidar da afirmativa de que
sejam essas pessoas integrantes de movimentos sociais. Essa postura é mediada pela ideia de que o Movimento Escola
Sem Partido defende a manutenção do status quo, o que contrário o princípio básico na conceituação de movimento que
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o entende como orientado por ações coletivas que almejam alterações sociais, culturais e/ou econômicas. Para
aprofundar o debate sugiro a leitura de Maria Gohn (2008).
ix
Cidade do sudeste gaúcho se tornou a primeira a aprovar uma lei sobre o Escola Sem Partido no estado. O projeto foi
apresentado ao vereador Adrean Peglow (PSDB) por um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL) da cidade.
Cinco vereadores – três do PSDB, um do PP e um do PDT – assinaram a proposta na Câmara. O projeto foi aprovado
em Plenário por 6 votos a 4, em julho de 2018.
x
Questionado no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o projeto
recebeu posicionamento contrário da Advocacia-Geral da União (AGU). A AGU ao considerar que a lei é
inconstitucional argumentou que a competência para a elaboração de normas gerais é atribuída à União, que deve
legislar no interesse nacional, estabelecendo diretrizes que devem ser observadas pelos demais entes federados. Aos
estados e ao Distrito Federal cabem suplementar a legislação nacional. Ao considerar a Lei n. 7.800/16 de Alagoas, que
instituiu o programa Escola Livre no ensino estadual, viola o direito à educação e invade competência exclusiva da
União, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso suspendeu os efeitos da lei. A liminar foi deferida
na Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Estabelecimentos de Ensino (CONTEE).
xi
Em seus pronunciamentos, o entendimento de homem e mulher é sempre no singular e orientado pela lógica da
colonialidade.
xii
Sobre o assunto, ver: Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017).
O Projeto n. 12.588/1988, apresentado pelo Deputado Otávio Elísio foi resultado dos debates ocorridos nas
xiii
[...] Nos exige darmos conta de que estamos em momento de mudança de paradigmas
de ação política, de novas articulações entre epistemologia e ontologia e novos modos
de pensar a mudança global e de ser movimento social no século XXI (CARVALHO,
2015).
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A epígrafe escolhida para abrir o presente texto se refere à síntese do que pretendo enredar
acerca do meu contato com a Educação Ambiental, momento marcante em 1998, quando ingressei
no mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense, além de mostrar como o
pensamento pulsante e mobilizador da decolonialidade tem me implicado, com rupturas de visões
paradigmáticas e a promoção de insurgentes maneiras de pensamento, capazes de me compreender
e compreender o mundo ou,conforme as palavras de Ailton Krenak (2019), com ideias para adiar o
fim do mundo.
Apresento, nesta parte do texto, reflexões operadas em reuniões do grupo de pesquisa e que
têm movimentado meus pensamentos aos sentidos atribuídos à Educação Ambiental (EA); das
Relações Étnico-Raciais (RER) na Educação Quilombola, a partir das pesquisas que têm sido
desenvolvidas nos projetos de mestrado e doutorado, sob minha orientação. Temos tido o interesse
de compreender os efeitos que são produzidos e que circulam nas práticas educativas, sobretudo a
partir da Lei n. 10.639/2003 e Resolução CNE/CEB n. 8, de 2012, que, de certa maneira, procuram
contribuir para o fortalecimento da história e cultura negra nos últimos quinze anos.
Mesmo que o RIZOMA tenha interesse geral em tratar do binômio EA e RER, para o
escopo deste artigo, apontarei apenas ao que estamos operando teoricamente a partir dos conceitos
de ecologia de saberes (SANTOS, 2002) e disseminado por referências de Gomes (2012; 2017),
entre outras e outros que se filiam à perspectiva decolonial.
É dessa maneira que defendo e aposto na possibilidade de uma didática e prática de ensino
insurgente, desafiadora, de resistência e reexistência, matriarcal, em que o verde, a cor tão comum
para os(as) ambientalistas e todas as pessoas que abordam, estudam, pesquisam, realizam ações
extensionistas, se empreteça, ganhe força e dê outro sentido, inclusive, ao que é crítico, pois avança
no pensamento ora cristalizado, para ser mais criativo e livre, possibilitando uma Educação
Ambiental “na sua visão contemporânea, emancipatória – mas que não reivindica ser a verdade
última, e que abre diálogos com outras verdades” (SATO, 2015, p. 15).
A partir da LDB n. 9.394/96, em seu artigo 26-A, foi introduzida a Lei n. 10.639/2003, que
trata da obrigatoriedade do estudo da África e da cultura afro-brasileira e africana e do ensino das
relações étnico-raciais, instituindo o estudo das comunidades remanescentes de quilombos e das
experiências negras constituintes da cultura brasileira (LARCHERT; OLIVEIRA, 2013).
públicas, com enfoque nos sujeitos que vêm das margens (REIGOTA, 2010) e procurando
promover com a contribuição para um currículo que também é das margens (BARZANO, 2016) e
que cada dia que passa, sobretudo no últimos anos, são/estão com suas vidas ameaçadas
(ARROYO, 2019).
No que diz respeito à educação ambiental e ao ensino de Biologia, área em que atuo na
docência universitária, é importante destacar o salto qualitativo para o debate socioambiental e
cultural, pois temas/conteúdos como biodiversidades, alimentação saudável, agroecologia,
transgênico, rotação de cultura, agrotóxico, plantas medicinais, sementes crioulas, água,
saneamento básico, saúde, são apenas alguns que merecem destaque para serem ensinados nas aulas
das escolas quilombolas, mas antes, sobretudo nas universidades, nos cursos de Licenciatura, já que
é neste lócus que vislumbramos a descolonização dos saberes, pois, inspirado em Santos (2001, p.
225-226), compreendo que “a universidade é talvez a única instituição nas sociedades
contemporâneas que pode pensar até às raízes as razões por que não pode agir em conformidade
com o seu pensamento. [...] Numa sociedade à beira do desastre ecológico, a universidade deve
desenvolver uma apurada consciência ecológica”.
A partir da conquista dos movimentos sociais, sobretudo do movimento negro, que passa a
ser educador (GOMES,2017) pode-se afirmar que o Estado conseguiu, através de efetivas políticas
públicas, se aproximar das comunidades quilombolas em diversos municípios brasileiros. A título
de exemplo temos constatado experiências exitosas de políticas e programas desenvolvidos em
municípios baianos, como é o caso do município de Feira de Santana, onde desenvolvemos nossas
pesquisas.
que se refere, sobretudo, à compreensão de si e do mundo, pois é uma possibilidade de permitir que
aquelas pessoas, das margens, com suas vidas ameaçadas, possam conquistar o direito à educação,
se emanciparem, se empoderarem, conforme temos constatado em um número cada vez maior de
concluintes dos cursos de Licenciatura do campo e que são quilombolas, caiçaras, indígenas, entre
outros e outras. Povos das águas, da floresta, indígenas que nos ensinam que: “há centenas de
narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam e nos ensinam mais do que
aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2019, p. 30).
Retomo o que vivi na década de 1980 para tentar compreender o momento atual. Na minha
vida de formação política e ambiental, a presença de três pessoas foi fundamental e me inspirou
para pensar um curso de Biologia menos asséptico, que se dizia “neutro” e, desse modo, as leituras
e ações das práticas cotidianas na universidade foram promovidas a partir de Paulo Freire, Chico
Mendes e Betinho, que deixaram um legado para continuarmos na luta e esperança para resistirmos
sempre; para compreendermos que o conhecimento é plural, que a educação é política, e que o meio
ambiente só pode ser pensado na engrenagem social.
Se formos trazer essa pauta para o quadro atual em que estamos vivendo, eu diria:
precisamos manter a esperança para reexistirmos, ou como disse um dia desses o Celso Sanchez,
professor e pesquisador-militante da Educação Ambiental: “a contra-hegemonia se dá pelo afeto”.
Com ele, reafirmo que os três personagens supracitados formaram minha base política para a
questão ambiental e de universidade; com eles tive uma formação humanizada e que ainda me
permite hoje que seja humanizadora, capaz de enxergar e assumir o compromisso político e ético
quando estou na sala de aula conversando com futuros(as) professores(as) de Biologia e que
certamente ensinarão sobre biodiversidades.
esses(as) licenciandos(as) que resisto e insisto em ensinar o pensamento freireano, pois “se sou
professor de biologia, não posso me alongar em considerações outras, que devo apenas ensinar
biologia, como se o fenômeno vital pudesse ser compreendido fora da trama histórico-social,
cultural e política” (FREIRE, 1994, p. 78-79).
A universidade pública que estamos vivendo hoje, com precarização e todas as dificuldades
encontradas desde 1985, com a redemocratização do país, esse é o pior momento que a educação
pública e os projetos ambientais estão atravessando. A título de exemplo, citarei o curso que forma
futuros(as) professores(as) de Biologia: de que maneira estão inseridas as pautas ambientais que
incluem as comunidades tradicionais, sobretudo as indígenas, quilombolas e caiçaras, os povos da
água e da floresta? Onde esse povo aparece no livro didático que tem a BNCC como referência?
De maneira coletiva, precisamos contribuir para ensinar a ecologia de saberes, proposta por
Boaventura de Sousa Santos, incentivar a curricularização das escolas e universidades daqueles e
daquelas que vêm das margens, quilombolas, indígenas, das pessoas jovens e adultas do campo, da
cidade ou da periferia. Tal perspectiva é fértil para pensarmos na emergência potente da relação
entre a Educação Ambiental e Relações Étnico-Raciais, como o grupo RIZOMA tem apostado,
assim como os grupos de pesquisa liderados pela professora Michèle Sato, na Universidade Federal
do Mato Groso, e do professor Celso Sanchez, da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, que têm nos inspirado.
indígenas, das pessoas jovens e adultas do campo, da cidade ou da periferia, além de uma efetiva
curricularização ambiental nos diferentes cursos da universidade.
Essa tem sido a necessária e urgente “militância” que tenho produzido nos últimos anos e
proliferado, sobretudo na sala de aula, na conversa com professoras e professores da educação
básica e no contato com as escolas no momento do Estágio Supervisionado.
Nesses anos de vida profissional na escola básica, na universidade, nos fóruns acadêmicos,
congressos e associações científicas, não dá mais para a Biologia, que é minha formação inicial,
encarar a Educação Ambiental de maneira romantizada, em que apenas os aspectos naturais, da
fauna e da flora são contemplados. É preciso não confundir Ecologia e Educação Ambiental; ensino
de Botânica ou Zoologia e Educação Ambiental, como está na BNCC.
É preciso ensinar nas escolas e na universidade que o que aconteceu nas cidades de Mariana
e Brumadinho não foi acidente, foi crime ambiental; que a demarcação de terras indígenas e
quilombolas não é conteúdo somente da alçada da Geografia, mas é também da Biologia, da
Sociologia, da Matemática, das Artes e outras disciplinas; e que, juntos e juntas, podemos criar,
inventar um trabalho e defini-lo como interdisciplinar.
É preciso resistência para reexistir, sim! Não é possível conviver com uma ameaça constante
em nossa alimentação, pois com oito meses de governo, foram liberados pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento 57 produtos elaborados com agrotóxicos!
O Ministério do Meio Ambiente quase foi extinto, a Educação Ambiental foi parar no
Ministério do Turismo! A Secadi foi desmantelada e, com ela, foram embora todas as políticas
públicas de caráter social, de inclusão, da juventude negra, indígena, do povo do campo, das
florestas, das águas, LGBTIQ+ que, direta ou indiretamente, estão associados ao meio ambiente, à
educação e às universidades.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Em recente pesquisa concluída (MELO, 2019) acerca dos saberes da biodiversidade em uma
comunidade quilombola do território de Irecê, sertão baiano, tivemos o contato com uma mulher-
negra-quilombola: dona Dilza. A cosmovisão sobre meio ambiente e biodiversidades de dona Dilza,
possibilita-nos vislumbrar, realmente, uma outra maneira de se pensar as biodiversidades,
primeiramente, nomeando-a no plural e, além disso, é imperativo destacar o papel da mulher negra
como autora, promovendo sua emancipação, empoderamento e “epistemologias do sertão” (MELO,
2019).
É bem possível que a leitora e o leitor desse texto devem estar estranhando a abordagem
desenvolvida, já que estão tão acostumados(as) com um teor mais “verde”, mais naturalista, mas
defendo que sejam coloridas. Empretecer o meio ambiente é uma possibilidade, bem como colori-lo
com as cores das diferentes etnias e movimentos sociais.
A aposta que se faz, esperançosamente, é de que tais temas contribuam para novas
epistemologias que estão emergindo com força e conseguindo romper, inclusive, com uma visão
equivocada de meio ambiente, pautada apenas nos aspectos biologizantes e antropocêntricos.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
ARROYO, Miguel. Vidas Ameaçadas: exigências-respostas Éticas da Educação e da Docência. Petrópolis: Vozes,
2019.
BARZANO, Marco A. L. Currículo das Margens: apontamentos para ser professor de Ciências e Biologia. Educação
em Foco, [s.l.], v. 21, n. 1. p. 105-124, 2016.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução n. 08, de 20 de novembro de 2012.
Parecer CNE/CEB n. 16 de 2012. Define as diretrizes curriculares nacionais para educação escolar quilombola na
educação básica. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 20 nov. 2012.
CARVALHO, Isabel C. M. A dimensão ambiental na educação: avanços, recuos e descentramentos. In: GUIMARÃES,
Mauro. A Dimensão Ambiental na Educação. Campinas, SP: Papirus, 2015.
COSTA, Marisa Vorraber. A escola tem futuro? Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1994.
GOMES, Nilma Lino. O movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis:
Vozes, 2017.
GOMES, Nilma Lino. Relações Étnico-Raciais, educação e Descolonização dos Currículos. Currículo Sem
Fronteiras, [s.l.], v. 12, n. 1, jan./abr. 2012.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LARCHERT, J. M.; OLIVEIRA, M. W. de. Panorama da Educação Quilombola no Brasil. Políticas Educativas, Porto
Alegre, v. 6, n. 2, p. 44-60, 2013.
MELO, André Carneiro; BARZANO, Marco Antonio Leandro. Re-existências e esperança: perspectivas decoloniais
para se pensar uma Educação Ambiental Quilombola. Ensino, Saúde e Ambiente, [s.l.], 2020. no prelo.
REIGOTA, Marcos. A contribuição política e pedagógica dos que vêm das margens. Teias, Rio de Janeiro, v. 11, p. 1-
6, 2010.
SANTOS, Boaventura de S. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In:
MENESES, Maria Paula; SANTOS, Boaventura de S. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez: 2010.
SANTOS, Boaventura de S. Pela Mão de Alice: o social e político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2001.
SATO, Michèle. Centro-Oeste presente para reconhecer o pretérito e celebrar o amanhã. In: GUIMARÃES, Mauro. A
Dimensão Ambiental na Educação. Campinas: Papirus, 2015. p. 15.
INTRODUÇÃO
A pedagogia, como prática social, é mais abrangente que uma prática educativa no interior
de uma escola. A pedagogia, assim percebida, é da ordem da totalidade. Essa compreensão da
pedagogia como práxis, como totalidade, implica reconhecer que a escola, como instituição social,
não pode dar conta sozinha de resolver/administrar toda a gama de contradições sociais que recaem
sobre ela. Os mecanismos de dominação são múltiplos e, muitas vezes, não são tão explícitos ou
visíveis. Pensar assim a pedagogia é pensá-la em uma dinâmica de múltiplas articulações,
contingenciada por uma dialética de opressão-resistência.
Essa prática pedagógica crítica é urgente e necessária uma vez que as relações desiguais
produzem subordinações, opressões, silenciamentos, injustiças, relações autoritárias. Trabalhar
pedagogicamente, numa sociedade de relações desiguais, implicará sempre em estar ao lado dos
mais fracos, dos menos atendidos, a favor de práticas institucionais que operam contra as condições
opressivas. Essas são as condições de uma pedagogia crítica que, como tenho realçado, deveriam
ser a própria condição da pedagogia: toda pedagogia, para ser eticamente sustentável, deverá ser
crítica, nessa perspectiva que discutirei no texto e que já reafirmei em artigos anteriores (FRANCO,
2015; 2016; 2017a; 2017b; 2017c).
No entanto, como nos alerta Freire, essa prática não é simples, porque a sociedade vive no
frágil equilíbrio entre contradições. O trabalho crítico é um trabalho contra-hegemônico. Contra
esse trabalho há, como nos lembra Apple (2014), outras pessoas, outros grupos e outras instituições
que pensam e agem de modo diferente; atuam a favor da reprodução das relações capitalísticas, da
divisão social de classes tal como está; ao lado de pedagogos críticos por certo se encontram os
neoliberais, os neoconservadores, os movimentos religiosos reacionários e autoritários, ou seja, no
fundo, há uma disputa contínua sobre diferentes versões de “democracia” (APPLE, 2014, p. 107).
Esse artigo pauta-se em pesquisas anteriores e toma como questão de pesquisa: quais os
princípios e possibilidades de uma pedagogia crítica em tempos neoliberais? Como a pedagogia
crítica pode fazer emergir práticas insurgentes, especialmente na escola pública?
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Pode-se afirmar que no embate entre católicos e protestantes quem sai ganhando é o
movimento pela escolarização do povo. Essa expansão de alunos em diferentes escolas traz à tona o
1
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Verbete: antipedagogismo. REVEC: Revista de Estudos Culturais,
[s.l.], v. 2, p. 99-110, 2015.
problema pedagógico essencial: como, para quê, o quê e para quem ensinar? Para resolver a essas
questões recorre-se a modos de pensar e fazer a educação; portanto, recorre-se a uma pedagogia!
Recorre-se ao pedagógico como processo de gerir a educação dos povos.
Deve-se destacar que, no século XVII, a tensão entre os projetos diferentes entre católicos
(pedagogismo) e protestantes (antipedagogismo) produziu uma revolução nas incipientes práticas
pedagógicas. Pode-se dizer que a prática escolar foi organizada nesse século e teve em Comenius
um grande protagonista, contrapontuado por movimentos da sociedade católica e dos jesuítas em
decorrência.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
a não diretividade na ação educativa. Esses novos mitos serão, com o tempo, reinterpretados através
dos tempos e produzirão novos pedagogismos e novas reações antipedagogistas.
Neste contexto complexo, de início de século XX, aqui apenas sinalizado, surgem diversas
experiências educacionais inovadoras, que trazem em seu bojo o conceito de educação ativa, dando
guarida a uma nova concepção da infância, já sinalizada em Rousseau, reconhecendo a
inseparabilidade de conhecimento e ação; teoria e experiência, e fundamentando-se
ideologicamente num conceito de democracia e progressismo, que pressupõe a necessidade de
participação ativa do cidadão na vida social. A decorrência da proposta do ativismo em educação
fará surgir duas novas e fortes tendências pedagógicas que estabelecerão durante todo o século XX
movimentos dialéticos entre pedagogismos e antipedagogismos:
política, voltada à construção do homem coletivo, fruto e produtor das condições sócio-
históricas.
Pode-se dizer (FRANCO, 2001) que a pedagogia dos anos 1950, até as revisões políticas,
sociais e epistemológicas decorrentes do movimento de 1968, foi marcada por duas características:
a) crescente processo de sua cientifização, com mesclagens variadas, incluindo influências do
evolucionismo, do tecnicismo, das novas pesquisas psicológicas, do behaviorismo, entre outras; b)
aprofundamento de seu caráter político-ideológico, podendo-se até dizer que a pedagogia pós-
guerra alinhou-se também em dois blocos e foi intérprete e protagonista de duas diferentes
concepções de mundo.
A pedagogia do Ocidente esteve mais envolvida na defesa dos princípios de uma democracia
liberal, na busca de condições favorecedoras da reorganização do capitalismo, na organização de
sistemas eficientes de ensino e na suposta pretensão do controle dos processos de cognição e
aprendizagem. A raiz desta pedagogia é o ativismo pedagógico, especialmente baseada na
pedagogia deweyana, com retomadas e mesclagens isoladas de pedagogias religiosas, até
metafísicas ou românticas, em processos contínuos de pedagogismos e antipedagogismos.
A pedagogia do Leste esteve mais voltada a se estabelecer como pedagogia estatal, baseada
inicialmente nos estudos de Marx, mas com profundas adaptações e revisões em diferentes regiões e
pautadas em diferentes interesses, caso de sua presença em países de terceiro mundo, que assumem
feições bem específicas, como em Cuba de Fidel ou mesmo a “Pedagogia Utópica” de Suchodolski
em Varsóvia e, logo a seguir, no Brasil, a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.
Sobre o antipedagogismo de 1968, Cambi (1999) afirma que a pedagogia como saber
institucionalizado foi desmontada em seus condicionamentos ideológicos, desvirtuada de seus
processos, atitudes e valores autoritários realçando ser a mesma um saber sempre engajado,
alinhado a uma perspectiva de formação do homem, desta forma, deve-se alinhar pela emancipação
e libertação dos homens.
Essa influência marcou muito a pedagogia brasileira e foi aos poucos transformada,
absorvendo as mudanças sócio-culturais-políticas do país e integrando outras tendências, em
especial, após 1930, com o Movimento da Escola Nova, no bojo, principalmente, do pragmatismo
de Dewey e das tendências tecnológicas posteriores, a pedagogia brasileira passou a gravitar em
torno da concepção técnico-científica; movimentos pendulares entre pedagogismos e
antipedagogismos.
Esta concepção impregnou bastante a prática pedagógica brasileira e configurou quase que
toda estruturação legal-administrativa e pedagógica dos cursos de pedagogia.
Aos poucos, a pedagogia brasileira vai superando a visão essencialista da natureza humana e
incorporando uma concepção centrada na questão da existência, da vida e da atividade.
Percebe-se que são influências advindas, quer do pragmatismo de Dewey, quer de uma
concepção mais romântica, na linha de Pestalozzi, Fröebel, Bergson e sem esquecer da influência da
psicologia experimental, muito presente na realidade brasileira. Significa dizer que outros
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
elementos começaram a compor o pensamento de educadores e mais que tudo é importante realçar
que a pedagogia começou a se psicologizar, a se sociologizar, a se biologizar. Deixou de ser vista
como ciência unitária, mas também não passou a ser vista como ciência integradora.
No bojo deste clima, ou grande produtor deste clima, que é conceitual e político
essencialmente, emerge um forte movimento entre educadores brasileiros, bastante antipedagogista,
no sentido que aqui realçamos, com vistas a um processo de renovação das práticas escolares,
conhecido como “Manifesto dos Pioneiros da Educação” e que teve seu auge, enquanto concepção,
em 1932 quando redireciona a epistemologia da pedagogia, no sentido do pragmatismo utilitarista
de Dewey.
Este movimento ganhou força e chegou mesmo a impregnar o espírito da época, com
repercussões históricas marcantes, porque, de alguma forma, atendia aos anseios da classe política
dominante. Saviani (1983) referenda este ponto de vista ao dizer que a escola era vista como
elemento de concretização da política liberal da classe dominante, como a redentora da
humanidade, para funcionar como a esperança do povo. À medida que esta escola é percebida pela
classe popular como não atendendo a estes anseios, usa-se o argumento, no discurso oficial, de que
é preciso reformular a escola. Assim a Escola Nova passa a ter um espaço de atuação e visibilidade,
consentido e incentivado pela classe política e classe social dominante. Diz o autor: “a Escola Nova
surge, pois, como um mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante, hegemonia
essa ameaçada pela crescente participação política das massas, viabilizada pela alfabetização
através da escola universal e gratuita” (SAVIANI, 1983, p. 31). Portanto, nas mediações entre
antigos pedagogismos e novos antipedagogismos. Com o advento do escolanovismo as
preocupações educacionais abandonaram o terreno do político e se abrigaram no âmbito técnico-
pedagógico, com isto desmobilizando as forças populares, que se organizavam, e servindo de
instrumento à manutenção da hegemonia da classe dominante.
Este clima foi produzindo uma pedagogia que, no dizer de Libâneo (1999, p. 14), estaria
assumindo “ora uma conotação instrumental de ênfase no caráter técnico-administrativo da
educação, ora conotação de operacionalização metodológica” e ainda, mais sério que isto, é que os
estudos pedagógicos estariam sendo identificados apenas para referirem-se à formação de
professores, ou para organizar métodos e técnicas de ensino. Perdeu-se o aspecto fundamental da
pedagogia como reflexão, como orientadora dos espaços educacionais para formação de cidadãos,
como crítica de ações educacionais.
Foi neste contexto que os cursos de pedagogia foram criados, em 1939, para formar o
professor de cursos normais, bem como o bacharel, para exercício dos cargos técnicos de educação.
Não se pode esquecer que 1939 foi um momento político de ditadura brasileira...
Está certo que Paulo Freire não descarta a importância da cultura letrada, no entanto é uma
questão de encarar o fenômeno da relação homem-mundo de maneira diferente: antes de ser método
e técnica de transmissão, a educação deve ser um ato político, que organiza a intencionalidade do
ensino, a partir do sujeito, visto sempre em seu coletivo social. Paulo Freire não desconsiderava o
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
papel da informação, mas considerava que as informações de nada servirão se, paralelamente ao ato
de conhecer, o sujeito não criar uma “nova teoria do conhecimento” que será a matriz de um novo
quadro interpretativo, que irá permitir ao aluno reelaborar seus conhecimentos dentro de uma nova
ótica, a ótica do sujeito.
A obra de Freire no Brasil foi também bruscamente interrompida, mas teve diversas
continuidades no mundo, demonstrando sua pertinência como fundamento de uma pedagogia que,
aliando ciência, arte e política, influenciou outras áreas do saber e apresentou diretrizes que foram
profundamente utilizadas por vários trabalhadores sociais em suas práticas: filósofos, terapeutas,
médicos, cientistas. Sua obra prenunciou um tratamento interdisciplinar das ciências, enriquecendo
o trabalho de educadores com novas formas de pesquisa, como a pesquisa participante,
demonstrando que a pedagogia pode ser uma ciência articuladora de saberes e também instrumento
fundamental, essencial, à emancipação da humanidade. Mostra sua obra que o antipedagogismo é
uma atitude de renovação e transformação, porque se organiza como pensamento crítico e como
prática ideológica.
Concordando com o autor (SANTOS, 2009), acredito que o principal projeto político do
pensamento pedagógico, hoje, será o da inclusão do sujeito nas práticas pedagógicas, resistindo ao
avanço da despersonalização das práticas educativas e insistindo nas práticas interculturais que
poderão contribuir para novos entendimentos coletivos e culturais. Essa, talvez, seja a principal
insurgência pedagógica: resistir às práticas neoliberais que excluem e despersonalizam o sujeito e
insistir nas práticas inclusivas, dialogais, participativas.
Resistir ao ensino de um lado só, resistir ao ensino como doutrinação tecnológica, resistir às
práticas que colocam todos em competição com todos e ousar buscar práticas de solidariedade, de
partilha de conhecimento; de forma que as perspectivas interculturais e inclusivas possam ser
incorporadas, transformando-se em políticas, culturas e práticas assumidas/vivenciadas pelos
sujeitos envolvidos no processo educativo.
A insurgência demanda inovar nos processos e práticas cotidianas escolares. Candau (2012)
realça que a construção de práticas socioeducativas na perspectiva da interculturalidade exige
posicionamentos novos frente às dinâmicas habituais que persistem nos processos educativos
escolares, que são muitas vezes padronizados e homogeneizados, desconsiderando as
especificidades dos contextos socioculturais dos sujeitos que deles participam. Práticas
interculturais favorecem dinâmicas participativas, processos de diferenciação pedagógica e
utilização de múltiplas linguagens que estimulam a construção coletiva (CANDAU, 2012, p. 246).
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
RESISTINDO E CONSIDERANDO
a) A escola pública é uma condição para o exercício e vivência dos ideais democráticos e
universais. Como tal, deve ser considerada como um direito de todos, como estruturante das
relações sociais e políticas e um espaço tempo de vivência plural, para além e aquém das
desigualdades sociais, culturais, éticas; um lugar de reconhecer, cuidar, apropriar-se do patrimônio
cultural de nossos ancestrais. Assim realço: é a ideia de escola, o conceito de escola precisa ser
restaurado, de forma a dar condições para as insurgências necessárias à prática pedagógica.
c) A educação não pode ser concebida, tratada, compreendida pela lógica do mercado.
Educação é direito e não mercadoria. Como direito deve ser pública, laica e obrigatória. Como
dever carece de incluir a todos e ofertar mecanismos, processos e agenciamentos para que todos
tenham no espaço escolar as condições de bem viver e de bem desenvolver seu direito à cidadania.
f) A pedagogia e a didática não podem estar a serviço da exclusão, mas sim ao lado de
projetos e práticas sustentáveis, solidárias, emancipatórias, que desenvolvam consciência dos
direitos e deveres; do lugar social de cada um; da necessária premência da vida coletiva.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Fernando. A educação e seus problemas. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1937.
CANDAU, Vera Maria. Didática crítica intercultural: aproximações. Petrópolis: Vozes, 2012.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. A Pedagogia como ciência da educação: entre práxis e epistemologia. Tese
(Doutorado em Educação) – FE-USP, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. A Pedagogia como ciência da Educação. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora
Cortez, 2008.
FRANCO, Maria Amélia Santoro. Pedagogia e Prática Docente. São Paulo: Editora Cortez, 2012.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Verbete: antipedagogismo. Revec: Revista de Estudos Culturais, [s.l.],
v. 2, p. 99-110, 2015.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Prática pedagógica e docência: um olhar a partir da epistemologia do
conceito. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP/Inep), Brasília, v. 97, n. 247, p. 534-551, 2016.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Da necessidade/atualidade da pedagogia crítica: contributos de Paulo
Freire. Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 152-170, 2017a.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Práticas pedagógicas de acolhimento e inclusão: a perspectiva da
pedagogia crítica. Revista Política e Gestão Educacional (on-line), Araraquara, v. 21, n. 2, p. 964-978, nov. 2017b.
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Pedagogia: por entre resistências e insistências. Espaço do Currículo,
João Pessoa, v. 10, n. 2, p. 161-173, mai./ago. 2017c.
GAUTHIER, C.; TARDIF, M. A Pedagogia: teorias e práticas da antiguidade a nossos dias. Petrópolis: Editora Vozes,
2010.
LIBÂNEO, José Carlos; PIMENTA, Selma G. Formação de profissionais da educação: visão crítica e perspectiva de
mudança. Educação e Sociedade, Campinas: Cedes, n. 68/especial, 1999.
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Direitos humanos: o desafio da interculturalidade”. Revista Direitos Humanos,
[s.l.], n. 2, p. 10-18, 2009.
SCHMIED-KOWARZIK, W. Pedagogia Dialética – de Aristóteles a Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1983.
Renato Noguera
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
Um ensaio especulativo a respeito das relações entre democracia e infância traz alguns
desafios. Quais são as possibilidades de um breve estudo preliminar a respeito das relações entre
conhecimento e democracia, enfatizando emancipação e prática participativa em contextos
educacionais? Nós vamos partir de uma hipótese: a infância como um modo de conhecimento. A
realização da democracia em toda a sua radicalidade – aqui entendida como um regime político que
estende os direitos de participação e deliberação a todas as pessoas de uma sociedade – só se dá
quando todas as pessoas se relacionarem com o mundo de modo infantil. Antes de desenvolvermos
essa conjectura, vamos apresentar panoramicamente um pouco das narrativas sobre a democracia,
destacando o que aqui denominamos como as duas experiências mais antigas de poder político
democrático. De um lado, a bastante conhecida Atenas-Grécia Antiga/Europa. De outro, o antigo
Reino do Congo/África.
mesmo período, por volta do século V a. C., em outra região do planeta, de acordo com os estudos
do historiador angolano Patrício Batsîkama, o Reino do Congo vivia sobre um regime democrático
institucionalizado e representativo denominado Lûmbu. Na atualidade, Lûmbu é um tribunal
tradicional em algumas regiões da província de Bêngo, tal como Mbânz’ a Kôngo. No passado,
Lûmbu era o termo usado para denominar o processo de instituição da democracia através de quatro
órgãos executivos. A saber:
“(1) Mpôlo’ a Lêmba, também chamado Bumpôlo; (2) Mfûmu’ a Lêmba, também chamado
Kimfûmu; (3) Lûmbu ou simplesmente Yêmba; (4) Mbôngi” (BATSÎKAMA, 2013, p. 37).
Cada órgão era formado por “departamentos” com funções específicas. A dinâmica do
Lûmbu, nome que designa os meandros de funcionamento do sistema democrático do antigo Reino
do Congo, incluí candidaturas e processos de escolhas para funções delimitadas. De acordo com
Batsîkama, os 12 clãs das 144 tribos que formavam o Reino do Congo estavam divididas em três
linhagens (Nsaku, Mpanzu e Nzinga) que repartiam os poderes executivo, legislativoi e militar
(BATSÎKAMA, 2013, p. 47-50). Todas as pessoas participavam de alguma maneira do processo.
Porém, aqui o foco vai justamente para um aspecto: Mpôlo’ a Lêmba é a primeira instância da
estrutura democrática do Reino do Congo. A expressão “Mpôlo’ a Lêmba” é o nome de um Nkisi
(uma potência natural e espiritual) responsável pelas crianças. Ora, interpretamos que a porta de
entrada para a democracia é o cuidado com as crianças. Se a democracia ateniense não menciona as
crianças. Na democracia do Reino do Congo, a primeira instituição traz o nome de um Nkisi
responsável por cuidar das crianças, o simbolismo não é em vão. Nós estamos de acordo com
Bonaventure Mve-Ondo, que no livro Para cada um a sua razão: razão ocidental e razão africana
(oralidades)ii, afirma que não podemos perder de vista que toda produção humana tem uma
episteme, isto é, um conjunto de princípios que sustentam que funcionam como fiadores da validade
do que é conhecido e produzido. De acordo com Mve-Ondo (2013), tudo que é feito pelo ser
humano possui uma dimensão ontomitológica, isto é, os mitos têm origem numa ontologia que é
indispensável para a compreensão de um povo, de uma cultura ou de uma tradição. Os mitos são o
lugar da estrutura inconsciente de um pensamento. Nos casos em questão. Primeiro, nós podemos
especular que o mito de origem da democracia ateniense gira em torno da superação do mito e
vitória de um discurso racional, enquanto no contexto do antigo Congo, não se trata de uma
superação, mas de uma atenção com a infância. Não se trata somente de duas posições opostas, mas
de perspectivas que desencadeiam implicações diferentes para a construção da democracia.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
No caso de Atenas, Vernant destaca que o novo regime da Polissó se dá por conta da
“laicização do pensamento político o advento da filosofia” (VERNANT, 2002, p. 11). O que
significa que a democracia só se torna possível em Atenas quando os mitos perdem o poder de
organizar a vida política, no lugar das narrativas míticas, “um pensamento novo procura estabelecer
a ordem do mundo em relações de simetria, de equilíbrio, de igualdade entre os diversos elementos
que compõem o cosmos” (VERNANT, 2002, p. 11). Porém, o mito de origem da democracia do
antigo Congo está no cuidado com as crianças (BATSÎKAMA, 2013, p. 37), assunto que é
mencionado, mas não é longamente explorado por Batsîkama no livro Lûmbu: a Democracia no
Antigo Kôngo. O que diz Mpôlo’ a Lêmba? “Mubedo bu kanwini Mpolo Lemba bio kahodidi buna
weka Mwana ma Lemba ye nganga weka Tata ma Lemba”iii. O que podemos traduzir como:
“Quando uma pessoa que sofre beber a bebida de Mpolo Lemba, ela se torna uma criança de
Lemba, enquanto o sacerdote: pai Lemba”. Pois bem, o que nos interessa nesse provérbio mítico-
religioso? O sofrimento é uma condição humana universal e para superá-lo é preciso se tornar
criança, assumir um estado de infância diante do mundo, comportar-se de modo infantil na vida,
isto é, aceitar apoio, receber algum tipo de ajuda.
“Como a democracia pode se realizar através da infância?”, ora é essa a questão que
perseguimos. A partir de uma abordagem afroperspectivista que tem caráter multirrreferenciado,
podemos nos aventurar por algumas especulações em torno desse debate, retomando justamente a
ideia de que a democracia do Reino do Congo começou por assumir a necessidade de retomar o
Estado de Infância. A condição de desamparo e os limites diante do mundo são aspectos-chave para
a construção da democracia. Se para o psicanalista branco austríaco Sigmund Freud, o desamparo
nos infantiliza e diante disso, precisamos “crescer”, o pensador senegalês Felwine Sarr supõe
largada semelhantes, mas ambos fazem jornadas distintas. Para Sarr, o “mundo é um enigma a ser
decifrado, mas é ilusório crer que nos seja possível decifrar todas as suas leis e nelas fundar a ação”
(SARR, 2019, p. 115). Freud menciona o modelo infantil da nossa relação com a realidade.
Mas, como se defende ele contra os poderes superiores da natureza, do Destino, que o
ameaçam da mesma forma que a tudo mais? A civilização o poupa dessa tarefa; ela a
desempenha da mesma maneira para todos, igualmente, e é digno de nota que, nisso,
quase todas as civilizações agem de modo semelhante.
[...] essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade, é
somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de
desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões
para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção
contra os perigos que conhecíamos (FREUD, 1974, p. 28).
As questões que nos animam são: quanto e como uma narrativa africana antiga pode
contribuir para o estabelecimento da democracia nas sociedades contemporâneas do mundo?
Primeiro, concordamos com Mamoussé Diagne (2005), quando diz que todo saber é limitado e a
universalização pode trazer mais malefícios do que vantagens. Nesse sentido, é equívoco perguntar
como uma tradição pode “salvar” o mundo. Até porque os impasses que o planeta vive têm relação
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direta com o projeto de colonização feita pela Europa. De alguma maneira, o projeto civilizatório
ocidental vive sob abalos, os produz e os amplifica. Essa proposta do ocidente de “salvar” o resto
do mundo impondo a sua maneira de fazer as coisas não convence o planeta inteiro. Porque no
“curso da história, ela se esvaziou progressivamente de sua capacidade de propor metas
universalizáveis” (SARR, 2019, p. 30), se é que algum dia suas metas foram dignas de
universalização. Por isso, é bastante oportuno problematizar a democracia ancorada nos princípios
da modernidade, entendidos como revitalização do ideário grego simbolizado pela Ágora ateniense.
Não estamos a dizer que devemos substituir por padrões africanos, confiando cegamente e de modo
romântico no trajeto que advém do Reino do Congo e tem sua jornada em sociedades africanas
tradicionais que são caladas pelo projeto ocidental. Não se trata de substituir ou de propor um
projeto universal “salvador”, mas de inscrever na trama política um princípio em desuso. Se a
democracia tem sido vista como a possibilidade de isonomia de exercício do poder político
mediante as ferramentas institucionais, nós identificamos um problema, a compreensão adultizada
do mundo impede esse exercício. Em termos filosóficos afroperspectivistas, adultizada quer dizer
um modo de se relacionar com o mundo marcado pela adultidade, isto é, a adulteração da dádiva da
existência em risco permanente e necessidade de controle e disputa mortal. É através do Estado de
Infância aqui compreendido como um modo de se relacionar com o mundo que reconhece que nada
podemos fazer a não ser brincar seriamente uns com os outros. A brincadeira é uma vivência de
responsabilidade com a vida; abrir mão dela em função de um estado de guerra é um agir adultizado
que aumenta a vulnerabilidade de existir. O Estado de Infância não pressupõe a superação da
vulnerabilidade que é intrínseca à existência, mas a celebra através do convite de que todos podem
compartilhar. A adultidade – enquanto modo psicológico padrão do ocidente – mantém uma relação
predatória e de extração com o mundo, a regra é que os seres mais “habilitados” controlem a gestão
e o monopólio dos recursos naturais Os mais “adultos” querem controlar e comandar o jogo
político. Nesse contexto, a democracia encontra dificuldades. Porque: a isonomia é improvável. A
deliberação da maioria pode ser pela destruição do meio ambiente ou por medidas políticas que
aumentem a vulnerabilidade de alguns grupos. Num contexto de busca pelo Estado de Infância, a
humanidade tem uma responsabilidade com o mundo que passa pela inclusão dos outros seres
vivos, outras espécies animais, seres vegetais e seres minerais. No Estado de Infância, a democracia
inclui todo mundo. Os seres dos reinos animal, vegetal e mineral precisam ser considerados para
uma decisão. Tal como nos diz Ailton Krenak.
Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos
Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi. Ele tinha pedido que alguém
daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar.
Quando foi encontrá-la, ela estava parada perto de uma rocha. O pesquisador ficou
esperando, até que falou: “Ela não vai conversar comigo, não?” Ao que o faciltador
respondeu: “Ela está conversando com a irmã dela”. “Mas é uma pedra”. E o
camarada disse: “Qual é o problema?”.
Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da
mineração. A aldeia Krenakfica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra.
Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã, de lá do
terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é
melhor ficar quieto (KRENAK, 2019, p. 17).
Gente adulta não conversa com as montanhas, pode até, se for muito “adultescida”, excluir
crianças da conversa, alguns homens brancos excluem pessoas negras e indígenas, mulheres
brancas, todas as crianças, gente com deficiência da conversa, ainda mais outros seres do reino
animal, vegetal e mineral. O papel da democracia é evitar que o mundo entre em colapso, por isso: é
um regime sobre o qual todos os seres precisam conversar. A democracia deve ser compreendida
como um sistema biofílico, favorecendo a continuidade da vida e evitando que os confrontos se
transformem em holocaustos, genocídios e todas as linguagens da violência. A democracia é rival
do racismo, do sexismo, da misoginia, da LGBTfobiav e de todas as formas de discriminação e
opressão. A democracia é uma atitude política que assume que o convívio humano nunca será
pacífico e, portanto, precisamos aprender ininterruptamente como viver sem concordar. O que exige
muita infantilidade. As pessoas imersas na adultidade não suportam o desacordo, elas são capazes
de tudo para vencer um jogo, mesmo se a vitória colocar a vida do planeta em risco. No livro
Histórias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak fala docemente do esforço para manter os
humanos habitando o mundo, uma luta contra a entropia. Nós temos duas dimensões que aceleram a
entropia do mundo. Num registro psicológico: o adultescimento; numa dimensão político-
econômica, as ideias de progresso e desenvolvimento. Em termos afroperspectivistas, a democracia
é um remédio político contra a entropia do mundo. Entropia aqui entendida no sentido físico-
químico do termo, dissipação de energia até que um sistema entre em colapso e desapareça. Daí, em
termos cosmológicos afroperspectivistas, não existe avanço; mas aproximação do colapso,
dissolução do equilíbrio, isto é, o fim das coisas.
Sarr reconhece a entropia do mundo; as coisas começam e acabam, caminham para o fim.
Mas a jornada infantil consiste em continuar jogando, brincando e fazendo. Não existe capítulo
final para a jornada da humanidade enquanto formos capazes de viver criativamente e em
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
consonância com as vozes do mundo. Não podemos viver sem ouvir os outros: montanhas, rios,
outras espécies, rivais humanos, etc. Nós precisamos continuar restaurando as coisas.
Nessa perspectiva, o mundo está sujeito a um princípio de entropia, ele se degrada, e
quer seja o humano responsável por isso ou não, o ritual de reparação do mundo
representa um dos atos simbólicos mais significativos em sua tomada de consciência
sobre essa responsabilidade. A essência do poder político consiste, pois, em
reestabelecer e restaurar essa ordem. Dessa concepção do universo se depreende uma
visão de responsabilidade do ser humanoe da função do poder político (SARR, 2019,
p. 115).
CONCLUSÕES PARCIAIS
A especulação deste ensaio conclui parcialmente que: fazer democracia é assumir todas as
vozes sem o monopólio de nenhuma, uma atitude infantil e responsável. A infância vem sempre
consignada com a responsabilidade. É a adultidade que não se responsabiliza pelas suas aventuras.
O Estado de Infância é a possibilidade de enfrentar a entropia. A democracia como regime político
deve lançar mão de tecnologias culturais que enfrentem o perigoso discurso de que devemos
avançar e nos desenvolver. Porque proclamar o progresso e o desenvolvimento é nocivo.
mentalidade, um complexo cultural, um modo de conceber a economia e de fazer política que levam
para o abismo. Nesse contexto, a democracia não florescerá como a possibilidade de criação e
restauração de direitos. É preciso uma mentalidade infantil para que a democracia reencontre o seu
poder restaurador. A democracia só é possível em sua radicalidade se formos capazes de viver
imersos na infância, em Estado de Infância. Porque desse modo, as vozes, os lugares de fala, as
demandas por novos direitos, os desafios mais difíceis terão um ponto de partida comum: o nosso
desamparo como razão para nos aproximar. Sem assumir o desamparo, combater a entropia e, por
consequência, viver imerso em infância, a democracia não pode não passar de uma ideia frágil que
desmancha no ar.
REFERÊNCIAS
BATSÎKAMA, Patrício. Lûmbu: a Democracia no Antigo Kôngo. Luanda: Media Press, 2013.
DIAGNE, Mamoussé. Critique de La rasion orale: les pratiques discursives em Afrique noire. Paris: Karthala, 2005.
FREUD, Sigmund. “O futuro de uma ilusão”. In: Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Vol. 21. p. 15-80.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LÍSIAS. Discursos. Tradução: José Luis Calvo Martínez. Madri: Editorial Gredos S.A., 2007.
LORAUX. Nicole. Invenção de Atenas. Tradução: Lílian Valle. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.
MVE-ONDO, Bonaventure. A chacun sa raison: Raison occidentale et raison africaine (Oralités). Paris/Dakar:
L’Harmatann, 2013.
SARR, Felwine. Afrotopia. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2019.
VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução: Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro:
Difel, 2002.
Notas de fim
i
O poder legislativo funcionava com o que podemos denominar em termos modernos de judiciário.
ii
O livro A chacun sa raison: Raison occidentale et raison africaine (Oralités) não tinha sido traduzido para o
português até o fim de 2019. Tradução livre do título feita pelo autor do artigo.
Aqui trazemos um provérbio transmitido oralmente em várias regiões africanas do contexto cultural bantu, aqui em
iii
versão do idioma kikongo aprendida pelo autor por ensinamentos da avó materna, Dona Elvira de Mello Nunes (1925-
1984).
iv
Não existem muitas publicações no Brasil que se debruçam sobre o assunto, enquanto a respeito das bases gregas da
democracia são vastas e variadas.
v
Aqui LGBTfobia significa discriminação sistemática contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans, Travestis,
Interssexuais, Assexuadas e todas expressões de gênero e sexualidade (LGBTIA +).
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS:
EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA
Rita Potyguara
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
No Ceará, a partir do final dos anos de 1990, teve início o movimento dos indígenas por
uma educação escolar diferenciada. Nos seus dizeres, esta é uma educação que “não mude a cara da
gente”, ofertada em uma “escola que não mude nosso jeito de ser”. Desse modo, as escolas
indígenas existentes no estado nascem do desejo de serem diferenciadas, visando a promover a
afirmação identitária dos povos locais, de suas culturas e de seus direitos. Isto é, como estratégia de
luta em seus movimentos por reconhecimento étnico no cenário político, os indígenas elegeram a
escola como uma instância privilegiada.
As primeiras escolas do estado começaram a funcionar à revelia dos órgãos oficiais, sem
contar com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) ou das secretarias municipais ou
estaduais de educação. Os professores lecionavam de forma voluntária, como um compromisso de
militância. Redes de solidariedade foram formadas entre os apoiadores da causa indígena para o
funcionamento destas escolas, a exemplo de setores mais progressistas da Igreja Católica. Em 2000,
foram incluídas na rede estadual de ensino, sendo instituída a categoria escola indígena e criadas 23
instituições escolares indígenas, dentre elas a dos Tremembé e as dos Tapeba aqui referidas. Com
essa institucionalização, tem-se a gênese da política de Educação Escolar Indígena (EEI) no Ceará
que teve, entre suas principais ações, os primeiros cursos de formação de professores indígenas, a
produção e a publicação de materiais didáticos específicos, além da elaboração dos projetos de
construção de prédios escolares, aquisição e distribuição de mobiliários e de equipamentos diversos.
Os professores indígenas, ao serem contratados pelo estado, constituem uma nova categoria de
liderança, passando a desempenhar o papel de interlocutores principais entre as agências
governamentais e as demandas de suas comunidades.
Esta política foi se definindo a partir das pressões do movimento indígena em articulação
com as organizações indigenistas da sociedade civil e os órgãos de governo. Foi marcada pelo
momento inicial em que as competências da educação escolar indígena em todo o país saíam da
responsabilidade exclusiva da Funai para os sistemas de ensino, ficando o Ministério da Educação
(MEC) com a atribuição de coordenar nacionalmente a política, ao passo que os estados e os
municípios passariam a ser os executores de suas ações. Este foi um momento de muitos conflitos
no campo da política indigenista no país, localmente ainda associados a um contexto em que os
indígenas reivindicavam o reconhecimento étnico e a garantia de direitos específicos como saúde,
educação e demarcação de suas terras.
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA
Os dois grupos apresentados nesse artigo constituem uma representação da situação dos
atuais 14 povos indígenas no Ceará, considerando-se suas aproximações e especificidades. Assim,
os Tremembé, presentes nos municípios de Acaraú, Itarema e Itapipoca serão apresentados apenas
com a experiência curricular da Escola Indígena Tremembé Maria Venâncio, localizada na praia de
Almofala, no município de Acaraú. Os Tapeba, concentrados no município de Caucaia, serão
representados pela experiência da Feira Cultural, da Festa da Carnaúba e dos Jogos Indígenas,
eventos realizados pelo conjunto de suas escolas.
Nesse contexto, as escolas têm sido acionadas como importantes demarcadores da presença
indígena no estado, definindo os contornos dos territórios e se constituindo como práticas de
construção de insurgências, resistências e autonomias.
A Escola Indígena Tremembé Maria Venâncio foi criada em 1991 a partir de situações de
preconceito e discriminação vivenciadas pelas crianças Tremembé que estudavam em escolas não
indígenas. Com base nessa narrativa, a comunidade criou e manteve as primeiras práticas
educativas por meio da agência das lideranças indígenas – dentre elas uma professora voluntária –,
dos pais e dos alunos dispostos a experimentar uma escola própria. Assim, esta serviria tanto para
“ensinar as crianças a ler e escrever” quanto para “ensinar a elas a cultura do próprio povo
Tremembé”, como pode ser lido no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da referida escola. No início
dos anos 2000 foi incluída no sistema oficial de ensino, sendo regularizada por meio de ato de
criação e credenciada para funcionamento pelo poder executivo estadual. Dessa forma, passou a ser
regulada pela Secretaria da Educação (Seduc) e o Conselho Estadual de Educação (CEE), tendo que
submeter os seus instrumentos de gestão às normativas de tais órgãos.
e Educação Física –, estão também presentes, para o Ensino Fundamental, aquelas relacionadas às
suas especificidades – Arte, Expressão Corporal, Cultura e Espiritualidade Indígena, História
Tremembé, Medicina Tradicional Tremembé, Torémi e Espiritualidade Tremembé. No Ensino
Médio, organizado pelos eixos Linguagem, seus Códigos e Tecnologia, Ciências da Natureza e
Ciências Humanas, compostos pelas disciplinas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
fazem parte do currículo Arte Tremembé; Pesquisa da Linguagem Tremembé, Torém e
Espiritualidade, Saberes Tremembé do Céu, da Terra e do Mar, História Tremembé, Medicina
Tradicional Tremembé. Além disso, os conteúdos produzidos pelos próprios Tremembé, bem como
a partir das pesquisas realizadas sobre eles, são transversalizados em disciplinas como Filosofia,
Sociologia, Geografia, Educação Física, dentre outras.
Desse modo, como as avaliações estão centradas apenas em um dos aspectos do processo de
ensino-aprendizagem – isto é, os conteúdos do currículo nacional –, são desconsiderados os
componentes que os indígenas elegem como diferenciados. Além disso, estas avaliações terminam
por caracterizar a educação escolar indígena como inferior à ofertada nas escolas não indígenas,
uma vez que a maioria das escolas indígenas não têm alcançado, de acordo com os critérios de
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA
avaliação atualmente em vigor, os níveis estabelecidos de aprendizagem dos alunos. Diante desta
situação, os atores sociais que fazem as escolas Tremembé de Almofala tomaram a decisão em
2019 de não mais se submeterem à avaliação do Spaece, não participando de sua última edição. É
importante destacar que, no caso desta escola, as avaliações aplicadas dizem respeito apenas ao
Ensino Fundamental, uma vez que o Ensino Médio vem sendo ofertado apenas como uma iniciativa
comunitária sem o respaldo dos órgãos de regulação educacional. Com isto, a Seduc foi levada a
adotar estratégias, em diálogo com a comunidade, para solucionar esse problema. Os indígenas
cobraram do órgão que fossem contemplados conteúdos sobre a história e a cultura dos povos
indígenas, conforme a determinação de inclusão destes conteúdos nos currículos da educação básica
em todos os estabelecimentos de ensino, reinvindicando, assim, tão somente o cumprimento da Lei
11.645/2008.
A explicação corrente, dada pelos Tapeba, para a criação das primeiras escolas indígenas em
suas comunidades está ligada a relatos de situações de preconceito vivenciadas pelo grupo. Sendo
assim, as ações educativas deste grupo étnico também fazem parte das práticas pedagógicas
consideradas emancipadoras e insurgentes tendo em vista ajudarem a construir o sentido das
resistências indígenas no estado, incluindo a defesa dos seus territórios. Dentre estas ações destaco
aqui a Feira Cultural que abriga a realização dos Jogos Indígenas e da Festa da Carnaúba,
componentes curriculares que foram integrados ao calendário letivo das escolas de suas
comunidades.
Estes eventos são realizados há quase 20 anos no local denominado Pau-Branco, às margens
da Lagoa dos Tapeba, na localidade de Capuan, na Lagoa 2, considerado “terreiro sagrado” para os
Tapeba por seu grande valor histórico. O lugar está ligado ao processo de reorganização política e
cultural deste grupo que luta pela demarcação do seu território. Por este motivo, através da Feira,
dos Jogos e da Festa, os professores, lideranças e alunos Tapeba procuram demarcar suas fronteiras
étnico-identitárias frente aos processos de interação com os regionais. Isto é, por meio destas
experiências os Tapeba promovem a valorização de suas identidades étnicas, de seus costumes e
tradições em eventos públicos. Sendo assim, é importante destacar que, na realização destas práticas
pedagógicas, há a presença de alunos das escolas não indígenas dos municípios de Caucaia e de
Fortaleza, agentes ligados à questão indígena, oriundos de organizações governamentais e não
governamentais, bem como indígenas de outras etnias.
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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA
No currículo das escolas são incluídos conteúdos apresentados na Feira, bem como passam a
integrar as práticas pedagógicas os jogos e outras atividades realizadas na comunidade com uma
forma de atualizar e reinventar suas memórias. Algumas atividades realizadas durante os eventos
são construídas e ensaiadas durante as aulas culturais. Estas últimas são compreendidas pelos
Tapeba como o principal elemento diferencial da sua proposta educacional, ocorrendo, de um modo
geral, uma vez por semana. Em suma, as aulas culturais são o tempo-espaço de preparação dos
eventos, onde são gestados muitos dos elementos tradicionais exibidos publicamente. Nestes, além
da ressemantização dos símbolos de preconceito, busca-se chamar a atenção de índios e não índios
para a eficácia das escolas diferenciadas.
É importante destacar que, atualmente, esta experiência tem o apoio dos órgãos reguladores,
sobretudo a Seduc. Hoje, pode ser tida como uma prática consolidada, tendo os indígenas vencido
os embates iniciais ao questionarem um currículo e um calendário não compatíveis com suas
demandas educacionais. No início de realização destas atividades, os Tapeba encontravam
resistências
Tanto a Feira Cultural quanto os Jogos Indígenas e a Festa da Carnaúba são apontados, pelos
professores Tapeba, como importantes produções de suas práticas pedagógicas, embora assumidos
por todas as comunidades e suas lideranças. De acordo com eles, essas criações visariam à
manutenção dos intercâmbios entre suas comunidades, a população regional e setores do estado
responsáveis pela promoção de políticas indigenistas e educacionais. Por este motivo, tais eventos
se apresentam também como canais de expressão de imagens positivas da escola indígena.
Ocorreria, então, por meio da sua realização a positivação da imagem da escola diferenciada
proposta e praticada pelos Tapeba.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Jogos Indígenas e pela Festa da Carnaúba, busquei destacar as maneiras possíveis de construção de
diálogos entre saberes nas experiências de educação diferenciada, as formas pelas quais as
memórias e tradições dos grupos indígenas podem se converter em práticas ou rituais pedagógicos,
chamando ainda a atenção para o sentido das interações e aproximações pretendidas em torno
destas práticas (tanto com os não indígenas quanto com as diferentes comunidades que formam
cada povo).
Notas de fim
i
De acordo com Oliveira Junior, Torém “é uma dança de roda de terreiro, [...] dirigido por um mestre que, com pancada
forte do pé no chão, comanda os dançarinos, homens e mulheres, marcando os movimentos ao som de um maracá. No
centro da roda fica uma cuia com o mocororó, vinho de caju servido aos participantes da festa. A dança é acompanhada
por uma cantada em quadra.” Ver obra completa em: OLIVEIRA JUNIOR, Gerson Augusto de. Torém: brincadeira
dos índios velhos. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.
ii
A interculturalidade, o bilinguismo/multilinguismo, a diferenciação, a especificidade e o aspecto comunitário são
princípios da educação escolar indígena instituídos nacionalmente. A partir deles tem se buscado definir e implementar
as políticas educacionais para estes povos, sobretudo em atenção ao estabelecido na Constituição Federal de 1988, na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Escolar Indígena emendas do Conselho Nacional de Educação (CNE). Para saber mais, consultar o Parecer CNE/CEB
n. 13 de 2012, disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10806-
pceb013-12-pdf&category_slug=maio-2012-pdf&Itemid=30192.
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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...
(OU SOBRE ALGUMAS PALAVRAS TITUBEANTES EM
TORNO DE UMA PEDAGOGIA NAS DIFERENÇAS)
Tiago Ribeiro
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Este texto demorou a nascer. Talvez ainda não tenha nascido, porque uma ideia começa a
nascer no espaço da relação, do encontro, da partilha tensa e, às vezes, impossível, mas recheada,
grávida de presença. Começa a nascer numa conversa, numa leitura, numa escrita que convoca
tantos outros, no cotidiano da escola, no observar o adormecer do sol, no sorriso de uma pessoa
querida, na fome de tantos, no e-mail para um amigo... Entre. Aí. Aqui. Na relação entre nós e o
mundo.
Às vezes, nessa relação tão complexa e contingente entre nós e o mundo, alguns encontros
nos devêm outros... E um encontro desse – encontro como experiência, algo que nos sacoleja e
impede de seguir sendo exatamente igual – mudou o rumo de meus modos de ser e pensar.
Encontros no plural, para ser sincero... Mas gostaria de destacar um em especial, o qual vivi neste
ano de 2020, impelindo-me a reescrever todo o texto que já estava fechando para este XX Encontro
Nacional de Didática e Prática de Ensino.
Pois bem, companheires de luta e resistência, o que de mais revolucionário senão nossas
histórias que pluralizam o mundo, que dobram o “assim” das coisas em tantos possíveis quanto
possamos inventar? Ailton Krenak, pensador indígena brasileiro, me ensinou, em seu livro Ideias
para adiar o fim do mundo (2019), que somos constelações. Sim, como o manto negro tomado por
botões brilhantes à noite, somos e estamos feitos de muitos outros e suas histórias, causos, medos
tornados lendas, conquistas tornadas mitológicas etc. Somos constelações, sim. Pluralidades,
presenças afirmativas no mundo.
Por isso, a ideia de um texto-carta endereçado a você, a nós, a mim, a todos e a qualquer
um... Uma narrativa partilhada cujo objetivo é convidar a pensar acerca e com uma experiência
vivida que dá a pensar sobre isso da inclusão, isso de uma suposta necessidade de estar formado,
preparado, capacitado para incluir.
Bem, mergulho na experiência vivida. E escrever sobre isso, neste momento, é quase tão
necessário quanto respirar. A experiência ainda reverbera em mim e me impele a contá-la, a narrá-
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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...
la, quase como se da narração dependesse o meu fôlego, a minha respiração. Um transbordamento
do acontecimento que arde no corpo e na pele, entende(m)? Algo vivido no cotidiano de uma escola
especializada na educação de surdos, com estudantes jovens e adultos surdos.
De um modo geral, temos, aqui no Brasil (e em tantos outros países!), rios e rios de
literaturas que querem dar conta de como é o surdo, o que pode, o que não pode, se pensa, como
pensa etc. Todo um aparato bélico em forma de ciência e teoria para definir, esquadrinhar, congelar,
fixar o surdo. Quase como um manual explicativo. Ui, por que precisamos ser tão explicativos e
normativos?! A existência não escapa, a todo momento, de confrarias e definições limitantes? Há
uma forma essencial e superior de ser surdo, como se a surdez implicasse um manual de existência
a ser seguido? Alguns surdos têm “surdidade” e outros não? Ou ainda: o surdo é um sujeito da falta,
inferior ao ouvinte?
Que espaço de inclusão possível quando a instituição educativa, abandonada à própria sorte
em sua responsabilidade de ensinar a todes e a qualquer um, se vê presa a um ciclo reprodutivista de
ideias baseadas na compensação da carência de uns (aqueles que “destoam” da norma), através de
dispositivos de civilização e normalização de corpos e existências? Não há anormais, mas
anormalizadores, nos alerta Carlos Skliar (2009)... cada sujeito é o ponto de referência de si mesmo,
singular, irrepetível.
Pois bem: no dia 14 de fevereiro de 2020, recebi, na minha turma, um estudante adulto
surdo (com quase 50 anos) que não sabe Libras nem oraliza palavra alguma. A princípio,
poderíamos pensar, a julgar pelas análises apressadas e indolentes que intentam definir o surdo: um
sujeito sem língua. Para mim, era um novo estudante, com quem nunca trabalhei, mas que já
estudara com outra professora no Ines. Ela me disse, uma vez, que ele escrevia e lia...
Nesse dia, ministrei minha aula junto com uma professora surda, amiga com quem partilho
tantas aventuras pedagógicas. Juntamos duas turmas porque gostamos dessa parceria em que
habitamos mundos, línguas e afetos. Aula em língua de sinais. Ao longo da aula, percebi o aluno
com o olhar entre perdido, abandonado e ansioso, como se buscando no ar lufadas de sentido ou
qualquer coisa em que pudesse se sustentar. Alguma ancoragem para a construção de algum
sentido... Refleti comigo: o que pensar de tantas e tantas escolas “inclusivas” em que se matriculam
estudantes surdos, muitos dos quais sem conhecimento de Língua de Sinais, e a garantia de seu
direito à educação é a presença de um intérprete (geralmente contratado de forma precária) para
traduzir uma língua que ele mesmo, surdo, não conhece?
Enfim, lembrei do comentário da professora no ano anterior: ele sabia escrever e ler! Olhei
para a professora de Libras, que propôs: “escreve para ele!” Fui ao quadro e escrevi: “Você está
entendendo? Quer que eu escreva?”. Ele leu. Abriu o corpo, sorriu, concordou com a mão, em
positivo! Passei a escrever e sinalizar. Ele se transformou na escrita; virou outro. Isso colocou um
pequeno graveto na engrenagem de meus pensamentos: ao que parece, este homem surdo,
estudante, desconhecedor da Libras e da oralização, constituiu-se pela linguagem escrita. Como? É
possível? Curiosidade. Desejo de seguir pesquisando, conversando (RIBEIRO; SOUZA;
SAMPAIO, 2018) com ele, escutando visualmente sua voz, sua presença única no mundo. O que
me ensina a relação com ele? Sua vivência?
O referido estudante chega à escola com uma postura muito peculiar: não olha nos olhos.
Mira o chão. Talvez por não conseguir se comunicar com as pessoas de forma mais imediata?
Talvez porque o escrever o provoca a olhar mais para baixo? Como saber? Há encontros que nos
desafiam e engravidam de perguntas... E, quiçá, uma pergunta incômoda, porém necessária, seria:
há realmente como estar preparado para a inclusão, pensada como encontro entre sujeitos vivos,
viventes, moventes, inacabados, complexos, singulares? É possível antecipar o encontro entre
corpos, a fricção de existências? Que livro poderia dar conta de tal acontecimento? Que manual me
fala do surdo que não conhece Libras e não oraliza, mas escreve muito bem, ortográfica e
gramaticalmente?
Desconfio de que, nesses tempos de tantas narrativas que pululam no mundo, afirmando a
existência de minorias historicamente negadas, de pluralidades, multiplicidades e singularidades,
querer categorizar a existência de quaisquer sujeitos seja, ainda, o velho desejo insaciável da
anormalização.
Incluir é normalizar?
O que é, então, estar preparado para incluir? Estar munido de métodos, estratégias e
dispositivos que permitam “viver” a “relação educativa” de modo prescrito? Conhecer “o que” e
“como” é cada sujeito hipotético?
Essas perguntas me fazem retornar ao aluno com o qual trabalho: no contato com outros
surdos, está aprendendo Libras desde o ano passado. Quando escrevi para ele, ele também escrevia
em resposta e ousava alguns sinais. Conseguiu muitos: a turma vibrou. Uma comunidade de afeto!
O estudante, então, diante da euforia da turma, levantou da cadeira e colocou os braços para o alto,
como se sentindo um campeão, vibrando de felicidade. Essa cena me marcou. Marcou também o
sorriso dos colegas... Os afetos, as diferenças, impossibilitando a afirmação de um mesmo.
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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...
Insisto em pensar nesse estudante. Ele me disse, por escrito (mas sobretudo com sua
existência, seu corpo, sua presença), que escrever é importante porque permite viver. Pergunto-me
pela vida na escola, pelo exercício da escuta das diferenças (SKLIAR, 2019), nas diferenças, no
reconhecimento da alteridade do outro, de sua legitimidade. Pergunto-me se há inclusão que não
passe por aí – pela indagação ética frente ao outro, que não precisa de minha autorização para
existir! Incluir não poderia ser uma conversação na qual prestamos atenção em nós mesmos, no
outro e no mundo? Tem a ver apenas com conhecer e ensinar ou, também, com sentir e
experienciar?
Conversamos na escola com os estudantes? Quando? Como? Por quê? Sobre o que? Suas
vozes (orais e/ou visuais) compõem a polifonia da sala de aula? Quem toma todas as decisões?
Quem decide o planejamento? Perguntamos o desejo e o interesse dos estudantes? Nossas aulas são
gestadas no cotidiano, na relação com os estudantes, ou são decididas, a priori, sem ao menos
conhecermos os sujeitos reais, de carne e osso? Inquietações e perguntas que me acompanham e
desacomodam, no encontro com os estudantes surdos.
Não sei... a mim me dá a impressão, com Skliar (2014), de que talvez não se trate de
inclusão nem de incluir, mas de ser e estar com o outro, com todes e qualquer um, uma pedagogia
nas diferenças, onde podemos conversar, pensar, escutar, enxergar, experienciar, espichar modos de
ser e saber, tornarmo-nos animais pulsantes, corpos que sentem, padecem, transformam-se. Ou seja:
a tensão da relação, do conviver. Ora, quem precisa ser incluído? Onde? Continuaremos sempre, e
outra vez, a repetir o mantra de que o problema é o outro e de que, portanto, precisamos de uma
solução para ele? A exclusão é o oposto da inclusão ou o testemunho de nossa incapacidade de
conversar e conviver? Nosso afã por incluir quem anormalizamos anteriormente não é uma forma,
quiçá, de escamotear nossa ainda atual impossibilidade de enxergar o outro sem manchar?
Se o outro não é ilegítimo, por que ele aprende minha língua e eu não aprendo a dele na
escola?
Se o outro não é inexistente, porque sua cultura, suas experiências, cosmologias, mitos etc.
não existem na escola?
O encontro com este estudante me faz pensar em tantas coisas... inclusive nas palavras que
muitas crianças aprendem, copiam ou repetem na escola... Crianças surdas e ouvintes: palavras que
não soam, não vibram, não ecoam na vida vivida. Compreendem o que quero dizer? Palavras ocas,
vazias, sem ninguém dentro. Palavras que povoam as escolas, mas, muitas vezes, não têm cheiro de
quem as vivem. Por que não se pode falar da vida, da nossa vida, das nossas histórias, mitos e
culturas? É perigoso narrar outros mundos? Pode-se, assim, adiar o fim do mundo?
Incluir não poderia ser então, talvez, pluralizar os espaços educativos e sociais com outras
narrações e narrativas? Orais, escritas, imagéticas, corporais? Multiplicar possibilidades, visibilizar
e pulular histórias, mundos, experiências?
Penso que a palavra-vida tem a ver com esta palavra, com isso que, se não fala de nós, fala
do nosso; é corpo e voz. E ela pode ser de tantas formas... Escrita, sinalizada, oralizada,
desenhada... Silenciada...
Chama-me a atenção que a língua que parece constituir a inclusão seja ou tenha sido, ainda,
a língua da normalidade: “o aluno não acompanha”, “ele atrapalha os demais”, “não aceito que ele
seja privilegiado com facilidades”, “ele nunca vai acompanhar os outros”... Por que não exercitar
uma língua da invenção? Da criação, da relação? Talvez sua gramática e sintaxe tenham a ver com
a possibilidade de ser de modo afirmativo, escrever inscrevendo-se, ler para além das letras,
espichar modos de ser e pensar – como indisciplina, como liberdade.
Sim, o estudante surdo que não fala oralmente nem em sinais, mas escreve, me causa
estranhamento e paixão: a alteridade radical me lembrando que a pluralidade das formas de ser,
estar e viver não cabem em nenhum compêndio. Conversamos, eu e ele, ainda um pouco por escrito
(engraçado isso de conversar por escrito estando frente a frente). E ele não narrava, contava,
escrevia apenas com as palavras sobre o papel. Seu corpo era puro verbo. Sua face era linguagem,
seu sorriso era narrativa.
Nestes tempos de chumbo e sequidão na garganta, alguns encontros nos lembram que a vida
brota por todos os poros... E pode pulsar. A beleza pode ser triste e seguir sendo beleza, sabem? É
belo que haja inclusão... É triste que ainda seja, para alguns, um dispositivo de normalização...
Mas somos insurgentes. Seguimos nas frestas, nas brechas: liberdade caça jeito, ainda que
no horizonte sibile o uivo da prisão injusta de sonhos e desejos... Incluir como inventar e buscar
beleza onde não são autorizadas. Por que não?
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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...
REFERÊNCIAS
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
RIBEIRO, T.; SOUZA, R.; SAMPAIO, C. S. Conversa como metodologia de pesquisa: por que não? Rio de Janeiro:
Ayvu, 2018.
RICOUER, P. Educación y política: de la historia personal a la comunión de libertades. Buenos Aires: Prometeo
Libros; Universidad Católica de Buenos Aires, 2009.
SKLIAR, C. O argumento da mudança educativa. In: SAMPAIO, Carmen Sanches; PEREZ, Carmen Lúcia Vidal
(orgs.). Nós e a escola: sujeitos, saberes e fazeres cotidianos. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.
INTRODUÇÃO
A relação entre educação e poder é tema recorrente na área educacional e deve ser analisada
a partir da explicitação dos diferentes contextos históricos em que ocorrem os fenômenos
educativos. A rigor, podemos afirmar que todo ato educativo é expressão de um exercício de poder,
consentido ou não, que remete necessariamente à dimensão política da educação. Partindo dessa
consideração inicial, o presente artigo busca analisar as relações entre educação e política, e
posicionar a pedagogia crítica como uma referência teórica fértil capaz de articular organicamente a
educação emancipadora com o papel da escola no horizonte utópico de uma sociedade efetivamente
democrática.
Considerando que as sociedades capitalistas são divididas em classes sociais com interesses
antagônicos, Charlot (1979) analisa quatro sentidos articulados entre si para demonstrar que a
educação é política. Inicialmente, o autor afirma que a educação é política ao transmitir os modelos
sociais: ela transmite desde a infância até a idade adulta os comportamentos que prevalecem em
uma sociedade. Os indivíduos assimilam os comportamentos da classe social a qual é vinculado,
mas ao mesmo tempo assimila também aqueles que pertencem às classes dominantes, que se
apresentam como comportamentos prevalecentes. Do mesmo modo, Charlot argumenta que a
educação forma a personalidade e difunde ideias políticas que interessam às classes dominantes:
seja ao formar um ser dócil, por exemplo, ou na difusão da ideia de liberdade, nos limites do
pensamento liberal. Finalmente, o autor argumenta que a educação é política por ser encargo da
escola, instituição social que está articulada aos interesses dos grupos privilegiados socialmente.
Assim, podemos constatar que tanto o poder quanto a dominação, em acordo com Weber, se
aproximam do entendimento de política, como visto anteriormente em Charlot (1979). A partir da
constatação da dominação e do poder exercido por grupos dominantes sobre os demais grupos
sociais no seio das sociedades de classes, a implementação de uma pedagogia emancipadora deve se
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
articular a uma abordagem dialética das relações entre educação e sociedade. Nesse sentido,
Severino (2001) afirma que não podem ser desconsiderados alguns elementos fundamentais na
apreensão, na descrição e na interpretação dos fenômenos educacionais submetidos a uma
abordagem epistêmica dialética. Dentre outros elementos ele destaca que
[...] um conhecimento sobre a educação que se pretenda rigoroso e científico não pode
deixar de levar em consideração as forças de opressão e de dominação que atuam na
rede das relações sociais, que faz da sociedade humana uma sociedade política,
hierarquizada e atravessada pelo poder da dominação. Todo conhecimento que tem a
ver com a educação não pode deixar de enfrentar, de modo temático explícito, a
questão do poder, elemento que marca incisivamente toda expressão concreta da
existência humana (SEVERINO, 2001, p. 19).
Por que caráter práxico e não caráter prático da educação? Ao empregarmos a expressão
práxico identificamos a potência da educação como uma atividade prática carregada de uma
intenção (teoria) transformadora da realidade.
Assim, o conceito de práxis está intimamente vinculado à prática, uma vez que esta é a
referência para a transformação da realidade, mas não uma prática qualquer, e sim uma prática
carregada de intencionalidade, como expressão do caráter terreno do pensamento.
Para Marx não basta conhecer e interpretar o mundo de diferentes maneiras, o que importa é
transformá-lo. Em Filosofia da Práxis, Vasquez (1968) afirma que:
[...] a relação teoria e práxis é para Marx teórica e prática; prática, na medida em que a
teoria, como guia da ação, molda a atividade do homem, particularmente a atividade
revolucionária; teórica, na medida em que essa relação é consciente (VASQUEZ,
1968, p. 117).
Ele diferencia práxis de atividade, argumentando que “toda práxis é atividade, mas nem toda
atividade é práxis” (VASQUEZ, 1968, p. 185). Reside aí o caráter práxico da educação identificado
por Severino (2011). Ou seja, a educação enquanto atividade humana intencional não é uma
atividade qualquer, mas sim uma atividade prática saturada de teoria. Diferentemente de outras
atividades humanas orientadas por uma referência teórica de senso comum, e aí podemos falar de
práticas educativas informais (não intencionais), a educação (intencional) tem uma referência
teórica de cunho investigativo-filosófico (ciência-ética).
Para tratar conceitualmente das teorias pedagógicas vamos recorrer à distinção que Saviani
(2011b) estabelece entre ideias educacionais e ideias pedagógicas. O autor reserva a expressão
ideias educacionais para se referir àquelas ideias que se reportam à educação a partir da análise do
fenômeno educativo, trabalho este desenvolvido tanto pelas ciências da educação quanto pela
filosofia da educação. Por outro lado, as ideias pedagógicas incorporam “as ideias educacionais,
não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no movimento real de educação, orientando e,
mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa” (SAVIANI, 2011b, p. 6).
Assim, podemos igualar esse conceito de ideias pedagógicas ao de teorias pedagógicas, esse último
se reportando diretamente à complexidade epistemológica da pedagogia como ciência.
entendimento da pedagogia como ciência prática, a partir das contribuições de Franco (2003),
Libâneo (1999), Pimenta (2000) e Schmied-Kowarzik (1988). Propomos identificar a pedagogia
como campo de conhecimento sobre e na educação. Campo de conhecimento, pois não se trata
apenas de teorias científicas, à medida que a prática educativa envolve outras formas e tipos de
conhecimento (senso comum, estética, ética/política, empiria, religioso etc.). Assim, a pedagogia se
constitui por uma abordagem pluricognitiva ao ser expressão desses diferentes tipos e formas de
conhecimento. Entretanto, ao mesmo tempo, a pedagogia constitui-se por uma abordagem
transdisciplinar dos fenômenos educativos ao articular e sintetizar a produção científica das
diferentes ciências da educação (clássicas) que lhes dão sustentação direta (Psicologia, Sociologia,
História e Filosofia) ou de modo mais indireto (Biologia, Antropologia, as Neurociências etc.). Por
outro lado, a pedagogia constitui-se como campo de conhecimento na educação, ao materializar-se
nas práticas educativas que estão em movimento, que estão acontecendo; e sobre a educação, por
teorizar e sistematizar as práticas educativas já experimentadas historicamente.
Assim, podemos associar o conceito de teoria pedagógica, como visto anteriormente, com o
conhecimento pedagógico produzido sobre a educação. Ou seja, por teorias pedagógicas
identificamos o conhecimento produzido historicamente na área de educação a partir da
sistematização de práticas educativas já vivenciadas.
Saviani (1984) diferencia as teorias em educação em dois grupos: teorias críticas e teorias
não críticas. As primeiras são aquelas que se articulam em torno de uma leitura dos fenômenos
educativos a partir do entendimento e da consideração da presença dos condicionantes econômicos,
políticos, sociais e culturais; ou seja, são as teorias educacionais/pedagógicas que analisam e
produzem as práticas educativas a partir do contexto histórico em que se inserem. Já as teorias não
críticas são aquelas hegemônicas nas sociedades de classes contemporâneas e identificadas como
escola tradicional, escola nova e escola tecnicista.
Cabe lembrar que esta clássica categorização das teorias de educação foi sistematizada por
Saviani (1984) na virada dos anos 1970 para os anos 1980, início do processo de redemocratização
da sociedade brasileira ainda sob a ditadura militar. Ao apresentar as teorias críticas, o autor listava
inicialmente um conjunto de teorias por ele denominadas de teorias crítico-reprodutivistas. Trata-se
de teorias que partem da análise do contexto histórico em que a educação – em especial, a escolar –
se insere, mas que ao denunciarem o papel de reprodução das desigualdades sociais que a escola
assume nas sociedades de classe acabam por depositar na educação escolar a função reprodutora
dessas próprias desigualdades. Desse modo, podemos identificá-las como teorias educacionais. Ou
seja, como já argumentamos, trata-se de teorias científicas que analisam o papel da escola nas
sociedades de classes, mas que não veem nenhuma possibilidade de intervenção pedagógica que
possa alterar a realidade social. Entretanto, Saviani (1984) apresenta outras teorias pedagógicas que,
para além da crítica, propõem uma intervenção na realidade educacional na perspectiva de
superação da sociedade de classes. Aí podemos exemplificar com a teoria pedagógica de Paulo
Freire, que já no início da década de 1960, ao propor uma pedagogia do oprimido, denunciava a
pedagogia tradicional como uma prática educativa de dominação. Ou seja, identificava a pedagogia
tradicional como uma pedagogia do opressor, e para a sua superação propunha uma pedagogia do
oprimido. Entendo que resida no pensamento freireano a inspiração de formulação da expressão
pedagogias emancipadoras (como propõe este simpósio do Endipe 2020).
Além da pedagogia de Paulo Freire, podemos ainda citar como outra teoria crítica em
educação, as experiências – ainda que pontuais – ocorridas no início do século XX por escolas
vinculadas aos sindicatos operários de gestão anarquista.
Entretanto, entendo que a teoria pedagógica crítica de maior repercussão no Brasil na década
de 1980 tenha sido a proposta do próprio Saviani (2011a) intitulada de pedagogia histórico-crítica.
No contexto de redemocratização da sociedade brasileira, algumas prefeituras assumidas por
governos progressistas difundiram muito as ideias pedagógicas sistematizadas por Saviani (2011a)
em suas escolas. Entretanto, a partir da década de 1990 com a queda do muro de Berlim, o refluxo
das ideias marxistas, a difusão do pensamento neoliberal, dentre outros fatores, contribuiu com o
também refluxo das teorias críticas na área educacional. Porém, os maiores desafios para a difusão
das teorias críticas em educação iriam ocorrer a partir de 2016 com o golpe
parlamentar/jurídico/midiático que destituiu a presidenta Dilma Rousseff e culminou com a eleição
de um governo de extrema direita em 2018, que aponta para uma ruptura radical dos avanços, ainda
que tímidos, ocorridos na área educacional desde o início da Nova República.
CONSIDERAÇÃO FINAL
Assim, é mais do que urgente recuperarmos o debate educacional que articula o papel da
escola na perspectiva de construção de uma sociedade efetivamente democrática. Para tanto, é
fundamental recuperarmos as experiências progressistas que tivemos na história da escola
brasileira, tanto quanto os avanços obtidos nas duas últimas décadas no que se refere aos estudos de
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
gênero, das sexualidades, e em especial, as experiências já em curso em torno das relações étnico-
raciais. Entendo, porém, que esses estudos, assim como as propostas de educação antirracista
devam se articular a uma proposta mais orgânica de educação, que aponte para a direção utópica de
superação da sociedade de classes.
REFERÊNCIAS
MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda, 1979.
PIMENTA, S. G. (org.). Didática e Formação de Professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. 3. ed.
São Paulo: Cortez, 2000.
PINTO, U. A. Pedagogia Escolar: Coordenação Pedagógica e Gestão Educacional. São Paulo: Cortez Editora, 2011.
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas: Editora Autores
Associados, 2011a.
SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. rev. 1. reimp. Campinas: Editora Autores Associados,
2011b.
SCHMIED-KOWARZIK, W. Pedagogia Dialética: de Aristóteles a Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1988.
WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da UnB, 2004. Vol. 2.
Adriana Hoffmann
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
Tenho pensado sobre a relação entre imagem e educação desde minha formação inicial e
continuei nas pesquisas de doutoramento e na minha atuação na Universidade como professora e
pesquisadora. Inicialmente, pensávamos que a imagem da TV era a principal difusora de imagens
na década de 1990. O foco era a relação das crianças e jovens com a TV, o papel do professor na
mediação da relação com a TV, entre outras relações. No início dos anos 2000, viu-se que junto à
TV a internet começou a despontar muito rapidamente, mas ainda vivia-se “o entrar e sair da
internet” como se ela fosse algo fora da nossa vida. Nos dias de hoje, em pleno ano de 2020, já
estamos vivendo essa conexão on-line diária. Estamos na internet diariamente conectados. As trocas
de mensagens e resoluções via WhatsApp já substituíram boa parte das comunicações antes feitas
por ligações telefônicas ou mesmo encontros presenciais. E em todas essas comunicações on-line a
imagem torna-se cada vez mais presente.
Como nos lembram vários autores (JENKS, 1999; LIPOVETSKY; SERROY, 2011;
CRARY, 2012; CAMPOS, 2013; HERNANDEZ, 2013; MIRZOEFF, 2016), embora a visão não
seja o único sentido existente e o mundo não seja unicamente visual, temos que admitir que na
atualidade estamos cercados de telas com imagens todo o tempo. Vivemos uma preponderância da
visão (CAMPOS, 2013), um ocularcentrismo (JENKS, 1999), uma cultura-tela em que nos
tornamos o homo-ecranis (LIPOVETSKY; SERROY, 2011). Aquele que, segundo Lipovetsky e
Serroy, nasce, vive, trabalha, ama, se diverte, viaja, envelhece e morre acompanhado por telas em
todos os lugares por onde passa... Na década de 1990, nós íamos atrás das telas, hoje as telas vão
atrás de nós, estão em qualquer lugar. Estão nas nossas mãos com os celulares e nos seguem por
onde estivermos. Nas grandes metrópoles e cidades já não se vive sem elas e, como nos lembra
Canclini (1997), há muito tempo nossa cidadania já ocorre pelo consumo através dessas mesmas
telas. Mas que relação a cultura visual tem com tudo isso?
E o que estaria incluído na ideia/conceito de cultura visual? Já sabemos de início que não há
consenso nem entre os pesquisadores a respeito de uma definição do conceito. Estamos vivendo em
transformação e assim os conceitos também mudam de acordo com as mudanças que vão ocorrendo
no mundo. No entanto, como bem nos lembra Mirzoeff (2016), um dos principais estudiosos do
tema, há aspectos importantes de serem lembrados para saber do que falamos quando usamos o
termo “cultura visual”:
A cultura visual inclui as coisas que vemos, o modelo central de visão que todos
temos e o que podemos fazer em consequência. Por isso, a denominamos “cultura
visual”, pois se trata de uma cultura do visual. Uma cultura visual não é simplesmente
a soma de tudo o que tem sido feito para ser visto, como os quadros e os filmes. Uma
cultura visual é a relação entre o visível e os nomes que damos ao que é visto.
Também abarca o invisível e o que se oculta à vista. Em resumo, não vemos
simplesmente aquilo que está a vista e que chamamos de “cultura visual”. Antes
também, criamos uma visão do mundo que resulta coerente com o que sabemos e com
o que temos experimentado (MIRZOEFF, 2016, p. 19-20) (tradução livre da autora).
Nesse sentido, Jonathan Crary (2012), em seu estudo do observador, nos ajuda a perceber
que essa cultura visual que vivemos na contemporaneidade não é a mesma vivida nos séculos
anteriores, pois, como Mirzoeff destaca também, refere-se à visão de mundo que vamos
construindo. Como o mundo mudou, a cultura visual que nos fala e nos remete a ele também. Crary
procura fazer um estudo genealógico de como algumas dessas mudanças aconteceram e, para isso,
ele estudou como o observador foi constituindo seus modos de ver. Que modelo de visão, como nos
diz Mirzoeff, hoje torna-se predominante? Como foi essa construção anterior desde os idos do
século XIX que permitiu as mudanças que foram ocorrendo no século XX e que nos fizeram chegar
atualmente aos modos de ver no século XXI? Em diálogo com Walter Benjamin que também
refletiu sobre as mudanças nas relações e percepções dos sujeitos a partir do início do século XX,
Jonathan Crary nos ajuda a pensar como foi mudando o lugar do observador e, em consequência, os
modos de ver.
Crary enfatiza que há então um modelo confuso de visão no século XIX que se divide em
dois: artistas que criaram um tipo de visão e significação radicalmente novo enquanto no cotidiano
a visão permaneceu inserida nas limitações “realistas” que haviam organizado o século XV. Com
isso, parece que nesse período havia uma corrente realista dominando representações populares e
em outro espaço ocorriam experimentações artísticas de criação modernista. Se há uma ruptura na
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
natureza da visualidade – como aponta o autor – que ruptura seria essa? E que continuidade
haveria? Qual seria a relação entre as imagens digitais do presente e as da chamada era da
reprodutibilidade de que fala Benjamin?
Trata-se, como analisa Crary, de uma ruptura que ocorre à margem de uma vasta
organização do visual que se torna mais forte no século XX com a difusão da fotografia, cinema e
TV. Ruptura que, segundo Crary, depende do modelo realismo x experimentação. A noção de
revolução visual modernista supõe um espectador com um ponto de vista distanciado. O autor
destaca que não há um sujeito observador prévio a um campo em contínua transformação. É o
próprio contexto em mudança que vai conformando esse sujeito que observa. No contexto histórico
da visão o que muda é a pluralidade de forças e regras que compõem o campo no qual a percepção
ocorre... Como Mirzoeff nos lembra “ver é algo que fazemos e não deixamos de aprender a fazer” e
a tecnologia visual de hoje é parte desse processo de aprendizagem que estamos fazendo
continuamente e através do qual sabemos que ver é mudar. A visão do mundo que vamos
conformando – como nos lembra Mirzoeff – não depende tanto de “como vemos” quanto do que
fazemos com o que vemos. O autor nos ajuda a compreender que construímos uma visão de mundo
com sentido a partir do que já sabemos ou do que cremos saber. Assim, ele traz a discussão de que
vivemos num mundo em permanente mudança no qual a imagem tem papel crucial destacando que
vemos não o que está para ser visto, mas o que nosso cérebro nos permite ver.
Como aponta Crary, a maioria das funções historicamente imputadas ao olho humano está
sendo suplantada por práticas nas quais a imagem não tem mais uma relação com a posição de um
observador. Perde-se, a partir das muitas tecnologias da visão, essa relação com um referente e
assim a imagem não precisa mais ser criada e muito menos entendida como mimese da realidade.
Nada mais relacionado ao nosso contexto atual de comunidades em bolhas, de dicotomias e visões
de mundo construídas com fake news e memes por todos os lados onde o que vale são as imagens
que “combinam” com o meu mundo, que minha visão de mundo e meu contexto de vida me
permitem entender. O que esse contexto, também chamado por alguns estudiosos de pós-verdade,
traz como desafio para nós professores formados e em permanente formação?
O contexto atual antes da pandemia e também na pandemia está repleto de fake news e pós-
verdades sobre os diferentes temas que os abarcam: vacina e não vacina, validação da epidemia e
não validação, confiança ou não na ciência, entre outros temas. Esse contexto amplia a reflexão
sobre a literacia visual. Para pensar a visualidade e sua relação com os professores, trago alguns
autores, estudiosos da cultura visual, que nos ajudam a refletir a respeito. Pensaremos as possíveis
relações dessa visualidade com a literacia visual. Pensar que estamos num contexto de pandemia em
que hoje a maior parte de nossas comunicações passa pelo visual e em que professores estão tendo
que produzir videoaulas para alunos amplia ainda mais esse debate.
Hernandez (2013) nos convoca a “pensar os estudos da cultura visual como uma
‘metodologia viva’ considerando-a como algo em contínua transformação à medida que novas
perguntas colocadas pela cultura visual afetam nossos modos de visão já que os estudos da cultura
visual são, de fato, uma espécie de ‘atitude intelectual’” como uma sensibilidade que permite ver as
problemáticas diante das imagens. O mesmo autor nos lembra, trazendo Banks (2010, apud
HERNANDEZ, 2013) os dois motivos apontados para o crescente reconhecimento e interesse dos
estudos com as imagens: 1) a onipresença das imagens nas sociedades serviu de reinvindicação para
os pesquisadores apontarem a necessidade de estudar as imagens existentes e 2) a suspeita de que as
imagens podem revelar o que não é possível por outros meios. Hernandez acrescenta a esses dois a
facilidade de acesso a equipamentos de produção de imagens como câmeras fotográficas e de vídeo
e programas de edição, e, hoje, complementaríamos acrescentando também a ampliação do acesso
de boa parte das pessoas ao celular como um dispositivo que integra fotografia, vídeo, edição e
ainda diferentes possibilidades com aplicativos de imagens. Nesse contexto, ampliam-se as
possibilidades de criar e produzir imagens pelos sujeitos e, desse modo, maiores necessidades de
investigar-se os sentidos, representações, imaginações, visibilidades e invisibilidades geradas nesse
contexto imerso em múltiplas imagens. Hernandez nos auxilia quando afirma que considera:
[...] a cultura visual não somente uma atitude ou metodologia viva, mas um ponto de
encontro entre o que seria um olhar cultural (visualidade) e as práticas de
subjetividades que se vinculam. Esse ponto de encontro permite pesquisar as relações
entre os artefatos da cultura visual e aquele que vê (e é visto) e os relatos visuais que,
por sua vez, constroem o visualizador. Essa aproximação permite assinalar ao menos
duas posições presentes nas aproximações: a pesquisa sobre e a partir da cultura visual
na educação. A primeira é a que considera que a cultura visual são os objetos e
artefatos visuais que nos rodeiam e com os quais interagimos. Diante dessa posição, o
que sustento é que o relevante nas pedagogias da cultura visual não são os objetos,
mas sim as relações que mantemos com eles. Disso, advém a importância de indagar
sobre essas relações na pesquisa. A segunda convida a explorar a noção de produtores
da cultura visual dos indivíduos, na medida em que não se trata somente de fazer com,
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A partir do trazido por Hernandez, pode-se questionar: como nós professores estamos sendo
e nos fazendo na relação com essa cultura visual que faz parte do contexto atual? Como professores
usam e até mesmo criam com os elementos da visualidade no seu cotidiano? Como estamos fazendo
com e sendo com esses artefatos da cultura visual? Muitas vezes, como “adultos”, o professor é
aquele que diz saber usar e se relacionar melhor com essa cultura visual em mudança constante. No
entanto, percebemos que o uso feito pelo professor em algumas instâncias cotidianas como as das
redes sociais, por exemplo, não é muito diferente do uso feito pelas crianças ou até mesmo pelos
jovens. Parece-nos que há um certo modo de relacionar-se que acaba fazendo parte do perfil dos
usuários daquela plataforma ou rede. Diante disso, podemos todos questionar cada um para si
mesmo: que artefatos visuais são esses com os quais nos relacionamos diariamente? E como nos
relacionamos e produzimos com eles? Como isso está ocorrendo nesse contexto de pandemia?
Como estamos nos relacionando com as visualidades que a pandemia mostra e as que ela esconde,
como estamos sendo na relação com essas imagens que compartilhamos ou que chegam até nós?
Nesse contexto, algumas questões sobressaem como as trazidas por Reis (2014): por que
prestamos mais atenção em umas coisas do que em outras? Vemos com mais atenção ou detalhe
aquilo que compreendemos ou o que nos é “estranho”? Que conhecimentos temos que dominar para
conseguirmos ver e interpretar as imagens? Que relações estamos criando com as imagens que
vemos e com o que produzimos a partir delas? E como esse vínculo e relação com as imagens
acontece?
Essa brincadeira nos faz pensar sobre as visualidades que temos em diferentes espaços de
acordo com os objetivos ou os grupos a que pertencemos em cada uma delas. Diferenças que nem
sempre percebemos. Quando falamos que temos diferentes identidades em cada espaço, que
podemos nos mostrar de diferentes formas, esses memes mostram de forma divertida essa reflexão
sobre quem somos e como nos mostramos visualmente em cada espaço. Por esse motivo,
Hernandez nos lembra sobre a necessidade de ampliarmos cada vez mais nossas possibilidades de
literacia visual já que ela:
[...] deve permitir […] analisar, interpretar, avaliar e criar, a partir das relações
estabelecidas entre saberes que circulam pelos “textos” orais, auditivos, visuais,
escritos, corporais e, em especial, aqueles vinculados às imagens que saturam as
representações mediadas pela tecnologia nas sociedades contemporâneas
(HERNÁNDEZ, 2007, p. 22).
Tendo pensado sobre o contexto da cultura visual nos dias atuais e a necessidade de todos
nós construirmos a nossa literacia, porque não entendemos as imagens que nos chegam da mesma
forma. Como professores, também precisamos ampliar nosso processo de literacia para poder
construir novas práticas. O contexto do isolamento social na pandemia forçou-nos a termos relações
com as imagens em usos que talvez muitos de nós nunca tivéssemos pensado antes. Quem, dentre
os professores, por exemplo, em janeiro desse ano, já havia dado uma aula on-line, feito ou
participado de uma videoconferência que atualmente na pandemia estão se tornando usuais?
Alguns dos autores que dialogo nos estudos da cultura visual, além dos aqui já mencionados,
trazem a discussão da conversa como metodologia da conversa sobre as imagens/com as imagens/
a partir das imagens e para além das imagens como metodologia de pesquisa e de prática didática
em sala de aula. A partir do que nos diz Alfred Pla, essas metodologias se assemelham a fluxos e
relações. Assim, ao propor atividades para conversar com as imagens, trabalhamos com a ideia de
que também podemos aprender e refletir sobre as práticas e usos que fazemos da imagem no
cotidiano. A partir das experiências vividas com elas pensamos sobre como “aprendemos a ser” na
relação com elas. E que aprendendo a ser aprendemos também a ver.
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Algumas possibilidades dessas conversas com as imagens são algumas das atividades que
costumo fazer nas minhas aulas pedindo aos alunos que olhem as últimas cinco postagens de uma
das suas redes sociais. Que imagens foram? Sobre que temas? Com que objetivo? O que
comunicam e para quem parecem comunicar? O que falam de você? Será que todos se dão conta do
que as imagens falam de nós mesmos? Como eles se veem e como são vistos? Esse exercício
conjugado com a brincadeira dos memes que trouxe anteriormente nos mostra que, muitas vezes, as
redes mostram mais de nós do que supúnhamos. Essa proposta seria um conversar com as imagens
e pensar provocações ou reflexões sobre elas.
A partir dessas imagens o que não é visto ou está visível? O que podemos ou queremos dar
visibilidade? E como podemos extrapolar as próprias imagens e ir além delas? Outra, é pensar a
partir dessas imagens outras imagens, outras criações e debates e até mesmo conhecer novas
linguagens para novas formas de produção.
Hernandez (2013) considera a cultura visual não somente uma atitude ou metodologia viva,
mas um ponto de encontro entre o que seria um olhar cultural (visualidade) e as práticas de
subjetividades que se vinculam. São várias as práticas educativas possíveis que se realizam com e a
partir de imagens: trabalho visualização e debate de filmes, charges, memes, postagens de redes
sociais, vídeos do Youtube, conhecimento das lógicas de enquadramento, fotografia, animação
entre outras que, em pequenos exercícios, ajudam aos que com elas tem contato a enxergar outros
caminhos para ver e criar imagens. Afinal, como nos diz Hernandez (2013), trata-se de “ser com” a
imagem ao “fazer com” a imagem. Isso permite pesquisar as relações entre os artefatos da cultura
visual e aquele que vê (e é visto) e os relatos visuais que, por sua vez, constroem o visualizador.
Nossa formação e nossas práticas educativas andam juntas todo o tempo.
Finalizando, diríamos, como afirma Mirzoeff, que hoje trata-se de trabalhar também com o
“direito ao olhar” porque as visualidades não são dadas, mas construídas historicamente e perceber
que o que nos permitiu ver uma coisa e não outra é também trabalhar com as visualidades. Afinal,
mesmo trabalhando com diferentes linguagens reforçamos com esse autor que a teoria da cultura
visual “não são só palavras sobre uma página mas também coisas que se fazem”.
O que vamos escolher fazer com as imagens para ampliar os direitos de olhar para o que
nem sempre é mostrado ou é visto? O que vamos escolher para trabalhar com as imagens de forma
cuidadosa, criteriosa e lenta e não rápida e descuidada e diante do excesso por pensar que a imagem
já disse tudo? Quem sabe a forma como estamos convivendo forçosamente com a imagem no
contexto da pandemia não nos possibilite outros “direitos de olhar” que antes eram invisibilizados
no cotidiano e que a pandemia escancarou a todos nós? O que as práticas diárias com a imagem
estão permitindo, a todos nós, professores aprender? Qual o lugar da imagem hoje no cotidiano do
professor em contraposição do lugar que a mesma ocupava antes da pandemia? Imagino que essa
aprendizagem está trazendo novas relações para todos os professores. O lugar da imagem nas aulas
e nas relações foi visibilizado claramente. Esse lugar já existia mas muitos não o viam porque nunca
o haviam vivido.
Hernandez (2013) nos lembra que trabalhar com e sobre imagens pode ajudar a
contextualizar os efeitos do olhar e, com práticas críticas explorar as experiências (efeitos, relações)
em torno de como o que vemos nos conforma podendo elaborar respostas não reprodutivas. São tais
práticas que podem produzir criações, a partir de imagens, que tragam à tona os direitos do olhar.
Nossas praticas educativas com as imagens antes e agora na pandemia nos permitem perceber o que
se exibe/se põe à vista e o que se esconde nas imagens com as quais convivemos?
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
CAMPOS, Ricardo. Introdução à cultura visual: abordagens e metodologias em ciências sociais. Lisboa: Editora
Mundos Sociais, 2013.
CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed
UFRJ, 1997.
CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
HERNANDEZ, Fernando. Pesquisar com imagens, pesquisar sobre imagens: revelar aquilo que permanece invisível nas
pedagogias da cultura visual. In: MARTINS, Raimundo, TOURINHO, Irene (orgs.). Processos & práticas de
Pesquisa em Cultura Visual e Educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2013.
LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. Cultura Mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.
MIRZOEFF, Nicholas. A teoria não são só palavras numa página, mas também coisas que se fazem. Revista Buala,
[s.l.], jun. 2018. Entrevista concedida a Filipa Cordeiro da FCSH-UNL. Disponível em: https://www.buala.org/pt/cara-
a-cara/a-teoria-nao-sao-so-palavras-numa-pagina-mas-tambem-coisas-que-se-fazem-entrevista-com-n/. Acesso em:
2019.
MIRZOEFF, Nicholas. Como ver el mundo: una nueva introducción a la cultura visual. Espanha: Ed Paidós, 2016.
REIS, Ricardo. Um olhar sobre o papel das tecnologias da visão na construção de noções e práticas de literacia visual
entre jovens. Revista Lusófona de Educação, Portugal, n. 26, 2014.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Edméa Santos
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Esse contexto é engendrado pelo capitalismo cognitivo, que desloca para os países mais
pobres e em desenvolvimento a força produtiva, própria das sociedades industriais, colocando nos
centros econômicos seus núcleos inventivos. Uma nova ideia pode forjar novos e poucos ricos, que
exploram a força de trabalho de muitos outros excluídos, mesmo sabendo que estes nem podem ser
considerados excluídos, uma vez que jamais tiveram acesso aos modos e aos meios de produção
engendrados pelas tecnologias digitais em rede. Novos arranjos, outras intensificações de antigos
processos de opressão e luta.
Neste texto, optamos por falar das lutas, de invenções de pesquisa e formação. Lutas essas
que, no campo da educação, mais precisamente do âmbito da formação de professores-
pesquisadores, instituem fazeres e saberes, ou seja, fazemos para saber. Criamos e inventamos
nossa existência, para com ela operar em ato, em ato de currículo. Nosso trabalho, junto ao
GPDOC-UERJ/UFRRJ, sempre procurou investir na criação de dispositivos de pesquisa-formação
na cibercultura. Nossas pesquisas são forjadas em contextos de docência. O ensino é campo de
pesquisa, objeto de estudo, práticas de pesquisa e formação. Não dicotomizamos o fazer docente do
fazer investigativo. Esta opção é política, uma vez que a docência e, consequentemente, o ensino
são negligenciados pelas políticas e agendas de fomentos dentro e fora de nossas universidades.
Muitas vezes, nossas pesquisas são refutadas por pares que não se implicam com a agenda de não
dicotomizar ensino de pesquisa. Pagamos um preço bastante alto, por também pesquisar na
cibercultura.
Pesquisar na cibercultura é, antes de mais nada, buscar compreender o nosso tempo, seus
fenômenos científicos, tecnológicos, artísticos, comunicacionais, antropossociais e culturais, mais
especificamente ligados aos processos formativos. Compreender para atuar, atuar compreendendo,
formando e se formando em rede. Nosso investimento cotidiano busca imbricar a docência com e
na pesquisa acadêmica de excelência. Isso significa criar metodologias de pesquisa sintonizadas
com os movimentos do nosso tempo. Não nos interessa replicar metodologias de pesquisas
qualitativas que não nos permitem acompanhar, vivenciar e atuar na relação cidadeciberespaço em
conexão ubíqua (SANTOS, 2014; 2019; ALMEIDA; SANTOS; SILVA, 2019; WEBER; SANTOS,
2010; MARTINS; SANTOS, 2019).
A cibercultura é, para nós, não apenas o contexto ou o nosso próprio tempo histórico, mas,
também e sobretudo, um campo de conhecimento que se atualiza no e com os cotidianos. Assim,
vimos instituindo ao longo dos últimos anos um saber específico e legitimado não só pelo homem
ordinário, mas, também e sobretudo, por uma interdisciplinar comunidade científica. Os estudos da
cibercultura, principalmente inspirados por pares brasileiros, para nós também são inspiração
epistemológica. No Brasil, contamos com a Associação Brasileira de Pesquisa em Cibercultura
(ABCiber), comunidade científica da qual fazemos parte e que muito nos forma pelas práticas
ciberculturais que estudamos e vivenciamos de forma autoral.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Não separamos teoria de metodologia nem estas das práticas e experiências cotidianas. Com
inspiração nos estudos das epistemologias das práticas, a exemplo da abordagem multirreferencial,
vamos tecendo a cada pesquisa-formação na cibercultura um repertório autoral que vem se
materializando ao longo dos últimos 20 anos em diversos dispositivos científicos e/ou curriculares.
Foram trabalhos no início desenvolvidos por nós individualmente e depois também pelos coletivos
GPDOC/UERJ (há mais de 13 anos) e GPDOC/UFRRJ (mais recentemente).
Concordamos com Macedo (2010), para quem o ato de compreender não se limita a abstrair
ou entender simplesmente. “Em se tratando de um fenômeno humano vinculado à própria condição
do existir – ao existir, existimos compreendendo –, [compreender] implica uma atividade que
engloba um conjunto de condições e possibilidades, via aprendizagem, de transformar em
realidades significativas para o sujeito acontecimentos que emergem no dia a dia da vida”
(MACEDO, 2010, p. 23).
A tradição das convencionais “pesquisas qualitativas”, que partem das teorias e buscam a
empiria, muitas vezes para validar conceitos e operações conceituais clássicas, tem se caracterizado
por usar as falas e narrativas dos sujeitos, recortando-as apenas para validar categorias selecionadas
a priori nos estudos teóricos (revisões de literatura e ou revisões temáticas). O quadro teórico
muitas vezes configura-se como uma “igrejinha epistemológica”, não permitindo a emergência de
novas operações conceituais, uma vez que não há imersão direta nos cotidianos. Buscamos
exatamente refutar essa prática de pesquisa. Procuramos “mergulhar com todos os sentidos”
(ALVES, 2001) no campo de pesquisa empírica – sempre na relação cidadeciberespaço. Nosso
esforço é mesmo “virar de ponta-cabeça” (ALVES, 2001). São as práticas cotidianas tecidas na
empiria que descortinam as invenções e, em última análise, os nossos dispositivos de pesquisa-
formação na cibercultura.
Vivenciamos uma fase da cibercultura forjada pelo alto desenvolvimento tecnológico que
faz a cidade (territórios físicos) mais conectada ao ciberespaço (espaço telemático habitado por
seres humanos em processos de comunicação com a internet, atualmente acessível por dispositivos
móveis) e vice-versa. Quando Lévy (1999) conceituou, no século passado, a cibercultura como a
cultura do ciberespaço, ele jamais separou o ciberespaço das cidades. Sua ênfase no ciberespaço se
deu pela emergência das práticas sociais na internet, que na época era acessada por dispositivos sem
mobilidade e pelo acesso local, a exemplo dos computadores de mesa conectados à rede
inicialmente por conexão telefônica. Com o avanço tecnológico, fomos vivenciando experiências
mais imbricadas na relação cidadeciberespaço.
Muitos autores fizeram esta separação, cidade versus ciberespaço, inclusive repetindo em
seus textos tal dicotomia até os dias atuais. Essa observação tem a ver com nossa atuação no campo,
como pesquisadora atuante e protagonista no campo e no tema com meu coletivo GPDOC,
participando de várias bancas de defesas de dissertações de mestrado e de teses de doutorado,
dentro e fora do Brasil, bem como avaliando artigos para importantes canais de difusão científica.
Vem de nosso próprio testemunho de trabalho no campo da Educação em interface com a
Comunicação.
praticando diferentes atos de educação on-line; 2. “Saberes para um caminhar ubíquo”, em que
apresentamos indicadores que poderão inspirar outros professores-pesquisadores, para que outros
caminhares ubíquos possam ser praticados.
Quando não dispúnhamos das redes e conexões móveis (2/3/4/5 G, redes wifi, entre outras) e
dos dispositivos móveis (notebooks, laptops, tablets e celulares inteligentes), tínhamos mesmo a
sensação física de uma pretensa separação entre cidade e ciberespaço. Nossos corpos foram
condicionados ao desktop, à mesa de trabalho. As mesas de trabalho de nossos escritórios,
laboratórios, ateliês, salas de aula presenciais, abrigavam nossos computadores de mesa, que
também chamávamos e ainda chamamos de desktop. Inclusive usávamos, e ainda usamos, nossos
dispositivos móveis (laptops, notes e tablets) sobre as mesas físicas de nossos escritórios ou
equipamentos urbanos (cafés, museus, escolas, entre outros). O que mudou e vem mudando, cada
vez mais radicalmente, é a nossa mobilidade em seus diversos níveis: física (quando nos
deslocamos com nosso corpo físico), cognitiva (quando nos deslocamos com nossa imaginação e
pensamento) e informacional (quando nos deslocamos com nossas informações, enviando e
recebendo mensagens, principalmente com o desenvolvimento do digital em rede, cada vez mais
ubíquo e conectado).
podemos deixar de forjar e inventar a própria metodologia, para com ela aprender e nos
autorizarmos também como intelectuais cotidianistas e multirreferenciais na cibercultura. É
exatamente neste contexto que o dispositivo do caminhar ubíquo vem se instituindo como um
esforço de compreender a formação na cibercultura. “Implica a construção de explicitações e
perspectivas propositivas [...], envolve a própria itinerância reflexiva e de atividade do autor. [...].
Compreender se caracteriza como uma atividade de fato, que, em si, já é mediadora, ou seja, produz
mudança, alterações em nós e nos outros” (MACEDO, 2010, p. 24).
Para este trabalho, nossa principal pergunta de pesquisa é: como pesquisar em educação na
cibercultura em tempos de mobilidade ubíqua? Para respondê-la, não podemos deixar de fazer
outras perguntas em desdobramento:
• Que dispositivos podemos inventar, forjar e até ressignificar, uma vez que não
descartamos a experiência vivenciada em anos de pesquisa?
O artigo não pretende responder de forma completa e definitiva a todas as questões acima
elencadas, mas tratará de cada uma delas a partir de eventos de nossa pesquisa-formação na
cibercultura, cada vez mais em movimento, pois, como nos recorda Jacques (2012), sempre nos
movimentamos:
A história das origens da humanidade é uma história do caminhar, é uma história de
migrações dos povos e de intercâmbios culturais e religiosos ocorridos ao longo de
trajetos intercontinentais. E às incessantes caminhadas dos primeiros homens que
habitaram a terra que se deve o início da lenta e complexa operação de apropriação e
de mapeamento do território (JACQUES, 2012, p. 44).
O que muda com o movimento e com as práticas do caminhar em nosso tempo é exatamente
a relação cidadeciberespaço, que vem alterando inclusive nossas práticas de mapeamento do
território, que não é mais apenas físico, adquirindo condição lógica e simbólica que, em interstício
com a condição física, desafia sobremaneira as nossas práticas de pesquisa-formação na
cibercultura.
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Muitas vezes, o cotidiano é circunscrito no território físico dos bairros, dos condomínios
e/ou conjuntos habitacionais, com limitadas circulações desses espaços para espaços de estudo,
práticas religiosas, trabalho e redes familiares e de amigos. Apesar dessas limitações de circulação
no território físico, a mobilidade cognitiva e informacional já é uma realidade mediada pelos seus
dispositivos móveis, uma vez que nossos alunos são usuários desses dispositivos. Constatamos em
nossos contextos de pesquisa e formação que nossos alunos dispõem de dispositivos móveis, mas
não acessam suas cidades em plenitude. Não raro, são apartados do direito à cidade. Esse direito
começa pelo direito de se movimentar fisicamente. Sem a mobilidade física, não acessamos a
cidade em plenitude. Como formar professorespesquisadores que não habitam ou habitam com
limitações suas próprias cidades? Como ampliar repertórios culturais e curriculares vivenciando o
direito à cidade?
mais foco no que chamamos de “app-docência”. Este artigo faz parte desse nosso último
investimento de pesquisa (SANTOS, 2019).
Como já destacamos aqui, no tópico anterior, cada pesquisa do coletivo GPDOC inventa e
forja dispositivos. Isso nos ocupa sobremaneira. Afirmo que é exatamente aqui que nossa autoria
metodológica se efetiva com singularidade e inovação. Nossa autoria é reconhecida nas
comunidades científicas exatamente por esse protagonismo coletivo. Os dispositivos podem ser
forjados e reapropriados por quem forma e se forma em ato. Por outro lado, não podemos confundir
os dispositivos com a experiência formativa em si. Alerta-nos Macedo: “[...] o dispositivo entra de
forma importante na experiência da formação, sem que devamos confundi-lo com ela própria,
evitando, portanto, a recaída na ideia de formação como algo meramente externo determinado pelos
âmbitos do dispositivo” (MACEDO, 2011, p. 158). O caminhar ubíquo é um dispositivo de
pesquisa-formação na cibercultura e com ele narramos em movimento na relação
cidadeciberespaço processos formativos. Por essas e outras, sinto-me extremamente confortável em
usar a “narrativa” na política de sentido da multirreferencialidade.
A narrativa que torna a formação dizível, visível, é considerada como constitutiva do
próprio sujeito em formação e não uma simplificada maneira de alguém realizar uma
prestação de contas a outrem e com isso ter seu destino selado por um ato de
autoridade solipsista. Assim, narrar é reesistir (MACEDO, 2011, p. 116).
Aqui a narrativa é material de pesquisa, tema, objeto de estudo e também uma política de
comunicação científica. Narrativas em textos, imagens e sons se misturam em horizontalidade e
pluralidade de sentidos, fazendo emergir ecologias de saberes para que possam experienciar a
própria formação. Tempo de maturação e de muitos movimentos, movimentos esses ligados ao
intenso trabalho que temos em nossas universidades. Nos últimos anos, mais precisamente nos
últimos 12 anos, tenho viajado mais e pelo mundo. Lembro-me de que já era mãe de uma menina de
6 meses de idade, quando fiz minha primeira viagem internacional. Fui para Portugal, participar de
uma edição do Challenges na u-Minho-PT. De lá para cá, tenho conseguido viajar para outros
países num movimento de comunicar a ciência que produzimos, mas, também e sobretudo, como
um exercício de ampliação de meus repertórios culturais (SANTOS, 2014; 2019).
Em um de meus trabalhos (SANTOS, 2014), toco nesse tema como uma missão docente.
Considero que um dos papéis dos professores em nosso tempo é criar, mediar e avaliar ambiências
formativas que busquem forjar ampliação de repertórios culturais e científicos para com nossos
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estudantes, formando-os e nos formando. Mas como desenvolver esses saberes se não ampliarmos
nossos próprios repertórios? De que forma nossas viagens nos afetam existencialmente?
Na base da viagem há muitas vezes um desejo de mudança existencial. Viajar é a
expiação de uma culpa, iniciação, incremento cultural, experiência. [...] Esta
concepção da experiência como prova arriscada, como passagem através de uma
forma de ação que mede as dimensões e a natureza da pessoa ou do objeto que a
empreende, descreve também na concepção mais antiga dos efeitos da viagem sobre o
viajante (JACQUES, 2012, p. 45).
Viajar é uma das mais importantes experiências formativas para seres humanos ao longo de
nossa história. O corpo em movimento aprende. Aprende porque se desloca de sua zona de conforto
em alteridade, aceita e é aceito. Confrontar nossos limites e potenciais culturais. Avaliar e se
autoavaliar, conhecer para refutar e/ou valorizar o que somos em nossos contextos concretos. Um
professorpesquisador que não se movimenta poderá criar ambiências formativas plurais? Nós nos
movimentamos com e em diferentes situações e com diferentes artefatos culturais e curriculares –
dos livros aos filmes, com mais e diferentes histórias inventadas dentrofora das escolas e
universidades, mas também viajando.
Lembro-me da gestão “Pátria Educadora”, da então presidenta eleita Dilma Rousseff, que
também entendia e financiou, como política pública concreta, a mobilidade física de estudantes de
graduação e pós-graduação, com intercâmbios internacionais para vivências e interlocuções
científicas entre pares pelo mundo.
A “viagem” é compreendida por nós como uma experiência estética de formação. Acontece
na tessitura de nossas itinerâncias formativas, tecidas na interface cidadeciberespaço. Com essa
interface, vamos deixando rastros de experiências, mapeando a própria itinerância como rede de
saberes humanos, não humanos, com as coisas, o meio ambiente. Narrativas, imagens e sons são
produzidos e partilhados digitalmente. O celular, com suas aplicações (apps), é nosso diário de
pesquisa on-line. Com e em nossos diários vamos descrevendo, narrando, compreendendo em
contexto e forjando o método. Com Pais (1993, p. 113), entendemos:
Etimologicamente, método significa caminho e, como o caminho se faz ao andar, o
método que deve nos orientar é esse mesmo: o de trotar a realidade, passear por ela em
deambulações vadias, indiciando-a de uma forma bisbilhoteira, testando ver o que nela
se passa mesmo quando “nada se passa”. Nesse vadiar sociológico, como se adivinha,
importa fazer da sociologia do cotidiano uma viagem e não um porto.
Sendo método um caminho, como caminhar sem ser epistemologicamente curioso? Ser
epistemologicamente curioso passa, sobretudo, pela capacidade de questionar o mundo, fazer
perguntas em contexto. Questionar, buscar respostas mesmo que temporárias, levantar e testar
hipóteses, virtualizar, simular... Os acontecimentos são esses disparadores que nos perturbam e nos
mobilizam, nos deslocam. Macedo (2016) nos sugere acolher os acontecimentos no contexto da
pesquisa com atitude etnográfica, na qual a vida ordinária se efetiva como vida em aprendizagem.
“Estar à espreita, escutar sensivelmente, deixar que a questão abra os caminhos dos sentidos e os
sentidos vão abrindo os seus próprios caminhos, passam a constituir a possibilidade do
acontecimento se tronar um evento heuristicamente fecundo” (MACEDO, 2016, p. 34).
Tenho aprendido a caminhar como forma de ver paisagens e como modo, não somente de
ver, mas sobretudo de criar paisagens. Segundo Caeri (2013, p. 51):
O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma
transformação do lugar e dos seus significados. A presença física do homem num
espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele percebe ao atravessá-lo –
é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis,
modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si,
transformando-o em lugar. O caminhar produz lugares.
É no “lugar” que produzimos sentidos, o espaço da prática, apropriação ou seu uso. Assim,
podemos partilhar as experiências forjadas no território físico com as redes do ciberespaço,
forjarmos narrativas em movimento. A interação com outros internautas, alunos e pesquisadores é o
contexto para a emergência de narrativas de formação. Narrativas, imagens e sons podem ser
produzidos em rede e em comunicação interativa, ao passo que a compreensão desses
dados/narrativas poderá acontecer em cocriação coletiva via dispositivos móveis. O celular é o
diário de campo!
Diário que não só registra os dados “produzidos”, mas que os produz em ato, e essa
produção já não pode mais ser apartada dos nossos interlocutores, os praticantes culturais. Com o
suporte digital, podemos cocriar linguagens e variadas formas de expressões, a exemplo:
storytelling, memes, conversas on-line, fotografias, vídeos, dentre outros.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Atualmente, com Frieda Marti, vivencio um inovador dispositivo de educação museal on-
line que lança mão da comunicação assíncrona, mais especificamente das redes sociais do Museu de
Ciências e História Natural do Brasil (MARTI; SANTOS, 2019). Quando pensamos em educação
museal on-line, concluímos:
Fazerpensar a educação museal on-line é também compreender, conforme Certeau
(2014) nos ensina, que o praticante cultural (i.e., o visitante do museu) não é um
consumidor passivo de conteúdos expositivos e mediações museais. O visitante (on-
line e/ou presencial) tece seus próprios conhecimentos significações a partir das
experiências vivenciadas no/com o museu, fazendo usos diversos daquilo que lhe
pretende ser imposto (MARTI; SANTOS, 2019, p. 21).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
O caminhar ubíquo mobiliza saberes plurais de pesquisa, muita além da produção de dados,
maneiras outras de compreensão dos mesmos podem ser vivenciadas em rede. Num esforço de
compreender a compreensão, podemos conectar nossas interpretações com nosso quadro teórico,
temático e metodológico (nos conectamos em tempo real com periódicos científicos, livros on-line,
blogs de especialistas, entre outros e plurais canais de difusão científica). Além de conectar o
material de pesquisa emergente com possíveis repertórios científicos, podemos também partilhá-los
em diálogo com outros autores e interlocutores de pesquisa na relação cidadeciberespaço. Com o
Grupo de pesquisa docência e cibercultura (GPDOC), vivencio experiências memoráveis de
orientação ao dialogar com os praticantes de nossas pesquisas. Essa experiência formativa rompe
com as dicotomias “coleta X análise de dados”, “orientador X orientando”, “orientando X sujeitos
da pesquisa”, “campo físico X campo on-line”. As interfaces digitais potencializam sobremaneira
um modo e rigor outro na prática da pesquisa-formação multirreferencial com os cotidianos.
Produzir diários on-line de pesquisa nos permite mapear e sistematizar nossos percursos e
itinerâncias provocadas por esses percursos.
Com o termo “percurso” indicam-se, ao mesmo tempo, o ato da travessia (o percurso
como ação de caminhar), a linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto
arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura narrativa).
Pretendemos propor o percurso como forma estética à disposição da arquitetura e da
paisagem (CAERI, 2013, p. 31).
Por mais que saibamos que outras ecologias vêm sendo instituídas predominantemente no e
pelo ciberespaço, não podemos nos furtar do direito às cidades. Portanto, nossa opção de pesquisa
assume a política de sentido do imbricamento cidadeciberespaço como fundante. Concordamos
com Jacques (2012), para quem “o único modo de ter uma cidade viva e democrática é poder
caminhar sem suprimir os conflitos e as diferenças, poder caminhar para protestar e para reivindicar
o próprio direito à cidade” (JACQUES, 2012, p. 170).
Com um olhar sempre atento e o caminhar sempre ativado, continuemos deixando a cidade
nos levar... Caminhemos, produzindo didáticas outras...
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
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B.; ALVES, N. (orgs.). Pesquisa no/do cotidiano das escolas: sobre redes de saberes. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.
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ARDOINO, Jaques. Abordagem multirreferencial (plural) das situações educativas e formativas. In: BARBOSA, J. G.
(coord.). Multirreferencialidade nas ci�
ncias e na educa�
�o. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 58-78.
CAERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. 1. ed. São Paulo: Editora G. Gili, 2013.
LEMOS, André. Cidade e mobilidade: telefones celulares, funções pós-massivas e territórios informacionais. Matrizes,
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MACEDO, Roberto Sidney. A etnopesquisa implicada: pertencimento, criação de saberes e afirmação. Brasília: Liber
Livro, 2011.
MACEDO, Roberto Sidney. Outras luzes: um rigor intercrítico para uma etnopesquisa política. In: MACEDO, R. S.;
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PAIS, José Manuel. Nas rotas do quotidiano. Revista Crítica de Ciências Sociais, Lisboa, n. 37, jun. 1993.
SANTAELLA, Lúcia. O perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2009.
SANTOS, Edméa. Formação de professores e cibercultura: novas práticas curriculares na educação presencial e a
distância. Revista da FAEEBA – Educa�
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SANTOS, Edméa; MADDALENA, Tánia L.; ROSSINI, Tatiana S. S. Diário hipertextual on-line de pesquisa: uma
experiência com o aplicativo Evernote. In: COUTO, Edvaldo; PORTO, Cristiane; SANTOS, Edméa (orgs.). App-
learning: experiências de pesquisa e formação. Salvador: EDUFBA, 2016. p. 93-108.
SANTOS, Edméa. MARTI, Frieda; SANTOS, Rosemary. O museu como espaço multirreferencial de aprendizagem.
Rastros de aprendizagens ubíquas na cibercultura. Revista Observat�rio, Palmas, v. 5, n. 1, p. 182-201, jan./mar. 2019.
Disponível em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/6468/14696.
SANTOS, Edméa; WEBER, Aline. Educação e cibercultura: aprendizagem ubíqua no currículo da disciplina didática.
Rev. Di�logo Educacional, Curitiba, v. 13, n. 38, p. 285-303, jan./abr. 2013. Disponível em: https://periodicos.
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2014.
SANTOS, Thiago; SANTOS, Edméa; FELLIPO, Denise. As tecnologias computacionais contemporâneas e a educação:
contribuições do ciborgue e dos objetos inteligentes. Rev. Di�logo Educ., Curitiba, v. 19, n. 62, p. 987-1.009, jul./set.
2019. Disponível em: https://periodicos.pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/25505/23685.
Notas de fim
i
Para saber mais, o(a) leitor(a) poderá consultar a página do Facebook: CidadeEducaUERJ.
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PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA
NA MÍDIA-EDUCAÇÃO
Gilka Girardello
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Oriento-me pela potência da pergunta, daquela pedagogia da pergunta de que falava Paulo
Freire com tanta veemência (FREIRE; FAUNDEZ, 2017), e que é tão vital nestes tempos
especialmente marcados por incertezas. Uma pergunta cria um vazio, algo que a gente não conhece,
e assim cria espaço para alguma coisa nova, quem sabe uma nova resposta. Isso é algo que a
pergunta tem em comum com a arte, campo que também sublinha as preocupações que aqui
compartilho, e que também existe porque há um vazio, alguma coisa que falta no mundo e que é
preciso inventar.
A pergunta orientadora desta reflexão vem na voz de Richard Kearney, filósofo irlandês
dedicado ao estudo da imaginação em tempos de crise ética: como podemos distinguir entre usos
encarceradores e usos emancipadores da imagem? Ele defende a dimensão poética da imaginação:
“A Poética é o carnaval das possibilidades, onde tudo é permitido e nada é censurado. É a
disposição para [...] vermos as coisas como se fôssemos, por um momento, outra pessoa”
(KEARNEY, 1988, p. 369). Essa imaginação poética sintonizada aos dilemas concretos de nosso
tempo precisa, considera ele, inventar um projeto social alternativo, e para isso precisa aprender
com sua própria história: do paradigma mimético da Antiguidade, ela aprende que “a imaginação é
sempre uma resposta às demandas de um outro”; do paradigma produtivo do humanismo, ela retém
“a responsabilidade pessoal pela invenção, pela decisão e pela ação”; e do paradigma paródico da
contemporaneidade, ela aprende que “vivemos em uma Civilização das Imagens – que pode nos
colocar em contato uns com os outros, mas que pode também ameaçar apagar as próprias
‘realidades’ que suas imagens ostensivamente ‘retratam’” (KEARNEY, 1988, p. 390). A recente
emergência do debate em torno da pós-verdade e das fake news dá ainda mais concretude à
tendência para a qual o autor advertia décadas atrás, quando sugeria a necessidade de uma
hermenêutica crítica para distinguir entre usos da imagem aprisionadores e libertadores.
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PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA NA MÍDIA-EDUCAÇÃO
ideológicos. Do mesmo modo como a gente ensina a ler um livro prestando atenção em quem é o
autor, as crianças precisam aprender a ler os materiais digitais – muito especialmente as imagens –
buscando saber quem os cria, mantém e promove, e em que circunstâncias.
As bolhas de informação têm a ver com o modo como as plataformas de mídia são
construídas, de modo a que cada um só veja o que quer e assim vá se cristalizando e radicalizando
cada vez mais naquilo em que já acredita. E isso não é uma onda passageira. O que está em jogo aí
é, então, a emergência de um papel renovado da dimensão crítica na educação para as imagens. Se a
análise crítica dos meios de comunicação era a principal tônica da fase inicial da mídia-educação no
Brasil, ainda na década de 1960, a valorização do protagonismo das crianças na cultura do
compartilhamento de certo modo secundarizou o papel da educação para a crítica, apostando em
que as crianças, ao produzirem imagens com tanta facilidade, perceberiam como que naturalmente
todo o processo de construção envolvido nos textos midiáticos, a partir das agendas comerciais,
políticas ou ideológicas de indivíduos e instituições. A transformação radical dos processos e
contextos comunicativos na última década, porém, e seu brutal atravessamento por ondas de
propaganda e desinformação deliberada, parecem impor a nós, educadores, a revalorização de uma
dimensão crítica na mídia-educação.
Não se trata, é claro, de reimprimir as velhas cartilhas que se propunham a ensinar como
detectar os valores ideológicos “subjacentes aos textos”. A abordagem pedagógica para a leitura de
imagens hoje precisaria se dar em novas bases, mais horizontais e participativas, menos prescritivas
e dogmáticas. Os “aspectos-chave” tradicionais da mídia-educação desde os anos 1990 –
linguagem, produção, representação, audiência – permanecem, hoje, aplicáveis também à formação
crítica para as imagens nas redes sociais digitais (BUCKINGHAM, 2018). Mas eles servem como
temas geradores de discussão, não para estabelecer, junto aos estudantes, respostas predefinidas
para questões que não haviam sido formuladas. Servem para que as pessoas façam perguntas, não
só sobre as imagens das mídias, mas sobre si mesmas e sobre os outros. O pensamento crítico
envolve justamente evitar sair correndo para o julgamento. Seria preciso, enfim, ir mais devagar,
para prezar o nosso lugar de estudantes, de estudiosos e de intelectuais, que é refletir sobre as
coisas, sem deixar de intervir sobre elas.
Justamente nesse sentido, outro complicador compõe nossa circunstância, também este
inseparável da cultura digital e de seus ritmos no contexto do produtivismo neoliberal. Trata-se da
transformação exacerbada do tempo em mercadoria, da pressa, da confusão estonteante de
estímulos que disputam nossa atenção simultaneamente, transformando os sujeitos em vetores de
Assim, historicizar a fruição de uma imagem pode significar explorar a genealogia de sua
produção, investigar quais as tensões e contradições explicitadas em sua linguagem, abrir-se ao
surgimento de narrativas evocadas por ela, compreendê-la como carta lançada ao futuro e de um
sujeito ao outro. Historicizar a fruição de uma imagem pode significar fazer malabarismo com a
memória, a percepção e a invenção de quem a produz e de quem a vê. E, no contexto benjaminiano,
historicizar a fruição de uma imagem será sempre resistir ao vento cego de um suposto progresso,
duvidar da inexorabilidade de seu sopro, permitir que o olhar se aguce e sua duração se fixe nas
minúcias significativas do cotidiano e da cultura: uma coleção de selos, cartões postais, sapatos,
feiras, quermesses, ilustrações de velhos livros, brinquedos, uma gaveta cheia de gravetos, tampas
de garrafa, detritos, todos eles investidos de grande poder, valor e poesia para quem com eles
brinca. Historicizar a fruição de uma imagem significa não apenas olhar para trás, mas olhar
também para o passado de quem está à nossa frente na sucessão dos anos, reconhecendo que as
lembranças que as crianças de hoje terão, daqui a dez ou vinte anos, das imagens em que
mergulham nos celulares, nos seus aplicativos e mídias sociais favoritas poderão estar recobertas da
mesma pátina de ternura ou melancolia que recobre as lembranças da infância de Benjamin na
Berlim do fin-de-siècle.
Um outro caminho para que nossas propostas pedagógicas invistam em uma resistência à
torrente de superficialidade, propaganda, utilitarismo, “diluição em água poluída” (citando Caetano
Veloso) seria radicalizar a espessura do tempo na educação, por mais que isso bata de frente com os
ritmos da racionalidade técnica institucionalizada. Há lindas experiências nesse sentido no Brasil,
produzidas em diferentes recantos do país, que vivemos ou acompanhamos de perto e de longe, em
textos de alunos, em artigos, livros e em teses de cujas bancas participamos. Entre as tantas
iniciativas pedagógicas recentes e inspiradoras no campo da arte, cito por exemplo o trabalho de
Diefenthäler (2017), que traz um conjunto de “materiais provocadores e ações propositoras” para
ampliar o repertório visual das crianças na educação infantil – com foco nas imagens de “casa”
presentes no imaginário das crianças – a fim que que elas possam “ir além das formas
predeterminadas, aceitas, padronizadas estereotipadas” (DIEFENTHÄLER, 2017, p. 74).
Falo então em se trazer imagens para pensar, mais que para ilustrar. Imagens geradoras, que
desencadeiem, que inspirem, que produzam fios de narrativas e teçam pontes com a memória. Que
instaurem suficiente densidade, singularidade e potência para que mereçam ser olhadas
demoradamente. Que permitam o exercício de um olhar em que percepção e imaginação convivam
nos interstícios uma da outra, um olhar atravessado pela qualidade que Eva Brann chamou de
“transparência da imaginação” (BRANN, 1991). Tais imagens não precisam ser espetaculares,
impactantes, ao contrário; às vezes, a alternativa e a resistência podem estar justamente no
“extremamente pequeno”, como sugere Denilson Lopes: “À medida que cada vez mais o grandioso,
o monumental pode ser associado à arte dos vencedores, de impérios autoritários, da arte nazista, do
realismo socialista aos épicos hollywoodianos, é justamente no cotidiano, no detalhe, no incidente,
no menor que residirá o espaço da resistência, da diferença” (LOPES, 2004, p. 9). Observo que essa
força significativa das pequenas delicadezas e minúcias do cotidiano é muito clara para grande parte
dos educadores, ou não seria tão recorrente, por exemplo, a presença de poemas de Manoel de
Barros em epígrafes de teses e dissertações em nosso campo. Trazer a compreensão dessa potência
pedagógica de modo mais frequente e intensivo para o uso das imagens em contexto educacionais
pode ser um exercício fecundo e nem tão difícil.
E mais ainda. Que impregnemos essas imagens de um contexto, de uma história própria,
carregada de relações com outras histórias com que possam fazer rizoma na textura viva da escola e
dos demais espaços educativos. E, sobretudo, relações com a intimidade do momento presente de
cada um dos sujeitos ali reunidos diante dessa imagem. Em aulas cujo texto-base seja um filme, um
videoclipe, uma fotografia, um pedacinho visível do mosaico digital – enfim, a imagem em seu
esplendor semiótico e seminal, semeador também de movimentos, emoções e palavras.
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PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA NA MÍDIA-EDUCAÇÃO
REFERÊNCIAS
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Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BRANN, Eva T. H. The World of Imagination: Sum and Substance. Rowman & Littlefield, Savage, Maryland, 1991.
BUCKINGHAM, David. Going Critical: on the problems and the necessity of media criticism. [S.l.: s.n.], 2018.
Disponível em: https://ddbuckingham.files.wordpress.com/2018/07/going-critical.pdf.
DIEFENTHÄLER, Daniela da Rosa Linck. Arte, imaginação e crianças. Curitiba: Appris, 2017.
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. 8. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra,
2017.
GIRARDELLO, Gilka. A dialética do olhar na produção de imagens com crianças. In: PONTES, Altem Nascimento;
PONTES, Aldo (orgs.). Pesquisa e Prática Docente sobre Educação e Comunicação. Belém: Editora da
Universidade Estadual do Pará, 2008.
KEARNEY, Richard. The Wake of Imagination: toward a postmodern culture. Minessota: Univ. of Minnesota Press,
1988.
LOPES, Denilson. Do silêncio culturalista ao retorno da estética. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (COMPÓS). Anais [...]. [S.l.: s.n.], 2004.
PINTO, Manuel. A busca da comunicação na sociedade multi-ecrãs: perspectiva ecológica. Comunicar, [s.l.], n. 25, p.
259-264, 2005.
QUEIROZ, João Paulo. Cultura Visual e Arte-Educação: há novos posicionamentos para os desafios
contemporâneos. Palestra no Seminário Internacional Prodocência. [S.l.]: UFRGS, 2014. Disponível em: https://you
tu.be/EJ6AGLCwLwE.
Notas de fim
i
A observação sobre a historicização das imagens neste artigo retoma reflexão publicada em Girardello (2008).
Há mais de 400 anos, desde o nascimento de João Amós Comenius (1592-1670), a Didática,
entendida como uma ciência da prática, questiona, reflete e tenta pensar processos e procedimentos
que possam apoiar e constituir aprendizagens. Se o mote do “ensinar tudo a todos”, como posto por
Comenius, considerado o “pai da Didática”, deu origem ao que denominamos como a escola
moderna, o imaginário que se organizou a partir dela nos constrange, sempre, a pensar a escola
numa perspectiva, num determinado modelo. Modelo que encerra, sem dúvida, avanços históricos
importantes como o da universalização da escola pública, ao menos em parte das sociedades
ocidentais, condicionando, concomitantemente, modos de se trabalhar o processo educativo que, na
contemporaneidade, limita e o reduz a contextos restritivos e pouco amigáveis à maior parte da
população, sobretudo, aos mais jovens.
A contradição histórica que temos observado entre a escola moderna, que fez emergir a
necessidade de se pensar o processo educativo de maneira mais ampla, atingindo a todos e todas, de
modo a nos tornar mais humanos e humanizados, é a mesma posta na atualidade, embora com
conotações bastante diferenciadas daquelas que a fez surgir. O desafio posto, e reconhecido como
tal, implica a constituição ou reconstituição de uma escolai que possa ser um centro de debate,
fazendo vicejar diferenças, diversidades, pensamentos convergentes ou não e que, ao mesmo tempo,
possibilite apropriarmo-nos do que foi constituído como conhecimento humano em suas várias e
diversas vertentes.
Difícil reconhecer que tal debate não seja imperativo, considerando o momento político
atual, cuja maioria de seus representantes nega o caráter plural da escola, tentando impor conteúdos
e metodologias de ensino anacrônicas àquilo que se tem compactuadocomo boas práticas
educativas, por exemplo.
Diante disso, a necessidade de se repensar o processo educativo naquilo que lhe concerne
enquanto instituído, apontando implicações profundas no modo de organizar a escola, os processos
formativos e as relações que aí se estabelecem. É, pois, com base nessa perspectiva, que o presente
texto envereda.
Como antes anunciado, não se trata apenas de repensar o instituído pelo modelo da escola
moderna, teremos, ao que parece, de repensar uma forma de organização dela que implique os
novos modos de viver, que transformaram profundamente a maneira pela qual nos comunicamos,
produzimos e distribuímos informação.
A EDUCAÇÃO E AS SOCIEDADES
Seguindo com Pimenta (2013), consideramos que “a educação é um fenômeno e uma prática
complexos, porque é práxis humana histórica. Ou seja, é produto do trabalho de seres humanos, e
como tal responde”, adiante continua: “reproduza sociedade mas, também, pode projetar a
sociedade que se quer” (PIMENTA, 2013, p. 92-93), vinculando-se ao processo civilizatório e
humano.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
O programa a que nos referimos aqui é aquele que possa dar conta, ao mesmo tempo, das
transformações vivenciadas por nós humanos nas últimas cinco décadas. Isso articulado aos ideais e
valores da ética, da solidariedade, de preservação do planeta e do reconhecimento da fugacidade da
vida, no contexto de emergência climática a que estamos submetidos, entre outros temas tão
urgentes quantos estes.
A escola moderna comeniana não cabe mais nos protocolos de relações/comunicação que
engendram nossas convivências, entre professores e alunos, inclusive. Por mais que nossos
imaginários sejam conservados à luz de uma instituição que se quer espaço privilegiado na
transmissão da cultura e conhecimentos, isso se rompe todo o tempo. Na medida em que a
onipresença das mídias, sobretudo as digitais, da ubiquidade delas em nossos cotidianos, “infiltram-
se” naquilo que somos, pensar a escola fora delas é exercício pouco efetivo. Relevante reconhecer,
como fez Gere (2008), o controle e exploração que delas emergem, isso como recurso para
compreendê-las e, daí, buscar formas, maneiras e modos de incluí-las no projeto mencionado.
Trabalhar com a perspectiva de projetar outra escola, implicada de fato em contextos de uso
mais intenso das TIC, justamente por ser uma das principais características da cultura digital, é
concordância primeira sobre os modos de comunicação de seus praticantes. Esse cenário é
decorrente da evolução tecnológica das últimas décadas. Santaella (2011) afirma que grande parte
das invenções é constituída por tecnologias que potencializam a capacidade humana para a
produção de linguagem. Isso porque “é através da linguagem que o ser humano se constitui como
sujeito e adquire significância cultural” (SANTAELLA, 2011, p. 91). As novas formas de se
comunicar, ou melhor, de nos comunicarmos, alterou a forma como percebemos o mundo, o
tempo, os espaços, os sentimentos, a maneira de viver e de se relacionar. Isso potencializou
descobertas, maximizou a inteligência e a capacidade de nós humanos evoluirmos e de nos
reinventarmos.
Para Castells (2015), nesse contexto se projetam determinados “programas”, tendo a ver
com uma política da mídia corporativa, por óbvio, que gera, por sua vez, uma política de
escândalos, que redunda numa crise da democracia. Tanto é assim que temos assistido aos
“analytics” que nada mais são do que o uso aplicado de dados, análises e raciocínio sistemático para
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seguir em um processo de tomada de decisão muito mais eficiente, aplicados em diversos negócios
e departamentos. Com a disponibilidade de dados que circulam na internet essa tarefa é facilitada
exponencialmente. O bombardeio de informações, especialmente as falsificadas, por
grupos/partidos políticos, apropriou-se desses usos. É conhecido o caso da “Cambridge Analytica”iii
e sua atuação na eleição de 2016 nos Estados Unidos quando da vitória de Donald Trump.
Bom, mas o que tais maneiras de se comunicar e informações teriam a ver com projetos
educativos?
Se a educação é práxis humana, cabe trazer para o âmbito dela não apenas a compreensão
sobre essas novas formas de comunicação que estabelecemos hoje, como também a compreensão
sobre uma realidade altamente mutante, fugidia, que nos influencia e impõe não desejos, apenas,
como anos atrás, mas visões de mundo, sentimentos e sensações.
A proposta então é que a escola, e quem a constitui, traga para seu interior justamente aquilo
que cimenta nossas relações atualmente: as redes sociais. Não se trata de compra de equipamentos
desnecessários. Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) (2018) indicam que,
aproximadamente, 80% dos jovens brasileiros possuem celulares/smartphones, passando de quatro
a cinco horas diárias, conectados às redes sociais. Nesse sentido, é possível afirmar que a escola,
como a conhecemos, perdeu significado naquilo que seriam as redes de relações que nela se
estabeleciam. Da mesma maneira, a principal fonte de acesso à informação se dá, também, por meio
das redes sociais digitais. Como afirmado por Buckingham (2007), no momento em que seu
trabalho foi escrito, as crianças e os jovens passavam mais horas em frente à televisão do que na
escola. Afirmamos, hoje, que passam muito mais horas conectados do que na escola. Isso quando na
própria escola estão em conexão...
De fato, não se trata de tentar “pedagogizar” as redes, domesticando-as para uso escolar.
Tarefa impossível! Já que a lógica que se estabelece na autocomunicação, nas redes sociais digitais
expõe outras formas de mediação, direta e de muitos para muitos. Fazer dos dispositivos digitais e
das tecnologias que encerram continuidade do livro didático ou dos manuais de ensino, tentando
controlar e prever aprendizagens, parece caminho incauto, justamente por romper com a lógica mais
horizontalizada, diversa e plural que subjaz a elas.
COMO APRENDEMOS?
Para a Pedagogia, por consequência para a Didática, a grande questão que se põe atualmente
é: como os praticantes da cultura digital aprendem? Quais são as trilhas que percorrem na
apropriação de conceitos e ideias? Não seria negar as teorias de aprendizagem com as quais
trabalhamos. Ao que parece elas dão conta de nos explicar processos de aquisições, de interação e
mediação imprescindíveis à circulação e apropriação de conhecimentos. Vygotisky (1991) nos fez
compreender que o desenvolvimento cognitivo se dá socialmente, em relação com os outros e com
o meio e que a aprendizagem é uma experiência social, mediada pela utilização de instrumentos e
signos, de acordo com os conceitos utilizados pelo próprio autor. Um signo, dessa forma, seria algo
que significaria alguma coisa para o indivíduo, como a linguagem falada e a escrita.
Sendo assim, a aprendizagem é uma experiência social, mediada pela interação entre a
linguagem e a ação. Entender as aprendizagens na cultura digital seria, então, explorar quais signos,
significados, mediações, linguagens, entre os principais elementos para o caso, estamos
cotidianamente a trabalhar. Se os dispositivos tecnológicos estão implicados nas mediações (não
como mediadores, ainda não temos máquinas inteligentes para tanto, embora pesquisas avancem
nesse campo com rapidez, majoritariamente nas e com as mídias digitais corporativas) como meio
para que ocorram, quais possibilidades trazem na construção e produção de linguagens,
experiências, sentidos e significados?
O furacão que fez emergir o que se denomina como “cultura digital” faz com que
encararemos que os ecos disso advindos chegam à escola, causando profundo estranhamento,
justamente ao se confrontar modos de culturas distintos: a escolar e, outra, a digital, cujos traços são
conflitantes. A primeira pela perspectiva do controle sobre o que se pretende ensinar e aprender e, a
segunda, pelo rompimento de relações unilaterais e hierárquicas, determinando outras maneiras de
se conviver. Isso tem exposto fraturas e contingências que implicam a gestão da escola, alunos e
professores em posição de alerta, sem que respostas ou alternativas outras tenham sido constituídas.
Thompson (2008) não propôs uma teoria sobre cultura, tampouco uma compreensão sobre o
digital, entretanto, ao tratar de uma teoria social da mídia, faz-nos refletir como na modernidade as
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interações são, cada vez mais, alicerçadas em “comunicação mediada”. Isso é importante para
pensarmos os elementos que circulam no contexto dessa mediação e dos possíveis artefatos que a
sustentariam. Para o autor, nas sociedades interconectadas, nossas experiências são, crescentemente,
mediadas, constituindo daí experiências, mais e mais, recontextualizadas. Isso em razão do que ele
denomina como deslocamento espaço/tempo, cujo movimento de aproximar realidades e contextos
(re)configura “a ação humana por extrapolar e transcender estruturas tradicionais do pensamento
político e moral” (THOMPSON, 2008, p. 203). É relevante observar que o uso dos meios técnicos
de comunicação alteraram as dimensões espaço-temporal da vida, “capacitando os indivíduos a se
comunicarem através de espaço e de tempo sempre mais dilatados” (THOMPSON, 2008, p. 38).
Não se trata agora de lançar mão daquilo que Chevallard (1985) denominou como
“transposição didática dos saberes”. O autor apresentou uma nova forma de compreensão da relação
didática, abandonando a abordagem “ensinante-ensinado”, como díade, inseriu “o saber” como um
novo elemento de análise, constituindo uma tríade. Esquecendo-se de toda reflexão do autor sobre
os saberes que circulam no escolar, o enfoque didático vislumbraria o que ele denominou como o
“saber ensinado”, por ser aquele que realmente se efetiva. Este, no entanto, seria diferente do “saber
sábio”, o saber científico ou acadêmico, produzido no seio da comunidade científica. Uma
importante contribuição dessa teoria tem a ver com o entendimento de que o“saber sábio” sofreria
recortes e “deformações”, tornando-o apto a ser ensinado. Assim, o saber ensinado seria um saber
expatriado de suas origens e separado de sua produção histórica, no caso o saber sábio, em razão
dos ajustes, recortes e ressignificações até chegar ao sujeito aprendiz. Para Chevallard (1985), no
entanto, o “saber sábio”, mesmo transigido ao escolar, seria reconhecido socialmente porque
legitimado pela autoridade da escola.
Não sem motivos, os jovens, conforme pesquisa realizada por Pereira e Lopes (2016),
afirmam que a despeito dos obstáculos ao ato de estudar – conteúdos desarticulados, distanciamento
de seus interesses, ênfase nos resultados, não respeito às diferenças, incluindo as cognitivas – eles
tentam, ainda, estabelecer sentidos para a presença nessa instituição. É ali que “vivenciam
experiências importantes e necessárias para uma construção de significados em longo e em curto
prazo” (PEREIRA; LOPES, 2016, p. 207), isso numa dimensão mais individualizada que coletiva.
Relevante ter presente que são eles, os jovens, que buscam unilateralmente sentidos naquilo que
seria a constituição do escolar.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Sem dúvida, a chegada das TIC nas escolas faz questionar modelos mais “fechados” de
escolarização, que ignoram a aproximação de mídias variadas, introdutoras de novos códigos e
linguagens que precisam ser entendidos, até para serem mais bem-aproveitados. Isso, contudo, não
é tarefa apenas da escola, há toda uma reconfiguração de significados postos no conviver, que
implicam repactuar não apenas domínios de ordem socioafetiva, de interação, de motivação e de
integração dos conhecimentos às experiências de vida que influenciam, mais e mais, o ideário
educativo-formativo. Isso não é novo, desde que a escola se configurou como espaço institucional
dedicado à formação humana com vistas à transmissão da cultura/conhecimentos a preocupação em
moldá-la a determinados desígnios não é novidade. O problema, ao que parece agora, é que os
desígnios que se colocam transcendem, em muito, a simples transmissão cultural e de
conhecimentos. A expectativa é a de que a escola possa, frente às muitas incertezas que
vivenciamos na atualidade, prover sentidos à cultura que se desenvolve fora dela...
O aprendizado é cada dia mais social, colaborativo e cooperativo, com maior participação
em comunidades de práticas. Estar em conexão é desejável, propiciando aprendizagens ativas,
justamente o que se percebe negado pelo escolar. É, pois, nessa conjunção de fatos e
acontecimentos que se discute o “uso pedagógico” das TIC. Quando, no entanto, estão imbuídas de
outra lógica, completamente alheia ao controle, ao linear e ao tempo e espaço da sala de aula.
Trabalhamos com o pensamento, reducionista, de que bastaria trabalhar algumas
competências/habilidades técnicas para que as tecnologias fossem mais bem-aproveitadas no
cotidiano dos estabelecimentos escolares. Compreender, de fato, as implicações que o uso
intensificado delas apresenta, é, sem dúvida, elemento crucial para se empreender fazeres que
subsidiassem, aí sim, outra maneira de organizar o escolar.
Sem uma compreensão do que sejam os novos letramentos, mediações e de como juntos
temos nos comunicado e aprendido, é impossível revivificar e ressignificar a escola. Necessário,
como afirma Buckingham (2010)
[...] uma reconceituação mais ampla do que queremos dizer com letramento num
mundo cada vez mais dominado pela mídia eletrônica [...] isso não é sugerir que o
letramento verbal não é mais relevante, nem que os livros devam ser descartados, mas
sim que o currículo não pode seguir confinado a uma noção estreita de letramento,
definida só em termos do impresso (BUCKINGHAM, 2010, p. 53).
conjunto, em conexão e com uso de outros e novos códigos e linguagens. É, pois, nesse horizonte
que uma discussão sobre a Didática se põe.
PARA UM DEBATE
O presente trabalho teve por objetivo trazer reflexões e indicações para o debate que não se
encerra, especificamente, sobre a Didática. Pensar sobre ela significa, antes de tudo, explicitar
sentidos e intencionalidades numa perspectiva mais ampla de educação, do escolar e de formação.
Sem tais elementos, a Didática serviria, claro, às receitas que há muitas décadas nos negamos
compor.
Por mais que as instituições de ensino, sobretudo as de ensino superior, façam uso de
ambientes virtuais de aprendizagem (AVA), de metodologias denominadas como ativas, que
surgem como as novas panaceias didáticas, as pesquisas mostram (ALONSO, 2014) a pouca
efetividade educativa que engendram; seria como mais do mesmo. O debate, portanto, sobre qual
projeto educativo construir em tempos de cultura digital é, sem dúvida, crucial para, daí,
afirmarmos a Didática que queremos. Nesse cenário, Gere (2008) nos inquieta ao dizer que
[...] pode parecer um pouco absurdo (o que foi dito por ele), mas essa ansiedade
escatológica sugere algo das mudanças importantes ocorridas na cultura digital atual,
mudanças que afetam todos os aspectos de nossa vidas, e que são cada vez mais
difíceis de serem reconhecidas à medida que se tornam cada vez mais fácil obtê-las.
Estamos chegando a um ponto em que as tecnologias digitais não são mais
ferramentas apenas, elas estão integradas à nossa existência, agindo em uma cultura
cada vez mais participativa, para melhor ou pior. A necessidade de continuar a
questionar tal situação permanece mais premente do que nunca, até porque a
tecnologia, ela mesma, se torna cada vez mais invisível, justamente por compor o
tecido de nossa existência (GERE, 2008, p. 224, tradução nossa).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Notas de fim
i
O termo escola será utilizado no texto como instituição, como espaço de produção e criação de conhecimentos, não
havendo, portanto, referência a níveis de ensino. Quando necessário, esses níveis serão discriminados.
ii
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eb0cNrE3I5g.
Cambridge Analytica foi uma empresa privada, criada em 2013, instalada no Reino Unido que combinava mineração
iii
e análise de dados com comunicação estratégica para processos eleitorais. A empresa é, em parte, de propriedade da
família de Robert Mercer, um estadunidense que gerencia fundos de investimento e apoia causas politicamente
conservadoras.
Lucila Pesce
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
Também Arroyo (2000, p. 21) destaca – ao usar a expressão “ofício de mestre”, em menção
à construção social do magistério – que “Ter um ofício significa orgulho, satisfação pessoal,
afirmação e defesa de uma identidade individual e coletiva”. Todavia, no âmbito do magistério
superior, a dimensão da docência muitas vezes acaba por ser colocada em segundo plano, em
relação ao exercício de uma determinada carreira (médico, advogado, juiz, promotor, engenheiro,
arquiteto, psicólogo...) e em relação à carreira de pesquisador. Essa situação tem suas raízes nos
modelos dos nossos programas de pós-graduação.
Com amparo nos estudos e pesquisas de Pimenta e Anastaciou (2005), havíamos sinalizado
que os programas brasileiros de Pós-Graduação stricto sensu, que são os maiores responsáveis pela
formação do docente universitário, tendem a assumir o modelo americano e o alemão, que
priorizam a pesquisa sobre o ensino (BRUNO; PESCE, 2015).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Em meio a tal cenário, em 2012, o governo federal brasileiro instituiu a Lei n. 12.772
(BRASIL, 2012). No inciso V do artigo 24 da aludida Lei, consta que as universidades e institutos
federais de ensino superior devem promover aos docentes ingressantes um programa de recepção,
que, dentre outros aspectos, trabalhe a dimensão pedagógica. Todavia, bem sabemos que o universo
das universidades e institutos federais não representa a totalidade do ensino superior brasileiro.
Portanto, a fragilidade da formação pedagógica dos professores universitários brasileiros ainda se
consubstancia como um desafio a ser vencido.
Quanto a esse desafio, retomamos a ideia defendida por Melo e Campos (2019, p. 50), que
indicam o forte imbricamento entre constituição de identidade (a partir de fatores históricos,
políticos, sociais, culturais e econômicos) e desenvolvimento profissional docente, que ocorre em
“[...] um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na
profissão”.
Outra boa contribuição emana de Bolzan e Isaia (2006), que defendem a fecundidade das
ações compartilhadas, no âmbito da formação pedagógica do docente universitário, erguidas em
meio à reflexão conjunta e ao enfrentamento colegiado dos desafios a enfrentar, no decurso da
docência universitária. Qual seja, a construção da professoralidade deve ocorrer em meio a políticas
educativas voltadas à promoção da aprendizagem compartilhada dos professores universitários.
Sabemos que a cultura digital se apoia, em grande medida, na mobilidade. Com ela surge
um novo tipo de leitor: o leitor ubíquo (SANTAELLA, 2014).
De acordo com o dicionário etimológico (CUNHA, 1999, p. 800), o termo ubíquo é uma
adjetivação da palavra latina ubique, que quer dizer “por toda parte, em qualquer lugar”, sendo,
portanto, sinônimo de onipresente. É possível perceber o porquê de se falar em tecnologias ubíquas,
em menção ao fato de os dispositivos móveis em rede permitirem aos sujeitos sociais que os
utilizam essa sensação de onipresença, em um espaço intersticial entre o presencial e o virtual.
Santaella (2014), ao versar sobre o leitor ubíquo, declara que uma das suas características é a
mobilidade em que vive, tanto presencial quanto em meio às redes de informação e comunicação.
Essa mobilidade relaciona-se ao movimento do seu corpo no espaço urbano e às operações mentais,
a partir das interações em rede. A autora considera que o leitor ubíquo conjuga traços do leitor
movente (nos espaços urbanos, por exemplo) e do leitor imersivo (no ciberespaço) e isso traz
desdobramentos aos processos de aprendizagem. Em suas palavras:
Ao mesmo tempo em que lê e responde aos sinais e signos do seu entorno físico
também imerge no ciberespaço informacional. Consequentemente, o que o caracteriza
é uma inédita prontidão motora, perceptiva, cognitiva e uma nova economia da
atenção derivadas de um modo distinto de funcionamento do seu sistema nervoso
central. Ora, esse tipo de leitor está sendo protagonista de um modo também novo de
aprender. Um tipo de aprendizagem que se obtém nos instantâneos dos velozes
acessos às redes na colheita de informações ocasionais (SANTAELLA, 2014, p. 18).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Mais à frente, Policarpo e Santaella (2018, p. 35) desvelam que o leitor ubíquo é afetado
tanto pelo espaço físico urbano quanto pelas informações e partilha nas infovias digitais. Nesses
espaços intersticiais, o leitor ubíquo apresenta uma ambivalência atitudinal: de um lado, “um estado
de prontidão inédito”; de outro, a economia da atenção concretizada por meio da cognição
multitarefas.
A reflexão crítica de Policarpo e Santaella (2018) também é feita por Zuin e Zuin (2019),
que advertem para o fato de que, em face da enxurrada de estímulos audiovisuais, sobretudo por
meio dos dispositivos móveis, os sujeitos sociais estão tendo que lidar com o que chamam de
concentração dispersa. Na reflexão sobre o quanto as forças produtivas do capitalismo transnacional
incitam à “pulverização da capacidade de concentração como uma das condições de seu
desenvolvimento” (p. 103), Zuin e Zuin (2019) chamam atenção para o fato de que a concentração
dispersa consubstancia-se como uma instância social historicamente mediada pelo excesso de
consumo de estímulos audiovisuais.
tópico anterior deste texto. A tecnologia da mobilidade ubíqua não se limita apenas ao
computador que se “libertou” do desktop e das conexões fixas para acesso ao
ciberespaço. Caracteriza-se, sobretudo, pela conexão constante e ubíqua com os
espaços urbanos, com o ciberespaço e as interações sociais diversas com e nesses
espaços (SANTOS, 2015, p. 138).
Em publicação solo, Santos (2015, p. 144) traz uma relevante advertência: a importância de
se investir na inclusão cibercultural do professor, para que possamos ultrapassar o paradigma
educacional tradicional, mediante o qual o professor é o responsável por produzir e transmitir
conhecimento aos alunos, em um movimento de “repetição burocrática e transmissão de conteúdos
empacotados. Se não mudarmos o paradigma educacional e comunicacional, a web 2.0 e a
mobilidade ubíqua acabarão servindo para reafirmar o que já se faz”.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Freire sempre situou a linguagem como instância fundamental à constituição dos sujeitos
sociais. Nesse contexto, interessa-nos focalizar, no presente texto, o conceito de “interação
dialógica” apresentado por Freire, no livro intitulado Extensão ou Comunicação? (FREIRE, 1983).
Como já anunciado (PESCE, 2010), Freire (1983) defende que a constituição mútua dos
sujeitos sociais em formação ocorre em meio à interação dialógica, em três instâncias: a)
investigação temática; b) tematização do conhecimento (articulada à realidade vivida); c)
problematização do conhecimento.
No que diz respeito à primeira instância – investigação temática – Freire (1983) esclarece
que o conhecimento da visão de mundo do sujeito social em formação implica o levantamento de
temas geradores de estudo, advindos de uma metodologia dialógico-problematizadora e
conscientizadora do formador, que, mediante interação dialógica, forma-se junto com o formando.
Esse entendimento pode ser levado em consideração pelo docente universitário, que pode tecer com
os alunos um processo formativo autoral, inclusive fazendo uso dos dispositivos móveis em rede,
em uma perspectiva que permita aos estudantes forjar sua autoria, ao trazer para o processo
formativo informações e vivências emanadas da zona intersticial entre o espaço urbano e as infovias
digitais.
Em relação à problematização, Freire (1983) põe às claras a ideia de que cabe ao professor
problematizar o conteúdo de ensino, em face das circunstâncias históricas e culturais dos
educandos, para que o trabalho com os conteúdos de ensino ocorra em prol da conscientização e da
emancipação. A atitude de problematizar vai à contramão da “educação bancária” – termo por ele
cunhado (FREIRE, 2002) – que toma os conteúdos de ensino como recursos para legitimar o status
quo.
Para Freire (1983; 2002), a educação ocorre mediada por uma intencionalidade pedagógica
clara e definida, fruto da escuta atenta aos determinantes circunstanciais dos sujeitos sociais em
formação.
Havíamos apontado (PESCE, 2010) que o projeto de reconstrução social freireano parte do
princípio de que a busca por uma sociedade mais humanizada, solidária e emancipadora deve
incidir sobre as relações intersubjetivas nela tecidas. Na mesma publicação (PESCE, 2010),
havíamos indicado que Freire percebe o cotidiano (e a linguagem nele veiculada) como telos
condutor da emancipação humana, já que a constituição das identidades se desenvolve no seio das
relações dialógicas.
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Com base na premissa dialógica freireana, entendemos que a integração dos dispositivos
móveis em rede aos processos formativos entre estudantes e docentes do ensino superior pode
apresentar uma fecundidade ímpar, se explorar a mobilidade e a ubiquidade da cultura digital em
favor de processos autorais. Para tal, voltamos a trazer à baila, as lúcidas considerações de Santos
(2015) sobre a importância de se investir na inclusão cibercultural do professor.
UM CONVITE À DISCUSSÃO
Trouxemos à tona a ideia de que muitas práticas sociais contemporâneas ocorrem por meio
dos dispositivos e interfaces digitais, com destaque para os dispositivos móveis, como tablets e
celulares. Ao fazê-lo, ponderamos que a cultura digital – incluindo a mobilidade e a ubiquidade que
lhe são inerentes – pode trazer desdobramentos para a docência, de modo a abrir tanto um leque de
contribuições quanto de riscos ao exercício da docência universitária, a depender do enfoque que se
dê: respectivamente, dialógico e autoral ou instrumental.
Em face do recrudescimento do uso dos dispositivos móveis nas práticas sociais dos sujeitos
sociais contemporâneos, procuramos, no presente texto, apresentar argumentos contrários ao uso
desses dispositivos digitais sob enfoque instrumental (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Ao fazê-
lo, consideramos sobre a fecundidade da perspectiva dialógica (FREIRE, 1983; 2002) para integrar
a cultura digital à docência universitária calcada na autoria e na emancipação dos sujeitos sociais.
Nesse movimento, convidamos a todos e todas ao aprofundamento do debate nos estudos do campo.
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Plano de Carreira e Cargos de Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico e sobre o Plano de Carreiras de
Magistério do Ensino Básico Federal, de que trata a Lei n. 11.784, de 22 de setembro de 2008; sobre a contratação de
professores substitutos, visitantes e estrangeiros, de que trata a Lei n. 8.745 de 9 de dezembro de 1993; sobre a
remuneração das Carreiras e Planos Especiais do Inep e do FNDE, de que trata a Lei n. 11.357, de 19 de outubro de
2006; altera remuneração do Plano de Cargos Técnico-Administrativos em Educação; altera as Leis n. 8.745, de 9 de
dezembro de 1993, 11.784, de 22 de setembro de 2008, 11.091, de 12 de janeiro de 2005, 11.892, de 29 de dezembro de
2008, 11.357, de 19 de outubro de 2006, 11.344, de 8 de setembro de 2006, 12.702, de 7 de agosto de 2012, e 8.168, de
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Disponível em: https://doi.org/10.20873/uft.2447-4266.2019v5n1p182/. Acesso em: 21 jan. 2020.
ZUIN, Antonio A. S.; ZUIN, Vânia G. A Indústria Cultural na era da tela onipresente. Cadernos de Pesquisa:
pensamento educacional, Curitiba, v. 14, p. 89-104, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.35168/2175-2613. Acesso
em: 21 jan. 2020.
Marta Guedes
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
INTRODUÇÃO
A Escola Municipal Prefeito Djalma Maranhão, no Vidigal-RJ, é uma das quatro escolas
contempladas com o Projeto de Criação de Escolas de Cinema em Escolas de Educação
Fundamental pelo grupo Cinema para Aprender e Desaprender (Cinead), do Laboratório de
Educação, Cinema e Audiovisual (Lecav), da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Em integração com a pesquisa e ações de ensino, o programa se propõe a
realizar e investigar a iniciação ao cinema por professores e estudantes dentro e fora da escola. A
chamada pública produzida em 2011 pelo projeto de criação de escolas de cinema em escolas
públicas selecionou 15 projetos de escolas para fazer a formação no Curso de Aperfeiçoamento
Cinema na Escola para Professores da Educação Básica, promovido pela Faculdade de Educação do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, no período de 09 de janeiro a 10 de novembro de 2012,
com carga horária de 180 (cento e oitenta) horas e com a consultoria do professor e cineasta Alain
Bergala. Ao final do curso, quatro escolas foram selecionadas para receber equipamentos, um kit de
filmes da Programadora Brasil e acompanhamento profissional durante um ano. Uma delas foi a
nossa, a Escola Municipal Prefeito Djalma Maranhão na favela do Vidigal. Sou a professora
responsável pelo projeto no colégio e com ele entrei em contato com A Hipótese-Cinema de Bergala
(2008), que extrai sua força e sua novidade na proposta de descoberta do gesto de criação
cinematográfica compartilhada entre professores e estudantes. De acordo com o autor francês, se o
encontro de crianças e jovens com o cinema como arte não acontecer na escola, ele corre o risco de
não acontecer em lugar algum. Se assim o é na realidade da França, o que dirá em um Brasil de
proporções continentais, sem cultura cinéfila como a França, e com profunda desigualdade social?
O início do projeto de cinema na nossa escola foi confuso, esbarrou em diversos entraves e
encontrou resistências em muitas instâncias. Resistências por parte da direção, da Coordenadoria
Regional de Educação (CRE), de outros professores e até mesmo das crianças e jovens. Tudo era
muito novo e desestabilizava a ordem instituída. “As artes provocam, atravessam, desestabilizam as
certezas da educação, perfuram sua opacidade e instauram algo de mistério no seu modo explícito
de se apresentar, ao menos, no espaço escolar” (FRESQUET, 2013, p. 9). Com o tempo e muita
insistência, superando todos os entraves pela luta constante e com firme persistência, finalmente
conseguimos, no ano de 2015, colocar em prática nossa ideia inicial: realizar um documentário
escolar a partir da investigação da história da favela do Vidigal. Nossa principal motivação era estar
com a emoção e o interesse de todos os estudantes da escola em seu processo de ensino-
aprendizagem, por meio do conhecimento das raízes históricas da favela e da escola, em
intercâmbio com experiências do fazer artístico como o teatro, a dança, a música e o cinema. A
aposta em pesquisar a história da favela do Vidigal com o cinema na escola nasce do entendimento
de que a imaginação, função vital do cérebro, se apoia, consonante às formulações de Vigotski
(2009), na relação entre fantasia e realidade, no material do conhecimento preexistente da
humanidade, na memória e na emoção.
Na devolução das imagens de Paraíso Tropical Vidigal aos sujeitos da escola e da favela,
fomos surpreendidos com o enorme potencial de emoção e interesse que apareceu nas falas de
crianças, pais, professores, colaboradores e moradores da favela do Vidigal. Ficávamos, após a
sessão, ouvindo-os contarem novas histórias do Vidigal, ou confirmarem outras, ou, ainda, nos
agradecerem por terem podido conhecer aquelas que desconheciam...
O presente estudo parte do princípio de que a articulação entre cinema, escola e memória é
potente enquanto assunto a ser colocado “sobre a mesa/na tela” para matéria de estudo
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013) além de ser de fundamental relevância na construção de uma
memória coletiva e no direito ao exercício desta memória pelos estudantes do projeto de cinema,
pelos estudantes da escola e quiçá para além dela. A característica do “tempo livre” da escola
ressaltada por Masschelein e Simons (2013) enfatiza um tempo escolar livre de finalidades
mercadológicas, ou seja, um tempo para o estudo que coloca os estudantes em uma condição de
igualdade. Um “tempo livre” para materializar a skholé. Na Grécia Antiga, skholé queria dizer o
momento em que se escapava da determinação do fazer. “Em outras palavras, a escola fornecia
tempo livre, isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na
sociedade (sua “posição”) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo” (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2013, p. 26). Os autores preconizam quatro operações fundamentais na escola: operações
para fazer um estudante suspender os laços familiares ou estatais ou de qualquer “comunidade
passada existente”; operações de suspensão da costumeira ordem das coisas, deixando seu uso e
funções comuns temporariamente sem efeito; operações para colocar algo sobre a mesa
(profanação) e para fazer “tempo livre”; e operações para fazer estar atento, para formar a atenção,
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
apoiando-se no amor pedagógico tanto por certas coisas quanto pelos estudantes. Disciplina para
chamar atenção para algo.
Vimos, também, a potência de alcance das imagens do cinema que ultrapassam espaços e
tempos. Por exemplo, todas as crianças e jovens que ingressam em nossa escola todos os anos, ao
assistirem ao filme Paraíso Tropical Vidigal (2015), não só se reconhecem nele, como são tocadas
pelo desejo de estar com o projeto de cinema. A potência de alcance das imagens do filme nos
proporcionou também o (re)encontro com antigos moradores militantes, que na década de 1970,
lutaram contra a remoção da favela do Vidigal em plena ditadura militar brasileira.
Felícia não sabia que o tráfico havia incendiado os originais que ela entregara à Associação
dos Moradores da Vila do Vidigal. Nós a (re)colocamos em contato com os antigos
moradores/ativistas e, em agosto de 2017, o projeto de cinema da escola produziu o evento 40 anos
de Resistência do Vidigal, no colégio Djalma Maranhão, quando tivemos então a oportunidade de
reunir os principais personagens da luta e resistência de outrora e os atuais em uma roda de
conversas com todos os estudantes.
proporcionava o encontro com os arquivos. Sob a tutela de Hernani Heffner, conservador chefe da
Cinemateca, começamos o processo de recuperação do material. Foram algumas semanas limpando
e preenchendo fichas de entrada dos filmes na cinemateca, telecinando e digitalizando todo o
acervo, que incluía além dos filmes Super-8, negativos de fotografias e fitas cassete com entrevistas
da época. Esse material foi doado definitivamente e agora faz parte do Acervo da Cinemateca, sob o
Lote da Associação dos Moradores da Vila do Vidigal e está preservado em 4 diferentes mídias.
Super-8, Mini DV, HD, e salvo também em DVD.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Com Alexsandro Tavares Lopes da Silva e Esther Correia Cezario (estudantes da escola), e
em parceria com estudantes da Escola de Comunicação da UFRJ, sob a consultoria da professora
Anita Leandro (ECO/UFRJ), iniciamos, em 16 de novembro de 2019, as filmagens do novo
documentário, intitulado provisoriamente Morro do Vidigal. Nas filmagens, confrontamos os
entrevistados – testemunhas dos acontecimentos – com o material de arquivo encontrado. Assim, o
registro de seus testemunhos vem a partir das lembranças que essas imagens de 1977/1978
evocam/convocam. Um método de filmagem onde “a pessoa não fala mais sozinha, mas com o
auxílio dos documentos, com os quais divide a construção da memória e da narrativa” (LEANDRO,
2018, p. 221).
Em 2019, começamos a exibir todo o material de arquivo recuperado pelo projeto de cinema
nos cineclubes mensais da escola. Desde a educação infantil até o quinto ano do ensino
fundamental. Surpresa com os comentários dos estudantes! Crianças de 4/5 anos de idade
reconheciam nas imagens do Vidigal de 40 anos atrás, locais atuais, como o muro da escola
Almirante Tamandaré e o restaurante (inexistente nas imagens) em que seus parentes trabalham
atualmente. Mesmo com as marcas do tempo impressas nas imagens esmaecidas, a atenção e o
interesse das crianças eram totais.
Estudantes do quinto ano observam nas imagens o Vidigal de antigamente. Reparam que
tinha muita vegetação e que hoje em dia os trajetos a pé se fazem em becos apertados. Não há mais
muitas áreas livres para soltarem pipas ou pularem corda como eles veem as crianças do passado
fazerem... Também ficam espantados com a fragilidade das casas de madeira e com a antiga Sede
da Associação dos Moradores da Vila do Vidigal, construída por adultos e crianças, a partir do
barraco de um morador que, não acreditando na luta pelo direito de permanecer no Vidigal, foi
transferido para Antares em 1978. Cristiano (1501), intrigado com as imagens do Conjunto
Habitacional de Antares, pergunta: “Caramba, tia, a gente ia morar aí é? Parece uma prisão!”.
Instigada pelos comentários dos estudantes, realizados durante as projeções e pela luta dos antigos
moradores/ativistas pelo direito à moradia, indago-me se essas imagens de arquivo projetadas na
tela têm potencial de emancipação...
Para Rancière (2002, p. 48), o que embrutece o povo não seria a falta de instrução, mas sim
a crença na inferioridade de sua inteligência. “Um camponês, um artista (pai de família) se
emancipará intelectualmente se refletir sobre o que é e o que faz na ordem social”. Ele nos alerta
que para emancipar a outrem, é preciso que se tenha emancipado a si mesmo. Dessa forma nos faz
pensar no princípio da igualdade de todas as inteligências. “O que pode, essencialmente, um
emancipado é ser emancipador: fornecer, não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode
uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra
como igual a sua” (RANCIÈRE, 2002, p. 50). São a inteligência e a vontade, as duas faculdades
que estão em jogo no ato de aprender, o livro seria o mediador de uma relação igualitária entre o
mestre e o estudante.
Eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre. Antes, não
sabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. No entanto, ele nada
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
lhes havia comunicado de sua ciência. Não era, portanto, a ciência do Mestre que os
alunos aprendiam. Ele havia sido mestre por força da ordem que mergulhara os alunos
no círculo de onde eles podiam sair sozinhos, quando retirava sua inteligência para
deixar as deles entregues àquela do livro (RANCIÈRE, 2002, p. 25).
A experiência com os arquivos “sobre a mesa/na tela” demostra uma “vontade atenta” dos
estudantes para com o assunto?
O cinema na escola, com as imagens de arquivo da favela, pode ser o livro Telêmaco do
professor Jacotot do Mestre Ignorante de Rancière? Pode, como aposta de alteridade e criação, ter
potencial de emancipação?
Partindo dessas projeções para todos os estudantes da escola, decido por realizar um
primeiro exercício de montagem com os arquivos que recuperamos. Uma espécie de compilação do
extenso material que temos em mãos. Assim, ponho-me a transcrever a fita cassete (1978) com a
entrevista de Carlinhos Pernambuco, morador/ativista, ex-presidente da Associação de Moradores
da Vila do Vidigal e já falecido. A partir de sua transcrição, a ideia da montagem cinematográfica
começa a me habitar. Sinto a urgência de começar montando essas imagens de arquivo a partir das
falas de Carlinhos Pernambuco. É a partir das palavras dele (Pernambuco) e das questões das
crianças que escolho as primeiras imagens que estarão na montagem. Algumas certezas: trabalhar
somente com arquivos; inserir a voz (de arquivo também) de estudantes; utilizar repetidamente na
montagem a imagem de Antares que suscitou a fala de Cristiano (1501), relacionando-a a se parecer
com uma prisão e colocar o som dos frequentes tiros na/da favela do Vidigal. Dessa forma, começo
a fazer pequenos exercícios de montagem e a projetá-los na escola para serem discutidos
coletivamente. As exibições contemplam tanto aos estudantes do projeto de cinema, quanto aos
estudantes dos 3º 4º e 5º anos.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Foi desta maneira que, em 2012, levei o Cinead para a escola do Vidigal. Mais uma vez
apostava na potência e na urgência de um fazer artístico na escola. Imaginava também que
pesquisar com o cinema a história da favela, assunto desconhecido por estudantes e professores e
não contido nos livros didáticos, poderia render frutos emancipatórios a ambos. Com esse processo
de elaboração de uma memória coletiva da favela do Vidigal em nosso projeto de cinema da escola,
retorna a arte como pulsão de vida na minha trajetória pessoal/profissional, e desta feita associada
ao compromisso com a luta em prol da transformação de uma realidade política, social e
educacional. “O verdadeiro cineasta é ‘trabalhado’ por sua questão, que seu filme, por sua vez,
trabalha. É alguém para quem filmar não é buscar a tradução em imagens de ideias das quais ele já
está seguro, mas alguém que busca e pensa no ato mesmo de fazer o filme” (BERGALA, 2008, p.
48).
Vidigal, seu mais truculento policial, caçador de pessoas em situação de escravidão, que ganhou as
terras ao pé do Morro Dois Irmãos, por seus préstimos a Coroa Portuguesa (HOLLOWAY, 1997).
Em seguida, tiros, muitos tiros de um áudio e vídeo que recebi dos coletivos que frequento na favela
do Vidigalvi. Tiros reais, tais quais os que vivenciamos com frequência em nossa escola.
Na primeira exibição dessa montagem para o quinto ano, a partir das imagens “na tela”, o
assunto gerado “sobre a mesa”, versou em torno das pessoas em situação de escravidão. Foi desde
os navios negreiros até o Major Vidigal e seu chicote de três pontas... Avançou pelos atuais “tiros
na cabecinha” do Governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e o gesto das armas em
punho, tão em voga/moda na política e nas mídias atuais. Ao término da aula, aplausos, muitos
aplausos!
Masschelein e Simons (2013) propõem uma prática pedagógica que dá a ver à experiência
escolar sem a tutela da família, ou a chancela do Estado; sem funcionalidade preestabelecida. A
proposta deles é estritamente pedagógica no sentido do fazer escolar, não requerido pela sociologia,
filosofia, psicologia, mas sim desenvolvido entre professores e estudantes, em uma língua da escola,
que permitiria ao jovem superar as gerações passadas. Uma suspensão de tempo e espaço que possa
colocar em atenção coisas do mundo para o trabalho em comum, numa horizontalidade entre
professores e estudantes que procedam à ação de profanação do saber pela emancipação dos limites
epistêmicos e afetivos de cada um. Para que haja uma profanação do saber se faz necessária uma
relação de horizontalidade entre mestre e aprendiz, tal qual nos enfatiza Rancière (2002) e sua
igualdade das inteligências. É preciso igualdade no acesso e na problematização do que é colocado
em relação, seja texto, filme, peça teatral, mapa, objeto mecânico etc.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A escola como espaço de iguais deveria convidar todos a se aproximar de novo, como
nova experiência, desses objetos que habilitam um encontro distinto com o mundo, e
que permitem a cada um apropriar-se dele, encontrar um lugar nele, acessar suas
linguagens como modos de representação das experiências humanas (DUSSEL, 2017,
p. 103).
Entusiasmada, prossegui com as exibições dessa primeira montagem dos arquivos. Naquele
momento, os estudantes do projeto de cinema da escola iriam discuti-la a fundo. Esther (1501)
disse: “acho que deve passar esse filme lá no calçadão pra esses brancos racistas verem o que a
gente passa aqui na favela, com os ‘tiros na cabecinha’ e quem sofre é nossa família passando
necessidade...”. Sarah (1401) comentou: “tia, eu acho que quando o cara diz que não é uma garrafa
pra ser jogado fora, você devia botar a imagem do caminhão de lixo removendo as famílias, porque
é isso que ele tá dizendo, né?”. Imediatamente, incorporei a sugestão de Sarah, a imagem do
caminhão de lixo entrou junto com a fala do sapateiro Waldemar em entrevista para o Jornal do
Brasil em 1978. Também aproveitei a oportunidade para gravar um áudio com os testemunhos dos
estudantes, pois percebi que a opção da montagem com as imagens (somente de arquivo) não daria
conta de mostrar, em espaços acadêmicos, todo o processo do projeto de cinema da escola com a
investigação da história da favela do Vidigal e a possível elaboração de uma memória coletiva.
Assim, fiz uma montagem complementar, agora com fotografias atuais de todo o processo do
projeto de cinema com a história da favela, desde 2015, e com trechos de alguns áudios deste
processo de montar/mostrar a partir de sugestões dos estudantes.
Os jovens focaram a atenção? Foram capazes de manifestar suas opiniões? Foram capazes
de se sentirem capazes? A experiência teve potencial emancipatório?
Reflito sobre a potência de uma escola“inútil” de função, sim “inútil” de função aparente,
pois que na inutilidade aparente é que se esconde a possibilidade da transformação das gerações
mais novas, o amor a elas destinado por seus mestres. Assim é que Masschelein e Simons (2013, p.
68), colocam a escola como a possibilidade da igualdade das inteligências, o encontro, a capacidade
que todos (professores e estudantes) têm de aprender tudo! Enfatizam a fascinação que nutrem aos
inúmeros filmes feitos pelo cinema que retratam a escola, mais especificamente os professores
como “agentes capazes de ajudar os alunos a escaparem do seu mundo da vida e de seu
(aparentemente predestinado) lugar e posição na ordem social”. Ressaltam, ainda, que é justamente
por esse motivo que existe um ódio direcionado ao professor e a escola, pois que ela é a
possibilidade de “suspenção”, de impedimento e de interrupção nos planos que o
Estado/Mercado/Líderes Religiosos/Políticos e até mesmo a Família têm para os estudantes.
A forma escolar torna possível que uma “nova” e uma “velha” geração venham à
existência, juntamente com a experiência de não haver ligação “natural” entre elas.
Talvez isso explique por que há tantas tentativas – tanto dentro das escolas quanto da
sociedade – para domesticar as escolas, ou seja, para dar à mudança pedagógica uma
direção específica, e, portanto, impor normas psicológicas, éticas, políticas ou sociais.
Mas essa imposição tem a ver muitas vezes com o controle dos riscos da educação
escolar, e, portanto, já tem a ver com o reconhecimento do potencial radical, e até
mesmo revolucionário das escolas. Decidir por ou permitir a educação escolar implica
aceitar que o que é valorizado por uma sociedade (e seus adultos) está sendo colocado
sobre a mesa, e, portanto, pode ser fundamentalmente questionado e desafiado. A
escola se opõe a toda reivindicação de naturalização ou sacralização e a todos os
movimentos de conservadorismo e restauração associados a essas reivindicações. É
nesse sentido que a escola está realmente afetando a sociedade e é sempre
intrinsicamente “política”. A forma escolar, com as suas pressuposições utópicas e
antinaturais, é uma intervenção política (MASSCHELEN; SIMONS, 2017, p. 58).
a elaboração de uma memória e uma circulação diferente das respectivas falas (arquivo e
testemunho oral).
Contemporâneos um ao outro, vestígios de uma mesma história e cúmplices de uma
experiência comum, testemunha e documentos se complementam mutuamente no
fortalecimento de suas falas respectivas. A fala dos documentos é muda e necessita de
uma fala viva que a torne audível. Os arquivos “dependem dos cuidados de quem tem
a competência para questioná-los e, assim, defendê-los, socorrê-los, dar-lhes
assistência”vii. O repasse desse cuidado e dessa competência à testemunha transforma
seu estatuto: de entrevistada, ele torna-se narradora de uma história na primeira
pessoa, construída no entrecruzamento de suas memórias com a carga mnêmica dos
arquivos (LEANDRO, 2018, p. 220).
Assim é que novos discursos podem acontecer no próprio set de filmagem, onde o
entrevistador não tem mais necessidade de fazer perguntas, pois os próprios documentos cumprem
esse papel. Mesmo se a pessoa filmada nada disser, seu próprio silêncio tem valor testemunhal “ela
se cala diante do indizível que o documento revela” (LEANDRO, 2018, p. 221). Pela mediação do
documento pode haver a corroboração do que é dito, ou ao contrário, a interpelação das certezas da
testemunha. A escrita da história nesse método de filmagem, colocada “fora do sujeito que fala”
propicia uma escrita “atravessada por questionamentos, dúvidas, silêncios, enfim, todas essas
lacunas inerentes ao documento e à memória e que desestabilizam os sistemas informativos e
discursivos” (LEANDRO, 2018, p. 221).
CONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIAS
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BERGALA, Alain. A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de
Janeiro: Booklink Publicações Ltda, 2008.
BOSI, Maíra Magalhães. Filmes de família e construção de lugares de memória: Estudo de um material de Super-8
rodado em Fortaleza e de sua retomada em Supermemórias. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) –
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.
DUSSEL, Inés. Sobre a precariedade da escola. In: LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Belo-Horizonte:
Autêntica, 2017.
FERREIRA, Carlos Alberto de Mattos; THOMPSON, Rita (orgs.). Imagem e Esquema Corporal. São Paulo: Lovise,
2002.
FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação – Reflexões e experiências com professores e estudantes de educação
básica, dentro e “fora” da escola. Alteridade e Criação 2. Belo Horizonte: Autêntica Editora Ltda, 2013.
HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
LEANDRO. Anita. Testemunho filmado e montagem direta dos documentos. In: DELLAMORE, Carolina; AMATO,
Gabriel; BATISTA, Natália (orgs.). A ditadura na tela. Questões conceituais. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas (UFMG), 2018. p. 219-232.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica,
2013.
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica. In:
LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
RANCIÈRE, Jacques. Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica,
2002.
VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e Criação na Infância. São Paulo: Editora Ática, 2009.
Notas de fim
i
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MZy_zvtqT_Q.
Cinema e Educação (Cineduc) foi criado em 1970 com a preocupação de dar às crianças e jovens a possibilidade de
ii
conhecer os elementos da linguagem cinematográfica. Felícia Krumholz atua, desde 1978, na área de educação e
audiovisual. Desde 1999, coordena e é curadora da Mostra Geração, o segmento infanto-juvenil do Festival do Rio.
Disponível em: https://mostrajoaquimvenancio.wordpress.com/mesa-redonda-cinema-audiovisual-e-educacao/. Acesso
em: 28 dez. 2019.
Lançado pela Kodak em 1965, o Super-8 é uma evolução da película 8mm, com uma superfície maior de imagem.
iii
Nos anos 1960 e 1970, fez muito sucesso entre cineastas amadores. In: BOSI, Maíra Magalhães. Filmes de família e
construção de lugares de memória: Estudo de um material de Super-8 rodado em Fortaleza e de sua retomada em
Supermemórias. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
546
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
iv
Entre 1964 e 1985, período da ditadura civil militar brasileira o governo federal usa recursos do recém-criado Banco
Nacional de Habitação (BNH) para construir conjuntos habitacionais no subúrbio a fim de remover as favelas da zona
sul carioca. A favela do Vidigal, com a força da Associação de Moradores da Vila do Vidigal, com o auxílio da Pastoral
de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro e com o apoio de artistas e simpatizantes da causa, consegue impedir a
remoção para Antares/Santa Cruz. A luta vitoriosa marca o fim dessa política de remoção na cidade do Rio de Janeiro.
v
Disponível em: https://ppge.educacao.ufrj.br/dissertacoes/marta_cardoso_guedes.pdf.
vi
Politilaje, coletivo criado em 2018 por Ninho Willian de Paula, com a finalidade de “fazer política em cima da laje”.
O Politilaje mistura política e arte e busca trazer as novas gerações ao debate político por meio de um Sarau com
poesias, performances, esquetes teatrais, slam etc. Coletivo Parem de nos Matar, no dia 26 de maio de 2019, puxado
pela favela do Vidigal, com a adesão de diversas outras favelas, movimentos sociais e instituições democráticas, o ato
Parem de nos Matar acontece no Posto 8 em Ipanema. O ato político cultural teve por objetivo chamar a atenção da
população do asfalto para o genocídio que acontece nas favelas e a necessidade de se reformular políticas de segurança
no Estado. O movimento cria um fórum permanente a partir de então.
vii
RICCEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oublii. Paris: Seuil, 2000. p. 213.
Neste cenário de pânico, desespero e muito medo, pelas pessoas, devido à expansão e ao
descontrole pandêmico da Covid-19, o mundo teve que repensar as formas de se comunicar,
trabalhar e conviver com o isolamento e com as quarentenas em suas casas, com fechamento e
esvaziamento dos espaços coletivos e com o uso desenfreado e necessário das tecnologias digitais e
dos serviços on-line.
Hoje, a alternativa mais segura é a imersão na cultura digital e uso dos instrumentos
tecnológicos. Como afirmava Pierre Lévy, lá na década de 1990, que a esperança dos laços sociais e
da solidariedade estava na cibercultura, com as potencialidades do virtual, da inteligência coletiva e
com a efetividade da conexão planetária. Nesse sentido, cibercultura é,
[...] a aspiração de construir um laço social, que não seria fundado nem sobre links
territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre as relações de poder, mas
sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre
processos abertos de colaboração [...] as comunidades virtuais encontram um ideal
na relação humana desterritorializada, transversal e livre. As comunidades são
motores e atores universais, por contato (LÈVY, 1999, p. 130).
Importante salientar que a cibercultura traz em sua gênese três aspectos importantes e
capazes de prover à sociedade novas formas de viver: a interconexão como potencial à
comunicação universal, como exemplo da pandemia que se instalou, as pessoas de todo mundo
trocam mensagens, conselhos, orientações e fazem apelos coletivos para cuidados e exílio
domiciliar; a criação de comunidades virtuais, as quais através da interconexão de comunidades são
construídas a partir de afinidades, interesses, conhecimentos e princípios políticos, projetos mútuos
e cooperativos independentes das proximidades geográficas e/ou institucionais e; a inteligência
coletiva como um modo de manifestação da humanidade, possibilitada pela rede digital universal
que favorece e estabelece recursos intelectuais, que, a priori, não sabemos a direção e que
resultados podem ocorrer, mas que se fortalecem e se multiplicam através das informações, sejam
genuínas ou fake news.
Para Pierre Lévy (1999), cibercultura é o mundo virtual integralmente vivo, pois se
demonstra e se efetiva por ser uma imensa reserva de virtualidades nutridas por temores, pânicos,
expectativas, projetos, sonhos, utopias, ódios, hipocrisias, laços, solidariedades entre outras razões e
questões humanas coletivas. Essa virtualidade que se estabelece na cibercultura atualiza percepções
conduzidas por agentes invisíveis, que emergem no espaço mais virtual de todos, ou seja, na
consciência individual e coletiva. Uma consciência absolutamente inapreensível, mas efetiva e
potencialmente disseminadora quando mobilizada pelas inúmeras ferramentas tecnológicas
(smartphone, computador, smart TV, tablets, relógios inteligentes) e pelos serviços digitais
(Facebook, Youtube, Instagram, tumblr, Twitter, videochamadas, Snapchat), amplamente usados,
mobilizados e disseminados por 4,1 bilhões de pessoas no mundo inteiroi.
Notadamente, confirmamos através deste número que há uma conexão planetária, pois
vivemos conectados por redes, multiplicando vizinhanças e laços sociais, ampliando e
aperfeiçoando as comunicações e investindo no progresso das ciências. Mas tivemos/temos, no
Brasil, investimentos e políticas públicas para o desenvolvimento e uso das tecnologias digitais no
ciberespaço de forma consciente?
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Essa dinâmica pode ser entendida como fundamentos da economia das ideias (LEVY,
1999), onde a riqueza é o espaço de consciência convenientemente explorado. Nesse espaço, o
processo de criação da riqueza pode ser compreendido através da dinâmica de três polos: da
invenção, da exploração e da economia.
Todas as riquezas vêm da pesquisa, do espírito, do virtual. A riqueza potencial é
infinita porque o espaço das invenções (ideias) possíveis é – ele também –
infinito. O consumidor final é também inicial porque quase sempre criativo,
alimenta e realimenta outras criações através do desejo (LEVY, 1999, p. 62).
Em um país que não investe na sua produção de riquezas, não possibilita invenções, nem a
exploração das mesmas, consequentemente, não tem como mobilizar e aumentar sua economia.
Sem ciência, sem pesquisadores, sem investimentos na educação, sem geração de riquezas e sem
consciência coletiva, como o Brasil vai explorar conscientemente as ferramentas e os serviços
digitais numa situação de pandemia?
Vale ressaltar que a “economia é somente uma das dimensões do devir humano total. Todos
a fazemos, todos os dias, mesmo que seja por nossas escolhas de trabalho, de consumo, de
poupança e de investimento. A economia não é uma força separada e autônoma” (LEVY, 1999, p.
69). Vejamos: se as ideias geram processos cognitivos, os mesmos levam às invenções e, por
conseguinte, aceleram os processos de inteligência coletiva, ou seja, dentre inúmeras dinâmicas
(educacionais, culturais, sociais, políticas, empresariais, entre outras) a economia também é
mobilizada virtualmente (moeda, banco, letras de câmbio, cartões de crédito, depósitos eletrônicos e
cibermoeda) .
Podemos exemplificar inúmeras situações no Brasil, desde janeiro de 2019, que demonstram
a inabilidade e a ignorância acerca da economia, da ciência e do uso das tecnologias para o bem
humanitário: a negação pelo presidente acerca dos dados sobre as queimadas e desmatamentos na
Amazônia; as críticas e desqualificações pelo Ministro da Educação às Universidades, aos
professores e pesquisadores; a redução violenta e abrupta dos investimentos em laboratórios,
pesquisa e ciência pela Capes; o “saque” de bolsas de milhares de mestrandos e doutorandos de
todo o país pelo MEC; as ameaças à soberania e autonomia das Universidades e Institutos Federais
pelo governo; a intoxicação dos ideários terraplanistas; a proposta torpe e mercadológica do
Programa “Future-se”; o incentivo ao uso do Google For Education às redes estaduais e municipais;
a proposta inoportuna e inábil à substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais em
tempos de Covid-19; entre outras barbáries cometidas neste (des)governoii.
São tantos problemas que acometem nosso país que poderíamos descrever algumas centenas
e milhares de páginas, mas vamos nos ater no “ultimato negligente” do Ministro da Educação,
reiterado na Portaria 343/2020 e publicado no Diário Oficial da União, n. 53, 18/03/2020, Seção 1,
p. 39, que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto
durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – Covid-19”.
Nesse sentido, podemos rememorar ao Senhor Ministro que a história da educação, no que
se refere aos investimentos e usos dos meios digitais, demonstra que as políticas públicas brasileiras
sempre negligenciaram e desqualificaram a comunidade científica como comunidade virtual que se
organiza em uma inteligência coletiva e, agora nesse cenário de isolamento dos alunos em suas
casas, uma atitude reativa e insana, a disposição é “substituir aulas presenciais por aulas em meios
digitais” para milhões de estudantes. Quando foi que este mesmo governo fez investimentos na
educação para melhoria de infraestrutura e logística para professores e alunos terem acesso aos
meios digitais em suas escolas? Nestes últimos anos, quais foram os incentivos à formação dos
professores sobre as ferramentas tecnológicas e o uso dos meios digitais? A desqualificação do
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
profissional e os cortes de recursos na educação, pelo MEC, não são contraditórios com o que está
disposto nesta portaria?
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CF/88), em seu art. 206, vem
garantir a todo cidadão brasileiro:
I. igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
Como continuidade de direitos aos cidadãos, o artigo 214 afirma que o desenvolvimento do
ensino junto às ações do Poder Público devem conduzir o país a: “I. Erradicação do analfabetismo;
II. Universalização do atendimento escolar; III. melhoria da qualidade de ensino; IV. formação para
o trabalho; e V. promoção humanística, científica e tecnológica do país”.
Mas quando nos debruçamos sobre o artigo 214, evidenciamos, em pleno século XXI, 32
anos após a aprovação da nova constituição, a partir da última Pesquisa por Amostra de Domicílios
Contínua (IBGE em junho de 2019), que a taxa de analfabetismo no Brasil tem, pelo menos, 11,3
milhões de pessoas com mais de 15 anos analfabetas (6,8% da população), bem como a meta de
universalização não alcançada por nenhuma região brasileira e a mesma pesquisa indica que a
melhoria de acesso às escolas não garante a qualidade do ensino e da aprendizagem.
Estes foram alguns dos feitos do Ministério da Educação desde 2019: cenário ideal para
dispor de uma Portaria que “autoriza” o uso dos meios digitais para substituir aulas a milhões de
estudantes em situação de isolamento, devido à pandemia de Covid-19?
Essa questão nos remete a recordar acerca da LBD (BRASIL, 1996), dos programas e
projetos que abordam sobre o uso das tecnologias digitais na educação brasileira, lócus e fito do
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citado Ministro neste período de quarentena escolar. Comecemos pelo artigo 3º da LBD, o qual
corrobora com o artigo 206 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), incluindo: “X. valorização da
experiência extra-escolar; XI. vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais;
XII. consideração com a diversidade étnico-racial e; XIII. garantia do direito à educação e à
aprendizagem ao longo da vida”.
A partir destes princípios, o artigo 30 enfatiza que “a educação escolar deverá vincular-se ao
mundo do trabalho e à prática social” [...] “educação profissional, integrada às diferentes formas de
educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões
para a vida produtiva”. No artigo 35, parágrafo 1o, inciso I, no que concerne ao Ensino Médiov,
destaca o “domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna”.
Ou seja, não se faz educação no Brasil sem autonomia, soberania ou investimentos na ciência e na
produção de conhecimentos, pois a educação é a riqueza do espaço de consciência
convenientemente explorado (LÉVY, 1999).
O artigo 80, da LBD (BRASIL, 1996), estabelece que “o poder público incentivará o
desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e
modalidades de ensino, e de educação continuada” e, o artigo 87 garante que “O Poder Público
incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os
níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada”. Significa dizer que desde a aprovação
da LBB, as políticas públicas deveriam garantir ao sistema educacional investimentos em
infraestrutura, logística, recursos e ferramentas tecnológicas, conectividade, acessos aos serviços
digitais e formação consciente para os usos e mediação didático-pedagógica nos processos de
ensino e aprendizagem, além da utilização dos meios e tecnologias de informação e comunicação,
com estudantes e professores, desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos
diversosvi.
Médio das redes estadual e municipal. Teve sua importância, mas findou sua trajetória com
laboratórios sucateados, fechados e obsoletos em todo o território nacional.
Após quase duas décadas de fracassos nas proposições acerca dos potenciais das tecnologias
digitais na educação, em 2015, emerge a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como um
projeto, “coirmão” da Constituição Federal de 1988, com o objetivo de fixar aprendizagens
essenciais para a formação de alunos na Educação Básica brasileira. Publicado o novo documento,
em 2016, define em sua propositura 10 competências gerais que “devem” ser trabalhadas e
desenvolvidas ao longo da Educação Básica. Destacamos, dentre elas, Comunicação e Cultura
digitais, compreendidas como a 4ª e 5ª competências da BNCC:
4a. Utilizar diferentes linguagens, bem como conhecimentos das linguagens
artística, matemática e científica, a fim de se expressar e partilhar informações,
experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Diante da realidade decadente que se instalou nestes últimos anos no MEC, não podemos
deixar de mencionar o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (Future-
se) do atual (des)governo, que “tem por finalidade o fortalecimento da autonomia administrativa,
financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), por meio de parceria com
organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios”. A Lei n. 9.637/98x, incentiva
que “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde”. Para a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais
de Ensino Superior (Andifes)xi, “a intervenção das organizações sociais, na verdade, traz ameaças à
autonomia da gestão financeira das universidades, que é um preceito constitucional”.
uso de suas atribuições, define no “Art. 1º. Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das
disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e
comunicação” e, no Art. 2º, permite que as IES “poderão suspender as atividades acadêmicas
presenciais pelo mesmo prazo”.
Essa portaria mobilizou o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes) a
um pronunciamento em Nota de Repúdio à proposta do MEC, na sugestão de utilização da
modalidade EAD em substituição ao ensino presencial. Destaca que o MEC, ao defender aulas on-
line, “desconsidera a sobrecarga dos docentes e discentes no processo de reestruturação da vida
cotidiana que o isolamento exige e (que as) aulas on-line exigem internet e equipamentos de
qualidade e o caráter pedagógico das aulas presenciais e as especificidades de cada disciplina e
curso, entre outros”.
Para a Andes, esse governo “coloca o mercado em primeiro lugar e a saúde da população em
último, coerente com a postura de toda sua gestão: atacando a autonomia das Universidades,
Institutos e Cefet; estrangulando os recursos; incentivando o ódio ao conhecimento e à ciência; e
aprofundando o sucateamento do SUS, que cambaleia sem recursos, fruto da Emenda
Constitucional do Teto dos Gastos (EC n. 95/2016)” e pede “pela imediata revogação da Emenda
Constitucional n. 95/2016! Em defesa do SUS e da Saúde Pública! Em defesa do ensino, pesquisa e
extensão públicos e gratuitos!”
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
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Proposta do MEC de EAD em Substituição ao Ensino Presencial. Brasília, DF, 18 de março de 2020.
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ISSN 0104-4060.
BARRETO, Raquel Goulart. Tecnologias na formação de professores: o discurso do MEC. São Paulo: Revista
Educação e Pesquisa, [s.l.], v. 29, n. 2, jul./dez. 2003. ISSN 1517-9702.
BRASIL. Ministério de Educação. Portaria n. 343, de 17 de março de 2020. Diário Oficial da União: Seção 1, Brasília,
DF, n. 53, p.39, 18 mar. 2020.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental: introdução aos parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/ SEF, 1999. 174p.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Programa Nacional de Informática na Educação (Proinfo). Diretrizes. Brasília:
junho de 1997.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do
ensino fundamental: introdução aos parâmetros curriculares nacionais/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília:
MEC/SEF, 1998.
BONILLA, Maria Helena. Escola Aprendente: desafios e possibilidades postos no contexto da Sociedade do
Conhecimento. Tese (Doutorado) – UFBA-FACED, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002.
ENDO, Paulo. Os Caminhos Possíveis de um Desgoverno Diante da Prática da Tortura: Apontamentos e Perspectivas
num Contexto de Apoio Governamental a Graves Violações de Direitos Humanos no Brasil. Lua Nova: Revista de
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https://doi.org/10.1590/0102-177193/108.
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VALENTE, José Armando. Diferentes Usos do Computador na Educação. In: Computadores e Conhecimento:
repensando a educação. Campinas: Gráfica da Unicamp, 1993.
Notas de fim
i
Fonte: Organização das Nações Unidas. Estudo da ONU revela que mundo tem abismo digital de gênero, publicado no
dia 06 de novembro de 2019. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/11/1693711.
Corroboramos com o autor Paulo Endo (2019), em seu artigo denominado “Os caminhos possíveis de um desgoverno
ii
diante da prática da tortura: apontamentos e perspectivas num contexto de apoio governamental a graves violações de
direitos humanos no Brasil”.
iii
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/mec-contraria-discurso-e-tira-verba-da-educacao-basica-alem-de-
faculdades/
iv
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_ensinosuperior/2019/09/26/
interna-ensinosuperior-2019,791013/weintraub-diz-que-vai-atras-da-zebra-gorda-professores-com-salario.shtml.
v
O Ensino Médio também é oferecido pelos Institutos Federais.
vi
Decreto n. 2.494/98, substituído pelo Decreto n. 5.622/2005, que caracteriza a educação a distância como modalidade
educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização
de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades
educativas em lugares ou tempos diversos.
vii
BRASIL/MEC/SEED. Programa Nacional e Informática na Educação. Brasília, SEED/MEC, nov. 96.
Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/proinfo/eixos-de-atuacao/projeto-um-computadro-por-
viii
aluno-uca.
ix
QUARTIERO, Elisa, BONILLA, Maria Helena; FANTIN, Mônica. Projeto UCA? Entusiasmos e desencantos de
uma política pública. Salvador: EDUFBA, 2015.
x Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9637.htm. Acesso em: 29 dez. 2019.
xi Disponível em: http://www.andifes.org.br/as-universidades-federais-frente-ao-future-se/. Acesso em: 02 jan. 2020.
xii
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/52641.
Mesmo considerando o Artigo 87, parágrafo único, incisos I e II, da Constituição Federal de 1988, o Artigo 9º,
xiii
incisos II e VII, da Lei de Diretrizes e Bases LDB n. 9.394/1996 e o Artigo 2º do Decreto n. 9.235, de 15 de dezembro
de 2017.
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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE
PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS
INFANTIS
Começo este texto assumindo a escrita narrativa do meu projeto de pesquisa, pontuando
alguns aspectos que, neste momento, alinhavam meu pensar. Ressalto que esta narrativa vai sendo
escrita na primeira pessoa do plural,em diálogo com as crianças que, em coautoria, integram a
produção investigativa deste trabalho junto com autoras, autores e interlocutores que estarão nos
entremeando. Assumo como lugar de tecer a pesquisa, a sala de aula, a investigação e a interlocução
com as crianças.
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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS
não gostava, mas a professora não fazia nada! Eu não queria mais vir para a escola.
Todo dia eles ficavam pegando no meu cabelo. Eu chorava... Eu também gosto de
conversar sobre racismo. Que bom que posso falar do meu cabelo, das minhas irmãs,
do meu jeito! Aqui ninguém vai ficar rindo do meu cabelo... (Registro de Caderno de
Campo, 07 ago. 2016).
Ouvir as falas das crianças é sempre um acontecimento. Falas que nos provocam assombros,
sustos, surpresas, nos colocam em encruzilhadas. Mas, o que as falas (podem) indicar? Indiciar?
Despistar? Esconder? Segredar? Camuflar? Caguetar? Denunciar? Essas são algumas pistas, sinais
para pensar, provocar movimentos de pensamentos, como disse Beatriz Ferreira, no processo de
alfabetização antirracista que venho vivendo e experienciando com as crianças, no enfrentamento
do racismo intraescolar. O que compreendemos sobre racismo intraescolar?
Outro aspecto a ser destacado é o corpo na Roda de Conversas, o corpo que dialoga, que se
corresponde e se inscreve na conversa, nos movimentos de pensamentos, nas refutações, nas
contradições, nas negações, nos esconderijos perversos promovidos pelo racismo dentro e fora da
escola. Somos sujeitos corpóreos e usamos o nosso corpo como linguagem, como forma de
comunicação. O que será que a aluna e o aluno negros nos comunicam por meio de seus corpos?
Como o corpo negro se localiza na escola? Como ele se apresenta esteticamente? Como é pensado
pelas crianças negras e não negras? Nossos corpos carregam histórias, memórias, ancestralidade.
A conversa tecida entre Beatriz, Pérola e Alicia, nos indicia para dimensões muito maiores
do que somente a presença na roda. Esses corpos falam! Estar em Roda é tecer pertencimento,
acolhida, conhecimento, compartilhamentos, comprometimento com a presença vital do outro. Isso
implica nos alfabetizarmos numa perspectiva antirracista.
Creio que esta dimensão de acolhida [da palavra], respeitosa e amorosa, do corpo do
outro, sobretudo quando este outro tem uma história-memória social de violência,
mutilação e insensibilidades com relação ao seu corpo e aos corpos dos seus iguais, é
uma chave para a permanência e o sucesso das nossas crianças, em especial as
crianças negras, na escola. Permanência e sucesso não de vítimas ou de carentes, mas
Vem sendo no cotidiano da sala de aula, com as crianças, que saberes, dizeres, fazeres,
ideias são compartilhadas. São esses mo(vi)mentos vividos com elas que me inquietam, afetam meu
fazer e meu pensar, me dão a ouvir, me comprometem cada vez mais com as questões raciais
explicitadas pelas crianças e por elas vividas dentro e fora da escola. Assumo, como princípio de
uma alfabetização antirracista, uma postura dialógica, aberta, curiosa, indagadora, que não só
movimenta, mas remexe nossos pensamentos, evidencia nossas (in)certezas. Azoilda Loretto da
Trindade (2013, p. 145) nos diz que:
É preciso colocar as crianças no centro da roda, vamos para o começo da conversa,
tirá-las do lugar de carência e olhá-las como força, como potência. Como crianças
cujo axé e cuja energia vital foram e são tão fortes que nos fazem pensar: como elas
resistiram e resistem à tanta perversidade social?
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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS
Por meio das palavras da autora supracitada, posso vislumbrar alguns momentos por mim
vividos tanto como aluna em processo de alfabetização e posteriormente, como professora
alfabetizadora na docência em sala de aula. Em ambas as situações o racismo permeou meu
pensarfazer, usando como um de seus dispositivos o cerceamento, a negação, o silenciamento e a
reprodução de um currículo hegemonicamente eurocentrado e distanciado de nossas histórias e
vivências. Esse é um dos mecanismos por meio do qual o racismo se manifesta, se apresenta, se
esgueira entre as brechas de nosso pensarfazer. Isso nos faz ficarmos cada vez mais atentos quanto
aos (nossos) processos de formação de professores.Quais são as representações que nós, docentes,
construímos desde a infância sobre o negro, seu corpo e sua estética?
No percurso do meu processo de formação, aprendi a indagar sobre a minha própria prática
criando um diálogo sobre o meu fazer pedagógico e os meandros do racismo que em minha ação
pedagógica se fazia sutil, se dissimulava. Olhar para o próprio fazer, indagando-o, interrogando-o,
duvidando das próprias certezas, não é fácil! Menos ainda quando, consciente do racismo pelo qual
fui/sou afetada, enfrento as dores das marcas deixadas na memória e no corpo. Essa situação
angustiante me colocou na encruzilhada dos meus próprios desejos de mulher negra professora
alfabetizadora, qual seja: buscar por uma educação como prática para a liberdade (HOOKS, 2017)
para mim e para as crianças e descobrir novamente o lugar, os sentimentos e os sentidos por uma
práxis antirracista, nos enxergue nas nossas complexidades e incompletudes, que nos torne visíveis
ao outro e a nós mesmos.
Era preciso colocar na Roda o projeto de pesquisa cujas inspirações, ideias, palavras e
trabalhos foram desenvolvidos com as crianças. Era preciso tecer uma conversa sobre a pesquisa,
sobre nós. Esta autorização foi escrita em dezembro de 2019, com a turma que por dois anos
lecionei e acompanhei no primeiro e segundo ano, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do
Iserj entre os anos de 2016 e 2017, respectivamente.
Fui invadida por um medo grande que há dias vinha me angustiando dada a proximidade do
encontro com a turma. E se as crianças não quisessem participar da pesquisa? Se me dissessem que
não queriam mais discutir sobre racismo? Se me dissessem que nosso tempo já havia passado...
eram muitas as indagações que apertavam meu coração.
No dia do encontro, ao nos reunirmos em uma sala da escola, esteiras foram puxadas e, sem
que eu pedisse, uma roda foi sendo formada. E ali estavam as crianças, a antiga 101, inclusive
Beatriz Ferreira, Pérola Guimarães e Alicia Sophia. Uma ambiência de saudade, memórias,
histórias, falas, conversas, corpos inquietos... até que Luíza Vitória me perguntou: “Por que estamos
aqui? Você vai dar aula pra gente no ano que vem?” Sobre dar aula para a turma no ano seguinte,
gerou um alvoroço e a esperança de que isso viesse a acontecer e de minha resposta ser positiva
gerou uma expectativa.
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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS
Mas o assunto era sobre o momento que estava vivendo ao ter passado para o doutorado na
Universidade Federal Fluminense e como/quanto isso nos implicava. A Roda de Conversas
silenciou para ouvir quão implicados estávamos com uma proposta de pesquisa que elas e eles me
ajudariam a escrever. Para isso eu precisava da autorização delas e deles para juntos pensarmos a
pesquisa. Li o projeto. Meu coração acelerado e minha boca seca demostravam minha preocupação.
Depois de muitas falas e muitas conversas, não pude fugir da pergunta: Seria possível
estarmos juntos na produção da pesquisa que, se eles aceitassem, seria tecida/escrita em coautoria?
Levamos praticamente uma manhã entremeando conversas, pensamentos e falas, desejos e
curiosidades, lembranças e sentimentos...
outros caminhos, para isso, mantermo-nos em estado de infância seria uma possibilidade de
compreender como o racismo afeta o processo de aprendizagem de crianças negras?
Como sujeitos interrogantes que são, as crianças precisam acessar uma educação que as
liberte do racismo, crianças negras e não negras, como nos disse Njeri (2019). Para isso, nós,
professoras e professores, precisamos estar concisos do racismo que nos habita e dele nos
libertarmos sob a leitura crítica que fazemos de nós mesmos. A relação pedagógica não se
desenvolve só por meio da lógica da razão científica, mas, também, pelo toque, pela visão, pelos
odores, pelos sabores, pela escuta. Estar dentro de uma sala de aula significa colocar a postos, na
interação com o outro, todos os nossos sentidos.
Aposto no princípio freireano (2005) que versa sobre a leitura do mundo preceder a leitura
da palavra, nesse sentido, penso que, aprender a ler e escrever está para além de ler as letras ou de
escrevê-las, mas de ler o mundo numa leitura que nos inclua, possamos nos ler e nos percebermos
como sujeitos históricos, pensando, discutindo, indagando sobre relações étnico-raciais vividas no
dia a dia, dentro e fora da escola, sobre nossa história ancestral, pela compreensão de que não há
uma única forma de se narrar ou estar no mundo, mas múltiplas formas, entretecidas de
conhecimentos, de resistências, saberes e memórias. Que sentidos revelam as falas, os gestos, os
silêncios das crianças no processo de alfabetização na perspectiva antirracista?
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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS
Mas como articular referenciais tão distintos? São, de fato, distintos? Gosto de trazer para
meus textos as tessituras, pois sou uma admiradora de panos artesanais, produzidos em teares
rústicos onde cada processo, desde a fiação até a produção é compreendido como uma artesania
(CERTEAU, 2006). Como uma artesania, a linha tecida e entrelaçada formará sempre um pano
único, singular, com tramas que não se repetem, com diferentes nós, formando sinuosos desenhos...
Nesse sentido, esta pesquisa pensa a criança nos seus multiversos, na sua singularidade,
procurando tecer fios de diálogo com os campos de estudos que estejam comprometidos com a
discussão étnico-racial, sobretudo no âmbito da educação como abertura para outros modos de
compreensão e de aproximação aos movimentos de pensamento e falas das crianças, não para
explicá-las, mas para aprender com, numa outra lógica, que, como diz Azoilda Loretto da Trindade
(2002), revira a lógica adultocêntrica.
Sendo assim, pensando na sala de aula, espaçotempo em que esta pesquisa será tecida, a
singularidade de cada criança está ligada ao outro que com ela compartilha, conversa, pensa,
aprende, ensina, brinca, briga, diverge, questiona, entra em conflito, pois esses sentimentos
constituem a vida, estão em nós, constituem o nosso ser, nos tece na alteridade. Segundo
Wanderson Flor do Nascimento (2016), o ser/devir do humano se instala não somente nas relações
éticas, mas também nas relações interpessoais e de reconhecimento.
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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS
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Fotos
Foto da carta de autorização produzida pelas crianças para coautoria da pesquisa – Acervo de pesquisa– 2019.
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Notas de fim
i
Beatriz Ferreira, Pérola Guimarães e Alicia Sophia integraram a turma da qual lecionei por dois anos (2016/2017)
primeiro e segundo ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esta turma era composta por 18 crianças. No Iserj, o
primeiro e o segundo anos compõem um ciclo de escolaridade, não tendo retenção do primeiro para o segundo ano e as
crianças permanecem juntas nos anos posteriores. Continuei acompanhando esta turma com encontros quinzenais
durante o ano de 2019. pretendo continuar com os encontros e com as Rodas de Conversas sobre os processos de
alfabetização e racismo em 2020.
Nícolas Lessa, integrante da turma de alfabetização que, durante dois anos (2018 e 2019) estudou com a professora
ii
Cecilia M. A. Goulart
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Os materiais portugueses para ensinar a ler em fins do século XV, as cartinhas, que
originaram as cartilhas, reuniam o abecedário, o silabário e rudimentos do catecismo. Era o tempo
de expandir e fixar o território português, no espaço da península ibérica habitada por muitos povos
na época; tempos das primeiras gramáticas no início do século XIV, e a fixação da língua pela
escrita, em substituição ao Latim, também se mostrava fundamental. A religião católica fazia parte
desse pacote.
mecânica, se não, muitas vezes o selo do idiotismo” (KOPKE, 1945, p. 131 apud NETO,
ROSAMILHA; DIB, 1974, p. 157). Chegávamos aos métodos de marcha analítica.
É Ana Maria de Araújo Freire (1989) que contribui para aprofundarmos o aspecto político
do estudo sobre a alfabetização no Brasil. O denso trabalho da autora tem o objetivo de examinar
práticas educativas para entender o problema do analfabetismo no Brasil no período de 1534-1930.
A autora opta por focalizar a história do analfabetismo, em contraposição à história da
alfabetização. Segundo ela, o analfabetismo só pode ser entendido na relação dialética com as
ideologias, nascidas na infraestrutura social que determinam a política educacional globali.
Do extenso estudo de Freire destacamos somente algumas questões relevantes à nossa meta
de compreender aspectos da temática do artigo. Entre os anos de 1870 e 1914, a chamada Ilustração
Brasileira veiculou elementos ideológicos do Positivismo ao Liberalismo, combatendo as ideias do
conservadorismo católico do Império. Escreve a autora:
Enfim, Positivismo e Liberalismo serviram, cada um a seu modo, à industrialização
que, durante todo este período em estudo, procurou, intersticialmente, um espaço na
economia brasileira. Portanto, ideologicamente, fundamentaram o projeto da
burguesia quando da passagem da nossa sociedade de agrária e rural, a comercial e
exportadora dependente (FREIRE, 1989, p. 220).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Em relação às escolas normais, aspecto importante para nossa discussão, afirma a autora:
As poucas escolas normais existentes no país e suas cíclicas existências, desde sua
origem, em 1835, em Niterói, atestam a precariedade de seu ensino e,
consequentemente, do ensino primário. É verdade que melhoraram, qualitativamente,
depois de 1920, nos estados onde houve remodelações de ensino, mas sem reais
repercussões posteriores na educação em seus respectivos territórios, muito menos em
termos nacionais (FREIRE, 1989, p. 222).
Ela conclui considerando que o que realmente houve no período foram sucessivas
mudanças, mas não verdadeiras transformações no campo educacional: reformas e reformulações
sem garantir mudanças profundas, valorizando-se excessivamente a educação primária como
instrumento de ordem, progresso, disciplina. A educação era vista como ferramenta para resolver os
problemas do país nos planos político, econômico e social. Mas as práticas continuavam sendo
Diante do contexto entrevisto, mesmo sabendo que damos um salto histórico, é importante
destacar um documento produzido pelo Inepii em 1951 (GOULART et al., 2007), como sugestão de
proposta de bases gerais para o trabalho com leitura e linguagem no curso primário. É pertinente
ressaltar que o documento foi elaborado a partir da análise minuciosa de programas vigentes nos
estados, e questionários para sondagem de opiniões de especialistas das disciplinas, professores
primários e pessoas não especializadas em educação, em relação ao conteúdo que os programas
deveriam apresentar para que a escola se tornasse “um instrumento eficiente de integração ao meio
social”. No documento estão claros os objetivos da escola; a necessidade da escola formular um
plano de trabalho “em face dos interesses, tendências e possibilidades infantis e das exigências do
meio”; o julgamento do trabalho dos alunos, do professor e de toda a escola; e a necessidade de se
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
fixar o nível de desenvolvimento mínimo a ser exigido em cada grau de ensino, “abrindo largos
horizontes à ação do mestre e maiores oportunidades às atividades criadoras dos alunos”.
Por uma necessidade de ordem metodológica, como os autores enfatizam, a proposta está
dividida por série em linguagem oral, literatura infantil, leitura, escrita, composição, gramática,
ortografia (nesta ordem).
Destacamos essas atividades pela característica de não apresentarem uma preocupação com
atividades motoras e com o desenvolvimento de determinadas habilidades, e também com critérios
de gradação de fonemas, destaques muito comuns ainda hoje no trabalho de alfabetização, apesar de
as teorias de conhecimento apontarem que as crianças são capazes de aprender complexamente, e
não linearmente e cumulativamente, como se pensava até as primeiras décadas do século XX.
O documento destaca também a importância da biblioteca de classe “[...] por mais pobre que
seja o meio”. São destacadas atividades com significado social, além de um compromisso com a
criança, com o que sabe, gosta e se interessa, destacando a sua capacidade inventiva e imaginativa.
Pellanda (1987) já destaca em seu estudo as forças políticas que marcam a sociedade
brasileira no século XX e a repercussão direta no trabalho escolar. A autora pontua que, no período
de 1930-1964, ao lado de práticas orientadas por métodos de alfabetização, coexistem ações de
caráter mais libertário, sinalizando interesses sociais divergentes. Ficam claras contradições que, de
qualquer modo, sinalizam mudança de rumos no trabalho alfabetizador em relação a posturas
tradicionais. A preocupação com a realidade social das crianças e com aspectos psicológicos se
evidencia no ensino da escrita, o que se revela no documento do MEC, de 1951. Métodos analíticos
e sintéticos são utilizados e há uma tendência a estabelecer ligação dos analíticos ao pensamento
progressista, e dos sintéticos ao pensamento conservador. Pellanda não afirma tal relação chamando
a atenção de que há outras relações em jogo neste processo.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Pellanda salienta, entretanto, que é com o trunfo da rapidez que entra no Brasil pós-64 o
método fonético da Abelhinha, importado da Itália. No conjunto de rupturas e substituição de
discursos que se seguiram ao golpe e que forjaram a Lei n. 5.692, de 1971, este método – que
destrói significante e significado, olhando-o na perspectiva do signo linguístico, em nome de uma
“eficiente rapidez” – contribui para aprofundar a distância entre o conhecimento veiculado pela
escola e o conhecimento trazido à escola pelas crianças das classes populares.
A análise de cartilhas utilizadas nas escolas paulistas entre as décadas de 1930 e 1970
realizada por Dietzsch (1990) pode ser expandida para as cartilhas de um modo geral. A
constatação da impessoalidade do discurso das cartilhas, com a predominância de enunciados
assertivos, faz com que encolha o espaço para o diálogo e a interação entre os interlocutores (p.
36). O espaço de argumentação dos alunos e dos professores se estreita já que em geral as
instruções de manuais são seguidas acriticamente. Outro destaque da autora é à desvinculação dos
enunciados dos contextos de vida das crianças e à manipulação da linguagem, que é efetivada por
meio da apresentação de um mundo maniqueísta em termos do que se relaciona a meninos e
meninas, de atitudes caracterizadoras do universo dos “bons” e dos “maus” e de um amor à pátria e
a seus símbolos acima de qualquer crítica. A análise das condições de produção do discurso das
cartilhas leva Dietzsch a afirmar que na cartilha falta um texto, um leitor, um escritor.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
A disputa por concepções de alfabetização se dá pari passu com disputas políticas de visões
de sociedade e de escola. Paramos pouco ao longo de décadas para questionar as formas e
conteúdos trabalhados, negando que novas realidades demandem novos caminhos. A objetividade e
a clareza dos métodos e caminhos consolidados na prática histórica do ensino da leitura e da escrita
sempre obscureceram a diversidade cultural e a diferença que enriquecem os grupos. A vida
cotidiana, sua organização, saberes e valores, tem pouca repercussão nos processos de ensino-
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
aprendizagem, fazendo crer que a realidade seja homogênea. Ou pior: que uma hierarquização entre
os que merecem ocupar uma posição social de destaque, porque possuidores de bens rentáveis, e
aqueles que pouco ou nada têm, seja natural. Num mundo desse jeito pensado, não há singularidade.
Temos assumido o leme dos barcos para singrar mares muitas vezes pouco navegados,
orientadas pela concepção dos processos de escolarização como processos de formação humana,
como nos indica Saviani (2003). Concebê-los desse modo envolve pensar em razão, afinal somos
animais racionais, e também em sensibilidade, essa forma de razão que nos marca pela
possibilidade de criação da/na vida. Não me refiro à criação artística, embora ela faça parte dessa
possibilidade. Refiro-me aos seres humanos como seres criadores, aos modos como criamos as
nossas próprias vidas, o que fazemos com ela, que soluções damos aos impasses, dificuldades, que
dificilmente podemos antecipar. Todas essas direções apontam a questão do método, que sempre foi
o centro da atenção dos estudos, das discussões. E continua a ser. E como temos lidado com a
questão do método?
Ginzburg tem sido uma fonte importante de orientação metodológica, tanto do ponto de
vista da pesquisa quanto da prática. No artigo Sinais: raízes de um paradigma indiciário, nossa
referência desde a década de 1990, apresenta o modo com realiza suas pesquisas, deixando claro
que não há propriamente uma metodologia, do jeito convencional (GINZBURG, 1989, p. 143-179).
A metodologia, nesta visão, seria um planejamento prévio indicando uma sequência de ações a
serem realizadas para estruturar uma pesquisa. O autor afirma que seu trabalho não é conduzido
dessa maneira – “suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas”, porque nesse tipo de
conhecimento, o indiciário, há elementos imponderáveis (intuição, entre outros). Na obra O fio e os
rastros, Ginzburg deixa clara a ideia de que a metodologia de um trabalho investigativo se torna
visível ao final. Cito um trecho do estudo, apesar de extenso.
O grande sinólogo francês Marcel Granet disse certa que vez o método é o caminho
depois que o percorremos. A palavra método deriva efetivamente do grego, mas a
etimologia proposta por Granet – meta-hodos, depois do caminho – talvez seja
imaginária. Em todo caso, a tirada brincalhona de Granet tinha um conteúdo sério, ou
melhor, polêmico: em qualquer âmbito científico, o discurso sobre o método só tem
valor quando é a reflexão a posteriori sobre uma pesquisa concreta, e não quando se
apresenta (o que é, de longe, o caso mais frequente) como uma série de prescrições a
priori. [...]
Contar o itinerário de uma pesquisa quando ela já chegou a uma conclusão (ainda que
se trate, por definição, de uma conclusão provisória) sempre comporta, é óbvio, um
risco: o da teleologia. Retrospectivamente, as incertezas e os erros desaparecem, ou se
transformam em degraus de uma escada que leva direto à meta: o historiador sabe
desde o início o que quer, procura, por fim encontra. Mas na pesquisa real as coisas
não são assim. A vida de um laboratório, descrita por um historiador com formação
antropológica, como Bruno Latour, é muito mais confusa e desordenada
(GINZBURG, 2007, p. 294-295).
Não somos historiadoras, mas aprendemos com Ginzburg (1989) que o conhecimento
indiciário tem raízes desde que o homem se tornou caçador quando, para garantir a sobrevivência,
se baseava em vestígios, sintomas, pistas, ou seja, na relevância dos pequenos detalhes. Um estudo
que somente considere algo que se repete pode esconder aspectos da realidade, escreve o autor.
Essa base teórica é entrelaçada por nós na perspectiva da teoria da enunciação de Bakhtin
(BAKHTIN, 1988; 1992). Desse modo, a lógica de investigação se torna dialógica. Um indício
precisa ser entendido no contexto da situação discursiva em que é produzido; por princípio, ele
pode ser explicado de muitos modos. Ao lermos, ao escrevermos, mobilizamos nosso universo de
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conhecimentos que é organizado ao longo de toda a vida. Quando analisamos o texto de uma
criança, por exemplo, sabemos que ele se faz marcado por saberes de muitas origens – casa, escola,
rua, igreja, tablet, etc. –, na dimensão global das formas composicionais e dos gêneros que o
estruturam até a dimensão da relação entre sons e letras, espaçamentos entre palavras etc. Aprender
a escrever envolve muitos fatores, linguísticos, técnicos (específicos à organização espacial do texto
no papel, por exemplo), motores e simbólicos.
“Eu tenho mesmo direito a aprender o que ensinam na escola?” – alguma criança pode se
perguntar, quando sente que a ele são negados tantos outros direitos. As crianças que estão nas ruas
da cidade e veem passar nas calçadas outras crianças de mãos dadas com responsáveis, marcadas
pela escola de muitas maneiras: uniforme, mochila, a lancheira: “Por que eu não sou assim?” A
escola precisa trabalhar no sentido de responder a perguntas como essa também.
Além dos raciocínios indutivo e dedutivo, a lógica dialógica tem como eixo o raciocínio
abdutivo. No inventário da riqueza de conhecimentos constituídos historicamente, propor atividades
que façam as crianças pensarem, adivinharem, criarem inventarem, priorizadas porque se
comprometem com o caráter criador dos seres humanos. No contexto dos discursos que organizam
as aulas – vivos, pulsantes, isso acontece. Para criar é preciso espaço – espaço físico, emocional,
cognitivo, afetivo, etc. A abertura para os possíveis erros que advirão desses espaços é fundamental,
lembrando como escreveram Abaurre et al. (1986): ninguém pode errar o que não sabe. E a
alfabetização assim se faz com as palavras de todos no processo de descobrir novas formas de ler o
mundo. A realidade de vida de cada criança e de todas é o ponto de partida para aprender a escrita
como nova forma de linguagem, a escrita abraçada com a cultura escrita, de dentro da cultura
escrita.
estreita. As crianças são capazes de aprender conhecimentos complexos, desde que façam sentido
para elas, que mostrem sintonia com suas vidas, respondam a curiosidades e/ou despertem interesse
e novas perguntas. É inconcebível continuar a pensar que “a professora ensina e os alunos
aprendem”, como se o movimento de conhecer fosse automático e progressivo. Qualquer criança
aprende, salvo situações extremas de comprometimento cognitivo, respeitadas suas necessidades de
tempo e espaço, que não são somente físicas, mas condicionadas por sensações, emoções e
conhecimentos prévios. As crianças são sujeitos dos processos de ensino-aprendizagem,
impregnando-os de suas histórias, valores, conhecimentos e sentimentos, o que torna os processos
pouco predizíveis.
Números que gritam, pedem intervenções, ações, reações. Concluímos, com Saviani (2003),
quando afirma que a orientação de práticas escolares se faz com base em valores humanos, sociais,
políticos. A tensão entre o processo e a prática político-social que leva à prática educativa se
relaciona à concepção de sujeito, a teorias de conhecimento e a projetos de sociedade. Aí deve se
mover a reflexão sobre os processos de alfabetização; aí se definem princípios de trabalho para o
ensino da leitura e da escrita, linguísticos, inclusive.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
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SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados,
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Notas de fim
i
O trabalho de Ana Maria Freire e o estudo sobre aspectos da educação no Estado do Rio de Janeiro e, mais
especificamente, em Niterói, foram desenvolvidos na pesquisa realizada no período de 2004-2007, com o apoio da
Faperj (GOULART et al., 2007).
ii
Leitura e linguagem no curso primário. Publicação n. 42 do Inep/Ministério da Educação e Saúde, 1951. 77p.
SOARES, Magda. Que professores de português queremos formar? Revista MOVIMENTO – Revista da
iii
590
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA
SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E
RESISTÊNCIA NA CLASSE DE ALFABETIZAÇÃO DO
CIEP GREGÓRIO BEZERRA
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...
A ideia de uma cidadania insurgente produz novos cidadãos e cidadania ativos que
contrastam com os prognósticos sociais de que estariam fadados à degradação humana, urbana e
ambiental. Essas concepções que ganharam formulação no século XIX, que constituiu importante
instrumental para o desenvolvimento da eugenia, forneceu aos reformadores urbanistas do
oitocentos a justificativa de um processo de haussmanização das cidades da Europa e das Américas.
Essas proposições transformaram as populações urbanas em classes perigosas e direcionou os
estudos da urbanização para a ciência psiquiátrica e para policiamento. Na atualidade, os
profissionais das ciências têm-se debruçado sobre favelas das cidades e seus milhares, milhões de
habitantes, num esforço de salientar a diferença e descaracterizar suas potencialidades. É inegável
que muitas pessoas vivem e trabalham em condições de extrema precariedade urbanas, sofrendo
brutalmente com segregação e poluição. Contudo, quer se chamar atenção que o gênero de
catástrofe homogeiniza e estigmatiza uma população urbana periférica. Investindo nessa perspectiva
de análise, sobra pouco espaço para a dignidade e vitalidade desses espaços. Esmagam-se pessoas
para totalizar caracterizações e, nesse sentido, redutivo, se produz um discurso e uma ênfase na
superdimensão da pobreza urbana, negando-lhe e não lhe reconhecendo seus espaços emergentes,
de invenção e agência (HOLSTON, s/d).
A maior força e originalidade desses processos encontram-se articulados na luta pela vida
doméstica e o cotidiano em torno dos direitos básicos de sobrevivência. Os líderes e soldados
desses movimentos são pessoas comuns que vivem uma vida precária e lutam por seus espaços
sociais e por outra forma de cidadania que não a oficial/formal. Essa outra cidadania tem relação
com os pobres do Hemisfério Sul e visa muito mais à resistência e aos recursos básicos cotidianos
do que às reivindicações da classe trabalhadora clássica. Ou seja, a luta se transfere do controle dos
meios de produção para a qualidade de vida (SILVA, 2017).
já estava bem consolidado nos países europeus, entendido como Educação Permanente ou Ao
Longo da Vida, cujas características versava numa educação continuada, progressiva, para todas as
idades, se transformando em fator integrador de todas as políticas educativas, que deviam assegurar
a sustentabilidade do mercado (GADOTTI, 2016).
Essa proposta de educação foi apropriada pelo Ministério da Educação no Brasil, em 2010,
desenvolvendo quatro pilares fundamentais: aprender a aprender, aprender a conviver, aprender a
fazer e aprender a ser. Diferentemente do que atestava o relatório original de Edgar Faure de 1976,
o relatório aprovado no Brasil deixava de levar em consideração que a Educação ao longo da vida
devia estar voltada para a participação e para a cidadania, como estava inserido no relatório de
1976. Aos poucos a referência deixou de ser a cidadania e passou a focar nas exigências do
mercado de trabalho. Nas teorias do capital humano, a educação perde a concepção de direito e se
torna um serviço, enquanto a aprendizagem passa pela responsabilidade de cada indivíduo. A visão
humanista foi substituída, nas políticas sociais e educativas, por uma visão instrumental,
mercantilista, apesar das afirmações em contrário (GADOTTI , 2016).
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proporcione a transformação dos atores envolvidos. Mesmo que seja lenta a apropriação da nova
práxis, os sujeitos dessas ações-reflexões, professores e alunos, terão a oportunidade de
desconstruírem os dogmas coloniais para modificar sua realidade e subjetividade visando sua
humanização e emancipação, pressupostos incontornáveis da transformação social
(LEGRAMANDI; GOMES, 2019, p. 31).
Como acima salientado, o Ciep Gregório Bezerra conta com o Programa de Educação de
Jovens e Adultos (Peja) oferecendo o Ensino Fundamental completo à comunidade. Essa
modalidade se divide em Peja I, que são dois blocos que se dedica ao processo de alfabetização e
letramento, correspondendo aos anos iniciais do Fundamental. No primeiro bloco é ofertado à
comunidade discente o processo de aquisição da leitura e da escrita da realidade do educando
(Cidadania) e do mundo letrado, incluindo conteúdos de vida, de linguagens, das ciências, de
tempo/espaço, das artes, das relações étnico-raciais, atividades corporais, que fundamentam a
prática do processo do primeiro letramento Peja. No segundo bloco, se desenvolve a consolidação
desse processo, ampliando conceitos que darão suporte para os próximos anos do Ensino
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Fundamental. O Peja II é composto pelos anos finais do Ensino Fundamental, que também se
encontram organizados em dois blocos.
A atuação aqui abordada se refere ao primeiro bloco do Peja I, turma 172, composta por 26
alunos, dos quais três são incluídos, compreendendo a maioria de idosos e adultos que ajudam,
orientam e aprendem com o frescor de alguns adolescentes e jovens. A maioria desses alunos não
tiveram condições de estarem em sala de aula no período regular de educação, por diversas
motivações e, agora, retornam ao universo escolar. Por meio do desejo de participarem do mundo
letrado, da aquisição da leitura e da escrita, alcançam o reconhecimento e valorização de sua
história e trajetória de vidas e a luta pela cidadania e inserção social.
culinária nordestina e as diversas adaptações feitas pelos descendentes no Rio de Janeiro. Dessa
produção, se investiu na noção de medidas de massa e no incentivo ao empreendedorismo de muitas
mulheres e jovens no Complexo.
Desse processo realizaram-se textos coletivos, aos quais todos participaram na composição.
Por meio desse resgate de vida, de valorização e reconhecimento de sua história e cultura, de suas
ideias e concepções de pertencimento e cidadania, o processo de letramento foi desenvolvido e
muitos deles apreenderam o mundo das palavras por meio da realidade que lhes perpassava.
Ao final dessa primeira fase do Peja I apresentou-se, na Feira Cultural da unidade escolar, o
trabalho acerca da identidade, realizado ao longo de toda a problematização e estudo intensivo, na
forma de um autorretrato. As expressões pessoais, étnicas e raciais foram ali representadas, com
valorização e fundamentadas por meio das discussões empreendidas ao longo do primeiro bloco.
docente foi no sentido de estimular o uso da escrita, em detrimento do uso frequente do áudio, sem
usar o aplicativo como sinal de correção. Esse desejo partiu de uma das alunas, a senhora
Lucerlenes, que após as intervenções feitas na turma, por meio de um alfabetário com os símbolos
midiáticos e de internet, o contato com as redes sociais, por meio das aulas de informática, comprou
um smartphone e solicitou, em sala, que se criasse um grupo num determinado aplicativo. A
senhora Maria Lúcia, que encara um problema de baixa visão, solicitou a permissão do grupo para
que inserir o contato de sua filha, já que ela própria não tinha. A partir da integração, a senhora
Maria passou a se comunicar com bastante frequência com todos do grupo. O aluno Filipe lembrou
da música Jenifer, de Gabriel Diniz, salientando que na música havia um aplicativo de
relacionamentos que também deveria ser explorada naquela vivência do mundo midiático virtual.
Muitos deles identificaram que estar fora desse mundo virtual é estar desligado da realidade atual,
pois o mundo todo se comunica, se dinamiza, se globaliza, se desenvolve contando com essa
linguagem. Portanto, eles mesmos deveriam acioná-la para que também pudessem dominar tal
tecnologia e investir em educação e cidadania.
Por meio da História de Vida: Resgate da Cidadania foi possível investir na construção do
conhecimento. Por meio de conceitos e concepções, muitas vezes ressignificadas pela atuação dos
educandos, através de suas vivências, foi possível dar sentido ao mundo letrado, seus usos e funções
sociais. Promover a ampliação da voz desses cidadãos em busca de sua afirmação social, em defesa
de seus direitos, tendo como efeito de realidade o domínio do mundo das palavras, os capacita a
insurgências substantivas na luta por cidadania e educação.
CONCLUSÕES FINAIS
conhecimento, um ato criador, é um ato político que se revela no esforço de ler o mundo e a palavra
(FREIRE, 1989, p. 19).
Nesse espaço escolar, procura-se evitar a propagação de uma educação apenas que
reproduza uma ideologia dominante. Pratica-se uma educação cujas brechas abrem espaço para a
atuação libertadora de homens e mulheres que participam eficazmente da construção de seu
conhecimento e adquirem vez e voz na sociedade em que vivem, experimentando insurgências
substantivas, quando se trata de cidadania.
Atenta-se, portanto, para importante percepção de que como educador se reconhece nos
outros o direito de professar sua palavra. Reconhece-se assim o direito deles de falar e de serem
ouvidos. Escutá-los com a convicção de que se cumpre um dever e não com a malícia de quem lhe
presta um favor. O processo de alfabetizar jovens e adultos é falar com eles, sem fazer com que sua
palavra, sua trajetória de vida, seu conhecimento os impeça de tomar a palavra e apresentá-la de
acordo com sua trajetória de vida e leitura de mundo.
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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...
REFERÊNCIAS
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Educação de Adultos: um estudo sobre os fundamentos políticos-pedagógicos da prática educacional. Lisboa: Chiado
Editora, 2011.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Autores Associados;
Cortez, 1989. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2014/10/importancia_ato_ler.pdf.
Acesso em: 20 jan. 2020.
GADOTTI, Moacir. Educação Popular e Educação ao Longo da Vida. [S.l.: s.n.], 2016. Disponível em:
http://almanaquefme.org/?p=4706. Acesso em: 20 jan. 2020. p. 1-10.
HOLSTON, James. Insurgent citizen ship in an Era of Global urban Peripheries. City & Society, [s.l.], v. 21, n. 2, p.
245-267, s/d.
LEGRAMANDI, A. B.; GOMES, M. T. Insurgência e resistência no pensamento freireano: propostas para uma
pedagogia decolonial e uma educação emancipatória. Revista @mbienteeducação, São Paulo: Universidade Cidade de
São Paulo, v. 12, n. 1, p. 24-32, jan./abr. 2019.
MATOS, Marilélia do Rocio Milléo. Educação de Jovens e Adultos: uma prática educativa na diversidade. [S.l.: s.n.,
s/d]. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1559-8.pdf/. Acesso em: 24 jan. 2020.
SILVA, Marcelo Martins da. Insurgência e Conservadorismo: considerações sobre o paradoxo da cidadania no Brasil.
Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 15, n. 39, p. 70-84, 1. sem. 2017.
Notas de fim
i
Em A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam, Paulo Freire analisa a arqueologia do
complexo movimento de alfabetização de adultos, referendando que tal proposição está inserida na ação política e na
ação do conhecimento, constituindo um ato criador e libertador (FREIRE, 1989).
ii
O conceito de cidadania substantiva tem sido discutido amplamente em setores da educação, do direito, das políticas
públicas, do serviço social. Diferente da cidadania formal, cujas perspectivas de construção estão referendadas pelo
processo de consolidação da democratização dos direitos sociais, civis e políticos, de diversos povos, a cidadania
substantiva ou insurgente, está na contramão desse processo, valorizando a relação com o efetivo vivido, determinando
que o cidadão é dotado de direitos, mas que age na objetivação dos mesmos. É uma construção histórica que visa
transformar em prática aquilo que é universal na teoria, por meio da participação popular articulada a grupos de
afinidade (classe, gênero, grupos étnico-raciais, entre outros) (SILVA, 2017).
iii
Livro do Neoliberalismo A Empresa de Si Mesmo.
INTRODUÇÃO
No atual contexto político brasileiro, ano 2020, vemos a educação de pessoas jovens, adultas
e idosas sofrendo com o fechamento de turmas com vistas à implantação de projetos, como o
Mundiar, voltado para a profissionalização para o mercado de trabalho, por meio de tele-ensino e
professor-tutor polivalente. Educação individualista, meritocrática, neutra e despolitizada, que está
provocando impactos negativos na EJA, entre os quais, uma demanda significativa desta população
está fora da escola, aumentando o processo de exclusão escolar, e a aprendizagem ofertada mantém
a lógica tecnicista de mercado neoliberal e da domesticação.
Desta forma, neste momento, torna-se indispensável que se repensem projetos e políticas
“com vistas a uma educação ao longo da vida, comprometida com os sujeitos democráticos,
cidadãos livres e autônomos, capazes de uma leitura crítica de mundo e da tomada da palavra com
vistas a sua transformação” (LIMA, 2007, p. 33), visando superar a educação instrumental,
domesticadora e alienadora de consciências, que inviabilizam e silenciam os sujeitos da Educação
de Jovens, Adultos e Idosos.
A educação de Paulo Freire se apresenta com diversas matrizes teóricas que a possibilita ser
caracterizada como dialógica, humanizadora, problematizadora, bem como intercultural crítica e
decolonial.
Paulo Freire vem sendo apontado como teórico intercultural crítico por educadores que
debatem a educação intercultural no Brasil, entre os quais Candau (2002), Oliveira (2015) e Fleuri
(2003), mas, também, ele se inclui no contexto do movimento decolonial da América Latina, por
criticar no campo social e educacional a influência do colonialismo na formação cultural do povo
brasileiro.
Paulo Freire critica o processo de colonização vivido pela população brasileira, por existir
uma imposição da cultura dominante, que tanto invisibiliza a cultura quanto efetiva a exclusão
social de determinados segmentos populares, entre os quais os da Educação de Jovens, Adultos e
Idosos. Critica ainda os discursos tanto da modernidade centrado no eu penso cartesiano, que
destaca o individualismo nas relações interpessoais, quanto o neoliberal por estabelecer um
fatalismo histórico que imobiliza o processo de transformação social.
Neste texto objetiva-se analisar, à luz dos princípios teórico-metodológicos de Paulo Freire,
as matrizes do pensamento decolonial e o processo de descolonização dos saberes na Educação de
Jovens, Adultos e Idosos.
Este estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica, com a utilização de fontes referentes ao
pensamento educacional de Paulo Freire e de autores que tratam sobre a pedagogia decolonial e a
educação de jovens e adultos na perspectiva freireana.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Oliveira (2015) explica que em Paulo Freire a opressão social está vinculada à opressão
cultural, porque na colonização existe uma invasão cultural, que para Freire consiste na “penetração
que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo”
(1983, p. 178), por meio da qual os invadidos são convencidos de sua inferioridade, bem como se
reconhecem como “inferiores” e os invasores como “superiores”, além de perceberem a realidade
social sob a ótica dos dominadores. Desta forma, há um processo de violência simbólica, que se
materializa em práticas de exclusão e os colonizados assumem a compreensão de mundo dos
invasores negando seus próprios saberes e não se vendo sujeitos de sua história e cultura. As
práticas de resistência são imobilizadas seja pelo convencimento ideológico ou pela força, como
diria Gramsci (1991).
Freire (2000, p. 73 e 74) crítica o processo de colonização por seu caráter predador, de
opressão e de negação da identidade cultural dos colonizados.
A presença predatória do colonizador, seu incontido gosto de sobrepor-se, não apenas
ao espaço físico mas ao histórico e cultural dos invadidos, seu mandonismo, seu poder
avassalador sobre as terras e as gentes, sua incontida ambição de destruir a identidade
cultural dos nacionais, considerados inferiores, quase bichos, nada disto pode ser
esquecido quando, distanciados no tempo, corremos o risco de “amaciar” a invasão e
vê-la como uma espécie de presente “civilizatório” do chamado Velho Mundo.
O autor critica a visão eurocêntrica dualista de “barbárie – civilização”, pela qual o saber
civilizatório do colonizador é legitimado e os saberes das demais culturas historicamente negadas
são invisibilizados e não legitimados no campo do conhecimento, denunciando o processo de
colonização das mentes, com vistas à manutenção das estruturas sociais de poder colonialistas e
eurocêntricas.
Explica Freire (1985, p. 111-112) que: “quando o colonizador é expulso, quando deixa o
contexto geográfico do colonizado, permanece no contexto cultural e ideológico, permanece como
‘sombra’ introjetada no colonizado”. Desta forma “o que é sombra do colonizador se transforma em
presença dele através do próprio físico do colonizado e de seu comportamento”.
Assim, na educação, há para Freire (1980), a manutenção da colonização das mentes por
meio da invasão cultural e pela invisibilidade do saber cultural dos educandos, que provoca um
mutismo tanto educacional quanto sociocultural, que se configura como processo de
desumanização, pelo fato de homens e mulheres de segmentos populares deixarem de exercer sua
vocação ontológica de ser mais, enquanto pessoa humana, não exercendo a função de sujeitos de
sua própria história.
Freire (1982, p. 41) considera que “o Brasil foi “inventado” de cima para baixo,
autoritariamente. Precisamos reinventá-lo em outros termos”. Por isso destaca a necessidade de
“descolonizar as mentes”, por meio do reconhecimento e legitimação dos saberes das culturas
nativas (FREIRE, 1978, p. 20), tendo a educação um papel ético-político importante, porque teria
de ser: “uma tentativa constante de mudança de atitude. De criação de disposições democráticas
através da qual se substituíssem no brasileiro, antigos e culturológicos hábitos de passividade, por
novos hábitos de participação e ingerência”, superando também o problema do analfabetismo
(FREIRE, 1980, p.93).
Educação intercultural crítica que respeite a identidade cultural dos/as educandos/as, que
perpassa pelo “respeito pela linguagem do outro, pela cor do outro, o gênero do outro, a classe do
outro, a orientação sexual do outro, a capacidade intelectual do outro” (FREIRE, 2001a, p. 60).
Educação que viabilize tanto a formação democrática quanto o diálogo entre os saberes, sendo
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Para Freire (1982a, p. 32) é “na intimidade das consciências, movidas pela bondade dos
corações, que o mundo se refaz. E, já que a educação modela as almas e recria os corações, ela é a
alavanca das mudanças sociais”. Educação que compreenda os sujeitos da educação na sua
integralidade do ser como seres racionais e afetivos.
Educação em uma visão decolonial que supere a colonialidade do poder, saber e ser das
classes populares.
A colonialidade do poder refere-se aos padrões de poder baseados em uma hierarquia
(racial, sexual) e na formação e distribuição de identidades (brancos, mestiços, índios,
negros). Quanto à colonialidade do saber, refere-se ao caráter eurocêntrico e ocidental
como única possibilidade de se construir um conhecimento considerado científico e
universal, negando-se outras lógicas de compreensão do mundo e produção de
conhecimento, consideradas ingênuas ou pouco consistentes. A colonialidade do ser
supõe a inferiorização e subalternização de determinados grupos sociais,
particularmente os indígenas e negros (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 165).
Walsh (2009) ressalta que Paulo Freire compreende ser a pedagogia crítica uma estratégia
metodológica imprescindível para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas de libertação,
por estar enraizada na realidade, subjetividade e histórias de vida dos povos, contribuindo ao
processo de afirmação e desalienação e em consequência, de humanização dessa população.
A alfabetização em Freire (1993; 1982a) tem a função de não somente aprender a ler e a
escrever, mas, também, formar pessoas, por meio de um processo de humanização, bem como
formar para o exercício consciente da cidadania, o que perpassa pela escuta dos/as educandos/as por
parte dos/as educadores/as e reconhecer o direito que possuem de dizer a sua palavra.
Quem apenas fala e jamais ouve; quem “imobiliza” o conhecimento e o transfere a
estudantes, não importa se de escolas primárias ou universitárias; quem ouve o eco,
apenas, de suas próprias palavras, numa espécie de narcisismo oral; quem considera
petulância da classe trabalhadora reivindicar seus direitos; quem pensa, por outro lado,
que a classe trabalhadora é demasiado inculta e incapaz, necessitando, por isso, de ser
libertada de cima para baixo, não tem realmente nada que ver com libertação nem
democracia. Pelo contrário, quem assim atua e assim pensa, consciente ou
inconscientemente, ajuda a preservação das estruturas autoritárias (FREIRE, 1982a, p.
30-31).
A alfabetização de jovens, adultos e idosos, na visão de Paulo Freire (1982a, p. 47), precisa
contribuir “para que o povo tomando mais e mais a sua História nas mãos, se refaça na feitura da
História. Fazer a História é estar presente nela e não simplesmente nela estar representado”.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
pensamos”. Não é o “eu penso” o que constitui o “nós pensamos”, mas pelo contrário, é o “nós
pensamos” que me faz possível pensar” (FREIRE, 1982b, p. 86).
Paulo Freire analisa a educação do ponto de vista epistemológico, estabelecendo uma crítica
ao pensamento cartesiano moderno, deslocando o olhar individualista para o coletivo, considerando
que os seres humanos em comunicação com o outro aprende e ensina. O deslocamento do eu para o
nós, implica em compreender que a aprendizagem é um processo de interação social, sendo,
portanto, coletivo e participativo.
Assim, além da aprendizagem ser significativa ao sujeito por estar vinculada à sua realidade
social e cultural, apresenta-se como um processo de interação humana, viabilizada pela
comunicação e pelo diálogo entre as pessoas, como seres de conhecimento e aprendentes. E nessa
comunicação o Outro é descoberto como uma cultura diversa, como diferente (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985).
Trazer o universo cultural dos(as) educandos(as) implica a escuta e o respeito aos saberes
dos mesmos, sendo necessário o círculo cultural dialógico a fim de realizar o debate e a
problematização de questões existenciais e sociais que vão fazer parte da aprendizagem
significativa dos sujeitos.
Freire (2001) então insiste na necessidade que tem o nosso tempo de ter em nossas escolas
centros de alfabetização que formem para a solidariedade, participação, hábitos de investigação e
disposições mentais críticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
CANDAU, Vera Maria Ferrão. Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis: Vozes, 2002.
CANDAU, Vera Maria Ferrão; RUSSO, Kelly. Interculturalidade e Educação na América Latina: uma construção
plural, original e complexa. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 10, n. 29, p. 151-169, jan./abr. 2010.
FLEURI, Reinaldo. Intercultura e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: Anped, n. 23,
maio/jun./jul./ago. 2003.
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: três artigos que se complementam. São Paulo: Autores Associados;
Cortez, 1982a.
FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982b.
FREIRE, Paulo. Cartas a Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
FREIRE, Paulo. Pedagogia dos Sonhos Possíveis. São Paulo: Unesp, 2001a.
FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 2. ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2001b.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 6. ed. São Paulo: Unesp, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983a.
FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Questões da nossa Época; Cortez, 1993b.
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.
LIMA, Licínio C. Educação ao longo da vida: entre a mão direita e a mão esquerda de Miró. São Paulo: Cortez, 2007.
OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Paulo Freire: gênese da interculturalidade no Brasil. Curitiba: CRV, 2015.
WALSH, Catherine. Interculturalidade, Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU,
Vera Maria Ferrão (org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2009.
PRÁTICAS FORMATIVAS
Este trabalho é um breve relato e reflexão sobre estas práticas formativas insurgentes de
adolescentes e jovens, que têm cultivado coletivos juvenis e vêm participando de ações políticas de
grande importância na história recente de nosso país.
Neste repertório, algumas práticas se aproximavam do que concebemos como educação não
formal, ou seja, práticas planejadas, mas sem a formalidade do ensino ou educação formal, como:
encontros de formação, eventos de extensão, atividades de estudo nas reuniões, oficinas de
formação, estudos bíblicos etc. Outras práticas se aproximam do que concebemos como educação
“informal”, ou seja, práticas que não foram planejadas para serem formativas, ou que tinham caráter
educacional incidental durante outras práticas sociais, como atividades de planejamento,
assembleias, debates durante as reuniões, manifestações, lutas, apresentações culturais e até mesmo
“rolês” (festas e outras práticas de lazer).
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
nos casos dos coletivos políticos, ou que passa a ser direcionada para a docência, no caso do
cursinho popular, ou ainda, que faz dialogar ciência e cultura popular, no caso do Maracatu.
Os coletivos políticos foram os que mais promoveram o que podemos chamar de formação
política “explícita”, como estudos de material enviado pelo coletivo, estudos em reuniões,
formações com lideranças regionais e estaduais e encontros nacionais. De modo semelhante,
também o Emancipa (o cursinho popular), que tinha relações estreitas com o Juntos!. Sobre esta
formação e os temas relativos a ela, como democracia, desigualdade social, movimento estudantil e
outros, os relatos revelam o aprendizado, principalmente, da política dita institucional ou formal.
Em consonância, depreendeu-se uma concepção mais propedêutica e preparatória do movimento
estudantil, como se a vida nestes coletivos fosse um “treinamento” ou ensaio para a ação política
mais consequente em partidos, sindicatos e movimentos sociais na idade adulta.
A formação política relacionada ao que Jacques Rancière (1996a, 1996b) considera como a
“política” propriamente dita, portanto, dissensual e criadora de sujeitos políticos, se deu por meio de
outras pautas e práticas. Trataram-se das pautas ditas “identitárias”, em especial os temas do
feminismo e o combate ao machismo. A pesquisa documental também revelou a importância das
pautas étnico-racial e LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros), mas, nas
observações e entrevistas se destacaram muito mais as pautas relativas ao feminismo e às relações
de gênero. Entre as práticas mais fortes, destacou-se, primeiro, o autoaprendizado coletivo de
mulheres em reuniões auto-organizadas, que levou ao reconhecimento das opressões de gênero e
seu combate, via o compartilhamento de experiências pessoais (a “sensorialidade”). Segundo,
práticas de combate ao machismo interno, em especial por meio de conversas, orientações e
intervenções, evitando a expulsão ou escracho público, tentando assim reeducar o machista. Trata-
se de pautas e práticas muito importantes, a considerar a origem social e econômica da maioria das
militantes destes coletivos: o combate ao machismo e o aprendizado da valorização de si como
mulher são importantes recursos na luta pela permanência na universidade.
Neste rol, deve se incluir a importante formação política incidental propiciada pela
participação em ações coletivas, em especial durante a ocupação da universidade no segundo
semestre de 2016. As pautas identitárias e a imersão na ação coletiva foram os elementos que mais
inspiraram militantes e ativistas, em suas entrevistas, a relatarem sobre a reconstrução de suas
“identidades” e a transformação de si, em especial no campo da orientação sexual, mas também na
identidade étnico-racial e, enfim, na expressão de si como “militante” ou como alguém que, em
qualquer espaço de atuação, deseja se engajar na organização da luta coletiva.
As assembleias, que tinham caráter diário em muitas ocupações, assim como as comissões
formadas para cuidar do cotidiano recriado da escola ocupada (de segurança, limpeza, alimentação,
comunicação), podem ser caracterizadas como práticas políticas e de gestão que tiveram importante
impacto formativo. Várias entrevistas, destacam a formação política e humana desta vivência
transformada do ambiente escolar, tanto ou até mais do que as oficinas e aulões.
pessoas adultas), que contribuíram com orientações sobre como organizar e receber ajuda política e
material. Essas orientações tinham um caráter mais pragmático, foram mais comuns no início de
cada ocupação de escola, ao lado de uma maior formalidade. É sempre bom recordar que, como
forte tendência, as ocupações buscaram ter autonomia em relação a militantes e representantes de
sindicatos e partidos, não hesitando em expulsar da escola quem lhes parecia querer se apropriar da
ação coletiva ou manipular ela a seu favor ou da organização a qual representava.
Este item final tem o objetivo de fazer um exercício de reflexão sobre algumas das práticas
formativas que foram acima descritas, diante do limite de espaço deste trabalho. Este exercício pode
ajudar na compreensão da radicalidade e das possibilidades emancipatórias contidas nestas práticas
educacionais insurgentes.
Adolescentes e jovens estudantes que nossas pesquisas vêm abordando, recriaram diversas
formas de distribuir os sujeitos no espaço-tempo das práticas formativas. A forma que mais se
destacou foi a figura do “círculo”. Mas também apareceram, transformadas ou reapropriadas pelas e
pelos estudantes, a fileira e a passeata.
A passeata, que muitas vezes é uma fileira ou fileiras em movimento, também é um recurso
tradicionalmente usado, agora por organizações clássicas da política, como partidos, movimentos
operários e outros movimentos sociais. Estudantes apropriaram-se da forma, dando a ela novas
configurações. Primeiro, quando secundaristas caminharam com suas carteiras por ruas centrais,
uma pessoa atrás da outra, pararam em um cruzamento, agora uma pessoa ao lado da outra, sentadas
nas carteiras, e interromperam o trânsito por alguns minutos enquanto recitavam um jogral. Tal
exemplo, que foi comum já no movimento de ocupações em São Paulo, no final de 2015,
O circulo é uma figura que recebe uma imensidão de significados, costumeiro símbolo
religioso e esotérico. Mas o círculo é também forma recorrente em várias tribos indígenas, que por
meio dele vem assinalar a igualdade entre todas as casas e os homens, equidistantes em relação à
“casa dos homens”, no centro da aldeia – como os Bororos. (NOVAES, 1983). Paulo Freire (1985)
vai eleger o círculo como forma geométrica necessária para organizar a educação libertadora, a qual
parte do princípio de que todas as pessoas são sujeitos que podem tanto ensinar quanto aprender,
que todas as experiências humanas produzem saberes relevantes: se tratam dos “círculos de
cultura”.
Nas imagens e registros dos diários de campo da pesquisa “A dimensão educativa das
organizações juvenis”, encontramos jovens estudantes dos coletivos da universidade rotineiramente
em círculo – em oposição às carteiras enfileiradas nas salas de aula. Mesmo quando usaram salas de
aula, as carteiras eram rearranjadas em círculo. Coletivos políticos, entretanto, costumavam se
reunir no hall do prédio principal, com as pessoas sentadas no chão, em círculo. Nas oficinas do
Maracatu, o coletivo cultural, havia um quase círculo em volta da mesa em que eram
confeccionados instrumentos, depois o círculo ideal quando ensaiavam. Nos Encontros Indutivos
Bíblicos da ABU, há de novo um quase círculo, com jovens de religião evangélica ocupando uma
pequena marquise, parte sentada em um banco, parte sentada no chão.
O mais marcante e consciente uso do círculo nesta pesquisa, entretanto, foi registrado no
cursinho popular da Rede Emancipa – Movimento Social de Educação Popular (GROPPO;
OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2019). Lá, é atividade obrigatória o “Círculo do Emancipa”, normalmente
usando cadeiras da escola que abriga o cursinho, ministrado por estudantes da universidade a
adolescentes que querem ingressar na educação superior. É o momento em que temas sociais e
políticos, que independem dos conteúdos do Enem, são debatidos e em que se buscam ouvir e
respeitar todas as vozes e opiniões. Quando uma pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
Juventude participou de um grande evento para o qual a Rede Emancipa foi convidada, o Encontro
Internacional de Juventudes em Luta, no Rio de Janeiro em 2016, a atividade que debateu educação,
sob a coordenação do Emancipa, se tornou um grande “Círculo do Emancipa”, com inúmeros
círculos concêntricos capazes de abrigar centenas de pessoas.
Dispor os sujeitos do processo educacional em círculo é prática heterodoxa que tem longa
histórica na própria escola e outras instituições educativas, e a inspiração de Paulo Freire e seus
“círculos de cultura” não é pequena – aliás, a Rede Emancipa cita Freire como seu principal
fundamento educacional. Em quase todas as atividades formativas durante as ocupações, o círculo
esteve presente, em especial nas práticas não-formais, como oficinas e debates. Ocupas levaram
esta prática também por inspiração de docentes da sua escola, como registra Carolina de Jesus em
entrevista para a pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016”:
Amávamos as aulas de sociologia e artes, era diferente, eram oficinas, eram debates.
Esses professores sempre procuravam colocar a gente em círculo na sala, para todo
mundo conseguir olhar um para o outro, para conversar de frente e ele sempre dava
muita abertura para a gente falar de tudo. E ele sempre se dispunha a escutar a gente
(Carolina de Jesus, ocupa de escola de Poços de Caldas/MG, entrevista, 2019).
pessoas parecem ter se transfigurado de estudantes jovens e adolescentes – com funções e lugares
sociais determinados e inferiores na estrutura social – em sujeitos políticos. Ou seja, ocupas e
jovens insurgentes se desidentificaram em relação ao papel socialmente esperado de adolescentes e
alunas e alunos. Sua voz e ação, tidas como pré-políticas e imaturas, portanto, desiguais e
desconsideradas como tendo valor intrínseco no cotidiano e na esfera pública, tiveram de ser
ouvidas e reconhecidas, ao menos durante o tempo em que a política como “dissenso” vigorou.
(RANCIÉRE, 1996a). É por isso que a manifestação de sujeitos políticos, que é também o momento
verdadeiramente político para J. Rancière, é também o momento em que as pessoas afirmam a
igualdade entre todas elas.
Nesse sentido, é possível dizer que a melhor performatização da igualdade, entre as práticas
político-formativas dos coletivos juvenis e do movimento das ocupações que temos estudado, foram
aquelas que fizeram uso da figura do círculo. Na verdade, não se tratou apenas de performatização,
mas também de pré-figuração (ORTELADO, 2016), ou seja, a vivência no tempo presente – por
meio das próprias formas de protesto – das relações sociais, políticas e educacionais que se espera
construir com o movimento. Trata-se de um círculo em que ninguém ocupa o centro, às vezes
apenas brasões de movimentos e partidos que apoiam a causa, mas nenhuma pessoa. As pessoas se
olham diretamente nos olhos, mesmo quando há coordenação ou exposição, e a figura do círculo
lembra que todas elas são iguais, por serem humanas, todas elas potencialmente sujeitos políticos.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
REFERÊNCIAS
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Brasil. São Carlos: Pedro & João, 2018. Disponível em: https://ebookspedroejoaoeditores.files.wordpress.com/2019/03/
ebookadriana.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.
FREIRE, P. Educação com prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
GROPPO, Luís A. Formative practices of student collectives in a public university. In: PEREIRA, Cláudia. Brazilian
Youth: Global Trends and Local Perspectives. London and New York: Routledge, 2020. p. 24-36.
GROPPO, Luís Antonio; OLIVEIRA, Ana Rosa; OLIVEIRA, Fabiana Mara de. Cursinho popular por estudantes da
universidade: práticas político-pedagógicas e formação docente. Revista Brasileira de Educação, [s.l.], v. 24, p. 1-24,
2019. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v24/1809-449X-rbedu-24-e240031.pdf/. Acesso em: 14 nov.
2019.
MEDEIROS. Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion (orgs.). Ocupar e resistir: movimento de ocupações de
escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019.
NOVAES, S. Caiuby. Habitações indígenas. São Paulo: Nobel; Editora da Universidade de São Paulo, 1983.
ORTELLADO, Pablo. A primeira flor de junho. In: CAMPOS, A, M; MEDEIROS, J; RIBEIRO, M. M. Escolas de
lutas. São Paulo: Editora Veneta, 2016. p. 12-18.
PARK, Margareth Brandini; FERNANDES, Renata Sieiro; CARNICEL, Amarildo (org.). Palavras-chave em
educação não-formal. Holambra: Setembro; Campinas: CMU, 2007.
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996b.
RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Cia das Letras; Brasília:
MEC; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996a. p. 367-382.
Notas de fim
i
Entre as produções da pesquisa a respeito deste tema, destaco Groppo (2020).
ii
Relatos mais detalhados destas práticas formativas nas ocupações se encontram em Costa; Groppo (2018) e Medeiros;
Januário; Melo (2019).
O título deste texto inspira-se no do magistral livro de Garcia Marquez O amor nos tempos
do cólera. Usei-o, inicialmente, numa conferência proferida em novembro de 2018, exatamente no
dia seguinte à promulgação dos resultados da eleição presidencial brasileira. Naquela ocasião,
refleti sobre algo que continua a preocupar-me: como a criança vive e significa um país em disputa
e conflito?
Venho, posteriormente, buscando compreender melhor a questão, que irei tratar aqui, ainda
breve e preliminarmente. No contexto em que escrevo, o título reveste-se de outro significado. Os
tempos do cólera referem-se não mais apenas a uma imagem de um país cindido e atravessado pelo
ódio. Os tempos do cólera falam de um país que experimenta, num cenário caótico, a emergência de
uma pandemia cuja dimensão e consequências não são ainda possíveis de avaliar, no momento em
que escrevo: março de 2020 (e que espero venham a ser bem menores do que agora prevemos,
quando for publicizado, 4 meses depois).
A cólera hoje é literal e, certamente, grande parte das crianças brasileiras se indagam sobre o
que é corona vírus, os efeitos que terá em suas vidas, os riscos a que ela e as pessoas que ama, estão
expostas. No entanto, pelo menos no momento em que escrevo, mostra-se ainda ausente uma escuta
sobre como a criança vive este contexto de caos, não mais “apenas” político, econômico e social,
mas também sanitário.
Não irei aqui trazer dados empíricos sobre esta escuta e aproveito para convidá-los a fazê-lo.
Mas irei refletir sobre um tema ausente, quer nos estudos da infância, quer nos nossos referenciais e
práticas na educação infantil: Como a criança compreende e significa a dimensão política da vida
social? Como compreende e significa um mundo social num contexto disruptivo?
Quero, na verdade, pensar neste sujeito que é objeto de nossa celebração: a criança, para
buscar recuperar, no interior dos muitos nós atados, neste emaranhado de arame farpado que é o
país hoje, um lugar para produção e escuta de seus discursos.
A infância ocupa o debate político grande parte das vezes como objeto de nossa retórica
política eleitoral, a representar o futuro e a esperança, sendo ausente a escuta de como vive o
presente. Ou, quando se experimenta “dar-lhe voz”, é colocada diante de um microfone para, com
sua “espontaneidade, pureza e ingenuidade”, dizer como gostaria que o mundo fosse.
Grande parte das vezes o mundo social que apresentamos à criança é idealizado, sem
conflito, caracterizado pela harmonia coletiva, onde cada indivíduo ocupa um papel no
desenvolvimento da vida comum. Protegemos nossas crianças dos discursos e imagens sobre
conflitos e tragédias, retirando-a “da sala”, quando tais assunto se apresentam, embora não
protejamos outras crianças da vivência destes conflitos e tragédias.
A infância desprotegida é a outra, que habita um mundo “distante” (embora tantas vezes
geograficamente próximo), na África, Síria, nos acampamentos de refugiados na Europa, nas
fronteiras dos EUA e nas favelas diante de nossas janelas. Tal criança é objeto de nossa piedade,
mas não de seus direitos.
Vivemos tempos estranhos, se não sombrios. Sobre isto, nós adultos, estamos continuamente
a ler textos, trocar comentários, impressões, dúvidas e inquietações, buscando compreender e
significar o vivido. Ao mesmo tempo, frequentemente excluímos a criança do tema, por considerá-
la incapaz de compreender e produzir um discurso sobre o mundo social, destituindo-a de um lugar
de fala e alijando-a do debate político.
Não vou aqui discutir posições, analisar governos e desgovernos, falar dos efeitos da política
nas condições sociais das crianças. Proponho-me indagar, de maneira breve e muito pouco
sistemática, sobre como a criança compreende e significa o universo sociopolítico, tal como ele se
apresenta nos difíceis tempos que correm neste nosso país.
Gostaria de fazer esta reflexão, ainda bastante inconsistente, na ausência de uma empiria da
escuta aqui proposta, mas em torno dos princípios que regem o campo dos estudos da infância.
Pretendo problematizar os referenciais teórico-metodológicos que ancoram a compreensão de como
a criança vive e significa o mundo social, especialmente em sua dimensão política, indicando os
limites adultocêntricos de nossos conceitos de ator e agência política.
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Por outro lado, foi possível tornar visível a dinâmica das relações das crianças com adultos,
em seus diferentes espaços de inserção, relação esta mediada por afetos, poder, encantamento
dominação e dependência mútuas. Foi possível pensar, para além destes sujeitos em interação, o
quadro social que em que se situam e no qual se circunscrevem, no interior de uma ordem
geracional.
Para além das interações sociais cotidianas, a criança participa da vida social, buscando
apreendê-la e significá-la. Ela não habita um universo à parte, distante da dinâmica complexa do
mundo social, restrito às microinterações.
Assim é que pensar a participação da criança na vida social implica considerar como esta se
organiza, em que a dimensão política lhe é inerente. Pensar os espaços e condições de participação
da infância na vida social implica considerar como a criança vive e compreende a política. Porém,
será que os conceitos que trabalhamos como participação, ator social e agência dão conta da
dimensão política? É importante considerar que os termos não são equivalentes. Ator social e ator
político, participação social e participação política apresentam distinções.
Para contemplar esta dimensão, gostaria de contrapor duas perspectivas no campo dos
estudos da infância, ao analisar a participação da criança na vida social, para pensar a participação
política.
Uma primeira perspectiva, fundada numa matriz europeia hegemônica, relaciona-se a uma
vivência da infância caracteristicamente individualista e institucionalizada, centrada na família e na
escola. Especialmente a participação política é entendida como processo formativo a ser exercido
na vida adulta e não como dimensão presente na vida da criança, circunscrevendo-se a temáticas
relacionadas ao “mundo infantil”. A produção sobre participação foca as microinterações, quer com
outras crianças, quer com adultos, em espaços como escola, casa e, mais recentemente, parques e
play grounds.
A produção do campo pouco focaliza a visão do mundo social mais amplo e dimensão
política da ação da criança, restringindo-se ao seu contexto imediato e a temas correlatos a seu
cotidiano. Tal tradição opera com uma concepção de ação política infantil como manifestação
individual dos seus interesses, a ser ativada através de mecanismos de consulta e expressão
definidos pelo adulto. Tal é a perspectiva presente no documento da Declaração Universal dos
Direitos da Criança, fartamente criticada por seu eurocentrismo.
Uma segunda perspectiva faz-se presente em pesquisas voltadas para os estudos das crianças
marginalizadas do chamado Sul Global. A análise da ação política infantil volta-se para a
compreensão da participação das crianças no mundo social mais amplo, tendo em vista o lugar
social que ocupam. Trata-se de uma perspectiva coletivista, que contempla a participação das
crianças nas relações familiares, de trabalho e em movimentos sociais. Dentre estes,
destacadamente o estudo de movimentos organizados protagonizados por crianças, como dos
meninos de rua, crianças trabalhadoras, sem terrinha, na América Latina, África e Ásia. Em tais
estudos, frequentemente o termo utilizado não é participação, mas protagonismo, termo este ausente
nos estudos europeus. O termo busca ressaltar a dimensão política da participação, constituindo-se
não apenas como conceito teórico, mas como objetivo na ação político-educativa.
Buscando avançar nesta reflexão, Oswell (2019) nos traz importantes questões e
provocações no seu texto: Whatspace for a childrenpolitics? (ou “Qual o espaço para uma política
da criança?”). O autor parte da seguinte questão, pouco presente no campo de estudos da infância:
como a criança cria, constrói, e atua politicamente? Mais exatamente, qual o espaço da política
infantil? A partir desta pergunta, questiona o conceito de atuação política presente nas reflexões
sobre a infância, fundada numa concepção tradicional que remonta a Aristóteles. Tal conceito
entende que a política se exerce na res publica, por cidadãos considerados providos de uma
racionalidade caracteristicamente adulta e masculina. Assim, a criança é entendida como incapaz de
ser um ator político, na medida em que a linguagem infantil não se centra na performance oral
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(expressão de uma racionalidade adulta), mas no uso de outras linguagens de caráter coletivo, como
a corporal, atravessada por ruídos.
Para Oswell, não se trata de pensar a criança como ator político, nos termos que este é
significado pelo adulto, mas indagar sobre os limites da nossa concepção de ação política,
apontando outras expressões, como as infantis.
Nesse sentido, os canais de expressão política das crianças não podem ser calcados na
oralidade apenas, mas no recurso a outras linguagens e mídias. Deve-se partir não das formas de
expressão do adulto, mas das distintas sensibilidades infantis. Como destaca Taft (2015) em seu
trabalho sobre crianças trabalhadoras peruanas, estas comentam no decorrer dos encontros de
formação e ação política: “Os adultos falam demais”.
Estamos todos aqui e agora, independente de nossas escolhas ideológicas, a lidar com
emoções poderosas, convivendo e colidindo o tempo todo, dentro de nós mesmos: amor, ódio e
medo nos mobilizaram nestes últimos tempos e não sabemos o que fazer com estes sentimentos. E
a criança que a tudo assiste, não passivamente, mas com seus afetos e relações mobilizados?
O que sabemos sobre como a criança compreende, se situa e significa estes tempos do
cólera? Tentemos nos colocar na sua posição, para que possamos ouvir o que ela tem a nos dizer.
Muitos de nós aqui presentes, com certeza, vivemos situações de tensão, às vezes limítrofes.
E, provavelmente, o viveu na companhia de crianças que a tudo assistiam, sem muito compreender.
Nós adultos estamos, neste momento, mais preocupados em defender posições, deixando à sombra,
ou no silêncio, a experiência infantil de viver em tempos de cólera.
Pensemos nesta vivência no interior da família, apresentada para a criança como espaço de
afeto, comunhão e amizade. Mesmo que esta seja uma representação idealizada, ela se ancora em
alguns rituais de sociabilidade que lhe conferem sustentação, como os almoços de domingo. Aos
poucos, este ritual foi tomando outro sentido, não de partilha, mas de disputa por narrativas. Quem
está certo: o avô que conta histórias, a avó que faz biscoito, o tio que leva no parque, o irmão mais
velho que dá livros legais e diferentes, a prima grande que lê livros sem gravuras? Como neste
cipoal de afetos que se debatem, se situa uma criança? Como entender a dinâmica familiar que
irrompe em fúria, gritos e rupturas? Porque não vai mais encontrar o primo com que adora brincar,
com o tio carinhoso e calmo que, de repente, grita com os demais e se retira da cena prometendo
nunca mais voltar?
Mesmo dentro da casa, do núcleo familiar, tantas vezes a criança assiste a disputas por
narrativas, importante dizer, atravessadas por relações de gênero, sem que compreenda muito bem o
que está em disputa, ou de onde surgiu tanta raiva entre aqueles que proclamavam amor, mesmo
com eventuais conflitos.
Ela também é ensinada, por exemplo, a fazer um gesto de empunhar uma arma, apertar o
gatilho para aqueles que seus pais ensinam serem inimigos. Ou aprende que o que ensina a
empunhar a arma é alguém do mal, que pode vir a dirigir a arma contra seus pais, ou ela mesma.
Medo e poder se misturam nestas dramáticas narrativas adultas.
Tais narrativas de violência são hoje acrescidas de narrativas outras, que falam da morte,
não como fenômeno individual, mas coletivo. Não como algo distante, mas que pode acontecer com
qualquer um, especialmente com seus avôs e bisavôs, por força de um agente microscópico.
com os quais interage e cujo contato passa a ser restringido. A criança vive, sem muita preparação,
uma experiência limítrofe de brusca limitação afetiva e espaço/temporal.
Tais vivências são reproduzidas em suas narrativas no brincar. Através da brincadeira, ela
teatraliza a vida social, visando a dar sentido ao real. Busquei referência de estudos sobre como as
crianças significam o coronavírus. Em reportagens jornalísticas estrangeiras, indica-se que o tema
invade as brincadeiras infantis, nos diagnósticos de doença da brincadeira de médico, na criança
que põe o urso de brinquedo de quarentena na caixa de sapato, na brincadeira de pega-pega em que
deve tocar o colega, que passa a ser o portador do vírus. Ou mesmo nos processos de exclusão, tão
presentes nas brincadeiras coletivas, em que o excluído é posto em quarentena, nomeado como
portador do vírus. Ou em relatos de escolas em que as crianças orientais passam a ser segregadas e
excluídas. A brincadeira é também reprodução de estereótipos e preconceitos, no que chamamos de
bullying.
Estas questões nos provocam a problematizar como trabalhamos a dimensão política da vida
social com as crianças, entendendo que esta é atravessada por disputas, as quais elas buscam
compreender. O conhecimento do mundo social que trabalhamos na educação infantil (quando
trabalhamos), tem recentemente tematizado a valorização dos sujeitos em sua diversidade, suas
ancestralidades, destacando-se a importância de respeitar as diferenças e os diferentes. Porém, tais
diferenças são atravessadas por relações de poder, exclusão e violência, que não são tematizadas
nas práticas curriculares da educação infantil, embora sejam vividas e observadas em seu cotidiano.
Nesse sentido, cabe chamar atenção para a escuta da criança. Tal escuta implica tanto
refinarmos nossas estratégias metodológicas, quanto as perguntas que lhe fazemos. “O que acha de
fulano”, “o que pensa de Beltrano” não me parece a melhor pergunta a ser feita neste contexto, para
entender como as crianças significam a política. Muito menos reproduzirmos rituais democráticos
adultos, mimetizando eleições, em que as crianças, grande parte das vezes, apenas reproduzem as
escolhas das pessoas pelas quais sentem afeto. Tais atividades, em seu simplismo, revelam o gozo
de vermos reproduzidas pela criança as nossas falas, o orgulho da colonização infantil do nosso
discurso. Não se tratam de atividades de escuta ou formação política de fato.
desenvolvimento da ação política, através do seu exercício cotidiano. Cabe-nos indagar: como a
democracia é exercida no cotidiano da educação infantil? Como se dá a consulta às crianças nas
decisões que definem seu cotidiano? Que práticas de solidariedade são desenvolvidas no dia a dia?
Que visibilidade damos aos diferentes sujeitos (porteiros, auxiliares, profissionais da faxina)
presentes na escola e como os tratamos? Como as crianças os tratam? Como as crianças participam
das atividades de cuidado e preservação da escola?
Novamente, não se trata de ensino destes valores, através de sua transmissão oral, mas do
seu exercício, sem desconsiderar conflitos e diferenças.
Por outro lado, é importante apresentar para as crianças as diferentes posições sobre um
determinado tema, provocando sua reflexão e ampliando suas referências para além daquelas
presentes nos núcleos familiares, compreendendo que existem diferentes visões de mundo.
Quero finalizar trazendo uma questão. No exercício da escuta, o que as crianças podem nos
ensinar sobre a ação política? Quero relatar uma situação cotidiana, narrada por um amigo, à época
da eleição, que nos indica questões para pensarmos a relação criança e política. Ele falava-me da
difícil convivência doméstica, em que sua posição política era distinta da esposa. Contava-me,
angustiado, como a filha, aos seus 10 anos, sofria com esta cisão, dividida entre dois sujeitos pelos
quais tinha especial afeto. Por outro, admirava-se com as lições de ética e coerência que dela
recebia, próprias da visão infantil, segundo a qual valores são valores, não existindo espaço para
incoerências.
Assim, narrou que, ao ver uma faixa de um candidato, este meu amigo fez um gesto com a
mão, levantando o dedo do meio. A filha prontamente criticou o que avaliou como uma agressão.
Noutra cena, passando por uma carreata adversária, os motoristas fizeram o mesmo gesto,
dirigindo-o a meu amigo, que tinha no carro o adesivo do candidato oposto. Ao criticá-los, ouviu da
filha: foi a mesma coisa que você fez outro dia.
Claro, sabemos que os valores éticos que devem balizar nossa ação política não podem ser
absolutizados, que em todos os seres humanos habita a contradição. Mas, na cobrança da criança
não mora um chamamento à ética como valor permanente? Uma necessária referência, da qual nos
distanciamos, na impossibilidade de escuta mútua? Ouvir as crianças, em suas ponderações éticas,
não nos ajuda a sermos melhores no exercício da cidadania e da política?
Finalizo com algumas questões: O que as crianças têm a dizer e, quem sabe, ensinar aos
adultos nos tempos de cólera? Como trabalhar valores éticos, quando deles os adultos abrem mão?
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REFERÊNCIAS
GOUVEA, M. C; CARVALHO, L.; ACARDIO, F.; BIZZOTO, L. O protagonismo infantil no interior dos movimentos
sociais contemporâneos no Brasil. Sociedade e infâncias, [s.l.], v. 3, p. 21-63, 2019.
LIEBEL, M. Children’s Rights from Below. Cross-Cultural Perspectives. Londres e Nova Iorque: Palgrave
Macmillan, 2012.
OSWELL, D. What space for a children politics? Rethinking infancy in childhood studies. In: Spyrou & Rosen &
Cook. Reimagining childhood studies. London: Bloomsbury Academic, 2019. p. 199-211.
TAFT, J. Adults talk too much: intergenerational dialogue and power in the peruvian movement of working children.
Childhood, [s.l.], v. 22, n. 4, p. 460-473, 2015.
Rosaura Soligo
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
DOIS SENTIDOS
Alfabetização é uma palavra que remete a dois significados diferentes, embora relacionados:
um deles é o processo pessoal do aprendiz da língua escrita e o outro é a prática de ensino cujo
propósito é favorecer esse processo. Entretanto, muitas vezes esses dois fenômenos são
considerados quase um só, como se, havendo uma prática de ensino, uma experiência de
aprendizagem necessariamente aconteceria, em consequência.
Ocorre que os professores alfabetizadores ensinam todos os dias, mas, como sabemos, nem
sempre suas propostas resultam em aprendizagem, prova incontestável de que o conhecimento não
nasce de uma relação direta entre estímulos (provocados pelas situações de ensino) e respostas
(produzidas pelos aprendizes).
A QUESTÃO DO MÉTODO
Os sentidos principais evocados pela palavra método coincidem sempre com a ideia de passo
a passo, de procedimentos organizados para se obter um resultado – o método seria, assim, o meio
mais eficaz para se chegar a um fim desejado. Dessa perspectiva, quando a questão são os métodos
de ensino, então o resultado seria a aprendizagem daqueles para os quais se destinam.
Há uma lógica transversal a essas proposições, que se naturalizou com o tempo e que se
evidencia na conhecida expressão ensino-aprendizagem, uma expressão portadora da falsa ideia de
que ensino e aprendizagem constituem uma unidade, sugerida pelo traço de união. Os métodos
transmissivos se apoiam nessa proposiçãode que, para ensinar, basta transmitir conhecimento com
um bom método que apresente as informações de forma organizada, partindo do que é mais fácil
para ir avançando em direção ao que for mais difícil, e, para aprender, basta prestar bastante atenção
na informação assim apresentada para fixá-la na memória. Estudar, nesse caso, é retomar a
informação transmitida e ficar repetindo-a para si até memorizá-la.
conhecimento prévio, com uma história, com suas próprias experiências – é como se entre a
informação transmitida e a informação assimilada não houvesse um sujeito que constrói
conhecimento conforme suas reais possibilidades.
De acordo com essa concepção, que o mestre Paulo Freire chamava de bancária, o método é
um modo de transmitir informação para toda e qualquer pessoa, e será tanto mais eficaz quanto
mais funcionar igualmente para qualquer um, de preferência no mesmo tempo. O foco, portanto, é o
ensino do que se pretende ensinar, não é a aprendizagem de pessoas singulares.
Vamos agora considerar uma outra perspectiva: a de que o método é sim um caminho que
leva a um resultado, que quando se trata de um método de alfabetização esse caminho só será
pertinente se considerar verdadeiramente as possibilidades e necessidades dos aprendizes – sejam
crianças ou adultos – e que, tal como nos ensina Antonio Machado, o caminho só se faz ao
caminhar.
Assim considerado, de forma oposta à convencional, um método nada tem a ver com
transmissão de informações de maneira organizada, que se apresentam da mais simples para a mais
complexa, com livros didáticos a serem seguidos linearmente, página a página, tampouco com
propostas prontas a serem realizadas igualmente por todos, no mesmo tempo, mediante as mesmas
intervenções, com expectativas idênticas de desempenho. Ainda mais no processo de alfabetização
inicial...
“De cada um conforme suas possibilidades, a cada um conforme suas necessidades”. Essa
afirmação de Karl Marx, embora a princípio não diga respeito à pedagogia, mesmo que não se tenha
consciência disso é o pressuposto que fundamenta propostas pedagógicas centradas no sujeito da
aprendizagem. Sim. O melhor método para a aprendizagem é aquele que se constitui a partir de
propostas e intervenções pedagógicas ajustadas àqueles para os quais se destina.
Depois de tudo o que pudemos compreender nas últimas décadas sobre como aprendem as
crianças e adultos quando se alfabetizam, esse é o único sentido aceitável ao se falar de um método
de alfabetização: um caminho que se faz ao caminhar, considerando os sujeitos singulares em
processo de aprendizagem, sempre conforme suas possibilidades, sempre conforme suas
necessidades.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS
O fato é que uma abordagem metodológica que privilegia os processos de aprendizagem dos
alunos é incompatível com um modelo prescritivo de passos para apresentar o conteúdo de forma
progressiva mediante uma lógica alheia a eles.
Sim. Porque nesse território o caminho só se faz ao caminhar, e não por uma linha já traçada
previamente conforme critérios externos à vida real que acontece com as pessoas concretas que
protagonizam a cena, instituintes dos processos que vivem, e não apenas por eles instituídas.
PROPOSTAS PERTINENTES
Todo o conhecimento científico produzido nas últimas décadas sobre como as crianças se
alfabetizam, e confirmado pela experiência de muitos professores que assumiram o desafio de
desenvolver uma prática pedagógica focada na aprendizagem, tem nos ensinado que é preciso
trabalhar, cotidianamente, de forma intencional e planejada – sempre em contextos de uso
significativo da leitura e da escrita, em situações diversificadas de letramento – com alguns
procedimentos específicos de alfabetização inicial. São eles:
• Utilizar, nas atividades de “ler para aprender a ler”, não só a decifração, mas também
estratégias de antecipação, inferência, seleção e verificação;
• Ajustar o que sabe que está escrito com a própria escrita (em textos poéticos
conhecidos de cor ou outros que permitam esse tipo de ajuste);
• Desenvolver atenção para o valor sonoro convencional das letras em situações reais
de leitura e escrita de textos;
• Interpretar a própria escrita, justificando as escolhas feitas: por que sobram ou faltam
letras, por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar escrito errado
conforme seu próprio critério;
• Tomar decisões diante dos desafios colocados por essas situações, confiando na
própria capacidade de fazer escolhas e arriscar respostas.
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São procedimentos essenciais para quem se alfabetiza, que devem ser aprendidos em
situações contextualizadas de uso da escrita como, por exemplo, escrever como conseguir, revisar
escritos coletivamente, encontrar palavras em textos poéticos conhecidos e listas que façam sentido
(que são formas de ler). Ou seja, situações-problema de fato desafiadoras – difíceis e possíveis ao
mesmo tempo – potencializadas pela interação em agrupamentos bem formados considerando os
saberes das crianças (e também das pessoas adultas, quando for o caso da alfabetização de adultos)
e suas possibilidades de trabalhar juntas produtivamente. Garantidas essas condições didáticas,
ainda mais se enriquecidas com boas perguntas, que ajudem a pensar e a estabelecer relações entre
o que já sabem e o que precisam saber, os aprendizes – sejam crianças ou adultos– não tardarão a
compreender o princípio alfabético da nossa escrita. Terão, assim, conquistado a alfabetização
inicial – que, embora seja apenas o início de um longo processo de construção de conhecimento,
representa um marco fundamental, um rito de passagem para que possam ler e escrever de forma
independente, com autonomia.
Para compreender a importância de garantir esse tipo de proposta na rotina das turmas de
alfabetização, basta pensar que a participação diária, por no máximo meia hora, em uma única
atividade como essas terá garantido, em 200 dias letivos, 100 horas (cem horas!) de reflexão focada
no funcionamento e nas regras de geração da escrita alfabética.
Mas se, ao contrário, as propostas forem de fazer cópia, treinar sons descontextualizados,
repetir e separar sílabas, reproduzir palavras com sílabas trabalhadas, formar frases, exercitar a
coordenação motora e outros procedimentos previstos pelos métodos convencionais, na prática isso
significará, a um só tempo, desconsiderar o conhecimento hoje disponível sobre os processos de
alfabetização, tratar as crianças com desrespeito intelectual, artificializar o processo de iniciação no
mundo da escrita, roubar delas um tempo precioso e, assim, retardar a sua aprendizagem.
O que hoje sabemos sobre a alfabetização inicial – no que diz respeito à correspondência
fonema-grafema – indica, entre muitas, duas evidências importantes. Uma é que o conteúdo central,
nesse caso, é o princípio alfabético da escrita em português, um tipo de conteúdo conceitual
bastante complexo. E outra é que os demais conteúdos, necessários para compreender esse princípio
abstrato (que pressupõe, por exemplo, que partes não ouvidas isoladamente sejam representadas na
escrita), são os procedimentos específicos descritos acima, todos de análise e reflexão sobre a
língua, e não de memorização de unidades isoladas para juntar depois.
Não é mais possível seguir desprezando essas evidências já bem antigas e continuar tratando
os conteúdos da alfabetização (isto é, tudo o que a criança precisa aprender), que não são nada
simples, como se fossem meras informações a se fixar na memória.
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• como criar situações que aproximem, o máximo possível, “versão escolar” e “versão
social” das práticas e dos conhecimentos que se convertem em conteúdos
curriculares;
Nesse sentido, pode-se dizer que o conhecimento para a docência, que é eminentemente
didático, é o conhecimento do como, relacionado às formas de ensinar mais e melhor, ou seja, a
uma intervenção pedagógica de qualidade.
Uma breve análise desse conjunto de saberes, nem sempre abordado suficientemente nas
ações de formação inicial e continuada, permite compreender por que a formação de professores
deve ser uma ação estratégica e prioritária para a qualidade do ensino e, portanto, ocupar um lugar
central nas políticas públicas para a educação.
Por melhores que sejam, nenhum sistema apostilado, nenhum livro didático, nenhum acervo
de materiais, nenhum currículo, nenhum sistema de avalição, nenhum mecanismo de
monitoramento e controle serão capazes, mesmo em conjunto, de substituir o conhecimento
profissional dos professores, que só se pode conquistar com propostas adequadas de formação
inicial e continuada.
São propostas que, do ponto de vista do conteúdo, garantem os saberes necessários para a
docência e, do ponto de vista da forma, se apoiam na mesma perspectiva metodológica
recomendada para as práticas docentes – isto é, propostas, também no caso dos profissionais,
ajustadas aos sujeitos para os quais se destinam. Afinal, em qualquer caso, de cada um conforme
suas possibilidades, a cada um conforme suas necessidades.
Esse tipo de abordagem pressupõe identificar quais são as lacunas de conhecimento que
apresentam os professores, o que se coloca como questões para eles, que desafios e dilemas
enfrentam no trabalho com os alunos. E pressupõe organizar os conteúdos da formação
considerando essas demandas reais, por meio de metodologias ativas que coloquem os professores,
de fato, no centro do processo formativo – e não situações transmissivas em que são meros
receptores de informação – em contextos favoráveis para a aprendizagem colaborativa, a parceria, o
fortalecimento do coletivo e o desenvolvimento do sentido de comunidade. Pressupõe, para tanto,
formadores capazes de colocar em prática essas propostas. Pressupõe, portanto, um amplo processo
de formação de formadores.
Como podemos ver, não há soluções simples para os complexos desafios que temos nesse
território.
REFERÊNCIAS
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.
MACHADO, Antonio. Poesías completas. [S.l.]: Ed. Madri – Espasa Calpe, 1973.
MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.
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Notas de fim
i
Nesta obra paradigmática, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky utilizam a psicolinguística contemporânea e a teoria de
Piaget para demonstrar como a criança constrói diferentes hipóteses sobre o sistema de escrita, antes de chegar a
compreender as hipóteses de base da escrita alfabética, oferecendo um subsídio único para professores, psicopedagogos,
linguistas e todos aqueles preocupados com a qualidade da aprendizagem (Conforme Google Books).