Anais ENDIPE 2020

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ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO

Didática(s) entre diálogos,


insurgências e políticas

Giseli Barreto da Cruz


Claudia Fernandes
Helena Amaral da Fontoura
Silvana Mesquita
(Organizadoras)
ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO

DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Giseli Barreto da Cruz


Claudia Fernandes
Helena Amaral da Fontoura
Silvana Mesquita
(Organizadoras)
ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO
O XX ENDIPE – RIO - 2020 É UMA ORGANIZAÇÃO
CONJUNTA DAS SEGUINTES INSTITUIÇÕES:
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
Universidade Federal Fluminense – UFF
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ
Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ
Universidade Estácio de Sá – UNESA
Universidade Católica de Petrópolis – UCP
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio
Instituto Benjamim Constant – IBC
Instituto Nacional de Educação de Surdos – INES
Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro – ISERJ

COORDENAÇÃO GERAL COORDENAÇÃO EMÉRITA


Giseli Barreto da Cruz – UFRJ Vera Maria F. Candau – PUC-Rio
Claudia Fernandes – UNIRIO

COMITÊ
COMITÊ ORGANIZADOR SECRETARIA
Andrea Vilella Mafra da Silva – ISERJ Helena Amaral da Fontoura – FFP/UERJ
Antonio Flavio Barbosa Moreira – UCP Silvana Soares de Araújo Mesquita – PUC-Rio
Claudia Miranda – UNIRIO
Débora Barreiros – UERJ
Edméa Oliveira dos Santos – UFRRJ PRODUÇÃO EXECUTIVA
Inês Barbosa de Oliveira – UNESA Cristina Lucia Lima Alves – EB/SME-Rio
Luis Paulo Cruz Borges – EB/CAp-UERJ Fernanda Lahtemaher Oliveira – EB/CAp-UFRJ
Maria das Graças C. A. Nascimento – UFRJ Leticia Costa da Silva Mesquita – Graduanda IQ/UFRJ
Maria Inês Marcondes – PUC-Rio Leticia Oliveira Souza – EB/SME-Araruama
Mônica Vasconcellos – UFF Luis Paulo Cruz Borges – EB/CAp-UERJ
Naiara Miranda Rust – IBC Talita da Silva Campelo – EB/SME-Caxias (Coord.)
Patrícia Bastos de Azevedo – UFRRJ
Sandra Maciel – UFF APOIO TÉCNICO
Talita Vidal Pereira – FEBF/UERJ Alessandra do Nascimento dos Santos Moraes
Vania Finholdt Angelo Leite – FFP/UERJ Guilherme de Azeredo Coelho
Yrlla Ribeiro de Oliveira C. Silva – INES Larissa da Cunha Gama

COMITÊ CIENTÍFICO
Alexandra Garcia Ferreira Lima – FFP/UERJ Maria das Graças C. A. Nascimento – UFRJ
Ana Ivenicki – UFRJ Maria Inês Marcondes – PUC-Rio
Andrea Rosana Fetzner – UNIRIO Naiara Miranda Rust – IBC
Adriana Hoffman – UNIRIO Patricia Raquel Baroni – UFRJ
Anelise Monteiro do Nascimento – UFRRJ Rosanne Dias Evangelista – UERJ
Antonio Flavio Barbosa Moreira – UCP Talita Vidal Pereira – FEBEF/UERJ
Carmen Teresa Gabriel Le Ravallec – UFRJ Vania Leite – FFP/UERJ
Claudia Fernandes – UNIRIO Vera Maria F. Candau – PUC-Rio
Edméa Oliveira dos Santos – UFRRJ Victor Giraldo – UFRJ
Giseli Barreto da Cruz – UFRJ Walcéa Barreto Alves – UFF
Graça Regina Reis – EB/CAp-UFRJ Wânia Gonzalez – UNESA
Inês Barbosa de Oliveira – UNESA Yrlla Ribeiro de Oliveira C. Silva – INES
Marcia Denise Pletsch – UFRRJ
ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO

DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Giseli Barreto da Cruz


Claudia Fernandes
Helena Amaral da Fontoura
Silvana Mesquita
(Organizadoras)

XX ENDIPE – RIO 2020


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

F82

Didática(s) entre diálogos, insurgências e políticas / organização: Giseli Barreto da Cruz; Claudia
Fernandes; Helena Amaral da Fontoura; Silvana Mesquita. - 1. ed. - Rio de Janeiro/Petrópolis: Faperj;
CNPq; Capes; Endipe /DP et Alii, 2020.
641 p. E-book

Inclui bibliografia
digital
ISBN 978-85-8427-051-4

1. Educação - Didática - Brasil. 2. Professores - Pesquisa 3. Prática de Ensino. 4. Encontro Nacional de


Didática e Prática de Ensino. 5. Título.

16-36253 CDD: 370.71

CDU: 37.02

20/07/2020

XX ENDIPE - 2020
Avenida Pasteur, 250 – Urca – 22290-902
RIO DE JANEIRO – RJ – BRASIL
Tel: (21) 2542-2281
E-mail: [email protected]
Homepage: http://www.xxendiperio2020.com.br/home

Rio de Janeiro
2020
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO - 10
PARTE 1

TENSÕES E PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO COM


FORMAÇÃO DOCENTE

“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO


INSTITUCIONAL POSSÍVEL - 21
Carmen Teresa Gabriel (UFRJ)

ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E


RESISTÊNCIAS - 36
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)

ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E DISPUTAS NA


FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE - 49
Flavia Medeiros Sarti (UNESP)

BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E


DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO - 61
Lucília Augusta Lino (ANFOPE)

E QUANDO A LEI N. 10.639 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E


EPISTÊMICA? - 79
Luiz Fernandes de Oliveira (UFRRJ)

O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?


Marli André (PUC/SP) - 107

OUVIR, APRECIAR, CANTAR, TOCAR: EXPERIÊNCIAS MUSICAIS ARREBATADORAS NA


FORMAÇÃO DE PROFESSORES - 118
Monique Andries Nogueira (UFRJ)

A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA:


TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES - 128
Patricia Cristina Albieri de Almeida (FCC)

PARTE 2

TENSÕES E PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO COM


CURRÍCULO E AVALIAÇÃO

O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM - 145


Claudia de Oliveira Fernandes (UNIRIO)

MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO? - 155


Guilherme de Alcantara (UFMG)
UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!! A IMPORTÂNCIA DAS ARTES CÊNICAS NA FORMAÇÃO HUMANA
- 166
Márcia Strazzacappa (UNICAMP)

POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES


FORMATIVAS E... O QUE HÁ NO MEIO DO CAMINHO? - 181
Rita de Cássia Prazeres Frangella (ABdC)

AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA


GESTÃO DA EDUCAÇÃO - 194
Sandra Zakia Sousa (USP)

AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS -


207
Walkiria Rigolom (SEE/SP)

PARTE 3

TENSÕES E PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO EM


DIREITOS HUMANOS, INTERCULTURALIDADE E RELIGIÕES

MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS - 227


Andréa Borges de Medeiros (SME/JF)

O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR: CONTENDAS ENTRE OS CAMPOS DA


EDUCAÇÃO, DA POLÍTICA E DA RELIGIÃO - 244
Andréia Martins (UFPI)

O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE


CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE - 257
Givânia Maria da Silva (UnB/CONAQ)

QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS? UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR OS


DESAFIOS DAS PAUTAS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS NO BRASIL EM
TRAVESSIA - 269
Paulo Cesar Carbonari (ISFB)

PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS - 283


Reinaldo Matias Fleury (UFSC)

A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL


SOBRE ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS CONTINUA? - 299
Roseli Fischmann

PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS - 315


Susana Sacavino (NOVAMERICA)
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA” NOTAS
COM CRIANÇAS DE TERREIROS PARA METODOLOGIAS ANTIRRACISTAS - 337
Stela Guedes Caputo (UERJ)

PARTE 4

TENSÕES E PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO ENTRE


NOVAS EPISTEMOLOGIAS, BIODIVERSIDADE, DIFERENÇA, DEMOCRACIA E INCLUSÃO

CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS. PELO CONTRÁRIO, SÃO
QUALIDADES POSITIVAS: SUPERANDO A HEGEMONIA VIDENTE PARA UMA PRÁXIS
INCLUSIVA DE ENSINO - 350
Eder Pires de Camargo (UNESP)

CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS EM CONTEXTOS


EDUCACIONAIS, SOCIAIS, POLÍTICOS E EPISTÊMICOS PLURAIS - 362
Inês Barbosa de Oliveira (UNESA)

DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA – “DIÁLOGOS ENTRE A


FILOSOFIA DE SPINOZA E SABERES DE POVOS INDÍGENAS BRASILEIROS” - 381
Léa Tiriba (UNIRIO)

A BROTAÇÃO DAS COISAS: PROCESSOS E TÁTICAS PARA ENCONTROS ENTRE ARTE E


AGROECOLOGIA COM ALUNOS SURDOS - 394
Lucia Vignoli (INES)

NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO,


INSURGÊNCIAS E FAZERES POLÍTICOS - 401
Marcio Caetano (FURGS)

BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS: NECESSÁRIAS INSURGÊNCIAS PARA A


COMPREENSÃO DE SI E DO MUNDO AO DESCOLONIZAR O CURRÍCULO - 414
Marco Antonio Leandro Barzano (UEFS)

PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA - 424


Maria Amélia Santoro Franco (UNISANTOS)

AS INFÂNCIAS DA DEMOCRACIA E A DEMOCRACIA (ATRAVÉS) DA INFÂNCIA - 440


Renato Noguera (UFRRJ)

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E


TAPEBA - 449
Rita Gomes (SEE-Ceará)

UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO... (OU SOBRE ALGUMAS PALAVRAS TITUBEANTES EM


TORNO DE UMA PEDAGOGIA NAS DIFERENÇAS) - 457
Tiago Ribeiro (INES)
EDUCAÇÃO E PODER: PEDAGOGIAS EMANCIPADORAS E A INSURGÊNCIA DA ESCOLA
DEMOCRÁTICA - 464
Umberto de Andrade Pinto (UNIFESP)

PARTE 5

TENSÕES E PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO ENTRE EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E


TECNOLOGIAS

A CULTURA VISUAL E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS: QUESTÕES PARA REFLEXÃO - 472


Adriana Hoffmann (UNIRIO)

CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA:


A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS EDUCATIVAS NA RELAÇÃO CIDADECIBERESPAÇO - 482
Edméa Santos (UFRRJ)

PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA NA MÍDIA-EDUCAÇÃO - 499


Gilka Girardello (UFSC)

CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS - 506


Katia Morosov Alonso (UFMT)

DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS DA


MOBILIDADE E DA UBIQUIDADE - 520
Lucila Pesce (UNIFESP)

VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA DA ESCOLA E A


MEMÓRIA DA FAVELA - 532
Marta Guedes (SME-Rio)

CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS


EM MEIOS DIGITAIS ENQUANTO DURAR A SITUAÇÃO DE PANDEMIA DA COVID-19” - 548
Tânia Maria Hetkowski (UNEB)

PARTE 6

TENSÕES E PERSPECTIVAS NA RELAÇÃO ENTRE


INFÂNCIAS, JUVENTUDES E VIDA E ADULTA

ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E


NARRATIVAS INFANTIS - 561
Ana Paula Venâncio (ISERJ)

POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO - 574


Cecília Maria Aldigueri Goulart (UFF)
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE,
PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA NA CLASSE DE ALFABETIZAÇÃO DO CIEP GREGÓRIO
BEZERRA - 591
Cyntia Kelly Menezes da Silva Burguinhão (SME-Rio-PEJA)

EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA: DESCOLONIZAÇÃO DE SABERESCOMO FORMA DE


INSURGÊNCIA - 602
Ivanilde Apoluceno de Oliveira (UEPA)

PRÁTICAS FORMATIVAS DE COLETIVOS JUVENIS UNIVERSITÁRIOS E DE OCUPAS DE


ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO - 612
Luís Antonio Groppo (UNIFAL/MG)

A INFÂNCIA NOS TEMPOS DE CÓLERA - 622


Maria Cristina Soares de Gouvês (UFMG)

DE CADA UM CONFORME SUAS POSSIBILIDADES, A CADA UM CONFORME SUAS


NECESSIDADES – O ÚNICO MÉTODO POSSÍVEL PARA ALFABETIZAR - 632
Rosaura Soligo (ABAPURU)
APRESENTAÇÃO
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E
POLÍTICAS

É possível, urgente e necessário mudar a ordem das coisas.


Paulo Freire
APRESENTAÇÃO

Em tempos tão desafiadores, organizar um livro com textos que buscam didáticas outras,
formas de pensar e fazer a educação escolar de maneiras insurgentes, diferentes, nos pareceu de
grande importância e compromisso com a área e com nossos(as) colegas professores(as),
especialmente aos colegas da educação básica.

Todos os textos aqui presentes foram elaborados a partir de um convite por ocasião da
realização do XX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino (XX Endipe-Rio). Os textos
foram escritos a partir dos temas para os quais os simposistas foram convidados, mas vão além de
suas falas no evento, portanto não se configura, esse livro, em anais de Endipe. Nossa ideia foi
produzir um livro que trouxesse reflexões sobre a Didática e as Práticas de Ensino com temas
contemporâneos e urgentes.

A produção do livro se deu em meio às incertezas trazidas pela pandemia mundial causada
pela Covid-19. Os desafios para sua produção foram enormes, inclusive para os autores que
buscaram inspiração, muitos já em isolamento social em suas casas. Esperamos que sua leitura seja
tão instigante e desafiadora quanto foi sua produção.

Este e-book apresenta diversas pesquisas na área de Educação, de profissionais


comprometidos com fazeres e saberes, construções comprometidas com uma sociedade mais
democrática, inclusiva, plural, mais criativa em encontrar soluções urgentes para que o mundo se
torne um lugar melhor para se viver. Nesse contexto tão complexo e desafiador, no qual estamos
inseridos, desejamos que a educação escolar oferecida possa ser mais irreverente, criativa, atentas
às mudanças necessárias para um viver mais responsável, saudável e feliz entre os seres humanos.

A parte 1, intitulada Tensões e perspectivas na relação com a formação docente, traz


trabalhos que falam de Didática, Prática de Ensino, políticas de formação docente, estágio, Pibid e
Residência Pedagógica, Base Nacional Comum Curricular, em uma perspectiva de propostas de
construção e resistência. Essa parte inicia com o texto de Carmen Teresa Gabriel, intitulado
“Complexo de Formação de Professores: notas sobre um ‘novo’ arranjo institucional possível”, que
apresenta a postura epistêmica que embasa a política de construção do Complexo de Formação de
Professores (CFP/UFRJ), desvelando propostas e possíveis encaminhamentos para a formação
docente, em uma lógica de articulação entre instâncias formativas, que percebe a docência como
profissão que não se reduz à transmissão, mas que consiste em produção envolvendo articulação
entre diferentes saberes.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 11


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A seguir, Elizeu Clementino de Souza escreve o texto “Entre(ver) a formação: diálogos


implicados sobre (auto)biografia e resistências”, que discute pesquisa (auto)biográfica, destacando
modos de trabalhar o tema, a partir de rede de pesquisa com narrativas, no campo da formação
inicial e continuada de professores, destacando proposições e desafios formativos e autoformativo,
analisando as narrativas como dispositivo de pesquisa-formação, no contexto da aprendizagem da
docência e do desenvolvimento profissional.

O texto de Flavia Medeiros Sarti, intitulado “Estágio, Pibid e Residência Pedagógica: entre
convergências e disputas na formação inicial docente” discute os temas presentes no título, tanto os
dois programas federais como o estágio e suas especificidades, diferenciando o que cada um dos
três espaços formativos traz de legislação específica e de área de atuação dentro do campo da
formação docente, questionando o produtivismo associado aos programas governamentais,
enfatizando a necessidade de estratégias efetivas de enfretamento dos problemas identificados no
desenvolvimento dos estágios supervisionados no país.

O texto de Lucília Augusta Lino, “Base Nacional Comum da formação como proposta de
desmonte e descaracterização da formação” desvela o papel da Associação Nacional pela Formação
dos Profissionais da Educação (Anfope), que defende a educação pública, gratuita, laica, estatal,
universal e inclusiva, democrática e republicana, de qualidade socialmente referenciada nas
necessidades formativas das crianças, jovens e adultos brasileiros, comprometida com a proposição
de políticas públicas de formação de professores e de valorização do magistério, ancorada nas lutas
e movimentos dos educadores, reforçando a necessidade de resistência dos profissionais da
Educação.

Luiz Fernandes de Oliveira escreveu o texto “E quando a Lei n. 10.639 acabar, o que fazer?
Insurgência política e epistêmica?”, que discute a conjuntura política e econômica do Brasil após as
últimas eleições presidenciais, apontando para o nível de denúncia, a ser superado pelas ações,
especialmente em temas como o antirracismo nas escolas, nas universidades e nos espaços
comunitários, apontando para caminhos insurgentes de reconhecimento e superação de situações de
invisibilização.

Marli André traz em seu título uma pergunta: “O que dizem as pesquisas sobre inserção
profissional docente?”, suscitando a discussão de questões relacionadas à inserção profissional
docente, discorrendo como o grupo de pesquisa por ela coordenado vem investigando este assunto;
para tal retoma os dados do último projeto de pesquisa desenvolvido pelo grupo, indicando os
principais questionamentos que dele emergiram, trazendo ainda proposições para novos estudos.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
APRESENTAÇÃO

O texto de Monique Andries Nogueira, “Ouvir, apreciar, cantar, tocar: experiências musicais
arrebatadoras na formação de professores”, apresenta experiências musicais ocorridas em curso de
Pedagogia, como idas a concertos e ensaios abertos e composição musical de raps com temas do
cotidiano, que se revelaram experiências formativas potentes.

Finalizando essa parte, temos o texto de Patricia Cristina Albieri de Almeida, intitulado “A
Didática Fundamental na perspectiva da Educação Inclusiva: tensões, fragilidades e possibilidades”,
no qual a autora revisita obras fundantes no movimento que pensou a Didática e que está na origem
dos Endipes, observando que questões que estavam em pauta no início ainda merecem nossa
atenção, especialmente a necessária articulação do método didático em oposição à segmentação,
focando na educação inclusiva.

A parte 2, intitulada Tensões e perspectivas na relação com currículo e avaliação, apresenta


trabalhos que falam de políticas de currículo e de avaliação para a educação básica, tecendo
diálogos entre Didática, Currículo e Avaliação nos diferentes níveis de ensino e nas diferentes
áreas. O artigo que abre esta parte é de Claudia Fernandes e se intitula “O desafio é transformar a
avaliação em um projeto de aprendizagem”, em que a autora propõe pensar a partir da possibilidade
de uma avaliação não neutra nem objetiva que organize e reorganize os processos de aprendizagem,
de forma que ela própria, a avaliação, torne-se aprendizagem em relação direta com a concepção do
sistema avaliativo, seus instrumentos e sua metodologia, contemplando inclusive a autoavaliação.

O segundo texto, “Mudar as escolas sem mudar a avaliação?”, de Guilherme de Alcantara,


propõe uma discussão sobre o lugar da avaliação nos movimentos de transformação e conservação
da organização e das práticas político-pedagógicas em um estabelecimento de ensino, sem defender
ou criticar nem analisar instrumentos ou inovações pedagógicas , mas sim contribuir para a reflexão
sobre o lugar na avaliação naquela organização escolar.

Márcia Strazzacappa escreveu o texto a seguir, intitulado “Um, dois, três... E já!!
A importância das Artes Cênicas na formação humana”, que propõe uma mudança de paradigma
em relação à relevância das artes cênicas na formação humana, especificamente o teatro e a dança,
linguagens artísticas nas quais o corpo é o centro, da educação infantil aos estudos universitários,
destacando a urgência de tomada de atitude diante das conjunturas atuais.

O trabalho de Rita de Cássia Prazeres Frangella, “Políticas curriculares, formação de


professores, (im)possibilidades formativas e... o que há no meio do caminho?”, alimenta um debate
necessário e urgente sobre propostas para a educação básica relacionadas a propostas sobre

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 13


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

formação de professores, a saber BNC-formação, BNCC, na busca pela superação de binarismos e


por uma educação democrática.

Sandra Zakia Sousa, em artigo intitulado “Avaliação e Currículo: delineamentos e


tendências de uma interação na gestão da educação”, traz considerações sobre avaliação e currículo
da escola básica com foco em iniciativas do governo federal, implementadas no Brasil, que tendem
a se materializar com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

O texto de Walkiria Rigolom, “As múltiplas (con)figurações da ação pedagógica:


insurgências possíveis”, fecha esta segunda parte, com a análise das repercussões das tensões,
contradições, bem como as perspectivas de insurgências nos fazeres-saberes pedagógicos, a partir
da retrospectiva da trajetória profissional de uma professora alfabetizadora ao longo de mais de três
décadas como docente na educação básica da rede pública estadual paulista.

A parte 3, intitulada Tensões e perspectivas na relação em Direitos Humanos,


interculturalidade e religiões, fala dos desafios das pautas da educação em/para os direitos
humanos nos diversos níveis de ensino, da interculturalidade presente nos diálogos entre
universidade, escola e movimentos sociais, questões sobre racismo, antirracismo, culturas religiosas
e laicidade, temas desafiadores para a Didática e as práticas de ensino. O primeiro texto desta parte,
de autoria de Andréa Borges de Medeiros, intitula-se “Movimentos de revisão curricular: interações
possíveis”, no qual a autora narra, a partir de sua inserção profissional na gestão pública municipal
da Secretaria de Educação de Juiz de Fora, o processo de reconstrução curricular motivado pelo
movimento para a “implementação” da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tecendo fios a
partir da entrada em cena de escolas, de movimentos sociais, da universidade e das equipes
formadoras da secretaria de educação.

A seguir temos o texto “O ensino religioso como disciplina escolar: contendas entres os
campos da educação, da política e da religião”, de Andréia Martins, que problematiza as buscas das
instituições religiosas e políticas pela implementação do Ensino Religioso como uma disciplina
escolar, atentando para a importância de pensarmos a formação de professores e os concursos
públicos para essa “nova disciplina escolar” e como a mesma será trabalhada nas escolas públicas.

Givânia Maria da Silva apresenta o texto “O papel da educação escolar quilombola na


gestão do território de Conceição das Crioulas/PE”, no qual apresenta a trajetória de uma escola
quilombola que mudou os marcos normativo do município de Salgueiro/PE, trazendo que a escola
pode ser considerada como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra e na

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
APRESENTAÇÃO

luta por direitos, assegurando que as diferenças dos indivíduos sejam respeitadas, sem serem
anuladas ou omitidas.

A seguir, Paulo Cesar Carbonari escreve o texto “Qual educação em Direitos Humanos?
uma contribuição para pensar os desafios das pautas da educação em direitos humanos no Brasil em
travessia” , que pontua os desafios das pautas da educação em direitos humanos na educação básica
e superior nos dias atuais, considerando o contexto no qual este debate está inserido, retomando
elementos do contexto atual apontando para desafios na travessia.

Reinaldo Matias Fleury, no texto “Paulo Freire e as cosmovisões dos povos originários”,
retoma estudos anteriores sobre as possíveis relações do pensamento freireano com os princípios
não coloniais inerentes às cosmovisões dos povos originários, que resistem e reexistem aos
genocídios e epistemicídios perpetrados no mundo de Abya Yala pelos processos colonizatórios nos
últimos cinco séculos.

No trabalho intitulado “A ADI 4439/DF no Supremo Tribunal Federal: a controvérsia


constitucional sobre ensino religioso nas escolas públicas continua?”, Roseli Fischmann traz dados
obtidos e vividos com relação ao debate histórico em torno do ensino religioso em escolas públicas,
tendo em vista a presença na Constituição Federal de 1988, após intenso e forte debate público, de
dispositivo que propõe que a oferta de ensino religioso seja obrigatória para as escolas públicas,
garantida a matrícula facultativa para os alunos e alunas.

A seguir, o texto “Práticas educativas insurgentes, decoloniais e interculturais” de Susana


Sacavino, que defende um projeto intercultural e decolonial de universidade e de instituições de
educação, que, ao propor rupturas com a fragmentação do saber, se define como promotor de um
currículo que requer uma permanente e disciplinada pesquisa e reflexão epistemológica sobre os
conhecimentos coletivos, em relação dialética com os conhecimentos científicos.

Fechando esta parte, temos o texto de Stela Guedes Caputo, “No coração de Xangô tem um
tambor de fogo. Parecia uma guerra”: notas com crianças de terreiros para metodologias
antirracistas” que compartilha narrativas de crianças como forma de pensar na interseccionalidade:
raça/classe/gênero/religião, desafiando a escola a pensar em como aprender com diversas
religiosidades dos alunos e alunas e, ao mesmo tempo, assegurar uma educação laica.

A parte quatro, intitulada Tensões e perspectivas na relação entre novas epistemologias,


biodiversidade, diferença, democracia e inclusão, traz trabalhos que priorizam práticas educativas
emancipatórias e democráticas a partir de uma perspectiva insurgente, lançando mão de novas

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 15


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

epistemologias para pensar tensões e desafios educacionais no contexto atual de diversidade,


inclusão e alteridade. Esta parte inicia com o texto de Eder Pires de Camargo, intitulado “Cegueira
e baixa visão não são doenças nem defeito, pelo contrário, são qualidades positivas: superando a
hegemonia vidente para uma práxis inclusiva de ensino”, que trata da necessidade da práxis
inclusiva reconhecer a cegueira e a baixa visão como qualidades positivas e não como doenças ou
defeito, apontando que perceber as relações entre alunos videntes, cegos e com baixa visão
contribuirá para a construção de ambientes de ensino/aprendizagem acessíveis, metodologias
interativas/participativas, atividades experimentais multissensoriais, avaliações diagnósticas e
formativas.

A seguir, Inês Barbosa de Oliveira escreve “Conhecimento e democracia: possibilidades


emancipatórias em contextos educacionais, sociais, políticos e epistêmicos plurais”, em que aborda
a pluralidade político-epistemológica do mundo em práticas políticas, artísticas e sociais; a partir do
debate sobre novas epistemologias, o texto explora contextos insurgentes de democracia
nos/dos/com (re)conhecimentos que foram negados e invisibilizados na modernidade.

O texto de Léa Tiriba, “Desemparedar em busca de uma pedagogia nativa ‘diálogos entre a
filosofia de Spinoza e saberes de povos indígenas brasileiros’”, propõe um diálogo entre as práticas
tupinambá de educação infantil, os conceitos da filosofia de Baruch Espinosa e a visão de mundo de
etnias indígenas brasileiras, apontando questões que desafiam a criação e o exercício de
metodologias de formação decoloniais teórico-brincantes, com vistas a insurgir e reinventar a
escola.

Lucia Vignoli apresenta o artigo intitulado “A brotação das coisas: processos e táticas para
encontros entre arte e agroecologia com alunos surdos”, trazendo o tema da diversidade e práticas
insurgentes na perspectiva da surdez; a partir da narrativa de experiências e práticas desenvolvidas
com crianças e jovens surdos, o texto aponta as relações dialógicas e decoloniais como formas
possíveis para a tessitura e (re)significação do conhecimento escolar.

Marcio Caetano escreve o texto “Neoconservadorismo e suas implicações à democracia:


educação, insurgências e fazeres políticos”, em que apresenta uma discussão político-midiático em
torno das políticas de identidades e suas tensões e acordos nos fazeres da educação, iluminando um
debate sobre o emaranhado político na qual os projetos de Brasil são inseridos no meio digital em
tempos de neoconservadorismos.

O trabalho de Marco Antonio Leandro Barzano, “Biodiversidades em novas epistemologias:


necessárias insurgências para a compreensão de si e do mundo ao descolonizar o currículo”, trata da
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
APRESENTAÇÃO

descolonização dos saberes e dos currículos com suporte em pesquisas no campo da Educação
Ambiental, das Relações Étnico-Raciais e da Educação Quilombola, evidenciando possibilidades no
incremento de insurgências e insubordinações capazes de promover currículos descolonizadores
desde a educação infantil à universidade, com saberes, didáticas e práticas educativas que
promovem uma educação para o/no cuidado de todas as formas de vida.

Maria Amélia Santoro Franco escreve “Pedagogia crítica: a radicalidade da dialética


dominação-resistência”, em que propõe uma leitura crítica das práticas pedagógicas procurando
responder: quais os princípios e possibilidades de uma pedagogia crítica em tempos neoliberais?
Como a pedagogia crítica pode fazer emergir práticas insurgentes, especialmente na escola pública?

O texto de Renato Noguera, “As infâncias da democracia e a democracia (através) da


infância”, trata de um ensaio especulativo a respeito das relações entre democracia e infância,
concebendo a infância como um modo de conhecimento e enfatizando a emancipação e a prática
participativa em contextos educacionais.

A seguir temos o artigo “Práticas pedagógicas emancipatórias em EEI: experiências


escolares tremembé e tapeba”, de Rita Gomes, que apresenta experiências curriculares das escolas
indígenas do Ceará, acionadas como importantes demarcadores da presença indígena no estado,
definindo os contornos dos territórios e se constituindo como práticas de construção de
insurgências, resistências e autonomias.

Tiago Ribeiro, em trabalho intitulado “Uma carta sobre inclusão... (ou sobre algumas
palavras titubeantes em torno de uma pedagogia nas diferenças)”, apresenta o formato de um texto-
carta que compartilha uma experiência vivida no cotidiano com estudantes jovens e adultos de uma
escola especializada na educação de surdos, objetivando convidar o leitor a pensar sobre inclusão e
alteridade, problematizando uma suposta necessidade de estar formado, preparado, capacitado para
incluir.

O texto que encerra a parte quatro, de Umberto de Andrade Pinto, “Educação e poder:
pedagogias emancipadoras e a insurgência da escola democrática”, resgata o debate sobre as
relações entre educação e política, posicionando a pedagogia crítica como uma referência teórica
fértil para os dias de hoje, capaz de articular organicamente a educação emancipadora com o papel
da escola na perspectiva de construção de uma sociedade efetivamente democrática.

A parte cinco, intitulada Tensões e perspectivas na relação entre educação, comunicação e


tecnologias, aborda a temática da cibercultura, culturas visuais, cinema e saberes digitais no

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 17


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

contexto da Educação Básica e da Pedagogia universitária. O primeiro texto de Adriana Hoffmann,


“A cultura visual e as práticas educativas: questões para reflexão”, trata da relação entre imagem e
educação, refletindo sobre como os professores usam e, até mesmo, criam com os elementos da
visualidade no seu cotidiano, e parte do pressuposto que trabalhar com e sobre imagens pode ajudar
a contextualizar os efeitos do olhar e, com práticas críticas, a explorar as experiências em torno de
como o que vemos nos conforma, podendo levar a elaborar respostas não reprodutivas.

A seguir, o artigo de Edméa Santos, “Caminhar ubíquo como dispositivo de pesquisa-


formação na cibercultura: a insurgência de práticas educativas na relação cidadeciberespaço”,
aponta que pesquisar na cibercultura é buscar compreender o nosso tempo, seus fenômenos
científicos, tecnológicos, artísticos, comunicacionais, antropossociais e culturais, mais
especificamente ligados aos processos formativos; a autora opta por falar das lutas, de invenções de
pesquisa e formação nesse contexto, procurando cartografar diferentes saberes digitais.

Gilka Girardello, em seu texto “Para pensar imagem, imaginação e crítica na mídia-
educação”, retoma algumas possíveis relações entre imagem, imaginação e a dimensão crítica da
mídia-educação, no âmbito da cultura visual contemporânea, se orientando pela questão: Como
podemos distinguir entre usos encarceradores e usos emancipadores da imagem?, refletindo sobre a
necessidade de se trazer imagens para pensar, mais que para ilustrar, reconhecendo que as imagens
são geradoras, que desencadeiem, que inspirem, que produzam fios de narrativas e teçam pontes
com a memória.

O texto de Katia Morosov Alonso, “Cultura digital, o escolar e a didática: juntos


aprendemos”, trata de um repensar do processo educativo naquilo que lhe concerne enquanto
instituído, apontando implicações profundas no modo de organizar a escola, os processos
formativos e as relações que aí se estabelecem, a partir de um diálogo com os processos de ensinar e
aprender na cultura digital, a partir da chegada das TIC nas escolas.

Lucila Pesce escreve o artigo “Docência universitária e cultura digital: contribuições e


desafios da mobilidade e da ubiquidade”, em que apresenta um estudo teórico-conceitual sobre a
docência universitária em tempos de cultura digital adotando como principal referência a
perspectiva dialógica freireana; temas como cultura digital, mobilidade, ubiquidade são abordados,
assim como um debate sobre a integração dos dispositivos móveis em rede aos processos
formativos entre estudantes e docentes do ensino superior.

O trabalho de Marta Guedes, “Vidigal: exercícios de pensamento: O projeto de cinema da


escola e a memória da favela”, apresenta os resultados de um projeto de integração da pesquisa com
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
APRESENTAÇÃO

as ações de ensino a partir da criação de escolas de cinema em escolas de Educação Fundamental. O


objetivo do projeto é realizar e investigar a iniciação ao cinema por parte professores e estudantes
dentro e fora da escola básica.

Tânia Maria Hetkowski escreve o texto “Cibercultura e Tecnologias: substituição das aulas
presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Covid-19”, em
que problematiza a imersão na cultura digital e o uso dos instrumentos tecnológicos diante do
isolamento imposto por uma pandemia mundial, sugerindo repensar as formas de se comunicar,
trabalhar, conviver, ensinar e aprender, diante do uso desenfreado e necessário das tecnologias
digitais e dos serviços online e o uso das TIC na educação.

Conclui-se esse livro com a parte seis, intitulada Tensões e perspectivas na relação entre
infâncias, juventudes e vida e adulta, que traz desde análises críticas da realidade até a socialização
de práticas insurgentes identificadas nos contextos da educação infantil, da alfabetização, da
educação de jovens e adultos. Estão presentes textos que proporcionam reflexões sobre a educação
em diferentes fases da vida e suas formas de insurgências cotidianas. O primeiro texto da parte seis
é de Ana Paula Venâncio, “Alfabetização antirracista: movimentos de pensamentos, experiências e
narrativas infantis”, que adota uma escrita narrativa em interlocução com as crianças que integram
os resultados de uma produção investigativa na sala de aula, espaçotempo na qual a pesquisa é
tecida. O que pensam as crianças sobre racismo? O que sabem sobre isso? O que sentem? são
debates trazidos no texto que se propõe a refletir sobre a alfabetização antirracista nas narrativas
infantis.

A seguir, Cecília M. A. Goulart traz o trabalho intitulado “Por uma sociedade democrática: o
processo de alfabetização”, no qual apresenta aspectos da história da alfabetização com base em
estudos de autores brasileiros com foco na questão do método, vista na perspectiva da prática e da
teoria, refletindo sobre a prática pedagógica como prática política e também considerações acerca
da Política Nacional de Alfabetização de 2019.

“A educação de jovens e adultos e cidadania substantiva: identidade, pertencimento e


resistência na classe de alfabetização do Ciep Gregório Bezerra”, escrito por Cyntia Kelly Menezes
da Silva Burguinhão, trata do processo de construção do conhecimento e cidadania substantiva no
contexto da sala de aula de turmas da educação de jovens e adultos, tomando como referência a
ação educativa como emancipatória, humanista-crítica, com viés transformador da educação
popular no trabalho com História de Vida: Resgate da Cidadania dos alunos.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 19


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Ivanilde Apoluceno de Oliveira escreve “Educação ao longo da vida: descolonização de


saberes como forma de insurgência”, analisando, à luz dos princípios teórico-metodológicos de
Paulo Freire, as matrizes do pensamento decolonial e o processo de descolonização dos saberes na
educação de jovens, adultos e idosos; consiste em uma pesquisa bibliográfica com a utilização de
fontes referentes ao pensamento educacional de Paulo Freire e de autores que adotam a perspectiva
freireana.

O texto “Práticas formativas de coletivos juvenis universitários e de ocupas de escolas de


ensino médio”, de Luís Antonio Groppo, apresenta resultados de pesquisas conduzidas pelo Grupo
de Estudos sobre a Juventude da Universidade Federal de Alfenas, a partir de uma reflexão sobre
práticas formativas insurgentes de adolescentes e jovens que têm cultivado coletivos juvenis e vêm
participando de ações políticas de grande importância na história recente de nosso país.

Maria Cristina Soares de Gouvêa escreve o texto “A infância nos tempos de cólera”, no qual
apresenta uma reflexão a partir de duas questões: como a criança compreende e significa a
dimensão política da vida social? Como compreende e significa um mundo social num contexto
disruptivo?, debatendo sobre as dimensões políticas dos conceitos de ator e agência infantil em
diálogo singularidade da linguagem infantil contextualizadas com as situações políticas e sociais
dos tempos atuais.

A parte seis se encerra com o texto de Rosaura Soligo, “De cada um conforme suas
possibilidades, a cada um conforme suas necessidades – o único método possível para alfabetizar”,
que trata do processo de alfabetização inicial e dos procedimentos essenciais para quem se
alfabetiza e para os professores que alfabetizam, discutindo procedimentos específicos de
alfabetização a partir das experiências de professores que assumiram o desafio de desenvolver uma
prática pedagógica focada na aprendizagem, em contextos de uso significativo da leitura e da escrita
em situações diversificadas de letramento.

Esperamos que as leituras sejam proveitosas para os que se aventuram pelo campo
desafiador da Educação, como nós. Fechamos com Freire, que nos lembra que “A alegria não chega
apenas no encontro do achado, mas faz parte do processo da busca. E ensinar e aprender não pode
dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria.”

Com amorosidade,
As organizadoras

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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”:
NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO
INSTITUCIONAL POSSÍVELi

Carmen Teresa Gabriel

O trabalho fronteiriço da cultura exige um encontro com “o novo” que não seja parte
do continuum de passado e presente. Ele cria uma ideia do novo como ato insurgente
de tradução cultural. Essa arte não apenas retoma o passado como causa social ou
precedente estético; ela renova o passado, reconfigurando-o como um entre-lugar
contingente, que inova e interrompe a atuação do presente. O passado-presente torna-
se parte da necessidade e não da nostalgia, de viver (BHABHA, 1998, p. 27).
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Estamos vivendo tempos sombrios, de retrocesso e perda de conquistas sociais importantes,


de recrudescimento do obscurantismo, de desmonte da “coisa pública”. Manifestações anticiência
emergem de contextos os mais insólitos e inesperados. A universidade pública é desvalorizada,
adjetivada de ineficiente, seus profissionais considerados parasitas pelas autoridades competentes
que assumiram a gestão educacional no atual governo. Discutir o Complexo de Formação de
Professores, como aqui pretendido, é se colocar frontalmente contra essa percepção da universidade
pública e assumir a defesa de seu papel crucial na formação de profissionais do campo educacional.
É operar de forma articulada com o pessimismo da razão e o otimismo da vontade política
(GRAMSCI, 1975) nas disputas “pelo que há, pelo que está acontecendo, pelo para onde-vão as
coisas” é reconhecer, pois, que na atual conjuntura, vivemos “mais do que uma guerra de
interpretações, uma disputa hegemônica pelo mundo em que vivemos.” (BURITY, 2010, p. 2)

Esse diagnóstico severo e depreciativo sobre as universidades públicas se estende


igualmente para todo o sistema educacional brasileiro. Frequentemente apoiado em dados
estatísticos – que tendem a ser tomados como evidências inquestionáveis – e/ou em comparações
com sistemas educacionais de outros países – sem muitas vezes considerar suas trajetórias históricas
e suas condições materiais diferenciadas – o setor da educação básica é caracterizado pelos órgãos
competentes pela condução das políticas públicas nessa área como sendo de baixa qualidade, com
elevada taxa de evasão escolar e um excesso de disciplinas que apresentam uma discrepância entre
os conteúdos da sala de aula e a realidade dos alunos. Assimilada a uma empresa, a escola pública é
avaliada negativamente pelo seu baixo desempenho segundo parâmetros nacionais e internacionais
mobilizados em testagens de grande escala.

As recentes políticas públicas na área educacional (BNCC, Novo Ensino Médio, Diretrizes
de Formação inicial dos professores da educação básica/ Resolução n. 2 de 2019) operam com os
efeitos performativos das estatísticas, assumindo de forma acrítica o diagnóstico de “crise da
qualidade de educação”. Mas qual o sentido de qualidade que tende a ser hegemonizado nos
discursos favoráveis à implementação dessas reformas? Reconhecendo a impossibilidade de
estabelecer sentidos unívocos entendidos como “o mais verdadeiro” ou “mais correto” para
qualquer termo, esta escrita defende que o jogo político implica, justamente, disputar, em meio aos
múltiplos processos de significação em torno do significante qualidade, a hegemonização de um
sentido particular desse termo em função dos interesses que sustentam os projetos de escola, de
universidade e de sociedade pelos quais apostamos e lutamos.

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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

Este texto se inscreve, portanto, no conjunto de reflexões do campo educacional que


questionam tanto esse tipo de diagnóstico quanto os caminhos propostos para mudar o jogo. Afinal,
na lógica neoliberal predominante, o que estaria em crise? A escola? A universidade? Ou uma
maneira particular de significá-las? Como afirma Macedo (2018): “[...] os resultados ruins são, em
muito, produto de um modelo de intervenção baseado em resultados estatísticos da suposta
avaliação. O que está em crise não é uma educação qualquer, mas aquela subsidiada por este
modelo” (MACEDO, 2018, p. 53).

O fato de o sistema educacional público estar exposto a tantas críticas – ocupando o


epicentro das disputas entre diferentes grupos de interesse por projetos de sociedade, de
universidade e de escola – se explica pelo próprio lugar estratégico que o mesmo ocupa. Para o
neoliberalismo, a compreensão desse lugar é bastante nítida e está na base das políticas que o
sustentam. Com efeito, a racionalidade neoliberal hegemonizada em nosso tempo presente extrapola
a dimensão econômica, se impondo como um “sistema normativo que ampliou sua influência ao
mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da
vida” (DARDOT; LAVAL, 2016, s/p).

Nessa lógica, as escolas e as universidades não são apenas percebidas como empresas
concorrenciais, mas igualmente como espaços de produção de subjetividades e como tais precisam
ser altamente reguladas e controladas. Nessa mesma linha argumentativa, os sujeitos que ocupam a
posição de professor nesses espaços precisam ser formados para se enquadrar nesse “ethos”
marcado por princípios, como os da concorrência, da competição, da eficiência e do individualismo.

Não é, pois, por acaso, que responsabilizados pelas mazelas que afligem a educação
brasileira, os docentes se tornam alvo de ataques, sua formação passa a ser questionada, reformas
curriculares salvacionistas são apresentadas como verdadeiras panaceias, reforçando algumas teses
que pautam a lógica da razão neoliberal e alimentam os debates políticos contemporâneos. Para fins
da reflexão aqui pretendida, destaco pelo menos duas dessas teses que tendem a ser mobilizadas de
forma articulada: (i) a da necessidade e urgência em superarmos a “crise” da educação sem
necessariamente questionar substantivamente o sentido particular desse termo que se quer
hegemonizar nessas políticas educacionais e (ii) a da crença desmesurada dos efeitos positivos da
mudança curricular na definição de “qualidade do ensino”.

Sem negar os graves problemas e desafios enfrentados pelo sistema educacional brasileiro,
tampouco desconsiderar que a luta pela melhoria de sua qualidade não é apanágio ou monopólio de
um grupo ou setor particular da sociedade, este texto se propõe a entrar nessas disputas de formar a

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 23


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

ir além da linguagem de denúncia dos efeitos da ordem neoliberal no campo educacional e propor
uma outra leitura possível para o enfrentamento dos desafios que interpelam a educação, em
particular no que ela concerne à formação dos professores da educação básica.

Ele está organizado em dois conjuntos de notas inconclusivas com o intuito de deixar
transparecer mais a postura epistêmica que embasa a política de construção do Complexo de
Formação de Professores do que certezas sobre qual “o” caminho que deve ser tomado. No primeiro
momento, o texto explora essas duas teses e os pressupostos teóricos que as sustentam e, em
seguida, apresenta, em linhas gerais, outras possibilidades de enfrentamento com as questões
levantadas.

NECESSIDADE E URGÊNCIA DE REFORMAS CURRICULARES: PARA QUEM?

Basta atentarmos para os argumentos sustentados pelos defensores das atuais políticas
educacionais nos debates contemporâneos sobre as reformas curriculares para nos darmos conta da
presença recorrente da tese da necessidade articulada à da urgência salvacionista como uma verdade
consensual e, portanto, inquestionável. Pautados na descrição de um cenário de precariedade
generalizada, seja da aprendizagem dos(as) alunos(as) da educação básica, seja da formação inicial
docente, sem discriminação dos diferentes modelos formativos – público e privado; presencial e à
distância existentes no contexto nacional, o diagnóstico de crise (e da urgência em superá-la) se
mostra implacável e prepara o terreno para o argumento da “solução milagrosa” e supostamente
inovadora a ser apresentada.

Não se trata de negar a necessidade de melhorar o sistema de ensino brasileiro em sua


globalidade. Os desafios que se apresentam ao sistema educacional brasileiro têm sido objeto de
reflexão há décadas, suscitado debates acirrados no campo educacional e motivado propostas de
mudanças visando superar os obstáculos identificados como entraves para a sua melhoria. No
entanto, o reconhecimento dessa necessidade não sugere assumir ou validar certos discursos aos
quais ela vem sendo articulada para justificá-la, como por exemplo o da “crise”, da “urgência” e/ou
o da “qualidade” .

Assim como anteriormente explicitado para os termos “crise” e “qualidade” e sem entrar,
por ora, no conteúdo proposto nessas reformas – BNCC, Reforma do Ensino Médio, BNC-
Formação/ Resolução n. 2/ 2019 – a forma como elas vêm sendo conduzidas, sem uma discussão
ampla e democrática com os profissionais e as entidades da área, já é suficiente para questionar a
urgência preconizada. Como tive oportunidade de questionar em outra oportunidade (GABRIEL,
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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

2018a): o que justifica essa urgência, em meio a tantos outros desafios que se apresentam hoje para
a educação brasileira, a ponto que isso seja feito de maneira tão desrespeitosa e aligeirada?

Essa pergunta se torna mais pertinente quando sabemos que as questões que envolvem essas
reformas foram e continuam sendo objeto de discussão e até mesmo de propostas alternativas como,
por exemplo, os Parâmetros Curriculares Nacionais produzidos nos anos de 1990 e a Resolução de
2015 que trata da formação inicial e continuada dos professores da educação básica, revogada no
final do ano passado. No caso desta última, a despeito das críticas que possam lhe ser endereçadas,
ela foi resultante de um longo processo de revisão crítica das políticas educacionais de formação
docente ao longo de mais uma década, aprovada no Conselho Nacional de Educação e homologada
pelo MEC, encontrando-se, até então, ainda em fase de implementação, o que inviabilizaria a
alegação de seu fracasso e a necessidade, portanto, de sua reformulação.

De forma semelhante, o que há de novo sob o sol da BNCC que justificaria tamanha pressa e
investimento por parte das políticas públicas? E sob a Reforma do Ensino Médioii? No que diz
respeito à BNCC, a retórica em torno da sua suposta potencialidade inovadora e transformadora,
apresentada como uma proposta curricular consensual e abrangente – incluindo as referentes à
formação inicial dos professores – como deixam entrever as últimas Diretrizes Curriculares de
Formação inicial e continuada dos professores da educação básica (Resolução n. 2 de 2019),
conhecida, não por acaso, como a BNC-Formação – basta uma leitura atenta de seu texto oficial
para compreender que o que é chamado de ineditismo por seus defensores, pode ser também
entendido tanto como retrocesso dos avanços dos debates na área educacional, quanto como a
assunção de perspectivas políticas aliadas à razão neoliberal.

Que demandas de conhecimento são valorizadas e incorporadas na BNCC? O que dizer


sobre as demandas de diferença e de igualdade formuladas no seio dos movimentos sociais e que
interpelam, há décadas, instituições como escola e universidade? Em que medida uma proposta de
reforma curricular que silencia ou secundariza - em nome da urgência de suprir sejam as exigências
de um modelo avaliativo, sejam as necessidades do mercado de trabalho – as suas funções de
socialização e de subjetivação pode efetivamente contribuir para fazer avançar os debates sobre a
democratização do sistema de ensino?

Essas são algumas das interrogações que permeiam os debates acadêmicos educacionais
indicando que a produção de currículos não se limita a selecionar um conhecimento disciplinar
objetivado a partir de um padrão de objetividade hegemonizado ao longo da modernidade e que se
encontra, hoje, no alvo das críticas às leituras essencialistas e deterministas de mundo. Produzir

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

currículo implica, sobretudo, explorar o tipo de relação com o mundo, com os diferentes sujeitos e
consigo mesmo, que esses saberes/ conhecimento escolar / universitário permitem estabelecer.

A mesma falta de ineditismo e a presença de sinais de retrocesso marcam a BNC para a


formação docente (Resolução n. 2/2019). A leitura atenta desse documento permite evidenciar as
estratégias mobilizadas nessa proposta que combinam a apropriação de críticas do próprio campo
educacional, muitas vezes deslocadas de seu contexto de formulação, sem o devido rigor
metodológico e científico, com a reafirmação de interesses contrários aos defendidos pelos
pesquisadores e professores. Um dos exemplos mais gritantes – e que será retomado na próxima
seção – diz respeito à clássica discussão sobre a complexa articulação entre saberes teóricos e
práticos no processo formativo envolvendo os professores da educação básica. Ignorando a
literatura especializada e acumulada nessas últimas décadas, o documento preconiza a defesa de um
praticismo já de longe superado nos debates da área, como se pode ler em pareceres anteriores do
próprio CNE e na própria Resolução de 2015, vigente até época recente.

Outro aspecto que merece destaque é a forma como a Resolução de 2019 equaciona a
desvalorização das licenciaturas no âmbito da cultura universitária. Como desenvolverei mais
adiante, embora esse aspecto não possa ser silenciado, sendo seu reconhecimento e sua autocrítica
condição inclusive para a sua superação, isso não significa negar o potencial dessa instituição na
formação desses profissionais, por meio da indução, como o faz a BNC-Formação – do
deslocamento do lócus de formação docente da Universidade Pública para outras instituições. Em
vez de defender o entendimento das licenciaturas das IES públicas como curso de identidade
própria no seio do espaço acadêmico, a Resolução de 2019 aponta caminhos que colaboram para a
fragilização desses cursos, reforçando outros espaços cuja proliferação encontra terreno fecundo nas
instituições privadas.

A despeito das particularidades de cada uma dessas reformas em função do nível de ensino a
que elas estão endereçadas, elas possuem em comum o fato de reatualizarem tanto perspectivas
teóricas consideradas ultrapassadas pelos estudiosos da área quanto posicionamentos políticos que
assumem discursos de não responsabilização do Estado acerca da baixa atratividade da carreira do
magistério em função das condições objetivas que são oferecidas para o exercício dessa profissão,
de enfraquecimento das universidades públicas como lócus de formação desse profissional, de
alinhamento das escolas aos modelos de avaliação em larga escala, de culpabilização do docente
pelo fracasso da instituição escolar. Outro ponto convergente dessas reformas é o fato de

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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

mobilizarem discursos que investem na reatualização da visão tecnicista e instrumental dos


processos de ensino-aprendizagem como estratégia de valorização do professor da educação básica.

A segunda tese anteriormente mencionada e bastante difundida nesses debates diz respeito à
reafirmação da crença desmesurada nos efeitos positivos de uma mudança curricular na melhoria da
qualidade de ensino. Interessante observar que essa afirmação não se pauta em estudos científicos e
evidências empíricas que permitam articular diretamente mudanças curriculares (aqui tomado no
sentido restrito da seleção e distribuição dos conhecimentos, conteúdos legitimados e validados
como objeto de ensino) e melhoria da aprendizagem, acarretando um melhor rendimento escolar e,
consequentemente, a melhoria da qualidade do sistema de educação. Por que a reforma curricular
tem sido, pois, uma estratégia recorrente das políticas educacionais para “solucionar” crises nessa
área? Afinal, segundo os textos dessas propostas de reforma curricular nos diferentes níveis de
ensino, bastaria aplicar corretamente “a base” para garantimos os direitos de aprendizagem das
crianças e jovens escolarizados, bem como colocarmos no mercado professores da educação básica
devidamente preparados e eficientes. Embora em meus estudos e pesquisas (GABRIEL; CASTRO,
2013; GABRIEL, 2013; 2016; 2017; 2018; 2018b; 2018c) tenho defendido e apostado no lugar
político incontornável do conhecimento escolar nas políticas educacionais, essa associação deve ser
analisada de forma mais cuidadosa e contextualizada com as diferentes variáveis que contribuem
para a reflexão sobre o sistema educacional brasileiro.

Por que outras tantas necessidades e situações precárias diagnosticadas e denunciadas há


tempo por diferentes setores de nossa sociedade que afetam diretamente à qualidade da educação
como, por exemplo, as condições objetivas dos professores da educação básica para exercer com
qualidade e dignidade seu ofício não merecem a mesma atenção quando a discussão gira em torno
de melhoria do ensino médio? Não se trata de negar a importância e o lugar do currículo nessa
discussão, mas sim de problematizar certas naturalizações que escamoteiam projetos de sociedade
bem definidos. Pensando do lugar de gestores das políticas de educação em escala nacional, caberia
interrogar: por que o investimento com tanto afinco em determinadas ditas “soluções” para a
superação da crise em detrimento de outras? A quem interessa?

CFP: UM ”NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL SEM “INVENTAR A RODA”

Como já explicitado em outras oportunidades (GABRIEL, 2019; GABRIEL 2019a,


GABRIEL; LEHER, 2019, NÓVOA, 2017; 2019) o Complexo de Formação de Professores
(CFP/UFRJ) é uma política institucional de iniciativa da UFRJ voltada para a formação inicial e

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

continuada de professores da educação básica do Estado do Rio de Janeiro pautada em premissas


que se inscrevem na contramão das teses mencionadas na seção anterior.

A primeira premissa faz referência ao lócus privilegiado para essa formação e pode ser vista
como o eixo estruturante dessa política. Ao contrário das políticas públicas educacionais em curso,
o CFP assume que a universidade pública tem como uma de suas funções sociais e políticas
estratégicas a formação inicial e continuada de professores da educação básica. Esse
reconhecimento, no entanto, não significa reatualizar relações de poder hierárquicas historicamente
construídas entre esses dois contextos de formação. O mesmo movimento que está na base da
construção dessa política universitária, ao chamar para si a responsabilidade da formação desse
profissional, reconhece paradoxalmente que o papel crucial da universidade pública nesse processo
depende igualmente da reconfiguração desse lócus de formação para além dos muros universitários.
O que está em jogo pois, é a invenção de um novo arranjo institucional que favoreça a criação de
um terceiro espaço (ZEICHNER, 2010) o de “uma casa comum” (NÓVOA, 2017; 2019), que possa
funcionar como um “entre-lugar”, entendido tal como proposto por Bhabha (1998) na epígrafe
escolhida para este texto. Um espaço entre a cultura universitária e a cultura escolar que se
caracteriza pela lógica da incompletude e não da complementação. Um espaço que não opera com a
ideia de novo, como continuidade do passado tampouco como sua negação; um espaço que não
entende a emergência do presente como resultado do fazer tábua rasa do passado. Um espaço que se
quer novo na medida em que seu desenho institucional busca romper com certas tradições da
cultura universitária, bem como com o modelo hegemônico da sua articulação com as escolas, mas
que não pretende inventar a roda em relação às análises sobre os desafios já apontados pelos
estudos sobre formação de professores, em particular no que eles decorrem da consolidação das
políticas de universitarização. (NÓVOA, 1995; 2017; 2019; ZEICHNER, 2010; SHULMAN,1989;
2004; 2005; SARTI, 2012; 2013; 2019 ).Trata-se, assim, de menos inovar no que diz respeito aos
eixos de discussão sobre essa temática do que criar as condições institucionais que permitam
efetivar ou explorar estratégias de enfrentamento apontadas pelas pesquisas empíricas dessa área.

O Complexo de Formação pode ser, assim, visto como a materialização institucional desse
entre-lugar ou terceiro espaço, emergindo como ato insurgente em meio às políticas educacionais
que insistem em negar a potência criativa da universidade e das escolas públicas. Ao operar com o
entendimento que a formação inicial de professores se faz em articulação com o espaço de atuação
desse futuro profissional – as escolas de educação básica – o CFP assume os princípios de
horizontalidade, pluralidade e integração entre saberes, sujeitos e territórios, abrindo novas

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“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

possibilidades de articulação entre esses dois espaços institucionais que se distanciam de


percepções binárias como as que reforçam visões dicotômicas entre pesquisa e ensino, teoria e
prática, bacharelado e licenciatura, ciência e pedagogia. Como afirma Nóvoa (2017, p. 1.116): “O
segredo deste ‘terceiro lugar’ está numa fertilização mútua entre a universidade e as escolas, na
construção de um lugar de diálogo que reforce a presença da universidade no espaço da profissão e
a presença da profissão no espaço da formação.”

Isso implica potencializar e visibilizar as múltiplas experiências de formação inicial e


continuada de professores existentes nas diferentes unidades acadêmicas da UFRJ, bem como das
demais instituições parceiras com o intuito de firmar a posição docente e afirmar a profissão
docente (NÓVOA, 2017a).

Importa sublinhar que a concepção sustentada no Complexo, de um lado, reconhece alguns


dos desafios apontados pelos estudiosos da área, e muitas vezes apropriados, como apontado
anteriormente, pelas políticas educacionais em curso no país, de outro, propõe caminhos de
enfrentamento bem diferenciados dos que os propostos nas reformas curriculares implementadas
recentemente. No que concerne, por exemplo, à articulação proposta entre saberes teóricos e
práticos no âmbito da “casa comum”, em vez de investir em um conhecimento mais ou menos
teórico, mais ou menos prático ou mais ou menos crítico “em si” que possa ser legitimado nos
currículos de licenciatura, trata-se de desproblematizar a própria natureza ou os tipos de relações
com o mundo – teórica, prática e/ou crítica – que os conhecimentos/saberes produzidos e
mobilizados nos diferentes contextos formativos podem propiciar. Isso permite pensar tanto os
currículos da educação básica como os das Licenciaturas não apenas em termos de inclusão ou de
exclusão de saberes ou disciplinas escolares de uma grade curricular, mas também em termos de
interrogação sobre quais tipos de relação com o mundo, com os outros e consigo mesmo interessa
investir nos percursos formativos que atuam e produzem efeitos nos processos de subjetivação
desse profissional.

De modo semelhante, a docência é percebida como uma profissão que estabelece uma
relação particular com o conhecimento científico, e como tal não se reduz à transmissão de saberes
produzidos em outros espaços, mas sim exige uma produção singular e contextualizada no
cotidiano, envolvendo a articulação crítica e epistemologicamente fundamentada entre diferentes
saberes. A valorização desse profissional da educação básica pressupõe, portanto, diferente do
entendimento predominante nas reformas curriculares em curso, o reconhecimento do docente
como formador e produtor de conhecimento específico (TARDIF, 2002; TARDIF; LESSARD;

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 29


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

LAHAYE, 1991; SHULMAN, 2005) e da sua participação efetiva na produção de currículos, o


deslocando “do lugar do morto”, ou do “referencial passivo” (NÓVOA, 1995; SARTI, 2012) na
formação de seus futuros colegas de profissão onde as políticas educacionais tendem a colocá-lo.

É nessa lógica que se insere no Complexo a constituição do Grupo de Escolas Parceiras


(GEP)iii composto por escolas públicas localizadas no Estado do Rio de Janeiro, pertencentes às
diferentes redes – municipal, estadual e federal – e que junto com a UFRJ e as demais instituições
federaisiv pertencentes a essa malha de formação inicial e continuada configuram essa nova
institucionalidade. A construção dos Núcleos de Planejamento Pedagógico das Licenciaturas
(NPPL)v, dos Grupos de Orientação Pedagógica (GOP)vi ou ainda das Redes de Educadores de
Prática de Ensino (REPs)vii traduzem as formas de interiorização dessas premissas na comunidade
acadêmica da UFRJ. Mais importante do que descrever sua composição e atribuição, importa
sublinhar a natureza híbrida dessas instâncias envolvendo sujeitos posicionados diferentemente no
processo de formação.

A segunda premissa que subjaz a construção do CFP é o fato dele se inscrever também na
ordem do político, e não apenas da política. Ainda que não caiba, nos limites deste texto, um
aprofundamento teórico sobre essa distinção conceitual, interessa destacar as implicações da
diferenciação entre a lógica do político e a lógica da política. para pensar os problemas políticos
(RETAMOZO, 2009), como os que envolvem a questão da formação inicial e continuada dos
professores da educação básica. Essas duas lógicas permitem compreender a operação hegemônica
da instituição contingencial de uma ordem social específica bem como os mecanismos para sua
manutenção e mudança. O político possui uma função instituinte, enquanto a política supõe uma
lógica instrumental de administração do instituído (RETAMOZO, 2009, p. 79). Ou, ainda, nas
palavras de Marchart (2008): “enquanto a política se refere ao nível ôntico (a multiplicidade de
práticas da política convencional) o político se relaciona com o plano ontológico (a dimensão
instituinte)” (MARCHART, 2008, p. 91).

Desse modo, pensar o Complexo de Formação na lógica do político significa reconhecê-lo


como um lugar instituinte de outras possibilidades de pensar as políticas de formação docente, isto é
de compreendê-lo como um lócus com intenção de abarcar a infinitude na finitude de uma ordem
(LACLAU; MOUFFE, 2004) e simultaneamente, de não deixar cair no esquecimento a força da
contingência, isto é a lembrança daquilo que sempre escapa de toda e qualquer tentativa de
domesticação política ou social (MARCHART, 2009).

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

Esse novo arranjo institucional não se reduz, portanto, à apresentação de uma proposta de
política de formação docente pautada em uma reconfiguração epistemológica e pedagógica dos
currículos de licenciatura em articulação com as escolas da educação básica. Ao operar com a ideia
de um terceiro-espaço ou entre-lugar, essa política institucional se inscreve igualmente nas lutas
pela significação do termo “comum”, produzindo deslocamentos e outros antagonismos
(GABRIEL, 2019; GABRIEL, 2019a). Com efeito, o CFP mobiliza um entendimento de “‘comum”
que não oscila entre a perda e a universalização das particularidades de cada contexto que participa
de sua construção. Inspirada nas contribuições de Dardot e Laval (2017) e, longe de pretender
definir ou impor “o”, tampouco “um melhor”, significado para esse termo, o que está em jogo, na
construção dessa política é entrar na disputa pelo termo “comum” a partir do reconhecimento da
potência analítica do deslocamento de seu sentido do registro jurídico para o registro político
defendido por esses autores. Isso pressupõe que, em vez de continuar investindo na cadeia de
equivalência que articula o termo “comum” à ideia de apropriação-pertença (bens e direitos),
investir em processos de significação que associam esse termo à ideia de “apropriação-destinação
(relação de finalidade dessa apropriação)" (DARDOT; LAVAL, 2015, p. 269). O primeiro tipo de
associação – a interface comum-apropriação, historicamente construída no mundo ocidental
capitalista em torno da ideia de propriedade individual e/ou coletiva – se acirra, sem dúvida, com a
hegemonização da lógica neoliberal a partir dos anos 1980. A articulação comum-apropriação-
destinação, defendida por esses autores, por sua vez, investe na desestabilização desse sentido
particular de “comum” fixado hegemonicamente em torno da ideia de “propriedade como direito”,
colocando no jogo político de sua definição, o argumento do “imperativo social do uso comum”,
isto é do “exercício de direito de uso coletivo”.O “comum” passa a ser percebido como um
princípio político a ser aplicado e não mais apenas como uma qualidade de pertencimento a ser
instituído. O que está em jogo, nesse caso, é menos a defesa de um “direito comum” do que o
“direito do comum” ou de “comuns”. Como afirmam esses autores:
(...) é preciso por um lado evitar entender o comum no sentido restrito de bens comuns
e, por outro, desenvolver um direito do comum como um novo tipo de direito de uso,
onde apropriações se distinguem dos usos proprietários e levem a criação de
instituições do comum (DARDOT, LAVAL, 2016, s/p).

A defesa do Complexo de Formação de Professores como uma instituição do comum abre


caminhos teóricos para que outros sentidos de “comum” possam participar das lutas pela
significação que as atravessam de forma a instituir um espaço público de formação sem que isso
signifique o apagamento das diferenças das comunidades acadêmica e escolar, tampouco a

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

valorização da neutralidade do conhecimento validado como objeto de ensino-aprendizagem nos


currículos da licenciatura e nos da educação básica. O desenho institucional do Complexo de
Formação de Professores da UFRJ foi pensado para que sua operacionalização garanta esse diálogo
e a construção de um lugar comum cujas regras de pertencimento – a essa rede de formação docente
– e uso possam ser compartilhadas entre todos que com ela interagem.

Assumir essa postura não tem sido tarefa fácil (GABRIEL, 2019; GABRIEL, 2019a). No
entanto, como afirmou Nóvoa (2019) em publicação recente ao se referir ao Complexo de
Formação de Professores: “Se tal vier a concretizar-se, a UFRJ dará um sinal forte de compromisso
com a escola pública e com a renovação da formação de professores. Precisamos desses sinais, no
Brasil e no resto do mundo” (NÓVOA, 2019, p. 14). Na conjuntura política atual, isso, sem dúvida,
não é pouca coisa.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“COMPLEXO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES”: NOTAS SOBRE UM “NOVO” ARRANJO INSTITUCIONAL POSSÍVEL

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Notas de fim

i
Texto produzido no âmbito dos projetos Currículo como espaço biográfico: subjetivação e profissionalização docente
em múltiplos tempos e espaços e Currículo como espaço biográfico: conhecimento, sujeitos e demandas em diferentes
contextos de formação financiados respectivamente pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq) e pela fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), no âmbito do
programa Cientista do Nosso Estado.
O conjunto de diretrizes voltadas para o Ensino Médio, antes de ser sancionado em lei (16 de novembro de 2017), foi
ii

apresentado pelo governo federal em 22 de setembro de 2016 sob a forma de Medida Provisória (MP).
iii
Grupo de escolas que integram o espaço formativo do CFP, isto é, que habitam essa “casa comum”. Isso significa
poder propor e compartilhar ações de formação – ensino/estágio, pesquisa e extensão – envolvendo todos os sujeitos
que participam da construção permanente dessa rede: professores universitários, professores da educação básica,
licenciandos(as), alunos(as) da educação básica.
Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ); Instituto Federal Fluminense (IFF); Colégio Pedro II, Instituto Benjamim
iv

Constant (IBC); Instituto Nacional de Educação de Surdos (Ines), Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-RJ);
Fundação Oswaldo Cruz.
v
Constituído por representações das unidades acadêmicas da UFRJ diretamente ligadas à formação inicial de
licenciandos(as), os Núcleos de Planejamento Pedagógico das Licenciaturas têm como principais atribuições: (i)
Elaborar um plano de ação a partir da oferta expressa na cartografia de percursos formativos elaborada pelo Comitê
Permanente para as 1000 horas do curso de Licenciatura constitutiva da formação do(a) licenciando(a); (ii) Interagir
com o Núcleo Docente Estruturante (NDE) da respectiva unidade/ curso da IES de origem do(a) licenciando(a); (iii)
Coordenar as atividades dos Núcleos de Orientação Pedagógica (NOP) e as Redes de Educadores de Prática de Ensino
(REP).
vi
Constituído por representações diretamente ligadas à formação inicial de licenciandos(as), em sua formação
pedagógica geral e específica, assim como em sua inserção nas instituições-campo, os Grupos de Orientação
Pedagógica têm como principal atribuição acolher e orientar academicamente a escolha do percurso acadêmico do(a)
estudante de licenciatura, desde o início do seu curso, em relação às 400 horas de prática como componente curricular e
200 horas de atividades acadêmicas complementares a partir da cartografia de ações do CFP.
vii
Constituído por representações diretamente ligadas à Prática de Ensino dos(as) licenciandos(as), seja da sua IES
como das escolas-campo, as Redes de Educadores de Prática de Ensino têm como principal atribuição orientar e
acompanhar o estudante em relação às 400 horas do Estágio Supervisionado (grupos de 10 a 25 estudantes por REP).

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 35


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS
SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

Elizeu Clementino de Souza


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

CENÁRIOS SOBRE A FORMAÇÃO DE PROFESSORES: DIÁLOGOS INICIAIS

O texto discute questões sobre pesquisa (auto)biográfica, ao destacar modos próprios como
temos trabalhado, a partir de uma rede de pesquisa com as narrativas, no campo da formação inicial
e continuada de professores, destacando proposições e desafios formativos e autoformativos.
Intenciono situar questões relacionadas ao contexto político brasileiro e suas implicações para o
campo educacional e a formação de professores, assim como sistematizar aspectos epistemológicos
e metodológicos da pesquisa (auto)biográfica, ao analisar as implicações das narrativas como
dispositivo de pesquisa-formação, no contexto da aprendizagem da docência e do desenvolvimento
profissional.

A configuração política que vivemos contemporaneamente no país impacta, sobremaneira,


no campo educacional e, consequentemente, nas políticas e programas de formação de professores e
seus desdobramentos para as condições de trabalho dos professores da educação básica, mas não tão
somente. Vivenciamos e assistimos, desde o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, embates
diversos sobre políticas de formação, as quais voltavam-se para implementações de sentidos outros,
lócus, espaços e tempos de formação, sem, contudo, considerar avanços e indicativos das pesquisas
da área e princípios construídos historicamente pelas associações e entidades científicas da área
educacional, especialmente no que se refere à formação de professores, às condições de trabalho e
ao ofício docente. Cabe aqui destacar ações e políticas contemporâneas voltadas para controles,
injunções de meritocracias, através de outras lógicas de avaliação, regulação, controle do trabalho e
do pensamento dos professores na contemporaneidade, tais como o Projeto Escola sem Partido,
mediante apresentação do Deputado Federal Izalci Lucas do Projeto de Lei (BRASIL, PL n.
867/2015), que busca desavergonhadamente alterar princípios da Lei de Diretrizes e Bases Nacional
n. 9.394/96, para instituir outras diretrizes sobre a educação nacional, ferindo princípios
democráticos, de autonomia pedagógica e do pensamento dos professores.

Diferentes transformações ocorridas na sociedade brasileira, contemporaneamente,


evidenciam descompassos e contradições entre o que indicam as pesquisas sobre formação de
professores e a descontinuidade das políticas implementadas, implicando em medidas de exclusão
dos professores do processo de decisão e reafirmando indicativos de organismos internacionais
sobre o desenvolvimento profissional dos professores, com ênfase nas políticas de desempenho,
avaliação e regulação do trabalho docente.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 37


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

Em trabalho anterior (SOUZA, 2003), busquei cartografar questões históricas sobre a


formação de professores, tomando a década de 1980 até os nossos dias, como recorte espaço-
temporal, na tentativa de apreender e analisar dispositivos relacionados à formação de
professores/professoras, por compreender que diferentes princípios já foram sinalizados pelo estado
da arte sobre formação de professores, bem como indicativos sobre a base docente como eixo da
formação. Ainda assim, assistimos no início dos anos 1990 uma descaracterização da formação e
um acirramento entre as políticas oficiais e os reais interesses e necessidades de uma formação
assentada numa base teórica sólida, na pesquisa e na prática como alguns dos axiomas para a
formação docente no Brasil. No novo século e com as refigurações políticas e retomada da extrema-
direita no país, a formação e o trabalho docente têm vivido ações de descaracterização e desmonte,
sendo os docentes configurados como algozes e perseguidos ideologicamente, como se a ação
pedagógica fosse neutra e o trabalho docente despretensiosamente desassociado de um fazer
político e pedagógico. O que se busca implementar, contemporaneamente, como política de
formação é um centramento numa racionalidade técnica, esvaziando e controlando o pensamento e
o trabalho dos professores, assentando-se numa reafirmação de postulados neoliberais frente à
formação docente na sociedade brasileira.

A formação tem sido utilizada como palavra de ordem nas reformas contemporâneas. São
diversos os princípios e as concepções apresentados no contexto atual sobre formação de
professores, os quais traduzem mecanismos de controle e de desvalorização da formação e da
profissão em função dos interesses econômicos. É pertinente compreender que a formação de
professores se configura como um problema político, porque se vincula ao sistema de controle e de
regulação social pelas relações que se estabelecem entre poder e saber. Também é a formação um
problema filosófico (HONORÉ, 1980), visto que se articula ao conceito de homem e das suas
relações com o mundo e com o projeto social. É também a formação de professores um processo
histórico situado, o qual reflete os interesses e as perspectivas atuais referendadas pelas políticas e
contexto nacional e internacional que estamos vinculados. Por fim, apreendo que a formação de
professores se inscreve numa problemática mais ampla que envolve dimensões científicas e
epistemológicas sobre os saberes da profissão e sobre a profissão.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

“BRASIL, MOSTRA A TUA CARA”: CENÁRIO POLÍTICO E CRISE DA DEMOCRACIA

Parece-me inevitável discutir questões sobre conhecimento implicado, domínios e


vitalidades da pesquisa (auto)biográfica, sem, contudo, considerar, mesmo que de forma abreviada,
questões sobre a crise da democracia que se instala no Brasil, após o golpe e o impeachment e suas
consequências para o processo de produção de conhecimento, a pesquisa, a universidade pública, as
questões relacionadas à diversidade e diferenças no espaço social brasileiro.

A orquestração do golpe e destituição da presidenta Dilma Rousseff inscreve-se como ação


articulada por uma onda extrema e neoconservadora, implicada com justaposições jurídicas e
promessas de resoluções da crise gerada pela corrupção no país. Do governo Michel Temer, de
maio de 2016 a dezembro de 2018, na condição de governo interino e, a partir de agosto de 2016,
empossado após o circo armado no Congresso nacional e o show midiático e conservador, quando
da votação do impeachment. Neste período, inicia-se, de forma mais concreta, o desmonte da
democracia brasileira, embora com promessas de que seria um governo reformista, muito em
função da crise econômica instalada no país. A aprovação de medidas econômicas, tais como
controle do gasto público, reforma trabalhista, liberação da terceirização para atividades-fim e
proposta inicial da reforma da previdência, demarcam impactos das reformas e suas consequências
para os campos social e educacional. Em relação à educação, o governo Temer realizou a reforma
do Ensino Médio e estabeleceu a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), partindo da ideia de
que a base, através da definição de matrizes de competências e habilidades poderá resolver questões
concernentes à organização do Ensino Médio no país.

A materialização da crise e a consolidação do golpe deram-se com o processo eleitoral para


a presidência da república, tendo sido eleito Jair Bolsonaro, mediante campanha forjada com o
apoio dos Estados Unidos e uma onda de fake news e ações cibernéticas inimagináveis, centradas
basicamente no argumento e desmonte do Partido dos Trabalhadores. A polarização entre uma
direita conservadora e o movimento de resistência de esquerda, apoiada pelo capital econômico do
país, levou para a presidência da república a figura do “mito”, como salvador da pátria e defensor
da moral e dos bons costumes. Exatamente daí, emerge um discurso político fake, truncado e
agressivo, defensor de princípios religiosos e em nome da família monogâmica brasileira e um
constante ataque à diversidade, especialmente à população LGBTIQ+, às comunidades quilombolas
e populações indígenas, à cultura de matriz africana e à desconstrução do mito da diferença racial
no Brasil.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 39


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

A despeito de todas essas questões e tendo em vista a situação atual em que vivemos em
relação à democracia do país, frente à crise política e ao golpe de estado como um acontecimento
político que presenciamos, compreendendo-o como uma crise política e como uma ameaça, implica
metaforicamente na ideia de uma democracia doente, a qual configura-se como uma cronicidade
antidemocrática, que com certeza trará consequências irremediáveis para o povo brasileiro. O golpe,
inscreve-se numa patologia autoritária e antidemocrática, através das formas como se forjou uma
cisão social e política contra a democracia no país. Cabe verificar, por exemplo, a posição do
Ministro da Saúde do governo interino – Michel Temer – pós-golpe e pró-impeachment, quando
levanta bandeira em nome da privatização da saúde, com base numa lógica mercadológica e em
defesa, mesmo que de forma subliminar, dos planos privados de saúde, com questionamentos e
possíveis limitações do Sistema Único de Saúde (SUS).

Além desse cenário anterior, o atual tem sido instalado com ênfase nas políticas de
desmonte, as quais incidem na lógica de privatizações e de desestatização de políticas sociais,
aprovação da reforma da previdência, congelamento e cortes de recursos para as áreas de saúde e
educação, desmonte da política de ciências, tecnologia e inovação (CT&I), corte de verbas e da
autonomia das universidades e do Sistema Único de Saúde (SUS), acirramento da crise do meio
ambiente e de uma crise jurídica que se alinha à lógica do governo em curso. Cabe ainda destacar a
irresponsabilidade do governo brasileiro em relação ao coronavírus (Covid-19), especialmente,
atitudes do presidente e a negação da pandemia mundial como se fosse uma histeria coletiva. Ações
do Ministério da Saúde, de alguns governadores de estados com casos de incidência do vírus e da
pandemia que se alastra, revelam intenções políticas, sanitárias e epidemiológicas para contenção
do processo de infecção da população e de alastramento de seu adoecimento.

O que nos interessa saber é o que nos espera na condição de cidadãos e cidadãs, que
assistimos e vivenciamos as articulações e conchavos que ferem a vida e a democracia, e que, sem
dúvidas, trarão consequências desastrosas para o país. As relações entre educação, produção de
conhecimento e democracia não podem ser abaladas, em função de interesses corporativos e
pautados em retrocessos políticos, com base em articulações nepotistas e que instalam uma certa
cronicidade na democracia brasileira.

A análise que aqui apresento não pode se eximir de considerar a situação política em que
vivemos e a necessidade de continuar lutando por princípios democráticos, universais que possam
restaurar “uma nova ordem nacional”, para além dos ditames da “nova ordem mundial”, que

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

considere e reafirme princípios éticos, numa reforma política nacional a favor de uma sociedade
mais justa e igualitária.

Tal digressão política é fundamental, pois demarca um lugar de fala, um modo de ler
histórias e memórias, de contar a vida, a profissão, de pensar e fazer pesquisa como ato político de
resistência. Narrar a vida é um desafio que se inscreve nas nossas experiências e nos modos como
tecemos a vida, como aprendemos em processos de pesquisa e de pesquisa-formação colaborativa.
Ampliar diálogos em redes de cooperação acadêmico-cientifica é, sem dúvida, um fértil caminho de
reaproximação e reafirmação de vínculos entre grupos de pesquisas que têm construído caminhos
outros para se pensar a vida, a formação, a profissão, as condições de trabalho e outras
possibilidades, diante de crises sucessivas e de políticas de desmonte da educação pública e da
democracia no país.

Narrar é uma das formas de resistir, uma forma de não esquecer, de enfrentar e de entender
que nossas utopias não serão apagadas, que nossos sonhos não serão vilipendiados, que nossa ação
política é pedagógica e que nossa ação pedagógica é política. É necessário manter a força, a crença
e a capacidade de existir para resistir, sempre.

Discutir sobre pesquisa (auto)biográfica, numa disposição que implica pensar em modos
como o singular e o plural ou mesmo o individual e o coletivo se inserem numa arena política, são
fundamentais para entendermos os desafios que se colocam para lutarmos, mesmo que no luto, em
defesa da memória e da cultura brasileira, da história das diversas instituições e das experiências
dos diferentes sujeitos, como ancoradas em processos civilizatórios que carregam a diversidade
constitutiva do povo brasileiro.

É desse lugar e com base nessas reflexões que busco situar princípios epistemológicos da
pesquisa (auto)biográfica para o campo da formação e possíveis contribuições para pensa-la como
prática de resistência, de enfrentamento e modos outros de entre(ver) a formação, as condições de
trabalho dos professores e outros sentidos para a construção identitária, a prática docente implicada,
numa democracia que se esvai a cada dia, mas que, a despeito de todas as manobras políticas e
ideológicas que vêm sendo construídas, continuamos a luta em defesa da educação pública, gratuita
e universal e da formação como uma das chaves para a transformação social.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 41


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA E FORMAÇÃO: OUTROS MODOS DE ENTRE(VER) A


FORMAÇÃO

A opção pela pesquisa (auto)biográfica, enquanto dispositivo epistêmico-metodológico,


advém da possibilidade de, no encontro entre pesquisador-sujeito-autor, acessar a vida das pessoas,
prestando atenção nas (re)significações das experiências pessoais, as relações com o outro e com o
contexto social. Tal abordagem metodológica faz parte de um extenso universo de pesquisas que
utilizam as narrativas dos sujeitos para valorizar a singularidade de suas vidas, “[...] através da
tomada da palavra como estatuto da singularidade, da subjetividade e dos contextos dos sujeitos”
(SOUZA, 2006, p. 27).

O movimento biográfico que se desenvolve e consolida nas Ciências Humanas e Sociais,


mais do que invadir a vida humana, parte de princípios deontológicos e busca assegurar a vida, ao
abrir espaços para socializações e partilhas de modos próprios como os sujeitos vivem, se
desenvolvem, aprendem, enfrentam conflitos, buscam alternativas para superar as adversidades da
vida frente aos processos de inclusão/exclusão social.

Ao teorizar sobre o campo da pesquisa biográfica, Delory-Momberger (2012) apresenta


questões pertinentes aos pressupostos epistemológicos, às dimensões metodológicas e às
possibilidades de análise. As discussões construídas pela autora buscam evidenciar configurações
epistemológicas da pesquisa biográfica no domínio da sociologia, ao entrecruzar relações
específicas entre o indivíduo na sua singularidade com o biográfico e as experiências que são
construídas ao longo da vida. Destaca também aspectos relacionados à construção/produção de
entrevista biográfica e categorias de análise, no que se refere aos discursos, ações, motivos e gestão
biográfica, contidos nos textos narrativos.

As relações estabelecidas entre o projeto epistemológico da pesquisa biográfica e a


antropologia social, conforme teorizadas por Delory-Momberger (2012; 2016), inscrevem-se na
constituição dos indivíduos e suas implicações socioculturais, linguísticas, históricas, econômicas e
políticas, ao explicitar marcas como os indivíduos representam-se a si mesmos e aos outros numa
perspectiva temporal de sua existencialidade e das experiências construídas ao longo da vida.

Assim, a pesquisa (auto)biográfica nasce do indivíduo, em sua inserção social, mediante


modos próprios de biografização e de seus domínios social e singular. Da mesma forma, a
temporalidade biográfica configura-se como outra vertente estruturante da experiência humana e
das narrativas num tempo biográfico, ao explicitar territórios da vida individual e social, através das
experiências vividas e narradas pelos sujeitos, implicando-se com princípios hermenêuticos e
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

fenomenológicos que caracterizam a vida, o humano e suas diferentes formas de expressão e


manifestação.

A crescente utilização da pesquisa (auto)biográfica e das narrativas em educação busca


evidenciar e aprofundar representações sobre as experiências educativas e escolares dos sujeitos,
bem como potencializa entender diferentes mecanismos e processos históricos relativos à educação
em seus diferentes tempos. Também porque as biografias educativas permitem adentrar num campo
subjetivo e concreto, através do texto narrativo, das representações dos diferentes sujeitos e atores
sociais sobre as relações consigo próprios, com os outros e com o mundo, dando significados
diversos.

As discussões sobre a utilização ou origem das histórias de vida enquanto método/técnica de


pesquisa vinculam-se a princípios teóricos da Escola de Chicago e as influências exercidas pelas
reconfigurações de diferentes campos do conhecimento. Cabe aqui destacar implicações da História
Oral e suas relações com a Escola dos Annales, centrando-se nas fontes orais de excluídos da
história como uma possibilidade de apreensão do cotidiano e a escuta das vozes dos atores, as quais
foram negadas pela histórica factual, eurocêntrica e dos vencedores. A pertinência teórico-
metodológica das histórias de vida como método e técnica de pesquisa assenta-se, em sua origem,
no confronto entre ciência positivista, atrelada ao binômio racionalidade metodológica e
objetividade, desdobrando-se, como forma de resistência e de confronto, com princípios da
abordagem qualitativa e do movimento de virada no domínio das pesquisas com Ciências Humanas
e Sociais, a partir dos anos de 1960.

A crescente utilização e os diferentes modos de trabalho com as autobiografias tomam como


referência influências da história social, especificamente as contribuições teórico-epistemológicas
da história cultural, seu interesse pelo cotidiano, o pessoal, o privado, o familiar e suas
representações e apropriações sobre a singularidade humana. No campo educacional e no domínio
da formação, cabe destacar estudos da didática, formação de professores, história da educação,
história do currículo, das instituições escolares, das práticas e culturas escolares, do processo de
profissionalização e desenvolvimento profissional, com ênfase nas práticas docentes e nas
aprendizagens construídas cotidianamente pelos próprios sujeitos, bem como narrativas sobre
processos de aprendizagens com a doença, narrativas de resistências e empoderamento e narrativas
digitais.

Com o advento dos métodos (auto)biográficos nas ciências sociais em meados do século XX
e, posteriormente, nas pesquisas educacionais, anuncia-se um período de ressignificação da

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 43


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

subjetividade humana, em que as pessoas passam de estatuto de objeto das análises para o de sujeito
protagonista da investigação. Desse modo, o sujeito passa a “produzir um conhecimento sobre si,
sobre os outros e o cotidiano, o qual revela-se através da subjetividade, da singularidade, das
experiências e dos saberes, ao narrar com profundidade” (SOUZA, 2006, p. 54).

Nesse sentido, tal perspectiva metodológica alinha-se aos estudos de vertente qualitativa,
desenvolvidos no âmbito das ciências sociais. Assim sendo, por considerar fenômenos
eminentemente humanos e situados em um contexto, o campo da pesquisa narrativa demarca outros
movimentos epistemológicos e paradigmáticos, que envolvem princípios ontológicos, éticos e
subjetivos. Neste sentido, a pesquisa (auto)biográfica constituiu-se como uma perspectiva fértil de
investigação, permitindo romper com o antigo paradigma entre o cientista e o objeto estudado, e, do
mesmo modo, capturar, compreender e interpretar experiências humanas, inscritas numa realidade
subjetiva (olhar para si) e intersubjetiva (relação com o contexto).

Por meio deste método de pesquisa, por conseguinte, de suas perspectivas epistêmico-
metodológicas, compreende-se a experiência humana e suas (re)significações como estrutura
fundante do processo de narrar. Nesse sentido, a produção da narrativa biográfica torna-se um ato,
uma disposição ontológica. Isto porque os sentidos produzidos pelos sujeitos sobre si e sobre seus
mundos sociais revelam modos de apreensão e interpretação do vivido. Tais narrativas colocam em
evidência a experiência humana, marcada por motivos, escolhas, valores e princípios que orientam
as ações dos narradores, que, ao assumirem a “condição biográfica”i, anunciam compreensões de si,
circunscritas em um espaço social.

A utilização da pesquisa (auto)biográfica no contexto educacional (NÓVOA; FINGER,


1988) está associada a uma dimensão flexível de pesquisa extrapolando os traçados rígidos,
fechados e quantificáveis da ciência moderna. Por isso, o argumento central que mobiliza o uso da
narrativa biográfica e (auto)biográfica ancora-se na possibilidade privilegiada de compreender tais
experiências, então desprezadas pela ciência moderna, que entrecruzam o pessoal e o social, num
movimento singular de produção de conhecimento.

Com base nas reflexões epistemológicas aqui apresentadas, observa-se que a pesquisa
(auto)biográfica se insere em um campo que legitima outros modos de produção de conhecimento,
por vezes menosprezados pela ciência conservadora, a partir de um movimento hermenêutico,
subjetivo e qualitativo. Portanto, não se trata de considerar a realidade narrada como uma verdade
científica, no seu sentido objetivo, mas de compreender os significados de cada relato na produção
da existência narrada.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Nessa perspectiva, a experiência narrada constitui-se como “[...] um processo de


autotransformação do sujeito que envolve e provoca aprendizagens em diferentes domínios da
existência [...] traduzindo-se na dinâmica que estrutura ou é estruturada por cada um no seu modo
de ser, estar” (SOUZA, 2014, p. 48), emergindo assim, o sujeito da experiência. Este por sua vez,
no trabalho com a narrativa, torna-se um porto ou um ponto de chegada e de partida das suas
vivências, dando-lhe abertura, escuta, implicação e modificando-se, a partir da sua exposição aos
saberes advindos da experiência.

A crescente utilização da abordagem (auto)biográfica em educação busca evidenciar e


aprofundar representações sobre as experiências educativas e educacionais dos sujeitos, bem como
potencializa entender diferentes mecanismos e processos históricos relativos à educação em seus
diferentes tempos e espaços. Ademais, a pesquisa (auto)biográfica permite adentrar num campo
subjetivo e concreto, através do texto narrativo, ao entender os sujeitos, os sentidos e as situações
circunscritos em contextos educacionais e sociais.

É nesse sentido que se inscreve o trabalho com narrativas (auto)biográficas, tal como temos
empreendido no Grupo de Pesquisa (Auto)biografia, Formação e História Oral (Grafho/Uneb),
consolidando, assim, a produção de um conhecimento mais próximo da vida, das experiências de
formação e das trajetórias profissionais dos diversos sujeitos em seus respectivos espaços
socioeducacionais (SOUZA; MEIRELES, 2017). Há uma variedade de fontes no trabalho com a
pesquisa biográfica ou biográfica-narrativa, que se organizam em três campos distintos que
dialogam entre si, a saber: narrativas orais (entrevistas, relatos), escritas (cartas, diários, ateliês
biográficos) e imagéticas (fotografias, imagens, desenhos, pinturas).

PESQUISA (AUTO)BIOGRÁFICA E FORMAÇÃO: ABRINDO NOVAS PISTAS

As discussões epistemológicas e teórico-metodológicas sobre formação de professores no


Brasil têm destacado desde o final dos anos 1990 do século passado e início dos anos 2000 a
emergência de um discurso acadêmico de valorização da pesquisa tanto em relação à formação de
professores quanto ao desenvolvimento profissional, articulando-se com categorias teóricas no
campo dos saberes docentes, identidade, história de vida como dispositivo de formação inicial e
continuada, profissionalização, desenvolvimento pessoal e profissional, bem como em relação às
possibilidades teórico-metodológicas da pesquisa na área educacional e suas contribuições para a
ampliação dos diálogos entre universidades e escolas de educação básica.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 45


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

No contexto do movimento biográfico que temos empreendido no Brasil, desde a edição do


primeiro Congresso Internacional de Pesquisa (Auto)biográficaii temos desenvolvido pesquisas que
se centram nas histórias de vida, na memória, nas representações sobre a profissão, nos ciclos de
vida, no trabalho com a autobiografia ou com as narrativas de professores em exercício, em final de
carreira ou em formação, contribuindo para outros olhares e diálogos possíveis sobre a formação de
professores e as condições de trabalho docente. Essa perspectiva de pesquisa vincula-se ao
movimento internacional de formação ao longo da vida, o qual toma a experiência do sujeito adulto
como fonte de conhecimento e de formação.

No campo educacional brasileiro as pesquisas (auto)biográficas têm se consolidado como


perspectiva de pesquisa e como práticas de formação, tendo em vista a oportunidade que remete
tanto para pesquisadores, quanto para sujeitos em processo de formação narrarem suas experiências
e explicitarem, através de suas narrativas orais e/ou escritas, diferentes marcas que possibilitam
construções de identidades pessoais e coletivas.

A consolidação desta abordagem de pesquisa vem sendo marcada por diversos estudos
(PASSEGGI; SOUZA, 2017; MIGNOT; SOUZA, 2015; SOUZA, 2008; SOUZA; SOUSA;
CATANI, 2008; STEPHANOU, 2008; BUENO et al., 2006) empreendidos nos diferentes
programas de pós-graduação, os quais se voltam para os domínios das pesquisas (auto)biográficas
na vertente da socialização de experiências em contextos de formação e de aprendizagens
profissionais de professores em formação inicial e/ou continuada.

A narrativa remete o sujeito para uma dimensão de autoescuta, como se estivesse contando
para si próprio suas experiências e as aprendizagens que construiu ao longo da vida, através do
“conhecimento de si” (SOUZA, 2006; 2010). É com base nessa perspectiva que a pesquisa
(auto)biográfica se instaura como um movimento de investigação-formação ao enfocar o processo
de conhecimento e de formação que se vincula ao exercício de tomada de consciência, por parte do
sujeito, das itinerâncias e aprendizagens construídas ao longo devida.

O ato de narrar possibilita ao sujeito organizar a sua narrativa através do constante diálogo
interior, através do processo de formação e de conhecimento. A narrativa permite ao sujeito
compreender, em medidas e formas diferentes, o processo formativo e os conhecimentos que estão
implicados nas suas experiências ao longo da vida porque o coloca em transações consigo próprio,
com outros humanos e com o seu meio natural. Essas relações oferecem condições fundamentais
para a escrita da narrativa, para a ampliação do conhecimento de si e para uma outra compreensão
da formação de professores como um movimento epistêmico-político de investigação-formação.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Projeto de Lei N. 867, 23 de março de 2015. Altera a Lei n. 7.998, de 11 de janeiro de 1990, a fim de
determinar direito à suspensão por 04 (quatro) meses dos contratos de trabalho com direito à percepção do seguro-
desemprego o trabalhador dispensado devido à pandemia de coronavírus (Covid-19). Brasília: Câmara dos Deputados,
2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141165. Acesso em: 02 mar. 2020.

BUENO, Belmira Oliveira; CHAMLIAN, Helena Coharik; SOUSA, Cynthia Pereira; CATANI, Denice Barbara.
Histórias de vida e autobiografias na formação de professores e profissão docente (Brasil, 1985-2003). Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 385-410, 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1517-
97022006000200013&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 02 mar. 2020.

DELORY-MOMBERGER, Christine. A pesquisa biográfica ou a construção compartilhada de um saber do singular.


Revista Brasileira de Pesquisa (Auto)biográfica, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 133-147, 2016. Disponível em:
https://www.revistas.uneb.br/index.php/rbpab/article/view/2526. Acesso em: 02 mar. 2020.

DELORY-MOMBERGER, Christine. Abordagem metodológica na pesquisa biográfica. Revista Brasileira de


Educação, [s.l.], v. 17, n. 51, p. 523-740, 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v17n51/02.pdf. Acesso
em: 05 mar. 2020.

HONORÉ, Bernard. Para uma teoria de laformacion. Tradução: Maria Teresa Palácios. Madrid: Narcea, 1980.

MIGNOT, Ana Chrystina; SOUZA, Elizeu Clementino de. Modos de viver, narrar e guardar: diálogos cruzados sobre
pesquisa (auto)biográfica. Revista Linhas, Florianópolis, v. 16, n. 32, p. 10-33, set./dez. 2015. Disponível em:
http://www.revistas.udesc.br/index.php/linhas/article/view/1984723816322015010. Acesso em: 28 fev. 2020.

NÓVOA, António; FINGER, Mathias. O método (auto)biográfico e a formação. Lisboa: MS/DRHS/CFAP, 1988.

PASSEGGI, Maria Conceição; SOUZA, Elizeu Clementino. O Movimento (Auto)Biográfico no Brasil: Esboço de suas
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SOUZA,Elizeu Clementino de (org.). (Auto)biographie: écrits de soi et formation au Brésil. Paris: L´Harmattan, 2008.
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SOUZA, Elizeu Clementino de. Modos de narración y discursos de la memoria: biografización, experiências y
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SOUZA, Elizeu Clementino de; MEIRELES, Mariana Martins. Olhar, escutar e sentir: modos de pesquisar-narrar em
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em: http://revistaadmmade.estacio.br/index.php/reeduc/article/viewArticle/4750. Acesso em: 02 mar. 2020.

SOUZA, Elizeu Clementino de; SOUSA, Cynthia Pereira; CATANI, Denice Barbara. La recherche (auto)biographique
et l’invention de soi au Brésil. In: PINEAU, Gaston (dir.). Le biographique, la réflexivité et les temporalités. Paris:
L’Harmattan, 2008. p. 155-170.

SOUZA, Elizeu Clementino. Diálogos cruzados sobre pesquisa (auto)biográfica: análise compreensiva-interpretativa e
política de sentido. Revista Educação UFSM, Santa Maria, v. 39, n. 1, p. 85-104, 2014. Disponível em:
https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/11344/0. Acesso em: 02 mar. 2020.

SOUZA, Elizeu Clementino. O conhecimento de si: estágio e narrativas de formação de professores. Rio de Janeiro:
DP&A; Salvador: EDUNEB, 2006.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 47


ENTRE(VER) A FORMAÇÃO: DIÁLOGOS IMPLICADOS SOBRE (AUTO)BIOGRAFIA E RESISTÊNCIAS

STEPHANOU, M. Introdução – Jogos da memória nas esquinas dos tempos: territórios e práticas da pesquisa
(auto)biográfica na pós-graduação em Educação no Brasil. In: SOUZA, Elizeu Clementino de; PASSEGGI, Maria
Conceição (orgs.). Pesquisa (auto)biográfica: cotidiano, imaginário e memória. Natal, RN: EDUFRN; São Paulo:
Paulus, 2008. p. 18-53.

Notas de fim

i
Num sentido antropológico, remete a uma das dimensões constitutivas da experiência humana: a capacidade que tem o
ser humano de configurar narrativamente sua existência e de biografar sua experiência singular do mundo histórico e
social (DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 17).
ii
O Congresso inicia em 2004 com o I Cipa (PUCRS-Porto Alegre), o II Cipa (Uneb-Salvador, 2006), o III Cipa
(UFRN-Natal, 2008), 0 IV Cipa (USP-São Paulo, 2010), o V Cipa (PUCRS-Porto Alegre, 2012), o VI Cipa (Uerj-Rio
de Janeiro, 2014), o VII Cipa (UFMT-Cuiabá, 2016), o VIII Cipa (Unicid-São Paulo, 29018) e em planejamento o IX
Cipa na UnB, em para setembro de 2020, contribuindo para a ampliação de uma rede de pesquisa que toma as fontes
(auto)biográficas como domínio de pesquisa, de formação e de práticas de formação.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA:
ENTRE CONVERGÊNCIAS E DISPUTAS NA
FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE

Flavia Medeiros Sarti


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Há mais de duas décadas, o campo de estudos da formação de professores no Brasil e nossas


políticas públicas voltadas para a área gravitam em torno do movimento internacional de
profissionalização do magistério, mesmo que marginalmente, sem assumir integralmente seus
desígnios. Tal movimento tem por norte transformar o estatuto da docência, de um ofício a uma
profissão mais bem estabelecida do ponto de vista epistemológico, ético, político e econômico
(BOURDONCLE, 1990) e assume considerável espaço nos discursos educacionais reformistas em
diferentes países, como uma resposta política à baixa qualidade identificada no desempenho das
escolas (TARDIF, 2013).

A profissionalização do magistério aponta para mudanças importantes relacionadas à


atividade, às formas de organização, aos saberes, bem como à formação dos professores. No que se
refere mais especificamente à formação, o processo de profissionalização requer uma dupla
elevação de seu nível: do ponto de vista acadêmico, tornando-a mais esotérica quanto aos saberes
envolvidos (TARDIF, 2006) e profissional, aproximando-a do trabalho a ser desenvolvido e do
grupo que o exerce (BOURDONCLE, 1990). Essa dupla exigência tem desafiado o campo e o
mobilizado a intentar a busca por uma “verdadeira formação profissional universitária” (ALTET,
2009, p. 218) dirigida aos professores, o que tem se revertido em políticas de formação diversas nos
diferentes países (ETIENNE et al., 2009; LENOIR, 2010; PÉRISSET, 2010; ZEICHNER, 2010,
entre outros).

Uma tal formação, profissional ao mesmo tempo que universitária, requer o estabelecimento
de uma “pedagogia da alternância” (ALTET, 2009), capaz de aliar a aproximação com a prática
docente desenvolvida nas escolas com o emprego de saberes teóricos, no sentido de uma articulação
de espaços formativos, que possibilite aliar “duas aventuras humanas fundamentais, a da ação e a da
reflexão” (LESSARD; BOURDONCLE, 2002, p. 146). A alternância na formação docente aponta
para um processo de “fertilização mútua entre a universidade e as escolas, na construção de um
lugar de diálogo que reforce a presença da universidade no espaço da profissão e a presença da
profissão no espaço da formação” (NÓVOA, 2017, p. 116). Prevendo a instituição de uma
verdadeira formação universitária com finalidade profissional, que se caracteriza por aportes
universitários e cursos apropriados, mas também pela estruturação de saberes profissionais
específicos que ofereçam lugar às práticas, posturas, valores, práticas sociais de referência (ALTET,
2009, p. 222, tradução livre a partir do original francês, grifos meus).

Uma formação desse tipo envolve desafios importantes, entre os quais está a superação da
lógica disciplinar como fundamento da formação, passando a considerar outras lógicas, incluindo

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]

aspectos relativos à socialização profissional, que pressuponham uma relação complexa com os
saberes de diversas fontes (TARDIF, 2006). A alternância segue, pois, em direção à constituição de
uma formação pensada a partir da “criação de espaços híbridos nos programas de formação inicial
de professores que reúnem professores da Educação Básica e do Ensino Superior, e conhecimento
prático profissional e acadêmico em novas formas para aprimorar a aprendizagem dos futuros
professores” (ZEICHNER, 2010, p. 487). A criação desses espaços híbridos, concebidos como
“terceiros espaços”, pressupõe “uma rejeição das binaridades tais como entre o conhecimento
prático profissional e o conhecimento acadêmico, entre a teoria e a prática, assim como envolve a
integração, de novas maneiras, do que comumente é visto como discursos concorrentes” (p. 486).

A constituição de uma formação docente híbrida (ZEICHNER, 2010) com fins profissionais
e ancorada pela perspectiva da alternância (BOURDONCLE, 2000; BORGES, 2008; ALTET,
2009) pressupõe uma forte articulação entre os espaços formativos, que devem possibilitar aos
estudantes universitários a apropriação de saberes da formação profissional, como também a
imersão em processos de socialização na cultura ocupacional de referência, requerendo para tanto a
participação ativa de professores em exercício (SARTI, 2009; 2013).

No contexto brasileiro, esse horizonte da alternância na formação docente tem sido almejado
e vem orientando grande parte de nossos discursos sobre o tema, consubstanciando-se inclusive em
textos normativos recentes. Nessa direção, o recém-publicado Parecer n. 22/2019 do Conselho
Nacional de Educação aponta para a centralidade da prática por meio de estágios que enfoquem o
planejamento, a regência e a avaliação de aula, sob a mentoria de professores ou coordenadores
experientes da escola campo do estágio, de acordo com o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) (art.
7º, inciso VIII).

Assim, seguindo na mesma direção da normativa anterior referente ao tema (CNE 02/2015),
as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de professores (CNE 02/2019) mantém
o mínimo de 800 horas de “prática” para os cursos de licenciatura, sendo 400 horas de Estágio
Supervisionado, “em situação real de trabalho” (CNE n. 22/2019, p. 23) e 400 horas de “prática”
vinculadas aos demais componentes curriculares do curso, como Prática como Componente
Curricular (PCC).

As muitas dúvidas e controvérsias em torno da PCC (SOUZA NETO; PINTO, 2014),


previstas inicialmente nas Diretrizes Curriculares de 2002 (CNE n. 01/2002) têm fragilizado a
proposta, que assim não chega a abalar significativamente a lógica disciplinar que sustenta nossos
cursos de licenciatura. Nos casos em que o princípio da alternância se faz de fato presente na

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

formação dos licenciandos, tal presença tem se dado mais comumente por três vias principais, que
se mostram portanto convergentes nessa direção, quais sejam: os estágios supervisionados,
tradicionalmente presentes na formação profissional; e dois programas federais, específicos da área,
que integram a Política Nacional de Formação de Professores (2009), o Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid) e o mais recentemente criado Residência Pedagógica (RP).

Dessas três estratégias formativas ligadas à dimensão prática da formação, somente os


estágiosi assumem o estatuto de componente curricular obrigatório, tal como disposto no artigo 61
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/1996) que o prevê como recurso
para promover a associação entre teoria e prática, um dos fundamentos da formação docente.

Os textos normativos que se seguiram àquela LDB pautaram-se em tal ideia nuclear de
associação entre teoria e prática e se orientavam em direção ao princípio mais amplo da alternância,
também presente, como antes mencionado, no debate internacional da formação docente. Nesse
sentido, os Referenciais para a Formação de Professores (1999) já indicavam a necessidade da
criação de “[...] dispositivos de articulação entre o trabalho da instituição formadora e o trabalho
das escolas do sistema de ensino, como, por exemplo, o estágio planejado e acompanhado pelas
duas instituições [...]” (p. 65), viabilizado por uma “ação conjunta” entre a instituição de formação
inicial e a escola do sistema que recebe os professores em formação, que se reverta em “um projeto
compartilhado onde as duas instituições assumam responsabilidades e se alimentem mutuamente”
(p. 67).

Aquele documento avançava nessa direção, propondo a criação da figura do “professor


formador” (p. 65) para atuar nos estágios supervisionados, “[...] um professor experiente que recebe
o estagiário em sua turma e o acompanha, discutindo com ele o que faz, as decisões que toma, as
dificuldades que encontra e participando da orientação de seu projeto de trabalho como estagiário”
(p. 65). Para tanto, seguindo pela via da alternância, o documento indicava a necessidade de que os
formadores da instituição formativa estabelecessem um “trabalho sistemático com o professor
formador” (p. 65). Esclarecia, ainda, que o estágio requeria um processo de preparação dos
estudantes, desde o início do curso:
Os trabalhos de estágio precisam ocorrer progressivamente, para que os alunos
possam ir aprendendo a assumir a postura de professores. O primeiro ano, pode ser
dedicado à preparação para o estágio nas escolas de educação infantil e ensino
fundamental, trazendo a discussão da realidade do seu dia a dia para dentro da escola
de formação, de modo que, ao iniciar o estágio os futuros professores saibam qual é
sua função, sua responsabilidade, e estejam em condições de desenvolver um trabalho
52
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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]

cooperativo onde forem estagiar. A ida às escolas pode ocorrer a partir do segundo
ano com uma intensidade passível de garantir a imersão no contexto profissional,
sempre organizada pelo espaço de supervisão (MEC, 1999, p. 130).

E, para além do estabelecimento da alternância entre as instituições de formação e as


escolas, nossos textos normativos pós-LDB n. 9.394/96 enfatizam, também, que a formação docente
não pode prescindir da alternância entre as dimensões teórica e prática no interior dos cursos de
formação. Nesse sentido, o parecer CNE/CP n. 09/2001 apontou a necessidade de superação da
ideia de que “o estágio é o espaço reservado à prática, enquanto, na sala de aula se dá conta da
teoria” (p. 23), indicando que “o planejamento e a execução das práticas no estágio devem estar
apoiados nas reflexões desenvolvidas nos cursos de formação” (p. 23). O parecer ressaltava, assim,
a “dimensão teórica dos conhecimentos como instrumento de seleção e análise contextual das
práticas” (p. 22), problematizando a segmentação entre a dimensão teórica e a dimensão prática da
formação docente.

De sua parte, as Diretrizes Curriculares instituídas em 2015 (CNE/CP n. 02/2015) definiram


o estágio como “componente obrigatório da organização curricular das licenciaturas, sendo uma
atividade específica intrinsecamente articulada com a prática e com as demais atividades de
trabalho acadêmico” (art. 13, § 6o). Mais recentemente, o Parecer CNE n. 22/2019 indicou que, no
estágio, “a prática deverá ser engajada e incluir a mobilização, a integração e a aplicação do que foi
aprendido no curso, bem como deve estar voltada para resolver os problemas e as dificuldades
vivenciadas nos anos anteriores de estudo e pesquisa” (p. 27).

Vê-se, pois, que há mais de duas décadas nossos textos normativos vêm preconizando que
os estágios supervisionados atuem para o estabelecimento de uma “articulação entre os espaços
formativos” (ALTET, 2009) na formação docente. Em que pese o alto grau de sofisticação desses
discursos e a sintonia que estabelecem com os avanços internacionais sobre o tema, não logramos
avanços muito significativos nesse período quanto aos modos pelos quais os estágios efetivamente
são realizados nos cursos de licenciatura no país. Assim, como destaca Gatti (2014), esses estágios
“[...] mostram-se, em sua maioria, sem um planejamento que diga de seus propósitos e ações.
Também não explicitam as formas de relação com a rede escolar e não oferecem condições para um
acompanhamento efetivo por parte de docentes que são designados para sua supervisão.” (p. 40-41).
Ademais,
Em geral os estudantes, isoladamente, procuram escolas e professores da educação
básica que os recebam, e o estágio desenvolvido configura-se como observação
passiva de salas de aula. Não se tem registro das horas efetivadas. As IES atribuem a

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

um professor, responsável pelo estágio, várias dezenas ou centenas de estudantes, o


que inviabiliza a real orientação e supervisão desses estágios. Não são oferecidas aos
docentes condições de estar nas escolas de alguma forma, conhecerem os professores
e o trabalho que os estagiários eventualmente possam estar desenvolvendo na escola e
nas salas de aula. Não lhes é dada a mínima condição de, efetivamente, fazerem o
acompanhamento, discussão e avaliação dessa atividade obrigatória. Nesse cenário, os
estágios curriculares dos cursos de licenciatura, de modo geral, estão longe do
cumprimento da legislação pertinente (GATTI, 2014, p. 41).

Esse anacronismo inscrito no modo como os estágios supervisionados são comumente


realizados na formação dos professores brasileiros, que nos afasta a possibilidade de uma efetiva
alternância no processo formativo, motivou a busca por estratégias que pudessem induzir mudanças
nesse cenário, que nos aproximassem dos princípios anunciados por nossos textos normativos. Esse
movimento nos trouxe o PIBID e, mais recentemente, o Residência Pedagógica, programas ligados
à Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica (CAPES,
2009), que vem se caracterizando por uma atuação do Estado de modo mais incisiva e direta na
formação inicial e em serviço dos professores. Desses dois programas, o RP é o que se propõe mais
diretamente a induzir mudanças nos estágios supervisionados, buscando sua “reformulação” e
“aperfeiçoamento” (CAPES, 2018). Trata-se de um programa que se propõe a estimular “a
articulação entre teoria e prática nos cursos de licenciatura, conduzidos em parceria com as redes
públicas de educação básica” (CAPES, 2018, p. 1), pautando-se pois por princípios que, desde a
LDB 9.394, mostram-se claramente associados ao estágio supervisionado, tal como observado nos
textos que o normatizam nesse período.

É falsa, portanto, a sensação que tal programa concorre com o estágio no espaço da
formação docente. Sua proposição, assim como ocorre com o Pibid, ratifica os princípios que já há
algum tempo tem fomentado nossas discussões acerca da importância dos estágios supervisionados
para a formação docente. Programas como o Pibid e o RP, fomentados pela Capes, trazem para a
cena formativa dos professores brasileiros ideias e direcionamentos que há bastante tempo circulam
no espaço internacional da formação docente, acerca da necessidade de envolvimento das equipes
escolares na formação, sobretudo os professores, no acompanhamento dos licenciandos que podem,
por meio da participação em atividades diversas que compõem o cotidiano escolar, desenvolver
sentimentos de pertencimento ao grupo, importantes para sua socialização profissional. Tais
pressupostos, no entanto, estão presentes nas discussões internacionalmente empreendidas sobre os
estágios na formação docente. É cada vez mais consensual na área a percepção de que os estágios

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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]

docentes devam fomentar a articulação entre os espaços formativos, de modo a possibilitar aos
futuros professores a apropriação de saberes da formação profissional, como também a imersão em
processos de socialização na cultura docente (BOUTET; ROUSSEAU, 2002; MOLINA;
GERVAIS, 2008; BOUTET; PHARANT, 2008; SARTI, 2009; 2013; PIMENTA; LIMA, 2011;
LACOSTE; LOARER; MONNANTEIUL, 2011; GUILEMETTE; L´HOSTIE, 2011; GERVAIS;
DESROSIERS, 2013; ALMEIDA; PIMENTA, 2014; CYRINO; SOUZA NETO, 2014; ARAÚJO;
SARTI, 2014; AROEIRA; ALMEIDA, 2014; BENITES; SARTI; SOUZA NETO, 2015; CYRINO;
BENITES; SOUZA NETO, 2015, entre outros).

É clara, pois, a convergência entre os pressupostos que sustentam as discussões sobre os


estágios supervisionados atualmente e as propostas formativas ligadas aos Programas da Capes
(Pibid e RP). Cabe-nos, entretanto, alguns questionamentos sobre a pertinência e a necessidade da
proposição de tais programas, que podem, ao contrário dos objetivos que proclamam, trazer alguma
estagnação e mesmo certo retrocesso para as discussões sobre os estágios supervisionados no
espaço nacional da formação docente.

O primeiro e mais óbvio aspecto a considerar diz respeito à abrangência. Tais programas não
atendem a todos os cursos e nem mesmo a todos os estudantes dos cursos em que são
implementados; enquanto já alcançamos a obrigatoriedade de 400 horas de estágio para todos os
licenciandos do país. Nesse sentido, o investimento na “reformulação e aperfeiçoamento” dos
estágios supervisionados docentes (CAPES, 2018) deveria alcançar a todos os futuros professores –
não somente os chamados pibidianos e residentes – de modo que pudessem experimentar a
formação preconizada em nossos textos normativos.

Um outro aspecto, articulado com o primeiro, refere-se a uma certa pulverização das
discussões sobre a dimensão prática da formação nas licenciaturas, distraindo-nos do debate amplo
e coletivo sobre a necessidade de estratégias mais efetivas de enfretamento dos problemas
identificados no desenvolvimento dos estágios supervisionados no país. Uma política nacional de
formação de professores deveria centrar esforços para a efetivação desse debate, considerando a
questão em sua dimensão política e não como um problema a ser solucionado por meio de
intervenções de natureza técnica, pontuais, por meio de programas.

E um último aspecto a ser destacado aqui. Os programas federais mencionados, voltados à


formação dos licenciandos, baseiam-se, como dito antes, em discussões internacionalmente
partilhadas no campo sobre a importância da dimensão prática para a formação de professores e,
mais especificamente, sobre estratégias e dispositivos de formação ligados aos estágios

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

supervisionados. A proposição dos mesmos ocorre por meio da apropriação desses discursos que,
demarcados e, de certa maneira, tangibilizados sofrem processos de produtificação para seu
lançamento, como “programas” por meio de editais. As IES recorrem então ao Pibid e ao RP para
agregarem a seus cursos princípios sobre a formação docente (valorização da dimensão prática,
parceria com as escolas e redes públicas, participação de professores formadores, sistematização
das práticas, etc.) que orientariam um estágio de qualidade.

Seguindo ao limite com os neologismos, podemos afirmar tratar-se de um processo de


“startupização” das relações no campo educacional. Somente os contemplados pelos editais,
consumidores dos produtos formativos, ganharão a chancela de boas práticas na formação, ao terem
seus “pibidianos” e seus “residentes” entre os estagiários. Processo orientado pela visão
gerencialista, que busca produzir uma “cultura empresarial competitiva” (BERNSTEIN, 2000, p.
75) no campo educacional.

Cabe-nos questionar as razões pelas quais optamos no país por criar produtos em torno de
práticas formativas que internacionalmente são ligadas ao estágio curricular supervisionado. Por
que optamos, desse modo, por uma via alternativa, em que tais produtos são consumidos pelos IES
e, caso equiparados ao estágio supervisionado, possam ocupar o lugar de um componente curricular
nas licenciaturas?

A opção por criar programas, como o Pibid e o RP, que “entreguem” – seguindo com o
vocabulário gerencial – a “parte prática” da formação inicial docente pode nos levar,
inadvertidamente, a uma situação de terceirização curricular, com a substituição dos estágios
supervisionados, desenvolvidos necessariamente pelas instituições de ensino superior, por produtos
formativos concebidos por outras instâncias (públicas, até o momento, mas não necessariamente) e
implementados por meio de contratos que prevejam uma participação meramente incidental dos
agentes da instituição responsável pela formação.

Esse caminho, pautado por uma perspectiva de produtificação das práticas formativas, vai
ao encontro da ampliação, diversificação e aquecimento do mercado da formação docente que se
configura no país há alguns anos. Trata-se de um mercado, entendido sob a perspectiva
bourdieusiana (2005), onde bens simbólicos são produzidos, disputados e consumidos e onde atos
econômicos são transfigurados em atos simbólicos, legitimados por aqueles que detêm capitais
considerados mais valiosos no campo educacional. (SOUZA; SARTI, 2014). Atualmente, esse
mercado, em suas dimensões materiais e simbólicas, reúne diversas instâncias e agentes como
universidades – públicas e privadas; secretarias de educação; agências de avaliação e fomento do
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ESTÁGIO, PIBID E RESIDÊNCIA PEDAGÓGICA: ENTRE CONVERGÊNCIAS E [...]

ensino superior, como a Capes e o CNPq; agências de consultoria e organismos internacionais,


como a Unesco e o Banco Mundial; fundações e institutos – com e sem fins lucrativos – sindicatos
e associações de docente, editoras etc. Para além dos agentes tradicionais da formação docente,
outros formadores de professores habitam esse mercado, especialmente no que se refere à formação
continuada: os consultores pedagógicos, os coaches, os tutores e orientadores das formações on
line, os palestrantes motivacionais. Tal mercado da formação docente atrai novos grupos e
instituições e integra o mercado mais amplo da educação, transnacional (SOUZA SANTOS, 2011),
considerado o mais vibrante do nosso tempo.

Até o momento, a formação inicial docente vem participando desse mercado de um modo
um tanto conservador. As disputas que a envolvem se referem, basicamente, ao oferecimento por
instituições superiores distintas do ponto de vista acadêmico (universidades, centros universitários,
faculdades) e de financiamento (público e privado), sob diferentes modalidades (presencial e a
distância) implicando na ampliação dos agentes formadores nela envolvidos (BUENO, 2016). No
entanto, considera-se que a vida de produtificação da formação docente, aqui explorada, reverta-se
em aquecimento também para esse nicho do mercado, que passaria então a demandar novos
produtos formativos a serem consumidos por instituições de formação, que poderão assim
terceirizar elementos de seu trabalho formativo.

Tem-se, pois, que a existência desses programas, embrionariamente produzidos pela Capes,
não se configura como mera disputa entre diferentes estratégias formativas. Trata-se da criação de
demanda por novos produtos no mercado da formação docente; o que diz respeito a disputas mais
amplas, que incidem sobre o lugar da universidade e das outras instituições de ensino superior nessa
formação, levando-nos a uma das questões centrais em jogo: a quem compete formar os
professores? (SARTI, 2012).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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Notas de fim

i
Definido pela legislação como “ato educativo escolar supervisionado, desenvolvido no ambiente de trabalho, que visa
à preparação para o trabalho produtivo de educandos [...]” (Lei n. 1.1788/08, Artigo 1º), prevendo “acompanhamento
efetivo pelo professor orientador da instituição de ensino e por supervisor da parte concedente” (artigo 3º, parágrafo 1º).

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO
PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO
DA FORMAÇÃO

Lucilia Augusta Lino


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

APRESENTANDO O PROBLEMA E CONTEXTUALIZANDO O CENÁRIO

O convite para participar do simpósio “Didática e Prática de Ensino na Base Nacional


Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica” no XX Encontro
Nacional de Didática e Prática de Ensino (Endipe), junto com companheiras da Associação
Brasileira de Currículo (AbdC), e da Associação Nacional de Didática e Prática de Ensino
(Andipe), é uma honra e um privilégio, mas provocou uma grande reflexão dado o enorme desafio.
Primeiramente, por ter a missão de representar a Associação Nacional pela Formação dos
Profissionais da Educação (Anfope) e depois por, neste grave momento político do país, falar de
forma sintética, mas criticamente, do desmonte das políticas educacionais, em especial da formação
de professores. Amplia o desafio, o tema deste simpósio – a didática e a prática de ensino na Base
Nacional Comum da formação (BNC-Formação), normativa que consideramos o maior ataque à
formação de professores empreendido nesse país, em todos os tempos.

Enunciado o desafio, cabe situar o cenário. Desde o golpe jurídico-parlamentar-midiático-


empresarial, consumado em 2016, que alterou os rumos políticos do país, uma série de ataques à
democracia se sucedem, ameaçando direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988 e, em
especial, o direito à educação. O desmonte acelerado da política educacional se materializa com a
imposição de medidas que impactam a educação pública, dentre as quais apontamos como
principais a Reforma do Ensino médio, a BNCC e, agora, a BNC-Formação.

Como explicitado, em Editorial, no primeiro número da Revista Formação em Movimento, a


Anfope, ao longo de sua trajetória, “forjou de forma participativa um amplo movimento visando
intervir nas políticas educacionais e construir coletivamente um projeto de formação dos
profissionais de educação” (ARRUDA; LINO 2019, p. 7). A Anfope é uma entidade que surge
como movimento dos educadores pela formação, “em um momento histórico de ricos e intensos
debates no processo de redemocratização do país, participando da luta pela ampliação do direito à
educação, assegurado constitucionalmente em 1988” (ARRUDA; LINO, 2019, p. 7). Desde a sua
criação como entidade, a Anfope defende, de forma intransigente, a educação pública, gratuita,
laica, estatal, universal e inclusiva, democrática e republicana, de qualidade socialmente
referenciada nas necessidades formativas das crianças, jovens e adultos brasileiros, e,
particularmente, comprometida com a proposição de políticas públicas de formação de professores
e de valorização do magistério, ancorada nas lutas e movimentos dos educadores (ARRUDA;
LINO, 2019).
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

A Anfope, em movimento coletivo com as demais entidades científicas do campo


educacional, tem se posicionado contra os retrocessos na política educacional e em defesa da
democracia, assim como, em passado recente, se empenhou na proposição coletiva de projetos
educacionais que permitissem a construção de uma sociedade mais democrática, justa e igualitária:
ainda uma utopia a realizar. Foi assim, com a luta por uma Lei de Diretrizes e Bases que
contemplasse os anseios da sociedade brasileira, derrotada no Congresso Nacional em 1996, assim
como também ocorreu com o Plano Nacional de Educação, em 2000, também denominado da
sociedade brasileira, em contraposição ao aprovado. O atual Plano Nacional de Educação 2014-
2024 foi uma conquista coletiva importante, ainda que parcialmente desfigurado, e hoje, devido ao
descaso governamental e a edição da Emenda Constitucional n. 95/2016, que congelou os
necessários investimentos ao cumprimento de suas 20 metas, tem sua efetivação comprometida.
Dentre as 20 metas estabelecidas pelo PNE, considerado como “epicentro das políticas
educacionais” (DOURADO; TUTTMAN, 2019) que visam a afirmar o direito à educação, quatro –
Meta 15, 16, 17 e 18 – se referem à formação e valorização dos profissionais da educação e à
instituição de uma política nacional de formação dos profissionais da educação.

Ao longo da sua trajetória, a Anfope consolidou uma concepção de formação conhecida


como base comum nacional, que mais do que nunca é preciso reafirmar, e que se opõe frontalmente
às concepções impostas pela BNCC da educação básica e pela BNC da Formação. Os princípios da
base comum nacional – sólida formação teórica e interdisciplinar; unidade teoria-prática; trabalho
coletivo e interdisciplinar; gestão democrática; compromisso social e valorização do profissional da
educação; avaliação e regulação dos cursos de formação – formulados e reafirmados ao longo das
últimas quatro décadas em encontros nacionais e documentos da entidade, se tornaram um consenso
no campo acadêmico. Como resultado da participação coletiva de diferentes entidades, instituições
e sujeitos, vimos os princípios que asseguram uma base comum nacional na formação, finalmente,
contemplados na legislação, com a Resolução CNE n. 02/2015, que estabeleceu a necessária
organicidade no processo formativo e articulação entre as instituições de educação básica e
superior, articulada à política de valorização profissional dos professores, contemplando formação,
carreira e condições de trabalho – e às demandas formativas da escola básica.

Em 20 de dezembro de 2019, com a homologação pelo MEC da Resolução CNE/CP n.


02/2019, que define “novas” Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores da
Educação Básica e institui uma Base Nacional Comum (BNC) para a Formação de Professores, a
Resolução 02/2015 foi revogada. Tal medida desconsiderou as manifestações das entidades

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 63


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

nacionais, ancoradas em estudos e pesquisas, que denunciavam que a adoção de concepções


ultrapassadas como a pedagogia das competências e uma visão restrita e instrumental de docência,
em nome da pretensa necessidade de adequação dos currículos dos cursos de formação de
professores à BNCC, descaracterizariam a formação de professores, com impactos negativos na
qualidade do ensino.
É importante destacar que o processo de elaboração das novas DCNs foi encaminhado de
forma aligeirada, sem discussão mais aprofundada com a área acadêmica, representada pelas
entidades nacionais, privilegiando o diálogo com instituições e fundações privadas, interessadas na
mercantilização de pacotes e materiais instrucionais. Sua aprovação foi efetuada de forma
injustificavelmente acelerada, desconsiderando o fato de que as IEs de todo o país estavam
realizando reformulações curriculares dos cursos de licenciatura à luz da Resolução 02/2015, como
justificaram o Colégio de Pró-reitores de Graduação das universidades públicas da Andifes – o
Cograd, e as entidades nacionais do campo acadêmico, dentre as quais destacamos a Anfope, a
Anped, a ABDC, a Anpae, o Cedes e o Forumdir, em diversas manifestações públicas.

Fiel à sua história, a Anfope, mais uma vez, conclama à resistência propositiva e contra-
hegemônica em defesa da formação e valorização dos profissionais da educação, contra o desmonte
da escola pública efetivada pela edição de medidas que configuram intenso retrocesso nas políticas
educacionais.

Nesse sentido, participar desse evento é um desafio, pois sabemos que a lógica da
padronização tem sido apresentada como a panaceia para os problemas da educação brasileira, e
hoje tem hegemonia, não só no MEC e no CNE mas também entre os dirigentes das redes públicas
estaduais e municipais, pois o Consed e a Undime integram o movimento “todos pela base”,
ajudando a construir uma hegemonia cujos pressupostos equivocados nos cabe denunciar.

Este texto aponta para a necessidade de desconstrução dessa hegemonia, e se posiciona em


defesa da educação pública e da formação de professores em uma concepção emancipadora.
Anuncio, assim, a posição da Anfope, que junto com as entidades nacionais, denuncia que o
desmonte projetado é mais amplo, vinculado à redução do Estado e dos direitos constitucionais, e
que seus efeitos na escolarização, como a conhecemos, na qualidade e na democratização da
educação, será arrasador, com marcas profundas, por muitos anos, a menos que consigamos frear
esse retrocesso, agora.

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

TODOS PELA BASE: A PADRONIZAÇÃO CURRICULAR COMO SOLUÇÃO UNIVERSAL

A padronização curricular, atualmente em fase de implantação nas redes de ensino de todo o


pais, teve seu movimento inicial em 2015, quando começa a elaboração da BNCC da educação
infantil e do ensino fundamental, aprovada em dezembro de 2017, em um processo marcado por
idas e vindas, simulação de diálogo, repúdio das entidades nacionais, intensa propaganda e quatro
versões díspares. Em dezembro de 2018, veio a aprovação da BNCC do ensino médio, em um
inexplicavelmente acelerado processo de tramitação, em que das cinco audiências públicas
previstas, duas não ocorreram devido a protestos dos professores. Cabe destacar que em 2016, a
Reforma do ensino médio foi imposta por medida provisória, transformada em lei, em fevereiro de
2017, mas não implantada devido à espera pela aprovação da BNCC. A pergunta que não quer calar
é: Por que a pressa, então? Em dezembro de 2019, veio a homologação da Resolução n. 02/2019,
que instituiu a Base Nacional Comum da Formação dos Professores da Educação Básica.

A Anfope, em coro com as demais entidades nacionais do campo educacional, considera


todo esse processo como imposição de uma padronização e centralização curricular desnecessária.
Tal processo, em vez de, como é largamente alardeado, promover a melhoria da educação básica,
visa apenas a ampliar o controle, induzindo ao aligeiramento curricular atendendo interesses de
fundações e institutos privados que hegemonizam o mercado da produção de material didático,
livros, softwares, pacotes e programas de gestão e de formação de professores.

Caracterizamos, inicialmente, nosso repúdio à forma como esse processo transcorreu, desde
2015, e especialmente após 2016, em que a falta de diálogo, a pressa e a adesão a concepções
pedagógicas ultrapassadas, a par de propagandas enganosas sobre os efeitos positivos de tais ações,
foram um padrão. Nesse período, o país mudou com o golpe parlamentar-jurídico-midiático-
empresarial que amplifica ao invés de reduzir, como prometido, a crise institucional: vimos o
recrudescimento de medidas autoritárias, ataques à democracia, retirada de direitos sociais, com
destaque para os trabalhistas e para a redução do direito à educação, altas taxas de desemprego,
piora nos serviços públicos, em um processo eleitoral marcado por polarização ideológica inédita,
intervenções do judiciário suspeitas, uma avalanche de fake news e ataques e discursos de ódio
contra diversos segmentos mais vulneráveis da população. A par da instabilidade política amarga-se
crise econômica que as medidas de austeridade não conseguem diminuir.

Em meio a esse cenário, a educação tem centralidade: sofre ataques em três instâncias
importantes: a gestão do MEC, a descaracterização do Fórum Nacional de Educação (FNE) e a
revogação de portarias de nomeação de Conselheiros do CNE. Esta última medida é importante

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 65


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

para a alteração no processo de elaboração e discussão da BNCC i,aprovada em dezembro de 2017.


Ao longo de 2018, a discussão sobre a BNCC do ensino médio, que ocorre de forma bastante
aligeirada, desperta a comunidade acadêmica, que percebe o significado do desmonte que a
padronização curricular representava, ampliando a reação e o repúdio à BNCC, mas apesar das
críticas, esta é aprovada em dezembro de 2018. Causa espanto a pressa em desmontar, anular,
cancelar e descontinuar políticas educacionais que vinham sendo implementadas, até 2016, em
especial as que asseguravam o direito à educação, a democratização do acesso, o respeito e a
valorização da diversidade.

Nesse cenário, o avanço do ultraconservadorismo no país, principalmente de vertente


religiosa fundamentalista, amplificou a perseguição a instituições educacionais, institutos de
pesquisa, entidades de professores, estudantes, e aos próprios professores ameaçados de
criminalização, especialmente, com a disseminação do projeto Escola sem partido e com a indução
ao denuncismo. Cabe destacar, ainda, a desresponsabilização do poder público com o cumprimento
do PNE e com o financiamento da educação, desde a Emenda Constitucional n. 95/2016 até o
contingenciamento de recursos para as IFES e os cortes de bolsas de pesquisa pela Capes. Nesse
contexto, temos o abandono de políticas de valorização de professores, como previa o PNE 2014-
2024.

Em resposta ao anúncio pelo MEC, em 13 de dezembro de 2018, de que proporia uma Base
Nacional Comum para Formação de Professoresii dentro da “nova” política de formação de
professores, a Anfope e o Forumdir publicaram nota, endossada por mais 8 entidades nacionais, em
que denunciaram a “imposição de propostas curriculares desvinculadas das demandas formativas de
estudantes e professores e da realidade concreta da escola pública brasileira”, e que esta
[...] desconsidera a pluralidade de ideias e concepções pedagógicas, os avanços do
conhecimento no campo educacional e a autonomia universitária corporificada nos
seus projetos de formação e não estabelece o necessário diálogo com os principais
atores da formação de professores, os professores e estudantes tanto dos cursos de
licenciatura, dentre os quais se destaca a pedagogia, quanto da escola básica a que esta
formação se destina (ANFOPE; FORUMDIR, 2018).

As duas entidades destacavam e apontavam o “caráter impositivo e arbitrário” da proposta


em contraste com o processo de elaboração da Resolução CNE n. 02/ 2015, discutida com os
professores, entidades, universidades, escolas e sindicatos quando do seu processo de elaboração. A
nota explicitava a defesa das DCNs de 2015, que materializavam os princípios da base comum
nacional, destacando dentre estes dois “explicitamente desconsiderados” na proposta apresentada:
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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

(1) a sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus


fundamentos históricos, políticos e sociais, que não podem ser dissociados do domínio
dos conteúdos da educação básica, se ensejamos criar condições para o exercício da
análise crítica da sociedade brasileira e da realidade educacional; e (2) a unidade
teoria-prática atravessando todo o curso de modo a garantir o trabalho como princípio
educativo na formação profissional (ANFOPE; FORUMDIR, 2018).

Na mesma direção, a Anped elaborou nota, assinada por 10 entidades nacionaisiii, que
explicitava que a BNC da Formação seria “a melhor forma de não enfrentar os problemas reais da
educação brasileira” e clamava que o CNE retomasse “o diálogo verdadeiro com a comunidade
educacional brasileira” (ANPED et al., 2018). Na nota, as entidades denunciavam a “imposição
contínua de políticas sem debate”, e a adoção por parte do MEC, a partir de 2016, de uma posição
unilateral, cuja tônica era “a ausência de participação da sociedade, a negação da possibilidade de
diálogo, a interdição da possibilidade de negociação”, como ocorreu com a tramitação reforma do
ensino médio, a BNCC e as DCNs do ensino médio. O mesmo processo se instaurou na tramitação
e aprovação das DCNs e da BNC da Formação.

Em 2019, o CNE começou a discutir a elaboração de proposta de alteração das diretrizes


curriculares e a BNC da formação. A recomposição da Comissão Bicameral de formação inicial e
continuada de professoresiv, cuja tarefa seria “acompanhar, monitorar, orientar e apoiar a
implementação de diretrizes curriculares nacionais”, no caso obviamente da vigente (Resolução n.
02/2015), “visando a consolidação de política nacional de formação dos profissionais da educação”,
já apontava para “a revisão das licenciaturas de formação de professores”. Na prática a Comissão
dava início aos trabalhos de elaboração de proposta visando à alteração da Resolução n. 02/2015:
outro processo marcado por falso diálogo, em que as posições fundamentadas das entidades
nacionais não foram acatadas, tendo em vista o privilegiamento de interesses das fundações
privadas.

Foram inúmeras as manifestações ao longo de 2019, das entidades nacionais, em defesa da


imediata implementação da Resolução n. 2/2015, postergada por diversas resoluções que adiavam o
prazo para sua efetivação nas IES. Tais adiamentos, segundo Dourado e Tuttman (2019, p. 203),
foram “tentativas de inviabilizar a materialização da Resolução CNE/CP n. 2/2015, tendo como um
dos protagonistas o próprio Conselho Nacional de Educação (CNE)”, como descrevem
minuciosamente, na apresentação do dossiê “Formação do magistério da Educação básica nas
universidades brasileiras: institucionalização e materialização da Resolução n. 2/2015”, publicado
na revista Formação em Movimento. Assim, apesar dos esforços e manifestações de diversas

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

entidades, que reafirmaram a relevância das DCNs para a formação dos profissionais da educação
no país, e que a construção de projeto institucional de formação inicial e continuada dos
profissionais da educação era fundamental e precisava ser concluído, não havendo necessidade de
alteração do prazo, que comprometia a materialização da Resolução, o CNE permaneceu surdo a
esses reclames.

Destacamos a seguir as normativas do CNE que efetivaram processos que dificultaram que
os dispositivos da Resolução CNE/CP n. 2/2015 fossem plenamente respeitados, institucionalizando
diversos adiamentos do prazo inicial de 1º julho de 2017, para 1º julho de 2018 (Parecer CNE/CP n.
10, de 10 de maio de 2017/Resolução CNE/CP n. 1, de 9 de agosto de 2017); depois para 1º julho
de 2019 (Resolução CNE/CP n. 3, de 3 de outubro de 2018), determinado como “prazo
improrrogável”, e por último para 22 de dezembro de 2019 (Resolução n. 1, de 2 de julho de 2019).
Antes deste último prazo, a Resolução n. 2/2015 foi finalmente revogada pela Resolução n. 2/2019.
A ampliação dos prazos provocou a procrastinação de muitas IES e cursos na materialização da
reformulação proposta, a par das notícias que esta seria efetivamente revogada, sendo que dada a
extensão de prazo, muitas IES que efetivaram o processo de reformulação, não conseguiram que
este fosse finalizado com a aprovação dos Conselhos Superiores até 20 de dezembro.

A descrição desse processo demonstra o esforço do CNE e do MEC em anular os efeitos da


Resolução n. 2/2015, visando a adequar os cursos de licenciatura aos referenciais da BNCC,
instituídos pelas Resoluções CNE/CP n. 2/2017 (educação infantil e ensino fundamental) e CNE/CP
n. 4/2018 (ensino médio), como explícito no art. 1º da Resolução n. 2/2019, que define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Professores para a Educação
Básica e institui a BNC-Formação. A Resolução n. 2/2019 deve ser implementada em todas as
modalidades dos cursos e programas destinados à formação docente (art. 1º), sendo que as
Instituições de Ensino Superior (IES) têm o prazo-limite de até dois anos, isto é, até 21/12/2021,
sendo que as IES que já implementaram a Resolução CNE/CP n. 2/2015, terão mais um ano de
prazo (até 21/12/2022), tendo como referência a data da publicação da Resolução, para adequação
das competências profissionais docentes previstas.

Como explicitado em documento da Anfope, sobre a sua posição na reunião realizada em 9


de abril de 2018, no CNE, sobre a Formação Inicial e Continuada de Professores, repudiamos a
vinculação da formação de professores à BNCC, pois esta
[...] representa a prevalência de uma concepção esvaziada e reduzida de currículo, e ao
privilegiar as posições defendidas por setores do empresariado interessados na

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

padronização do ensino, desvela-se o real interesse de atender fins mercadológicos,


como a venda de material didático e a oferta de serviços de consultoria para a
implementação da BNCC, além da venda de pacotes de formação continuada, em um
processo que desvia recursos públicos para empresas e fundações privadas, agora
elevados, com o aval do MEC, a parceiros preferenciais das redes de ensino, em
detrimento das Universidades públicas (ANFOPE, 2018).

Ademais, a Anfope defende uma concepção formativa de base comum nacional, que em
nada se assemelha à proposição da BNC da Formação.
A base comum nacional, que defendemos historicamente e que está contemplada nas
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação para a Formação Inicial e
Continuada de Professores (Resolução CNE n. 2/2015), é uma concepção básica de
formação do educador e um corpo de conhecimento fundamental em que a docência se
constitui como a base da identidade profissional de todo educador, e, portanto, não
pode ser confundida como um currículo mínimo ou um elenco de disciplinas
(ANFOPE, 2018).

Nossa posição é de que “a lógica centralizadora nos processos educativos e a vinculação


intrínseca a avaliações de larga escala de instituições, professores e estudantes, para a geração de
índices de desempenho” não oferecem qualquer garantia de melhoria do ensino ou de elevação da
qualidade dos processos formativos, ao contrário, a rebaixam e desqualificam (ANFOPE, 2018).

A pressa em adiar e, posteriormente, revogar as DCNs em processo de implementação – sem


efetuar a necessária avaliação desta implantação e seus efeitos – e, assim, adequar os cursos à
BNCC, está associada a uma concepção que, simplificadamente, reside em dois pressupostos
equivocados: (1) a centralidade da formação de professores nos processos de elevação da qualidade
da educação básica, e (2) a padronização curricular como indutora da equalização educacional.
Obviamente, sabemos e defendemos que a formação de professores é fundamental para a elevação
da qualidade do ensino, mas também sabemos que a formação por si só não é determinante nessa
promoção. Políticas de formação devem vir acompanhadas de políticas de valorização dos
profissionais da educação, dos recursos necessários para assegurar condições concretas de
funcionamento das escolas, e da articulação entre as instâncias formativas e as de atuação, isto é,
das instituições de ensino superior e da educação básica. Não se pode descuidar, ainda, da
articulação entre formação inicial e continuada, alinhada às demandas formativas da população,
respeitadas as diversidades das instituições e do público-alvo, assim com a pluralidade de
concepções pedagógicas, e possibilidade de construção coletiva do projeto pedagógico da escola.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Tal proposição era assegurada pela Resolução n. 2/2015, e sua revogação aborta rico processo de
construção de projetos institucionais de formação em curso em IES de todo o país, como
apresentam Dourado e Tuttman (2019).

Quando o MEC apresentou à imprensa a proposta da BNC da Formação, em dezembro de


2018, destacou alguns pressupostos, baseados em evidências: (1) “A origem socioeconômica do
aluno pode influir no desempenho escolar, mas pode ser compensada pela ação da escola”; (2)
“Uma boa formação dos professores faz diferença significativa na aprendizagem”; (3) “Evidências
mostram que, entre os fatores que podem ser controlados pela política educacional, o professor é o
que tem maior peso na determinação do desempenho dos alunos (Ocde)”.

Sem querer estender o debate sobre a qualidade educacionalv, analisaremos, brevemente, os,
argumentos apresentados pelo MEC.

Essas meias verdades, alardeadas pela mídia, responsabilizam as escolas e seus


profissionais, especialmente os professores, pelo baixo desempenho dos estudantes,
especificamente, nos exames de larga escala. Assim, desconsidera-se o fato de que sem ações de
assistência estudantil, que minimizem o desfavorecimento socioeconômico, não há significativa
elevação do desempenho escolar do aluno, como comprovam os índices de evasão, repetência e
desempenho. Concordamos que esse efeito pode ser compensado pela ação da escola, desde que
esta possua os recursos materiais e humanos necessários, o que não é a realidade da maioria das
escolas brasileiras, que não dispõem de laboratórios, bibliotecas, quadras, salas de aula, banheiros e
refeitórios, em condições de utilização, e nem dos equipamentos e materiais didáticos necessários,
assim como dos recursos humanos. As salas de aula superlotadas demonstram que faltam
professores. Os recursos que dariam condições à escola de “compensar” a origem socioeconômica
dos alunos, assegurando a efetiva igualdade de oportunidade, requerem financiamento, sempre
aquém das necessidades e, hoje, contingenciado.
Atribui-se ao professor maior peso na “determinação do desempenho dos alunos”, tendo
como referência dados da Ocde, o que é relativamente real desde que sejam fornecidas ao professor
as condições materiais para tal, o que no cenário brasileiro, ainda é uma utopia, pois o professor
enfrenta cotidianamente adversas condições de trabalho, a que se devem acrescer os baixos salários
e a ausência de planos de carreira, que evidenciam a desvalorização do magistério por parte do
poder público. Concordamos inteiramente que “uma boa formação dos professores faz diferença
significativa na aprendizagem”, e como a maioria dos professores brasileiros é formada em
instituições privadas, não universitárias, e hoje, na modalidade a distância, essa é uma “evidência”

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

de que a proposta de reformulação não está voltada pera o cerne do problema: a disseminação de
cursos sem qualidade mínima que, sem maior controle, formam a maioria dos licenciados no país.
As IES públicas ostentam níveis de excelência no ensino, associam ensino, pesquisa e extensão, e
apresentam elevada produção acadêmica, e hoje sofrem ataques a sua autonomia e cortes de verbas
sem precedentes. A BNC-Formação propõe reduzir currículos e descaracterizar a formação,
desmontando e desqualificando os cursos exitosos, em um processo que equalizará por baixo a
qualidade dos cursos de licenciatura, o que certamente não elevará a qualidade da educação básica.
O mesmo é proposto pela BNCC.
Começamos 2019 com a BNCC da educação básica aprovada e com prazo para a sua
implementação. Nos estados da federação, apenas o Rio de Janeiro, por meio do seu Conselho
Estadual de Educação (CEE), fez uma proposição para que as diretrizes curriculares respeitassem a
autonomia dos sistemas e da diversidade de público e instituições no estado, em um processo
democrático, envolvendo o FEE e as entidades nacionais, em uma ampla e rica discussão.

Não trataremos aqui das concepções equivocadas de currículo que imperam na BNCC e
agora na BNC da Formação, nem da ultrapassada pedagogia das competências, que dá a base
conceitual a essas propostas e nem dos danos que uma padronização imposta e descontextualizada
trará para as redes de ensino e que será a base curricular dos cursos de licenciatura. Para este texto,
abordaremos, ainda que brevemente, a questão da falsa dicotomia teoria-prática, um dos
argumentos exaustivamente utilizados para justificar a “reformulação” da formação, atribuindo aos
cursos de licenciatura um excesso de teoria e uma ausência da prática. Dada a escassez de tempo,
este será, doravante, o recorte utilizado.

TEORIA E PRÁTICA: UMA FALSA DICOTOMIA

Hoje, no campo educacional, há uma crítica bastante disseminada de que os cursos de


formação de professores são predominantemente teóricos e que a prática é subalternizada. Assim,
os gestores de políticas afirmam ser esta uma das causas da alardeada “perda de qualidade” da
formação e do “despreparo” do magistério no início da carreira e, consequentemente, dos baixos
índices de aprendizagem dos estudantes. Assim, se produziu nas esferas dos sistemas educacionais
um discurso – encampado por entidades de dirigentes educacionais (Consed e Undime), com
grandes repercussões na mídia, influenciando a opinião pública, que mudando a formação,
tornando-a mais prática, esse desempenho será alavancado. Impõe-se um discurso hegemônico,
pautado no senso comum, de que “a teoria na prática é outra”, que há mais do que uma dicotomia

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 71


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

entre teoria e prática, mas o excesso da primeira e a carência da segunda, e defendendo a primazia
da prática sobre a teoria, se propõe a inversão dessa simetria. Atribui-se à dicotomia teoria-prática,
isoladamente, a determinação da qualidade dos cursos e da atuação dos professores e, também de
forma isolada, a inversão deste binômio, a solução dos problemas atuais da formação.

Cabe destacar dois princípios da base comum nacional, indissociáveis, e que não podem ter
primazia um sobre o outro, pois são complementares e igualmente importantes:
– sólida formação teórica e interdisciplinar sobre o fenômeno educacional e seus
fundamentos históricos, políticos e sociais, bem como o domínio dos conteúdos da
educação básica, de modo a criar condições para o exercício da análise crítica da
sociedade brasileira e da realidade educacional e o pleno desenvolvimento das
aprendizagens dos estudantes da educação básica;

– unidade teoria-prática atravessando todo o curso e não apenas a prática de ensino e


os estágios supervisionados, de modo a garantir o trabalho como princípio educativo
na formação profissional (ANFOPE, 2014, p. 15).

Cabe pontuar, agora, como a Resolução n. 02/2019 vê essas duas questões. Segundo as
novas DCNs, em seu art. 5º, citando a LDB, a formação dos professores teria como fundamentos:
I. a sólida formação básica, com conhecimento dos fundamentos científicos e sociais
de suas competências de trabalho;

II. a associação entre as teorias e as práticas pedagógicas; e

III. o aproveitamento da formação e das experiências anteriores, desenvolvidas em


instituições de ensino, em outras atividades docentes ou na área da Educação
(BRASIL, 2019).

Note-se que a sólida formação teórica e interdisciplinar é reduzida à formação básica, logo,
apenas elementar, e que os conhecimentos dos fundamentos científicos e socais também referem-se,
apenas, às competências de trabalho. Da mesma forma, não há mais a proposição da unidade
teoria/prática mas a associação entre teorias e práticas, não necessariamente articuladas. A premissa
do aproveitamento de formação e experiências anteriores, é mais um elemento preocupante, pois
reduz mais ainda a formação.

O campo educacional, nas últimas décadas, avançou bastante nas teorizações sobre a
importância da interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade, em uma tentativa de superar a
multidisciplinaridade e a fragmentação de saberes. Da mesma forma, tem se ampliado a tendência
de que a dimensão da prática perpasse todo o curso, sendo cada vez mais comum atividades de

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

pesquisa, observação, inserção e conhecimento do campo, em escolas favorecendo que o


licenciando tenha experiências práticas com o lócus da futura atuação. Cabe destacar que o Pibid
favoreceu muito esta inserção prática nas escolas, desde os primeiros períodos do curso, a par de
outras atividades de pesquisa e extensão. Assim, hoje, é mais comum a realização de atividades
eminentemente práticas, em disciplinas com carga horária exclusivamente teórica.

Em uma simplificação metodológica, para avançar na discussão proposta, destacamos, no


curso de Pedagogia, duas áreas que consideramos materializar mais essa falsa dicotomia: os
chamados fundamentos da educação, área que agrega disciplinas como filosofia da educação,
sociologia da educação, história da educação, antropologia da educação, economia da educação e
política da educação, entre outras, e a área das metodologias de ensino que agregam a didática geral
e as didáticas ou metodologias de ensino específicas e as práticas de ensino. Há uma falsa
concepção de que as disciplinas de práticas de ensino e os próprios estágios curriculares prescindem
da teoria, e mesmo da leitura de textos, o que é uma inverdade. Cabe destacar o avanço que
significou a Resolução n. 2/2015, para a formação, ao incentivar maior aproximação entre as
instituições formadoras e o campo de atuação profissional, orientando os estudantes no mundo do
trabalho, desde o início do curso mediante a Prática com 400 horas e o Estágio Supervisionado,
também com 400 horas.

A fronteira, no campo acadêmico, entre a teoria e a prática, é cada vez mais fluida, como
comprovam inúmeros estudos, sendo que a aprendizagem é mais eficaz quanto mais se eliminam as
barreiras que colocam teoria e prática, artificialmente, em campos opostos, principalmente na
formação de professores.

Como anunciamos, não trataremos nesse texto do conceito de competências, que permeiam
toda a Resolução n. 2/2019, mas cabe fazer alguns destaques em itens que chamam a atenção pelo
absurdo da proposição. Assim, não cabendo aqui espaço para analisar itens do art. 8º, que elenca os
fundamentos pedagógicos dos cursos destinados à Formação Inicial de Professores para a Educação
Básica, em número de nove, destaco, pelo estranhamento que provoca, o último, que expressa como
fundamento: “IX. decisões pedagógicas com base em evidências”.

Ainda que de forma breve, é necessário apontar a questão da carga horária e da distribuição
desta entre os componentes curriculares. A inversão proposta conceitualmente entre a teoria e
prática se materializa na distribuição da carga horárias dos cursos, por reduzir ao mínimo (25%) as
disciplinas a que se atribui a formação teórica.

No Art. 11, há a distribuição da carga horária de 3.200 horas, em três grupos:

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

I. Grupo I: 800 (oitocentas) horas, para a base comum que compreende os


conhecimentos científicos, educacionais e pedagógicos e fundamentam a educação e
suas articulações com os sistemas, as escolas e as práticas educacionais.

II. Grupo II: 1.600 (mil e seiscentas) horas, para a aprendizagem dos conteúdos
específicos das áreas, componentes, unidades temáticas e objetos de conhecimento da
BNCC, e para o domínio pedagógico desses conteúdos.

III. Grupo III: 800 (oitocentas) horas, prática pedagógica, assim distribuídas:

a) 400 (quatrocentas) horas para o estágio supervisionado, em situação real de trabalho


em escola, segundo o Projeto Pedagógico do Curso (PPC) da instituição formadora; e

b) 400 (quatrocentas) horas para a prática dos componentes curriculares dos Grupos I
e II, distribuídas ao longo do curso, desde o seu início, segundo o PPC da instituição
formadora.

Cabe destacar outro estranhamento, que se refere ao estágio, em situação real de trabalho, o
que induz a pensar na precarização do trabalho do licenciando, que está em atividade de estágio,
logo de aprendizagem, e não de trabalho. No art. 7º, que trata dos princípios norteadores da
organização curricular dos cursos, aponta no inciso VI, o fortalecimento da responsabilidade, do
protagonismo e da autonomia dos licenciandos com o seu próprio desenvolvimento profissional.
Perguntamos se essa responsabilização, autonomia e protagonismo não embutem a
desresponsabilização da instituição com o estudante, substituindo profissionalização e
profissionalidade por precarização.

Segundo o art. 12 da Resolução n. 2/2019, as atividades do Grupo I devem ter início no 1º


ano, integrando três dimensões das competências profissionais docentes, conhecimento, prática e
engajamento profissionais, entendidas como organizadoras do currículo e dos conteúdos segundo as
competências e as habilidades previstas na BNCC. As temáticas a serem trabalhadas no Grupo I,
seriam: I. currículos e seus marcos legais; II. didática e seus fundamentos; III. metodologias,
práticas de ensino ou didáticas.

No art. 13, há a discriminação das temáticas do Grupo II, em que a carga horária de 1.600
horas deve efetivar-se do 2º ao 4º ano. Aqui há uma questão muito grave, pois menciona três tipos
de cursos, separando, assim, a formação do professor multidisciplinar ou generalista, hoje realizada
na Pedagogia, em dois cursos distintos: I. formação de professores multidisciplinares da Educação
Infantil; e II. formação de professores multidisciplinares dos anos iniciais do Ensino Fundamental.

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

As licenciaturas, seriam o tipo de curso III. formação de professores dos anos finais do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio.

Segue-se uma discriminação das habilidades a serem incluídas nos chamados “estudos
comuns” a esses três cursos, nas 1.600 horas; além do aprofundamento nas áreas e nos componentes
curriculares da BNCC de cada curso específico de formação de professores (1) para a Educação
Infantil; (2) para os anos iniciais do Ensino Fundamental, (3) para os anos finais do Ensino
Fundamental, e do Ensino Médio, além dos saberes específicos: conteúdos da área, componentes,
unidades temáticas e objetos de conhecimento previstos pela BNCC e correspondentes
competências e habilidades.

O proposto pela Resolução n. 2/2019 é totalmente diverso do até hoje experienciado pelos
cursos de formação de professores, desde o Estatuto das Universidades Brasileiras. Uma mudança
tão radical não pode ser implementada, apenas baseada em evidências, desprezando os avanços do
conhecimento pedagógico. As concepções, princípios e fundamentos dessas “novas” diretrizes,
ademais de confusa leitura e precária compreensão, partem de pressupostos equivocados, falsas
evidências, e um completo desrespeito pelas IES comprometidas com a elevação da qualidade da
formação.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Como destacado pela Anfope (2016, p. 34), a Resolução n. 2/2015 constituiu um importante
avanço para a formação de professores, e não somente para as series iniciais, mas para toda a
educação básica, por “incorporam a formação para a gestão no percurso formativo de todos os
estudantes, de todas as licenciaturas, para todas as áreas, níveis e modalidades de ensino”. No que
tange à valorização dos profissionais da educação, elas são uma conquista relevante, ao propor “a
articulação entre a formação inicial e a continuada, levando, também, em consideração as condições
de formação acadêmica, as condições materiais de trabalho, os planos de carreira e de salários”
(ANFOPE, 2016, p. 34).

As atuais DCNs e a BNC da Formação (Resolução n. 2/2019) trazem uma drástica mudança
de concepção formativa e uma fundamentação ancorada em pedagogias ultrapassadas. Partindo do
falso pressuposto de que a teoria e a prática, ao invés de articuladas indissociavelmente, são
dicotômicas e a primazia deve ser ofertada à prática, quando ambas são primordiais, produz uma
proposta de curso que, se implementada, destituirá os futuros professores da capacidade de formular

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

e refletir sobre a sua prática, pois terão, como o “Velho do Restelo”, cantado por Camões, um
“saber só de experiências feito”.

Nesse sentido, interrompe-se o lento, mas progressivo processo de profissionalização do


professor, que recua. No lugar, teremos um subprofissional, capaz apenas de seguir os manuais
didáticos de implantação dos componentes da BNCC, condizente com o cenário anunciado de
precarização da atividade docente. Isso só será possível pela alienação gerada por uma formação
que expurga o conhecimento científico de seu currículo, privilegiando não a prática, mas a
execução de tarefas, impostas por uma lucrativa, porém vazia e empobrecida, padronização. Como
denunciavam as entidades, vivemos mais um retrocesso educacional, “que agora propõe o desmonte
dos cursos de formação de professores em nível superior e ameaça a carreira do magistério, ao
assumir uma visão tarefeira, reduzida e alienada da docência” (ANFOPE; FORUMDIR, 2018).

As áreas da didática e da prática de ensino serão, assim, como os fundamentos da educação,


vítimas dessa padronização, e longe de se fortaleceram, serão aviltadas, deformadas e
descaracterizadas. O movimento renovador no campo da didática, que a colocava em questão e
clamava por uma nova didática, que superasse a orientação tecnicista, está na base da criação do
Endipe. Hoje, o neotecnicismo avança, dentro do processo de imposição da padronização e
centralização que a comunidade acadêmica repudia. Resistimos! É, mais do que nunca, necessário.

Ademais, não haverá a garantia dos direitos de aprendizagem tão propagandeados como
objetivos da BNCC, e nem da equidade prometida, a menos que o padrão de equidade seja a penúria
intelectual e o conhecimento reduzido a evidências, à alienação de estudantes e de professores que
executam tarefas sem sentido e significado, tão distante da utopia de uma educação emancipadora,
que alimentou de esperança gerações de educadores.
Esperançamos, se não desesperamos.

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BASE NACIONAL COMUM DA FORMAÇÃO COMO PROPOSTA DE DESMONTE E DESCARACTERIZAÇÃO DA FORMAÇÃO

REFERÊNCIAS

ANFOPE. Documento Final do XVII Encontro Nacional da ANFOPE. Políticas Nacionais de Formação no Sistema
Nacional de Educação. Base Nacional Comum para a educação básica e a formação de professores. Brasília, DF:
Anfope, 2014. Disponível em: http://www.anfope.org.br/wp-content/uploads/2018/05/17%C2%BA-Encontro-
Documento-Final-2014.pdf. Acesso em: 17 fev. 2020.

ANFOPE; FORUMDIR. Manifesto em defesa da formação de professores. [S.l.: s.n.]: 14 dez 2018. Disponível em:
http://www.anfope.org.br/cartas-e-manifestos/2018. Acesso em: 17 fev. 2020.

ANFOPE. Documento referente à Reunião da Comissão Bicameral do Conselho Nacional de Educação sobre a
Formação Inicial e Continuada de Professores. Brasília: [s.n.], 2018. Disponível em: http://www.anfope.org.br/wp-
content/uploads/2018/05/ANFOPE-CNE-9abr-2018-.pdf. Acesso em: 20 mar. 2020.

ANPED et al. Nota sobre a Base Nacional Comum para Formação de Professores. [S.l.: s.n.]: 17 dez. 2018.
Disponível em: http://www.anped.org.br/news/nota-sobre-base-nacional-comum-para-formacao-de-professores Acesso
em: 17 fev. 2020.

ARRUDA, M. da C.C.; LINO, L.A.L. Editorial. Formação em Movimento, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 7-10, jan-jun. 2019.
Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/FORMOV/issue/view/93. Acesso em: 17 fev. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 2, de 20 de Dezembro de 2019. Define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional
Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União: seção
1, Brasília, DF, p. 87-90, 10 fev. 2020. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/. Acesso em: 17 fev. 2020.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Resolução CNE/CP n. 2/2015, de 1º de julho de 2015. Define as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior (cursos de licenciatura, cursos de formação
pedagógica para graduados e cursos de segunda licenciatura) e para a formação continuada. Diário Oficial da União:
seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 8-12, 2 de jul. 2015. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/. Acesso em: 17 fev.
2020.

DOURADO, L.F.; TUTTMAN, M.T. Formação do magistério da Educação básica nas universidades brasileiras:
institucionalização e materialização da Resolução n. 2/2015. Apresentação Dossiê. Formação em Movimento, [s.l.], v.
1, n. 2, p. 197-217, jul-dez. 2019. Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/FORMOV/issue/view/108/DA.
Acesso em: 17 fev. 2020.

Notas de fim

i
Há uma mudança significativa na metodologia, aumentam as reações contrárias intensificadas a partir da divulgação de
uma terceira versão da BNCC, diferente da primeira e da segunda versão. Os canais de diálogo com o campo acadêmico
são substituídos por um simulacro de participação em audiências em que inexiste a possibilidade do contraditório,
desconsiderando críticas qualificadas ao documento.
ii
A “Proposta para a Base Nacional Comum da Formação dos Professores da Educação Básica” foi apresentada à
imprensa pelo Ministério da Educação, em 13 de dezembro de 2018.
Anped, Anfope, ABdC, Abrapec, Anpae, Cedes, Fineduca, Forumdir, SBEnBio e Movimento Nacional em Defesa do
iii

Ensino Médio.
iv
A Comissão Bicameral de formação inicial e continuada de professores foi recomposta pela Portaria CNE/CP n. 10,
de 8/4/2019, com o objetivo de acompanhar, monitorar, orientar e apoiar a implementação de diretrizes curriculares
nacionais, por meio de ações articuladas entre o CNE, o MEC, as Instituições Ensino Superior, o INEP, a CAPES, as
entidades de campo, as Secretarias de Educação (seus sistemas e redes), visando à consolidação de política nacional de
formação dos profissionais da educação, bem como promover a revisão das licenciaturas de formação de professores.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Compõem a Comissão, os conselheiros: Maria Helena Guimarães de Castro (presidente), Mozart Neves (relator),
Alessio Costa Lima, Antonio Carbonari, Aurina Santana, Luiz Curi, Marilia Ancona, NilmaFontanive, Suely Menezes e
Tania de Almeida. (Portal do MEC/CNE).
v
A avaliação da qualidade da educação é por demais complexa para ser reduzida apenas aos resultados dos estudantes,
mas deve considerar diversos fatores, a maioria de ordem material, que requerem recursos e investimentos, e que
determinam a elevação ou o rebaixamento dessa qualidade, assim como do desempenho dos estudantes.

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E QUANDO A LEI N. 10.639 ACABAR, O QUE FAZER?
INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

Luiz Fernandes de Oliveira


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Em primeiro lugar, gostaríamos de fazer dois esclarecimentos sobre o título deste texto. O
primeiro é que a denominação da Lei é meramente política, pois o que existe de fato (ainda) são as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER), que regulamentam e normatizam o
artigo 26o da LDBEN. O segundo esclarecimento é que este texto começou a ser escrito menos de
uma semana após a posse do novo governo federal de ultradireita, conservador e composto por
militares, ruralistas do agronegócio, fundamentalistas religiosos, banqueiros e defensores da Escola
Sem Partido, nos principais postos de comando do Estado Brasileiro. Em seguida, foi desenvolvido
ao longo do ano de 2019.

O que a atual conjuntura nacional nos demonstra, com a vitória eleitoral da ultradireita e
com sucessivos fatos e interpretações deles, é que vivemos um período de grandes retrocessos
políticos, sociais, econômicos e, no que diz respeito à temática deste texto, culturais, racial e
ideológico.

Nesta conjuntura, quando pensamos em elencar vários pontos de reflexão, nos parece
rememorar velhas lutas que estavam superadas e algumas, inclusive, superadas há séculos. Não nos
cabe aqui analisar todas, mas ao menos elencar algumas como “a terra é plana”, o “fantasma do
comunismo”, “o fim do socialismo no Brasil”, “povos indígenas emperram o desenvolvimento
brasileiro”, “não há dívida histórica com os povos africanos e seus descendentes, pois estes se
deixaram escravizar”, “professores são doutrinadores e as universidades são formadoras de
subversivos”. No aspecto de políticas de estado, “o mercado deve ser o propulsor de políticas
sociais”, as leis trabalhistas e os direitos “são fechaduras para desenvolver o país e não combate o
desemprego”, a previdência social “um monstro que dá prejuízo ao Estado” e,enfim, um retorno de
meio século: “os militares são os que sabem como desenvolver o Brasil”.

AS TAREFAS ANUNCIADAS PELA MILITÂNCIA POLÍTICA

A palavra de ordem contra essas iniciativas virtuais e de Estado é “resistência” ou “ninguém


solta a mão de ninguém”. Porém, o foco dessas palavras de ordem já demostra que nos situamos
numa posição reativa e não propositiva, em que iniciativas políticas, mobilizações, ações
organizadas etc., se deslocam para um estado de denúncia e de mobilização para que direitos
conquistados não desapareçam. As iniciativas propositivas, incluindo o nível da propaganda (virtual
ou não), estão no campo da direita e da ultradireita. “A terra não é redonda”, “as vacinas causam

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

doenças”, “o comunismo ainda existe no Brasil”, enfim, proposições expressas naquilo que José de
Abreu (ator teatral) narra como “ignorância orgulhosa”.

O confronto de ideias nesse nível suscita até mesmo novas formulações conceituais como a
“pós-verdade” e a “auto-verdade” (D’ANCONA, 2018), ou seja, o que é dito, narrado e divulgado
por autoridades, sejam elas governamentais ou não, sem nenhuma referência fundamentada em
pesquisas ou estudos, se qualificam como se fossem realidade, embora sejam meras interpretações.

Nesse confronto, as tarefas colocadas pelos movimentos sociais e pela esquerda, em geral,
se limitam ao campo da denúncia, da contraposição argumentativa e retórica, com muito pouco
poder de reversão de políticas públicas ou proposição e implementação de novas. No plano
governamental, legislativo e jurídico, retrocessos sociais são implementados, legislações e
regulamentações de políticas públicas são cortadas naquilo que são sua materialidade: recursos
humanos e financiamento. Por outro lado, leis são reinterpretadas na medida em que os movimentos
sociais tenham forças de resistência.

Entretanto, nos parece que o horizonte da resistência, numa perspectiva de médio e longo
prazo, ainda se torna pior na medida em que os sujeitos políticos contra hegemônicos com maior
capacidade de ação política, têm como limite de ação somente o processo eleitoral, embora realizem
ações políticas de conscientização. Porém, esta história não é nova. Não vivenciamos, neste aspecto
de limites de horizontes, uma novidade, desde que tenhamos evidentemente conhecimento histórico
e sociológico.

Quantas vezes as gerações passadas vivenciaram profundos períodos de refluxos dos


movimentos populares e sociais? Quantas vezes vivenciamos regimes de exceção, em que direitos
sociais e políticos não existiam ou eram reprimidos? Quantas vezes as gerações passadas de
lutadores sociais vislumbravam, quando o faziam, uma transformação somente nos próximos 50
anos de vida? Se pensarmos em grandes transformações políticas profundas, já se vão mais de 50
anos.

A perspectiva que trabalharemos neste texto é aquela de que o horizonte da utopia igualitária
está sempre presente, pois aprendemos com a história que aquilo que foi impossível e inimaginável
um dia, se concretizou a partir da ação política concreta de sujeitos coletivos que assumiram a tarefa
de transformar sua realidade, pois não satisfeitos com ela, inventaram novos horizontes de vida e
novas possibilidades comunitárias, sejam elas culturais, tecnológicas, políticas ou sociais.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 81


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

OS ATAQUES À EDUCAÇÃO E A GUERRA IDEOLÓGICA PARA A DISPUTA DO FUTURO

Com a entrada do novo governo de ultradireita, logo nos primeiros meses se instalou uma
crise que, ao contrário do que se pensa, não é conjuntural, mas um projeto pensado, articulado e
divulgado para mais a frente pode se constituir numa ação de Estado permanente, especialmente na
educação, em que o futuro é o que está em disputa.

Os ataques à educação brasileira nos mais diversos meios de comunicação e nas redes
sociais evidenciam que este governo não quer somente privatizar a educação, mas, principalmente,
evitar a constituição e crescimento de uma massa crítica num futuro bem próximo. Portanto,
divulgações esdrúxulas como o terraplanismo, a ineficiência das vacinas, o anti-intelectualismoo
exacerbado, a improdutividade das universidades, o doutrinarismo de docentes na educação básica
etc., não são sintomas de ignorância medieval ou falta de caráter de certos ideólogos de extrema-
direita. Pelo contrário, é um projeto de poder de médio e longo prazo.

Os ataques do ponto de vista material foram imediatos: corte de verbas, contingenciamentos,


tentativas midiáticas de desqualificação das universidades, desqualificação da profissão docente no
que diz respeito à formação e investimento material na educação básica, congelamento e cortes de
direitos dos profissionais da educação.

A guerra ideológica se expressa como numa guerra real tradicional, ou seja, a cada trincheira
e front uma granada para cegar o inimigo, confundi-lo, distraí-lo ou chamar atenção para embaçar a
visão dos “inimigos da nação”. A cada granada, uma preocupação, uma tensão que, cotidianamente,
tenta desnortear a massa daqueles que podem ser a coletividade crítica e numerosa contra as
iniciativas estratégicas de manipulação dos oprimidos.

Essas ações, enquanto projeto, não têm nenhum pudor de enfrentar as reações, pelo
contrário, do lado da ultradireita há também uma militância que imprime um ritmo colossal, seja
nas redes sociais, seja nas ações diretas em nível governamental. Quando estudantes e profissionais
da educação vão as ruas, com milhões de pessoas, imediatamente os sujeitos governamentais
formulam uma reação midiática e vão para os meios de comunicação e, além de ignorarem os
protestos, partem para convocar a massa menos crítica para desqualificarem os manifestantes. São
táticas de guerra intensiva. Enfim, neste cenário, se faz urgente e necessário reaprender e
rememorar cotidianamente as experiências que nos fizeram avançar e construir o que foi
conquistado democraticamente em tantas lutas populares que travamos nos últimos 30 anos.

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

A LEI 10.639/2003 SOBREVIVEU PELA INSURGÊNCIA COTIDIANA

Num artigo intitulado “Guerrilhas na Educação: a ação pedagógica do Movimento Negro na


escola pública”, Pereira (2003) nos alerta que o antirracismo na educação brasileira foi forjado num
longo período. Situando brevemente a longa luta do movimento negro como propulsor de políticas
públicas e sujeito que fere a baioneta o mito da democracia racial, o autor descreve e analisa como
pesquisadores, professores e militantes, através de diversas iniciativas institucionais ou não, se
inserem em espaços brancos – universidades, institutos de pesquisas, escolas, eventos etc. – e
desobedecem um certo status quo, denunciando o racismo presente nestes espaços e propondo
conceitos e ações antirracistas. Como numa guerrilha, esses sujeitos pensam, formulam, mobilizam
e agem para desconstruir a ordem epistêmica, social e cultural branca do pensamento social e
pedagógico na educação brasileira. Como toda tática de guerrilha, ela exigiu um engajamento e uma
militância, que vai além dos padrões institucionais exigidos e permitidos.

A lei 10.639/2003 não foi um presente de parlamentares e do governo Lula à época, sobre
políticas de combate ao racismo na educação. Há um histórico de reflexões que tem início no
período pré e pós-abolição, que alcançam os intensos debates sobre a identidade nacional no final
do século XIX e início do XX, e são incorporadas pelos diversos setores negros e intelectuais ao
longo do século XX, até a emergência das questões atuais em educação.

Observando movimentos mais recentes, os movimentos negros a partir dos anos de 1980
atribuíam à educação um papel prioritário na superação do racismo. Segundo Gonçalves e Silva
(2000), o Movimento Negro Unificado estimulou no seu interior organizações e militantes capazes
de formular propostas em relação ao tema da educação. Essa mudança na capacidade de formulação
de propostas está relacionada ao crescimento de militantes com nível superior. Aqui se inicia um
maior intercâmbio e trocas de experiências entre espaços acadêmicos e militância.

Um caso exemplar é a Convenção do movimento negro, ocorrida em 1982, em Belo


Horizonte. O evento foi marcado pela aprovação do Programa de Ação do MNU, que propunha:
modificação dos currículos visando a eliminar da formação dos professores os preconceitos e
estereótipos relativos à cultura afro-brasileira e a criação de condições para que os negros não só
ingressassem em todos os níveis educacionais como pudessem permanecer no sistema de ensino
(GONÇALVES; SILVA, 2000). O MNU constituiu-se em um movimento nacional, ramificado em
todas as regiões brasileiras e, além da denúncia ao racismo, seus quadros se utilizaram e produziram
novos estudos e pesquisas sobre o acesso e a escolarização da população negra.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 83


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Não podemos esquecer que, além das alianças acadêmicas, a partir de 1982, com a eleição
de alguns representantes de oposição à ditadura militar em alguns governos estaduais, muitos
militantes do movimento negro ingressaram em assessorias para assuntos da comunidade negra e
em secretarias estaduais de educação e cultura. Em estados como Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia,
muitos desses assessores militantes buscavam interferir nos currículos escolares e nos livros
didáticos.

Um dado fundamental para se pensar a conjuntura do movimento negro e suas relações com
a educação no período subsequente é a sua relação com o movimento dos professores na década de
1980:
Na medida em que o movimento negro se engajou nas lutas pela valorização da escola
pública, ele pôde sensibilizar o setor educacional na defesa de suas reivindicações
contra o racismo (GONÇALVES, 1997, p. 499).

O movimento negro passou, assim, praticamente a década de 80 inteira, envolvido


com as questões da democratização do ensino. Podemos dividir a década em duas
fases. Na primeira, as organizações se mobilizaram para denunciar o racismo e a
ideologia escolar dominante. Vários foram os alvos de ataque: livro didático,
currículo, formação dos professores etc. Na segunda fase, as entidades vão
substituindo aos poucos a denúncia pela ação concreta. Esta postura adentra a década
de 90 (GONÇALVES; SILVA, 2000, p. 155).

Um marco histórico de ação do Movimento Negro e suas relações com os docentes e o


mundo acadêmico, foi o Seminário “O Negro e a Educação” organizado pelo Conselho de
Participação e Desenvolvimento da Comunidade Negra do Estado de São Paulo e a Fundação
Carlos Chagas. Segundo Pereira (2003, p. 28):
Foi como um rito de passagem. As intervenções já eram manifestamente engajadas na
denúncia das desigualdades raciais na educação, fato até então incomum em eventos
com essa temática. [...] Com clareza apresentavam a concepção de que nos currículos,
equipamentos e procedimentos didáticos se encontravam fatores fundamentais de
reprodução do racismo, potencializando os elevados índices de repetência e evasão
escolar entre a população negra.

A partir dessa conjuntura histórica é que surgem também as discussões no campo das ações
afirmativas na década de 1990, como por exemplo, a polêmica que envolve a sociedade acerca das
cotas para negros nas universidades públicas e outros setores governamentais e produtivos.

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

O Movimento Negro em 1988 viveu profundamente o Centenário da Abolição. Em todo o Brasil


ocorreram eventos, publicações de pesquisa, matérias de jornais sobre a situação da população negra no
Brasil, dentre eles, a temática da educação recebeu uma atenção especial. Ainda em 1988, segundo
Silva Jr. (2000), estabeleceu-se um marco para a redefinição do papel da África na concepção da
nacionalidade brasileira. Foi assegurado na Constituição o reconhecimento da pluralidade étnica da
sociedade brasileira e a garantia do ensino das contribuições das diferentes culturas e etnias na formação
do povo brasileiro.

Além disso, a prescrição da Constituinte que transformou racismo em crime a ser punido
com pena de prisão por meio do artigo 5º, inciso XLII, e foi regulamentada pela Lei n. 7.716/89,
consolidou a chamada “Lei Caó”. Este fato foi considerado pelo Movimento Negro um grande
avanço. Foi criada neste momento também a Fundação Cultural Palmares, entidade vinculada ao
Ministério da Cultura e que tem como principal objetivo lutar pela preservação dos valores
culturais, sociais e econômicos oriundos da influência africana na formação da sociedade brasileira.

Em 1995, o Movimento Negro comemora os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares.
Nesse momento, deflagra-se um intenso processo de discussões sobre a população negra. A
Universidade de São Paulo, por exemplo, produz um documento chamado “Zumbi, tricentenário da
Morte de Zumbi dos Palmares” com proposições sobre políticas antirracistas, as chamadas Ações
Afirmativas com ênfase na educação, culminando na Marcha Zumbi dos Palmares: Contra o
racismo, pela cidadania e a vida, na qual cerca de 30 mil negros e negras foram à Brasília, no dia 20
de novembro, com um documento reivindicatório que foi entregue ao então presidente Fernando
Henrique Cardoso. Dentre as reivindicações no campo educacional, ressaltamos: monitoramento
dos livros didáticos, manuais escolares e programas educativos controlados pela União;
desenvolvimento de programas de treinamento de professores e educadores que os habilite a tratar
adequadamente com a diversidade racial, identificar as práticas discriminatórias presentes na escola
e o impacto destas na evasão e repetência das crianças negras e; o desenvolvimento de ações
afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de
tecnologia de ponta.

Em fins da década de 1990, com a contribuição também de muitos intelectuais negros,


surgiu uma nova conceituação, para definição de 45% do povo brasileiro: a de afrodescendente, que
abrange os pretos e pardos, assim denominados nas pesquisas estatísticas do IBGE. Assim, o que se
procura construir é uma nova identidade positivamente afirmada, com histórias e culturas,
tradicionalmente herdadas ou reconstruídas de uma África ressignificadai. Mas também constitui-se

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

numa resposta-proposta às ambiguidades classificatórias que tanto pesaram e pesam sobre os negros
e seus descendentes no Brasil.

Momento significativo dessas novas elaborações foi a preparação e participação da


delegação brasileira à Conferência contra o Racismo, a Xenofobia, a Discriminação e a
Intolerância, promovida pela ONU, realizada na cidade de Durban (África do Sul), entre 31 de
agosto e 8 de setembro de 2001. Houve um intenso engajamento das organizações negras brasileiras
na construção e realização desta Conferência.

A conferência abriu uma agenda no Brasil que impulsionou debates e reflexões acadêmicas
muito além das propostas de cotas. Para Carneiro (2002, p. 213),
[...] o que Durban ressalta e advoga é a necessidade de uma intervenção decisiva nas
condições de vida das populações historicamente discriminadas. É o desafio de
eliminação do fosso histórico que separa essas populações dos demais grupos, o qual
não pode ser enfrentado com a mera adoção de cotas para o ensino universitário.
Precisa-se delas e de muito mais.

O Brasil, como signatário da “Declaração de Durban”, revigorou o debate sobre a


implementação de políticas de ações afirmativas como estratégia de combate ao racismo e, após a
posse do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, como resultado de uma negociação
entre o governo e os movimentos sociais, foi criada em 21 de março de 2003, a SEPPIR, órgão
assessor da Presidência da Repúblicaii.

Para muitos militantes do movimento negro, a SEPPIR foi a materialização de uma histórica
reivindicação do movimento negro em âmbito nacional e internacional. De fato, foi a primeira vez
que o Estado se colocou como responsável pelo enfrentamento estrutural das relações de
desigualdades raciais.

O longo caminho de reafirmação de reivindicações dos movimentos negros dá origem à Lei


n. 10.639/2003, um projeto de lei apresentado em 11 de março de 1999 pelos deputados federais
Ester Grossi (educadora) e Ben-Hur Ferreira (oriundo do Movimento Negro), ambos do PT. A lei
modificou a LDBEN e foi sancionada pelo Presidente Lula e pelo Ministro Cristovam Buarque, em
09 de janeiro de 2003. Ela torna obrigatória a inclusão no currículo oficial de ensino a temática
“História e Cultura Afro-brasileira”iii.

A lei, de início, trouxe consigo uma intensa polêmica: para alguns significava imposição,
para outros uma concessão. Porém, com a realização de diversos fóruns estaduais e nacionais
promovidos pelo MEC e o empenho de diversos educadores e dos movimentos negros, os debates
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

sobre o ensino da História da África e dos negros no Brasil nos currículos escolares foi
conquistando espaços significativos de luta antirracista na sociedade brasileira.

Ao lado das discussões sobre as ações afirmativas, em especial a polêmica sobre as cotas, as
reflexões acadêmicas foram se ampliando e adentrando outras discussões já presentes no campo
educacional como currículo, práticas de ensino, multiculturalismo, educação inclusiva etc.
Publicações que começaram a tomar corpo no cenário acadêmico, assim como nas revistas de
divulgação científica e também na mídia, as iniciativas da Anped na formação de um Grupo de
Estudos Afro-brasileiros e Educação em seus encontros anuais a partir de 2002, a recorrência de
publicações de artigos nas principais revistas acadêmicas de educação a partir dos anos 1990 e a
fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) em 2000, são algumas das
iniciativas que vêm se afirmando na área de educação. Destaca-se também a ampliação,
principalmente após a publicação da Lei n. 10.639/2003, de cursos de pós-graduação lato-sensu
sobre História da África, relações raciais e educação em diversas universidades.

Em 2005, temos a edição do projeto “Cor da Cultura”, veiculado pela TV Futura em parceria
com o governo federal que, através de programas educativos, contribuiu para divulgar ações e
iniciativas de educadores, escolas e ONGs no campo das relações raciais e educação, dando
prioridade às metodologias pedagógicas para aplicação das diretrizes curriculares para a educação
das relações étnico-raciais.

Faz-se necessário destacar, ainda, a presença dos pesquisadores negros em algumas das
principais universidades e programas de pós-graduação do Brasil. Sem dúvida alguma, a presença
desses pesquisadores nestas instituições acadêmicas representa uma força institucional de
legitimação de suas elaborações científicas e militantes.

Nos últimos 15 anos, foram publicadas centenas de pesquisas, artigos, revistas e foram
realizadas centenas de eventos acadêmicos e de movimentos sociais negros que, por sua vez,
geraram milhares de artigos e textos. Sem contar a abertura de editais para elaboração de propostas
de cursos de aperfeiçoamento e/ou especialização, manutenção de permanente diálogo com
associações de pesquisadores tais como ABPN, Anped, Núcleos Estudos Afro-brasileiros (Neabs) e
organizações do movimento negro e, a inclusão dessas reflexões no Sistema Nacional de Formação
de Professores, sob a coordenação da Capes. Muitas dessas iniciativas viraram textos de políticas de
Estado, como por exemplo, a proposta do “Plano Nacional de Implementação das Diretrizes
Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana – Lei n. 10.639/2003” (BRASIL, 2008).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A professora Mônica Lima da UFRJ, em uma entrevista para uma pesquisa de doutorado em
2009, afirmou que “Essa lei foi acompanhada de uma pouco comum pressão da sociedade [...]”
(OLIVEIRA, 2012, p. 181). Essa afirmação deve ser interpretada como uma atenção especial
naquilo que descrevemos acima, ou seja, as legislações antirracistas só conseguiram ganhar força
nas universidades e nas escolas porque ocorreu uma militância ou guerrilha permanente, onde cada
espaço, permitido ou não, foi ocupado para promover denúncias e proposições antirracismo.

A princípio, parece que em milhares de escolas foi implementada a Lei n. 10.639/2003 como
formulada e intencionada pelos movimentos sociais negros. Entretanto, o que observamos em
diversas pesquisas, e o que ocorreu e ocorre ainda hoje, é que onde há debate e ações educativas
sobre racismo e antirracismo, isso só foi possível devido à presença direta ou indireta de militantes
ou profissionais engajados nas lutas antirracistas (PEREIRA, 2013).

A força da legislação está viva até hoje e foi forjada no coração, nas veias e na vitalidade
utópica da militância. Sem isso, jamais teríamos condições de presenciar essa história. Conceitos
foram forjados, novas formulações foram edificadas, padrões epistêmicos de pensamentos sobre
relações sociais brasileiras foram profundamente questionados e outros ascenderam como
fundamentos educacionais e pedagógicos.

Numa publicação recente, Oliveira e Cunha (2017) afirmam que “a militância e o


engajamento produzem conhecimento e novas compreensões sobre a realidade” (p. 61) e mais:
Se os homens [e as mulheres] são seres do que fazer é exatamente porque seu fazer é
ação e reflexão. É práxis. É transformação do mundo. E na razão mesma, em que o
quefazer é práxis, todo fazer do quefazer tem de ter uma teoria que necessariamente o
ilumine. O que fazer é teoria e prática. É reflexão e ação (FREIRE, 1987, p. 145).

Em outros termos, poderíamos acrescentar que a prática da militância (a ação sobre o


mundo) constitui uma unidade dinâmica com a produção teórica sobre esse mesmo mundo ou, nos
termos de Hooks (2013), um engajamento mediado por uma determinada pedagogia.
Quando o trabalho intelectual surge de uma preocupação com a mudança social e
política radical, quando esse trabalho é dirigido para as necessidades das pessoas, nos
põe numa solidariedade e comunidade maiores. Enaltece fundamentalmente a vida
(HOOKS, 1995, p. 478).

Nos próximos anos que virão, não podemos nos esquivar de tudo o que fizemos enquanto
sujeitos coletivos. Não podemos ser ingênuos e pensar que partimos do zero, e mais, não podemos
nos dar ao luxo de não aprender com as novas realidades, com novos desafios, com novas

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

demandas, pois foi assim que várias gerações passadas aprenderam e produziram o que temos hoje.
Eles não partiram do zero, mas também souberam, no seu tempo, inventar e reinventar ações,
pensamentos, conhecimentos para intervir no mundo, sem jamais deixar de pensar na conexão entre
tática e estratégia e, o mais importante, não se limitando unicamente na dimensão do Estado e dos
aspectos jurídicos dos direitos.

COM LEI OU SEM LEI, A INSURGÊNCIA VAI CONTINUAR

Assim, chegamos à atual conjuntura em que está posta uma ameaça real e dolorosa para
muitos militantes, docentes, estudantes e intelectuais, que é o fim das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-
Brasileira e Africana (DCNERER), que regulamentam e normatizam o artigo 26a da LDBEN. Essa
ameaça surge como um monstro atrás da porta, prestes a nos engolir e sepultar definitivamente
nossas energias de luta. Mas é um monstro virtual ainda, um espectro que ronda nossas mentes e
cotidiano que também nos informa o cuidado que temos que ter para saber agir e resistir.

O atual chefe do governo de ultradireita, recentemente afirmou em entrevista que o racismo


“é coisa rara no Brasil”. Muito dos seus seguidores, com esta afirmação e outras ao longo da
campanha eleitoral de 2018, estavam e estão autorizados a repetirem cotidianamente uma outra
afirmação que se constitui como contraponto cotidiano àqueles que lutam contra o racismo: “falar
de racismo no Brasil é vitimismo”.

Esse discurso autorizado de acusação de “vitimismo” precisa ser denominado com todas as
letras por tudo que analisamos neste texto, ou seja, ele significa uma militância, um engajamento
político. Entretanto, esse discurso não é novidade histórica, a diferença é a intensidade legitimada
oficialmente pelo chefe de governo e pela conjuntura de guerrilha implementada pelo
neoconservadorismo fascista. Quando afirmamos que não é novidade, devemos aqui descrever
alguns episódios que vivenciamos junto a outros docentes na educação básica no Rio de Janeiro.

Durante 4 anos (entre 1999 e 2002) de atuação como professor de sociologia, um dos temas
prioritários do currículo eram as relações raciais no Brasil. Os conteúdos que trabalhávamos não se
limitavam aos aspectos formais ou meramente conceituais, muito menos ficávamos restritos a
atuação em sala de aula. Realizamos junto aos jovens estudantes debates com militantes do
movimento negro, organizávamos palestras, exposições, oficinas, reflexões com vídeos de
entrevistas e documentários e, por outro lado, junto os nossos pares docentes, reflexões pedagógicas
acerca do antirracismo necessário às práticas pedagógicas de forma interdisciplinar.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

À época, nossas ações e discursos não possuíam um lugar de legitimidade, pois o conceito
de raça, por exemplo, era rechaçado por muitos colegas; por outro lado, a força do mito da
democracia racial era muito forte dentro das escolas. Alguns docentes muitas vezes afirmavam que,
por exemplo, a África já constava nos currículos de história quando se abordava a escravidão no
Brasil colônia e o período de descolonização da África e da Ásia. Tínhamos essa reflexão por conta
de nossas histórias de vida, próxima da luta antirracista e anterior ao nosso encontro na escola
enquanto colegas.

Foram anos de penúria, nadando contra a corrente, criando situações constrangedoras, na


medida em que éramos julgados como aqueles que “viam racismo em tudo”. Nos debates sobre
evasão escolar, repetência ou sobre “alunos problemáticos”, evidenciávamos a marca racial (da
maioria dos casos) que perpassava os jovens envolvidos. Nossa condição não envolvia somente
uma disputa ideológica, ética, pedagógica e cognitiva. Estávamos envolvidos numa proposta que
estava além, ou seja, um processo de didatização para a construção de um conhecimento escolar
antirracista, que não se limitava ao encontro da melhor forma de trabalhar um conteúdo antirracista
e com materiais adequados. Esse conhecimento escolar necessitava enfrentar uma dimensão que as
reflexões raciais mobilizam permanentemente quando explicitadas, ou seja, as angústias, as
tristezas, as dores, os medos, as humilhações e tantos outros sentimentos humanos que o racismo
produz de forma negativa e que operam hierarquias e podem, inclusive, alterar a saúde dos
indivíduos. Além disso, mobilizavam cadeias de desprezo racial que são um dos elementos
estruturantes dos espaços escolares brasileiros.

Enfim, lidávamos também fundamentalmente com medos, sofrimentos, angústias, negação


do próprio ser e questionamento de experiências intensamente vividas pelos sujeitos. Portanto, não
nos restringíamos ao cognitivo, pois nossa ação didática antirracista nos mobilizava a propor uma
mudança profunda, ao mesmo tempo cognitiva e emocional. Era uma batalha cotidiana em que não
bastava dizer repetitivamente, com exemplos ou com denúncias, que uma criança ou jovem negro,
que não se considera como tal, precisa de um reconhecimento e se reconhecer. E nossas palavras
eram quase explícitas no coração das pessoas: mudanças numa educação antirracista só podem
acontecer se a mesma criança ou jovem negro conseguir superar medos, angústias e saber –
sentindo – dos riscos e possibilidades de se assumir negra numa sociedade racista. Era uma
operação que não iria se estabelecer na ordem simples do discurso ou através de uma técnica
(didática) racional e planejada, pois o racismo não é somente pensado, mas fundamentalmente
sentido enquanto dor, enquanto violência emocional diária que compromete a integridade e a

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

dignidade humana. Era um trabalho de Sísifo, pois ao mesmo tempo não existia uma legitimidade
política e jurídica.

Entretanto, surge a Lei n. 10.639, em 9 de janeiro de 2003 e, no ano seguinte, as DCNERER


que, como uma granada, explode nas reuniões pedagógicas e são cobradas pelos militantes externos
às escolas, são divulgadas e se transformam em objetos de estudo e reflexões em diversas
universidades. Enfim, a legislação adentra as escolas e, no nosso caso, a acusação daqueles que
diziam que “víamos racismo em tudo” quase que vira letra morta. A Lei n. 10.639/2003 se
transforma num artigo da LDBEN e, a cada questionamento ou defesa do mito da democracia
racial, nós “batíamos na mesa” e contestávamos: “Mas vocês não defendem a LDBEN?” “Então,
agora podemos falar de racismo e antirracismo sem estar fora da Lei!”

Esta situação, anos mais tarde, foi pensada por militantes negros que passaram a caracterizar
essas ações como iniciativas dos “agentes da Lei”. Este termo foi utilizado pelo professor Amauri
Mendes Pereira no XXIV Simpósio Nacional da Associação Nacional de História (ANPUH) em
2007 e refere-se à condição dos divulgadores e dos cobradores da aplicação da Lei n. 10.639/2003.
Ironicamente, este professor afirmava que se, em anos anteriores, muitas das ações dos movimentos
sociais se encontravam na ilegalidade, agora, com uma Lei que “instrumentaliza” negros e negras a
lutarem contra o racismo, os defensores dessa legislação são mais do que “militantes” são os
“agentes da Lei”, ou seja, sujeitos que, numa condição análoga a dos militares, governos ou juízes,
exigem o cumprimento da Lei n. 10.639/2003, se encontrando numa posição “contraditória”, pois
ocorre uma inversão de papeis sociais, ou seja, são os “governados” que exigem a aplicação jurídica
da Lei n. 10.639/2003 e punição dos infratores. Este momento da ANPUH foi a primeira vez que
ouvimos este termo, mas, segundo o mesmo professor, esta expressão já estava sendo recorrente em
diversos espaços acadêmicos e políticos.

Evidentemente, tínhamos um instrumento poderoso em mãos e, nos anos seguintes, junto


com outras parcerias em dezenas de escolas no Rio de Janeiro, articulamos diversas redes de apoio
e ações conjuntas, que geraram processos que já foram expostos nos parágrafos anteriores.

Entretanto, com esta pequena história, o mais importante na análise é o fato de explicitar a
militância, a dedicação organizada em ações múltiplas, a insurgência cotidiana que educa gerações
e corações, a desobediência epistêmica e política, muito além do aspecto formal escolar ou
acadêmico. Obviamente que um instrumento poderoso expresso numa legislação contribui muito
numa ação militante, porém, como queremos argumentar, leis e normativas, no plano

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

governamental ou jurídico, são decorrências da vida real, sentida, pulsada e experienciada com dor
e emoção.

Portanto, sob o espectro que ronda as questões raciais e o antirracismo na educação


brasileira diante da ameaça do fim das legislações antirracistas, há que se pensar, no sentido forte
do termo, em aprimorar a organização e aprofundar as contradições para construir uma nova
consciência, ou seja, continuar o que fizemos sempre, mas com mais rigor teórico e mais militância.
Rigor teórico aqui significa estreitar as alianças entre universidades e escolas na medida em que o
pensamento crítico antirracista é forjado nesses dois lugares de produção de conhecimento. Por
outro lado, militância aqui significa alçá-la como um conceito gerador não somente de ações e
proposição políticas, mas também como produtora de novas perspectivas de conhecimento da
realidade. Entretanto, cabe aqui uma reflexão antes de terminar esta seção.

Convivemos no atual período histórico com duas gerações de educadores, uma que foi
socializada em ambientes educacionais em que legislações antirracistas não existiam e outra que
entrou nos sistemas de ensino (sendo estudante ou docente) presenciando ações militantes e
governamentais a partir das legislações antirracistas que os conscientizaram (em vários níveis).
Demarcar esta diferença é importante para se pensar ações coletivas insurgentes nos espaços
educacionais diante de uma conjuntura extremamente desfavorável. Isto porque as experiências dos
sujeitos formam expectativas e enunciações possíveis sobre ações que visam possibilidades de
transformações pedagógicas.

Por um lado, os sujeitos que se formaram sob o espectro do mito da democracia racial e não
tinham o apoio político de legislações e de direitos jurídicos minimamente garantidos, ou tiveram
que necessariamente optar por uma militância a contrapelo, ou seja, se engajar cotidianamente
numa luta ou, não tinham consciência, por força daquele mesmo mito, de que a questão racial era
uma questão relevante nos processos educacionais. Decorre daí, para aqueles sujeitos antirracistas,
uma experiência de engajamento que os formou a partir de uma perspectiva cognitiva e emocional
utópica, no sentido de que um horizonte de possibilidade e espera (de esperançar ativo) mobilizava
suas ações e intenções pedagógicas e políticas. Esses sujeitos têm em sua formação geracional,
experiências marcadas fortemente pela militância e pelo engajamento tático e estratégico em suas
intencionalidades. Vimos, anteriormente, o que eles foram capazes de produzir, embora as relações
estruturantes do racismo na educação não tenham se transformado substancialmente desde então.

Por outro lado, existem os sujeitos mais jovens, com outras experiências marcantes em suas
formações. Formaram-se e se engajaram a partir de uma mobilização das gerações anteriores,
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

porém não vivenciaram, como dissemos anteriormente, o trabalho de “Sísifo”. Quando adentram
aos espaços educacionais, as legislações e direitos jurídicos adquiridos já existiam e mobilizavam (a
partir de sua e das gerações anteriores) intencionalidades e ações pedagógicas. Diferente de
gerações anteriores, esses sujeitos se amparam naquilo que está instituído legalmente, não tendo
experenciado nenhuma relação de engajamento duro e, por vezes, violento contra o racismo, mas
tendo como recurso o amparo da Lei. A consciência formada não foi a partir de processos de
engajamento “fora da Lei”, mas na defesa da Lei. Não que essa consciência seja menos significativa
ou inferior às gerações anteriores, mas sua característica tem uma certa base de sustentação, ou seja,
está amparada por dentro das instituições estatais com suas hierarquias e limites. Porém, há que se
destacar que esta geração “formada pela lei” também vivenciou profundos processos de
conscientização, na medida em que foi percebendo os limites institucionais do estado racista e
colonial. Muitas dessas experiências, num primeiro momento, se acenderam com a crescente
mobilização antirracista na educação, porém, com uma reflexão coletiva, junto ou não às gerações
anteriores, começaram a perceber os limites, os entraves, os desafios e os profundos conflitos que
pesam sobre uma intencionalidade antirracista na educação.

Esta reflexão deveria ser objeto de mais pesquisas, pois, como estamos tentando desenvolver
aqui, mais do que proposições e retóricas antirracistas, a experiência da luta antirracista requer uma
profunda vontade utópica daqueles que pretendem agir no mundo para construir processos
formativos transformadores. E isto não requer somente uma formação pedagógica e teórica
fundamentada em processos cognitivos formais, pois
Em muitas situações de ação de movimento, os sujeitos que dele participa, colocam
em jogo sua condição existencial ou parte importante de sua vida. Em algumas
situações, suas vidas são colocadas em situações de risco. Pois, algumas mobilizações
sociais se caracterizam como situações de risco para certos indivíduos e coletivos:
arriscando o emprego, a segurança, a identidade, a vida. Essas ações e riscos deixam
marcas viscerais e estas as fazem aprender e ensinar para novas ações e geram
conhecimentos sobre a realidade, constroem memórias coletivas, ou seja, constroem
sua própria história (OLIVEIRA, 2015, p. 177).

Mais do que uma tarefa acadêmica, analítica e descritiva, o que se coloca para um conjunto
significativo de militantes, docentes, estudantes e intelectuais negros e não negros, é uma tarefa
política de insurgência permanente na realidade educacional brasileira e, aqui, tentamos arriscar três
níveis de intervenção insurgente: nas escolas junto aos docentes, as crianças e aos jovens; nas
universidades junto aos jovens e na militância política comunitária cotidiana.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

ANTIRRACISMO NAS ESCOLAS

Um trabalho crucial de ações pedagógicas insurgentes se desenvolve nas escolas. Aqui se


encontra a base de todo o trabalho numa perspectiva utópica, é uma aposta no futuro, é o caminho
que nos leva a várias direções possíveis, é o lugar onde podemos aprender a desaprender e
reaprender novos horizontes de transformações políticas.

Com os docentes nas escolas é o trabalho político de aprender/educar/transformar, é viver


junto/com e a partir deles os desafios permanentes do fazer educativo. Com os docentes, se aprende
o fazer educação na medida em que eles enfrentam as urgências e as incertezas das relações
pedagógicas e, nessas, eles produzem um novo conhecimento e a matéria-prima da transformação,
que é a perspectiva da mudança e do avanço do pensamento para uma vida bem vivida, para
construção de repertórios sociais e culturais transformativos. Evidentemente, se faz necessário estar
presente em todas as suas lutas por direitos e por dignidade profissional, ao lado/com suas mais
legítimas demandas sociais.

Com as crianças é o saber cuidar, proteger e defender suas vidas. Crianças não são tábula
rasa, elas são carregadas de razões, emoções e observações atentas sobre os adultos que estão ao seu
redor. Mas há “crianças” e “crianças”. Nosso foco político, numa perspectiva antirracista, deve girar
para as crianças mais vulneráveis e negras. Há que se investir nossas energias pedagógicas na
defesa intransigente dos direitos delas, há que se combater toda a forma de violência, racismos e
exclusões contra as crianças. Obviamente, não temos o poder de interferir em todos os momentos de
socialização das crianças, entretanto, o exemplo ético e político deve permear todas as nossas ações
pedagógicas. Por uma questão simples: educadores são também sujeitos que marcam a
ancestralidade das novas gerações, pois todos nós temos uma história marcante de vida em que os
que nos educaram sempre estão impressos em algum momento de nossas narrativas de coração.
Dessa disputa de futuro, não podemos nos esquivar, pois somos finitos e são as novas gerações que
nos manterão vivos e que poderão manter a chama utópica do bem viver.

Com os jovens se faz necessária, além do exemplo ético-político, a sensibilidade de aprender


com eles. Dos jovens podem partir as ideias de autogestão, de questionamento das hierarquias
estabelecidas pelos adultos e de criação de novas formas de organização coletiva e simbólica. Além
disso, podemos identificar em vários momentos das ações dos jovens, algumas críticas profundas
em como a escola não consegue perceber as especificidades da juventude. Um exemplo é esta
crítica de jovens italianos nos anos de 1960, às posturas da escola em relação à suposta timidez de
jovens camponeses:
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

Cara senhora,

Você nem se lembra do meu nome. E você reprovou muitos. Mas tenho pensado
muitas vezes em você, nos seus colegas, nessa instituição que se chama escola, e nos
meninos que foram “rejeitados".Nos rejeitaram nos campos e nas fábricas e nos
esqueceram. Dois anos atrás, no primeiro ano, você me intimidava.

Além disso, a timidez me acompanhou durante toda minha vida. Desde pequeno não
levantava os olhos do chão. Rastejava pelas paredes, para não ser visto. No começo eu
pensei que era uma doença minha ou da minha família. Minha mãe era daquelas que
diante de um telegrama se intimidava. Meu pai observava e escutava, mas não
falava.Mais tarde, eu acreditava que a timidez era apenas um mal dos camponeses [...]
Agora eu vi que os trabalhadores deixam aos filhos mimados todas as posições de
responsabilidade nos partidos políticos e todos os postos no parlamento.Então, eles
são como nós. E a timidez dos pobres é um mistério muito antigo. Eu não sei como
explicar [...]. Talvez a timidez não seja nem covardia nem heroísmo. É apenas falta de
prepotência (SCUOLA DI BARBIANA, 1996, p. 9-10).

Dessas críticas, surgem novas formas de aprendizagens. Coletivos de jovens se auto-


organizam para aprender e ensinar. Enfim, de um presente vivido entre autonomia e opressão, se
tenta construir um futuro.

As juventudes precisam ser compreendidas naquilo que é a sua potência, ou seja, a


reinvenção do mundo é mais possível do que nós adultos possamos imaginar. E, no que diz respeito
à juventude negra, se faz urgente a denúncia de seu extermínio e a defesa intransigente de suas
vidas.

ANTIRRACISMO NAS UNIVERSIDADES

Quando pensamos no trabalho com jovens nas universidades, uma reflexão preliminar se faz
necessário do nosso ponto de vista: a produção de conhecimento é para que e para quem? Essas
perguntas são cruciais para uma perspectiva política que defendemos aqui. E isto nos leva a uma
reflexão recente:
Nas ciências sociais e da educação aprendemos que não podemos ser militantes em
nossas pesquisas, isto por que aquilo que estudamos e pesquisamos devem ser objetos
de análise, ou seja, ter um caráter analítico e não normativo, pois a pesquisa tem como
horizonte saber investigar aquilo que não conhecemos e não aquilo que queremos para
nossas vidas. Na esteira dessa concepção se encontra o significado daquilo que

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diversos cientistas denominam de neutralidade axiológica. Ou seja, a postura científica


exige a isenção de valores numa investigação, nenhum procedimento científico pode
conter uma resposta sobre a desejabilidade de uma coisa. A natureza da ciência é
testar, experimentar sem um julgamento de valor de quem está investigando
(OLIVEIRA; CUNHA, 2017, p. 55-56).

Esta concepção ainda é dominante nos espaços acadêmicos e, na atual conjuntura política,
falar em militância dentro do contexto universitário parece dar armas e argumentos para a
ultradireita, já que esta também é herdeira da matriz colonial de poder defensora da neutralidade
axiológica.

Entretanto, a realidade é muito mais complexa do que possamos imaginar e o que nos cabe
num contexto extremamente adverso é a postura da desobediência epistêmica, como formulado por
Mignolo (2008), qual seja: permitir e fomentar que pensamentos não hegemônicos adquiram status
científicos a partir de seus próprios enunciados e que dialoguem entre si e com os conhecimentos
hegemônicos, porém, não se curvando diante das hierarquias preestabelecidas pelo pensamento
ocidental eurocêntrico.

Fanon (apud MIGNOLO, 2008, p. 186) afirmava que para um negro que trabalha numa
plantação de açúcar [nas Antilhas], a única solução é lutar, mas que ele “a empreenderá e a
conduzirá não após uma análise marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só poderá
conceber sua existência através de um combate contra a exploração e a fome”.

Essa afirmação de Fanon, formulada a partir de uma análise das relações sociais entre negros
e brancos no colonialismo, também pode ser referenciada para pensar a nossa época e os nossos
contextos de aprendizagens institucionalizados na academia com os jovens. Pois, diante de tantas
opressões cotidianas, também presentes nos espaços universitários, não há como não lutar, não há
como concordar com o paradigma da neutralidade. Na medida em que os movimentos sociais se
posicionam e se afirmam como existentes, o campo do conhecimento hegemônico é posto à prova e
não há mais como negar a presença das mulheres, dos jovens das periferias, dos negros, dos
homossexuais, dos trabalhadores do campo etc., nas diversas universidades brasileiras. Em
movimento, esses sujeitos anunciam que existem outras formas de pensar o mundo, outras formas
de projetar a vida e que é necessário reorganizar a condição humana superando a condição sub-
humana. Assim, o foco no trabalho acadêmico com as juventudes deveria nos conduzir a ideia e
práxis de que quaisquer processos educacionais, que se pretendem focar numa educação crítica e de
qualidade, só têm a possibilidade de serem como se pretendem se forem engajadas einsurgentes. No

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

mais, a possibilidade de não realização desta perspectiva, significa nossa própria derrota geracional
diante dos ataques neoliberal/conservador/fundamentalista/racista/capitalista à educação brasileira.

Todos nós somos sujeitos produtores de conhecimento e somos mobilizados por uma
inquietação intelectual, que tem sua matriz na realidade concreta em que ele está implicado. Paulo
Freire (1987) nos diz que a cultura não pode ser arrancada do sujeito, pois este só existe porque a
cultura lhe é constitutiva. Implicado em sua realidade, este sujeito não tem como ser objetivado para
fora de si. Portanto, a neutralidade não existe e o combate a ela é a desobediência epistêmica.

ANTIRRACISMO NOS ESPAÇOS COMUNITÁRIOS

A luta antirracista insurgente fora dos espaços institucionais de ensino, mas conectados a
estes, requer a compreensão de duas dimensões fundamentais: a força do mito da democracia racial
e a colonialidade do ser.

Segundo Munanga (1999), o discurso da mestiçagem foi uma estratégia inteligente das elites
para evitar tanto o aparecimento explícito do racismo quanto a dominação cultural branco-europeia.
O autor afirma que a miscigenação não foi voluntária, mas fator do desequilíbrio demográfico entre
homens e mulheres brancas. O “mulato”, afirma o autor, nasce de uma relação imposta pelo branco
sobre a mulher negra e índia. Nesse sentido, estabelece-se, desde a colônia, um contingente
populacional mestiço grande que cumpriu um papel intermediário na sociedade com tarefas
econômicas e militares na opressão aos africanos escravizados e seus descendentes. Esse fator
crescente de miscigenação imposta exerceu direta influência no pensamento social brasileiro e no
imaginário popular. A decorrência desses movimentos foi a teoria da democracia racial, ou seja, a
ideia de que a diferença entre grupos étnicos não se constitui como fator de desigualdade.

Ainda segundo Munanga (1999), a contribuição de Freyre (1971) nos anos de 1930 é ter
demonstrado que negros e mestiços tiveram contribuições positivas na cultura e identidade
nacional; entretanto, ao transformar a mestiçagem em valor positivo, e não negativo sob o aspecto
da degenerescência, Freyre formula os contornos de uma identidade nacional que há muito tempo
vinha sendo desenhada. Ou seja, ele consolida a possibilidade de uma interpretação de um mito de
origem da sociedade brasileira, baseado na harmonia das três raças, onde, da dupla mistura –
biológica e cultural – brota lentamente o mito da democracia racial.

Este mito, apesar de ter sofrido significativos ataques culturais, epistêmicos e políticos,
ainda se mantém como base explicativa da constituição das relações sociais brasileiras. O

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movimento social negro que fez com que os debates raciais na sociedade brasileira ganhassem
visibilidade, evidenciando que existe uma condição racial subalterna em relação àquela construída
sob a hegemonia branca, estabelece muitos conflitos subjetivos e sociais. O mito da democracia
racial ainda é forte, e tende a se acentuar numa conjuntura conservadora. Ele se constitui, ainda,
como uma retórica mobilizadora de explicação da realidade brasileira.

A outra dimensão é a colonialidade do ser. Este conceito se refere à experiência vivida da


colonização e seus impactos na linguagem, que responde à necessidade de explicitar a pergunta
sobre os efeitos da colonialidade na experiência da vida e não somente na mente dos colonizados.

Catherine Walsh (2005) recorda as palavras de Frantz Fanon (1983) para relacionar
colonialismo a não existência: “em virtude de ser uma negação sistemática da outra pessoa e uma
determinação furiosa para negar ao outro todos os atributos de humanidade, o colonialismo obriga
as pessoas que ele domina a perguntar-se: em realidade quem eu sou?” (FANON apud WALSH,
2005, p. 22). E mais:
O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colonizador limitar
fisicamente o colonizado, isto é, com seus policiais e guardas, o espaço do colonizado.
Como que para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial, o colono faz do
colonizado uma espécie de quintessência do mal. A sociedade colonizada não é apenas
descrita como uma sociedade sem valores. [...] O indígena é declarado impermeável à
ética. Ausência de valores, e também negação dos valores. Ele é, ousemos dizer, o
inimigo dos valores. Neste sentido, ele é o mal absoluto. Elemento corrosivo,
destruindo tudo de que se aproxima, elemento deformante, desfigurando tudo o que se
refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas […] (FANON, 2005, p.
57-58).

A colonialidade do ser é pensada como uma negação de um estatuto humano para africanos
e indígenas, por exemplo, na História da modernidade colonial. Esta negação, segundo Walsh
(2007), implanta problemas reais em torno da liberdade, do ser e da História do indivíduo
subalternizado por uma violência epistêmica.

A violência epistêmica se constrói em torno ao conceito de raça, no qual novas categorias


foram criadas como branco, negro, índio, mestiço etc., e relaciona sujeitos numa classificação social
de forma vertical. Maldonado-Torres (2007) deduz daí que a ideia de seres não europeus como
inferiores produziu formas de desumanização. Por outro lado, Dussel (2009) afirma que a negação
que o ser europeu faz do outro colonizado, a forma como desconhece a alteridade e o modo como

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

relega o diferente, o converte em um não ser. Esta, portanto, foi a experiência vivida na
colonialidade.

Maldonado-Torres vai mais longe e afirma que o privilégio do conhecimento na


modernidade e a negação de faculdades cognitivas nos sujeitos racializados, fornecem as bases para
uma negação ontológica do outro não europeu. Ou seja, a ausência da racionalidade está vinculada
na modernidade com a ideia de ausência de ser nos sujeitos racializados. Neste sentido, podemos
entender melhor a ideia de Fanon de que, em um mundo anti-negro, o negro não tem resistência
ontológica diante dos olhos dos brancos (FANON, 1983).

Seguindo as formulações de Fanon sobre os condenados da terra, Maldonado-Torres (2007)


caracteriza também a colonialidade do ser como experiências invisibilizadas, não como simples
sujeitos, mas na sua própria humanidade. Esta seria uma das expressões primeiras da colonialidade
do ser.

O mito da democracia racial e a colonialidade do ser produzem relações sociais estruturantes


no cotidiano brasileiro e se conecta estreitamente com processos escolares e universitários. O não
branco, na maioria das situações cotidianas, vive numa zona de “não ser”: não tem capacidades
cognitivas, não tem autoridade política, não é autorizado a ocupar certos espaços, enfim, os negros,
especialmente as mulheres negras em muitos momentos, são somente uma mercadoria, objeto de
desejos sexuais ou herdeiro de um tempo de escravidão que, por sua natureza não humana, não
conseguiu superar. Por outro lado, essas visões não são assumidas pela maioria de brancos ou
daqueles que incorporam a branquitude. Assim, como é possível um trabalho de base, onde por um
lado se desumaniza negros e negras e, por outro, se nega a existência dessa desumanização?

Diferentemente de um trabalho político-sindical, em que uma reivindicação concreta por


direitos mobiliza contra uma situação de injustiça explícita, ou seja, baixos salários, ausência de
cumprimento de legislações que garantem direitos sociais ou a ausência de direitos políticos, o
racismo é negado pela ampla maioria das pessoas. Sendo negado, subjetivamente e objetivamente, a
reivindicação por direitos iguais e equânimes em relação a brancura, se posiciona na contramão de
um dado real considerado natural, como a lei da gravidade.

A luta contra o racismo em espaços comunitários, onde o cotidiano nega o racismo, é um


trabalho político de longo prazo. Ela não pode ter a ingenuidade de que a curto e médio prazo o
racismo vai acabar ou vai ser neutralizado por uma retórica antirracista.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O trabalho antirracista envolve a dedicação militante em todos os momentos da vida de


negr@s e branc@s antirracistas. Mas o que é ser militante antirracista? Como se insurgir contra as
práticas racistas? As respostas a estas perguntas não possuem uma receita de bolo. O que podemos
apontar são simplesmente algumas pistas.

O professor da UFRRJ Amauri Mendes Pereira, em um debate sobre relações raciais na


mesma universidade, foi questionado se brancos podem ingressar na luta contra o racismo. Sua
resposta foi enfática contando um momento de sua história de vida.

Nos anos de 1970, ele estava procurando uma escola para lecionar Educação Física. Um de
seus amigos (branco) lhe disse que foi chamado numa escolar particular e, em sua entrevista, além
de terem ficado satisfeitos com seu perfil e sendo admitido, lhe perguntaram se ele conhecia algum
professor de Educação Física, pois a escola estava precisando de um, urgentemente. Esse amigo
imediatamente indicou o professor Amauri. Dias depois, Amauri se dirigiu à escola e se apresentou
para a vaga ofertada. Entretanto, ao vê-lo, o entrevistador afirmou ao professor Amauri que a escola
não precisava de nenhum professor de Educação Física. A reação do professor foi de estranheza,
pois seu amigo tinha lhe informado sobre a urgência da escola em ter um profissional em sua área.
Em seguida, o professor Amauri voltou a conversar com seu amigo sobre o ocorrido. O que fez esse
seu amigo? Retornou à escola para perguntar o por quê Amauri não foi contratado. A resposta foi
típica: “ele não se encontra no perfil da escola”. Imediatamente, esse amigo percebeu que a questão
não era o perfil profissional, mas a postura racista da escola. Depois dessa conversa, esse amigo
(branco) disse que não pretendia mais trabalhar numa escola racista e que não aceitaria jamais um
trabalho onde o critério de seleção de docentes fosse a cor de pele branca.

O professor Amauri, com esta resposta a indagação feita por parte de uma estudante, quis
dizer explicitamente que o problema racial no Brasil não é uma coisa “só do negro” e que brancos
antirracistas precisam ser fortes aliados junto à população negra. E pergunta: quantos estão
dispostos a fazer isso? E quando fazem isto, precisamos desconfiar dos brancos por que são
brancos? Essa pequena história nos diz que a luta racial deveria significar uma luta de toda a
sociedade brasileira. Outra história vem de um município do interior do estado do Rio de Janeiro, o
município de Macaé.

Era o ano de 2005. Dois professores realizavam um minicurso sobre relações raciais numa
escola dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Neste minicurso, se abordavam temas como
racismo, raça, história da África e relações raciais em sala de aula. Debates profundos durante 4
semanas seguidas. Na última semana, no momento de finalização e avaliação coletiva, uma
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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

professora alfabetizadora deu o seguinte depoimento: “esse curso me fez perceber uma coisa
chocante. Nunca tinha percebido que minhas dez crianças que alfabetizo são negras”. E mais:
“depois deste curso entendi que o conceito de ‘negro’ não é pejorativo. Antes eu ficava com medo
de expressar esta palavra, pois sabe como é, era um receio de estar ofendendo alguma criança”.

Apesar da satisfação que os professores que ministravam este curso tiveram, pois
representou um avanço nos debates sobre consciência antirracista, alguns minutos depois a mesma
professora fez uma pergunta que ficou sem resposta: “mas, professor, aprendi aqui a não mais ter
medo de classificar uma criança negra de negra. Mas se os pais dessa criança não gostarem dessa
classificação e tentarem me intimidar ou denunciar? O que devo fazer?”

Essa última fala perturbou a todos ali presentes. A resposta não era simples, pois exigia mais
16 horas de curso, ou, como refletimos alguns anos depois:
Depois de alguns dias, me dei conta de que as professoras tinham muitas ideias sobre
o racismo no Brasil, mas também interpretei que elas me deram um recado: como
discutir a História da África, o racismo, os preconceitos, se nós temos muitas coisas
para resolver, principalmente os preconceitos contra nós mesmos e contra nossas
crianças? Essa questão me perseguiu durante os anos subsequentes. E fui
amadurecendo a ideia de que para se discutir a Lei n. 10.639/03 com os professores,
era necessário ir além, ou seja, na complexidade da formação docente em termos
subjetivos e objetivos (OLIVEIRA, 2012, p. 264).

Dez anos após esta história, vivenciamos outra, agora num contexto envolvendo a relação
entre professor e estudante de pós-graduação.

Era o ano de 2014 e uma pedagoga se apresenta ao professor numa disciplina de mestrado
na UFRRJ denominada “Colonialidade e Racismo Epistêmico: formação docente e relações
raciais”. Seu objetivo não era somente cursar uma disciplina de um tema que ela nunca havia
estudado, mas também conhecer o professor que poderia ser seu futuro orientador.

Nos primeiros debates, ela quase não se expressava. Quando o fazia, descrevia suas
dificuldades em debater sobre racismo e sobre sua identidade racial (dizia ela que outras pessoas a
atribuíam, às vezes como mulata, às vezes como parda). Os colegas em torno, a abordavam
carinhosamente no sentido de tentar mobilizá-la para todo um debate já acumulado por eles,
afirmando que essa reflexão é um processo longo e doloroso, pois não é fácil o reconhecimento da
própria condição racial. Não fizeram uma abordagem agressiva no sentido de exigir que ela se
assumisse enquanto negra, mas na perspectiva de que somente ela poderia perceber se é negra ou

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

não. Cabe ressaltar aqui que esta pedagoga se apresentou com seus belos cabelos lisos e, por algum
tempo, continuou assim.

Durante esses primeiros momentos, ela iniciou seu processo de seleção ao mestrado e, após
provas e entrevistas, conseguiu ser selecionada em 2015 para o mestrado em educação. A partir daí
muita coisa mudou, pois começou a priorizar a compra de livros, a leitura de textos, a participação
em eventos acadêmicos e de movimentos sociais negros, a participação em grupos de pesquisa e, o
mais importante, a fazer do debate sobre o racismo uma rotina na família e nos seus círculos de
amizade. Outra mudança, foram os diversos eventos dos quais ela participou enquanto protagonista
(sendo palestrante, mediadora ou apresentando trabalhos). Decorre daí também, a mudança
corporal: não alisou mais os cabelos e adotou o visual “natural”, a saber, os “cabelos afros”.

Estas histórias nos remetem a uma perspectiva de pensamento político e analítico


fundamental: somente o nível da argumentação e da retórica antirracista não é suficiente para um
avanço da luta contra o racismo, é preciso ir mais além. Essas experiências nos informam que a
retórica antirracista é relevante, mas o mais significativo é a experiência dos sujeitos na pele, na
dor, no sentimento de negação, no medo, na consciência do desprezo, ou seja, afetos que também
movem os sujeitos muito além dos interesses estruturais e econômicos. E, no campo dos afetos,
mesclados com a argumentação, é que talvez possamos avançar pedagogicamente em espaços não
institucionalizados.

O enfrentamento ao racismo é um conflito que mobiliza o desprezo, a dor, a ansiedade, o


medo, o não lugar, enfim, a insegurança humilhante do não reconhecimento enquanto ser e sujeito.
O que se faz necessário é a militância e engajamento num outro sentido, na medida adequada para a
construção de outras experiências de sociabilidade.

Outro exemplo pode ser considerado nesta perspectiva, que desenvolvemos recentemente
(OLIVEIRA, 2019, p. 57-58):
No samba de roda todas as pessoas são chamadas a dança, mesmo que algumas delas
não saibam mexer o corpo, ou seduzir o grupo. Além disto, o elemento principal da
dança não é a demonstração das habilidades de cada um, da capacidade de dançar, mas
a confraternização do grupo, criar a harmonia comunitária através da linguagem
corporal, pois o corpo é um dos centros sagrados do mundo.

No samba de roda a realização de cada um é a realização do grupo, em função da


alegria coletiva. Na realização pessoal de cada um dentro do grupo, toda a roda toma
parte do bailado. Assim, diferenciando-se das estruturas de organização da escola e de

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E QUANDO A LEI N. 10.639/2003 ACABAR, O QUE FAZER? INSURGÊNCIA POLÍTICA E EPISTÊMICA?

seus discursos, o samba de roda se caracteriza como um recurso pedagógico, um meio


permanente de iniciação à sabedoria e da sociabilidade do grupo.

As dinâmicas das culturas negras de matriz africana podem nos mostrar que existem outras
formas de construir pedagogicamente uma sociedade mais justa e mais igualitária. O Samba de
Roda e as danças africanas, nos permitem e exibem um outro método de convivência democrática
entre pessoas e grupos.

Samba de Roda é um folguedo e uma herança africana, constituído de danças, passos muito
requebros, umbigada e cantoria. O ritmo é marcado por atabaques, pandeiros, berimbaus e batidas
de palmas. No Recôncavo Baiano o samba de roda é uma forma típica de samba, geralmente
dançado somente por mulheres, cuja coreografia se desenvolve no círculo de participantes, tendo ao
centro uma solista, que executa movimentos ágeis e graciosos, acompanhados de instrumento de
percussão e de palma. Oliveira (2019, p. 55) ainda afirma:
Nestas manifestações culturais, se expressa uma visão de mundo muito peculiar
trazida pelos africanos escravizados e reconstruído pelos afrodescendentes. Ou seja, a
dança negra é um meio de identificar um consenso comunitário, uma harmonia
participativa, onde todas as pessoas devem colocar suas qualidades e potencialidades
em benefício do grupo. Além disso, não podemos esquecer que a dança negra, no
contexto da opressão escravista, era também um meio de afirmação pessoal, graças ao
qual o descendente de escravo deixava de sentir-se objeto da ação para converter-se
em agente do mundo.

Para Muniz Sodré (1988), a dança negra faz parte de um elemento da cosmologia africana, é
um “sentir, mas de uma experiência radical, de uma comunicação original com o mundo, que se
poderia chamar de cósmica, isto é, de um envolvimento emocional dado por uma totalização
sagrada de coisas e seres” (1988, p. 137). E mais:
O samba de Roda expressa muito bem essa maneira de ser de um povo, que procura se
construir na coletividade, não tendo outra alternativa. E a roda respeita cada
participante como ele é, e com a contribuição que ele tiver. Em todos os momentos,
cada um é o centro e nesse momento e por alguns momentos ele ou ela é o dirigente
máximo do processo, ou melhor dizendo, da roda. No centro da roda cada um faz o
que pode e o que sabe, não existe uma exigência. De certa forma é um exercício da
plenitude humana e da construção da cidadania, é um movimento alegre e festeiro,
como tem que ser a vida nessa visão de mundo, em que a cada momento, uma pessoa
é o centro da roda, é observado por todos, como também de certa forma, ensina a
todos. Nesse momento dar-se a plenitude da pessoa. O samba de roda nos ensina a

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

sermos profundamente democráticos e acreditarmos nesse princípio como um valor


importante na construção do processo coletivo. Ela também nos ensina a lidar com a
alternância de poder. O poder que precisa ser compartilhado, socializado. Ela também
nos ensina o respeito a todos, as várias alternativas, posições, expressões, as
diferenças. É uma lógica interessante pelo respeito às diferenças. É uma relação
profundamente coletiva no envolvimento, na sedução, na participação e no papel de
direção (OLIVEIRA, 2019, p. 55-56).

Estes exemplos nos permitem especular: por que não aprendemos a desenvolver um trabalho
político insurgente semelhante aos processos de resistências e afirmações de nossos ancestrais?
Estes fizeram política permanente e num período histórico em que, por exemplo, políticas públicas
de Estado eram inimagináveis.

Este nos parece ser o sentido profundo da desobediência epistêmica e da insurgência


política, ou seja, afirmar processos e dinâmicas outras fora da lógica hegemônica, a partir dos
conhecimentos negros, populares e subalternizados que se forjam nas lutas concretas contra a
opressão, o patriarcalismo, o capitalismo, o sexismo e o racismo.

Por fim, este texto se apresenta como uma pequena contribuição epistêmica e política, na
medida em que a conjuntura histórica que presenciamos exige de nós um debate mais amplo e
profundo com aqueles aos quais a modernidade ocidental invisibilizou e tentou exterminar.

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Pedagógica Nacional, 2007.

Notas de fim

i
Alberti e Pereira (2007), num artigo para a Revista Estudos Históricos, vão, brilhantemente, ressaltar que o Movimento
Negro a partir da década de 1970, descobre a África como um poderoso processo de instrumentalização da militância
negra para ampliar a consciência sobre as origens do povo negro no Brasil e propiciar novas possibilidades de ação
antirracista. Recolhendo depoimentos de velhos militantes negros deste período, até os dias atuais, eles vão constatar
que um dos objetivos desses era reescrever a História do Brasil. E chegam às seguintes conclusões, depois de identificar
diversas cooperações entre militância negra e estudiosos da História da África em algumas universidades brasileiras:
“Não há dúvida de que a busca de uma África livre dos estereótipos dos animais selvagens e da miséria foi importante
para a consolidação dos movimentos negros a partir dos anos 70 [...]”. (p. 43) “O conhecimento do passado africano e
dos acontecimentos recentes envolvendo populações negras espalhadas pelo mundo teve uma função importante no
processo de construção e consolidação da identidade negra do militante. [...] importava buscar uma África livre de
estereótipos, um passado que fosse motivo de orgulho para militantes, crianças e jovens negros. [...] O debate e a
socialização dos novos conhecimentos, tanto no interior das entidades como entre elas, foram fundamentais para a
formação de uma massa crítica capaz de expandir a causa do movimento para diferentes setores da sociedade, o que
culminou com a Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino desse conteúdo nas escolas do país” (p. 47-48).
Entretanto, a SEPPIR resultou de um processo de construção de longos anos, que envolveu as ações e reivindicações
ii

dos movimentos negros e as ações dos governos de Fernando Henrique Cardoso como a criação, em 2001, do Conselho
Nacional de Combate à Discriminação; o Programa Diversidade na Universidade; o Programa Brasil Gênero e Raça,
Ações Afirmativas no Ministério do Desenvolvimento Agrário e o programa Bolsas-Prêmio de Vocação para a
Diplomacia (BRASIL, 2007).
Santos (2005) descreve que antes da apresentação do Projeto de Lei n. 259/1999, que culminou na aprovação da Lei
iii

n. 10.639/03, já existiam diversas legislações estaduais e municipais que, em função das pressões dos movimentos
negros, incluíam nos currículos da educação básica a História dos negros no Brasil e do continente africano, tais como:
a constituição do Estado da Bahia em 1989, a Lei orgânica de Belo Horizonte, de 1990, a Lei n. 6.889, de 1991, em
Porto Alegre, a Lei n. 11.973, de 1996, na cidade de São Paulo, entre outras.

106
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO
PROFISSIONAL DOCENTE?

Marli André
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Este texto discute questões relacionadas à inserção profissional docente. Inicia com uma
justificativa da importância do tema e de como o grupo de pesquisa, por mim coordenado, vem
investigando a temática. Em seguida, retoma os dados do último projeto de pesquisa desenvolvido
pelo grupo, indicando os principais questionamentos que dele emergiram. Na sequência, refere-se a
alguns pontos críticos apontados pela literatura sobre o momento de inserção profissional dos
professores novatos. Conclui retomando os pontos comuns aos diversos autores e faz proposições
para novos estudos.

A temática dos professores iniciantes vem sendo um dos focos de pesquisa do nosso grupo
nos últimos anos. Por que é importante o estudo de professores iniciantes? Por um lado, porque é
um tema ainda pouco estudado no Brasil, como apontado por vários mapeamentos da literatura,
embora venha recebendo maior atenção nos últimos anos (MARIANO, 2006; PAPI; MARTINS,
2010; CORRÊA; PORTELLA, 2012; PERRELLI, 2013; MIRA; ROMANOWSKI, 2016;
GONÇALVES, 2016). Por outro lado, esse período da carreira docente tem que ser considerado em
sua especificidade. É um momento que se diferencia da formação inicial e continuada, pelas suas
peculiaridades, de fase de transição, de integração na cultura docente, de inserção na cultura
escolar, de aprendizagem dos códigos e das normas da profissão.

Em um texto muito provocativo sobre os desafios do trabalho docente, Nóvoa (2006) aponta
a necessidade do cuidado com os professores iniciantes como um dos maiores desafios da profissão
docente. Segundo ele, cuidamos muito mal dos jovens professores, pois ao ingressarem na docência
eles vão para as piores escolas, têm os piores horários, recebem as piores turmas e são “lançados às
feras”, sem qualquer tipo de apoio. Ele nos chama a atenção e adverte:
[...] se não formos capazes de construir formas de integração, mais harmoniosas, mais
coerentes, desses professores, nós vamos justamente acentuar, nesses primeiros anos
de profissão, dinâmicas de sobrevivência individual que conduzem necessariamente a
um fechamento individualista dos professores (NÓVOA, 2006, p. 14).

Esse fechamento ou isolamento profissional de que nos fala o autor torna-se um fator de
impedimento da socialização do iniciante na profissão. A diversidade e a complexidade de situações
com as quais ele se depara podem dificultar seu percurso profissional, gerar sentimento de
insegurança e desejo de desistir da profissão.

Compactuando com a preocupação de Nóvoa, no último projeto desenvolvido pelo nosso


grupo de pesquisadores, com apoio do CNPq, buscamos analisar o processo de inserção profissional
de professores iniciantes, egressos de três programas de iniciação à docência: Programa

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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?

institucional de bolsas de iniciação à docência (Pibid), Bolsa Alfabetização e Residência


Pedagógica da Universidade Federal de São Paulo/Guarulhos. A metodologia, de métodos mistos,
envolveu uma primeira etapa em que foi realizada uma survey com 1.237 egressos, provenientes de
18 Instituições de Ensino Superior das regiões Nordeste, Centro Oeste, Sul e Sudeste do país. Com
a survey, objetivou-se caracterizar os egressos quanto à idade, à trajetória escolar, à destinação
profissional e às condições de exercício da docência. Na segunda etapa da pesquisa, foram
realizados 18 estudos de caso em escolas de educação básica em que atuavam professores egressos
dos programas analisados e que haviam respondido o questionário. A intenção era aprofundar
alguns resultados da survey, conhecendo mais detidamente os processos de inserção profissional
dos professores iniciantes.

Os dados da survey foram ilustrativos para se conhecer quem são os egressos dos três
programas de iniciação à docência: são professores iniciantes jovens, a grande maioria frequentou o
ensino fundamental e médio todo em escola pública, o que mostra que esses programas deram
oportunidade a egressos do ensino público de terem uma formação profissional qualificada. Esses
egressos completaram a licenciatura em diferentes áreas, mas a maior parte em Pedagogia, Ciências
Biológicas, Letras, História, Matemática, Física e Educação Física.

Quanto à destinação profissional dos egressos, os dados indicaram que, em 2016, 67%
estavam atuando como docentes na educação básica (64% ex-pibidianos, 83% do programa Bolsa
Alfabetização e 87% ex-residentes). Grande parte desses em escolas públicas (60%), fato que revela
um retorno do investimento do governo federal e das Instituições de Ensino Superior, já que esses
programas objetivavam prover formação docente qualificada, tendo em vista a melhoria do ensino
nas escolas públicas.

Os dados do questionário mostraram que, quanto à inserção na docência, os egressos não


apontaram problemas, seja em relação aos recursos disponíveis nas escolas, ao clima escolar, ao
apoio da equipe pedagógica, à gestão da sala de aula e à relação com os pais e com os pares. Esses
resultados nos intrigaram porque contrariavam os dados de pesquisas (LIMA et al., 2006;
MIZUKAMI, 2013; GARCÍA, 1999; VAILLANT; MARCELO, 2012; ANDRÉ et al., 2017) que
indicavam haver, em geral, falta de apoio e de acompanhamento aos professores iniciantes em sua
inserção profissional. Essas pesquisas também revelavam dificuldades nas relações com os colegas,
com os pais dos alunos e no trabalho de sala de aula.

Isso nos deixou mais motivados para a realização dos estudos de caso, em que pudemos
acompanhar, por meio de observação, entrevistas e análise documental, o trabalho dos egressos em

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

suas escolas. Os dados das entrevistas com os iniciantes revelaram que, embora tivessem tido uma
recepção amistosa nas escolas, como por exemplo, os gestores os saudavam e indicavam
brevemente as turmas em que atuariam, não havia um acompanhamento sistemático de seu trabalho.
Em nenhuma das dezoito escolas distribuídas por nove estados do país foi localizado um programa
institucionalizado de acompanhamento e apoio sistemático ao iniciante. Isso nos provocou, por um
lado, a fazer questionamentos sobre a persistência e manutenção do entusiasmo e do engajamento
profissional dos egressos (mesmo quando enfrentavam situações adversas) detectados nos estudos
de caso. Perguntávamos: Até quando eles resistirão? Sua capacidade de refletir sobre a prática e de
buscar recursos de superação das dificuldades serão suficientes? A escola não teria o papel de
acolhê-los e acompanhá-los? Por outro lado, tais constatações nos instigaram a querer investigar
mais profundamente os processos de acompanhamento – ou de indução – para os professores
iniciantes nas escolas, o que veio a se tornar o tema do novo projeto.

Paralelamente aos resultados do projeto com os egressos, pesquisas de mestrado e doutorado


que foram desenvolvidas por nossos orientandos trouxeram muitas questões a respeito dos
processos de inserção profissional. Por exemplo, a tese de doutoramento de Gonçalves (2016) que
coletou dados em dois grupos de discussão com 12 egressos do curso de pedagogia de uma
Universidade Federal do interior de Minas Gerais revelou que os egressos do Pibid foram recebidos
de forma amistosa nas escolas, mas tiveram que assumir as turmas mais difíceis e, para isso,
tiveram que buscar ajuda e recursos fora da escola, com outros iniciantes, com amigos, familiares,
ex-professores, ou em blogs e cursos. Essas iniciativas dos professores nos pareceram muito
positivas, porque sugeriram uma atitude de autonomia profissional (refletir sobre a prática e buscar
recursos e ferramentas para melhor realizar seu trabalho) e mostraram indícios de uma postura
investigativa (identificar o problema, decidir o que buscar e o que era preciso fazer para resolvê-lo).
As observações feitas nas salas de aula das egressas e as entrevistas com as gestoras das escolas
confirmaram as atitudes de autonomia e a segurança demonstradas pelas egressas e sua competência
quanto ao quê e como ensinar.

Os dados do estudo realizados por Gonçalves (2016) indicaram que, embora tenha
enfrentado dificuldades, a maioria das iniciantes conseguiu sobreviver na profissão. Com uma base
de conhecimentos teóricos e capacidade de mobilizá-los em sua prática ou, ainda, com capacidade
de refletir sobre a prática e confrontá-la com os conhecimentos teóricos, as iniciantes foram
percebendo que conseguiam dar boas aulas e que seus alunos estavam envolvidos em aprendizagens
significativas. Favoráveis ao diálogo, à problematização e ao questionamento, tinham os alunos

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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?

como balizadores de suas práticas. Seus relatos mostraram que não aceitavam algumas das práticas
naturalizadas na rotina escolar e reagiam a isso, criando situações mais críticas e criativas de ensino
e aprendizagem e implementando propostas desafiadoras tanto a elas como aos alunos.

As possíveis explicações para tais atitudes e comportamentos foram, por um lado, a


qualidade do curso de formação inicial, cujo Projeto Político-Pedagógico era alicerçado nas
concepções freirianas de autonomia, diálogo, reflexão, análise crítica da realidade, que as iniciantes
apontaram em seus depoimentos como fundamentais para seu desempenho profissional. Por outro
lado, o Pibid, com uma matriz epistemológica que tomava como pressuposto o diálogo, a reflexão,
o trabalho coletivo, a indissociabilidade dos conhecimentos teóricos e práticos e a problematização
da prática, forneceu a essas professoras recursos para enfrentar as situações encontradas. Seus
depoimentos foram veementes quanto à contribuição do Pibid para sua inserção profissional.

Para a maioria das professoras, o clima institucional não facilitou a chegada à escola, pois
lhes faltaram maior consideração e atenção e elas mesmas tiveram que buscar equilíbrio interno
para enfrentar a situação. Mesmo sendo situações distintas, as análises foram mostrando que o
contexto escolar, marcado pelas condições em que se dá a atuação profissional e pelo clima de
trabalho, são elementos-chave no processo de inserção das professoras.

É de Nóvoa (2013, p. 16) o argumento adequado para esta situação, de que é preciso
promover novos modos de organização da profissão, que ainda é marcada por fortes tradições
individualistas ou por rígidas regulações burocráticas. O autor defende que o campo profissional
dos professores precisa se abrir, flexibilizar ações coletivas e grupos de compartilhamento,
implementar uma cultura colaborativa, aspectos que têm maior conexão com a autonomia que é
requerida hoje pelas escolas e seus professores.

Acolhendo as proposições de Nóvoa e revendo agora com mais distância os achados das
pesquisas acima descritas, busquei novas leituras sobre formas (ou programas) de apoio e
acompanhamento aos iniciantes na sua inserção profissional.

NOVOS ESTUDOS SOBRE A INSERÇÃO PROFISSIONAL

A revisão de novos textos e autores coincidiu com o convite para o simpósio do XX


ENDIPE, que tinha como tema “Práticas de ensino e suas implicações para a inserção profissional
docente: desafios do desenvolvimento profissional”.O exame do título da mesa me levou, num
primeiro momento, a transformá-lo em uma pergunta: quais as implicações das práticas de ensino

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

para a inserção profissional docente? E quais os principais desafios para o desenvolvimento


profissional? No entanto, as novas leituras (AVALOS, 2016; TICKLE, 1994, 2000; MARCELO;
VAILLANT, 2017; WONG, 2004) e as discussões derivadas tanto do meu grupo de pesquisa
quanto de proposições de textos de colegas (FIORENTINI; CRECCI, 2016; CRECCI;
FIORENTINI, 2018; PASSOS, 2007, entre outros), ofereceram muitos argumentos para as questões
que compartilharei com vocês.

Os autores revistos são unânimes em apontar quão complexa é a situação que os professores
encontram no momento da inserção profissional. Por mais que tenham tomado consciência dos
principais desafios do início da carreira nos cursos de formação inicial, só quando, de fato,
assumem a docência é que vão colocar suas capacidades, competências, motivações à prova. Isso
porque, como alerta Ávalos (2016) ao fazer uma revisão de 463 artigos, publicados nos últimos 15
anos sobre professores iniciantes, são muitos os fatores que estão em jogo na aprendizagem da
docência: são conhecimentos, disposições, crenças, visão de si mesmo e do outro, assim como,
formas de conceber e de atuar na profissão. Além disso, como Ávalos (2016) argumenta, o trabalho
docente envolve interagir com propostas curriculares específicas, com os colegas, com grupos de
alunos, os mais diversos, e com a comunidade. A gama de combinações desses vários fatores ou as
possibilidades e restrições de cada contexto, diz a autora, serão certamente novos para cada
iniciante. Isso nos faz concluir que a proposição de programas para o período de inserção
profissional – chamados de programas de indução – precisa levar em conta o enfrentamento dessas
múltiplas condições.

Ainda na busca de conhecer melhor a temática, recorri à leitura dos textos de Tickle (1994;
2000), pesquisador britânico que nos traz muitas provocações, decorrentes de dados de pesquisa e
análise de políticas referentes a um país (Reino Unido) que tem programas de indução há cinquenta
anos. No primeiro texto (1994), o autor relata que, ao ser convidado para desenhar e implementar
um currículo de indução para iniciantes na docência, começou por fazer uma ampla revisão de
literatura e verificou que os resultados eram pouco consistentes. Também percebeu que o
conhecimento sobre o período pós-indução, em termos do que é esperado de um professor
qualificado e de como ele aprende a partir de sua experiência de sala de aula, não estava claro nas
pesquisas e que valia a pena investigar isso.

O autor buscou, então, definir certos princípios para orientar seu trabalho e chegou à
conclusão de que dois aspectos eram bastante defendidos na literatura especializada: a prática
reflexiva e a pesquisa do professor. Mas como esses conceitos também não eram suficientemente

112
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?

explicitados nas pesquisas por ele revistas, decidiu realizar um trabalho de campo, uma pesquisa-
ação com 6 professores em processo de indução e um estudo de caso com outros 5 professores
iniciantes. Manteve contato por um ano com os grupos e coletou registros escritos, fez observação
diária e grupos de discussão com os participantes, de modo a obter subsídios para o projeto de
indução que seria implantado no ano seguinte, com 150 iniciantes. O livro relata o desenvolvimento
do projeto e a análise dos dados.

No segundo livro, Tickle (2000) deixa mais explícitas suas provocações: por um lado propõe
que não se considere a indução como uma ponte que leva, de maneira tranquila, da formação inicial
ao início da docência e, posteriormente, à expertise. Isso porque ainda não se tem muita clareza
sobre o que é ser um bom professor, qual é realmente a função da escola, qual o tipo de educação
que deve ser proposta para o futuro... O autor sugere que antes de uma preocupação com o
delineamento de um programa específico de indução, deve-se pensar e definir qual a concepção de
formação que orientará o programa. E, nesse sentido, defende a formação centrada na reflexão da
prática e na investigação.

Por outro lado, ele também alerta que o uso da expressão professor iniciante pode refletir
uma tendência a considerar apenas as deficiências do principiante quando comparado com o
experiente. Essa tendência pode levar ao não reconhecimento do potencial criativo e profissional
dos recém-formados. E acrescenta que seria interessante que os jovens professores fossem vistos
como pessoas com capacidade intelectual e potencial para enfrentar os desafios e transformar a
educação. Se essa imagem positiva do iniciante for adotada, a indução será vista como um processo
que se estenderá para o desenvolvimento profissional dos jovens professores e não apenas como um
momento pontual.

Essas ideias, segundo Tickle (2000, p. 3), resultam de seus estudos das políticas e de
projetos que buscaram “conciliar as necessidades dos novos professores como aprendizes, com seu
potencial de educadores qualificados, profissionais, dedicados”. O autor esclarece, ainda, que o
reconhecimento das capacidades e potencialidades dos iniciantes, assim como das necessidades e
oportunidades de desenvolvimento profissional será muito maior se for um empreendimento
compartilhado, algo a ser discutido e negociado entre os novos professores e os demais colegas e
gestores da escola. A concepção do autor é de uma indução profissional que seja calcada nas
práticas educacionais, num processo de aprendizagem de todos que fazem parte do coletivo escolar
e na constituição de comunidades investigativas.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Outros autores que investigaram o assunto foram Marcelo e Vaillant (2017). Analisaram
programas de indução em países da América Latina (Brasil, Chile, México, Peru e República
Dominicana) e concluíram que as experiências são relativamente recentes, variadas em extensão e
em estratégias, mas sinalizam que a aprendizagem da docência para os iniciantes requer processos
formativos dentro e fora da escola, observação, retroalimentação, reflexão e colaboração tanto com
docentes experientes quanto com os que se iniciam na carreira.

Outro autor que tem inspirado nossos estudos sobre o acompanhamento dos iniciantes é o
norte-americano Wong (2004), que fez uma revisão exaustiva de pesquisas sobre os programas de
indução e também enfatiza a necessidade de envolvimento de todos que fazem parte do coletivo
escolar, no processo de inserção profissional. Uma das contribuições importantes desse autor é a
distinção bastante clara que faz entre indução e mentoria. Diz ele:
A indução é um processo – um processo abrangente, consistente e detalhado de
desenvolvimento profissional abrangente, coerente e contínuo – que é organizado por
um distrito escolar para formar, apoiar e reter novos professores e faze-los progredir
em um programa de aprendizagem ao longo da vida. Mentoria é uma ação. É o que os
mentores fazem. Um mentor é uma pessoa singular, cuja função básica é ajudar um
novo professor. Normalmente, a ajuda é para a sobrevivência, não para a
aprendizagem profissional sustentada que leva a se tornar um professor eficaz.
Mentoria não é indução. Um mentor é um componente do processo de indução
(WONG, 2004, p. 42).

O autor afirma que a mentoria em si não é um problema, mas que ao se propor um programa
de apoio aos iniciantes tem-se que ir além da mentoria, integrá-la em um processo longo e contínuo
de desenvolvimento profissional.

Com base nos resultados de uma pesquisa citada em sua revisão, que analisou programas de
indução em 1.027 escolas, Wong (2004, p. 50-51) assevera que os professores aprendem mais em
programas que são longos, permanentes e intensivos; quando a participação é coletiva; e quando os
novatos percebem a aprendizagem da docência como parte de um programa coerente de
desenvolvimento profissional.

Enfatiza que os melhores programas de indução promovem ligação dos participantes em


rede, porque estão estruturados em comunidades de aprendizagem, em que professores novatos e
veteranos interagem e tratam uns aos outros com respeito e são valorizados por suas respectivas
contribuições. Acrescenta ainda que o que mantém bons professores no ensino são programas de
desenvolvimentos profissional estruturados, duradouros, intensivos que permitem aos novos
114
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O QUE DIZEM AS PESQUISAS SOBRE INSERÇÃO PROFISSIONAL DOCENTE?

professores observar e serem observados, e fazer parte de redes ou de grupos de estudos em que
todos os professores compartilham, crescem e aprendem a respeitar uns aos outros (p. 52).

Concluindo, podemos dizer que os escritos dos vários autores, que analisaram experiências e
programas de indução implantados em países diferentes, assinalam aspectos comuns quanto à
inserção profissional dos docentes: esse é um momento especial, que merece atenção e cuidado por
parte dos gestores das escolas, dos formadores e dos agentes políticos. As contribuições importantes
trazidas pelos autores, com base em estudo dessas experiências indicam que tão importante quanto a
existência de apoio e acompanhamento aos jovens professores é que eles estejam envolvidos em um
processo formativo centrado na escola, que leve em conta as peculiaridades do contexto, que seja
calcado na reflexão das práticas e no desenvolvimento de uma postura investigativa. Esse processo
deve envolver professores iniciantes e experientes, gestores e os demais profissionais que atuam na
escola, num ambiente de colaboração e de aprendizagem conjunta. Além disso, as experiências
mostraram que esse trabalho será mais efetivo se estiver inserido em um processo de
desenvolvimento profissional duradouro e coerente e se puder contar com o apoio dos gestores das
políticas.

Concluo o texto com a proposição de que muito mais do que um conjunto de técnicas a
serem seguidas, os projetos de inserção profissional aos iniciantes devem ser fundamentados numa
concepção de formação voltada para as questões de cada escola, com suas peculiaridades, seu
contexto, os profissionais que nela atuam, suas formas de funcionamento e suas vinculações
institucionais. Além disso, não se pode mais esperar que cada um, individualmente, encontre
respostas para questões tão complexas que se fazem presentes hoje, e futuramente, no dia a dia das
escolas. É preciso empenhar-se na constituição de comunidades de aprendizagem (COCHRAN-
SMITH; LYTLE, 1999), que compartilhem saberes, concepções, explicações e que juntos possam
encontrar os melhores caminhos para o aperfeiçoamento da prática pedagógica e para que os
objetivos educacionais sejam alcançados.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 115


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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116
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 117


OUVIR, APRECIAR, CANTAR, TOCAR: EXPERIÊNCIAS
MUSICAIS ARREBATADORAS NA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES

Monique Andries Nogueira


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

“Mas a menos que ela queira ser infiel à sua função social, a arte precisa mostrar o
mundo como possível de ser mudado. E ajudar a mudá-lo”.
(Ernst Fischer).

O Brasil é celebrado pela riqueza e diversidade de suas manifestações musicais e, no


entanto, a linguagem musical permanece à margem dos currículos de formação do professor
generalista, ou reduzida a eventos pontuais. Passadas mais de duas décadas da LDB n. 9.394/96 e
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), a Música, enquanto linguagem integrante do
componente curricular Arte, continua em posição irrelevante. Nem mesmo a Lei n. 13.278/2016,
que reforça a obrigatoriedade desta linguagem no currículo ou a Resolução CNE/CEB n. 2 de 2016,
que trata da operacionalização desta obrigatoriedade, com recomendações claras no tocante aos
cursos de Pedagogia, foram suficientes para mudar a tradição curricular positivista que hierarquiza
saberes e campos de conhecimento, em prejuízo das artes e da cultura. É no contexto desta
contradição que se estrutura a presente reflexão.

Há cerca de uma década, desenvolvi pesquisa acerca do lugar da Música nos currículos de
Pedagogia do Rio de Janeiro (NOGUEIRA, 2010), a partir da análise dos currículos das quatro
maiores universidade públicas do estado (UFRJ, Uerj, UniRio, UFF). Naquela ocasião, foi possível
comprovar que neles a Música tinha presença irrisória, quando não inexistente. Na totalidade dos
casos, apenas uma disciplina, genericamente nomeada Arte e Educação ou Educação Estética,
tratava de todas as linguagens artísticas. Nas ementas, quase nunca algum conteúdo musical era
explícito, confirmando a hegemonia já tradicional das Artes Visuais. A exceção era uma única
disciplina eletiva, na Faculdade de Educação da UFRJ, da qual posso dar maiores informações por
ter sido responsável por sua criação. Embora de boa procura entre os estudantes, permanece até hoje
como eletiva.

Em um olhar sobre os atuais currículos de Pedagogia das mesmas instituições, percebe-se


que o quadro atual não se modificou substancialmente, embora algumas ementas apresentem
atualmente uma parte deconteúdos musicais. Ainda assim, tudo muito distante do que determina a
Resolução CNE/CEB n. 2 de 2016, em seu parágrafo 3º: as instituições superiores devem “incluir
nos currículos dos cursos de Pedagogia o ensino de Música, visando o atendimento aos estudantes
da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental” (BRASIL, 2016, p. 2). A falta de
uma política de educação musical efetiva que poderia resultar na formação de ouvintes críticos e

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OUVIR, APRECIAR, CANTAR, TOCAR: EXPERIÊNCIAS MUSICAIS ARREBATADORAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

autônomos pode explicar a indigência estético-musical do que é veiculado pelos meios de


comunicação de massa, o que nos leva a concordar com Milton Nascimento (2019).

Mesmo reconhecendo a dificuldade do lugar de defesa de algo que permanece sendo visto
como irrelevante nos currículos, mas que paradoxalmente ocupa espaço preponderante no cotidiano
(e este termo não é fortuito...) das estudantesi, passarei agora a apresentar experiências musicais
ocorridas no curso de Pedagogia, nos últimos anos.

OUVIR E APRECIAR

“[...] para aquele que também pensa com o ouvido, os elementos individuais da escuta
se tornam imediatamente atuantes como elementos técnicos, sendo que nas categorias
técnicas se revela, essencialmente, a interconexão de sentido”
(Adorno).

Há alguns anos, decidi que para além das práticas de apreciação musical ocorridas no espaço
da sala de aula, nas quais buscava ampliar os referenciais estético-musicais das alunas, trazendo
repertório diversificado e abrangente, das diversas matrizes culturais, preferencialmente pouco
presentes nos meios de comunicação de massa, sistematizaria idas a concertos e ensaios abertos.
Para tanto, estabelecemos parceria com a Orquestra Petrobras Sinfônica (OPES), agendando datas
previamente, para que constassem no programa da disciplina Arte e Educação.

O “Ensaio aberto” se configura em uma prática comum por parte de orquestras ao redor do
mundo. No Brasil, apesar de já usual, esta prática costuma ficar restrita a estudantes de música,
sendo pouco conhecida por educadores. Nessas ocasiões, a orquestra (ou grupo de câmara) usa dias
anteriores de concertos para “abrir” seus ensaios ao público. Dessa forma, divulga o repertório a ser
futuramente apresentado, motiva a ida à apresentação e, sobretudo, estabelece uma proximidade
com o público.

É justamente na dimensão da proximidade que buscamos investir: em geral, as alunas de


Pedagogia têm pouca familiaridade com a música de concerto e, além disso, desconhecem a rotina
da vida do músico, permanecendo com uma visão romantizada sobre a Arte e a Música. É preciso
desconstruir essa visão idealizada de talento inato, de dom especial, na direção de uma concepção
que contemple as dimensões de trabalho, de reflexão, de envolvimento e persistência presentes na
vida cotidiana do músico. Entendemos que esse não entendimento da música como trabalho, como
atividade cognoscente, está na base da concepção que prejudica sua inserção nos currículos de
formação de professores.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Já no início do semestre, as alunas eram informadas de que uma das atividades extraclasse
seria a frequência a um ensaio aberto de uma orquestra e, para as que se interessassem, a
possibilidade de ingressos para o concerto que aconteceria posteriormente. A simples enunciação
era suficiente para despertar atitudes que iam do interesse e excitação quase infantis à desaprovação
ostensiva, passando por uma maioria de posturas de surpresa: “Ensaio de orquestra? Nós? Para
quê?”.

Após explicações sobre os objetivos da atividade e algumas informações sobre o repertório,


aguardávamos o dia do ensaio. Como nem sempre o mesmo ocorria em horário de aula, não podia
contar com a totalidade das alunas; em geral, um grupo de 20 alunas comparecia, cerca de 50% da
turma. Na porta da sala de ensaio, reiterava as recomendações comuns da necessidade de
observação do silêncio, da proibição de alimentos e bebidas, além dos comentários para relembrar
as informações sobre o repertório.

À simples entrada no espaço, as alunas demostram um encantamento, pois para muitas delas
era a primeira experiência com uma orquestra ao vivo. Antes mesmo de começar a música, o
deslumbre visual: excitam-se com a visão dos diferentes instrumentos, o brilho dos metais, o
tamanho dos contrabaixos e tuba, o grande contingente de violinos e violas, a elegância das flautas
e oboés, tudo novo e desconhecido. Além disso, a presença descontraída dos músicos afinando seus
instrumentos, conversando, examinando as partituras traz a elas uma visão mais corriqueira
daqueles que em geral parecem tão distantes, para quem não os tem no convívio.

Após se acomodarem, ainda comentando, aos cochichos, as primeiras impressões, o maestro


inicia o ensaio, solicitando silêncio da plateia. Dá informações sobre a peça a ser executada, pede ao
solista que se levante e apresente seu instrumento. Mais uma vez, o encantamento das alunas ao
reconhecerem naquele instrumento de nome diferente (“oboé”) o timbre (parâmetro do som
conhecido por elas, conceito aprendido anteriormente nas aulas da universidade) presente em filmes
e desenhos de encantadores de serpente, fato lembrado pelo maestro. O oboísta, sempre solícito, faz
um pequeno solo para exemplificar ainda mais.

A música começa e enche o espaço. O corpo sonoro da orquestra é vigoroso e algumas


alunas chegam a arregalar os olhos por tamanho volume! Ouvidos também abertos aos timbres não
usuais. Ao fim da primeira peça, novos esclarecimentos e brincadeiras do regente, outros
instrumentos se destacam. Dessa vez, uma obra de um compositor nacional. O maestro pergunta se
a plateia o conhecia e fica feliz ao ver que crianças, alunos de uma creche municipal, respondem de
forma afirmativa e até citam uma outra composição do autor. O regente parabeniza a professora das

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OUVIR, APRECIAR, CANTAR, TOCAR: EXPERIÊNCIAS MUSICAIS ARREBATADORAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

crianças por ter feito o “dever de casa”. Minhas alunas também se surpreendem com o
conhecimento das crianças: a maior parte delas só teve acesso a esse tipo de aprendizado
recentemente, nas aulas de Arte e Educação no curso de Pedagogia. Por fim, uma última peça,
novos conhecimentos e as duas horas e meia de puro deleite passam rápido.

Ao término do ensaio, as alunas tardam a sair do recinto e alguns músicos se oferecem para
maiores explicações. Como crianças em loja de brinquedos, vejo aquelas jovens mulheres
avançarem em direção aos instrumentos: recebem informações sobre como segurá-los, quais suas
potencialidades, experimentam fazê-los soar. Os músicos também se divertem, respondem
perguntas sobre com que idade começaram a estudar, sobre quanto tempo treinam por dia, causando
surpresa às alunas. A proximidade faz com que a reflexão sobre as condições objetivas do trabalho
dos profissionais se misture à admiração pelos momentos anteriores de fruição musical.

A saída do espaço do ensaio é tumultuada, muitos comentários, lembranças. Deixo que


falem, que se emocionem, sem nenhuma interferência: combino que na aula seguinte faríamos uma
avaliação da atividade e me despeço, sem antes olhar mais uma vez para trás e ver aquelas jovens
felizes, arrebatadas pelo poder da música.

Dias depois, em aula, as alunas contam aos colegas como foram suas experiências e
impressões sobre o ensaio. Falam das sensações, dos timbres diferentes, dos instrumentos, dos
músicos. Falam da emoção de entender mais a obra e sua estrutura, informações que as auxiliam a
fruir melhor a música. Comentam a vontade de ir ao concerto futuro para ouvirem tudo de novo e
ficam felizes quando confirmo que conseguimos ingressos gratuitos para a apresentação da
orquestra no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Para muitas, será a primeira vez naquele recinto
que, embora público, permanece inacessível a muitas pessoas das classes populares. Apenas esse
fato – a primeira vez em uma sala de concertos – originaria muitos outros textos, mas me deterei
aqui na experiência, já por demais rica, do Ensaio aberto.

E então, ocorre algo que sempre se repete: uma aluna faltosa comenta que não pensa em ir a
esse tipo de atividade, que não gosta de música clássica. Imediatamente, muitas vozes se voltam e
explicam: eu também não gostava, achava chato, mas adorei! Você precisa ir, é muito legal, você
vai se surpreender! Até que alguém se lembra do texto estudado em classe anteriormente e
pergunta: como é mesmo aquilo que Adorno falou? Que a gente gosta do que reconhece? E assim
aproveito para voltar ao texto sobre o fetichismo na música (ADORNO, 1983) e assim retomar o
debate sobre a questão da democratização do acesso à arte e à cultura, sobre a construção do gosto.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O mais significativo ocorre ao fim da aula: na saída, um grupo de alunas se aproxima e uma delas
me diz: quando eu me formar e tiver a minha turma, também vou querer levar ela em coisas assim!

Nessa atividade, percebe-se que na união entre a emoção proporcionada pela apreciação
musical e a reflexão sobre as desigualdades sociais que promovem desigualdades também no acesso
à cultura, um outro patamar de experiência ocorre. Como destaca Fischer (2002, p. 20): “a arte é
necessária para que o homem se torne capaz de conhecer e mudar o mundo. Mas a arte também é
necessária em virtude da magia que lhe é inerente”.

CANTAR E TOCAR

“Eu não sei fazer o som do momento; eu faço do momento um som!”


(Mc Marechal).

Outra dimensão de atividades que ocorrem junto às alunas de Pedagogia é aquela que
envolve a execução musical, a improvisação e a invenção, a performance. Ainda que não sejam
profissionais, nem mesmo amadoras, busco proporcionar experiências em que o trato com os
elementos da linguagem musical possam ser apropriados por elas e organizados criativamente.
Obviamente se contasse com uma disciplina obrigatória, específica para a linguagem musical ou,
pelo menos, de maior carga horária para os conteúdos musicais na disciplina Arte e educação, estas
ocorreriam com maior frequência. Trago aqui uma dessas atividades para exemplificar.

Estudamos o tema da indústria cultural (ADORNO, 1994), analisando o processo de como a


obra musical se torna mercadoria. Nesse processo, a mesma perde suas características
potencialmente transformadoras e, de forma asséptica, torna-se produto inócuo, pronto a ser
consumido freneticamente pelas massas. Identificamos esse processo em gêneros como o rap e o
funk, portadores das vozes de uma juventude periferizada, pobre e, em sua maioria, negra.
Originalmente, esses gêneros oferecem momentos de fruição estética somados à reflexão sobre as
desigualdades sociais, a violência policial, a liberdade, entre outros temas. Nos produtos oferecidos
pelos grandes meios de comunicação de massa, no entanto, apenas as versões despolitizadas,
misóginas, que promovem o consumismo são ofertadas. Esse mesmo processo acontece com
diferentes gêneros, como o ocorrido com a música caipira quando passou a ser vendida como
sertaneja.

Em seguida ao debate, apreciamos obras de Mc Marechal (“Espírito independente”, “É a


guerra, neguim!”) e do rapper português Valete (“Indústria do nada”), como exemplos do gênero
que não sucumbiram aos desmandos da grande mídia. Iniciamos a análise com a identificação dos

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OUVIR, APRECIAR, CANTAR, TOCAR: EXPERIÊNCIAS MUSICAIS ARREBATADORAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

elementos rítmicos e da forma musical, percebendo a supremacia do ritmo sobre a melodia,


cumprindo as características originais que dão nome ao gênero (Rhythm And Poetry). Em seguida,
discutimos também passagens das letras, relacionando-as com os textos estudados. As alunas se
impressionam com a atualidade do pensamento adorniano (1994) e, por outro lado, com a
capacidade de reflexão social feita pelos jovens compositores.

A seguir, apresentamos a proposta de atividade: divididas em grupos de até seis membros, as


alunas deveriam compor um rap ou, pelo menos, duas quadras de versos, sobre tema que seria
escolhido por mim, a fim de aumentar o desafio. Para tanto, duas bases de rap, disponíveis na
internet eram executadas para que os grupos escolhessem sobre qual delas colocariam seus versos.
Os temas, selecionados nas composições apreciadas anteriormente, foram racismo, educação,
igualdade, corrupção, violência.

Em um primeiro momento, a surpresa: “vamos ter mesmo que compor um rap? A letra
toda? E tem que encaixar nessa base? Ai, não quero me apresentar, não”. Fica evidente a baixa
autoestima que grande parte das alunas de Pedagogia demonstram, como se já antecipassem a
desvalorização profissional do professor que certamente encararão mais tarde. Após desmistificar a
ideia da composição, relembrando textos sobre o fetiche do talento (ADORNO, 2000) e repetir
exaustivamente que seria uma atividade simples, sem pressão, sabendo que ninguém ali era
profissional da música, a resistência se esvai. Os grupos se afastam, fecham-se em si e passam a
raciocinar sobre o tema e rascunhar a letra. Enquanto isso, as bases de rap continuam ao fundo e
vez por outra uma aluna se aproxima e cantarola alguns versos para ver se “dá certo”. Quando
percebo a dificuldade, me aproximo e auxilio, fazendo com que a aluna sinta no corpo a batida e os
acentos. Em geral, em pouco tempo, as alunas conseguem atingir o resultado, encaixando os versos
na base rítmica, e voltam excitadas para o grupo.

Após o tempo necessário para que cada grupo finalize as duas quadras (e alguns produzem
até mais que isso), há o momento do ensaio: o grupo se aproxima e canta, baixinho, para não
prejudicar o ineditismo na hora da apresentação. Após cada grupo fazer seu ensaio, todos voltam
aos seus lugares e começa a apresentação.

O primeiro grupo se apresenta com o tema Racismo e narra a situação que foi objeto do rap
composto. No início do semestre letivo, no dia em que foram à escola onde fariam o estágio
curricular obrigatório nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, tiveram que se apresentar ao
porteiro. No entanto, apenas o aluno negro teve sua mochila revistada. Essa discriminação, vivida
pelo aluno em seu cotidiano, indignou as colegas que protestaram inutilmente junto à escola. O fato,
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

que ficou marcado para o grupo, é apresentado sob forma de Arte e recebe o título “13 de maio, 22
de março”, numa alusão à data da pretensa libertação dos escravos e ao dia em que se deu a
discriminação com o colega negro. Ainda cantam: “Só porque eu sou preto, sou revistado? Tudo
que eu faço é sempre mais visado”. A plateia vibra e ao fim canta junto o refrão: “13 de maio, 22 de
março...”.

Outro grupo se apresenta, com o tema violência. Também se baseiam em fato vivido por
algumas: a falta de merenda nas escolas de estágio, em função do desvio de verbas ocorrido.
Interessante notar que a apropriação do tema por parte das alunas, majoritariamente de classes
populares, não caminha pelas já cansativas lamúrias de classe média e mostram também terem sido
estimuladas pelos raps contestadores apreciados no primeiro momento da aula. Preocupadas em
garantir o entendimento da mensagem, optam por primeiro declamar a poesia, sem a base rítmica,
talvez também por se sentirem inseguras. Isso evidencia que, embora potente, esse tipo de
experiência poderia obter resultados muito mais satisfatórios se a linguagem musical pudesse de
fato ser aprendida e ensinada por mais tempo, como indica a legislação. Apesar da insegurança, as
alunas empolgam a plateia com a letra engajada: “Bandido bom é bandido morto; bandido grande é
bandido solto?”. E continuam: “engravatado, com sobrenome e perfume importado, comprado
com dinheiro da merenda, enquanto o pobre é o marginal que paga a prenda”.

E assim continua a apresentação dos grupos, sempre impressionando a plateia, formada não
só pela própria turma, mas a essa altura, também por funcionários terceirizados da limpeza, que
chegam à porta para ouvir. Ao fim da aula, as alunas saem muito excitadas, combinando de fazerem
novos raps para apresentações de trabalho de outras disciplinas.

À GUISA DE CONCLUSÃO

“Quando você ouvir essa canção que eu fiz, não se esqueça de sonhar...“
(Lô Borges e Ronaldo Bastos).

As atividades aqui descritas, tanto a apreciação musical no Ensaio Aberto quanto a


composição/apresentação de raps, são exemplos de experiências de fato formativas. Concordamos
com Adorno quando se refere às experiências como aquelas que transformam o sujeito no contato
com o objeto (ADORNO, 2000), diferentemente das vivências que podem apenas serem
acumuladas e rapidamente esquecidas. Por isso, por essa efemeridade, são impróprias ao
aprendizado, que requer humildade para reconhecer-se incompleto e abertura para a mudança. A
experiência, entendida aqui sob a ótica frankfurtiana, tem alto potencial educativo, exatamente por

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OUVIR, APRECIAR, CANTAR, TOCAR: EXPERIÊNCIAS MUSICAIS ARREBATADORAS NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

mobilizar e desestabilizar o sujeito, obrigando-o a reajustar seus conceitos, a aventurar-se na


criação.

Foi exatamente isso que aconteceu com as alunas de Pedagogia quando se deixaram
envolver pela Arte, em espaços/propostas não usuais para elas. Puderam, naqueles momentos,
exercitar o saber sensível (ENTEL, 2008), unindo emoção e razão, sensibilidade e raciocínio para
apreciar e para compor.

Muitas vezes, durante as aulas de todas as disciplinas, as alunas tratam de vários assuntos:
checam mensagens no celular, respondem às redes sociais, buscam arquivos de textos das aulas
anteriores. Em meio a tudo isso, ouvem o professor, quando sobra tempo. Os muito otimistas
afirmam que as novas gerações desenvolveram essa habilidade que lhes permite fazer várias coisas
ao mesmo tempo, com efetividade. Türcke (2010) discorda e, na sua reflexão acerca da distração
concentrada, desvela com propriedade esse fenômeno, demarcando o quanto são descartáveis certas
vivências contemporâneas. Concordamos com Türcke (2016) quando, ao contrário da maioria,
afirma que esse comportamento aponta para uma superficialidade, podendo ser em parte
responsável pela onda de transtornos de déficit de atenção visto nas escolas. Para esse autor,
vivemos uma “cultura de hiperatividade” (TÜRCKE, 2016), isto é, estamos cultivando crianças e
jovens cada vez mais dispersos, ansiosos e superficiais.
Nas atividades aqui descritas, procurei trilhar o caminho contrário. Na apreciação privilegiei
o silêncio, a escuta ativa, a atenção, o zelo, o respeito pelo trabalho do artista. Na composição,
busquei o rigor, a artesania, o cuidado, o preparo cuidadoso. Oxalá fossem esses momentos não
exclusivos da linguagem musical, mas firmemente presentes nas artes, mais frequentes nos cursos
de Pedagogia.

Como afirmei no início desse texto, trago aqui a defesa de algo que é visto pela maior parte
dos curriculistas e dirigentes educacionais como irrelevante, frente aos imensos desafios que se
colocam contemporaneamente à Educação. Contudo, creio que as hierarquias são falsas e é preciso
buscar em outros campos do saber alternativas para o envolvimento das futuras professoras. É por
seguir acreditando no papel de professores e professoras na transformação da sociedade que aposto
na ampliação de sua formação cultural, concretizada, por vezes, na presença de experiências
musicais arrebatadoras, que lhe ofereçam material racional e sensível, na direção da construção de
um ser humano integral e integrado a um mundo mais igualitário.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. W. O fetichismo na música e a regressão da audição. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
[Coleção “Os pensadores”].

ADORNO, Theodor. W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor W. Adorno. 2. ed. São Paulo: Ática,
1994. [Coleção “Grandes Cientistas Sociais”].

ADORNO, Theodor. W. Educação e emancipação. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 2000.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Arte. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997.

BRASIL. Lei n. 13.278, de 2 de maio de 2016. Brasília, DF: MEC, 2016.

BRASIL. Conselho Nacional da Educação. Resolução n. 2, de maio de 2016. Brasília, DF: CNE/CEB, 2016.

ENTEL, Alicia. Dialectica de losensible – imagenes entre Leonardo y Walter Benjamin. Buenos Aires: Aidos, 2008.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.

NASCIMENTO, Milton. A música brasileira hoje está uma merda. [S.l.: s.n.], 2019. [Entrevista concedida à Folha
de São Paulo em setembro de 2019].

NOGUEIRA, Monique Andries. A música nos currículos de Pedagogia: espaço em disputa. In: CONGRESSO ANUAL
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MUSICAL (ABEM),10., Goiânia, 2010. Anais [...]. Goiânia:
[s.n], 2010.

TÜRCKE, Christoph. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.

TÜRCKE, Christoph. Hiperativos: abaixo a cultura do déficit de atenção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2016.

Notas de fim

i
Utilizamos as referências a estudantes e alunas de Pedagogia sempre no feminino, uma vez que nas turmas observadas
neste texto, o percentual de mulheres ultrapassou 90%.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 127


A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA
EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E
POSSIBILIDADES

Patrícia Cristina Albieri de Almeida


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

Lendo o tema do XX Endipe − Fazeres-saberes pedagógicos: diálogos, insurgência e


políticas −, bem como a apresentação do evento, na qual o Comitê Organizador ressalta os desafios
da Didática e da área de educação no atual contexto político e tendo, ainda, aceitado o convite para
compor, na condição de palestrante, o Simpósio “Movimentos Insurgentes na formação docente:
práticas, propostas, resistências e (re)existências”, fui desafiada a “superar a falta de ânimo, o
cansaço e a desesperança” que, vez ou outra, tomam conta de mim e a aceitar o chamado do XX
Endipe para “resistir, insurgir e criar espaços de diálogo orientados a construir processos educativos
que fortaleçam a democracia, a justiça e a solidariedade no nosso país”.

Assim, imbuída da tarefa de escrever o texto que comporá o e-book do XX Endipe, fui
tomada pela necessidade de reler as produções do movimento de revisão da Didática que teve início
no 1º Seminário − A Didática em questão −, realizado na PUC-Rio, em 1982. Reler, pois, essas
produções fizeram parte da minha formação e influenciaram meu pensar e fazer como professora de
Didática e de Prática de Ensino. Foi um prazer revisitar A Didática em questão; Rumo a uma
nova Didática; Didática: ruptura, compromisso e pesquisa; Didática: o ensino e suas relações;
Alternativas do ensino de Didática; A Didática e as contradições da prática.

Essas obras retratam o esforço coletivo de revisão crítica do ensino e da pesquisa em


Didática. Esse movimento se constituiu compromissado com a redemocratização da sociedade
brasileira, com a democratização da escola pública e com a formação de um professor politicamente
comprometido com a transformação social. Passados quase 40 anos, a luta continua pelas mesmas
causas.

É preciso considerar que o movimento de revisão da Didática, especialmente nas décadas de


1980 e 1990, não era só de denúncia, mas, também, de busca de caminhos e tinha na agenda discutir
o papel da Didática na formação dos professores, redefinir os pressupostos teóricos do seu ensino e
explicitar abordagens alternativas. As releituras das obras de intelectuais pertencentes ao
movimento, me levam a concluir que essa agenda é atual e continua sendo um desafio para a
construção de uma Didática que articule a prática pedagógica concreta com a perspectiva de
mudança social em um mundo em constante transformação.

A questão básica que fundamentava a revisão da Didática era a de que ela se relacionava
com a aprendizagem escolar das classes populares em um momento em que muitas crianças,
adolescentes e jovens não tinham acesso à escola ou não permaneciam nela. Hoje, mesmo

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 129


A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

reconhecendo que os avanços sociais no Brasil resultaram na ampliação do direito à educação e de


oportunidades de acesso a todas as etapas da escolarização, ainda persistem fortes desigualdades
quanto ao acesso à educação, à capacidade de prosseguir nos estudos e à qualidade da educação
recebida (GATTI et al., 2019).

Nas últimas décadas, contamos com medidas, ações e programas que demandaram não só
significativo investimento do poder público, bem como o empenho dos atores envolvidos nesses
processos. Ainda assim, o retorno na qualidade das aprendizagens dos estudantes tem estado sempre
aquém do esperado (GATTI et al., 2019). Na contramão dos esforços empregados por aqueles que
trabalham pelo aprendizado dos estudantes e por uma formação de professores de qualidade, tem a
tradição de se ofertar cursos de licenciatura aligeirados, programas de formação de professores
simplificados e, para piorar, apostou-se na modalidade a distância, sem a necessária regulação e
monitoramento.

Considerando esse o contexto, podemos questionar: no que retomar o movimento de revisão


da Didática contribui, hoje, na luta por qualificar as formações docentes? Revisitando aquelas
análises e propostas, considero que muitas das questões que estavam em pauta naquele momento
ainda merecem nossa atenção, como, por exemplo, o entendimento e o uso que se faz dos
estruturantes do método didático (o elemento lógico, o sujeito da aprendizagem, o contexto onde se
dá a prática educativa, o conteúdo etc.) no ensino de Didática e na pesquisa. Ainda há forte
tendência de dar exclusividade a alguns deles, sem articulá-los.

Candau, em 1988, já argumentava que o desafio estava na superação do formalismo, do


reducionismo e na ênfase na articulação que “tenta trabalhar dialeticamente os diferentes
estruturantes do método didático, considerando cada um deles, suas inter-relações com os demais,
sem querer negar nenhum deles” (CANDAU, 1988b, p. 35). E foi consciente dos limites e
insuficiências de uma perspectiva meramente instrumental da Didática, que Candau (1983) propôs o
que chamou de “Didática Fundamental”, ou seja, o ensino de Didática deveria partir de uma visão
de totalidade do processo de ensino-aprendizagem, de uma perspectiva multidimensional que
articula as dimensões humana, técnica e político-social da prática pedagógica. Logo, “a
competência técnica e a competência política do educador se exigem mutuamente e se
interpenetram” (CANDAU, 1983, p. 107). Mais tarde, Candau incluiu também a dimensão cultural
em sua proposição.

Desde as primeiras proposições do movimento de revisão da Didática, a luta tem sido contra
o peso das desigualdades no sentido de possibilitar que todos os alunos adquiram os aprendizados
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

fundamentais, que sejam removidas as barreiras à aprendizagem e fornecido o apoio adequado para
todos, tendo em vista facilitar a aprendizagem e o desenvolvimento. Para garantir tais condições é
fundamental não só que o professor e toda a equipe escolar estejam atentos às necessidades de cada
criança, adolescente ou jovem, mas que saibam o que e como fazer para promover intervenções que
superem, sobretudo, práticas que ratificam a desigualdade.

Fiz uso deste preâmbulo para contextualizar e apresentar, na sequência, como estruturei
minha contribuição para os “movimentos insurgentes na formação docente”, o que implica dizer
como vislumbro práticas, propostas, resistências e (re)existências.

Dentre as muitas possibilidades de encaminhar essa discussão, optei por analisar a


perspectiva da Didática Fundamental no contexto da educação inclusiva. Num primeiro momento,
esclareço o que estou entendendo por educação inclusiva para, na sequência, problematizar a
histórica tensão entre as dimensões política e técnica na formação docente e a frágil articulação
entre as áreas que constituem fonte de conhecimento para a formação dos professores, com especial
destaque ao caso da Psicologia da Educação. Tanto em um caso como em outro, a intenção foi
colocar em evidência as implicações de visões reducionistas para a educação inclusiva.

Essas tensões e fragilidades, construídas historicamente, contribuíram para causar um efeito


imobilizador nas práticas formativas desenvolvidas nos cursos de licenciatura, mesmo quando tudo
o que vinha ocorrendo na formação docente e nas escolas de educação básica exigia uma alteração
no pensar e fazer dos currículos dos cursos de licenciatura. Contudo, nos últimos anos, observo que
a imobilidade tem dado lugar não só à prática de pensar a prática, mas, também, tem mobilizado
novas formas de atuar que sinalizam possibilidades no âmbito da formação inicial, mesmo
considerando que a maioria dessas iniciativas ocorre no contexto das disciplinas e não do curso
(GATTI et al., 2019; ANDRÉ et al., 2010).

Quando relatei, no início deste texto, que o XX Endipe me desafiou a “superar a falta de
ânimo, o cansaço e a desesperança”, é porque há em mim uma impaciência frente a algumas
questões que, a priori, já deveriam ter sido superadas. Por outro lado, estou aprendendo a ter
“paciência histórica”. Trata-se de um termo utilizado, segundo Cortella (2014, p. 15), por Paulo
Freire, que define como sendo “a percepção do momento adequado em que as coisas podem ser
alteradas”. Isso significa saber identificar “o momento em que as coisas acontecem e observar se
estão suficientemente maduras para poderem ser mexidas”.

Assim, me pareceu oportuno trazer à baila a necessidade de superarmos algumas visões


reducionistas que dificultam os avanços na qualidade da formação oferecida aos futuros

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 131


A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

professores. Creio que há mais espaço e receptividade, hoje, nos cursos de licenciatura, para a
construção de caminhos alternativos. Como já mencionei, têm crescido as iniciativas no sentido de
ressignificar as práticas de formação inicial.

A NOÇÃO DE INCLUSÃO

A noção de inclusão a que faço referência sublinha a necessidade de se alcançar uma


educação de qualidade para todos, centrada no respeito e valorização das diferenças. Nessa
perspectiva, os sistemas educativos têm o desafio de atender às características e necessidades da
diversidade dos estudantes. Logo, o desenvolvimento de escolas inclusivas e, portanto, capazes de
educar todas as crianças, não é “[...] unicamente uma forma de assegurar o respeito aos direitos das
crianças com deficiência de forma que tenham acesso a um ou outro tipo de escola, senão que
constitui uma estratégia essencial para garantir que uma ampla gama de grupos tenha acesso a
qualquer forma de escolaridade” (DYSON, 2001, p. 150).

A inclusão nessa perspectiva não é trivial, pois como explica Braslavsky (1985, apud
AGUERRONDO, 2008), há três tipos de marginalização educativa. A primeira é a marginalização
por exclusão total, ou seja, o não ingresso no sistema educativo que resulta na total exclusão ao
acesso ao conhecimento escolar. A segunda é referente à marginalização por exclusão precoce ou
evasão do sistema escolar antes das habilidades básicas serem consolidadas pelo aluno. E a terceira
é a marginalização por inclusão, que implica na permanência no sistema escolar sem assegurar o
aprendizado. E, mesmo quando o processo de escolarização é concluído, não há garantias de
aquisição dos conhecimentos escolares.

É importante lembrar que a escola tem a tradição de construir hierarquias de excelência


(CRAHAY, 2013) em que crianças, adolescentes e jovens, especialmente de contextos
desfavorecidos, são os mais afetados pelas práticas que ratificam a desigualdade. Crahay (2013)
adverte que é muito comum a escola tratar todos os aprendizes, por mais desiguais que sejam, como
iguais, bem como utilizar abordagens pedagógicas que favorecem os alunos melhores e prejudicam
os mais fracos. Essa lógica ratifica as desigualdades, pois a igualdade de tratamento na escola não
só não consegue assegurar a justiça igualitária, como também confirma as desigualdades de origem
social. É importante lembrar, também, que o indivíduo que não tem acesso e domínio dos códigos
sociais básicos, não tem possibilidade de inclusão social.

E, no sentido contrário a essa lógica, caberia à escola lutar contra o peso das desigualdades
de origem social, levando todos os indivíduos a adquirirem os aprendizados fundamentais. Assim, a
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

democratização do ensino, no contexto da educação inclusiva, supõe três grandes etapas, a saber: (i)
o acesso à educação, ou seja, garantia do acesso à escola e ao conhecimento sistematizado; (ii) o
acesso à educação de qualidade, o que pressupõe a qualidade do ensino oferecido e o
prolongamento do tempo de permanência na escola, para que os estudantes possam se preparar para
estudos posteriores. Para tanto, é fundamental o aperfeiçoamento dos currículos, da formação
pedagógica e do material didático; (iii) e, a terceira etapa, somente é possível depois de estabelecer
essas estruturas básicas e contar com um sistema de educação que considere as necessidades
individuais dos estudantes (HALINEN; JÄRVINEN, 2008).

A educação inclusiva a que nos referimos garante igualdade de acesso à escola, bem como
currículos e ambientes de aprendizagem de qualidade e professores capazes de ensinar a grupos
heterogêneos (HALINEN; JÄRVINEN, 2008), o que implica em criar ambientes de aprendizagem
que sejam versáteis, bem como incentivar a cooperação entre diversos profissionais para o
desenvolvimento de práticas de ensino inclusivas e colaborativas.

AS DIMENSÕES POLÍTICA E TÉCNICA DA PRÁTICA DOCENTE: ARTICULAÇÃO


NECESSÁRIA

Um elemento que vem produzindo impacto mais direto nas características objetivas e
subjetivas do trabalho docente é a universalização do atendimento escolar de crianças, adolescentes
e jovens na escola pública obrigatória e gratuita, o que pressupõe ensino de qualidade e o
atendimento às diferenças de toda natureza. Nesse processo, os docentes enfrentam um duplo
desafio: o de atender mais alunos e atender outros alunos (FANFANI, 2007). São outras as vidas
que buscam “a escola – além daquelas oriundas das classes média e alta, clientela por excelência
dos períodos anteriores – e que, portanto, exigem um novo projeto de escola que atenda a essas
vidas diferentes e que tenha como norte a superação das desigualdades sociais” (MIZUKAMI et al.,
2002, p. 11).

Esse cenário complexo de demandas que hoje pesam sobre as escolas, bem como a carência
de respostas eficazes, colocou em evidência “[...] certa inadequação do sistema educativo, quer para
formar cidadãos capazes de responder à pluralidade de desafios com que actualmente se deparam,
quer para atenuar algumas assimetrias e desigualdades que continuam a proliferar socialmente”
(MORGADO, 2011, p. 795).

Assim, as mudanças sociais associadas às transformações no sistema educativo para atender


às expectativas das classes populares pela instituição escolar têm consignado um papel especial aos

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A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

professores, “que continuam a ser vistos como agentes efectivos de mudança, deles dependendo, em
grande parte, tanto as transformações que urge imprimir na escola e no ensino, quanto o sucesso
educativo dos estudantes e a sua realização como pessoas” (MORGADO, 2011, p. 439). Porém, é
preciso ressaltar que não basta os professores assumirem esse compromisso, é essencial que estejam
preparados para isso. Dito de outro modo, que estejam preparados para o exercício de “uma prática
educativa contextualizada, atenta às especificidades do momento, à cultura local e ao alunado
diverso em sua trajetória de vida e expectativas escolares” (GATTI, 2013, p. 53).

Desse modo, formar para a educação inclusiva implica promover uma formação que articule
e harmonize os elementos estruturantes da Didática e que evite, sobretudo, a polarização entre a
formação política e a técnica, ainda presente em nossas discussões e práticas. É importante
considerar que, se por um lado, colocar a especificidade da educação descolada da sua compreensão
histórica significa “introduzir disfarçadamente [...] na escola o gérmen do esvaziamento do seu
papel social e político, reduzindo-a ao cumprimento de suas funções técnicas” (GADOTTI, 1984, p.
22), por outro, “deixar de insistir na necessidade da competência técnica do educador significa não
atender as necessidades formativas das classes populares” (GADOTTI, 1984, p. 33).

Candau já advertia, nos anos de 1980, que “a dimensão técnica da prática pedagógica, objeto
próprio da Didática, tem de ser pensada à luz de um projeto ético e político-social que a oriente”
(CANDAU, 1988a, p. 15), pois a reflexão Didática tem um compromisso com a transformação e a
justiça social. É esse comprometimento que, segundo Candau (1983), orienta a busca por práticas
pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente para todos os alunos. Mas o que seria
“eficiente”? Candau (1983; 1988a; 1988b) não só usa a expressão “eficiente”, como destaca no
texto que não se deve ter medo da palavra eficiente e a busca pela eficiência não deve ser negada
pela Didática. É preciso perguntar o que se entende por eficiência e a serviço do que e de quem ela
está.

No entanto, muitos ainda entendem a técnica nos limites do tecnicismo. O que é um


equívoco. Se lutamos por procedimentos escolares menos elitistas, menos reprodutores e mais
democráticos, o saber fazer técnico do professor deve ser entendido como uma condição
indispensável ao exercício da prática docente, bem como do seu papel político. O desafio de ontem
e hoje é formar um professor capaz de “buscar e fazer uso de sua capacidade técnica, com a
dimensão política que ela carrega subjacente” (PAULO, 1988, p. 109).

Mesmo considerando que são vários os fatores que interferem na qualidade da educação
oferecida às crianças, adolescentes e jovens, a influência do professor no desempenho dos alunos,
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

para além de estar no imaginário coletivo, é retratada em vários estudos, como o de Darling-
Hammond e Bransford (2019, p. 12). Os autores explicam que, normalmente, se pressupõe “que o
histórico dos alunos – como renda, educação dos pais e outros fatores familiares – seja o principal
motivo para grandes diferenças no desempenho deles”, entretanto, há evidências de que “a
qualidade dos professores pode ter um efeito igualmente importante” (p. 12). As pesquisas
apresentadas pelos autores indicam que estudantes que, por anos seguidos, estudam com
professores que desenvolveram expertise na disciplina ou segmento de ensino em que atuam, têm
ganhos significativos no aproveitamento escolar.

No entanto, como bem ressaltam Darling-Hammond e Bransford (2019, p. 4), seria ingênuo
achar que melhorar a qualidade da formação docente é suficiente para mudar os resultados da
educação. Para os autores, é preciso atender simultaneamente a ambos os lados da moeda: “[...] as
escolas precisam continuar se transformando para criar as condições dentro das quais um ensino e
uma aprendizagem poderosa possam ocorrer, e os educadores devem estar preparados para fazer
parte desse processo de transformação”.

Logo, como bem ressaltam os autores, o contexto do ensino cumpre um papel fundamental,
pois é esperado que os professores trabalhem em escolas que lhes possibilitem não só a usar o que
sabem, mas, acima de tudo, que possam aprender e se desenvolver com os seus pares.

Assim, diante da necessidade de melhorar a qualidade da formação docente e promover uma


educação inclusiva, pergunta-se: qual o papel da Didática e das Práticas de Ensino na preparação de
professores capazes de ensinar em grupos heterogêneos? Como preparar professores que saibam
criar ambientes de aprendizagem versáteis e que saibam elaborar estratégias e metodologias
adequadas às necessidades de aprendizagem dos alunos?

Essas perguntas provocam outros questionamentos: se e como as disciplinas de Didática e de


Práticas de Ensino têm possibilitado aos professores não só o desenvolvimento de um conhecimento
crítico sobre contextos desfavorecidos e seus efeitos sobre os alunos. Além disso, é preciso
questionar como se tem ensinado a ensinar para atender às diversidades no contexto da sala de aula
e da escola. E, ainda, dada a complexidade e responsabilidade inerentes à educação inclusiva, se e
como tem sido favorecida a construção e consolidação de práticas baseadas na colaboração, uma
vez que as escolas inclusivas requerem uma comunidade de atores e uma dinâmica de relações
sociais em seu interior que viabilize o trabalho com as diversidades.

Em 2018, a Oficina Regional de Educação para a América Latina e Caribe/ OREALC-


Unesco, de Santiago do Chile, desenvolveu uma pesquisa que abordou, dentre outros aspectos, a

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A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

formação inicial docente para as pedagogias de inclusão em sete países: Argentina, Brasil,
Colômbia, Chile, Guatemala, México e Peru. O estudo apresentou um diagnóstico e uma análise
comparativai sobre a situação da formação de professores dos anos iniciais do ensino fundamental
em pedagogias para inclusão.

Todos os sete países contam com uma política de formação que valoriza a inclusão, a
diversidade e prevê a necessidade de acesso equitativo às oportunidades de aprendizagem, incluindo
fatores socioeconômicos e culturais, necessidades especiais, bem como fatores de raça, gênero e
orientaçãosexual. Todavia, essa conscientização política sobre a relevância da inclusão educacional
não tem seu equivalente no nível pedagógico, no desenvolvimento de conhecimentos e habilidades
mais próximas ao ensino em sala de aula que devem ser adquiridas na formação. Logo, o
aprendizado de práticas pedagógicas que contribuam para viabilizar um ensino equitativo não tem
uma presença clara ou proeminente nos currículos ou nas práticas das instituições estudadas.

A fraca presença na formação inicial de oportunidades de aprendizado sobre metodologias


relevantes de trabalho em sala de aula para contextos desfavorecidos e de modelos de trabalho
baseados em colaboração revela as mazelas do sistema educacional de países da América Latina.
Nesses países, parte das crianças, adolescentes e jovens não têm aprendido o que os currículos
sinalizam como o mínimo necessário para o seu desenvolvimento. Assim sendo, nota-se uma
profunda desigualdade de natureza socioeconômica e cultural nesses sistemas, refletida nas
diferenças entre as escolas e o rendimento dos alunos, especialmente quando se considera o tipo de
população escolar atendida.

Pesa sobre as políticas públicas e sobre os cursos de formação inicial a construção de


propostas mais orgânicas e com potencial para transpor essas dificuldades. Recorro às reflexões de
Fanfani (2007) para destacar a necessidade de analisarmos a tensão entre o princípio da
racionalidade instrumental e o princípio da racionalidade orgânica na profissionalização docente.
Para o autor é preciso encontrar estratégias que incorporem elementos de ambas as racionalidades:
El modelo orgánico enfatiza esta dimensión que remite a consideraciones de orden
cultural, político y humano. Sin embargo es obvio que no se puede prescindir de la
ineludible dimensión instrumental que tiene cualquier acción colectiva. Toda práctica
tiene una racionalidad médio/fin que es preciso atender. El conocimiento racional
técnico permite obtener eficiencia y eficacia, objetivos legítimos en uno contexto de
escasez estructural de recursos (FANFANI, 2007, p. 347-348).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Essa perspectiva de análise retoma o caráter multidimensional do processo de ensino-


aprendizagem proposto por Candau (1983), pressupondo, assim, a necessária articulação entre as
dimensões política, humana, técnica e cultural.

Nesse sentido, o lugar da dimensão técnica na formação docente, tendo em vista a educação
inclusiva, que inclui, dentre outros aspectos, conhecimentos e habilidades para um ensino eficaz no
contexto da diversidade, não pode mais ser confundido com “tecnicismo”. Superar esse tipo de
reducionismo é uma prática de resistência e (re)existência em prol do ensino equitativo.

A FRÁGIL ARTICULAÇÃO ENTRE AS ÁREAS QUE CONSTITUEM FONTE DE


CONHECIMENTO PARA A FORMAÇÃO DOS PROFESSORES: O CASO DA PSICOLOGIA
DA EDUCAÇÃO

Desde os anos de 1980, são inúmeros os estudos que buscam não só compreender e estipular
os conhecimentos profissionais dos professores, mas, também, entender como os docentes
aprendem em diferentes momentos do seu desenvolvimento profissional. Essas pesquisas têm
disponibilizado conceitos e estratégias, já bastante difundidos no campo da formação de professores
no Brasil, para fundamentar a preparação inicial e continuada dos docentes.

Os estudos sobre os conhecimentos profissionais são abundantes e possuem uma diversidade


considerável de enfoques teóricos e metodológicos. Ainda assim, não é comum encontrarmos, no
Brasil, pesquisas que se dedicam a investigar a correlação entre os tipos de experiências que as
crianças, adolescentes e jovens precisam para aprender e se desenvolver e os tipos de
conhecimentos que os professores necessitam tendo em vista facilitar essas experiências.

Reconhecer essa lacuna significa ressaltar que a produção do conhecimento e o ensino no


campo da Didática, das Práticas de Ensino, o que inclui as especificidades do “ensino de”, se
beneficiam do conhecimento produzido sobre como as pessoas aprendem e se desenvolvem. É
importante considerar as demandas das escolas de hoje em relação aos conhecimentos produzidos
sobre o desenvolvimento, a aprendizagem, a cultura e o ensino para que seja possível oferecer
suporte aos professores.

Darling-Hammond e Bransford (2019, p. 19) argumentam que o “que sabemos sobre como
os alunos aprendem deve influenciar as práticas de ensino, e o que sabemos sobre práticas de ensino
eficazes, bem como sobre a aprendizagem de professores, deve influenciar a formação de
professores”. Esse movimento e articulação entre as pesquisas parece ser uma prática necessária
para o aperfeiçoamento da formação dos professores. Assim, compreender e definir o que é próprio

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 137


A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

da ação docente vai além de estabelecer uma tipologia de conhecimentos que estão na base da
docência. Os autores apresentam sólidos argumentos e muitos exemplos para analisar a importância
de se investir, no campo da formação docente, na articulação entre a pesquisa básica sobre
aprendizagem, a pesquisa sobre o ensino e a formação de professores.

No Brasil, esse movimento requer o enfrentamento da frágil produção de conhecimento


sobre aprendizagem e ensino e sobre a frágil relação entre as disciplinas tidas como de
fundamentos, as disciplinas de conhecimentos específicos (conteúdos de ensino) e aquelas
consideradas pedagógicas.

Da mesma forma que a Didática, a Psicologia e a Sociologia, por exemplo, já foram


colocadas em questão. As contribuições dessas áreas de conhecimento foram questionadas a partir
das denúncias de psicologização e do sociologismo na educação.

Parte das propostas educacionais no século XX teve na Psicologia e, posteriormente, na


Sociologia, seu ponto de sustentação, delineando uma tendência para explicar as problemáticas
educacionais apenas a partir de um enfoque psicopedagógico ou sociológico. Esse processo resultou
em análises frágeis da realidade educacional, as quais culminaram em movimentos de resistência
que resultaram na perda do espaço da Psicologia e da Sociologia para se pensar a educação e a
formação dos professores.

Os equívocos presentes nessas análises devem ser historiados e é preciso enfrentar o desafio
de discutir os limites e possibilidades dessas áreas e de outras na formação de professores e as
interfaces com a Didática e as Práticas de Ensino.

Especialmente no caso da Psicologia, o viés psicologizante contribui, até hoje, para que ela
não seja reconhecida, por muitos, como um conhecimento necessário à formação de professores e
como constitutiva da profissionalização docente.

Superar leituras reducionistas e unilateralidades de abordagens exige o esforço de


problematizar aspectos da educação sob um olhar mais complexo. Como sugere Gatti (2003), a
tematização, a problematização, o enfoque teórico-metodológico e a análise dos dados de pesquisa
na área da educação precisam ser realizados de forma mais integradora, incorporando
conhecimentos de várias outras áreas com que estabelecem interface. Além disso, é preciso
considerar que as ações pedagógicas são intencionais e, portanto, que as questões políticas e sociais
interagem com o campo educacional.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Essa perspectiva na produção de conhecimentos coloca em evidência o potencial de


contribuições das diferentes áreas do conhecimento para o ensino. No caso da Psicologia, as
contribuições para a prática educativa podem se constituir de diferentes formas: a começar pela sua
pluralidade de sistemas teóricos, perpassando as possibilidades de diálogo teórico dentro e fora do
seu campo de conhecimento e, ainda, o diálogo com a prática educativa, que pode ser mediado pelo
próprio professor, quando este faz uso da Psicologia e de outros saberes com a finalidade de
promover intervenção pedagógica. É nessa perspectiva que há um esforço de ressignificar o papel e
o lugar da Psicologia da Educação na formação dos professores e a proposta de modificação de seu
status: de fundamento da educação para uma disciplina teórico-prática.

Larocca (2007, p. 302) explica que o “formato de fundamento conduz o ensino de Psicologia
à simples assimilação de conceitos, princípios e teorias que os aprendizes de professor apenas
devem reproduzir nas aulas, nos textos, nas avaliações”. E esse formato dificulta o processo de
conduzir o futuro professor à teorização da prática pedagógica.

Se concordarmos que no domínio da formação de professores, compete à Psicologia


apresentar-se em toda a sua diversidade, o professor de Psicologia da Educação e o curso de
formação terão que ter claros os critérios que direcionarão às escolhas em relação à inserção dos
conhecimentos psicológicos na matriz curricular dos cursos de licenciatura. É muito comum que o
aprendizado dos conhecimentos da Psicologia fique restrito a momentos pontuais no interior da
própria disciplina, o que não é desejável, uma vez que os conhecimentos de que a Psicologia dispõe
podem ser mobilizados em diferentes contextos formativos (ALMEIDA, 2005).

Assim sendo, a presença da Psicologia nos cursos de licenciatura deve ser pensada no
conjunto do curso tendo em vista as suas peculiaridades e necessidades, e não exclusivamente no
interior da disciplina de Psicologia da Educação e/ou Psicologia do Desenvolvimento e/ou
Psicologia da Aprendizagem, seja qual for a sua denominação.

É preciso ter claro que os conhecimentos psicológicos agem em função da intervenção


pedagógica, exigindo do professor uma ação deliberativa que se constrói num processo dialético
entre as convicções pedagógicas e as possibilidades de realizá-las, o que indica que a Psicologia
também pode ajudar o professor a refletir criticamente sobre sua prática e imprimir-lhe novos
direcionamentos (ALMEIDA, 2005). Logo, o conhecimento que o professor tem dos estudantes e
de seu desenvolvimento nos contextos sociais é essencial para estruturar as suas experiências de
aprendizagem lembrando que a “capacidade para entender o outro não é inata; ela é desenvolvida

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 139


A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

por meio de estudo, reflexão, experiência guiada e investigação” (DARLING-HAMMOND, 2014,


p. 239).

Os resultados das pesquisas sobre o aprendizado e desenvolvimento humano contribuem,


por exemplo, para o entendimento de como o aluno aprende, das condições necessárias para a
aprendizagem significativa, o significado das crenças, do que torna um aprendizado mais fácil ou
mais difícil, e de tantos outros aspectos. Porém, é preciso considerar a complexidade da prática
docente decorrente, especialmente, das variáveis que intervêm nesse processo. Ensinar aprendizes
diversos tendo em vista uma prática pedagógica equitativa também exige que os professores
desenvolvam, o que Darling-Hammond e Bransford (2019, p. 207) denominam, de uma prática
culturalmente responsiva, pois
[...] as atitudes e as expectativas dos docentes, bem como seu conhecimento de como
incorporar as culturas, as experiênciase as necessidades de seus alunos à prática
docente, influenciam significativamente o que os alunos aprendem e a qualidade de
suas oportunidades de aprendizagem.

Os autores destacam, também, a importância de o professor saber “examinar as próprias


premissas culturais para entender como elas moldam os pontos de partida para sua prática”
(DARLING-HAMMOND; BRANSFORD, 2019, p. 207).

Assim, dada a complexidade e multidimensionalidade do ato educativo, a mobilização de


conhecimentos pelo professor, para ensinar e favorecer tomadas de decisão, não está circunscrita
em um saber constituído apenas pela assimilação de conceitos, princípios e teorias; ao contrário, o
ensino na formação docente deve promover vivências que permitam aos futuros professores
perceberem, em situações do cotidiano escolar, as possibilidades de mobilização dos conhecimentos
acadêmicos permeados por uma reflexão crítica que promova a articulação dialética entre
conhecimento teórico e saber prático a partir dos contextos concretos da prática, em que os
problemas têm origem social e histórica.

A compreensão do ensino, nessa perspectiva, assume como premissa o papel social da


educação e o caráter multidimensional do processo de ensino-aprendizagem. Logo, as
possibilidades de práticas, propostas, resistências e (re)existências dependem de uma série de
elementos que constituem a formação do professor, não só do ponto de vista da Psicologia ou da
Didática, mas, sobretudo, das propostas de formação que, via de regra, se constituem na ausência de
integração entre as disciplinas e na dicotomiada relação teoria-prática. O pouco entrosamento entre
as disciplinas tidas como de fundamentos da educação e as disciplinas de formação pedagógica,

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

incluindo as específicas, e dessas com o estágio curricular supervisionado é crônico nos cursos de
licenciatura. Esse parece ser um indicativo de que um dos desafios mais eminentes para os cursos
de formação inicial continua a ser o de superar uma organização disciplinar pouco flexível e
promover um efetivo diálogo entre as disciplinas, o que implica um diálogo entre os professores
formadores, pois a possibilidade de avanços passa necessariamente pelas mãos daqueles que
protagonizam essa história (ALMEIDA, 2005).

A superação do psicologismo na educação não reside, portanto, na negação da Psicologia na


formação, mas no estímulo a mecanismos de formação que explorem novas formas de ensinar e de
formar os profissionais de ensino. Movimentos de fortalecimento das relações entre as áreas que
constituem fonte de conhecimento profissional para o professor também é uma forma de resistência
e (re)existência.

EM SÍNTESE

“Uma verdadeira viagem de descoberta não é a de pesquisar novas terras, mas de ter
um novo olhar.”
(PROUST, apud MORIN, 2000).

Escolhi esta epígrafe para finalizar, pois penso que ela define bem a minha intenção de dar
um novo olhar para velhas questões colocando em destaque a educação inclusiva.

Nessa perspectiva, um desafio que as instituições formativas necessitam enfrentar é de


natureza ética. A formação do professor tem reflexos diretos sobre a educação escolar das novas
gerações num contexto de mudanças sociais complexas. É preciso, pois, que as instituições
formativas assumam seu compromisso social com a educação inclusiva apoiadas na convicção de
que é por meio da educação que construiremos uma sociedade justa, entendendo “[...] por sociedad
justa aquella que respeta la diversidad per que elimina la desigualdad” (TEDESCO, 2006, p. 332-
333).

Ora, se queremos professores capazes de lidar com situações complexas no processo de


ensino-aprendizagem tendo em vista proporcionar aos alunos uma educação mais equitativa,
precisamos recuperar não só a conexão entre a dimensão política e técnica, circunscrita nesta
discussão, mas a articulação entre todas as dimensões que configuram o fazer docente.

E pensar a Psicologia da Educação como uma das fontes que estão na base do conhecimento
do ensino é fundamental para compreendê-la a partir da intersecção com outras ciências e com a
prática, para que o futuro professor possa adquirir, paulatinamente, consciência das suas crenças,

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 141


A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

teorias e saberes e, ao mesmo tempo, ressignificar conceitos, proposições e princípios sobre as


diferentes fontes do conhecimento que estão na base da profissão docente.

Concluo com a esperança renovada diante das possibilidades de transpormos visões


reducionistas e do potencial das nossas práticas quando arquitetadas não só por um forte senso de
propósito moral e ético, mas, principalmente, quando fortalecidas pelo conhecimento, pela cultura
de trabalho comum e pela vontade coletiva de inclusão.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

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ANDRÉ, M.E.D.A.; ALMEIDA, P.C.A.; HOBOLD, M.S.; AMBROSETTI, N.B.; PASSOS, L.F.; MARINQUE, A.L.
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A DIDÁTICA FUNDAMENTAL NA PERSPECTIVA DA EDUCAÇÃO INCLUSIVA: TENSÕES, FRAGILIDADES E POSSIBILIDADES

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Notas de fim

i
Em cada um dos países em que o estudo foi realizado, a metodologia contemplou: a) políticas referentes à formação
inicial docente dos sete países nas últimas duas décadas; b) currículos de 22 instituições formadoras (três por país, mas
houve casos, em que se estudaram quatro); c) entrevistas a acadêmicos e autoridades das respectivas instituições para se
conhecer suas percepções sobre as oportunidades formativas oferecidas, aqui, em relação às pedagogias de inclusão; d)
entrevistas grupais a estudantes, que se encontravam em fase final de sua formação.

144
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO
EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM

Claudia de Oliveira Fernandes

Pesquisar é um processo de criação e não de mera constatação. A originalidade da


pesquisa está na originalidade do olhar. Os objetos não se encontram no mundo à
espera de alguém que venha estudá-los. Para um objeto ser pesquisado é preciso que
uma mente inquiridora, munida de um aparato teórico fecundo, problematize algo de
forma a constituí-lo em objeto de investigação. O olhar inventa o objeto e possibilita as
interrogações sobre ele. Assim, parece que não existem velhos objetos, mas sim, olhares
exauridos (COSTA, 2002).
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Inicio esse capítulo com a epígrafe acima, pois há algum tempo me pergunto o que a
pesquisa em avaliação escolar tem produzido sobre as implicações dos exames de larga escala para
a escola, os docentes, as práticas, os estudantes, desde uma perspectiva crítica? O que a pesquisa
tem revelado acerca das práticas avaliativas na educação básica? Parece-me que algumas questões
já foram respondidas inúmeras vezes, a partir dos vários apontamentos das pesquisas realizadas.
Entretanto, poucas mudanças têm ocorrido na prática. Considerando que, não somente uma, mas
muitas são as razões para que as práticas não se modifiquem – e não estou aqui generalizando ou
dizendo que não há práticas diferenciadas/novas/criativas, pois também há inúmeras – mas
argumento que, desde o ponto de vista da pesquisa e sua relação com sua função social, talvez seja
necessário, nesse momento, instaurar novos olhares para a mesma temática.

No texto, pretendo explorar algumas novas possibilidades, novos olhares para essa não mais
tão nova temática. Olhares que pretendem ver através das brechas, dos não ditos, dos invisíveis,
presentes nos cotidianos das escolas, das salas de aula e dos sujeitos.

Pensar sobre avaliação é sempre desafiador. Por ser um termo de múltiplos significados,
fortemente relacionados aos propósitos a que pretende com a avaliação, é necessário delimitar,
inicialmente, a qual função e qual dimensão da avaliação trataremos aqui. Não se trata de menor
importância tratar das dimensões macro ou meso da avaliação educacional, mais relacionadas com
as políticas de avaliação, as avaliações externas ou as instituições, mas trataremos aqui da avaliação
na dimensão micro, ou seja, a dimensão da sala de aula e, portanto, das aprendizagens. O convite
para esse texto será pensar a partir da possibilidade de uma avaliação que organize e reorganize os
processos de aprendizagem, de forma que ela própria, a avaliação, torne-se aprendizagem.

Ao longo do texto, serão levantados alguns aspectos que compõem um necessário quebra-
cabeça em torno do qual se constrói a avaliação, posto que avaliar é uma atividade complexa,
totalmente desprovida de neutralidade e de objetividade, como ingenuamente desejaríamos que
fosse. Os pontos destacados pretendem trazer a relação entre currículo e avaliação e as escolhas
pertinentes à essa relação. Procuram, também, provocar a reflexão acerca:

1. Da separação que existe entre currículo e avaliação, e mais, entre avaliação e processos de
aprendizagem;

2. Da dificuldade de encontrar dentre as produções do campo, mesmo que tenhamos


avançado muito teoricamente no que tange aos processos de uma avaliação formativa, inclusiva,
democrática, emancipatória, a não alusão, em boa parte dos textos, a não necessidade de

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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM

estabelecimento de critérios que classifiquem as aprendizagens dos estudantes.Há dificuldade, que a


produção de conhecimento no campo expressa, de abrir mão de uma concepção de avaliação
somativa. Com quais concepções de escola, conhecimento e aprendizagem a avaliação somativa
conversa?

3. Da não incorporação nas práticas avaliativas da autoavaliação, que poderia proporcionar a


construção de uma maior autonomia por parte dos estudantes, coadunando com a possibilidade da
avaliação ter um caráter libertador (FREIRE, 2004; HOOKS, 2013).

Por fim, a provocação do texto será no sentido de dizer que não mudamos os paradigmas na
educação e, consequentemente, na avaliação, salvo raras exceções.

Alerto, também, que o texto se constitui numa aproximação escrita da intervenção oral
preparada para o Simpósio Por uma relação outra entre didática, currículo, avaliação e qualidade da
educação básica no XX Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino – Endipe-Rio 2020.

A AVALIAÇÃO ESCOLAR E SUA RELAÇÃO COM O LUGAR QUE A ESCOLA OCUPA NA


SOCIEDADE

Insisto em pensar a avaliação na sua relação como lugar que a escola ocupa na sociedade e,
nesse caso, a sociedade contemporânea. Qual o papel da escola hoje na vida das pessoas? Para que e
por que as crianças e os jovens do século XXI vão à escola? Estabelecido esse debate, outro se faz
em seguida: por que e para que avaliamos as aprendizagens dos estudantes na escola?

Discutir avaliação escolar numa perspectiva outra, só faz sentido se relacionarmos sua
concepção e práticas com a concepção de mundo, de pessoas, de vida, de meio ambiente, de cultura
e, em última e primeira instância, à concepção de escola que temos. Só faz sentido pensar e
pesquisar sobre a avaliação da/na escola, se estranharmos as práticas naturalizadas de avaliação que
permanecem em nossas escolas e salas de aula e que afetam sobremaneira o papel social de
estudantes e professores(as) no processo educativo.

Embora estejamos na segunda década do século XXI, a relação entre avaliação, aprovação,
reprovação, notas e provas é forte e tem papel central em todos os processos pedagógicos na escola.
À crença pedagógica de que a reprovação é uma forte e importante estratégia pedagógica para que
os estudantes aprendam os conteúdos escolares que não aprenderam ao longo de todo um ano
letivo, soma-se a crença social de que uma escola de boa qualidade reprova. O ideal de passar de
ano é uma construção social e histórica que tem como ideia de fundo uma concepção classificatória

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

e, portanto, quase sempre, excludente. A crença de que se não há prova, o aluno não estuda e,
consequentemente, não aprende está diretamente relacionada à crença de que se estuda para fazer
prova. Essa lógica linear habita o cotidiano escolar e guia, majoritariamente, as ações dos
professores e professoras, alunos e alunas. Digo, na maior parte das vezes, pois há práticas
avaliativas significativas e libertadoras sendo realizadas nas escolas. Entretanto, a compreensão de
que a avaliação é um processo e não uma medida ou um produto ainda precisa ser construída. A
ideia de que se avalia para aprender também ainda está em construção. Há um descompasso entre
discursos e práticas (FERNANDES, 2012). É possível uma avaliação sem fins de reprovação? É
possível uma avaliação sem classificação?

AVALIAR PARA APRENDER OU AVALIAR PARA APROVAR OU REPROVAR?

Considero o sistema educacional brasileiro conservador de uma “pedagogia da


repetência”.
(RIBEIRO, 1991)

As experiências municipais ou estaduais, que em diferentes épocas, por diferentes


motivações, implementaram uma política de não reprovação dos estudantes nas escolas enfrentaram
fortes resistências não só de docentes, como da sociedade em geral.

A organização da escolaridade e a forma como os estudantes avançarão em seu processo de


aprendizagem são construções e decisões que se relacionam com a concepção que se tem da
educação escolar e da função social da mesma. São construções históricas e culturais. Considerando
a complexidade do ato de ensinar e de aprender, podemos compreender que muitas são as formas de
se conceber a avaliação e de praticar a avaliação: desde a utilização de testes e provas, concebendo-
os como as únicas tarefas avaliativas legítimas, até a ideia de que todas as tarefas e trabalhos
cotidianos são atividades de avaliação. Entre uma prática e outra, existem diversas possibilidades de
praticar e conceber a avaliação na escola. Algumas práticas se coadunam com a perspectiva de que
o conhecimento é algo possível de ser medido; outras se aproximam da concepção de que as
aprendizagens são distintas e, por isso, a avaliação subjetiva se aproxima de um processo que
envolve diferentes etapas e tarefas; ainda podemos encontrar práticas que nos revelam que se avalia
para que as aprendizagens se realizem, pois sem avaliar não é possível aprender. Enfim, as formas
de avaliar são coerentes com as concepções de ensino, de escola e da relação entre a avaliação e o
papel social da escola.

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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM

Tradicionalmente, nossas experiências em avaliação têm sido marcadas por uma avaliação
classificatória, seletiva e, muitas vezes, excludente. Dessa forma, pensar um sistema de avaliação
mais coerente com uma perspectiva democrática de escola implica, por parte dos professores e
profissionais da educação, um comprometimento pedagógico e político marcado pela lógica da
inclusão, do diálogo, da construção da autonomia, da mediação, da participação, da construção da
responsabilidade com o coletivo.

Mas para isso, um desafio se impõe: como tornar a avaliação dos processos de aprendizagem
mais interativos, dialógicos? Como abrir mão da ideia de que no momento em que o estudante está
sendo avaliado formalmente, não se pode interferir, como por exemplo, responder a uma dúvida
estudantil no momento de realização de um teste ou uma prova? Essa interferência interferirá no
resultado? E, se interferir, qual o problema que se coloca? O estudante está sendo posto à prova?!
Esse é um dos dilemas que vivem os docentes. Muitas horas são gastas na escola, em reuniões de
acompanhamento e de planejamento, em que os(as) professores(as) discutem os procedimentos para
o momento da prova. Discutem se devem ou não atender uma dúvida do estudante na hora da
realização do exame. Não seria esse um momento ótimo de aprendizagem? Afinal, para que se
avalia? Para provocar mais e mais possibilidades de aprendizagens, não!?

No âmbito desse texto, entendemos que a avaliação deve orientar os estudantes para a
realização de seus trabalhos e de suas aprendizagens, ajudando-os a localizar suas dificuldades e
suas potencialidades, redirecionando-os em seus percursos.

Outro aspecto fundamental de uma avaliação que busca o comprometimento do sujeito em


seu processo de aprendizagem diz respeito à possibilidade de construção da autonomia a partir das
práticas avaliativas, na medida em que é solicitado ao estudante um papel ativo em seu processo de
aprender. Ou seja, a avaliação, tendo como foco o processo de aprendizagem, numa perspectiva de
interação e de diálogo, coloca também no estudante e não apenas no professor, como ocorre
tradicionalmente, a responsabilidade por seus avanços e suas necessidades. Em texto produzido a
partir de alguns questionamentos e diálogos com professores (FERNANDES, 2018), afirmava que
ainda não incorporamos em nossa prática cotidiana a autoavaliação, embora ela aconteça
informalmente, em diferentes momentos e situações. Na maioria das vezes, quando é realizada,
aparece de forma assistemática ou apenas em determinadas épocas do ano letivo, quase que
separada de todo o processo. A autoavaliação ainda não faz parte da cultura escolar brasileira.
Por que insistimos na sua importância? Se quisermos sujeitos autônomos, críticos, por que não
incorporamos tal prática? Por que ainda insistimos numa avaliação que não contempla em seu

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

planejamento a aprendizagem? Numa concepção mais tradicional, cujo foco do processo de ensino
e aprendizagem é o(a) professor(a), há coerência com uma prática de avaliação cujos critérios e
expectativas estejam somente a cargo do(a) docente. No entanto, orientar a avaliação para uma
prática mais emancipatória e libertadora, contemplando a autoavaliação, torna-se um pressuposto.

A escola brasileira, tradicionalmente, está pautada por uma pedagogia fundamentada no


acerto e erro, na aprovação ou na reprovação, portanto num conceito de avaliação que se norteia por
valorizar aquilo que não se aprendeu e não o que já foi aprendido ou ainda está em potencial para
ser aprendido. Sabemos que mudar as práticas é algo demorado, que envolve uma série de
disposições incorporadas nos sujeitos, relativas a valores, crenças, atitudes, conhecimentos. A ação
do professor traz reflexos de nossa cultura e de nossas práticas vividas, que ainda estão muito
impregnadas pela lógica da classificação e da seleção, no que tange à avaliação escolar. Instaurar
uma cultura avaliativa, no sentido de uma avaliação entendida como parte inerente do processo e
não desvinculada para uma atribuição de nota, é tarefa não muito fácil.

Um exemplo diz respeito ao uso das notas escolares que colocam os avaliados em uma
situação classificatória. Nossa cultura de uma avaliação somativa naturaliza o uso das notas a fim
de classificar os melhores e os piores. Em termos de educação escolar, os melhores seguirão em
frente, os piores voltarão para o início da fila, refazendo todo o caminho percorrido ao longo de um
período de estudos. Essa concepção é naturalmente incorporada em nossas práticas e nos
esquecemos de pensar sobre o que, de fato, está oculto e encoberto por ela.

Transformar a prática avaliativa em prática de aprendizagem está diretamente relacionado


com a forma como o sistema de avaliação é concebido e como os instrumentos e a metodologia de
avaliação são adotados.

Uma prática com ênfase no processo e não somente no desempenho, que não utilize a prova
como o seu único instrumento, coloca a avaliação no centro das aprendizagens. A avaliação,
entendida como um elemento fundamental do processo de ensino e de aprendizagem, não deve ser
confundida com prova ou teste. Provas e testes não são sinônimos de avaliação, mas são
instrumentos que podem ajudar no processo de avaliação dos alunos, dependendo da forma como
são utilizados. É importante ainda que exista uma grande variedade de instrumentos para que o
processo de avaliação seja o mais diversificado possível.

Avaliar é necessário para a mudança de prática e continuidade do conhecimento. Nesse


sentido, a avaliação pode ser compreendida ainda como uma leitura orientada da realidade (HADJI,
2001). Uma leitura em que sentido? Uma leitura é sempre seletiva. O leitor levanta indícios para
150
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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM

construir sentido em função das informações disponíveis em sua estrutura cognitiva. Leitura não é
medida, ela é orientada por um sistema de expectativas julgadas legítimas, que constitui o referente
da avaliação.

Enfim, avaliamos para aprender ou para aprovar/reprovar os estudantes?

Tal questionamento, a princípio, parece ter uma simples resposta: é importante que nossas
crianças e nossos jovens aprendam aquilo que a escola os ensina e que a avaliação os ajude nessa
tarefa, pois é para isso que vão à escola. Porém, ao escutarmos os estudantes, eles nos dizem que
estudam para fazer provas e não para aprender coisas novas. Os professores, por sua vez, dizem aos
alunos que devem estudar para fazer as provas e testes. A naturalização na cultura escolar em
relação à realização de provas e exames denuncia o papel social que, na prática, fica destinado à
escola: aprovar ou reprovar para certificar.

MUDAMOS DE PARADIGMA?

“Modificar la enseñanza en las escuelas nunca ha sido una tarea sencilla pero resulta
más complicada si alos naturales conflictos que despierta la innovacción, se le agregan
dificultades provocadas por el modo como en que se intentan promover las reformas”
(FELDMAN, s/d, p. 16)

Entendendo paradigma na perspectiva de Kuhn (1995) e a avaliação como mais um


elemento do currículo escolar, compreendemos que, se o desenho curricular oficial representa a
seleção oficial dos conteúdos escolares, muitas coisas se sucedem entre o estabelecimento de temas
e enfoques no currículo e o tratamento desses conteúdos na situação escolar. A educação é uma
atividade política e social. O currículo, entendido como um projeto para a educação, é una prática e
um produto político e social. O mesmo podemos dizer em relação à avaliação. Além das adaptações
e transformações que se realizam na prática das escolas, é necessário ter em conta que os estudantes
e os docentes também vivem experiências diversas, com valor formativo, muitas independentes do
desenho curricular expresso. O desenho curricular expresso envolve o que podemos chamar de
avaliação oficial. Os planejamentos oficiais da avaliação ainda estão marcados por práticas
somativas e mais conservadoras, embora a teorização acerca da avaliação nesses documentos vá em
direção a uma concepção mais formativa. Os documentos das redes de ensino públicas e privadas
citam concepções de avaliação que apontam para uma avaliação democrática, formativa,
valorizando as diferenças, os diferentes tempos e modos de aprender. A perspectiva conservadora
vai se revelar nas portarias e resoluções que normatizam a avaliação dos estudantes. As pesquisas
têm mostrado uma grande defasagem entre a teoria expressa nos projetos pedagógicos e as

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

normatizações concretas dos sistemas escolares e das escolas. Esses dados nos permitem dizer que
ainda não mudamos o paradigma da avaliação. Falamos de um jeito e fazemos de outro. Por quê?
Fica-nos o questionamento, uma vez que as respostas exigem reflexões complexas, advindas de
uma rede de conhecimentos gerados pelas inúmeras pesquisas no campo.

Entretanto, para além da avaliação proposta oficialmente pelos desenhos curriculares das
redes e escolas, há as experiências avaliativas cotidianas que não se revelam nos planejamentos e
documentos oficiais. As experiências de sala de aula, revelam práticas tanto conservadoras quanto
que rompem com os padrões de avaliação já estabelecidos. É importante, nessa análise, considerar
que há inúmeros motivos e motivações para que não mudemos as práticas ainda muito corriqueiras
de avaliação, como, por exemplo, os testes-surpresa, os pontos atribuídos ao bom comportamento,
os prêmios e estrelinhas nos cadernos por bons trabalhos e boas notas. O campo da avaliação é fértil
em chamar para si todas as mazelas da educação, como, por exemplo, avaliação como objeto
disciplinador e mantenedor da ordem acadêmica; como objeto mantenedor do poder do docente
sobre os estudantes e até mesmo sobre o conselho escolar; como prática de fazer os alunos
estudarem e se dedicarem às demandas escolares. Tais mazelas, afastam a educação escolar de seu
propósito primeiro, qual seja, incentivar e despertar o desejo por conhecer e aprender e legitimar
práticas que nos colocam na direção contrária a uma prática de avaliação para as aprendizagens.
Entretanto, quando as pesquisas se propõem a desvelar o cotidiano de práticas avaliativas, distintas
daquelas que estão presentes nos documentos oficiais como portarias e resoluções, mas que estão
nas salas de aula, sendo o currículo praticado, encontramos indícios de um processo de avaliação
informal preocupado com as aprendizagens, com a construção de autonomia e de conhecimentos
relevantes para as crianças e os jovens.

As oportunidades de aprendizagem dos alunos e alunas dependem, em grande medida, das


mediações que realizam os docentes entre o currículo e a prática escolar. Neste processo se passa do
currículo documento ao currículo realmente atuante, ou seja, de uma prática de avaliação
“artificializada” pelos testes e exames para uma prática viva de uma avaliação cotidiana que se
preocupa com a finalidade para a qual aquelas crianças e jovens estão ali, na escola.

Dessa forma, avaliar para aprender (FERNANDES, 2009) tem sido a tônica dos discursos
oficiais, das palestras proferidas por especialistas, dos textos críticos e não críticos. Vivemos um
tempo em que os discursos se homogeneízam. Entretanto, as bases epistemológicas são bastante
distintas, e consequentemente, as bases políticas. O papel da teoria para uma prática refletida torna-
se cada vez mais fundamental na formação do(a) professor(a) que tem se tornado, nos últimos

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O DESAFIO É TRANSFORMAR A AVALIAÇÃO EM UM PROJETO DE APRENDIZAGEM

tempos, aplicador de testes, atividades, exames, feitos e elaborados por terceiros, ou seja, aplicador
de um currículo oficial da avaliação (FERNANDES, 2014; 2015; 2017). O papel da pesquisa é mais
uma vez fundamental, pois pode revelar o currículo praticado de uma avaliação mais viva e
próxima do cotidiano das salas de aula. Concordo com Costa (2002, p. 143): “Para um objeto ser
pesquisado é preciso que uma mente inquiridora, [...] O olhar inventa o objeto e possibilita as
interrogações sobre ele. Assim, parece que não existem velhos objetos, mas sim, olhares
exauridos.”

A escola contemporânea apresenta conflitos epistemológicos (que, aliás, sempre existiram)


muito latentes no cotidiano de suas práticas educativas/avaliativas, seja nas salas de aula, seja na
gestão. Essas diferenças podem e deveriam desafiar-nos a pensar qual escola queremos.

A provocação fica no sentido de afirmar que, apesar da produção do conhecimento no


campo da avaliação ter avançado nas últimas décadas, muito pouco saímos do lugar. Não mudamos
a lógica positivista e cartesiana de ver e praticar a avaliação. Não mudamos o paradigma. O desafio
é transformar a avaliação em um projeto de aprendizagem.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 153


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?

Guilherme de Alcantara
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Os discursos de crítica à escola no Brasil e no mundo têm se expandido nas últimas décadas,
vindos de diferentes instituições, atores individuais e coletivos, com diversas perspectivas
ideológicas e teóricas. Contudo, mesmo entre muitos que contestam diferentes dimensões da Escola
na atualidade, são menos comuns críticas mais consistentes acerca do papel da avaliação na
sustentação das práticas e da estrutura escolar as quais se questiona. Ao contrário, em muitas dessas
críticas percebe-se certa naturalização ou apagamento do papel da avaliação na estruturação da
relação pedagógica. Em certa medida, muitos discursos acerca da escola, críticos ou não a esta,
tendem a realizar um descolamento entre práticas sociais e estruturas organizacionais e sociais. Por
exemplo, muitos argumentarão que professores, gestores, alunos e/ou famílias devem mudar ou
melhorar suas práticas para gerar mais aprendizagem. Porém, nem sempre este clamor estará
associado ao entendimento de quais são os condicionantes sociais e organizacionais que contribuem
para que os atores ajam desta ou daquela forma em relação à escola e à aprendizagem.

A partir da análise das práticas político-pedagógicas de uma escola municipal da periferia de


Duque de Caxias, proponho uma discussão sobre o lugar da avaliação nos movimentos de
transformação e conservação da organização e das práticas político-pedagógicas no estabelecimento
de ensino. Mais especificamente, a análise parte de um exercício de compreensão de um
posicionamento político-pedagógico bastante simbólico e peculiar tomado pela escola pesquisada: a
recusa de aplicação de testes padronizados de matemática e português censitários aplicados em
larga escala, como a Prova Brasil e a ANA.

Há pelo menos duas décadas esta escola é amplamente reconhecida como uma escola de
qualidade e democrática. Fundada em 1987, após um movimento da associação de moradores de
luta pelo direito à educação das crianças do bairro, ao longo de sua primeira década de existência, a
escola construiu um projeto político-pedagógico voltado para a busca da garantia do direito à
educação – significado como direito à aprendizagem e à cidadania – dos estudantes atendidos. Nos
últimos 20 anos, a escola tem realizado um trabalho reconhecido por diferentes atores (comunidade
escolar, gestores e professores da rede, comunidade acadêmica e mídia) como promotor de
qualidade da educação, especialmente focado na formação cidadã, na melhoria das aprendizagens e
na redução das desigualdades educacionais. Este projeto se baseou em mudanças significativas nos
processos de coordenação das ações entre os atores escolares e na organização escolar, incluindo,
entre outros movimentos, uma ressignificação do sentido da avaliação escolar no estabelecimento
de ensino (ALCANTARA, 2017).

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MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?

Em 2005, quando o governo federal do PT implementou a Prova Brasil, a escola seguiu o


movimento de boicote estimulado por muitos sindicatos no estado do Rio de Janeiro. Passados 15
anos, a escola se constitui em uma das poucas escolas públicas urbanas, talvez na única, que, se
apoiando no princípio da autonomia e em seu Projeto Político-Pedagógico, nunca aplicou este tipo
de testes padronizados em larga. Para os atores escolares, estes testes não se ajustam à proposta
desenvolvida pela escola nas últimas décadas.

Tensão semelhante aparece no debate público sobre as políticas de avaliação do sistema de


ensino desde os anos 1990. A adoção de um sistema de avaliação baseado em um teste padronizado
censitário, a Prova Brasil, vinculado à elaboração de um índice que se propõe a medir a qualidade
dos estabelecimentos de ensino, o Índice de desenvolvimento da Educação Básica (Ideb),
intensificou e orientou o debate acadêmico acerca das políticas de avaliação nos últimos anos
(BROOKE, 2006; 2013; FREITAS, 2012; 2013; BAUER et al., 2015; ALVES; SOARES, 2013 e
BONAMINO, 2016). Contudo, nem mesmo os questionamentos baseados em evidências das
pesquisas recentes à limitação e aos efeitos deste sistema de avaliação têm sido capazes de abalar a
prevalência e os movimentos de expansão deste tipo de política de avaliação dos sistemas de
ensino.

Mais do que defender ou criticar o sistema de avaliação federal, ou analisar os instrumentos


e inovações pedagógicas da escola pesquisada, pretende-se aqui contribuir para a reflexão sobre o
lugar da avaliação naquela organização escolar. A partir da análise das teorizações, discursos e
ações dos atores da escola estudada, este texto se propõe a: (a) apresentar quais foram as razões que
os levaram a recusar a aplicação de testes padronizados em larga escala; e (b) discutir quais são os
sentidos que dão a este tipo de instrumento de avaliação externa e à avaliação escolar de forma mais
ampla. Os dados utilizados para esta análise foram extraídos de uma pesquisa etnográfica com
quase dois anos de observação de campo, que tinha como objetivo compreender os sentidos
empregados e as estratégias adotadas pelos atores escolares na construção cotidiana de um projeto
político-pedagógico considerado exitoso por cerca de três décadas e quais eram os
constrangimentos vividos neste esforço (ALCANTARA, 2017).

A ESCOLA, O PROJETO

A escola pesquisada está situada em um bairro de alta vulnerabilidade social na periferia do


município de Duque de Caxias, região da Baixada Fluminense, acerca de 50 km do centro do Rio de
Janeiro. O estabelecimento era um dos 174 da rede municipal em 2015, e atendia em torno de 330

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

alunos na educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental nas modalidades regular e
Educação de Jovens e Adultos, esta última à noite.

Fundada em 1987, a partir de uma mobilização da associação de moradores, a escola e sua


comunidade viveram muitas dificuldades nos primeiros anos de funcionamento. Penúria de recursos
materiais e humanos, infraestrutura precária, e o dificílimo acesso contribuíam para a alta
rotatividade de professoras. Por outro lado, a escola contava com o suporte primordial da
associação de moradores, e esta relação iria influenciar profundamente a formação da identidade
organizacional que a escola mantém até os dias atuais (ALCANTARA, 2017). Com o passar dos
anos, se consolidou um grupo, liderado pela então diretora, que desenvolveu um sentido
diferenciado para o trabalho naquela escola.

Resumidamente, as profissionais da escola começaram a perceber que aquilo que chamavam


de ensino tradicional, o modo como aprenderam a ensinar em sua formação inicial, não dava conta
do objetivo que identificavam como basilar da organização escolar: efetivar o direito à educação
dos alunos. Ainda nos dias de hoje, para muitos profissionais da educação esse direito se vincula ao
acesso à matrícula e à exposição ao conteúdo. Ou seja, este direito não passa pelo compromisso
com a aprendizagem. Naquele momento, um grupo de professoras da escola sentiu que era
necessário ir além do direito de acesso. Era preciso garantir melhor aprendizagem.

Esta mudança parece algo simples, banal, inclusive por ser atualmente um discurso comum
na mídia e em muitos estabelecimentos de ensino. Entretanto, sua busca, efetivação e sustentação na
longa duração numa localidade como aquela, nas condições dadas pelas dinâmicas de
funcionamento da sociedade e do Estado numa periferia metropolitana de um país extremamente
desigual como o nosso, exige um engajamento vigoroso. Mais do que isso, pôr em prática essa
mudança passou, naquela escola, porprocessos de mudança identitária e de reelaboração dos
princípios de justiça e da ética profissional predominantes que orientariam a organização escolar e
as relações entre os atores, bem como destes com o conhecimento (ALCANTARA, 2017). A
vontade de fazer valer o direito à educação estimulou a busca coletiva por conhecimento e
formação. O grupo predominante de profissionais, bastante apoiado pela comunidade, e por uma
política de formação continuada criada pela prefeiturai, se empenhou no estudo de pedagogias
emergentes à época. A empolgação da maioria levou à adoção de novas práticas e a propostas de
mudança da organização escolar. Aos poucos, a escola foi ganhando uma reputação muito particular
na rede municipal. Era a escola identificada pelos de fora como atuante no movimento sindical, nas

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MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?

lutas pela qualidade da educação e “construtivista”, que tinha um trabalho pedagógico diferenciado,
em que os professores atuavam e estudavam coletivamente.

Mais adiante, em 1996, este processo desembocaria na construção coletiva do primeiro


Projeto Político-Pedagógico (PPP) da escola. Desde então, anualmente, o PPP é de algum modo
discutido ou atualizado nas semanas de planejamento. Em alguns anos, a escola realizou uma
revisão mais ampla e sistemática do documento. O trabalho de campo da pesquisa ocorreu entre
2013 e 2015. Quase 20 anos depois da construção do PPP, o modo de funcionamento da escola
tinha como pilares os horizontes apontados pelo documento. Mais do que isso, as ideias contidas no
documento continuavam servindo como orientadoras e reguladoras das ações dos diferentes atores,
em especial, dos profissionais da educação.

A AVALIAÇÃO NA ESCOLA

Um dos achados da pesquisa aqui mencionada foi que o processo de transformação da


organização escolar e das práticas pedagógicas naquela escola esteve diretamente relacionado a
mudanças substanciais nas concepções pedagógicas, de direito à educação e de justiça escolar
predominantes no estabelecimento. Este processo levou à constituição de uma ética profissional
peculiar, e ao desenvolvimento de uma pedagogia voltada a dar conta dos problemas a partir do
modo como eram elaborados e significados pelo grupo principal de profissionais da escola
(ALCANTARA, 2017). Foi neste contexto de mudança dos sentidos da organização escolar e das
práticas docentes que veio se desenvolvendo o sistema de avaliação da escola.

Antes das mudanças promovidas pelo grupo, a avaliação, pontual e rigidamente definida no
espaço e no tempo escolar exercia a função de auferir e certificar o desempenho, entendido como
sinônimo de aprendizagem. A avaliação, entendida como testagem, constituía-se a etapa final de um
processo ou ciclo de ensino-aprendizagem. A prova e a nota assumiam um lugar central nesta
estrutura organizacional, boa parte das ações pedagógicas se orientavam a partir delas e tinham a
testagem e a certificação como finalidades.

Desde meados dos anos 1990, com as mudanças político-pedagógicas implementadas pelo
grupo de profissionais e comunidade escolar, a avaliação passou a funcionar como um instrumento
diagnóstico de práticas de ensino e de aprendizagem voltado para a reflexão do que se deve fazer
para incrementar o trabalho pedagógico e as aprendizagens de docentes e de discentes. O PPP de
2004, ano anterior à implementação da Prova Brasil, já apontava as características da avaliação na
escola:

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

• Entendemos a avaliação escolar como um aspecto do processo de ensino e


aprendizagem articulado a nossa filosofia de trabalho e que, portanto, explicita
nossas concepções de educação, de homem e de sociedade;

• A avaliação, em nossa escola, é entendida não como um fim em si mesma, mas como
um processo permanente de reflexão e ação, investigativa e diagnóstica, que busca
abranger todos os aspectos do processo de ensino e aprendizagem e todos os
elementos envolvidos nele;

• A avaliação deve investigar os avanços e as dificuldades de seu processo de


aprendizagem, sendo o aluno parâmetro de si mesmo;

• A avaliação como processo que possibilita a constante reflexão da prática do


professor, entendendo que esta deva se dar no cotidiano das ações pedagógicas, de
forma permanente e contínua;

• O momento de registro da avaliação do aluno, longe de constituir-se em um ritual


burocrático, significa para nós mais um espaço de reflexão acerca do nosso trabalho,
visando à retomada e ao replanejamento de nossa intervenção pedagógico
(ALCANTARA, 2017).

Ressalto que a escola se inspirou em uma série de iniciativas progressistas à época, ou seja,
há cerca de 30 anos atrás. Em especial, a escola conseguiu aplicar a reflexão trazida pela
psicogênese e por outros teóricos não somente na relação estrita entre professor e educando na sala
de aula, mas na reflexão sobre os modos de coordenação das ações e de organização escolar
compatíveis e capazes de pôr em prática e sustentar essa forma de pensar a educação e as relações
de ensino e aprendizagem.

A partir do momento em que os profissionais estabeleceram uma dinâmica séria e intensa de


estudos, bastante inspirada no construtivismo de Emilia Ferrero, mas que bebia de fontes diversas,
foram percebendo que o modo tradicional como se organizava a escola e as relações entre atores e
destes com o conhecimento trazia uma série de limitações para a implementação da proposta que
vinham elaborando. Logo, viu-se a necessidade de mudar ou flexibilizar certos ordenamentos, de
criar dispositivos orientados aos seus interesses e objetivos. Foi assim, por exemplo, que em 1993 a
escola criou por conta própria um horário semanal para grupo de estudos e planejamento coletivo
das ações, apesar da negativa da Secretaria de Educação.

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MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?

A mudança na organização da avaliação se deu em sentido semelhante, isto é, a partir da


percepção de que a organização tradicional da avaliação impunha constrangimentos à
implementação de práticas mais condizentes com os princípios de justiça e direito e com a ética
profissional que se consolidavam no estabelecimento. Se um princípio fundamental para a
organização escolar é a busca da garantia da aprendizagem do estudante, o sentido da avaliação
deve ser contribuir para a promoção e potencialização das aprendizagens de todos os atores
envolvidos no processo. Assim, mesmo que as dimensões de aferição, controle e certificação não
deixem de estar presentes em um estabelecimento de ensino que continua fazendo parte de uma
rede municipal de ensino com um funcionamento relativamente padronizado, a avaliação na escola
assume outro propósito. Esta passou a funcionar como um instrumento de investigação e
diagnóstico, de produção de dados e informações a serem empregados durante processos de ensino-
aprendizagem, e não mais focada na certificação final de cada ciclo.

Este caráter da avaliação da escola nos ajuda a entender o porquê a escola decidiu não
aplicar a Prova Brasil. Decerto, são vários os fatores que influenciaram nesta decisão.
Primeiramente, uma clara compreensão de que “não há competição justa” nos sistemas de ensino de
sociedades capitalistas desiguais (BROWN et al., 2010). E, em consequência, por mais que uma
escola com grande concentração de estudantes com poucos recursos faça um ótimo trabalho, e estes
aprendam num ritmo acima da média de crianças em condições semelhantes, dificilmente a nota se
equiparará a de escolas com alta concentração de estudantes com muitos recursos. Embora a forte
influência dos recursos culturais e econômicos sobre o desempenho escolar seja um fenômeno
social identificado pela ciência há mais de meio século (BOURDIEU, 1964), ela é ignorada pelo
sistema de avaliação do governo federal.

Os atores da escola entendiam que num contexto social e educacionalmente tão díspar
quanto o brasileiro, estes dispositivos contribuem intensamente para a estigmatização de certos
estabelecimentos e seus atores e para a produção da segregação educacional (ALCANTARA,
2017). Outro fator fundamental consiste no entendimento de que testes padronizados em larga
escala não condizem com a proposta político-pedagógica da escola, que não tem mais as provas
como elemento central da avaliação, do controle e da dinâmica de fluxo de estudantes. Além disso,
existia certo receio do efeito da participação na prova sobre a dinâmica de funcionamento da escola,
devido ao poder de indução deste tipo de dispositivo, ao poder de afetar as subjetividades dos
sujeitos e suas práticas pedagógicas (OZGA; GREK, 2013).

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 161


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Por fim, estava claro que o tipo de informação que a Prova Brasil disponibiliza à
comunidade escolar tinha pouquíssima ou nenhuma relevância para o esforço de melhora dos
processos internos e da aprendizagem dos alunos. O coletivo de profissionais conseguiu
desenvolver um sistema de produção de informações das práticas pedagógicas escolares que os
atores consideram muito mais efetivo – no sentido de prover mais subsídios para as ações de
melhora da qualidade do ensino e da aprendizagem.

A AVALIAÇÃO COMO CONDICIONANTE DA AÇÃO PEDAGÓGICA

Pesquisas recentes vêm apontando a incapacidade do Ideb de medir a eficácia do trabalho


pedagógico das escolas, tornando-se um índice cuja variação se encontra exageradamente atrelada à
composição social da escola (ALMEIDA et al., 2013; ALVES; SOARES, 2013 e BONAMINO,
2016). Nesse sentido, negar a realização de testes padronizados em larga escala representa uma
atitude coerente ao posicionamento histórico da escola. Os testes de matemática e de português
padronizados como a Prova Brasil ou a ANA operam um processo de simplificação das
experiências pedagógicas e dos processos de ensino-aprendizagem de cada indivíduo ou em cada
sala de aula. Além disso, o modo como é construída a indexação da qualidade das escolas via IDEB
tende a efetuar um verdadeiro processo de invisibilização dos trabalhos de coordenação das ações
pedagógicas e de ensino-aprendizagem nas escolas.

Na realidade, o funcionamento do sistema de ensino opera com base em uma série de


processos de simplificação da realidade, e o sistema de avaliação tem papel importante nesta
dinâmica. Provas e outros tantos instrumentos de mensuração e avaliação são exemplos desses
processos de simplificação necessários para o funcionamento da organização burocrática escolar.
No entanto, um movimento crucial para a mudança do caráter do trabalho na escola estudada foi,
justamente, uma reorientação para busca de maior complexificação das relações entre atores
escolares, destes com a instituição e com os conhecimentos (ALCANTARA, 2017).

Esta orientação não erradica a existência e a necessidade de certos processos de


simplificação da realidade nas dinâmicas de funcionamento das organizações escolares. O que se
pretende enfatizar é que essa dinâmica de simplificação e busca de complexificação pode se
constituir em uma tensão permanente implícita no trabalho pedagógico em uma escola que procura
construir práticas pedagógicas mais justas e uma proposta de educação orientada pela garantia do
direito à aprendizagem dentro do sistema de ensino formal.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?

O caso aqui relatado traz à luz um outro conflito que subjaz as relações no sistema de
ensino, em especial, em escolas com perfil semelhante ao do estabelecimento analisado, refletido na
tensão que representa o foco na mensuração e na certificação (nota/desempenho), frequentemente
estimulado por certas políticas públicas e ações da burocracia das redes de ensino, em oposição à
valorização dos processos de ensino-aprendizagem individuais e coletivos (ALCANTARA, 2017).
Em muitas escolas, um número razoável de profissionais tende a centrar as discussões acerca da
trajetória escolar dos estudantes em números, que não necessariamente representam o processo de
desenvolvimento e de aprendizagem, ou a condição em que o indivíduo se encontra. A nota operaria
como um critério de equivalência, mas, pela própria natureza do processo de ensino-aprendizagem,
os critérios de valoração e quantificação podem variar bastante de um docente para outro.

A partir do modo como a escola construiu sua proposta político-pedagógica, os processos de


mensuração, classificação, hierarquização, certificação e controle associados aos modos mais
tradicionais de organização da avaliação passaram a não traduzir as demandas surgidas na escola.
Inevitáveis e intrínsecos à estrutura e à função da escola moderna, eles passaram a conviver com
outras finalidades e sentidos. Ao redirecionar o trabalho pedagógico para dar mais relevância à
avaliação dos processos de ensino e de aprendizagem, a escola opera um processo de
complexificação das relações sociais dentro do estabelecimento, que tem efeito positivo sobre o
esforço de promover o direito à educação dos estudantes (ALCANTARA, 2017).

Para os atores engajados no projeto político-pedagógico da escola, a avaliação deve ir além


da mensuração, da classificação, da hierarquização, da certificação e do controle associados ao
ritual dos exames, pois precisa ser investigativa, constituir diagnóstico, subsidiar a elaboração dos
problemas escolares e orientar a ação. Adquiriu-se uma consciência do reducionismo, da
parcialidade e da imprecisão de certos instrumentos de avaliação, bem como da dificuldade de
quantificação dos processos de aprendizagem dos estudantes. E de que a centralidade e a
supervalorização da prova e da nota, em especial nas séries iniciais, podem contribuir para que os
profissionais e gestores da educação percam de vista a incompletude desses dispositivos.

CONSIDERAÇÕES

A partir da análise do caso de uma escola pública que acumula mais de 30 anos de reflexões
sobre possibilidades de construção de uma educação de qualidade, mais justa e igualitária, para
estudantes de bairro da periferia da metrópole do Rio de Janeiro, este texto procurou trazer algumas
reflexões sobre o papel que exerce o sistema de avaliação sobre a organização da prática

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

pedagógica, e, consequentemente, sobre as possibilidades de se mudar essas práticas no interior das


escolas em direção a pedagogias mais democráticas e igualitárias. Para os atores da escola
analisada, não era possível mudar os sentidos da organização escolar e do trabalho pedagógico sem
uma concomitante mudança nos sentidos e na organização da avaliação dentro do estabelecimento
de ensino. Os instrumentos de avaliação possuíam um papel fundamental no processo de busca de
complexificação das relações entre atores escolares almejado no Projeto Pedagógico da escola. Daí
decorre a adoção de instrumentos e modos de organização da avaliação mais focados nos processos
de ensino e aprendizagem, em detrimento dos instrumentos que dão mais ênfase à mensuração e à
certificação, nos quais se incluem os testes padronizados em larga escala.

O movimento que levou à ressignificação dos propósitos da organização escolar foi


concomitante à valoração e adoção de certos princípios de justiça e de ética profissional. A
sustentação de uma mudança pedagógica substancial e efetiva por cerca de 30 anos tem passado,
dentre outros fatores, pela adequação da avaliação escolar a estes princípios, aos sentidos e aos
propósitos do projeto pedagógico da escola.

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MUDAR AS ESCOLAS SEM MUDAR A AVALIAÇÃO?

REFERÊNCIAS

ALCANTARA, Guilherme. A política da escola: justiças e qualidades no sistema de ensino. Curitiba: Editora Appris,
2017.

ALMEIDA, Luana C.; DALBEN, Adilson; FREITAS, Luiz Carlos de. O Ideb: limites e ilusões de uma política
educacional. Educação e Sociedade, Campinas, v. 34, n. 125, p. 1.153-1.174, out./dez. 2013.

ALVES, Maria Teresa G.; SOARES, José F. Contexto escolar e indicadores educacionais: condições desiguais para a
efetivação de uma política de avaliação. Educ. Pesquisa, São Paulo, v. 39, n. 1, p. 177-194, jan./mar. 2013.

BAUER, Adriana; ALAVARSE, Ocimar; OLIVEIRA, Romualdo. Avaliações em larga escala: uma sistematização do
debate. Educ. Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. especial, p. 1.367-1.382, dez. 2015.

BONAMINO, Alicia. A evolução do Saeb: desafios para o futuro. Em Aberto, Brasília, v. 29, n. 96, p. 113-126,
maio/ago. 2016.

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Los herederos: los estudiantes y a cultura. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 2006.

BROOKE, Nigel. O futuro das políticas de responsabilização educacional no Brasil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo,
v. 36, n. 128, p. 377-401, 2006.

BROOKE, Nigel. Controvérsias sobre políticas de alto impacto. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 43, n. 148, p.
336-347, jan./abr. 2013.

BROWN, Phillip et al. La méritocratie scolaire: un modèle de justice à l’épreuve du marché. Sociologie, [s.l.], v. 1, p.
161-175, 2010.

FREITAS, Luiz Carlos. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério a destruição do


sistema publico de educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, abr./jun. 2012.

FREITAS, Luiz Carlos. Políticas de responsabilização: entre a falta de evidência e a ética. Cadernos de Pesquisa, São
Paulo, v. 43, n. 148, p. 348-365, jan./abr. 2013.

OZGA, Jenny; GREK, Sotiria. Governing through learning: school self- evaluation as a knowledge-based regulatory
tool. Recherches sociologiques et anthropologiques, [s.l.], v. 43, n. 2, p. 35-52, 2013.

Notas de fim

i
No início dos anos 1990, a Prefeitura de Duque de Caxias implantou um projeto piloto de uma política de formação
continuada que visava difundir o construtivismo nas escolas da rede municipal, o Repensando a Alfabetização. A escola
aqui analisada foi uma das poucas a participar do projeto piloto, e a única a constituir uma participação mais engajada
na iniciativa, que incluía aulas para os docentes no Colégio de Aplicação da Uerj e o acompanhamento de tutores da
Secretaria de Educação durante alguns anos. Após a experiência com as escolas piloto, o governo seguinte optou por
não expandir a política aos demais estabelecimentos da rede.

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!
A IMPORTÂNCIA DAS ARTES CÊNICAS
NA FORMAÇÃO HUMANA

Márcia Strazzacappa
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

UM EPISÓDIO

Como toda boa contadora de histórias, inicio minha fala narrando um episódio ocorrido em
2004, por ocasião do XII Endipe realizado na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em
Curitiba, cujo tema era “conhecimento universal e conhecimento local”.
Era a primeira vez que participava de um Endipe. Recém-credenciada no Programa de
pós-graduação da Faculdade de Educação da Unicamp, estava na capital do Paraná
acompanhada por dois mestrandos do Laborarte, Cristina Decico e Conrado Federici.
Havíamos proposto uma mesajuntos e estávamos entusiasmados pela perspectiva de
apresentar nossas pesquisas sobre personagens, faz de conta e clowns na escola. No
entanto, ao pegarmos a programação, constatamos que nossa mesa estava locada no
último horário do último dia do encontro. Testemunhei a mudança de expressão dos
mestrandos à medida que localizava no mapa impresso a sala de nossa sessão: no
último andar do prédio mais distante da Faculdade de Medicina. Do entusiasmo por
estarmos lá com um trabalho aprovado, para o descontentamento (quase desilusão) ao
ter ciência da conjuntura espaço-temporal de nossa sessão. De fato, após 4 dias de
encontro e já com o certificado de participação em mãos, quem restaria no evento para
ir à nossa comunicação?

O tema por nós proposto era “Quando o corpo ganha voz na sala de aula”. Havíamos
preparado uma comunicação fora dos padrões convencionais para tratar do assunto.
Ao invés de slides de Power Point, cada qual iria realizar sua exposição por meio de
seus respectivos personagens: Conrado Federici iniciaria a mesa com seu clown, o
Lord, todo formal e fazendo citações em alemão. Em seguida, Cristina Decicofalaria
sobre como trabalhar com o faz de conta na hora da leitura em sala de aula pela
presença da professora-personagem, transformando-se, durante sua fala, em Nona
Carmela. Eu, até então ausente da sala, chegaria de surpresa com minha personagem
clownesca, Dona Clotilde – uma faxineira que fala o que lhe vem à cabeça –, para
fechar a discussão. Porém, palhaçaria, faz de conta e personagens só funcionam na
interação com o outro. De que adiantaria trazer os personagens sem público? Com
pouquíssimas pessoas presentes? Ou ainda pior, estando apenas entre nós?

Rapidamente, propus aos mestrandos que fôssemos até a Feira de Livros que acontecia
no saguão central da universidade para anunciar a nossa sessão. Mas, divulgar como?
Com filipetas? No tête-à-tête? Não. Sugeri que levássemos os próprios personagens.
Num primeiro momento, eles toparam, mas na hora, apenas Dona Clotilde ocupou o
espaço e, gritando em meio às pessoas, foi chamando a atenção para si e tumultuando

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 167


UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

a feira. Em poucos minutos, um círculo se formou ao seu redor com várias pessoas
querendo saber o que estava acontecendo. Neste momento, os mestrandos
interpelavam os curiosos convidando-os para assistirem à continuação da cena em
nossa sessão, fornecendo hora e local.

No dia da mesa, um pouco antes de começar nossa apresentação, convidei ainda


estudantes de Enfermagem que estavam tendo aula numa sala ao lado da nossa.
Conversei com a professora, expliquei sobre o que se tratava e ela liberou a turma para
assistir.

As táticas funcionaram: tivemos público! A mesa foi um sucesso e rendeu vários


frutosi.

Dona Clotilde na Feira de Livros do XII Endipe na PUC-PR, em Curitiba


Crédito da foto: Conrado Federici, 2004.

Ao narrar esse episódio ocorrido há quase duas décadas, tenho um duplo intuito: Primeiro,
mostrar, àquela época, o lugar que a arte ocupava dentro de eventos no campo da educação;
segundo, evidenciar o próprio poder da arte ao ter sido o meio de comunicação para conduzir as
pessoas à sessão oral e à reflexão.

Após esta primeira comunicação sobre personagem e faz de conta na escola, participei da
edição seguinte do Endipe, no Recife/PE, ao lado de duas doutorandas, Lívia Brasileiro e Valéria
Figueiredo,com uma sessão intitulada “Educação, Corpo e Arte: sensibilização à flor da pele”.
Nesta ocasião específica, não foi necessário ir à Feira de Livros para divulgar a mesa. Pelo

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

contrário, havia outras sessões que abordavam o ensino de arte, provavelmente pelo tema do
encontro: “Educação, Questões Pedagógicas e Processos Formativos: compromisso com a inclusão
social”. Embora não seja meu desejo adensar tal discussão aqui, gostaria, no entanto, de salientar o
quanto a arte costuma ser o carro-chefe quando se trata de projetos sociais e/ou projetos de inclusão,
mas perde esse status no instante seguinte, quando o(a) jovem egresso(a) do projeto decide fazer da
arte sua profissãoii.

No referido Endipe, apresentei uma comunicação em parceria com Eliana Ayoub, na qual
compartilhei as experiências acerca de uma disciplina do curso de Pedagogia da Faculdade de
Educação denominada “Educação, Corpo e Arte”. Esta disciplina, criada em 1998 como optativa,
três anos mais tarde tornou-se obrigatória na Pedagogia e eletiva para as demais licenciaturas. Uma
disciplina de cunho prático que, justamente por isso, não permitia (nem permite) exercícios
domiciliares. O conhecimento nela é construído pela práxis. Minha participação na mesma se dava
por meio de discussões sobre a Dança e o Teatro. Além do Endipe, já discorri sobre as
contribuições dessa disciplina em congressos e eventos como Anped, Confaeb, Enaef, Coleiii, dentre
outros.

Embora não possa chegar (ainda) a uma conclusão, ouso sinalizar alguns acontecimentos
que podem ter influenciado a mudança ocorrida nos últimos quinze anos, em que o corpo foi
marcando presença nas escolas de diferentes níveis da educação, seja na sala de aula de artes, seja
nos projetos educacionais.

Um dos primeiros pontos que destaco é a própria LDB n. 9.394/96. Nos primeiros anos de
sua promulgação, pouca coisa ocorreu, no entanto, quando se aproximava 2006, prazo limite para a
adequação à nova legislação, houve uma grande mobilização por parte de universidades públicas e
privadas, centros de formação, secretarias de educação, visando à certificação dos professores e/ou
a complementação curriculariv.

Em segundo lugar, especificamente no tocante à dança, destaco que o Brasil passou de 12


cursos superiores de dança para um total de 43 graduações entre bacharelados e licenciaturas. A
mesma expansão ocorreu nos programas de pós-graduações em artes cênicas (dança e teatro) que
elevaram, por sua vez, o número de mestres e doutores formadosv. Com mais pesquisadores na área,
aumentou o número de pesquisas e, consequentemente, de publicações. Houve o fortalecimento de
associações de pesquisadores da área como a Abrace e a criação de uma nova associação de
pesquisa sobre dança, a Anda. No campo da Educação, a criação de um GT específico focado na

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

Arte dentro da tradicional Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação


(Anped) foi um marco na década passada.

Infere-se que a geração de conhecimento específico no campo das artes cênicas e a


divulgação deste contribuíram para a expansão do pensamento sobre ensino de arte. Embora de
forma lenta, o ensino de arte foi ocupando espaços antes reservados apenas para a língua portuguesa
e a matemática. Dentro dos conteúdos do componente Arte, o corpo foi, paulatinamente, se
tornando mais evidente e o ensino de arte passou a ser compreendido para além das artes visuais,
abarcando as demais linguagens artísticas como a música, a dança e o teatro.

Dentro deste contexto, deixo registrada aqui a minha satisfação ao participar do XX Endipe
e testemunhar a Arte em posição de destaque num dos mais importantes encontros de educação do
país. Ver a Arte se deslocar da última hora no último dia em 2004 para ser tema de um dos
simpósios integradores no Endipe de 2020, não tem preço. Esse destaque comprova que as lutas
valem a pena!

DOIS CONCEITOS

Minha contribuição para a mesa intitulada “Artes, movimento e transgressão: insurgências


formativas na escola e na universidade” traz como recorteasartes cênicas, isto é, o teatro e a dança.

Explicito o conceito de dança como sendo “movimentos humanamente organizados segundo


uma intenção estética” (STRAZZACAPPA, 2007). Esta definição, cunhada pela primeira vez
durante uma sessão especial na Anped, visava a desmistificar a ideia de uma dança espetacular e
elitista, feita por poucos e para poucos, permitindo ao professorado (tanto de sala de aula quanto
responsável pelas aulas de arte) trabalhar com esta linguagem. A dança é uma produção humana e
está presente em todas as culturas do planeta. Trata-se de um patrimônio cultural imaterial. Cada
povo tem seu ritmo e seu movimento característicos.

O teatro, assim como a dança, também é uma produção humana. Compartilho a explicação
dada pelo teatrólogo inglês radicado na França, Peter Brook, que, em sua obra de referência
intitulada “O Espaço vazio” (1977/2015), afirma que basta um espaço vazio, alguém que atravessa
enquanto outro o observa para se ter o teatro. Compactuo igualmente com a definição do saudoso
diretor teatral campineiro, Luis Otávio Burnier, para quem o teatro é a arte de ator (BURNIER,
2001). Para nossa discussão, especificamente, chamo outro brasileiro, Augusto Boal, que via no
fazer teatral um ato político (BOAL, 1999).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Tanto a dança quanto o teatro se materializam no/com o corpo. Linguagens nas quais o
corpo está em cena, em evidência, em movimento, em ação. Linguagens em que o corpo se
apresenta como suporte. São linguagens artísticas de um o corpo vst (BURNIER, 2001). Ao me
aproximar e pesquisar a educação somática (FORTIN, 1999; 2008) sobretudo em sua interface com
as artes cênicas, opto por substituir o verbo “ter” da máxima – “temos um corpo” –, pelo verbo ser –
“somos um corpo” – e, desta forma, defendo o ponto de vista de que nós somos nosso corpo. O
corpo visto e compreendido como um todo, como um soma. É por meio do corpo e seus sentidos
que nos relacionamos com o mundo, intervindo nele e aprendendo com ele (ROBINSON, 2015).

Essas duas linguagens artísticas, dança e teatro, nas quais o corpo está no centro, foram
reconhecidas como conteúdos a serem contemplados dentro do espaço escolar com a LDB n.
9.394/96, mas ainda estão sendo paulatinamente incorporadas à prática escolar, como citado
anteriormente. Majoritariamente, ainda se presencia nas escolas o ensino de arte como sinônimo de
artes plásticas (desenho, pintura, colagem, modelagem) ou de artes visuais (incluindo-se aí a
fotografia, o vídeo, o cinema). Em algumas regiões do país, além das artes visuais, a música
também ocupa um lugar de destaque por meio da criação de fanfarra marcial. Em outros casos, com
aulas específicas de banda rítmica e de canto coralvi.

Diferentemente das artes visuais e da música que demandam materiais (papéis, tinta, cola,
argila, tecidos, dentre outros) e instrumentos musicais, poderíamos afirmar que as artes cênicas são
as “primas pobres” do ensino de arte, pois necessitam única e exclusivamente do corpo em
movimento e de um espaço vazio. Essa percepção das artes cênicas como “primas pobres” não são
por mim apelidadas. O teatrólogo polonês, Jerzy Grotowski, em sua obra “Em busca de um teatro
pobre” (1987), defendia justamente a eliminação de todos os aparatos como cenário, figurino,
adereços, iluminação, sonoplastia, mantendo apenas o necessário, ou seja, o(a) artista em sua
vulnerabilidade, diante de uma plateia. Para ele, a essência do teatro está na ação do(a) artista em
cena e sua relação com o público.

Numa pesquisavii realizada entre 2007 e 2010, identifiquei que as escolas que tinham aula de
teatro (e, em alguns casos, aulas de dança) não o faziam por opção. Pelo contrário, faziam
justamente diante da falta de opção. Em outras palavras, era a ausência de material básico para as
aulas de música como instrumentos musicais, e para as aulas de artes plásticas como papéis, tinta,
pincéis, dentre outros, que impulsionava os(as) professores(as) a trabalharem o teatro e a dança. De
fato, basta um espaço vazio e a presença de estudantes com seus corpos em movimento para que o
teatro e a dança aconteçam.

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

Ocorre, no entanto, por muitas vezes, professores e estudantes utilizarem parte da aula
justamente empurrando cadeiras e mesas para criar o espaço vazio dentro da sala e, em seguida,
utilizarem outra parte da aula para recolocar o mobiliário no lugar, restando apenas 30 dos 50
minutos da aula para os jogos teatrais e para os processos de criação cênica e coreográfica em si.

TRÊS PREOCUPAÇÕES

Após a narrativa de um episódio e da apresentação de dois conceitos, compartilho com o


leitor algumas preocupações recentes (e crescentes) das quais, para o presente texto, gostaria de
destacar apenas três.

A preocupação mais incisiva diz respeito à conjuntura política atual em que o corpo e a arte
passaram a ser clara e abertamente ameaçados, tendo sido colocada em cheque a autonomia dos
cidadãos. Não se podia imaginar que, em pleno século XXI, iríamos presenciar situações de
cerceamento da liberdade de expressão e de tentativas de aprisionamento dos corpos, com a volta da
censura, tanto nas artes quanto na imprensa, e afirmações como “meninas vestem rosa e meninos
vestem azul”.

Para citar apenas alguns atos governamentais contundentesviii, assistimos estupefatos esta
gestão extinguir o Ministério da Cultura e substituí-lo pela criação de uma secretaria subordinada ao
Ministério de Turismo (?), explicitando claramente que visão de cultura é por ela sustentada. O
então secretário desta nova secretaria divulgou, no dia 16 de janeiro, um edital para o Prêmio
Nacional das Artes por meio de um vídeo no qual fez referência a uma “arte heroica e nacional”,
parafraseando Joseph Goebbles, ministro de Hitler. A sociedade civil e políticos de diferentes
partidos se posicionaram de forma categórica contra o vídeo e escreveram críticas e manifestos
sobre esse episódio nas mídias sociais e nos jornais. O protagonista do vídeo acabou sendo
exonerado do cargo. Gostaria, porém, de focar no edital em si, que foi cancelado alguns dias após a
saída do secretário. O conteúdo do mesmo acabou ficando em segundo plano com tamanha
polêmica sobre sua divulgação. No referido edital, havia premiação para ópera (indicada em
primeiro lugar), para teatro, música, literatura, conto, história em quadrinhos, mas absolutamente
nenhuma premiação para dança, circo nem performance. Ora, por que essas linguagens
explicitamente do corpo não foram contempladas?

Não é apenas a recém-criada secretaria que vem realizando ações nefastas. Poderia seguir
citando impropriedades de outras pastas como as do Ministério da Educação ou as do Ministério da
Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, porém optei em destacar apenas três das muitas
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preocupações, selecionando as que tocam diretamente a arte. Passo, então, à segunda, que não está
ligada ao governo e sim à globalização e diz respeito ao uso das tecnologias.

Por mais que as tecnologias já estejam incorporadas ao nosso cotidiano, que estejam aí para
nos ajudar e, de fato, nos ajudam, preocupa-me o tipo de uso que grande parte da sociedade tem
feito delas a ponto de alterar seu comportamento. São alguns desvios observados quando, por
exemplo, uma pessoa considera mais importante registrar um momento que vivê-lo. Assim, em
restaurantes, parques, museus, festas, ao invés de se estar nos lugares, de se contemplar, provar,
admirar, degustar ou simplesmente conversar, a prioridade é fazer pose, fotografar e postar a foto.
Pior ainda, estar nestes lugares e ficar a ver a foto do outro, a pose do outro, o corpo do outro pelo
celular.

Vivemos a era do choque entre o real versus o virtual. Um fenômeno que começou com os
jovens e que hoje os adultos assumiram para si. Neste contexto, deparamo-nos com pessoas
aparentemente esclarecidas que privilegiam os interlocutores virtuais, com quem dialogam pelo
celular, que o amigo real sentado à frente à mesa. Neste diálogo virtual (algumas vezes, com mais
de uma pessoa ao mesmo tempo), a manifestação das emoções é feita por meio emojis,
substituindo-se a expressão corporal e vocal por “carinhas amarelas”.

Para além da crítica às tecnologias das mídias sociais, gostaria de falar sobre a Inteligência
Artificial (HARARI, 2019). Não sou pesquisadora do campo, mas como uma hábil observadora das
pessoas no mundo, gostaria especificamente de refletir sobre os aplicativos de uso pessoal voltados,
em teoria, à saúde dos indivíduos. Refiro-me aos monitores de atividade física (fitbit), aqueles
“relógios de pulso” que medem a frequência cardíacaix, as horas de sono, que alertam o usuário para
a hora de beber água, de se mexer etc. Digo “em teoria” pois acredito que se trata de um desserviço
do aplicativo ao retirar do indivíduo a percepção de si. Ao invés de sentir suas necessidades através
dos sinais em seu próprio corpo, passa-se à terceirização dos sentidos. Esses acessórios podem
colaborar para a saúde, sobretudo de idosos que, justamente pela idade avançada, perderam a
percepção da sede e acabam não se hidratando corretamente, por exemplo. Mas,e para o indivíduo
comum? O aplicativo acaba por deseducar a pessoa sobre si própria.

É notório como já incorporamos e naturalizamos a terceirização como, por exemplo, do


senso espacial. Para se localizar numa cidade, na grande maioria das vezes, recorre-se ao GPS.
Terceirizamos as emoções, ao usar emojis para expressar como nos sentimos. Terceirizamos a
percepção da sensação térmica pois, em vez de se esticar o braço para fora ou de se olhar pela
janela, busca-se os dados sobre o clima fornecidos pelo site. Talvez a mais séria terceirização seja a

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

de nossas habilidades, como a memória:Quantos números de telefone e endereços, sejam de amigos


ou de familiares, datas de aniversário, compromissos da agenda, se sabe de cor? Ao não usarmos o
cérebro para tarefas prosaicas, diminuímos a ativação das células nervosas e, com isso, estamos
perdendo nossa capacidade de armazenamento e nossa capacidade de realizar sinapses. Fico a
imaginar que, num futuro não muito distante, as pessoas terão de consultar o que indica o aparelho
no pulso para poder responder à simples pergunta: “Olá, tubo bem?”

Destaco que não podemos negar as tecnologias, nem rejeitar os avanços que elas
representam em nossas vidas. As tecnologias estão aí e a tendência é que elas sigam sendo
aprimoradas, evoluindo, avançando e inovando. O problema, afinal, não está nas tecnologias em si,
mas no uso que se faz delas, sobretudo quando elas influenciam o desenvolvimento e/ou
manutenção de nossas habilidades e sentidos, como afirmei acima.Quanto mais se usa a tecnologia,
menos se usa o corpo (incluindo aqui a mente) e isso leva a consequências tanto físicas quanto
psíquicas. E assim, chego à terceira e última preocupação.

Trata-se de uma preocupação localizada. Refere-se ao número exorbitante de estudantes


universitários sofrendo com depressão, solidão, ansiedade, síndrome do pânico e síndrome de
burnout. Refere-se igualmente à constatação do aumento no número de suicídios e de tentativas de
suicídio entre jovens universitários. Estariam esses fatores interligados? O que estaria ocorrendo nas
universidades para se tornar cenário dessas situações?

A desesperança é grande.

Desesperança diante do quadro político nacional e mundial. Desesperança ao ver conquistas


sociais que levaram anos para serem alcançadas sendo desmanteladas. Desesperança diante dos
cortes de auxílios para a educação superior. Desesperança diante do fato de que a formação
universitária de hoje pode se tornar obsoleta amanhã. Desesperança diante da falta de perspectiva de
um futuro próspero, imaginando que, ao substituir pessoas por máquinas ou pela inteligência
artificial,não haverá emprego para todos. Desesperança por simplesmente não se saber o que
esperar.

Mas, qual a relação destas três preocupações com as artes cênicas? Com o tema do presente
simpósio? O que isso tudo tem a ver com nossa discussão sobre a arte na escola e na universidade?

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

E JÁ! ‒ PROPONDO UMA TOMADA DE ATITUDE

Não sou profissional do campo da filosofia, nem da psicologia, nem das Ciências Sociais.
Sou artista da cena e clown, logo, é a partir do lugar da imaginação, do sonho, da criação e da ação,
que faço minha reflexão. O tempo urge. Estamos sendo atropelados e não podemos perder o passo.
Por isso afirmo que é para já!

Defendo a necessidade de as artes cênicas estarem presentes de forma prática e vivencial nos
diferentes níveis da educação básica, da educação infantil ao ensino superior, passando pelo ensino
fundamental, ensino médio e ensino técnico, pois defendo a importância da arte do corpo na
formação de todo e qualquer indivíduo. Por quê? Qual sua relevância?

Sua importância se encontra no fato de que, na atualidade, estes dois fazeres, teatro e dança,
são dos poucos a colocar o indivíduo em contato consigo próprio, com seu corpo, com suas
emoções, com suas sensações e sua individualidade. E as pessoas estão carentes de si próprias.

Estar carente de si próprio parece ser a epidemia que assola a contemporaneidade.

Não se trata de uma visão romântica, nem de uma solução milagrosa. Não se trata sequer de
crer que as artes cênicas sejam salvadoras do mundo. Longe disso. Trata-se de reconhecer o
potencial que estas linguagens têm para se trabalhar questões primordiais para a vida dos
indivíduos, lembrando que, historicamente, a vida cotidiana das pessoas envolvia a totalidade do
corpo em movimento (LABAN, 1990), seja no ambiente doméstico, seja no ambiente de trabalho.
No âmbito social, as pessoas se ocupavam de projetos criativos e faziam-no tanto de forma
individual quanto coletiva.

O século XX trouxe a revolução digital, permitindo maior agilidade nas ações, facilitando a
comunicação e acelerando a vida dos cidadãos para, em teoria, oferecer uma melhor qualidade de
vida às pessoas, porém, a maior preocupação foi com o aumento da produtividade. Já estamos na
segunda década do século XXI, era da inteligência artificial. Será que aprendemos com os erros e
acertos de nossas escolhas passadas?

Com as tecnologias terceirizando os sentidos, as habilidades e as emoções; com tantas


virtualidades; com tantas mentiras (fake news) e imagens distorcidas, urge trazer o jovem para o
mundo real e concreto. Precisamos tomar consciência do aqui e agora, do tocar e do sentir, em
outras palavras, precisamos simplesmente estar presentes de corpo inteiro.

O historiador israelita Yuval Noah Harari, grande pensador da atualidade, afirma que a
tecnologia nos dá um poder imenso, mas ainda somos nós que decidimos o que fazer com ela

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

(HARARI, 2019). Cursos de meditação, mindfulness, yoga e tantas outras propostas apontam
caminhos para superar (e em alguns casos suportar) as preocupações apontadas anteriormente que
representam alguns dos desafios deste novo século. Cada dia que leio, estudo, ouço um podcast, me
informo, identifico os benefícios e vejo as conexões que existem entre estas práticas sugeridas e as
artísticas, como o teatro e dança. Pessoalmente, ainda não fiz nenhuma destas formações, porém,
tenho ao meu redor colegas que vêm flertando com algumas dessas práticas e, ao ouvir atentamente
seus relatos, reflito sobre as constatações e confirmo algumas suposições. Identifico que a prática
artística da cena trabalha, por principio, com vários dos aspectos contidos nestas técnicas agora tão
em voga, estudadas e divulgadas.

Como artista da cena, por exemplo, eu danço, interpreto e represento. Eu coloco meu corpo
em estado de atenção. Busco um estado de presença e, para tal, dilato meus sentidos. Para conseguir
esta ampliação da presença, preciso, primeiramente, me ocupar de minha consciência corporal.
Pensar em meus apoios, minhas articulações, minha respiração, os músculos ou as cadeias
musculares envolvidas em determinada postura e/ou movimento. Preciso ter consciência da
distribuição do meu peso entre os apoios, preciso ter noção do espaço que ocupo na sala, na cidade,
no mundo. Preciso aguçar todos os meus sentidos. Preciso estar com os olhos, ouvidos, olfato, tato,
paladar atentos para perceber o mundo.

Quando assumo um papel, seja numa improvisação teatral seja quando incorporo minha
clown, Dona Clotilde, isso me obriga a estar dentro e fora de mim ao mesmo tempo. Como um
corpo dilatado em que se está dentro do personagem, em cena, jogando com o outro e, ao mesmo
tempo, se está fora de si, assistindo a cena de outro ângulo e imaginando a próxima ação.

Para se improvisar em cena, é necessário ampliar os sentidos para permanecer atento a todo
e qualquer acontecimento, pois a mínima ocorrência pode ser o estopim para outro desfecho da
cena. Ao realizar o exercício de estar dentro e fora de mim no ato da improvisação, acabo por
incorporar essa prática e realizo a mesma ação em muitos momentos do cotidiano. Assim, a prática
teatral acaba por ser um ensaio para a vida. E, ao fazer isso, posso prever reações do outro e pensar
em minhas próprias ações, posso me colocar no lugar do outro, posso pensar e me apropriar de um
discurso, posso me conhecer melhor.

Conhecer-se melhor é um dos objetivos de se praticar atividades meditativas. Yuval Noah


Harari, pensador acima citado, aponta para os benefícios da meditação e compartilha sua
experiência pessoal dizendo que medita duas horas por dia. Dentro da lógica universitária em que se
tem de quantificar a produção acadêmica e alcançar metas, isso poderia parecer uma perda de
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

tempo – ora, por que ele fica duas horas “sem fazer nada” ao invés de estar lendo? Produzindo um
texto? Preparando sua próxima palestra? O historiador responde que consegue ter uma produção
intensa justamente por passar todo este tempo meditando, abrindo espaços para que novas conexões
se estabeleçam e se conhecendo melhor.

Ao acreditar na relevância e defender a arte do corpo na formação de professores, tenho


invertido minhas aulas (STRAZZACAPPA, 2012), tanto da graduação quanto na pós-graduação,
iniciando com uma prática/vivência corporal/sensorial, seguida de um registro imagético, poético,
textual individual dos participantes para, somente então, trazer indicações de leituras e fazer
reflexões filosóficas. Com isso, tenho mostrado o quanto o corpo é nossa mais básica tecnologia
(MAUSS, 2003) e tenho comprovado o quanto o corpo é potência. Isto posto, convoco
pesquisadores e docentes universitários, a uma tomada de atitude: Retornemos ao básico! Voltemos
ao corpo! Nós somos nosso corpo (STRAZZACAPPA, 2001).

Defendo, mais do que nunca, nos dias atuais, a necessidade de estudos acerca das artes
cênicas, teatro e dança, estarem presentes nos cursos de formação de pedagogos, aqueles
profissionais que trabalharão com crianças de zero a dez anos de idade.

Defendo a necessidade de estudos acerca das artes cênicas estarem presentes também nos
cursos de licenciaturas, que formam professores especialistas que trabalharão com as disciplinas
específicas no Ensino Fundamental 2, no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA).

Defendo a necessidade de estudos acerca das artes cênicas igualmente estarem presentes nos
diferentes cursos superiores, seja como atividades de extensão, extracurriculares, seja como
disciplinas obrigatórias nos distintos bacharelados como já fazemos no caso da Faculdade de
Medicina na Unicamp.x

Compreendo a palavra “estudos” aqui para além da aquisição de saberes racionais, teóricos,
históricos, por meio de leituras, reflexões abstratas, filosóficas. Reconheço a palavra “estudos” no
sentido da experiência prática em si, da vivência, da experimentação. Enfatizo a importância de se
por “a mão na massa”, ou melhor, o corpo em movimento. Afinal, o teatro e a dança compõem uma
área em que a forma de se construir conhecimento passa, necessariamente, pela ação, pela práxis.
Uso como analogia para falar sobre o ensino de arte a ideia de que só se aprende a nadar, nadando.
Assim, só se aprende a fazer teatro, teatrando. Só se aprende a dançar, dançando.

Assim, vamos nos colocar em movimento! Vamos abrir espaços na escola, empurrar
cadeiras dentro da sala de aula. Fazer um círculo com as pessoas, estudantes, professores e demais

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

agentes escolares, todas pessoas de mãos dadas (ninguém solta a mão de ninguém), percebendo sua
individualidade no círculo, como elo único que compõe a corrente e, ao mesmo tempo,
reconhecendo a força do coletivo. Vamos fazer teatro! Vamos improvisar cenas nas quais possamos
colocar nossas questões e problemáticas em evidência e assim possamos, no coletivo, pensar outras
soluções possíveis. Vamos dançar! Vamos mover nossos corpos de acordo com os movimentos dos
colegas, seguindo os sons do ambiente, ou as músicas propostas, vamos expressar pelo gesto nossas
sensações vividas e, assim, vamos experimentar novos ritmos e outras vibrações. Vamos criar com
o corpo!

Ao interpretar e ao dançar, ao se reconectar consigo próprio por meio da arte, ao se apropriar


de seu corpo é que o indivíduo se torna consciente, potente e criativo. Uma vez empoderado,
individualmente, torna-se capaz de pensar e promover mudanças coletivamente. Cabe a nós,
docentes, promover espaços/tempos para que crianças, adolescentes e jovens possam vivenciar a
arte da cena e, assim, possam se preparar para os desafios que despontam neste nosso século e,
quem sabe, possamos ter um futuro diferente. Finalizo reproduzindo a frase do psicanalista Roberto
Gambinino no encerramento do Encontro Poéticas do Fazerxi: “Artistas, pensadores, poetas: mãos à
obra, que está é longa, e a vida, curta” (GAMBINI, 2010).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BOAL, A. A estética do Oprimido. Rio de Janeiro: Funarte, 2008.

BROOK, P. L`espace vide – écritssurlethéâtre. Paris: Seuil, 1977.

BURNIER, L.O. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001.

FORTIN, S. Educação somática: novo ingrediente na aula de dança. Cadernos do GIPE-CIT, número 2. Estudos do
Corpo. Salvador: Edufba, 1999.

FORTIN, S. Danseet santé. Montréal: Pressesde l`Universitédu Québec, 2008.

GAMBINI, R. Com a cabeça nas nuvens. Pro-Posições, [s.l.], v. 21, n. 2, p. 149-159. Disponível em:
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article/view/8643346. Acesso em 11 jan. 2020.

GROTOWSKI, J. Em busca de um teatro pobre. São Paulo: Civilização Brasileira, 1987.

HARARI, Yuval. Sapiens. Uma breve história da humanidade. São Paulo: L&PM Editores, 2018.

HARARI, Yuval. 21 lições para o século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LABAN, R. Dança educativa Moderna. São Paulo: Icone, 1990.

MAUSS, M. As técnicas do corpo. Antropologia. São Paulo: Cosac &Naif, 2003.

ROBINSON, K. Creative Schools. The grassroots revolution that’s transforming education. New York: Penguin, 2015.

STRAZZACAPPA, M. A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola. Cad. Cedes, Campinas, v. 21, n. 53, p. 69-
83, apr. 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-
32622001000100005&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 31 jan. 2020. DOI/ORG: http://dx.doi.org/10.1590/S0101-
32622001000100005.

STRAZZACAPPA, M. Dança: outro aspecto da /na formação estética dos indivíduos. [S.l.: s.n.], 2007. Disponível em:
http://30reuniao.anped.org.br/sessoes_especiais/sessao%20especial%20-%20marcia%20strazzacappa%20-%20int.pdf.
Acesso em: 30 jan. 2020.

STRAZZACAPPA, M. Invertendo o jogo: a arte como eixo na formação de professores. Reunião da Anped. [S.l.:
s.n.], 2017. Disponível em: http://35reuniao.anped.org.br/images/stories/trabalhos/GT24%20Trabalhos/GT24-
1335_int.pdf. Acesso em: 30 jan. 2020.

Notas de fim

i
A mesa fez sucesso junto aos estudantes do campo da Saúde. Eles pediram meu contato e convidaram, posteriormente,
Dona Clotilde para a abertura de um evento no Centro Acadêmico da Medicina, no mesmo ano. Concluíram que era
muito interessante discorrer sobre um assunto de forma crítica por meio da personagem.
ii
Sobre esse tema, aconselho a leitura da dissertação de mestrado de Alexandre Randi intitulada: “Palco, Academia,
Periferia: a dissonante polifonia da Banda Bate Lata na (trans)formação de um educador”, com orientação de Ana
Angélica Albano, 2006.

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UM, DOIS, TRÊS... E JÁ!!...

Respectivamente. Associação Nacional de Pesquisa e pós-graduação em Educação (Anped); Encontro Nacional de


iii

Arte e de Educação Física (Enaef); Confederação Nacional de Arte Educadores do Brasil (Confaeb); Congresso de
Leitura do Brasil (Cole).
iv
O Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação/Laborarte, grupo de pesquisa do qual faço parte, foi
convidado por mais de uma ocasião a ministrar cursos voltados aos professores de arte da rede pública (graduados na
antiga Educação Artística ou em Artes Plásticas) para complementar sua formação e permitir que também trabalhassem
noções de teatro, música e dança na escola.
v
Dados obtidos em consulta ao portal do MEC (emec.mec.gov.br) em 29/01/2010.
Lembrando que isso ocorre não pela importância ou relevância das linguagens artísticas em si, mas pelo fato de que
vi

pesquisas demonstraram o quanto o ensino de artes visuais contribuiu para a melhoria do aprendizado da escrita e a
música para a aquisição de conhecimentos no campo da matemática.
“Visão de Arte das professoras da rede pública da Região Metropolitana de Campinas/SP”. Pesquisa de Iniciação
vii

Científica com bolsa Capes. Estudantes bolsistas: Gustavo Valezzi e Lucia Kakazu.
Trata-se de um texto datado, que estava sendo redigido em janeiro de 2020, quando diversas ações ocorreram no
viii

campo da cultura. Num futuro próximo, alguém pode acreditar que esses fatos não aconteceram. Optei em não citar
nomes, apenas cargos para não dar visibilidade a estas pessoas.
ix
Yuval Harari em sua palestra em Davos, em 24 de janeiro de 2020, fez um alerta sobre como as informações obtidas e
armazenadas por esses aplicativos poderiam num futuro ser usadas de forma nefasta por políticos, empresas e pessoas
mal-intencionadas. Vide o Youtube (https://www.youtube.com/watch?v=gG6WnMb9Fho&feature=youtu.be).
x
Desde 2012, introduzimos uma disciplina obrigatória no currículo do curso de formação de médicos na Universidade
Estadual de Campinas/Unicamp, oferecida para o segundo ano (4o semestre). A princípio, a disciplina visava o
desenvolvimento da comunicação médica. Com o tempo, desenvolvemos uma metodologia que intitulamos Medical
Education Empowered by Theater (MEET), que contribui para a formação do indivíduo.
xi
Encontro “Poéticas do Fazer”, promovido pelo Laboratório de Estudos sobre Arte, Corpo e Educação/Laborarte da
Faculdade de Educação da Unicamp em 2010.

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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE
PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS
E... O QUE HÁ NO MEIO DO CAMINHO?

Rita de Cássia Prazeres Frangella

No meio do caminho tinha uma pedra


tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento


na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade, 1930.


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O que há no meio do caminho? O poema que escolho para me acompanhar e que incita a
reflexão sobre a formação de professores e suas possibilidades formativas, usualmente é trazido à
baila quando se faz referência a problemas/obstáculos encontrados, mais que em interrupção, ele me
incita a pensar em desvios, atalhos; caminhar pensando que as pedras fazem parte do caminho.
Entre possibilidades/impossibilidades, lá está ela, a pedra/Base Nacional Comum Curricular,
promulgada pelo Conselho Nacional de Educação em dezembro de 2017, após um processo que
contou com a divulgação de diferentes versões, discussões, audiências públicas, num delineamento
de uma tendência que se adensa no desenrolar de ações subsequentes nas políticas educacionais:
uma forte guinada às perspectivas de centralização das decisões e a dicotomização das esferas de
produção e “implementação” de políticas educacionais.

No contexto atual, discutir a formação de professores exige um alinhamento da discussão à


promulgação da BNCC e ações decorrentes dessa, o que de forma clara é indicado na própria
BNCC quando nela se afirma que:
A primeira tarefa de responsabilidade direta da União será a revisão da formação
inicial e continuada dos professores para alinhá-las à BNCC. A ação nacional será
crucial nessa iniciativa, já que se trata da esfera que responde pela regulação do ensino
superior, nível no qual se prepara grande parte desses profissionais. Diante das
evidências sobre a relevância dos professores e demais membros da equipe escolar
para o sucesso dos alunos, essa é uma ação fundamental para a implementação eficaz
da BNCC (BRASIL, 2017, p. 21).

Se tal perspectiva já indicava que o alinhamento à BNCC se coloca como “pedra angular”
para as ações e políticas públicas em elaboração e/ou desenvolvimento no país, também expressa a
vinculação e atrelamento de propostas no âmbito da formação de professores à BNCC, tal como se
materializou na promulgação da Resolução n. 2/2019, do Conselho Nacional de Educação, que
institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica –
BNC-Formação.

Ao longo das pesquisas que tenho desenvolvido nos últimos anos (FRANGELLA, 2016;
2019) acerca de políticas de currículo tanto para a educação básica quanto para a formação de
professores, observo que essas, a partir do diálogo com a obra de Homi Bhabha, são movimentos
que se dão sob rasura, não como significantes em si, mas imbricamento de rastros discursivos que
abalam a ideia de uma anterioridade que ampara as iniciativas em prol de um ou outro.

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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...

Sendo assim, a falácia das justificativas, que apontam que a existência da BNCC da
Educação Básica exige que se faça a adequação e alinhamento da formação de professores a essa, se
erige na possibilidade de traçar uma trajetória sequencial que culmine num determinado ponto, no
caso, a busca da qualidade na educação que, em sua transparência, parece se constituir máxima para
qual convergem todas as ações e se dá partir de passos objetivos, racionais, num sentido unívoco
que congrega e direciona uniformemente os esforços para consecução desses objetivos.

Ainda que pese a necessidade de aprofundar a discussão sobre os sentidos de qualidade que
estão postos na BNCC, o que busco destacar é o atrelamento aqui posto. De fato, também não
acredito que seja possível a dissociação entre projetos para educação básica e para a formação de
seus professores, até por entendê-los atrelados a um disputa de significação de mundo, como
projetos culturais, mas o que assistimos é uma cadeia articulada de projetos submetidos a uma
lógica de entendimento de qualidade mensurável, balizada por índices de desempenho e controle,
além do adensamento do caráter instrumental das políticas curriculares contemporâneas, que se
expressam ainda mais na própria BNC-Formação como estratégia de disseminação da BNCC da
Educação Básica. O que se depreende dos movimentos em curso não é a relação dialógica entre
propostas para a Educação Básica e Formação de professores, mas uma submissão que reduz a
formação a ser a portadora da boa-nova que é a BNCC.

Uma versão preliminar da Base Nacional Comum da Formação de professores da Educação


Básica foi entregue ao Conselho Nacional de Educação em 14 de dezembro de 2018. À época, já se
chamava atenção para a possibilidade de que a produção e promulgação da BNCC da Formação de
professores se constituísse esvaziamento (ou até a revogação) da Resolução CNE/CP de 2 de julho
de 2015, alterada, primeiramente, pela CNE/CP de 3 de outubro de 2018, que trata do art. 22 da
Resolução n. 2/2015, ampliando e estabelecendo como prazo para reformulação curricular dos
cursos de formação 4 anos a partir da sua data da publicação, o que implica dizer que a
secundarização dos movimentos feitos por diferentes universidades na produção de propostas de
acordo com a resolução, inviabilizando a avaliação desses projetos, inclusive sob os mesmos termos
postos para a exigência de criação da BNC-Formação: seu diálogo com as deliberações atuais para a
Educação Básica. Mas, mais que isso, abalam-se os significados postos para elaboração de Projetos
curriculares para a Formação: as premissas estabelecidas na Resolução n. 2/2015 investem na
elaboração coletiva e dialogada de produção dos projetos formativos, em negociação com demandas
locais/instituicionais, como o que se observa no art. 3 que trata dos princípios da formação dos
profissionais do magistério da educação básica, o que seria suprimido pela lógica de re-elaboração

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

curricular como tradução da BNCC em documento local, o ponto focal muda, ou seja, a “pedra
angular” da produção curricular.
§ 5º. São princípios da Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica:
I. a formação docente para todas as etapas e modalidades da educação básica como
compromisso público de Estado, buscando assegurar o direito das crianças, jovens e
adultos à educação de qualidade, construída em bases científicas e técnicas sólidas em
consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica;

II. a formação dos profissionais do magistério (formadores e estudantes) como


compromisso com projeto social, político e ético que contribua para a consolidação de
uma nação soberana, democrática, justa, inclusiva e que promova a emancipação dos
indivíduos e grupos sociais, atenta ao reconhecimento e à valorização da diversidade
e, portanto, contrária a toda forma de discriminação;

III. a colaboração constante entre os entes federados na consecução dos objetivos da


Política Nacional de Formação de Profissionais do Magistério da Educação Básica,
articulada entre o Ministério da Educação (MEC), as instituições formadoras e os
sistemas e redes de ensino e suas instituições;

IV. a garantia de padrão de qualidade dos cursos de formação de docentes ofertados


pelas instituições formadoras;

V. a articulação entre a teoria e a prática no processo de formação docente, fundada no


domínio dos conhecimentos científicos e didáticos, contemplando a indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão;

VI. o reconhecimento das instituições de educação básica como espaços necessários à


formação dos profissionais do magistério; VII - um projeto formativo nas instituições
de educação sob uma sólida base teórica e interdisciplinar que reflita a especificidade
da formação docente, assegurando organicidade ao trabalho das diferentes unidades
que concorrem para essa formação;

VIII. a equidade no acesso à formação inicial e continuada, contribuindo para a


redução das desigualdades sociais, regionais e locais;

IX. a articulação entre formação inicial e formação continuada, bem como entre os
diferentes níveis e modalidades de educação;

X. a compreensão da formação continuada como componente essencial da


profissionalização inspirado nos diferentes saberes e na experiência docente,

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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...

integrando-a ao cotidiano da instituição educativa, bem como ao projeto pedagógico


da instituição de educação básica;

XI. a compreensão dos profissionais do magistério como agentes formativos de


cultura e da necessidade de seu acesso permanente às informações, vivência e
atualização culturais (BRASIL, 2015, p. 9).

A defesa da manutenção CNE/CP n. 2/2015 foi o ponto de articulação das diferentes


entidades nacionais ao longo do processo de tramitação da proposta e que estiveram presentes em
audiência pública realizada pelo Conselho Nacional de Educação em outubro de 2019, quando foi
apresentado novo texto-referência para a produção da BNC-Formação. Ainda que essa se
apresentasse não como alteração, mas como apenas uma adequação da Resolução n. 2/2015 ao
contexto pós-promulgação da BNCC da Educação Básica, as entidades enfatizam que:
Reafirmamos nossa posição em defesa da Resolução CNE n. 2/2015, pois esta
fortalece uma concepção de formação indissociável de uma política de valorização
profissional dos professores para formação, carreira e condições de trabalho e
representa um consenso educacional sobre uma concepção formativa da docência que
articula indissociavelmente a teoria e a prática, dentro de uma visão sócio-histórica,
emancipadora e inclusiva, defendida pelas entidades acadêmicas do campo da
educação. Assim nos manifestamos pela manutenção sem alterações e pela imediata
implementação da Resolução n. 2/2015. (Disponível em: https://www.abdcurriculo.
com.br/noticias-1)

Assim, mais que adequação, a BNC-Formação, trata-se de um projeto formativo que


privilegia uma dada concepção de docência, conhecimento, educação que se põe em disputa, uma
luta política em torno da significação da educação, currículo, professor e escola. O que observamos
são as articulações feitas que fortalecem que uma dada significação – instrumental,
homogeneizadora – e que ganham força nessa disputa. Há de antemão um endosso da BNCC da
Educação Básica e a ideia de buscar uma unidade produtiva, uma sinergia entre as políticas postas,
que cria a imagem de uma decisão técnica e racional e esvazia o caráter político de tal empreitada,
sem aprofundar a discussão acerca do que se altera, no caso, a assepsia do projeto de formação.
Faço tal afirmação a partir do trecho que pus em destaque da Resolução CP n. 2/2015 – dos
princípios da formação. Nesses é possível notar que se considera a indissociabilidade da pesquisa-
ensino-extensão, o destaque à questão das diversidades, a ênfase à dimensão cultural da formação.
Esses pontos, de diferentes formas, atravessam e balizam as proposições feitas na Resolução n.
2/2015 e são subsumidas na BNC-Formação, que se concentra no esforço de demarcar, tal como a

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

BNCC da Educação Básica, o currículo da formação com a descrição das temáticas a serem
abordadas nos três grupos que organizam a matriz curricular para a formação, bem como indicação
das competências específicas em cada dimensão das competências gerais da formação docente.
Trata-se da retomada de modelos já discutidos e criticados, como sinalizam Dias e Lopes (2003) em
estudo sobre as reformas curriculares para a formação de professores nos fins dos anos 1990 e
início dos anos 2000, sobre o que não há de novo na pretensão de atrelamento entre desempenho do
professor e desempenho do aluno, desequilibrando a balança na/da formação, uma vez que o como
ensinar, a dimensão prática, adquire supervalorização como foco central da formação.

Assim, a partir desses questionamentos, tomo para leitura, além da Resolução n. 2/2019 que
institui a BNC-Formação, os textos preliminares apresentados em 2018 (Proposta para a BNC da
Formação de Professores da Educação Básica) e 2019 (Texto referência – 3a versão do Parecer)
para discutir a construção de argumentos para justificar o investimento na formulação de tal
proposta, o que observo como alinhamento ao movimento observado no processo de produção da
BNCC da Educação Básica: o indicativo de falta de qualidade da educação. No caso da formação de
professores a questão da falta é articulada à questão de que é decisivo para o avanço da qualidade a
atuação do professor, a despeito das condições de trabalho docente ou das condições desfavoráveis
que o aluno tenha, tal como preconizado no texto apresentado em 2018:
Muitos estudos têm sido realizados a partir de dados estatísticos e avaliações que nos
permitem fazer análises mais profundas a respeito das aprendizagens.

Essas análises têm contribuído para aumentar o conhecimento de todo o processo


educativo e vêm produzindo evidências entre as quais:

a) a origem socioeconômica do aluno, sobre a qual a escola não tem controle,apesar de


ser um fator que pese na determinação do desempenho escolar, pode ser compensada
pela ação da escola;

b) os fatores que podem ser controlados pela escola ou pelo sistema educacional, dentre
os quais o professor é de longe, o que mais pesa na determinação do desempenho do
aluno; e

c) o papel desempenhado pelos professores bem preparados faz diferença significativa


no desempenho dos alunos, independente do nível socioeconômico dos mesmos
(MEC, 2018, p. 4-5).

Para corroborar com tais argumentos são apresentadas pesquisas da Ocde e outras que
indicam que a qualidade dos professores e seu ensino é o fator mais preponderante no desempenho

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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...

dos alunos. Tal nexo argumentativo é construído de forma que a questão do contexto
socioeconômico não é desconsiderado, mas é tratado de forma individualista, sem inserir nesse
debate o próprio contexto socioeconômico dos professores e as condições contextuais de produção
da docência, que então se materializa independente dos contextos em que se insere. Sendo assim, à
escola é possível descolar-se de questões socioculturais e garantir a qualidade a partir do
desempenho dos professores. Para tanto, é preciso qualificar esse desempenho, uma vez que esse é
um dos fatores possíveis de serem controlados.

O controle se dará exatamente pela via do desempenho, numa lógica de gestão de resultados
que, apesar do discurso em favor da qualidade da educação e garantia de direitos de aprendizagem,
aqui apresenta-se com o sentido próprio dado a aprendizagem: desempenho passível de ser
mensurado.

Esse discurso que, de forma linear, associa ação docente ao desempenho do aluno
desconectada de tantos outros fatores que não são necessariamente “controláveis”, estabelece uma
relação biunívoca entre desempenho docente e desempenho discente, tal como se observa nas
significações de docência e trabalho docente que se depreende da BNCC da Educação básica,
adensando o discurso de responsabilização praticamente exclusiva dos professores sobre o
desempenho dos alunos (FRANGELLA; DIAS, 2018).

Então, se
[...] chama a atenção o fato de o cuidado com a aprendizagem dos estudantes ser a
principal incumbência do professor, ou seja, a centralidade do tradicional processo de
ensino e de aprendizagem não está mais na atividade meio, ou no simples repasse de
informações, mas na atividade fim que compreende o zelo pela aprendizagem dos
alunos, uma vez que a finalidade primordial das atividades de ensino está nos
resultados de aprendizagem (CNE, 2019, p. 7, linhas 281-283).

Seria, então, também sua principal incumbência o cumprimento do plano de trabalho


proposto, a organização de forma a garantir a aprendizagem de conteúdos – esses já definidos na
BCNN da Educação Básica – o que, na retomada de feições instrumentais no campo curricular,
estabelece fronteiras precisas entre esferas decisórias e esferas de execução, ficando os professores
responsáveis pela última; à docência cabe a prática, o saber-fazer em termos metodológicos. Assim,
se erige também a perspectiva de que as definições propostas, a priori, estão a salvo de críticas e
quaisquer problemas são de ordem de execução, de prática não condizente com o que é proposto.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Esse arranjo justifica a proposição da BNC-Formação e enfatiza o momento propício e


necessário, até mesmo obrigatório, de revisão dada a implementação da BNCC da Educação Básica.
Como essa, a BCN-Formação está assentada na noção de competência, que se expressa no domínio
de habilidades que inferem principalmente que no que é indicado como pressuposto no documento
apresentado em 2018: “o principal foco na formação de professores é a relação entre o
conhecimento que se aprende e o conhecimento que se ensina” (MEC, 2018, p. 32) e que, mesmo
que não se mantenha da mesma forma no texto apresentado em 2019, se expressa na relação
biunívoca estabelecida entre a BNC-Formação e a BNCC da Educação Básica.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de
Professores para a Educação Básica e a BNC-Formação têm como referência a
implantação da Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC),
instituída pelas Resoluções CNE/CP n. 2/2017 e CNE/CP n. 4/2018.

Art. 2º. A formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das


competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem como das
aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, quanto aos aspectos
intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como
perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando à Educação Integral.

Art. 3º. Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela
BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes
competências gerais docentes. (BRASIL/DOU, n. 247, CNE/Resolução n. 2/2019,
p.116).

Isso colocaria, num diálogo com a BNCC da Educação Básica, a possibilidade de


definição clara e precisa também das aprendizagens essenciais a serem feitas pelos
professores em formação e estas seriam prioritariamente o conhecimento pedagógico
do conteúdo, que aparece como pressuposto assumido e defendido.

A competência, tomada a partir de uma perspectiva cognitivista de mobilização de


conhecimentos e habilidades em resposta a demandas da vida cotidiana, permite a formulação da
competência como um conjunto de domínios que âmbito de ação docente se define a partir de três
dimensões: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. Dessa
forma, o que se observa é que a aligeirada remissão à noção de competência permite também um
aligeiramento sobre a discussão do conhecimento, numa ênfase da técnica e da instrumentalização,
o que se alinha às análises de Vieira e Feijó (2018) sobre a base epistemológica que sustenta a

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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...

discussão acerca do conhecimento, discutindo a ideia de Economia do conhecimento que reduz o


saber útil à produtividade. Os autores concluem que
A proposta da uma base nacional comum curricular, além de sua limitada
compreensão do sentido e significado do que seja currículo, ajuda no empobrecimento
do conhecimento, que se torna reduzido à mera competência, e não opera para a vida
qualificada pela cultura, mas para produtivismo econômico, pois toda uma dimensão
ética e estética é alijada do processo educacional (VIEIRA; FEIJÓ, 2018, p. 43).

Nesse sentido, isso se faz também a partir de resposta ao que estudos selecionados e
indicados como referenciais e experiências internacionais trazem como parte de uma revisão dos
conhecimentos já elaborados sobre a formação e que, dentre as evidências, indicam uma
secundarização das didáticas e metodologias e uma formação muito teórica (MEC, 2018;
MEC/CNE, 2019).

De forma perversa, acaba surgindo uma cisão que polariza as questões postas em debate,
criando pares binários em oposição – técnica ou conhecimento, teoria ou prática e que parecem
tratar de uma escolha entre um dos polos e não permite pensar no deslizamento e na ambivalência
que constitui o social. Tal polarização tem a pretensão de estabelecer uma verdade e com Bhabha
(2001, p. 269), é possível afirmar que não há verdade transparente, “as verdades vão sendo
substituídas por verdades que são apenas parciais, limitadas e instáveis. Cada movimento da maré
local revê a questão política do ponto de vista de todas as redes políticas.”

Esse é um ponto importante a ser destacado: a oposição entre teoria e prática desliza para o
que implicitamente se coloca também como outro binarismo posto: política-técnica, o que se
exacerba na ênfase em decisões com base em evidências científicas, que as dotaria então de
racionalidade, a salvo da política, aí alinhadas a posições que não se balizam pela objetividade, lida
como acesso a essência do real.

Sobre a polarização se observa outra: o professor como prático numa esfera que tem como
seu par binário, em oposição, o lugar do teórico, da decisão curricular que dele é subtraída.

Venho defendendo ao longo dos meus trabalhos que fazemos currículo na e com a escola,no
atravessamento de múltiplos contextos que se interconectam e põem em disputa a produção de
sentidos para a prática pedagógica onde currículo, conhecimento, avaliação, entre outros
significantes, são disputados, confrontados, negociados nesses atravessamentos e que caracteriza
essa produção como política, na perspectiva em que me ancoro, política-discursiva. Sendo assim,
não há sentido garantido, mas uma feitura contínua que nos faz pensar no currículo como ato de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

tradução e, como na expressão de Bezerra (2012) que afirma que toda tradução é uma criação, essa
se dá nas invenções e desinvenções que se dão no terreno do indecidível. Essa é uma ideia potente
para pensar a produção curricular que também se dá como reinscrição e deslocamento que
desestabilizam uma ideia de lugar/tempo próprio de produção e exige negociação, que “não é nem
assimilação, nem colaboração. Ela possibilita o surgimento de um agenciamento instersticial que
recusa a representação binária” (BHABHA, 2011, p. 91), o que rompe com um sentido de
causalidade/inevitabilidade, uma vez que essa negociação se dá pela contingência. E a BNC-
Formação tenta – porque é sempre uma tentativa falha – eliminar o que seria contingente.

Outra questão que se observa na BNC-Formação, alinhada à BNCC da Educação básica, é a


defesa de uma visão sistêmica da formação, em regime de colaboração, dando destaque ao papel
central do MEC na coordenação, assentado nas disposições da LDB (art. 8o), mas aparecendo
também como argumentação a necessidade dessa articulação em países federados, sublinhando,
com base em análises comparativas com experiências de outros países também federados, que os
governos subnacionais – dos entes da federação – têm autonomia e podem criar uma pluralidade de
possibilidades e inovações, mas isso também impõem-se como desafio na construção de
referenciais vistos como esforço para a construção de consensos. Tal indicativo pode ser lido como
“evidência”, me apropriando da linguagem que perpassa a construção da BNC-Formação, que essa
é uma tentativa de conter essa pluralidade e proliferação de sentidos para a docência.

Das muitas inferências possíveis de serem feitas, quero pôr em destaque uma questão que
subliminarmente se põe na BNC construída, numa articulação com a ideia de direito de
aprendizagem que sustenta toda a discussão que fundamenta a proposição de bases: a noção de
direito que, objetivado e possível de ser descrito, garantirá justiça, no caso, a justa qualidade ao
ensino.

Ou seja, o direito de aprender se coloca como marco regulatório da ação docente e tendo em
vista que há a definição clara e precisa do que ensinar, há então a definição clara e precisa do que se
trata a ação docente. De certa forma, a BNC-Formação, ao flertar com tal perspectiva, poderia
transmutar-se em possibilidade de operar como estratégia de assunção de uma lógica restritiva e que
fere a autonomia docente, regulando e impondo interditos à prática docente.

Essa é uma operação discursiva que se dá no deslizamento de significantes, principalmente


sobre a ideia de direito, que tomado de forma objetificada, é coisa a ser adquirida e aí transforma-se
em preditividade. Há que discutir que sentidos de direito se colocam, a partir da advertência de
Bhabha (2013, p. 201):
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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...

É importante dar conta da nossa incapacidade de prever como, onde ou quando


haveremos de conquistar os nossos direitos; além disso, é necessário que se abstenha
de indicar qualquer discurso preditivo baseado em um plano geral transcendental ou
teleológico (tradução livre).

O texto de referência apresentado em 2019 e a própria resolução aprovada pelo CNE tratam
dessa questão de forma oblíqua, indicando o direito como foco/marco que baliza princípios de
formação, organização curricular dos cursos de formação e, de forma interessante, explicitamente é
mencionado no detalhamento das competências específicas da matriz proposta para a formação, na
dimensão do conhecimento profissional: “Dominar os direitos de aprendizagem, competências e
objetos de conhecimento da área da docência estabelecidos na BNCC e no currículo” (BRASIL,
2019, p. 23).

Direito objetificado; direito como lei que se impõe, e aí a força da lei, fazendo referência a
Derrida (2010), que permite o delineamento do direito como via de acesso à justiça, mas uma
justiça que, ao reforçar o mesmo, o comum, o sentido de igualdade como mesmidade, afasta-se, se
assim for possível, do sentido de justiça e se configura como normatização impositiva, na força da
lei.

A ideia da força, a partir do diálogo com Derrida, também pela inferência posta no subtítulo
de uma de suas obras – Força da Lei – fundamento místico da autoridade – traz importante
perspectiva de problematização. Nessa obra, o autor distingue direito e justiça, afirmando que o
direito é da ordem do calculável e que o direito como justiça, não é justiça. Tem a ver com
determinações, com “ficções legítimas sobre as quais se funda a verdade da sua justiça”
(DERRIDA, 2010, p. 22). Discute que a instituição de um direito não tem fundamento em si, mas
tem a ver com a força/ violência do seu êxito performativo e um apelo à crença, sob a qual se erige
sua autoridade. Para Derrida, a noção de místico põe em xeque a ideia de autoridade fundada em
essências/verdades uma vez que o princípio da contradição que sustenta a racionalidade objetiva em
termos de é – não é se desfaz no que o autor traz como jogo, lance de inscrição que, em sua
imprecisão e impossibilidade de predição, mantém a indecibilidade. Ao mesmo tempo, nos permite
entender que o investimento na transparência do direito como justiça é uma tentativa de conter a
proliferação de sentidos possíveis, de regular a própria força performativa que também a constitui
sem fundamento. Assim, a questão do limite – do que está fora/dentro, próprio/não próprio se esvai,
na leitura de Derrida, mantém aindecidibilidade entre real e ficção dada a impossibilidade de
fundamento sem álibi do real da realidade (HADDOCK-LOBO, 2013).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Ao trazer a perspectiva derridiana para o esse jogo, ponho em destaque para o necessário
investimento no debate, na problematização e na exposição de argumentos que permita refutar
binarismos imobilizantes e das primazia de evidências objetivas sobre as quais a BNC-Formação
versa e diz se apoiar, como se isso a revestisse de uma aura de inevitabilidade e certeza que
fundamenta a autoridade de suas proposições e a possibilidade de dizer de forma assertiva e
objetiva o que é a docência unificada.

“Diferença” aparece na BNC-formação nas formas e funções do que Derrida chama de


“mesmice”. No entanto, como Derrida também nos ensina, não é possível controlá-la totalmente –
ela aparece e é criada também no fluxo de enunciados curriculares

Nessas políticas, o que observamos é que não se leva em conta o que, nos termos de Bhabha,
é o “enquanto isso” – uma sucessão sem sincronia, uma ambivalência que destaca liminaridade e as
possibilidades de divergir. Mesmo que a normatividade não normalize tudo e todos, mesmo que não
faça dos “muitos” como “o único”, ela ainda se normaliza em maior ou menor medida. Ainda
apaga. É por isso que discutir/problematizar ou, a partir dos aportes com os que opero, desenvolver
estudos desconstrutivos funciona como uma ação política responsável. Afinal, se no começo havia
uma pedra no meio do caminho, retomo a pedra, mas para pensar que ainda que seja pau, pedra,
resto de toco.não é o fim do caminho, é passo, é ponte, é promessa de vida...i que se faz no
embate/debate democrático.

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POLÍTICAS CURRICULARES, FORMAÇÃO DE PROFESSORES, (IM)POSSIBILIDADES FORMATIVAS E...

REFERÊNCIAS

BEZERRA, Paulo. A tradução como criação. Estudos avançados, [s.l.], v. 26, n.76, p. 47-56, 2012.

BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001.

BHABHA, Homi. O Bazar global e o clube dos cavalheiros ingleses. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

BRASIL. Resolução n. 2, de 1º de julho de 2015. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial
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licenciatura) e para a formação continuada. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 124, p. 8-12, 2 jul. 2015.

BRASIL. Resolução n. 2, de 20 de dezembro de 2019. Define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação
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da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, n. 247, p. 115-119, 23 dez.
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Notas de fim

i
Faço referência à letra de “Águas de Março”, canção de Antônio Carlos Jobim.

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AVALIAÇÃO E CURRÍCULO:
DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA
INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

Sandra Zákia Sousa


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Este ensaio traz considerações sobre avaliação e currículo da escola básica com foco em
iniciativas do governo federal, implementadas no Brasil, que tendem a se materializar, de modo
mais articulado, com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Preparado como
apoio para apresentação no simpósio “Políticas de Currículo e de Avaliação para a Educação
Básica: quais caminhos?”, integrante da programação do XX Encontro Nacional de Didática e
Prática de Ensino, condensa elementos que pretendem caracterizar, em suas linhas gerais, caminhos
que vêm sendo trilhados em avaliação e currículo no âmbito de políticas educacionais, apontando
para possíveis desdobramentos no que tange à regulação da educação básica.

A vertente a ser explorada é a potência dessas ações em consolidarem o governo da


educação básica por meio da gestão por resultados, cujos critérios de julgamento e padrões
esperados são definidos e aferidos por instâncias externas à escola, subsidiando propostas de
criação de incentivos que se associam aos resultados obtidos. Na área educacional, as avaliações em
larga escala e o estabelecimento de currículos nacionais são expressão de padrões da administração
pública que se alinham à crença de que o controle por resultados e a meritocracia se constituem
dispositivos de gestão promotores da qualidade dos serviços públicos.

Em textos anteriores, de nossa autoria ou coautoria, tomou-se esse debate como nuclear. São
escritos que reúnem evidências de que usos de resultados das avaliações em larga escala, com
frequência, a situam como instrumento privilegiado de ação pública (LASCOUMES; LE GALÈS,
2012) na gestão educacional (SOUSA, 1997; MAZZOTTA; SOUSA, 2000; SOUSA;OLIVEIRA,
2003; SOUSA, 2009; SOUSA; LOPES, 2010; BONAMINO; SOUSA, 2012; SOUSA, 2013;
SOUSA, 2014; SOUSA, 2018; TRIPODI; SOUSA, 2018).

Não é recente o empenho do Estado brasileiro em conduzir avaliações educacionais, com


iniciativas registradas desde os anos 1930 (FREITAS, 2007; COELHO, 2008). Entretanto,
avaliações em larga escala, nos moldes em que hoje se realiza o Sistema de Avaliação da Educação
Básica (Saeb), que tomam como principal indicador de qualidade o desempenho de estudantes em
testes, elaborados e aplicados externamente às escolas, se realizam desde os anos 1980. Nessa
perspectiva, são referências exemplares testagens conduzidas no âmbito do Programa de Expansão
e Melhoria do Ensino no Meio Rural do Nordeste Brasileiro (EduRural) (III Acordo MEC/BIRD) e
do Projeto Monhangara (V Acordo MEC/BIRD), direcionado à melhoria das quatro primeiras séries
do ensino fundamental, em área urbana, nas regiões Norte e Centro-Oeste. Com características
distintas, nos anos finais da década de 1980, sob a liderança de Júlio Jacobo Waiselfisz, foi

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AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

estruturada, pelo Ministério da Educação, a proposta de um Sistema de Avaliação do Ensino


Público de 1º Grau (Saep)i, feição inicial do Saeb.

As razões declaradas pelo Estado, desde os anos 1930, para fazer uso da avaliação no
governo da educação básica nacional, são diversas, o que é explorado em Freitas (2007, p. 72-73).
Em síntese, a autora destaca:
Nos anos 1930 e 1940, os motivos para “medir, avaliar e informar” foram enunciados
em termos de necessidade e importância de o Estado conferir e verificar resultados
frente a objetivos da educação nacional, aplicando a ciência para “formar a
consciência técnica” no âmbito escolar, posto que condição necessária à expansão e à
melhoria da educação. No período 1950-1963, o motivo principal declarado foi o de
instrumentar a reconstrução da educação nacional, consoante ao princípio de
promoção de autonomia no setor educação, devido ao que “medir, avaliar e informar”
seriam meios para “conhecer a realidade”, fazer “diagnósticos”, com vistas a que o
Estado central, em lugar de acentuar a regulação legal, pudesse fornecer “indicações e
sugestões” para a qualificação da expansão do atendimento, da administração escolar e
do ensino. No período 1964-1984, os motivos para “medir, avaliar e informar”,
decorrentes da lógica técnica e econômica que orientou o planejamento centralizado
do desenvolvimento nacional, ressaltavam a instrumentação da racionalização, da
modernização e da tutela da ação educacional no País. Desde os anos 1985, os
motivos declarados reportaram-se às tarefas de reajustar a regulação estatal e de criar
uma cultura de avaliação no país.

Há que se assinalar que a noção de “cultura de avaliação” que vem sendo apregoada desde
meados da década de 1980, pautada nos moldes em que usualmente vêm sendo conduzidas as
avaliações em larga escala no Brasil, não é nova. Ela vem reiterar e fortalecer uma cultura de
avaliação há muito presente na escola, que se pauta na ideia da “avaliação como medida de
conhecimento, com fins classificatórios” (SOUSA, 2010, p. 107).

Contudo, a partir de meados de 1990, especialmente com o marco institucional da “Nova


Gestão Pública”, cujos princípios, em alguma medida, são incorporados à administração federal,
bem como positivados em um conjunto de leis e à própria Constituição Federal ii, a avaliação em
larga escala passa a se tornar um novo modo de se estruturar as relações entre Estado e sociedade,
em termos educacionais, sustentada por uma concepção de regulação ou governação próprios.

Valendo-se de sua capacidade de barganha e consequente indução de políticas, a União


torna-se exitosa no processo de difusão de lógicas avaliativas em larga escala nas unidades

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

subnacionais, com princípios e delineamentos semelhantes aos assumidos pelo governo federal.
Estudos recentes registram 23 unidades federadas com avaliações próprias, além do Distrito Federal
e a criação de Índices de Qualidade em dez desses estados (SOUSA, 2013; MACHADO;
ALAVARSE; ARCAS, 2015; PERBONI, 2016; SOUSA; KOSLINSKI, 2017).

Nos municípios, além da adesão aos exames elaborados pelas instâncias federal e estadual,
se verifica o desenvolvimento de propostas próprias de avaliação em larga escala. Conforme
resultados de survey (BAUER et al., 2016), em que se coletou manifestações de gestores de 4.309
municípios do país (77,4% do total), 30% dos municípios contavam com iniciativas próprias de
avaliação e 21% indicaram intenção de implantar uma proposta própria de avaliação. (BAUER et
al., 2017, p. 5).

Assim como a instituição de avaliações em larga escala, em relação ao currículo, aqui


tratado como o que é prescrito em nível macroiii, orientações e normas em âmbito nacional não são
recentes. Lopes (2018, p. 24) assinala a existência de uma detalhada normatização curricular no
país: “diretrizes, parâmetros, orientações, documentos municipais e estaduais vêm circulando com
significativa força principalmente nos últimos vinte e cinco anos”. Essas referências, antes da
homologação da BNCC, aliadas à implantação das avaliações externas e em larga escala, já vinham
se constituindo como fortes indutores de currículos unificados. Como observou Barretto (2013, p.
140), ao tratar de relações entre o currículo e a avaliação,
A tendência a unificar ou a padronizar as prescrições de currículo tem-se multiplicado
entre as redes de ensino e elas tendem a precisar com maior ou menor detalhe o que
deve ser ensinado em cada ano escolar ou ciclo, prescrevendo formas de abordagem e
de avaliação dos processos de aprendizagem. Aumenta, portanto, o papel regulador do
Estado sobre o currículo planejado e o executado, o que ocorre por meio do currículo
avaliado, e é conseguido, em algumas redes de ensino, com o auxílio de prêmios e
sanções sob a forma de bônus às escolas e seus profissionais.

Do mesmo modo, o estudo conduzido por Brooke e Cunha (2011) registra que resultados
das avaliações em larga escala vinham sendo utilizados, dentre outros propósitos, para que redes de
ensino implantassem um “currículo oficial”.

Portanto, há que se indagar sobre motivações que levaram à proposição de uma Base
Nacional Comum Curricular, que define competências e habilidades, bem como conteúdos,
chamados “objetos de conhecimento”, no caso do ensino fundamental, por meio da padronização do
“que os estudantes devem aprender na Educação Básica, o que inclui tanto os saberes quanto a

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AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

capacidade de mobilizá-los e aplicá-los” (BRASIL, 2017, p. 12), desconsiderando diretrizes e


proposições já vigentes em todas as etapas da Educação Básicaiv. Uma resposta plausível é ser
intenção governamental, por meio de mecanismos normativos e administrativos, reafirmar,
recrudescer e consolidar uma lógica de gestão educacional orientada pelo controle de resultados,
por meio dos rumos adotados na avaliação em larga escala e nas prescrições curriculares.

Parece ser nesta direção que Lascoumes e Le Galès (2012) afirmam que a recomposição do
Estado contemporâneo, nas políticas sociais, foi acompanhada da utilização de uma série de
instrumentos de ação pública, que se interagem e se articulam, orientadas particularmente pelo
princípio da escolha racional e da microeconomia clássica, empregados à gestão pública. Não
parece ser outra, senão, a relação de instrumentação que se estabelece entre a utilização de
avaliação externa, padronização curricular e foco em gestão por resultados. Para os autores, a
instrumentação da ação pública nada mais é do que:
[...] o conjunto dos problemas colocados pela escolha e o uso dos instrumentos
(técnicas, meios de operar, dispositivos) que permitem materializar e operacionalizar a
ação governamental. Trata-se não somente de compreender as razões que levam a se
reter certo instrumento muito mais que outro, mas de considerar igualmente os efeitos
produzidos por essas escolhas (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012, p. 20).

Nesse sentido, com a padronização curricular, se fortalece o uso da avaliação enquanto


instrumento de gestão educacional. Com bases detalhadamente especificadas, permite ao poder
público o estabelecimento de metas a serem alcançadas pelas escolas e a associação de prêmios ou
punições aos resultados obtidos, consolidando-se a regulação das práticas educativas no interior das
escolas.

A questão a ser problematizada são as características preponderantes nos delineamentos


avaliativos, em especial no uso de seus resultados, que tendem a se acentuar com a homologação da
BNCC. Pesquisas conduzidas em diversos contextos do país têm reiterado, dentre outros efeitos
dessas propostas, o empenho de gestores em induzir as escolas à conformação dos currículos
escolares ao que é estabelecido nas matrizes das avaliações e, consequentemente, “cobrado” nas
provas. Empenho nessa direção, não raras vezes, é acompanhado de medidas de caráter competitivo
que abarcam a atribuição de mérito a professores, escolas e redes de ensino; o escalonamento de
dados de desempenho do qual resultam classificações; o predomínio de dados quantitativos na
análise dos fenômenos educacionais e a avaliação externa desconectada da avaliação interna
(SOUSA, 2009).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A BNCC foi construída, entre os anos 2015 e 2018v; as versões I e II do texto definiram
“direitos e objetivos de aprendizagem” enquanto a versão final, aprovada e vigente, define
“competências e habilidades” (Resolução CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017 e Resolução n.
4, de 17 de dezembro de 2018). Não se trata apenas de nomenclaturas, o que já demandaria muito
debate. Há também implicações importantes para a avaliação das aprendizagens.

Aqui, mais uma vez se explicita a indissociabilidade entre currículo e avaliação e,


principalmente, a incidência que a avaliação pode ter sobre o currículo. A mudança não é retórica,
ela impacta diretamente o “modelo” de avaliação subjacente, uma vez que a BNCC não define, nem
orienta como seria a avaliação capaz de reunir evidências de aprendizagens.

Quando as definições curriculares são entendidas como direitos e objetivos a serem


garantidos ou alcançados por docentes, escolas e sistemas de ensino para todos os estudantes é
possível projetar uma avaliação ampla, que além de verificar se as aprendizagens estão
evidenciadas nos desempenhos dos estudantes, verifica também as condições para que esses
desempenhos possam refletir a qualidade da educação oferecida. Por outro lado, quando essas
definições são expressas em termos de competências e habilidades estas só podem ser conferidas
pelos resultados apresentados por cada um dos sujeitos-estudantes, a partir das suas possibilidades.

Essa mudança na concepção de currículo anuncia qual avaliação deve se realizar, colocando
a ênfase apenas no sujeito da aprendizagem; reforçando-se todos os elementos para a manutenção
das avaliações externas e em larga escala, descontextualizadas e voltadas exclusivamente para a
aferição de resultados.

Na interpretação de Dourado e Siqueira (2019, p. 295), a afirmação de uma Base Nacional


Comum Curricular pode ser considerada um
[...] tipo de reforma que toma o currículo e o conhecimento como objetos de regulação
social e, no caso brasileiro, por meio de reducionismo do processo formativo,
ratificado a partir da defesa de um discurso centrado em competências e habilidades
que, além de não atender ao horizonte legal do Plano Nacional de Educação (PNE),
que advoga direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, é prescritivo e
padronizador.

Oportuno assinalar que a existência de avaliações em larga escala e diretrizes curriculares


nacionais não implicam, necessariamente, em adoção da perspectiva que se assenta no recurso a
mecanismos de quase mercado para a gestão educacional (SOUSA; OLIVEIRA, 2003).
Concordando com Machado e Alavarse (2015, p. 76),

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AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

[...] não se trata de desprezar as avaliações e tão pouco seus resultados, cabe, antes,
analisar os processos avaliativos, objetivando compreender seus limites e ressaltar
suas potencialidades, principalmente aquelas que podem contribuir com a construção
de alternativas pedagógicas para as políticas e as escolas cumprirem suas funções
junto à sociedade democrática, no sentido de oferecer educação pública de qualidade
para todos seus alunos e alunas.

No entanto, o sentido preponderante que vem assumindo as avaliações nas políticas


educacionais tem propiciado a difusão de uma visão de qualidade da educação que se restringe ao
domínio de dados sobre a assimilação de conteúdos e a demonstração de habilidades,
“consequentemente, a qualidade da educação passa a ser identificada com resultados positivos nos
exames nacionais e internacionais e o currículo torna-se cada vez mais dirigido pelas avaliações”
(LOPES, 2018, p. 27). Índices calculados com base no desempenho de alunos em provas,
permanência e aprovação escolar passam a ser tomados como expressão de qualidade, sem que se
considere o contexto de sua produção. Como diz Oliveira (2018, p. 56):
Sem negligenciar a relevância desses indicadores para se auferir a qualidade do
ensino, a exclusividade deles como medida evidencia desconsideração das condições e
circunstâncias distintas que enfrentam professores e alunos nas escolas brasileiras; da
pluralidade social, cultural e econômica do país, bem como de outros fatores
inapreensíveis por meio de exames e índices.

O que se põe, no limite, em questão é o projeto de educação e de sociedade que se está


afirmando. Shiroma e Evangelista (2011, p. 144) afirmam:
Um projeto para educação de um país não pode se limitar à perseguição de índices e
metas; ao contrário, precisa explicitar a que projeto de sociedade se vincula. Ações
que pretendem mudar resultados ou índices sem considerar e investir na melhoria das
condições materiais para que sejam produzidos podem ser inócuas para a relação
ensino-aprendizagem, mas são bastante eficazes para operar profundas reorganizações
no interior das instituições educacionais – competição, concorrência, segmentações
são efeitos da implantação dessa avaliação que produz rankings.

Além desses limites, cabe reiterar que estabelecer padrões de desempenho e implantar
mecanismos de concorrenciais e de incentivos, com base em resultados de testes, para induzir a
melhoria da qualidade da educação, tem como fundamento a aceitação da desigualdade entre os
resultados educacionais o que é inconciliável com o compromisso de educação de qualidade para
todos, suscitando o acolhimento e legitimação da desigualdade escolar e social (SOUSA, 2010),
pois “políticas educacionais formuladas e implementadas sob os auspícios da classificação e seleção
200
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

incorporam, consequentemente, a exclusão, como inerente aos seus resultados, o que é incompatível
com o direito de todos à educação” (SOUSA, 2009).

Afirmar a urgência do confronto com proposições que acolhem a desigualdade educacional,


supõe trazer ao debate a noção de diferença, distinguindo seus sentidos. Barros (2018) examina as
noções de desigualdade e diferenças, em articulação com o conceito de igualdade, destacando, ao
finalizar o artigo, que:
[...] o combate à desigualdade deve partir, antes de mais nada, de uma compreensão
muito clara e precisa sobre o que é propriamente a desigualdade – nos sentidos
filosófico, sociológico, antropológico, histórico... humano. Também temos a questão
das diferenças e das lutas pela afirmação das diferenças, ao lado do combate às
desigualdades sociais que se entrelaçam com determinadas diferenças, sejam étnicas,
etárias, sexuais, entre outras. Compreender aquilo que distingue desigualdade e
diferença é também crucial. Conforme vimos, um estudo mais sistemático das relações
e possíveis interações entre desigualdade e diferença nos vários meios sociais e
tempos históricos – e em âmbitos tão diversos como sexualidade, nacionalidade, etnia,
religião, educação – podem permitir que se compreenda melhor como os sistemas de
dominação, os mais sutis ou os mais explicitamente cruéis, valem-se frequentemente
de deslocamentos diversos entre os âmbitos da desigualdade e da diferença, forçando a
leitura de um como se fosse o outro, de modo que possa melhor exercer a dominação.

É pertinente esta problematização, dado o potencial da BNCC e das avaliações em larga


escala conformarem uma dada visão de qualidade, que abarca a seleção de temas e conteúdos que
devem – ou não – integrar o trabalho escolar e, sob o argumento de garantia de patamares iguais de
qualidade de ensino para todos, excluírem, não apenas conteúdos, mas, sim, cidadãos.

Macedo (2017), ao analisar a agenda do movimento Escola Sem Partido, manifesta no


processo de discussão da BNCC, realça suas demandas conservadoras que deslocam “o jogo
político no sentido do controle que exclui a diferença ao mesmo tempo em que torna explícita essa
exclusão.” (p. 509). Em sua crítica, a autora registra que as demandas apresentadas pelo movimento
em relação ao “conteúdo” da BNCC apontam
[...] menos para o que deve fazer parte do currículo do que para o que deve ser
excluído, para que a escola possa “atender a todos”. As exclusões citadas
explicitamente se referem a demandas político-partidárias, raciais, de gênero e de
sexualidade. O potencial dessas exclusões para deslocar as articulações sobre a BNCC
é preocupante, na medida em que elas focam diretamente demandas de grupos

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AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

minoritários – de raça, gênero e sexualidade – que, ainda timidamente, têm


conquistado algum espaço (MACEDO, 2017, p. 517).

A defesa do posicionamento da Escola Sem Partido ganha respaldo do governo federal com
a eleição de Jair Bolsonaro para presidente. Sob um discurso de conduzir as políticas “sem viés
ideológico” (NEHER, 2019)vi, recurso discursivo reiterado por integrantes de seu governo,
incluindo-se Ricardo Vélez Rodriguez, que inicialmente assumiu o Ministério da Educação e o seu
sucessor ministro Abraham Weintraub, difundem e defendem uma concepção de educação e de
mundo ultraconservadora e antidemocrática, que reflete uma ideologia de extrema direita.

Tratar dos graves ataques e iniciativas governamentais que ameaçam a democracia, o Estado
de Direito e a educação pública extrapola o escopo deste texto. No entanto, a menção a esse
arcabouço político e ideológico vigente no país é necessária, dado que tende a trazer graves
consequências na seleção do “conteúdo” a ser legitimado pelas avaliações. Não se trata de
elucubração.

São ilustrativas as reações e ações em relação ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
Ao comentar uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio de 2018, sobre “dialeto secreto de
gays e travestis”, o então candidato a presidente Jair Bolsonaro afirmou que, a partir do ano
seguinte, iria tomar conhecimento do conteúdo do Exame antes da aplicação da prova. Em uma de
suas entrevistas, à época, disse: “Uma questão de prova que entra na dialética, na linguagem secreta
de travesti, não tem nada a ver, não mede conhecimento nenhum. A não ser obrigar para que no
futuro a garotada se interesse mais por esse assunto. Temos que fazer com que o Enem cobre
conhecimentos úteis” (FSP, 2018).

Na primeira edição do Enem sob o governo Jair Bolsonaro, em 2019, a prova não incluiu
qualquer questão relativa à ditadura militar (1964-1985), o que ocorreu pela primeira vez desde que
a prova adquiriu o atual formato (PINHO; MAIA; MOREIRA, 2019). Ao ser indagado sobre as
razões da ausência de questões sobre a ditadura militar no Brasil no Exame, o ministro Abraham
Weintraub disse que o objetivo do teste “não é polemizar” e a questão da ditadura não está
“pacificada” (AGÊNCIA ESTADO, 2020). A propósito, lembra-se que o Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais, por meio de Portaria, constituiu uma Comissão para “realizar
leitura transversal dos itens disponíveis no Banco Nacional de Itens” para a montagem das provas
do Enem desta edição, com o objetivo de “verificar a sua pertinência com a realidade social, de
modo a assegurar um perfil consensual do Exame” (BRASIL, 2019).

202
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Outro caminho apontado pelo presidente para incidir nos currículos escolares e nas
avaliações é efetuar alterações nos livros didáticos. Em recente declaração, afirmou que os livros
didáticos têm “muita coisa escrita” e que é preciso “suavizar” o material pedagógico. Anunciou:
“Em 2021, todos os livros serão nossos. Feitos por nós. Os pais vão vibrar. Vai estar lá a bandeira
do Brasil na capa, vai ter lá o hino nacional” (VARGAS, 2020).

Nesse cenário, a pressão exercida pela avaliação externa sobre a escola se mantém, assim
como os traços da gestão por resultados, que incita a competição e a meritocracia, mas, agora,
ancorados em um contexto ultraconservador de ataque ao caráter público da educação. É certo, no
entanto, que as propostas estabelecidas não se enraízam no cotidiano escolar “por decreto”. O
currículo vivido pelas escolas, por meio da atuação e interação dos profissionais, alunos e pais,
nunca é a pura expressão do que está prescrito. Há disputas, no cotidiano escolar, de projetos de
educação e de sociedade.

É preciso insistir e lutar para que esses mecanismos, especialmente aqueles decorrentes da
assimilação do princípio da eficiência, introduzido ao texto constitucional, sejam estabelecidos
sobre bases democráticas e não se apartem de um princípio maior que é o da justiça social.

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AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 205


AVALIAÇÃO E CURRÍCULO: DELINEAMENTOS E TENDÊNCIAS DE UMA INTERAÇÃO NA GESTÃO DA EDUCAÇÃO

TRIPODI, Zara Figueiredo; SOUSA, Sandra Zákia. Do governo à governança: permeabilidade do Estado a lógicas
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VARGAS, Mateus. Bolsonaro diz que livros didáticos tem muita coisa escrita e pede estilo mais suave. São Paulo:
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WAISELFISZ, Jacobo. Sistemas de avaliação do desempenho escolar e políticas públicas. Ensaio: Avaliação e
Políticas Públicas em Educação, Rio de Janeiro, Cesgranrio, n. 1, p. 5-22, dez. 1993.

Notas de fim

i
Ver WAISELFISZ, Jacobo, 1993 e 2016.
Ver a EC n. 19/1998, que altera o art. 37 da CF, introduzindo o princípio da eficiência na administração pública. No
ii

mesmo artigo, os incisos e parágrafos trazem os instrumentos e ferramentas que levariam ao alcance desta eficiência.
Esse tratamento não dá conta de uma concepção ampla de currículo, compreendido como o conjunto de proposições,
iii

práticas e interações que se realizam no âmbito escolar, que extrapola a definição de objetivos, conteúdos e habilidades,
estabelecidos para serem trabalhados no processo educativo. Como diz Alves (2014, p. 1478), “os currículos – no plural
– são formados por aquilo que os docentes e discentes fazempensam nas salas de aula de cada escola brasileira”.
iv
A definição de conteúdos mínimos, assim como a avaliação dos sistemas são de prerrogativa legal da União,
conforme art. 210 da CF e art. 9˚ da LDB. A questão que se coloca é como a União passa a implementar esta
prerrogativa legal.
v
Primeira versão em 2015, segunda versão em 2016 e versão final em 2018, aprovada com manifestações contrárias das
Conselheiras Márcia Angela da Silva Aguiar, Aurina Oliveira Santana e Malvina Tania Tuttman (ver AGUIAR, 2018).
vi
Clarissa Neher, em matéria intitulada “Bolsonaro e a ideologia”, publicada em 19/01/2019, trata de modo sintético e
elucidativo essa questão. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/bolsonaro-e-a-ideologia/a-47053263. Acesso em:
21 jan. 2020.

206
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO
PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

Walkiria Rigolom

Se a história é um garimpo, a memória é a bateia que revolve o cascalho do passado e


busca dados preciosos para continuar nossa luta.

Paolo Nosella
DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O objetivo do presente artigo é analisar as repercussões das tensões, contradições, bem como
as perspectivas de insurgências nos fazeres-saberes pedagógicos, a partir da retrospectiva da
trajetória profissional de uma professora alfabetizadora ao longo de mais de três décadas como
docente na Educação Básica da rede pública estadual paulista. Deste modo, pretende-se discutir os
desafios da ação educativa diante dos rumos das transformações empreendidas pelas políticas
educacionais, levando-se em conta os vínculos com a lógica gerencialista que têm permeado a
esfera educacional brasileira nas últimas décadas.

Para tanto, o referencial deste artigo ancora-se, dentre outros, em Norbert Elias (1897-1990),
sociólogo alemão pautado na sociologia dos processos. Seu construto teórico de interpretação
sociológica apoia-se no conceito de processos sociais, que pode servir à análise aqui proposta, haja
vista que se refere a amplas e contínuas transformações, nos oferecendo a possibilidade analisar
inter-relações complexas, por meio do conceito de interdependências entre os indivíduos, que unem
os sujeitos de uma figuração.

Para Elias, todo grupo social, como os docentes, por exemplo, constitui figurações
específicas, tecidas a partir das inter-relações que estabelecem. É importante ressaltar que a noção
de figuração construída pelo autor surgiu de sua crítica a uma teoria social que dissociava indivíduo
e sociedade, desconsiderando as dependências mútuas que se alteram e que modificam também as
relações de poder nelas instituídas, e que, na perspectiva elisiana, toda relação humana envolve
poder. Dessa maneira, evidencia-se o caráter relacional do poder em uma série de disputas que
emergem no cotidiano da escola.

Na obra “Os estabelecidos e os outsiders” (2000), Elias e Scotson ajudam a entender as


figurações e as distinções constituídas, por exemplo, na esfera do trabalho, considerando as relações
de poder que se estabelecem entre eles, pois se trata de uma estrutura de pessoas que se orientam
mutuamente, em torno de uma mesma atividade, sendo dependentes umas das outras, assim como
no caso dos professores.

Norbert Elias, a partir de sua teoria, nos fornece importantes contribuições que podem servir
inclusive às investigações dos fazeres-saberes pedagógicos, nos auxiliando na percepção e
compreensão das tensões, contradições, perspectivas e possíveis insurgências que se impõem à
dimensão didática do trabalho docente e sua relação com os rumos da Educação, envolvendo assim
as práticas sociais, pedagógicas e políticas. Como afirma Le�
o (2007, p. 10): “No campo dos
estudos educacionais, o trabalho de Norbert Elias abre caminhos para a compreensão da formação
dos indivíduos e suas implicações com as apropriações dos objetos de cultura”.
208
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

Nesta perspectiva, o autor centra o foco na relação entre as ações individuais e os processos
sociais, que, para ele, são inseparáveis, “dessa interdependência contínua resultam
permanentemente transformações de longa duração na convivência social, que nem um ser humano
planejou e que decerto também ninguém antes previu” (ELIAS, 2006, p. 31). Desta forma, este
referencial – que permitiu a busca pela superação das polarizações comuns nas interpretações de
cunho sociológicos – instituiu a possibilidade de unidade entre o desenvolvimento processual e o
figuracional, que se tornam importantes ferramentas para análise, tanto das estruturas individuais
quanto das ações sociais, apreendendo o que une os indivíduos uns aos outros e evidenciando que
possíveis singularidades se originam nas figurações sociais e vice-versa.

Embora a proposta deste artigo não seja tecer uma análise de longa duração em torno dos
saberes e fazeres pedagógicos, contamos com este referencial, a fim de buscar compreender o
constante o processo de organização e de reorganizaçãoda prática pedagógica que não pode ser
compreendida por meio de uma ótica exclusivamente tecnicista e/ou metodógica, desarticulada da
função social da escola e de sua ação educativa, mas que precisa ser pensada a partir de processos
sociais mais amplos e complexos.

Elias salienta que todas as profissões – como a docência – ou ocupações, se constituem, de


certa forma, independentes dos indivíduos que a praticam num determinado tempo, podemos então
aventar que as mudanças ocorridas nos fazeres-saberes docentes não se devem unicamente às ações,
experiências ou aos pensamentos de um professor, isoladamente, mas de um coletivo de
profissionais, assim como das condições objetivas a que estes estão submetidos. Neste sentido, as
práticas pedagógicas nos remetem �noção de habitus forjada na teoria elisiana, pois, com a
incorporação de normas relativas ao trabalho pedagógico, os modos, comportamentos e ações
engendradas vão sendo introjetados, no interior de uma cultura pedagógica expressa nos modos de
ensinar, ou seja, traduz-se nas metodologias, nas concepções, nas ações cotidianas, e vão aos
poucos se naturalizando, o que dificulta muitas vezes, a superação de práticas conservadoras,
seletivas e excludentes.

Assim, forma-se uma espécie de tradição, que, por sua vez, torna-se um hábito, efetivando
uma espécie de modus operandi, que só poderá ser superado por meio do fortalecimento de um
processo coletivo e dialógico de reflexividade crítica, participativo e democrático.

Isso posto, este artigo contará com a retomada da trajetória profissional de uma professora
(autora deste texto) com mais de três décadas de experiência na educação pública, nos anos iniciais
do Ensino Fundamental, atuando em região periférica da capital paulista e analisará a partir de seu

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DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

percurso profissional as tensões, contradições, desafios e insurgências possíveis, visando a romper


com o modus operandi, bem como os hábitos instaurados na prática pedagógica de professores que
atuam nesse segmento de ensino. Empreender um olhar mais amplo sobre uma trajetória de vida
profissional favorece o processo de reflexividade crítica, pois como afirma Gatti (2003, p. 196), é
preciso considerar:
[...] eventos mais amplos, sejam sociais, políticos, econômicos ou culturais, com seus
determinantes que perpassam a vida grupal ou comunitária. Sabemos que a interação
desses fatores molda as concepções sobre educação, ensino, papel profissional, e as
práticas a elas ligadas, concepções e práticas estas que, por sua vez, são
estruturalmente delimitadas pela maneira que as pessoas se veem, como estruturam
suas representações, como se descrevem, como veem os outros e a sociedade à qual
pertencem.

Vale ressaltar, por esse motivo, que dada a natureza discursiva do texto de cunho crítico-
memorialístico, optou-se pelo emprego de seu registro em primeira pessoa.

DORMI CRIANÇA E ACORDEI ALUNA: A PRIMEIRA ESCOLA

A recordação mais antiga que tenho da escola é a de que ela surgiu em minha vida como
uma rival. Este fato se deu quando meu único irmão, mais velho do que eu, deixou, aos meus olhos,
de ser criança, para tornar-se aluno.

De repente, me percebi sem ele. Quando indaguei minha mãe sobre sua ausência ela
respondeu: “Ele foi para a escola”. Eu não entendi e pensei: “Nossa!? Que lugar será este?” Só tive
a possibilidade de conhecer tal espaço três anos depois. Naquele momento, em plena infância,
nunca me ocorreu que minha vida se enraizaria tão profundamente nesta instituição e, tampouco,
que parte de seus conflitos, desafios, alegrias, tensões e contradições seriam, de alguma forma,
também meus, no decorrer de minha trajetória de vida.

Neste espaço escolar, produzido historicamente, instituíam-se relações sociais nunca


vivenciadas antes pelos meus pais, para quem a escola não fora uma alternativa, já que passaram
praticamente toda a infância e juventude na “roça”. Porém, para eles, que conseguiram chegar até o
3º ano primário sob duras penas, poder escolarizar os filhos representava uma possibilidade de
superação das condições de vida às quais eles haviam se submetido. Como afirma Gilberto Velho
(1986), para a grande maioria dos brasileiros, a escola foi a instituição que mais gerou expectativas

210
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

nas famílias em relação ao que fora possível fazer por parte de pais e avós. Como afirmam Castro e
Regattieri (apud BRASIL, 2009):
No mundo familiar as crianças são filhos; no mundo escolar elas são alunos. A
passagem de filho a aluno não é uma operação automática e, dependendo da distância
entre o universo familiar e o escolar, ela pode ser traumática.

Em meados da década de 1970, eu e meu irmão íamos para a escola a pé, andávamos cerca
de 25 minutos, em ruas ainda sem asfalto, em um bairro de trabalhadores da periferia da zona leste
paulista. Ao chegar à antiga 5ª série, construíram na frente da minha casa uma escola pública
estadual e lá passei a estudar.

Meu pai foi um trabalhador rural vindo do interior em busca de trabalho em São Paulo,
como tantos outros, tornou-se metalúrgico e conseguiu trabalhar toda sua vida em uma única fábrica
no bairro da Mooca, tal qual Enrico, na obra A corrosão de caráteri de Sennett (2006). Trabalhava
sem queixar-se, tendo sua subjetividade capturada pelo mundo do trabalho, seu tempo rotinizado de
forma quase frenética, tanto que chegou a passar dez anos sem férias, já que vendia todas elas para
poder ganhar um pouco mais e construir, ele mesmo, aos finais de semana, a nossa casa. Minha mãe
não trabalhava fora. Essa foi a configuração inicial que forjou minhas primeiras interações com a
escola, durante um período histórico em que o país estava sob um regime militar.

MAGISTÉRIO: “NASCE” UMA PROFESSORA

Refletindo sobre minhas expectativas a respeito do que eu poderia ser ou fazer


profissionalmente, desejei, em um primeiro momento, ser jornalista e quem sabe escritora, mas logo
cedo percebi que isso não seria possível, dadas as condições objetivas da minha família e nossa
cotidianidade peculiar à classe trabalhadora. Diante do conflito estabelecido entre o desejo e a
necessidade, a alternativa única na época foi a de buscar uma rápida formação para o trabalho, e
assim, o Magistério foi a única opção.

Ao término do antigo ginásio, me matriculei em outra escola estadual, situada cerca de uma
hora de caminhada da minha casa. Cursei o Magistério de Nível Médio, em 4 anos, com habilitação
para atuar como docente tanto na Educação Infantil, quanto nas séries iniciais do Ensino
Fundamental. Contudo, minhas incursões como professora começaram muito antes, com base no
ensaio e erro, ancorada fortemente nas matrizes pedagógicas que havia experimentado, na condição
de aluna, até então. Os saberes e fazeres pedagógicos praticados em sala de aula, como professora-

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DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

estagiária, eram cópias repaginadas de minhas experiências como aluna, sem qualquer reflexão ou
rigorosidade metódica.

Assim, mesmo antes de me formar, eu já ministrava aulas em uma escola pública estadual,
substituindo os professores que faltavam ou que tiravam licença, na escola em frente à minha casa.
Desde aquela época já não havia professores substitutos suficientes nas escolas de bairros
periféricos. Dessa forma, a entrada da carreira ocorreu estritamente ligada ao processo de
precarização da profissão docente, pois atuava voluntariamente, sem qualquer orientação, apoio ou
condição para fazê-lo. Hoje, percebo de forma bem mais nítida o peso das condições objetivas de
trabalho e da formação inicial na organização do trabalho pedagógico no começo de minha carreira.

Como havia me inscrito para fazer o meu estágio obrigatório na mesma escola onde havia
sido aluna, a direção da escola tomou como hábito me chamar cada vez que faltava uma professora
ou um professor. Em média, dava aulas pelos menos 3 vezes por semana no período da manhã, sem
nenhuma remuneração e antes da idade permitida por lei, 18 anos. Não posso aqui deixar de
expressar as contradições que permearam a constituição de minha profissionalidade desde o início,
que em sua origem esteve extremamente associada à noção de missão, de cuidado, dedicação e
doação.

Hoje, percebo que minha própria formação, no Magistério, contribuiu para uma
representação equivocada acerca da natureza do trabalho docente bem como da concepção de
docência ancorada numa visão maternal e filantrópica. Além disso, ao tratar de escolas públicas, os
diversos professores que tive, em sua maioria, abordavam a carreira docente na perspectiva
assistencialista e compensatória, na qual educação não era um direito. Minha entrada formal oficial
no magistério ocorreu um ano depois do final do período ditatorial que perdurou por vinte e um
anos. Para Machado (2007, p. 279):
O mundo da educação e da escola, por exemplo, também se vê implicado e permeado
pelas mesmascontingências e contradições; sua história – com as especificidades que
lhe sãopróprias – não transcorre �margem desse processo de mudanças e ajustes na
organização da produção e da gestão do trabalho.

Tomando os professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental como exemplo, é possível
observar que estes formam uma figuração particular, já que “devemos considerar a heterogeneidade
da categoria e suas divisões internas” (ENGUITA, 1991, p. 45), constituindo, assim, uma rede de
interdependência específica, que vai formando diferentes figurações e que são atravessadas pelas
condições sociais, políticas, econômicas e culturais de cada época.

212
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

Nesse sentido, vale a pena ressaltar ainda que, na década em que me formei professora, o
Brasil vivia um processo de universalização da educação, bem como a maioria dos países da
América Latina. Tal processo foi caracterizado por intensa dubiedade, haja vista que, por um lado,
ampliou o acesso à educação, todavia, por outro, instituiu uma educação provida, em grande parte,
de conhecimentos simplificados e compreendidos por Sampaio (2002) como mínimos. Desse modo,
a universalização impôs novos impasses à política educacional, já que o acesso à educação não foi
acompanhado por ações econômicas, políticas e pedagógicas que permitissem às camadas populares
conhecimento capaz de contribuir para a mobilidade social.

Conforme apontam Biccas e Freitas (2009), na atualidade, são incontáveis os discursos que
buscam legitimar a ideia de que o Brasil é: “um país assentado em desigualdades em decorrência da
escola pública que fizemos, quando, na verdade, fizemos a escola pública que fizemos, justamente
porque fizemos um país assentado em desigualdades, por vezes gritante” (BICCAS; FREITAS,
2009, p. 31).

A precariedade da formação inicial, no Magistério, se expressava, também, na própria


matriz curricular. Depois do primeiro ano básico, as estudantes (grande maioria de mulheres)
daquele curso não tinham mais disciplinas como Inglês, Química, Física, Biologia. Em
contrapartida, outras áreas, como Matemática, Língua Portuguesa, Artes, História, Geografia e
Ciências Naturais eram tratadas apenas no âmbito da didática do ensino e contemplando apenas os
conteúdos dos anos iniciais do ensino fundamental.

Por outro lado, o enfoque didático-pedagógico era abordado para que tivéssemos condições
de iniciar a carreira conhecendo de alguma forma alguns dos procedimentos e rotinas da sala de
aula. Percebo, ainda, o quanto a falta de politização, aliada a uma formação inicial insuficiente me
levou a compreender, inicialmente, a minha profissão como um sacerdócio, uma missão, muito
mais apoiada nos vínculos emocionais estabelecidos com as crianças, do que na dimensão política e
intelectual da docência.

Quando me matriculei no magistério, em 1983, o primeiro governador de São Paulo, eleito


após a ditadura, André Franco Montoro, naquele momento instituía na rede pública estadual
paulista o Ciclo Básicoii que deu início a uma série de mudanças que eu viria a vivenciar ao longo
da minha carreira como professora, como, por exemplo, a criação e o fechamento da Escola Padrão,
a separação das escolas de Ciclo I das de Ciclo II e Ensino Médio, mudanças na carga horária
escolar, instituição da Progressão Continuada a implementação de avaliações externas, a instituição
da Escola de Tempo Integral, a inserção da cultura meritocrática (bonificação por resultados, prova

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 213


DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

de mérito), mudanças das matrizes curriculares, alterações nas formas de gestão e organização do
trabalho docente, entre tantas outras.

Desta forma, pude sentir os efeitos da também chamada “re���ú


o na produtividade do
serviço público”, anunciada pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (doravante
SEESP), por meio das diretrizes educacionais defendidas na primeira gestão do governo Mário
Covas (1995-1998), que tinha à frente da Secretaria de Educação a Professora Teresa Roserley
Neubauer da Silva.

Neste período, a política educacional, segundo a própria SEESP teria como finalidade
garantir uma “revoluç�
o na produtividade dos recursos públicos, que em última instância deverá
culminar na melhoria da qualidade do ensino” (SÃO PAULO, 1995, p. 303), e promovendo um
amplo processo de reforma na educaç�
o paulista, intitulado “Escola de Cara Nova”. Esta política
aportava inicialmente dois grandes objetivos: o primeiro era a necessidade de aumentar a
produtividade do trabalho docente, e o segundo, mudar os padrões de gestão do sistema
educacional.

Ao concluir o curso, em 1986, ingressei na 3ª maior categoria profissional do país no


cômputo dos empregos formais de acordo com dados da RAIS de 2006, perdendo somente para a
categoria de escriturários que ocupava o primeiro lugar com 15,2% e pela categoria dos
trabalhadores da área de serviços, que ocupavam na época o segundo lugar com 14,%. 8,4% do total
de empregos registrados neste período eram ocupados por professores em âmbito nacional
(BRASIL, 2009).

Na mesma escola onde atuava como professora substituta voluntária, ao me formar, assumi,
logo de início, turmas de reforço. Este modelo de ação, ao longo de mais de três décadas, teve sua
nomenclatura alterada, de reforço, para grupo de apoio, recuperação paralela. Tal ação era a
alternativa oferecida aos estudantes que apresentavam as maiores dificuldades no processo de
aprendizagem, e justamente essa turma era atribuída sempre aos professores sem os conhecimentos
necessários, sem qualquer formação específica. Assim, sem a experiência e os saberes necessários,
me encontrava com crianças que há anos tentavam alfabetizar-se, e confesso que, como elas
também me sentia à deriva.

Estas primeiras experiências impulsionaram a construção de uma trajetória profissional


forjada no campo da alfabetização. Alfabetizar passou a ser o conteúdo principal da atividade que
exercia. Aqueles meninos e meninas, que tinham em média de 9 a 13 anos, já traziam consigo o
estigma de serem analfabetos. Eu me identificava com eles, devido à sensação de abandono e vazio.
214
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

Diante daqueles olhares esquivos e semblantes tristes passei a investir muito do meu tempo
“privado” no preparo de aulas, atividades, procurando com professores mais experientes
alternativas que os ajudassem a superar aquela condição. A primeira sala que me foi atribuída em
meu primeiro ano como professora formada tinha um total de 49 crianças. Havíamos optado por
fazer uma espécie de triagem das crianças-acreditando na falácia das classes homogêneas.

Ainda na década de 1980, ganharam vulto as pesquisas acerca de taxas de rendimento e


fluxo escolar, os altos índices de abandono e reprovação nas séries iniciais desencadearam estudos
sobre o chamado “fracasso escolar”. As ditas “dificuldades de aprendizagem” chamaram atenção de
diferentes campos de conhecimento, como: a Medicina, a Psicologia, as Ciências Sociais e,
posteriormente, a Psicopedagogia, entre outros, que buscavam novos construtos teóricos que
permitissem analisar os dados estatísticos considerados alarmantes.

Diante deste panorama, o Magistério rapidamente tomou conta do meu tempo, como afirma
Linhart (2007, p. 43): “o trabalho é o grande ordenador do tempo. Ao impor sua própria duraç�
o,
ele anula, apaga o tempo que o indivíduo dedica a si mesmo”.

A opção pelo trabalho docente fez com que grande parte de minha vida privada fosse
permeada pela vida profissional. Muitas noites e finais de semana eram tomados pelo planejamento,
organização e busca de atividades e/ou projetos que pudessem ajudar os estudantes a aprenderem
mais e melhor. Certeau afirmava que “�medida que se adquire experiência, o estilo se afirma, o
gosto se apura, a imaginaç�
o se liberta.” Entretanto, diante da complexidade dos desafios
enfrentados cotidianamente em sala de aula, sobretudo nos fazeres e saberes pedagógicos, novas
angústias, dúvidas e contradições sempre se ampliavam em maior medida do que as alternativas
para sua superação.

DOS FAZERES AOS SABERES: A FORMADORA

Depois de atuar por mais de 18 anos como alfabetizadora, sempre na mesma unidade
escolar, onde até hoje estou lotada, tive a oportunidade de me tornar formadora, em um programa
de formação continuada de professores alfabetizadores. Pela primeira vez teria de enfrentar, de
forma mais direta, os embates metodológicos de forma mais aberta e sob uma nova perspectiva e
também enfrentar os meus pares que já não me viam da mesma forma. Ao abordar as disputas de
poder, Elias (1980, p. 80) afirma que:
O equilíbrio de poder não se encontra unicamente na grande arena das relações entre
os estados, onde é frequentemente espetacular, atraindo grande atenção. Constitui um

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 215


DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

elemento integral de todas as relações humanas. [...] também deveríamos ter presente
que o equilíbrio de poder, tal como de um modo geral as relações humanas, é pelo
menos bipolar e, usualmente, multipolar.

Assumir essa nova posição exigia o enfrentamento dos desafios do caráter relacional e,
assim, precisaria desenvolver um conhecimento muito mais aprofundado não só sobre os fazeres e
saberes docentes. Esse deslocamento de professora para formadora me trouxe novas angústias e
contradições. Em contrapartida, também me possibilitou observar os nós mais recorrentes da prática
educativa na educação pública.

A alternativa encontrada para lidar com os novos desafios foi justamente de retomar os
estudos, investir no que Mills denomina como “artesanato intelectual”, buscando aprimorar meus
saberes. Voltei a estudar, agora pela primeira vez adentrando ao Ensino Superior, realizando um
movimento assim como muitos outros colegas professores, que por terem apenas o antigo curso do
magistério, buscaram a mesma formação, agora no ensino superior.

Somente quinze anos depois de ter concluído o curso de Magistério, tive a oportunidade de
ingressar no curso de Pedagogia, uma vez que consegui conciliar o trabalho em dois turnos: na
escola estadual e numa escola particular de Educação Infantil, tendo as condições financeiras
necessárias, além de duas filhas. A alternativa possível foi frequentar uma faculdade privada que
ficava próxima a uma das escolas onde trabalhava, pois assim conseguia chegar a tempo nas aulas
do período noturno.

O curso de Pedagogia contribuiu para que eu me aprofundasse teoricamente em conteúdos


que não haviam feito parte do curso de Magistério. Principalmente no tocante às disciplinas de
fundamentos da educação, como História da Educação, Sociologia da Educação, Filosofia da
Educação. Porém, devo confessar que, não respondeu a um sem número de inquietações, sobretudo
no que diz respeito às metodologias de ensino que me ajudassem a atuar como formadora de
professores alfabetizados.

Esta mudança, trouxe em seu bojo inúmeras questões que implicavam na necessidade de
análises mais aprofundadas, posto que, pela primeira vez, me distanciaria da escola para atuar no
campo da formação continuada de professores. Neste período de minha vida profissional tive
oportunidade de conhecer outras professoras, já que a totalidade das turmas para as quais ministrei
o referido curso, eram compostas por mulheres que, como eu, tinham inúmeras dúvidas, angústias e
queixas e que, preocupadas com aqueles alunos que não conseguiam se alfabetizar, viam no curso a
possibilidade de encontrar alternativas para que eles avançassem em suas aprendizagens. As
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

expectativas que elas alimentavam sobre o curso, ampliavam minhas angústias, já que o mesmo não
possibilitava levar em conta aspectos relativos às condições objetivas de trabalho.

Entendia este processo formativo, em primeiro lugar, como um direito das professoras,um
espaço de diálogo e estudo coletivo entre docentes que compartilhavam suas dúvidas, tensões,
desgastes e problemas muito similares. Por este motivo, este ambiente de compartilhamento
experimentado na formação, segundo as professoras participantes do curso, era o que faltava em
muitas escolas, razão pela qual, a meu ver, esse processo formativo de longa duração (3 semestres,
com encontros semanais presenciais de três horas) tivesse alcançado tanta repercussão no âmbito
estadual, sendo um curso bem avaliado pelos participantes.

Elias, traça uma boa analogia ao observar a dança para reiterar a noção de figuração ao
remeter-se à mobilidade das figurações que se submetem �aç�
o conjunta dos que a praticam, ou
seja, as relações de interdependência s�
o inseparáveis do equilíbrio das tensões que engendram o
processo de figuraç�
o: “[...] as mesmas figurações podem certamente ser dançadas por diferentes
pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos reciprocamente orientados e dependentes, n�
o há
danças” (ELIAS, 1994, p. 249). É difícil romper com as figurações instituídas, todavia, essas
figurações não são estáticas, elas se alternam, como na dança, em diferentes formas, modos e
ritmos. Desta forma, ações cotidianas podem promover formas de insurgências, sobretudo quando
podemos contar com o trabalho coletivo e com a convergência de ações de engajamento
profissional.

Neste sentido, as ações de formação continuada trouxeram possibilidade de insurgência, ou


seja, oportunizavam aos grupos de professores romper com prática pedagógicas conservadoras,
permitiam, de certo modo, forjar novas formas de resistência frente aos índices de evasão,
reprovação, bem como instituíam no grupo opções de alternativas de enfrentamento frente ao
processo de culpabilização docente, muitas vezes engendrado implicitamente no discurso oficial e
extraoficial da Secretaria de Educação do Estado paulista.

No decorrer dos encontros de formação era possível perceber o quanto muitas das
professoras cursistas se culpabilizavam individual e exclusivamente, pelo fato dos alunos e alunas
não terem alcançado as expectativas definidas para as suas turmas pela Secretaria de Educação.
Essa “culpa” gerava um sentimento intenso de incapacidade, de incompetência e desqualificaç�
o
profissional.

Era possível perceber que elas haviam internalizado o discurso da responsabilização


amplamente propagado pela SEESP, e que, de certa forma, capturava a subjetividade daquelas

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 217


DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

mulheres. Diante deste cenário, decidi retornar à universidade, agora como pesquisadora. Retornar à
Universidade, agora como pesquisadora em um curso de pós-graduação – Mestrado, me ajudou a
tomar distância da minha atividade profissional, tanto como formadora como professora,
possibilitando o exercício de reflexão crítica sobre a prática docente. Foi muito importante poder
contar com a pesquisa. Naquele momento, o retorno à universidade me possibilitou um reencontro
com a docência e com meus saberes e fazeres.

POR QUÊ? PARA QUÊ? COMO? A PROFESSORA E SEU ENCONTRO COM A PESQUISA

Ao iniciar a pesquisa, vivi todo o conflito e angústia que poderia, haja vista que em minha
constituição identitária habitava a aluna, a professora, a formadora e a pesquisadora. Entretanto, a
percepção das contradições nos discursos político-pedagógicos, nos embates metodológicos, as
relações de poder, apesar dos documentos tratarem sobre a formação de um plantel de formadores
da própria rede, o que na realidade acontecia era o pagamento de institutos, e até mesmo de
especialistas independentes, que disputavam os projetos de formação e que desqualificavam todo o
trabalho feito pelos professores que atuavam na rede estadual de ensino.

A pesquisa revelou que, a despeito do discurso oficial da formação continuada como um


espaço de aprimoramento, apreendia-se que ela se constituía também como uma ferramenta para o
controle do trabalho docente, ou seja, observou-se durante a pesquisa que os processos formativos
tinham como objetivo central principalmente fornecer informações para o refinamento das formas
de controle do trabalho docente.

Se, por um lado, adentrar à universidade como pesquisadora me possibilitou instituir


algumas formas de insurgências, ao compreender melhor as possibilidades e limites da ação
formativa investigada, pude repensar, junto ao próprio grupo de formação, uma série de aspectos
que eram tratados no curso de forma padronizada, sem considerar as especificidades que compunha
cada unidade escolar, cada equipe e até mesmo cada sala de aula.

Depois de ter atuado por 18 anos consecutivos em sala de aula, essas experiências
possibilitaram aprofundamento acerca da organização do trabalho docente e das políticas de
formação continuada destinadas a professores alfabetizadores.

O conflito gerado pelos deslocamentos vivenciados como aluna, professora, formadora de


professores, pesquisadora entre tantas experiências aqui relatadas, foi o que justamente impulsionou
a realização da minha pesquisa de Mestrado, ainda que tenha sido um processo complexo e difícil.

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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

As dificuldades vividas durante o Mestrado foram inúmeras. Por um lado, porque não me
afastei das minhas atividades profissionais. Contudo, foram elas que me permitiram elaborar as
análises realizadas a partir da produção das informações que resultaram na dissertação. Por outro
lado, trabalhei com diferentes procedimentos de coletas de informações: análise documental,
entrevistas e filmagens de aulas desenvolvidas pelas professoras participantes da pesquisa, que
fizeram com que o processo de elaboração do trabalho fosse complexo, exaustivo, mas ao mesmo
tempo, muito enriquecedor.

Após o Mestrado, segui repensando a validade de minhas práticas e do meu envolvimento


político com a minha própria carreira, na medida em que percebi que “todo estudioso está sempre
engajado nas questões que lhe atraíram atenção, está sempre engajado, de forma profunda e muitas
vezes inconscientemente, naquilo que executa” (MILLS, 2009, p. 7).

Entretanto, a incursão pelo mestrado em Educação pela PUC/SP no Programa de Psicologia


da Educação, sob a orientação do Prof. Dr. Sergio Vasconcelos de Luna trouxe-me novas
inquietações, que ultrapassavam a dimensão da formação continuada, fazendo emergir aspectos da
própria profissão. Realizei todo o Mestrado trabalhando, inicialmente na escola, depois na Diretoria
de Ensino, na “oficina pedagógica”como era denominado na época.

A conclusão do Mestrado em 2007 coincidiu com outro convite, desta vez para atuar na
Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP), antigo órgão da SEESP. Fui compor a
equipe responsável por implementar na rede estadual um novo Programa de Alfabetização,
denominado Ler e Escrever. O curso de Mestrado contribuiu fortemente para o fortalecimento da
minha formação inicial, sobretudo acerca das questões relativas à formação continuada e que de
certa forma também envolvem a tríade Estado, sociedade e educação.

Esta nova jornada aportou também novas indagações, na mesma medida em que ampliou
significativamente meus horizontes profissionais. Essa experiência na SEE proporcionou uma maior
compreensão da gestão, do planejamento e dos processos de avaliação externa da educação no
sistema de ensino público paulista e suas interseções com a política nacional de educação.
Principalmente, permitiu conhecer as relações entre o trabalho no âmbito da secretaria de educação,
das Diretorias de Ensino e nas escolas, e as formas como a política educacional determinava a
organização do trabalho nestas instâncias repercutindo diretamente no planejamento, na gestão das
escolas estaduais.

Durante este período em que atuei na CENP, tive a oportunidade de acompanhar de perto a
implementação do referido programa, o que possibilitou observar como as políticas educacionais

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DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

ganhavam materialidade, por meio de Programas e Projetos que repercutiam diretamente na


organização do trabalho de professoras e professores e demais profissionais da educação,
promovendo intervenções diretas em sala de aula, ampliando, algumas vezes, o processo de
precariedade e intensificação do trabalho docente.

Nesta perspectiva, a noção de precariedade surge em dois sentidos, na precariedade objetiva


decorrente diante da flexibilização nas relações de trabalho, mas também conduziram a fenômenos
mais complexos e abrangentes que a socióloga francesa Danièle Linhart denominou como
precariedade subjetiva (2009). Tal noção diz respeito às pressões sofridas para alcance de metas, à
sensação de não saber exercer sua profissão dadas as exigências incompatíveis com sua
compreensão sobre o que venha ser a educação.

Diante do surgimento de novas indagações que demandavam maior conhecimento sobre a


dimensão e constituição do trabalho docente e das políticas educacionais, resolvi seguir no campo
da pesquisa. Desta vez, parti para estudos mais aprofundados no campo das ciências sociais na
educação.

O Doutorado em Educação na Unicamp me permitiu ampliar meus conhecimentos em torno


dos efeitos das ações de formação continuada, das avaliações externas e da lógica gerencialista no
trabalho docente de professores alfabetizadores. O Doutorado realizado na linha das Ciências
Sociais me auxiliou também a entender e reconhecer as formas de captura da subjetividade que
muitas vezes acomete os profissionais da educação e de certa forma facilita a aderência destes aos
projetos implantados pela administração pública, dificultando iniciativas de insurgência.

A tese de Doutorado permitiu ampliar meu olhar acerca do trabalho docente e dos efeitos
das políticas empreendidas a partir dos anos 2000 na rede pública estadual paulista. A pesquisa
corroborou ao que afirma Nóvoa sobre os rumos que a Educação tem trilhado com o:
[...] regresso de ideologias que afirmam a possibilidade de atribuir funções docentes a
pessoas que tenham notório saber de uma dada matéria, como se isso bastasse,
também contribui para o desprestígio da profissão.

A partir do segundo ano do Doutorado, solicitei uma licença sem vencimento, para poder
concluir o curso. Logo que a tese foi defendida, retomei o trabalho na escola, na mesma escola onde
me efetivei em 1989, pois me pareceu necessário retomar o trabalho em sala de aula, justamente
para tentar empreender as insurgências possíveis, em busca de uma educação pública, laica, gratuita
e de qualidade social para todos.

220
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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

DE VOLTA AO COMEÇO: O REGRESSO À EDUCAÇÃO BÁSICA

Regressar à escola, por um lado, foi uma grata satisfação, poder voltar a conviver com as
crianças dos anos iniciais, rever amigos, antigos alunos, alguns inclusive agora como pais de
alunos, retomar o trabalho docente me impunha novos desafios e me trazia grandes esperanças.
Entretanto, nem tudo foi flores. Muitos ironizavam o fato de, depois de tanto estudo e pesquisa, eu
ter retornado a lecionar no ensino fundamental, nos anos iniciais, como se fosse um demérito. Isso
era compreendido, por alguns pares, como uma forma de fracasso.

Durante um tempo, enfrentei várias indiretas e colegas que ironizavam o meu retorno à sala
de aula. Mas, com o tempo, foi possível reconstruir vínculos com meus pares. Foi possível ir aos
poucos desfazendo alguns equívocos, lançando alguns questionamentos à equipe gestora, propondo
novos caminhos junto com a equipe. A chegada de outros professores, que tinham outras vivências,
como a militância sindical, outros estavam na pós-graduação, esses outros vínculos destes
profissionais também fomentaram um processo de fortalecimento do coletivo. Os momentos
coletivos foram aos poucos se tornando novamente momentos de estudo, de compartilhamento de
experiências, de angústias.

Tive o apoio de muitos colegas e juntos fomos questionando algumas lógicas. Fomos aos
poucos discutindo e revendo alguns fazeres-saberes. Cada vez mais, o espaço para o diálogo foi se
abrindo. No ano em que retornei à escola, a mesma não havia atingido a meta propugnada pela
secretaria no SARESP. Os profissionais (direção, professores e funcionários) ficaram sem a
bonificação por mérito e isso feriu a equipe profundamente. Não pela falta do bônus em si, mas pelo
que isso representava, por toda a desqualificação do trabalho realizado, pela culpabilização que
implicitamente nos era imputada.

A experiência de voltar à escola, sob essas condições, me fez buscar a unidade teórico-
prática, me instigou a lidar com a realidade de forma ainda mais aprofundada. As novas
experiências foram se constituindo em aprendizagens que fomentaram novos saberes e fazeres. A
necessidade de refletir sobre os processos de formação inicial e/ou continuada, visando a analisar
até que ponto estes priorizam o conhecimento como objeto de estudo, pois como afirma Mills
(2009. p. 9):
O conhecimento é uma escolha tanto de um modo de vida quanto de uma carreira;
quero saiba ou não, o trabalhador intelectual forma-se a si próprio à medida que
trabalha para o aperfeiçoamento de seu ofício.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 221


DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A análise de Tardif, neste momento, ganhou ainda mais concretude em nosso cotidiano
escolar, percebíamos de forma cada vez mais nítida como o campo da formação de professores é
mesmo um fenômeno complexo e multifacetado, diante de saberes tão plurais e heterogêneos:
Os saberes profissionais dos professores parecem ser, portanto, plurais, compósitos,
heterogêneos, pois trazem à tona, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e
manifestações do saber-fazer e do saber-ser bastante diversificados e provenientes de
fontes variadas, as quais podemos supor também que sejam de natureza diferente
(TARDIF, 2003, p. 61).

Aos poucos, as formas de insurgência foram se constituindo em inúmeras interconexões das


contribuições teóricas, o tempo dedicado às atividades profissionais na escola, das relações com
professores, coordenadores, gestores, com os pares, com a comunidade escolar, com observação das
inúmeras expectativas que permeiam a dimensão educacional.

AS FORMAS DE INSURGÊNCIA: ALGUMAS (IN)CONCLUSÕES

Neste percurso, no decorrer de tantas décadas dedicadas ao trabalho docente na escola


pública, pude identificar alguns princípios, que podemos tomar como ferramentas de ruptura e que
possibilitam algumas alternativas de insurgência, quais sejam: relação dialógica, conhecimento
político, científico, engajamento com a educação laica, gratuita e pública. Vale a pena salientar de
forma especial os momentos coletivos que incentivaram nossa curiosidade crítica, bem como o
engajamento com a comunidade na qual a escola se insere, a busca contínua pela legitimidade do
trabalho docente, a ajuda a evitar a desqualificação social da profissão e a renúncia à concepção de
sacerdócio, de assistencialismo, de enfraquecimento da escola como espaço de construção de
conhecimento.

Outra dimensão importante que foi uma grande lição aprendida, que sigo perseguindo, é a
questão do conhecimento didático-metodológico, tanto para a dimensão da minha prática
profissional, quanto como campo de conhecimento. Mais do que aprofundar meus conhecimentos
em metodologias e práticas de ensino, tenho percebido o quanto retomar o conhecimento como um
grande objeto agregador e transformador, aliado ao engajamento na luta pela Educação como um
Direito de todos(as), pode ser a melhor forma de insurgência na busca pela qualidade social da
educação.

Em contrapartida, muitos aspectos dificultam as possibilidades de insurgência. Dentre eles


podemos citar, por exemplo, as clivagens entre os docentes que provocam o esfacelamento do

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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

trabalho coletivo. Essa clivagem instituiu diferentes categorias de professores entre os não efetivos
estabelecendo diferentes formas de contratação, que faz com que tenhamos, além das diferentes
formas de contratação precarizadas, as condições de trabalho precárias em que muitos docentes
efetivos se encontram, dentro da própria carreira. Além disso, a desvalorização do Magistério.

Dessa forma, vão se forjando ainda mais clivagens, entre os efetivos e contratados, entre
professores iniciantes e os “mais experientes”, entre os que trabalham em escolas centrais e os que
trabalham nas periféricas, entre os que trabalham em escolas de tempo integral e os que trabalham
em escolas de tempo reduzido, em entre os que alfabetizam e os demais, pedagogos e especialistas,
etc. Conforme afirma Rigolon (2013, p. 110):
Há os professores estabelecidos (os efetivos) e os outsiders (n�
o efetivos),
instaurando-se, assim, entre esses profissionais, uma clivagem remarcada pela falta de
concursos e contratações de temporários, devido �
s diferenciações nas formas de
contrataç�
o.

Assim, poderia afirmar, utilizando a teoria elisiana, que, ao longo de mais de três décadas,
na maior parte do tempo, estive aos lados dos outsiders.

Neste momento em que temos de lidar com tantas investidas contra a Educação, como
Escola Sem Partido, com moralismo conservador, ausência da ética, desqualificação do campo
científico, patrimonialismo e gerencialismo, temos sentido mais fortemente os efeitos da
precariedade subjetiva que segundo Dani�
le Linhart, socióloga francesa do trabalho:
�o sentimento de n�
o ter ajuda em caso de problemas graves de trabalho, nem do lado
dos superiores hierárquicos [...] nem do lado dos coletivos de trabalho que se
esgarçaram com a individualizaç�
osistemática da gest�
o dos assalariados e o estímulo
�concorrência entre eles. �um sentimento de isolamento e abandono (LINHART,
2009, p. 3).

As últimas mudanças no campo educacional têm exercido novas pressões, angústias e


tensões cotidianamente, conduzindo a um processo de sofrimento que corrói o coletivo de
professores, dificulta as relações dialógicas, uma escuta atenta e respeitosa a todos os segmentos
envolvidos na esfera educativa.

Uma das formas de seguirmos em frente, portanto, requer de nós associar ao exercício da
denúncia das coisas que não vão bem, a coragem para ousar fazer coisas novas, seguir acreditando
que é possível lutar por uma sociedade menos desigual, mais justa por meio da educação pública. E
no cenário atual, na base da insurgência, está a disponibilidade para trabalhar coletivamente, para

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DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

ver e ouvir os outros, apesar de todo o movimento que incita e valoriza o individualismo e a
competitividade. Neste sentido, que possamos juntos, como categoria profissional, seguir buscando
novas formas de insurgências.

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AS MÚLTIPLAS (CON)FIGURAÇÕES DA AÇÃO PEDAGÓGICA: INSURGÊNCIAS POSSÍVEIS

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 225


DIDÁTICA (S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Notas de fim

i
Nesta obra, Richard Sennett, sociólogo e historiador americano, nos desafia a analisar se a flexibilização do
capitalismo moderno oferece condições melhores condições para organização do trabalho ou se é apenas uma nova
forma de opressão. Para tanto, o autor apresenta uma série de reflexões acerca das novas condições de trabalho que se
impõem, vinculadas ao atual modelo capitalista e pautadas na lógica neoliberal.
ii
O Projeto Inovações no Ciclo Básico (IEB), criado em 1983 passou a vigorar na rede em 1984, visava, segundo a
Seduc/SP, melhorar a qualidade do sistema educacional do Estado. Porém fora planejado, a princípio, para atender
apenas às duas séries iniciais do Ensino Fundamental, 1ª e 2ª séries, conforme denominação à época, com o intuito de
diminuir tanto a repetência como a evasão escolar. Esse projeto abrangia apenas a grande São Paulo, priorizando
escolas em região de baixa renda. Teve o financiamento do Banco Mundial e previa construção e reformas dos prédios
das unidades escolares públicas estaduais, além de oferecer capacitação às equipes de recursos humanos, aquisição de
materiais didáticos e escolares e desenvolver também projetos destinados aos municípios de fomento à Educação
Infantil. O recurso utilizado na implementação desse projeto e concedido pelo Banco Mundial foi da ordem de US$ 245
milhões. O IEB foi alterado em 1995 por Neubauer, que instaurou, tanto nos objetivos quanto na estrutura do programa,
novas medidas e modificações, que ampliaram as atividades financiadas pelo Banco Mundial.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR:
INTERAÇÕES POSSÍVEIS

Andréa Borges de Medeiros


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A narrativa que ora apresento têm o propósito de tecer fios de significado quando entram em
cena, para a construção de bases curriculares para o Ensino Fundamental, no âmbito municipal, a
Escola, o Movimento Social, a Universidade e as equipes de formadores de uma Secretaria de
Educação.

Trata-se de uma tessitura que vai se delineando, para mim, no momento em que, no
exercício de minha participação na gestão pública municipal da Secretaria de Educação de Juiz de
Fora, passo a viver intensamente um processo de reconstrução curricular motivado pelo movimento
para a “implementação” da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Para trazer tal movimento
de interação entre Instituições e Organizações distintas, faz-se necessário retomar a minha
passagem por uma escola pública municipal, onde vivi intensamente a construção de um Projeto
Político-Pedagógico e a experiência com práticas escolares pautadas na valorização da diversidade,
da cultura popular e da promoção da igualdade étnico-raciali.

Desde o final dos anos 1990, a Escola Municipal José Calil Ahouagi iniciou um trabalho
pedagógico articulado com sua equipe de professores, comunidades do entorno e movimento social
(Movimento Negro) envolvendo ações e reflexões em torno de temáticas que abordavam as relações
étnico-raciais. Percepções em torno do ambiente escolar nos levavam a supor que muitas crianças
de ascendência negra negavam sua origem. Enquanto algumas traziam narrativas sobre uma “avó
italiana” que morava, quase sempre, num lugar distante, outras viviam atormentadas pelas
discriminações e preconceitos que sofriam na escola, como também fora dela, motivadas pelos
traços fenotípicos característicos de sua herança afro-brasileira. A grande maioria se calava frente a
situações que as expunha ao preconceito, à discriminação e ao racismo, mas se ressentia. Foi
quando enfrentar a questão nos pareceu necessário para a construção de um tempo/espaço escolar
mais justo e promovedor de equidade nas relações étnico-raciais.

Ao longo de alguns anos, que antecederam a promulgação das Leis n. 10.639/2003 e n.


11.645/2008ii, os registros das experiências escolares com crianças e adolescentes foram
documentados num arquivo de práticas que hoje ainda persiste, o que significa um movimento de
guarda que tem um recorte temporal de 20 anos. Foi nessa construção que se destacou a relação da
escola com o Movimento Negro: nas buscas temáticas e literárias, nos encontros com as crianças e
professores, na participação dos eventos da escola, na elaboração de eventos em parceria para
tratamento dos temas da Educação para as relações étnico-raciais, como também no reconhecimento
do trabalho da escolaiii.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

Em minha pesquisa de Doutorado, optei por buscar a Escola José Calil como campo de
investigação, tendo como foco os movimentos de Memória impactados pela documentação das
práticas escolares e, de maneira mais refinada, buscar os modos de lembrar, de narrar e de ser de um
grupo de crianças do terceiro ano do Ensino Fundamental, com entrada na escola desde a Educação
Infantil.iv

Sob a instigação de uma questão em torno do quê e do como as crianças se lembram, a


experiência de linguagem tomada em seus aspectos de produção de sentidos, num cotidiano que se
reinventa pelos processos de ressignificação do passado, foi amplamente considerada. Privilegiou-
se a habilidade das crianças para os deslocamentos de linguagem interpelados pela sua capacidade
de “produzir semelhanças” (BENJAMIN, 1994, p. 108). Essa habilidade humana de construir
semelhanças se vale da percepção de afinidades que perpassam a vida em movimento. Tais
afinidades, entendidas como um processo de mimetização com o mundo das relações e das coisas,
instigam “correspondências e analogias mágicas”. Assim considerando, a troca nos eventos
discursivos incita a percepção de que as crianças se expressam, nos seus movimentos narrativos,
buscando a “força própria da palavra” (SELIGMANN-SILVA, 1999, p. 103).

Em torno de artefatos culturais de diferentes configurações tais como textos, imagens,


objetos, avaliações escritas, álbuns documentados, desenhos, vídeos e gravações documentados pela
equipe escolar da escola-campo, as crianças se envolveram nas artes de narrar suas lembranças.
Num movimento de síntese alguns achados podem ser apresentados tais como os seguintes: as
crianças lidam com suas lembranças adentrando um fazer memória original, próprio de um olhar
que não se cansa de rever, de voltar atrás naquilo que viu; quando elas se lançam na ação de
rememorar, brincam com as lembranças e as transformam em uma nova morada para a recriação da
linguagem; a lembrança dos acontecimentos passados procede de uma releitura prenhe de marcas
temporais, que promovidas à linguagem se efetuam como uma memória declarativa veiculadora de
sensações de tempo; (re)efetuar o passado pela recordação tem a ver com recursos cognitivos, do
mesmo modo que implica os recursos de criação de imagens para o encontro com o visado como
memória, e para a coisa visada como lembrança; imagens-lembranças são indicadores de produção
de sentidos para a consubstanciação da memória (RICOEUR, 2007).

Ao envolver-se no ato de lembrar, as crianças vivenciam o fenômeno das lembranças das


coisas e acabam lembrando-se de si; a dimensão onírica está presente nas relações de memória, da
mesma forma que o acaso das lembranças; ao valorizar os detalhes, as crianças se tornam hábeis
para refazer os percursos das lembranças e encontrar outras configurações de memória; ao partilhar

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

recordações, as crianças percebem também o que se perde. Diferentemente do esquecimento,


perceber o que se perde é dar-se conta da presença da falta. No entanto, elas demonstram alegria por
esta lembrança: a da falta. Surge então uma espécie de renúncia ao objeto perdido como garantia de
reconciliação. O devir da memória feliz se encontra então com uma imagem que é poética e por isto,
nas crianças, a memória ressentida pode sucumbir ao riso e à brincadeira; as crianças transformam
lembranças em designação, criam sentidos semânticos para a memória; modos de ser na linguagem,
melhor dizendo, modos de narrar, implicam em modos de ser no tempo e nas relações de memória
(RICOEUR, 2007).

Para além da especificidade dos objetos da cultura e das culturas infantis projetadas nos
espaços de brincar naquela escola, os enredos puderam ser interpretados como alegorias, e,
portanto, como conteúdos que muitas vezes se referiam a um cotidiano que envolvia diferentes
temporalidades, o que acabou apontando questões que se tornaram plausíveis para pensar uma
cultura de escola possível. Como aqueles enredos ali constituídos, na materialidade dos objetos que
interagiram com as crianças no contexto da pesquisa, poderiam se tornar potentes para uma
experiência histórica? Como pensar a cultura daquela escola em relação às práticas de memória
vivenciadas? Como relacionar outras culturas de escola e potencializar maneiras de repensar
culturas escolares, currículos e programas?

Tais questões se tornaram uma inquietação para mim, bem como para aquela equipe escolar
desde o término da pesquisa. A relação com a Universidade tornou-se mais forte e potente, uma vez
que passamos a receber muitos pesquisadores interessados em investigar aquele espaço de
experiências. Mas uma pesquisadora em particular, a professora Sonia Miranda, orientadora
daquela tese e, posteriormente de outros professores pesquisadores da mesma escola, foi
fundamental para a ampliação das questões acima referidas. Isto porque, para além das parcerias
constituídas no âmbito da pesquisa em torno das práticas escolares que tinham interface com o
Ensino de História, a professora coordenou a equipe de História na reorganização curricular que a
rede municipal propunha nos anos de 2010 a 2012.

Movimentos de Memória provocaram múltiplas performances narrativas e diferentes modos


de lembrar. Como tais práticas poderiam ser pensadas na perspectiva de um currículo que, do ponto
de vista das relações entre ensinar e aprender poderia fortalecer outras práticas e fazeres cotidianos,
instigando uma cultura escolar possível?

230
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

Aberturas de diálogos com os professores daquela escola-campo no tocante à ação de


tomarem para si a tarefa de guardar e conservar as suas produções e as de seus alunos no arquivo da
escola: Guardar para quê? Foi uma questão disparadora de muitos diálogos.

Aberturas de diálogos com professores de uma rede, disparados a partir de uma experiência
que enfrentou o desafio de se efetivar como educação básica tal como propõe Jamil Cury, como
“um momento privilegiado em que a igualdade cruza com a equidade”, como também o de tomar
para si a “formalização legal do atendimento a determinados grupos sociais, como as pessoas
portadoras de necessidades educacionais especiais, como os afrodescendentes, que devem ser
sujeitos de uma desconstrução de estereótipos, preconceitos e discriminações”. Agregando à
construção de conhecimentos significativos, a escola também tem papel socializador (CURY, 2008,
p. 300-301).

Faz-se necessário buscar o fio condutor desse processo amplo de construção curricular,
porque ele acaba se tornando importante no contexto da política educacional da rede municipal de
Juiz de Fora, no tocante, principalmente, à proposta curricular para o Ensino de História. Isto
porque, frente a sua experiência educacional inovadora na busca de metodologias importantes para
promover construções em torno da História e da Memória, a Escola José Calil Ahouagi passou a
desempenhar um papel importante na comunidade educacional quando se expõe relatando e
compartilhando suas práticas e bem como as suas estratégias de mudança curricular na escola. Ela
contribuiu no passado e ainda hoje, com reflexões acerca de perspectivas curriculares e práticas que
garantem a valorização das diferenças e da origem étnico-racial, da cultura popular e das afirmações
de identidades.

O desenho de uma Política Pública se mostra para além dos gabinetes das gestões públicas.
Ele nasce de uma confluência de interesses e necessidades que orientam as opções do Estado, e “são
expressos pelos atores que compõem o todo social”. Nascem, portanto, de processos de “escolhas
sucessivas, que envolvem confrontos, atritos, pressões e contrapressões: nesse processo são muitas
as forças envolvidas” (ABRANCHES, 1987, p. 11). Por isto, as escolhas sobre a elaboração e a
adesão a determinadas políticas educacionais precisa ser pensada, articulada, respeitosa frente ao
trabalho coletivo de profissionais sérios e comprometidos com a Educação.

Já na Secretaria de Educação, em parceria com as equipes pedagógicas e de formação de


professores, fizemos uma escolha frente à instigação por parte Ministério da Educação (MEC) e da
Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais para a implementação da BNCC, e frente à
procura por orientação e esclarecimentos por parte dos profissionais da rede municipal,

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 231


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

principalmente coordenadores pedagógicos e diretores escolares. Decidimos valorizar e trazer para


o debate os movimentos de construção curricular na rede municipal de Juiz de Fora, que ocorreram
nos anos de 2010 a 2012, oriundos da participação efetiva da Universidade Federal de Juiz de Fora,
tanto na coordenação dos grupos de estudo, quanto da redação dos documentos, que atualmente se
encontram organizados por campos disciplinares e pelas especificidades da Educação de Jovens e
Adultos e da Educação Infantil. Significa dizer que a discussão da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC), criou o ensejo para discutirmos noções de currículo, princípios educacionais,
metodologias de ensino, e o protagonismo de bebês, crianças, jovens e adultos nas relações com
suas experiências vividas, o conhecimento e os modos de aprender e se relacionar com o mundo.
Significa dizer que não abrimos mão do diálogo com a Universidade Pública sobre a formação de
professores e a construção de bases reflexivas para as construções curriculares e a formulação de
políticas educacionais inclusivas e promovedores de equidade.

SOBRE A PROPOSTA CURRICULAR DE HISTÓRIA DA REDE MUNICIPAL


DE JUIZ DE FORA

O texto da Proposta Curricular da rede municipal de Juiz de Fora traz, logo de início, uma
questão cara ao Ensino de História: “em que reside o caráter formativo da História, na erudição
formativa ou numa educação histórica baseada nos nexos possíveis que podem ser estabelecidos
entre o procedimento histórico e o saber escolar?”

A abordagem busca desconstruir a perspectiva da Histórica única pautada nas narrativas do


passado em função dos marcos europeus. Tal perspectiva coteja o cotidiano das escolas, como por
exemplo, quando o reforço na abordagem das datas comemorativas se sobrepõe à compreensão das
mudanças e transformações na vida de diferentes sociedades; e quando a perspectiva do culto a
heróis camufla a participação do sujeito ordinário na construção da história.

A proposta curricular, então, sugere eixos conceituais e metodológicos essenciais para a


formação histórica, quais sejam: “a educação para a compreensão do Conhecimento, a educação
para a compreensão do Tempo e a educação para a compreensão da Memória” (MIRANDA;
ALMEIDA, 2012, p. 13).

Sobre o Conhecimento, a reflexão aponta a importância do diálogo com as fontes indicando-


as como construções culturais datadas, que “expressarão sempre a voz de quem as produziu e, nesse
sentido, serão sempre acessíveis de serem contrapostas a partir de outras vozes e outros pontos de
vista” (MIRANDA; ALMEIDA, 2012). Tal entendimento quebra o suposto da verdade como
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

expressão do absoluto e, portanto, como contraposição da mentira. A seleção de conteúdos é, então,


uma forma, entre tantas outras, para se contar uma história. Assim considerando, os conteúdos são
assumidos como recortes parciais que apresentam conhecimentos em transformação. Isto diz
respeito a toda e qualquer maneira de lidar com o Conhecimento, independente da sua matriz
disciplinar.

Um dos grandes desafios da escola em qualquer nível de ensino “é o de promover uma


educação que permita a emergência da compreensão de que no mundo e no processo de produção
de conhecimento operam, permanentemente, diferentes pontos de vista”( MIRANDA; ALMEIDA,
2012, p. 15). Em busca de enfrentar esse desafio, o documento apresenta um conjunto de
habilidades que perpassariam toda a escolarização básica.

No campo do conhecimento histórico, as relações com o passado são importantes para uma
experiência histórica voltada para a compreensão de passado aberto, passível de ressignificações no
presente, e, ao mesmo tempo interpretável do ponto de vista dos sentidos que lá se constituíram.
Enfrentar essa maneira de interpretar um passado, tomado como aberto, requer pensar que os
processos imaginativos que dão voz às inferências e às indagações sobre as fontes nas suas relações
com o passado são válidos na composição dos procedimentos e operações históricas.

Nesse sentido, encenar Mynemosine com objetos e/ou artefatos, quer seja no espaço privado
e/ou público, como a instituição museu e/ou a escola, “tornando diáfana a solidez de seus
testemunhos, pondo em suspensão as histórias, os objetos e palavras de sentido único” (PEREIRA;
SIMAN, 2009, p. 282), pode significar um modo de ensinar sobre as versões da verdade,
necessárias para romper com o paradigma da História única. Implica imaginação, do mesmo modo
que implica o colocar-se no lugar do outro. Desse modo, as maneiras de olhar para o mundo se
ampliam nas relações de alteridade.

O segundo eixo é o da Temporalidade. Chama atenção no texto a afirmação de que as


categorias temporais centrais à compreensão e interpretação históricas, quais sejam, a sucessão, a
simultaneidade e a duração, se estabelecem na condição de existir dos seres humanos. Nessa
condição de existir estão, por exemplo, as práticas culturais que, muitas vezes, indicam modos
distintos de relação com a temporalidade. Segundo os autores, o uso da internet promove marcos
produtores de sentidos de simultaneidade diferentes daqueles que pautaram as gerações anteriores à
era da informática. Um internauta pode ao mesmo tempo acessar vídeos, jogos e sites de
relacionamento. Da mesma forma, outros sentidos podem se construir na relação com práticas
culturais distintas. Dar conta desse aspecto passa a interferir nos recortes em torno dos conteúdos

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 233


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

promovedores de aprendizagens históricas, uma vez que o cotidiano pode proporcionar questões
instigadoras para a construção de diferentes modos de olhar para a contemporaneidade em relação
ao passado, por exemplo. Evidenciar tais práticas pode significar uma mudança significativa no
olhar das crianças e dos jovens para o que acontece no cotidiano em espaços distintos. Tal
procedimento pode ser estruturante para o “desenvolvimento da capacidade de pensar
historicamente” (MIRANDA; ALMEIDA, 2012, p. 51).

Caberia, então, pensar que a noção de simultaneidade se fortalece na percepção da


anterioridade, da contemporaneidade e da posterioridade, o que implica a localização do tempo
físico e a percepção das transformações do tempo histórico, relacionadas às ações humanas em
tempos e espaços distintos. Entretanto há que se considerar a invenção humana comum a ambos.

Quando Ricouer (2010, p. 182) se refere à marcação temporal que define o tempo de
calendário, ele indica que mesmo ela sendo “apoiada nos fenômenos astronômicos que dão sentido
à noção de tempo físico, o princípio da divisão do tempo do calendário escapa a física e a
astronomia”. A percepção da mudança histórica a partir de um ponto do contínuo histórico (ponto
axial) está sujeito a uma fenomenologia do presente, para qual há noção de existir um ontem e
existir um amanhã. Sem isto não seria possível dar o “menor sentido à ideia de um acontecimento
novo que rompe com uma era anterior e inaugura um curso diferente de tudo o que precedeu”
(RICOUER, 2010, p. 182). Tal perspectiva seria fundamental para a noção de tempo histórico e a
isto se acrescenta o entendimento da duração que está vinculada ao pensamento matemático no que
diz respeito à construção da noção de número. Esta habilidade, que não é somente histórica,
“permite-nos olhar não só para o tempo presente, mas também para tempos outros, já vividos, e
pensar em suas durações e ritmos comparativamente” (MIRANDA; ALMEIDA, 2012, p. 52).

O destaque para as práticas que instigam aprendizagens em torno das dimensões de


sucessão, simultaneidade e duração, está posto sob dois aspectos: o primeiro se refere à
sistematização dos modos de trabalhar com as noções temporais, mantendo um fluxo de
problematização de conhecimentos ao longo da escolarização e não somente em momentos pontuais
da apresentação dos conteúdos escolares. O segundo se refere à construção com as crianças da
noção de mudança no sentido de abordar o tempo físico como fruto de uma construção social, na
relação com outras configurações de temporalidade, além da coexistência de tempos históricos
diferentes num mesmo período cronológico.

Nessa concepção de História, em que a relação presente e passado se torna o foco


privilegiado das reflexões e dos procedimentos históricos, a memória, “como tradição artesanal,
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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

afetiva, múltipla e vulnerável” assume papel importante (GALZERANI, 2008, p. 227). Sobre isto a
professora denuncia as amarras culturais, presentes tanto nos círculos acadêmicos quanto nos
escolares que instigam propostas de educação histórica voltada para a “imagem da História como
senhora absoluta do passado [...] centrada na racionalidade técnica” (GALZERANI, 2008, p. 228-
229).

Uma consideração sobre a Memória, como uma entre as demais marcas do humano, indica a
organização e a movimentação de suas configurações na relação direta com a cultura (MIRANDA;
ALMEIDA, 2010, p. 71). Isto crava as relações de Memória no curso das experiências vividas. Na
vida cotidiana, nos processos de linguagem, sociais e coletivos, ela se consubstancia. Nesse sentido,
os movimentos de seleção, preservação e/ou descarte daquilo que se pretende guardar, o
acontecimento das lembranças espontâneas, que eclodem ao acaso, como também o das lembranças,
pautadas no reconhecimento, são dinâmicas que potencializam as produções de sentidos que pulsam
no presente em direção ao passado vivido e/ou narrado por outros. Daí o aspecto da alteridade que
se transforma conforme a interação com os afetos. Da mesma forma, na percepção dessas
dinâmicas, importa perceber as relações de poder entranhadas nas manifestações da memória
coletiva quando se trata de fazer perdurar algumas práticas em detrimento de outras. A luta pela
hegemonia de determinadas configurações de memória levada ao extremo corrobora para práticas
intimistas, podendo disseminar um dever de memória que se fortalece nas artimanhas dos abusos do
esquecimento, e de certa forma, nos abusos da memória (RICOEUR, 2007, p. 508-509).

Saindo desse panorama mais abrangente e levando as práticas de memória para a escola, a
opção dos autores foi a de apresentar três formas de abordagem para a efetivação da educação para
a compreensão da memória, quais sejam: memória e narrativa; memória e identidade; memória e
objetos.

Uma política pedagógica sensível ao valor “evocativo e provocativo de percepções e


interpretações do social vivido e do passado relido no presente” promove deslocamentos
importantes para o pensamento histórico (PEREIRA; SIMAN, 2009, p. 280) e convoca a escola a
cumprir o seu papel de problematizar o conhecimento e desconstruir verdades.

Desse modo, a releitura dos objetos da cultura se abre como uma perspectiva de reescrita de
uma história que congrega a produção de todos os que dela participam, transformando o sonho em
despertar, conforme diria Walter Benjamin. O despertar enfraquece e dilui a dimensão mítica que
prepondera na perspectiva factual e triunfalista de História. Considerá-lo como procedimento apura
o olhar para os elementos minúsculos do cotidiano na montagem da História, que, em migalhas,

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

inclui o vencedor e o vencido na congregação do humano, assim como congrega o fluxo insondável
de todas as coisas (BENJAMIN, 2007, p. 501, [N, 1ª, 3].

SOBRE A ANÁLISE COMPARADA ENTRE A BNCC E A PROPOSTA CURRICULAR DA


REDE MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA

Com a promulgação da BNCC em dezembro de 2017, movimentos de tensão e conflito


tomaram o debate educacional. Ainda que reconheçamos processos de envolvimento por parte de
alguns educadores nas consultas públicas que estiveram presentes nos processos de elaboração da
Base, o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef (2016), eivado de inconsistências,
de jogos políticos e de quebras de constitucionalidade, acabou por interferir na proposta da BNCC
que estava em curso nos anos de 2014 e 2015. Aprovada por um governo ilegítimo, participante de
uma manobra política para depor a presidenta, a homologação da BNCC/2017 não garantiu
legitimidade para adesões, ainda que o documento seja mandatário. Da mesma forma, a mudança de
versões e as dificuldades de acesso no site do MEC para a efetivação da participação de todos nos
processos de consulta pública comprometeram as interações entre os educadores na possível
reformulação do texto final.

No que diz respeito ao Componente Curricular História, ainda em 2015, perspectivas


diferentes sobre o campo disciplinar da História entraram em disputa. No campo do Ensino de
História estava posta a discussão sobre diferentes paradigmas. Sobre isso, numa publicação aberta
nas redes sociais, lemos um posicionamento da Professora Sonia Miranda (2015) a respeito:
[...] o Saber Histórico Escolar é um saber específico, que possui finalidades didáticas
particulares e distintas das finalidades postas no âmbito das ciências de referência.
Nesse sentido, esse campo de saber, há ao menos umas três décadas, vem sendo
revisto em nível nacional e mundial, a partir de outras possibilidades e paradigmas de
Ensino [...] há ao menos umas três décadas, a pergunta essencial deixou de ser o
“como se ensina?” para ser “como se aprende?”. Sem dúvida, essa mudança de
perspectiva provocou um giro de olhar muito importante e que precisa comparecer nos
debates sobre a Base Nacional Comum.

O giro ao qual a professora faz referência tomou nosso olhar quando da exigência de uma
“implementação” que sempre nos pareceu aligeirada, uma vez que para além de objetivos de ensino
é preciso levar em conta os modos como crianças e adolescentes constroem conhecimentos: que
referências evocam? Como se posicionam frente ao conhecimento novo? Como processam suas

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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

aprendizagens? Nesse sentido, o que menos ajuda é o parâmetro de conteúdos prescritivos como
uma lista a ser seguida.

Discordâncias à parte, um ponto favorável naquela primeira versão da BNCC para o


componente curricular História, era a busca pela valorização das Histórias da África e das
Américas, assim como pelo rompimento como um ensino centrado na História europeia [...]
(ABREU, 2015). Mas isto não se manteve na versão final, conforme abordaremos a seguir.

Quando constituímos um grupo específico de trabalho para análise dos dois documentos em
pauta: a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Proposta Curricular da Rede Municipal de
Juiz de Fora, com foco na História, fizemos a opção pela leitura dos dois documentos buscando
encontrar pontos em comum e/ou discrepantes entre eles. Logo percebemos que a diferença entre as
duas proposições não permitia aproximações. Então, partimos para elaborar um texto orientador,
apresentando para a rede as nossas perspectivas de análise registrando, de modo sintético, a nossa
posição frente a um documento e outro. Elaboramos, paralelamente, algumas tabelas que trouxeram
análises sobre as proposições da BNCC. Propusemos, em seguida, alternativas para o trabalho
metodológico sob a orientação dos eixos curriculares conforme a Proposta Curricular de História da
Rede Municipal de Juiz de Fora. Procuramos colocar em foco a proposta curricular da rede e
buscamos, no paralelismo com a BNCC, uma linha de ação que favorecesse pensar as culturas e os
sujeitos nas suas diferenças, bem como nos seus modos singulares de inserção nos tempos e nos
espaços da construção históricav.

Ousamos discordar das proposições do BNCC e do formato que ela se apresenta aos
professores. Para melhor expor nossa avaliação, procuramos organizar em forma de tópicos, os
pontos de vista que nos pareceram relevantes levando em conta as pesquisas e as proposições no
campo do Ensino História.

1. Sobre a noção de currículo. A Proposta Curricular de História da Rede Municipal


de Juiz de Fora e a BNCC de História apresentam perspectivas muito diferentes em
torno da noção de currículo, não podemos fazer sobreposições. Enquanto a primeira
põe foco no procedimento, nas ações metodológicas para a construção do
conhecimento histórico, a BNCC faz a opção pela listagem de conteúdos específicos
para o tratamento da História. Não se preocupa em indicar modos de construir com
as crianças e jovens “habilidades de pensamentos próprios da operação e dos
procedimentos históricos” (Proposta Curricular de Rede Municipal, 2012, p. 08). Tal
escolha se torna inadequada uma vez que a proposta é fechada, linear, do ponto de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

vista formativo, e sinaliza uma acumulação passiva de informações. Isto não


favorece a mobilização de pensamentos para formação crítica, questionadora e aberta
à mudança de pontos de vista em relação ao conhecimento sistematizado e à
realidade social. A Proposta Curricular da Rede Municipal contribui para a
organização de conhecimentos e saberes importantes para a formação das crianças e
dos jovens ao longo de sua vida escolar e para além dela.

2. Sobre escolhas em relação ao modo como a História é apresentada como campo


disciplinar. A Proposta Curricular da Rede se estrutura em torno da noção de
“Diretriz Curricular”. Diretriz entendida como “uma linha em torno da qual se
estabelecem planos diversos e distintos de atuação” (2012, p. 08). Não é, portanto,
uma proposta fechada em torno de conteúdos históricos específicos, mas elaborada
em torno de eixos teórico-metodológicos essenciais à cognição em História e à
educação dos sentidos e das sensibilidades, que requer uma percepção de mundo que
não é única e exclusivamente sensorial, mas também social, cultural, estética e de
alteridades. Os três grandes eixos dessa Proposta são: Educação para a compreensão
do Conhecimento; Educação para a compreensão do Tempo e Educação para a
compreensão da Memória. A BNCC-História, por outro lado, estrutura-se em torno
de uma cronologia europeia baseada na quadripartição – Antiguidade, Idade Média,
Idade Moderna, Idade Contemporânea. Tais características se tornam marcantes na
seção do documento em que são apresentadas Unidades Temáticas, Objetos de
Conhecimento e Habilidades. Estas últimas, quase sempre, dizem respeito ao
domínio de um conteúdo e não ao desenvolvimento de alguma habilidade importante
para a cognição histórica.

3. Sobre o Tempo. Pensar o tempo envolve pensar em categorias de temporalidade e


também nas maneiras como as crianças constroem modos próprios de pensar o
tempo. Percebemos que na Introdução do Componente Curricular - História (BNCC)
há alguns pontos que convergem com a Proposta Curricular da Rede Municipal de
JF, como, por exemplo, o suposto de que as referências do passado histórico se
tornam potentes na significação que ocorre no presente. Podemos dizer, então, que
situações e acontecimentos vividos no presente se encontram marcados e carregados
de índices e marcas do passado. Uma “atitude historiadora” frente a temas e
conteúdos que fazem alusão ao passado perpassa a construção de sentidos e

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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

significados na narrativa histórica como composições interpretativas que se deixam


tocar por vários aspectos, tais como as relações de poder. Significa supor que “toda e
qualquer compreensão acerca do movimento temporal, e por consequência das
temáticas históricas, precisa se mobilizar a partir daquilo que lhe confere
inteligibilidade no aqui e no agora” (2012, p. 56). Por isto, a defesa de que a
construção de uma “Linha de Tempo” com crianças, por exemplo, precisa se
constituir do presente em direção ao passado, com seus sentidos e plausibilidades.
Observamos que o ponto de convergência entre as duas proposições curriculares para
por aqui. A BNCC prescreve conteúdos de maneira concêntrica, ou seja, do “eu”
para o outro e para as relações com o ambiente. Tal suposição não favorece pensar
naquilo que afeta as crianças a partir de outros meios como a TV, por exemplo,
frente a situações de guerras, de conflitos, instabilidades e comemorações. Focar o
“eu”, prioritariamente, desconsiderando o mundo e as relações com os
contemporâneos, interfere nas maneiras de olhar o passado e o presente, pois
interfere na centralidade do “eu” e instiga pensar num ponto zero, originário de
qualquer relação com o outro e consigo mesmo. Pensar alteridades implica pensar
relações, fora da centralidade do “eu”, mas na relação com todos e com a cultura.
Pensar historicamente envolvendo as relações entre si mesmo e os outros, implica
compreender e valorizar as diferenças culturais e nos modos de vida. Outra maneira
de potencializar o conhecimento nesse campo disciplinar é a elaboração e o
compartilhamento de narrativas pessoais, familiares e históricas atravessadas por
temporalidades distintas, bem como também a percepção de permanências e
descontinuidades no tempo. Outras categorias importantes e centrais para ativar o
pensamento histórico são a ordenação de acontecimentos vividos e narrados para a
construção de noções de duração e simultaneidade. Nesse sentido, outra contradição
flagrante da BNCC é a apresentação do conteúdo estabelecendo a quadripartição,
como foi dito anteriormente. Ela se constituiu dessa forma como um modo de
compreender a História Geral da Humanidade, estabelecendo uma cronologia
específica que faz supor a História da África, das Américas e do Brasil, por exemplo,
como temas periféricos que apenas permeiam a História da Europa. A ênfase no
estabelecimento de noções de tempo acontece de modo estanque, fechado no
passado. Não há escape para a produção de inteligibilidade nas relações
presente/passado, levando em conta experiências culturais, sociais e políticas da

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 239


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

atualidade para que seja possível relacionar semelhanças/diferenças,


rupturas/continuidades, nem tampouco as ações de resistência dos vencidos em
contraposição à opressão dos vencedores. É uma proposta factual, historicista, ainda
que tal perspectiva não esteja colocada na Introdução desse componente curricular
no texto da BNCC.

4. Sobre o lugar do sujeito na construção da História. Colocar acontecimentos e


ações em condição de relações de semelhanças e diferenças é condição para a
compreensão da História e da Cidadania. Há que se pensar, então, que, para isto, o
protagonismo do professor na seleção de recursos e fontes faz todo sentido. Dessa
forma, será possível considerar temporalidades mais amplas. Pensar o conteúdo
específico da disciplina implica reconhecer a estrutura e como os conhecimentos se
relacionam do ponto de vista teórico, historiográfico, metodológico e didático. É o
caso do cumprimento da prescrição legal em torno da Lei 11.645/2008, em
ampliação da Lei 10.639/2003, que trata da abordagem da História da África, da
cultura afro-brasileira e indígena. Na perspectiva da quadripartição, a abordagem
criativa, crítica e cidadã fica por conta do professor, uma vez que a Base apresenta as
questões do negro e dos povos africanos, quase que exclusivamente, a partir da
temática da escravidão, ou seja, a África só aparece na sua relação com a Europa,
numa situação de dominação. As relações étnico-raciais como diversidade e
construção da sociedade brasileira não foram consideradas, dessa forma, a
proposição de uma educação mais justa, baseada em princípios de equidade e da
valorização das heranças africanas e dos povos originários não é garantida como um
direito de aprendizagem na educação básica.

Apresentamos, ao final do estudo, relatos de práticas aos professores quando do


compartilhamento de nossa abordagem. Eles foram registrados também em textos publicados em
revistas da área. Realizamos uma análise dos textos e das práticas, a fim de localizar para os
professores de ensino fundamental I, modos de interlocução com a Proposta Curricular da Rede
Municipal no tocante às habilidades para a construção do pensamento histórico. Uma das práticas
envolve a construção de uma Linha do Tempo, desenvolvida numa turma de terceiro ano e
considerando as construções familiares das crianças em torno de eventos significativos e
comemorações familiares; os objetos de Memória; as narrativas familiares; os diálogos
intergeracionais; construção e a apresentação de narrativas atravessadas por temporalidades

240
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

distintas. A outra prática, intitulada “Sensíveis olhares para um violeiro cantador. Movimentos de
Pesquisa e Educação para compreender a Cidade”, traz a transformação de uma prática escolar que
abordava o tema da Cidade na data de comemoração de seu aniversário. A partir de um jornal que
trazia em uma de suas reportagens alguns “personagens do cotidiano da cidade de Juiz de Fora”, um
planejamento voltado para algumas habilidades e para as possibilidades das crianças construírem
inferências a partir de fontes (o jornal) que informam sobre a realidade tomou forma. Para além de
uma concepção de História pautada na valorização dos “Lugares de Memória”, as crianças, sob a
orientação de sua professora de quarto ano do Ensino Fundamental, puderam rever pontos de vista
sobre as pessoas que ocupam o cotidiano das cidades e perceber diferentes padrões de vida e
comportamentos distintos, resultantes de processos culturais diferentes. Nosso intuito foi o de
possibilitar a análise das práticas tendo como referência a perspectiva metodológica da Proposta
Curricular de História da Rede Municipal de Juiz de Foravi.

Fúlvia Rosemberg (2003) nos fala sobre a maldição de Sísifo como metáfora para as
políticas nacionais de educação infantil analisadas por ela desde os anos 1980. Podemos nos valer
da sua habilidade em buscar afinidades eletivas na linguagem estética para abordar as políticas
educacionais. Não deixar que forças contrárias façam despencar “morro abaixo” construções
históricas nos campos disciplinares, na defesa da ética e de uma escola de educação básica que de
fato promova o entrecruzamento entre igualdade e equidade. Nossa opção é, num esforço coletivo,
levar a política pública de revisão curricular para o topo, compreendendo que as escolhas de
determinadas perspectivas teóricas e metodológicas precisam se colocar, para os professores, em
movimentos de diálogo e de construções coletivas.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 241


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

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ABREU, Martha. Parecer sobre a BNCC. Componente Curricular História/ dezembro 2015. Disponível em:
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/relatorios-analiticos/Martha_Abreu.pdf. Acesso em: jan. 2019.

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Imprensa Oficial do estado de São Paulo, 2007.

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no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Brasília, DF:
[s.n.], jun. 2005.

BRASIL. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Disponível em: www.leidireto.com.br. Acesso em: 22 jan. 2020.

CURY, Carlos Roberto Jamil. A Educação Básica como direito. Cadernos de Pesquisa, [s.l.], v. 38, n. 134, maio/ago.
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GALZERANI, Maria Carolina Bovério. A produção de saberes históricos escolares: o lugar das memórias. In:
FERREIRA, Antonio Celso et al. (orgs.). O historiador e seu tempo. São Paulo: Editora UNESP; ANPUH, 2008.

MIRANDA, Sonia Regina; ALMEIDA, Fabiana Rodrigues de (cons.). Proposta curricular. História. Prefeitura
Municipal de Juiz de Fora. Juiz de Fora: Secretaria de Educação, 2012. Disponível em:
http://www.pjf.mg.gov.br/se/documentos/2011/história.pdf. Acesso em: dez. 2019.

MIRANDA, Sonia Regina. Na batalha das cartas: vozes de historiadores e o debate contemporâneo da Base Nacional
Comum Curricular. Facebook. Publicação em 06 de dezembro de 2015.

PEREIRA, Júnia Sales e SIMAN, Lana Mara. Andarilhagens em Chão de Ladrilhos. In: FONSECA, Selva Guimarães.
Ensinar e aprender História: formação, saberes e práticas educacionais. Campinas, SP: Editora Alínea, 2009. p. 277-
295.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. O tempo narrado. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

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SELIGMANN-SILVA, Márcio. Ler o livro de mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica literária. São Paulo:
Iluminuras, 1999.

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MOVIMENTOS DE REVISÃO CURRICULAR: INTERAÇÕES POSSÍVEIS

Notas de fim

i
ESCOLA MUNICIPAL JOSÉ CALIL AHOUAGI. Revendo a caminhada: uma forma de construir o Projeto
Político-Pedagógico da escola. In: PROJETO POLÍTICO-PEDAGÓGICO. Juiz de Fora, nov. 2006. [Mimeografado].
Lei n. 10.639 (BRASIL, 2003). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
ii

da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”.


Lei n. 11.645 (BRASIL, 2008). Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial
da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
iii
3º Prêmio Educar para a Igualdade Racial. Experiências de Promoção da Igualdade Racial-étnica no Ambiente
Escolar. Anais. CEERT (Centro de Estudos das relações de Trabalho e Desigualdades) 2006; Medalha Nelson Silva
(2006) – Conferida à Escola Municipal José Calil Ahouagi. Resolução n. 1120 29 de outubro de 1999/ Câmara
Municipal de Juiz de Fora: honraria criada em parceria com o Batuque Afro-Brasileiro de Nelson Silva; Publicação
CEAP – Ação Afirmativa. Atitude Positiva. MEDEIROS, Andréa Borges (org.). Práticas para a diversidade:
reflexões de professores. Rio de Janeiro: CEAP, 2010; Troféu “Lista negra” – Honraria concedia pelo CERNE (Centro
de Referência Negra de Juiz de Fora) à Escola Escola Municipal José Calil Ahouagi em 2006, pelo reconhecimento ao
trabalho contra o racismo, a discriminação e o preconceito racial.
MEDEIROS, Andréa Borges de. Memória de crianças em crônicas de escola: modos de lembrar, de narrar e de ser.
iv

Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/2662-. Acesso em: jan. 2020.


v
Grupo de estudos sobre o Componente Curricular-História: Alessandra Viana de Paula, Ana Paula dos Santos Rangel,
Andréa Borges de Medeiros, Giselli Maria Araújo de Souza Pereira, Gustamara Freitas Vieira e Iverson Geraldo da
Silva.
vi
Os relatos e as práticas foram apresentados pela vice-diretora da Escola José Calil Ahouagi, Gustamara Vieira de
Freitas, juntamente com um grupo de professoras, sendo elas: Gisela Pelizzoni e Sabrina Munck.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 243


O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR:
CONTENDAS ENTRE OS CAMPOS DA EDUCAÇÃO,
DA POLÍTICA E DA RELIGIÃO

Andréia Martins
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

Na história da educação brasileira, o Ensino Religioso (ER) se faz presente na educação


escolar desde o período colonial, com a ação catequética dos jesuítas. No Imperial, o catolicismo foi
instituído como religião oficial do país e, mesmo após a proclamação da República e a separação
entre Igreja e Estado, os interesses da Igreja Católica e suas articulações junto à política nacional
fez com que o ensino religioso retornasse às escolas públicas como uma disciplina optativa nos
currículos escolares a partir do Decreto n. 19.941, de 30 de abril de 1931i.

Acompanhando o cenário político brasileiro na atualidade, percebe-se um crescimento no


número de parlamentares da intitulada Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Em 2010, foram
eleitos 73 deputados para a Câmara Federal; em 2014, o número subiu para 75 e, em 2018, para 84
deputados que se identificam com a crença evangélica. No Senado, a FPE conta com 7 senadores,
tendo havido um aumento de 4 senadores em relação ao pleito de 2014. Estes representantes
objetivam ocupações em postos-chave no governo, tais como: presidência da Câmara dos
Deputados, representação na Bancada Feminina, Comissão de Constituição e Justiça, Seguridade
Social e Família, Direitos Humanos e Minorias. Estas frentes envolvem projetos que discutem
questões de gênero, raça, direitos reprodutivos, entre outras. Ao buscar impor sua presença nestas
comissões, a FPE objetiva legislar sobre estas temáticas em uma perspectiva religiosa cristã, não
levando em consideração o caráter laico do Estado e a secularização que vivemos em pleno século
XXI.

O ENSINO RELIGIOSO ENTRE A LAICIDADE E A SECULARIZAÇÃO

Com uma representação política cada vez maior no Estado Brasileiro de mandatários que se
identificam como evangélicos, tem-se percebido mais a presença de valores religiosos, sobretudo
cristãos dentro da esfera política que governa o Brasil. É importante reafirmamos que a
Constituição Federal Brasileira de 1988 afirma que o Estado Brasileiro é laico. Segundo o
dicionário Larrousse Cultural (1999): laicidade é a “concepção e organização da sociedade
fundadas na separação entre Igreja e Estado e que excluem as Igrejas do exercício de todo o poder
político e administrativo e, em especial, da organização do ensino” (LARROUSSE CULTURAL,
1999, p. 556).

As autoras Débora Diniz e Tatiana Lionço (2010), no artigo “Educação e Laicidade”,


afirmam que laicidade e secularização são dois conceitos-chave para analisar a relação dos estados

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O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR...

com as religiões, dependendo das tradições políticas e sociais e culturais dos países, uma sociedade
pode ser secular e normativamente laica.

Catroga (2010), ao discutir o conceito de secularização, problematiza a questão afirmando


que esta é uma palavra-chave para entender o mundo contemporâneo, dentro do debate político e
filosófico. Para entender o significado da palavra no contexto atual é importante entendermos a
gênese da palavra. O conceito de secularização apareceu na confluência de várias tradições,
podendo ser assim resumido:
[...] resultou do diálogo entre a herança Greco-Romana e o cristianismo, legado que o
direito canônico virá a recolher, para denotar a separação do clero do mundo dos fieis
seculares ou leigos; a que resultou da relativa diferenciação entre o domínio político e
o espiritual, justificada através de argumentos de cariz jurídico-político, e a que foi
fruto da experiência moderna de tempo, cujo primeiro grande momento forte se deu
com a Revolução Francesa (CATROGA, 2010, p. 49).

A palavra secular para o cristianismo tem uma acepção negativa, significando “momento
presente”, este século, fazendo contraponto à eternidade, ao futuro, que é a ideia da Igreja, para a
mesma vivemos para o futuro, para o reino de Deus. A palavra secular é usada para indicar o
mundo dos pagãos, e para definir a degradação humana em seu afastamento do divino (CATROGA,
2010).

Quando nos referimos à palavra secular, estamos referenciando o tempo presente e a


necessidade de vivenciá-lo e, desta forma, o conceito passou a adquirir a conotação de perda das
sociedades modernas na fé e na relação com a religião. Para se tornar secular é necessário
posicionar-se no tempo presente, dentro da racionalização científica e, neste sentido, há um
rompimento com a fé e a expectativa da religião que tem sempre a esperança em um mundo que
está por vir.

Nas pesquisas nas áreas de ciências da religião e ensino religioso, a palavra secularização
vem sempre associada à palavra laicidade: para Catroga (2010, p. 273), isso se dá “porque esta
terminologia, nasceu primordialmente, no interior da religião judaico-cristã”. É necessário entender
a diferença existente entre estes dois conceitos. Há três entendimentos para a palavra secularização:
[...] a que se refere ao distanciamento dos atores sociais em face das tradições
religiosas; a que conota a tendência moderna para se privilegiar a pertença ao mundo;
e a que traduz o processo de diferenciação estrutural e funcional das instituições, a que
se chamou laicização (CATROGA, 2010, p. 274).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A laicidade está mais associada aos aspectos institucionais e políticos, sempre que nos
referimos ao laico estamos nos reportando às instituições. Um Estado laico é um lugar público que
não possui referência à fé religiosa, um espaço que se utiliza da racionalidade científica. E a
discussão da escola enquanto espaço laicizador afirma-se como uma prioridade do Estado Moderno:
O processo laicizador afirmar-se-á, com prioridade, no terreno da educação e do
ensino, sinal inequívoco de que ele visava separar as Igrejas da Escola e do Estado,
também o fazia para socializar e interiorizar ideias, valores e expectativas. Daí que as
suas facetas jurídico-políticas apareçam sobre determinadas, em última análise, por
finalidades de matriz mundividencial (CATROGA, 2010, p. 275).

O princípio do Estado Brasileiro afirma-se por este ser laico, sem interferência de doutrinas
religiosas, e a educação escolar pública deverá se basear no conceito de laicidade em seu ensino.
Temos um grande desafio de reafirmar este princípio no cenário atual brasileiro, em que temos uma
Câmara Federal com 512 deputados, sendo que destes 84 que representam de maneira direta os
interesses dos evangélicos, valores que se fundamentam em uma tradição judaico-cristã, que
envolvem diversas linhas religiosas como católicos, protestantes, pentecostais, neopentecostais,
entre outras.

BREVE HISTÓRICO DA CONSTITUIÇÃO DO ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA


ESCOLAR

No Estado Brasileiro, a discussão sobre o papel da escola como um espaço de transmissão


de uma fé religiosa nacional sempre esteve presente, ainda mais quando se mistura a questão
religiosa com o ensinamento de ética, moral e civismo. Estes debates se constituíram de forma
intermitente ao longo de nossa história. No período do Brasil Colônia foi imperativa a ação
catequética da Igreja Católica por meio da ação educativa dos colégios jesuítas. O que permaneceu
no período Imperial (1822-1889), por meio do estabelecido na Constituição de 1824 (1ª
Constituição Brasileira) o poder da Igreja Católica, como religião oficial do país (MARTINS,
2013).

A Lei da Instrução Pública, de 15 de outubro de 1827, estabelecia em seu artigo 6 que:


Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de
quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a
grammatica da lingua nacional, e os principios de moral chritã e da doutrina da
religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos;

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O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR...

preferindo para as leituras a Cosntituição do Imperio e a Historia do Brazil (BRASIL,


1827).

Como podemos ler na citação acima, a Lei da Instrução Pública previa que os professores
deveriam ensinar nas escolas públicas os princípios da moral cristã, e, especificamente, a doutrina
da religião católica apostólica romana, dentro dos currículos das escolas públicas brasileiras. Esta
situação permaneceu até a promulgação da segunda Constituição em 1891, após a Proclamação da
República em 1989. A referida Constituição estabeleceu que o Brasil era um país laico, que não
possuía uma religião nacional, separando de forma definitiva a relação entre Igreja e Estado
(MARTINS, 2013).

No período da Primeira República (1889-1929) as discussões sobre o Ensino Religioso não


cessaram, e vários grupos políticos buscaram se articular para que o mesmo voltasse a fazer parte
dos currículos escolares. Em 30 de abril de 1931, por meio do Decreto n. 19.941, o Ensino
Religioso tornou-se uma disciplina escolar facultativa para as escolas públicas brasileiras. Ação que
aconteceu com a chegada de Getúlio Vargas à presidência do Brasil.

Em 1930, Getúlio Vargas chegou ao poder, tornando-se presidente do Brasil, acontecimento


que levou alguns autores a denominarem de Revolução de 1930; outros, porém, argumentam que a
chegada de Vargas ao poder não se caracterizou por uma revolução e sim por um movimento
heterogêneo do ponto de vista de suas bases sociais e de suas aspirações políticas (HILSDORF,
2003). Vários eram os grupos e interesses que apoiaram a subida de Vargas ao poder, entre os mais
influentes destacou-se a Igreja Católica, mas poucos imaginavam que ele ali permaneceria por 15
anos.

Em 14 de novembro de 1930, foi criado o Ministério da Educação e Saúde Pública, um dos


primeiros ministérios instituídos por Getúlio Vargas que havia tomado posse em 3 de novembro.
Nomeou para este cargo o mineiro Francisco Campos, que havia promovido a reforma pelo
movimento da Escola Nova em Minas Gerais em 1927, um católico e antiliberal (HILSDORF,
2003). Como uma de suas primeiras ações, em 30 abril de 1931, decretou a volta do Ensino
Religioso facultativo nas escolas públicas, pelo Decreto n. 19.941.

O decreto realizado por Francisco Campos foi resultado de pressões de décadas anteriores,
como exemplo, podemos citar a Carta Pastoral de Dom Sebastião Leme em 1926 e as reformas
realizadas, em Minas Gerais, por Antônio Carlos, que afirmava que “a fonte de todos os males do
país seria a “ignorância religiosa” e o remédio estaria na instrução religiosa da população” (BAHIA
HORTA, 2001, p. 148).
248
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Francisco Campos, na época deputado federal por Minas Gerais, procurou difundir a ideia
da necessidade da Educação Moral e Cívica via Ensino Religioso:
Certamente a educação moral e cívica pode concorrer para a formação e
esclarecimento da consciência nacional. Mas quais os fundamentos dessa educação
moral, no meio da anarquia das doutrinas contemporâneas e na desorientação geral das
inteligências, sem pontos de mira ou de referência por que orientar-se ou dirigir-se?
Só a religião pode oferecer ao espírito pontos de apoio e motivos e quadros de ação
moral regulada e eficiente. A educação moral não é mais do que um subproduto da
educação religiosa. A educação moral resulta da cultura dos sentimentos de veneração,
de admiração, de entusiasmo, de reconhecimento e de temos, que só a religião, que
está na raiz do espírito, pode alinhar, nutrir e aprimorar. O de que precisamos, se
precisarmos de educação moral, como não se contesta, é de educação religiosa
(CAMPOS, 1925, p. 1).

Campos foi muito criticado por este discurso, e respondeu afirmando que “a crise pela qual
passava o Brasil era que ao Estado brasileiro faltava uma doutrina na qual fundamentar e legitimar a
sua autoridade, e esta doutrina era a católica” (BAHIA HORTA, 2001, p. 149). Com este ponto de
vista, que a doutrina católica seria a responsável por alinhar o comportamento da sociedade
brasileira, que a luta para a inserção do Ensino Religioso nas escolas públicas era a “salvação” do
país. Não é de se estranhar que uma de suas primeiras ações como ministro da educação tenha sido
a inserção do Ensino Religioso nas escolas primárias brasileiras, já que, como deputado federal não
conseguiu em 1926.

A partir da introdução do Decreto n. 19.941, de 30 de abril de 1931, o Ensino Religioso


passou a fazer parte dos currículos escolares das escolas públicas de todo o país como Disciplina
Escolar Facultativa para os alunos e obrigatória para a escola. O que foi reafirmado na Constituição
Federal de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988 (MARTINS, 2013).

Como podemos ler ao longo do texto, não é de hoje que os governantes brasileiros buscam
legislar para impor a crença de um determinado grupo religioso majoritário. Em uma busca
recorrente de governar a mentalidade da nação, trazendo um conceito de religião, fé e padrão
comportamental único. Foucault (1979) descreve a legislação como:
Razão do Estado, entendida não só no sentido pejorativo e negativo que hoje lhe é
dado (ligado à infração dos princípios do direito, da equidade ou da humanidade por
interesse exclusivo do Estado), mas no sentido positivo e pleno: o Estado se governa
segundo as regras racionais que lhe são próprias, que não se deduzem nem das leis

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O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR...

naturais ou divinas, nem dos preceitos da sabedoria ou da prudência; O Estado, como


a natureza, tem sua racionalidade própria, ainda que de outro tipo. Por sua vez, a arte
de governo, em vez de fundar-se em regras transcendentes, em um modelo
cosmológico ou em um ideal filosófico-moral, deverá encontrar os princípios de sua
racionalidade naquilo que constitui a realidade específica do Estado (FOUCAULT,
1979, p. 286).

Nesta chamada “razão do Estado” em normatizar as relações humanas nas instituições


escolares, podemos indagar: Por que o Ensino Religioso nas escolas públicas suscita tanta
discussão? O que está por traz desta questão? Será apenas uma discussão sobre uma disciplina
dentro de um conjunto de matérias a ser ensinadas no composto curricular de uma escola? Cury
(2004) em seu artigo “Ensino Religioso na escola pública: o retorno de uma polêmica recorrente”
afirma que “O Ensino Religioso é mais do que aparenta ser, isto é, um componente curricular em
escolas. Por trás dele se oculta uma dialética entre secularização e laicidade no interior de contextos
históricos e culturais precisos” (CURY, 2004, p. 183).

A relação de força entre Igreja e Estado na história brasileira se fez e faz presente como
afirmado anteriormente, se construindo e reconstruindo de maneiras diferentes ao longo do tempo.
A busca de se fazer presente na arena educacional é uma forma da Igreja assegurar o seu
proselitismo religioso em uma instituição que funciona como um dos aparelhos ideológicos do
Estado. Esta questão sempre foi motivo de muitas discussões no seio da sociedade e revela que é
muito mais do que apenas a discussão sobre uma disciplina escolar. Ela perpassa por uma forma de
controle social pelas instituições políticas e religiosas.

Retomando ao pensamento de Foucault (1979), o problema do governo das almas e das


condutas, tema da pastoral católica e protestante; problema do governo das crianças, problema
central da pedagogia são questões presentes na atualidade, questões vivenciadas nas relações de
poder em seus vários níveis, e que se reflete nas escolas e no ensino. É sabido que estas relações de
governabilidade são extremamente complexas, deve-se levar em conta para realização destas
análises pontos como: procedimentos, reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer de forma
bastante complexa o poder, e que estas articulações têm como objeto final o controle da população,
em seus aspectos econômicos, políticos e sociais.

A religião nas escolas, impostas como norma legislativa, é uma das formas de governo das
almas, dos indivíduos que compõem a sociedade. O governo de almas traz algumas “doutrinas”

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

confessionais utilizadas pelo Estado para inculcar condutas sociais nos indivíduos, como os valores
morais para as famílias, como afirma Foucault (1979).
A governamentalidade nasceu a partir de um modelo arcaico, o pastoral cristão,
apoiou-se em seguida em técnicas diplomático-militar e finalmente como esta
governamentalidade só pode adquirir suas dimensões atuais graças a uma série de
instrumentos particulares, cuja formação é contemporânea da arte de governo
(FOUCAULT, 1979, p. 293).

O Ensino Religioso faz parte de uma tradição na história da educação escolar brasileira,
quando utilizo o conceito de tradição me refiro ao conjunto de sistemas simbólicos que são
passados de geração a geração, ela possui um caráter repetitivo, mas é dinâmica e vai se
organizando no mundo dentro de cada tempo histórico.

Hobsbawm e Ranger (2002) observaram que toda tradição é uma invenção que surgiu em
algum lugar do passado, e ao longo do tempo vai passando por alterações, as tradições estão sempre
mudando, de acordo com as relações sociais e as mudanças no mundo, elas vão se reinventando, o
que as mantém como tradicional é a integridade de sua resistência, sua continuidade frente aos
contratempos e às atualizações da modernidade.

Nesse sentido, afirmamos que o Ensino Religioso sempre fez parte da tradição escolar
brasileira, dos conteúdos ensinados na escola, desde o século XVI, se afirmando em 1827 na
primeira lei da instrução pública, tendo como objetivo da disciplina, história sagrada, a formação
moral da sociedade. Ao retornar como disciplina escolar em 1931 há uma reinvenção da tradição,
colocando-o agora enquanto disciplina escolar, com conteúdo específico, objetivos de formação
dentro do currículo escolar, nesse momento ela volta com o mesmo intuito do século anterior: a
formação moral da população.

As tensões estabelecidas entre intelectuais católicos e os Pioneiros da Escola Nova estavam


no campo da discussão sobre o papel da escola pública pela busca do Estado Laico, entendendo que
a construção da moral se dá por princípios racionais, positivistas, científicos. Partindo do princípio
da escola como um espaço democrático, não aceitando o que não tenha fundamento na ciência.

O ENSINO RELIGIOSO NA LDB N. 9.394/96 E NA BNCC

Luiz Antônio Cunha (2014), em seu texto “Hegemonia e confronto na produção da segunda
LDB: o Ensino Religioso nas escolas públicas” apresenta como ocorreu o posicionamento dos
grupos políticos ao longo dos oito anos que antecederam a publicação da Lei de Diretrizes e Bases

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O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR...

n. 9.394/96. De um lado estava a Igreja Católica, a maior interessada na inserção do Ensino


Religioso como disciplina escolar, e do outro lado um grupo que defendia a laicidade do estado,
mas não soube se articular para a efetivação do mesmo. O texto final trouxe a seguinte redação:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para
os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por
seus responsáveis, em caráter:

I. confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável,


ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas
respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou

II. interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se


responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.

Em 1997, ocorreu uma nova redação para o art. 33:


Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação
básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei n. 9.475, de
22/07/1997).

§ 1º. Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos


conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão
dos professores. (Incluído pela Lei n. 9.475, de 22/07/1997).

§ 2º. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes


denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (Incluído
pela Lei n. 9.475, de 22/07/1997).

Na primeira redação podemos entender que o Ensino Religioso é colocado como uma
disciplina dentro dos currículos escolares, do ensino fundamental, há uma questão aí importante de
ser entendida, passa a ser obrigatório para a escola a oferta do ensino religioso, e continua sendo
facultativo para os alunos e alunas, e deve ser ministrado de acordo com as preferências religiosas
da criança e da família, chama a atenção a questão referente aos custos do mesmo, pois a lei afirma
que este não pode causar ônus para o Estado. É muito confuso de se entender, como a lei coloca
uma disciplina escolar obrigatória sem pensar em uma formação docente e em pagamento por este
trabalho?

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A segunda redação proposta para o art. 33 é datada de 1997, é há importantes alterações em


seu texto, alterações que considero mais conceituais do que efetivamente práticas. Por exemplo
quando o mesmo afirma que é vedado qualquer forma de proselitismo religioso, e ao mesmo tempo
deixa a cargo dos estados e municípios a definição de conteúdos e das denominações religiosos, há
uma brecha nesta nova redação, pois, não há mais a afirmativa que o ER não poderá causar ônus
para o estado, mas não apresenta como será o pagamento de professores e a formação desta
disciplina dentro do currículo escolar.

Ao ler o artigo 33 e suas alterações percebemos como os legisladores pensavam de maneira


confusa o papel do ER como disciplina escolar. Como nos informa Cunha (2014):
Tudo somado, o artigo 33 da LDB, tal como ela foi aprovada pelo Congresso Nacional
e sancionada pelo presidente da República, expressou um equilíbrio precário entre o
campo político e o campo religioso no que concerne à educação pública. Esse
equilíbrio durou pouco e foi rompido rapidamente pela Lei n. 9.475/97, mediante
vários dispositivos, inclusive a supressão da cláusula restritiva ao uso dos recursos
públicos nessa disciplina. Mas isso será objeto de outro artigo (CUNHA, 2014, p.
157).

Ao lermos o artigo 33, é evidente a pressão da Igreja Católica e uma parcial vitória, e o
ponto de vista dos legisladores contrários ao trazer a questão que a disciplina não poderia exercer o
proselitismo religioso, que também é uma parcial vitória, mas com a falta de objetividade e clareza
do texto os dois grupos saíram perdendo, pois até hoje no cotidiano das escolas públicas a disciplina
não se efetivou.

As tentativas de entidades religiosas e políticas pela implementação do ensino religioso


como disciplina escolar nas escolas públicas ganhou mais um capítulo em sua historiografia a partir
de 2012, quando houve o início das atividades para a produção da Base Nacional Curricular
Comum (BNCC). Cunha (2016), em seu texto: “A entronização do Ensino Religioso na Base
Nacional Curricular Comum” nos apresenta uma discussão de como o Fórum Permanente para o
Ensino Religioso (Fonaper) e os atores da política pública nacional se articularam para produzir o
texto da BNCC que inseriu o ER como disciplina escolar e os conteúdos do mesmo.

Em 2015, foi apresentada a primeira versão da Base, que estabeleceu os conteúdos do ER no


Ensino Fundamental.
O ER foi incluído na área de Ciências Humanas, a primeira vez que esse absurdo
taxonômico apareceu em documentos oficiais brasileiros. As passagens do documento
relativas ao ER contêm dois tipos de conteúdos. Um deles é a pretensão de ensinar

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O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR...

Ciências Sociais para alunos do Ensino Fundamental. Foi o caso da compreensão do


significado da morte, do culto aos mortos e dos ancestrais nas distintas manifestações
religiosas, tradições e sistemas simbólicos. Para alunos de 6 a 14 anos, sem uma aula
de Antropologia Cultural nem de Sociologia (CUNHA, 2016, p. 272).

Essa foi a primeira vez que o ER entrou de forma efetiva nos currículos escolares
brasileiros, normatizado pelo legislativo. Até 2015, nunca se tinha colocado em diretrizes
curriculares nacionais conhecimentos específicos para serem ensinados nas escolas para o ER. Foi
uma surpresa quando saiu a primeira versão da BNCC e constatamos que se fazia presente os
conteúdos para esta disciplina. Cunha (2016) faz esta discussão de maneira profunda, apresentando
os atores sociais envolvidos neste processo de construção e efetivação do ER na BNCC.

Na versão final da BNCC, publicada em 2018, o componente ER aparece dividido em


unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades, para os nove anos do Ensino
Fundamental. Do primeiro ao quarto ano, se propõe trabalhar nas Unidades Temáticas Identidades e
alteridades e Manifestações religiosas, em cada ano com objetos de conhecimentos diferenciados
dentro das unidades temáticas propostas. No quinto e sexto ano, o tema da unidade foca em Crenças
religiosas e filosofias de vida. No sétimo ano, as unidades temáticas apresentam como discussão:
Manifestações religiosas e Crenças religiosas e filosofias de vida que continua como unidade
temática do oitavo e nono ano.

Foi uma vitória dos movimentos religiosos e dos grupos políticos que defendem a Frente
Parlamentar Evangélica inserir na BNCC o Ensino Religioso como disciplina escolar, definindo
como em outras disciplinas a organização em unidades temáticas, objetos de conhecimento e
habilidades. Vitória esta dos campos políticos e religiosos, mas fica uma indagação: E para a
educação escolar? Como isto irá se efetivar? É realmente uma vitória?

Para a implementação de uma disciplina escolar, faz-se necessário pensar em primeiro lugar
na formação de professores. Quem irá ministrar esta disciplina? Qual será a formação solicitada?
Quem pagará esses professores? Como irão compor os horários escolares? Quantas horas-aulas por
semana? São muitas perguntas, e até o momento não temos resposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo do texto problematizamos as buscas das instituições religiosas e políticas pela


implementação do ER como uma disciplina escolar. É importante salientar que entendemos a

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

educação escolar pública como laica, em que as interferências religiosas não devem se fazer
presentes.

Ao estudarmos a trajetória histórica do ER como disciplina escolar percebemos que o


interesse na maioria das vezes não parte de docentes das escolas de educação básica, mas de um
viés político-ideológico e de grupos religiosos que objetivam utilizar as escolas públicas como um
espaço de proselitismo religioso. Em uma busca recorrente de trazer uma racionalidade científica
para o ER, no caso da BNCC definindo temas, objetivos de formação e habilidades a serem
alcançadas. Buscam afirmar que o mesmo é um conhecimento científico e racional e que cabe na
escola.

Faz-se necessário estarmos atentos às questões levantadas anteriormente sobre a formação


de professores, concursos públicos para essa “nova disciplina escolar” e como a mesma será
trabalhada nas escolas públicas, pois não percebo como a política pública irá viabilizar estas
questões. O que no ponto de vista desta autora levará a não efetivação na prática deste componente
curricular imposto pela BNCC.

Finalizo estas reflexões reafirmando a luta por uma escola pública, gratuita e laica, dentro de
um estado laico. Temos um grande desafio hoje no Brasil com um governo de direita, que se diz
liberal na economia e conservador nos costumes, que tem se amparado na forte Frente Parlamentar
Evangélica na Câmara e no Congresso para votar ou barrar direitos essenciais ao povo. Se no
campo do estado e da religião experienciamos todas estas questões, na educação escolar precisamos
estar cientes e resistentes em nosso propósito de efetivarmos uma escola para todos, e para isso é
fundamental que esta tenha qualidade, que seja gratuita e laica.

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O ENSINO RELIGIOSO COMO DISCIPLINA ESCOLAR...

REFERÊNCIAS

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1824-1899/lei-38398-15-outubro-1827-566692-publicacaooriginal-90222-pl.html. Acesso em: 31 jan. 2020.

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da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.

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mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf/. Acesso em: 27 fev. 2020.

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Posições, [s.l.], v. 25, n. 1, p. 140-160. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/proposic/article
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ed. Jundiaí: Paco Editorial, 2013. p. 1-200.

Notas de fim

i
Este texto constitui parte da pesquisa de Doutorado defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em
2016, a tese teve como título “O ensino religioso nas escolas públicas paulistas: relações entre Estado, Igreja e
Educação (1931-1961)”. Contou com financiamento da Capes. Disponível em https://tede2.pucsp.br/handle/
handle/10519/. Acesso em: 29 jan. 2020.

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA
NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE
CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE

Givânia Maria da Silva


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

Formados a partir das lutas contra a escravidão e por liberdade, os quilombos constituíram-
se em grupos de resistência negra espalhados em todo o território nacional. Segundo Ratts e
Damascena (2008, p. 51), “para melhor compreender a participação do segmento negro na
formação brasileira, três dimensões são de fundamental importância: a histórica, a memória e as
práticas”. Essas dimensões foram historicamente silenciadas e os quilombolas e suas lutas
invisibilizadas.

Mesmo após o reconhecimento formal dos quilombos como sujeitos de direitos pela
Constituição Federal de 1988, o Estado brasileiro ainda não respondeu o que determinou a Carta
Magna. Um exemplo disso é que até hoje não se sabe ao certo quantos quilombolas são. O censo
demográfico de 2021 tem como expectativa saber efetivamente quantos quilombos e os
quilombolas existem no Brasil. Não se sabe ao certo onde vivem, suas práticas, memórias,
patrimônios materiais e imateriais e as demandas por políticas públicas que os quilombolas
demandam. Os números atuais de quilombos apresentam poucos dados e informações capazes de se
planejar políticas públicas mais efetivasi.

Assim, as décadas de luta organizada por meio de várias estratégias pelos segmentos do
Movimento Negro por direitos, levou à constituição de organizações negras, que antes, durante e
pós a abolição foram as ferramentas de lutas antirracistas cuja resposta do Estado brasileiro deveria
ser a consolidação de políticas públicas.

Ocorre que no Brasil algumas questões ainda não foram tratadas ou, quando tratadas, foram
pouco valorizadas, como é o caso da vida organizacional e as práticas dos/nos quilombos. Esses
fatos têm se tornado um dos empecilhos para os quilombolas acessarem direitos. Isso pode nos
levar a algumas indagações: quais são as razões do silêncio em relação à existência dos quilombos e
seus processos educativos e organizativos? Por que o reconhecimento dos direitos dos quilombolas
ainda é tão conflitoso, inclusive nas instituições públicas?

Mesmo que aprofundar essa questão não seja uma meta deste texto, vale refletir e identificar
pontos e tensões no debate para entender esses sujeitos, a partir das suas próprias perspectivas e
processos educativos. Esses elementos podem ser usados para construir um currículo específico,
situações didáticas que possibilitam outros caminhos para o ensino e a aprendizagem e, ao mesmo
tempo, fortalecer a identidade e a territorialidade quilombola.

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE

Isso nos mostra que a CF/88, ao reconhecer no seu texto constitucional a expressão
“comunidades remanescentes de quilombos”ii, trouxe desafios mais profundos do que já se
mensurou na perspectiva de formular políticas públicas. No campo educacional, residem grande
parte dos desafios. Esses desafios estendem-se por diversos campos e perspectivas. Como fazer
educação nos e com os quilombos que promova, valorize e fortaleça a identidade quilombola a
partir de seus territórios, tendo-os como espaços didáticos constituídos e constituintes de saberes e
fazeres e modos de vida, valorizem os patrimônios culturais materiais e imateriaisiiiainda
invisibilizados e uma forma de territorializar conhecimentos.

As alterações na Lei de Diretrizes de Bases da Educação (LDB), no artigo 26aiv para a


inclusão da história africana e afro-brasileira visando corrigir parte da ausência das histórias dos
negros e dos índios no Brasil em toda as dimensões, perspectivas e espaços, residem questões que
ainda não foram tratadas, porém, refletem no dia a dia de negros(as) brasileiros(as).

O Conselho Nacional de Educação (CNE), demandado pelos quilombolas por meio da sua
organização representativa, CONAQv na CONAEvi de 2010, elaborou e publicou a Resolução 08 do
CNE que, em 20 de novembro de 2012 estabeleceu as Diretrizes Nacionais Curriculares para a
Educação Escolar Quilombolavii com o objetivo de incluir e valorizar a história, os saberes e os
modos de vida dos quilombos para superar os desafios ainda existentes na educação brasileira, no
que se refere à inclusão da história dos quilombos na educação brasileira.

A partir de um silenciamento histórico de suas narrativas, processos educativos e saberes, o


quilombo de Conceição das Crioulas tomou a educação como uma ferramenta para lutar pela
emancipação de seus sujeitos e vem consolidando à medida que a própria comunidade assume, de
maneira mais efetiva, não só o fazer prático da educação (sala de aula), mas o pensar, a gestão da
educação e do território, fazendo com que as dicotomias existentes entre teoria e prática na
educação escolar e não escolar e na vida cotidiana dos quilombos.

Esse movimento vem construindo pontes entre os saberes locais e globais e normatizando
processos. A luta do quilombo de Conceição das Crioulas mudou os marcos normativo do
município de Salgueiro/PE, criando a categoria de professor quilombola, sendo reservado aos
quilombolas atuarem como professores(as) nas escolas do território.

As mudanças nos marcos normativos fez com que hoje todos os professores(as) sejam do
território (por concurso público ou seleção pública); que todos(as) tenham curso superior e 90%
possuam pelo menos uma especialização, além de duas mestras em sala de aula. Todos esses

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

resultados aqui destacados estão ligados ao processo de educação diferenciada já mencionada ou


Pedagogia Crioula.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA E A GESTÃO DO TERRITÓRIO QUILOMBOLA


DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS

Conta a oralidade guardada nas memórias permanentes (ARAÚJO, 2008)viii que a


comunidade quilombola de Conceição das Crioulas foi formada em meados do século XVII, com a
chegada de seis mulheres que fugiam em busca de liberdade. Não há consenso em relação ao local
de origem das mulheres, apenas em relação ao número de alguns nomes que foram recuperados.
Alguns falam que elas vieram da região da Bahia, outros, que vieram de Alagoas.

O certo é que essa exatidão de onde as mulheres vieram ou não nunca foi uma coisa tão
relevante para os quilombolas e sim, a história e as estratégias das mulheres que fundaram e
defenderam esse território: Mendencha Ferreira, Emília Ferreira, Francisca Presidente, Germana,
Romana e Francisca Ferreira, sendo Francisca Ferreira líder do grupo. Esses são os nomes
lembrados através da oralidade dos mais velhos e, posteriormente, o que outras mulheres fizeram na
defesa e manutenção das crioulas nesse espaço, a exemplo de Agostinha Cabocla (ARAÚJO, 2008;
NASCIMENTO, 2017)ix.

A permanente busca por liberdade e emancipação da comunidade quilombola de Conceição


das Crioulas, na maioria das vezes liderada por mulheres, fez e continua fazendo os quilombolas
lutarem por autonomia, não só em relação ao direito à terra, mas também pelos processos
educativos que organizam a vida comunitária e as políticas públicas.

Esse pensar “quilombola e feminino” tem sido constante e se alimenta nos atos de
resistência de um povo que, mergulhado num mundo real de exclusão, consegue “fincar-se naquele
espaço”, contrariando às lógicas postas no seio da história oficial. Sua própria história de encanto e
desencanto, de encontro e (re)encontro, sugere um processo de resistência e insurgência no
caminhar coletivo do quilombo – o território das crioulas.

Por isso, a busca da liberdade e a conquista das crioulas são processos de superação dos
limites físicos, geográficos, organizativos, de gênero e de raça. Pensar que há cerca de três séculos
atrás, mulheres negras, analfabetas conseguiriam dar passos tão largos só é possível se
reconhecermos a capacidade de superação e resistência dos(as) negros(as) frente a todos os
obstáculos impostos pelo racismo desde a sua chegada ao Brasil até os dias de hoje.

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE

E é nesse contexto de negação de direitos aos negros no Brasil que, até 1995, os quilombolas
de Conceição das Crioulas, com poucas exceções, não estudavam além da 4ª série do ensino
fundamental I, hoje denominado de 5º ano. Em maio do mesmo ano (1995), se inaugura a Escola
Professor José Mendes , de 5ª a 8ª séries do ensino fundamental II. O que em outros distritos do
município de Salgueiro era rotina, em Conceição das Crioulas era a primeira oportunidade de
ampliar os estudos que aquele povo tinha em mais de 200 anos de existência e (re)existência. Esse
fato demonstra explicitamente a natureza do racismo institucional e como ele se manifesta de forma
prática, muitas vezes silencioso e silenciado por aqueles(as) que por ele são afetados(as), direta ou
indiretamente.

É como um projeto de liberdade que nasce a Escola Professor José Mendes. Inicialmente, o
projeto ancorava-se na oralidade e na memória coletiva da comunidade e, aos poucos, foi se
modelando o pensar e o fazer a educação em Conceição das Crioulas. Esse pensar ou projeto foi
denominado de “educação diferenciada. A base inicial de formulação eram os conhecimentos do
próprio quilombo, seus saberes, sua cultura e seus modos de vida.

Os argumentos para que quilombo ficasse tanto tempo sem acessar um direito básico – o
direito à educação – era a distância da cidade, cerca de 50 km de distância. Porém, outras narrativas
eram ainda mais violentas, pois sustentavam que não era preciso que povo de Conceição das
Crioulas fosse à escola, já que não era necessário avançar nos estudos para dominar a técnica de
votar (SILVA, 2012)x.

Márcia Nascimento (2017) afirma que: “o pensamento de se construir uma proposta


educacional fundamentada na história, na luta e nos saberes da comunidade permeava por várias
cabeças. Por isso, ela se constrói de maneira coletiva, jeito que permanece até os dias de hoje”. O
pensar descrito pela autora esteve presente nos espaços e construiu os significados da educação
escolar naquele território.

A partir dessas perspectivas, a comunidade foi construindo suas próprias ferramentas:


formando professores(as), elaborando materiais didáticos, entre outros. Uma produtora de vídeo – O
Crioulas Vídeo e o Jornal Crioulas a Voz da Resistencia – se constituíram como uma forma de
comunicar a partir da própria comunidade. Esse processo foi se consolidando e a denominação foi
perdendo força e dando lugar à produção de conhecimento dos/pelos próprios quilombolas.

Além disso, foram construindo um currículo com espaço para a cultura local, as
manifestações da comunidade e, sobretudo, as lutas por direitos. Nesse currículo, também se
incluíram os lugares e os significados que compõem o repertório de luta e resistência de Conceição

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

das Crioulas, como, por exemplo, as pedras, caldeirõesxi, serras, plantas nativas, danças, festas,
igreja, sede da associação, centro comunitário, entre outros.
Esse processo, que se iniciou em 1995. Em 2017, Márcia Jucilene do Nascimento,
educadora e pesquisadora quilombola, descreveu e defendeu como a “Pedagogia Crioula”. Portanto,
o objetivo e esforço da Pedagogia Crioula é escutar, escrever e trazer para o currículo escolar as
vozes e perspectivas do quilombo, criando situações didáticas que quebrem o silêncio e superem as
fortes tentativas de apagamento da memória, das lutas e da história do quilombo de Conceição das
Crioulas. Essa iniciativa fez com que a educação se transformasse em uma ferramenta para
fortalecer a luta pelo acesso a terra.

Após anos de luta, resistência e insurgência, o quilombo de Conceição das Crioulas retoma
parte de seu território (indenizados pelos governo federal), anteriormente invadido por fazendeiros.
Em 2012, o quilombo de Conceição das Crioulas começou a receber os primeiros títulos definitivos
de suas terras tradicionalmente ocupadas, baseado no artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT).

A Pedagogia Crioula toma a luta coletiva dos quilombolas como mais um tema gerador de
aprendizagens e incorpora ao Projeto Político-Pedagógico (PPP) do território de Conceição das
Crioulas estruturado em sete eixosxii, criando situações didáticas que permitiram que alunos(as),
pais e mães, lideranças comunitárias, façam o reconhecimento do território, compartilhem achados,
identifiquem os pontos e marcos históricos e turísticos e se apropriem dos espaços criando com ele
e nele novas perspectivas e sentidos para a vida no território. Os eixos que compõem o PPP de
Conceição das Crioulas estruturam e organizam o currículo escolar, além de ser o espaço de escuta
e materialização dos saberes quilombolas e universais, sempre em sintonia com as lutas territoriais
por direitos.

Uma das estratégias mais importantes nesse processo tem sido o diálogo com as pessoas
mais velhas para troca de conhecimentos e saberes, além de com eles traçarem estratégias para
superar os desafios que devem ser enfrentados no planejamento e na preservação de um território
coletivo. É por meio da memória coletiva dos mais velhos que muitas coisas resistiram já que esses
espaços ficaram por mais de 60 anos sob domínio de fazendeiros e que o grande esforço dos
fazendeiros durante décadas foi para apagar a história e a luta de Conceição das Crioulas para
defender seu espaço como espaço de liberdade.
Nesse contexto de escuta e aprendizagem dessas histórias, os relatos são capazes de
reconstruir um passado fazendo ele se tornar presente, como é para todos de

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE

Conceição: além dos mais velhos, os adultos, os jovens e crianças, todos nós hoje
conhecemos e narramos a história das seis crioulas. Com isso também aprendemos
que não existe uma memória passada, o que existe é uma memória que está sempre ali
permanente, que através da oralidade pode trazer narrativas que nos fazem
compreender contextos atuais, nos fazendo refletir sobre nossa própria história
(NASCIMENTO, 2017, p. 28).

De posse de parte das terras do território, cujos registro e domínio são da Associação
Quilombola de Conceição das Crioulas (AQCC) várias ações e projetos começaram se desenvolver
nas escolas visando compreender a gestão do território e compartilhar com as crianças e jovens e a
comunidade de cada localidade. Um exemplo para ilustrar é o projeto desenvolvido pela Escola
Bevenuto Simão de Oliveira, no Sítio Paula.

A ESCOLA TERRITORIALIZA SABERES E CONTRIBUI COM A GESTÃO DO TERRITÓRIO

A escola Bevenuto Simão de Oliveira fica localizada no Sítio Paula, um dos núcleos que
compõem o território quilombola de Conceição das Crioulas. A escola atende do ensino infantil ao
5º ano do ensino fundamental I e leva o nome de uma das figuras mais importantes da cultura de
Conceição das Crioulas, Bevenuto Simão, pai Nuto, como a comunidade conhecia. Tocador e líder
da Banda de Pífano, símbolo de Conceição das Crioulas, pai Nuto ou Bevenuto Simão de Oliveira é
o patrono da escola.

A prática e a luta para colocar e memorizar os nomes em escolas e/ou outros equipamentos
públicos de pessoas da comunidade são umas das formas de se garantir a memória viva de seus
moradores e poder contar por dentro da escola as histórias de cada um(a) deles(as). Esses espaços
antes recebiam os nomes dos Santos de devoção dos fazendeiros ou de seus familiares.

O processo de construção da educação diferenciada por meio da Pedagogia Crioula


contribuiu com a tomada de consciência e a comunidade rompe com esse modelo e passa indicar os
nomes das pessoas que fizeram história na comunidade. Atualmente, as Escolas, Posto de Saúde,
Centro Comunitário, Casa da Juventude, levam nomes de pessoas que os moradores julgam
importantes para as lutas do território.

O Sítio Paula sempre foi um núcleo que apresentava baixo nível de organização e pouca
inserção de seus(uas) moradores(as) na luta por direitos dentro o território de Conceição das
Crioulas. A escola, a partir do momento que foi assumida por quilombolas daquele mesmo núcleo,
tomou como ponto de partida a relação da comunidade com a educação, uma das características da

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Pedagogia Crioula. A escola vem contribuindo para mudar indicadores de aprendizagem e


envolvimento da comunidade na defesa de seus direitos.

Isso só foi possível a partir do momento em que as pessoas da comunidade passaram acessar
a educação como um direito e ingressaram em cursos superiores. Desde então, a educação em
Conceição das Crioulas tem apresentado bons resultados. O principal deles é o envolvimento
dos(as) moradores(as) com as lutas do território.

É nesse contexto e com o desafio de vivenciar a Pedagogia Crioula que a Escola Bevenuto
Simão, de posse da área desapropriada conhecida como “Fazenda Conceição” fruto de lutas de anos
da comunidades (mapas e titulo) e constrói seu planejamento para o ano letivo de 2019 de forma
que toda a comunidade escolar e a comunidade, em geral, passasse a conhecer essa área do
território. Para muitos, aquela área sempre foi um lugar intocável, por estar sob domínio do
fazendeiro.

Para dar conta dessa tarefa, a escola envolve a comunidade através da Associação local e
juntos planejam uma ação de reconhecimento do território. A escola leva as crianças para conhecer
o território em uma ação coordenada e a Associação os(as) demais moradores(as).

O objetivo era que todas as crianças e a comunidade daquele núcleo conhecessem e


reconhecessem o território, descobrissem seus pontos fortes e fracos: locais próprios para serem
explorados pelo turismo; locais necessários a um maior investimento para preservação; locais mais
apropriados para a construção de casas, roças e; os desafios que precisam ser pontos de atenção na
gestão coletiva do território.

Em seguida, a Associação conduz a visita de moradores(as), para fazer o mesmo percurso


que alunos(as) haviam feito e com os mesmos objetivos. O terceiro passo foi uma troca de
experiência, escola e comunidade. Cada grupo expôs seus achados e traçaram ações conjuntas de
preservação e gestão do território.

A ação da escola, em parceria com a associação de moradores, gerou novos projetos


didáticos, exposições, textos, debates, contação de histórias, levantamento de referências locais,
para dentro da escola. Já para a associação esse trabalho gerou o plano de ação para atuar na gestão
do território no Sítio Paula. Um relato da presidenta da Associação expressa bem essa estratégia da
escola.
O momento é de planejamento de como a comunidade irá fazer o uso dessas terras que
agora é de todos. O encontro será na comunidade e de preferência no espaço da escola

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE

e que deve ter a participação da comunidade escolar também. Então a partir desse
momento traçamos como seria a participação da escola nesse processo de luta e
conquista que julgamos muito importante para a comunidade, uma vez que já é hábito
da escola trabalhar as especificidades que garantem o nosso currículo escolar (Rita
Luiza da Silva – Presidente da Associação do Sítio Paula, em entrevista em junho de
2029).

Essa afirmação reflete no papel que a escola tem na territorialização de conhecimentos que
se relacionem com as lutas locais e contribuam com o fortalecimento da identidade dos estudantes e
com a gestão do território. São ações pedagógicas como essas que podem fazer da escola e a
educação ferramentas para fortalecer a relação dos(as) alunos(as) quilombolas com seus territórios,
para conhecer e valorizar seus potencias e suas lutas. É notável que as conquistas que acontecem em
Conceição das Crioulas e na sociedade, em geral, assim como todas as conquistas, são frutos de
lutas sociais para consolidar direitos.

Por isso, uma proposta de educação que inclua as necessidades, os interesses e as visões de
mundo dos quilombolas demonstra que é possível diminuir as dicotomias entre escolas,
comunidades e lutas locais. O que se percebe é que, muitas vezes, a escola se distancia do “chão”,
da vida e da realidade na qual estão inseridos os quilombos. Romper com esse modelo ainda é um
desafio, talvez um dos mais significativos nos tempos de hoje.

Nessa perspectiva, quando pensamos a escola como um espaço específico de formação


inserida num processo educativo e organizativo bem mais amplo e não apenas como espaços de
socialização de saber que vem pronto e acabado sem deixar brechas, lacunas para outros saberes. É
nesse sentido que nos deparamos com mais de um currículo dentro da mesma escola, disputando
status ou controle. É preciso que regimentos (normas), finalidades, avaliações e conteúdos da escola
contenham os olhares e as perspectivas da comunidade onde a escola está localizada.

É perceptível que no sistema educacional existem diferentes interesses que se cruzam,


intercruzam e se chocam entre si – quando a comunidade é posta de um lado e a escola por outro. O
que vimos nessa experiência em Conceição das Crioulas é que é possível a junção de interesses,
escola e comunidade, já que a escola não é algo à parte da comunidade. Ela é, sobretudo, um
instrumento da/na vida da comunidade à qual atende e pertence.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 265


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

CONCLUSÃO

A escola pode ser considerada, então, como um dos espaços que interferem na construção da
identidade negra e na luta por direitos. O homem e a mulher negros não podem ser considerados
fora de suas características, de modos de ser e de pensar. Quando deixamos de considerar tais
aspectos, automaticamente estamos fugindo de princípios básicos da escola, que são assegurar que
as diferenças dos indivíduos sejam respeitadas, sem serem anuladas ou omitidas. O olhar lançado
sobre o negro e sua cultura, no interior da escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças
quanto pode estigmatizá-las, discriminá-las, segregá-las, negá-las e até matá-las.

A nosso ver, estão em disputa duas concepções de educação. Em uma delas, a comunidade
quer manter vivas suas raízes, seus valores. Em outra, a comunidade é o objeto e por meio da escola
anula suas especificidades. Não nos parece estar a escola fora desse embate, e o filtro de uma ou de
outra é o currículo.

Entendemos, portanto, que há espaço não somente na escola, mas também nela para abrigar
as duas “naturezas de saberes” sem perder os valores existentes em ambos – os saberes locais e
globais. Porém, respeitando aquilo que a comunidade acredita ser importante e pelo que vem
lutando há anos – por uma escola em que crianças, jovens e adultos possam se ver nela e com ela e
como parte dela.

A interação da escola com a vida da comunidade, pensando e elaborando materiais com as


definições e pressupostos do PPPTQxiii de Conceição das Crioulas, bem como os significados para
atender à realidade de um território e não apenas de uma escola isolada é o que nos mostra a
importância de alternativas coletivas a partir de um ponto de referência – aqui, a escola. Ao mesmo
tempo, retrata a ausência que há nas políticas públicas de educação que vêm oferecendo aos
cidadãos e cidadãs brasileiros como se eles fossem da mesma região e tivessem as mesmas
características e pertenças étnico-raciais.

Se a identidade de uma pessoa, de um grupo social não é algo fixo, se ela vai se construindo
a partir de questões práticas e subjetivas, ao mesmo tempo, no dia a dia, é possível construir o
fortalecer uma identidade positiva das pessoas negras e quilombolas e demais grupos com
marcadores raciais declarados, sem distanciá-las da vida cotidiana e sem negativar sua identidade,
fazendo com que esses sujeitos se vejam dentro desses espaços sem se sentir um(a) estranho(/a),
menor ou inferior.

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O PAPEL DA EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA NA GESTÃO DO TERRITÓRIO DE CONCEIÇÃO DAS CRIOULAS/PE

Os esforços a serem feitos agora devem ser no sentido da “desconstrução desse imaginário
negativo em relação aos negros(as) de formas também concretas”, na busca de diminuir a distância
entre os negros e não negros, entre urbanos e rurais no Brasil. Então, estimular as crianças
quilombolas a compreender o que significa seu território, que lutas e desafios são inerentes às suas
vidas, é tarefa da escola que se coloca como instrumento de luta política e disputa de outras
narrativas – narrativas menos excludentes.

A busca por uma educação mais inclusiva na comunidade quilombola de Conceição das
Crioulas e, pela própria comunidade, definida como educação diferenciada, não é feita apenas por
aqueles(as) que estão diretamente ligados(as) aos espaços escolares (salas de aulas, gestão escolar)
e, sim, por um conjunto maior de pessoas em um processo de participação ativa e busca de
autonomia, de liberdade e de mudança no fazer da educação e da escola.

As possibilidades buscadas de interações entre a educação formal, hoje denominada de


educação escolar quilombola e os saberes do conjunto da comunidade de Conceição das Crioulas,
chamado “nossa educação quilombola”, passam pela participação e compreensão do processo de
afirmação da identidade quilombola e a sua relação com o entorno, que envolvem questões
específicas daquele território.

A questão do pertencimento étnico/quilombola tem gerado, em muitos momentos, conflitos,


pois afeta uma relação de dominação entre os que chegaram após as crioulas (seis mulheres) e por
meio impositivo ocuparam parte do território. Afirmar-se quilombola, hoje, os remete a sujeitos de
direitos, o que implica a diminuição do poder dos não quilombolas. A educação foi e continua
sendo, em grande parte, responsável por essa mudança de concepção. Esses são os pressupostos da
Pedagogia Crioula e da Educação escolar Quilombola no quilombo de Conceição das Crioulas.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Notas de fim

i
Disponível em: Fundação Cultural Palmares.
ii
“Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a
propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.
iii
“Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem – as formas de expressão; II. os modos de criar, fazer e viver;
III. as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV. as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais; V. os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico”.
iv
“Art. 26. A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório
o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena (Redação dada pela Lei n. 11.645, de 2008)”.
v Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Brasil (CONAQ).
vi
Conferência Nacional da Educação Básica 2010 (CONAE).
vii
Define Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica.
ARAÚJO, E. F. A. Agostinha Cabocla: por três léguas em quadra – a temática quilombola na perspectiva global-
viii

local. 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas) – Universidade Federal da Paraíba, Paraíba, 2008.
ix
NASCIMENTO, Márcia Jucilene do. Por uma pedagogia crioula: memória, identidade e resistência no Quilombo de
Conceição das Crioulas – PE. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Sustentável, Mestrado em Sustentabilidade
junto a Povos e Territórios Tradicionais – MESPT) – Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
x
SILVA, Givania Maria. Educação e luta política no Quilombo de Conceição das Crioulas. Curitiba: Apris, 2016.
xi
Espaços formados entre rochas que guardam água e são usados em épocas de seca.
xii
Território; História; Identidade; Organização; Saberes e conhecimentos próprios; Gênero e Interculturalidade.
xiii
Projeto Político-Pedagógico do Território Quilombola de Conceição das Crioulas (PPPTQ), versão 2017.

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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?
UMA CONTRIBUIÇÃO PARA PENSAR OS DESAFIOS
DAS PAUTAS DA EDUCAÇÃO EM DIREITOS
HUMANOS NO BRASIL EM TRAVESSIA

Paulo César Carbonari

Tentar talvez nos custe a vida, mas não tentar certamente nos levará à morte
Maria Stewart, apud Collins, 2019

– Ó vida futura! Nós te criaremos.


Carlos Drummond de Andrade, Mundo Grande, 2012
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

“Qual educação em direitos humanos depois do atual Presidente da República”?, parodiando


Theodor Adorno. O “depois” é expressivo por ter duplo sentido, o do tempo atual e do tempo pós-
atual. Há educação em direitos humanos neste contexto? Será ela um modo de introjetar disciplinas
próprias da compreensão dos direitos humanos do tipo regulatório e repressivo, o que seria por si só
já um contrassenso, mas uma prática perfeitamente possível num contexto como o que vivemos?

Em outras palavras, qual educação em direitos humanos é possível em tempos de vigência


da racionalidade autoritária fascista? Esta é uma outra forma de fazer a pergunta. Remete para o
segundo aspecto do que nos interessa neste ensaio, que é pensar a educação em direitos humanos
como promoção de condições de enfrentamento do modo fascista, ainda que em contextos
marcados por ele.

Esta reflexão faz três movimentos: uma rápida análise do contexto atual; uma busca de
referências, em Adorno; e a identificação de desafios esboçados como aprendizagens a serem
trabalhadas na travessia. Espera-se colaborar com o processo reflexivo e com a prática da educação
em direitos humanos.

CONTEXTUALIZANDO...

Difícil de caracterizar de modo sucinto o tempo que nos é dado viver em nosso Brasil.
Ensaiamos alguns traços. Assim, o caracterizaríamos nos seguintes sentidos principais: o de um
populismo de direita, o de uma “racionalidade fascista” e o de um ultraneoliberalismo, combinados
e funcionais um ao outro.

O ultraneoliberalismo se caracteriza como a forma de vida capitalismo (que já não é só um


modo de produção) com centralidade no mercado em busca incessante de valor, mas sem produção i
e financeirização de tudo pela força da especulação financeira. O “modelo empresa” se reivindica
para tudo, inclusive para os indivíduos, de modo que passam a ser empresários de si ii. A vigência
dos interesses individuais (do individualismo egoísta)iii instala uma concorrência generalizada na
qual cada outro é transformado em potencial (senão real) inimigo, mais do que adversário, contra o
qual lutar o tempo todo, mantendo a distância necessária para que, no melhor do possível, haja a
tolerância baseada no medo (medo de perder tudo, de não ganhar ao máximo, de ser tomado
pelos(as) outros(as)). A concentração da riqueza e o crescimento da desigualdade iv, da
irresponsabilidade social e ambientalv e a quebra da solidariedade socialvi são consequências diretas
disso.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...

Os(as) principais afetados(as), os(as) mais vulnerabilizados(as), os(as) mais


precarizados(as), são “culpados(as)” de sua própria condiçãovii, adubando um terreno fértil para
uma “racionalidade fascista”viii. Ela é funcional ao ultraneoliberalismo e se caracteriza por ser:
racista (nega a alteridade, que é ameaça); dogmática (simplificadora da realidade, “falência da
crítica”); “neutra (se apresenta “sem ideologia”); autoritária (antidemocrática, não suporta sequer a
democracia liberal e faz governo a partir do medo); fatalista (“naturalização” das relações e dos
acontecimentos); antiutopista (rouba o direito de sonhar, o desejo do impossível); e anti-
intelectualista (recusando-se compreender o que está acontecendo, invocando logo saídas e
soluções). Ela se orienta pela atitude de “douta ignorância” (não aquela do cusano) que dá respostas
fáceis e superficiais: é a elevação do senso comum ao grau de ciência ou, no movimento contrário, a
invocação do tecnocrático como solução rápida que dispensa o engajamento da responsabilidade
coletiva. Orienta-se ao modo Ismênia, a irmã de Antígona de Sófocles, que defendia que o
impossível nem sequer pode ser tentado.

O populismoix de direita se caracteriza por ser ultraconservador. A direita teria capturado a


luta antissistêmica?x A política é transformada numa guerra permanente contra os adversários numa
dinâmica de mobilização dos adeptos fieis por meio da “guerra cultural”xi, que é sintoma de uma
crise de alternativas, forma de moralização, de demonização do outro, das diversidades, da
políticaxii. Isto significa que o “fazer política”xiii é menos cumprir um programa de governo e mais
um manter-se mobilizado e mobilizar permanentemente os próprios seguidores.

UMA REFERÊNCIA HISTÓRICA...

O texto Educação após Auschwitz resulta de uma palestra feita por Theodor W. Adorno pela
rádio de Hessen, em 18 de abril de 1965. Foi publicado em Zum Bildungsbegriff der Gegenwart, em
Frankfurt, em 1967. No Brasil foi publicado em Educação e Emancipação (1995). Nele, buscamos
apoio de referência.

A experiência da leitura deste texto é muito profunda. Uma das questões-chave revela
quanto as posições que vêm de Sigmund Freud, e que são por lembradas por Adorno (2003, p. 120),
seguem atualíssimas: “a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é
anti-civilizatório”. Opor-se a isso “tem algo de desesperador” visto que “a barbárie encontra-se no
próprio princípio civilizatório” (ADORNO, 2003, p. 120). O que “apavora” é que “a barbárie
continuará existindo enquanto persistirem noque tem de fundamental as condições que geram esta
regressão” (p. 119). Muito próximo do que diz Walter Benjamin na VII das teses Sobre o Conceito

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 271


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

de História (1940): “Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tempo, um
documento da barbárie” (BENJAMIN, 2005, p. 70). Também próximo do que é construído na
célebre Dialética do Esclarecimento (1947), que redigiu com Horheimer. Isso significa que a
“regressão à barbárie” não é apenas uma ameaça, mas é uma realidade. Nisso há uma atualidade e
uma consistência difíceis de serem suplantadas pelos progressismos ou pela excessiva confiança no
humanismo que, por vezes, cega ao que efetivamente vai acontecendoxiv.

O desejo de Adorno (2003, p. 119), expresso já na primeira frase de seu texto, o de que a
exigência primeira para a educação é que “Auschwitz não se repita”, soa, diante do que já foi dito,
como um desejo do impossível. E talvez este seja exatamente o principal desejo a ser qualificado
pelo processo de educação, ainda que o autor nem trate explicitamente disso.

A convocação feita por ele vai no sentido da superação do que chamou da “ausência de
consciência” (ADORNO, 2003, p. 121) e, depois, de “consciência coisificada” (Verdinglichung) (p.
130)xv, que guarda várias expressões, entre elas: a “índole dos algozes” (p. 124), o ideal da
“severidade”, a educação “baseada na força e voltada à disciplina” (p. 128-129)xvi, o “véu da
técnica” (p. 132)xvii, a naturalização do “ser-assim” (p. 132)xviii, a indiferença e a falta de empatia (p.
134)xix, o individualismo (p. 134)xx, a neutralidade (p. 136)xxi e os “assassinos de gabinete” (p.
137)xxii.

A superação destas condições se fará pela formação da consciência para a reflexão e a


autorreflexão crítica e para a resistência (ADORNO, 2003, p. 122), já que o “único poder efetivo
contra o princípio de Auschwitz seria a autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a
reflexão, a autodeterminação, a não participação” (p. 125). A educação, ainda que limitada, tem
uma responsabilidade fundamental de ajudar a “não esquecer” ou de alimentar a memória dos
acontecimentos, passados e atuais, como formação de consciência, mas também de promoção da
autorreflexão crítica, de modo a que os(as) sujeitos(as) se situem, se posicionem para resistir à
barbárie que segue presente, o que certamente também inclui a sua denúncia.

APRENDIZAGENS PARA A TRAVESSIA

João Guimarães Rosa dizia em Grande Sertão, Veredas (1956) que quem fica entretido nos
lugares de saída ou de chegada nada vê no meio da travessia. Mais, se “Digo: o real não está na
saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 1994, p. 86),
então, o risco é de, por apegar-se demais à saída ou à chegada, não se situar adequadamente no
meio da travessia e, dessa forma, ter mais dificuldade de achegar-se à realidade. Ora, quem se
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...

propõe à travessia é como quem “[...] quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra
banda é num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou” (p. 43).

Estes elementos servem nesta reflexão para o propósito de reforçar o que também encontra
eco na compreensão de Adorno de que não há uma separação absoluta entre civilização e barbárie.
E, se esta é uma posição aceitável, e concordamos que é, então, com Guimarães Rosa, o que está
posto é a necessidade de permanecer atento ao longo de toda a travessia, não só “entre” saída e
chegada, mas com o que se põe “no meio da”, visto que, para quem está “no meio da travessia”, o
meio nunca é um ponto fixo, dado que ele mesmo está em travessia, em movimento, com toda vênia
ao “paradoxo de Zenão”.

Se sempre chegamos à margem do outro lado do rio num ponto “bem diverso do em que
primeiro se pensou”, então uma travessia não aponta um lugar, uma margem, para a qual seguir; há
sempre alguma alternativa possível a ela e certamente será a uma destas a que se chegará e não à
que primeiro se planejou. Isso para dizer que enfrentar o totalitarismo, o fascismo, a barbárie, é uma
luta que se quer fazer, mas não se pode ter a certeza de que definitivamente se chegará à sua
superação definitiva, numa “margem segura”. O que pode ser “algo desesperador” é a condição na
qual se dá o processo educativo depois de Auschwitz, de modo que não se pode deixar de
permanecer em vigilância para fazer frente à ameaça permanente de “regressão à barbárie”.

Mas esta não é uma luta do bem contra o mal, até porque, ainda que se queira que “[...] o
bom seja bom e o rúim ruim, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio fique bem
apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos demarcados...”, na verdade,
“A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao
que, este mundo é muito misturado... (ROSA, 1994, p. 307).

Trata-se de um exercício político agonístico, de luta permanente e de aprendizagem


constante. Compreender a educação em direitos humanos deste modo é abandonar certezas a
respeito de práticas educativas, por melhores e mais resolutivas que sejam, para assumir que serão
sempre e não mais do que práticas educativas inseridas em contextos sociais e políticos e que se põe
sempre “no meio da travessia”. Daí porque, reforça-se a compreensão de que a educação em
direitos humanos é sempre, e não mais do que, processo, travessia, e que, por mais que se faça,
nunca se terá chegado a uma margem definitiva na qual se possa “descansar” por ter chegado a um
patamar de humanização satisfatório. Educar em direitos é educar para o “nunca mais”, mas, acima
de tudo, é educar para a “vigilância” – o melhor estado para a educação é a vigília!

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Adorno, combinado com Guimarães Rosa, inspira a pensar que os tempos autoritários não
são obra passada e nem lugares ou situações estanques. Eles são parte do processo civilizatório, já
que a barbárie não lhe é seu oposto e sim sua outra face constitutiva. Esta é a principal dificuldade
para a educação em geral e para a educação em direitos humanos: saber que, por mais que se
eduque, sempre estará posta a tarefa de seguir educando; saber que, por mais que humanize, sempre
estará posto o desafio de humanizar; saber que, ao formar sujeitos(as), sempre estará posta a
exigência de formar sujeitos de direitos. Este exercício é uma espécie de “querer o impossível”,
como já apontamosxxiii.

Outra aprendizagem é a respeito daquilo que a educação em direitos humanos, assim como a
luta contra o autoritarismo e o fascismo, tem que enfrentar. E esta não é uma agenda pequena. Não
se trata de uma ou outra prática isolada ou uma dinâmica pontual ou residual; trata-se de uma
racionalidade, de um modo de ser, de uma proposta de vida (ou de morte). O fascismo está
entranhado, como já vimos, e, se assim o é, seu enfrentamento exige compreender no profundo o
que significa e, como sugere Adorno, conhecer a “personalidade autoritária”, mas não só, porque
não é suficiente, já que há uma cultura cujo “mal-estar” é estruturante, como lembra Freud. Estudar
os traços característicos do modo de ser fascista é um dos desafios da educação em direitos
humanos. Assim que, não basta saber se há direitos, quais são eles, se estão sendo realizados ou
não. A educação em direitos humanos há de ajudar a compreender as razões do “mal-estar” de sua
irrealização.

A educação em direitos humanos há de ajudar a entender a perversidade que faz com que,
ainda que não suprima os direitos de direito, os destrua de fato. Esta contradição mais contundente
do fascismo atual é o que desafia de modo ainda mais difícil. Os direitos humanos não foram
retirados da Constituição. O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3)xxiv e o Plano
Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH)xxv, o Parecer e a Resolução do Conselho
Nacional de Educação com as Diretrizes Nacionais para a Educação em Direitos Humanos xxvi,
seguem vigentes, mas não para serem realizados. Seria no mínimo ridículo fazer estudos destes
instrumentos como se efetivamente permanecessem existido “para valer”, quando, a rigor, são parte
da história recente, e isso não é pouco, a ser apagada pelos que estão nos postos do poder, ainda que
por enquanto não tenham sido revogados ou substituídos. Seu estudo talvez possa servir para
mostrar como a civilização e a barbárie convivem! E para alimentar práticas de resistência.

Há uma agenda difícil de ser enfrentada e para a qual se faz necessário aprender, mais do
que ensinar. Não há modos elaborados que indiquem caminhos e talvez tenhamos que fazer um

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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...

trabalho imenso de pesquisa sobre o que se fez nos vários lugares do mundo que já passaram ou que
estão passando por travessias como as nossas. O que parece certo é que já não se pode seguir
fazendo mais do mesmo na educação em direitos humanos.

E, finalmente, a aprendizagem do como promover a formação da consciência para a reflexão


e a autorreflexão crítica e para a resistência (ADORNO, 2003, p. 122), medida para promover o que
Adorno classifica como o “único poder efetivocontra o princípio de Auschwitz”, a autonomia, que
ele traduz como “o poder para areflexão, a autodeterminação, a não participação” (p. 125). Aqui
está um programa de ação para a educação em direitos humanos que é oportuno para o tempo em
que vivemos. Trata-se de insistir e fazer processos, ainda que contra a tudo o que se põe como
apropriado. As três características da autonomia sugeridas por Adorno são fundamentais para a
educação em direitos humanos como agenda positiva.

Trata-se de desenvolver a reflexão, a autodeterminação e a não participação. Juntas,


oferecem subsídios para enfrentar o principal problema que é a “consciência coisificada”,
promovendo aquilo que Paulo Freire (1975, p. 45) chama de “ontológica e histórica vocação dos
homens [e mulheres] – a de SER MAIS”. A reflexão exige o desenvolvimento de modos diversos
de “conscientização” como aprendizagem da liberdade e do seu exercício nas relações entre
distintos. É ela que alimenta posturas que se recusam a aceitar o que é imposto como normal e,
sobretudo, a desenvolver a capacidade de crítica como atitude e como competência. A
autodeterminação exige que se trabalhe a independência e o posicionamento próprio. A
autodeterminação é consciência do limite e da relação, posição firme na dinâmica de convivência e
de construção do comum, que preserva a singularidade, mas que não se esvai em individualismos
egoístas identitários – e não se confunde com o empreendedor de si. A não participação, expressa
pelo negativo, é a que se traduz em resistência, em oposição, em força destituinte, em recusa à
colaboração. Esta é a qualidade mais difícil da autonomia em sociedades de massa e totalitárias,
visto que requer ir contra ao modo convencional de fazer e de ser. Como bem lembra Primo Levi,
em É isto um homem? (1958, p. 55), “[...] mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar
por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso
consentimento”. Ela não significa anomia ou afastamento dos espaços democráticos e participativos
no sentido lato, mas na denúncia dos falsos processos participativos e investimento na construção
da participação como efetividade e engajamento.

A autonomia exige construir um tipo de posição que escapa aos modos esquadrinhados e
formatados. Ítalo Calvino, em As Cidades Invisíveis (1972), traz o diálogo entre Marco Polo e

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Kublai Kahm que se segue a Aglaura. O grande Kahm comenta que: “– Entretanto, construí na
minha mente um modelo de cidade do qual extrair todas as cidades possíveis”. Segue: “– Ele
contém tudo o que vai de acordo com as normas. Uma vez que as cidades que existem se afastam da
norma em diferentes graus, basta prever as exceções à regra e calcular as combinações mais
prováveis” (1990, p. 67). Em resposta, Marco Polo sugere: “– Eu também imaginei um modelo de
cidade do qual extraio todas as outras”. E segue: “– É uma cidade feita só de exceções,
impedimentos, contradições, incongruências, contrasensos. [...]” (1990, p. 67).

O embate entre o grande Kahm e Marco demonstra uma tensão que também é própria dos
direitos humanos e da educação em direitos humanos: estar de acordo com as normas ou estar do
lado das incongruências, aderir ao sistema ou, como sugere Henri Lefebvre (2001, p. 9), “abrir o
pensamento e a ação na direção da possibilidade”, fazer dos direitos humanos mais um recurso de
regulação ou trabalhá-los como emancipação.Nossa tendência é mais ao modo Marco, na tradução
de Manu Chao, “clandestino, ilegal”xxvii.

A possibilidade de desenhar modos outros de ser e de viver que escapem à coisificação e à


massificação que alimentam o abandono da reflexividade e da autodeterminação se colocam como
tarefa pedagógica e política para uma escola que se faça educadora e formadora de sujeitos e
sujeitas de direitos humanos. Assim, a promoção da educação em direitos humanos segue sendo
encorajamento a ser mais ao modo do querer em detrimento do modo do dever, ou a fazer o dever
ao modo do querer, visto que é porque queremos direitos que concordamos com obrigações, não o
contrário. Aprender esta máxima anticonservadora, por excelência, é um dos principais desafios.

Aprender e seguir ensinando que os direitos humanos são a afirmação de que a humanidade
é um bem comum a todos(as) é primordial para a educação em direitos humanos. A humanidade
que está em cada ser humano é exatamente a mesma: são iguais. Mas, ainda que a humanidade que
está em cada um(a) seja a mesma, o modo como ela se apresenta é singular: humanos(as) são
únicos(as), distintos. Por isso, aprender a não discriminaçãoxxviii. Mas é também aprender a querer o
usufruto de todos os bens e as condições necessárias ao bem-viver (o direito à saúde, à educação, à
cultura, à moradia, à alimentação saudável, à liberdade de expressão, à mobilidade, a não sofrer
violência, a seguir a religiosidade que quiser, ao trabalho decente, à remuneração justa, ao lazer, à
previdência e assistência social, enfim...). Por isso, aprender a se opor a todas as formas de
imposição de austeridades destruidoras de direitos e de vidas.

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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...

PARA SEGUIR...

Bell Hooks, inspirada em Paulo Freire, traduz o que dissemos, ainda que noutros contextos,
por uma “pedagogia engajada” num processo através do qual o desafio é educar “para transgredir”.

No final da abertura de seu livro Ensinando a transgredir ela pede que todos(as) “[...] abram
a cabeça e o coração para conhecer o que está além das fronteiras do aceitável, para pensar e
repensar, para criar novas visões, celebro um ensino que permita as transgressões – um movimento
contra as fronteiras e para além delas. É esse movimento que transforma educação na prática da
liberdade” (HOOKS, 2013, p. 24).

Enfim, com Eva Schloss (2013), autora de Depois de Auschwitz, que no Prólogo, expressa o
desejo de seu testemunho, podemos afirmar: “Quero que elas saibam o que aprendi: apesar de todo
o desespero, haverá sempre esperança. A vida é muito preciosa e bonita – e ninguém deve
desperdiçá-la”. Ela certamente está falando da esperança do verbo esperançar...

É tempo de desejar o impossível e de querer muito mais do que resistir, é tempo de


“rexistir”, como sugere o antropólogo Eduardo Viveiros de Castroxxix, e de dizer, como Maya
Angelou, “E assim eu me levanto, eu me levanto, eu me levanto”xxx... para o que precisamos muito
de coragem e muito de alegriaxxxi...

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W. “Educação após Auschwitz”. In: Educação e Emancipação. 3. ed. Tradução: Wolfgang Leo
Maar. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 119-138.

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Fragmentos filosóficos. Tradução:
Guido Antônio de Almeida. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.

BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito de História. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma
leitura das teses Sobre o Conceito de História. Tradução: W. N. Caldeira Brandt [Tradução das teses por J. M.
Gagnebin e M. L. Müller]. São Paulo: Boitempo, 2005.

CALVINO, Ítalo. As Cidades invisíveis. 2. ed. Tradução: Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CARBONARI, Paulo César. A potencialidade da vítima para ser sujeito ético: construção de uma proposta de ética a
partir da condição da vítima. Tese (Doutorado em Filosofia) – Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, 2015.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro. Tradução: Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Boitempo, 2019.

DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: por que oito famílias têm mais riquezado que a metade da
população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

FOUCAULT, M. Nascimento da Biopolítica. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

FOUCAULT, M. O anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Tradução: Fernando José Fagundes Ribeiro.
Cadernos de Subjetividade, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados
em Psicologia Clínica da PUC-SP, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 198-200, 1993.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Tradução: M. B. Cipolla. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2013.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. Tradução: C.E. Marcondes de Moura. São Paulo: Três Estrelas, 2013.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. Tradução: Rubens Eduardo Frias. São Paulo: Centauro, 2001.

LEVI, Primo. É isto um homem? Tradução: Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

ORNELAS ROSA, Pablo (org.). Fascismo tropical: uma cibercartografia das novíssimas direitas brasileiras. Vitória:
Editora Milfontes, 2019.

OXFAM. País Estagnado: um retrato das desigualdades brasileiras. São Paulo: Oxfam, 2018. Disponível em:
www.oxfam.org.br/pais-estagnado. Acesso em: 18 jan. 2019.

OXFAM. Tempo de Cuidar. O trabalho de cuidado não remunerado e mal pago e a crise global da desigualdade. Trad.
Master Language. Oxford: Oxfam Internacional, Jan. 2020. Disponível em: https://oxfam.org.br/justica-social-e-
economica/forum-economico-de-davos/tempo-de-cuidar/. Acesso em: 22 jan. 2020.

RAND, Ayn. A virtude do egoísmo. Tradução: OnLine Assessoria de Idiomas. Revisão: W. Ling e C. Mendes Prunes.
Porto Alegre: Ortiz; IEE, 1991.

ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

SCHLOSS, Eva. Depois de Auschwitz: o emocionante relato da irmã de Anne Frank que sobreviveu ao horror do
Holocausto. Tradução: Amanda Moura. São Paulo: Universo dos Livros, 2013.
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...

Notas de fim

i
Ladislau Dowbor (2017, p. 246) defende que vivemos um “capitalismo improdutivo”. Em A Era do Capital
improdutivo diz: “O rentismo é hoje, sistematicamente mais explorador, e pior, um entrave aos processos produtivos e
às políticas públicas. O seu poder é grande, trata-se da estrutura de poder mais presente nos processos decisórios
públicos e privados. Sua grande vulnerabilidade está no fato de ser improdutivo, de constituir dominantemente uma
dinâmica de extração sem contrapartida à sociedade”.
ii
Foucault (2008, p. 222) dizia, em Nascimento da biopolítica, cursos de 1979, que a estratégia neoliberal é de construir
uma “formalização da sociedade com base no modelo da empresa”. E mais, o neoliberalismo defende que o ser humano
seja reduzido: “O homo o economicus é um empresário, e um empresário de si mesmo” (p. 311). Há muitos estudos a
este respeito e que são chave para compreender o neoliberalismo atual, mas não temos como deles nos ocupar neste
ensaio.
Ayn Rand, em Egoismo como Virtude (1991), desenvolve a tese de que a verdadeira ética é o “egoísmo universal”
iii

(ver referência completa). Esta obra trata sob o ponto de vista ético o que está no bestseller A Revolta de Atlas (1957).
iv
No relatório Tempo de Cuidar a Oxfam diz que, em 2019, os bilionários do mundo eram 2.153 pessoas e elas
detinham jutas mais riqueza do que 4,6 bilhões de pessoas; e que os 22 homens mais ricos do mundo detém mais
riqueza do que todas as mulheres que vivem na África; e que o 1% mais rico do mundo detém mais do que o dobro da
riqueza de 6,9 bilhões de pessoas (ver: https://oxfam.org.br/justica-social-e-economica/forum-economico-de-
davos/tempo-de-cuidar/). Para o Brasil, a Oxfam diz que, entre 2016 e 2017, pela primeira vez o Índice Gini estagnou e
está estagnada também a equiparação de renda da população negra (desde 2011) e das mulheres; os 40% mais pobres
registraram renda pior do que a média, o 1% mais rico ganha 72 vezes mais que os 50% mais pobres e mais, a metade
mais pobre da população perdeu 1,6% de seus rendimentos entre 2016 e 2017, enquanto o 10% mais rico teve
crescimento de 2% em seus rendimentos no mesmo período (ver: www.oxfam.org.br/pais-estagnado).
v
O relatório do Painel sobre Mudanças Climáticas (IPCC/ONU) recentemente divulgado é forte indicador desta questão
e chama à atenção para desafios gigantescos. Para um resumo dos dados atualizados, ver:
www.bbc.com/portuguese/geral-46424720. Para acesso ao relatório especial do IPCC, ver: www.ipcc.ch/sr15/
vi
Exemplo disso é a proposta de um suposto “direito ao equilíbrio fiscal intergeracional”, uma cláusula condicionante
da realização dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição Federal. Na verdade, um direito para negar
direitos. O tema está na Proposta de Emenda Constitucional sugerida pelo Ministro da Economia (PEC nº 188, de
05/11/2019) (ver: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8035501&ts=1576105226634&disposition
=inline).
vii
Reforça o que chamamos de “Racionalidade Vitimária” em nossa tese, cujas características principais características
são: “(1) naturalização da condição de vítima: vítimas são necessárias e inevitáveis; (2) culpabilização daqueles/as que
estão na condição de vítimas:vítimas merecem ser vítimas e devem “pagar” por sua culpa; (3)impotência daqueles/as
que estão na condição de vítimas: vítimas, por elas mesmas, não podem deixar de ser vítimas” (ver:
www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/4517).
Para um estudo do fascismo atual, ver, entre outros, o curso Psicologias do Fascismo, ministrado pelo professor
viii

Vladimir Safatle na USP, em 2019. O material do curso está disponível em: www.academia.edu/39801006/
Psicologias_do_fascismo_-_curso_completo_2019_?auto=download. No prefácio à edição americana de Anti-Édipo,
Michel Foucault (1993) faz uma sugestão de “princípios essenciais” do que chama de “Essa arte de viver contrária a
todas as formas de fascismo, estejam elas já instaladas ou próximas de sê-lo”. A coletânea Fascismo Tropical,
organizada por Pablo Ornelas Rosa (2019), também sugere questões sobre o tema.
ix
Necessário retomar o debate sobre o tema do populismo em geral e do populismo de direita em particular. Há
divergências sobre a adequação do uso desta terminologia para definir o que seja a situação da política atual e que aqui
não temos condições de trabalhar adequadamente.
x
A filósofa alemã Carolin Emcke é enfática: “O problema dos últimos anos foi a falta de desejo político. Parece que só
a extrema direita tem uma utopia. É uma utopia regressiva, de morte e destruição, mas utopia. Conservadores e social-
democratas não têm nenhuma”. Entrevista a El País em 12 nov. 2019 (ver: https://brasil.elpais.com/brasil/

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

2019/11/01/cultura/1572612640_359278.html?%3Fssm=FB_BR_CM&hootPostID=510df47c4f698da62cc2b062beb6d
b21).
xi
Em entrevista à Nexo, “O que é ‘guerra cultural’. E por que a expressão está em alta”, feita por Juliana Sayuri, e
publicada em10/03/2019, Eduardo Wolff e Esther Solano explicam o assunto. Segundo Eduardo Wolff, “‘Guerra
cultural’ se refere a um tipo especial de tensão social e política em determinada sociedade. Como o nome diz, esse
conflito ocorre na dimensão da cultura – da produção artística, pensamento e reflexão, no universo dos valores e
símbolos”. Esther Solano lembra que “É basicamente uma nomenclatura cunhada nos Estados Unidos, na década de
1990, para se referir a um deslocamento no debate público. Nos anos 1960 e 1970, tínhamos o debate mais clássico
entre esquerda e direita, fundamentalmente a partir de pautas econômicas. Depois, temos o deslocamento para pautas
mais morais, por exemplo, a questão do aborto, uma perspectiva mais punitiva e autoritária do Estado”. Ela também
observa que “Bolsonaro é uma peça simbólica da guerra cultural. Na campanha, por exemplo, não apresentou propostas
programáticas e se pautou por questões morais, privilegiando argumentos em defesa de Deus, da família e dos
costumes, de uma forma muito superficial” (ver: www.nexojornal.com.br/expresso/2019/03/10/O-que-%C3%A9-
%E2%80%98guerra-cultural%E2%80%99.-E-por-que-a-express%C3%A3o-est%C3%A1-em-alta).
xii
No momento da redação desse ensaio fomos surpreendidos pela notícia de mais uma manifestação do que aqui
estamos tratando e que veio pelo Secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim (agora ex). Chocado o escutei citando
Goebbels, sem o menor pejo, em pronunciamento feito em 17 de janeiro de 2020 em rede social (ver:
https://twitter.com/i/status/1217941233412321286). Felizmente foi demitido no mesmo dia.
Esta é a análise de Roberto Dutra Torres Jr, em entrevista ao IHU OnLine, de 06/01/2020, que diz: “O ponto mais
xiii

importante desse primeiro ano de governo é justamente a força desse modelo de fazer política, em que o governo
encontra na guerra cultural o seu principal instrumento de mobilização, em uma estratégia que parece ser uma
continuidade da campanha eleitoral” (ver: www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/595340-o-ponto-mais-
importante-desse-primeiro-ano-de-governo-e-a-forca-desse-modelo-de-fazer-politica-entrevista-especial-com-roberto-
dutra).
xiv
“Isto [milhões de pessoas inocentes foram assassinadas de uma maneira planejada] não pode ser minimizado por
nenhuma pessoa viva como sendo um fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não
importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente”
(2003, p. 120).
xv
“O caráter manipulador [...] se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências
humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura
praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que
ele e, possesso pela vontade de doingthings, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser
atuante, da atividade, da chamada efflciency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo.
Este tipo encontra-se, entrementes [...], muito mais disseminado do que se poderia imaginar” (2003, p. 129). E mais:
“No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o
conseguem, tornam os outros iguais a coisas” (2003, p. 130). No texto A filosofia e os professores (publicado na mesma
coletânea pela Paz e Terra), diz que “Uma das características da consciência coisificada e manter-se restrita a si mesma,
junto a sua própria fraqueza, procurando justificar-se a qualquer custo. E sempre admirável a esperteza de que até os
mais obtusos conseguem lançar mão quando se trata de defender malefícios” (2003, p. 71)
Incrível como tem relação com a proposta de educação “cívico-militar” que vem sendo implementada pelo governo
xvi

federal (ver programa num hotsite próprio, certamente dada sua importância central para o governo, em:
http://gov.br/escolacivicomilitar). Adorno diz: “Essa ideia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos
podem até acreditar, é totalmente equivocada. A ideia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de
suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que – como mostrou a psicologia – se identifica
com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de ‘ser duro’ de uma tal educação significa indiferença contra a
dor em geral” (2003, p. 128).
“Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fimem si mesmo, uma força
xvii

própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens” (2003, p. 132)

280
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QUAL EDUCAÇÃO EM DIREITOS HUMANOS?...

“Esta [a consciência coisificada] é, sobretudo, uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser,
xviii

frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um
determinado modo” (2003, p. 132).
“[...] se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que acontece com todas as outras,
xix

excetuando o punhado com que mantem vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses
concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito” (2003, p. 134).
xx
“A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o
pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se
assegurar disto” (2003, p. 134).
“Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem
xxi

dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo” (2003, p. 136).
xxii
“Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter
Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam.
Havia. Apesar disto, a pergunta e profundamente justificável. Benjamin percebeu que, ao contrário dos assassinos de
gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses
imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o
reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais” (2003, p. 137).
Como sugere a respeito de Adorno o que propõe Vladimir Safatle no controverso Dar corpo ao impossível: o
xxiii

sentido da dialética a partir de Theodor Adorno (Belo Horizonte: Autêntica, 2019).


É o terceiro PNDH, publicado pelo Decreto Federal n. 7.037, de 21/12/2009. Substitui o PNDH-2, que era de 2002
xxiv

(Decreto Federal n. 4.229, de 13/05/2002). A única coisa que foi revogada foi o artigo 4º que previa um Comitê de
Acompanhamento e Monitoramento (Decreto Federal n. 10.087, de 05/11/2019).
xxv
Elaboração iniciada em 2003 com a instalação do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos, publicado
em 2006. Ironicamente foi republicado em 2018 pelo então Ministério dos Direitos Humanos (ver: www.mdh.gov.br/
navegue-por-temas/educacao-em-direitos-humanos/DIAGRMAOPNEDH.pdf). O incrível é que, para quem se orienta
pelo portal do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é como se tudo seguisse como dantes,
inclusive com a existência do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos (ver: www.mdh.gov.br/informacao-
ao-cidadao/participacao-social/comite-nacional-de-educacao-em-direitos-humanos-cnedh/comite-nacional-de-
educacao-em-direitos-humanos, acesso em 18 de janeiro de 2020), criado pela Portaria n. 98, de 09/07/2003,
reestruturado pela Portaria n. 372, de 25/08/2015 e extinto pelo Decreto Federal n. 9.759, de 11/04/2019, que, além
deste, extinguiu vários outros espaços de participação em todas as áreas do governo. Mantém inclusive uma
Coordenação-Geral de Educação em Direitos Humanos, com pessoa nomeada para a função como se pode ver no
“quem é quem” do MMFDH (ver: www.mdh.gov.br/quemequem acesso em 18 de janeiro de 2020, sendo que o
currículo vitae do coordenador à época pode ser encontrado em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do
?id=K4360372Z0).
xxvi
Trata-se de decisão do Pleno do Conselho Nacional de Educação (CNE), através do Parecer CNE/Pleno n. 8, de
06/05/2012 e da Resolução CNE/Pleno n. 1, de 30/052012 (ver: www.mdh.gov.br/navegue-por-temas/educacao-em-
direitos-humanos/DiretrizesNacionaisEDH.pdf).
xxvii
Ver na versão playing for change: www.youtube.com/watch?v=WvPmNdNc2-E.
Angela Davis pede que: “numa sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”. Na
xxviii

conferência magna que pronunciou na Reitoria da UFBA, em 25/07/2017 (transcrição de Naruna Costa, tradução de
Raquel de Souza e notas de Juliana Borges, publicada no Blog da Boitempo) diz: “Afirmamos que, na medida em que
nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-
patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se
dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista que valoriza mais o lucro que
seres humanos”. E mais adiante “[...] quando as vidas das mulheres negras importam, então o mundo será transformado
e teremos a certeza de que todas as vidas importam” (ver: https://blogdaboitempo.com.br/2017/07/28/ angela-davis-
construindo-o-futuro-da-luta-contra-o-racismo/).

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 281


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

xxix
Ver “Brasil, país do futuro do pretérito”, Aula Inaugural do CTCH, PUC-Rio, 14/03/2019 (ver:
www.academia.edu/38756036/Brasil_pa%C3%ADs_do_futuro_do_pret%C3%A9rito). Ele diz, referindo-se à
resistência indígena: “E falo em resistência imanente porque os povos indígenas não podem não resistir sob pena de não
existir como tais. Seu existir é imanentemente um resistir, o que condenso no neologismo rexistir”.
xxx
Ver o poema completo traduzido em: www.geledes.org.br/maya-angelou-ainda-assim-eu-me-levanto/.
xxxi
E vem mais uma vez Guimarães Rosa (1994, p. 440/448), de Grande Sertão, Veredas: “Todo caminho da gente é
resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta! [...] O correr da vida
embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da
gente é coragem. Ser capaz de ficar alegre e mais alegre no meio da alegria, e ainda mais alegre no meio da tristeza”.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS
ORIGINÁRIOS

Reinaldo Matias Fleuri


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Com este texto, gostaria de retomar algumas anotações i sobre as possíveis relações do
pensamento freiriano com os princípios nãocoloniais inerentes às cosmovisões dos povos
originários, que resistem e reexistem aos genocídios e epistemicídios perpetrados no mundo de
Abya Yala pelos processos colonizatórios nos últimos cinco séculos.

Paulo Freire se sentiu profundamente interpelado pelas condições de “desumanização”


sofrida pelas classes populares com quem interagiu na América Latina e na África,
comprometendo-se com suas lutas de resistência e libertação. Mas, sobretudo, sentiu-se chamado a
aprender, com os movimentos populares, os legados ancestrais de suas culturas, “que os
colonizadores não conseguiram matar, por mais que se esforçassem para fazê-lo” (FREIRE, 1978,
p. 09).

De certa forma, os princípios pedagógicos enunciados em suas “pedagogias” – mesmo se


referenciando em grande parte a teorias e à religiosidade de origem ocidental, cristã – configuram-
se como reelaboração de princípios epistêmicos e éticos cultivados milenarmente por povos
originários no “sul”ii do mundo. É esta hipótese que gostaria de estudar, em diálogo com você,
leitora, leitor. Para isso, vou retomar aqui alguns traços da concepção de “Bem-Viver”, para ensaiar
compará-las com traços da pedagogia freiriana.

Paulo Freire é considerado um marco importante do pensamento decolonial, uma vez que se
soma a autores profundamente conectados com a realidade própria das classes subalternas latino-
americanas.

A perspectiva decolonial de estudos interculturais vem sendo desenvolvida na América


Latina por diferentes intelectuais e militantes. Segundo Carlos Walter Porto-Gonçalves,
[...] há um enorme legado teórico-político que nos vem desde Guaman Poma de
Ayala, Simon Rodrigues, Simon Bolivar, José Artigas, José Maria Caycedo, José
Martí, Emiliano Zapata, José Carlos Mariategui, Franz Fanon, Aymé Cesaire, C. R.
James, Pablo Gonzalez Casanova, Zavaleta Mercado, Florestan Fernandes, Silvia
Rivera Cusicanqui, Rachel Gutierrez, Anibal Quijano, Maristela Svampa, Enrique
Leff, Enrique Dussel, Walter Mignolo, Ramon Grosfogel, Catherine Walsh, Arturo
Escobar, Rui Mauro Marini, Norma Giarraca, Raul Zibechi, Pablo Mamani, Alberto
Acosta entre tantos e tantas que haveremos de considerar para um diálogo denso com
o pensamento crítico do sistema mundo capitalista moderno colonial em sua
heterogeneidade histórico-estrutural (PORTO-GONÇALVES, 2015, p. 246).

284
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS

O termo “decolonialidade” (diferentemente de “descolonialidade”) indica a opção política


que se propõe a “[…] trascender la suposición de ciertos discursos académicos y políticos, según la
cual, con el fin de las administraciones coloniales y la formación de los Estados-nación en la
periferia, vivimos ahora en un mundo descolonizado y poscolonial” (CASTRO-GOMEZ;
GROSFOGUEL, 2007, p. 13). A supressão do “s”, de(s)colonial indica não ser possível “desfazer”
ou “desconstruir” o colonial. E convida a um estado de permanente alerta e vigilância contra as
armadilhas das diferentes colonialidades (WALSH, 2009). Ou seja,
La intención, más bien, es señalar y provocar un posicionamiento – una postura y
actitud continua – de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial denota,
entonces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar, visibilizar y
alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alternativas (WALSH, 2009, p. 15,
nota de rodapé 1).

Neste sentido, “[...] reestablecer y reconstruir la comunión entre la naturaleza y las personas
es acto de decolonización y de liberación para la sociedad en su conjunto” (WALSH, 2009, p. 215).
Trata-se de uma atitude proativa de reconstrução das relações humanas e ecológicas expressas pelas
milenares cosmovisões ancestrais não coloniais. Segundo Mario Valencia (2015),
Lo no-colonial refiere a la generación, auspicio y dinamización de saberes-haceres
inspirados en el pensamiento crítico latino-americano y del Sur Global que encara los
retos civilizatorios actuales y de la investigación, con una actitud imaginativa-creativa.
En este sentido comparte con lo decolonial el punto de partida de la conciencia de
estado de colonialidad y su total rechazo, pero se diferencia de algunas de sus
versiones, para las cuales, la actitud y sus esfuerzos se concentran en una analítica
crítica de lo colonial, en términos de refutación, socavamiento, rechazo y
desprendimiento. Dis-tinto de ello, lo no-colonial se entiende aquí, como una
afirmación autodeterminada y creativa de la conciencia crítica y de todas sus
dimensiones de humanidad; para lo cual se concentra más que en desprenderse – de…,
en prenderse – de… la construcción de lo propio, esto determina que se concentren los
esfuerzos más en la imaginación epistémica para la autoconstitución y constitución
colectiva de escenarios sociales, culturales, políticos, de la sensibilidad otros, que en
la refutación dialéctiva de los patrones dominantes (VALENCIA, 2015, p. 12, nota 2 –
grifos nossos).

As perspectivas não coloniais potencializam e ultrapassam o esforço de crítica e de


desconstrução da colonialidade. A escuta epistêmica das cosmovisões ancestrais não coloniais

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 285


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

favorece a interação dialógica com os povos originários, o que nos possibilita aprender com eles a
“Bem-Viver”.

“Bem-Viver” para os povos indígenas, e suas variações nominaisiii, de acordo com a


cosmologia/cosmovisão/cosmogonia de cada um, é expressão de filosofias de vida em construção
que pretendem promover a decolonialidade do ser, do poder e do saber de forma coletiva
(TURINO, 2016).

O Bem-Viver se refere à inteira comunidade de todos os seres que compõem o cosmos e não
apenas aos seres humanos. “No se trata del tradicional bien com�n reducido o limitado sólo a los
humanos, abarca todo cuanto existe, preserva el equilibrio y la armonía entre de todo lo que existe”.
(HUANACUNI, 2010, p. 50). Em síntese, “Vivir bien es la vida en plenitud. Saber vivir en armonía
y equilibrio; en armonía con los ciclos de la Madre Tierra, del cosmos, de la vida y de la historia, y
en equilibrio con toda forma de existencia en permanente respeto”.

Luis Macas, equatoriano, indígena Kichwa Saraguro, afirma que os modos de vida das
nações originárias na América Andina têm por base o conceito de Sumak Kawsay:
Sumak significa plenitud, grandeza, lo justo, completamente, lo superior. Kawsay es
vida en realización permanente, dinámica y cambiante; es la interacción de la totalidad
de existencia en movimiento; la vida entendida desde lo integral. Es la esencia de todo
ser vital. Por tanto, Kawsay es estar siendo (MACAS, 2014, p. 184).

Macas esclarece que a tradução da expressão kichwa Sumak Kawsay para o espanhol, Buen
Vivir, não corresponde à concepção original, pois “[...] Buen Vivir en la lengua original kichwa
significa Alli Kawsay, que hace relación a lo bueno, a lo deseable, a la conformidad. Por lo tanto,
Alli Kawsay no guarda el mismo significado que el Sumak Kawsay” (MACAS, 2014, p. 184). Para
o autor, o conceito de Sumak Kawsay expressa uma filosofia de vida inerente a um sistema de vida
comunitário, enquanto o conceito de Buen Vivir corresponderia a uma visão ocidental cujo objetivo
seria melhorar o sistema vigente, estruturado com base no individualismo e na competição.

Maldonado (2014), também equatoriano indígena Kichwa Otavalo, assim como Macas
(2014), chama a atenção de que “[...] el riesgo consiste en que se adopte un término, una categoría
de los pueblos indígenas y se lo vacíe de contenido para llenarlo de un contenido extraño que sea
funcional al sistema” (MALDONADO, 2014, p. 198). É com este cuidado que utilizamos aqui o
conceito de Bem-Viver.

Fernando Huanacuni enfatiza que o Viver Bem só pode ser concebido em comunidade.
Deste modo “[…] irrumpe para contradecir la lógica capitalista, su individualismo inherente, la
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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS

monetarización de la vida en todas sus esferas, la desnaturalización del ser humano y la visión de la
naturaleza como un recurso que puede ser explotado, una cosa sin vida, un objeto a ser utilizado
(HUANACUNI, 2010, p. 51).
[…] la cosmovisión indígena, que considera a la naturaleza como un todo, que abarca
lo material, lo espiritual y humano [...] tiene una serie de principios que parten de la
idea de que se debe: cuidar y respetar al conjunto de seres vivientes que coexisten en
el ecosistema; conservar y fomentar la tierra; proteger los productos de consumo
humano, para mejorar el nivel de vida de la familia y de la comunidad; proteger los
recursos no renovables; incentivar a la comunidad para que cuide su propio ambiente;
socializar a nivel de la organización y las comunidades acerca de la conservación del
entorno como garantía de una vida digna tanto para las actuales generaciones como
para las futuras (TIB�N, 2000 apud HIDALGO-CAPIT�N et al., 2014, p. 49).

Bartolomeu Melià, linguista e antropólogo jesuíta, explica o Bem-Viver do ponto de vista do


povo Guarani:
“Tekó porã” é um bom modo de ser, um bom estado de vida, é um “bem-viver” e um
“viver bem”. É um estado de ventura, de alegria e de satisfação; um estado feliz e
prazeroso, aprazível e tranquilo. Há um bem-viver quando existe harmonia com a
natureza e com os membros da comunidade, quando existe alimentação suficiente,
saúde e tranquilidade, quando a “divina abundância” permite a economia da
reciprocidade, o “jopói”, isto é, “mãos abertas” de um para o outro (MELIÀ, 2013, p.
194, grifos – aspas – do autor).

Acosta (2016, p. 24) afirma que “O Bem-Viver é, essencialmente, um processo proveniente


da matriz comunitária de povos que vivem em harmonia com a Natureza.” Viver em harmonia não
admite tratar a natureza como mero recurso para satisfazer os atuais padrões de consumo. Pelo
contrário, decorre de modos de vida baseados em “[...] la comunión entre la naturaleza y los seres
humanos, y su manera de concebir y construir la vida a partir de la complementariedad, la
relacionalidad y la solidaridad como ética de coexistencia y de con-vivir” (WALSH, 2009, p. 214).

A literatura sobre o Bem-Viver (WALDM�LLER, 2014; BENTO, 2018, p. 99-111)


apresenta de forma mais ou menos ampla seus princípiosiv. Acosta (2016, p. 33) indica
resumidamente os princípios de “[...] reciprocidade, relacionalidade, complementariedade e
solidariedade entre indivíduos e comunidades [...]” como bases do Bem-Viver “[...] para formular
visões alternativas de vida.” Walsh (2009, p. 217) também descreveu a relacionalidade, a
correspondência, a complementariedade e a reciprocidade como princípios do Bem-Viver. E Macas

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(2014), por sua vez, traz os mesmos quatro princípios, porém denomina integralidade o que Walsh
(2009) apresenta como correspondência.

O princípio da relacionalidade refere-se à interdependência entre todos os elementos da


realidade social, natural e sobrenatural, interconectados de forma a se complementar e autorregular.
(WALSH, 2009). “[…] La idea de la relacionalidad se extiende a cualquier actividad – lo que un
individuo hace, tiene repercusiones en su entorno, sea este humano, natural o sobrenatural.”
(ALTMANN, 2016, p. 59). Desse princípio, derivam os demais.
[…] el principio de relacionalidad, expresa lo sustancial del vínculo entre todos los
componentes de la realidad. Nos habla de la interrelación que existe entre unos y otros
elementos que constituyen un sistema. Nada esta desarticulado o desligado de lo otro.
La relacionalidad constituye todo un tejido; los elementos de una realidad se
entrelazan mutuamente entre sí, en función de posibilitar la totalidad, la integralidad la
vida (MACAS, 2014, p. 187-188).

O segundo princípio se refere à correspondência ou à integralidade: a relação harmoniosa


entre os componentes da realidade corresponde a uma matriz inerente ao conjunto de todos os seres
existentes. “[...] Los elementos de la existencia no es posible que se desarrollen por separado, sino,
desde una matriz integral, dentro del conjunto de esa totalidad” (MACAS, 2014, p. 187). A relação
de correspondência existe desde e entre os vários níveis de relação possíveis. Assim, na visão
indígena andina:
Entre el micro y el macrocosmos, entre lo grande y lo pequeño existe una relación de
correspondencia. El orden cósmico de los cuerpos celestes, las estaciones, la
circulación del agua, los fenómenos climáticos y hasta lo divino tiene su
correspondencia (es decir, encuentra respuesta correlativa) en el ser humano y sus
relaciones económicas, sociales y culturales (MALDONADO, 2014, p. 204).

A complementaridade, terceiro princípio do Bem-Viver, indica a lógica de realização dos


dois primeiros. De acordo com este princípio, as dualidades (em que a lógica ocidental enfatiza
apenas a relação de oposição e de mútua exclusão), na filosofia indígena andina, são entendidas
como relações entre elementos que, ao se diferenciarem, são mutuamente complementares e
essenciais para que a vida se realize. Assim, cada elemento ou dimensão do sistema-cosmos, bem
como os outros dos quais se diferenciam e se excluem, são forças necessárias que convivem, se
relacionam e devem se manter equilibradas. Entende-se que tudo o que existe possui energias
negativas e positivas, que desagregam e que agregam, sejam animais, plantas ou seres humanos. A
continuidade da vida depende que elas se complementem. Ou seja, “cada ente y cada

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acontecimiento tienen como contraparte un complemento, como condición necesaria para ser
completo y ser capaz de existir y actuar. Los diversos se complementan” (MALDONADO, 2014, p.
204).
Es la constitución de dos elementos componentes en uno, la concepción del mundo de
la dualidad complementaria. Esto expresa lo indispensable del complemento, el ajuste
entre unos y otros para dar validez a un elemento de la realidad. Por cuanto nada es
incompleto, todo es integralidad, relacionalidad y complementariedad; desde su
complejidad y desde la dinámica de los principios, se genera la armonía y el equilibrio
(MACAS, 2014, p. 187).

Assim, o mal, a doença, a morte são entendidas como desequilíbrios na interação entre os
diferentes seres e entre seus respectivos contextos. São “passagens” fluidas de um padrão relacional
para outro, na busca de reequilíbrio e vitalidade. Não são propriedades fixas inerentes aos
elementos isolados. A potencialização da complementariedade entre os seres é o que permite
estabelecer o fluido equilíbrio vital, em harmonia e correspondência com o cosmos.

Por fim, o quarto princípio, o da reciprocidade, estabelece que a cada ação corresponde uma
reação, tanto na relação entre os seres humanos, como na relação destes com o universo (WALSH,
2009). Trata-se de uma prática social e econômica de organização da vida comunitária pautada em
relações solidárias e de assistência mútua (MACAS, 2014). A prática da reciprocidade é
fundamental e sustenta a organização comunitária de povos indígenas andinos exigindo que “a cada
acto humano o divino se debe corresponder, como finalidad integral, con un acto recíproco y
complementario equivalente entre sujetos. Dar para recibir es una obligación social y ética”
(MALDONADO, 2014, p. 204).

Com base neste princípio, as comunidades indígenas andinas controlam o excedente,


evitando o acúmulo e praticando a redistribuição.
La reciprocidad es una práctica de prestigiamiento social, de abundancia económica,
de legitimidad política y de fortaleza espiritual. A través de ella se redistribuyen los
excedentes y se logra un equilibrio social y económico. El cultivo de las relaciones de
reciprocidad, ayni o randi randiv, construyen la comunidad y sus relaciones de poder
colectivas (MALDONADO, 2014, p. 200).

Em suma, as cosmovisões de povos originários ancestrais nos ensinam a Bem-Viver, ou


seja, a viver e conviver em plenitude, de forma a promover relações e contextos de harmonia,
potencializando relações integrais, correspondentes ao princípios cosmológicos, mediante a

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ativação da complementariedade e reciprocidade entre todos os seres vivos – sejam humanos,


naturais e espirituais.

O Bem-Viver sustentado pelos povos originários difere radicalmente da perspectiva do


“viver melhor” construída pelas culturas moderno-coloniais.
[...] bajo la lógica de occidente, la humanidad está sumida en el vivir mejor. Esta
forma de vivir implica ganar más dinero, tener más poder, más fama... que el otro. El
vivir mejor significa el progreso ilimitado, el consumo inconsciente; incita a la
acumulación material e induce a la competencia. [...] La visión del vivir mejor ha
generado una sociedad desigual, desequilibrada, depredadora, consumista,
individualista, insensibilizada, antropocéntrica y antinatura. [...].

En la visión del vivir bien, la preocupación central no es acumular. El estar en


permanente armonía con todo nos invita a no consumir más de lo que el ecosistema
puede soportar, a evitar la producción de residuos que no podemos absorber con
seguridad. Y nos incita a reutilizar y reciclar todo lo que hemos usado. En esta época
de b�squeda de nuevos caminos para la humanidad, la idea del buen vivir tiene mucho
que ense�arnos (HUANACUNI, 2010, p. 50-51).

Assim, nos perguntamos: o que estamos aprendendo com os povos originários para viver e
conviver bem. E que implicações os princípios do “viver em plenitude” trazem para os próprios
processos educacionais?

EDUCAR NO BEM-VIVER

A cosmovisão do Bem-Viver entende que tudo faz parte da comunidade, formada não
apenas por seres humanos, mas por todos os seres que constituem o cosmos. Assim, os processos de
aprendizagem não acontecem de modo isolado dos contextos humanos, ecológicos e espirituais,
pois na natureza tudo está conectado, a vida de um é complementar à vida de outros. Na educação
comunitária se deve ensinar, compreender e respeitar as leis do cosmos.

Os povos originários questionam radicalmente a visão individualista e antropocêntrica da


educação ocidental.
La educación que estamos cuestionando se ha forjado bajo la visión occidental,
totalmente individualista; está dirigida simplemente a la educación del individuo. Es
una educación antropocéntrica, gracias a la premisa de esa ense�anza occidental
cristiana en la que el ser humano es “rey de la creación” y todo lo demás es inferior a
él y puede usar y abusar de todo lo que no es humano. Esta educación pretende
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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS

�nicamente generar fuerza de trabajo y fomenta la competencia entre los alunos


(HUANACUNI, 2010, p. 65).

Para se reconstituir o Bem-Viver é fundamental que se restabeleça a educação comunitária.


La educación comunitaria está basada en un enfoque y principio comunitarios, no
implica solamente un cambio de contenidos. Esto significa salir de la lógica individual
antropocéntrica para entrar a una lógica natural comunitaria; salir de una ense�anza y
evaluación individuales a una ense�
anza y valoración comunitarias; salir del proceso
de desintegración del ser humano con la naturaleza a la conciencia integrada con la
naturaleza; salir de una ense�anza orientada a obtener sólo fuerza de trabajo a una
ense�
anza que permita expresar nuestras capacidades naturales; salir de la teoría
dirigida a la razón para sólo entender, a una ense�anza práctica para comprender con
sabiduría; salir de una ense�anza que alienta el espíritu de competencia a una
ense�
anza-aprendizaje complementaria para que todos vivamos bien y en plenitud
(HUANACUNI, 2010, p. 65).

Fernando Huanacuni (2010, p. 65-70) explicita algumas características da educação


comunitária para o Bem-Viver. O autor enfatiza que todos participam da condução do processo
educativo, que é permanente, circular, cíclico, natural, produtivo e intercultural.

“A educação é de todos”, na medida em que todos os atores diretamente envolvidos na


prática educativa assumem decisões e responsabilidades, bem como toda a comunidade intervém na
condução do processo educacional. Neste sentido, a avaliação é comunitária. “Toda la comunidad
asume la responsabilidad de educar directa e indirectamente y el equilibrio de esta comunidad para
vivir bien será también responsabilidad de cada educando” (HUANACUNI, 2010, p. 67). Deste
modo, a educação comunitária “nos devolverá la sensibilidad con los seres humanos y la vida y la
responsabilidad respecto a todo lo que nos rodea” (p. 66).

A educação é permanente, porque se constrói durante toda a vida, para além dos contextos
escolares; permanentemente vamos aprendendo e ensinando.

A educação é circular, pois se aprende ensinando e se ensina aprendendo: “el ni�o también
le ense�a al maestro; le ense�a su alegría, su inocencia, su actuar sin temor, sin estructuras, una
educación de ida y de vuelta, donde ante todo, compartimos la vida (HUANACUNI, 2010, p. 66).

A educação é cíclica “porque todos y cada uno de los participantes asumirán en un momento
dado todos los roles que se requieran de manera rotativa” (HUANACUNI, 2010, p. 66). Assim, as

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crianças e os jovens podem exercitar todas as suas capacidades naturais e, ao mesmo tempo,
valorizar o trabalho que os outros realizam.

A metodologia natural permite construir uma relação de equilíbrio e harmonia com o


mundo e com a natureza.
Pasar de lo individualista a lo comunitario significa devolvernos la sensibilidad y la
percepción de la vida, a través del afecto principalmente, y no solo de la percepción a
nivel humano, sino de todo ese multiverso que nos rodea, en el que la relación ya no
tendría que ser de sujeto a objeto, sino de sujeto a sujeto, pues animales, plantas, la
monta�a, el río, la piedra, la casita... tienen energía, por lo tanto vida y forman parte
del equilibrio de la comunidad (HUANACUNI, 2010, p. 67).

A educação comunitária é produtiva, na medida em que está ligada à vida cotidiana, em


equilíbrio e harmonia com os ciclos da vida, com a Mãe Terra e o Cosmos.
La productividad está relacionada con la complementación, entonces al comprender y
practicar valores como el ayni (de reciprocidad y complementariedad), por ejemplo,
nos devolvemos nuestra propia naturaleza de ser productivos. El fruto es producto de
la convergencia de muchas fuerzas y energías, no solo de la acción mecánica de
sembrar; para que la semilla se convierta en fruto, muchos seres aportaron con sus
fuerzas: el Padre Sol, la Madre Luna, el Padre Lluvia, la Madre Tierra, la Madre
Agua, los gusanitos, el viento, etc. Entonces, nosotros recuperaremos nuestra
productividad cuando recuperemos la acción comunitaria complementaria
(HUANACUNI, 2010, p. 69).

Assim, cada pessoa pode expressar e aprimorar suas capacidades naturais.


La naturaleza ha otorgado a cada uno capacidades como la voz, el canto, la habilidad
en las manos, capacidad de expresar detalles, capacidad de iniciar, de concluir, de
razonar de manera abstracta, de manera concreta, de alentar, de curar, de expresar
energía fuerte, energía débil, de paciencia, dinamicidad, de crear, de bailar, de cuidar,
capacidad emotiva, habilidad en los pies, capacidad de describir, de escuchar y
muchas otras. Estas capacidades son naturales, fluyen como el río, el ser humano no
tiene que hacer mucho esfuerzo para expresar lo que la naturaleza le dio
(HUANACUNI, 2010, p. 69).

Entretanto, o desenvolvimento das capacidades naturais pessoais só se promove em


contextos de interação e diálogo, de complementação recíproca com os outros e com a natureza.
La educación comunitaria tiene que generar espacios primero para descubrirse en su
capacidad y luego para amplificar su capacidad natural. Esto no significa aislar las

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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS

capacidades sino generar espacios complementarios con otras capacidades. La vida


florece cuando hay diálogo, cuando hay complementación, cuando hay reciprocidad,
cuando hay deliberación (HUANACUNI, 2010, p. 70).

Os povos indígenas propõem a educação intercultural “que permita el conocimiento de la


cultura occidental y la valoración de su propia cultura a través de la ense�anza de las formas de
relación comunitarias, las ceremonias y la cosmovisión propia” (HUANACUNI, 2010, p. 68). Mas
que supere a dicotomia entre teoria e prática inerente à educação ocidental. “En la educación
comunitaria el proceso es uno solo, se ense�a y se aprende a la vez, porque las condiciones para el
maestro son diferentes de las condiciones para el ni�o, que al participar en la ceremonia o en la
actividad de grupo, está viviendo ese pensar-haciendo y aprender-haciendo”(p. 68).

Também a maioria dos povos indígenas brasileiros compartilham muitas dimensões do


Bem-Viver, bem como a visão educacional que enfatiza a autonomia pessoal, a participação
comunitária e a relação integral com a natureza (FLEURI, 2009). Deste ponto de vista, questionam
a educação colonial forjada pela modernidade europeia.

Para Eliel Benites, pesquisador e educador Kaiowá-Guarani, o sistema escolar e catequético


implantado pelos colonizadores desenvolve uma educação de fora para dentro. É o que Paulo
Freire chama de invasão cultural implementada pela educação bancária. A educação bancária
consiste como processo de transmissão de uma pessoa para outra, de um grupo sociocultural para
outro, de uma visão de mundo, tida em princípio como verdadeira e universal, de tal modo que o
outro o absorva e o reproduza de forma alienante e subalternizante. Ao contrário do processo de
educação de fora para dentro – afirma Eliel Benites – o povo Kaiowá-Guarani procura, hoje,
desenvolver a educação de dentro para fora: “É como uma fonte tapada que, ao ser desobstruída,
jorra água em abundância. A água que jorra é a reflexão. A reflexão que se apresenta como a
capacidade de se repensar o seu projeto e sua relação com o mundo a longo prazo” (Depoimento de
E. BENITES apud FLEURI, 2009, p. 17).

PAULO FREIRE E O BEM-VIVER

Nos encontros pessoais com Paulo Freire, por várias vezes o ouvi dizer: “Não me copiem!
Me reinventem”. Assim, para concluir este ensaio, gostaria de levantar algumas hipóteses para
“reinventar” ou se “reencontrar com” Paulo Freire desde as cosmologias, filosofias e pedagogias
cultivadas milenarmente pelos povos originários do “sul global”.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Muitos povos originários do continente de “AbyaYala”, bem como dos continentes africano
e austral, foram dizimados ou subalternizados pelos violentos processos de colonização e
escravização impostos ao longo da história da humanidade. Entretanto, muito de suas cosmovisões
resistem e reexistem de múltiplas formas. Mediante escuta intensa e sensível podemos aprender
com estes povos a restabelecer nossos modos de vida e de produção segundo os princípios
ancestrais, que aqui indicamos com o conceito de “Bem-Viver”.

Os princípios epistemo-pedagógicos formulados por Paulo Freire transparecem uma íntima


relação com os princípios educacionais inerentes às culturas dos povos originários. Paulo Freire
elaborou sua concepção pedagógica utilizando referências culturais de teorias críticas ocidentais.
Mas seu engajamento com os movimentos sociais populares foi um processo pelo qual, muito
provavelmente lhe possibilitou aprender com perspectivas epistemológicas das culturas dos povos
ancestrais revividos por comunidades populares da América Latina.

Assim, pode-se reconhecer os princípios do Bem-Viver em sua metodologia didática


dialógica, que se caracteriza pela cooperação e reciprocidade nas relações entre o educadores e
educandos, favorecendo uma atmosfera de aceitação mútua, respeito, compreensão e comunicação
entre diferentes sujeitos, na busca de compreensão e transformação dos contextos socioculturais e
ambientais em que se constituem. Paulo Freire, neste sentido, muito se aproxima da perspectiva
decolonial ao indicar que as pessoas “se educam em comunhão, mediatizadas pelo mundo”
(FREIRE, 1975, p. 79).

Por outro lado, desde o ponto de vista não colonial das culturas ancestrais, somos
convidados a reconfigurar a própria pedagogia crítica, ultrapassando a concepção antropocêntrica e
racionalista de teóricos existencialistas e materialistas a que Paulo Freire faz referência ao longo de
sua obra.

O “mundo”, que sustenta as próprias relações entre os seres que o constituem, não se reduz à
dimensão humana, mas incorpora as dimensões cosmológica e espiritual. O cosmos é constituído
pela relação harmoniosa entre todos os seres do universo, que a própria ciência moderna hoje vai
descrevendo desde o infinitamente pequeno (como a teoria quântica) até o infinitamente grande,
como as relações entre as galáxias, que mesmo a bilhões de anos-luz de distância estão
sistemicamente conectadas ao nosso planeta Terra.

A espiritualidade vem também sendo ressignificada, para além da visão dualista


predominante nas culturas ocidentais, que opõe a matéria ao espírito (o espírito é entendido como
“imaterial”, por consistir em dimensões da realidade não perceptíveis sensorialmente, através da
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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS

visão, audição, tato, sabor ou odor). A vida de cada ser é gerada e sustentada pelas complexas
conexões com todos os seres presentes no cosmos que, por sua vez, contém as conexões com todos
os seres pelos quais foram gerados e com todos os seres que serão gerados pelas relações entre os
seres vivos no presente.

Nesta perspectiva, o fundamento cosmológico e espiritual da opção política pela pedagogia


do “oprimido” seria não apenas as lutas por desconstruir as instituições sociais, políticas e
econômicas coloniais que produzem homicídios, genocídios e epistemicídios, mas, sobretudo, por
empoderar a reexistência das conexões relacionais de complementariedade, reciprocidade e
integralidade entre todos os seres que vivem e geram vida em plenitude.

Do ponto de vista educacional, a proposta freiriana de educação, entendida como processo


dialógico de problematização e transformação das relações socioculturais desiguais e injustas, veio
sendo construída como um instrumento de luta política dos grupos sociais e étnicos subalternizados
ou excluídos pelos processos de colonização. Contudo, podemos aprender com as lutas
sociopolíticas conduzidas pelos povos ancestrais a radicalizar os projetos de transformação social
para além dos limites do Estado-Nação e do antropocentrismo, criando perspectivas de organização
política que sustentem as diferenças culturais e socioambientais, bem como os direitos pluriversais
da natureza, comprometendo-nos com os direitos de todas as gerações futuras a partir de nossa
gratidão pelas vidas que as gerações precedentes nos geraram. Em muitas culturas ancestrais, a vida
e a educação dos adultos estaria voltada a sustentá-los no cuidado das crianças, para que possam
expressar e dar vida às ancestralidades de que são portadoras ao nascer. E este aprendizado ao longo
da vida se faz na relação de escuta intensa e sensível aos anciões e anciãs, que se constituíram ao
longo de suas vidas como ancestrais, que fazem pontes de conexões com as gerações a que estamos
dando vida.

Na proposta pedagógica de Paulo Freire, os círculos de cultura apresentam-se como uma


estratégia educacional para favorecer o diálogo na comunidade sobre as contradições que enfrentam
em seu contexto social, de modo a promover a organização política para superá-las. Nesta direção,
com as culturas indígenas, aprendemos que as lutas sociais e políticas não se restringem a mudanças
no âmbito do sistema mundo moderno-colonial, mas se busca reconstruir as relações educacionais
e, particularmente, introduzir processos de formação “[...] para a pesquisa inter e transcultural, uma
disciplina corporal, mental e espiritual centrada na observação, energização e intuição”.
(GAUTHIER, 2011, p. 55).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Por conseguinte, o diálogo problematizador a partir dos temas geradores pode ultrapassar o
enfoque econômico-político dos processos de opressão e dominação, questionando seus
fundamentos epistêmicos moderno-coloniais. O diálogo crítico entre as culturas ancestrais pode
permitir processos transculturais e transmodernos de empoderamento epistêmico-ético dos
diferentes povos e gerações, no sentido de “[...] desarollar las potencialidades, las possibilidades de
essas culturas y filosofias ignoradas; acciones llevadas a cabo desde sus propios recursos [...]”.
(DUSSEL, 2017, p. 29).

Querida leitora, leitor, o que lhe apresentei neste ensaio são apenas indícios da formulação
ético-epistêmica de princípios cosmológicos e educacionais que intelectuais orgânicos de povos
originários andinos vêm construindo em torno da concepção do Bem-Viver. E mesmo as indicações
comparativas com o denso pensamento de Paulo Freire são ainda hipotéticas. Espero que a
“situação-limite” do caráter ensaístico deste texto lhe seja um convite a promover o “inédito-viável”
de escuta intensa e de diálogo intercultural crítico com os povos originários ancestrais, cuja vida e
convivência atravessam também o território e o povo brasileiro. Ao traçarmos juntos estes
percursos de buscas, entendo que estamos nos educando como “pessoas em relação, mediatizadas
pelo mundo”, ao mesmo tempo em que, enraizando nossas reflexões, ações, relações dialógicas nas
culturas originárias ancestrais, estaremos contribuindo para “educar” ético-epistemicamente nossos
próprios “mundos” a viver e a conviver em plenitude.

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PAULO FREIRE E AS COSMOVISÕES DOS POVOS ORIGINÁRIOS

REFERÊNCIAS

ACOSTA, Alberto. O bem-viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária;
Elefante, 2016.

ALTMANN, Philipp. Buen Vivir como propuesta política integral: Dimensiones del Sumak Kawsay. Revista
Latinoamericana de Políticas Y Acción Pública, [s.l.], v. 3, n. 1, p. 55-74, maio 2016.

BENTO, Karla Lucia. Povo Laklãnõ/Xokleng e/em processos de decolonização: leituras a partir da Escola Indígena
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BOLÍVIA. Constitución Política del Estado (CPE). [S.l.: s.n.]: 7 fev. 2009. Disponível em
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 297


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

PORTO-GON�ALVES, Carlos Walter. Pela vida, pela dignidade e pelo território: um novo léxicoteóricopolítico desde
as lutas sociais na América Latina/AbyaYala/Quilombola. Polis, Santiago, v. 14, n. 41, p. 237-251, 2015. Disponível
em: https://dx.doi.org/10.4067/S0718-65682015000200017. Acesso em: 12 mar. 2017.

SANTOS, B.; MENEZES, M. P. (org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic
Transition. Nova Iorque: Routledge, 1995.

TURINO, Célio. Prefácio à edição brasileira. In: ACOSTA, Alberto. O bem-viver: uma oportunidade para imaginar
outros mundos. São Paulo: Autonomia Literária; Elefante, 2016. p. 13-16.

VALENCIA, Mario Armando Cardona. Ojo de J� baro. Conocimiento desde el tercer espacio visual. Prácticas estéticas
contemporáneas en el Eje Cafetero colombiano. Popayán: Editorial Universidad de Cauca; Sello Editorial, 2015.

WALDM�LLER, J. Buenvivir, Sumak kawsay, “Good living”: an introduction and overview. Alternautas, [s.l.], v. 1,
n. 1, 2014, p. 17-28. Disponível em: http://www.alternautas.net/blog/2014/5/14/ buen-vivir-sumak-kawsay-goodliving-
an-introduction-and-overview. Acesso em: 19 ago. 2019.

WALSH, Catherine. Interculturalidad, Estado, Sociedad – Luchas (De)Coloniales de Nuestra Época. Quito:
Universidad Andina Simon Bolívar/Abya Yala, 2009.

Notas de fim

i
Uma versão reelaborada deste texto compõe também o livro “Paulo Freire Hoje – em AbyaYala”, coeditado por
Camila Wolpato Loureiro, CheronZanini Moretti, João Colares da Mota Neto e Reinaldo Matias Fleuri.
ii
Boaventura de Sousa Santos também nos convida a “aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a
partir do Sul e com o Sul” (SANTOS, 1995, p. 508). O “Sul” metaforicamente indica um campo de desafios
epistêmicos emergentes das relações coloniais estabelecidas historicamente entre a Europa Moderna e outros povos,
bem como pelas relações de exploração, dominação e subalternização entre diferentes grupos sociais, seja nas
metrópoles europeias, seja nas próprias nações colonizadas. Nesta direção, as epistemologias do Sul são constituídas
pelo conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão de muitas formas de saber próprias dos
povos e/ou nações colonizados, “valorizam os saberes que resistiram com êxito e investigam as condições de um
diálogo horizontal entre conhecimentos” (SANTOS; MENEZES, 2010, p. 13).
Teko porã, para os Guaranis no Brasil; Suma qamaña, para os Aymara bolivianos; Allikawsay ou Sumakkawsay para
iii

os Kichwa equatorianos (TURINO, 2016; WALSH, 2009).


iv
Na Constituição do Equador (2008), que assume o “Buen Vivir” como objetivo central das políticas p� blicas, os
princípios descritos no Título VII, Artigo 340, são a universalidade, igualdade, equidade, progressividade,
interculturalidade, solidariedade e não discriminação (ECUADOR, 2008). Já na Constituição da Bolívia (2009), o
“Vivir Bien” ou “Suma Qam�ú a”, estabelece princípios éticos e morais para uma sociedade plural, cujo Estado se
sustenta nos valores de unidade, igualdade, inclusão, dignidade, liberdade, solidariedade, reciprocidade, respeito,
complementariedade, harmonia, transparência, equilíbrio, igualdade de oportunidades, equidade social e de gênero na
participação, bem-estar comum, responsabilidade, justiça social, distribuição e redistribuição dos produtos e bens
sociais (BOLÍVIA, 2009).
v
Em Kichwa, randi randi está ligado ao indivíduo, ao apoio pessoal e ayni ao trabalho coletivo da comunidade em
benefício da própria comunidade (MALDONADO, 2014).

298
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL:
A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL SOBRE
ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS
CONTINUA?

Roseli Fischmann
Sobre a sombra que sou gravita
A carga do passado. É infinita.
Jorge Luís Borges
All our yesterdays
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O presente trabalho procura oferecer dados obtidos e vividos com relação ao debate
histórico em torno do ensino religioso em escolas públicas, tendo em vista a presença na
Constituição Federal de 1988, após intenso e forte debate público, de dispositivo que propõe que a
oferta de ensino religioso seja obrigatória para as escolas públicas, garantida a matrícula facultativa
para os alunos e alunas. Mais recentemente, em 2017, independentemente do resultado, foi de
grande importância histórica o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, impetrada em julho de 2010 pela Procuradoria Geral da
República.

Trago, então, resultados preliminares e parciais de pesquisa desenvolvida com apoio do


CNPq, oferecendo, inicialmente, uma visão de antecedentes dessa ADI, a seguir uma breve
descrição do que propôs a referida ADI, uma notícia sobre o julgamento e seus resultados,
propondo atenção ao acórdão, comparativamente ao parecer e voto do Ministro Relator, oferecendo,
então uma breve reflexão sobre os paradoxos decorrentes da sobreposição do julgamento com ação
do Governo Federal, no mesmo ano de 2017, voltada para o Ensino Fundamental em todo o
território nacional.

Trata-se de estudo com base bibliográfica e documental, fundada, em alguns aspectos, em


autoetnografia, voltada para compartilhar e analisar processos vividos como intervenção
educacional, como tenho adotado nas pesquisas desde 1994, em termos de compromisso ético,
especialmente na atuação conjunta com grupos, organizações e instituições voltadas para o tema em
estudo. Espero, assim, propiciar elementos para uma melhor compreensão de fato tão complexo
como tem sido a trajetória do ensino religioso nas escolas públicas, assim como para a ampliação e
aprofundamento do debate público em prol da cidadania e da escola pública.

ANTECEDENTES E BASE LEGAL

A escola pública foi marcada por quatrocentos anos de união legal e de fato entre a Igreja
Católica Apostólica Romana e a monarquia brasileira – primeiramente como colônia de Portugal
como reino e como reino unido e mesmo depois da Independência, como Império do Brasil. Era
uma ordem social estabelecida sobre uma base em que o Estado mantinha união absoluta com a
religião. Convém lembrar que as grandes navegações, em busca de “descobertas” de novas terras,
tinham tanto motivação econômica, como vinculação direta ao conflito religioso aberto com a
Reforma de Lutero, contestando a hegemonia os dogmas, a doutrina e a organização católica.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

Em trabalhos anteriores (FISCHMANN, 1996; 2012), indiquei como inicialmente os


primeiros jesuítas, que chegaram ao Brasil em 1554, com Tomé de Souza, receberam do Rei de
Portugal, D. João III, a atribuição de cuidar da catequese dos indígenas, considerada então relevante
tanto na conquista da “nova” terra, como no processo da Contrarreforma, pela qual a Companhia de
Jesus era a grande líder e articuladora. Essa missão fazia-se mediante verbas advindas do Padroado,
acordo realizado entre Portugal e a Santa Sé no século XV.

Na prática, o Direito do Padroado, entre outros componentes, permitia que o rei português
recolhesse o dízimo dos fiéis católicos, a título de garantir recursos para cuidar da obra divina. Ou
seja, o dízimo, como compromisso religioso, era recolhido pelo rei e por ele empregado nas obras
do reino, pode-se dizer que na prática funcionava como um imposto recolhido em nome de uma
divindade. No caso da ação jesuítica na então Colônia, para a efetivação da educação catequética da
população indígena foi destinada a redizima de todos os dízimos, parcela determinada após
reivindicações vigorosas do padre Manoel da Nóbrega, que chefiou o primeiro grupo da Companhia
de Jesus no Brasil.

Por 210 anos os jesuítas estiveram à frente da escola pública, que, ao longo desse tempo,
paulatinamente foi sendo desenvolvida aos moldes do que se fazia em Portugal, destinada aos filhos
dos colonizadores portugueses, por reivindicação desses que atuavam como conquistadores e
queriam para seus filhos o que teriam em Portugal, onde os jesuítas eram responsáveis pela então
chamada instrução pública, como também pela Universidade de Coimbra. Contudo, as fontes das
verbas continuavam a ser parcelas de redizima dos dízimos.

Ora, a expulsão dos jesuítas de Portugal e Colônias em 1754, por obra de Sebastião José de
Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, o déspota esclarecido de Portugal, à época do Iluminismo,
fez dele o patrocinador e supervisor das chamadas Reformas Pombalinas que, na prática, no Brasil
como colônia, pouco alteraram o sistema de vinculação da instrução pública aos ditames da Igreja
Católica, retirados apenas os jesuítas.

Tampouco o Império viria alterar essa situação, pois a primeira Constituição do Brasil, a que
foi outorgada por D.Pedro I em 1824, assim estabeleceu:
Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do
Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo
(BRASIL, 1824).

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 301


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Num quadro em que havia, como já mencionado, união total entre o Império e a Igreja
Católica, a instrução pública era integralmente submetida a esse desígnio, assim como os docentes,
pensados para atuar nessa atividade, tida como missão. As verbas para educação pública, contudo,
por essa época, já começavam a escassear, a despeito de promessas, manifestações de valorização e
mesmo de legislação a respeito.

Observa-se assim, ainda que numa síntese muito apertada, que dos 400 anos iniciados no
Brasil a partir da conquista portuguesa, três aspectos permaneceriam como pontos cruciais da
temática da religião na escola pública: a missão; a formação e atuação do professorado vinculadas à
determinação religiosa; e o financiamento do ensino, então em simbiose com o religioso.

A chegada da República instituiu, na instrução pública, o “ensino leigo” como então


denominado na Constituição de 1891, apropriado a um regime republicano e laico, instituído a
partir do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890, pouco depois da Proclamação da República, em
15 de novembro de 1889. Essa marca republicana e laica nem sempre tem se mantido na prática,
ecoando a herança, a mentalidade e a expectativa do período da monarquia.

Portanto, trata-se de um debate marcado pelo regime republicano, cuja laicidade


constitucionalmente determinada é colocada sob ameaça sempre que se tenta retomar, ainda que de
modo disfarçado, a inserção obrigatória do ensino religioso nas escolas públicas, encontrando, a
cada vez, formas várias que, a título de resolver impasses e contradições, introduzem novos
problemas.

Movimentos em defesa da escola pública fizeram e fazem alusão a quão fundamental é a


laicidade da escola pública, em manifestações e documentos diversos, ao longo de todo o Século
XX e nessas primeiras décadas do século XXI. Foi a mobilização social de educadores, intelectuais,
pesquisadores, sindicatos, entidades nacionais diversas, científicas ou não, que levou à garantia de
que não se perdesse o indispensável caráter laico da escola pública na legislação atualmente
vigente, ainda que a aplicação dessa mesma legislação seja feita, muito frequentemente, em
flagrante violação do que se encontra estabelecido por documentos legais.

Preponderantemente, embora não exclusivamente, tempos preparatórios de novos


documentos legais, na vigência de regime democrático e não de exceção, foram momentos
marcantes de debates sobre a presença do ensino religioso nas escolas públicas. Assim: as vésperas
da promulgação da Constituição Federal de 1946; a década que antecedeu a primeira Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei n. 4024/61; o período de intensos debates na
passagem do período de 21 anos de ditadura militar para a redemocratização e a nova Constituição
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

Federal, que viria a ser promulgada em 1988; quase uma década antes da promulgação da nova Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei n. 9394/96.

Para destacar documentos legais que se encontram em vigor, recortando especificamente o


que é específico e literal sobre ensino religioso nas escolas públicas, cabe trazer dois excertos
legais.

Em primeiro lugar, a Constituição Federal, em seu Art. 210 § 1º:


Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais.

§ 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários


normais das escolas públicas de ensino fundamental.

§ 2º O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada


às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos
próprios de aprendizagem.

A seguir, o Art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9394/96,


dedica-se integralmente ao que se apresenta como uma regulamentação do Art. 210 § 1º:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação
básica do cidadão e constitui disciplina de horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.

§ 1º. Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para definição dos


conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão
dos professores.

§ 2°. Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes


denominações religiosas, para a definição dos conteúdos dos ensinos religiosos.

Vale lembrar que, dentre as bases jurídicas a que se vincula o debate sobre o ensino religioso
nas escolas públicas, devem ser incluídos aqueles dispositivos que se referem tanto à laicidade do
Estado, conforme proposta no Art. 19 da Constituição Federal, como às garantias de direitos e
deveres individuais, presentes no Art. 5º.

O caráter laico do Estado é determinado no Título III, Capítulo I da Constituição Federal


(Brasil, 1988), dedicado à organização político-administrativa do Estado, o que permite observar a
relevância desse tema. Determina esse dispositivo:

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 303


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

I. estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o


funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou
aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; [...].

Já o Título II da Constituição Federal (BRASIL, 1988), “Dos direitos e garantias


fundamentais”, traz em seu Capítulo I “Dos direitos e deveres individuais e coletivos”, o Art. 5º,
que apresenta 78 incisos voltados para garantir a todas e todos a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, também fundamenta o debate relativo ao ensino
religioso nas escolas públicas, estabelecendo em seu inciso VI:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]

VI. é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre


exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias; [...].

Processo social e político mais amplo, descrito e analisado em artigos anteriores, ampliou o
interesse acadêmico sobre o tema, levando a um aumento substancial de áreas e pesquisadores
dedicados a investigar diretamente o problema, ou tópicos ligados a ele. Pesquisa realizada com
apoio do CNPq, por esta pesquisadora, indicou, mesmo, aumento de número de grupos de pesquisa
ligados ao tema da laicidade do Estado e ao ensino religioso nas escolas públicas a partir desse
processo, ocorrido em duas etapas: a primeira no final de 2006 e maio de 2007; a segunda, ao longo
de 2009.

Refiro-me ao Acordo Brasil – Santa Sé, conhecida também como Concordata com a Santa
Sé. A primeira fase do debate público ocorreu quando, em novembro de 2006, após receber convite
para participar de um encontro no MEC que trataria de ensino religioso nas escolas públicas “no
âmbito da Concordata com a Santa Sé”, ao ligar para o telefone de contato fornecido no convite,
perguntei se conheciam minha posição, como pesquisadora compromissada com a democracia e a
República. Disseram que sim, mas que por isso seria importante que lá estivesse. Como ocorrera
uma situação prévia, minha atenção elevou-se.

É que durante um evento acadêmico, em setembro de 2006, ouvira de uma docente da


Faculdade de Direito da PUC de Santiago do Chile que o Brasil já integrava o grupo de países que
tinham Estado católico, não aceitando ela que eu dissesse que não era assim. Ela me disse que me

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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

faltava informação, e foi complementada pelo advogado da Nunciatura Apostólica no Brasil, que
afirmou que estava praticamente pronta uma concordata “muito completa”, que seria assinada pelo
então Presidente Lula da Silva, quando da visita do Papa Bento XVI, programada para maio de
2007, durante a cerimônia de canonização de Frei Galvão.

Assim, o convite para aquele evento no MEC sobre ensino religioso nas escolas públicas
tornou-se a evidência empírica de algo que, até então, era uma fala durante um evento, sem
qualquer documento escrito, propiciando-me vir a público por meio de um artigo no jornal Folha de
S. Paulo. A repercussão desse artigo foi tal, que mobilizou setores os mais variados, pois estavam
em jogo muitos elementos, não apenas o ensino religioso nas escolas públicas, tema tão caro a
quem pertente à área da Educação. Houve mobilização da Anped, SBPC, Anpocs, Andhep, além de
programas de pós-graduação de diferentes áreas, de diferentes universidades, movimentos de
mulheres, movimentos negros, movimentos indígenas, movimentos de procuradores, de juízes,
entre outras categorias, bem como aproximação de diferentes religiões e diversas outras
denominações cristãs. Essa grande mobilização levou a que não fosse assinada a referida
concordata durante a visita do papa ao Brasil, a qual ocorreu, mas sem o impacto que era
pretendido.

Contudo, em 2009 houve o retrocesso de voltar o tema, já com a assinatura do Ministério


das Relações Exteriores, por meio do Secretário Geral do órgão. Como acordo bilateral, faltava ser
aprovada pelo Congresso Nacional, passando pelas duas Casas. Novamente se colocou grande
mobilização pública, incluindo pressão de deputados de diversos partidos, inclusive do PT, como se
sabe, partido do Presidente Lula. Parte dessa pressão parlamentar levou a audiência pública,
considerada como reunião de esclarecimento pelos deputados federais que defendiam a Concordata,
para a qual fui convidada e que se estendeu por 3 sessões, sendo 2 na sala da Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional, que patrocinava o encontro. Tratei desse processo em alguns artigos
voltados especificamente sobre o tema, sendo um deles de particular interesse para o presente
trabalho (FISCHMANN, 2009), que poderá ser consultado para melhor compreensão de questões
documentais, bem como dos debates havidos.

Resulta que, após complexo e tenso processo, o acordo foi aprovado no Congresso Nacional,
sendo promulgado pelo Presidente da República em fevereiro de 2010, por meio do Decreto n.
7.107/2010. Especificamente para a questão do ensino religioso nas escolas públicas, foi adicionada
a seguinte controvérsia, indicada pelos grifos:

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Artigo 11. A República Federativa do Brasil, em observância ao direito de liberdade


religiosa, da diversidade cultural e da pluralidade confessional do País, respeita a
importância do ensino religioso, em vista da formação integral da pessoa.

§ 1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula


facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino
fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em
conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de
discriminação (grifos da pesquisadora).

A ADI 4.439

É nesse contexto que a Procuradoria Geral da República, por intermédio da procuradora


doutora Débora Duprat, naquele momento como Procuradora Geral da República em exercício,
apresentou ao Supremo Tribunal Federal – STF, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4439, em
30 de julho de 2010. Preliminarmente essa ADI teve como relator o Ministro Ayres Britto e, após
sua aposentadoria, foi atribuída, em 2013, ao Ministro Roberto Barroso.

A ADI apresenta dois dispositivos legais à consideração do STF. O primeiro é o já


anteriormente aqui mencionado Art. 33 da LDB n. 9394/96, não para submeter o texto em si, mas
para apresentar duas solicitações interrelacionadas e apresentadas como uma: que seja conferida ao
mencionado dispositivo “interpretação para assentar que o ensino religioso em escolas públicas
somente pode ter natureza não confessional, com proibição de admissão de professores na
qualidade de representantes das confissões religiosas”.

O segundo é o já mencionado Art. 11 do Decreto 7.107/2010 (Acordo Brasil – Santa Sé),


solicitando a ação:
(ii) para assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza
não-confessional; ou (iii) caso se tenha por incabível o pedido formulado no item
imediatamente acima, seja declarada a inconstitucionalidade do trecho “católico e de
outras confissões religiosas”, constante no art. 11, § 1°, do Acordo Brasil - Santa Sé
acima referido.

Após apresentar as modalidades de ensino religioso que extraiu da primeira redação do Art.
33 da Lei n. 9394/96, ou seja, confessional, interconfessional e inter-religioso, lembrando a
mudança havida com a alternativa adotada na LDB a partir da Lei n. 9.475/97 (que adiante será
tratada). Percebe-se que a Procuradora Geral da República em exercício acolhe como constitucional

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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

o texto atual do Art. 33, ressaltando, contudo, que há problemas na sua aplicação, por todo o
território nacional, inclusive em termos da situação de quem pode ministrar ensino religioso nas
escolas públicas.
Assim, aponta que a questão é que se tem aplicado de modo inconstitucional o referido
dispositivo, situação que poderia ser sanada se a interpretação permitisse adotar o que denomina
como “modalidade não confessional” garantido que fosse ministrada por professores que não
fossem representantes das confissões religiosas. Assim está exposto no texto inicial da ADI 4439:
(6.) A tese a ser aqui desenvolvida é a de que a única forma de compatibilizar o caráter
laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas é através da
adoção do modelo não-confessional, em que o conteúdo programático da disciplina
consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais
das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o
agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores. Estes, por
outro lado, devem ser professores regulares da rede pública de ensino, e não pessoas
vinculadas às igrejas ou confissões religiosas.

O segundo aspecto, a inclusão do polêmico tema do Acordo Brasil-Santa Sé, dependeria do


acolhimento dessa primeira parte da ADI, relativa à adoção do modelo não-confessional, portanto o
debate efetivamente fulcral da ADI.

A AUDIÊNCIA PÚBLICA

Atendendo sugestão apresentada na ADI 4.439, o Ministro Luís Roberto Barroso decidiu,
em março de 2015, convocar Audiência Pública para 15 de junho do mesmo ano.

A mobilização provocada pela convocação da audiência bem indicou a relevância, tanto da


ADI, como da convocação da audiência, em si.

Observe-se que em 2010 e início de 2011, logo após a Procuradoria Geral da República ter
ajuizado a ADI 4.439, o movimento que havia ocorrido foi de diversas e diferentes instituições
peticionaram, cada uma delas, para intervir no processo como amicus curiae.

No despacho agendando audiência pública, o Ministro Barroso não apenas determinou


autoridades públicas e entidades que receberiam convite, como estabeleceu sistemática para pedido
de habilitação para participar por parte de outras entidades não mencionadas a princípio.
Novamente a mobilização foi grande, não apenas pedindo habilitação para manifestação na
audiência pública, como também houve novos peticionamentos para integração ao processo, de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

cada instituição requerente, como amicus curiae, e de instituições que já estavam presentes,
individual ou como coletivo de organizações, no processo como amicus curiae.

A audiência pública trouxe grande volume e qualidade de novos documentos para subsidiar
o trabalho do Ministro Relator, já que as entidades participantes apresentaram documento por
escrito, nem sempre idêntico ao que foi exposto na audiência pública, a qual, por sua vez, está
integralmente postada no canal do STF do Youtube. Tive a honra de ser uma das preletoras,
representando a Confederação Israelita do Brasil.

Houve 31 participantes na Audiência Pública, sendo que as seguintes dez entidades foram
convidadas previamente pelo Ministro Roberto Barroso, que convocou a referida audiência: (i)
Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed); (ii) Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE); (iii) Confederação Israelita do Brasil (Conib), (iv)
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), (v) Convenção Batista Brasileira (CBB), (vi)
Federação Espírita Brasileira (FEB), (vii) Federação das Associações Muçulmanas do Brasil
(Fambras), (viii) Igreja Assembleia de Deus – Ministério de Belém, (ix) Liga Humanista Secular do
Brasil (LIHS), e (x) Sociedade Budista do Brasil (SBB). Além destas, o Ministro Barroso deferiu a
participação de outros 21 órgãos e entidades, inscritos nos termos do edital de convocação
publicado pelo STF: (i) Ação Educativa Assessoria, Pesquisa e Informação; (ii) AMICUS DH -
Grupo de Atividade de Cultura e Extensão da Faculdade de Direito da USP; (iii) Anis – Instituto de
Bioética, Direitos Humanos e Gênero; (iv) Associação Nacional de Advogados e Juristas Brasil-
Israel (Anajubi); (v) Arquidiocese do Rio de Janeiro; (vi) Associação Inter-Religiosa de Educação e
Cultura (Assintec); (vii) Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em
Teologia e Ciências da Religião (Anptecre); (viii) Centro de Raja Yoga Brahma Kumaris; (ix)
Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ; (x) Comissão de Direitos
Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados; (xi) Comissão Permanente de Combate às
Discriminações e Preconceitos de Cor, Raça, Etnia, Religiões e Procedência Nacional
(CPCDPCRERPN); (xii) Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa da Secretaria de
Direitos Humanos da Presidência da República; (xiii) Conectas Direitos Humanos; (xiv) Conselho
Nacional de Educação do Ministério da Educação; (xv) Convenção Nacional das Assembleias de
Deus - Ministério de Madureira; (xvi) Federação Nacional do Culto Afro-Brasileiro (Fenacab) em
conjunto com Federação de Umbanda e Candomblé de Brasília e Entorno; (xvii) Fórum Nacional
Permanente do Ensino Religioso (Fonaper); (xviii) Frente Parlamentar Mista Permanente em
Defesa da Família; (xix) Igreja Universal do Reino de Deus; (xx) Instituto dos Advogados

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

Brasileiros (IAB); e (xxi) Observatório da Laicidade na Educação em conjunto com o Centro de


Estudos Educação & Sociedade.

Dos 31 participantes da audiência, 23 defenderam a procedência da ação, quais sejam:


CNTE; Consed; Conib; CBB; FEB; CGADB; LiHS; SBB; Brahma Kumaris; Igreja Universal do
Reino de Deus; Anis; Cedes; Amicus DH; Conectas; CPCDPCRERPN; Ação Educativa Assessoria,
Pesquisa e Informação; Fonaper; Conselho Nacional de Educação do MEC; CNRDR da Presidência
da República; Anptecre; IAB; Anajubi; e Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito
da Uerj. Embora concordando com a procedência da ação, as análises foram diferentes entre si,
propondo encaminhamentos diversos.

Por outro lado, dos 31 participantes, 8 defenderam a improcedência da ação, a saber, CNBB,
Conamad, Arquidiocese do Rio de Janeiro, Deputado Marco Feliciano, Fambras, Fenacab, Assintec,
Frente Parlamentar Mista Permanente em Defesa da Família. A maior parte dessas 8 participantes
apresentaram seus argumentos em defesa do Acordo Brasil – Santa Sé, enquanto outros procuraram
trazer interpretações alternativas de como entender a laicidade do Estado, buscando destacar,
ampliar e mesmo sobrepor à Constituição Federal, valores religiosos de suas confissões religiosas.
Esses posicionamentos anunciavam perspectivas de novos embates na relação entre o Estado
e as religiões, no âmbito dos quais o tema do ensino religioso nas escolas públicas pode passar a ser
apenas uma das ameaças à laicidade do Estado brasileiro, como definido na Constituição Brasileira,
em seu Art. 19.

O JULGAMENTO DA ADI 4.439 E SEU ACÓRDÃO

Após relatório que trouxe reflexão aprofundada sobre o tema da religião na atualidade, bem
como uma revisão dos aspectos legais relacionados ao tema, foi na terceira parte do relatório que o
Ministro Barroso apresentou sua tese, como Ministro-Relator, para votação do Plenário:
Portanto, Presidente, eu concluo lendo a ementa do meu voto e a minha tese de
julgamento:

1. O princípio constitucional da laicidade, Constituição Federal, artigo 19, inciso I,


apresenta-se com três conteúdos: separação formal entre Estado e Igreja, neutralidade
estatal em matéria religiosa e garantia da liberdade religiosa.

2. O ensino religioso nas escolas públicas, em tese, pode ser ministrado em três
modelos: confessional, que tem como objeto a promoção de uma ou mais confissões
religiosas; interconfessional, que corresponde ao ensino de valores e práticas

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 309


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

religiosas com base em elementos comuns entre os credos dominantes na sociedade; e


não confessional, que é desvinculado de religiões específicas.

3. Somente o modelo não confessional de ensino religioso nas escolas públicas é


capaz de se compatibilizar com o princípio da laicidade estatal. Nessa modalidade, a
disciplina consiste na exposição neutra e objetiva das doutrinas práticas, história e
dimensões sociais das diferentes religiões, incluindo posições não religiosas, e é
ministrada por professores regulares da rede pública de ensino e não por pessoas
vinculadas às confissões religiosas.

4. Procedência do pedido: interpretação conforme a Constituição do artigo 33, caput, e


parágrafos 1º e 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, e do artigo 11,
parágrafo 1º, do acordo Brasil-Santa Sé aprovado por meio do Decreto Legislativo nº
698, de 2009 (BARROSO, 2017, p. 20-21).

Dessa forma, o Ministro-Relator Luiz Roberto Barroso votou pela procedência do pedido
apresentado pela PGR na ADI 4.439 (DF), ou seja, seu voto considerou inconstitucional o modo
como vinham se dando as aplicações do Art. 33 da Lei n. 9.394/96, que têm sido realizadas em
escolas públicas por todo o território nacional, assim como o Art. 11 do Acordo Brasil – Santa Sé,
entendendo que a oferta de ensino religioso não confessional apresenta-se como o único modo
constitucional de cumprir o § 1º do Art. 210 da Constituição Federal (1988). Vale destacar, ainda,
que o Ministro Barroso, em seu relatório, dedicou cuidadosa atenção ao fato de que a matrícula
facultativa na “disciplina” ensino religioso nas escolas públicas tem sido desconsiderada de muitos
modos, violando os direitos fundamentais de crianças e adolescentes que cursam o Ensino
Fundamental.

O primeiro a votar depois do Ministro-Relator foi o Ministro Alexandre de Moraes, que


abriu divergência, votando pela improcedência da ADI 4.439. Os votos dos Ministros do STF
trouxeram diferentes argumentações, resultando que o voto do Ministro-Relator Roberto Barroso
pela procedência da ADI 4.439/DF, foi vencido pela maioria do Pleno do STF, de fato por um voto,
sendo a referida ação julgada, portanto, improcedente.

Votaram pela procedência da ADI 4.439/DF, os Ministros e Ministra Roberto Barroso


(Relator), Rosa Weber, Luiz Fux, Marco Aurélio e Celso de Mello. Votaram pela improcedência da
ADI 4.439/DF, os Ministros e Ministra Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Dias Toffoli, Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes, e a Presidente Carmen Lucia.

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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

Embora os que votaram pela improcedência da ADI 4439 tenham apresentado diferentes
argumentações para fundamentar sua divergência, essa diversidade de posicionamentos não se
refletiu no texto final do acórdão, para o qual foi designado como Relator, pela Presidente do STF,
o Ministro Alexandre de Moraes. De fato, a ênfase recaiu sobre a polarização entre “modelo
confessional” e “modelo não confessional”.

Tratando-se de texto enxuto, são apresentados a seguir alguns trechos do acórdão relativo ao
julgamento da ADI 4439:
5. A Constituição Federal garante aos alunos, que expressa e voluntariamente se
matriculem, o pleno exercício de seu direito subjetivo ao ensino religioso como
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental,
ministrada de acordo com os princípios de sua confissão religiosa e baseada nos
dogmas da fé, inconfundível com outros ramos do conhecimento científico, como
história, filosofia ou ciência das religiões.

6. O binômio Laicidade do Estado/Consagração da Liberdade religiosa está presente


na medida em que o texto constitucional (a) expressamente garante a voluntariedade
da matrícula para o ensino religioso, consagrando, inclusive o dever do Estado de
absoluto respeito aos agnósticos e ateus; (b) implicitamente impede que o Poder
Público crie de modo artificial seu próprio ensino religioso, com um determinado
conteúdo estatal para a disciplina; bem como proíbe o favorecimento ou
hierarquização de interpretações bíblicas e religiosas de um ou mais grupos em
detrimento dos demais.

FINALIZANDO: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL CONTINUA?

A questão proposta no presente trabalho indaga se o resultado do julgamento da ADI 4.439,


e o modo como ficou consolidado em seu acórdão, não apenas não teria resolvido, como teria
mesmo aprofundado a controvérsia constitucional relativa ao ensino religioso nas escolas públicas,
conforme a Constituição Federal (1988), artigo 210 § 1º, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional n. 9.394/96, artigo 33.
O primeiro refere-se ao próprio texto do Art. 33 da Lei n. 9.394/96, Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, seguindo os termos da Lei n. 9.475, de 22 de julho de 1997, que alterou o
referido artigo apenas 7 meses depois da promulgação da LDB.
O primeiro texto da LDB n. 9.394/96, abarcando a possibilidade de oferta de ensino
religioso em caráter confessional, como se verá, determinava:

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 311


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários
normais das escolas públicas de ensino fundamental, sendo oferecido, sem ônus para
os cofres públicos, de acordo com as preferências manifestadas pelos alunos ou por
seus responsáveis, em caráter:

I. confessional, de acordo com a opção religiosa do aluno ou do seu responsável,


ministrado por professores ou orientadores religiosos preparados e credenciados pelas
respectivas igrejas ou entidades religiosas; ou

II. interconfessional, resultante de acordo entre as diversas entidades religiosas, que se


responsabilizarão pela elaboração do respectivo programa.

Já o texto da Lei n. 9.475/97, alterou a redação desse artigo, determinando:


Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação
básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de
ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil,
vedadas quaisquer formas de proselitismo.

Ora, o parecer apresentado pelo Deputado Padre Roque Zimmermann (PT-PR) sobre 3
projetos de lei apresentados sobre o tema do ensino religioso, foi aprovado pela Câmara dos
Deputados, estritamente por acordo de lideranças, no último dia antes do recesso parlamentar de
julho de 1997, resultando na aprovação da Lei n. 9.457/97. Os 3 projetos antes referidos foram 2 de
autoria de deputados federais, a saber, deputado Nelson Marchezan e deputado Mauricio Requião, e
o terceiro de autoria do Poder Executivo, voltado para garantir financiamento público apenas à
oferta de ensino religioso ofertado em caráter ecumênico.

Nesse parecer sobre os três PLs, o Deputado Padre Roque afirma, por exemplo:
A análise dos três projetos evidencia importantes convergências que merecem ser
destacadas. Todos adotam o princípio de que o ensino religioso é parte integrante
essencial da formação do ser humano, como pessoa e cidadão, estando o Estado
obrigado a promovê-lo, não só pela previsão de espaço e tempo na grade horária
curricular do ensino fundamental público. Mas, também pelo seu custeio, quando não
se revestir de caráter doutrinário ou proselitista, possibilitando aos educandos o acesso
à compreensão do fenômeno religioso e ao conhecimento de suas manifestações nas
diferentes denominações religiosas.

E também:
[...] pela primeira vez no Brasil se criam oportunidades de sistematizar o ensino
religioso como disciplina escolar que não seja doutrinação religiosa e nem se

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A ADI 4.439/DF NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: A CONTROVÉRSIA CONSTITUCIONAL...

confunda com o ensino de uma ou mais religiões. Tem como objeto a compreensão da
busca do transcendente e do sentido da vida, que dão critérios e segurança ao exercício
responsável de valores universais, base da cidadania. Esse processo antecede qualquer
opção por uma religião.

Ora, os trechos acima deixam claro que o espírito da Lei n. 9.475/97, ao alterar o Art. 33 da
LDB, incluindo no texto da lei, que “compilou” os três projetos abarcados no relatório do Deputado
Padre Roque, explicitamente pronunciou-se contra o ensino religioso confessional, por fim
aprovado pelo Pleno do STF por maioria apertada de votos, ao mesmo tempo que reconhece a
constitucionalidade do Art. 33 da LDB. Que desdobramentos podem ocorrer com a afirmação, pelo
STF, daquilo que é negado pela Lei? Como se define, nessa circunstância, o tema do financiamento
da oferta de ensino religioso nas escolas públicas em caráter confessional? Como lidar com a
questão de quem deve ministrar ensino religioso nas escolas públicas? Se o vínculo com as religiões
e denominações é inevitável no modelo confessional, dificultando a seleção de professores e
professoras, como permitir que crie ônus para os cofres públicos?

O segundo indicador objetivo a sustentar que a controvérsia constitucional continua e talvez


mesmo tenha se agravado após o julgamento no STF, é a adoção pela Base Nacional Comum
Curricular para o Ensino Fundamental (BNCC/EI-EF), proposta pelo MEC, de ensino religioso
como uma “área curricular” dentre cinco, com proposta específica, aprovado pelo Conselho Pleno
do CNE em 15 de dezembro de 2017 e homologado pelo MEC em 20 de dezembro do mesmo ano.
Não seria a “área curricular” de ensino religioso um bem acabado exemplo do que “a Constituição
implicitamente impede” qual seja, “que o Poder Público crie de modo artificial seu próprio ensino
religioso, com um determinado conteúdo estatal para a disciplina”, como registrado no acórdão da
ADI 4.439? Como se resolve o tema do ensino religioso para as escolas confessionais? Serão elas
obrigadas a oferecer o conteúdo da Base, ou terão liberdade para manter o ensino da confissão
religiosa a que se vincula a escola? Como se resolve a questão da formação de professores, bem
como da seleção? Serão professores efetivos, para um conteúdo de matrícula facultativa?

Observe-se que, quando da aprovação da BNCC/EF, já havia sido julgado pelo Pleno do
STF a ADI 4.439 e considerada improcedente, sendo a data da decisão constante no Acórdão a de
27 de setembro de 2017. Repetindo, explicitamente já havia sido considerado inconstitucional o
Estado definir conteúdo para o ensino religioso nas escolas públicas, o que foi feito, contudo, pela
BNCC/EF (MEC, 2017). Seria esse, já, um desdobramento da inconsistência da decisão vitoriosa no
STF, como acima indagado? Que outros desdobramentos poderão ocorrer dessa evidente e objetiva

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

divergência entre o decidido pela mais alta corte do Poder Judiciário, e a mais alta instância, em
nível ministerial, do Poder Executivo?

Para ficar na linguagem da ADI 4.439, a definição híbrida que faz o Art. 11 do Decreto n.
7.107/2010, procurando compor o ensino religioso confessional com os pressupostos do Art. 33 da
LDB, não significaria uma volta ao passado no qual a Igreja Católica encontrava-se ligada ao poder
do Estado monárquico? No qual estariam interligados confissão religiosa, professores e
financiamento da missão?

Parece ser plausível, portanto, afirmar que a controvérsia constitucional continua, com
graves e complexos desdobramentos a partir de 2017, sendo incerto como e quando se poderá
encaminhar alguma alternativa a um quadro que, sem dúvida, não poderá continuar.

REFERÊNCIAS

BORGES, J. L. All our yesterdays. [S.l.: s.n., s/d]. Disponível em: https://borgestodoelanio.blogspot.com/2015/11/all-
our-yesterdays-soneto-inedito.html/. Acesso em: 15 mar. 2020.

BRASIL. [Constituição (1824)]. Constituição Política do Império do Brasil. Elaborada por um Conselho de Estado e
outorgada pelo Imperador D. Pedro I, em 25 mar. 1824. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
Constituicao/Constituicao24.htm/. Acesso em: 03 jun. 2019.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF:: Presidência
da República, 2016. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm/. Acesso em:
03 jun. 2019.

BRASIL. Decreto n. 119-a, de 7 de janeiro de 1890. Prohibe a intervenção da autoridade federal e dos Estados
federados em materia religiosa, consagra a plena liberdade de cultos, extingue o padroado e estabelece outras
providencias. [S.l.: s.n., s/d]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D119-A.htm/.
Acesso em: 03 de jun. de 2019.

BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases
da Educação Nacional. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 23 dez. 1996.

FISCHMANN, R. A proposta de concordata com a Santa Sé e o debate na Câmara Federal. Educação e Sociedade,
Campinas, v. 30, n. 107, p. 563-583, maio/ago. 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v30n107/13.pdf/.
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FISCHMANN, R. Educação laica (nas escolas públicas): Uma questão política, cultural e de direito. International
Studies on Law and Education, Porto, n. 11, p. 5-18, maio/ago. 2012. Disponível em: http://www.hottopos.com/
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FISCHMANN, R. Ensino religioso em escolas públicas: subsídios para o estudo da identidade nacional e o direito do
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Universidade. São Paulo: Editora da Unesp, 1996. Vol. 2.

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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES,
DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

Susana Sacavino
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

As duas últimas décadas do século XX e todos esses anos do século XXI estão marcados
pelo surgimento da ideologia neoliberal e seu fortalecimento na implementação das políticas e dos
princípios hegemônicos e imperativos sobre os sistemas nacionais de educação da América Latina e
do Caribe e, apesar da forte manifestação de vozes e movimentos de resistência, a mercantilização e
a privatização têm proliferado nos diferentes setores da sociedade.

Este sistema funciona e se constitui como uma nova colonização no continente e uma de
suas áreas importantes de penetração é através da educação. As reformas educativas neoliberais são
impulsionadas pelas instâncias de poder internacional e nacional como resposta aos problemas de
qualidade dos sistemas educativos da região. A reorganização neoliberal dos sistemas econômicos e
produtivos no continente tem se projetado também no campo da cultura, da educação em seu
conjunto, e especialmente no campo das universidades, sendo constantemente submetidas a
enfoques e políticas mercadológicas.

Na atualidade, para mudar o rumo na perspectiva de propostas contra-hegemônicas


decoloniais, é necessário travar uma árdua e longa batalha ideológica e política, a partir dos
diferentes movimentos sociais, especialmente dos de educadores e estudantes, para enfraquecer e
mudar, a partir de outros enfoques, o poder tecnocrático e mercadológico que rege o Ensino
Superior.

Consideramos que para que nossas universidades e também a escola sejam capazes de criar
não só conhecimentos hegemônicos que causem impacto na trama produtiva da sociedade, mas
também conhecimentos outros que respondam aos desafios que enfrentam nossas sociedades (a
segurança alimentar, a mudança climática, a gestão da água, o diálogo intercultural, as energias
renováveis, a saúde pública, entre outros), devem apostar na abertura, no acesso e na permanência
dos grupos que historicamente foram subalternizados, invisibilizados ou expulsos de suas salas de
aulas (indígenas, afrodescendentes, imigrantes, sujeitos com deficiências e aqueles que procedem
de setores populares, entre outros).

Neste artigo, defendemos um projeto de universidade e de instituições de educação, definido


como intercultural e decolonial que, ao propor rupturas com a fragmentação do saber, se configura
como promotor de um currículo que requer uma permanente e disciplinada pesquisa e reflexão
epistemológica sobre os conhecimentos coletivos, em relação dialética com os conhecimentos
científicos. Tal posicionamento tem o propósito de estimular os sujeitos para a produção de
conhecimentos científicos, técnicos, políticos e humanos, a partir de uma metodologia

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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

problematizadora, intercultural e decolonial para a construção de uma sociedade e de um planeta


sustentáveis (LOSS; VAIN, 2018).

O presente texto se estrutura em três partes. Na primeira, apresentamos as principais


características do enfoque hegemônico neoliberal que impregna a implementação das políticas
educativas, que consideramos como um enfoque neocolonial. Na segunda parte, partindo de visões
problematizadoras, de resistência interculturais e decoloniais, destacamos e propomos três
dimensões transformadoras e insurgentes que devem ser levadas em conta nos processos educativos
para a construção e fortalecimento de subjetividades cidadãs e democráticas. São elas: Saber ver e
escutar: ver e escutar com o coração. Saber reconhecer: interculturalidade crítica e as visões do
“outro”. E saber conhecer: contar outras histórias. Visibilizar os conhecimentos “outros”. No final
de cada uma dessas dimensões, apresentamos como exercício umas perguntas para o(a) educador(a)
para que possa pensar e iluminar suas práticas. Concluímos o artigo lembrando alguns pontos
importantes para continuar o caminho de construção de projetos, propostas e práticas educativas
insurgentes, decoloniais e interculturais.

POLÍTICAS EDUCATIVAS NEOLIBERAIS

Como já mencionamos, as políticas educativas e a Educação Superior, na América Latina e


no Caribe, são afetadas atualmente – e há várias décadas – pelas políticas neoliberais que têm como
postulados a eficiência, a qualidade e a rentabilidade. Esses conceitos que, em última instância, são
empresariais, têm sido os objetivos a serem atingidos em matéria de política educativa,
mercantilizando o espaço educativo, afetando todos os âmbitos da vida política, social e cultural.
Essa transformação do sistema educativo latino-americano e caribenho em mercado educacional e
de livre competência é fortalecida por um Estado mínimo que provoca o desmantelamento da
educação pública, que age sob a consigna da privatização de tudo aquilo que seja rentável, se
submetendo aos ditames dos órgãos internacionais, portanto, aos ditames da mercantilização.

Corporate Reforms, assim é que são chamados os reformadores empresariais da educação


nos Estados Unidos. Este termo, criado por Daine Ravicht (2011), inspira as visões e as políticas
educativas atuais. Reflete uma associação entre políticos, meios de comunicação, empresários,
empresas educativas, institutos e fundações privadas, e pesquisadores que comungam com a ideia
de que a forma de organizar da iniciativa privada é uma proposta mais adequada para melhorar a
educação nos Estados Unidos, do que as propostas feitas pelos educadores profissionais. Essa
disputa, dentro do país, acontece há muitos anos e percorreu um longo caminho. Atualmente, essa

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

visão empresarial impregna a maior parte das políticas educativas dos países do continente,
inclusive o Brasil.

Também há alguns anos, na América Latina e no Caribe, entidades empresariais e grupos


associados, que estão organizados em rede dentro de um forte movimento pela educação, atuam em
vários países por meio de fundações privadas e institutos, apoiando experiências e iniciativas, com
o argumento de melhorar a qualidade da educação interferindo nas políticas públicas. No Brasil,
contamos com várias instituições deste tipo.

Segundo Taubman (2009), que realizou uma ampla análise do discurso dos reformadores
empresariais nos Estados Unidos, essa formulação se desenvolve na confluência de uma série de
ciências, entre elas: a psicologia behaviorista, as ciências da informação e a neurociência. Com o
apoio desses campos se constrói uma cultura da auditoria. Nas palavras do autor, uma “cultura da
auditoria que se refere à emergência de sistemas de regulação nos quais as questões de qualidade
ficam subordinadas à lógica da administração e na qual a auditoria serve a uma forma de meta
regulação através da qual o foco é o controle do controle” (TAUBMAN, 2009 apud FREITAS,
2012, p. 108).

Essa cultura da auditoria da agenda neoliberal é a que alimenta e sustenta a prática das
avaliações sistemáticas de longa escala (PISA e outros exames), com especial atenção à produção
de dados quantitativos, promovida pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento
Econômico (OCDE) e por outros organismos internacionais.

Nessa linha, as instituições educativas são submetidas a auditorias e avaliações. As


categorias utilizadas por esses organismos internacionais são universalistas e não admitem
adaptações às características nacionais ou regionais, nem levam em conta a realidade de cada país,
significando dessa forma uma nova colonização. Essa cultura se manifesta e é implementada
principalmente através de três tipos de políticas: a das provas nacionais, os rankings das escolas,
entendidas como empresas que concorrem entre si, e a criação de instituições para a certificação do
trabalho docente, deliberadamente separadas das instituições de formação docente.

A avaliação docente está frequentemente vinculada às políticas de gratificação salarial,


outorgando gratificações aos melhores professores, estimulando, dessa forma, uma cultura
competitiva dentro da categoria. Cabe ressaltar que o ofício docente é individualizado na figura de
cada professor, não existindo estímulos econômicos para o trabalho coletivo que se realiza no
interior de cada equipe escolar. Tampouco se estimula o trabalho em entidades sindicais, nem a
participação em movimentos sociais, muitas vezes combatidos e reprimidos.
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

Essa cultura da auditoria neoliberal também coloca ênfase na gestão e na adição de


tecnologias, que são características de como os empresários realizam modificações no âmbito da
produção e essa lógica é a que se transfere para o campo da educação.

Nesse sentido, as três ideias fundamentais da educação neoliberal são: eficiência, eficácia e
qualidade, acolhidas e reforçadas pela pedagogia estadunidense, provenientes do eficientismo
industrial, como já mencionamos. Com o aumento da eficiência, se pretende aumentar a capacidade
de resposta de todo ator educativo, consequentemente se dá uma desesperada procura pela
qualidade educativa e, dessa forma, se tenta subordinar o sistema educativo ao aparelho produtivo.

Esses enfoques também trazem uma visão e uma necessidade do gestor educativo capaz de
administrar as instituições educativas, desvalorizando certas competências docentes como a
experiência prévia do educador e o saber docente, e afirmando práticas de gerenciamento como a
inovação e o empreendedorismo. Dessa forma, tanto as escolas como os docentes são estratificados
e julgados a partir da lógica empresarial de profissionais, bem ou malsucedidos, em função do seu
próprio mérito.

Dentro desse contexto, as políticas de formação docente se configuram como pacotes


fechados de treinamento, definidos sempre por equipes de técnicos, especialistas e até de
consultores empresariais. Políticas planificadas de forma centralizada, sem a participação dos
grupos de professores que receberão a formação, e pacotes de treinamento configurados de tal
maneira, que possam ser transferidos para ser aplicados em diferentes contextos geográficos e em
diversos grupos. Segundo Gentili (1999, p. 58), é o que se pode identificar como “pedagogia
fastfood”, usando a analogia de produção da empresa McDonald’s, como sistemas de treinamento
rápidos com grande poder disciplinador e altamente centralizados no planejamento e na aplicação.

Os educadores são vistos fundamentalmente como técnicos que dominam conhecimentos e


habilidades necessárias para o desenvolvimento das propostas neoliberais. Nesse modelo, a
educação é valorizada na medida em que é funcional ao sistema hegemônico e é capaz de produzir
cidadãos empreendedores, consumidores e competitivos.

Os governos e as políticas neoliberais que se desenvolvem estão deixando nossos países


com mais pobreza, com mais exclusão e mais desigualdade. Aumentam a discriminação social,
racial e sexual, reproduzindo os privilégios das minorias. Exacerbam o individualismo e a
competitividade selvagem, quebrando os laços de solidariedade coletiva, intensificando um
processo antidemocrático de seleção “natural”, em que os “melhores” triunfam e os “piores e
incapazes” perdem. E, nas nossas sociedades dualistas, os melhores acabam sempre sendo as elites

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 319


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

que monopolizam o poder político, econômico, social e cultural, e os piores, as grandes maiorias
cada vez mais submetidas ao aumento das condições de pobreza e a uma violência repressiva que
nega não só os direitos sociais, mas, principalmente, o direito mais elementar, que é o da vida
digna.

Essas políticas educativas neoliberais que se centram na qualidade total com enfoque
empresarial, de acordo com Giroux (2018), reduzem a cultura escolar a uma cultura empresarial e a
um acampamento armado. Nesse sentido, impõem uma ameaça real e simbólica de violência nas
escolas, nos docentes e nos estudantes, e nas quais o pensamento se torna inimigo da liberdade e o
lucro cobra mais importância que a vida humana.

Os princípios do mercado e da concorrência reduzem a educação a questões operacionais e


fazem com que a ênfase seja colocada nas avaliações de longa escala a nível nacional e
internacional. Além do mais, obrigam a escola a seguir uma lógica produtivista e limitada que acaba
promovendo a formação de sujeitos empreendedores, consumidores, treinados para responder a
exames uniformizados que afirmam uma cultura de rankings e premiações, assim como a seguir
currículos monoculturais que privilegiam e entendem o enfoque ocidental (euro-usa cêntrico),
patriarcal, branco e monorreligioso como o único conhecimento existente e válido. Isso leva,
segundo Candau (2015, p. 22), ao desenvolvimento de um pensamento pedagógico que podemos
classificar como débil e “light”, que provoca um forte impacto colonizador e dominador.

Também Giroux (2018, p. 2), num artigo sobre as greves de docentes nos Estados Unidos,
que consideramos que pode ser aplicado à realidade atual de vários países da América Latina e do
Caribe, ao fazer referência às políticas educativas neoliberais, afirma que:
Os professores estão cansados de ser vítimas implacáveis de um capitalismo de casino,
no qual eles e os estudantes são tratados com pouco respeito, dignidade e valor. Eles
se cansaram de políticos corruptos, administradores de fundos de investimento e
analistas civicamente analfabetos seduzidos pelo poder de empresários demagogos e
políticos que estão desenvolvendo uma guerra contra o ensino crítico, a pedagogia
crítica e a criatividade e a autonomia dos professores na sala de aula. [...].

Recusando a ideia de que a educação é um bem a ser comprado e vendido, os docentes


e estudantes de todo o país reclamam a educação como um bem público e um direito
humano, um espaço de proteção que deve estar livre de violência e aberto ao ensino e
à aprendizagem crítica.

320
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

É nessa perspectiva crítica, descolonizadora e transformadora, que nos situamos, e que


sustentamos e apostamos na possibilidade de outra lógica social e educativa. A importância da
educação é vista em articulação com mudanças estruturais profundas, no local e no global, em
íntima relação. Os processos educativos são concebidos como práticas sociais e culturais que
trabalham inter-relacionando conhecimentos, sentimentos, atitudes e práticas e privilegiando
dinâmicas interativas e de construção coletiva, dentro das quais as dimensões de ver, conhecer,
celebrar e se comprometer estão sempre presentes. O(a) educador(a) se entende como um agente
cultural e social, com capacidade propositiva, como sujeito pessoal e agente social.

PROPOSTAS DE TRANSFORMAÇÃO: DIALOGANDO COM EDUCADORES(AS),


AGENTES CULTURAIS LÚCIDOS(AS) E COMPROMETIDOS(AS)

A ideia de que o único valor do conhecimento é o valor do mercado é o que vai matar a
universidade. Uma universidade que é “sustentável” porque financia a si própria é uma
universidade insustentável como bem comum, porque se torna uma empresa, é o que nos adverte o
sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2018), e eu faço extensiva essa afirmação
também para a escola.

Nós, que assumimos a responsabilidade de educadoras e educadores, precisamos colocar em


jogo nossa inteligência criativa, sempre aberta e audaz, para captar os momentos oportunos de
discernir a realidade e procurar alternativas que levem à mudança transformadora.

Desde essa perspectiva, considero que precisamos encontrar meios para a educação e a vida
que nos ajudem a construir enfoques e práticas lúcidas, críticas e transformadoras com vistas a
democratizar, desmercantilizar, despatriarcalizar, decolonizar e interculturalizar.

Querer pensar e praticar a decolonialidade dentro de um marco intercultural implica


necessariamente assumir a complexidade e a diversidade de vozes, sujeitos, projetos e lugares
culturais, sociais, políticos e econômicos que são produzidos nas sociedades atuais, diante dos
núcleos de desigualdade existentes.

A partir desses enfoques de uma educação decolonial intercultural que fortaleça os


processos democráticos, considero importante destacar e propor três dimensões transformadoras, de
resistência e insurgência que devem ser levadas em conta nos processos educativos. São elas: saber
ver e escutar, saber reconhecer e saber conhecer.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 321


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

SABER VER E ESCUTAR: VER E ESCUTAR COM O CORAÇÃO

Não é a mesma coisa olhar para a realidade que saber ver e ler a realidade. Olhar é sempre
seletivo e desde um lugar, não só como espaço físico, mas também como determinado espaço
mental que é condicionado pela história de vida, pela educação, pelo lugar social, pelas pertenças
culturais, etc. Esses elementos e essas dimensões condicionam o modo de se ler a realidade.

Uma educação intercultural e decolonial deve ajudar a questionar o ponto de vista em que
nos situamos para ver a realidade, para problematizar as visões etnocêntricas e estimular o sentido
crítico a fim de sermos capazes de questionar nossa cultura e nosso lugar social. Saber ver é ver
com os olhos do coração postos na humanidade sofredora. Este ver não é neutro. É preciso se deixar
afetar por tudo e por todos. O sofrimento do outro provoca um impacto no nosso interior e nos
comove quando somos capazes de olhar com o coração. Fazer o exercício de destravar e desvelar
nosso olhar, focado em nós próprios, nos nossos interesses e apegos e ampliá-lo em direção ao
outro. Esta forma de ver nos impulsiona para um compromisso liberador e solidário e ajuda a
construir a identidade do outro e a nossa própria identidade, porque se olha de uma maneira única e
singular a cada um. É um olhar que revela as identidades daqueles que estavam invisibilizados,
daqueles que eram ignorados e silenciados. É um olhar que desperta confiança, que dignifica e
reconhece o outro, que fortalece sua autoestima e que o afirma para a vida, para caminhar e
expandir as energias. É um olhar que outorga humanidade e dignidade, possibilidade de ser àqueles
considerados objetos e não sujeitos e, por isso mesmo, secularmente negados, violentados e
colonizados.

Como afirma González (apud RIBEIRO, 2017, p. 35), ao evidenciar as experiências de


mulheres negras na América Latina e no Caribe, “Existe um olhar colonizador sobre nossos corpos,
saberes, produções, e independente de rechaçar esse olhar, é necessário partir de outros pontos de
vista”. Ou desde este outro ângulo e experiência de um sujeito que se define como homem negro,
cis e hétero, videomaker,
É preciso que você entenda quem é você e que todos os locais pertencem a você. É ser
uma prova a cada minuto que você existe, que você resiste e que você potencializa os
outros. Esse medo que as pessoas acabam tendo desse corpo negro, pelas pessoas não
negras, não deveriam te atingir. [...]

Mas também tem um movimento de irmandade: ao ver outro preto na rua, você olha,
dá um sorriso, balança com a cabeça. É um reconhecimento de pessoas que estão se
achando e viram outros iguais a ele (PORTELA, 2020, p. 1).

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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

Esta forma de olhar e ver é transformadora e humanizadora e nos leva a olhar para além dos
nossos preconceitos, estereótipos e discriminações.

Descobrimos as pessoas e os grupos que habitualmente estão excluídos por [do] nosso olhar
e invisibilizados. Temos que educar nosso olhar, tentando descobrir e revelar aquilo que o outro tem
para aprender dele e enriquecermos com sua história e sua cultura.

Não é suficiente saber olhar, é importante também saber escutar as vozes que historicamente
foram silenciadas e ficaram sem capacidade para dizer sua palavra, devido a um sistema racista,
colonizador e patriarcal.
A palavra, desde um sentido performativo, esboça nosso mundo, porém,
recursivamente, temos a possibilidade de incidir, de subverter os signos, as palavras,
os discursos, em suma, a linguagem e, por conseguinte, de recriar esse mundo
(COSTAS; MANZUR, 2018, p. 3).

Como afirma Rufer (2012 apud COSTAS; MANZUR, 2018, p. 7),


Escutar o outro não é uma aptidão, uma intenção nem uma capacidade orgânica,
tampouco é uma prática que se ajusta à teoria das vozes ou dasetnografias da fala:
deve ser uma decisão política, não no sentido de sumir ou se mimetizar, mas de
escolher a partir daquilo que somos, sendo conscientes do nosso “habitar a diferença”,
atentos à incompletude própria de cada cultura.

Esse olhar e esse escutar de forma solidária ativa os sentimentos de compaixão e a


capacidade de se pôr no lugar do outro e de sentir e sofrer com o outro. Essa expressão de
fraternidade nos estremece e se traduz em colaboração, solidariedade, empatia e reconhecimento. A
compaixão exige uma sensibilidade aberta e uma capacidade afetiva que nos permita vibrar com o
outro. É necessário que a sensibilidade não esteja congelada nem petrificada, porque de outro modo
o sofrimento alheio acabará batendo na nossa couraça e seremos incapazes de perceber e sentir.
Precisamos lembrar que, segundo Ribeiro (2017, p. 64), o falar
Não se restringe ao ato de emitir palavras, mas sim o poder existir. Pensamos o lugar
da fala (da enunciação, como chamam outros autores) como rechaçar a historiografia
tradicional e a hierarquia de saberes como consequência da hierarquia social.

Quando falamos do direito à existência digna, à voz, estamos falando de lócus social,
de como esse lugar impostodificulta a possibilidade de transcendência.

Contudo, saber ver e escutar supõe também saber analisar e captar criticamente a realidade.
Concebemos a educação como uma prática social e, nesse sentido, os processos que desenvolve

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

devem sempre se referir ao contexto em que vivemos. Nossa vida cotidiana no tempo presente vai
além do local. Ela se encontra atravessada por outras dimensões que não podemos perder de vista
ao elaborar e desenvolver nossas propostas educativas.

Nesse sentido, Freire (1997) afirma que a educação é uma forma de intervenção no mundo e,
por essa razão, implica compreender os diferentes mecanismos de construção social, política,
histórica, econômica da realidade e das estruturas sociais, assim como também desenvolver o
sentido crítico para pôr de manifesto a ideologia dominante.

A prática pedagógica não é neutra, ela exige uma opção e uma definição por parte do(a)
educador(a):
Não posso ser professor e não perceber, de forma crescente, que pelo simples fato de
não ser neutra, minha prática exige de mim uma definição. Uma posição. Decisão.
Ruptura. Exige que eu escolha entre isto ou aquilo. Não posso ser professor em favor
do que quer que seja, em favor de não sei o quê (FREIRE, 1997, p. 115).

Freire também afirma que não é possível ser professor(a) e fazer opções em sentido amplo,
abstratas, como, por exemplo, em favor da humanidade. Essas opções devem ser contextualizadas
em cada momento histórico porque a prática educativa não é vaga, mas um ato concreto, situado,
localizado. Daí a importância de saber ver, escutar e aprender a ver com a mente e o coração no
momento presente.

Exercício para o(a) educador(a):

• Que pessoas e grupos são habitualmente excluídos do meu olhar, invisibilizados


pelas minhas percepções da realidade?

• Em relação com que realidades minha sensibilidade está endurecida, “petrificada”,


ao ponto que não consigo sentir nem me colocar no lugar do outro?

• A quem dou a capacidade de falar e a quem silencio?

SABER RECONHECER: INTERCULTURALIDADE CRÍTICA E AS VISÕES DO “OUTRO”

Nas sociedades, naquelas onde, cada vez mais, se exige a consciência acerca das diferenças,
é de especial importância que se aprofunde em a quem incluímos na categoria “nós” e a quem na
categoria “outros”. Estes são temas que nos desafiam a trabalhar em todas as relações sociais e de
modo especial desde a ótica da formação de educadores(as) como agentes culturais. Nossa posição
diante do “outro” surge “naturalmente” e é construída a partir de uma perspectiva etnocêntrica. Na
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

categoria “nós”, incluímos todas aquelas pessoas e grupos sociais, cujas referências de vida são
semelhantes às nossas; cujos hábitos, valores, estilos, visões de mundo se parecem com os nossos e,
de alguma forma, nos ajudam a reforçá-los.Os “outros” são aqueles(as) que enfrentam essa
perspectiva, em função da sua classe social, sua etnia, sua religião, seus hábitos, geração a qual
pertencem, bem como de seus valores, suas tradições, etc. Acreditamos que questionar e favorecer
processos que contribuam com a tomada de consciência e com a superação do etnocentrismo são,
na atualidade, desafios que temos para a formação dos(as) educadores(as) desde as perspectivas
críticas, transformadoras e interculturais.

Os processos de formação devem contribuir com a nossa tomada de consciência a respeito


das representações que todos(as) temos dos “outros”, os diferentes. Essas representações revelam o
nosso modo de nos situarmos diante deles, muitas vezes, inconscientemente. São construções que
têm relação com as histórias de vida e com a memória coletiva de cada povo e de cada povo
sociocultural. Essas construções são marcadas pelas estruturas sociais que configuram cada
sociedade. É fundamental que cada um(a) seja capaz de reconhecer essas representações e de
compreender sua formação para, assim, poder se abrir a um diálogo que promova uma cidadania
intercultural. Entendemos a cidadania intercultural como a que articula os diferentes tipos de
direitos (civis, políticos, sociais, culturais e ambientais), assim como, as tensões entre igualdade e
diferença, reconhecimento e redistribuição (SACAVINO, 2004).

Skliar e Duschatzky (2001) destacam três formas de ver e três versões discursivas em
relação à alteridade e à diversidade. São elas: “o outro como fonte de todo mal”, “o outro como
sujeito pleno de um grupo cultural” e “o outro como alguém a ser tolerado”.

“O outro como fonte de todo mal” simboliza o modo predominante da relação cultural,
social e política do século XX e do século atual. A demonização do outro pode apresentar diferentes
versões, desde a sua transformação num sujeito ausente, invisibilizado, até a invenção para as
traduções oficiais, desde a ventriloquiai, ou sua mais perversa exclusão, sempre assentado numa
lógica binária para assegurar e garantir as identidades fixas, centradas, homogêneas, estáveis,
essencialistas, etc. O outro diferente funciona como um depositário de todos os males, o centro de
todos os males, como o portador das falhas sociais. E, por esse motivo, deve ser combatido,
excluído, inferiorizado e, muitas vezes, exterminado.

“O outro como sujeito pleno de um grupo cultural” supõe uma perspectiva em que as
culturas representam comunidades homogêneas de crenças e estilos de vida, em que cada sujeito
adquire identidades plenas a partir de marcas únicas de identificação, como se as culturas se

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

estruturassem independentemente das relações de poder e hierarquia. Essa ideia implica que as
diferenças são absolutas, plenas e que as identidades se constroem com referenciais únicos, étnicos,
de gênero, de religião, classe social, etc. Nesse contexto, a diversidade cultural supõe o
reconhecimento de conteúdos e costumes culturais preestabelecidos, sem possibilidades de misturas
e contaminações. O outro é incorporado tendo em vista perspectivas assimilacionistas, dependendo
de sua capacidade de adaptação e de renúncia de sua própria cultura e identidades.

“O outro como alguém a ser tolerado” constitui uma visão que, segundo os próprios autores,
apresenta muitas ambiguidades. Dela se destacam duas formas de tolerância: a assimilação
individual e o reconhecimento do grupo. Dentro dessa visão, o princípio de reconhecimento é
sempre colocado na homogeneidade, na nivelação e não na diferença. Ser cidadão ou sujeito como
indivíduo igual e não como sujeito diferente. A tolerância é uma atitude fraca que nos exime de nos
posicionarmos e de nos responsabilizarmos por essa posição. A tolerância, segundo os autores,
enfraquece as diferenças discursivas e encobre as desigualdades.

Outro aspecto importante, quando são trabalhadas as visões do outro nos processos
educativos e que ainda são pouco trabalhadas na América Latina e no Caribe, é a problematização
da branquitude como um paradigma histórico de dominação, dentro da construção social, cultural,
econômica e política.

Mesmo que a identidade racial branca seja diversa, Cardoso (2010) define genericamente a
branquitude como a identidade racial branca. A branquitude se constrói e se reconstrói histórica e
socialmente no nível local e global. Não se trata de uma identidade homogênea e estática, pois vai
se modificando ao longo do tempo. Ser branco, dentro da construção democrática, no contexto
nacional dos nossos países latino-americanos, significou, historicamente, ter poder e estar no
poder. Por problemas de extensão do presente texto nos limitaremos simplesmente a enunciá-lo,
mas é importante aprofundar e trabalhar esse tema também desde a construção das visões do outro
(SACAVINO, 2013, p. 61).

Como afirma Siqueira (2020, p. 1), que se autodefine como homem, negro, trans, ativista, “a
branquitude é uma estrutura tão forte que, às vezes, a gente é invisível, mesmo que tenha dinheiro
para pagar alguma coisa”.

Uma pessoa branca deve pensar seu lugar de modo que entenda os privilégios que
acompanham a sua cor. Isso é importante para que privilégios não sejam naturalizados ou
considerados apenas como esforços próprios. Perceber-se é algo transformador. É o que permite

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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

situar nossos privilégios e nossas responsabilidades diante de injustiças contra grupos sociais
vulneráveis e/ou excluídos (RIBEIRO, 2019, p. 32).

Do ponto de vista de uma interculturalidade crítica e da decolonialidade, posição em que nos


situamos, consideramos importante desenvolver uma visão do “outro” diferente, que supere os
limites das três anteriores. Assentada na articulação de visões e políticas de igualdade e de
identidade, no reconhecimento da diferença e na construção de uma vida em comum alicerçada na
igualdade e no reconhecimento mútuo. Assume a pluralidade de identidades e a tensão e os
conflitos inerentes nas relações entre igualdade e diferença. Supõe uma visão do outro reconhecido
como diferente, como construtor de identidades e exige espaços plurais de negociação. O princípio
da igualdade exige um permanente combate das desigualdades e uma redistribuição de direitos. Por
outro lado, o princípio da diferença exige reconhecimento e tratamento igualitário das diferenças.
Um tratamento que permita afirmar que “temos o direito a ser iguais quando a diferença nos
inferioriza; e o direito a ser diferentes, quando a igualdade nos descaracteriza” (SOUSA SANTOS,
2001, p. 38).

Santos (2020, p. 2), que se define como mulher negra, cis, hetero, desde a experiência dos
sujeitos, confirma essas afirmações,
O que é bem irritante é as pessoas perguntarem de onde eu sou. Respondo que sou
daqui, mais do que ela, pois sou como 53% da população brasileira, que se declaram
negros.

Tem uma coisa da beleza diferente, de me colocarem num lugar mais do exótico, do
que do sexual.

Eu gosto de frequentar lugares bons. Sou chamada de preta pobre patrícia. Fico feliz
de ver outras pessoas pretas nesses espaços. Fico triste com o discurso de “esse lugar
não é para mim”...

Precisamos estar em todos os espaços. Não é agir como branco. Mas é ser a gente
mesmo nos lugares que são nossos por direito. É não ter vergonha de ter
possibilidades de acesso.

Do ponto de vista dos processos educativos, Candau (2012, p. 237) nos lembra que:
Se queremos potencializar os processos de aprendizagens escolares desde a garantia
para todos(as) do direito à educação, devemos afirmar a urgência de trabalhar questões
relativas ao reconhecimento e à valorização das diferenças culturais nos contextos
escolares.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Emilia Ferreiro (2001) segue o mesmo raciocínio ao fazer referência a nosso continente e à
dificuldade da escola pública, desde o começo de sua institucionalização, de trabalhar com as
diferenças. Considero que tanto a citação de Candau quanto a de Ferreiro (2001) podem ser
extensivas, guardando as distâncias, aos espaços universitários e à escola:
A escola pública, gratuita e obrigatória do século XX é herdeira da escola do século
anterior, encarregada de missões históricas de grande importância: criar um único
povo, uma única nação, anulando as diferenças entre os cidadãos, considerados como
iguais diante da lei. A tendência principal foi equiparar igualdade a homogeneidade.
Se os cidadãos eram iguais diante da lei, a escola devia contribuir a gerar esses
cidadãos, homogeneizando as crianças, independentemente de suas diferenças de
origem. Encarregada de homogeneizar, de igualar, essa escola mal podia apreciar as
diferenças.

E conclui dizendo:
É indispensável instrumentalizar didaticamente a escola para que trabalhe com a
diversidade.ii Nem a diversidade negada, nem a diversidade isolada, nem a diversidade
simplesmente tolerada. Também não se trata da diversidade assumida como um mal
necessário ou celebrada como um bem em si mesma, sem assumir seu próprio
dramatismo. Transformar a diversidade conhecida e reconhecida numa vantagem
pedagógica: me parece ser este o grande desafio do futuro (FERREIRO, 2001 apud
LERNER, 2007, p. 7).

Exercício para o(a) educador(a)

• De que maneira enxergo o “outro” dentro da sociedade? Sou consciente de que


reproduzo algumas dessas visões apresentadas? Qual é a que domina com maior
frequência?

• Quem são esses “outros” para mim? Consigo nomeá-los e identificá-los?

• Dentro da sala de aula, qual é a minha posição diante dos meus alunos? Afirmo que
são todos iguais ou reconheço as diferenças? A construção da igualdade entra em
tensão com as diferenças? O que implica assumir as diferenças como uma vantagem
pedagógica?

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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

SABER CONHECER: CONTAR OUTRAS HISTÓRIAS. VISIBILIZAR OS CONHECIMENTOS


“OUTROS”

O outro aspecto que consideramos também de fundamental importância com relação ao


tema abordado, na perspectiva de uma visão decolonial e intercultural, é a produção de
conhecimentos, num mundo geopoliticamente centrado no poder do conhecimento ocidental (euro-
usa-cêntrico) reconhecido como universal e como o único válido e existente. Segundo Sousa Santos
(2009), em um continente onde os processos coloniais de opressão e exploração ainda continuam a
se repetir com as globalizações hegemônicas neoliberais, ao se deixar de lado grupos e práticas
sociais, são excluídos e invisibilizados também os conhecimentos produzidos e usados por esses
grupos para a realização dessas práticas. Para o autor, esse processo é identificado como
epistemicídio.

Contar outras histórias significa apoiar, valorizar e visibilizar a produção e o fazer história
dos sujeitos subalternos da sociedade capitalista, suas próprias leituras do passado e do presente
como uma forma de luta contra as diversas formas de dominação e colonização a que foram
submetidos. São diferentes concepções e práticas historiográficas, na maior parte feitas desde “o
avesso da história”, comprometidas com as lutas e aspirações dos excluídos, oprimidos, colonizados
e “condenados da terra” (TORRES, 2014, p. 9).

É importante destacar, partindo dos enfoques que estamos trabalhando, que até pouco tempo
atrás a epistemologia ocidental (euro-usa-cêntrica) se caracterizava não só por privilegiar o cânone
de pensamento do homem ocidental (o gênero é proposital), mas também por estudar o “outro”
como objeto e não como sujeito que produz conhecimentos, ocultando, assim, a “geopolítica” e a
“corpo-política” do conhecimento por meio da qual os acadêmicos e intelectuais brancos pensam
(GROSFOGUEL, 2013, p. 18).

Grada Kilomba (2019, p. 51), mulher negra, artista, escritora e professora da Universidade
de Humbolt, em Berlim, Alemanha, o expressa assim:
Dentro dessas salas (refere-se à universidade) fomos feitas(os) objetos “de discursos
estéticos e culturais predominantemente brancos” (HALL, 1992, p. 252), mas raras
vezes fomos os sujeitos. [...]

Somos capturadas/os em uma ordem violenta colonial. Nesse sentido, a academia não
é um espaço neutro nem tampouco simplesmente um espaço de conhecimento e
sabedoria, de ciência e erudição, é também um espaço de v-i-o-l-ê-n-c-i-a.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A mesma autora, também em alusão a essa geopolítica do poder e do conhecimento


colonizador, racista, sexista que invisibiliza e desqualifica àqueles considerados subalternizados,
afirma:
Quando eles falam, é científico; quando nós falamos não é científico.

Quando eles falam, é universal; quando nós falamos, é específico.

Quando eles falam, é objetivo; quando nós falamos, é subjetivo.

Quando eles falam, é neutro; quando nós falamos, é pessoal.

Quando eles falam, é racional; quando nós falamos, é emocional.

Quando eles falam, é imparcial; quando nós falamos, é parcial.

Eles têm fatos, nós temos opiniões (KILOMBA, 2016, p. 1).

Nas últimas décadas, e devido ao desenvolvimento de políticas de reconhecimento e de


ações afirmativas, pessoas, estudantes e professores vindos dos grupos discriminados e
subalternizados (negros, indígenas, mulheres, LGBTQI+ etc.) chegaram às universidades. Muitos se
tornaram e se tornam intelectuais e ativistas que privilegiam a “geopolítica do conhecimento” e a
“corpo-política do conhecimento” em sua produção de conhecimentos. Isto significa, cada vez mais,
uma ruptura na produção do conhecimento em relação ao pensamento ocidental, com a dicotomia
do sujeito-objeto da epistemologia cartesiana.

Esse novo contexto é um passo importante na forma de produção de conhecimentos. Em


lugar de um sujeito masculino e branco, estudar sujeitos não brancos como “objetos do
conhecimento” e assumir um ponto de vista neutro, privilegiado e não situado no espaço e no corpo,
são agora os próprios sujeitos das minorias racializadas e sexualizadas os que se estudam a si
próprios como sujeitos que pensam e produzem conhecimentos desde corpos e espaços (a “corpo-
política” e a “geopolítica” do conhecimento), como, por exemplo, o feminismo comunitário das
mulheres indígenas; as mulheres negras, urbanas, de classes populares; ou as produções de pessoas
homossexuais, trans ou daqueles identificados como queer, entre outros. Sujeitos que eram
subalternizados e inferiorizados pela epistemologia e o poder racista/sexista ocidentalizado
(GROSFOGUEL, 2013, p. 20).

Como afirma Alcoff (2015, p. 8), ao compartilhar este pensamento,


O projeto de descolonização epistêmica requer que ponhamos atenção à identidade
social, não simplesmente para mostrar de que forma o colonialismo criou, em alguns
casos, identidades, mas também para mostrar como foram silenciadas e desautorizadas

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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

epistemologicamente algumas formas de identidade, enquanto outras eram


fortalecidas. Desse modo, o projeto de descolonização epistêmica pressupõe a
importância epistêmica da identidade, porque entende que experiências em diferentes
localizações são diferentes e que a localização é importante para a produção do
conhecimento.

Essa hierarquia racista/sexista do conhecimento opera em escala mundial com variações e


particularidades nas diferentes regiões do mundo, segundo as diversas histórias coloniais e locais, a
partir da globalização hegemônica. Essa hierarquia epistêmica global também é constitutiva da
acumulação capitalista em escala mundial. Sem ela não haveria o capitalismo histórico tal como o
conhecemos atualmente.

Além do mais, é importante destacar e perceber que essa hierarquia epistêmica tem seus
próprios discursos, narrativas, ideologias e seu próprio marco institucional. O pensamento ocidental
(euro-usa-cêntrico), como perspectiva epistêmica, privilegia os conhecimentos, as memórias e as
histórias dos homens colonizadores ocidentais ao redor do mundo. E com a mesma amplitude, essa
epistemologia continua sendo globalizada institucionalmente, especialmente através da
universidade ocidentalizada, da escola e das produções bibliográficas.

A universidade ocidentalizada continua sendo organizada por um cânone de pensamento


ocidental e masculino. Quase todas as disciplinas das ciências sociais e das humanidades, com
pouquíssimas exceções, privilegiam em seu cânone de pensamento os pensadores homens, brancos,
euro-usa-cêntricos. Também não são incluídas as mulheres ocidentais, apenas umas poucas, e os
homens e mulheres não ocidentais são igualmente excluídos (GROSFOGUEL, 2013, p. 21).

A nossa aposta educativa, construtora de sociedades interculturais, decoloniais e


democráticas que ampliam o universo de efetivação da cidadania, aponta para que nunca mais
nenhum sujeito social viva estas experiências assim expressadas por pessoas afrodescendentes,
habitantes de um país latino-americano: “é muito doloroso se sentir estrangeiro no próprio país. [...]
Este país luta muito pelos seus desaparecidos, mas os primeiros desaparecidos somos nós. A
população afrodescendente é vítima de um processo de ocultamento que é secular e cruel, e poucos
são os que tiveram a oportunidade de conhecer a ignorada trajetória do seu povo” (OMEGA, 2015,
p. 1).

Qualquer pensamento crítico, desde as ciências sociais, produzido por e a partir de uma
perspectiva/episteme situada em algum espaço não ocidental (euro-usa-cêntrico), com muita
frequência, é inferiorizado, percebido como suspeito e considerado pouco sério e consistente, ou

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

não merecedor de estudo na universidade ocidentalizada. A universidade ocidentalizada possui a


mesma divisão de disciplinas e o mesmo cânone de pensamento racista/sexista esteja ela onde
estiver. E as políticas globais atuais impregnadas pela visão neoliberal, com a afirmação da
internacionalização da universidade e seu padrão de excelência acadêmica, hierarquizam cada vez
mais e são, a cada dia mais, excludentes com relação aos conhecimentos “outros”.

Tendo presente o enfoque das globalizações contra-hegemônicas, da decolonialidade e da


interculturalidade crítica, é importante considerar que podem haver outras formas de produzir
conhecimentos, além dos ocidentais (euro-usa-cêntricos). Conhecimentos abertos à diversidade
epistêmicaiii do mundo, decoloniais que impulsionam uma reflexão “desde” e “com” aqueles
“outros” subalternizados e inferiorizados pela modernidade ocidental. Conhecimentos que, ao
mesmo tempo que denunciam o epistemicídio, oferecem instrumentos analíticos que permitem não
só recuperar conhecimentos invisibilizados ou marginalizados, mas também identificar condições
que tornem possível a construção de novos conhecimentos de resistência e a produção de
alternativas ao capitalismo e ao colonialismo global. Isso pode levar a uma metodologia decolonial
muito diferente da metodologia colonial das ciências sociais e das humanidades. Essa metodologia
decolonial foi identificada por Mignolo (2000) como pensamento crítico de fronteiraiv, e por Sousa
Santos (2009) como ecologia de saberes.

Do ponto de vista institucional, é uma forma de produzir uma pluri-versidade decolonial, a


que é seguida por alguns movimentos indígenas e afrodescendentes na América Latina e no Caribe,
em oposição à universidade colonial já existente. São experiências em que a diversidade epistêmica
é reconhecida no currículo. Isto é, a pluri-versidade, que inclui o conhecimento ocidental, mas sem
deixar de reconhecer os outros conhecimentos e saberes, produzidos por outras matrizes culturais
que podem ser as indígenas, as de afrodescendentes, as de movimentos feministas etc. Todo
conhecimento transformador possui uma dimensão local na sua produção e é importante identificar
a partir de que lugar de enunciação está sendo produzido. Seu esforço é criar outras formas de
produção de conhecimentos que sejam diferentes da universidade ocidental masculina, branca,
euro-usa-cêntrica.

Exercício para o(a) educador(a)

• Na minha trajetória acadêmica de formação universitária quais foram os(as)


autores(as) privilegiados nos estudos? De onde eram? Qual era sua raça e seu
gênero? A partir de que lugar produziam? Foram estudados(as) autores(as) latino-
americanos e caribenhos?
332
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PRÁTICAS EDUCATIVAS INSURGENTES, DECOLONIAIS E INTERCULTURAIS

• É bom também fazer esse mesmo exercício com relação às referências que usamos
hoje nas nossas aulas, ou na seleção que fazemos para o currículo. Que
conhecimentos ensino e valorizo? Onde se situa essa geopolítica do conhecimento e
a “corpo-política” dos(as) autores(as) selecionados(as)?

Talvez, depois de realizar esse exercício, possamos tomar consciência de que não se trata
unicamente de uma questão de representação ou de reconhecimento, não se trata de políticas
identitárias, mas de algo mais complexo, reconhecido como geopolíticas do saber e do poder.

“O MUNDO NÃO É. O MUNDO ESTÁ SENDO” (FREIRE). PARA CONTINUAR O


CAMINHO

No contexto atual, as políticas educativas neoliberais que dominam nosso continente não
questionam o formato educativo dominante, seja qual for o nível, nas escolas ou nas universidades,
o foco – como já demonstramos neste artigo – é colocar a ênfase em dois aspectos: na gestão e na
avaliação, que são o marco do modelo educativo hegemônico.

Nossa intenção neste texto, que partiu de enfoques contra-hegemônicos, decoloniais e


interculturais, foi apresentar uma leitura e algumas contribuições para transformar os contextos e as
práticas dos(as) educadores(as) já, seja na universidade ou na escola. Afirmar, junto com Freire
(1997), que “o mundo não é. O mundo está sendo” significa apostar na importância do tempo
presente, na possibilidade cotidiana de ser sujeito e agente de transformação social e cultural, sem
ficarmos imóveis por conta das visões uniformizadas neoliberais. Essa afirmação se torna um
convite para continuar o caminho de construção de práticas transformadoras, sabendo que somos
educadoras(es) sempre em crescimento e abertos a continuar aprendendo mais e a mudar a própria
realidade e a realidade do mundo. Não existe um destino definido tal como afirma, de forma
enganosa, o neoliberalismo. Ninguém aprende sozinho, aprendemos em comunhão. Isso acontece
na práxis da ação-reflexão-ação e, dessa forma, podemos afirmar e constatar, cada vez mais, que “o
mundo não é. O mundo está sendo”.

Que a liberdade, a dignidade e a rebeldia nos acompanhem neste caminho de desobediência,


resistência e reexistência junto com os condenados da terra, com os excluídos, os invisibilizados, os
empobrecidos, os subalternizados, com todos aqueles grupos sem dignidade nem direitos. É desse
lugar que hoje podemos partir e pensar em um novo paradigma humanitário pluricultural e
pluriversal para, assim, tornar realidade o sonho e a possibilidade de outros mundos possíveis, mais
humanos, felizes, com dignidade e com justiça epistêmica.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 335


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Notas de fim

i
Ventriloquia, segundo Mario Rufel, significa falar pelo outro e em nome do outro, tirando deste a sua capacidade de
sujeito e de ter a sua palavra, o que aconteceu e normalmente acontece nos processos colonizadores.
ii
A autora utiliza os termos diferença e diversidade como sinônimos.
Desde esses enfoques epistémicos o sujeito e o objeto de pesquisa se interpenetram. Também é importante reconhecer
iii

o “lugar de enunciação” de cada discurso, lugar que ao mesmo tempo é social, político e geográfico.
iv
O pensamento crítico de fronteira é a resposta epistêmica do subalternizado ao projeto eurocêntrico da modernidade.
Em lugar de recusar a modernidade para se esconder em um absolutismo fundamentalista, as epistemologias de
fronteira redefinem a retórica emancipatória da modernidade, a partir das cosmologias e epistemologias do subalterno,
as que se situam do lado do oprimido e explorado da diferença colonial e procuram lutar pela liberação decolonial para
que o mundo possa superar a modernidade eurocentrada (GROSFOGUEL, 2008, p. 74).

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE
FOGO. PARECIA UMA GUERRA” NOTAS COM
CRIANÇAS DE TERREIROS PARA METODOLOGIAS
ANTIRRACISTASi

Stela Guedes Caputo


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O barracãoii do Ilê Omon Oyá Legiiii, em Mesquita, na Baixada Fluminense, estava


abarrotado de gente. Depois de 21 dias de recolhimento para a iniciação, um barco iv de cinco novos
iaôsv sairia naquela tarde de 21 de janeiro de 2017. No barco, três adultos e duas crianças: Vitor
Hugo Oliveira de Azevedo, de Ayrávi, 10 anos, e Cauã Esteves, de Oxóssivii, 11 anos. Eu estava no
terreiro, desde o dia 2 de janeiro, justamente para acompanhar a iniciação das crianças.

A primeira chuva deste ano foi dia 4 de janeiro, depois não parou mais de chover. No dia da
festa, a chuva deu uma trégua. Quintal limpo, barracão todo arrumado, as pessoas foram chegando e
se acomodando nos bancos. Eram parentes e amigos dos novos iniciados. Porque pesquiso com
crianças de terreiros, minha percepção estava nos dois meninos do barco. Contudo, como acontece
geralmente, havia outras crianças na festa. Eram crianças iniciadas, integrantes desse mesmo
terreiro e crianças visitantes, que frequentavam a casa ocasionalmente. Existiam, ainda, as abiãsviii,
crianças ligadas ao terreiro e ainda não iniciadas. Dandara Sophia, 7 anos, era abiã. Ela ajudou a
enfeitar o barracão, ajeitou flores, arrumou laços, espalhou folhas. Também ela se enfeitou. Banho,
cabelo penteado e um vestido novo. Na hora da festa, dançou, cantou, bateu palmas, saudou os
novos iaôs e os orixás. Quando Xangô chegou no barracão ela correu, abriu espaço por entre as
pessoas e abraçou o Deus iorubano. No intervalo do ritual, a procurei e perguntei porque ela

338
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...

abraçou o orixá e o que ela sentiu naquele abraço. Foi quando a menina respondeu: “Eu gostei
muito. No coração de Xangô tem um tambor de fogo. Parecia uma guerra”.

Há muito o que refletir sobre o período que vai de 2 a 21 de janeiro de 2020, tempo em que
Cauã e Vitor Hugo estiveram recolhidos, bem como a respeito do que pensei com as crianças no dia
da saída de ambos. Isso ficará para outro momento. Quando resolvi colocar parte da fala de
Dandara como título desse capítulo, no fundo, estava resolvendo seguir com ela, e com Xangô em
pensamento mais demorado. As reflexões, sempre provisórias, que entrego, se inserem no que
chamo de Estudos com Crianças de Terreiros (CAPUTO, 2006; 2012; 2018) e em nossa
Fotoetnografia Miúda (CAPUTO, 2018). Elas também são praticadas naquilo que George J. Sefa
Dei chama de Metodologias de Investigação antirracistas (2008). Aqui, no contexto de nosso
simpósio, desse XX Endipe, elas me ajudarão a defender tanto as culturas religiosas como a
laicidade, como um direito das crianças.

DANDARA, SUA AVÓ, SEU TERREIRO, SEU NOME

Elenita de Souza, 60 anos, moradora da Mangueira, é avó de Dandara. Conhecida como


“baiana”, Elenita foi iniciada para Oxum aos 14 anos, tem cargo de Iyalorixá, no entanto, não tem
casa aberta, não tem um terreiro próprio e frequenta o terreiro de Mãe Palmira, o Ilê, Omon Oyá
Legi. A mãe de Dandara chama-se Rosane da Silva, feita de Iansã e filha de Elenita. O pai é ogã ix.
Dandara tem mais dois irmãos, que não frequentam terreiros. “O candomblé, para mim não é só
uma religião. É uma herança de força, ainda mais para mulheres negras. Recebi e passei para minha

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 339


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

filha e, juntas, passamos para minha neta. Eu não seria nada sem Oxum. Minha filha não seria nada
sem Iansã. É por isso que a gente raspa, faz o santo, para avivar o orixá que tem dentro. Mas
também não obrigamos ninguém a ficar. Eu levei a mãe da Dandara, levei a Dandara, a irmã e o
irmão de Dandara, mas os irmãos dela não quiseram ficar, só ela, então é direito dela seguir no
candomblé até quando ela e os orixás quiserem”, dizia Elenita, no dia 10 de janeiro, enquanto
arrumava o cabelo da neta, antes de uma das “queimas de efunx”, do barco de Cauã começar.

Dandara, assim como outras crianças, acompanhava o processo de iniciação do amigo e já


quase irmão de santo. “Eu não sou feita ainda, mas o Cauã já é meu irmão, porque a gente é da
mesma casa, porque eu venho aqui. E Cauã também é do mesmo orixá meu, Oxóssi”. Perguntei a
Dandara se ela sabia o significado de seu nome. “Sei sim, Dandara é princesa guerreira. Aprendi
com minha mãe”. “E você gosta do seu nome?”, devolvi. “Gosto. O meu nome sou eu, Dandara, um
nome lindo de dizer. Porque sou Dandara de Oxóssi, o meu nome me acorda”, disse a menina.

Foram quase quatro séculos de escravização no Brasil. Um sistema de exploração


econômica, um projeto de dor e de morte imposto pelo colonialismo a milhões de africanos e
africanas. Um sistema mantido e alargado pela ideologia racista. Como lembra Munanga (2017, p.
14), “o afastamento e a destruição da consciência histórica eram estratégias utilizadas pela
escravidão e colonização para destruir a memória coletiva dos povos escravizados e colonizados”.
Tudo isso excluiu conhecimentos e modos de conhecer não só de pessoas e sociedades africanas
que aqui chegaram, como também dos povos originários brasileiros. Tudo isso coagulou olhos e, até
hoje, endurece sentidos que nos afastam da sofisticação desses conhecimentos.

Contudo, apesar da fragmentação da diáspora, Munanga enfatiza que laços linguísticos,


econômicos e culturais não deixaram de ser compartilhados, também na diáspora, por um grande
número de homens, mulheres e crianças escravizados, escravizadasxi, bem como por seus
descendentes até hoje. Entre todos esses conhecimentos laborais, artísticos, estéticos, herdados, não
do sistema escravista, não do projeto colonial, mas de pessoas de distintas etnias africanas, estão
diversos complexos religiosos, como os terreiros.

Terreiros, como o Ilê Omon Oyá Legi, também chamados roças, casas de santo, casas de
candomblé, são denominações correntes utilizadas para nomear tanto os espaços como o grupo de
culto aos deuses africanos, como ensina José Flávio Pessoa de Barros (1999). “Estes locais, onde
são reverenciados também os ancestrais ilustres, recebem denominações (Ketu, Angola, Jeje, etc.)
de acordo com as tradições culturais predominantes advindas de suas relações com grupos étnicos
africanos” (BARROS, 1999, p. 51). Raízes (ou herança, como disse Elenita há pouco), buscadas no
340
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...

continente africano, de acordo com o pesquisador, foram e são reelaboradas no contexto brasileiro,
nessas associações liturgicamente organizadas, em que conhecimentos são compartilhados e
identidades forjadas.

O principal legado mantido nos terreiros é a importância da palavra não só na transmissão


do axé (energia vital), como nos modos de aprender e ensinar, ou seja, no compartilhamento de
conhecimentos de uns para outros e de geração após geração. Legado que não é difícil de
relacionar. O escritor malinês Hampaté Bâ assegura que, na �frica tradicional, o que mais se preza
é justamente essa herança ancestral. O apego religioso ao patrimônio transmitido, diz Bâ, exprime-
se em frases como: “Aprendi com meu Mestre”, “Aprendi com meu pai”, “Foi o que suguei no seio
de minha mãe” (BÂ, 2010, p. 174). Frases semelhantes são cotidianas nos terreiros. Vimos aqui
Dandara dizer: “Aprendi com minha mãe”, a respeito do significado de seu nome. Hampaté Bâ
também ensina que a palavra falada se empossava de um valor moral fundamental, de um caráter
sagrado vinculado �sua origem e revelando, afinal, um testemunho daquilo que a pessoa é (BÂ,
2010, p. 169). Também Verger (2002, p. 101) enfatizou a importância da palavra, dotada de eficácia
para essas sociedades: “as palavras são consideradas verdadeiras locuções encantatórias, dotadas de
poder e capazes de influenciar o futuro”. “O meu nome sou eu, Dandara, um nome lindo de dizer.
Porque sou Dandara de Oxóssi, o meu nome me acorda”, evidencia bem o que estamos discutindo.

O ABRAÇODE XANGÔ

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 341


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

“Eu sonhei com Xangô, ele falou assim no sonho: quando eu for no terreiro você me abraça
não esquece. Eu esperava ele não ia. Eu esperava ele não ia. Quando eu esqueci é que ele foi e
lembrei no susto: Ihhh Xangô! Kábíyèsílé! Corri e abracei, foi por isso, por causa do sonho e eu
quase esqueci”, disse-me Dandara na mesma conversa sobre o abraço de Xangô. Eu perguntei a ela,
porque queria saber porque vi quando ela estava cantando e dançando na festa da saída de Cauã e,
de repente, como num susto mesmo, disparou em direção ao Orixá.

Xangô é orixá masculino da justiça, do fogo, dos raios e dos trovões. Foi o quarto rei da
cidade yorubana de Oyó. Quando Dandara corre em direção ao rei, ela grita Kábíyèsílé! A saudação
ao grande orixá que significa: “Saudamos sua majestade que veio do céu!” Na foto, a primeira desse
texto que guarda a momento do abraço, vemos Xangô segurando dois oxês, os machados duplos
com os quais o Xangô enfrentava seus adversários.

José Flávio Pessoa de Barros (1999) ensina que narrativas míticas falam das incursões
guerreiras de Xangô que anexa ao território de Oyó, inúmeras cidades vizinhas, através das guerras
e das alianças políticas, ampliando a hegemonia e o poderio de seu reino. Seu poder era tanto que
lhe eram atribuídas forças sobrenaturais como o fato de atirar pedras de fogo e raios contra seus
inimigos. Os atos de cavalgar e de lançar as pedras de raio são representados até hoje nos terreiros
quando Xangô retorna e dança o alujá, ritmo forte e acelerado, tocado com grande entusiasmo pelos
ogans. Todos os presentes também saúdam alegremente, como fez Dandara: Kábíyèsílé!

Uma das qualidades atribuídas a Xangô, diz Pessoa de Barros (1999), era a de punir os
transgressores das regras oriundas do consenso da sociedade. Em suas palavras:
Neste caso incluíam-se os mentirosos, ladrões, assaltantes de estrada, perjuros e
muitos outros pequenos e grandes delitos que colocavam em risco o convívio social.
Esta característica lhe confere a imagem de distribuidor da justiça divina. Quando um
raio atingia uma casa, podia ser um sinal de que a justiça de Xangô estava sendo
aplicada, devendo aquele que fora desta maneira denunciado provar sua inocência e
oferecer sacrifícios e oferendas, no sentido de aplacar sua ira (BARROS, 1999, p.
139).

O domínio do fogo, sempre presente nos mitos das mais diferentes sociedades humanas, diz
Pessoa de Barros, adquire significado especial quando relacionado a Xangô:
Não é o fogo tecnicamente controlado e que possibilita o avanço da metalurgia e a
conservação dos alimentos, mas o fogo incontrolável originado dos fenômenos

342
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...

naturais, como raio, meteoritos e aquele produzido pela ação dos vulcões. A morte de
Xangô, inexplicável para seu povo, o torna tão especial e lhe confere a faculdade de
distribuir, agora, na condição de orixá, a justiça através do domínio da natureza
(BARROS, 1999, p. 139).

Os Estudos com Crianças de Terreiros, buscam compartilhar os conhecimentos de crianças


de terreiros (mais tradicional, menos tradicional, sincretizado ou não e de qualquer nação).
Seguimos pareados com a Sociologia da Infância, para quem a infância é uma categoria do tipo
geracional e percebe as crianças como atores sociais de pleno direito, a partir do seu próprio campo,
priorizando suas falas (SARMENTO, 2011, p. 27). Porque nascemos na área da Educação,
interessa-nos as redes educativas (ALVES, 2010) e as culturas de pares (CORSARO, 2011)
vivenciadas pelas crianças de terreiros. A educação em terreiros é algo bem amplo e envolve tanto
adultos como crianças. No entanto, embora adultos participem obviamente das redes educativas e
das culturas de pares em terreiros, as crianças têm primazia em nossas percepções. Interessa-nos
como chegam ao terreiro, como o vivenciam, como brincam, como ensinam e aprendem, como
recebem cargos, como singularizam o terreiro e a cidade, o terreiro e a escola, o terreiro, os Deuses
e o mundo. “Quando eu abracei Xangô, eu falei: ‘me protege, Xangô’. O coração dele ouviu. Como
eu sei? Foi porque ele me apertou mais, na hora que eu falei. Por isso que eu sei”, disse Dandara.

DANDARA E O DIREITO DE ACREDITAR EM UM DEUS QUE “PULA COM SEU


MACHADO E FICA MUITO FORTE”

Os 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança

Toda criança tem direito de acreditar ou não acreditar em Deus. Toda criança tem o direito
de acreditar em um Deus que chega prestigioso, lançando suas pedras de fogo e brandindo seu oxê.
“Eu gosto muito da dança de Oxóssi, que é o meu orixá. Mas eu também acho lindo quando Xangô
dança, porque ele pula com o machado e fica muito forte”, diz Dandara. Toda criança tem o direito
de acreditar em um Deus que pula com seu machado e fica muito forte. Em 2019, a Convenção
sobre os Direitos da Criança completou 30 anos. Adotada pela Assembleia Geral da ONU, em 20 de
novembro de 1989, é o instrumento de Direitos Humanos mais amplamente ratificado (196 países).

Destacarei a seguir, alguns artigos que me auxiliarão na discussão que trago:


Artigo 13. “A criança deve ter o direito de expressar-se livremente”;

Artigo 14. “Os Estados partes devem reconhecer os direitos da criança �=


liberdade de
pensamento, de consciência e de crença religiosa;

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 343


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Artigo 15. Os Estados partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de


associação e à liberdade de realizar reuniões pacíficas;

Artigo 30. “Nos Estados Partes que abrigam minorias étnicas, religiosas, linguísticas,
ou populações autóctones, não será negado a uma criança que pertença a tais minorias
ou a um grupo autóctone, o direito de ter sua própria cultura, professar ou praticar sua
própria religião ou utilizar seu próprio idioma em comunidade com os demais
membros do grupo,

Artigo 41. Nenhuma determinação da presente convenção deve sobrepor-se a


dispositivos que sejam mais convenientes para a realização dos direitos da criança e
que podem constar da legislação de um Estado Parte ou das normas de legislações
internacionais vigentes para esse Estado.

Sobre esse último artigo, destacamos que, no caso do Brasil, o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA) diz textualmente que o direito ao respeito abrange, entre outros aspectos, a
preservação da identidade, dos valores e das crenças das crianças e adolescentes. Além disso, a Lei
13.257/2016, que alterou o ECA, assegurou aos pais o direito de transmissão familiar de suas
crenças. Ao longo de anos de pesquisas, no entanto, temos verificado o quanto crianças e jovens de
religiões de matrizes africanas são discriminadas e discriminados na sociedade e nas escolas, em
função do racismo religioso. Além disso, o desrespeito à laicidade colabora com a prática do
racismo religioso.

Para o professor de Direito Constitucional Daniel Sarmento (2007), a laicidade não significa
a adoção pelo Estado de uma perspectiva ateísta ou refratária à religiosidade. Pelo contrário, a
laicidade, diz o pesquisador, impõe que o Estado se mantenha neutro em relação às diferentes
concepções religiosas, sendo-lhe vedado tomar partido em questões de fé, bem como buscar o
favorecimento ou embaraço de qualquer crença.
A laicidade estatal, que é adotada na maioria das democracias ocidentais
contemporâneas, é um princípio que opera em duas direções. Por um lado, ela
salvaguarda as diversas confissões religiosas do risco de intervenções abusivas do
Estado. De outro, a laicidade protege o Estado das influências indevidas provenientes
da seara religiosa, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e
democrático, em que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão
religiosa, inclusive a majoritária (SARMENTO, 2007, p. 4).

Concordamos com Sarmento, no sentido de que defender a laicidade não significa proibir a
circulação das diversas religiões nas escolas. Significa (ou significaria) impedir que apenas as

344
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...

religiões hegemônicas cristãs transitassem com liberdade nas escolas, ocupando, inclusive, os
currículos, não só nas disciplinas de Ensino Religioso, como em outras disciplinas e espaços.

Não só a laicidade não é respeitada nas escolas, como as religiões de matrizes africanas são
as mais perseguidas. Não há justiça curricularxii onde há racismo. A luta por uma educação laica e a
luta por uma educação antirracista deveriam ser uma só. Para mim, enquanto existir racismo e,
portanto, racismo religioso no Brasil, não haverá educação laica nas escolas. Direitos de crianças
como Dandara continuarão sendo ignorados, ainda que o Brasil tenha ratificado a Convenção sobre
os Direitos da Criança em 24 de setembro de 1990.

EDUN ARA: PEDRAS DE FOGO

Como disse no início deste texto, inscrevemos nossos estudos no que o sociólogo George J.
Sefa Dei chama de “Metodologias de Investigação Antirracistas”. Para ele, todo pesquisador deve
reconhecer o impacto crucial da raça e da diferença social e, junto com isso, reconhecer as relações
de poder assimétricas estruturadas no contexto da diferença. De acordo com o sociólogo, a busca da
investigação antirracista suscita uma enormidade de questões teóricas e metodológicas complexas.
O anti-racismo tem que ver com relações de poder. O discurso anti-racismo afasta-se
de discussões sobre a tolerância da diversidade e aproxima-se da noção de diferença e
poder. Vê a raçaxiiie o racismo como centrais em relação ao modo como
reivindicamos, ocupamos e defendemos os espaços. A tarefa do anti-racismo é a de
identificar, desafiar e mudar os valores, as estruturas e os comportamentos que
perpetuam o racismo sistemático e outras formas de opressão social (DEI, 2008, p.
17).

Para Sefa Dei, a investigação (ou pesquisa) antirracista é operacionalizada como uma
investigação sobre a dominação racial e a opressão social e requer uma nova mudança de
paradigma, “um paradigma distante da investigação colonial e próximo de uma abordagem
relacional genuína com os sujeitos locais para desvendar as relações de poder na produção,
interrogação, validação e disseminação do conhecimento” (DEI, 2008, p. 25).

Nos limites desse texto, indicaremos algumas características das metodologias de pesquisa
antirracista sugeridas por Sefa Dei:
• Reconhecimento do pesquisador de um entendimento de que as características pessoais
influenciam o sucesso da investigação e das parcerias significativas com os sujeitos de
estudo;

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 345


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

• Afirmam a base de conhecimento dos sujeitos de estudos;

• Ligam a questão da identidade à produção do conhecimento;

• Ajudam a desafiar as relações coloniais e imperiais, subvertendo modos hegemônicos de


saber;

• Colocam questões sobre quem está a falar, sobre o quê e para quem;

• Levantam questões acerca dos contextos sociais e políticos da produção de conhecimento,


bem como sobre as fontes e usos dos dados de investigação;

• Assumem que há racismo institucional na investigação em ciências sociais mainstream. Isto


é evidente nos tópicos de estudo, nos conceitos e metodologias privilegiados, a quem é
permitido, legitimado e validado pesquisar, o quê e como as estruturas existentes permitem a
produção e disseminação de certos saberes;

• A questão da relevância é um elemento chave na investigação anti-racista. A relevância é


definida aos olhos dos sujeitos de pesquisa, não aos olhos do investigador e dos
financiadores do projeto de pesquisa.

• Reconhecemum código ético para investigar a opressão social e de raça. Um código que
reconhece o impacto do racismo sobre os quadros teóricos e conceituais, as epistemologias e
as metodologias de investigação nos chamados “estudos científicos”;

• Assim, a ética e os conceitos chave que subjazem aos objetivos da investigação, e ao ethos,
desenho, orientação, aplicação e disseminação do conhecimento de investigação devem ser
guiados por princípios anti-racistas de múltiplos modos de saber e pela necessidade de
procurar uma representação plena e a inclusão de experiências variadas;

• Empenha-se explicitamente em promover objetivos anti-racistas, e particularmente em


desafiar a dominação e as relações de poder na sociedade através da promoção da justiça
social, da equidade e da justeza,

• Reconhece a ideia de ligar as opressões, privilégios diferenciais, simultaneidade de


opressões e privilégios, e as imbricações da raça, do gênero, da sexualidade e das identidades
de classe (inserimos:das culturas, incluindo as religiosas) - como prova das complexidades
das experiências vividas.

A historiadora Gwendolyn Midlo Hall enfatiza que o tráfico transatlântico de escravos foi,
certamente, o exemplo mais cruel e duradouro de brutalidade e exploração humana da história
(HALL, 2017, p. 39). A maior parte da população do Brasil colonial era formada por escravizados
vindos do Continente Africano que, como destaca Carlos Moore, “por quase quatro séculos
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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...

serviram como mão-de-obra principal a partir da qual foi gerado o grosso das riquezas que tornaram
possível a constituição do Brasil como Nação” (MOORE, 2010, p. 22). Mão de obra, aliás, descrita
por Hall como muito habilidosa.

Muito foi arrancado, desmantelado, destruído pelo racismo que sustentou o projeto colonial
e sustenta até hoje a colonialidade (QUIJANO, 2010). Ainda assim, os terreiros, com seus
sofisticados conhecimentos, seus modos de perceber e conhecer, seus valores e suas práticas, sua
educação e maneiras de ensinar e aprender foram e são lugares estratégicos na diáspora africana
para proteção, continuação e ressignificação desse legado africano. Acredito e tenho defendido que,
justamente por isso, os terreiros são testemunhos contundentes de que o projeto colonial não
venceu. Tivesse vencido, um Deus iorubano não abraçaria uma criança, ainda hoje, em um terreiro
brasileiro, ouvindo seu pedido de proteção.

Compartilhar narrativas de crianças como Dandara nos desafia a pensar na


interseccionalidade: raça/classe/gênero/religião. Também desafia a escola a pensar no contexto
desse XX Endipe, em como aprender com diversas religiosidades dos alunos e alunas e, ao mesmo
tempo, assegurar uma educação laica? A sugestão que faço é ouvir as crianças e abrir espaços
amplos para suas narrativas com seus Deuses, seu Deus ou nenhum Deus. E aprender com elas, sem
a necessidade de qualquer disciplina de Ensino Religioso, sem proselitismos e sem racismos.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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“NO CORAÇÃO DE XANGÔ TEM UM TAMBOR DE FOGO. PARECIA UMA GUERRA”...

Notas de fim

i
Iniciei esse texto ainda em Braga/Portugal, quando atuava como bolsista professora visitante sênior, no Instituto de
Estudos da Infância da UMINHO. Contexto do Programa CAPES/PRINT. Terminei o texto, já no Rio, vivenciando,
aterrorizada, o mundo em plena pandemia pelo coronavírus. E será graças ao trabalho dos pesquisadores que a
venceremos.
ii
O barracão é parte do terreiro, sendo a sala onde acontecem as festas públicas.
Casa dos filhos de Iansã e Omolu (Iansã: orixá do vento, da tempestade. Omolu: senhor da terra, rege as doenças),
iii

localizado na rua Marte, 1000, Mesquita, Baixada Fluminense.


iv
A iniciação é o período (em geral de 21 dias) de recolhimento, para que os novos iniciados vivenciem os rituais e
sejam inseridos, como iaôs, na comunidade terreiro. Um barco é o nome dado ao grupo de pessoas que se inicia no
mesmo momento.
v
Ìyàwó (iaô) – cargo conferido no candomblé aos iniciados, sejam homens, mulheres, adultos ou crianças.
vi
Orixá masculino regente do fogo, considerado um das qualidades de Xangô (orixá da justiça, fogo e trovões).
vii
Orixá masculino, originário da cidade yorubá de Kétu. Patrono da Nação Kétu de candomblé. Mesmo que Odé.
Abíyán (abiã) – aquele eu nasce com dúvida. Cargo ocupado no candomblé por aqueles que frequentam a casa, mas
viii

que ainda não foram iniciados (JAGUN, 2017, p. 540).


ix
Cargo no candomblé responsável, entre outras coisas, por tocar os atabaques.
x
Efun é um giz mineral branco. Um dos elementos mais importantes, largamente utilizado e indispensável em diversos
ritos do Candomblé, seja na iniciação, em diversas oferendas e até nos ritos fúnebres. Popularmente chamada de
“queima de efun”, consiste nos momentos em que os novos iniciados saem do quarto de recolhimento, são pintados com
desenhos rituais feitos com efun e trazidos para o barracão para aprenderem a dançar para as divindades (JAGUN,
Márcio, 2017, p. 352-353).
xi
Em relação ao Brasil, o site Slave Voyages (viagens escravas) informa que estão catalogadas 29 mil travessias
transatlânticas, que carregaram 9 milhões de escravos, sendo que 5,8 milhões foram transportados por barcos com
bandeira Portugal/Brasil. O site também destaca um grande aumento na quantidade de escravos jovens nos últimos anos
da escravidão no Brasil. Nos 200 anos anteriores a 1841, a proporção de crianças nos navios negreiros foi de 7,6%, já
nos últimos 15 anos deste período, o índice aumentou para 59,5%.
xii
Referir-se à justiça curricular implica considerar as necessidades do presente para, em seguida, analisar de forma
crítica os conteúdos das distintas disciplinas e das propostas de ensino e aprendizagem com as quais se pretende educar
as novas gerações e prepará-las para a vida. Esta meta, é lógico, preocupa os professores comprometidos com a
atribuição de poderes aos grupos sociais mais desfavorecidos e, portanto, com a construção de um mundo melhor e mais
justo (SANTOMÉ, 2013, p. 10).
xiii
Raça aqui entendida, evidentemente, não como conceito biológico, mas como categoria de análise sociológica.

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CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM
DEFEITOS. PELO CONTRÁRIO, SÃO QUALIDADES
POSITIVAS: SUPERANDO A HEGEMONIA VIDENTE
PARA UMA PRÁXIS INCLUSIVA DE ENSINO

Eder Pires de Camargo


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Posicionaremo-nos criticamente frente ao fenômeno da deficiência visual ao analisarmos os


três princípios seguintes: 1) cegueirai e baixa visãoii não são doenças nem defeitos, mas qualidades
positivas; 2) o vidente frente ao invidente ou aos que possuem visão reduzida, deve deixar de
perceber-se hegemônico e 3) o vidente, ao perceber o não vidente, projeta-se nele. Posteriormente,
traremos quatro apontamentos que objetivam contribuir para a promoção de uma práxisiii inclusiva
no contexto educacional da escola. Aprofundemo-nos.

PRINCÍPIO 1: CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS, MAS
QUALIDADES POSITIVAS

Biologicamente, as características físicas e sensoriais de certo organismo não se constituirão


necessariamente melhores ou superiores do que as de outro. Elas só possuirão status de vantagem
dependendo do ambiente onde foram desenvolvidas, e isso lhes atribui, portanto, valor relativo. A
existência majoritária de cegos ou videntes, quando enfocada segundo a teoria Darwinista, será o
resultado da adaptação de um desses indivíduos a um determinado meio físico. A esse processo
denomina-se Seleção Natural (DARWIN, 2018).

O hipotético surgimento da Giraffa camelopardalis exemplifica esse argumento.

Certo grupo de animais instalara-se num local em que os melhores alimentos localizavam-se
no topo das árvores. Para Lamarck, a fim de comê-los, os bichos, cada vez mais, esticavam-se. Ano
após ano, imperceptivelmente, seus pescoços alongavam-se. Seus descendentes, mantendo tal
tendência, nasceriam com pescoços ligeiramente mais compridos até a ocorrência de estabilidade.
Disso teria resultado o animal que conhecemos hoje como girafa.

Para Darwin, a girafa não se originou do supracitado processo evolutivo. Segundo sua
teoria, os animais de pescoço um pouco maior comeriam, com mais facilidade, as melhores folhas,
enquanto os de menor pescoço possuiriam dificuldade de se alimentarem. Os animais de maior
pescoço também levariam vantagem no processo de reprodução. Assim, ao longo de muitos anos,
os bichos pescoçudos teriam sido favorecidos pelo ambiente (foram selecionados naturalmente), e
os de pescoço pequeno acabariam extintos, ou migrariam para outro ambiente com condições mais
adequadas de alimentação e reprodução.

Suponhamos agora que em vez de animais de pescoços grandes e pequenos houvesse seres
com visão e sem visão, e que no lugar de um ambiente com o melhor alimento no topo das árvores
existisse um local em que as melhores condições para sobrevivência (alimentação, proteção contra

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CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS...

predadores, etc.) se localizasse no fundo do mar ou no interior de uma grande caverna. Com o
passar dos anos, qual dos seres levaria vantagem de adaptação pelo processo de seleção natural?

Recorramos à ficção para responder a esse problema. No filme Bird Boxiv, pessoas videntes
cometem suicídio ao verem algo enigmático. Malorie, personagem interpretada por Sandra Bullock,
e duas outras crianças encontram uma alternativa para se salvarem: vendar os olhos para realizarem
as ações como deslocamento, procura de alimento etc. No contexto descrito, podemos supor que,
com o passar de muitos anos, o sujeito que melhor se adaptará ao ambiente mencionado será aquele
que não possui a visão. Bird Box mostra um sentido da evolução que favorece aos cegos,
explicitando que a posição de vantagem será definida pela relação dialética entre as condições do
indivíduo e do meio.

Notemos agora o que afirma Darwin sobre animais que vivem em ambientes em que a visão
não desempenha papel fundamental:
Os olhos das toupeiras e de alguns roedores que vivem em tocas têm tamanhos
rudimentares e, em alguns casos, são completamente cobertos por pele e pelos. Isso se
deve provavelmente à redução gradual causada pelo desuso, mas talvez auxiliada pela
seleção natural. Na América do Sul, um roedor que vive em tocas, o teco-teco (ou
Ctenomys), tem hábitos ainda mais subterrâneos que a toupeira; e foi-me assegurado
por um espanhol que, tendo apanhado muitos deles, notou que eram frequentemente
cegos, eu criei um que certamente estava nessa condição, e a causa, como pareceu pela
dissecção, foi uma inflamação da membrana nictitante. Já que a frequente inflamação
dos olhos deve ser prejudicial a qualquer animal e já que os olhos não são certamente
indispensáveis para animais com hábitos subterrâneos, a redução de seu tamanho com
a adesão das pálpebras e o crescimento de pelos sobre eles seria, neste caso, uma
vantagem; e, se assim for, a seleção natural constantemente auxiliaria os efeitos do
desuso (DARWIN, 2018, p. 152).

Para a teoria da seleção natural, se adaptarão a um determinado meio aqueles que possuírem
melhores condições de alimentação e reprodução. Essas condições não são absolutas, mas
dependerão da relação entre as características do indivíduo e do meio. Ter visão, por exemplo, pode
representar vantagem para o desenvolvimento, entretanto, não ter também pode. Tudo estará
condicionado, em termos biológicos, à estrutura natural onde o vidente ou o invidente vive.

Portanto, a visão não deveria ser interpretada como o resultado da melhora ou do avanço do
processo de desenvolvimento de homens e mulheres, uma vez que ver e não ver são características
humanas. Cegueira e baixa visão não são doenças nem defeitos, são diferenças belas de alguns
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

indivíduos e que resultam, quando de nascença, da qualidade positiva de seus desenvolvimentos


naturais. Quando adquiridas, implicam numa contingência inerente à existência humana.

Mostramos até aqui que a visão, em termos biológicos e de forma unilateral, não pode ser
considerada um atributo de superioridade de um organismo vidente em relação ao de um invidente.
Isto dependerá das condições ambientais em que este organismo vive. Abordaremos na sequência
que o ser humano não se encerra nos seus limites biológicos de desenvolvimento. Traremos, para
tanto, fatos sociais da relação entre pessoas com e sem deficiência visual. Argumentaremos que
essa relação é mediada por instrumentos psicológicos (VIGOTSKI, 1997) que definem padrões de
percepção, comportamentos e capacidades.

PRINCÍPIO 2: O VIDENTE FRENTE AO INVIDENTE, OU AO QUE POSSUI VISÃO


REDUZIDA, DEVE DEIXAR DE PERCEBER-SE HEGEMÔNICO

O ambiente ocidental, em que se desenvolvem homens e mulheres, vem favorecendo


aqueles que enxergam. Mas, em tese, poderia possuir outra que fosse vantajosa às pessoas cegas e
com baixa visão. É o que descreve o fato histórico abaixo:
[...] é o que revelam estudos sobre o Egito Antigo, que ficou conhecido como “Terra
dos Cegos”, em virtude dos altos índices de infecções nos olhos, que levavam à
cegueira; e indicam que as pessoas deficientes visuais não sofriam quaisquer tipos de
discriminação, integravam as camadas sociais, recebiam tratamento diferenciado,
inclusive em seus funerais (GUGEL, 2007).

Esse fato mostra que as pessoas invidentes ou com visão reduzida não devem ser percebidas
como anômalas, doentes ou defeituosas, pois “assim se apresentam todos os seres, naturalmente
heterogêneos, variados, distintos. Se assim é, então ser diferente é natural, e aí está toda a riqueza
humana” (SOUZA, 2014, p. 14).

O que se construiu, histórica e culturalmente, no mundo ocidental, foi o conceito de norma,


uma ideologiav que objetivou eliminar as diferenças e criar um sujeito homogêneo e superior que
não reconhece as diferenças biológicas e sociais como características humanas, interpretando
pessoas cegas e com baixa visão como anômalasvi. A partir de então, perceberíamos o outro por
meio de seus “atributos, ocupação, definindo, portanto, a sua identidade social” (GOFFMAN, 1980,
p. 05). Essa construção simbólica hegemoniza o vidente frente ao invidente, percebendo como
indesejadas, frágeis, limitadas e incapazes milhões de pessoas no mundovii.

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CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS...

A ideologia do vidente como ser hegemônico frente ao invidente se justifica e se


fundamenta no modelo médico de deficiência, que considera doença a cegueira e a baixa visão e,
consequentemente, como doentes, os que as possuem. Notemos suas definições:
Deficiência: perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou
anatômica, temporária ou permanente. Incluem-se nessas a ocorrência de uma
anomalia, defeito ou perda de um membro, órgão, tecido ou qualquer outra estrutura
do corpo, inclusive das funções mentais. Representa a exteriorização de um estado
patológico, refletindo um distúrbio orgânico, uma perturbação no órgão.

Incapacidade: restrição, resultante de uma deficiência, da habilidade para


desempenhar uma atividade considerada normal para o ser humano. Surge como
consequência direta ou é resposta do indivíduo a uma deficiência psicológica, física,
sensorial ou outra. Representa a objetivação da deficiência e reflete os distúrbios da
própria pessoa, nas atividades e comportamentos essenciais à vida diária
(WERNECK, 2003, p. 24).

Posicionamo-nos contrariamente aos preconceitos que o modelo médico visa legitimar, já


que:
[...] uma das razões pelas quais as pessoas deficientes estão expostas à discriminação é
que os diferentes são freqüentemente declarados doentes. Este modelo médico da
deficiência nos designa o papel desamparado e passivo de pacientes, no qual somos
considerados dependentes do cuidado de outras pessoas, incapazes de trabalhar,
isentos dos deveres normais, levando vidas inúteis, como está evidenciado na palavra
ainda comum “inválido” (“sem valor”, em latim) (STIL, 1990, p. 30 apud SASSAKI,
1999, p. 27).

O modelo médico sobre deficiência negligencia que o ser humano planeja e constrói os
contextos onde vive e se desenvolve, não aceitando que homens e mulheres são constituídos por
múltiplas diferenças. Representa a fobia que o vidente possui do cego: uma projeção a qual busca
evitar e fugir, ou o antimodelo humano que jamais pretende ser. Legitima o padrão de normalidade,
posicionando de forma hegemônica o vidente frente ao invidente. O cego, segundo esse referencial
ideológico, tem por características naturais a fragilidade, a incapacidade e a limitação. Em suma, o
modelo médico exprime a ideologia de que homens e mulheres são constituídos pela
homogeneidade e que diferenças devem ser evitadas, desconsideradas e eliminadas. Consideremos,
ainda, que o ser humano e o mundo são o produto de um processo dialético de modificação e
formação social. Homens, mulheres e as estruturas físicas e simbólicas atuais representam um tipo

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

de desenvolvimento histórico que é o resultado da ação humana na transformação do mundo e da


ação do mundo transformado e em transformação na constituição humana. Assim:
[...] o homem é homem e o mundo é histórico-cultural na medida em que, ambos
inacabados, se encontram numa relação permanente, a qual o homem, transformando
o mundo, sofre os efeitos de sua própria transformação. Neste processo histórico-
cultural dinâmico, uma geração encontra uma realidade objetiva marcada por outra
geração e recebe, igualmente, através desta, as marcas da realidade. Todo esforço no
sentido da manipulação do homem para que se adapte a esta realidade, além de ser
cientificamente absurdo, visto que a adaptação sugere a existência de uma realidade
acabada, estática e não criando-se, significa ainda subtrair do homem a sua
possibilidade e o seu direito de transformar o mundo (FREIRE, 1983, p. 44).

Temos aqui as bases teóricas do modelo social de deficiência. Segundo o Preâmbulo da


Convenção da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência:
“Deficiência é um conceito em evolução”, a qual “resulta da interação entre pessoas com
deficiência e barreiras comportamentais e ambientais que impedem sua participação plena e eficaz
na sociedade de forma igualitária” (OMS, 2011, p. 4).

Sob tal fundamentação, consideramos que:


Deficiência não é mais uma simples expressão de uma lesão que impõe restrições à
participação social de uma pessoa. Deficiência é um conceito complexo que reconhece
o corpo com lesão, mas que também denuncia a estrutura social que oprime a pessoa
deficiente. Assim como outras formas de opressão pelo corpo, tais como o sexismo ou
o racismo, os estudos sobre deficiência descortinaram uma das ideologias mais
opressoras de nossa vida social: a que humilha e segrega o corpo (DINIZ, 2007, p. 9).

É na perspectiva histórico-cultural que compreendemos o fenômeno da deficiência visual,


quer dizer, como resultante da divergência entre a estrutura social visuocentrista e as principais
características sensoriais dos indivíduos cegos e com baixa visão. Assim, pensar e agir de forma
contra-hegemônica é perceber que o desenvolvimento das pessoas cegas e com baixa visão se dá
num mundo social que estruturou majoritariamente os processos de aquisição de conhecimento:
observação, comunicação, ensino, aprendizagem, locomoção, transporte, trabalho, lazer, etc. em
razão da percepção visual, ou seja, de uma cultura de videntesviii (MASINI, 1990).

Os seres humanos nunca serão réplicas, sempre possuirão, em maior ou menor escala, em
relação a qualquer característica corporal (física, sensorial, intelectual, etc.) e culturais diferenças
entre si. Segundo essa perspectiva, incapacidades e limitações para realizar alguma atividade

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CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS...

específica atribuída aos indivíduos cegos e com baixa visão devem ter sua responsabilidade
deslocada para o meio social, planejado e construído para a atuação protagonista, plena e
hegemônica do homem ocidental branco, heterossexual, sem deficiência e magro, pois a produção
de exclusão das pessoas invisuais e com visão reduzida é um fato socialmente equivalente à
construção de exclusão das mulheres, dos negros e dos indígenas.

Na sequência, abordaremos a forma do vidente perceber o cego. Argumentaremos que isso


ocorre por meio de suas representações de senso comum acerca do fenômeno da cegueira, o que,
invariavelmente, produz preconceitos e equívocos sobre as condições sociais, físicas e emocionais
do sujeito invidente. Acompanhe.

PRINCÍPIO 3: O VIDENTE, AO PERCEBER O NÃO VIDENTE, PROJETA-SE NELE

Analisemos o exemplo real ocorrido em janeiro de 2017.

Um cego, numa manhã de domingo, caminhava com sua bengala ao lado do campo de
futebol. Um senhor de aproximadamente 80 anos de idade, que fora diretor da escola onde o cego
estudara quando criança no ensino fundamental, posicionado no lado oposto da rua, subitamente,
chamou-lhe aos gritos. O cego seguiu a direção da voz, encontrou o senhor, o reconheceu e deu-lhe
um longo abraço. Então, o senhor lhe disse: “não fique triste, meu filho, tem gente numa situação
bem pior que a sua, meu irmão acabou de falecer de câncer”. O cego deu-lhe um beijo no rosto e
continuou seu trajeto. Na quadra seguinte pensou: “mas eu não estou triste, estou feliz!”

Para Merleau-Ponty (1971), o sujeito da percepção deixa de ser a consciência concebida


separadamente da experiência vivida e da qual provém o conhecimento tornando-se o corpo. Nessa
perspectiva, a percepção emerge da relação corporal do sujeito no mundo: “O corpo é, então, visto
como fonte de sentidos, isto é, de significação da relação do sujeito no mundo; sujeito visto na
totalidade, na sua estrutura de relações com as coisas ao seu redor” (MASINI, 2008, p. 73).

Para compreender a complexidade da totalidade do conhecimento do sujeito, aqui o senhor


de 80 anos de idade, é indispensável considerarmos sua experiência perceptiva sobre o fenômeno da
cegueira.

“As coisas ‘se pensam’ em cada pessoa, porque não é um pensar intelectual, no sentido de
funcionamento de um sistema, mas sim do saber de si ao saber do objeto, posto que ao entrar em
contato com o objeto, o sujeito entra em contato consigo mesmo” (MASINI, 2008, p. 73).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O senhor não falava do cego e sim de si próprio. Ao vê-lo em movimento, imaginou-se


invidente caminhando. Percebeu-se incapaz de fazer, em relação ao passado, presente e futuro, as
coisas que já fizera. Portanto, aquela experiência lhe fez autoprojetar o que é ser cego.

“O que é percebido por uma pessoa (fenômeno) acontece num campo do qual ela faz parte; a
identidade do mundo percebido vai ocorrendo por intermédio das suas próprias perspectivas e vai se
construindo em movimentos de retomada do passado e abertura para o futuro, sempre sendo
possível novas perspectivas” (MASINI, 2008, p. 73).

Isso denota as experiências perceptivas do senhor acerca da cegueira, reveladas nas


características negativas “cego é uma pessoa triste”, e na interpretação da inferioridade social
ocupada pelo cego “tem gente numa situação bem pior que a sua”. Ocorre que a conclusão do
senhor estava errada, uma vez que o cego encontrava-se feliz.

Possivelmente, quando um vidente percebe um cego, projeta-se nele. Doravante, pensando


falar do cego, fala de si como se fosse cego. Supõe agir na condição de cego, no passado, presente e
futuro, tudo que fizera, faz e faria como vidente. Então, se desespera e conclui: “ele é infeliz, triste e
incapaz”. Na verdade, está dizendo: “se eu fosse cego, seria infeliz, triste e incapaz”.

Assim, é importante a tomada de consciência acerca de que quando o vidente fala do cego,
na verdade está falando sobre sua projeção do ser cego. Essa projeção pode ser equivocada e
produzir preconceitos. Descrevemos um desses preconceitos, ou seja, a percepção hegemônica
vidente frente ao cego ou ao que possui baixa visão.

APONTAMENTOS PARA A PROMOÇÃO DE UMA PRÁXIS INCLUSIVA

Traremos quatro apontamentos cujo objetivo é contribuir para a promoção de uma práxis
inclusiva no contexto educacional da escola.

I) Uma práxis inclusiva deverá tomar como referencial teórico que a deficiência visual é um
fenômeno social. Fragilidades, limitações e incapacidades não devem ser consideradas atributos
intrínsecos de estudantes cegos e com baixa visão. Como os espaços físicos e simbólicos da sala de
aula foram historicamente planejados e organizados segundo a cultura de videntes (MASINI, 1994),
esses estudantes vêm experimentando dificuldades metodológicas, linguísticas e atitudinais que lhes
colocam em posição de inferioridade frente ao vidente. Transformado o meio não natural da sala de
aula, os estudantes cegos e com baixa visão passarão a ter possibilidades sociais de aquisição e
produção de conhecimento.

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CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS...

II) Deve-se superar o valor hegemônico de que há seres humanos inferiores a outros.
Analisamos o caso do cego frente ao vidente e argumentamos que tal preconceito é justificado pelo
modelo médico de deficiência. Esse é um valor construído socialmente e transmitido pela
linguagem às gerações, o que responsabiliza o processo educacional duplamente: a) no sentido de
não atuar como reprodutor desse valor; e b) no sentido de eliminá-lo.

III) Deve-se considerar que as relações dos estudantes se dão por agrupamentos entre
elementos comuns e diferenciações entre incomuns. Temos aqui a fundamentação para a elaboração
de processos comunicativos, metodológicos e de materiais de ensino (representações e
experimentos), fundamentados no paradigma identidade e diferença.

Por exemplo, no ensino de ciências, é lugar comum o discurso de licenciandos e docentes


que “a física, a química e a biologia são ciências muito visuais” (VERASZTO, 2018). O
entendimento de fenômeno pode justificar tal percepção social: Segundo Bello (2006), fenômeno –
phainomenon – tem sua origem etimológica na língua grega e significa aquilo que se mostra.
Entretanto, o que se mostra, se mostra para o sujeito. Esse, por sua vez, percebe segundo seus
interesses, o que implica dizer que um fenômeno sempre será definido socialmente. Isso justifica o
fato de a identidade visual aproximar videntes em torno de representações e experimentos
científicos percebidos a partir do olho, além de explicar, em partes, a exclusão de alunos com
deficiência visual de ambientes de ensino de ciências (CAMARGO, 2016). Se em termos de
percepção, cegos e videntes possuem uma diferença – ver e não ver, esses indivíduos poderiam
possuir quatro identidades: ouvir, tatear, cheirar e degustar (CAMARGO, 2018). Portanto,
propomos o trabalho com maquetes e experimentos científicos acessíveis para professores e alunos
com e sem deficiência visual, uma vez que partilhamos do referencial teórico de que a relação
sujeito/objeto é mediada por instrumentos e signos (VYGOTSKI, 1997), seja o objeto caracterizado
pela representação do fenômeno, como, por exemplo, uma maquete, ou por um experimento.

IV) É preciso reconhecer e institucionalizar o conceito de que a ciência é uma construção


social, portanto um fenômeno linguístico e cultural. Questionamos: No contexto escolar, que local
ocupa a ciência dos povos indígenas e africanos? Por que quando estudamos a história da ciência
raramente notamos a presença de mulheres, homens negros e pessoas com deficiências como
protagonistas? Deve-se interpretar o contexto histórico de produção de conhecimento científico
como natural? Ou seja, os grandes nomes da física, química e biologia realmente possuíam “mentes
brilhantes” se comparadas às dos outros membros da sociedade? Sem negar o fato de que Newton,
Einstein, Darwin etc. eram seres humanos capazes intelectualmente, concordamos que suas

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

existências foram, acima de tudo, condicionadas histórica e culturalmente. Em outras palavras, os


mesmos não teriam sido quem foram se essas condições tivessem sido outras. Assim, sem comparar
o conceito de ciências ao de senso comum, deve-se superar o paradigma de que há um
conhecimento fixo e isolado presente na natureza chamado “ciências” e que existem alguns seres
humanos "iluminados” capazes de descobrir tal verdade, ou seja, os europeus/norte-americanos, de
sexo masculino, de cor branca e sem deficiência. Portanto, incluir implica também na inclusão da
perspectiva cultural do outro, não para superá-la, mas para compreendê-la, compartilhá-la e com ela
dialogar.

Finalizamos afirmando que perceber as relações entre alunos videntes, cegos e com baixa
visão, segundo aquilo que lhes são comum e incomum, contribuirá para a construção de ambientes
de ensino/aprendizagem acessíveis, metodologias interativas/participativas, atividades
experimentais multissensoriais, avaliações diagnósticas e formativas. A práxis inclusiva reconhece
que a cegueira e a baixa visão não são doenças nem defeitos. Pelo contrário, são qualidades
positivas de quem as possui, uma vez que implicam em: a) diferentes possibilidades de organização
e transformação social; e b) construção de linguagem em torno das relações de identidade e
diferença.

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CEGUEIRA E BAIXA VISÃO NÃO SÃO DOENÇAS NEM DEFEITOS...

REFERÊNCIAS

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CAMARGO, E. P. Estrangeiro. Plêiade. 2. ed. São Paulo: [s.n.], 2018. 202 p.

CAMARGO, E. P. Inclusão e necessidade especial: compreendendo identidade e diferença por meio do ensino de
física e da deficiência visual. São Paulo: Editora Livraria da Física, 2016. p. 256.

DARWIN, C. A origem das espécies. São Paulo: Edipro, 2018.

DINIZ, D. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007. [Coleção Primeiros Passos, 324].

FREIRE, P. Extensão ou Comunicação? 8. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

GIROUX, H. A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Tradução: Daniel
Bueno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

GOFFMAN, E. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1980.

GUGEL, M. A. Pessoas com Deficiência e o Direito ao Trabalho. Florianópolis: Obra Jurídica, 2007.

MASINI, E. F. S. O aprender na complexidade. In: MASINI, E. F. S. MOREIRA, M (org.). A aprendizagem


significativa: condições para ocorrência e lacunas que levam a comprometimentos. São Paulo: Vetor, 2008. p. 63-84.

MASINI, E. F. S. O perceber e o relacionar-se do deficiente visual; orientando professores especializados. Revista


Brasileira de Educação Especial, [s.l.], p. 29-39, 1990.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Freitas Bastos, 1971. [Originalmente publicado
em francês em 1945].

ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Relatório Mundial sobre a Deficiência (World Report on
Disability). The World Bank. Tradução: Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Governo do Estado de
São Paulo. São Paulo: [s.n.], 2011.

PORTAL BRASIL. Dia mundial da visão alerta para a prevenção da cegueira no País. [S.l.: s.n.], 2012. Disponível
em: http://www.brasil.gov.br/saude/2012/10/dia-mundial-da-visao-alerta-para-a-prevencao-da-cegueira-no-pais. Acesso
em: 03 ago. 2017.

SASSAKI, R. K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 5. ed. Rio de Janeiro: WVA editora, 1999.

SOUZA, D. P. Políticas públicas e a visibilidade da pessoa com deficiência: estudo de caso do Projeto Curupira.
Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Amazonas,
UFAM. Manaus, 2014.

VERASZTO, E. V. Conceitualização em ciências: um estudo com alunos de licenciaturas em Física, Química e


Biologia. Relatório de pós-doutorado, UNESP, 2018.

VISUAL IMPAIRMENT AND BLINDNESS. World health organization. [S.l.: s.n.], 2017. Disponível em:
http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs282/en/. Acesso em: 03 ago. 2017.

VYGOTSKI, L. S. La colectividad como factor de desarrollo del nino deficiente. In: Obras Escogidas: V Fundamentos
de Defectología. 2. ed. Madrid: Aprendizaje visor, 1997. p. 213-234.

WERNECK, C. Definições básicas. [S.l.: s.n.], 2003. 24p. Mimeo.


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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Notas de fim

i
Consideramos os conceitos: cego, invidente e não vidente como sinônimos.
Consideramos os conceitos: baixa visão e visão reduzida como sinônimos.
ii

“A práxis, porém, é reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Sem ela, é impossível a superação
iii

da contradição opressor-oprimidos” (FREIRE, 1987, p. 21).


iv
BIRD BOX. Direção de Suzanne Bier. Estados Unidos da América: NetFlix, 2018. 117 min.
v
Ideologia: forma nas quais os significados são produzidos, mediados e incorporados como conhecimento, práticas
sociais e experiências culturais (GIROUX, 1997).
vi
Aplicamos essa ideia às pessoas surdas, com deficiência auditiva, surdocegas, com deficiência intelectual, com
deficiência física, com transtorno global de desenvolvimento e com altas habilidades/superdotação.
vii
No Brasil existem aproximadamente 35,7 milhões de pessoas com algum tipo de dificuldade visual (IBGE apud
PORTAL BRASIL, 2012). Essas pessoas, em sua maioria –– em torno de 29,2 milhões, com o auxílio de algum
instrumento óptico enxergam adequadamente. Contudo, há aquelas que, mesmo após a utilização de óculos ou lentes
convencionais, não conseguem realizar funções que definem comportamentos considerados ideais para viverem numa
sociedade visuocentrista. São os brasileiros com baixa visão – que totalizam aproximadamente 6,1 milhões, e os
brasileiros cegos, que somam entorno de 506 mil pessoas (PORTAL BRASIL, 2012).
No mundo, a cada 5 segundos uma pessoa fica cega. Estimava-se, que em 2017, 285 milhões de seres humanos
possuiriam deficiência visual, dentre os quais 39 milhões seriam cegos e 246 milhões teriam baixa visão. Ainda, até
2020, o número de indivíduos com deficiência visual poderá dobrar e 90% dos casos de cegueira se encontram nos
países emergentes e subdesenvolvidos (OMS, 2011) (Visual impairmentand blindness, 2017).
O “conhecer” esperado na educação do deficiente visual tem como pressuposto o “ver”. Portanto, não se leva em
viii

conta as diferenças de percepção entre o deficiente visual e o vidente. “Pode-se supor que a desconsideração
(supracitada) tenha sido determinada pela desatenção à predominância da visão ou àquilo que ficou encoberto pela
familiaridade, oculto pelo hábito, linguagem e senso comum numa cultura de videntes” (MASINI, op. cit., p. 29).

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 361


CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES
EMANCIPATÓRIAS EM CONTEXTOS EDUCACIONAIS,
SOCIAIS, POLÍTICOS E EPISTÊMICOS PLURAIS

Inês Barbosa de Oliveira


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A PLURALIDADE POLÍTICO-EPISTEMOLÓGICA DO MUNDO EM PRÁTICAS POLÍTICAS,


ARTÍSTICAS E SOCIAIS

Nos cotidianos periferizados do Rio de Janeiro vivem “as histórias que a História não
conta”i, de tantesii “mulheres, tamoios, mulatos”, “marias, mahins, Marielles, malês” e outres
sujeitos que os poderes instituídos insistem em não querer ouvir nem narrar e nós, cotidianistas,
buscamos desinvisibilizar, trazendo para o centro da cena essas vozes silenciadas dos “avessos dos
lugares” que a modernidade trata como sendo os seus mesmos, ou seus erros e desvios, os
invisibilizando, negando, subalternizando e/ou aniquilando. Onde a “luz” da hegemonia só vê o que
sua racionalidade indolente (SANTOS, 2000) permite e comporta, nós buscamos perceber as redes
complexas de “chiarosescurosiii” que torna a vida cotidiana rica, plural, bonita e potente
(OLIVEIRA, 2007, 2012). Com isso, contamos essas histórias “para saber quem somos” – como
aprendemos com Manguel (2010) – e para buscar vislumbrar as realidades para além do que já são,
naquilo que “ainda-não” são (SANTOS, 2000), mas que nossa ação e imaginação sociológica e
democrática permitem conceber e lutar por.

Aprendemos, ainda, sobre as artes de fazerviver de populações subalternizadas com o enredo


vencedor do carnaval carioca, desta vez em 2020. A Viradouro trouxe para a avenida um pouco da
história das Ganhadeiras de Itapuãiv, que resistiram, recriaram suas canções e sua cultura e
chegaram ao “maior show da terra”, desinvisibilizadas pela arte, a própria, a do coletivo que nelas
se inspirou e a dos carnavalescos.
O início da história das Ganhadeiras de Itapuã vem do momento onde o bairro era
apenas uma vila de pescadores e um grupo de mulheres negras já lutava pela
subsistência de suas famílias. Elas lavavam de ganho, preparavam peixes e outras
iguarias para vender na rua, mercados, feiras. Iam a pé até o centro da cidade,
equilibrando balaios nas cabeças. No trajeto, “para espantar o cansaço”, iam
compondo e cantando; eram cantigas de roda, sambas e cirandas. De toda essa
tradição, surgiu o grupo Ganhadeiras de Itapuãv.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 363


CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

Imagem 1. Reprodução. Imagem disponível em: https://www.ibahia.com/ondeestameutrio/detalhe/noticia/quem-sao-as-


ganhadeiras-de-itapua-as-homenageadas-da-escola-vencedora-viradouro/. Consulta em: 06 mar. 2020.

No informativo eletrônico G1, de 26/02/2020, lê-se:


Com o enredo De alma lavada, idealizado para louvar a história de grupo de mulheres
guerreiras, a escola niteroiense Unidos do Viradouro se sagrou campeã do Carnaval do
Rio de Janeiro em 2020 em disputada apuração, encerrada no fim da tarde desta
quarta-feira de cinzas, 26 de fevereiro.

Assinado pelos carnavalescos Marcus Ferreira e Tarcísio Zanon, o enredo deu


projeção nacional à cultura de grupo de cantadeiras e trabalhadoras que, ao preservar
tradições do samba de roda na labuta diária, expôs desde sempre a força da mulher
negra na sociedade e na música do Brasil.

A história vitoriosa dessas mulheres inspirou grupo musical criado em março de 2004
com a intenção de preservar a memória cultural e musical de Itapuã, bairro de
Salvador (BA).

Carregado de simbologia feminista, o grupo Ganhadeiras de Itapuã tem nome alusivo


às mulheres do fim do século XIX e início do século XX que ganhavam a vida
lavando roupas e vendendo comidas.

Atuante e reconhecido como patrimônio cultural da Bahia, o grupo musical celebrou


15 anos de vida em 2019 com o primeiro registro audiovisual de show das
Ganhadeiras de Itapuã.

É um coletivo de mulheres vitoriosas que, como enredo da Unidos da Viradouro,


fizeram a agremiação de Niterói (RJ) ganhar o título de campeã do Carnaval do Rio de
Janeiro em 2020vi.

Seguindo com os conhecimentos que a modernidade negou e nega, que a hegemonia tenta,
ativamente, invisibilizar, por meio de diferentes expedientes epistemicidas, por meio do

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

“aniquilamento ou subalternização, subordinação, marginalização e ilegalização de práticas e


grupos sociais portadores de formas de conhecimentos ‘estranhos’, porque sustentadas por práticas
sociais ameaçadoras” (OLIVEIRA, 2008, p. 76), chegamos à oficina da Universidade Popular dos
Movimentos Sociais (UPMS) realizada no contexto da 39ª Reunião nacional da Anpedvii. Buscando
valorizar os conhecimentos negligenciados pela modernidade, a UPMS é uma universidade sem
campus e sem aulas, na qual as conversas entre os diferentes grupos e movimentos sociais, com a
participação minoritária de acadêmicos, sobre temas de interesse comum, buscam pensar e conceber
saídas e possibilidades de intervenção social potencialmente emancipatória.

Imagem 2. Fotografia tirada no primeiro dia da Oficina da UPMS, com o conjunto dos intelectuaismilitantes presentes.

As oficinas da UPMS se propõem a fomentar o diálogo, de modo tão horizontalizado quanto


possível – e é para não comprometer irremediavelmente essa horizontalidade que o percentual de
acadêmicos é limitado –, entre os diferentes pontos de vista sobre a questão a ser discutida: as
aproximações, distanciamentos, convergências e conflitos entre os presentes em torno dela, de
modo que possamos aprender umes com outres os modos como cada ume lê/vê/ouve/sente os
mundos nos quais se inscreve e está inscrito e buscarmos os pontos em comum para o
desenvolvimento e aperfeiçoamento de ações políticas e sociais nos diferentes movimentos sociais.

No relatório da UPMS “Defender e descolonizar a universidade: da resistência à ecologia de


saberes”, ainda em processo de formulação, a apresentação esclarece:
A Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS) nasceu em janeiro de 2003,
durante a 3ª edição do Fórum Social Mundial (FSM), a partir da identificação de uma
ausência de conhecimento recíproco entre movimentos sociais, organizações não
governamentais e academia e da necessidade de superar o isolamento das alternativas

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CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

para promover uma política intermovimentos baseada no diálogo, no conflito e na


articulação entre a diversidade contra hegemônica do mundo. O seu objetivo é,
portanto, promover a partilha de saberes para ampliar, articular e fortalecer as lutas
sociais (no prelo).

Assim, nesses quase vinte anos de existência, a UPMS tem permitido acessar modos
inventados cotidianamente pelos militantes dos diferentes movimentos sociais, seus atores e suas
causas invisibilizadas, para sobreviverem às iniquidades sociais, ao fascismo social e a tantas outras
formas de negação de suas existências e questões, sempre com criações próprias que tendem a
permanecer do outro lado da linha abissal. Nesse processo, percebemos a formação de redes de
conhecimento como solidariedade – ponto de chegada do conhecimento-emancipação (OLIVEIRA,
2008) – por meio da construção de pontes entre reivindicações e problemas distintos, permitindo
que arquipélagos político-epistemológicos se formem. São pontes formadas de redes de
conhecimentos e de reconhecimentos mútuos, tecidas pela busca dos diferentes participantes por
aproximações entre os movimentos nos quais atuam e pela compreensão dos distanciamentos e
conflitos que permanecem.

Na já histórica oficina em questão, estavam muites ativistas, alguns ligados à academia.


Destacaram-se, naquele momento, muitas lutas. Escolho trazer para este texto três notáveis
mulheres com quem muito aprendemos na ocasião. Sarah Wagner, na luta da mulher trans contra os
mais diversos preconceitos e formas de exclusão, tem conseguido estudar, ensinaraprender na
escola e fora dela e vem se fazendo referência em muitos espaçostempos de educação e de luta.
Sarah foi minha aluna na Uerj e se tornou para mim uma referência. Descobri depois, em conversa
com uma funcionária da Unesa, onde também sou docente, que foi pela luta de Sarah que a
Universidade passou a reconhecer e a usar os nomes sociais de alunes que o desejassem, o que só
fez crescer minha admiração por ela. E, hoje, já sei que as redes tecidas naquela UPMS permitiram
a colegas, que a conheceram lá, levar sua luta a se ampliar, chegando à Fundação Roberto Marinho,
cujo Programa “Geração Futura” tem hoje Sarah Wagner como uma das professoras de referência.
Depois do evento, informei Sarah que queria abordar a luta dela e de tantas mulheres trans e ela me
enviou o que considerou fundamental dizer:
A discussão da pauta trans é fundamental para os espaços de produção do
conhecimento, como a universidade, visto que: 1) os corpos trans e suas experiências
impõem uma desnaturalização das normas de gênero, tão necessária em nossa
sociedade; 2) a discussão trans, traz para ciência e seus espaços o questionamento de
hierarquizações historicamente constituídas, como a que define quem pode falar e

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

quem é ouvido; 3) é necessário que a ciência se comprometa com a afirmação e


garantia dos direitos de todos os segmentos sociais, com a voz e suas experiências,
rompendo assim as estruturas de subalternização.

Dentre as principais pautas trans em 2020, estão o acesso à educação e alternativas de


empregabilidade. Para que estas agendas se concretizem, é fundamental que estejam
deflagradas no conjunto de instituições da sociedade, processos de educação em
gênero e sexualidade, para que se promova mudanças de valores e mentalidades. Há
também que se promover alternativas de qualificação profissional em que as políticas
de educação, trabalho e assistência atuem de forma integrada. Há de se garantir
condições de sobrevivência nos espaços sociais e permanência na escola (depoimento
coletado por WhatsApp, indisponível).

É ela mesma quem resume a pauta acima me dizendo que o respeito ainda é o principal.
“Respeito para permanecer na família, respeito para permanecer na escola, respeito para ocupar
postos de trabalho, respeito para não sermos violentadas e assassinadas!”

É um texto lúcido, informado e forte, como o foram os sambas anteriormente citados e


outras experiências da UPMS, como a de Vânia Rosa, que foi moradora em situação de rua,
dependente de drogas e sem perspectivas durante um período de sua vida. Hoje, ela é uma liderança
em um movimento de defesa dessa população em situação de rua.

Ao se apresentar, ela nos disse quem era:


Meu nome é Vânia Rosa. Eu sou ex-moradora em situação de rua. Por quase quinze
anos transitei nas ruas do Rio de Janeiro e outras fora do meu estado. [...] superando
essa trajetória, essa situação, eu consigo hoje voltar nessa mesma rua levando a
esperança, o exemplo da possibilidade, das mesmas que eu tive pra eu hoje estar aqui
falando com vocês. Superar e vencer medos, um dos temas aqui [...]. Medo sempre foi
um problema muito sério entre continuar a luta ou parar, como foi o caso de Marielle
que de uma forma ou de outra pararam. E muitas pessoas têm medo de lutar enquanto
militante, principalmente ao tratar de direitos humanos. E eu tive que superar esse
medo, pra eu mesma vencer os meus próprios medos e sair finalmente daquela
situação (UPMS, no prelo, s/d).

Vânia se declara “militante e ativista dos direitos humanos para população em situação de
rua. E uma batalhadora, que prossegue na luta desenvolvendo atividades e investindo na
desinvisibilização dessas populações, suas lutas e vivências cotidianas”. Fundou e lidera o Projeto
JUCA (Juntando os cacos com arte), que desenvolve “Arteterapia com mosaicos para pessoas em

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CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

situação de rua e tratamento de dependentes químicos”. Frequenta as calçadas, como ela mesma diz.
Além disso, mais formalmente, depois de integrar por três anos o Movimento Nacional de pessoas
em situação de rua (MNPR), por desavenças com o grupo gestor, acabou por deixar esse coletivo
em 2018. Desde então, integra o “Fórum permanente sobre população adulta em situação de rua
[RJ]” e, desde 2019, integra o Conselho Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro. Em seu
folder de apresentação, o Fórum afirma sua visão da questão:
Morar nas ruas é resultado de processos estruturais de exclusão. Compreendermos que
é necessária uma reformulação substancial da leitura secular, às vezes paternalista, às
vezes discriminatória. Toda ação destinada a essa população precisa considerar sua
heterogeneidade e estar pautada na concepção de cidadania e direitos. Defendemos o
protagonismo dos próprios sujeitos que vivenciam a experiência de vida nas ruas
(Folder do Fórum).

E enuncia como objetivos:


[...] refletir, estudar, pesquisar e debater sobre a situação de vida nas ruas. Dialogar
com as instâncias de governo para formular políticas públicas. Desenvolver
campanhas e atividades para superação do preconceito. Contribuir na organização
democrática da população adulta em situação de rua, estimulando seu protagonismo e
sua autonomia como sujeito social e cidadão de direitos (Folder do Fórum).

Imagem 3. Folder Fórum.

Aprender com Vânia e sua luta tem sido um privilégio. A invisibilidade dessa população é
monstruosamente cruel, são vítimas de um sistema que as produz e exclui, como percebemos
cotidianamente, e o Fórum denuncia, na sua visão, o problema. Os conhecimentos que tem da
situação, permitem a Vânia trabalhar com Arteterapia e estar na militância institucional, dentro e

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

fora do espaço do Estado, mostrando a quem tem o prazer de ouvi-la e aprender com ela, o quanto
se pode fazer e as inúmeras possibilidades de trabalhar pela desinvisibilização dessas populações,
seus problemas, conhecimentos e modos de (sobre)viver! São práticas sociais de solidariedade e de
diálogo, que mostram ao ocidente colonizador, branco, masculino e burguês o que há para além do
que ele quer ver, do que ele aceita como existente.

Foi também nessa oficina na/da/comviii a Academia que Eronilde Fermin, cacique Kambeba
levada ao evento por Leonardo Peixoto, nos ensinou o que é ser parente, e viabilizou para aquele
grupo, e outros que se seguiram a ele, como o nosso, renomear os modos pelos quais tentamos
ser/estar solidários, sempre, sentindo e lutando a luta que seria do outro, mas que passa a ser a
nossa, estabelecendo uma forma radical de solidariedade inscrita nessa compreensão do parentesco.
A solidariedade entre parentes é aquela na qual somos solidários sentindo a dor do outro, lutando a
luta do outro.

Pudemos, naquele momento, aprender um pouco sobre a luta de indígenas brasileiros pelo
reconhecimento de suas culturas, valores, conhecimentos e modos de estar no mundo e o modo
como a etnia Kambeba percebe e união entre aqueles que lutam.

Embora a legislação formal os proteja de desmandos governamentais em todos os níveis, nas


vivências indígenas cotidianas a luta é árdua. Vimos aprendendo muito com as narrativas de
Eronilde, como a que se segue. Durante a gestão 2012-2015 da Prefeitura de seu município, os
indígenas das etnias Kambeba e Kokama – duas etnias minoritárias e pouco reconhecidas –
conseguiram nomear representantes para ocupar um cargo estratégico de coordenador das escolas
indígenas junto à Prefeitura, cargo anteriormente ocupado apenas por indígenas Ticuna. Diz ela:
Eu comecei o meu trabalho em 2010 dando aula. Foi quando o prefeito viu que o meu
trabalho era uma coisa muito grandiosa, que a comunidade gostava. Eu fazia o meu
trabalho bem dedicado mesmo. Ele deu oportunidade, não porque ele quis, mas pela
nossa luta. Ele fez uma convocação das etnias, para apresentar seus professores, para
escolher um coordenador. Ele também diagnosticou que lá na coordenação só tinha os
parentes Ticuna (FERMIN apud PEIXOTO, 2020, p. 88).

A fala evidencia o quanto permanecer na luta e desenvolver táticas (CERTEAU, 1994) de


ocupação de espaços institucionais é importante para a luta emancipatória. Ela explica, ainda, como
faziam para que, mesmo sem querer, o governo os ouvisse e dialogasse com eles:
A gente tem de ajudar da melhor forma e lutar pelos nossos direitos sociais e deles.
Então eu tenho o respeito das nossas comunidades e da cidade. Nunca nenhum
cacique vem em busca de alguma coisa sem passar por aqui. “Dona Eró, Eu vou atrás

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CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

de falar com o prefeito sobre tal coisa. Como que a gente pode fazer?” A nossa
estratégia é de nunca deixar o cacique sozinho. A gente tem que ir como grupo para
pressionar. Se você for sozinho, com certeza a resposta será não. Aí chama fulano,
reúne rapidinho um grupo de gente e vamos lá. “Aqui, nós viemos trazer o cacique da
comunidade São Tomás. Ele veio conversar com o senhor sobre determinado assunto
e por essa questão a gente gostaria de saber qual posição o senhor vai tomar”. Eu já
faço toda a fala. A primeira é minha. Já dou uma injeção nele antes do cacique falar.
Aí o cacique fala e o prefeito não pode correr. Essa é a estratégia nossa. Eles nunca
vão sozinhos, a gente vai em busca de uma forma melhor de ajudar a comunidade e eu
ganhei esse respeito da sociedade paulivence (FERMIN apud PEIXOTO, 2020, p. 91).

O modo com Eronilde expressa suas táticas – que ela chama de estratégia – de luta pela
emancipação envolve ainda a questão da linguagem, e não por acaso, ela hoje estuda linguística e
línguas indígenas, em nível de mestrado, buscando consolidar seus conhecimentos de língua
Kambeba para difundi-la nas comunidades. Eronilde também percebe a importância da língua e
entende que foram os processos violentos de colonização e de civilização das cidades amazônicas
que levaram a esse aparente apagamento da história de seu povo, de sua língua e de sua cultura. E
por isso se engaja na recuperação da língua como tática emancipatória.

Ainda na tese de Leonardo Peixoto (2020), encontramos outras lutas importantes, como a da
etnia Kokama. Sem estar ligado formalmente à Universidade, um professor indígena Kokama,
Prudêncio, também reafirma a importância da língua para os processos emancipatórios das
populações indígenas.
A narrativa de Prudêncio revela a dificuldade que kokamas e kambebas possuem em
ser reconhecidos como indígenas, por conta do processo histórico de apagamento de
suas línguas e culturas. Suas histórias fazem parte daquelas que a História não conta,
suas culturas são invisibilizadas pelos modos hegemônicos de se definir e de se
compreender os indígenas em nosso país, sua língua é considerada inexistente. E o
esforço de Prudêncio é exatamente para subverter esta lógica e desinvisibilizar não só
a língua kokama, mas, a partir dela, reafirmar essa identidade que é cultural, étnica e
social (PRUDÊNCIO apud PEIXOTO, 2020, p. 84).

DEMOCRACIA NOS/DOS/COM (RE)CONHECIMENTOS: CULTURAS, EPISTEMES E


POLÍTICAS

Sejam as “marias, mahins, Marielles, malês”, negres de todos os tempos e afiliações ou as


Ganhadeiras de Itapuã, seja a luta das pessoas transexuais, das populações em situação de rua ou de
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

indígenas de inúmeras etnias, as narrativas e compreensões que esses diferentes personagens de


movimentos sociais e militâncias distintos assumem são inequívocas ao nos mostrarem modos
astuciosos por meio dos quais os praticantes da vida cotidiana (CERTEAU, 1994) usam aquilo que
lhes foi dado para consumo de modo emancipatório, lutam pela sua existência digna e pelos direitos
que lhes foram, histórica e socialmente, negados.

“Mulheres, tamoios, mulatos”, adultos em situação de rua, transexuais e tantes outres se


servem de pequenas astúcias no contato com o poder instituído, circulando taticamente no campo de
ação próprio do dominador/colonizador. As narrativas e ações evidenciam, ainda, aprendizagens
comuns, cotidianas, daquilo que nunca ninguém ensinou, sendo usadas na solução de problemas,
como aprendemos com as Epistemologias do Sul e a noção de ecologia de saberes, que entende que,
apara além das hierarquias cientificistas, o critério de validação de um conhecimento é o de sua
usabilidade na solução de problemas reais.
Assim, a ideia de recuperar a validade de conhecimentos não científicos usados na
solução de problemas torna-se um movimento relevante no combate a essas
hierarquias cientificistas invisibilizadoras dos “outros” da modernidade. Esta questão
da circunstancialidade da validade do conhecimento não é de forma alguma uma
perspectiva “utilitarista” de compreensão de conhecimentos, o que Boaventura afirma
com todas as letras. É a defesa da ideia de que a validade dos conhecimentos vai
depender da sua capacidade de intervenção social e não de seu grau de cientificidade,
ou seja, depende da contribuição que podem dar à solução dos problemas que estão
colocados para serem enfrentados. Essa ideia e a defesa que o autor faz dela advêm da
constatação de que o patamar científico, o nível de cientificidade – que muitas vezes é
difícil de medir – dos conhecimentos não serve como critério para sua usabilidade na
solução dos problemas da sociedade, conforme nos ensina a experiência social e as
tantas variáveis que a integram e que não cabem em leituras cientificistas
(OLIVEIRA, 2019).

Portanto, para falar de conhecimento e democracia, entendemos ser necessário pensar a


democracia como luta emancipatória em prol do reconhecimento mútuo, dos conhecimentos e
modos de ser e estar no mundo daqueles que o pensamento abissal (SANTOS, 2010) baniu para o
outro lado da linha que divide o mundo entre o que existe e o que não tem direito de existir, mas
que existe e resiste ainda assim.
O pensamento moderno é um pensamento abissal. Consiste num sistema de distinções
visíveis e invisíveis, sendo que as invisíveis fundamentam as visíveis. As distinções
invisíveis são estabelecidas através de linhas radicais que dividem a realidade social

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CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

em dois universos distintos: o universo “deste lado da linha” e o universo “do outro
lado da linha”. A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto
realidade, torna-se inexistente e é produzido como inexistente. Inexistência significa
não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. Tudo aquilo que é
produzido como inexistente é excluído de forma radical porque permanece exterior ao
universo que a própria concepção aceite de inclusão considera sendo o Outro. A
característica fundamental do pensamento abissal é a impossibilidade da copresença
dos dois lados da linha. Este lado da linha só prevalece na medida em que esgota o
campo da realidade relevante (SANTOS, 2010, p. 31-32).

O pensamento abissal que caracteriza a modernidade desconsidera a possiblidade de


coexistência e copresença quando assume determinado conhecimento como verdadeiro e considera
outras formas de compreensão do mundo como sendo falsas. Ele consiste, portanto, “na concessão à
ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em detrimento de
dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. Mas é importante lembrar que a
visibilidade dos sujeitos – seus conhecimentos e suas práticas – de um lado da linha assenta na
negação da existência do que é remetido ao outro lado. Ou seja, “Este lado da linha só prevalece na
medida em que esgota o campo da realidade relevante. Para além dela há apenas inexistência,
invisibilidade e ausência não-dialética” (SANTOS, 2010, p. 32). A invisibilidade daquilo que está
do outro lado da linha, que legitima os conflitos e dicotomias identificados deste lado da linha como
universais, deriva exatamente da excessiva visibilidade dos conflitos e conhecimentos visíveis, que
esgotaria a realidade social.
O pensamento abissal moderno salienta-se pela sua capacidade de produzir e
radicalizar distinções. Contudo, por mais radicais que sejam essas distinções, elas têm
em comum o facto de pertencerem a este lado da linha e de se combinarem para tornar
invisível a linha abissal na qual estão fundadas (SANTOS, 2010, p. 33).

Foi deste modo que a reflexão em torno da caracterização da modernidade ocidental se


manteve, majoritariamente, na tensão entre regulação e emancipação, a partir da qual os conflitos
modernos foram sendo analisados. “Mas subjacente a esta distinção existe uma outra, invisível na
qual a anterior se funda. É a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais”
(SANTOS, 2010, p. 32). Segundo Boaventura (2010), a dicotomia a aplicar no que diz respeito aos
territórios coloniais seria entre a apropriação e a violência.

E é isso que nossa história nos ensina, com as situações narradas acima e com tantas outras,
ainda na invisibilidade. No Brasil, para pensarmos a emancipação social, além de recuperar as

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

dimensões da razão que a modernidade acabou por subalternizarix quando a racionalidade cognitiva
se hegemonizou, precisamos, portanto, transcender essas formas e buscar compreender os processos
de apropriação e violência que nos trouxeram até aqui.
A apropriação e a violência tomam diferentes formas na linha abissal jurídica e na
linha abissal epistemológica. Mas, em geral, a apropriação envolve incorporação,
cooptação e assimilação, enquanto a violência implica destruição física, material,
cultural e humana. Na prática, é profunda a interligação entre a apropriação e a
violência. No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes
locais como guias e de mitos e cerimónias locais como instrumentos de conversão, à
pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade, enquanto a violência é
exercida através da proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, da
adopção forçada de nomes cristãos, da conversão e destruição de símbolos e lugares
de culto, e de todas as formas de discriminação cultural e racial (SANTOS, 2007, p.
8).

São, portanto, processos de invisibilização do Outro, suas culturas e conhecimentos que


ocorrem de múltiplas formas e inabilitam as sociedades a democratizarem-se, ao fundar suas lógicas
sociais na ausência de direito do outro a ser o que é, viver como vive, pensar como pensa e
comportar-se conforme os seus próprios valores, desejos e necessidades. A violência da negação,
dos epistemicídios, da cassação dos mais elementares direitos se junta à perversa apropriação desses
mesmos conhecimentos e da criação de grupos sociais privilegiados, cujos direitos incluem o de
negar e vilipendiar esses Outres, aproveitando-se das iniquidades que daí derivam para exercerem
mais poder. O que era verdade, historicamente, nas sociedades coloniais sobre esses binômios –
regulação/emancipação e apropriação/violência, com a confusa fronteira atual entre “colônias” e
sociedades metropolitanas, se modifica e gera a interpenetração entre os binômios outrora
claramente deste ou do outro lado da linha. Este é hoje um problema “global” do capitalismo
contemporâneo, cada vez mais próximo do fascismo social (SANTOS, 2016) e longe da sua face
mais progressista, a social-democracia europeia da segunda metade do século XX. Para o autor,
[...] parece que a modernidade ocidental só poderá expandir-se globalmente na medida
em que viole todos os princípios sobre os quais fez assentar a legitimidade histórica do
paradigma da regulação/emancipação deste lado da linha. Direitos humanos são, desta
forma, violados para poderem ser defendidos, a democracia é destruída para garantir a
sua salvaguarda, a vida é eliminada em nome da sua preservação.

Este é o cenário que ganha cada vez mais espaço no mundo atual, depois de um século XX
de melhorias, em diferentes países e com diferentes rostos. No Brasil de herança colonial, e,

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 373


CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

portanto, de tensão entre apropriação/violência mais forte do que entre regulação/emancipação, a


democracia incipiente sob a qual vivemos nos últimos 35 anos – na qual o fascismo social nunca
deixou de ser visível e vivido por imensas parcelas da população, cujas histórias, culturas e
conhecimentos foram negados – está em risco de ser engolida por esse fascismo. Ou seja,
populações sem direitos a serem quem são, pensarem o que pensam e agir conforme seus próprios
valores, para as quais, portanto, a palavra democracia nunca foi mais do que uma palavra de sentido
turvo usada nos espaçostempos aos quais jamais tiveram acesso, crescem ao mesmo tempo em que
desaparecem. São negres e indígenas; mulheres, homossexuais e transsexuais; pobres e nordestines
em geral; moradores em situação de rua, desempregades e subempregades, entre outros ainda tão
invisibilizados que nem nessa lista estão.

Assim sendo, na discussão do tema deste simpósio, nos aliamos às lutas emancipatórias de
populações subalternizadas de diferentes etniase gêneros ou situação social, buscando demonstrar
que esse continuum de “pequenas” lutas cotidianas é, em si, emancipatório, como aprendemos com
Santos (1995) e Galeano (1999).
[...] a emancipação não é mais que um conjunto de lutas processuais, sem fim
definido. O que a distingue de outros conjuntos de lutas é o sentido político da
processualidade das lutas. Esse sentido é, para o campo social da emancipação, a
ampliação e o aprofundamento das lutas democráticas em todos os espaços estruturais
da prática social conforme estabelecido na nova teoria democrática acima abordada
(SANTOS, 1995, p. 277).

Na urdidura da realidade, por pior que seja, novos tecidos estão nascendo e
essestecidos são feitos de uma mistura de muitas e diversas cores. Os movimentos
sociais alternativos se expressam não só através dos partidos e dos sindicatos: também
assim, mas não só assim. O processo nada tem de espetacular e ocorre, sobretudo, em
nível local, mas por toda parte, no mundo inteiro, estão surgindo mil e uma forças
novas. Brotam de baixo para cima e de dentro para fora. Sem estardalhaço, estão
contribuindo expressivamente para a retomada da democracia, nutrida pela
participação popular, e estão recuperando as maltratadas tradições da tolerância, ajuda
mútua e comunhão com a natureza. Um de seus porta-vozes, Manfred Max-Neef,
compara-as a uma nuvem de mosquitos atacando o sistema que trocou os abraços
pelas cotoveladas:

– Mais poderosa do que o rinoceronte – diz – é a nuvem de mosquitos. Eles vão


crescendo e crescendo, zumbindo e zumbindo (GALEANO, 1993, p. 331).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Fazendo de outros modos, no plural, temos sido capazes não só de resistir, mas de existir e
de criar, conhecimentos, políticas, currículos, pesquisas e tantas outras coisas boas que fazemos,
juntos, esperançando e criando pontes entre movimentos sociais, lutas específicas, práticas
educativas em múltiplos contextos, criando identificações entre lutas diferentes e aprendendo com
as estratégias uns dos outros! Como aprendemos com Freire, esperançar é algo que só se pode fazer
coletiva e solidariamente.
Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não
desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de
outro modo... (FREIRE, 1992).

Um dos motivos porque a esperança permanece viva em tantes de nós é o fato de que, apesar
das múltiplas formas de controle político e epistemológico da vida e das instituições sociais,
diferentes práticas sociais e lutascontinuam, insistente e desobedientemente, presentes no mundo,
nos mais diferentes contextos educativos.Aprender com esses movimentos de resistência, de
presença, significa perceber a democracia para além da Democracia de Baixa Intensidade, como é a
democracia liberal, representativa, com seus vícios, “baseada na privatização do bem público por
elites mais ou menos restritas, na distância crescente entre representantes e representados e uma
inclusão política abstrata feita de exclusão social” (SANTOS, 2003, p. 32).

Com as resistências e produções desobedientes desses diferentes movimentos sociais e suas


práticas cotidianas, aprendemos a possibilidade de juntos, em atos de esperança, tecer democracia
nos cotidianos, mesmo que embrionariamente e sem possibilidade perceptível de nos tornarmos
hegemônicos. Democracias vivenciadas nas lutas cotidianas, concretas, fundadas em solidariedades
e em relações mais ecológicas entre os diferentes conhecimentos e lutas, relações nas quais nos
reconhecemos como interdependentes uns dos outros mais do que hierarquicamente organizados, e
que nos permitem esperançar na luta pela Democracia de Alta Intensidade, que se mostrava
presente no início do século XXI, mas que permanece no horizonte daqueles que lutam e
esperançam. Segundo Boaventura (2003, p. 32):
Paralelamente a esse modelo hegemônico de democracia, sempre existiram outros
modelos, como a democracia participativa ou a democracia popular, apesar de
marginalizados ou desacreditados. Em tempos recentes, um desses modelos, a
democracia participativa, tem assumido nova dinâmica, protagonizada por
comunidades e grupos sociais subalternizados em luta contra a exclusão social e a
trivialização da cidadania, mobilizados pela aspiração de contratos sociais mais
inclusivos e de democracia de mais alta intensidade.

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CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

É disso que tratamos quando trazemos para este texto as lutas que decidimos trazer, de
práticas sociais em busca de democracia de mais alta intensidade, visando à inclusão social, que
“vão desenvolvendo vínculos de interconhecimento e de interação”, como nos mostra a experiência
da UPMS e das lutas que elencamos aqui. Nessa forma democrática, é o conjunto das relações
sociais que se democratiza, assumindo a forma de relações de autoridade partilhada nas quais todes
e cada ume são e se sabem responsáveis por todes e por cada ume, numa perspectiva de
solidariedade, que sabe sua responsabilidade com o outro, a assume por consciência e, sobretudo,
por amor e, por isso, pratica a “cidadania horizontal”, outra noção central para a reflexão atual sobre
a democracia. São solidariedades entre parentes, que sentem com e, por isso, ao fazer como fazem
amorosamente e comprometides umes com outres, como se fossem ume só.

Aprendemos com Maturana que “A história da humanidade mostra que o amor está sempre
associado à sobrevivência, que nós sobrevivemos na cooperação”. Sobrevivemos porque amamos –
Darwin que me desculpe! Foi por isso que sobrevivemos e chegamos aqui. É ainda Maturana que
segue dizendo que “O amor nos dá a possibilidade de compartilhar a vida e o prazer de viver
experiências com outras pessoas.”, com gentes, como a gente ou diferente da gente, mas gente.
Gente que “sente com” e, por isso, é parente, como aprendemos com Eronilde e sua cultura.

Aprendemos, também, e desta vez com Margareth Meadx que o primeiro sinal de uma
civilização é o cuidado com o outro, conforme narrativa abaixo. O texto aparece na postagem entre
aspas, o que permite supor que vem de alguma publicação acessada pela colega.
Há muitos anos, um aluno perguntou à antropóloga Margaret Mead o que ela
considerava ser o primeiro sinal de civilização numa cultura. O aluno esperava que
Mead falasse a respeito de anzóis, panelas de barro ou pedras de amolar.

Mas não. Mead disse que o primeiro sinal de civilização numa cultura antiga era um
fêmur (osso da coxa) quebrado e cicatrizado. Mead explicou que no reino animal, se
você quebrar a perna, morre. Você não pode correr do perigo, ir até o rio para beber
água ou caçar comida. Você é carne fresca para os predadores. Nenhum animal
sobrevive a uma perna quebrada por tempo suficiente para o osso sarar.

Um fêmur quebrado que cicatrizou é evidência de que alguém teve tempo para ficar
com aquele que caiu, tratou da ferida, levou a pessoa à segurança e cuidou dela até que
se recuperasse. “Ajudar alguém durante a dificuldade é onde a civilização começa”
disse Mead.

E é Elisete quem completa: “a solidariedade é – ou deveria ser – um marco civilizacional”.


Isso se confirma tanto no que se refere ao conhecimento, quando pensamos com Santos e seu
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

conhecimento-emancipação, quanto no que se refere ao exercício da cidadania e na construção da


democracia, na perspectiva da chamada cidadania horizontal e a responsabilidade coletiva pela
sociedade que ela prevê. Assim, entendemos que pensar o conhecimento e a democracia só é
possível na perspectiva da emancipação social democratizante, das Epistemologias do Sul e seus
critérios de dialogia, copresença e interdependência, que nos levam à solidariedade como valor
maior.

Os enredos carnavalescos e aqueles que por eles são homenageados, a tese de Leonardo
Peixoto (PEIXOTO, 2020) e as oficinas da UPMS com as aprendizagens que permitem são meios
de desinvisibilização de conhecimentos e formas de luta contra os epistemicídios, um dos grandes
crimes cometidos contra a humanidade, segundo Boaventura (SANTOS, 1995) que entende que
estes produzem
[...] um empobrecimento irreversível do horizonte e das possibilidades de
conhecimento [...], o novo paradigma propõe-se revalorizar os conhecimentos e as
práticas não hegemónicas que são afinal a esmagadora maioria das práticas de vida e
de conhecimento no interior do sistema mundial (SANTOS, 1995, p. 329).

Assim sendo, só através da instauração do que Boaventura chama de concorrência


epistemológica leal entre os diferentes conhecimentos é que se poderá reinventar as alternativas de
práticas sociais que poderão balizar a construção da democracia e as lutas emancipatórias, na
medida em que isso permitiria superar a verticalidade e a hierarquia hoje predominantes nas
relações entre os diferentes conhecimentos, que impede a democratização efetiva entre os sujeitos
desses diferentes conhecimentos, trabalhando na perspectiva da ecologia de saberes e do
conhecimento-emancipação, que leva da colonialidade – e seu autoritarismo – à solidariedade.

Seja a discussão sobre sexualidades e a situação social das pessoas transexuais, de


moradores de rua, negres em geral e mulheres negras em particular ou indígenas de diferentes
etnias, todas se inscrevem na luta pela democracia de alta intensidade, na possibilidade de
superação da fenda abissal em prol dos diálogos entre perspectivas de compreensão de mundo e
modos de nele estar mais ecológicas, inclusivas, em que a copresença e a colaboração contribuem
para a responsabilização coletiva e solidária de todes por cada ume e de cada ume por todes.

São múltiplos contextos sociais, políticos, culturais e epistêmicos, nos quais a dimensão
educativa se faz presente, mas jamais como processo “bancário” (FREIRE, 2017) de ensino-
aprendizagem. São processos dialógicos que, por meio da criação de pontes e do encontro de
similitudes entre lutas travadas por aqueles que estão do outro lado da linha abissal, invisibilizades,

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CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

permitem a “invasão” do lado visível da linha pelos seus outres, desestabilizando a equação que a
mantém soberanamente hegemônica. Aprendendo umes com outres sem que ninguém ensine,
movimentos sociais e intelectuais, educadores acadêmicos ou “populares”, penetram,
astuciosamente, nos espaços próprios do poder, da hegemonia burguesa, branca e europeia, criando
resistências e (re)existências nas quais podemos investir sempre, acreditando que podem finalmente
extinguir a invisibilidade de que são vítimas ao dizer em alto e bom som, como aprendemos mais
uma vez com as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, do que se trata a luta pela libertação – na
perspectiva da democracia de alta intensidade e da ecologia de saberes – pela superação da
“escravidão” imposta pelas metrópoles às colônias e seus povos, da violência e da apropriação de
que foram vítimas.
Não sou escravo de nenhum senhor.

Meu Paraíso é meu bastião.

Meu Tuiuti, o quilombo da favela.

É sentinela na libertaçãoxi.

Uma libertação que, nos dias de hoje, seria da subalternidade, da invisibilidade, da negação
e da exclusão social, do fascismo social e da dominação epistemológica e cultural, sem o que não há
democracia possível. Estaria, só então, extinta a escravidão!

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 379


CONHECIMENTO E DEMOCRACIA: POSSIBILIDADES EMANCIPATÓRIAS...

Notas de fim

Fragmentos do samba da Estação Primeira de Mangueira, vencedora do Carnaval-2019 com o enredo: História para
i

ninar gente grande. Letra disponível em: https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/.


ii
Usaremos sempre que possível, as palavras que seriam flexionadas por gênero, com o E no lugar do A ou do O,
indicando nossa percepção de que somos todes humanes, sem necessidade de se definir o gênero conforme a percepção
binária hegemônica prevê.
Muitos serão os termos que a modernidade separou, dissociou ou apenas tornou pares de opostos e que serão grafadas
iii

por meio de uma estratégia de criação de neologismos, juntos e em itálico, evidenciando nossa percepção de que são
indissociáveis e complementares, formando uma unidade.
O enredo “De alma lavada” trouxe a luta e a resistência de mulheres negras baianas do século XIX e do coletivo de
iv

mulheres nelas inspiradas que vem recuperando suas canções e trajetórias de vida.
v
Disponível em: https://www.ibahia.com/ondeestameutrio/detalhe/noticia/quem-sao-as-ganhadeiras-de-itapua-as-home
nageadas-da-escola-vencedora-viradouro/. Acesso em: 06 mar. 2020.
vi
Disponível em: https://g1.globo.com/pop-arte/musica/blog/mauro-ferreira/post/2020/02/26/ganhadeiras-de-itapua-
fazem-jus-ao-nome-com-vitoria-da-viradouro-no-carnaval-do-rio.ghtml. Acesso em: 06 fev. 2020.
Associação nacional de pesquisa e pós-graduação em educação. A 39ª reunião anual ocorreu em 2019, na cidade de
vii

Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Mantendo a estrutura que define a UPMS, de participação de mais pessoas ligadas a
movimentos sociais do que à academia, a oficina da UPMS foi realizada dentro de um evento acadêmico pela primeira
vez e seu sucesso não deixa dúvidas do potencial da proposta, idealizada pela Professora Maria Luiza Süssekind junto
ao estudante de doutorado Fábio Merdalet, orientando do Professor Boaventura de Sousa Santos (idealizador da
UPMS), responsável por muitas oficinas ao longo do tempo.
Retomamos aqui a fórmula preposicional que assumimos na nossa metodologia de pesquisa, nomeada como pesquisa
viii

nos/dos/com os cotidianos.
ix
A racionalidade moderna, que permitiria a emancipação dos sujeitos, tem três dimensões: a racionalidade cognitiva, a
racionalidade moral-prática e a racionalidade estético-expressiva. Segundo Boaventura (SANTOS, 1995), dentre as
expectativas frustradas do projeto da modernidade ocidental está a subalternização e apagamento das formas não
cognitivas da racionalidade e o monopólio desta em relação às demais que opera na realidade social.
x
O texto, belíssimo, foi obtido numa postagem de facebook da Professora Elisete Tavares dos Santos Jorge, da
FFP/Uerj. Disponível em: https://www.facebook.com/elisete.tavares.5/posts/4016706745012424. Acesso em: 16 mar.
2020. Em 18 mar. 2020, foi acessada uma versão quase idêntica, que está disponível em: https://www.carta
capital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/empatia-esperanca-e-fe-o-que-podemos-aprender-com-a-crise-do-coronavirus/.
xi
Fragmento do samba enredo do G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti no Carnaval-2018. Disponível em: https://www.letras.
mus.br/gres-paraiso-do-tuiuti/samba-enredo-2018-meu-deus-meu-deus-esta-extinta-a-escravidao/. Acesso em: 15 mar.
2020.

380
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DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA
NATIVA – “DIÁLOGOS ENTRE A FILOSOFIA DE
SPINOZA E SABERES DE POVOS INDÍGENAS
BRASILEIROS”

Léa Tiriba
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

Dados da Unicef, de 2019, revelam que o processo de globalização alimentar – tanto a fome
oculta (deficiências de vitaminas e minerais), quanto o sobrepeso e a obesidade infantil – está
diretamente vinculado ao aumento da disponibilidade de alimentos baixos em nutrientes e ricos em
calorias, evidenciando elos estreitos entre penúria das crianças e interesses poderosos do
agronegócio e da mineração. As investidas do capitalismo ferem a integridade dos infantes
humanos como ferem a integridade da Terra. É neste contexto planetário que identificamos
conexões entre práticas escolares que desrespeitam os apelos infantis de convívio com o ambiente
natural e o modelo de desenvolvimento econômico que simultaneamente produz desequilíbrio
ambiental, desigualdade social e sofrimento psíquico (GUATTARI, 1990). Consideramos que as
formas de organização dos espaços e das rotinas, ao distanciar as crianças da natureza, produzem
sentimentos de desconexão física e emocional, necessários a uma visão do ambiente como objeto de
conhecimento, domínio e controle, em consonância com os interesses do capitalismo.

Para designar a condição de distanciamento, utilizamos a expressão “emparedamento”, em


alusão ao diminuto tempo em espaços abertos e ao longo do tempo em que as crianças permanecem
em espaços fechados: oito, nove ou mais horas diárias, sendo conduzidas das salas de atividades
(muitas vezes diminutas, com janelas inacessíveis ou inexistentes) a refeitórios, salas de vídeo,
galpões fechados... A desproporção é gritante: meia hora, uma, uma hora e meia, quando muito. O
tempo ao ar livre pode não acontecer, pois o acesso ao universo natural não é compreendido como
direito das crianças (TIRIBA; PROFICE, 2014; 2018; 2019) e, portanto, em geral, não está previsto
nos projetos curriculares e propostas pedagógicas, embora já esteja expresso em diretrizes
curriculares nacionais da Educação Ambiental (BRASIL, DCNEA/2012) e da Educação em
Direitos Humanos (BRASIL, DNEDH/2012).

Para pensar a conexão, trazemos o conceito de biofilia, segundo o qual os humanos têm uma
atração inata, uma tendência a associar-se à outras formas de vida, condição para um processo de
evolução que sempre se deu em coevolução com os demais seres e sistemas vivos (BOFF, 1999;
WILSON, 1984; PROFICE, 2016). Segundo os autores, essa atração depende de modos de viver e
de educar: uma cultura que alimenta a proximidade gera sentimentos de afeição e,
consequentemente, práticas de proteção à natureza; uma cultura que alimenta o distanciamento
produz sentimentos e atitudes de desapego, indiferença e mesmo práticas de agressão. Assim, o

382
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA

conceito de biofilia revela relações entre sentir-se parte da natureza e desejar protegê-la; isto é,
entre sentimentos e comportamentos pessoais e as condições ambientais do planeta.

Considerando que as crianças se diferenciam segundo a classe social, a etnia, o credo e o


gênero, estamos atentas às condições em que nascem e vivem as gerações atuais, principalmente
nas cidades, onde os contatos com elementos do mundo natural são cada vez mais rarefeitos e mais
frequentes as interações com as máquinas, computadores, celulares, TVs, games. Buscando saídas
ao processo de esmaecimento de sua biofilia, optamos pelo estudo de filosofias que não se
afirmaram como hegemônicas, como a de Baruch Spinoza (1642-1677) e as de povos originários e
tradicionais brasileiros. Essa opção se dá pela sintonia entre concepções comuns a estas filosofias:
Spinoza (2009) entende os humanos como seres constituídos da substância única que é a vida,
modos de expressão da natureza que vive em estado de entrelaçamento com outros seres e entes não
humanos, na contramão da concepção ocidental cartesiana que os divorcia; os povos originários,
ainda que pautados em diferentes cosmologias, organizam a existência em conexão com os ciclos a
natureza. Spinoza foi excomungado, tal como as bruxas foram queimadas, perseguidos os que se
posicionaram contra os modos de organização econômica e política que o capitalismo emergente
engendrou (FEDERICI, 2019); semelhantemente, os povos originários brasileiros foram e são ainda
perseguidos e exterminados, por perseverarem em modos de vida que se opõem ao projeto
capitalístico, para o qual a natureza é matéria-prima morta para a produção industrial (MIES;
SHIVA, 1997; PORTO-GONÇALVES, 2017).

Atentas ao quadro de desequilíbrio, em que “o aparecimento de vários vírus, seus mutantes,


as novas doenças, as epidemias e as pandemias têm origem na intensa destruição das florestas, das
águas, do ar e da vida selvagem, entre outras ações de aniquilamento socioambiental”, pensamos
uma pedagogia que – ao ultrapassar os muros e paredes escolares, na contramão da lógica
paradigmática hegemônica – inclua os humanos nos ambientes naturais, amplie e redesenhe os
caminhos de conhecer, defina o humano para além de sua racionalidade.

Inicialmente buscamos um diálogo entre práticas tupinambá de educação infantil, conceitos


da filosofia de Baruch Espinosa e a visão de mundo de etnias indígenas brasileiras. A seguir,
defendemos o desemparedamento como ação pedagógica que contribui para a fissura dos
pressupostos paradigmáticos modernos, sustentadores da sociedade do capital. Concluímos
apontando questões que desafiam a criação e o exercício de metodologias de formação decoloniais
teórico-brincantes, com vistas a insurgir e reinventar a escola.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 383


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

DIÁLOGOS ENTRE SABERES CONTRA-HEGEMÔNICOS

Em 2009, em contexto de pesquisa sobre oferta de Educação Infantil Escolar Indígena,


tivemos a oportunidade de conhecer a Creche Katuana, iniciativa dos povos que habitam a Terra
Indígena Tupinambá de Olivença, área de 47 mil hectares, situada a 20km ao sul de Ilhéus/Bahia.
Como pesquisadora que buscava compreender os sentidos de oferecer creches a povos que
demandam esse serviço, e observando para além do que tradicionalmente esperamos dessa
instituição (em termos de organização pedagógica e administrativa), foi possível identificar um
cotidiano em que a condição biofílica é favorecida.

Desde o primeiro contato – com um olhar etnográfico atento ao que não é espelho,
surpreendidas por dinâmicas pedagógicas, marcadas por andanças cotidianas pelas praias, praças e
matas de Olivença – nos impressionava a liberdade das crianças circularem livremente pelos
espaços e escolherem as atividades de que desejavam participar; e ainda a disponibilidade dos
adultos frente aos interesses e propostas das crianças; a escuta delicada, o acolhimento (TIRIBA;
PROFICE, 2012). Revelando uma proximidade com a filosofia de Spinoza (2009, Ética II), em que
a mente é uma ideia das afecções do corpo, na Katuana, o conhecimento é de corpo inteiro, está
relacionado à livre circulação das crianças na aldeia. Tal como descrevem os estudos do campo da
antropologia da criança, a liberdade de movimentos é condição para o pleno desenvolvimento
humano. O princípio da autonomia relaciona-se ao exercício de enxergar-se e manter-se ativo no
mundo; diz respeito à criação de condições para tornar-se capaz de tomar suas próprias decisões, a
partir de suas próprias necessidades, de seu bem-estar e do outro (TASSINARI, 2007;
NASCIMENTO; URQUIZA; VIEIRA, 2011; SILVA; NUNES; MACEDO, 2002).

Segundo Tassinari (2007), a visão indígena é antagônica à ocidental: é permitida a elas a


tomada de decisões que têm influência direta sobre seus pais, familiares ou a comunidade.
A criança é vista como um ser de fato, portador de um espírito que precisa ser
cativado para ficar na terra. [...] É desta forma que as atitudes das crianças são
respeitadas e sua autonomia pela busca de conhecimentos é reconhecida, havendo
esforços dos adultos para que os ne’e tomem gosto pela vida e permaneça entre nós
(TASSINARI, 2007, p. 14).

Embora a cada etnia corresponda um modo próprio de conceber a vida, é possível afirmar
que, de modo geral, os grupos indígenas concebem a infância como uma etapa cujas
particularidades devem ser valorizadas e respeitadas (BRANDT, 2011; LANDA, 2001;
BERGAMASCHI, 2011; GOMES; SILVA; DINIZ, 2001).

384
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA

Não há separação entre adultos e crianças: desde pequenas, são educadas no coletivo,
participando das tarefas religiosas/culturais e de sustentação material da aldeia, são elementos-
chave na socialização e na interação de grupos sociais.

Na contramão de rotinas de emparedamento a que estão submetidas as crianças nos espaços


escolares ocidentais (TIRIBA; VOLLGER; PEREIRA, 2018), na experiência Tupinambá, são
cotidianas as vivências em conexão com a natureza. Um carrinho é composto de gravetos e folhas,
os personagens de suas histórias são feitos com sementes e casca de árvores; os brinquedos
fabricados praticamente inexistem, o comum é que sejam permanentemente inventados ou
reestruturados, em função do que interessa a cada momento. As brincadeiras exigem a inteireza dos
corpos, em estado de acoplamento com fenômenos da natureza: os movimentos das ondas do mar,
das águas dos riachos, do vento. No dia a dia, de verdade, as crianças são parte desse universo.

Entre os Tupinambá, como entre outros povos originários brasileiros, não existe
diferenciação entre natureza e cultura. O princípio de conexão é consoante com a concepção
monista de que tudo está em rede, matéria-espírito são expressões indissociáveis, são atributos do
ser que se manifestam como extensão e/ou como pensamento (SPINOZA, 2009, Ética IV). Em
oposição à visão antropocêntrica, em diferentes cosmologias brasileiras e andinas, o cosmos é
habitado por várias categorias de seres: todos os seres têm uma essência, uma alma (SANTOS,
2017; LOPES, 2017). Entre os quéchua, povos andinos, “tudo tem [...] um espírito grande ou
pequeno, [...] que dá vida, energia – KALLPA – a todas as coisas deste mundo e do universo
(GUIMARÃES; PRADO, 2014, p. 104).

Próxima a visões indígenas que afirmam a unidade da vida, na perspectiva espinosana, a


existência humana se dá em estado de conexão com o universo. Por conta e efeito da condição de
entrelaçamento, os seres se interconectam e se fortalecem na medida da força dos afetos que
asseguram esse estado de conexão. Como nas palavras do filósofo do Século XVII,
[...] o corpo humano compõe-se de muitos indivíduos (de natureza diferente), cada um
dos quais é também altamente composto. [...] Os indivíduos que compõem o corpo
humano e, consequentemente, o próprio corpo humano, são afetados pelos corpos
exteriores de muitas maneiras. O corpo humano tem necessidade, para conservar-se,
de muitos outros corpos, pelos quais ele é como que continuamente regenerado
(SPINOZA, 2009, p. 66).

O processo de permanecer íntegro depende da escolha de bons encontros.

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 385


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O bom existe quando um corpo compõe diretamente a sua relação com o nosso, e,
com toda ou com uma parte de sua potência, aumenta a nossa. Por exemplo, um
alimento. O mau para nós existe quando um corpo decompõe a relação do nosso,
ainda que se componha com as nossas partes, mas sob outras relações que aquelas que
correspondem à nossa essência: por exemplo, um veneno que decompõe o sangue
(DELEUZE, 2002, p. 28).

A integridade é mantida ou aumentada quando realiza bons encontros, ou seja, faz contato
com outros modos de expressão da natureza que se compõem favoravelmente com ele,
fortalecendo-o; e é diminuída quando realizam maus encontros.

Na creche Katuana, observamos frequentes situações em que as atividades vão sendo


definidas, orientadas, de acordo com desejos de bons encontros:
Numa das tardes, acompanho a turma que sai da escola após o lanche. São cerca de 20
crianças acompanhadas por 5 adultos: duas professoras, eu e mais duas pessoas, mães
que, encontrando o grupo, aderiram ao passeio. [...]. As crianças vão caminhando
tranquilamente, [...] umas estão de mãos dadas, outras seguem sós, dão uma
corridinha, afastam-se para apanhar algo que encontram, retornam ao grupo. Em
menos de 10 minutos, chegamos a rua litorânea, onde há pouco movimento de carros.
O combinado é que iríamos para a quadra cimentada e gradeada, situada na areia. [...]
mas, logo depois, algumas crianças ultrapassam as grades para procurar conchas na
areia. Então uma das professoras as acompanha. Em seguida, começam a fazer
buracos, e, pouco a pouco, chegam às poças de água do mar. Um menino entra de
roupa e tudo, e depois rola na areia, ninguém reclama. Outras crianças vão saindo da
quadra e se aproximando do mar, colocam os pés, as pernas, mergulham de corpo
inteiro. Os adultos acompanham. Na areia, uma menina pede para ser enterrada, a
professora vai cobrindo e cantando, referindo-se a cada parte do corpo. Outros
também querem, ela vai atendendo a cada um que solicita, não há uma proposta
previamente preparada, as brincadeiras vão fluindo, a professora vai favorecendo o
que é de interesse de uma criança ou de um pequeno grupo. Umas estão na areia
brincando, outras à beira d’água. Os adultos estão atentos e se divertem junto com as
crianças, não reclamam, não interferem, a não ser em situação de perigo (DIÁRIO DE
CAMPO, nov. 2009, p. 29).

Os pequenos provocam, as educadoras aderem às propostas: elas participam das


brincadeiras, entregam-se ao prazer de vivenciar o que é bom, aqui e agora! Assim, na Katuana, as
crianças podem desfrutar do que é proibido em creches e pré-escolas ocidentais, marcadas por uma

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA

dinâmica pedagógica que organiza os processo educativos por áreas de conhecimento ou por
experiências promotoras de aprendizagens, como é o caso dos Campos de Experiência,
recentemente adotados pela BNCC (REBELO, 2020). Essas formas de organização curricular não
atendem à necessidade de conexão com o que afeta, aqui e agora, porque subordinam a potência do
agir infantil à intencionalidade do adulto. Ao contrário, podemos dizer que, ao desemparedar, a
pedagogia tupinambá “não apenas […] contribui para interrogar currículos prescritos/oficiais, mas
fornece bases conceituais para a construção de olhares e propostas outras para a educação da
infância em contextos de creches e pré-escolas” (REBELO, 2020, p. 260). A vivência na praia,
anteriormente descrita, não obedece à definição prévia de objetivos e/ou habilidades a serem
alcançadas; a intencionalidade pedagógica não é predefinida, está colada no desejo, responde aos
chamados da natureza, das crianças, de seus corpos (TIRIBA, 2010; TIRIBA; PROFICE, 2012;
2019).

A via do desejo também permite uma aproximação do modo de ser tupinambá com
conceitos espinosanos. Para o filósofo, o desejo é a inclinação por algo que julgamos útil para nossa
conservação. Assim, o desejo não é falta, ao contrário, é potência que orienta a vida afetiva, sempre
no sentido de fortalecer o conatus, conceito que define o esforço de perseverar na vida, pois “[...]
nenhuma coisa tem em si algo por meio do qual possa ser destruída, ou retirada a sua existência. E
esforça-se assim, tanto quanto pode e está em si, por perseverar em seu ser” (SPINOZA, 2009, p.
105).

Em sentido oposto, a negação do desejo enfraquece o conatus, conduz ao aprendizado da


alienação, em relação a si mesmas e ao mundo,portanto, à despotencialização, ao entristecimento.
Ao contrário, a potência, a alegria, a liberdade são decorrentes do aprendizado da consciência de si
e do mundo, possível pela conexão com aquilo que verdadeiramente mobiliza o ser (DAMÁSIO,
2004; GLEIZER, 2005).

Como exemplo de aprendizado da consciência de si, trazemos o estudo antropológico de


Elizabeth Pissolato (2007), que investiga a busca de alegria, de bem-estar, em duas aldeias Guarani
Mybia do litoral do estado do Rio de Janeiro. De acordo com a autora, deslocar-se frequentemente,
de um território a outro, é um modo de vida, é um modo de ser. Perguntados sobre o porquê do
deslocamento (que, nas condições atuais, são realizados em pequenos grupos, ou por indivíduos,
homens e mulheres, e mesmo jovens e adolescentes), os guarani mybia respondem que se deslocam
para buscar, em outros territórios, geralmente ocupados por sua etnia, o que acreditam que os fará
mais alegres do que se encontram no lugar onde estão. Assim, a decisão de deslocar-se exige uma

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 387


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

conexão profunda com os sentimentos, uma inteireza que se só constitui em condições de liberdade,
sem a qual é impossível sentir-pensar-agir a partir de causas próprias. Como em Spinoza, a
submissão a forças alheias fere a essência do ser, o colocam à deriva, por isso entristecem. Essência
entendida como natureza existente, imanente, pois a consciência do que se sente/é, a cada momento,
guiará em relação aos encontros que faz; em sintonia fina com o desejo, orientará na escolha de
afetos que potencializem, que assegurem a alegria. Porque “[...] somente a alegria é válida, só a
alegria permanece e nos aproxima da ação e da beatitude da ação. A paixão triste é sempre
impotência” (DELEUZE, 2002, p. 34).

POR UMA PEDAGOGIA NATIVA, EM DEFESA DO DESEMPAREDAMENTO!

Como os Guarani Mybia, as crianças da Katuana têm a liberdade de buscar bons afetos e
bons encontros com o que compõem e as faz alegres. Na educação nativa a liberdade é imperativo
pedagógico porque favorece o pertencimento ao cosmos; e, por aí permite uma contraposição a
concepções e práticas antropocêntricas que agridem os ambientes naturais porque atribuem ao ser
humano uma posição de centralidade em relação a todo o universo.

A fissura do quadro de desequilíbrio ambiental passa por inúmeros esforços no sentido de


conhecer e inquirir o andaime de conceitos e ideias que sustentam o paradigma da sociedade
ocidental: um imaginário social que, do ponto de vista ontológico, concebe a natureza como
racionalmente organizada; do ponto de vista epistemológico, afirma a supremacia da razão como
caminho exclusivo para a obtenção de conhecimentos; e do ponto de vista antropológico, define o
humano por sua racionalidade (PLASTINO, 2001). Insurgindo-se contra a exclusividade da visão
de mundo ocidental, ao desemparedar, a educação da Katuana abre caminhos para o
questionamento de seu pressuposto ontológico, que afirma uma realidade natural determinada por
leis universais. Na contramão da perspectiva moderna, que dispensa a mediação da cultura, afirma a
Terra como organismo vivo, realidade constituída por forças cósmicas, seres e entes com diferentes
graus de potência de afetar e ser afetado (SPINOSA, 2009). Por essa via, o desemparedamento
aproxima as crianças de uma visão quântica, em que a matéria não é apenas partícula, é também
onda, sujeita, portanto, a interpretações subjetivas (SANTOS, 2002). Assim, negando a
possibilidade de obtenção de um conhecimento absoluto sobre a realidade, questiona a concepção
de natureza como matéria-prima morta para a produção industrial, objeto passível de investigação
por um sujeito soberano, disponível à curiosidade e à manipulação das crianças.

388
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA

Ao se insurgir contra uma perspectiva metodológica que afirma o divórcio entre sujeito e
objeto de pesquisa, a pedagogia do desemparedamento desmonta o imperativo epistemológico
racionalista, que gera um mundo desencantado, isento de paixões, afetos, sensibilidade. Interessado
na ampliação de conhecimentos e domínio de instrumentos de controle, a dualidade produz
indiferença e insensibilidade à comunidade do ser e à unidade primordial com a Natureza, gera
alienação do mundo e de si, reduz a confiança no próprio corpo, a potência frente à vida (LOWEN,
1979).

A proposta de desemparedamento se organiza em coerência com a ideia espinosana de


paralelismo entre corpo e mente (DELEUZE, 2002); e implica na criação de metodologias
decoloniais teórico-brincantes que sustentem – tanto nas práticas com as crianças, quanto na
formação inicial e em serviço – a apropriação de conhecimentos em articulação com o exercício da
democracia, proximidade da natureza, vivências corporais e artísticas (SCHAFER; GUEDES;
TIRIBA, 2017). Bebendo em fontes de saberes que poderão interessar também a experiências
urbanas de educação escolar, essas metodologias convidam a refletir sobre os lugares da liberdade e
da autonomia. E convocam à constituição histórica de uma nova ordem paradigmática sustentada
em pressupostos ontológicos, epistemológicos e antropológicos que assegurem a criação de uma
pedagogia nativa decolonial (MIRANDA; RIASCOS, 2018), orientada pelos princípios da
democracia, da ecologia, da liberdade, da brincadeira.

CONSIDERAÇÕES E APONTAMENTOS

O chamado do Endipe a articular processos educacionais com dinâmicas de transformação


da realidade, nos animou dar visibilidade à práticas educativas que colaborem para a superação do
formato escolar dominante e ajudem a reinventar a escola. A proposta de desemparedamento visa a
subverter as formas de organização e funcionamento escolar que ensinam às novas gerações os
conhecimentos necessários à reprodução da sociedade do capital. Formas de organização coerentes
com os pressupostos do paradigma cartesiano, cuja manutenção, nos dias de hoje, se dá graças à
afirmação e difusão de valores antropocêntricos, individualistas, machistas, misóginos, racistas.

A realidade capitalística não necessita de pessoas alegres, inteligentes e inventivas de ordens


biofílicas que proclamem a liberdade, a igualdade e a justiça socioambiental. Por isso,
desemparedar implica convidar à partilha justa de riscos e males ambientais, a alimentar relações de
amor pela vida. Desemparedar implica políticas de segurança que possibilitem a liberdade de ir e

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 389


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

vir nos espaços escolares, o livre brincar nos pátios, nos parques, praias e praças da cidade
desarmada!

Em um contexto de crise e de conflitos cada vez mais frequentes e explícitos, movimentos


sociais do Brasil e do mundo mobilizam-se contra a apropriação privada de bens naturais que são
dádivas para todas as espécies (PORTO-GONÇALVES, 2017; COZENZA; KASSIADOU,
SÁNCHEZ, 2014). No nível macropolítico, esses movimentos lutam contra as condições aviltantes
de populações que vivem nas zonas de sacrifício da expansão capitalista, como também contra a
apropriação e a degradação de terras de povos originários e tradicionais. No nível micropolítico,
educadores ambientalistas buscam insurgências práticas escolares reprodutoras de uma visão de
mundo que concebe o ambiente como espaço econômico, não como espaço vital, onde a vida se
constitui. Considerando que a luta contra a captura se dá no plano da economia política, mas
também no plano da economia subjetiva (GUATTARI; ROLNIK, 1986), a proposta de
desemparedamento visa a revoluções moleculares na escola, instituição responsável pela
reprodução do sistema hegemônico, mas também espaço de ruptura. Desemparedamento entendido
como ultrapassagem das paredes e muros, mas também como movimento que contribui para a
superação do paradigma moderno, caminho de cura dos ferimentos da Terra, nos planos pessoal
social e ambiental; ferimentos que, no plano micropolítico, correspondem ao sofrimento produzido
pela lógica do aprisionamento (TIRIBA, 2018).

A proposta é de difícil consecução porque a estratégia de emparedamento alimenta a ideia


de um universo biótico e abiótico que existe para o benefício dos seres humanos; ideia que justifica
a predação provocada por um modelo de desenvolvimento para quem o planeta é apenas fonte de
recursos. Reforçando essa ideia, do ponto de vista da pedagogia dominante, os espaços ao ar livre
são o lugar do nada, como também da doença, da sujeira e do perigo (TIRIBA, 2005), não do livre
brincar, ação constituidora do sujeito humano (VIGOTSKI, 1989). Mas a natureza é também lugar
da liberdade, impulsionadora de desejos que alimentam a potência de agir em direção a afetos e
encontros que são bons porque alegram. A liberdade é temida porque empodera, faz a conexão entre
desejo e ação. A livre circulação e a livre escolha são proibidas porque o sistema opressivo investe
em calar o desejo de produzir outras infâncias, outras realidades, outro mundo. As crianças
resistem!

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DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n. 1, 30 de maio de 2012. Estabelece Diretrizes Nacionais para a
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BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n. 2, 15 de junho de 2012. Estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais
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BRASIL. Ministério da Educação. Resolução n. 5, de 22 de junho de 2012. Define Diretrizes Curriculares Nacionais
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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PORTO-GONÇALVES, C. W. A globalização da natureza e a natureza da globalização. 7. ed. Rio de Janeiro:


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392
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DESEMPAREDAR EM BUSCA DE UMA PEDAGOGIA NATIVA

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 393


A BROTAÇÃO DAS COISAS: PROCESSOS E TÁTICAS
PARA ENCONTROS ENTRE ARTE E AGROECOLOGIA
COM ALUNOS SURDOS

Lucia Vignoli

As palavras: Nada têm a ver com as sensações, palavras são pedras duras e sensações
delicadíssimas, fugazes, extremas.

Clarice Lispector
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A Brotação das Coisas revela modos de operar do grupo de pesquisa Artegestoação, criado
em 2016 no Instituto Nacional de Educação de Surdos. Com Joana Lyra, professora da equipe de
Artes, Aline Gomes e Tiago Ribeiro, pedagogos, trabalhamos na “busca de relações dialógicas e
decoloniais, acreditamos na conversa como forma possível para a tessitura e (re)significação do
conhecimento escolar e para além dele” (GONÇALVES; RODRIGUES; RIBEIRO, 2019, p. 23).
Na troca de ideias sobre nossos processos, vão surgindo, nascendo propostas e interligações que,
por vezes, nos espantam por reciprocidades sintonizadas e nos direcionam para outras paisagens, as
quais dizem de um viver assentado na corrente dinâmica das vivências de uma “feira”, na qual, num
balaio, são oferecidas indagações: o que nos volta são novas dúvidas e desejos.

“Navegando” em dinâmicas do “ir fazendo”, vão se configurando projetos e táticas nas quais
o experimento-jogo, aberto ao que nasce na interação com os participantes, norteia as práticas,
reflexões e passos a seguir. Artegestoação brota do desejo de transitar entre as línguas, a língua
brasileira de sinais e a língua portuguesa, criando repertórios para acessar as poéticas da produção
artística de diversos povos, vivenciando a escrita-desenho, seus desdobramentos permeados por
histórias de vida e o inquietar-se no grave cenário do agora, de tantos silenciamentos, assolamentos
que violentam nossos cotidianos nesse espaço – a sala de aula, a aula... vivenciados por nós como
obra: Obra de Arte.
A experiência, em seu caráter contemporâneo, desloca-se do que há bem pouco – de
toda a modernidade: do século XVI a quase completo século XX – se denominou de
saber-fazer, sob designações correlatas, como habilidade, preparo técnico de toda
espécie. Opera-se a experiência pelo processo de dispor-se a, e, no “ir trabalhando”,
vão-se abrindo os problemas; não se tem, no exercer da experiência, o problema
prévio: criam-se os problemas no decorrer (SANTOS, 2015, p. 40).

Tecer este texto é passear por ideias-bússolas, para viver esse espaço-obra, obra de arte,
compreendido como os encontros-aulas. Apostando em atravessamentos com o que nos inquieta,
surgiu o desejo de plantar, ver brotar, nascer... E tudo que se espraia nessas ações para agregar
significados novos. Assim, iniciamos uma horta, nomeada horta-oca, para o cultivo de ideias e da
amizade, para o buen vivir, o “com-viver”. Possibilidade de viver a amizade que encontramos em
Skliar: “uma relação essencial, em que conhecer não é apenas uma opção entre várias, mas, a
própria vontade de renunciar a conhecer, de declinar a interpretar, traduzir ou explicar: uma relação,
então, na qual a voz de um e de outro se escutam mutuamente” (SKLIAR, 2014, p. 49).

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A BROTAÇÃO DAS COISAS: PROCESSOS E TÁTICAS PARA ENCONTROS...

ENTRE-ESPAÇOS NA ESCOLA: A HORTA-OCA, PLANTAR PALAVRAS, POEMAS,


IDEIAS...

O espaço da horta-oca foi criado com o objetivo inicial de aproximar crianças e jovens
surdos da natureza, proporcionando a experiência-aula num ambiente que pudesse escapar da sala
entre paredes e divisórias, para favorecer vivências plurais, significativas e sensibilizadoras.
Encontros-aulas, nos entre-espaços, para acionar discursos no “já” da vida. Falar do que ingerimos,
do que é uma semente... De repente, surge uma minhoca transitando na terra; o susto, o medo, o
nojo, mostrando a responsabilidade e carga de participação de cada ser em processo. Uma vontade
de alfabetização ecológica, com sentido, para lembrar Capra, partindo de nosso corpo, que é
natureza, e alimentar a disposição de experimentar, pesquisar em fluxos contínuos, redes de
intercâmbio entre professores e alunos.
Através da horta também nos tornamos conscientes de que fazemos parte da teia da
vida; com o tempo, a experiência da ecologia na natureza nos proporciona um senso
de lugar. Nós nos damos conta de que estamos inseridos em um ecossistema, numa
paisagem com flora e fauna peculiares, em um sistema social e uma cultura próprios
(CAPRA, 2003, p. 28).

A horta-oca trouxe o encontro com a fertilidade, potência geradora de expressões


manifestadas em jogos, brincadeiras e ações artísticas para firmar o exercício de uma ampla escuta:
a escuta visual. Habitar a horta, vivenciar o surgimento de narrativas vindas dos alunos, pensar o
vocabulário, os sinais e os gestos nos fizeram conhecer esses discursos e pode disparar, acender
gatilhos, fagulhas, para a apropriação de vocábulos, seus significados e sentidos.

A partir de um jogo de escolher palavras para plantar na horta ou no mundo, começamos a


listar o que brotava nas conversas: Amor, amizade, sucesso, afago, saúde... E surgem pequenas
mensagens, configuradas entre palavras e imagens; como a palavra valorizar e o desenho de um
coração. Iniciamos, assim, a confecção de recortes em acetatos para produzir as matrizes e decalcar
as palavras sobre a superfície das paredes da horta. Em progressão, plantamos fragmentos
recolhidos em poemas, numa atividade de paralização de professores. Indo além, inserimos placas-
poemas pintadas nos jardins do Ines, um namoro entre palavra-imagem.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Marcam essas práticas, vividas no contexto do cultivo da horta, a atenção aos mínimos
movimentos, aos “instantes-já”, cheios da vitalidade. A vitalidade ressaltada por Adrianne Ogêda
Guedes e Tiago Ribeiro em suas metodologias minúsculas: “Vitalidade como aquilo que alimenta o
ato mesmo de investigar, que dá sustentação à pergunta, ao assombro” (GUEDES; RIBEIRO, 2019,
p. 38).

ESTANDARTE

A Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia acontece há 11 anos no Polo da
Borborema, Paraíba. O evento mobiliza milhares de camponesas de diversos municípios, com
demandas urgentes contra a violência e pela luta por justiça, igualdade e liberdade. Uma
convocação para produzir estandartes para essa marcha nos possibilitou trazer esse tema para as
aulas de arte, no início do ano letivo de 2015. Elevar um estandarte é um grito, é investir em algo
que nos mobiliza, nos move. Partindo dessa primeira experiência, fomos nos contaminando pela
vontade de expressar coletivamente demandas da comunidade surda e da luta por uma educação
antirracista. Brotam coisas nos encontros, invertem-se posições para o exercício de um jogo.
Para escrever a escritura-arte muitos e distintos dispositivos devem ser acionados:
disponibilidade de espírito, concentração, capacidade de observar e de se pôr no fora,
viver intensamente o vivido, guardar, selecionar, espostejar, deslocar, redimensionar,
sair de si, ver de outros pontos, recolher-se, ficar atento, sondar as almas e mapear a
sinuosidade de cada rede de sentimento; ler, deixar-se contrapor, esquadrinhar os
recursos e os processos já por outros inventados e postos em uso na mesma arte ou em
artes diferentes (SANTOS, 2015, p. 158).

Brotar coisas... Brotam coisas nos encontros, nas partilhas, nos afetos. Em meio à brotação,
vamos nos constituindo na miudeza do cotidiano, das relações, do olho no olho, do sorriso no rosto,

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 397


A BROTAÇÃO DAS COISAS: PROCESSOS E TÁTICAS PARA ENCONTROS...

na afobação, no medo, na angústia, no desejo, na insegurança do sinal a empregar, às vezes. Brotam


coisas quando nos encontramos, quando estamos juntos, quando conversamos, quando olhamos e
nos desafiamos a escutar visualmente nossos alunos... Brotam coisas, porque, como na vida, a
relação de alteridade é puro transbordamento e provocação...

REFERÊNCIAS

CAPRA, F. Alfabetização Ecológica: o desafio para a Educação do Século 21. In: TRIGUEIRO, A. Meio Ambiente no
Século 21. Rio de Janeiro: Sextante, 2003.

CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução: Newton Roberval
Eichenberg. São Paulo: Cultrix, 2006.

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contemporâneos. Rio de Janeiro: Editora Circuito; Faperj, 2015.

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GONÇALVES, R. M.; RODRIGUES, A.; RIBEIRO, T. Por que pensar e pesquisar com narrativas docentes? Em forma
de convite a leitura. In: GONÇALVES, R. M.; RODRIGUES, A.; RIBEIRO, T. (orgs.). Cotidianos e Formação
Docente: Conversas, Currículo e experiências com a escola. Rio de Janeiro: Ayvu, 2019.

SKLIAR, C. Desobedecer a linguagem: educar. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.

Fotos

A horta-oca

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Estandartes pela vida das mulheres e pela agroecologia

Estandartes pelo dia internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 399


A BROTAÇÃO DAS COISAS: PROCESSOS E TÁTICAS PARA ENCONTROS...

Estandarte Cultura Surda

Placas-poemas

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NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À
DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E
FAZERES POLÍTICOS

Marcio Caetano

(...) a educação, qualquer que seja ela, é sempre uma teoria do conhecimento posta em
prática.

Paulo Freire
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Em minhas andanças pelos eventos acadêmicos, ou mesmo transitando pelos espaços


cotidianos de interação, o que percebo é que indiscutivelmente a ampla maioria deseja um país com
melhores qualidades de vida, em que seja possível ter garantidos a segurança pública, o emprego
digno, o acesso e a qualidade aos serviços de saúde, às escolas e docentes valorizadas(os), além de
mobilidades confortáveis e baratas, alimentações sem agrotóxicos e, sobretudo, a liberdade de viver
a fé religiosa de acordo com os valores e crenças. Esses desejos, ainda que múltiplos, unem as
pessoas e, sem dúvida, são defendidos por uma parte considerável da população de norte a sul do
Brasil. Contudo, quando verifico os meios para alcançar esses objetivos, a ampla maioria da
sociedade brasileira, que parece caminhar junta, se fragmenta e, muitas vezes, cria polos
profundamente divergentes.

Ao observar alguns desses embates que disputam a hegemonia em torno dos projetos de
Brasil pela imprensa, redes sociais virtuais ou nos diálogos das inumeráveis filas e serviços que
acesso, constato, se priorizo a escuta, que inúmeras pessoas defendem que é fundamental a
ampliação e garantia de direitos para segmentos sociais específicos da sociedade que foram
historicamente alijados integral e/ou parcialmente do modelo de cidadania liberal no Brasil. Para
outras, o maior rigor penal e a aplicabilidade das leis dariam conta de conter as violências
ocasionadas pela homolestransfobiai, o racismo, o sexismo e o capacitismo. Existem aquelas que
defendem que é preciso debater as temáticas cidadania, gênero, raça, sexualidade, mobilidade e
direitos humanos, por exemplo, nas escolas. Entretanto, para outras, algumas dessas temáticas
devem ser conversadas no interior da família mononuclearii androcêntricaiii sem a mediação do
Estado Brasileiro. Não obstante, ainda existem aquelas que defendem que o fortalecimento dos
valores preconizados pela fé religiosa judaico-cristã e/ou monoteísta darão a solução para a
violência crescente a que a sociedade está, em maior ou menor número, submetida nas cinco regiões
brasileiras. Em outro grupo, ainda existem aquelas pessoas que defendem que o respeito à
Constituição será a única forma de garantir a pluralidade de crenças e enfrentamento às
desigualdades sociais na sociedade. Para elas, a Constituição garante que todos são iguaisiv perante
a lei e que as crenças e existências são igualmente válidas e garantidas por meio da Constituição,
não seriam necessárias legislações específicas, a exemplo do Estatuto da Igualdade Racial ou Lei
Maria da Penha.

Esses debates de posições vêm sendo travados acaloradamente em um momento no qual as


informações são viralizadas por meio das redes sociais virtuais, WhatsApp e instrumentos de busca
na internet. A rede cyber é uma realidade objetiva da vida cotidiana de inúmeras pessoas, de

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E...

empresas, da política e dos meios de comunicação. Atualmente, de modo mais intenso e, por vezes,
democrático, os debates sobre os projetos de Brasil são vividos na sociedade digital, e penso que
seja necessário reexaminar tudo o que se sabe sobre a sociedade, porque se está em outro contexto.

As verdades produzidas em torno dos projetos de Brasil se disseminam em velocidades


inimagináveis e se reproduzem com níveis de segurança impensáveis nos tabletes, notebooks e
celulares. Em diálogo com Manuel Castells (2015), penso que as formas de controle tradicionais
experimentadas nas democracias estão se dissolvendo, e, por isso. o sistema político atual está em
uma crise profunda de legitimidade e representatividade no Brasil. Paralelos a esse cenário, a
vigilância eletrônica e o controle social mediante o uso das tecnologias estão aumentando a
capacidade de experiências autoritárias dos Estados, considerando que eles utilizam as tecnologias
para contrariar as mobilizações democráticas, reforçando o domínio e os limites à democracia.

Nesse emaranhado político, a força e a forma com que são divulgadas as informações
tornam difíceis, inclusive para sujeitos com maior experiência, a identificação de fake news, como
são nomeadas as mentiras que são divulgadas por meio dessas tecnologias de difamação. As fake
news são tantas vezes reiteradas que acabam assumindo o estatuto de verdadev. “Uma mentira
repetida mil vezes torna-se verdade”, conforme foi dito pelo ministro de Adolf Hitler, Joseph
Goebbelsvi. Assim sendo, as sociedades vivenciam um período em que a revolução da comunicação,
fruto da era digital, potencializou as práticas políticas de compartilhamento de fake news tornando
demasiadamente progressivos e, consequentemente, severos os problemas sociais gerados por elas.
Não há dúvida: as notícias falsas veiculadas são divulgadas com a intenção de acirrar os debates
entre os polos que disputam as verdades políticas, econômicas, sociais, culturais, sexuais que
também irão incidir sobre a escola.

Nesta batalha, os movimentos sociais de direitos humanos e civis de mulheres, indígenas,


negras(os) e LGBT, por exemplo, têm se visto acossados pela crescente ascensão da Nova Direitavii,
que tem usado a linguagem cyber para desqualificar suas reivindicações com o jargão de que são
defensoras(es) de ideologias de gênero, comunistas e divisionistas. Agregado a esse discurso,
quando penso nas escolas, entendo que a Nova Direita defende os princípios de “isonomia”,
garantidos pela Constituição. Indo nesta direção, a mais recente expressão cunhada pelos setores
resultantes da aliança entre os neoconservadores, religiosos fundamentalistas e neoliberais que
ganharam muitos adeptos nas últimas décadas são os projetos liderados pelo “movimento socialviii
Escola sem Partido”. Ao ler Fernando Penna (2018), penso que para o “Movimento”, os currículos
escolares devam ser ideologicamente neutros. Essa é a promessa! Segundo o “Movimento Escola

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Sem Partido”, o intuito é proteger estudantes de docentes dispostos a propagar suas concepções de
mundo. Alegando que cabe aos pais, sempre no masculino, o direito de assegurar que suas proles
tenham uma educação condizente com suas convicções familiares. Com seus argumentos, o
“movimento” consegue persuadir muitas pessoas. Tal como ensina Gaudêncio Frigotto (2017, p.
31):
O que propugna o Escola sem Partido não liquida somente a função docente, no que a
define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em manuais ou
apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. A função docente no ato de
ensinar tem implícito o ato de educar. Trata-se de, pelo confronto de visões de mundo,
de concepções científicas e de métodos pedagógicos, desenvolver a capacidade de ler
criticamente a realidade e constituírem-se sujeitos autônomos. A pedagogia da
confiança e do diálogo crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova função:
estimular os alunos e seus pais a se tornarem delatores.

Em minhas experiências de pesquisa em cidades do sudeste gaúcho, constato que o


“Movimento” atribuiu grande protagonismo às(aos) responsáveis ao recrutá-las(os) como “fiscais”
do trabalho docente e das inserções dos movimentos sociais progressistas nas escolas. As(os)
estudantes foram incentivadas(os) a denunciarem qualquer iniciativa pedagógica de questionamento
às desigualdades sociais, culturais, econômicas e, especialmente, sexuais nos trabalhos curriculares.
A criticidade, característica da produção do conhecimento, foi chancelada de “doutrinação
ideológica” de esquerda ou de práticas inimigas da família e do cristianismo.

Ainda que com forte resistência de sindicatos de docentes, ativistas LGBT, feministas e
movimentos negros da região, os discursos do “Movimento Escola Sem Partido” se alastraram e
conquistaram adeptas(os). Particularmente, acredito que seu relativo sucesso na região tenha sido
produzido pelo (A) protagonismo atribuído as famílias sobre a definição do que deve ser priorizado
no currículo escolar; (B) a naturalização da desqualificação do trabalho docente; (C) a defesa do
poder familiar sobre as crianças e (D) arsenal fascista de suas propagandas.

Em uma roda de conversa com estudantes, responsáveis e docentes sobre a aprovação do


Projeto de Lei 0012/2018 na Câmara Municipal de São Lourenço do Sulix, em outubro de 2018, foi
possível perceber o amplo apoio de responsáveis ao Projeto. Os argumentos, por mais variados que
fossem, reproduziam uma interlocução direta com aquilo que recebiam em seus aplicativos de
celulares do Movimento Brasil Livre (MBL). Os representantes do “movimento”, semelhante ao
que Penna (2017, p. 35) afirmou em seus estudos, utilizavam uma “linguagem próxima do senso
comum, recorrendo a dicotomias simplistas que reduzem questões complexas a falsas alternativas”
404
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postuladas na neutralidade pedagógica. Contrariando o que nos ensinou Paulo Freire (2018) quando
afirma que:
[...] a neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete
apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta
de um “compromisso” contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que
se dizem neutros. Estão comprometidos consigo mesmos, com seus interesses ou com
os interesses dos grupos aos quais pertencem (FREIRE, 2018, p. 23).

Ao considerar os ensinamentos de Paulo Freire (2018), olhando de forma mais detida para
as propostas que tramitam nas casas legislativas pelo Brasil a fora, é possível questionar, com muita
seriedade, suas intencionalidades. E não é por menos que elas, em algumas experiências em que
foram aprovadas e sancionadas, quando judicializadas, foram consideradas inconstitucionais pelo
Superior Tribunal Federalx. Inês Barbosa de Oliveira e Maria Luiza Süssekind (2019) ao refletir as
ações desses movimentos de direita na educação irão argumentar que:
Esse conjunto de intervenções sobre o sistema educacional, sua estrutura e
funcionamento, busca assegurar a unificação, homogeneização, controle e
desideologização dos processos de escolarização. O controle sobre a escola, por ser
uma impossibilidade, acaba sendo exercido por meio da sua produção como espaço de
ausências, como uma instituição ruim, inadequada, insuficiente e, por isso, incapaz de
levar nossa embarcação a bom porto. Desestabilizando-a, o Tsunami conservador
espera levá-la ao naufrágio, substituindo-a por uma espécie de arca de Noé ao
contrário que só permite a entrada de iguais, enquanto afoga no dilúvio do tsunami
tudo aquilo que não se enquadra nos desígnios de seu criador, o ideário capitalista,
heteropatriarcal e colonialista, neoconservador (OLIVEIRA; SÜSSEKIND, 2019, p.
07).

Ao receber o convite para integrar este simpósio “Educação, diferença e insurgências”, no


XX Endipe Rio 2020, pensei em inúmeras possibilidades de inserção no debate. Mas elegi me
conduzir por aquilo que mais me toca, a discussão político-midiática em torno das políticas de
identidades e suas tensões e acordos nos fazeres da educação. E, ao refletir sobre a minha eleição,
não consigo ignorar os discursos acalorados proporcionados nas redes sociais virtuais.

A conhecida bolha do Facebook me leva a acessar cotidianamente uma avalanche de


opiniões e estratégias políticas semelhantes sobre os temas que orientam os debates sociais, e quase
sempre elas são construídas em torno das diferenças e identidades políticas. Infelizmente, a rede
social orienta suas usuárias e seus usuários a lerem cotidianamente o mais do mesmo. Em seus

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

espaços, a divergência e o contraditório, que são elementos importantes para a construção do


pensamento, ficam aligeirados ou impossibilitados.

Se saio da bolha de notícias das redes sociais, percebo que a Nova Direita (aliança entre
neoliberais e neoconservadores) e Progressistas coincidem, com perspectivas distintas, em vários
assuntos e quero refletir orientado pelo intenso debate em torno da chamada ideologia de gênero.
De um lado, a Nova Direita diz que defensoras, quase sempre mulheres, da ideologia de gênero
desejam desmantelar os valores judaico-cristãos que reverberam as relações sexuais assimétricas e
complementares heterossexuais das famílias mononucleares. Assumindo esse pressuposto, a Nova
Direita, ao menos no Brasil, elegeu os estilos de vida LGBT como os principais inimigos dos
valores da família e da fé cristã. De outro, as(os) progressistas denunciam que não existe ideologia
de gênero, à medida que são bem objetivas as desigualdades produzidas com e a partir das
diferenças sexuais. E ainda complementam,indicando que não se pode chamar de falsas as
condições violentas e, por vezes, degradantes, vividas por mulheres e LGBT frente ao modelo
androcêntrico e homolestransfóbicos de sociedade.

Ao verificar os discursos hegemônicos progressistas e das(os) neoconservadoras(es) da


Nova Direita eles não me parecem tão opostos em suas estratégias de enfrentamento. Ambos
reconhecem a existência das diferenças sexuais. De um lado, as(os) neoconservadoras(es) que
integram a Nova Direita marcam enfaticamente a natureza e seu caráter divino e imutável para
argumentar que as feministas e, sobretudo, as populações LGBT, por meio da “ideologia de gênero”
querem dizer que o sujeito não nasce homem e mulherxi e que, portanto, pode recorrer a trajetórias
diferentes daquelas definidas pela família ao longo da história. De outro lado, os setores
progressistas parecem definir suas estratégias de enfrentamento respondendo às provocações
neoconservadoras. A interlocução é direta entre esses polos e ambos se retroalimentam nas redes
sociais virtuais.

Quando observo os setores progressistas neste embate, ganha relevo, para mim, a forma
como encaram a família e a negação da existência da “ideologia de gênero”. Se estrategicamente os
discursos da ideologia de gênero utilizam a natureza da existência para dizer que o homem e a
mulher são opostos e essa binaridade é fundamental para o equilíbrio da família, setores
progressistas denunciam, de forma tímida, as violências cotidianas produzidas pelas relações
assimétricas e complementares sofridas pelas mulheres e, sobretudo, LGBT.

Particularmente, penso que o alvo é novamente atacar a emancipação das mulheres, o que
diferencia os tempos atuais com os de outrora é que os setores neoconservadores não vão ao núcleo
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NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E...

de seus interesses, eles comem pela beirada. Como? Mobilizando socialmente o pânico moralxii e
em vez de atacar a emancipação feminina e sua inserção no mundo do trabalho, preferem acusar as
intelectuais feministas e o movimento LGBT de quererem destruir as fronteiras sexuais ao
afirmarem que as pessoas não nascem homem ou mulher e que as heterodesignações deterministas
atribuídas às(aos) bebês no momento do nascimento podem não corresponder as suas designações
quando do desenvolvimento cognitivo das crianças e adolescentes.

A infância e a adolescência são características políticas bem recentes na democracia


brasileira. Vale lembrar que entre as décadas de 1980 e 1990, três fatores alteraram
significativamente o modo como o Estado e a sociedade operaram com esses sujeitos: a
Constituição Federal, de 1988, que garantiu a universalização do acesso à educação pública no
interior daquilo que seria posteriormente estabelecido pela LDBEN de 1996, algo profundamente
revolucionário para o Brasil que tinha ainda na Igreja Católica uma das principais interlocutoras
pela educação escolar no Brasil; o Estatuto da Criança e do Adolescente que, em 1990, dispôs sobre
a proteção integral de crianças e adolescentes que até aquele momento viviam à sombra do ideário
cidadão. E, logo em seguida, a LDBEN de Darcy Ribeiro, em 1996, que ampliou e tornou
obrigatório o estudo do Ensino Fundamental, inicialmente de oito anos.

A própria história da LDBEN de 1996 é um espelho das forças que integram e disputam o
debate das diretrizes políticas da educação brasileira. Desde o início da década de 1980,
profissionais da educação protagonizavam a luta pela criação de uma legislação que criasse e
organizasse o Sistema Nacional de Educação, o que resultou, inicialmente, no Projeto de Lei
1.258/1988, do Deputado Otávio Elísio. No ano de 1993, o projeto foi aprovado na Câmara dos
Deputados e seguiu para o Senado com a relatoria de Cid Sabóia, sob o número Projeto de Lei
101/93. No entanto, após meses de amplo debate entre parlamentares e a sociedade civil, os
movimentos populares foram surpreendidos com uma “nova” proposta do Senador Darcy Ribeiro
com a anuência de Fernando Collor e em vários aspectos, no meu entender, mais centralizadora do
que as legislações que regiam a educação criadas no período militar.

Basicamente, o texto inicial da LDBEN, defendido pelas(os) profissionais da educação,


apresentava determinado o consenso diante das propostas em debate naquele momento. Ele garantia
pautas significativas no processo de luta pela educação pública: a universalização da educação
básica, com acesso e permanência; o sistema nacional de educação com o mesmo padrão de
qualidade em todos os seus níveis e, sobretudo, a garantia exclusiva do destino de verbas públicas
para a educação pública. Com apoio do Senador Roberto Requião (Presidente da Comissão de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Educação) e do Ministério da Educação (MEC),o Projeto de Darcy Ribeiro começou a tramitar e foi
arquivado o substitutivo de Cid Sabóia.

O jogo no tapetão e as alianças políticas para restringir direitos são coisas que fazem bem à
direita no Brasil. Mesmo derrotados nos fóruns populares na elaboração da LDBEN xiii, buscaram
nos corredores do MEC e do Congresso Nacional, os acordos políticos e a garantia de sua
hegemonia. Algo semelhante ocorreu com os planos decenais da educação dos entes federativos
entre os anos de 2014 e 2015. Como se sabe, no Brasil, foram realizados, no início dessa década,
vários fóruns de educação que culminaram em duas conferências nacionais (2010 e 2014). O
objetivo era garantir a participação da sociedade nas discussões pertinentes à melhoria da educação
nacional e subsidiar a elaboração dos Planos Decenais de Educação (PNE), já previstas a serem
realizadas na LDBEN/1996. Se nas conferências de educação, a agenda das populações LGBT,
negras, indígenas e com deficiências e de mulheres, foi aprovada com amplo apoio de congressistas,
nos corredores e mesas do MEC e do Congresso Nacional as propostas foram redimensionadas ou
retiradas.

A interação entre o governo, a escola e as políticas educacionais sempre foi complexa. Ela
traduz a historicidade de relações sociais e as formas como os projetos ideológicos buscam a
hegemonia. Contudo, a análise do atual cenário de construção das políticas públicas de educação
configura-se tarefa desafiadora frente à ausência de transparência e os limites à democracia. Como
ativista dos direitos humanos e professor-pesquisador das políticas de identidades, sobretudo,
aquelas lideradas pelas reivindicações de mulheres e LGBT, penso que não é possível discutir uma
agenda política de enfrentamento aos setores neoconservadores e neoliberais se não trazendo ao
cenário a defesa da educação pública. Ao fazer um balanço sobre os debates dos planos decenais de
educação, penso que os setores progressistas caíram em algumas armadilhas e elas precisam ser
debatidas a fim de que seja possível a definição de táticas de enfrentamento. Em vez de ser feita
uma ampla discussão sobre a qualidade socialmente comprometida da educação escolar, foi
retroalimentada a estratégia neoconservadora alicerçada no pânico moral em torno das categorias
“gênero” e “diversidade sexual”. Nesta lógica, a Nova Direita propagou a chamada “ideologia de
gênero” e elegeu estrategicamente os movimentos feministas e LGBT como inimigos número um
da família e da fé judaico-cristã. Para ela, ambos os movimentos contrariavam as crenças judaico-
cristãs e a perspectiva de assimetria e complementaridade sexual, bases da família colonial
eurocêntrica.

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NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E...

Ao pensar neste eixo, me lembro dos ensinamentos preconizados pelo equatoriano Anibal
Quijano (2005). O autor, em um exercício de análise sobre as relações sociais pautadas na
exploração colonial, discorreu sobre como estas estabeleceram a dinâmica relacional de
constituição do(a) outro(a) colonizado(a). Ao fazer uma crítica aprofundada da construção das
identidades a partir de um viés decolonial sublinhando a constituição do termo raça, Quijano(2005)
ressaltou a existência de uma Europa e de um europeu, sempre no masculino, a partir da criação da
América colonizada. Para ele, na América, a ideia de raça foi uma maneira de legitimar as relações
de dominação impostas pela barbárie. A posterior constituição da Europa como nova identidade
depois da América conduziu a elaboração da perspectiva eurocêntrica de conhecimento e com ela a
elaboração da ideia de raça como naturalização dessas relações coloniais e, posteriormente,
burguesas de dominação.

Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as já antigas ideias e práticas
de relações de superioridade/inferioridade entre dominantes e dominadas(os). O binarismo
eurocêntrico criticado por Quijano (2005) tem sido a base sobre a qual as diferentes identidades têm
se construído, a partir do pensamento colonial, na relação de subalternização de um(a) outro(a) cuja
inferioridade é estrategicamente naturalizada. Esse mecanismo se depreende e se relaciona aos
ideais eurocêntricos de modernidade que buscou universalizar uma concepção de mundo em que,
em primeiro plano, a história da civilização humana é retratada como uma trajetória que parte da
ideia de natureza desordenada e culmina na ideia de uma Europa ordenada que espelha o
androcentrismo cristão, branco, burguês e heterossexual de racionalidade; e, em segundo plano, são
outorgadas enquanto diferenças da natureza e, portanto, incontestáveis, as desigualdades produzidas
pela racialidade e pelo sexo, por exemplo. Essa estratégia de governo da vida legitimou-se a
dicotomia e a essencialidade identitária, escondendo hierarquias que buscavam e ainda buscam, na
colonialidadexiv em que a sociedade ainda vive, em seu fundamento, a manutenção da racionalidade
refém do ideário de totalidade e complementaridade e todo o debate produzido até aqui sobre os
princípios da Nova Direita de bem, penso eu, dessa lógica.

Quando penso nas implicações desses debates nas escolas, de imediato sou levado a refletir
nas lutas que cotidianamente são travadas com o conhecimento hegemônico que, dada sua força,
buscou e ainda busca difundir a colonialidade, o Movimento Escola Sem Partido e o debate em
torno da ideologia de gênero me parecem exemplos dessa dinâmica. No entanto, com o tema da
mesa, fui estimulado a pensar que as verdades curriculares não se limitam aos interesses da
academia, das dinâmicas do capital e suas(seus) representantes na definição de políticas, das(os)

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

religiosas(os) e/ou das(os) governantes, elas também recebem contribuições de movimentos sociais,
responsáveis de estudantes, docentes e alunas(os). Nas últimas décadas, foi possível conhecer
diversas histórias-memórias que produziram verdadeiras ressignificações político-curriculares em
torno das experiências, interseccionadas pela classe, de pessoas com deficiências, negras, indígenas
e LGBT no Brasil. Não tenho dúvida que isso ajuda a entender a forte reação neoconservadora e
neoliberal no país, mas também elucida as lutas históricas dos movimentos sociais, profissionais da
educação e estudantes.

Ainda que a pretensa imparcialidade exigida às(aos) docentes pelas(os)


neoconservadoras(es) e neoliberais busque produzir culturalmente a inserção de sujeitos acríticos,
despolitizados e desorganizados no meio social (SOUZA; OLIVEIRA, 2017) e que as
configurações elaboradas pelas fake news tentem esvaziar de sentido o pensamento crítico, as
escolas cotidianamente criam e recriam astúcias e resistências aos danos causados à democracia e
inventam tessituras de existência no cenário de devastação que é produzido pelo ideário capitalista,
heteropatriarcal, colonialista e neoconservador, como advertiram Oliveira e Süssekind (2019).

410
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NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E...

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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12-42.

Notas de fim

i
Ao considerar as reivindicações dos movimentos sociais de lésbicas, gays, bissexuais e pessoas trans (LGBT) não
nomeio as violências cotidianas vividas por essas populações como homofobia. Essa decisão decorre das
especificidades e intersecções que cada segmento vivencia em suas lutas cotidianas para conquistar e/ou ampliar suas
cidadanias ou enfrentar as violências físicas a que estão sujeitas(os) na sociedade brasileira.
ii
Modelo de família que se apresenta com amplo apoio religioso judaico-cristão constituído obrigatoriamente pela
figura paterna, materna e proles. Caetano, Silva Jr. e Goulart (2016) ao dialogar no Petzold (1996), irão propor o
entendimento de família como sendo um grupo social, caracterizado pela intimidade e por relações intergeracionais. Os
autores irão destacar a possibilidade de catorze variáveis de família, dentre elas: casais casados ou não; com partilha ou
separação de bens; moradia juntos ou separados; dependência ou independência financeira; com ou sem crianças; com
prole biológica ou adotada; genitoras(es) morando juntos ou separadas/os; relação hetero ou homossexual; cultura igual
ou diferente. Essas variações, combinadas, podem oferecer cerca de 196 tipos diferentes de arranjos familiares. Isso
significa dizer que o modelo mononuclear de família de tipo judaico-cristã não é suficiente para a compreensão das
multiplicidades familiares que integram o Brasil.
Para Rosa M. R. de Oliveira (2004), o termo androcentrismo postula que todos os discursos e práticas sejam
iii

enfocados a partir de uma perspectiva masculina e que ela seja tomada como válida para a generalidade dos seres
humanos e da lógica de governo do público e do privado.
iv
Neste caso, o gênero que designa o sujeito é sempre o masculino. Qualquer ação que o flexione e o torne inclusivo é
entendida como divisionista ou duramente criticada pelos defensores da isonomia política.
v
Com vista a ilustrar o debate, sugiro a leitura de Amanda Castro e Marcio Caetano (2018).
vi
Goebbels foi responsável por difundir a ideia de que o povo judeu era o inimigo da Alemanha. Ministro da
Propaganda de Hitler montou a estratégia de comunicação e cultura para disseminar o nazismo. Entre os anos de 1933 e
1945, conseguiu extinguir a imprensa livre, controlando a informação e as expressões artísticas na Alemanha. A frase
de Goebbels foi dita originalmente em um pronunciamento para diretores de teatro no dia 8 de maio de 1933. Dois dias
depois, houve uma grande queima de livros na Alemanha. Esse ato – que teve grande repercussão na época – é
considerado o auge da perseguição nazista a intelectuais, especialmente escritores. Recentemente, o Secretário de
Cultura, Roberto Alvim, utilizou trechos do discurso de Goebbels em seu pronunciamento sobre o Projeto de Cultura do
Governo Bolsonaro. Após ampla repercussão e pressão popular e judaica, Alvim foi demitido.
vii
Segundo Iana G. Lima e Álvaro Hypolito (2019), a Nova Direita constituiu-se a partir da aliança, principalmente,
entre neoconservadores e neoliberais. Ela se constitui como um grupo central no desmantelamento do Estado de Bem-
Estar e criação de forma distinta de administrar o Estado. Os neoconservadores são aqueles que definem os valores do
passado como melhores que os atuais e lutam pelas tradições culturais. Ao dialogar com Apple (2000), Iana G. Lima e
Álvaro M. Hypolito disse que a Nova Direita, nos EUA, se constitui de quatro grupos: neoliberais, neoconservadores,
populistas autoritários e a nova classe média profissional. Liderados pelos neoliberais, são eles que representam o grupo
que se preocupa com a orientação político-econômica atrelada à noção de mercado. Já os populistas autoritários seriam
grupos da classe média e trabalhadora que desconfiam do Estado e se preocupam com a segurança, a família, o
conhecimento e os valores tradicionais e são formados, de forma significativa, por grupos evangélicos. Por fim, a nova
classe média profissional se centraria na mobilidade social.
Reconhecendo a multiplicidade de leituras e definições, estou entendendo a categoria “movimento social” como
viii

sendo ações coletivas de coletivos de sujeitos organizados que objetivam alcançar alterações sociais, culturais e/ou
econômicas por meio do embate político, conforme seus valores e ideologias dentro de uma determinada sociedade e de
contextos específicos, permeados por tensões sociais. Neste sentido, ao usar as aspas quero duvidar da afirmativa de que
sejam essas pessoas integrantes de movimentos sociais. Essa postura é mediada pela ideia de que o Movimento Escola
Sem Partido defende a manutenção do status quo, o que contrário o princípio básico na conceituação de movimento que

412
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NEOCONSERVADORISMO E SUAS IMPLICAÇÕES À DEMOCRACIA: EDUCAÇÃO, INSURGÊNCIAS E...

o entende como orientado por ações coletivas que almejam alterações sociais, culturais e/ou econômicas. Para
aprofundar o debate sugiro a leitura de Maria Gohn (2008).
ix
Cidade do sudeste gaúcho se tornou a primeira a aprovar uma lei sobre o Escola Sem Partido no estado. O projeto foi
apresentado ao vereador Adrean Peglow (PSDB) por um dos líderes do Movimento Brasil Livre (MBL) da cidade.
Cinco vereadores – três do PSDB, um do PP e um do PDT – assinaram a proposta na Câmara. O projeto foi aprovado
em Plenário por 6 votos a 4, em julho de 2018.
x
Questionado no Supremo Tribunal Federal (STF) por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o projeto
recebeu posicionamento contrário da Advocacia-Geral da União (AGU). A AGU ao considerar que a lei é
inconstitucional argumentou que a competência para a elaboração de normas gerais é atribuída à União, que deve
legislar no interesse nacional, estabelecendo diretrizes que devem ser observadas pelos demais entes federados. Aos
estados e ao Distrito Federal cabem suplementar a legislação nacional. Ao considerar a Lei n. 7.800/16 de Alagoas, que
instituiu o programa Escola Livre no ensino estadual, viola o direito à educação e invade competência exclusiva da
União, o ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso suspendeu os efeitos da lei. A liminar foi deferida
na Ação Direta de Inconstitucionalidade apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Estabelecimentos de Ensino (CONTEE).
xi
Em seus pronunciamentos, o entendimento de homem e mulher é sempre no singular e orientado pela lógica da
colonialidade.
xii
Sobre o assunto, ver: Richard Miskolci e Maximiliano Campana (2017).
O Projeto n. 12.588/1988, apresentado pelo Deputado Otávio Elísio foi resultado dos debates ocorridos nas
xiii

Conferências Brasileiras de Educação.


xiv
Ao dialogar, Walsh (2009) e Oliveira (2010), Caetano, Melgaço Jr. e Goulart (2016) irão sublinhar que a
colonialidade, parte constitutiva da Modernidade, envolve as relações de poder que emergem do contexto da
colonização europeia, não obstante o término do regime colonial. Para essas(es) autoras(es), os efeitos da colonialidade
que atinge praticamente todos os aspectos das vidas das pessoas, permanecem presente nos modos como são projetados
e concebidos o conhecimento. Ela determina a subalternização e a dependência, processo que pode ser compreendido a
partir de três eixos: a colonialidade do poder, do saber e do ser (MIGNOLO, 2003). Assim sendo, entende-se que a
colonialidade do poder envolve as ações de controle da economia, do Estado, da natureza e seus recursos, do gênero e
suas performances, da sexualidade e seus desejos, do conhecimento e suas verdades e, sobretudo, dos modos que
produzem as subjetividades. De forma complementar, essas noções articulam-se à colonialidade do saber que coloca o
problema da “invenção do outro” a partir de uma perspectiva geopolítica e à colonialidade do ser que admite uma proto-
história da humanidade a partir da invenção e dominação de outrem.

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BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS:
NECESSÁRIAS INSURGÊNCIAS PARA A
COMPREENSÃO DE SI E DO MUNDO AO
DESCOLONIZAR O CURRÍCULO

Marco Antonio Leandro Barzano

Apesar da relevância das causas ambientais, em tese, para o futuro da sociedade e do


planeta, somos, de tempos em tempos, obrigados a redimensionar a centralidade que
gostaríamos de ter diante do reconhecimento do lugar que de fato ocupamos entre
muitas outras pautas e anseios sociais, igualmente legítimos, numa sociedade plural.

[...] Nos exige darmos conta de que estamos em momento de mudança de paradigmas
de ação política, de novas articulações entre epistemologia e ontologia e novos modos
de pensar a mudança global e de ser movimento social no século XXI (CARVALHO,
2015).
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A epígrafe escolhida para abrir o presente texto se refere à síntese do que pretendo enredar
acerca do meu contato com a Educação Ambiental, momento marcante em 1998, quando ingressei
no mestrado em Educação na Universidade Federal Fluminense, além de mostrar como o
pensamento pulsante e mobilizador da decolonialidade tem me implicado, com rupturas de visões
paradigmáticas e a promoção de insurgentes maneiras de pensamento, capazes de me compreender
e compreender o mundo ou,conforme as palavras de Ailton Krenak (2019), com ideias para adiar o
fim do mundo.

O texto encomendado para o simpósio C do eixo 4: “Biodiversidade em novas


epistemologias: perspectivas insurgentes em educação ao/no cuidado de todas as formas de vida”,
aciona em mim o reforço do compromisso ético e político como professor-pesquisador-militante da
Educação Ambiental em colocar sob suspeita a ciência moderna, branca, europeia, patriarcal e
colonial e, ao mesmo tempo, apostar esperançosamente (FREIRE, 1994) em uma “universidade de
ideias” (SANTOS, 2001) para descolonizar os saberes e os currículos (GOMES, 2012).

A COMPREENSÃO DE SI E DO MUNDO PARA CONTRIBUIR COM UMA UNIVERSIDADE


DE IDEIAS

Com a consolidação do grupo de pesquisa que coordeno (RIZOMA), as primeiras


dissertações defendidas e também com as pesquisas de doutorado sob minha orientação, pude
perceber que havia a necessidade de buscar mais alguns(mas) teóricos(as) para inspirar nossas
reflexões e análises e, desse modo, buscamos a companhia de Michel de Certeau (1998), sobretudo
naquilo que temos investido, que é o currículo cotidiano da escola; e a perspectiva decolonial e
epistemologia do sul, com as contribuições do sociólogo Boaventura de Sousa Santos (2001; 2002),
que vem promovendo efetivamente uma ruptura epistemológica da modernidade, fazendo-nos
pensar e apostar na ecologia de saberes e nas sociologias das ausências e emergências.

Apresento, nesta parte do texto, reflexões operadas em reuniões do grupo de pesquisa e que
têm movimentado meus pensamentos aos sentidos atribuídos à Educação Ambiental (EA); das
Relações Étnico-Raciais (RER) na Educação Quilombola, a partir das pesquisas que têm sido
desenvolvidas nos projetos de mestrado e doutorado, sob minha orientação. Temos tido o interesse
de compreender os efeitos que são produzidos e que circulam nas práticas educativas, sobretudo a
partir da Lei n. 10.639/2003 e Resolução CNE/CEB n. 8, de 2012, que, de certa maneira, procuram
contribuir para o fortalecimento da história e cultura negra nos últimos quinze anos.

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BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS: NECESSÁRIAS INSURGÊNCIAS...

Mesmo que o RIZOMA tenha interesse geral em tratar do binômio EA e RER, para o
escopo deste artigo, apontarei apenas ao que estamos operando teoricamente a partir dos conceitos
de ecologia de saberes (SANTOS, 2002) e disseminado por referências de Gomes (2012; 2017),
entre outras e outros que se filiam à perspectiva decolonial.

Dessa forma, compreendo que a educação quilombola é marcadora de sentidos e


significados para um currículo que pretende ser emancipador, atingindo focalmente um
determinado público. Dito de outro modo, é importante que escolas em territórios quilombolas
pratiquem educação quilombola em seus currículos, seja traduzindo, reelaborando ou até mesmo
ressignificando a partir do contexto, dependendo da relação de força da escola ou órgãos da
secretaria de educação, constituídos pelos docentes, gestores e comunidade e, dessa maneira,
conseguindo descolonizar os currículos (GOMES, 2012).

É dessa maneira que defendo e aposto na possibilidade de uma didática e prática de ensino
insurgente, desafiadora, de resistência e reexistência, matriarcal, em que o verde, a cor tão comum
para os(as) ambientalistas e todas as pessoas que abordam, estudam, pesquisam, realizam ações
extensionistas, se empreteça, ganhe força e dê outro sentido, inclusive, ao que é crítico, pois avança
no pensamento ora cristalizado, para ser mais criativo e livre, possibilitando uma Educação
Ambiental “na sua visão contemporânea, emancipatória – mas que não reivindica ser a verdade
última, e que abre diálogos com outras verdades” (SATO, 2015, p. 15).

A partir da LDB n. 9.394/96, em seu artigo 26-A, foi introduzida a Lei n. 10.639/2003, que
trata da obrigatoriedade do estudo da África e da cultura afro-brasileira e africana e do ensino das
relações étnico-raciais, instituindo o estudo das comunidades remanescentes de quilombos e das
experiências negras constituintes da cultura brasileira (LARCHERT; OLIVEIRA, 2013).

A Conferência Nacional de Educação (CONAE) ocorrida em 2001, na capital brasileira,


decidiu que a educação escolar quilombola passasse a ser modalidade da educação básica, através
do Parecer CNE n. 07, de 2010, e na Resolução CNE/CEB n. 04, de 2010, que instituíram as
Diretrizes Curriculares Gerais para e Educação Básica e a CONAE definiu que educação
quilombola é de responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal (BRASIL, 2012, p. 9).

Segundo Larcherti e Oliveira (2013) “com a criação da SECADI no Ministério da Educação


do governo Lula, o debate sobre a educação quilombola, criando iniciativas de melhorias
diferenciadas; condições de ensino; produção de materiais didáticos e recursos diferenciados para
alimentação escolar”. Ou seja, uma outra perspectiva de educação emancipadora passa a operar na
centralidade da política governamental e se materializar no currículos das escolas e universidades
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

públicas, com enfoque nos sujeitos que vêm das margens (REIGOTA, 2010) e procurando
promover com a contribuição para um currículo que também é das margens (BARZANO, 2016) e
que cada dia que passa, sobretudo no últimos anos, são/estão com suas vidas ameaçadas
(ARROYO, 2019).

No que diz respeito à educação ambiental e ao ensino de Biologia, área em que atuo na
docência universitária, é importante destacar o salto qualitativo para o debate socioambiental e
cultural, pois temas/conteúdos como biodiversidades, alimentação saudável, agroecologia,
transgênico, rotação de cultura, agrotóxico, plantas medicinais, sementes crioulas, água,
saneamento básico, saúde, são apenas alguns que merecem destaque para serem ensinados nas aulas
das escolas quilombolas, mas antes, sobretudo nas universidades, nos cursos de Licenciatura, já que
é neste lócus que vislumbramos a descolonização dos saberes, pois, inspirado em Santos (2001, p.
225-226), compreendo que “a universidade é talvez a única instituição nas sociedades
contemporâneas que pode pensar até às raízes as razões por que não pode agir em conformidade
com o seu pensamento. [...] Numa sociedade à beira do desastre ecológico, a universidade deve
desenvolver uma apurada consciência ecológica”.

A partir da conquista dos movimentos sociais, sobretudo do movimento negro, que passa a
ser educador (GOMES,2017) pode-se afirmar que o Estado conseguiu, através de efetivas políticas
públicas, se aproximar das comunidades quilombolas em diversos municípios brasileiros. A título
de exemplo temos constatado experiências exitosas de políticas e programas desenvolvidos em
municípios baianos, como é o caso do município de Feira de Santana, onde desenvolvemos nossas
pesquisas.

No que tange ao ensino de Biologia e educação quilombola (escolas quilombolas), destaco


uma política promovida no governo Lula, que foi a criação dos cursos de Licenciatura em Educação
do Campo, que contemplam as comunidades quilombolas e, mais recentemente, os cursos próprios
da Licenciatura em Educação Quilombola.

O Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo


(PROCAMPO) é uma iniciativa do Ministério da Educação, por intermédio da Secadi, e tem o
objetivo de “apoiar a formação inicial e continuada de professores em exercício na educação do
campo e quilombola, assegurando aos cursos de Licenciatura destinados a atuação docente nos anos
finais do ensino fundamental e no ensino médio”.

Esta experiência em diversas universidades públicas no país contribuem para emergirem


novos projetos de pesquisa e extensão e que podem promover a descolonização dos currículos no

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BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS: NECESSÁRIAS INSURGÊNCIAS...

que se refere, sobretudo, à compreensão de si e do mundo, pois é uma possibilidade de permitir que
aquelas pessoas, das margens, com suas vidas ameaçadas, possam conquistar o direito à educação,
se emanciparem, se empoderarem, conforme temos constatado em um número cada vez maior de
concluintes dos cursos de Licenciatura do campo e que são quilombolas, caiçaras, indígenas, entre
outros e outras. Povos das águas, da floresta, indígenas que nos ensinam que: “há centenas de
narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam e nos ensinam mais do que
aprendemos nessa humanidade” (KRENAK, 2019, p. 30).

DESCOLONIZAR O CURRÍCULO PARA MELHORAR A COMPREENSÃO DE SI E DO


MUNDO

Em tempos atuais, mais precisamente desde 1 de janeiro de 2019, ou um pouco antes, em


outubro de 2018, a barbárie se instalou em nosso país e, dentre vários setores, a Educação foi
violentamente ameaçada e, por conseguinte, aumentou-se o número de sujeitos, das crianças aos
jovens, que se veem cotidianamente ameaçados, que sobrevivem na precariedade (ARROYO,
2019).

Retomo o que vivi na década de 1980 para tentar compreender o momento atual. Na minha
vida de formação política e ambiental, a presença de três pessoas foi fundamental e me inspirou
para pensar um curso de Biologia menos asséptico, que se dizia “neutro” e, desse modo, as leituras
e ações das práticas cotidianas na universidade foram promovidas a partir de Paulo Freire, Chico
Mendes e Betinho, que deixaram um legado para continuarmos na luta e esperança para resistirmos
sempre; para compreendermos que o conhecimento é plural, que a educação é política, e que o meio
ambiente só pode ser pensado na engrenagem social.

Se formos trazer essa pauta para o quadro atual em que estamos vivendo, eu diria:
precisamos manter a esperança para reexistirmos, ou como disse um dia desses o Celso Sanchez,
professor e pesquisador-militante da Educação Ambiental: “a contra-hegemonia se dá pelo afeto”.
Com ele, reafirmo que os três personagens supracitados formaram minha base política para a
questão ambiental e de universidade; com eles tive uma formação humanizada e que ainda me
permite hoje que seja humanizadora, capaz de enxergar e assumir o compromisso político e ético
quando estou na sala de aula conversando com futuros(as) professores(as) de Biologia e que
certamente ensinarão sobre biodiversidades.

Com eles, busco cotidianamente as “exigências-respostas éticas da educação e da docência”,


conforme mostra o subtítulo da obra de Arroyo (2019), quando trata sobre vidas ameaçadas. É com
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

esses(as) licenciandos(as) que resisto e insisto em ensinar o pensamento freireano, pois “se sou
professor de biologia, não posso me alongar em considerações outras, que devo apenas ensinar
biologia, como se o fenômeno vital pudesse ser compreendido fora da trama histórico-social,
cultural e política” (FREIRE, 1994, p. 78-79).

A universidade pública que estamos vivendo hoje, com precarização e todas as dificuldades
encontradas desde 1985, com a redemocratização do país, esse é o pior momento que a educação
pública e os projetos ambientais estão atravessando. A título de exemplo, citarei o curso que forma
futuros(as) professores(as) de Biologia: de que maneira estão inseridas as pautas ambientais que
incluem as comunidades tradicionais, sobretudo as indígenas, quilombolas e caiçaras, os povos da
água e da floresta? Onde esse povo aparece no livro didático que tem a BNCC como referência?

Como contemplar temas ambientais com o referencial freireano se temos um movimento


denominado “Escola Sem Partido”, de caráter conservador e retrógrado, cujo princípio é acabar
com a autonomia da escola e do(a) professor(a), não permitindo que se aborde política na sala de
aula e, ao mesmo tempo, isto está posto também na universidade? Como fazer para “sulear”, ou
seja, permitir contemplar uma pluralidade de produção de saberes e conhecimentos? O que defendo
neste texto é que o pensamento decolonial pode contribuir para que os sujeitos das comunidades
tradicionais não sejam apenas sujeitos da pesquisa ou de projetos de extensão, sobretudo no que se
refere ao meio ambiente, pois, ao tratarmos de biodiversidades, de cuidado de si e do outro, estas
comunidades, com seus grôs, por exemplo, são espaços onde se produzem conhecimento.

De maneira coletiva, precisamos contribuir para ensinar a ecologia de saberes, proposta por
Boaventura de Sousa Santos, incentivar a curricularização das escolas e universidades daqueles e
daquelas que vêm das margens, quilombolas, indígenas, das pessoas jovens e adultas do campo, da
cidade ou da periferia. Tal perspectiva é fértil para pensarmos na emergência potente da relação
entre a Educação Ambiental e Relações Étnico-Raciais, como o grupo RIZOMA tem apostado,
assim como os grupos de pesquisa liderados pela professora Michèle Sato, na Universidade Federal
do Mato Groso, e do professor Celso Sanchez, da Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro, que têm nos inspirado.

BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS: É PRECISO ESPERANÇAR!

Não é possível desistir! Coletivamente, precisamos contribuir para ensinar a ecologia de


saberes, proposta por Boaventura de Sousa Santos, incentivar a curricularização das escolas
daqueles e daquelas que vêm das margens, que possuem suas vidas ameaçadas: quilombolas,

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BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS: NECESSÁRIAS INSURGÊNCIAS...

indígenas, das pessoas jovens e adultas do campo, da cidade ou da periferia, além de uma efetiva
curricularização ambiental nos diferentes cursos da universidade.

Essa tem sido a necessária e urgente “militância” que tenho produzido nos últimos anos e
proliferado, sobretudo na sala de aula, na conversa com professoras e professores da educação
básica e no contato com as escolas no momento do Estágio Supervisionado.

Nesses anos de vida profissional na escola básica, na universidade, nos fóruns acadêmicos,
congressos e associações científicas, não dá mais para a Biologia, que é minha formação inicial,
encarar a Educação Ambiental de maneira romantizada, em que apenas os aspectos naturais, da
fauna e da flora são contemplados. É preciso não confundir Ecologia e Educação Ambiental; ensino
de Botânica ou Zoologia e Educação Ambiental, como está na BNCC.

É preciso ensinar nas escolas e na universidade que o que aconteceu nas cidades de Mariana
e Brumadinho não foi acidente, foi crime ambiental; que a demarcação de terras indígenas e
quilombolas não é conteúdo somente da alçada da Geografia, mas é também da Biologia, da
Sociologia, da Matemática, das Artes e outras disciplinas; e que, juntos e juntas, podemos criar,
inventar um trabalho e defini-lo como interdisciplinar.

É preciso ensinar que há alternativas. É preciso esperançar, mesmo! Reconhecermos que,


mesmo com uma pedagogia do oprimido, há também uma pedagogia da esperança.

É preciso resistência para reexistir, sim! Não é possível conviver com uma ameaça constante
em nossa alimentação, pois com oito meses de governo, foram liberados pelo Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento 57 produtos elaborados com agrotóxicos!

O Ministério do Meio Ambiente quase foi extinto, a Educação Ambiental foi parar no
Ministério do Turismo! A Secadi foi desmantelada e, com ela, foram embora todas as políticas
públicas de caráter social, de inclusão, da juventude negra, indígena, do povo do campo, das
florestas, das águas, LGBTIQ+ que, direta ou indiretamente, estão associados ao meio ambiente, à
educação e às universidades.

O título nomeado em um capítulo do livro da Marisa Vorraber Costa (2007) “a escola


poderia avançar um pouco no sentido de melhorar a dor de tanta gente”, foi uma entrevista que a
autora fez com Antonio Flavio Moreira, e, quando li essa frase, fiquei desestabilizado e ao mesmo
tempo encorajado para esperançar e assumir política e eticamente o papel de professor-pesquisador-
militante ou, como nos mostra Arroyo (2019), que para tratarmos das vidas ameaçadas é necessário
estarmos com as exigências-respostas éticas da educação e da docência.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

IDEIAS INSURGENTES PARA ADIAR O FIM DO MUNDO

Ao abordar as considerações finais deste texto, procuro me inspirar em um recente artigo


produzido (MELO; BARZANO, 2020) que tratou sobre “re-existências e esperança: perspectivas
decoloniais para se pensar uma Educação Ambiental Quilombola” e, com efeito, operar para
continuar divulgando as pesquisas produzidas no Rizoma, sobretudo com a intenção de pensar
insubordinadamente, com cuidado ético e estético; sem se preocupar com explicações, mas com
experimentações teóricas e metodológicas. No artigo supracitado, há uma agenda para futuras
pesquisas e, particularmente, para o presente artigo, pretendo contribuir com a aposta de uma
abordagem que considero crucial para se pensar a didática e a prática de ensino para cursos de
formação de professoras e professores: a descolonização dos saberes a partir da sabedoria da mulher
negra. Sim! É necessário criar epistemologias outras, diversas, plurais, que rompem com o
epistemicídio, conforme nos mostra Djamila Ribeiro (2019).

Em recente pesquisa concluída (MELO, 2019) acerca dos saberes da biodiversidade em uma
comunidade quilombola do território de Irecê, sertão baiano, tivemos o contato com uma mulher-
negra-quilombola: dona Dilza. A cosmovisão sobre meio ambiente e biodiversidades de dona Dilza,
possibilita-nos vislumbrar, realmente, uma outra maneira de se pensar as biodiversidades,
primeiramente, nomeando-a no plural e, além disso, é imperativo destacar o papel da mulher negra
como autora, promovendo sua emancipação, empoderamento e “epistemologias do sertão” (MELO,
2019).

Desse modo, apresento como proposta de temas emergentes para a formação de


professores(as) de Biologia, com enfoque na Educação Ambiental: ecofeminismo; formação de
professores(as) voltada para a educação quilombola; racismo ambiental; infância e juventude
ambientalista; ancestralidade; filosofia negra; ubuntu; solidariedade e pedagogia griô.

É bem possível que a leitora e o leitor desse texto devem estar estranhando a abordagem
desenvolvida, já que estão tão acostumados(as) com um teor mais “verde”, mais naturalista, mas
defendo que sejam coloridas. Empretecer o meio ambiente é uma possibilidade, bem como colori-lo
com as cores das diferentes etnias e movimentos sociais.

A aposta que se faz, esperançosamente, é de que tais temas contribuam para novas
epistemologias que estão emergindo com força e conseguindo romper, inclusive, com uma visão
equivocada de meio ambiente, pautada apenas nos aspectos biologizantes e antropocêntricos.

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BIODIVERSIDADES EM NOVAS EPISTEMOLOGIAS: NECESSÁRIAS INSURGÊNCIAS...

É possível apostar no incremento de insurgências e insubordinações capazes de promover


currículos descolonizadores desde a educação infantil à universidade, com currículos, didáticas,
práticas educativas cheias de vida, que promovem uma educação para o/no cuidado de todas as
formas de vida.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

ARROYO, Miguel. Vidas Ameaçadas: exigências-respostas Éticas da Educação e da Docência. Petrópolis: Vozes,
2019.

BARZANO, Marco A. L. Currículo das Margens: apontamentos para ser professor de Ciências e Biologia. Educação
em Foco, [s.l.], v. 21, n. 1. p. 105-124, 2016.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução n. 08, de 20 de novembro de 2012.
Parecer CNE/CEB n. 16 de 2012. Define as diretrizes curriculares nacionais para educação escolar quilombola na
educação básica. Diário Oficial da União: Brasília, DF, 20 nov. 2012.

CARVALHO, Isabel C. M. A dimensão ambiental na educação: avanços, recuos e descentramentos. In: GUIMARÃES,
Mauro. A Dimensão Ambiental na Educação. Campinas, SP: Papirus, 2015.

CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. 1. Artes de Fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

COSTA, Marisa Vorraber. A escola tem futuro? Rio de Janeiro: Lamparina, 2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1994.

GOMES, Nilma Lino. O movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis:
Vozes, 2017.

GOMES, Nilma Lino. Relações Étnico-Raciais, educação e Descolonização dos Currículos. Currículo Sem
Fronteiras, [s.l.], v. 12, n. 1, jan./abr. 2012.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do Mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

LARCHERT, J. M.; OLIVEIRA, M. W. de. Panorama da Educação Quilombola no Brasil. Políticas Educativas, Porto
Alegre, v. 6, n. 2, p. 44-60, 2013.

MELO, André Carneiro. Biodiversidade: Narrativas, diálogos e entrelaçamento de saberes da comunidade/escola em


um território quilombola do Semiárido Baiano, 2019. Tese (Doutorado em Ensino, Filosofia e História das Ciências) –
UFBA-UEFS, Salvador. 216f.

MELO, André Carneiro; BARZANO, Marco Antonio Leandro. Re-existências e esperança: perspectivas decoloniais
para se pensar uma Educação Ambiental Quilombola. Ensino, Saúde e Ambiente, [s.l.], 2020. no prelo.

REIGOTA, Marcos. A contribuição política e pedagógica dos que vêm das margens. Teias, Rio de Janeiro, v. 11, p. 1-
6, 2010.

SANTOS, Boaventura de S. Para Além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In:
MENESES, Maria Paula; SANTOS, Boaventura de S. (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez: 2010.

SANTOS, Boaventura de S. Pela Mão de Alice: o social e político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2001.

SATO, Michèle. Centro-Oeste presente para reconhecer o pretérito e celebrar o amanhã. In: GUIMARÃES, Mauro. A
Dimensão Ambiental na Educação. Campinas: Papirus, 2015. p. 15.

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA
DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

Maria Amélia Santoro Franco


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

A pedagogia, como prática social, é mais abrangente que uma prática educativa no interior
de uma escola. A pedagogia, assim percebida, é da ordem da totalidade. Essa compreensão da
pedagogia como práxis, como totalidade, implica reconhecer que a escola, como instituição social,
não pode dar conta sozinha de resolver/administrar toda a gama de contradições sociais que recaem
sobre ela. Os mecanismos de dominação são múltiplos e, muitas vezes, não são tão explícitos ou
visíveis. Pensar assim a pedagogia é pensá-la em uma dinâmica de múltiplas articulações,
contingenciada por uma dialética de opressão-resistência.

A pedagogia como prática da educação e da liberdade está continuamente mergulhada em


relações desiguais de poder, o que, entre outras coisas, lhe confere seu inexorável papel político e
ético. Assim, como se sabe, sua prática nunca será neutra e nem tão explícita. Desta forma, impõe-
se a leitura crítica de sua prática para identificar o lugar da construção de sua intencionalidade: a
favor dos que são oprimidos por lógicas de dominação; ou a favor dos dominantes que pretendem
assegurar seus privilégios e seus sistemas de opressão. Suas práticas estruturam-se para criar
possibilidades de resistências às opressões constituídas ou essas práticas se organizam para a
manutenção dos mecanismos que perpetuam as desigualdades?

Uma das características fundamentais da pedagogia crítica é a de ter como perspectiva a


conscientização dos sujeitos de seu lugar social, de modo que percebam o jogo de poder que se
configura à sua volta e possam atuar na perspectiva de sua libertação, de sua emancipação. Assim, a
pedagogia crítica escolhe atuar ao lado dos marginalizados, dos oprimidos, dos esfarrapados da
vida, como nos alertava Freire (1975).

Essa prática pedagógica crítica é urgente e necessária uma vez que as relações desiguais
produzem subordinações, opressões, silenciamentos, injustiças, relações autoritárias. Trabalhar
pedagogicamente, numa sociedade de relações desiguais, implicará sempre em estar ao lado dos
mais fracos, dos menos atendidos, a favor de práticas institucionais que operam contra as condições
opressivas. Essas são as condições de uma pedagogia crítica que, como tenho realçado, deveriam
ser a própria condição da pedagogia: toda pedagogia, para ser eticamente sustentável, deverá ser
crítica, nessa perspectiva que discutirei no texto e que já reafirmei em artigos anteriores (FRANCO,
2015; 2016; 2017a; 2017b; 2017c).

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

A pedagogia, distante do caráter crítico, é uma tecnologia social de manipulação de


intervenções autoritárias e des-humanas, a favor da reprodução do status quo, sem considerar as
contradições que se instalam em relações desiguais de poder.

Trabalhar pedagogicamente implica esclarecer a nossa posição frente ao mundo: a favor de


quem nos colocamos ao empreender um trabalho pedagógico? Os pedagogos críticos, em
reconhecimento às situações desiguais de poder, precisam atuar ao lado dos despossuídos, agindo
contra a ideologia que reproduz as condições opressivas e lutar a favor de práticas que desocultem
as opressões.

Esta é a base da pedagogia crítica: perceber as relações desiguais, conscientizar os


envolvidos dessas relações e contribuir para a superação das condições de opressão, por meio de
práticas emancipatórias.

No entanto, como nos alerta Freire, essa prática não é simples, porque a sociedade vive no
frágil equilíbrio entre contradições. O trabalho crítico é um trabalho contra-hegemônico. Contra
esse trabalho há, como nos lembra Apple (2014), outras pessoas, outros grupos e outras instituições
que pensam e agem de modo diferente; atuam a favor da reprodução das relações capitalísticas, da
divisão social de classes tal como está; ao lado de pedagogos críticos por certo se encontram os
neoliberais, os neoconservadores, os movimentos religiosos reacionários e autoritários, ou seja, no
fundo, há uma disputa contínua sobre diferentes versões de “democracia” (APPLE, 2014, p. 107).

Esses posicionamentos têm repercussão nas práticas pedagógicas definindo o como, o


porquê e o para que se ensina. Mais que isso: é preciso identificar a perspectiva pela qual o
fenômeno do ensino é compreendido. Ensina-se e aprende-se? Ou apenas transmitem-se conteúdos
alheios? Em que condições ocorre o ensino? Como se vivenciam as práticas? Como tratamos,
percebemos, trabalhamos com as diferenças? São questões cruciais à prática pedagógica.

Esse artigo pauta-se em pesquisas anteriores e toma como questão de pesquisa: quais os
princípios e possibilidades de uma pedagogia crítica em tempos neoliberais? Como a pedagogia
crítica pode fazer emergir práticas insurgentes, especialmente na escola pública?

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

MOVIMENTOS PEDAGÓGICOS INSURGENTES E RESTAURADORES

Em (2015), foi-me solicitado realizar o verbete “antipedagogismo”1e para tanto fui


pesquisar, na história da pedagogia, a dialética entre os movimentos de pedagogismo e de
antipedagogismo. Fui percebendo que o pedagogismo seria o exercício autoritário de uma
concepção positivista da pedagogia como reprodução e o antipedagogismo seria caracterizado por
resistências e movimentos revolucionários em prol de uma pedagogia a favor dos menos
favorecidos. Assim, pude compreender que os movimentos dialéticos de pedagogismos e
antipedagogismos têm construído a história da pedagogia, tanto no mundo quanto no Brasil.

O sentido de pedagógico como reflexão, que impregna e configura a concepção de


pedagogia, somente pode ser assim caracterizado a partir do século XVII. A partir dos gregos,
passando pela Idade Média e pelo Renascimento, ainda não há pedagogia no sentido estrito: as
sociedades tradicionais educavam os povos, mas não estabeleciam reflexão pedagógica
(GAUTHIER; TARDIF, 2010). Portanto, não há pedagogismos, nem antipedagogismo, assim
expressos, antes do século XVII.

A Reforma, através do protesto de Lutero, foi talvez o primeiro movimento contra o


pedagogismo doutrinário da igreja católica. O movimento reformista irá, por sua vez, desencadear
processos na igreja católica com vistas à construção de caminhos pedagógicos para a evangelização,
através da formação da comunidade dos jesuítas. Neste sentido, o jesuitismo pode ser considerado
também um movimento antipedagogista, combatendo o avanço do protestantismo da época. Por
outro lado, o protestantismo já surgiu como um outro antipedagogismo. Ambos combatem e lutam
por seus propósitos e, nesse embate, a escola sai ganhando o mundo e se expandindo por diversos
espaços e tempos.

Por entre embates, tensões e contradições caminhará a pedagogia, de um lado consagrada


por Comenius e sua obra Didáctica Magna e, de outro lado, caminham os jesuítas, que, após 30
anos de prática, constroem sua mais conhecida publicação a Ratio Studiorum. A estrutura das
práticas pedagógicas iniciais, estruturadas nestes textos compõem o que se denomina como
tradicional na prática pedagógica: o método; a ordem; a organização e a disciplina.

Pode-se afirmar que no embate entre católicos e protestantes quem sai ganhando é o
movimento pela escolarização do povo. Essa expansão de alunos em diferentes escolas traz à tona o

1
FRANCO, Maria Amélia do Rosário Santoro. Verbete: antipedagogismo. REVEC: Revista de Estudos Culturais,
[s.l.], v. 2, p. 99-110, 2015.

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

problema pedagógico essencial: como, para quê, o quê e para quem ensinar? Para resolver a essas
questões recorre-se a modos de pensar e fazer a educação; portanto, recorre-se a uma pedagogia!
Recorre-se ao pedagógico como processo de gerir a educação dos povos.

Deve-se destacar que, no século XVII, a tensão entre os projetos diferentes entre católicos
(pedagogismo) e protestantes (antipedagogismo) produziu uma revolução nas incipientes práticas
pedagógicas. Pode-se dizer que a prática escolar foi organizada nesse século e teve em Comenius
um grande protagonista, contrapontuado por movimentos da sociedade católica e dos jesuítas em
decorrência.

A educação se expandiu, os caminhos da escola se ampliaram e novos movimentos se


colocaram em contrapontos aos pedagogismos da época. Assim, já no século seguinte, no século
das luzes, ou seja, século XVIII, um século onde a razão se colocou como protagonista da história,
produzindo transformações especialmente nas artes, ciência e técnicas surgiu Jean Jacques
Rousseau realizando uma verdadeira revolução na pedagogia da época, ao colocar a criança no
centro da questão pedagógica e ao pontuar a política como fundamento da pedagogia.

Seria Rousseau um novo antipedagogista? Dentro da perspectiva que aqui estamos


analisando, Rousseau foi um antipedagogista que se contrapôs à pedagogia da época e fez propostas
e teorias que impregnaram a história da pedagogia. Suas propostas pedagógicas favoreceram
movimentos de cisão: razão sobrepondo-se à fé e a grande questão que ele coloca para a educação é
a de que a razão precisa ser desenvolvida e incorporada à existência. O exercício da razão não
ocorre espontaneamente; há a necessidade de buscar instrumentos que a desenvolvam, assim, as
práticas educativas serão pensadas na perspectiva de possibilitar uma nova forma do sujeito postar-
se ao mundo: não mais de forma contemplativa, mas de forma ativa. Como afirmam Gauthier e
Tardif (2010, p. 155), a instrução, nesse momento histórico, não consiste apenas em aprender a ler
para ter acesso às Escrituras Sagradas, trata-se de instruir-se para conhecer o mundo e atuar sobre
ele. Rousseau contrapõe-se ao pensamento de seu tempo, transgredindo um modo único de pensar a
sociedade e aprofundando a crítica ao estabelecido. Foi uma atitude contra o pedagogismo
disciplinar reinante, contra a prática pedagógica dos jesuítas. Conforme Cambi (1999, p. 347),
Rousseau reprova com veemência os jesuítas e seus colégios; reprova a artificialidade de seus
princípios pedagógicos, a educação intelectualística e livresca, autoritária e pedante, bem como
repudia a forma com que habituavam as crianças a se comportarem como adultos, alijando-as do
contato com os pais e a natureza. A pedagogia nunca seria a mesma após Rousseau o qual ofereceu
à tradição pedagógica alguns novos mitos (CAMBI, 1999), tais como o protagonismo da infância e

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

a não diretividade na ação educativa. Esses novos mitos serão, com o tempo, reinterpretados através
dos tempos e produzirão novos pedagogismos e novas reações antipedagogistas.

Rousseau e Comenius servem para exemplificar o papel pedagógico e profícuo dos


antipedagogismos nas transformações das práticas e subjetividades pedagógicas contemporâneas.

NOVAS INSURGÊNCIAS PEDAGÓGICAS NO MUNDO CONTEMPORÂNEO

O mundo contemporâneo, aqui identificado a partir do século XX, traz diferentes


configurações propostas pela ciência pedagógica, num jogo dialético e contínuo de múltiplas
determinações. De um lado, caminha para a estruturação do primeiro estatuto científico à
pedagogia, realizado pelos discípulos de Herbart, especialmente Ziller e Rein, bem como as
diversas reações que colocam em discussão, o pressuposto positivista à pedagogia (FRANCO,
2001). De um lado, o forte positivismo impregna a pedagogia, mas há reações antipositivistas
através de diferentes movimentos “ativistas”, produzindo duas fortes vertentes à epistemologia da
Pedagogia: a) a organização da pedagogia pragmatista-utilitarista com Dewey, ex-aluno de Ziller e
b) a pedagogia dialética, introduzindo as bases de uma filosofia da práxis.

Neste contexto complexo, de início de século XX, aqui apenas sinalizado, surgem diversas
experiências educacionais inovadoras, que trazem em seu bojo o conceito de educação ativa, dando
guarida a uma nova concepção da infância, já sinalizada em Rousseau, reconhecendo a
inseparabilidade de conhecimento e ação; teoria e experiência, e fundamentando-se
ideologicamente num conceito de democracia e progressismo, que pressupõe a necessidade de
participação ativa do cidadão na vida social. A decorrência da proposta do ativismo em educação
fará surgir duas novas e fortes tendências pedagógicas que estabelecerão durante todo o século XX
movimentos dialéticos entre pedagogismos e antipedagogismos:

a) De um lado a pedagogia reinventando-se entre o pragmatismo e o utilitarismo, baseada em


uma filosofia da ação; ou seja, a pedagogia pragmatista-utilitarista é desenvolvida por
Dewey e difundida em grande parte do mundo ocidental;

b) De outro lado, a pedagogia dialética, incorporando o caráter histórico-crítico, fundamentada


numa filosofia da práxis, tendo suas origens epistemológicas fundadas em Marx e Engels.
(FRANCO, 2001). Surge uma pedagogia dialética essencialmente oposta a uma pedagogia
metafísica (essencialista ou existencialista) e que adquire o caráter de uma pedagogia social,

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

política, voltada à construção do homem coletivo, fruto e produtor das condições sócio-
históricas.

No auge do positivismo francês, cria-se um forte pedagogismo em torno dessa concepção,


mas vários pensadores já se opõem à sua influência e inspirados em Leibniz, Hegel e Schelling,
tentaram renová-lo. Assim, Ravaisson enaltece a atividade livre e criadora do pensamento;
Renouvier realça que entre causa e efeito de um fenômeno, princípio básico do positivismo, há um
espaço de liberdade e que cada fenômeno pode ser visto como um ato livre. Boutroux faz a crítica
da ciência, realçando a relatividade de cada fenômeno social e critica o formalismo da ciência
empírica, que deixa escapar a realidade viva e concreta (CAMBI, 1999).

Pode-se dizer (FRANCO, 2001) que a pedagogia dos anos 1950, até as revisões políticas,
sociais e epistemológicas decorrentes do movimento de 1968, foi marcada por duas características:
a) crescente processo de sua cientifização, com mesclagens variadas, incluindo influências do
evolucionismo, do tecnicismo, das novas pesquisas psicológicas, do behaviorismo, entre outras; b)
aprofundamento de seu caráter político-ideológico, podendo-se até dizer que a pedagogia pós-
guerra alinhou-se também em dois blocos e foi intérprete e protagonista de duas diferentes
concepções de mundo.

A pedagogia do Ocidente esteve mais envolvida na defesa dos princípios de uma democracia
liberal, na busca de condições favorecedoras da reorganização do capitalismo, na organização de
sistemas eficientes de ensino e na suposta pretensão do controle dos processos de cognição e
aprendizagem. A raiz desta pedagogia é o ativismo pedagógico, especialmente baseada na
pedagogia deweyana, com retomadas e mesclagens isoladas de pedagogias religiosas, até
metafísicas ou românticas, em processos contínuos de pedagogismos e antipedagogismos.

A pedagogia do Leste esteve mais voltada a se estabelecer como pedagogia estatal, baseada
inicialmente nos estudos de Marx, mas com profundas adaptações e revisões em diferentes regiões e
pautadas em diferentes interesses, caso de sua presença em países de terceiro mundo, que assumem
feições bem específicas, como em Cuba de Fidel ou mesmo a “Pedagogia Utópica” de Suchodolski
em Varsóvia e, logo a seguir, no Brasil, a Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire.

Os movimentos de 1968 marcaram um profundo antipedagogismo contra a pedagogia da


época e este momento marcou o mundo definitivamente: reviraram os sustentáculos da cultura
concebida, contorceram os pilares da sociedade, sacudiram as ideologias, alteraram o equilíbrio de
forças entre sociedade adulta e juvenil, escancararam os argumentos contra os mecanismos
repressores da sociedade, quer de extrema direita ou de extrema esquerda e anunciaram novas
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possibilidades libertadoras à sociedade e emancipatórias ao homem. Foi um grande momento ante a


pedagogia considerada como repressora e autoritária.

Sobre o antipedagogismo de 1968, Cambi (1999) afirma que a pedagogia como saber
institucionalizado foi desmontada em seus condicionamentos ideológicos, desvirtuada de seus
processos, atitudes e valores autoritários realçando ser a mesma um saber sempre engajado,
alinhado a uma perspectiva de formação do homem, desta forma, deve-se alinhar pela emancipação
e libertação dos homens.

Várias decorrências ocorreram, após 1968, destes movimentos entre pedagogistas e


antipedagogistas, que fizeram balançar as certezas pedagógicas até então vivenciadas. Considero
que talvez a mais profícua para a educação e a pedagogia, serão as decorrências dos estudos da
escola de Frankfurt, além das pedagogias de autogestão na França, especialmente com Georges
Lapassade; das propostas de desescolarização de Ivan Illich e da valorização da pedagogia do
oprimido com Paulo Freire. A pedagogia ocidental vai adquirindo uma diferente feição, à medida
que começa a incorporar as contribuições da Psicologia Cognitivista (especialmente, nos anos 50),
as contribuições de Bruner, Bloom, Gagné e mais tarde, com outro tipo de influência, através das
contribuições de Ausubel, Piaget, Vygotski, Wallon, Leontiev.

Os estudos de psicólogos teóricos do Behaviorismo, também impregnam a pedagogia da


época: inicialmente, Thorndike, depois Skinner e suas famosas “máquinas de ensinar” que traduzem
o espírito da pedagogia da época. Este momento será marcante à identidade da pedagogia da época:
ela se fortalecerá como pedagogia da instrução. A educação identifica-se com processos de
organização da instrução e ela se transformará em disciplina científica operativa. A tecnologia
acrítica, entusiasmada, parcial, bane os processos educativos, criativos, políticos, transformadores.
É um novo e crescente pedagogismo: o excesso de tecnicismo que neste momento se acelera e que
terá, também no século XXI, feições bem específicas fundamentadas em perspectivas do
neoliberalismo. É preciso formar máquinas que acertem as boas respostas, não mais é preciso
formar consciência ou compromissos com a humanidade. Afinal, a humanidade passa a ser vista
como conquista de tecnologia!

RACIONALIDADES NA CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO: A TÉCNICA E/OU


REFLEXÃO?

O crescimento de novos significados e novas representações das finalidades da educação,


que supervalorizam a organização da instrução e subestimam os destinos e os valores educativos,

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

apequenam e alteram a identidade da pedagogia, fazendo-a abandonar seus ideais político-


transformadores e encerrando-a nas salas de aula, onde seu papel passa a ser o de racionalizar ações
para qualificar a eficiência do ensino, no sentido instrumental. Talvez seja esse o grande embate
entre pedagogistas, acirradamente tecnicistas e a outra tendência, humanista e formativa a funcionar
como antipedagogismo.

RAÍZES BRASILEIRAS DA PEDAGOGIA: POR ENTRE RESISTÊNCIAS E INSURGÊNCIA


AOS PEDAGOGISMOS

Durante todo o período colonial, imperial e mesmo no início do período republicano,


encontramos no Brasil a presença de uma pedagogia filosófica, utilizada pelos jesuítas, da
Companhia de Jesus. A orientação pedagógica dos jesuítas, fundamentada nos princípios da
escolástica, era extremamente livresca e autoritária. Fundada na concepção essencialista do homem,
pautava-se como prática educativa, pela memorização, pela repetição de exercícios e era totalmente
dissociada dos problemas da realidade brasileira. A educação empreendida pelos jesuítas era
destinada, especialmente, a dar cultura geral, sem qualquer preocupação com a qualificação ao
trabalho, com a pesquisa ou com a qualificação de professores (FRANCO, 2001). Era uma
pedagogia que, em termos de intencionalidade social, atendia aos anseios de uma sociedade elitista,
escravocrata, aristocrática, não podendo, conforme Fernando de Azevedo (1937, p. 24) “contribuir
para modificações estruturais na vida social e econômica do Brasil, na época”.

Essa influência marcou muito a pedagogia brasileira e foi aos poucos transformada,
absorvendo as mudanças sócio-culturais-políticas do país e integrando outras tendências, em
especial, após 1930, com o Movimento da Escola Nova, no bojo, principalmente, do pragmatismo
de Dewey e das tendências tecnológicas posteriores, a pedagogia brasileira passou a gravitar em
torno da concepção técnico-científica; movimentos pendulares entre pedagogismos e
antipedagogismos.

Esta concepção impregnou bastante a prática pedagógica brasileira e configurou quase que
toda estruturação legal-administrativa e pedagógica dos cursos de pedagogia.

Aos poucos, a pedagogia brasileira vai superando a visão essencialista da natureza humana e
incorporando uma concepção centrada na questão da existência, da vida e da atividade.

Percebe-se que são influências advindas, quer do pragmatismo de Dewey, quer de uma
concepção mais romântica, na linha de Pestalozzi, Fröebel, Bergson e sem esquecer da influência da
psicologia experimental, muito presente na realidade brasileira. Significa dizer que outros
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

elementos começaram a compor o pensamento de educadores e mais que tudo é importante realçar
que a pedagogia começou a se psicologizar, a se sociologizar, a se biologizar. Deixou de ser vista
como ciência unitária, mas também não passou a ser vista como ciência integradora.

No bojo deste clima, ou grande produtor deste clima, que é conceitual e político
essencialmente, emerge um forte movimento entre educadores brasileiros, bastante antipedagogista,
no sentido que aqui realçamos, com vistas a um processo de renovação das práticas escolares,
conhecido como “Manifesto dos Pioneiros da Educação” e que teve seu auge, enquanto concepção,
em 1932 quando redireciona a epistemologia da pedagogia, no sentido do pragmatismo utilitarista
de Dewey.

Este movimento ganhou força e chegou mesmo a impregnar o espírito da época, com
repercussões históricas marcantes, porque, de alguma forma, atendia aos anseios da classe política
dominante. Saviani (1983) referenda este ponto de vista ao dizer que a escola era vista como
elemento de concretização da política liberal da classe dominante, como a redentora da
humanidade, para funcionar como a esperança do povo. À medida que esta escola é percebida pela
classe popular como não atendendo a estes anseios, usa-se o argumento, no discurso oficial, de que
é preciso reformular a escola. Assim a Escola Nova passa a ter um espaço de atuação e visibilidade,
consentido e incentivado pela classe política e classe social dominante. Diz o autor: “a Escola Nova
surge, pois, como um mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante, hegemonia
essa ameaçada pela crescente participação política das massas, viabilizada pela alfabetização
através da escola universal e gratuita” (SAVIANI, 1983, p. 31). Portanto, nas mediações entre
antigos pedagogismos e novos antipedagogismos. Com o advento do escolanovismo as
preocupações educacionais abandonaram o terreno do político e se abrigaram no âmbito técnico-
pedagógico, com isto desmobilizando as forças populares, que se organizavam, e servindo de
instrumento à manutenção da hegemonia da classe dominante.

Este clima foi produzindo uma pedagogia que, no dizer de Libâneo (1999, p. 14), estaria
assumindo “ora uma conotação instrumental de ênfase no caráter técnico-administrativo da
educação, ora conotação de operacionalização metodológica” e ainda, mais sério que isto, é que os
estudos pedagógicos estariam sendo identificados apenas para referirem-se à formação de
professores, ou para organizar métodos e técnicas de ensino. Perdeu-se o aspecto fundamental da
pedagogia como reflexão, como orientadora dos espaços educacionais para formação de cidadãos,
como crítica de ações educacionais.

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

Foi neste contexto que os cursos de pedagogia foram criados, em 1939, para formar o
professor de cursos normais, bem como o bacharel, para exercício dos cargos técnicos de educação.
Não se pode esquecer que 1939 foi um momento político de ditadura brasileira...

No Brasil, na confluência do contexto político-cultural, que antecedeu ao golpe militar de


1964, com a expansão de movimentos educacionais de base e o novo papel exercido pela Igreja
Católica, surgiu um importante movimento epistemológico da pedagogia brasileira: A Pedagogia do
Oprimido, com Paulo Freire, que carrega as características de uma pedagogia crítico-emancipatória,
embora não exclusivamente. Esta pedagogia foi a grande e mais importante reação ao
pedagogismo vigente em meados do século XX quando esclareceu e opôs-se literalmente ao que
chamou de educação bancária a uma outra forma de educar e ensinar denominada de educação
libertadora. Esta pedagogia veio conferir um novo panorama à epistemologia pedagógica,
mesclando diversas concepções filosóficas, carregando uma proposta eminentemente política, não
conivente com a da ideologia da classe dominante. Mesmo tendo sido um processo precocemente
abortado pelo golpe militar de 1964, suas raízes estavam fincadas, e germinaram em outros espaços
e tempos.

O trabalho pedagógico de Paulo Freire com a educação de adultos carregou um grande


rompimento epistemológico com a intencionalidade da educação vigente no Brasil na época. Até
então, pressupunha-se a educação como uma forma de encaminhar os educandos à cultura letrada
da elite e Paulo Freire recolocou esta situação, no sentido de alertar que a educação tem por
finalidade a humanização do próprio homem e deve ser um instrumento que permita ao educando
ressignificar sua humanidade, redescobrir seu lugar no mundo, amalgamar-se com sua cultura, dela
se fazer um elemento e transformar essa cultura à medida que a apreende e se transforma como
elemento da cultura. Portanto, a educação passou a ser vista não mais como instrumento que
devesse propiciar a posse de uma cultura estranha e construída por outros, mas um processo de
fazer dos educandos, homens em plenitude com seu papel de produtor, interpretador de cultura e
capaz de apreender e construir cultura. Enfim, nova tensão pedagogista/antipedagogista: a educação
se destina a formar homens ou a dotá-los de conhecimentos previamente selecionados e julgados
como sendo os necessários?

Está certo que Paulo Freire não descarta a importância da cultura letrada, no entanto é uma
questão de encarar o fenômeno da relação homem-mundo de maneira diferente: antes de ser método
e técnica de transmissão, a educação deve ser um ato político, que organiza a intencionalidade do
ensino, a partir do sujeito, visto sempre em seu coletivo social. Paulo Freire não desconsiderava o

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

papel da informação, mas considerava que as informações de nada servirão se, paralelamente ao ato
de conhecer, o sujeito não criar uma “nova teoria do conhecimento” que será a matriz de um novo
quadro interpretativo, que irá permitir ao aluno reelaborar seus conhecimentos dentro de uma nova
ótica, a ótica do sujeito.

Em 1958, no Congresso Nacional de Educação de Adultos, Freire colocava que o processo


educacional da alfabetização de adultos deveria firmar-se na consciência da realidade cotidiana e
jamais reduzir-se à leitura de letras e palavras. Sua proposta passou a ser um grande divisor de
águas frente a uma educação que, ao se tecnificar, supunha-se neutra, mas era opressiva e elitista e
servia para a manutenção das tradições arcaicas e discriminatórias, secularmente vigentes no país.

Vários embates enfrentou Paulo Freire ao combater vários positivismos arcaicos e


arraigados na cultura brasileira: frente ao peso do ensino verbalista decorrente dos estudos de
Herbart, ele propôs uma teoria do conhecimento que buscou a mediação entre sujeito e cultura;
frente ao ativismo da escola deweyana, ele propôs uma ação transformadora do sujeito e da
realidade; frente à histórica separação entre teoria e prática, sempre reafirmada pelos teóricos
positivistas, ele propôs a práxis; frente às aulas dirigidas por discursos e narrativas, ele sugeriu o
diálogo; frente ao conformismo e adaptação ao social, ele proporá a conscientização; contra a
pedagogia do colonizador que instrumentaliza os alunos para bem servirem ao sistema, ele propôs a
pedagogia do oprimido, fazendo do aluno um sujeito histórico.

O pensamento de Paulo Freire carrega diversas nuances de variadas tendências filosóficas.


Ele próprio diz: “minha perspectiva é dialética e fenomenológica”, porém, seu próprio pensamento
sofreu evoluções que são hoje bastante analisadas no cenário mundial. Schmied-Kowarzik (1983, p.
69) escreve que Freire, ao entrelaçar temas cristãos e marxistas, retoma a relação originária entre
dialética e diálogo, definindo a educação como a experiência dialética da libertação humana.

A obra de Freire no Brasil foi também bruscamente interrompida, mas teve diversas
continuidades no mundo, demonstrando sua pertinência como fundamento de uma pedagogia que,
aliando ciência, arte e política, influenciou outras áreas do saber e apresentou diretrizes que foram
profundamente utilizadas por vários trabalhadores sociais em suas práticas: filósofos, terapeutas,
médicos, cientistas. Sua obra prenunciou um tratamento interdisciplinar das ciências, enriquecendo
o trabalho de educadores com novas formas de pesquisa, como a pesquisa participante,
demonstrando que a pedagogia pode ser uma ciência articuladora de saberes e também instrumento
fundamental, essencial, à emancipação da humanidade. Mostra sua obra que o antipedagogismo é

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

uma atitude de renovação e transformação, porque se organiza como pensamento crítico e como
prática ideológica.

POR UMA PEDAGOGIA DECOLONIAL/INTERCULTURAL

De acordo com Santos (2009), um projeto educativo emancipatório precisa considerar as


condições do multiculturalismo, inerentes à sociedade globalizada, além de uma radical mudança de
racionalidade na veiculação do conhecimento. O autor propõe substituir a “aplicação técnica” da
ciência que, na racionalidade moderna, pretendeu converter todos os problemas sociais e políticos
em problemas técnicos excluindo a possibilidade de consideração dos aspectos humanos nas
soluções científicas e deveríamos optar pela “aplicação edificante” da ciência, na qual o
conhecimento é sempre usado em situações concretas e quem o manipula está “existencial, ética e
socialmente comprometido com o impacto da aplicação” (p. 22).

Concordando com o autor (SANTOS, 2009), acredito que o principal projeto político do
pensamento pedagógico, hoje, será o da inclusão do sujeito nas práticas pedagógicas, resistindo ao
avanço da despersonalização das práticas educativas e insistindo nas práticas interculturais que
poderão contribuir para novos entendimentos coletivos e culturais. Essa, talvez, seja a principal
insurgência pedagógica: resistir às práticas neoliberais que excluem e despersonalizam o sujeito e
insistir nas práticas inclusivas, dialogais, participativas.

Resistir ao ensino de um lado só, resistir ao ensino como doutrinação tecnológica, resistir às
práticas que colocam todos em competição com todos e ousar buscar práticas de solidariedade, de
partilha de conhecimento; de forma que as perspectivas interculturais e inclusivas possam ser
incorporadas, transformando-se em políticas, culturas e práticas assumidas/vivenciadas pelos
sujeitos envolvidos no processo educativo.

A insurgência demanda inovar nos processos e práticas cotidianas escolares. Candau (2012)
realça que a construção de práticas socioeducativas na perspectiva da interculturalidade exige
posicionamentos novos frente às dinâmicas habituais que persistem nos processos educativos
escolares, que são muitas vezes padronizados e homogeneizados, desconsiderando as
especificidades dos contextos socioculturais dos sujeitos que deles participam. Práticas
interculturais favorecem dinâmicas participativas, processos de diferenciação pedagógica e
utilização de múltiplas linguagens que estimulam a construção coletiva (CANDAU, 2012, p. 246).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

É preciso repensar práticas pedagógicas que carreguem a contra-hegemonia de muitos


séculos de dominação pela escola. Precisamos que as escolas resgatem e construam espaços de
questionamento; de diálogos formativos; de ressignificação da cultura escolar, de partilha de
significados e de um currículo que expanda e fortaleça as oportunidades emancipatórias.
Esclarecimentos críticos, em vez da tutela da informação; práticas de convivência construtiva e
dialógica, em vez de mecanismos de reprodução do saber, de disciplina castradora. Que todos na
escola construam a capacidade de falar pela própria boca, de pensar pelos próprios parâmetros e de
dialogar para a construção de novos saberes. É preciso fazer da educação escolar um programa
deliberado de resistência, de consciência e de formação de humanidade.

RESISTINDO E CONSIDERANDO

Alguns princípios referendam e marcam meus trabalhos com a pedagogia crítica:

a) A escola pública é uma condição para o exercício e vivência dos ideais democráticos e
universais. Como tal, deve ser considerada como um direito de todos, como estruturante das
relações sociais e políticas e um espaço tempo de vivência plural, para além e aquém das
desigualdades sociais, culturais, éticas; um lugar de reconhecer, cuidar, apropriar-se do patrimônio
cultural de nossos ancestrais. Assim realço: é a ideia de escola, o conceito de escola precisa ser
restaurado, de forma a dar condições para as insurgências necessárias à prática pedagógica.

b) Decorre do princípio anterior e talvez seja consenso: A concepção de um espaço público,


laico, gratuito e de convivência plural; espaço de formação de possibilidades, acessível a todos e
com todas as condições de garantias de co-construção do saber produzido, em múltiplas leituras e
interpretações que permitem a cada sujeito apropriar-se de suas concepções de mundo em
articulação com seu grupo social e com o momento presente. Uma escola, como espaço público,
que atinja os objetivos de instrução e de formação para todos. Uma escola que alfabetize para as
letras, para os números, para as atitudes sociais e coletivas, para as emoções, para a convivência
solidária e coletiva; para a sustentabilidade.

c) A educação não pode ser concebida, tratada, compreendida pela lógica do mercado.
Educação é direito e não mercadoria. Como direito deve ser pública, laica e obrigatória. Como
dever carece de incluir a todos e ofertar mecanismos, processos e agenciamentos para que todos
tenham no espaço escolar as condições de bem viver e de bem desenvolver seu direito à cidadania.

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PEDAGOGIA CRÍTICA: A RADICALIDADE DA DIALÉTICA DOMINAÇÃO-RESISTÊNCIA

d) A escola deve articular-se para a organização de um projeto educativo, com práticas


pedagógicas que permitam a emancipação dos sujeitos, desmascarando projetos de dominação
cultural que travestidos de naturalidade e neutralidade, impedem a plena vivência dos direitos
fundamentais e produzem uma leitura única do mundo. Os diferentes lugares de fala precisam estar
presentes, renovando e recriando subjetividades coletivas.

e) Os conhecimentos trabalhados/construídos na escola precisam impregnar-se das marcas


pessoais dos sujeitos. Para isso, as práticas pedagógicas precisam transmudar-se em processos de
conscientização/problematização e de autonomia intelectual. É preciso que os princípios
pedagógicos freireanos adentrem a práxis escolar.

f) A pedagogia e a didática não podem estar a serviço da exclusão, mas sim ao lado de
projetos e práticas sustentáveis, solidárias, emancipatórias, que desenvolvam consciência dos
direitos e deveres; do lugar social de cada um; da necessária premência da vida coletiva.

Assim, proponho uma luta pedagógica de resistência/insurgência através da pedagogia


crítica insistindo em espaços para a emergência de cada sujeito nas práticas pedagógicas, evitando
sua subjugação na torrente da homogeinização e padronização de modelos e formas de ensinar e
pensar; a busca de práticas pedagógicas que atuem a favor do esclarecimento, da criatividade e da
convivência entre sujeitos; práticas problematizadoras que induzam à pesquisa e à investigação do
cotidiano, incentivando os processos de pensamento, autonomia intelectual e de reflexão coletiva.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

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CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.

CANDAU, Vera Maria. Didática crítica intercultural: aproximações. Petrópolis: Vozes, 2012.

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FRANCO, Maria Amélia Santoro. A Pedagogia como ciência da Educação. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora
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pedagogia crítica. Revista Política e Gestão Educacional (on-line), Araraquara, v. 21, n. 2, p. 964-978, nov. 2017b.

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[s.l.], n. 2, p. 10-18, 2009.

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AS INFÂNCIAS DA DEMOCRACIA E A DEMOCRACIA
(ATRAVÉS) DA INFÂNCIA

Renato Noguera
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

Um ensaio especulativo a respeito das relações entre democracia e infância traz alguns
desafios. Quais são as possibilidades de um breve estudo preliminar a respeito das relações entre
conhecimento e democracia, enfatizando emancipação e prática participativa em contextos
educacionais? Nós vamos partir de uma hipótese: a infância como um modo de conhecimento. A
realização da democracia em toda a sua radicalidade – aqui entendida como um regime político que
estende os direitos de participação e deliberação a todas as pessoas de uma sociedade – só se dá
quando todas as pessoas se relacionarem com o mundo de modo infantil. Antes de desenvolvermos
essa conjectura, vamos apresentar panoramicamente um pouco das narrativas sobre a democracia,
destacando o que aqui denominamos como as duas experiências mais antigas de poder político
democrático. De um lado, a bastante conhecida Atenas-Grécia Antiga/Europa. De outro, o antigo
Reino do Congo/África.

A proposta deste estudo em caráter introdutório é articular esse conceito polissêmico de


democracia com as duas bases históricas, analisando suas relações com a infância. Aqui, o que
denominamos de “infâncias de democracia” é uma alusão às suas bases, aos seus princípios e suas
histórias. Porém, vale advertir que não faremos uma genealogia longa e profunda. Nós vamos trazer
à luz duas experiências históricas que são, uma mais do que a outra, como registros de regimes
democráticos na antiguidade. De um lado, dentro do complexo cultural da Hélade, isto é, do mundo
grego; encontramos a Cidade-Estado de Atenas que se organizava através de uma democracia
direta. Nas palavras de Lísias, “foram os atenienses os únicos a derrotar a oligarquia e instituir a
democracia, pois consideravam que a liberdade de todos constitui a maior concórdia” (LÍSIAS,
2007, p. 5). Neste contexto, conforme as palavras de Lísias, a liberdade de todos cidadãos passa
pela concordância, pelo acordo em tomar decisões políticas. Vale lembrar, tal como Nicole Loraux
disseca longamente em Invenção de Atenas, foram os próprios atenienses que produziram uma
“teoria propriamente democrática” (LOURAX, 1994, p. 13) sobre a Cidade-Estado grega. O modo
operacional era através de um sistema de assembleias com poder de decisão e deliberação políticas.
A participação da vida pública era aberta a todos cidadãos. É importante frisar que a cidadania era
restrita aos homens maiores de 18 anos que possuíssem mãe e pai naturais de Atenas. A democracia
ateniense era marcada por elementos de exclusão, mulheres em qualquer circunstância não tinham
acesso à cidadania, homens estrangeiros estavam impedidos de ter voz nas assembleias. A
democracia, por assim dizer, “grega” não dava conta da inclusão por ser direta e operar através de
critérios marcadamente excludentes, o direito era masculino, adulto e entre conterrâneos. No

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AS INFÂNCIAS DA DEMOCRACIA E A DEMOCRACIA (ATRAVÉS) DA INFÂNCIA

mesmo período, por volta do século V a. C., em outra região do planeta, de acordo com os estudos
do historiador angolano Patrício Batsîkama, o Reino do Congo vivia sobre um regime democrático
institucionalizado e representativo denominado Lûmbu. Na atualidade, Lûmbu é um tribunal
tradicional em algumas regiões da província de Bêngo, tal como Mbânz’ a Kôngo. No passado,
Lûmbu era o termo usado para denominar o processo de instituição da democracia através de quatro
órgãos executivos. A saber:

“(1) Mpôlo’ a Lêmba, também chamado Bumpôlo; (2) Mfûmu’ a Lêmba, também chamado
Kimfûmu; (3) Lûmbu ou simplesmente Yêmba; (4) Mbôngi” (BATSÎKAMA, 2013, p. 37).

Cada órgão era formado por “departamentos” com funções específicas. A dinâmica do
Lûmbu, nome que designa os meandros de funcionamento do sistema democrático do antigo Reino
do Congo, incluí candidaturas e processos de escolhas para funções delimitadas. De acordo com
Batsîkama, os 12 clãs das 144 tribos que formavam o Reino do Congo estavam divididas em três
linhagens (Nsaku, Mpanzu e Nzinga) que repartiam os poderes executivo, legislativoi e militar
(BATSÎKAMA, 2013, p. 47-50). Todas as pessoas participavam de alguma maneira do processo.
Porém, aqui o foco vai justamente para um aspecto: Mpôlo’ a Lêmba é a primeira instância da
estrutura democrática do Reino do Congo. A expressão “Mpôlo’ a Lêmba” é o nome de um Nkisi
(uma potência natural e espiritual) responsável pelas crianças. Ora, interpretamos que a porta de
entrada para a democracia é o cuidado com as crianças. Se a democracia ateniense não menciona as
crianças. Na democracia do Reino do Congo, a primeira instituição traz o nome de um Nkisi
responsável por cuidar das crianças, o simbolismo não é em vão. Nós estamos de acordo com
Bonaventure Mve-Ondo, que no livro Para cada um a sua razão: razão ocidental e razão africana
(oralidades)ii, afirma que não podemos perder de vista que toda produção humana tem uma
episteme, isto é, um conjunto de princípios que sustentam que funcionam como fiadores da validade
do que é conhecido e produzido. De acordo com Mve-Ondo (2013), tudo que é feito pelo ser
humano possui uma dimensão ontomitológica, isto é, os mitos têm origem numa ontologia que é
indispensável para a compreensão de um povo, de uma cultura ou de uma tradição. Os mitos são o
lugar da estrutura inconsciente de um pensamento. Nos casos em questão. Primeiro, nós podemos
especular que o mito de origem da democracia ateniense gira em torno da superação do mito e
vitória de um discurso racional, enquanto no contexto do antigo Congo, não se trata de uma
superação, mas de uma atenção com a infância. Não se trata somente de duas posições opostas, mas
de perspectivas que desencadeiam implicações diferentes para a construção da democracia.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

No caso de Atenas, Vernant destaca que o novo regime da Polissó se dá por conta da
“laicização do pensamento político o advento da filosofia” (VERNANT, 2002, p. 11). O que
significa que a democracia só se torna possível em Atenas quando os mitos perdem o poder de
organizar a vida política, no lugar das narrativas míticas, “um pensamento novo procura estabelecer
a ordem do mundo em relações de simetria, de equilíbrio, de igualdade entre os diversos elementos
que compõem o cosmos” (VERNANT, 2002, p. 11). Porém, o mito de origem da democracia do
antigo Congo está no cuidado com as crianças (BATSÎKAMA, 2013, p. 37), assunto que é
mencionado, mas não é longamente explorado por Batsîkama no livro Lûmbu: a Democracia no
Antigo Kôngo. O que diz Mpôlo’ a Lêmba? “Mubedo bu kanwini Mpolo Lemba bio kahodidi buna
weka Mwana ma Lemba ye nganga weka Tata ma Lemba”iii. O que podemos traduzir como:
“Quando uma pessoa que sofre beber a bebida de Mpolo Lemba, ela se torna uma criança de
Lemba, enquanto o sacerdote: pai Lemba”. Pois bem, o que nos interessa nesse provérbio mítico-
religioso? O sofrimento é uma condição humana universal e para superá-lo é preciso se tornar
criança, assumir um estado de infância diante do mundo, comportar-se de modo infantil na vida,
isto é, aceitar apoio, receber algum tipo de ajuda.

Se a democracia ateniense, referência histórica da cultura ocidental, está fincada na


superação do mito como narrativa sobrenatural e assume para si uma perspectiva lógica e racional.
Todo cidadão, homens adultos naturais de Atenas precisam usar um discurso racional, ponderar e
debater para que a melhor proposta vença. Por outro lado, a democracia do antigo Congo esse
baseia justamente numa busca pelo Estado de Infância, a constituição da vida política é para
resolver os confrontos e isso se dá por uma compreensão de que precisamos retomar o nosso estado
de Infância, tema que nos debruçaremos adiante.

A DEMOCRACIA ATRAVÉS DA INFÂNCIA

“Como a democracia pode se realizar através da infância?”, ora é essa a questão que
perseguimos. A partir de uma abordagem afroperspectivista que tem caráter multirrreferenciado,
podemos nos aventurar por algumas especulações em torno desse debate, retomando justamente a
ideia de que a democracia do Reino do Congo começou por assumir a necessidade de retomar o
Estado de Infância. A condição de desamparo e os limites diante do mundo são aspectos-chave para
a construção da democracia. Se para o psicanalista branco austríaco Sigmund Freud, o desamparo
nos infantiliza e diante disso, precisamos “crescer”, o pensador senegalês Felwine Sarr supõe
largada semelhantes, mas ambos fazem jornadas distintas. Para Sarr, o “mundo é um enigma a ser

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AS INFÂNCIAS DA DEMOCRACIA E A DEMOCRACIA (ATRAVÉS) DA INFÂNCIA

decifrado, mas é ilusório crer que nos seja possível decifrar todas as suas leis e nelas fundar a ação”
(SARR, 2019, p. 115). Freud menciona o modelo infantil da nossa relação com a realidade.
Mas, como se defende ele contra os poderes superiores da natureza, do Destino, que o
ameaçam da mesma forma que a tudo mais? A civilização o poupa dessa tarefa; ela a
desempenha da mesma maneira para todos, igualmente, e é digno de nota que, nisso,
quase todas as civilizações agem de modo semelhante.

[...] essa situação não é nova. Possui um protótipo infantil, de que, na realidade, é
somente a continuação. Já uma vez antes, nos encontramos em semelhante estado de
desamparo: como crianças de tenra idade, em relação a nossos pais. Tínhamos razões
para temê-los, especialmente nosso pai; contudo, estávamos certos de sua proteção
contra os perigos que conhecíamos (FREUD, 1974, p. 28).

Para Freud,o desamparo é a condição geral no funcionamento de todo psiquismo humano. O


que remete a humanidade a um lugar infantil. É como se a humanidade habitasse o mundo nas
mesmas condições que uma criança vive num lar, sempre de modo dependente. Porém, nunca
encontraremos proteção. De acordo com Freud, em certa medida, a angústia da civilização está
nessa tensão em procurar e não encontrar. Para Sarr, podemos falar de uma beleza diante da dádiva
da existência, experiências mutáveis, encontro de forças criativas, produtivas e destrutivas que
variam, se alternam e coexistem. De modo que: a “imersão no cosmos permite superar a angústia
que esse caráter movente gera e permite compreendê-lo melhor” (SARR, 2019, p. 115). A
interpretação psicanalítica das tragédias gregas pode ajudar a compreendermos como a angústia
impõe uma configuração ao esforço por estabelecer uma sociedade democrática. Por outro lado, as
dificuldades para uma democracia que se inscreva como uma prática política infantil baseada no
Reino do Congo não tem tido vez, talvez porque é pouco pesquisadaiv. A África tem sido calada.
A ocidentalização da África está em curso desde a colonização: línguas oficiais,
sistema educacional, administração, organização econômica e instituições assumiram
no continente africano formas ocidentais. Apesar disso, as estruturas sociais são
esquivas a se deixarem moldar integralmente por essas formas e pelos sistemas de
valor que dela decorrem (SARR, 2019, p. 26).

As questões que nos animam são: quanto e como uma narrativa africana antiga pode
contribuir para o estabelecimento da democracia nas sociedades contemporâneas do mundo?
Primeiro, concordamos com Mamoussé Diagne (2005), quando diz que todo saber é limitado e a
universalização pode trazer mais malefícios do que vantagens. Nesse sentido, é equívoco perguntar
como uma tradição pode “salvar” o mundo. Até porque os impasses que o planeta vive têm relação

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

direta com o projeto de colonização feita pela Europa. De alguma maneira, o projeto civilizatório
ocidental vive sob abalos, os produz e os amplifica. Essa proposta do ocidente de “salvar” o resto
do mundo impondo a sua maneira de fazer as coisas não convence o planeta inteiro. Porque no
“curso da história, ela se esvaziou progressivamente de sua capacidade de propor metas
universalizáveis” (SARR, 2019, p. 30), se é que algum dia suas metas foram dignas de
universalização. Por isso, é bastante oportuno problematizar a democracia ancorada nos princípios
da modernidade, entendidos como revitalização do ideário grego simbolizado pela Ágora ateniense.
Não estamos a dizer que devemos substituir por padrões africanos, confiando cegamente e de modo
romântico no trajeto que advém do Reino do Congo e tem sua jornada em sociedades africanas
tradicionais que são caladas pelo projeto ocidental. Não se trata de substituir ou de propor um
projeto universal “salvador”, mas de inscrever na trama política um princípio em desuso. Se a
democracia tem sido vista como a possibilidade de isonomia de exercício do poder político
mediante as ferramentas institucionais, nós identificamos um problema, a compreensão adultizada
do mundo impede esse exercício. Em termos filosóficos afroperspectivistas, adultizada quer dizer
um modo de se relacionar com o mundo marcado pela adultidade, isto é, a adulteração da dádiva da
existência em risco permanente e necessidade de controle e disputa mortal. É através do Estado de
Infância aqui compreendido como um modo de se relacionar com o mundo que reconhece que nada
podemos fazer a não ser brincar seriamente uns com os outros. A brincadeira é uma vivência de
responsabilidade com a vida; abrir mão dela em função de um estado de guerra é um agir adultizado
que aumenta a vulnerabilidade de existir. O Estado de Infância não pressupõe a superação da
vulnerabilidade que é intrínseca à existência, mas a celebra através do convite de que todos podem
compartilhar. A adultidade – enquanto modo psicológico padrão do ocidente – mantém uma relação
predatória e de extração com o mundo, a regra é que os seres mais “habilitados” controlem a gestão
e o monopólio dos recursos naturais Os mais “adultos” querem controlar e comandar o jogo
político. Nesse contexto, a democracia encontra dificuldades. Porque: a isonomia é improvável. A
deliberação da maioria pode ser pela destruição do meio ambiente ou por medidas políticas que
aumentem a vulnerabilidade de alguns grupos. Num contexto de busca pelo Estado de Infância, a
humanidade tem uma responsabilidade com o mundo que passa pela inclusão dos outros seres
vivos, outras espécies animais, seres vegetais e seres minerais. No Estado de Infância, a democracia
inclui todo mundo. Os seres dos reinos animal, vegetal e mineral precisam ser considerados para
uma decisão. Tal como nos diz Ailton Krenak.
Li uma história de um pesquisador europeu do começo do século XX que estava nos
Estados Unidos e chegou a um território dos Hopi. Ele tinha pedido que alguém

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AS INFÂNCIAS DA DEMOCRACIA E A DEMOCRACIA (ATRAVÉS) DA INFÂNCIA

daquela aldeia facilitasse o encontro dele com uma anciã que ele queria entrevistar.
Quando foi encontrá-la, ela estava parada perto de uma rocha. O pesquisador ficou
esperando, até que falou: “Ela não vai conversar comigo, não?” Ao que o faciltador
respondeu: “Ela está conversando com a irmã dela”. “Mas é uma pedra”. E o
camarada disse: “Qual é o problema?”.

Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da
mineração. A aldeia Krenakfica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra.
Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã, de lá do
terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é
melhor ficar quieto (KRENAK, 2019, p. 17).

Gente adulta não conversa com as montanhas, pode até, se for muito “adultescida”, excluir
crianças da conversa, alguns homens brancos excluem pessoas negras e indígenas, mulheres
brancas, todas as crianças, gente com deficiência da conversa, ainda mais outros seres do reino
animal, vegetal e mineral. O papel da democracia é evitar que o mundo entre em colapso, por isso: é
um regime sobre o qual todos os seres precisam conversar. A democracia deve ser compreendida
como um sistema biofílico, favorecendo a continuidade da vida e evitando que os confrontos se
transformem em holocaustos, genocídios e todas as linguagens da violência. A democracia é rival
do racismo, do sexismo, da misoginia, da LGBTfobiav e de todas as formas de discriminação e
opressão. A democracia é uma atitude política que assume que o convívio humano nunca será
pacífico e, portanto, precisamos aprender ininterruptamente como viver sem concordar. O que exige
muita infantilidade. As pessoas imersas na adultidade não suportam o desacordo, elas são capazes
de tudo para vencer um jogo, mesmo se a vitória colocar a vida do planeta em risco. No livro
Histórias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak fala docemente do esforço para manter os
humanos habitando o mundo, uma luta contra a entropia. Nós temos duas dimensões que aceleram a
entropia do mundo. Num registro psicológico: o adultescimento; numa dimensão político-
econômica, as ideias de progresso e desenvolvimento. Em termos afroperspectivistas, a democracia
é um remédio político contra a entropia do mundo. Entropia aqui entendida no sentido físico-
químico do termo, dissipação de energia até que um sistema entre em colapso e desapareça. Daí, em
termos cosmológicos afroperspectivistas, não existe avanço; mas aproximação do colapso,
dissolução do equilíbrio, isto é, o fim das coisas.

Sarr reconhece a entropia do mundo; as coisas começam e acabam, caminham para o fim.
Mas a jornada infantil consiste em continuar jogando, brincando e fazendo. Não existe capítulo
final para a jornada da humanidade enquanto formos capazes de viver criativamente e em

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

consonância com as vozes do mundo. Não podemos viver sem ouvir os outros: montanhas, rios,
outras espécies, rivais humanos, etc. Nós precisamos continuar restaurando as coisas.
Nessa perspectiva, o mundo está sujeito a um princípio de entropia, ele se degrada, e
quer seja o humano responsável por isso ou não, o ritual de reparação do mundo
representa um dos atos simbólicos mais significativos em sua tomada de consciência
sobre essa responsabilidade. A essência do poder político consiste, pois, em
reestabelecer e restaurar essa ordem. Dessa concepção do universo se depreende uma
visão de responsabilidade do ser humanoe da função do poder político (SARR, 2019,
p. 115).

Pois bem, em termos afroperspectivistas, a democracia pode ser entendida como a


restauração da infância, o reestabelecimento de uma ordem cósmica em que a humanidade não
passa de um conjunto de crianças sem todas as respostas, cuidando das suas coisas e dos outros,
errando, acertando e com a dignidade de quem é interdependente. Ou seja, o Estado de Infância não
tem empáfia e o orgulho exagerado, mas nos convida a reconhecer que dependemos uns dos outros
e o círculo democrático precisa ser radicalmente expandido.

CONCLUSÕES PARCIAIS

A especulação deste ensaio conclui parcialmente que: fazer democracia é assumir todas as
vozes sem o monopólio de nenhuma, uma atitude infantil e responsável. A infância vem sempre
consignada com a responsabilidade. É a adultidade que não se responsabiliza pelas suas aventuras.
O Estado de Infância é a possibilidade de enfrentar a entropia. A democracia como regime político
deve lançar mão de tecnologias culturais que enfrentem o perigoso discurso de que devemos
avançar e nos desenvolver. Porque proclamar o progresso e o desenvolvimento é nocivo.

“Essa proclamação do desenvolvimento se converteu numa ideologia: um entrelaçado de


ideias que, em vez de esclarecer a realidade, encobre-a, justificando uma práxis e uma ordem
diferentes do real do qual presume que ela desse conta” (SARR, 2019, p. 23). O desenvolvimento é
a busca pelo abismo da humanidade, o esforço, digamos, bem executado de pôr fim à aventura da
espécie no planeta. As guerras, as pandemias, as crises econômicas, a fome em certas regiões, a
falta de acesso aos bens produzidos pela humanidade, o racismo, o sexismo, a misoginia, o
adultocentrismo, as mais variadas formas de discriminação, ditaduras, desmatamento, impactos
ambientais nocivos, opressões e abusos e tudo que desintegra e coloca a vida em xeque tem uma
origem comum. A entropia crescente e acelerada provém do espírito adultidade, leia-se uma

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AS INFÂNCIAS DA DEMOCRACIA E A DEMOCRACIA (ATRAVÉS) DA INFÂNCIA

mentalidade, um complexo cultural, um modo de conceber a economia e de fazer política que levam
para o abismo. Nesse contexto, a democracia não florescerá como a possibilidade de criação e
restauração de direitos. É preciso uma mentalidade infantil para que a democracia reencontre o seu
poder restaurador. A democracia só é possível em sua radicalidade se formos capazes de viver
imersos na infância, em Estado de Infância. Porque desse modo, as vozes, os lugares de fala, as
demandas por novos direitos, os desafios mais difíceis terão um ponto de partida comum: o nosso
desamparo como razão para nos aproximar. Sem assumir o desamparo, combater a entropia e, por
consequência, viver imerso em infância, a democracia não pode não passar de uma ideia frágil que
desmancha no ar.

REFERÊNCIAS

BATSÎKAMA, Patrício. Lûmbu: a Democracia no Antigo Kôngo. Luanda: Media Press, 2013.

DIAGNE, Mamoussé. Critique de La rasion orale: les pratiques discursives em Afrique noire. Paris: Karthala, 2005.

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Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974. Vol. 21. p. 15-80.

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LÍSIAS. Discursos. Tradução: José Luis Calvo Martínez. Madri: Editorial Gredos S.A., 2007.

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VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. Tradução: Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de Janeiro:
Difel, 2002.

Notas de fim

i
O poder legislativo funcionava com o que podemos denominar em termos modernos de judiciário.
ii
O livro A chacun sa raison: Raison occidentale et raison africaine (Oralités) não tinha sido traduzido para o
português até o fim de 2019. Tradução livre do título feita pelo autor do artigo.
Aqui trazemos um provérbio transmitido oralmente em várias regiões africanas do contexto cultural bantu, aqui em
iii

versão do idioma kikongo aprendida pelo autor por ensinamentos da avó materna, Dona Elvira de Mello Nunes (1925-
1984).
iv
Não existem muitas publicações no Brasil que se debruçam sobre o assunto, enquanto a respeito das bases gregas da
democracia são vastas e variadas.
v
Aqui LGBTfobia significa discriminação sistemática contra Lésbicas, Gays, Bissexuais, Pessoas Trans, Travestis,
Interssexuais, Assexuadas e todas expressões de gênero e sexualidade (LGBTIA +).

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS:
EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA

Rita Potyguara
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

No Ceará, a partir do final dos anos de 1990, teve início o movimento dos indígenas por
uma educação escolar diferenciada. Nos seus dizeres, esta é uma educação que “não mude a cara da
gente”, ofertada em uma “escola que não mude nosso jeito de ser”. Desse modo, as escolas
indígenas existentes no estado nascem do desejo de serem diferenciadas, visando a promover a
afirmação identitária dos povos locais, de suas culturas e de seus direitos. Isto é, como estratégia de
luta em seus movimentos por reconhecimento étnico no cenário político, os indígenas elegeram a
escola como uma instância privilegiada.

As primeiras escolas do estado começaram a funcionar à revelia dos órgãos oficiais, sem
contar com o apoio da Fundação Nacional do Índio (Funai) ou das secretarias municipais ou
estaduais de educação. Os professores lecionavam de forma voluntária, como um compromisso de
militância. Redes de solidariedade foram formadas entre os apoiadores da causa indígena para o
funcionamento destas escolas, a exemplo de setores mais progressistas da Igreja Católica. Em 2000,
foram incluídas na rede estadual de ensino, sendo instituída a categoria escola indígena e criadas 23
instituições escolares indígenas, dentre elas a dos Tremembé e as dos Tapeba aqui referidas. Com
essa institucionalização, tem-se a gênese da política de Educação Escolar Indígena (EEI) no Ceará
que teve, entre suas principais ações, os primeiros cursos de formação de professores indígenas, a
produção e a publicação de materiais didáticos específicos, além da elaboração dos projetos de
construção de prédios escolares, aquisição e distribuição de mobiliários e de equipamentos diversos.
Os professores indígenas, ao serem contratados pelo estado, constituem uma nova categoria de
liderança, passando a desempenhar o papel de interlocutores principais entre as agências
governamentais e as demandas de suas comunidades.

Esta política foi se definindo a partir das pressões do movimento indígena em articulação
com as organizações indigenistas da sociedade civil e os órgãos de governo. Foi marcada pelo
momento inicial em que as competências da educação escolar indígena em todo o país saíam da
responsabilidade exclusiva da Funai para os sistemas de ensino, ficando o Ministério da Educação
(MEC) com a atribuição de coordenar nacionalmente a política, ao passo que os estados e os
municípios passariam a ser os executores de suas ações. Este foi um momento de muitos conflitos
no campo da política indigenista no país, localmente ainda associados a um contexto em que os
indígenas reivindicavam o reconhecimento étnico e a garantia de direitos específicos como saúde,
educação e demarcação de suas terras.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA

Os dois grupos apresentados nesse artigo constituem uma representação da situação dos
atuais 14 povos indígenas no Ceará, considerando-se suas aproximações e especificidades. Assim,
os Tremembé, presentes nos municípios de Acaraú, Itarema e Itapipoca serão apresentados apenas
com a experiência curricular da Escola Indígena Tremembé Maria Venâncio, localizada na praia de
Almofala, no município de Acaraú. Os Tapeba, concentrados no município de Caucaia, serão
representados pela experiência da Feira Cultural, da Festa da Carnaúba e dos Jogos Indígenas,
eventos realizados pelo conjunto de suas escolas.

Os dois grupos vivem em uma situação de adversidade extrema, considerando-se os


problemas da não regularização de suas terras. Desde meados da década de 1980 que os processos
jurídicos foram deflagrados junto à Funai. Embora os territórios tenham sido declarados como de
ocupação tradicional pelos indígenas, considerando as evidências históricas contidas em fontes
documentais e na memória coletiva dos indígenas, tais processos estão atualmente paralisados por
força da contestação dos posseiros, grupos econômicos e políticos da região, bem como pela
omissão do estado brasileiro.

Nesse contexto, as escolas têm sido acionadas como importantes demarcadores da presença
indígena no estado, definindo os contornos dos territórios e se constituindo como práticas de
construção de insurgências, resistências e autonomias.

O CURRÍCULO DA ESCOLA INDÍGENA TREMEMBÉ MARIA VENÂNCIO

A Escola Indígena Tremembé Maria Venâncio foi criada em 1991 a partir de situações de
preconceito e discriminação vivenciadas pelas crianças Tremembé que estudavam em escolas não
indígenas. Com base nessa narrativa, a comunidade criou e manteve as primeiras práticas
educativas por meio da agência das lideranças indígenas – dentre elas uma professora voluntária –,
dos pais e dos alunos dispostos a experimentar uma escola própria. Assim, esta serviria tanto para
“ensinar as crianças a ler e escrever” quanto para “ensinar a elas a cultura do próprio povo
Tremembé”, como pode ser lido no Projeto Político-Pedagógico (PPP) da referida escola. No início
dos anos 2000 foi incluída no sistema oficial de ensino, sendo regularizada por meio de ato de
criação e credenciada para funcionamento pelo poder executivo estadual. Dessa forma, passou a ser
regulada pela Secretaria da Educação (Seduc) e o Conselho Estadual de Educação (CEE), tendo que
submeter os seus instrumentos de gestão às normativas de tais órgãos.

Na organização curricular apresentada no PPP da escola, além das disciplinas consideradas


convencionais – tais como Matemática, Português, História, Geografia, Ciências, Ensino Religioso

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 451


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

e Educação Física –, estão também presentes, para o Ensino Fundamental, aquelas relacionadas às
suas especificidades – Arte, Expressão Corporal, Cultura e Espiritualidade Indígena, História
Tremembé, Medicina Tradicional Tremembé, Torémi e Espiritualidade Tremembé. No Ensino
Médio, organizado pelos eixos Linguagem, seus Códigos e Tecnologia, Ciências da Natureza e
Ciências Humanas, compostos pelas disciplinas da Base Nacional Comum Curricular (BNCC),
fazem parte do currículo Arte Tremembé; Pesquisa da Linguagem Tremembé, Torém e
Espiritualidade, Saberes Tremembé do Céu, da Terra e do Mar, História Tremembé, Medicina
Tradicional Tremembé. Além disso, os conteúdos produzidos pelos próprios Tremembé, bem como
a partir das pesquisas realizadas sobre eles, são transversalizados em disciplinas como Filosofia,
Sociologia, Geografia, Educação Física, dentre outras.

Na operacionalização da parte diferenciada do currículo há ainda a realização da Marcha


Tremembé no dia 7 de setembro de cada ano. A marcha é uma atividade que envolve toda a
comunidade e as demais escolas indígenas da região, consistindo em uma manifestação política em
defesa dos direitos indígenas, principalmente pela demarcação e preservação do seu território. Neste
mesmo dia são realizados, no âmbito da escola, jogos, brincadeiras e noite cultural com a
apresentação do Torém. Da escola a marcha segue para o centro de Almofala, ao som de cantos e
entoadas de maracás. Durante todo o percurso, os indígenas dançam e discursam para chamar a
atenção da população local para as situações de injustiças a que estão submetidos, principalmente as
relacionadas a não garantia de seus territórios.

Todavia, estes esforços de construção de uma educação diferenciada, com um currículo


articulado às demandas socioculturais e políticas da comunidade, encontram dificuldades
relacionadas ao atendimento das exigências dos órgãos reguladores do sistema de ensino estadual.
Exemplo disso é dado pelas avaliações externas realizadas pela Seduc por meio do Sistema
Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará (Spaece), criado em 1992, ano seguinte ao
da criação da Escola Indígena Tremembé Maria Venâncio. De maneira geral, tais avaliações têm se
mostrado inadequadas quanto às práticas educativas das escolas indígenas que, por sua vez, estão
pautadas nos princípios da EEIii.

Desse modo, como as avaliações estão centradas apenas em um dos aspectos do processo de
ensino-aprendizagem – isto é, os conteúdos do currículo nacional –, são desconsiderados os
componentes que os indígenas elegem como diferenciados. Além disso, estas avaliações terminam
por caracterizar a educação escolar indígena como inferior à ofertada nas escolas não indígenas,
uma vez que a maioria das escolas indígenas não têm alcançado, de acordo com os critérios de

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA

avaliação atualmente em vigor, os níveis estabelecidos de aprendizagem dos alunos. Diante desta
situação, os atores sociais que fazem as escolas Tremembé de Almofala tomaram a decisão em
2019 de não mais se submeterem à avaliação do Spaece, não participando de sua última edição. É
importante destacar que, no caso desta escola, as avaliações aplicadas dizem respeito apenas ao
Ensino Fundamental, uma vez que o Ensino Médio vem sendo ofertado apenas como uma iniciativa
comunitária sem o respaldo dos órgãos de regulação educacional. Com isto, a Seduc foi levada a
adotar estratégias, em diálogo com a comunidade, para solucionar esse problema. Os indígenas
cobraram do órgão que fossem contemplados conteúdos sobre a história e a cultura dos povos
indígenas, conforme a determinação de inclusão destes conteúdos nos currículos da educação básica
em todos os estabelecimentos de ensino, reinvindicando, assim, tão somente o cumprimento da Lei
11.645/2008.

Vale, ainda, destacar que, como espaço de construção de práticas pedagógicas


emancipadoras e insurgentes, a Escola Indígena dos Tremembé apresenta em seu PPP o diagnóstico
de que a educação escolar do seu povo “[...] vem se consolidando cada vez mais na prática da
partilha dos saberes tradicionais [...], na interação entre saberes tradicionais e saberes acadêmicos e
na construção da identidade étnica das novas gerações, através da participação coletiva e do
fortalecimento da autonomia”.

Todavia, ao apresentar uma organização curricular própria, com conteúdos contextualizados


e calendário adequado às especificidades culturais, econômicas e políticas da comunidade, a escola
Maria Venâncio, semelhante a outras escolas indígenas, é marcada pelas tensões com os órgãos do
sistema de ensino estadual que ainda operam segundo a lógica da não diferenciação e da
universalidade dos conhecimentos, dos saberes e das práticas na configuração dos currículos e da
política educacional de modo geral.

A FEIRA CULTURAL, A FESTA DA CARNAÚBA E OS JOGOS INDÍGENAS DOS TAPEBA

A explicação corrente, dada pelos Tapeba, para a criação das primeiras escolas indígenas em
suas comunidades está ligada a relatos de situações de preconceito vivenciadas pelo grupo. Sendo
assim, as ações educativas deste grupo étnico também fazem parte das práticas pedagógicas
consideradas emancipadoras e insurgentes tendo em vista ajudarem a construir o sentido das
resistências indígenas no estado, incluindo a defesa dos seus territórios. Dentre estas ações destaco
aqui a Feira Cultural que abriga a realização dos Jogos Indígenas e da Festa da Carnaúba,

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 453


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

componentes curriculares que foram integrados ao calendário letivo das escolas de suas
comunidades.

Estes eventos são realizados há quase 20 anos no local denominado Pau-Branco, às margens
da Lagoa dos Tapeba, na localidade de Capuan, na Lagoa 2, considerado “terreiro sagrado” para os
Tapeba por seu grande valor histórico. O lugar está ligado ao processo de reorganização política e
cultural deste grupo que luta pela demarcação do seu território. Por este motivo, através da Feira,
dos Jogos e da Festa, os professores, lideranças e alunos Tapeba procuram demarcar suas fronteiras
étnico-identitárias frente aos processos de interação com os regionais. Isto é, por meio destas
experiências os Tapeba promovem a valorização de suas identidades étnicas, de seus costumes e
tradições em eventos públicos. Sendo assim, é importante destacar que, na realização destas práticas
pedagógicas, há a presença de alunos das escolas não indígenas dos municípios de Caucaia e de
Fortaleza, agentes ligados à questão indígena, oriundos de organizações governamentais e não
governamentais, bem como indígenas de outras etnias.

A Feira consiste na exibição de artesanatos, materiais didáticos e apresentações artístico-


culturais encenadas por alunos e professores, onde as escolas são representadas por ocas. Os Jogos
Indígenas são práticas pedagógicas que aliam diferentes modalidades esportivas, algumas delas
parte do cotidiano Tapeba e outras recriadas a partir das memórias comunitárias ancestrais. A Festa
da Carnaúba marca o período da colheita da palha da carnaúba, uma importante atividade
econômica da região ainda praticada pelo grupo. Nesta festa, são realizadas cerimônias rituais, tais
como batizados que servem para fortalecer os laços comunitários e o sentido de pertencimento
coletivo.

No planejamento e na avaliação destas práticas há a participação das organizações


comunitárias e de todas as escolas Tapeba para o acompanhamento dos problemas e das suas
necessidades de adequação. No caso dos professores, as atividades de preparação e de realização
são contabilizadas como carga horária de trabalho docente. Além disso, os eventos podem ser
considerados uma inovação por demarcarem a efetivação de um calendário próprio, influenciando a
gestão da sala de aula e o funcionamento da escola como um todo. Este é um exemplo de
articulação da escola e de seu calendário com a comunidade, não provocando o deslocamento de
outros eventos comunitários, sejam eles culturais ou de atividades produtivas. Isto é, os eventos
fazem parte de uma construção coletiva de elementos prático-teóricos específicos, característicos de
uma proposta de educação diferenciada, presentes na gestão escolar dos Tapeba.

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PRÁTICAS PEDAGÓGICAS EMANCIPATÓRIAS: EXPERIÊNCIAS ESCOLARES TREMEMBÉ E TAPEBA

No currículo das escolas são incluídos conteúdos apresentados na Feira, bem como passam a
integrar as práticas pedagógicas os jogos e outras atividades realizadas na comunidade com uma
forma de atualizar e reinventar suas memórias. Algumas atividades realizadas durante os eventos
são construídas e ensaiadas durante as aulas culturais. Estas últimas são compreendidas pelos
Tapeba como o principal elemento diferencial da sua proposta educacional, ocorrendo, de um modo
geral, uma vez por semana. Em suma, as aulas culturais são o tempo-espaço de preparação dos
eventos, onde são gestados muitos dos elementos tradicionais exibidos publicamente. Nestes, além
da ressemantização dos símbolos de preconceito, busca-se chamar a atenção de índios e não índios
para a eficácia das escolas diferenciadas.

É importante destacar que, atualmente, esta experiência tem o apoio dos órgãos reguladores,
sobretudo a Seduc. Hoje, pode ser tida como uma prática consolidada, tendo os indígenas vencido
os embates iniciais ao questionarem um currículo e um calendário não compatíveis com suas
demandas educacionais. No início de realização destas atividades, os Tapeba encontravam
resistências

Tanto a Feira Cultural quanto os Jogos Indígenas e a Festa da Carnaúba são apontados, pelos
professores Tapeba, como importantes produções de suas práticas pedagógicas, embora assumidos
por todas as comunidades e suas lideranças. De acordo com eles, essas criações visariam à
manutenção dos intercâmbios entre suas comunidades, a população regional e setores do estado
responsáveis pela promoção de políticas indigenistas e educacionais. Por este motivo, tais eventos
se apresentam também como canais de expressão de imagens positivas da escola indígena.
Ocorreria, então, por meio da sua realização a positivação da imagem da escola diferenciada
proposta e praticada pelos Tapeba.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

O tema do XX Endipe, centrado na reflexão dos “fazeres-saberes pedagógicos” como


práticas de diálogos, insurgências e políticas, apresenta-se como importante no contexto atual de
crises vivenciadas no país. A participação no simpósio “Educação, diferença e insurgências:
práticas educativas emancipatórias” me motivou então a pensar como os povos indígenas cearenses
têm buscado construir as suas resistências, insurgências e autonomias no campo da educação
escolar, diante de um cenário adverso ao fazer educativo crítico-reflexivo e aos direitos dos povos
indígenas. Desse modo, através das considerações a respeito do currículo da Escola Tremembé
Maria Venâncio e das práticas pedagógicas dos Tapeba representadas pela Feira Cultural, pelos

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 455


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Jogos Indígenas e pela Festa da Carnaúba, busquei destacar as maneiras possíveis de construção de
diálogos entre saberes nas experiências de educação diferenciada, as formas pelas quais as
memórias e tradições dos grupos indígenas podem se converter em práticas ou rituais pedagógicos,
chamando ainda a atenção para o sentido das interações e aproximações pretendidas em torno
destas práticas (tanto com os não indígenas quanto com as diferentes comunidades que formam
cada povo).

De maneira geral, as insurgências e resistências indígenas vistas como estratégias de


ressemantização das suas imagens e de suas escolas são confrontadas ao modelo de escola
historicamente prevalecente no cenário educacional brasileiro, ainda assentado em práticas e
discursos homogeneizantes. Assim, uma escola que se propõe específica, diferenciada, intercultural
e indígena ameaçaria este modelo vigente nas ações e orientações dos órgãos reguladores das
políticas educacionais. Em outras palavras, as experiências escolares indígenas desafiam os órgãos
de governo a dar respostas que atendam à especificidade de suas demandas educacionais.

Diante disso, a preocupação dos professores indígenas com a discriminação e o preconceito


aparece como o foco principal de suas atuações, como pôde ser visto no caso dos Tremembé e dos
Tapeba. Vejo, pois, a escola indígena disputando espaços políticos, propondo mudanças de
comportamento com base em diálogos interculturais por meio de práticas sociais (pedagógicas e
curriculares) em construção. Assim, no processo de constituição do lugar da escola indígena no
cenário educacional brasileiro, a mudança de comportamento proposta pelos índios está ligada ao
direito de assegurar a diferença.

Notas de fim

i
De acordo com Oliveira Junior, Torém “é uma dança de roda de terreiro, [...] dirigido por um mestre que, com pancada
forte do pé no chão, comanda os dançarinos, homens e mulheres, marcando os movimentos ao som de um maracá. No
centro da roda fica uma cuia com o mocororó, vinho de caju servido aos participantes da festa. A dança é acompanhada
por uma cantada em quadra.” Ver obra completa em: OLIVEIRA JUNIOR, Gerson Augusto de. Torém: brincadeira
dos índios velhos. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto, 1998.
ii
A interculturalidade, o bilinguismo/multilinguismo, a diferenciação, a especificidade e o aspecto comunitário são
princípios da educação escolar indígena instituídos nacionalmente. A partir deles tem se buscado definir e implementar
as políticas educacionais para estes povos, sobretudo em atenção ao estabelecido na Constituição Federal de 1988, na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/96) e nas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação
Escolar Indígena emendas do Conselho Nacional de Educação (CNE). Para saber mais, consultar o Parecer CNE/CEB
n. 13 de 2012, disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=10806-
pceb013-12-pdf&category_slug=maio-2012-pdf&Itemid=30192.

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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...
(OU SOBRE ALGUMAS PALAVRAS TITUBEANTES EM
TORNO DE UMA PEDAGOGIA NAS DIFERENÇAS)

Tiago Ribeiro
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Este texto demorou a nascer. Talvez ainda não tenha nascido, porque uma ideia começa a
nascer no espaço da relação, do encontro, da partilha tensa e, às vezes, impossível, mas recheada,
grávida de presença. Começa a nascer numa conversa, numa leitura, numa escrita que convoca
tantos outros, no cotidiano da escola, no observar o adormecer do sol, no sorriso de uma pessoa
querida, na fome de tantos, no e-mail para um amigo... Entre. Aí. Aqui. Na relação entre nós e o
mundo.

Às vezes, nessa relação tão complexa e contingente entre nós e o mundo, alguns encontros
nos devêm outros... E um encontro desse – encontro como experiência, algo que nos sacoleja e
impede de seguir sendo exatamente igual – mudou o rumo de meus modos de ser e pensar.
Encontros no plural, para ser sincero... Mas gostaria de destacar um em especial, o qual vivi neste
ano de 2020, impelindo-me a reescrever todo o texto que já estava fechando para este XX Encontro
Nacional de Didática e Prática de Ensino.

Havia pensado em um texto mais acadêmico, enfeitado de cânones e emplumado de normas


e padronizações. Todavia, o cotidiano e sua força transfiguradora não poupa o acontecer das horas:
o tempo traz consigo, sempre, mudanças, porque traz também pessoas, textos, filmes, histórias,
narrativas... E vamos sendo e transformando nosso estar sendo nesse movimento, como nos lembra
a teoria narrativa de Ricoeur (2009): somos feitos de histórias, de narrativas, de narração... Ora, se
as histórias me habitam, por que não falar de histórias em um encontro cuja centralidade está na
insurgência?

Pois bem, companheires de luta e resistência, o que de mais revolucionário senão nossas
histórias que pluralizam o mundo, que dobram o “assim” das coisas em tantos possíveis quanto
possamos inventar? Ailton Krenak, pensador indígena brasileiro, me ensinou, em seu livro Ideias
para adiar o fim do mundo (2019), que somos constelações. Sim, como o manto negro tomado por
botões brilhantes à noite, somos e estamos feitos de muitos outros e suas histórias, causos, medos
tornados lendas, conquistas tornadas mitológicas etc. Somos constelações, sim. Pluralidades,
presenças afirmativas no mundo.

Por isso, a ideia de um texto-carta endereçado a você, a nós, a mim, a todos e a qualquer
um... Uma narrativa partilhada cujo objetivo é convidar a pensar acerca e com uma experiência
vivida que dá a pensar sobre isso da inclusão, isso de uma suposta necessidade de estar formado,
preparado, capacitado para incluir.

Bem, mergulho na experiência vivida. E escrever sobre isso, neste momento, é quase tão
necessário quanto respirar. A experiência ainda reverbera em mim e me impele a contá-la, a narrá-
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...

la, quase como se da narração dependesse o meu fôlego, a minha respiração. Um transbordamento
do acontecimento que arde no corpo e na pele, entende(m)? Algo vivido no cotidiano de uma escola
especializada na educação de surdos, com estudantes jovens e adultos surdos.

De um modo geral, temos, aqui no Brasil (e em tantos outros países!), rios e rios de
literaturas que querem dar conta de como é o surdo, o que pode, o que não pode, se pensa, como
pensa etc. Todo um aparato bélico em forma de ciência e teoria para definir, esquadrinhar, congelar,
fixar o surdo. Quase como um manual explicativo. Ui, por que precisamos ser tão explicativos e
normativos?! A existência não escapa, a todo momento, de confrarias e definições limitantes? Há
uma forma essencial e superior de ser surdo, como se a surdez implicasse um manual de existência
a ser seguido? Alguns surdos têm “surdidade” e outros não? Ou ainda: o surdo é um sujeito da falta,
inferior ao ouvinte?

Que espaço de inclusão possível quando a instituição educativa, abandonada à própria sorte
em sua responsabilidade de ensinar a todes e a qualquer um, se vê presa a um ciclo reprodutivista de
ideias baseadas na compensação da carência de uns (aqueles que “destoam” da norma), através de
dispositivos de civilização e normalização de corpos e existências? Não há anormais, mas
anormalizadores, nos alerta Carlos Skliar (2009)... cada sujeito é o ponto de referência de si mesmo,
singular, irrepetível.

Pois bem: no dia 14 de fevereiro de 2020, recebi, na minha turma, um estudante adulto
surdo (com quase 50 anos) que não sabe Libras nem oraliza palavra alguma. A princípio,
poderíamos pensar, a julgar pelas análises apressadas e indolentes que intentam definir o surdo: um
sujeito sem língua. Para mim, era um novo estudante, com quem nunca trabalhei, mas que já
estudara com outra professora no Ines. Ela me disse, uma vez, que ele escrevia e lia...

Nesse dia, ministrei minha aula junto com uma professora surda, amiga com quem partilho
tantas aventuras pedagógicas. Juntamos duas turmas porque gostamos dessa parceria em que
habitamos mundos, línguas e afetos. Aula em língua de sinais. Ao longo da aula, percebi o aluno
com o olhar entre perdido, abandonado e ansioso, como se buscando no ar lufadas de sentido ou
qualquer coisa em que pudesse se sustentar. Alguma ancoragem para a construção de algum
sentido... Refleti comigo: o que pensar de tantas e tantas escolas “inclusivas” em que se matriculam
estudantes surdos, muitos dos quais sem conhecimento de Língua de Sinais, e a garantia de seu
direito à educação é a presença de um intérprete (geralmente contratado de forma precária) para
traduzir uma língua que ele mesmo, surdo, não conhece?

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 459


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Enfim, lembrei do comentário da professora no ano anterior: ele sabia escrever e ler! Olhei
para a professora de Libras, que propôs: “escreve para ele!” Fui ao quadro e escrevi: “Você está
entendendo? Quer que eu escreva?”. Ele leu. Abriu o corpo, sorriu, concordou com a mão, em
positivo! Passei a escrever e sinalizar. Ele se transformou na escrita; virou outro. Isso colocou um
pequeno graveto na engrenagem de meus pensamentos: ao que parece, este homem surdo,
estudante, desconhecedor da Libras e da oralização, constituiu-se pela linguagem escrita. Como? É
possível? Curiosidade. Desejo de seguir pesquisando, conversando (RIBEIRO; SOUZA;
SAMPAIO, 2018) com ele, escutando visualmente sua voz, sua presença única no mundo. O que
me ensina a relação com ele? Sua vivência?

O referido estudante chega à escola com uma postura muito peculiar: não olha nos olhos.
Mira o chão. Talvez por não conseguir se comunicar com as pessoas de forma mais imediata?
Talvez porque o escrever o provoca a olhar mais para baixo? Como saber? Há encontros que nos
desafiam e engravidam de perguntas... E, quiçá, uma pergunta incômoda, porém necessária, seria:
há realmente como estar preparado para a inclusão, pensada como encontro entre sujeitos vivos,
viventes, moventes, inacabados, complexos, singulares? É possível antecipar o encontro entre
corpos, a fricção de existências? Que livro poderia dar conta de tal acontecimento? Que manual me
fala do surdo que não conhece Libras e não oraliza, mas escreve muito bem, ortográfica e
gramaticalmente?

Desconfio de que, nesses tempos de tantas narrativas que pululam no mundo, afirmando a
existência de minorias historicamente negadas, de pluralidades, multiplicidades e singularidades,
querer categorizar a existência de quaisquer sujeitos seja, ainda, o velho desejo insaciável da
anormalização.

Incluir é normalizar?

O que é, então, estar preparado para incluir? Estar munido de métodos, estratégias e
dispositivos que permitam “viver” a “relação educativa” de modo prescrito? Conhecer “o que” e
“como” é cada sujeito hipotético?

Essas perguntas me fazem retornar ao aluno com o qual trabalho: no contato com outros
surdos, está aprendendo Libras desde o ano passado. Quando escrevi para ele, ele também escrevia
em resposta e ousava alguns sinais. Conseguiu muitos: a turma vibrou. Uma comunidade de afeto!
O estudante, então, diante da euforia da turma, levantou da cadeira e colocou os braços para o alto,
como se sentindo um campeão, vibrando de felicidade. Essa cena me marcou. Marcou também o
sorriso dos colegas... Os afetos, as diferenças, impossibilitando a afirmação de um mesmo.
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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...

Insisto em pensar nesse estudante. Ele me disse, por escrito (mas sobretudo com sua
existência, seu corpo, sua presença), que escrever é importante porque permite viver. Pergunto-me
pela vida na escola, pelo exercício da escuta das diferenças (SKLIAR, 2019), nas diferenças, no
reconhecimento da alteridade do outro, de sua legitimidade. Pergunto-me se há inclusão que não
passe por aí – pela indagação ética frente ao outro, que não precisa de minha autorização para
existir! Incluir não poderia ser uma conversação na qual prestamos atenção em nós mesmos, no
outro e no mundo? Tem a ver apenas com conhecer e ensinar ou, também, com sentir e
experienciar?

Conversamos na escola com os estudantes? Quando? Como? Por quê? Sobre o que? Suas
vozes (orais e/ou visuais) compõem a polifonia da sala de aula? Quem toma todas as decisões?
Quem decide o planejamento? Perguntamos o desejo e o interesse dos estudantes? Nossas aulas são
gestadas no cotidiano, na relação com os estudantes, ou são decididas, a priori, sem ao menos
conhecermos os sujeitos reais, de carne e osso? Inquietações e perguntas que me acompanham e
desacomodam, no encontro com os estudantes surdos.

Não sei... a mim me dá a impressão, com Skliar (2014), de que talvez não se trate de
inclusão nem de incluir, mas de ser e estar com o outro, com todes e qualquer um, uma pedagogia
nas diferenças, onde podemos conversar, pensar, escutar, enxergar, experienciar, espichar modos de
ser e saber, tornarmo-nos animais pulsantes, corpos que sentem, padecem, transformam-se. Ou seja:
a tensão da relação, do conviver. Ora, quem precisa ser incluído? Onde? Continuaremos sempre, e
outra vez, a repetir o mantra de que o problema é o outro e de que, portanto, precisamos de uma
solução para ele? A exclusão é o oposto da inclusão ou o testemunho de nossa incapacidade de
conversar e conviver? Nosso afã por incluir quem anormalizamos anteriormente não é uma forma,
quiçá, de escamotear nossa ainda atual impossibilidade de enxergar o outro sem manchar?

Se o outro não é o problema, trata-se de incluí-lo ou de aprender a viver, nas diferenças,


outros modos de ser, estar, habitar, existir no mundo?

Se o outro não é ilegítimo, por que ele aprende minha língua e eu não aprendo a dele na
escola?

Se o outro não é inexistente, porque sua cultura, suas experiências, cosmologias, mitos etc.
não existem na escola?

O encontro com este estudante me faz pensar em tantas coisas... inclusive nas palavras que
muitas crianças aprendem, copiam ou repetem na escola... Crianças surdas e ouvintes: palavras que

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

não soam, não vibram, não ecoam na vida vivida. Compreendem o que quero dizer? Palavras ocas,
vazias, sem ninguém dentro. Palavras que povoam as escolas, mas, muitas vezes, não têm cheiro de
quem as vivem. Por que não se pode falar da vida, da nossa vida, das nossas histórias, mitos e
culturas? É perigoso narrar outros mundos? Pode-se, assim, adiar o fim do mundo?

Incluir não poderia ser então, talvez, pluralizar os espaços educativos e sociais com outras
narrações e narrativas? Orais, escritas, imagéticas, corporais? Multiplicar possibilidades, visibilizar
e pulular histórias, mundos, experiências?

Penso que a palavra-vida tem a ver com esta palavra, com isso que, se não fala de nós, fala
do nosso; é corpo e voz. E ela pode ser de tantas formas... Escrita, sinalizada, oralizada,
desenhada... Silenciada...

Chama-me a atenção que a língua que parece constituir a inclusão seja ou tenha sido, ainda,
a língua da normalidade: “o aluno não acompanha”, “ele atrapalha os demais”, “não aceito que ele
seja privilegiado com facilidades”, “ele nunca vai acompanhar os outros”... Por que não exercitar
uma língua da invenção? Da criação, da relação? Talvez sua gramática e sintaxe tenham a ver com
a possibilidade de ser de modo afirmativo, escrever inscrevendo-se, ler para além das letras,
espichar modos de ser e pensar – como indisciplina, como liberdade.

Sim, o estudante surdo que não fala oralmente nem em sinais, mas escreve, me causa
estranhamento e paixão: a alteridade radical me lembrando que a pluralidade das formas de ser,
estar e viver não cabem em nenhum compêndio. Conversamos, eu e ele, ainda um pouco por escrito
(engraçado isso de conversar por escrito estando frente a frente). E ele não narrava, contava,
escrevia apenas com as palavras sobre o papel. Seu corpo era puro verbo. Sua face era linguagem,
seu sorriso era narrativa.

Nestes tempos de chumbo e sequidão na garganta, alguns encontros nos lembram que a vida
brota por todos os poros... E pode pulsar. A beleza pode ser triste e seguir sendo beleza, sabem? É
belo que haja inclusão... É triste que ainda seja, para alguns, um dispositivo de normalização...

Mas somos insurgentes. Seguimos nas frestas, nas brechas: liberdade caça jeito, ainda que
no horizonte sibile o uivo da prisão injusta de sonhos e desejos... Incluir como inventar e buscar
beleza onde não são autorizadas. Por que não?

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UMA CARTA SOBRE INCLUSÃO...

REFERÊNCIAS

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

RIBEIRO, T.; SOUZA, R.; SAMPAIO, C. S. Conversa como metodologia de pesquisa: por que não? Rio de Janeiro:
Ayvu, 2018.

RICOUER, P. Educación y política: de la historia personal a la comunión de libertades. Buenos Aires: Prometeo
Libros; Universidad Católica de Buenos Aires, 2009.

SKLIAR, C. O argumento da mudança educativa. In: SAMPAIO, Carmen Sanches; PEREZ, Carmen Lúcia Vidal
(orgs.). Nós e a escola: sujeitos, saberes e fazeres cotidianos. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.

SKLIAR, C. Desobedecer a linguagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

SKLIAR, C. A escuta das diferenças. Porto Alegre: Mediação, 2019.

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EDUCAÇÃO E PODER: PEDAGOGIAS
EMANCIPADORAS E A INSURGÊNCIA DA ESCOLA
DEMOCRÁTICA

Umberto de Andrade Pinto


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

A relação entre educação e poder é tema recorrente na área educacional e deve ser analisada
a partir da explicitação dos diferentes contextos históricos em que ocorrem os fenômenos
educativos. A rigor, podemos afirmar que todo ato educativo é expressão de um exercício de poder,
consentido ou não, que remete necessariamente à dimensão política da educação. Partindo dessa
consideração inicial, o presente artigo busca analisar as relações entre educação e política, e
posicionar a pedagogia crítica como uma referência teórica fértil capaz de articular organicamente a
educação emancipadora com o papel da escola no horizonte utópico de uma sociedade efetivamente
democrática.

EDUCAÇÃO, PODER E POLÍTICA

Como sabemos, a educação é um fenômeno exclusivamente humano, à medida que,


diferente de outros animais, o ser humano não se reduz à sua dimensão biológica. Além de uma
base biofísica que constitui sua materialidade corpórea, ele é fundamentalmente constituído por
uma natureza humana produzida historicamente no universo simbólico da cultura. Nesse sentido,
Saviani (2011a, p. 13) sintetiza o trabalho educativo como “o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens”. Assim, é por meio de processos educativos intensos que
o ser biológico vai se humanizando na interação com os demais indivíduos, ao mesmo tempo em
que incorpora e difunde a historicidade do meio social e cultural em que vive. Por outro lado, a
história da humanidade é marcada por relações de poder entre os próprios homens, desde as
dimensões micro – de ordens mais individuais – até as macrorrelações estabelecidas entre os
diferentes agrupamentos humanos em contextos históricos específicos. Essas dimensões do poder se
manifestam de diferentes maneiras nos processos educativos imprimindo-lhes o caráter intrínseco
da educação como ato político, em especial nas sociedades marcadas por diferenças abissais no
acesso aos bens materiais e simbólicos que são produzidos coletivamente, mas apropriados de modo
desigual em função da posição que cada indivíduo ocupa na estrutura social. Assim, não existe
neutralidade em educação, todos os diferentes elementos que compõem um processo educativo são
marcados por uma dimensão política. Ao nos reportarmos para a educação escolar pública, a
dimensão política se expressa, por exemplo, desde o modo como se estabelecem as relações entre os
diferentes dirigentes governamentais e os integrantes da comunidade escolar local – no que se
refere à implementação dos projetos pedagógicos de cada escola – até o modo como ocorre a

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EDUCAÇÃO E PODER: PEDAGOGIAS EMANCIPADORAS E A INSURGÊNCIA DA ESCOLA DEMOCRÁTICA

interação entre o professor e os alunos, na escolha dos procedimentos didáticos e na bibliografia


utilizada pelo professor, na abordagem com que ele trata os conteúdos de ensino etc.

Considerando que as sociedades capitalistas são divididas em classes sociais com interesses
antagônicos, Charlot (1979) analisa quatro sentidos articulados entre si para demonstrar que a
educação é política. Inicialmente, o autor afirma que a educação é política ao transmitir os modelos
sociais: ela transmite desde a infância até a idade adulta os comportamentos que prevalecem em
uma sociedade. Os indivíduos assimilam os comportamentos da classe social a qual é vinculado,
mas ao mesmo tempo assimila também aqueles que pertencem às classes dominantes, que se
apresentam como comportamentos prevalecentes. Do mesmo modo, Charlot argumenta que a
educação forma a personalidade e difunde ideias políticas que interessam às classes dominantes:
seja ao formar um ser dócil, por exemplo, ou na difusão da ideia de liberdade, nos limites do
pensamento liberal. Finalmente, o autor argumenta que a educação é política por ser encargo da
escola, instituição social que está articulada aos interesses dos grupos privilegiados socialmente.

Ainda na perspectiva de entender a dimensão política da educação na sociedade de classes,


Weber (2004) contribui com o conceito de dominação, articulado ao de poder. O sociólogo
argumenta que nem toda ação social resulta em dominação, mas que isso ocorre na maioria das
vezes. Ele exemplifica com as comunidades linguísticas em que a elevação do dialeto ao idioma
oficial na constituição dos estados nacionais (caso da Alemanha) serviu ao aparato de dominação
política; sobretudo “a dominação exercida na <escola> estereotipa, de modo mais profundo e
definitivo, a forma e a preponderância da linguagem oficial” (WEBER, 2004, p. 187). Assim, o
autor conclui que todas as áreas da ação social se mostram profundamente influenciadas por
complexos de dominação, que ele define como um caso especial de poder. Argumenta ainda que em
outras formas de poder, e em especial na dominação, seus detentores não perseguem
exclusivamente interesses econômicos, embora os meios para alcançá-los são empregados para
conservá-la e influencia decisivamente o próprio caráter de sua estrutura. Weber (2004) atribui o
sentido geral de poder como “possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade
própria” (WEBER, 2004, p. 188) e a dominação como uma situação em que a vontade manifesta
do(s) dominador(es) quer influenciar e influencia a ação de outras pessoas (dominados).

Assim, podemos constatar que tanto o poder quanto a dominação, em acordo com Weber, se
aproximam do entendimento de política, como visto anteriormente em Charlot (1979). A partir da
constatação da dominação e do poder exercido por grupos dominantes sobre os demais grupos
sociais no seio das sociedades de classes, a implementação de uma pedagogia emancipadora deve se

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

articular a uma abordagem dialética das relações entre educação e sociedade. Nesse sentido,
Severino (2001) afirma que não podem ser desconsiderados alguns elementos fundamentais na
apreensão, na descrição e na interpretação dos fenômenos educacionais submetidos a uma
abordagem epistêmica dialética. Dentre outros elementos ele destaca que
[...] um conhecimento sobre a educação que se pretenda rigoroso e científico não pode
deixar de levar em consideração as forças de opressão e de dominação que atuam na
rede das relações sociais, que faz da sociedade humana uma sociedade política,
hierarquizada e atravessada pelo poder da dominação. Todo conhecimento que tem a
ver com a educação não pode deixar de enfrentar, de modo temático explícito, a
questão do poder, elemento que marca incisivamente toda expressão concreta da
existência humana (SEVERINO, 2001, p. 19).

A questão do poder que perpassa os processos educativos em uma sociedade de desiguais –


do ponto de vista dos poderes econômico, político e social – se expressa no caráter práxico da
educação que materializa o exercício da dominação.

Severino (2011) diferencia o campo de conhecimento das ciências humanas (psicologia,


antropologia etc.) do campo da ciência da educação, justamente na praxidade de seu objeto, ou seja,
“quando entramos no campo da ciência da educação, impõe-se agregar um outro elemento do olhar
científico, que possa dar conta [...] do caráter eminentemente práxico da educação” (SEVERINO,
2001, p. 17).

Por que caráter práxico e não caráter prático da educação? Ao empregarmos a expressão
práxico identificamos a potência da educação como uma atividade prática carregada de uma
intenção (teoria) transformadora da realidade.

A expressão práxico advêm do conceito de práxis desenvolvido por Marx e Engels. Em


duas das suas teses sobre Feuerbach eles afirmam que:
A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma
questão teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto
é, a realidade e o poder, o caráter terreno de seu pensamento [...]. A doutrina
materialista sobre a alteração das circunstâncias e da educação esquece que as
circunstâncias são alteradas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado
[...]. A coincidência da modificação das circunstâncias com a atividade humana ou
alteração de si próprio só pode ser apreendida e compreendida racionalmente como
práxis revolucionária (MARX; ENGELS, 1979, p. 12).

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EDUCAÇÃO E PODER: PEDAGOGIAS EMANCIPADORAS E A INSURGÊNCIA DA ESCOLA DEMOCRÁTICA

Assim, o conceito de práxis está intimamente vinculado à prática, uma vez que esta é a
referência para a transformação da realidade, mas não uma prática qualquer, e sim uma prática
carregada de intencionalidade, como expressão do caráter terreno do pensamento.

Para Marx não basta conhecer e interpretar o mundo de diferentes maneiras, o que importa é
transformá-lo. Em Filosofia da Práxis, Vasquez (1968) afirma que:
[...] a relação teoria e práxis é para Marx teórica e prática; prática, na medida em que a
teoria, como guia da ação, molda a atividade do homem, particularmente a atividade
revolucionária; teórica, na medida em que essa relação é consciente (VASQUEZ,
1968, p. 117).

Ele diferencia práxis de atividade, argumentando que “toda práxis é atividade, mas nem toda
atividade é práxis” (VASQUEZ, 1968, p. 185). Reside aí o caráter práxico da educação identificado
por Severino (2011). Ou seja, a educação enquanto atividade humana intencional não é uma
atividade qualquer, mas sim uma atividade prática saturada de teoria. Diferentemente de outras
atividades humanas orientadas por uma referência teórica de senso comum, e aí podemos falar de
práticas educativas informais (não intencionais), a educação (intencional) tem uma referência
teórica de cunho investigativo-filosófico (ciência-ética).

A partir do entendimento deste caráter práxico da educação, trataremos a seguir da


pedagogia como ciência prática e das teorias pedagógicas críticas como possibilidade de
implementação das pedagogias emancipadoras.

TEORIAS PEDAGÓGICAS E A PEDAGOGIA COMO CIÊNCIA PRÁTICA

Para tratar conceitualmente das teorias pedagógicas vamos recorrer à distinção que Saviani
(2011b) estabelece entre ideias educacionais e ideias pedagógicas. O autor reserva a expressão
ideias educacionais para se referir àquelas ideias que se reportam à educação a partir da análise do
fenômeno educativo, trabalho este desenvolvido tanto pelas ciências da educação quanto pela
filosofia da educação. Por outro lado, as ideias pedagógicas incorporam “as ideias educacionais,
não em si mesmas, mas na forma como se encarnam no movimento real de educação, orientando e,
mais do que isso, constituindo a própria substância da prática educativa” (SAVIANI, 2011b, p. 6).
Assim, podemos igualar esse conceito de ideias pedagógicas ao de teorias pedagógicas, esse último
se reportando diretamente à complexidade epistemológica da pedagogia como ciência.

Na mesma direção das contribuições de Severino (2011) sobre a produção do conhecimento


em educação, como visto anteriormente, em outro estudo (PINTO, 2011) buscamos ampliar o
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

entendimento da pedagogia como ciência prática, a partir das contribuições de Franco (2003),
Libâneo (1999), Pimenta (2000) e Schmied-Kowarzik (1988). Propomos identificar a pedagogia
como campo de conhecimento sobre e na educação. Campo de conhecimento, pois não se trata
apenas de teorias científicas, à medida que a prática educativa envolve outras formas e tipos de
conhecimento (senso comum, estética, ética/política, empiria, religioso etc.). Assim, a pedagogia se
constitui por uma abordagem pluricognitiva ao ser expressão desses diferentes tipos e formas de
conhecimento. Entretanto, ao mesmo tempo, a pedagogia constitui-se por uma abordagem
transdisciplinar dos fenômenos educativos ao articular e sintetizar a produção científica das
diferentes ciências da educação (clássicas) que lhes dão sustentação direta (Psicologia, Sociologia,
História e Filosofia) ou de modo mais indireto (Biologia, Antropologia, as Neurociências etc.). Por
outro lado, a pedagogia constitui-se como campo de conhecimento na educação, ao materializar-se
nas práticas educativas que estão em movimento, que estão acontecendo; e sobre a educação, por
teorizar e sistematizar as práticas educativas já experimentadas historicamente.

Assim, podemos associar o conceito de teoria pedagógica, como visto anteriormente, com o
conhecimento pedagógico produzido sobre a educação. Ou seja, por teorias pedagógicas
identificamos o conhecimento produzido historicamente na área de educação a partir da
sistematização de práticas educativas já vivenciadas.

TEORIAS PEDAGÓGICAS CRÍTICAS

Saviani (1984) diferencia as teorias em educação em dois grupos: teorias críticas e teorias
não críticas. As primeiras são aquelas que se articulam em torno de uma leitura dos fenômenos
educativos a partir do entendimento e da consideração da presença dos condicionantes econômicos,
políticos, sociais e culturais; ou seja, são as teorias educacionais/pedagógicas que analisam e
produzem as práticas educativas a partir do contexto histórico em que se inserem. Já as teorias não
críticas são aquelas hegemônicas nas sociedades de classes contemporâneas e identificadas como
escola tradicional, escola nova e escola tecnicista.

Cabe lembrar que esta clássica categorização das teorias de educação foi sistematizada por
Saviani (1984) na virada dos anos 1970 para os anos 1980, início do processo de redemocratização
da sociedade brasileira ainda sob a ditadura militar. Ao apresentar as teorias críticas, o autor listava
inicialmente um conjunto de teorias por ele denominadas de teorias crítico-reprodutivistas. Trata-se
de teorias que partem da análise do contexto histórico em que a educação – em especial, a escolar –
se insere, mas que ao denunciarem o papel de reprodução das desigualdades sociais que a escola

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EDUCAÇÃO E PODER: PEDAGOGIAS EMANCIPADORAS E A INSURGÊNCIA DA ESCOLA DEMOCRÁTICA

assume nas sociedades de classe acabam por depositar na educação escolar a função reprodutora
dessas próprias desigualdades. Desse modo, podemos identificá-las como teorias educacionais. Ou
seja, como já argumentamos, trata-se de teorias científicas que analisam o papel da escola nas
sociedades de classes, mas que não veem nenhuma possibilidade de intervenção pedagógica que
possa alterar a realidade social. Entretanto, Saviani (1984) apresenta outras teorias pedagógicas que,
para além da crítica, propõem uma intervenção na realidade educacional na perspectiva de
superação da sociedade de classes. Aí podemos exemplificar com a teoria pedagógica de Paulo
Freire, que já no início da década de 1960, ao propor uma pedagogia do oprimido, denunciava a
pedagogia tradicional como uma prática educativa de dominação. Ou seja, identificava a pedagogia
tradicional como uma pedagogia do opressor, e para a sua superação propunha uma pedagogia do
oprimido. Entendo que resida no pensamento freireano a inspiração de formulação da expressão
pedagogias emancipadoras (como propõe este simpósio do Endipe 2020).

Além da pedagogia de Paulo Freire, podemos ainda citar como outra teoria crítica em
educação, as experiências – ainda que pontuais – ocorridas no início do século XX por escolas
vinculadas aos sindicatos operários de gestão anarquista.

Entretanto, entendo que a teoria pedagógica crítica de maior repercussão no Brasil na década
de 1980 tenha sido a proposta do próprio Saviani (2011a) intitulada de pedagogia histórico-crítica.
No contexto de redemocratização da sociedade brasileira, algumas prefeituras assumidas por
governos progressistas difundiram muito as ideias pedagógicas sistematizadas por Saviani (2011a)
em suas escolas. Entretanto, a partir da década de 1990 com a queda do muro de Berlim, o refluxo
das ideias marxistas, a difusão do pensamento neoliberal, dentre outros fatores, contribuiu com o
também refluxo das teorias críticas na área educacional. Porém, os maiores desafios para a difusão
das teorias críticas em educação iriam ocorrer a partir de 2016 com o golpe
parlamentar/jurídico/midiático que destituiu a presidenta Dilma Rousseff e culminou com a eleição
de um governo de extrema direita em 2018, que aponta para uma ruptura radical dos avanços, ainda
que tímidos, ocorridos na área educacional desde o início da Nova República.

CONSIDERAÇÃO FINAL

Assim, é mais do que urgente recuperarmos o debate educacional que articula o papel da
escola na perspectiva de construção de uma sociedade efetivamente democrática. Para tanto, é
fundamental recuperarmos as experiências progressistas que tivemos na história da escola
brasileira, tanto quanto os avanços obtidos nas duas últimas décadas no que se refere aos estudos de
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

gênero, das sexualidades, e em especial, as experiências já em curso em torno das relações étnico-
raciais. Entendo, porém, que esses estudos, assim como as propostas de educação antirracista
devam se articular a uma proposta mais orgânica de educação, que aponte para a direção utópica de
superação da sociedade de classes.

REFERÊNCIAS

CHARLOT, B. A Mistificação Pedagógica. [S.l.]: Zahar Editores, 1979.

FRANCO, M. A. S. Pedagogia como ciência da educação. Campinas: Papirus, 2003.

LIBÂNEO, J. C. Pedagogia e pedagogos, para quê? São Paulo: Cortez, 1999.

MARX, K.; ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda, 1979.

PIMENTA, S. G. (org.). Didática e Formação de Professores: percursos e perspectivas no Brasil e em Portugal. 3. ed.
São Paulo: Cortez, 2000.

PINTO, U. A. Pedagogia Escolar: Coordenação Pedagógica e Gestão Educacional. São Paulo: Cortez Editora, 2011.

SAVIANI, D. Escola e Democracia. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1984.

SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas: Editora Autores
Associados, 2011a.

SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. rev. 1. reimp. Campinas: Editora Autores Associados,
2011b.

SCHMIED-KOWARZIK, W. Pedagogia Dialética: de Aristóteles a Paulo Freire. São Paulo: Brasiliense, 1988.

SEVERINO, A. J. A Pesquisa em Educação: a abordagem crítico-dialética e suas implicações na formação do educador.


Contrapontos: Revista de Educação da Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, ano 1, n. 1, jan./jun. 2001.

VAZQUEZ, Adolfo S. Filosofia da Praxis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968.

WEBER, M. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora da UnB, 2004. Vol. 2.

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A CULTURA VISUAL E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS:
QUESTÕES PARA REFLEXÃO

Adriana Hoffmann
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

Os termos relacionados à presença da imagem no cotidiano já se tornaram lugar comum nas


conversas da atualidade. Fala-se que “o mundo hoje é imagem”, que tudo acontece pela imagem,
que é preciso “vender uma boa imagem”, “a imagem é tudo” e que “uma imagem vale mais do que
mil palavras” entre outros jargões que se ouve usualmente no senso comum. O que significa estar
nessa época que glorifica a imagem e seus usos dessa forma? Como esse contexto de
preponderância da imagem afeta nossos modos de ver, ser, atuar, ensinar e aprender? E a presença
da imagem hoje no contexto da pandemia?

Tenho pensado sobre a relação entre imagem e educação desde minha formação inicial e
continuei nas pesquisas de doutoramento e na minha atuação na Universidade como professora e
pesquisadora. Inicialmente, pensávamos que a imagem da TV era a principal difusora de imagens
na década de 1990. O foco era a relação das crianças e jovens com a TV, o papel do professor na
mediação da relação com a TV, entre outras relações. No início dos anos 2000, viu-se que junto à
TV a internet começou a despontar muito rapidamente, mas ainda vivia-se “o entrar e sair da
internet” como se ela fosse algo fora da nossa vida. Nos dias de hoje, em pleno ano de 2020, já
estamos vivendo essa conexão on-line diária. Estamos na internet diariamente conectados. As trocas
de mensagens e resoluções via WhatsApp já substituíram boa parte das comunicações antes feitas
por ligações telefônicas ou mesmo encontros presenciais. E em todas essas comunicações on-line a
imagem torna-se cada vez mais presente.

Como nos lembram vários autores (JENKS, 1999; LIPOVETSKY; SERROY, 2011;
CRARY, 2012; CAMPOS, 2013; HERNANDEZ, 2013; MIRZOEFF, 2016), embora a visão não
seja o único sentido existente e o mundo não seja unicamente visual, temos que admitir que na
atualidade estamos cercados de telas com imagens todo o tempo. Vivemos uma preponderância da
visão (CAMPOS, 2013), um ocularcentrismo (JENKS, 1999), uma cultura-tela em que nos
tornamos o homo-ecranis (LIPOVETSKY; SERROY, 2011). Aquele que, segundo Lipovetsky e
Serroy, nasce, vive, trabalha, ama, se diverte, viaja, envelhece e morre acompanhado por telas em
todos os lugares por onde passa... Na década de 1990, nós íamos atrás das telas, hoje as telas vão
atrás de nós, estão em qualquer lugar. Estão nas nossas mãos com os celulares e nos seguem por
onde estivermos. Nas grandes metrópoles e cidades já não se vive sem elas e, como nos lembra
Canclini (1997), há muito tempo nossa cidadania já ocorre pelo consumo através dessas mesmas
telas. Mas que relação a cultura visual tem com tudo isso?

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A CULTURA VISUAL E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS: QUESTÕES PARA REFLEXÃO

CULTURA VISUAL E CONTEMPORANEIDADE

E o que estaria incluído na ideia/conceito de cultura visual? Já sabemos de início que não há
consenso nem entre os pesquisadores a respeito de uma definição do conceito. Estamos vivendo em
transformação e assim os conceitos também mudam de acordo com as mudanças que vão ocorrendo
no mundo. No entanto, como bem nos lembra Mirzoeff (2016), um dos principais estudiosos do
tema, há aspectos importantes de serem lembrados para saber do que falamos quando usamos o
termo “cultura visual”:
A cultura visual inclui as coisas que vemos, o modelo central de visão que todos
temos e o que podemos fazer em consequência. Por isso, a denominamos “cultura
visual”, pois se trata de uma cultura do visual. Uma cultura visual não é simplesmente
a soma de tudo o que tem sido feito para ser visto, como os quadros e os filmes. Uma
cultura visual é a relação entre o visível e os nomes que damos ao que é visto.
Também abarca o invisível e o que se oculta à vista. Em resumo, não vemos
simplesmente aquilo que está a vista e que chamamos de “cultura visual”. Antes
também, criamos uma visão do mundo que resulta coerente com o que sabemos e com
o que temos experimentado (MIRZOEFF, 2016, p. 19-20) (tradução livre da autora).

Nesse sentido, Jonathan Crary (2012), em seu estudo do observador, nos ajuda a perceber
que essa cultura visual que vivemos na contemporaneidade não é a mesma vivida nos séculos
anteriores, pois, como Mirzoeff destaca também, refere-se à visão de mundo que vamos
construindo. Como o mundo mudou, a cultura visual que nos fala e nos remete a ele também. Crary
procura fazer um estudo genealógico de como algumas dessas mudanças aconteceram e, para isso,
ele estudou como o observador foi constituindo seus modos de ver. Que modelo de visão, como nos
diz Mirzoeff, hoje torna-se predominante? Como foi essa construção anterior desde os idos do
século XIX que permitiu as mudanças que foram ocorrendo no século XX e que nos fizeram chegar
atualmente aos modos de ver no século XXI? Em diálogo com Walter Benjamin que também
refletiu sobre as mudanças nas relações e percepções dos sujeitos a partir do início do século XX,
Jonathan Crary nos ajuda a pensar como foi mudando o lugar do observador e, em consequência, os
modos de ver.

Crary enfatiza que há então um modelo confuso de visão no século XIX que se divide em
dois: artistas que criaram um tipo de visão e significação radicalmente novo enquanto no cotidiano
a visão permaneceu inserida nas limitações “realistas” que haviam organizado o século XV. Com
isso, parece que nesse período havia uma corrente realista dominando representações populares e
em outro espaço ocorriam experimentações artísticas de criação modernista. Se há uma ruptura na
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

natureza da visualidade – como aponta o autor – que ruptura seria essa? E que continuidade
haveria? Qual seria a relação entre as imagens digitais do presente e as da chamada era da
reprodutibilidade de que fala Benjamin?

Trata-se, como analisa Crary, de uma ruptura que ocorre à margem de uma vasta
organização do visual que se torna mais forte no século XX com a difusão da fotografia, cinema e
TV. Ruptura que, segundo Crary, depende do modelo realismo x experimentação. A noção de
revolução visual modernista supõe um espectador com um ponto de vista distanciado. O autor
destaca que não há um sujeito observador prévio a um campo em contínua transformação. É o
próprio contexto em mudança que vai conformando esse sujeito que observa. No contexto histórico
da visão o que muda é a pluralidade de forças e regras que compõem o campo no qual a percepção
ocorre... Como Mirzoeff nos lembra “ver é algo que fazemos e não deixamos de aprender a fazer” e
a tecnologia visual de hoje é parte desse processo de aprendizagem que estamos fazendo
continuamente e através do qual sabemos que ver é mudar. A visão do mundo que vamos
conformando – como nos lembra Mirzoeff – não depende tanto de “como vemos” quanto do que
fazemos com o que vemos. O autor nos ajuda a compreender que construímos uma visão de mundo
com sentido a partir do que já sabemos ou do que cremos saber. Assim, ele traz a discussão de que
vivemos num mundo em permanente mudança no qual a imagem tem papel crucial destacando que
vemos não o que está para ser visto, mas o que nosso cérebro nos permite ver.

Como aponta Crary, a maioria das funções historicamente imputadas ao olho humano está
sendo suplantada por práticas nas quais a imagem não tem mais uma relação com a posição de um
observador. Perde-se, a partir das muitas tecnologias da visão, essa relação com um referente e
assim a imagem não precisa mais ser criada e muito menos entendida como mimese da realidade.
Nada mais relacionado ao nosso contexto atual de comunidades em bolhas, de dicotomias e visões
de mundo construídas com fake news e memes por todos os lados onde o que vale são as imagens
que “combinam” com o meu mundo, que minha visão de mundo e meu contexto de vida me
permitem entender. O que esse contexto, também chamado por alguns estudiosos de pós-verdade,
traz como desafio para nós professores formados e em permanente formação?

A VISUALIDADE E A LITERACIA VISUAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

O contexto atual antes da pandemia e também na pandemia está repleto de fake news e pós-
verdades sobre os diferentes temas que os abarcam: vacina e não vacina, validação da epidemia e
não validação, confiança ou não na ciência, entre outros temas. Esse contexto amplia a reflexão

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A CULTURA VISUAL E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS: QUESTÕES PARA REFLEXÃO

sobre a literacia visual. Para pensar a visualidade e sua relação com os professores, trago alguns
autores, estudiosos da cultura visual, que nos ajudam a refletir a respeito. Pensaremos as possíveis
relações dessa visualidade com a literacia visual. Pensar que estamos num contexto de pandemia em
que hoje a maior parte de nossas comunicações passa pelo visual e em que professores estão tendo
que produzir videoaulas para alunos amplia ainda mais esse debate.

Hernandez (2013) nos convoca a “pensar os estudos da cultura visual como uma
‘metodologia viva’ considerando-a como algo em contínua transformação à medida que novas
perguntas colocadas pela cultura visual afetam nossos modos de visão já que os estudos da cultura
visual são, de fato, uma espécie de ‘atitude intelectual’” como uma sensibilidade que permite ver as
problemáticas diante das imagens. O mesmo autor nos lembra, trazendo Banks (2010, apud
HERNANDEZ, 2013) os dois motivos apontados para o crescente reconhecimento e interesse dos
estudos com as imagens: 1) a onipresença das imagens nas sociedades serviu de reinvindicação para
os pesquisadores apontarem a necessidade de estudar as imagens existentes e 2) a suspeita de que as
imagens podem revelar o que não é possível por outros meios. Hernandez acrescenta a esses dois a
facilidade de acesso a equipamentos de produção de imagens como câmeras fotográficas e de vídeo
e programas de edição, e, hoje, complementaríamos acrescentando também a ampliação do acesso
de boa parte das pessoas ao celular como um dispositivo que integra fotografia, vídeo, edição e
ainda diferentes possibilidades com aplicativos de imagens. Nesse contexto, ampliam-se as
possibilidades de criar e produzir imagens pelos sujeitos e, desse modo, maiores necessidades de
investigar-se os sentidos, representações, imaginações, visibilidades e invisibilidades geradas nesse
contexto imerso em múltiplas imagens. Hernandez nos auxilia quando afirma que considera:
[...] a cultura visual não somente uma atitude ou metodologia viva, mas um ponto de
encontro entre o que seria um olhar cultural (visualidade) e as práticas de
subjetividades que se vinculam. Esse ponto de encontro permite pesquisar as relações
entre os artefatos da cultura visual e aquele que vê (e é visto) e os relatos visuais que,
por sua vez, constroem o visualizador. Essa aproximação permite assinalar ao menos
duas posições presentes nas aproximações: a pesquisa sobre e a partir da cultura visual
na educação. A primeira é a que considera que a cultura visual são os objetos e
artefatos visuais que nos rodeiam e com os quais interagimos. Diante dessa posição, o
que sustento é que o relevante nas pedagogias da cultura visual não são os objetos,
mas sim as relações que mantemos com eles. Disso, advém a importância de indagar
sobre essas relações na pesquisa. A segunda convida a explorar a noção de produtores
da cultura visual dos indivíduos, na medida em que não se trata somente de fazer com,

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

mas também de ser com as representações e artefatos da cultura visual


(HERNANDEZ, 2013, p. 83) (grifos da autora).

A partir do trazido por Hernandez, pode-se questionar: como nós professores estamos sendo
e nos fazendo na relação com essa cultura visual que faz parte do contexto atual? Como professores
usam e até mesmo criam com os elementos da visualidade no seu cotidiano? Como estamos fazendo
com e sendo com esses artefatos da cultura visual? Muitas vezes, como “adultos”, o professor é
aquele que diz saber usar e se relacionar melhor com essa cultura visual em mudança constante. No
entanto, percebemos que o uso feito pelo professor em algumas instâncias cotidianas como as das
redes sociais, por exemplo, não é muito diferente do uso feito pelas crianças ou até mesmo pelos
jovens. Parece-nos que há um certo modo de relacionar-se que acaba fazendo parte do perfil dos
usuários daquela plataforma ou rede. Diante disso, podemos todos questionar cada um para si
mesmo: que artefatos visuais são esses com os quais nos relacionamos diariamente? E como nos
relacionamos e produzimos com eles? Como isso está ocorrendo nesse contexto de pandemia?
Como estamos nos relacionando com as visualidades que a pandemia mostra e as que ela esconde,
como estamos sendo na relação com essas imagens que compartilhamos ou que chegam até nós?

Nesse contexto, algumas questões sobressaem como as trazidas por Reis (2014): por que
prestamos mais atenção em umas coisas do que em outras? Vemos com mais atenção ou detalhe
aquilo que compreendemos ou o que nos é “estranho”? Que conhecimentos temos que dominar para
conseguirmos ver e interpretar as imagens? Que relações estamos criando com as imagens que
vemos e com o que produzimos a partir delas? E como esse vínculo e relação com as imagens
acontece?

Recentemente, uma combinação de 4 fotos usadas em diferentes redes (linkedin, facebook,


instagram e tinder) virou um meme de brincadeira que nos faz pensar sobre esses modos de relação
e uso das imagens (em anexo). Trago aqui alguns dos memes com fotos de perfil em diferentes
redes sociais para debate. A questão de fundo é: como você se mostra em cada espaço? Que
relações cada imagem provoca em cada contexto? O que situações de brincadeira como essa nos
apontam sobre as nossas relações com as imagens nas diferentes redes?

Essa brincadeira nos faz pensar sobre as visualidades que temos em diferentes espaços de
acordo com os objetivos ou os grupos a que pertencemos em cada uma delas. Diferenças que nem
sempre percebemos. Quando falamos que temos diferentes identidades em cada espaço, que
podemos nos mostrar de diferentes formas, esses memes mostram de forma divertida essa reflexão
sobre quem somos e como nos mostramos visualmente em cada espaço. Por esse motivo,

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A CULTURA VISUAL E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS: QUESTÕES PARA REFLEXÃO

Hernandez nos lembra sobre a necessidade de ampliarmos cada vez mais nossas possibilidades de
literacia visual já que ela:
[...] deve permitir […] analisar, interpretar, avaliar e criar, a partir das relações
estabelecidas entre saberes que circulam pelos “textos” orais, auditivos, visuais,
escritos, corporais e, em especial, aqueles vinculados às imagens que saturam as
representações mediadas pela tecnologia nas sociedades contemporâneas
(HERNÁNDEZ, 2007, p. 22).

Interessante perceber como as possibilidades de analisar, interpretar e criar são sempre


inúmeras. Ao procurarmos as relações nossas e de outros nessas diferentes redes com as imagens de
perfil paramos para pensar algo que muitas vezes não se comenta: as propriedades e funções de
cada local social e como, através dos memes em formato de brincadeira com imagens, isso aparece
claramente. O que cada conjunto de imagens e as relações entre elas e nós aponta? Que no mundo
atual construímos uma imagem nossa dependendo do público com o qual queremos falar? E quem
não foi – a partir dessa brincadeira – olhar as suas imagens nos seus perfis para ver como aparecia e
estava dialogando com elas nas redes?

CONVERSA COM/A PARTIR E ALÉM DAS IMAGENS E PRÁTICAS EDUCATIVAS


POSSÍVEIS

Tendo pensado sobre o contexto da cultura visual nos dias atuais e a necessidade de todos
nós construirmos a nossa literacia, porque não entendemos as imagens que nos chegam da mesma
forma. Como professores, também precisamos ampliar nosso processo de literacia para poder
construir novas práticas. O contexto do isolamento social na pandemia forçou-nos a termos relações
com as imagens em usos que talvez muitos de nós nunca tivéssemos pensado antes. Quem, dentre
os professores, por exemplo, em janeiro desse ano, já havia dado uma aula on-line, feito ou
participado de uma videoconferência que atualmente na pandemia estão se tornando usuais?

Alguns dos autores que dialogo nos estudos da cultura visual, além dos aqui já mencionados,
trazem a discussão da conversa como metodologia da conversa sobre as imagens/com as imagens/
a partir das imagens e para além das imagens como metodologia de pesquisa e de prática didática
em sala de aula. A partir do que nos diz Alfred Pla, essas metodologias se assemelham a fluxos e
relações. Assim, ao propor atividades para conversar com as imagens, trabalhamos com a ideia de
que também podemos aprender e refletir sobre as práticas e usos que fazemos da imagem no
cotidiano. A partir das experiências vividas com elas pensamos sobre como “aprendemos a ser” na
relação com elas. E que aprendendo a ser aprendemos também a ver.
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Algumas possibilidades dessas conversas com as imagens são algumas das atividades que
costumo fazer nas minhas aulas pedindo aos alunos que olhem as últimas cinco postagens de uma
das suas redes sociais. Que imagens foram? Sobre que temas? Com que objetivo? O que
comunicam e para quem parecem comunicar? O que falam de você? Será que todos se dão conta do
que as imagens falam de nós mesmos? Como eles se veem e como são vistos? Esse exercício
conjugado com a brincadeira dos memes que trouxe anteriormente nos mostra que, muitas vezes, as
redes mostram mais de nós do que supúnhamos. Essa proposta seria um conversar com as imagens
e pensar provocações ou reflexões sobre elas.

A partir dessas imagens o que não é visto ou está visível? O que podemos ou queremos dar
visibilidade? E como podemos extrapolar as próprias imagens e ir além delas? Outra, é pensar a
partir dessas imagens outras imagens, outras criações e debates e até mesmo conhecer novas
linguagens para novas formas de produção.

Hernandez (2013) considera a cultura visual não somente uma atitude ou metodologia viva,
mas um ponto de encontro entre o que seria um olhar cultural (visualidade) e as práticas de
subjetividades que se vinculam. São várias as práticas educativas possíveis que se realizam com e a
partir de imagens: trabalho visualização e debate de filmes, charges, memes, postagens de redes
sociais, vídeos do Youtube, conhecimento das lógicas de enquadramento, fotografia, animação
entre outras que, em pequenos exercícios, ajudam aos que com elas tem contato a enxergar outros
caminhos para ver e criar imagens. Afinal, como nos diz Hernandez (2013), trata-se de “ser com” a
imagem ao “fazer com” a imagem. Isso permite pesquisar as relações entre os artefatos da cultura
visual e aquele que vê (e é visto) e os relatos visuais que, por sua vez, constroem o visualizador.
Nossa formação e nossas práticas educativas andam juntas todo o tempo.

Finalizando, diríamos, como afirma Mirzoeff, que hoje trata-se de trabalhar também com o
“direito ao olhar” porque as visualidades não são dadas, mas construídas historicamente e perceber
que o que nos permitiu ver uma coisa e não outra é também trabalhar com as visualidades. Afinal,
mesmo trabalhando com diferentes linguagens reforçamos com esse autor que a teoria da cultura
visual “não são só palavras sobre uma página mas também coisas que se fazem”.

O que vamos escolher fazer com as imagens para ampliar os direitos de olhar para o que
nem sempre é mostrado ou é visto? O que vamos escolher para trabalhar com as imagens de forma
cuidadosa, criteriosa e lenta e não rápida e descuidada e diante do excesso por pensar que a imagem
já disse tudo? Quem sabe a forma como estamos convivendo forçosamente com a imagem no
contexto da pandemia não nos possibilite outros “direitos de olhar” que antes eram invisibilizados

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A CULTURA VISUAL E AS PRÁTICAS EDUCATIVAS: QUESTÕES PARA REFLEXÃO

no cotidiano e que a pandemia escancarou a todos nós? O que as práticas diárias com a imagem
estão permitindo, a todos nós, professores aprender? Qual o lugar da imagem hoje no cotidiano do
professor em contraposição do lugar que a mesma ocupava antes da pandemia? Imagino que essa
aprendizagem está trazendo novas relações para todos os professores. O lugar da imagem nas aulas
e nas relações foi visibilizado claramente. Esse lugar já existia mas muitos não o viam porque nunca
o haviam vivido.

Hernandez (2013) nos lembra que trabalhar com e sobre imagens pode ajudar a
contextualizar os efeitos do olhar e, com práticas críticas explorar as experiências (efeitos, relações)
em torno de como o que vemos nos conforma podendo elaborar respostas não reprodutivas. São tais
práticas que podem produzir criações, a partir de imagens, que tragam à tona os direitos do olhar.
Nossas praticas educativas com as imagens antes e agora na pandemia nos permitem perceber o que
se exibe/se põe à vista e o que se esconde nas imagens com as quais convivemos?

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CAMPOS, Ricardo. Introdução à cultura visual: abordagens e metodologias em ciências sociais. Lisboa: Editora
Mundos Sociais, 2013.

CANCLINI, Nestor Garcia. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. Rio de Janeiro: Ed
UFRJ, 1997.

CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: Visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

HERNANDEZ, Fernando. Pesquisar com imagens, pesquisar sobre imagens: revelar aquilo que permanece invisível nas
pedagogias da cultura visual. In: MARTINS, Raimundo, TOURINHO, Irene (orgs.). Processos & práticas de
Pesquisa em Cultura Visual e Educação. Santa Maria: Editora da UFSM, 2013.

JENKS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Ed Aleph, 2008.

LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. Cultura Mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2011.

MIRZOEFF, Nicholas. A teoria não são só palavras numa página, mas também coisas que se fazem. Revista Buala,
[s.l.], jun. 2018. Entrevista concedida a Filipa Cordeiro da FCSH-UNL. Disponível em: https://www.buala.org/pt/cara-
a-cara/a-teoria-nao-sao-so-palavras-numa-pagina-mas-tambem-coisas-que-se-fazem-entrevista-com-n/. Acesso em:
2019.

MIRZOEFF, Nicholas. Como ver el mundo: una nueva introducción a la cultura visual. Espanha: Ed Paidós, 2016.

REIS, Ricardo. Um olhar sobre o papel das tecnologias da visão na construção de noções e práticas de literacia visual
entre jovens. Revista Lusófona de Educação, Portugal, n. 26, 2014.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Anexo dos MEMES – exemplos retirados de redes sociais não


identificadas

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE
PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A
INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS EDUCATIVAS NA
RELAÇÃO CIDADECIBERESPAÇO

Edméa Santos
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO: ABRINDO A CONVERSA SOBRE O CAMINHAR UBÍQUO –


PESQUISANDO NA CIBERCULTURA

O texto apresenta o dispositivo do caminhar ubíquo em contexto de prática de pesquisa-


formação na cibercultura. Entendemos por caminhar ubíquo o ato de caminhar por territórios físicos
em conexão com o ciberespaço, produzindo, registrando e significando narrativas de pesquisa-
formação na cibercultura. O caminhar é trazido como ato forjado nos acontecimentos de
aprendizagem e formação do pesquisador em relação direta com equipamentos culturais, pessoas e
suas significações em movimento.

A cibercultura é a cultura contemporânea mediada por tecnologias digitais em rede na


relação cidadeciberespaço (SANTOS, 2005; 2014; 2019). Desde as práticas cotidianas vivenciadas
pelo homem ordinário, que tece seu dia a dia, mais ou menos inventivo, no mais alto nível de
desenvolvimento científico e tecnológico forjado por coletivos e instituições, tudo passa hoje por
mediações diretamente ligadas ao digital em rede. Mais do que nunca, a relação cidadeciberespaço
vem se instituindo por seres humanos em movimento, em trânsito. Trânsitos que rompem fronteiras
físicas e simbólicas. Obviamente, não podemos esquecer os intensos níveis de exclusão digital, que
não deixa de ser, também e sobretudo, existencial.

Esse contexto é engendrado pelo capitalismo cognitivo, que desloca para os países mais
pobres e em desenvolvimento a força produtiva, própria das sociedades industriais, colocando nos
centros econômicos seus núcleos inventivos. Uma nova ideia pode forjar novos e poucos ricos, que
exploram a força de trabalho de muitos outros excluídos, mesmo sabendo que estes nem podem ser
considerados excluídos, uma vez que jamais tiveram acesso aos modos e aos meios de produção
engendrados pelas tecnologias digitais em rede. Novos arranjos, outras intensificações de antigos
processos de opressão e luta.

Neste texto, optamos por falar das lutas, de invenções de pesquisa e formação. Lutas essas
que, no campo da educação, mais precisamente do âmbito da formação de professores-
pesquisadores, instituem fazeres e saberes, ou seja, fazemos para saber. Criamos e inventamos
nossa existência, para com ela operar em ato, em ato de currículo. Nosso trabalho, junto ao
GPDOC-UERJ/UFRRJ, sempre procurou investir na criação de dispositivos de pesquisa-formação
na cibercultura. Nossas pesquisas são forjadas em contextos de docência. O ensino é campo de
pesquisa, objeto de estudo, práticas de pesquisa e formação. Não dicotomizamos o fazer docente do
fazer investigativo. Esta opção é política, uma vez que a docência e, consequentemente, o ensino

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

são negligenciados pelas políticas e agendas de fomentos dentro e fora de nossas universidades.
Muitas vezes, nossas pesquisas são refutadas por pares que não se implicam com a agenda de não
dicotomizar ensino de pesquisa. Pagamos um preço bastante alto, por também pesquisar na
cibercultura.

Pesquisar na cibercultura é, antes de mais nada, buscar compreender o nosso tempo, seus
fenômenos científicos, tecnológicos, artísticos, comunicacionais, antropossociais e culturais, mais
especificamente ligados aos processos formativos. Compreender para atuar, atuar compreendendo,
formando e se formando em rede. Nosso investimento cotidiano busca imbricar a docência com e
na pesquisa acadêmica de excelência. Isso significa criar metodologias de pesquisa sintonizadas
com os movimentos do nosso tempo. Não nos interessa replicar metodologias de pesquisas
qualitativas que não nos permitem acompanhar, vivenciar e atuar na relação cidadeciberespaço em
conexão ubíqua (SANTOS, 2014; 2019; ALMEIDA; SANTOS; SILVA, 2019; WEBER; SANTOS,
2010; MARTINS; SANTOS, 2019).

Nossas inspirações teórico-metodológicas buscam bricolar operações conceituais inspirados


nas abordagens da multirreferencialidade (Ardoino, Barbier, Macedo, Barbosa, Borba) com as
pesquisas com os cotidianos (Certeau, Alves) e a própria cibercultura (Lévy, Lemos, Santaella,
Silva, Santos). Bricolar não é misturar e/ou praticar posturas ecletistas. Entendemos a bricolagem
como prática multirreferencial do tecer junto e com coerência epistemológica, subvertendo o
pensamento único e disciplinar.
Os bricoleurs não são transgressores enlouquecidos, são cronistas da diferença e sua
presença e influência infindáveis. [...] O bricoleur projeta-se, lançando-se, por uma
errância que se quer fecunda e implicada à criação. Configura-se no sujeito erótico em
ação, está muito mais próximo do artista, do artesão (MACEDO, 2015, p. 60).

A cibercultura é, para nós, não apenas o contexto ou o nosso próprio tempo histórico, mas,
também e sobretudo, um campo de conhecimento que se atualiza no e com os cotidianos. Assim,
vimos instituindo ao longo dos últimos anos um saber específico e legitimado não só pelo homem
ordinário, mas, também e sobretudo, por uma interdisciplinar comunidade científica. Os estudos da
cibercultura, principalmente inspirados por pares brasileiros, para nós também são inspiração
epistemológica. No Brasil, contamos com a Associação Brasileira de Pesquisa em Cibercultura
(ABCiber), comunidade científica da qual fazemos parte e que muito nos forma pelas práticas
ciberculturais que estudamos e vivenciamos de forma autoral.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Não separamos teoria de metodologia nem estas das práticas e experiências cotidianas. Com
inspiração nos estudos das epistemologias das práticas, a exemplo da abordagem multirreferencial,
vamos tecendo a cada pesquisa-formação na cibercultura um repertório autoral que vem se
materializando ao longo dos últimos 20 anos em diversos dispositivos científicos e/ou curriculares.
Foram trabalhos no início desenvolvidos por nós individualmente e depois também pelos coletivos
GPDOC/UERJ (há mais de 13 anos) e GPDOC/UFRRJ (mais recentemente).

Compreender os fenômenos que emergem na cibercultura, atuando no protagonismo


cotidiano, nos permite aprenderensinar forjando práticas e dispositivos que materializam
etnométodos, ou seja, “suas maneiras interativamente constituídas de compreender e resolver as
coisas da vida e da formação” (MACEDO, 2010, p. 43). Assim, com nossos etnométodos,
instituímos nossas operações conceituais para com estas atuar em práticas outras, muitas vezes já
imbricadas nas e pela relação cidadeciberespaço.

Concordamos com Macedo (2010), para quem o ato de compreender não se limita a abstrair
ou entender simplesmente. “Em se tratando de um fenômeno humano vinculado à própria condição
do existir – ao existir, existimos compreendendo –, [compreender] implica uma atividade que
engloba um conjunto de condições e possibilidades, via aprendizagem, de transformar em
realidades significativas para o sujeito acontecimentos que emergem no dia a dia da vida”
(MACEDO, 2010, p. 23).

A tradição das convencionais “pesquisas qualitativas”, que partem das teorias e buscam a
empiria, muitas vezes para validar conceitos e operações conceituais clássicas, tem se caracterizado
por usar as falas e narrativas dos sujeitos, recortando-as apenas para validar categorias selecionadas
a priori nos estudos teóricos (revisões de literatura e ou revisões temáticas). O quadro teórico
muitas vezes configura-se como uma “igrejinha epistemológica”, não permitindo a emergência de
novas operações conceituais, uma vez que não há imersão direta nos cotidianos. Buscamos
exatamente refutar essa prática de pesquisa. Procuramos “mergulhar com todos os sentidos”
(ALVES, 2001) no campo de pesquisa empírica – sempre na relação cidadeciberespaço. Nosso
esforço é mesmo “virar de ponta-cabeça” (ALVES, 2001). São as práticas cotidianas tecidas na
empiria que descortinam as invenções e, em última análise, os nossos dispositivos de pesquisa-
formação na cibercultura.

Vivenciamos uma fase da cibercultura forjada pelo alto desenvolvimento tecnológico que
faz a cidade (territórios físicos) mais conectada ao ciberespaço (espaço telemático habitado por
seres humanos em processos de comunicação com a internet, atualmente acessível por dispositivos

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

móveis) e vice-versa. Quando Lévy (1999) conceituou, no século passado, a cibercultura como a
cultura do ciberespaço, ele jamais separou o ciberespaço das cidades. Sua ênfase no ciberespaço se
deu pela emergência das práticas sociais na internet, que na época era acessada por dispositivos sem
mobilidade e pelo acesso local, a exemplo dos computadores de mesa conectados à rede
inicialmente por conexão telefônica. Com o avanço tecnológico, fomos vivenciando experiências
mais imbricadas na relação cidadeciberespaço.

Muitos autores fizeram esta separação, cidade versus ciberespaço, inclusive repetindo em
seus textos tal dicotomia até os dias atuais. Essa observação tem a ver com nossa atuação no campo,
como pesquisadora atuante e protagonista no campo e no tema com meu coletivo GPDOC,
participando de várias bancas de defesas de dissertações de mestrado e de teses de doutorado,
dentro e fora do Brasil, bem como avaliando artigos para importantes canais de difusão científica.
Vem de nosso próprio testemunho de trabalho no campo da Educação em interface com a
Comunicação.

Valoriza-se, aqui, a interação efetiva do pesquisador na relação cidadeciberespaço por meio


de saberes urbanos, comunicacionais, pedagógicos, didáticos, mobilizados com tecnologias digitais
em rede. A inspiração teórica e metodológica dialoga no campo de interface educação/
comunicação/tecnologias, mais especificamente na atual fase da cibercultura que, entre outros
eventos, vem se materializando por dispositivos móveis em rede. Narrativas autobiográficas
advindas de caminhares ubíquos da autora em suas itinerâncias urbanas são trazidas neste texto para
materializar apontamentos introdutórios sobre o dispositivo em questão. Assim, não dissociamos a
experiência formativa da pesquisa de seus processos de narração. Como nos sugere Macedo (2015):
No que concerne à relação entre a experiência e a narração sabe-se que a experiência
tem um claro conteúdo narrativo porque transcorre no tempo, vive a duração, portanto,
reflete as vivências e as implicações dos sujeitos e seus protagonismos. [...]. A
valorização da narração coloca o narrador numa condição de autor e mais importante
ainda, de viver um processo de autorização, como já dissemos, de tornar-se coautor de
si (MACEDO, 2015, p. 46).

Além dessa introdução, “Abrindo a conversa sobre o caminhar ubíquo”, em que


apresentamos a noção de cibercultura em contextos de mobilidade ubíqua, em sintonia com nossa
itinerância de pesquisa-formação na cibercultura, e em que apresentamos as questões motivadoras
para este trabalho onde buscamos contextualizar a presente produção, organizamos o texto em mais
duas partes: 1. “Alguns fundamentos para o caminhar ubíquo”, onde apresentamos fundamentos e
noções teórico-metodológicas que nos permitiram forjar o dispositivo “caminhar ubíquo”,
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

praticando diferentes atos de educação on-line; 2. “Saberes para um caminhar ubíquo”, em que
apresentamos indicadores que poderão inspirar outros professores-pesquisadores, para que outros
caminhares ubíquos possam ser praticados.

ALGUNS FUNDAMENTOS PARA O CAMINHAR UBÍQUO

Quando não dispúnhamos das redes e conexões móveis (2/3/4/5 G, redes wifi, entre outras) e
dos dispositivos móveis (notebooks, laptops, tablets e celulares inteligentes), tínhamos mesmo a
sensação física de uma pretensa separação entre cidade e ciberespaço. Nossos corpos foram
condicionados ao desktop, à mesa de trabalho. As mesas de trabalho de nossos escritórios,
laboratórios, ateliês, salas de aula presenciais, abrigavam nossos computadores de mesa, que
também chamávamos e ainda chamamos de desktop. Inclusive usávamos, e ainda usamos, nossos
dispositivos móveis (laptops, notes e tablets) sobre as mesas físicas de nossos escritórios ou
equipamentos urbanos (cafés, museus, escolas, entre outros). O que mudou e vem mudando, cada
vez mais radicalmente, é a nossa mobilidade em seus diversos níveis: física (quando nos
deslocamos com nosso corpo físico), cognitiva (quando nos deslocamos com nossa imaginação e
pensamento) e informacional (quando nos deslocamos com nossas informações, enviando e
recebendo mensagens, principalmente com o desenvolvimento do digital em rede, cada vez mais
ubíquo e conectado).

Vivemos e praticamos a cibercultura atualmente em movimento ubíquo. Nossos corpos


libertaram-se dos desktops cada vez mais, graças aos acessos e às conexões das redes e dispositivos
móveis, das mídias locativas e da própria internet em sua era 4.0. Em outros trabalhos (SANTOS,
2003; 2005; 2012; 2014; 2019), já apresentamos de alguma forma a evolução da web da fase 1.0 à
fase 4.0. Neste trabalho, destacaremos a web 4.0, que já não é mais e apenas web. Costumamos
dizer que a web se libertou dela própria. A internet explodiu e se derramou pelas cidades, nas e com
as coisas que se materializam, cada vez mais, em objetos inteligentes (SANTOS; FELIPPO;
SANTOS, 2019). Da internet das coisas aos hiperalgoritmos, são muitas as mudanças, e com elas
novos desafios vêm emergindo nos contextos de nossas pesquisas. Desafios e dilemas vivenciados
por nós em tempos de pós-verdade e fake news (SANTAELLA, 2019), só para citar um exemplo.

Durante anos, estamos investindo em atos de currículos e dispositivos na cibercultura,


forjando e atualizando nosso método de pesquisa-formação na cibercultura. Nossa singularidade
inventiva e autoral parte do esforço junto ao coletivo GPDOC de criar e forjar uma docência
epistemologicamente curiosa, como também nos ensinou Paulo Freire (1997). Para tanto, não

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

podemos deixar de forjar e inventar a própria metodologia, para com ela aprender e nos
autorizarmos também como intelectuais cotidianistas e multirreferenciais na cibercultura. É
exatamente neste contexto que o dispositivo do caminhar ubíquo vem se instituindo como um
esforço de compreender a formação na cibercultura. “Implica a construção de explicitações e
perspectivas propositivas [...], envolve a própria itinerância reflexiva e de atividade do autor. [...].
Compreender se caracteriza como uma atividade de fato, que, em si, já é mediadora, ou seja, produz
mudança, alterações em nós e nos outros” (MACEDO, 2010, p. 24).

Para este trabalho, nossa principal pergunta de pesquisa é: como pesquisar em educação na
cibercultura em tempos de mobilidade ubíqua? Para respondê-la, não podemos deixar de fazer
outras perguntas em desdobramento:

• Como pesquisar fora do desktop e em movimento vivenciando, de fato e


sobremaneira, a relação cidadeciberepaço em ubiquidade?

• Que dispositivos podemos inventar, forjar e até ressignificar, uma vez que não
descartamos a experiência vivenciada em anos de pesquisa?

• Como aproveitar os potenciais comunicacionais dos artefatos culturais (celulares e


mídias locativas), mais especificamente o digital ubíquo na relação
cidadeciberespaço, instituindo dispositivos e artefatos didáticos e científicos?

O artigo não pretende responder de forma completa e definitiva a todas as questões acima
elencadas, mas tratará de cada uma delas a partir de eventos de nossa pesquisa-formação na
cibercultura, cada vez mais em movimento, pois, como nos recorda Jacques (2012), sempre nos
movimentamos:
A história das origens da humanidade é uma história do caminhar, é uma história de
migrações dos povos e de intercâmbios culturais e religiosos ocorridos ao longo de
trajetos intercontinentais. E às incessantes caminhadas dos primeiros homens que
habitaram a terra que se deve o início da lenta e complexa operação de apropriação e
de mapeamento do território (JACQUES, 2012, p. 44).

O que muda com o movimento e com as práticas do caminhar em nosso tempo é exatamente
a relação cidadeciberespaço, que vem alterando inclusive nossas práticas de mapeamento do
território, que não é mais apenas físico, adquirindo condição lógica e simbólica que, em interstício
com a condição física, desafia sobremaneira as nossas práticas de pesquisa-formação na
cibercultura.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Toda pesquisa-formação na cibercultura começa com dilemas docentes. Tais dilemas,


muitas vezes, são fruto de questionamentos que emergem no exercício do magistério e podem partir
de demandas dos próprios estudantes. Lembro-me, no contexto de aulas em cursos de graduação e
de pós-graduação, que diversos estudantes relatavam que não frequentavam equipamentos culturais
e que, muitas vezes, nem se movimentavam livremente pela cidade.

Muitas vezes, o cotidiano é circunscrito no território físico dos bairros, dos condomínios
e/ou conjuntos habitacionais, com limitadas circulações desses espaços para espaços de estudo,
práticas religiosas, trabalho e redes familiares e de amigos. Apesar dessas limitações de circulação
no território físico, a mobilidade cognitiva e informacional já é uma realidade mediada pelos seus
dispositivos móveis, uma vez que nossos alunos são usuários desses dispositivos. Constatamos em
nossos contextos de pesquisa e formação que nossos alunos dispõem de dispositivos móveis, mas
não acessam suas cidades em plenitude. Não raro, são apartados do direito à cidade. Esse direito
começa pelo direito de se movimentar fisicamente. Sem a mobilidade física, não acessamos a
cidade em plenitude. Como formar professorespesquisadores que não habitam ou habitam com
limitações suas próprias cidades? Como ampliar repertórios culturais e curriculares vivenciando o
direito à cidade?

Desenvolvemos o projeto de pesquisa-formação CidadeEducaUERJ (WEBER; SANTOS,


2010), pelo qual caminhamos com nossos estudantes, vivenciando com eles os potenciais e
constrangimentos da relação cidadeciberespaço. Aproveitamos o tempo físico de nosso currículo e
planejamos diversas caminhadas pela cidade do Rio de Janeiro. Caminhamos deixando a cidade nos
levar. Caminhamos em fruição com nossos dispositivos móveis, narrando e partilhando a
experiência estética em diferentes linguagens no ciberespaço. Visitamos museus e diversos espaços
culturais, vivenciando-os e refletindo sobre suas potencialidades formativas de cidadaniai.
Partilhamos das ideias de Jacques (2012):
Caminhar é um instrumento insubstituível para formar não só alunos como também
cidadãos, que o caminhar é uma ação capaz de diminuir o nível de medo e de
desmascarar a construção midiática da insegurança: um projeto “cívico” capaz de
produzir espaço público e agir comum (JACQUES, 2012, p. 171).

Os desdobramentos do projeto CidadeEducaUERJ foram plurais e diversos. Inventamos atos


de currículos, no contexto do GPDOC e também em parceira com outros coletivos dentro e fora do
Brasil, sempre em contextos de formação mediados por aplicativos para celular, app-learning
(SANTOS; COUTO; PORTO, 2017). Atualmente, desenvolvemos a pesquisa institucional com

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

mais foco no que chamamos de “app-docência”. Este artigo faz parte desse nosso último
investimento de pesquisa (SANTOS, 2019).

Como já destacamos aqui, no tópico anterior, cada pesquisa do coletivo GPDOC inventa e
forja dispositivos. Isso nos ocupa sobremaneira. Afirmo que é exatamente aqui que nossa autoria
metodológica se efetiva com singularidade e inovação. Nossa autoria é reconhecida nas
comunidades científicas exatamente por esse protagonismo coletivo. Os dispositivos podem ser
forjados e reapropriados por quem forma e se forma em ato. Por outro lado, não podemos confundir
os dispositivos com a experiência formativa em si. Alerta-nos Macedo: “[...] o dispositivo entra de
forma importante na experiência da formação, sem que devamos confundi-lo com ela própria,
evitando, portanto, a recaída na ideia de formação como algo meramente externo determinado pelos
âmbitos do dispositivo” (MACEDO, 2011, p. 158). O caminhar ubíquo é um dispositivo de
pesquisa-formação na cibercultura e com ele narramos em movimento na relação
cidadeciberespaço processos formativos. Por essas e outras, sinto-me extremamente confortável em
usar a “narrativa” na política de sentido da multirreferencialidade.
A narrativa que torna a formação dizível, visível, é considerada como constitutiva do
próprio sujeito em formação e não uma simplificada maneira de alguém realizar uma
prestação de contas a outrem e com isso ter seu destino selado por um ato de
autoridade solipsista. Assim, narrar é reesistir (MACEDO, 2011, p. 116).

Aqui a narrativa é material de pesquisa, tema, objeto de estudo e também uma política de
comunicação científica. Narrativas em textos, imagens e sons se misturam em horizontalidade e
pluralidade de sentidos, fazendo emergir ecologias de saberes para que possam experienciar a
própria formação. Tempo de maturação e de muitos movimentos, movimentos esses ligados ao
intenso trabalho que temos em nossas universidades. Nos últimos anos, mais precisamente nos
últimos 12 anos, tenho viajado mais e pelo mundo. Lembro-me de que já era mãe de uma menina de
6 meses de idade, quando fiz minha primeira viagem internacional. Fui para Portugal, participar de
uma edição do Challenges na u-Minho-PT. De lá para cá, tenho conseguido viajar para outros
países num movimento de comunicar a ciência que produzimos, mas, também e sobretudo, como
um exercício de ampliação de meus repertórios culturais (SANTOS, 2014; 2019).

Em um de meus trabalhos (SANTOS, 2014), toco nesse tema como uma missão docente.
Considero que um dos papéis dos professores em nosso tempo é criar, mediar e avaliar ambiências
formativas que busquem forjar ampliação de repertórios culturais e científicos para com nossos

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

estudantes, formando-os e nos formando. Mas como desenvolver esses saberes se não ampliarmos
nossos próprios repertórios? De que forma nossas viagens nos afetam existencialmente?
Na base da viagem há muitas vezes um desejo de mudança existencial. Viajar é a
expiação de uma culpa, iniciação, incremento cultural, experiência. [...] Esta
concepção da experiência como prova arriscada, como passagem através de uma
forma de ação que mede as dimensões e a natureza da pessoa ou do objeto que a
empreende, descreve também na concepção mais antiga dos efeitos da viagem sobre o
viajante (JACQUES, 2012, p. 45).

Viajar é uma das mais importantes experiências formativas para seres humanos ao longo de
nossa história. O corpo em movimento aprende. Aprende porque se desloca de sua zona de conforto
em alteridade, aceita e é aceito. Confrontar nossos limites e potenciais culturais. Avaliar e se
autoavaliar, conhecer para refutar e/ou valorizar o que somos em nossos contextos concretos. Um
professorpesquisador que não se movimenta poderá criar ambiências formativas plurais? Nós nos
movimentamos com e em diferentes situações e com diferentes artefatos culturais e curriculares –
dos livros aos filmes, com mais e diferentes histórias inventadas dentrofora das escolas e
universidades, mas também viajando.

Lembro-me da gestão “Pátria Educadora”, da então presidenta eleita Dilma Rousseff, que
também entendia e financiou, como política pública concreta, a mobilidade física de estudantes de
graduação e pós-graduação, com intercâmbios internacionais para vivências e interlocuções
científicas entre pares pelo mundo.

A “viagem” é compreendida por nós como uma experiência estética de formação. Acontece
na tessitura de nossas itinerâncias formativas, tecidas na interface cidadeciberespaço. Com essa
interface, vamos deixando rastros de experiências, mapeando a própria itinerância como rede de
saberes humanos, não humanos, com as coisas, o meio ambiente. Narrativas, imagens e sons são
produzidos e partilhados digitalmente. O celular, com suas aplicações (apps), é nosso diário de
pesquisa on-line. Com e em nossos diários vamos descrevendo, narrando, compreendendo em
contexto e forjando o método. Com Pais (1993, p. 113), entendemos:
Etimologicamente, método significa caminho e, como o caminho se faz ao andar, o
método que deve nos orientar é esse mesmo: o de trotar a realidade, passear por ela em
deambulações vadias, indiciando-a de uma forma bisbilhoteira, testando ver o que nela
se passa mesmo quando “nada se passa”. Nesse vadiar sociológico, como se adivinha,
importa fazer da sociologia do cotidiano uma viagem e não um porto.

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

Sendo método um caminho, como caminhar sem ser epistemologicamente curioso? Ser
epistemologicamente curioso passa, sobretudo, pela capacidade de questionar o mundo, fazer
perguntas em contexto. Questionar, buscar respostas mesmo que temporárias, levantar e testar
hipóteses, virtualizar, simular... Os acontecimentos são esses disparadores que nos perturbam e nos
mobilizam, nos deslocam. Macedo (2016) nos sugere acolher os acontecimentos no contexto da
pesquisa com atitude etnográfica, na qual a vida ordinária se efetiva como vida em aprendizagem.
“Estar à espreita, escutar sensivelmente, deixar que a questão abra os caminhos dos sentidos e os
sentidos vão abrindo os seus próprios caminhos, passam a constituir a possibilidade do
acontecimento se tronar um evento heuristicamente fecundo” (MACEDO, 2016, p. 34).

Tenho aprendido a caminhar como forma de ver paisagens e como modo, não somente de
ver, mas sobretudo de criar paisagens. Segundo Caeri (2013, p. 51):
O caminhar, mesmo não sendo a construção física de um espaço, implica uma
transformação do lugar e dos seus significados. A presença física do homem num
espaço não mapeado – e o variar das percepções que daí ele percebe ao atravessá-lo –
é uma forma de transformação da paisagem que, embora não deixe sinais tangíveis,
modifica culturalmente o significado do espaço e, consequentemente, o espaço em si,
transformando-o em lugar. O caminhar produz lugares.

É no “lugar” que produzimos sentidos, o espaço da prática, apropriação ou seu uso. Assim,
podemos partilhar as experiências forjadas no território físico com as redes do ciberespaço,
forjarmos narrativas em movimento. A interação com outros internautas, alunos e pesquisadores é o
contexto para a emergência de narrativas de formação. Narrativas, imagens e sons podem ser
produzidos em rede e em comunicação interativa, ao passo que a compreensão desses
dados/narrativas poderá acontecer em cocriação coletiva via dispositivos móveis. O celular é o
diário de campo!

Diário que não só registra os dados “produzidos”, mas que os produz em ato, e essa
produção já não pode mais ser apartada dos nossos interlocutores, os praticantes culturais. Com o
suporte digital, podemos cocriar linguagens e variadas formas de expressões, a exemplo:
storytelling, memes, conversas on-line, fotografias, vídeos, dentre outros.

Fotografar e conversar, produzir narrativas de visual storytelling (MADDALENA;


SANTOS, 2017), como forma de contar história com foto e narrativa da foto, ampliando na rede a
conversa disparada por imagens. São muitas as possibilidades de narrar on-line. Mais recentemente,
nomeamos bricolagem de aplicação no e para o celular/diário como “App-diário” (LUCENA;

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

SANTOS, 2019). Há alguns anos, praticamos o registro do material de nossas pesquisas em


dispositivos on-line, diários on-line de pesquisa (SANTOS, 2005; 2014; 2018). Com o digital em
rede, podemos registrar os percursos de pesquisa de forma hipertextual. Além de criar narrativas
que se materializam em textos, imagens (estáticas e dinâmicas) e sons, podemos dialogar com esse
material. O diálogo permite que não separemos a produção da interpretação dos dados.
Compreender a compreensão nunca foi tão ubíquo em contexto de pesquisa de campo. Assim,
vivenciamos diferentes práticas de educação e didática on-line na relação cidadeciberespaço.

Desde os primórdios da educação via internet, entendemos educação on-line como um


fenômeno da cibercultura (SANTOS, 2003; 2005; 2014; 2019) e não apenas uma evolução da EAD
via internet. Educação on-line é antes de qualquer coisa interatividade, colaboração, coautoria e
multilinguagens em movimento. São processos educacionais em rede com ou sem mediação e
intencionalidades curriculares. Pode acontecer na informalidade das aprendizagens mediadas por
tecnologias digitais em rede, quando interagimos com nossos dispositivos móveis na relação
cidadeciberespaço ou na formalidade das escolas e universidades que desenham e praticam a
docência on-line (criando currículos on-line) ou ainda na não formalidade de outros espaços de
aprendizagem fora do âmbito da escola e da universidade, a exemplo dos museus.

Atualmente, com Frieda Marti, vivencio um inovador dispositivo de educação museal on-
line que lança mão da comunicação assíncrona, mais especificamente das redes sociais do Museu de
Ciências e História Natural do Brasil (MARTI; SANTOS, 2019). Quando pensamos em educação
museal on-line, concluímos:
Fazerpensar a educação museal on-line é também compreender, conforme Certeau
(2014) nos ensina, que o praticante cultural (i.e., o visitante do museu) não é um
consumidor passivo de conteúdos expositivos e mediações museais. O visitante (on-
line e/ou presencial) tece seus próprios conhecimentos significações a partir das
experiências vivenciadas no/com o museu, fazendo usos diversos daquilo que lhe
pretende ser imposto (MARTI; SANTOS, 2019, p. 21).

Mais recentemente, para demarcar as aprendizagens sem intencionalidades formativas,


lançamos mão da noção da aprendizagem ubíqua (SANTAELLA, 2011), ou seja, todas as
aprendizagens que são tecidas com a mediação dos nossos dispositivos digitais em movimento na
relação cidadeciberespaço. A noção de educação on-line neste contexto vem sendo mais utilizada
para nomear e caracterizar práticas de currículos on-line (em espaçostempos intencionais de ensino
e aprendizagem, onde o desenho didático é criado e vivenciado institucionalmente). Vale ressaltar
aqui que em nossos trabalhos a noção de “educação on-line” se contempla a diversidade de práticas

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

de educação na cibercultura nas mais diversas e diferentes modalidades. Diante da polifonia de


noções que encontramos na literatura especializada, vale a pena apresentarmos, mesmo que
rapidamente, um quadro contrastivo, que ajudará o leitor a se movimentar um pouco pelo campo.
Educação on-line Práticas mais amplas de
educação mediadas por tecnologias
digitais em rede (soluções tecnológicas
da web 1.0, 2.0, 3.0, 4.0), ambientes
virtuais de aprendizagem (AVAs),
aplicativos (apps) com ou sem mediação
docente e interatividade. Em nossos
trabalhos, tratamos “educação on-line”
como fenômeno da cibercultura e
valorizamos as práticas de desenho
didático interativo. Isso implica mediação
on-line com docentes e estudantes em
intencionalidade pedagógica.
e-learning Idem educação on-line. Em
algumas situações, principalmente no
Brasil, a expressão e-learning é utilizada
também como sinônima de “ensino
eletrônico” sem mediação humana e
interatividade. Essas práticas são comuns
em treinamentos corporativos.
m-learning Práticas de educação on-line
mediada por dispositivos móveis. Em
seus primórdios, os desenhos didáticos
eram praticados de acordo com o uso
específico e customizado de plataformas
e dispositivos físicos e lógicos. Os
projetos de m-learning são formais e não
formais.
b-learning ou ensino híbrido Práticas de educação on-line que
combinam educação presencial e a
distância (on-line) em currículos formais.
Por considerarmos que o “digital”
encontra-se “na pele da cultura”, não
costumamos separar educação on-line de
educação presencial. De todo modo, a
expressão b-learning é marcada pela
combinação de situações presenciais com
situações a distância.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Aprendizagem ubíqua Práticas culturais informais de


aprendizagens mediadas por dispositivos
móveis. Não conta necessariamente com
práticas de currículos on-line formais.
Contempla a aprendizagem que
acionamos quando estamos em interação
com nossos dispositivos móveis.
App-learning Práticas de educação on-line
mediados por aplicativos (apps). Difere-
se da aprendizagem ubíqua exatamente
pela intencionalidade pedagógica
provocada por práticas de currículos on-
line.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: SABERES PARA UM CAMINHAR UBÍQUO

O caminhar ubíquo mobiliza saberes plurais de pesquisa, muita além da produção de dados,
maneiras outras de compreensão dos mesmos podem ser vivenciadas em rede. Num esforço de
compreender a compreensão, podemos conectar nossas interpretações com nosso quadro teórico,
temático e metodológico (nos conectamos em tempo real com periódicos científicos, livros on-line,
blogs de especialistas, entre outros e plurais canais de difusão científica). Além de conectar o
material de pesquisa emergente com possíveis repertórios científicos, podemos também partilhá-los
em diálogo com outros autores e interlocutores de pesquisa na relação cidadeciberespaço. Com o
Grupo de pesquisa docência e cibercultura (GPDOC), vivencio experiências memoráveis de
orientação ao dialogar com os praticantes de nossas pesquisas. Essa experiência formativa rompe
com as dicotomias “coleta X análise de dados”, “orientador X orientando”, “orientando X sujeitos
da pesquisa”, “campo físico X campo on-line”. As interfaces digitais potencializam sobremaneira
um modo e rigor outro na prática da pesquisa-formação multirreferencial com os cotidianos.
Produzir diários on-line de pesquisa nos permite mapear e sistematizar nossos percursos e
itinerâncias provocadas por esses percursos.
Com o termo “percurso” indicam-se, ao mesmo tempo, o ato da travessia (o percurso
como ação de caminhar), a linha que atravessa o espaço (o percurso como objeto
arquitetônico) e o relato do espaço atravessado (o percurso como estrutura narrativa).
Pretendemos propor o percurso como forma estética à disposição da arquitetura e da
paisagem (CAERI, 2013, p. 31).

Em síntese, destacamos alguns saberes forjados no caminhar ubíquo:

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CAMINHAR UBÍQUO COMO DISPOSITIVO DE PESQUISA-FORMAÇÃO NA CIBERCULTURA: A INSURGÊNCIA DE PRÁTICAS...

• Construir e mapear percursos;

• Formular problemas e fazer perguntas;

• Atentar para o acaso e os acontecimentos;

• Resolver problemas in loco diante de situações-limite;

• Aprender com o entorno;

• Acionar redes de saberes em contexto;

• Acessar e dialogar com conteúdos e comunidades científicas;

• Reconhecer e utilizar tecnologias em contexto;

• Virtualizar, testar hipóteses e simular;

• Produzir, registrar e significar narrativas, imagens e sons;

• Criar aulas na interface cidadecibesespaço.

Esperamos que o nosso esforço de síntese, ao cartografar diferentes saberes digitais


(urbanos, pedagógicos, comunicacionais e científicos), continue nos convidando a forjar, cada vez
mais, pesquisas em movimento, em deslocamento. “O deslocamento é o seu método e dispositivo
de investigação preferido; parar em lugares imprevistos, para que a diferença se lhe apresente e o
acrescente, é sua paixão de aprendente flâneur” (MACEDO, 2015, p. 61).

Por mais que saibamos que outras ecologias vêm sendo instituídas predominantemente no e
pelo ciberespaço, não podemos nos furtar do direito às cidades. Portanto, nossa opção de pesquisa
assume a política de sentido do imbricamento cidadeciberespaço como fundante. Concordamos
com Jacques (2012), para quem “o único modo de ter uma cidade viva e democrática é poder
caminhar sem suprimir os conflitos e as diferenças, poder caminhar para protestar e para reivindicar
o próprio direito à cidade” (JACQUES, 2012, p. 170).

Com um olhar sempre atento e o caminhar sempre ativado, continuemos deixando a cidade
nos levar... Caminhemos, produzindo didáticas outras...

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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Notas de fim

i
Para saber mais, o(a) leitor(a) poderá consultar a página do Facebook: CidadeEducaUERJ.

498
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA
NA MÍDIA-EDUCAÇÃO

Gilka Girardello
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A proposta aqui é retomar algumas possíveis relações entre imagem, imaginação e a


dimensão crítica da mídia-educação, no âmbito da cultura visual contemporânea. Afinal, “cultura
visual não é saber identificar o que se passa nas mídias, é saber criticar o que se passa nas mídias. E
o que se passa nas mídias é 90% do imaginário de uma criança hoje em dia” (QUEIROZ, 2014).

Oriento-me pela potência da pergunta, daquela pedagogia da pergunta de que falava Paulo
Freire com tanta veemência (FREIRE; FAUNDEZ, 2017), e que é tão vital nestes tempos
especialmente marcados por incertezas. Uma pergunta cria um vazio, algo que a gente não conhece,
e assim cria espaço para alguma coisa nova, quem sabe uma nova resposta. Isso é algo que a
pergunta tem em comum com a arte, campo que também sublinha as preocupações que aqui
compartilho, e que também existe porque há um vazio, alguma coisa que falta no mundo e que é
preciso inventar.

A pergunta orientadora desta reflexão vem na voz de Richard Kearney, filósofo irlandês
dedicado ao estudo da imaginação em tempos de crise ética: como podemos distinguir entre usos
encarceradores e usos emancipadores da imagem? Ele defende a dimensão poética da imaginação:
“A Poética é o carnaval das possibilidades, onde tudo é permitido e nada é censurado. É a
disposição para [...] vermos as coisas como se fôssemos, por um momento, outra pessoa”
(KEARNEY, 1988, p. 369). Essa imaginação poética sintonizada aos dilemas concretos de nosso
tempo precisa, considera ele, inventar um projeto social alternativo, e para isso precisa aprender
com sua própria história: do paradigma mimético da Antiguidade, ela aprende que “a imaginação é
sempre uma resposta às demandas de um outro”; do paradigma produtivo do humanismo, ela retém
“a responsabilidade pessoal pela invenção, pela decisão e pela ação”; e do paradigma paródico da
contemporaneidade, ela aprende que “vivemos em uma Civilização das Imagens – que pode nos
colocar em contato uns com os outros, mas que pode também ameaçar apagar as próprias
‘realidades’ que suas imagens ostensivamente ‘retratam’” (KEARNEY, 1988, p. 390). A recente
emergência do debate em torno da pós-verdade e das fake news dá ainda mais concretude à
tendência para a qual o autor advertia décadas atrás, quando sugeria a necessidade de uma
hermenêutica crítica para distinguir entre usos da imagem aprisionadores e libertadores.

No horizonte desse debate está a circunstância atual, em que o excesso de imagens e a


saturação do que se impõe e apela ao nosso olhar levam, por um lado, à invisibilização de muitas
coisas importantes, e, por outro lado, à naturalização problemática de outras. Diante disso, as
crianças precisam de um espaço seguro onde possam aprender a separar fatos de boatos e mentiras,
dados quase objetivos de informações movidas diretamente por interesses comerciais, políticos ou

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PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA NA MÍDIA-EDUCAÇÃO

ideológicos. Do mesmo modo como a gente ensina a ler um livro prestando atenção em quem é o
autor, as crianças precisam aprender a ler os materiais digitais – muito especialmente as imagens –
buscando saber quem os cria, mantém e promove, e em que circunstâncias.

As bolhas de informação têm a ver com o modo como as plataformas de mídia são
construídas, de modo a que cada um só veja o que quer e assim vá se cristalizando e radicalizando
cada vez mais naquilo em que já acredita. E isso não é uma onda passageira. O que está em jogo aí
é, então, a emergência de um papel renovado da dimensão crítica na educação para as imagens. Se a
análise crítica dos meios de comunicação era a principal tônica da fase inicial da mídia-educação no
Brasil, ainda na década de 1960, a valorização do protagonismo das crianças na cultura do
compartilhamento de certo modo secundarizou o papel da educação para a crítica, apostando em
que as crianças, ao produzirem imagens com tanta facilidade, perceberiam como que naturalmente
todo o processo de construção envolvido nos textos midiáticos, a partir das agendas comerciais,
políticas ou ideológicas de indivíduos e instituições. A transformação radical dos processos e
contextos comunicativos na última década, porém, e seu brutal atravessamento por ondas de
propaganda e desinformação deliberada, parecem impor a nós, educadores, a revalorização de uma
dimensão crítica na mídia-educação.

Não se trata, é claro, de reimprimir as velhas cartilhas que se propunham a ensinar como
detectar os valores ideológicos “subjacentes aos textos”. A abordagem pedagógica para a leitura de
imagens hoje precisaria se dar em novas bases, mais horizontais e participativas, menos prescritivas
e dogmáticas. Os “aspectos-chave” tradicionais da mídia-educação desde os anos 1990 –
linguagem, produção, representação, audiência – permanecem, hoje, aplicáveis também à formação
crítica para as imagens nas redes sociais digitais (BUCKINGHAM, 2018). Mas eles servem como
temas geradores de discussão, não para estabelecer, junto aos estudantes, respostas predefinidas
para questões que não haviam sido formuladas. Servem para que as pessoas façam perguntas, não
só sobre as imagens das mídias, mas sobre si mesmas e sobre os outros. O pensamento crítico
envolve justamente evitar sair correndo para o julgamento. Seria preciso, enfim, ir mais devagar,
para prezar o nosso lugar de estudantes, de estudiosos e de intelectuais, que é refletir sobre as
coisas, sem deixar de intervir sobre elas.

Justamente nesse sentido, outro complicador compõe nossa circunstância, também este
inseparável da cultura digital e de seus ritmos no contexto do produtivismo neoliberal. Trata-se da
transformação exacerbada do tempo em mercadoria, da pressa, da confusão estonteante de
estímulos que disputam nossa atenção simultaneamente, transformando os sujeitos em vetores de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

ansiedade e superficialidade e dificultando a transformação de vivências fugazes em experiências


minimamente significativas. Um desafio urgente, então, é de ordem cognitiva: o desafio de se
conseguir manter o foco em meio a tanta dispersão. É o desafio de cultivar a atenção, a espessura da
experiência, para que, na cultura do digital, “a aprendizagem não se converta num saltitar tonto de
sítio em sítio, num petiscar de elementos sem a perspectiva de um todo” (PINTO, 2005, p. 263).
Como diz Maria Valéria Rezende, desde o mirante da literatura:
Não é só o fast-food no estômago, é o fast-food no cérebro. [...] Ave! E quem pode,
assim, continuar a ser gente, ter juízo e saúde? [...] Sem [tempo pra pensar direito] não
é possível o debate honesto e profundo de coisa nenhuma, e a intolerância e a
violência se espalham por aí. Afinal, desde sempre o argumento mais rápido em
qualquer disputa [foram] a força, o golpe, a violência, desde o tacape até o drone
bombardeiro (REZENDE, 2016, p. 72-73).

A imaginação, que é necessária a um olhar liberto, se dá bem com um tempo expandido,


sem apuros ou pressões além daqueles que ela própria exige em sua cinética tão particular. Muitos
pensadores já discorreram longamente sobre as qualidades de expansão e liberdade do tempo da
imaginação, como Gaston Bachelard, Maxine Greene e Georges Jean, todos eles especialmente
interessados na intensidade da experiência infantil, e também na relação entre a imaginação e a
materialidade das imagens. Para Bachelard, a imaginação não se deixa aprisionar em nenhuma
imagem fixa, em nenhuma forma definitiva: “A imagem estável e acabada corta as asas à
imaginação” (BACHELARD, 1990, p. 2). Para ele, o fundamental é o movimento imaginário, em
que no fluxo do pensamento “as imagens irrompem e se perdem, elevam-se e aniquilam-se”
(BACHELARD, 1990, p. 6). Conseguir dar espaço a esse processo exige tempo, e a arte é uma fiel
aliada no esforço de estabelecimento de um tempo outro.

Assim, para pensar as dimensões pedagógicas em meio aos desafios contemporâneos


brevemente mencionados acima, e na companhia de muitos outros estudiosos que hoje se
mobilizam por eles, destaco aqui dois caminhos, dois possíveis temas geradores de conversa e
reflexão.

Um deles é o exercício crítico renovado (democrático, autoral, horizontal, diametralmente


oposto à memorização de receitas do que seja ou não política ou ideologicamente correto diante de
cada imagem. Uma inspiração para isso pode ser a historicização das imagens, na pista das imagens
dialéticas de Walter Benjamini. Muitas poderiam ser as entradas ao assunto, já que é tão vasto o
universo das reflexões de Benjamin sobre a relação entre infância, história, imagem e cultura. Uma
delas é uma metáfora usada por ele, no manuscrito das “Passagens” (por volta de 1937), em que
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PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA NA MÍDIA-EDUCAÇÃO

uma criança hipotética “aprende [a tarefa prática] de compreender ao tentar [impossivelmente]


pegar a lua em suas mãos” (BENJAMIN, apud BUCK-MORRS, 2002, p. 153). Essa criança
aprende a compreender por não poder tocar aquilo que vê. A imagem do desejo daquilo que ela não
pode tocar – a lua – dá ao olhar o papel propulsor de um tipo de conhecimento: o do símbolo, o da
palavra.

Assim, historicizar a fruição de uma imagem pode significar explorar a genealogia de sua
produção, investigar quais as tensões e contradições explicitadas em sua linguagem, abrir-se ao
surgimento de narrativas evocadas por ela, compreendê-la como carta lançada ao futuro e de um
sujeito ao outro. Historicizar a fruição de uma imagem pode significar fazer malabarismo com a
memória, a percepção e a invenção de quem a produz e de quem a vê. E, no contexto benjaminiano,
historicizar a fruição de uma imagem será sempre resistir ao vento cego de um suposto progresso,
duvidar da inexorabilidade de seu sopro, permitir que o olhar se aguce e sua duração se fixe nas
minúcias significativas do cotidiano e da cultura: uma coleção de selos, cartões postais, sapatos,
feiras, quermesses, ilustrações de velhos livros, brinquedos, uma gaveta cheia de gravetos, tampas
de garrafa, detritos, todos eles investidos de grande poder, valor e poesia para quem com eles
brinca. Historicizar a fruição de uma imagem significa não apenas olhar para trás, mas olhar
também para o passado de quem está à nossa frente na sucessão dos anos, reconhecendo que as
lembranças que as crianças de hoje terão, daqui a dez ou vinte anos, das imagens em que
mergulham nos celulares, nos seus aplicativos e mídias sociais favoritas poderão estar recobertas da
mesma pátina de ternura ou melancolia que recobre as lembranças da infância de Benjamin na
Berlim do fin-de-siècle.

Um outro caminho para que nossas propostas pedagógicas invistam em uma resistência à
torrente de superficialidade, propaganda, utilitarismo, “diluição em água poluída” (citando Caetano
Veloso) seria radicalizar a espessura do tempo na educação, por mais que isso bata de frente com os
ritmos da racionalidade técnica institucionalizada. Há lindas experiências nesse sentido no Brasil,
produzidas em diferentes recantos do país, que vivemos ou acompanhamos de perto e de longe, em
textos de alunos, em artigos, livros e em teses de cujas bancas participamos. Entre as tantas
iniciativas pedagógicas recentes e inspiradoras no campo da arte, cito por exemplo o trabalho de
Diefenthäler (2017), que traz um conjunto de “materiais provocadores e ações propositoras” para
ampliar o repertório visual das crianças na educação infantil – com foco nas imagens de “casa”
presentes no imaginário das crianças – a fim que que elas possam “ir além das formas
predeterminadas, aceitas, padronizadas estereotipadas” (DIEFENTHÄLER, 2017, p. 74).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Falo então em se trazer imagens para pensar, mais que para ilustrar. Imagens geradoras, que
desencadeiem, que inspirem, que produzam fios de narrativas e teçam pontes com a memória. Que
instaurem suficiente densidade, singularidade e potência para que mereçam ser olhadas
demoradamente. Que permitam o exercício de um olhar em que percepção e imaginação convivam
nos interstícios uma da outra, um olhar atravessado pela qualidade que Eva Brann chamou de
“transparência da imaginação” (BRANN, 1991). Tais imagens não precisam ser espetaculares,
impactantes, ao contrário; às vezes, a alternativa e a resistência podem estar justamente no
“extremamente pequeno”, como sugere Denilson Lopes: “À medida que cada vez mais o grandioso,
o monumental pode ser associado à arte dos vencedores, de impérios autoritários, da arte nazista, do
realismo socialista aos épicos hollywoodianos, é justamente no cotidiano, no detalhe, no incidente,
no menor que residirá o espaço da resistência, da diferença” (LOPES, 2004, p. 9). Observo que essa
força significativa das pequenas delicadezas e minúcias do cotidiano é muito clara para grande parte
dos educadores, ou não seria tão recorrente, por exemplo, a presença de poemas de Manoel de
Barros em epígrafes de teses e dissertações em nosso campo. Trazer a compreensão dessa potência
pedagógica de modo mais frequente e intensivo para o uso das imagens em contexto educacionais
pode ser um exercício fecundo e nem tão difícil.

E mais ainda. Que impregnemos essas imagens de um contexto, de uma história própria,
carregada de relações com outras histórias com que possam fazer rizoma na textura viva da escola e
dos demais espaços educativos. E, sobretudo, relações com a intimidade do momento presente de
cada um dos sujeitos ali reunidos diante dessa imagem. Em aulas cujo texto-base seja um filme, um
videoclipe, uma fotografia, um pedacinho visível do mosaico digital – enfim, a imagem em seu
esplendor semiótico e seminal, semeador também de movimentos, emoções e palavras.

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PARA PENSAR IMAGEM, IMAGINAÇÃO E CRÍTICA NA MÍDIA-EDUCAÇÃO

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: ensaio sobre a imaginação do movimento. 1. ed. Tradução: Antônio
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BRANN, Eva T. H. The World of Imagination: Sum and Substance. Rowman & Littlefield, Savage, Maryland, 1991.

BUCKINGHAM, David. Going Critical: on the problems and the necessity of media criticism. [S.l.: s.n.], 2018.
Disponível em: https://ddbuckingham.files.wordpress.com/2018/07/going-critical.pdf.

DIEFENTHÄLER, Daniela da Rosa Linck. Arte, imaginação e crianças. Curitiba: Appris, 2017.

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. 8. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra,
2017.

GIRARDELLO, Gilka. A dialética do olhar na produção de imagens com crianças. In: PONTES, Altem Nascimento;
PONTES, Aldo (orgs.). Pesquisa e Prática Docente sobre Educação e Comunicação. Belém: Editora da
Universidade Estadual do Pará, 2008.

KEARNEY, Richard. The Wake of Imagination: toward a postmodern culture. Minessota: Univ. of Minnesota Press,
1988.

LOPES, Denilson. Do silêncio culturalista ao retorno da estética. In: ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS
PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO (COMPÓS). Anais [...]. [S.l.: s.n.], 2004.

PINTO, Manuel. A busca da comunicação na sociedade multi-ecrãs: perspectiva ecológica. Comunicar, [s.l.], n. 25, p.
259-264, 2005.

QUEIROZ, João Paulo. Cultura Visual e Arte-Educação: há novos posicionamentos para os desafios
contemporâneos. Palestra no Seminário Internacional Prodocência. [S.l.]: UFRGS, 2014. Disponível em: https://you
tu.be/EJ6AGLCwLwE.

REZENDE, Maria Valéria. Outros Cantos. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016.

Notas de fim

i
A observação sobre a historicização das imagens neste artigo retoma reflexão publicada em Girardello (2008).

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA:
JUNTOS APRENDEMOS

Katia Morosov Alonso


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO OU DE COMO ALGUNS PROBLEMAS SUGIRAM

Há mais de 400 anos, desde o nascimento de João Amós Comenius (1592-1670), a Didática,
entendida como uma ciência da prática, questiona, reflete e tenta pensar processos e procedimentos
que possam apoiar e constituir aprendizagens. Se o mote do “ensinar tudo a todos”, como posto por
Comenius, considerado o “pai da Didática”, deu origem ao que denominamos como a escola
moderna, o imaginário que se organizou a partir dela nos constrange, sempre, a pensar a escola
numa perspectiva, num determinado modelo. Modelo que encerra, sem dúvida, avanços históricos
importantes como o da universalização da escola pública, ao menos em parte das sociedades
ocidentais, condicionando, concomitantemente, modos de se trabalhar o processo educativo que, na
contemporaneidade, limita e o reduz a contextos restritivos e pouco amigáveis à maior parte da
população, sobretudo, aos mais jovens.

A contradição histórica que temos observado entre a escola moderna, que fez emergir a
necessidade de se pensar o processo educativo de maneira mais ampla, atingindo a todos e todas, de
modo a nos tornar mais humanos e humanizados, é a mesma posta na atualidade, embora com
conotações bastante diferenciadas daquelas que a fez surgir. O desafio posto, e reconhecido como
tal, implica a constituição ou reconstituição de uma escolai que possa ser um centro de debate,
fazendo vicejar diferenças, diversidades, pensamentos convergentes ou não e que, ao mesmo tempo,
possibilite apropriarmo-nos do que foi constituído como conhecimento humano em suas várias e
diversas vertentes.

Difícil reconhecer que tal debate não seja imperativo, considerando o momento político
atual, cuja maioria de seus representantes nega o caráter plural da escola, tentando impor conteúdos
e metodologias de ensino anacrônicas àquilo que se tem compactuadocomo boas práticas
educativas, por exemplo.

Além do conflagrado momento da República, temos na pauta da Educação, das escolas,


consequentemente do conjunto de professores e alunos, outro contexto social, marcado e em
movimento (não harmonioso, por óbvio) com a cultura digital. Isso tem implicado pensar o
cotidiano escolar, incluindo o universitário, com outras e novas formas de comunicação, linguagens
e de uso intenso das tecnologias da informação e comunicação (TIC), características fundamentais
das práticas culturais do digital.

Diante disso, a necessidade de se repensar o processo educativo naquilo que lhe concerne
enquanto instituído, apontando implicações profundas no modo de organizar a escola, os processos

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS

formativos e as relações que aí se estabelecem. É, pois, com base nessa perspectiva, que o presente
texto envereda.

Gere (2008) apresenta, de maneira ampla, as características da “cultura digital”,


evidenciando os vários âmbitos e domínios de nossas vidas em que se observa a entronização de
elementos que transcendem o uso das máquinas e conformam nossos cotidianos, tais como: big
data, arte digital, música eletrônica, performance e interatividade, arte e tecnologia, literatura
eletrônica, games, o punk e o design gráfico, cyberpunk... Elementos que aliciam e nos fazem
presentes em interações e formas de comunicação, afetando, portanto, os modos de vida. Por outro
lado, a criação do World Wide Web (www) esteve envolta em ideias consubstanciadas no pós-
modernismo, pós-estruturalismo (sem dúvida, há críticas enormes quanto a isso), mas difícil negar a
influência nos modos de funcionamento daquelas que não derivadas no movimento punk e a
desconstrução que propõe, no ideal de comunidade e na cultura hacker. Pois bem, nesse sentido,
Castells (2014) denuncia o que denomina de obsolescência da educação:
A aprendizagem na maior parte das escolas e universidades é totalmente obsoleta,
porque insistem em produzir uma pedagogia baseada na transmissão de informação
[...] não precisamos de transmissão de informação, já que ela está toda na internetii.

Como antes anunciado, não se trata apenas de repensar o instituído pelo modelo da escola
moderna, teremos, ao que parece, de repensar uma forma de organização dela que implique os
novos modos de viver, que transformaram profundamente a maneira pela qual nos comunicamos,
produzimos e distribuímos informação.

Se considerarmos que a informação em si não implica conhecimento, então o problema que


temos pela frente é hercúleo, no sentido de se trabalhar outros e novos modos de vida, de consumo
e, considerando a instituição universidade, especialmente, as novas configurações do trabalho.
Esses, então, são os pontos sobre os quais nos debruçaremos aqui.

A EDUCAÇÃO E AS SOCIEDADES

Seguindo com Pimenta (2013), consideramos que “a educação é um fenômeno e uma prática
complexos, porque é práxis humana histórica. Ou seja, é produto do trabalho de seres humanos, e
como tal responde”, adiante continua: “reproduza sociedade mas, também, pode projetar a
sociedade que se quer” (PIMENTA, 2013, p. 92-93), vinculando-se ao processo civilizatório e
humano.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O programa a que nos referimos aqui é aquele que possa dar conta, ao mesmo tempo, das
transformações vivenciadas por nós humanos nas últimas cinco décadas. Isso articulado aos ideais e
valores da ética, da solidariedade, de preservação do planeta e do reconhecimento da fugacidade da
vida, no contexto de emergência climática a que estamos submetidos, entre outros temas tão
urgentes quantos estes.

Longe de negar a relevância da defesa da escola pública, gratuita e de qualidade, mas,


acrescido a essa bandeira histórica, necessário é reconhecermos que, como projeto histórico, cabe à
escola, especialmente à universidade, a formação e a produção de conhecimentos fundados
naqueles ideais e valores. Isso como chamamento dos mais jovens com relação ao futuro, bem
como insurgência a uma cultura altamente técnica e tecnificada que se expressa na insegurança
econômica, competitividade, no aumento da exploração do trabalho e do trabalhador e na
deterioração das convivências, sobretudo, no não reconhecimento do outro, como se este outro não
se conformasse nas mesmas condições dos demais.
Gere (2008) alertava:
Como Max Weber sugeriu, a industrialização e ascensão do capitalismo levou ao
“desencantamento do mundo”, o processo pelo qual a racionalidade e o legado
histórico de tal processo, substituíram formas mais místicas de conhecimento e
autoridade, sendo em seguida deslocada pela “informação” ou a sociedade pós-
industrial, resultando em “reencantamento” radical. Como com a estetização da
política sob o fascismo o mundo é colocado sob uma espécie de fetiche, um
encantamento, no qual somos ludibriados pelos efeitos das novas tecnologias e mídias,
e aquilo que parecem prometer. Assim, como cegos, não percebemos que fazem parte
de um aparato de domínio, controle e exploração (GERE, 2008, p. 23, tradução nossa).

Se a escola é essencial às sociedades no sentido de projetar possibilidades, urge que a


retomemos, como educadores e educadoras que somos, denunciando, em primeiro lugar, o
encantamento/fetiche das novas tecnologias e mídias, não para aboli-las, ao contrário, apropriando-
nos delas na criação e ressignificação de sentidos que impliquem no descobrimento de outra escola.
Sem dúvida uma escola sem muros porque atravessada pelas redes que nos convidam, todo o
tempo, à conexão, ao estar juntos e em comunicação (para o bem e para o mal).

A escola moderna comeniana não cabe mais nos protocolos de relações/comunicação que
engendram nossas convivências, entre professores e alunos, inclusive. Por mais que nossos
imaginários sejam conservados à luz de uma instituição que se quer espaço privilegiado na
transmissão da cultura e conhecimentos, isso se rompe todo o tempo. Na medida em que a

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS

onipresença das mídias, sobretudo as digitais, da ubiquidade delas em nossos cotidianos, “infiltram-
se” naquilo que somos, pensar a escola fora delas é exercício pouco efetivo. Relevante reconhecer,
como fez Gere (2008), o controle e exploração que delas emergem, isso como recurso para
compreendê-las e, daí, buscar formas, maneiras e modos de incluí-las no projeto mencionado.

DE PROJETOS EDUCATIVOS E SEU DESENVOLVIMENTO

Trabalhar com a perspectiva de projetar outra escola, implicada de fato em contextos de uso
mais intenso das TIC, justamente por ser uma das principais características da cultura digital, é
concordância primeira sobre os modos de comunicação de seus praticantes. Esse cenário é
decorrente da evolução tecnológica das últimas décadas. Santaella (2011) afirma que grande parte
das invenções é constituída por tecnologias que potencializam a capacidade humana para a
produção de linguagem. Isso porque “é através da linguagem que o ser humano se constitui como
sujeito e adquire significância cultural” (SANTAELLA, 2011, p. 91). As novas formas de se
comunicar, ou melhor, de nos comunicarmos, alterou a forma como percebemos o mundo, o
tempo, os espaços, os sentimentos, a maneira de viver e de se relacionar. Isso potencializou
descobertas, maximizou a inteligência e a capacidade de nós humanos evoluirmos e de nos
reinventarmos.

Absolutamente, não se trata de fetichizar o que as TIC nos trouxeram, necessário


compreender, como fez Gere (2008), o lado nefasto de apropriação delas, temos sim as fakenews, a
manipulação das informações pelas mídias corporativas, por exemplo. Se no ínicio da ampliação da
rede internet havia a utopia de maior participação dos cidadãos naquilo que Castells (2015)
denominou como “democracia em rede”, o mesmo autor nos ensina que a comunicação na era
digital dá origem à autocomunicação de massa, uma maneira de produzir, acessar e compartilhar
mensagens (conteúdos) sem mediação, em oposição às mídias tradicionais e baseada nas redes
sociais. O interesse crescente da mídia corporativa nas formas de comunicação nas redes mostra a
importância da autocomunicação de massa, não à toa Facebook, You Tube, Twitter, entre outras,
acabam moldando as comunicações autônomas como base de suas estratégias comerciais de
geração de lucros e expansão do mercado.

Para Castells (2015), nesse contexto se projetam determinados “programas”, tendo a ver
com uma política da mídia corporativa, por óbvio, que gera, por sua vez, uma política de
escândalos, que redunda numa crise da democracia. Tanto é assim que temos assistido aos
“analytics” que nada mais são do que o uso aplicado de dados, análises e raciocínio sistemático para
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

seguir em um processo de tomada de decisão muito mais eficiente, aplicados em diversos negócios
e departamentos. Com a disponibilidade de dados que circulam na internet essa tarefa é facilitada
exponencialmente. O bombardeio de informações, especialmente as falsificadas, por
grupos/partidos políticos, apropriou-se desses usos. É conhecido o caso da “Cambridge Analytica”iii
e sua atuação na eleição de 2016 nos Estados Unidos quando da vitória de Donald Trump.

Bom, mas o que tais maneiras de se comunicar e informações teriam a ver com projetos
educativos?

Se a educação é práxis humana, cabe trazer para o âmbito dela não apenas a compreensão
sobre essas novas formas de comunicação que estabelecemos hoje, como também a compreensão
sobre uma realidade altamente mutante, fugidia, que nos influencia e impõe não desejos, apenas,
como anos atrás, mas visões de mundo, sentimentos e sensações.

A proposta então é que a escola, e quem a constitui, traga para seu interior justamente aquilo
que cimenta nossas relações atualmente: as redes sociais. Não se trata de compra de equipamentos
desnecessários. Dados do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) (2018) indicam que,
aproximadamente, 80% dos jovens brasileiros possuem celulares/smartphones, passando de quatro
a cinco horas diárias, conectados às redes sociais. Nesse sentido, é possível afirmar que a escola,
como a conhecemos, perdeu significado naquilo que seriam as redes de relações que nela se
estabeleciam. Da mesma maneira, a principal fonte de acesso à informação se dá, também, por meio
das redes sociais digitais. Como afirmado por Buckingham (2007), no momento em que seu
trabalho foi escrito, as crianças e os jovens passavam mais horas em frente à televisão do que na
escola. Afirmamos, hoje, que passam muito mais horas conectados do que na escola. Isso quando na
própria escola estão em conexão...

De fato, não se trata de tentar “pedagogizar” as redes, domesticando-as para uso escolar.
Tarefa impossível! Já que a lógica que se estabelece na autocomunicação, nas redes sociais digitais
expõe outras formas de mediação, direta e de muitos para muitos. Fazer dos dispositivos digitais e
das tecnologias que encerram continuidade do livro didático ou dos manuais de ensino, tentando
controlar e prever aprendizagens, parece caminho incauto, justamente por romper com a lógica mais
horizontalizada, diversa e plural que subjaz a elas.

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS

COMO APRENDEMOS?

Para a Pedagogia, por consequência para a Didática, a grande questão que se põe atualmente
é: como os praticantes da cultura digital aprendem? Quais são as trilhas que percorrem na
apropriação de conceitos e ideias? Não seria negar as teorias de aprendizagem com as quais
trabalhamos. Ao que parece elas dão conta de nos explicar processos de aquisições, de interação e
mediação imprescindíveis à circulação e apropriação de conhecimentos. Vygotisky (1991) nos fez
compreender que o desenvolvimento cognitivo se dá socialmente, em relação com os outros e com
o meio e que a aprendizagem é uma experiência social, mediada pela utilização de instrumentos e
signos, de acordo com os conceitos utilizados pelo próprio autor. Um signo, dessa forma, seria algo
que significaria alguma coisa para o indivíduo, como a linguagem falada e a escrita.

Sendo assim, a aprendizagem é uma experiência social, mediada pela interação entre a
linguagem e a ação. Entender as aprendizagens na cultura digital seria, então, explorar quais signos,
significados, mediações, linguagens, entre os principais elementos para o caso, estamos
cotidianamente a trabalhar. Se os dispositivos tecnológicos estão implicados nas mediações (não
como mediadores, ainda não temos máquinas inteligentes para tanto, embora pesquisas avancem
nesse campo com rapidez, majoritariamente nas e com as mídias digitais corporativas) como meio
para que ocorram, quais possibilidades trazem na construção e produção de linguagens,
experiências, sentidos e significados?

Essas seriam as preocupações fundamentais em tempos de se pensar a escola e cultura


digital.

OS PROCESSOS DE ENSINAR E APRENDERNA CULTURA DIGITAL

O furacão que fez emergir o que se denomina como “cultura digital” faz com que
encararemos que os ecos disso advindos chegam à escola, causando profundo estranhamento,
justamente ao se confrontar modos de culturas distintos: a escolar e, outra, a digital, cujos traços são
conflitantes. A primeira pela perspectiva do controle sobre o que se pretende ensinar e aprender e, a
segunda, pelo rompimento de relações unilaterais e hierárquicas, determinando outras maneiras de
se conviver. Isso tem exposto fraturas e contingências que implicam a gestão da escola, alunos e
professores em posição de alerta, sem que respostas ou alternativas outras tenham sido constituídas.

Thompson (2008) não propôs uma teoria sobre cultura, tampouco uma compreensão sobre o
digital, entretanto, ao tratar de uma teoria social da mídia, faz-nos refletir como na modernidade as

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

interações são, cada vez mais, alicerçadas em “comunicação mediada”. Isso é importante para
pensarmos os elementos que circulam no contexto dessa mediação e dos possíveis artefatos que a
sustentariam. Para o autor, nas sociedades interconectadas, nossas experiências são, crescentemente,
mediadas, constituindo daí experiências, mais e mais, recontextualizadas. Isso em razão do que ele
denomina como deslocamento espaço/tempo, cujo movimento de aproximar realidades e contextos
(re)configura “a ação humana por extrapolar e transcender estruturas tradicionais do pensamento
político e moral” (THOMPSON, 2008, p. 203). É relevante observar que o uso dos meios técnicos
de comunicação alteraram as dimensões espaço-temporal da vida, “capacitando os indivíduos a se
comunicarem através de espaço e de tempo sempre mais dilatados” (THOMPSON, 2008, p. 38).

A possibilidade de se conviver em espaços e tempos mais dilatados, em que há superação de


paralelismos anteriores, força-nos a pensar e compreender a maneira pela qual comunicação e
mediação são inventadas nesse outro contexto. Embora não trabalhando com a especificidade disso
no contexto da cultura digital, Thompson (2008) aponta elementos essenciais para a entendermos:
comunicação, interação, mediação e a superação da disjunção do espaço e do tempo, implicando
outras e novas arquiteturas na e da experiência humana. Esta mediada mais e mais pelos artefatos
tecnológicos justamente pela superação antes mencionada. Secundarizar tais processos seria, por
um lado, desconhecer modos de funcionamento da cultura digital e, por outro, negar coexistências
possíveis no que se põe como construção e constituição do conhecimento.

FORMAÇÃO E DIDÁTICA EM HORIZONTES

Longe de trabalhar com a ideia de que os artefatos tecnológicos facilitariam o trabalho


docente, importante concordar que a entronização deles complexou, sobremaneira, o labor
educativo/pedagógico.

Não se trata agora de lançar mão daquilo que Chevallard (1985) denominou como
“transposição didática dos saberes”. O autor apresentou uma nova forma de compreensão da relação
didática, abandonando a abordagem “ensinante-ensinado”, como díade, inseriu “o saber” como um
novo elemento de análise, constituindo uma tríade. Esquecendo-se de toda reflexão do autor sobre
os saberes que circulam no escolar, o enfoque didático vislumbraria o que ele denominou como o
“saber ensinado”, por ser aquele que realmente se efetiva. Este, no entanto, seria diferente do “saber
sábio”, o saber científico ou acadêmico, produzido no seio da comunidade científica. Uma
importante contribuição dessa teoria tem a ver com o entendimento de que o“saber sábio” sofreria
recortes e “deformações”, tornando-o apto a ser ensinado. Assim, o saber ensinado seria um saber

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS

expatriado de suas origens e separado de sua produção histórica, no caso o saber sábio, em razão
dos ajustes, recortes e ressignificações até chegar ao sujeito aprendiz. Para Chevallard (1985), no
entanto, o “saber sábio”, mesmo transigido ao escolar, seria reconhecido socialmente porque
legitimado pela autoridade da escola.

Diante das significativas transformações imputadas pela cultura digital, sobretudo o


relacionado à autocomunicação de massa e à perda da “autoridade” da escola, incluindo aí o nível
superior, resta-nos as perguntas: O quê seria um saber escolar? Quem o legitimaria? Como seria
apropriado pelos aprendizes?

A obsolescência da escola tem a ver com como acessamos, produzimos e consumimos


informação, mas acrescido a isso a falta de legitimidade da escola e seus saberes põe em xeque
modos de constituição de subjetividades, socializações e relações.

Não sem motivos, os jovens, conforme pesquisa realizada por Pereira e Lopes (2016),
afirmam que a despeito dos obstáculos ao ato de estudar – conteúdos desarticulados, distanciamento
de seus interesses, ênfase nos resultados, não respeito às diferenças, incluindo as cognitivas – eles
tentam, ainda, estabelecer sentidos para a presença nessa instituição. É ali que “vivenciam
experiências importantes e necessárias para uma construção de significados em longo e em curto
prazo” (PEREIRA; LOPES, 2016, p. 207), isso numa dimensão mais individualizada que coletiva.
Relevante ter presente que são eles, os jovens, que buscam unilateralmente sentidos naquilo que
seria a constituição do escolar.

Considerando, então, saberes, modos de comunicação e de acesso à informação, produção


de sentidos, a construção de uma Didática implicada aos novos tempos ou na cultura digital,
teríamos em conta, em primeiro lugar, que compreender a complexidade da ação educativa,
atravessada por artefatos tecnológicos, com mediação outra que não a do professor apenas. Em
segundo, trazer para o escolar a experiência do aprender juntos e em rede, tributária das formas
pelas quais compartilhamos as informações, “não passamos mais vontade” de nos informar, basta
um clique ou um touch e temos o mundo em nossas mãos. E, por último, resgatar os sentidos que as
crianças e os jovens relevam em suas experiências escolares.

Nesse contexto, políticas públicas que insistam, ainda, na compra e disseminação de


equipamentos, ou na de formação de professores, afirmando o caráter tecnocêntrico e
instrumentalizador das TIC já foram, exaustivamente, denunciados, como fez Peixoto (2012).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Sem dúvida, a chegada das TIC nas escolas faz questionar modelos mais “fechados” de
escolarização, que ignoram a aproximação de mídias variadas, introdutoras de novos códigos e
linguagens que precisam ser entendidos, até para serem mais bem-aproveitados. Isso, contudo, não
é tarefa apenas da escola, há toda uma reconfiguração de significados postos no conviver, que
implicam repactuar não apenas domínios de ordem socioafetiva, de interação, de motivação e de
integração dos conhecimentos às experiências de vida que influenciam, mais e mais, o ideário
educativo-formativo. Isso não é novo, desde que a escola se configurou como espaço institucional
dedicado à formação humana com vistas à transmissão da cultura/conhecimentos a preocupação em
moldá-la a determinados desígnios não é novidade. O problema, ao que parece agora, é que os
desígnios que se colocam transcendem, em muito, a simples transmissão cultural e de
conhecimentos. A expectativa é a de que a escola possa, frente às muitas incertezas que
vivenciamos na atualidade, prover sentidos à cultura que se desenvolve fora dela...

O aprendizado é cada dia mais social, colaborativo e cooperativo, com maior participação
em comunidades de práticas. Estar em conexão é desejável, propiciando aprendizagens ativas,
justamente o que se percebe negado pelo escolar. É, pois, nessa conjunção de fatos e
acontecimentos que se discute o “uso pedagógico” das TIC. Quando, no entanto, estão imbuídas de
outra lógica, completamente alheia ao controle, ao linear e ao tempo e espaço da sala de aula.
Trabalhamos com o pensamento, reducionista, de que bastaria trabalhar algumas
competências/habilidades técnicas para que as tecnologias fossem mais bem-aproveitadas no
cotidiano dos estabelecimentos escolares. Compreender, de fato, as implicações que o uso
intensificado delas apresenta, é, sem dúvida, elemento crucial para se empreender fazeres que
subsidiassem, aí sim, outra maneira de organizar o escolar.

Sem uma compreensão do que sejam os novos letramentos, mediações e de como juntos
temos nos comunicado e aprendido, é impossível revivificar e ressignificar a escola. Necessário,
como afirma Buckingham (2010)
[...] uma reconceituação mais ampla do que queremos dizer com letramento num
mundo cada vez mais dominado pela mídia eletrônica [...] isso não é sugerir que o
letramento verbal não é mais relevante, nem que os livros devam ser descartados, mas
sim que o currículo não pode seguir confinado a uma noção estreita de letramento,
definida só em termos do impresso (BUCKINGHAM, 2010, p. 53).

A reivindicação posta por Buckingham (2010) é atualíssima! Possível ampliá-la agora,


acrescentando à sua proposta a reconceituação das aprendizagens que acontecem, mais e mais, em

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS

conjunto, em conexão e com uso de outros e novos códigos e linguagens. É, pois, nesse horizonte
que uma discussão sobre a Didática se põe.

PARA UM DEBATE

O presente trabalho teve por objetivo trazer reflexões e indicações para o debate que não se
encerra, especificamente, sobre a Didática. Pensar sobre ela significa, antes de tudo, explicitar
sentidos e intencionalidades numa perspectiva mais ampla de educação, do escolar e de formação.
Sem tais elementos, a Didática serviria, claro, às receitas que há muitas décadas nos negamos
compor.

Por mais que as instituições de ensino, sobretudo as de ensino superior, façam uso de
ambientes virtuais de aprendizagem (AVA), de metodologias denominadas como ativas, que
surgem como as novas panaceias didáticas, as pesquisas mostram (ALONSO, 2014) a pouca
efetividade educativa que engendram; seria como mais do mesmo. O debate, portanto, sobre qual
projeto educativo construir em tempos de cultura digital é, sem dúvida, crucial para, daí,
afirmarmos a Didática que queremos. Nesse cenário, Gere (2008) nos inquieta ao dizer que
[...] pode parecer um pouco absurdo (o que foi dito por ele), mas essa ansiedade
escatológica sugere algo das mudanças importantes ocorridas na cultura digital atual,
mudanças que afetam todos os aspectos de nossa vidas, e que são cada vez mais
difíceis de serem reconhecidas à medida que se tornam cada vez mais fácil obtê-las.
Estamos chegando a um ponto em que as tecnologias digitais não são mais
ferramentas apenas, elas estão integradas à nossa existência, agindo em uma cultura
cada vez mais participativa, para melhor ou pior. A necessidade de continuar a
questionar tal situação permanece mais premente do que nunca, até porque a
tecnologia, ela mesma, se torna cada vez mais invisível, justamente por compor o
tecido de nossa existência (GERE, 2008, p. 224, tradução nossa).

Novamente, é afirmar o caráter central da educação e dos processos educativos para se


compreender o vivido, os processos comunicacionais e de compartilhamento de informações a que
estamos submetidos e suas implicações para e nas aprendizagens mais formais.

Há setores no campo da educação que querem preservar o modelo da escola


moderna/comeniana, acreditando que os problemas da educação seriam ao menos minimizados,
colocando os jovens e crianças diante dos dispositivos tecnológicos como ocorre com as atuais
políticas governamentais. A transformação profunda e necessária exige um novo projeto educativo

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

bastante arejado quanto aos seus objetivos, democrático, comportando a lógica do


compartilhamento, do estar juntos e mais próximos dos anseios daqueles que vivenciam as
instituições de formação.

Disso, conclui-se que a perspectiva do “ensinar tudo a todos” se transforma no aprender


todos juntos. Mais que tudo e todos, pensar o trabalho da formação como a disposição de rotas e
roteiros, trilhas de aprendizagem com o consequente transbordamento da sala de aula como a
conhecemos é oportunidade única para a escola do esperançar.

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CULTURA DIGITAL, O ESCOLAR E A DIDÁTICA: JUNTOS APRENDEMOS

REFERÊNCIAS

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Digital. Em Rede, [s.l.], v. 1, n. 1, p. 152-168, 2014. Disponível em: file:///C:/Users/Administrador/Downloads/16-84-
2-PB%20(1).pdf/. Acesso em: 12 jan. 2020.

BUCKINGHAM, David. Crescer na era das mídias eletrônicas. Tradução: Gilka Giraedello e Isabel Orofino. São
Paulo, Loyola, 2007.

BUCKINGHAM, David. Cultura Digital, Educação Midiática e o Lugar da Escolarização. Educ. Real., Porto Alegre,
v. 35, n. 3, p. 37-58, set./dez. 2010. Disponível em: https://docente.ifsc.edu.br/luciane.oliveira/MaterialDidatico/P%
C3%B3s%20Tecnologias%20Educacionais/Cultura%20Digital,%20educacao%20midiatica.....pdf/. Acesso em: 10 dez.
2019.

CASTELLS, Manuel. O poder da comunicação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

CASTELLS, Manuel. A Obsolescência da Educação. YouTube – Fronteiras do Pensamento. (07 abr. 2014,) (4min
14seg) Son. Color. Áudio: Espanhol. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eb0cNrE3I5g/. Acesso em: 15
out. 2019.

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e
comunicação nas escolas brasileiras. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR [editor]. São Paulo: Comitê
Gestor da Internet no Brasil, 2018. Disponível em: https://cgi.br/media/docs/publicacoes/216410120191105/tic_edu
_2018_livro_eletronico.pdf/. Acesso em: 20 jan. 2020.

CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Grenoble: Pensée Sauvage,
1985.

GERE, Charlie. Digital Culture. London: Expanded Second Edition Reaktion Books Ltda, 2008.

PEIXOTO, J.; ARAUJO, C. H. dos S. Tecnologia e Educação; algumas considerações sobre o discurso pedagógico
contemporâneo. Educação & Sociedade [on-line], Campinas, v. 33, n. 18, jan./mar. 2012. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-73302012000100016&script=sci_arttext. Acesso em: 10 mai. 2019.

PEREIRA, Beatriz Prado; LOPES, Roseli Esquerdo. Por que ir à Escola? Os sentidos atribuídos pelos jovens do ensino
médio. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41, n. 1, p. 193-216, jan./mar. 2016.

PIMENTA, Selma Garrido. Políticas públicas, diretrizes e necessidades da educação básica e formação de professores.
In: LIBÂNEO, José Carlos; SUANNO, Marilza Vanessa Rosa; LIMONTA, Sandra Valéria (orgs.). Qualidade na
escola pública: políticas educacionais, didática e formação de professores. Goiânia: Ceped Publicações; Gráfica e
Editora América: Kelps, 2013. p. 91-106.

SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2011.

THOMPSON, J. B. A Mídia e a Modernidade – Uma teoria social da mídia. Tradução: Wagner de Oliveira Brandão.
9. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. 4. ed. A formação social da mente. Coordenação da tradução: Grupo de
Desenvolvimento e Ritmos Biológicos – Departamento de Ciências Biomédias USP. Revisão da tradução: Monica
Stahel M. da Silva. São Paulo: Editora Martins Fontes Ltda, 1991.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Notas de fim

i
O termo escola será utilizado no texto como instituição, como espaço de produção e criação de conhecimentos, não
havendo, portanto, referência a níveis de ensino. Quando necessário, esses níveis serão discriminados.
ii
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=eb0cNrE3I5g.
Cambridge Analytica foi uma empresa privada, criada em 2013, instalada no Reino Unido que combinava mineração
iii

e análise de dados com comunicação estratégica para processos eleitorais. A empresa é, em parte, de propriedade da
família de Robert Mercer, um estadunidense que gerencia fundos de investimento e apoia causas politicamente
conservadoras.

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DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL:
CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS DA MOBILIDADE E DA
UBIQUIDADE

Lucila Pesce
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

O presente texto situa-se como um estudo teórico-conceitual, que integra o simpósio


“Didática on-line na pedagogia universitária: saberes didáticos em mobilidade”, do XX Endipe:
Fazeres-Saberes Pedagógicos: diálogos, insurgências e políticas (2020).

Iniciamos com breves considerações sobre a formação para a docência universitária,


apontando alguns desafios que se apresentam ao campo.

Considerando o fato de que muitas práticas sociais contemporâneas se desenvolvem


mediadas por dispositivos e interfaces digitais, em especial os móveis, assinalamos que tal cenário
pode trazer desdobramentos para a docência (em geral e universitária), no tocante à incorporação da
cultura digital, nela inclusas a mobilidade e a ubiquidade, ao ofício de mestre (ARROYO, 2000).

Ao apresentarmos a perspectiva dialógica freireana (1983; 2002), sinalizamos que os


dispositivos móveis, como todo e qualquer aparato simbólico cooptado pelo capital (PESCE, 2010),
trazem consigo uma ambivalência. Se utilizados com base na racionalidade instrumental
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985), podem destituir de autoria os atores sociais envolvidos na
educação: alunos e professores. Se utilizados em perspectiva dialógica e autoral, podem trazer
interessantes contribuições aos processos formativos dos estudantes e docentes universitários.

FORMAÇÃO PARA A DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA

Ao discorrer sobre alguns aspectos do conhecimento profissional docente, Roldão (2007)


elenca cinco deles, a saber: a) de natureza composicional (construída na incorporação de
conhecimentos pedagógicos ao ensino de conteúdos específicos); b) capacidade analítica (no
decurso da prática reflexiva); c) de natureza mobilizadora e interrogativa; d) capacidade meta-
analítica, que demanda distanciamento e autocrítica exercidos na prática reflexiva, com
contribuição de conhecimentos específicos ao saber docente, tanto de conteúdo como didático-
pedagógico; e) comunicabilidade e circulação. Dentre os cinco tópicos apresentados pela
pesquisadora, a comunicação móvel e ubíqua talvez possa dar sua contribuição, mormente ao quinto
aspecto do conhecimento profissional docente, atinente à comunicabilidade e à circulação, a
depender do enfoque que se dê, como veremos nos itens dois e três do presente texto.

Mais adiante, Roldão (2007, p. 102) traz uma oportuna reflexão:


Saber produzir essa mediação não é um dom, embora alguns o tenham; não é uma
técnica, embora requeira uma excelente operacionalização técnico-estratégica; não é

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DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS...

uma vocação, embora alguns a possam sentir. É ser um profissional de ensino,


legitimado por um conhecimento específico exigente e complexo, de que procurámos
clarificar algumas dimensões.

Também Arroyo (2000, p. 21) destaca – ao usar a expressão “ofício de mestre”, em menção
à construção social do magistério – que “Ter um ofício significa orgulho, satisfação pessoal,
afirmação e defesa de uma identidade individual e coletiva”. Todavia, no âmbito do magistério
superior, a dimensão da docência muitas vezes acaba por ser colocada em segundo plano, em
relação ao exercício de uma determinada carreira (médico, advogado, juiz, promotor, engenheiro,
arquiteto, psicólogo...) e em relação à carreira de pesquisador. Essa situação tem suas raízes nos
modelos dos nossos programas de pós-graduação.

Com amparo nos estudos e pesquisas de Pimenta e Anastaciou (2005), havíamos sinalizado
que os programas brasileiros de Pós-Graduação stricto sensu, que são os maiores responsáveis pela
formação do docente universitário, tendem a assumir o modelo americano e o alemão, que
priorizam a pesquisa sobre o ensino (BRUNO; PESCE, 2015).

Como podemos perceber, a construção do conhecimento profissional docente consubstancia-


se como um longo caminho a ser trilhado, que envolve a construção de saberes específicos ao
campo da docência e à constituição da identidade professoral (MELO; CAMPOS, 2019). E esse
longo trajeto a ser percorrido demanda investimento pessoal e institucional, a partir de políticas de
fomento à efetivação dessa formação. Entretanto, o que há muito tempo a literatura da área tem
revelado é, justamente, a frágil formação do professor universitário para o exercício da docência.
Como já dito, essa fragilidade, em certa medida, apoia-se na premissa ainda hegemônica de que o
notório saber na área da sua especialidade, fruto de anos de atuação profissional e/ou de estudos e
pesquisas desenvolvidos nos programas de pós-graduação stricto sensu, seja suficiente para o pleno
exercício da docência universitária.

Dentre os inúmeros pesquisadores que constatam a problemática anunciada, apoiamo-nos


em Cunha (2009), Pimenta e Anastasiou (2005), Melo e Campos (2019). No dizer da segunda
supracitada dupla de pesquisadoras:
No que diz respeito à especificidade da formação de professores universitários, o
incipiente preparo específico para o exercício da docência que os cursos de pós-
graduação stricto sensu proporcionam aos professores é uma constatação recorrente e
amplamente conhecida, inserindo-se no antigo problema da formação do pesquisador
versus professor [...] (MELO; CAMPOS, 2019, p. 47).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A literatura também tem apontado a carência de ações institucionais voltadas à formação


pedagógica dos docentes universitários, como ensinam Bolzan e Isaia (2006, p. 490-491):
É notório também que a ausência de espaços institucionais, voltados para a construção
de uma identidade coletiva de ser professor, na qual o compartilhar de experiências,
dúvidas e auxílio mútuo favoreçam a construção do conhecimento pedagógico
compartilhado, interfere na construção da professoralidade. A consequência da falta de
espaços dessa natureza leva a um sentimento de solidão pedagógica, o que, muitas
vezes, inviabiliza a construção conjunta de estratégias educativas.

Em meio a tal cenário, em 2012, o governo federal brasileiro instituiu a Lei n. 12.772
(BRASIL, 2012). No inciso V do artigo 24 da aludida Lei, consta que as universidades e institutos
federais de ensino superior devem promover aos docentes ingressantes um programa de recepção,
que, dentre outros aspectos, trabalhe a dimensão pedagógica. Todavia, bem sabemos que o universo
das universidades e institutos federais não representa a totalidade do ensino superior brasileiro.
Portanto, a fragilidade da formação pedagógica dos professores universitários brasileiros ainda se
consubstancia como um desafio a ser vencido.

Quanto a esse desafio, retomamos a ideia defendida por Melo e Campos (2019, p. 50), que
indicam o forte imbricamento entre constituição de identidade (a partir de fatores históricos,
políticos, sociais, culturais e econômicos) e desenvolvimento profissional docente, que ocorre em
“[...] um lugar de lutas e conflitos, um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na
profissão”.

Ainda em relação ao desafio a ser vencido, em face da fragilidade da formação pedagógica


do docente universitário, Gaeta e Masetto (2019) – ao delinearem um painel histórico sobre a
pedagogia universitária no Brasil, a partir da década de 1990 – relevam, no tocante à mediação
pedagógica, o crescente protagonismo dos estudantes universitários. Os pesquisadores expõem a
necessidade de se empreender espaços inovadores de aprendizagem, inclusive contando com o
apoio das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC), de modo a demandar dos
professores uma atitude de abertura à formação permanente.

Outra boa contribuição emana de Bolzan e Isaia (2006), que defendem a fecundidade das
ações compartilhadas, no âmbito da formação pedagógica do docente universitário, erguidas em
meio à reflexão conjunta e ao enfrentamento colegiado dos desafios a enfrentar, no decurso da
docência universitária. Qual seja, a construção da professoralidade deve ocorrer em meio a políticas
educativas voltadas à promoção da aprendizagem compartilhada dos professores universitários.

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DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS...

Nesse contexto, as pesquisadoras asseveram que não há um único caminho na aprendizagem


docente, mas múltiplos modos de se estabelecer processos formativos em direção à
professoralidade. Em nosso entendimento, a incorporação da mobilidade e da ubiquidade
proporcionadas pela cultura digital pode se constituir em um dos elementos a integrar a esse perene
processo formativo para o exercício da docência universitária.

CULTURA DIGITAL, MOBILIDADE E UBIQUIDADE

Sabemos que a cultura digital se apoia, em grande medida, na mobilidade. Com ela surge
um novo tipo de leitor: o leitor ubíquo (SANTAELLA, 2014).

De acordo com o dicionário etimológico (CUNHA, 1999, p. 800), o termo ubíquo é uma
adjetivação da palavra latina ubique, que quer dizer “por toda parte, em qualquer lugar”, sendo,
portanto, sinônimo de onipresente. É possível perceber o porquê de se falar em tecnologias ubíquas,
em menção ao fato de os dispositivos móveis em rede permitirem aos sujeitos sociais que os
utilizam essa sensação de onipresença, em um espaço intersticial entre o presencial e o virtual.

Santaella (2014), ao versar sobre o leitor ubíquo, declara que uma das suas características é a
mobilidade em que vive, tanto presencial quanto em meio às redes de informação e comunicação.
Essa mobilidade relaciona-se ao movimento do seu corpo no espaço urbano e às operações mentais,
a partir das interações em rede. A autora considera que o leitor ubíquo conjuga traços do leitor
movente (nos espaços urbanos, por exemplo) e do leitor imersivo (no ciberespaço) e isso traz
desdobramentos aos processos de aprendizagem. Em suas palavras:
Ao mesmo tempo em que lê e responde aos sinais e signos do seu entorno físico
também imerge no ciberespaço informacional. Consequentemente, o que o caracteriza
é uma inédita prontidão motora, perceptiva, cognitiva e uma nova economia da
atenção derivadas de um modo distinto de funcionamento do seu sistema nervoso
central. Ora, esse tipo de leitor está sendo protagonista de um modo também novo de
aprender. Um tipo de aprendizagem que se obtém nos instantâneos dos velozes
acessos às redes na colheita de informações ocasionais (SANTAELLA, 2014, p. 18).

Ao afirmar que os dispositivos móveis possibilitam aos sujeitos sociais contemporâneos


conectividade individualizada e personalizada, Santaella (2014) acena que tal situação amplia as
possibilidades de se efetivar a colaboração, em tempo real, podendo vir a contribuir para a
consolidação de grupos sociais constituídos em torno de interesses em comum. E isso traria
desdobramentos para os processos de aprendizagem. Em seu dizer: “Sendo ubíquos o acesso, os

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

contatos e as trocas, aceleram-se as possibilidades de aquisição de conhecimento e, de certo modo,


a espontaneidade e naturalização de sua absorção” (SANTAELLA, 2014, p. 19).

Mais à frente, Policarpo e Santaella (2018, p. 35) desvelam que o leitor ubíquo é afetado
tanto pelo espaço físico urbano quanto pelas informações e partilha nas infovias digitais. Nesses
espaços intersticiais, o leitor ubíquo apresenta uma ambivalência atitudinal: de um lado, “um estado
de prontidão inédito”; de outro, a economia da atenção concretizada por meio da cognição
multitarefas.

A reflexão crítica de Policarpo e Santaella (2018) também é feita por Zuin e Zuin (2019),
que advertem para o fato de que, em face da enxurrada de estímulos audiovisuais, sobretudo por
meio dos dispositivos móveis, os sujeitos sociais estão tendo que lidar com o que chamam de
concentração dispersa. Na reflexão sobre o quanto as forças produtivas do capitalismo transnacional
incitam à “pulverização da capacidade de concentração como uma das condições de seu
desenvolvimento” (p. 103), Zuin e Zuin (2019) chamam atenção para o fato de que a concentração
dispersa consubstancia-se como uma instância social historicamente mediada pelo excesso de
consumo de estímulos audiovisuais.

Em um movimento analítico atento às contradições inerentes a esse fenômeno social, Zuin e


Zuin (2019) salientam que, de um lado, o uso instrumental dos dispositivos móveis em rede
proporciona uma crescente vigilância e controle informacionais; de outro, a possibilidade de acesso
às informações proporcionada por esses artefatos culturais torna possível novos modos de
resistência.

Ao reconhecer a importância dos contextos culturais e das tecnologias móveis e locativas,


Santos (2015) destaca a potência da comunicação móvel e ubíqua para a educação. Nesse
movimento, a pesquisadora pondera que a cibercultura tem cada vez mais se erigido em meio à
emergência da mobilidade ubíqua, em conectividade com o ciberespaço e as cidades. Ao fazê-lo, a
autora desvela a potência da mobilidade cibercultural para os processos formativos forjados tanto
no diálogo com a literatura científica de uma dada área do conhecimento quanto no diálogo com os
cotidianos. Nesse cenário, Santos (2015) aponta que a mobilidade ubíqua se consubstancia como
importante fator de constituição da relação do ciberespaço com as cidades e as práticas sociais
desenvolvidas nesse espaço intersticial. Em seu dizer:
Muito mais que circular pelos espaços urbanos portando a mídia e a linguagem,
circulamos agora com a convergência de diversas mídias e linguagens, que se
configuram e reconfiguram para além da dicotomia upload e download, tratada no

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DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS...

tópico anterior deste texto. A tecnologia da mobilidade ubíqua não se limita apenas ao
computador que se “libertou” do desktop e das conexões fixas para acesso ao
ciberespaço. Caracteriza-se, sobretudo, pela conexão constante e ubíqua com os
espaços urbanos, com o ciberespaço e as interações sociais diversas com e nesses
espaços (SANTOS, 2015, p. 138).

Tal entendimento vem ao encontro do nosso. Em artigo escrito em coautoria (BRUNO;


PESCE, 2015) evocamos a relevância dos espaços intersticiais para a educação (formal e não
formal) dos sujeitos sociais contemporâneos.

Na reflexão sobre os espaços formativos, Santos, Marti e Santos (2019) – ao atestarem a


potência das relações sociais para os modos de constituição dos sujeitos sociais contemporâneos,
incluindo-se aí as mediadas pelos artefatos culturais digitais – salientam que os museus passaram a
adotar as tecnologias digitais em rede e móveis, com o objetivo de ampliar e tornar ainda mais
significativa a experiência comunicacional e educacional das pessoas que os visitam. Ao fazê-lo, as
pesquisadoras situam os museus como espaços multirreferenciais de aprendizagem, que integram as
redes educativas das cidades. Em nosso entendimento, essa ação dos museus pode ser olhada com
atenção pelas universidades, centros universitários, faculdades e institutos de ensino superior.

Em publicação solo, Santos (2015, p. 144) traz uma relevante advertência: a importância de
se investir na inclusão cibercultural do professor, para que possamos ultrapassar o paradigma
educacional tradicional, mediante o qual o professor é o responsável por produzir e transmitir
conhecimento aos alunos, em um movimento de “repetição burocrática e transmissão de conteúdos
empacotados. Se não mudarmos o paradigma educacional e comunicacional, a web 2.0 e a
mobilidade ubíqua acabarão servindo para reafirmar o que já se faz”.

As considerações críticas de Santos (2015), Policarpo e Santaella (2018), Zuin e Zuin


(2019), Santos, Marti e Santos (2019) convergem com nossas preocupações e parecem ser muito
oportunas para pensarmos nas possíveis contribuições da cultura digital para a docência
universitária, sem, contudo, nos esquecermos dos riscos e desafios que essa cultura impõe aos
modos de subjetivação. Nessa reflexão, percebemos a potência da perspectiva dialógica freireana,
para a integração das tecnologias digitais móveis à docência universitária voltada à autoria e à
emancipação.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA EM TEMPOS DE CULTURA DIGITAL: A FECUNDIDADE DA


PERSPECTIVA DIALÓGICA FREIREANA

Em publicação coautoral (BRUNO; PESCE, 2015), havíamos sinalizado que as ações


formativas colegiadas e mediadas por tecnologias digitais e em rede podem acrescentar aos
processos formativos. Contudo, a despeito dessa potência, as ações formativas têm, em grande
medida, se pautado em uma agenda neoliberal voltada ao uso instrumental – no sentido
frankfurtiano do termo (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) – dos dispositivos em rede. “Nesta
abordagem, ideias, cursos e programas formativos focalizam o objeto, com práticas que proclamam
discursos críticos, mas praticam a instrumentalização, insistindo na manutenção do gap entre
docentes e discentes, mesmo que mediados pelas tecnologias digitais e em rede” (BRUNO; PESCE,
2015, p. 593).

Em publicação anterior (PESCE, 2010), havíamos considerado que a proposta dialógica


freireana (1983) apresenta importância capital à conscientização e à emancipação, já que o patrono
da educação brasileira se contrapõe a todo e qualquer projeto de sociedade que se oponha à
humanização.

Freire sempre situou a linguagem como instância fundamental à constituição dos sujeitos
sociais. Nesse contexto, interessa-nos focalizar, no presente texto, o conceito de “interação
dialógica” apresentado por Freire, no livro intitulado Extensão ou Comunicação? (FREIRE, 1983).

Como já anunciado (PESCE, 2010), Freire (1983) defende que a constituição mútua dos
sujeitos sociais em formação ocorre em meio à interação dialógica, em três instâncias: a)
investigação temática; b) tematização do conhecimento (articulada à realidade vivida); c)
problematização do conhecimento.

No que diz respeito à primeira instância – investigação temática – Freire (1983) esclarece
que o conhecimento da visão de mundo do sujeito social em formação implica o levantamento de
temas geradores de estudo, advindos de uma metodologia dialógico-problematizadora e
conscientizadora do formador, que, mediante interação dialógica, forma-se junto com o formando.
Esse entendimento pode ser levado em consideração pelo docente universitário, que pode tecer com
os alunos um processo formativo autoral, inclusive fazendo uso dos dispositivos móveis em rede,
em uma perspectiva que permita aos estudantes forjar sua autoria, ao trazer para o processo
formativo informações e vivências emanadas da zona intersticial entre o espaço urbano e as infovias
digitais.

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DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS...

No tocante à tematização do conhecimento, Freire (1983, p. 70) adverte para a importância


de se recuperar situações reais vividas pelos sujeitos sociais em formação. No dizer do patrono da
educação brasileira: “nesta comunicação, que se faz por meio de palavras, não pode ser rompida a
relação pensamento-linguagem-contexto ou realidade”.

Em relação à problematização, Freire (1983) põe às claras a ideia de que cabe ao professor
problematizar o conteúdo de ensino, em face das circunstâncias históricas e culturais dos
educandos, para que o trabalho com os conteúdos de ensino ocorra em prol da conscientização e da
emancipação. A atitude de problematizar vai à contramão da “educação bancária” – termo por ele
cunhado (FREIRE, 2002) – que toma os conteúdos de ensino como recursos para legitimar o status
quo.

Para Freire (1983; 2002), a educação ocorre mediada por uma intencionalidade pedagógica
clara e definida, fruto da escuta atenta aos determinantes circunstanciais dos sujeitos sociais em
formação.

Havíamos apontado (PESCE, 2010) que o projeto de reconstrução social freireano parte do
princípio de que a busca por uma sociedade mais humanizada, solidária e emancipadora deve
incidir sobre as relações intersubjetivas nela tecidas. Na mesma publicação (PESCE, 2010),
havíamos indicado que Freire percebe o cotidiano (e a linguagem nele veiculada) como telos
condutor da emancipação humana, já que a constituição das identidades se desenvolve no seio das
relações dialógicas.

Em outra publicação coautoral (PESCE; BRUNO; HESSEL, 2018), esclarecemos nossa


posição de que a proposição dialógica freireana parece ser particularmente oportuna aos processos
formativos, por advogar em favor da horizontalidade entre formador e formando. Isso se estende à
formação do professor universitário voltada à dimensão autoral e emancipadora, em refuta a cursos
e programas de formação docente prescritivos; estejam eles, ou não, preocupados com a integração
da cultura digital à prática docente.

Partimos do entendimento de que os dispositivos móveis digitais, como todo e qualquer


aparato simbólico cooptado pelo capital, trazem consigo uma ambivalência (PESCE, 2010): se
utilizados com base na racionalidade instrumental, esses artefatos culturais podem destituir de
autoria os atores sociais envolvidos na educação: estudantes e professores. Se utilizados em
perspectiva dialógica (freireana) e autoral, podem trazer interessantes contribuições aos processos
formativos de docentes e graduandos/pós-graduandos.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Com base na premissa dialógica freireana, entendemos que a integração dos dispositivos
móveis em rede aos processos formativos entre estudantes e docentes do ensino superior pode
apresentar uma fecundidade ímpar, se explorar a mobilidade e a ubiquidade da cultura digital em
favor de processos autorais. Para tal, voltamos a trazer à baila, as lúcidas considerações de Santos
(2015) sobre a importância de se investir na inclusão cibercultural do professor.

UM CONVITE À DISCUSSÃO

No presente texto, propusemo-nos a considerar sobre o tema do simpósio “Didática on-line


na pedagogia universitária: saberes didáticos em mobilidade”, que integra o eixo 5 (Educação,
Comunicação e Tecnologias) do XX Endipe (2020).

Para tanto, tecemos brevíssimas considerações sobre a formação para a docência


universitária. De acordo com a literatura da área, apontamos que ainda restam muitos desafios aos
processos formativos afeitos ao exercício da docência universitária.

Trouxemos à tona a ideia de que muitas práticas sociais contemporâneas ocorrem por meio
dos dispositivos e interfaces digitais, com destaque para os dispositivos móveis, como tablets e
celulares. Ao fazê-lo, ponderamos que a cultura digital – incluindo a mobilidade e a ubiquidade que
lhe são inerentes – pode trazer desdobramentos para a docência, de modo a abrir tanto um leque de
contribuições quanto de riscos ao exercício da docência universitária, a depender do enfoque que se
dê: respectivamente, dialógico e autoral ou instrumental.

Em face do recrudescimento do uso dos dispositivos móveis nas práticas sociais dos sujeitos
sociais contemporâneos, procuramos, no presente texto, apresentar argumentos contrários ao uso
desses dispositivos digitais sob enfoque instrumental (ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Ao fazê-
lo, consideramos sobre a fecundidade da perspectiva dialógica (FREIRE, 1983; 2002) para integrar
a cultura digital à docência universitária calcada na autoria e na emancipação dos sujeitos sociais.
Nesse movimento, convidamos a todos e todas ao aprofundamento do debate nos estudos do campo.

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DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA E CULTURA DIGITAL: CONTRIBUIÇÕES E DESAFIOS...

REFERÊNCIAS

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Plano de Carreira e Cargos de Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico e sobre o Plano de Carreiras de
Magistério do Ensino Básico Federal, de que trata a Lei n. 11.784, de 22 de setembro de 2008; sobre a contratação de
professores substitutos, visitantes e estrangeiros, de que trata a Lei n. 8.745 de 9 de dezembro de 1993; sobre a
remuneração das Carreiras e Planos Especiais do Inep e do FNDE, de que trata a Lei n. 11.357, de 19 de outubro de
2006; altera remuneração do Plano de Cargos Técnico-Administrativos em Educação; altera as Leis n. 8.745, de 9 de
dezembro de 1993, 11.784, de 22 de setembro de 2008, 11.091, de 12 de janeiro de 2005, 11.892, de 29 de dezembro de
2008, 11.357, de 19 de outubro de 2006, 11.344, de 8 de setembro de 2006, 12.702, de 7 de agosto de 2012, e 8.168, de
16 de janeiro de 1991; revoga o art. 4º da Lei n. 12.677, de 25 de junho de 2012; e dá outras providências. Diário
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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em: 21 jan. 2020.

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VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO
O PROJETO DE CINEMA DA ESCOLA E A MEMÓRIA
DA FAVELA

Marta Guedes
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

A Escola Municipal Prefeito Djalma Maranhão, no Vidigal-RJ, é uma das quatro escolas
contempladas com o Projeto de Criação de Escolas de Cinema em Escolas de Educação
Fundamental pelo grupo Cinema para Aprender e Desaprender (Cinead), do Laboratório de
Educação, Cinema e Audiovisual (Lecav), da Faculdade de Educação (FE) da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ). Em integração com a pesquisa e ações de ensino, o programa se propõe a
realizar e investigar a iniciação ao cinema por professores e estudantes dentro e fora da escola. A
chamada pública produzida em 2011 pelo projeto de criação de escolas de cinema em escolas
públicas selecionou 15 projetos de escolas para fazer a formação no Curso de Aperfeiçoamento
Cinema na Escola para Professores da Educação Básica, promovido pela Faculdade de Educação do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, no período de 09 de janeiro a 10 de novembro de 2012,
com carga horária de 180 (cento e oitenta) horas e com a consultoria do professor e cineasta Alain
Bergala. Ao final do curso, quatro escolas foram selecionadas para receber equipamentos, um kit de
filmes da Programadora Brasil e acompanhamento profissional durante um ano. Uma delas foi a
nossa, a Escola Municipal Prefeito Djalma Maranhão na favela do Vidigal. Sou a professora
responsável pelo projeto no colégio e com ele entrei em contato com A Hipótese-Cinema de Bergala
(2008), que extrai sua força e sua novidade na proposta de descoberta do gesto de criação
cinematográfica compartilhada entre professores e estudantes. De acordo com o autor francês, se o
encontro de crianças e jovens com o cinema como arte não acontecer na escola, ele corre o risco de
não acontecer em lugar algum. Se assim o é na realidade da França, o que dirá em um Brasil de
proporções continentais, sem cultura cinéfila como a França, e com profunda desigualdade social?

O início do projeto de cinema na nossa escola foi confuso, esbarrou em diversos entraves e
encontrou resistências em muitas instâncias. Resistências por parte da direção, da Coordenadoria
Regional de Educação (CRE), de outros professores e até mesmo das crianças e jovens. Tudo era
muito novo e desestabilizava a ordem instituída. “As artes provocam, atravessam, desestabilizam as
certezas da educação, perfuram sua opacidade e instauram algo de mistério no seu modo explícito
de se apresentar, ao menos, no espaço escolar” (FRESQUET, 2013, p. 9). Com o tempo e muita
insistência, superando todos os entraves pela luta constante e com firme persistência, finalmente
conseguimos, no ano de 2015, colocar em prática nossa ideia inicial: realizar um documentário
escolar a partir da investigação da história da favela do Vidigal. Nossa principal motivação era estar
com a emoção e o interesse de todos os estudantes da escola em seu processo de ensino-
aprendizagem, por meio do conhecimento das raízes históricas da favela e da escola, em

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 533


VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

intercâmbio com experiências do fazer artístico como o teatro, a dança, a música e o cinema. A
aposta em pesquisar a história da favela do Vidigal com o cinema na escola nasce do entendimento
de que a imaginação, função vital do cérebro, se apoia, consonante às formulações de Vigotski
(2009), na relação entre fantasia e realidade, no material do conhecimento preexistente da
humanidade, na memória e na emoção.

Desse modo, em 2015, com o envolvimento de todo o colégio, produzimos o documentário


escolar Paraíso Tropical Vidigali. Realizado com os estudantes do projeto de cinema, o filme
registra os bastidores de uma busca da escola na comunidade, pela história do Morro do Vidigal,
Rio de Janeiro. O filme produziu um encontro entre moradores, estudantes, professores e
colaboradores.

Na devolução das imagens de Paraíso Tropical Vidigal aos sujeitos da escola e da favela,
fomos surpreendidos com o enorme potencial de emoção e interesse que apareceu nas falas de
crianças, pais, professores, colaboradores e moradores da favela do Vidigal. Ficávamos, após a
sessão, ouvindo-os contarem novas histórias do Vidigal, ou confirmarem outras, ou, ainda, nos
agradecerem por terem podido conhecer aquelas que desconheciam...

O presente estudo parte do princípio de que a articulação entre cinema, escola e memória é
potente enquanto assunto a ser colocado “sobre a mesa/na tela” para matéria de estudo
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013) além de ser de fundamental relevância na construção de uma
memória coletiva e no direito ao exercício desta memória pelos estudantes do projeto de cinema,
pelos estudantes da escola e quiçá para além dela. A característica do “tempo livre” da escola
ressaltada por Masschelein e Simons (2013) enfatiza um tempo escolar livre de finalidades
mercadológicas, ou seja, um tempo para o estudo que coloca os estudantes em uma condição de
igualdade. Um “tempo livre” para materializar a skholé. Na Grécia Antiga, skholé queria dizer o
momento em que se escapava da determinação do fazer. “Em outras palavras, a escola fornecia
tempo livre, isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na
sociedade (sua “posição”) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo” (MASSCHELEIN;
SIMONS, 2013, p. 26). Os autores preconizam quatro operações fundamentais na escola: operações
para fazer um estudante suspender os laços familiares ou estatais ou de qualquer “comunidade
passada existente”; operações de suspensão da costumeira ordem das coisas, deixando seu uso e
funções comuns temporariamente sem efeito; operações para colocar algo sobre a mesa
(profanação) e para fazer “tempo livre”; e operações para fazer estar atento, para formar a atenção,

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

apoiando-se no amor pedagógico tanto por certas coisas quanto pelos estudantes. Disciplina para
chamar atenção para algo.

As propriedades do “tempo livre”, aliadas à transformação de conhecimentos e habilidades


em “bens comuns”, são os agentes fundamentais para que a nova geração supere e renove o mundo,
independentemente dos antecedentes, talentos naturais ou aptidões de cada um, pois seriam o tempo
e o espaço que os estudantes teriam para saírem de seu ambiente conhecido. Assim, compreendendo
o cinema na escola como um gesto de criação compartilhada entre professores e estudantes,
ressaltamos a potência de fortalecimento da autonomia pedagógica de ambos, uma vez que são cada
vez mais constantes e acirrados os ataques das políticas públicas educacionais brasileiras, de cunho
neoliberal, que visam a cercear a criação e a imaginação das crianças e jovens da classe
trabalhadora e a prática pedagógica autônoma de seus professores, bloqueando o processo
emancipatório de ambos.

Vimos, também, a potência de alcance das imagens do cinema que ultrapassam espaços e
tempos. Por exemplo, todas as crianças e jovens que ingressam em nossa escola todos os anos, ao
assistirem ao filme Paraíso Tropical Vidigal (2015), não só se reconhecem nele, como são tocadas
pelo desejo de estar com o projeto de cinema. A potência de alcance das imagens do filme nos
proporcionou também o (re)encontro com antigos moradores militantes, que na década de 1970,
lutaram contra a remoção da favela do Vidigal em plena ditadura militar brasileira.

A partir da exibição de trechos de Paraíso Tropical Vidigal, em 2016, no evento pelos 10


anos do CINEAD, na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM-Rio), tomamos conhecimento
que Felícia Krumholz, curadora da Mostra Geração do Festival do Rio e membro do CINEDUCii,
havia filmado em Super-8iii, na década de 1970, a resistência dos moradores da favela do Vidigal à
remoção para o subúrbio de Antares/Santa Cruziv e mantivera guardada a cópia desse material em
uma caixa de isopor, por 40 anos, em cima de um armário de sua casa.

Felícia não sabia que o tráfico havia incendiado os originais que ela entregara à Associação
dos Moradores da Vila do Vidigal. Nós a (re)colocamos em contato com os antigos
moradores/ativistas e, em agosto de 2017, o projeto de cinema da escola produziu o evento 40 anos
de Resistência do Vidigal, no colégio Djalma Maranhão, quando tivemos então a oportunidade de
reunir os principais personagens da luta e resistência de outrora e os atuais em uma roda de
conversas com todos os estudantes.

Em dezembro daquele mesmo ano (2017), abrimos a caixa de isopor da Felícia na


Cinemateca do Museu de Arte Moderna. A parceria entre o Cinead e o MAM-Rio nos

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VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

proporcionava o encontro com os arquivos. Sob a tutela de Hernani Heffner, conservador chefe da
Cinemateca, começamos o processo de recuperação do material. Foram algumas semanas limpando
e preenchendo fichas de entrada dos filmes na cinemateca, telecinando e digitalizando todo o
acervo, que incluía além dos filmes Super-8, negativos de fotografias e fitas cassete com entrevistas
da época. Esse material foi doado definitivamente e agora faz parte do Acervo da Cinemateca, sob o
Lote da Associação dos Moradores da Vila do Vidigal e está preservado em 4 diferentes mídias.
Super-8, Mini DV, HD, e salvo também em DVD.

Em agosto de 2018, promovemos o evento Vidigal: imagens, memória e resistência nesta


Cinemateca, que tornava-se para nós um lugar mágico, dada a natureza dos encontros que ali
vivenciávamos. O evento contou com a presença dos antigos moradores/ativistas, dos estudantes do
projeto de cinema da escola e do grupo de pesquisa Cinead. Os comentários durante a projeção das
imagens, recuperadas por nós, revelavam emoção nas falas. A todo momento escutávamos soluços,
risadas, cochichos, perguntas de reconhecimento e testemunhos advindos das imagens. Seria,
portanto, como nos diz Didi-Huberman (2011, p. 117), a imagem o lampejo passante que transpõe,
tal um cometa, a imobilidade de todo o horizonte? Ali, naquele 13 de agosto de 2018, pensei que a
tarefa estava encerrada.

No dia seguinte, ao chegar à escola, as crianças e os jovens do projeto de cinema contavam


que não tinham dormido, só lembrando da Cinemateca do MAM e da projeção. Diziam que tinham
sonhado com as imagens antigas... Maria Clara disse que sonhou que ela estava dentro das imagens.
Pedro Henrique perguntou quando voltaríamos ao MAM. Nessa mesma manhã, o tiroteio na favela
foi intenso e tivemos que nos abrigar no salão mais protegido do colégio. Apesar do tumulto,
aproveitamos o ensejo da reunião, e mesmo sob o som das balas, pedi aos estudantes, que haviam
vivido a experiência do dia anterior no MAM, que a narrassem às outras crianças e jovens da
escola. Foi muito instigante ver os mais velhos contarem as histórias da véspera aos mais novos.
Exatamente ali, sob o fogo cruzado das balas, alcancei o tamanho da tarefa que estava, ao contrário
do que eu imaginara, apenas por começar. Era urgente realizar um novo documentário. Compreendi
que os arquivos e os testemunhos tinham de se fazer presentes em um novo filme. Precisávamos
construir uma memória coletiva de luta e resistência que atravessasse tempos e espaços e
mantivesse viva a esperança de redenção a um passado/presente de pessoas em situação de
escravidão. Afinal, a articulação histórica do passado não significa reconhecê-lo como de fato
aconteceu, mas sim apropriar-se de uma recordação como ela relampeja no momento do perigo.
“Uma telescopage do passado através do presente” (BENJAMIN, 2009, p. 512).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Em 2019, paralelamente à realização de uma oficina com ex-estudantes do projeto de


cinema que já estão em outra escola (a nossa termina na quinta série), começamos um processo de
montagem dos arquivos fílmicos e sonoros restaurados. Em duas semanas, fui fazendo pequenos
exercícios de montagem e apresentando-os aos estudantes do 3º/4º/5º anos da escola. A partir dos
comentários deles, a ideia da montagem Vidigal: exercícios de pensamento surgiu na terceira
semana, como um lampejo fulgurante, e foi apresentada na sessão IN: Museus, cinematecas, no
XXIII Encontro da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual em Porto Alegre,
2019. Antes de apresentá-la na sessão para ser discutida, foi exibida na escola e todas as sugestões
dos estudantes foram incorporadas.

Com Alexsandro Tavares Lopes da Silva e Esther Correia Cezario (estudantes da escola), e
em parceria com estudantes da Escola de Comunicação da UFRJ, sob a consultoria da professora
Anita Leandro (ECO/UFRJ), iniciamos, em 16 de novembro de 2019, as filmagens do novo
documentário, intitulado provisoriamente Morro do Vidigal. Nas filmagens, confrontamos os
entrevistados – testemunhas dos acontecimentos – com o material de arquivo encontrado. Assim, o
registro de seus testemunhos vem a partir das lembranças que essas imagens de 1977/1978
evocam/convocam. Um método de filmagem onde “a pessoa não fala mais sozinha, mas com o
auxílio dos documentos, com os quais divide a construção da memória e da narrativa” (LEANDRO,
2018, p. 221).

O incentivo à reunião de novos acervos e à realização de documentários pode contribuir na


elaboração de uma memória coletiva envolvendo moradores da comunidade e estudantes da escola?

VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO

Em 2019, começamos a exibir todo o material de arquivo recuperado pelo projeto de cinema
nos cineclubes mensais da escola. Desde a educação infantil até o quinto ano do ensino
fundamental. Surpresa com os comentários dos estudantes! Crianças de 4/5 anos de idade
reconheciam nas imagens do Vidigal de 40 anos atrás, locais atuais, como o muro da escola
Almirante Tamandaré e o restaurante (inexistente nas imagens) em que seus parentes trabalham
atualmente. Mesmo com as marcas do tempo impressas nas imagens esmaecidas, a atenção e o
interesse das crianças eram totais.

Estudantes do quinto ano observam nas imagens o Vidigal de antigamente. Reparam que
tinha muita vegetação e que hoje em dia os trajetos a pé se fazem em becos apertados. Não há mais
muitas áreas livres para soltarem pipas ou pularem corda como eles veem as crianças do passado

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 537


VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

fazerem... Também ficam espantados com a fragilidade das casas de madeira e com a antiga Sede
da Associação dos Moradores da Vila do Vidigal, construída por adultos e crianças, a partir do
barraco de um morador que, não acreditando na luta pelo direito de permanecer no Vidigal, foi
transferido para Antares em 1978. Cristiano (1501), intrigado com as imagens do Conjunto
Habitacional de Antares, pergunta: “Caramba, tia, a gente ia morar aí é? Parece uma prisão!”.
Instigada pelos comentários dos estudantes, realizados durante as projeções e pela luta dos antigos
moradores/ativistas pelo direito à moradia, indago-me se essas imagens de arquivo projetadas na
tela têm potencial de emancipação...

O projeto de cinema, com a investigação da história da favela e com o gesto de criação


cinematográfica compartilhado entre professores e estudantes (BERGALA, 2008), nos instiga a
problematizar a possibilidade de “vontade atenta” como potência de igualdade na escola
(RANCIÈRE, 2002).
A lição emancipadora do artista, oposta termo a termo a lição embrutecedora do
professor, é a de que cada um de nós é artista, na medida em que adota dois
procedimentos: não se contentar em ser homem de um ofício, mas pretender fazer de
todo trabalho um meio de expressão; não se contentar em sentir, mas buscar partilhá-
lo. O artista tem necessidade de igualdade, tanto quanto o explicador tem necessidade
de desigualdade. E ele esboça, assim, o modelo de uma sociedade razoável, onde
mesmo aquilo que é exterior à razão – a matéria, os signos da linguagem – é
transpassado pela vontade razoável: a de relatar e de fazer experimentar aos outros,
aquilo pelo que se é semelhante a eles (RANCIÈRE, 2002, p. 79).

Para Rancière (2002, p. 48), o que embrutece o povo não seria a falta de instrução, mas sim
a crença na inferioridade de sua inteligência. “Um camponês, um artista (pai de família) se
emancipará intelectualmente se refletir sobre o que é e o que faz na ordem social”. Ele nos alerta
que para emancipar a outrem, é preciso que se tenha emancipado a si mesmo. Dessa forma nos faz
pensar no princípio da igualdade de todas as inteligências. “O que pode, essencialmente, um
emancipado é ser emancipador: fornecer, não a chave do saber, mas a consciência daquilo que pode
uma inteligência, quando ela se considera como igual a qualquer outra e considera qualquer outra
como igual a sua” (RANCIÈRE, 2002, p. 50). São a inteligência e a vontade, as duas faculdades
que estão em jogo no ato de aprender, o livro seria o mediador de uma relação igualitária entre o
mestre e o estudante.
Eles haviam aprendido sem mestre explicador, mas não sem mestre. Antes, não
sabiam e, agora, sim. Logo, Jacotot havia lhes ensinado algo. No entanto, ele nada

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

lhes havia comunicado de sua ciência. Não era, portanto, a ciência do Mestre que os
alunos aprendiam. Ele havia sido mestre por força da ordem que mergulhara os alunos
no círculo de onde eles podiam sair sozinhos, quando retirava sua inteligência para
deixar as deles entregues àquela do livro (RANCIÈRE, 2002, p. 25).

No ato de ensinar existem duas inteligências e duas vontades, a do mestre e a do estudante.


O autor nos traz ainda a questão da potência que não se divide. Na ordem intelectual, podemos tudo
o que pode um homem, pois tudo está em tudo. Essa tomada de consciência da potência que está
presente em toda manifestação humana, dessa igualdade de natureza é que ele chama de
emancipação. Assim sendo, nos instiga a pensar que é por meio da experiência que a criança
aprende, e o que todas elas aprendem melhor é o que nenhum mestre lhes pode ensinar – a língua
materna (RANCIÈRE, 2002). Faz-nos ver que é pela tensão do próprio desejo, ou pelas
contingências da situação que aprendemos quando assim temos vontade. Sim, aprendemos quando
temos vontade! Em consonância com o filósofo, é pelo efeito da vontade que um pensamento torna-
se palavra e depois essa palavra volta a ser pensamento, pois no ato de querer comunicar nossos
pensamentos, nossa inteligência com arte, através da combinação de signos cria uma expressão,
uma imagem, um fato material; retrato de um pensamento cuja origem é imaterial. Um quer falar e
o outro quer adivinhar e é desse concurso de vontades que surge um pensamento visível para dois
homens, ao mesmo tempo.

A experiência com os arquivos “sobre a mesa/na tela” demostra uma “vontade atenta” dos
estudantes para com o assunto?

Prosseguimos com as exibições das imagens de outrora em nossos cineclubes escolares e


com elas surgem novas perguntas, dúvidas, inquietações e relatos dos estudantes, tais como: “ué,
por que essa confusão toda aí? Por que queriam nos tirar daqui?” (Jackson/1501). Heloísa (1501)
responde: “Num viu que a tia disse que queriam fazer condomínio de bacana, com nome de
Niemayer...”. Cristian (1501) retruca: “a gente é pobre, né...”. Pedro Otávio (1301): “minha vó já
tava aqui nesse tempo, ela quer ver essas imagens aí, tia!” Ana Victória (1401) pergunta: “Ih, não
tinha água não? Não tinha luz, tia?” Um estudante exclama: “caraca, que confusão... que monte de
gente é essa? O que eles estão se jogando? Ih, a lá...”.

O cinema na escola, com as imagens de arquivo da favela, pode ser o livro Telêmaco do
professor Jacotot do Mestre Ignorante de Rancière? Pode, como aposta de alteridade e criação, ter
potencial de emancipação?

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VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

Partindo dessas projeções para todos os estudantes da escola, decido por realizar um
primeiro exercício de montagem com os arquivos que recuperamos. Uma espécie de compilação do
extenso material que temos em mãos. Assim, ponho-me a transcrever a fita cassete (1978) com a
entrevista de Carlinhos Pernambuco, morador/ativista, ex-presidente da Associação de Moradores
da Vila do Vidigal e já falecido. A partir de sua transcrição, a ideia da montagem cinematográfica
começa a me habitar. Sinto a urgência de começar montando essas imagens de arquivo a partir das
falas de Carlinhos Pernambuco. É a partir das palavras dele (Pernambuco) e das questões das
crianças que escolho as primeiras imagens que estarão na montagem. Algumas certezas: trabalhar
somente com arquivos; inserir a voz (de arquivo também) de estudantes; utilizar repetidamente na
montagem a imagem de Antares que suscitou a fala de Cristiano (1501), relacionando-a a se parecer
com uma prisão e colocar o som dos frequentes tiros na/da favela do Vidigal. Dessa forma, começo
a fazer pequenos exercícios de montagem e a projetá-los na escola para serem discutidos
coletivamente. As exibições contemplam tanto aos estudantes do projeto de cinema, quanto aos
estudantes dos 3º 4º e 5º anos.

Não sou/somos cineasta(as), mas apostando neste gesto de criação cinematográfica


compartilhado entre professores e estudantes, atrevo-me, na realização desses exercícios de
montagem, que intitulo Vidigal: exercícios de pensamento. Bergala (2008), enfatizando que a
escola gosta dos grandes temas, ressalta que os temas demasiado vastos ou distantes no cinema
podem, muitas vezes, deixar até mesmo o cineasta mais experiente perdido. Assim, sugere que se
escolha como tema apenas aquilo que poderia se mesclar à vida do cineasta e que deriva de sua
experiência. Pois bem, o tema escolhido nos é próximo! Dos estudantes porque habitam o território
da favela, da professora/pesquisadora, não só pelo território da escola ser na favela, mas também
por ter tido minha vida pessoal e profissional totalmente transformada, a partir da primeira
experiência na favela da Cidade de Deus em 2000, quando ingressei na docência em Educação
Física na Rede Municipal do Rio de Janeiro. Nessa minha primeira experiência na favela, encontrei
dificuldades nas atividades tradicionais da educação física que envolvem jogos de competição
acirrada, onde situações intensas de agressividade entre as crianças aconteciam/acontecem. Na
época, estava cursando a pós-graduação em educação psicomotora e como também tenho formação
em teatro, encontrei a possibilidade da união dessas três diferentes áreas do conhecimento,
principalmente a partir do conceito de Imagem Corporal: representação mental que cada um tem de
si, fruto do desenvolvimento das sensações e percepções relativas ao seu próprio corpo, integradas
aos sentimentos (FERREIRA, 2002).

540
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Com o passar do tempo e terminada minha pós em psicomotricidade, prossegui na


formulação de vivências lúdico-criadoras do fazer artístico. Metodologia que foi sendo
desenvolvida nas minhas aulas de educação física a partir da união dessas três diferentes áreas do
conhecimento. Com a utilização de jogos, improvisações e atividades do fazer artístico, buscava
mobilizar as dimensões simbólica, afetiva e cognitiva das crianças e dos jovens nas aulas,
potencializando não só o uso do movimento, mas também da palavra, da imagem e do som. Por
meio da imaginação, colocava em cena o exercício da função motora que ia se desenvolvendo
durante o processo de criação coletiva do grupo, desta vez nas favelas da Rocinha e do Vidigal
como professora, e também quando fui consultora teatral do Comitê Internacional da Cruz
Vermelha (CICV), em 2010, nas favelas do Complexo do Alemão, Pavão-Pavãozinho, Parada de
Lucas e na própria Cidade de Deus. Assim, fui desenvolvendo uma metodologia de trabalho que
culminaria, em 2011, com a dissertação intitulada Inclusão em Educação na Rocinha: vivências
lúdico-criadoras do fazer artístico nas culturas, políticas e práticas de uma escola de ensino
fundamentalv.

Foi desta maneira que, em 2012, levei o Cinead para a escola do Vidigal. Mais uma vez
apostava na potência e na urgência de um fazer artístico na escola. Imaginava também que
pesquisar com o cinema a história da favela, assunto desconhecido por estudantes e professores e
não contido nos livros didáticos, poderia render frutos emancipatórios a ambos. Com esse processo
de elaboração de uma memória coletiva da favela do Vidigal em nosso projeto de cinema da escola,
retorna a arte como pulsão de vida na minha trajetória pessoal/profissional, e desta feita associada
ao compromisso com a luta em prol da transformação de uma realidade política, social e
educacional. “O verdadeiro cineasta é ‘trabalhado’ por sua questão, que seu filme, por sua vez,
trabalha. É alguém para quem filmar não é buscar a tradução em imagens de ideias das quais ele já
está seguro, mas alguém que busca e pensa no ato mesmo de fazer o filme” (BERGALA, 2008, p.
48).

Ao fim de setembro de 2019, com a continuação da apresentação desses exercícios de


edição/montagem para os estudantes, a versão definitiva da montagem Vidigal: exercícios de
pensamento, com duração total de 8 minutos e 30 segundos, veio em meu pensamento como um
lampejo fulgurante. Começaria com a voz de estudantes, extraída da animação que realizamos na
escola em 2017, em parceria com o Anima Mundi: Vidigal: nos voos da conquista e as fotos da
escola Almirante Tamandaré (1977/78) de Felícia Krumholz. O áudio dos estudantes narra o
nascimento da Polícia Militar no Rio de Janeiro com a vinda da Corte e com o Major Miguel Nunes

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VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

Vidigal, seu mais truculento policial, caçador de pessoas em situação de escravidão, que ganhou as
terras ao pé do Morro Dois Irmãos, por seus préstimos a Coroa Portuguesa (HOLLOWAY, 1997).
Em seguida, tiros, muitos tiros de um áudio e vídeo que recebi dos coletivos que frequento na favela
do Vidigalvi. Tiros reais, tais quais os que vivenciamos com frequência em nossa escola.

Na montagem, coloco os tiros sem imagem, no escuro. Busco a potência da imaginação do


espectador, a imagem poderá surgir em seu pensamento de acordo com sua subjetividade... Todas
as crianças optaram pela permanência dos tiros. Nenhuma delas decidiu por retirá-los da montagem.
Alice (turma 1301) disse: “gosto dos tiros, é a favela hoje!” Pedro Henrick (turma 1501) comentou:
“esse tiroteio de sábado à noite foi perto da minha casa. Tive que me esconder no banheiro”. Maria
Eduarda (turma 1501) disse: “é horrível, morro de medo”. Outra criança disse já ter se
acostumado... Depois dos tiros, a montagem prosseguiu com os áudios de reportagens da época da
tentativa de remoção, com trechos dos áudios da entrevista de Carlinhos Pernambuco, selecionados
por mim, e com as imagens da época. Impossível não refletir sobre o lugar que moro... Após o
trabalho, mesmo em dias de tiroteio, volto para minha casa no “asfalto”, enquanto os estudantes
permanecem com os tiros frequentes em suas “cabecinhas”!

Na primeira exibição dessa montagem para o quinto ano, a partir das imagens “na tela”, o
assunto gerado “sobre a mesa”, versou em torno das pessoas em situação de escravidão. Foi desde
os navios negreiros até o Major Vidigal e seu chicote de três pontas... Avançou pelos atuais “tiros
na cabecinha” do Governador do Estado do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e o gesto das armas em
punho, tão em voga/moda na política e nas mídias atuais. Ao término da aula, aplausos, muitos
aplausos!

Masschelein e Simons (2013) propõem uma prática pedagógica que dá a ver à experiência
escolar sem a tutela da família, ou a chancela do Estado; sem funcionalidade preestabelecida. A
proposta deles é estritamente pedagógica no sentido do fazer escolar, não requerido pela sociologia,
filosofia, psicologia, mas sim desenvolvido entre professores e estudantes, em uma língua da escola,
que permitiria ao jovem superar as gerações passadas. Uma suspensão de tempo e espaço que possa
colocar em atenção coisas do mundo para o trabalho em comum, numa horizontalidade entre
professores e estudantes que procedam à ação de profanação do saber pela emancipação dos limites
epistêmicos e afetivos de cada um. Para que haja uma profanação do saber se faz necessária uma
relação de horizontalidade entre mestre e aprendiz, tal qual nos enfatiza Rancière (2002) e sua
igualdade das inteligências. É preciso igualdade no acesso e na problematização do que é colocado
em relação, seja texto, filme, peça teatral, mapa, objeto mecânico etc.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A escola como espaço de iguais deveria convidar todos a se aproximar de novo, como
nova experiência, desses objetos que habilitam um encontro distinto com o mundo, e
que permitem a cada um apropriar-se dele, encontrar um lugar nele, acessar suas
linguagens como modos de representação das experiências humanas (DUSSEL, 2017,
p. 103).

Entusiasmada, prossegui com as exibições dessa primeira montagem dos arquivos. Naquele
momento, os estudantes do projeto de cinema da escola iriam discuti-la a fundo. Esther (1501)
disse: “acho que deve passar esse filme lá no calçadão pra esses brancos racistas verem o que a
gente passa aqui na favela, com os ‘tiros na cabecinha’ e quem sofre é nossa família passando
necessidade...”. Sarah (1401) comentou: “tia, eu acho que quando o cara diz que não é uma garrafa
pra ser jogado fora, você devia botar a imagem do caminhão de lixo removendo as famílias, porque
é isso que ele tá dizendo, né?”. Imediatamente, incorporei a sugestão de Sarah, a imagem do
caminhão de lixo entrou junto com a fala do sapateiro Waldemar em entrevista para o Jornal do
Brasil em 1978. Também aproveitei a oportunidade para gravar um áudio com os testemunhos dos
estudantes, pois percebi que a opção da montagem com as imagens (somente de arquivo) não daria
conta de mostrar, em espaços acadêmicos, todo o processo do projeto de cinema da escola com a
investigação da história da favela do Vidigal e a possível elaboração de uma memória coletiva.
Assim, fiz uma montagem complementar, agora com fotografias atuais de todo o processo do
projeto de cinema com a história da favela, desde 2015, e com trechos de alguns áudios deste
processo de montar/mostrar a partir de sugestões dos estudantes.

Os jovens focaram a atenção? Foram capazes de manifestar suas opiniões? Foram capazes
de se sentirem capazes? A experiência teve potencial emancipatório?

Masschelein e Simons (2013) enfatizam que as tecnologias da educação escolar deveriam


ser técnicas que buscassem, por um lado, engajar os jovens, e, por outro, apresentar-lhes o mundo;
ou seja, fazer-lhes focar a atenção em alguma coisa. Tornando possível o tempo livre (livre de
funcionalidade a serviço do Estado/Mercado/Família), uma técnica que teria por intenção permitir o
próprio “ser capaz”, ou seja, a experiência do “sou capaz de fazer isso”. “Uma teoria de técnicas
com o potencial único de induzir a atenção e o interesse e apresentar ou abrir o mundo”
(MASSCHELEIN; SIMONS, 2013, p. 66).

Reflito sobre a potência de uma escola“inútil” de função, sim “inútil” de função aparente,
pois que na inutilidade aparente é que se esconde a possibilidade da transformação das gerações
mais novas, o amor a elas destinado por seus mestres. Assim é que Masschelein e Simons (2013, p.

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VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

68), colocam a escola como a possibilidade da igualdade das inteligências, o encontro, a capacidade
que todos (professores e estudantes) têm de aprender tudo! Enfatizam a fascinação que nutrem aos
inúmeros filmes feitos pelo cinema que retratam a escola, mais especificamente os professores
como “agentes capazes de ajudar os alunos a escaparem do seu mundo da vida e de seu
(aparentemente predestinado) lugar e posição na ordem social”. Ressaltam, ainda, que é justamente
por esse motivo que existe um ódio direcionado ao professor e a escola, pois que ela é a
possibilidade de “suspenção”, de impedimento e de interrupção nos planos que o
Estado/Mercado/Líderes Religiosos/Políticos e até mesmo a Família têm para os estudantes.
A forma escolar torna possível que uma “nova” e uma “velha” geração venham à
existência, juntamente com a experiência de não haver ligação “natural” entre elas.
Talvez isso explique por que há tantas tentativas – tanto dentro das escolas quanto da
sociedade – para domesticar as escolas, ou seja, para dar à mudança pedagógica uma
direção específica, e, portanto, impor normas psicológicas, éticas, políticas ou sociais.
Mas essa imposição tem a ver muitas vezes com o controle dos riscos da educação
escolar, e, portanto, já tem a ver com o reconhecimento do potencial radical, e até
mesmo revolucionário das escolas. Decidir por ou permitir a educação escolar implica
aceitar que o que é valorizado por uma sociedade (e seus adultos) está sendo colocado
sobre a mesa, e, portanto, pode ser fundamentalmente questionado e desafiado. A
escola se opõe a toda reivindicação de naturalização ou sacralização e a todos os
movimentos de conservadorismo e restauração associados a essas reivindicações. É
nesse sentido que a escola está realmente afetando a sociedade e é sempre
intrinsicamente “política”. A forma escolar, com as suas pressuposições utópicas e
antinaturais, é uma intervenção política (MASSCHELEN; SIMONS, 2017, p. 58).

O cinema na escola, com a aposta na investigação/elaboração de uma memória coletiva da


favela do Vidigal, pode ser essa experiência escolar “inútil” de função aparente, uma experiência
não tutelada pelo Estado, Mercado, Religião, Família? Uma experiência que dá a ver a prática
pedagógica a partir da relação dos envolvidos, sua atenção, seu interesse e disciplina?

Começamos, no segundo semestre de 2019, a produção do documentário Morro do Vidigal.


Nossa metodologia de filmagem se realizou a partir do encontro dos personagens de outrora com as
imagens de arquivo das quais são testemunhas. Leandro (2018, p. 220) enfatiza que a montagem
cinematográfica numa perspectiva histórica cria as condições para o encontro dos arquivos com as
testemunhas dos acontecimentos e filma o ato de fala proveniente do mesmo. “A associação dos
arquivos à fala durante as filmagens oferece, tanto ao historiador quanto ao cineasta, a ocasião de
observar os efeitos de um encontro entre a testemunha e as marcas do passado”. A partir daí que há
544
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

a elaboração de uma memória e uma circulação diferente das respectivas falas (arquivo e
testemunho oral).
Contemporâneos um ao outro, vestígios de uma mesma história e cúmplices de uma
experiência comum, testemunha e documentos se complementam mutuamente no
fortalecimento de suas falas respectivas. A fala dos documentos é muda e necessita de
uma fala viva que a torne audível. Os arquivos “dependem dos cuidados de quem tem
a competência para questioná-los e, assim, defendê-los, socorrê-los, dar-lhes
assistência”vii. O repasse desse cuidado e dessa competência à testemunha transforma
seu estatuto: de entrevistada, ele torna-se narradora de uma história na primeira
pessoa, construída no entrecruzamento de suas memórias com a carga mnêmica dos
arquivos (LEANDRO, 2018, p. 220).

Assim é que novos discursos podem acontecer no próprio set de filmagem, onde o
entrevistador não tem mais necessidade de fazer perguntas, pois os próprios documentos cumprem
esse papel. Mesmo se a pessoa filmada nada disser, seu próprio silêncio tem valor testemunhal “ela
se cala diante do indizível que o documento revela” (LEANDRO, 2018, p. 221). Pela mediação do
documento pode haver a corroboração do que é dito, ou ao contrário, a interpelação das certezas da
testemunha. A escrita da história nesse método de filmagem, colocada “fora do sujeito que fala”
propicia uma escrita “atravessada por questionamentos, dúvidas, silêncios, enfim, todas essas
lacunas inerentes ao documento e à memória e que desestabilizam os sistemas informativos e
discursivos” (LEANDRO, 2018, p. 221).

CONSIDERAÇÕES

A realização de um documentário numa perspectiva histórica pode levar-nos à elaboração de


uma memória coletiva de luta e resistência da favela do Vidigal frente ao constante genocídio dessa
população? Um filme, produzido por atores da/na escola em parceria com estudantes e professores
da ECO/UFRJ e moradores da favela pode atualizar um passado de lutas e resistências e tornar-se
um novo dispositivo que faça ver e falar? Vidigal: que lugar e que tempos são esses? Podemos
considerar o gesto de filmar como gesto de pesquisar?

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 545


VIDIGAL: EXERCÍCIOS DE PENSAMENTO O PROJETO DE CINEMA...

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009.

BERGALA, Alain. A Hipótese-Cinema: pequeno tratado de transmissão do cinema dentro e fora da escola. Rio de
Janeiro: Booklink Publicações Ltda, 2008.

BOSI, Maíra Magalhães. Filmes de família e construção de lugares de memória: Estudo de um material de Super-8
rodado em Fortaleza e de sua retomada em Supermemórias. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) –
Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

DUSSEL, Inés. Sobre a precariedade da escola. In: LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Belo-Horizonte:
Autêntica, 2017.

FERREIRA, Carlos Alberto de Mattos; THOMPSON, Rita (orgs.). Imagem e Esquema Corporal. São Paulo: Lovise,
2002.

FRESQUET, Adriana. Cinema e Educação – Reflexões e experiências com professores e estudantes de educação
básica, dentro e “fora” da escola. Alteridade e Criação 2. Belo Horizonte: Autêntica Editora Ltda, 2013.

HOLLOWAY, Thomas. Polícia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.

LEANDRO. Anita. Testemunho filmado e montagem direta dos documentos. In: DELLAMORE, Carolina; AMATO,
Gabriel; BATISTA, Natália (orgs.). A ditadura na tela. Questões conceituais. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas (UFMG), 2018. p. 219-232.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão pública. Belo Horizonte: Autêntica,
2013.

MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Experiências escolares: uma tentativa de encontrar uma voz pedagógica. In:
LARROSA, Jorge (org.). Elogio da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

RANCIÈRE, Jacques. Mestre Ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica,
2002.

VIGOTSKI, Lev S. Imaginação e Criação na Infância. São Paulo: Editora Ática, 2009.

Notas de fim

i
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=MZy_zvtqT_Q.
Cinema e Educação (Cineduc) foi criado em 1970 com a preocupação de dar às crianças e jovens a possibilidade de
ii

conhecer os elementos da linguagem cinematográfica. Felícia Krumholz atua, desde 1978, na área de educação e
audiovisual. Desde 1999, coordena e é curadora da Mostra Geração, o segmento infanto-juvenil do Festival do Rio.
Disponível em: https://mostrajoaquimvenancio.wordpress.com/mesa-redonda-cinema-audiovisual-e-educacao/. Acesso
em: 28 dez. 2019.
Lançado pela Kodak em 1965, o Super-8 é uma evolução da película 8mm, com uma superfície maior de imagem.
iii

Nos anos 1960 e 1970, fez muito sucesso entre cineastas amadores. In: BOSI, Maíra Magalhães. Filmes de família e
construção de lugares de memória: Estudo de um material de Super-8 rodado em Fortaleza e de sua retomada em
Supermemórias. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Cultura) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
546
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

iv
Entre 1964 e 1985, período da ditadura civil militar brasileira o governo federal usa recursos do recém-criado Banco
Nacional de Habitação (BNH) para construir conjuntos habitacionais no subúrbio a fim de remover as favelas da zona
sul carioca. A favela do Vidigal, com a força da Associação de Moradores da Vila do Vidigal, com o auxílio da Pastoral
de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro e com o apoio de artistas e simpatizantes da causa, consegue impedir a
remoção para Antares/Santa Cruz. A luta vitoriosa marca o fim dessa política de remoção na cidade do Rio de Janeiro.
v
Disponível em: https://ppge.educacao.ufrj.br/dissertacoes/marta_cardoso_guedes.pdf.
vi
Politilaje, coletivo criado em 2018 por Ninho Willian de Paula, com a finalidade de “fazer política em cima da laje”.
O Politilaje mistura política e arte e busca trazer as novas gerações ao debate político por meio de um Sarau com
poesias, performances, esquetes teatrais, slam etc. Coletivo Parem de nos Matar, no dia 26 de maio de 2019, puxado
pela favela do Vidigal, com a adesão de diversas outras favelas, movimentos sociais e instituições democráticas, o ato
Parem de nos Matar acontece no Posto 8 em Ipanema. O ato político cultural teve por objetivo chamar a atenção da
população do asfalto para o genocídio que acontece nas favelas e a necessidade de se reformular políticas de segurança
no Estado. O movimento cria um fórum permanente a partir de então.
vii
RICCEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oublii. Paris: Seuil, 2000. p. 213.

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CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO
DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS
DIGITAIS ENQUANTO DURAR A SITUAÇÃO DE
PANDEMIA DO COVID-19”

Tânia Maria Hetkowski


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS DIGITAIS: PRODUÇÃO DE IDEIAS E RIQUEZAS

Neste cenário de pânico, desespero e muito medo, pelas pessoas, devido à expansão e ao
descontrole pandêmico da Covid-19, o mundo teve que repensar as formas de se comunicar,
trabalhar e conviver com o isolamento e com as quarentenas em suas casas, com fechamento e
esvaziamento dos espaços coletivos e com o uso desenfreado e necessário das tecnologias digitais e
dos serviços on-line.

Hoje, a alternativa mais segura é a imersão na cultura digital e uso dos instrumentos
tecnológicos. Como afirmava Pierre Lévy, lá na década de 1990, que a esperança dos laços sociais e
da solidariedade estava na cibercultura, com as potencialidades do virtual, da inteligência coletiva e
com a efetividade da conexão planetária. Nesse sentido, cibercultura é,
[...] a aspiração de construir um laço social, que não seria fundado nem sobre links
territoriais, nem sobre relações institucionais, nem sobre as relações de poder, mas
sobre o compartilhamento do saber, sobre a aprendizagem cooperativa, sobre
processos abertos de colaboração [...] as comunidades virtuais encontram um ideal
na relação humana desterritorializada, transversal e livre. As comunidades são
motores e atores universais, por contato (LÈVY, 1999, p. 130).

Assim, ciberespaço surge como um modus operandi potencial de organização das


comunidades, de trocas de informações, de articulações de todos os tipos e tamanhos de coletivos
inteligentes e de mobilização social para os cuidados, proteção e consciência da população, em
especial ao se tratar de um cenário pandêmico como este vivenciado neste século XXI.

Vale rememorar que há décadas a comunidade científica brasileira abordava e defendia os


aspectos potenciais da cibercultura e das tecnologias digitais, destacando e demonstrando estudos
que demandavam políticas públicas para a formação de professores, investimentos em infraestrutura
nas escolas e preparação de crianças, jovens e adultos na utilização consciente dessas
potencialidades no ensino e aprendizagem, e em outras situações de suas vidas.

Infindáveis estudos se desdobraram, em especial a partir da década de 1990, com a


disseminação e acesso da internet na sociedade, mas com um distanciamento abissal da mesma nos
espaços escolares. Respeitáveis pesquisadores, como Gatti (1993), Valente (1993), Preto (1996),
Kenski (1997), Axt (2003), Barreto (2003), Hetkowski (2004), Santos (2005), Bonila (2002) entre
outros inúmeros pesquisadores de Universidades do norte ao sul do país, pontuavam sobre a
necessidade de repensar o mundo a partir do uso das tecnologias digitais. Um mundo potencial e

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CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS DIGITAIS...

aberto às inúmeras interpretações, às imensuráveis informações, aos diferentes usos e abordagens


educativas e, ainda, à necessidade de políticas educacionais que garantissem, à comunidade escolar,
acesso às ferramentas e possibilitassem formação aos alunos e professores de forma crítica e
consciente, na geração e socialização de conhecimentos, na composição de laços sociais, na
produção de subjetividades e nas mudanças culturais, educacionais, econômicas, trabalhistas e de
saúde coletiva.

Importante salientar que a cibercultura traz em sua gênese três aspectos importantes e
capazes de prover à sociedade novas formas de viver: a interconexão como potencial à
comunicação universal, como exemplo da pandemia que se instalou, as pessoas de todo mundo
trocam mensagens, conselhos, orientações e fazem apelos coletivos para cuidados e exílio
domiciliar; a criação de comunidades virtuais, as quais através da interconexão de comunidades são
construídas a partir de afinidades, interesses, conhecimentos e princípios políticos, projetos mútuos
e cooperativos independentes das proximidades geográficas e/ou institucionais e; a inteligência
coletiva como um modo de manifestação da humanidade, possibilitada pela rede digital universal
que favorece e estabelece recursos intelectuais, que, a priori, não sabemos a direção e que
resultados podem ocorrer, mas que se fortalecem e se multiplicam através das informações, sejam
genuínas ou fake news.

Para Pierre Lévy (1999), cibercultura é o mundo virtual integralmente vivo, pois se
demonstra e se efetiva por ser uma imensa reserva de virtualidades nutridas por temores, pânicos,
expectativas, projetos, sonhos, utopias, ódios, hipocrisias, laços, solidariedades entre outras razões e
questões humanas coletivas. Essa virtualidade que se estabelece na cibercultura atualiza percepções
conduzidas por agentes invisíveis, que emergem no espaço mais virtual de todos, ou seja, na
consciência individual e coletiva. Uma consciência absolutamente inapreensível, mas efetiva e
potencialmente disseminadora quando mobilizada pelas inúmeras ferramentas tecnológicas
(smartphone, computador, smart TV, tablets, relógios inteligentes) e pelos serviços digitais
(Facebook, Youtube, Instagram, tumblr, Twitter, videochamadas, Snapchat), amplamente usados,
mobilizados e disseminados por 4,1 bilhões de pessoas no mundo inteiroi.

Notadamente, confirmamos através deste número que há uma conexão planetária, pois
vivemos conectados por redes, multiplicando vizinhanças e laços sociais, ampliando e
aperfeiçoando as comunicações e investindo no progresso das ciências. Mas tivemos/temos, no
Brasil, investimentos e políticas públicas para o desenvolvimento e uso das tecnologias digitais no
ciberespaço de forma consciente?

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

As ferramentas e serviços do ciberespaço permitem conceber novos sentidos à dinâmica do


mundo contemporâneo, considerando a geração de conhecimentos, o desenvolvimento de novas
pesquisas, a descoberta de amplos sistemas e testes automatizados, as redes de transação entre as
ofertas, as demandas, os interesses, as ideologias, as imoralidades, as políticas e as correlações de
forças entre elite, estado e sociedade civil.

Essa dinâmica pode ser entendida como fundamentos da economia das ideias (LEVY,
1999), onde a riqueza é o espaço de consciência convenientemente explorado. Nesse espaço, o
processo de criação da riqueza pode ser compreendido através da dinâmica de três polos: da
invenção, da exploração e da economia.
Todas as riquezas vêm da pesquisa, do espírito, do virtual. A riqueza potencial é
infinita porque o espaço das invenções (ideias) possíveis é – ele também –
infinito. O consumidor final é também inicial porque quase sempre criativo,
alimenta e realimenta outras criações através do desejo (LEVY, 1999, p. 62).

Em um país que não investe na sua produção de riquezas, não possibilita invenções, nem a
exploração das mesmas, consequentemente, não tem como mobilizar e aumentar sua economia.
Sem ciência, sem pesquisadores, sem investimentos na educação, sem geração de riquezas e sem
consciência coletiva, como o Brasil vai explorar conscientemente as ferramentas e os serviços
digitais numa situação de pandemia?

Vale ressaltar que a “economia é somente uma das dimensões do devir humano total. Todos
a fazemos, todos os dias, mesmo que seja por nossas escolhas de trabalho, de consumo, de
poupança e de investimento. A economia não é uma força separada e autônoma” (LEVY, 1999, p.
69). Vejamos: se as ideias geram processos cognitivos, os mesmos levam às invenções e, por
conseguinte, aceleram os processos de inteligência coletiva, ou seja, dentre inúmeras dinâmicas
(educacionais, culturais, sociais, políticas, empresariais, entre outras) a economia também é
mobilizada virtualmente (moeda, banco, letras de câmbio, cartões de crédito, depósitos eletrônicos e
cibermoeda) .

Então, o ciberespaço, como espaço de comunicação e de transação aberto pela interconexão


mundial dos computadores, é potencial na produção, disseminação e exploração de ideias e, dentre
estas ideias estão e/ou deveriam estar as premissas para as políticas públicas educacionais no que
concerne ao uso, criação e conscientização acerca das tecnologias e das redes digitais. Esse ponto é
central quando falamos em riqueza nacional e, neste sentido, defendemos a necessidade de o
governo investir em ciência, pesquisa e inovação.

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CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS DIGITAIS...

Investimentos nas ciências e nas pesquisas, e a consequente expansão de ideias, demonstram


que “nenhuma forma material de riqueza existiu sempre, tivemos que inventá-las”. A comunidade
científica presenteia a humanidade com sua inteligência coletiva (LÉVY, 1999, p. 63-79). Mas
como presentear a humanidade se a ignorância dos governos não os permite compreender a
produção da riqueza como um ato criativo e científico? O obscurantismo e o desconhecimento das
formas de produção de ideias pelos governantes e chefes de estados levam um país e/ou uma nação
e suas “gentes” imergir em inúmeras catástrofes.

Podemos exemplificar inúmeras situações no Brasil, desde janeiro de 2019, que demonstram
a inabilidade e a ignorância acerca da economia, da ciência e do uso das tecnologias para o bem
humanitário: a negação pelo presidente acerca dos dados sobre as queimadas e desmatamentos na
Amazônia; as críticas e desqualificações pelo Ministro da Educação às Universidades, aos
professores e pesquisadores; a redução violenta e abrupta dos investimentos em laboratórios,
pesquisa e ciência pela Capes; o “saque” de bolsas de milhares de mestrandos e doutorandos de
todo o país pelo MEC; as ameaças à soberania e autonomia das Universidades e Institutos Federais
pelo governo; a intoxicação dos ideários terraplanistas; a proposta torpe e mercadológica do
Programa “Future-se”; o incentivo ao uso do Google For Education às redes estaduais e municipais;
a proposta inoportuna e inábil à substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais em
tempos de Covid-19; entre outras barbáries cometidas neste (des)governoii.

São tantos problemas que acometem nosso país que poderíamos descrever algumas centenas
e milhares de páginas, mas vamos nos ater no “ultimato negligente” do Ministro da Educação,
reiterado na Portaria 343/2020 e publicado no Diário Oficial da União, n. 53, 18/03/2020, Seção 1,
p. 39, que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto
durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – Covid-19”.

Nesse sentido, podemos rememorar ao Senhor Ministro que a história da educação, no que
se refere aos investimentos e usos dos meios digitais, demonstra que as políticas públicas brasileiras
sempre negligenciaram e desqualificaram a comunidade científica como comunidade virtual que se
organiza em uma inteligência coletiva e, agora nesse cenário de isolamento dos alunos em suas
casas, uma atitude reativa e insana, a disposição é “substituir aulas presenciais por aulas em meios
digitais” para milhões de estudantes. Quando foi que este mesmo governo fez investimentos na
educação para melhoria de infraestrutura e logística para professores e alunos terem acesso aos
meios digitais em suas escolas? Nestes últimos anos, quais foram os incentivos à formação dos
professores sobre as ferramentas tecnológicas e o uso dos meios digitais? A desqualificação do

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

profissional e os cortes de recursos na educação, pelo MEC, não são contraditórios com o que está
disposto nesta portaria?

POLÍTICAS E PROGRAMAS: ONDE ESTÃO AS EFETIVIDADES DAS TIC NA EDUCAÇÃO?

Importante rememorar, rapidamente, a trajetória das políticas públicas educacionais que


abordam as tecnologias da informação e comunicação (TIC), os fugazes e amnésicos programas de
inclusão digital nas escolas e o desmonte da educação digital exercido pelo atual Ministro da
Educação e sua cúpula.

A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988 (CF/88), em seu art. 206, vem
garantir a todo cidadão brasileiro:
I. igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II. liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o


saber;

III. pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de


instituições públicas e privadas de ensino;

IV. gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;

V. valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de


carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso
exclusivamente por concurso público de provas e títulos;

VI. gestão democrática do ensino público, na forma da lei;

VII. garantia de padrão de qualidade. (BRASIL, 1988).

Como continuidade de direitos aos cidadãos, o artigo 214 afirma que o desenvolvimento do
ensino junto às ações do Poder Público devem conduzir o país a: “I. Erradicação do analfabetismo;
II. Universalização do atendimento escolar; III. melhoria da qualidade de ensino; IV. formação para
o trabalho; e V. promoção humanística, científica e tecnológica do país”.

Se consideramos, inicialmente, estes dois artigos da Constituição Federal (BRASIL, 1988),


percebemos o quanto as políticas públicas educacionais brasileiras tangenciam e descumprem o
conjunto de normas e regras que instituem os pilares da nossa nação, os quais estabelecem diretrizes
para a redemocratização, pós-regime militar, a todos os cidadãos com os mesmos direitos e deveres,
com igualdade, liberdade, pluralidade, profissionalidade e qualidade de vida.

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CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS DIGITAIS...

Mas quando nos debruçamos sobre o artigo 214, evidenciamos, em pleno século XXI, 32
anos após a aprovação da nova constituição, a partir da última Pesquisa por Amostra de Domicílios
Contínua (IBGE em junho de 2019), que a taxa de analfabetismo no Brasil tem, pelo menos, 11,3
milhões de pessoas com mais de 15 anos analfabetas (6,8% da população), bem como a meta de
universalização não alcançada por nenhuma região brasileira e a mesma pesquisa indica que a
melhoria de acesso às escolas não garante a qualidade do ensino e da aprendizagem.

Colaborando com estes esclarecimentos, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada


(Ipea/2019) destaca que “a população ocupada mais escolarizada – com nível superior – continuou
aumentando, enquanto todas as demais faixas de escolaridade sofreram perdas significativas” e, no
que se refere à promoção humanística, científica e tecnológica do país, vivemos no presente, o
desmoronamento do Ministério de Educação e Cultura (MEC); a repugnância dos representantes do
MEC às Escolas e à Educação; a aversão e o ódio aos pobres, negros, indígenas, homossexuais e
outras minorias; os cortes nos investimentos à Educação Básica e no Ensino Superior; a
desqualificação e a perseguição aos professores e; a repulsa pela ciência, pelos pesquisadores
brasileiros e pela produção da riqueza/ideias e sua expansão.

Vimos, em 2019, o Ministro da Educação, Abraham Weintraub, anunciar cortes


orçamentários de 1,24 bilhões ao Ensino Superior e de 2,2 bilhões à Educação Básica iii; acusar
estudantes e professores-pesquisadores de baixo desempenho acadêmico e de forjar o espaço
universitário como um lugar de “balbúrdia”; insultar professores de “zebras gordas”iv ao se referir
ao salário, sem aumento nos últimos cinco anos; ameaçar a gratuidade do ensino público garantido
na Constituição (BRASIL, 1988); recomendar censura aos livros didáticos por supostas
doutrinações ideológicas; cortar mais de 5 mil bolsas de mestrandos e doutorandos, ou seja, impedir
o avanço de pesquisas e da produção de conhecimento; depreciar universidades e acusar
pesquisadores de irresponsabilidades quando os mesmos fazem descobertas de fármacos,
medicamentos e elucidações para a humanidade, além de criar um desmonte nos parcos programas,
projetos, perspectivas e avanços acerca do desenvolvimento da ciência, das tecnologias e da
inovação, conquistados nos últimos 32 anos.

Estes foram alguns dos feitos do Ministério da Educação desde 2019: cenário ideal para
dispor de uma Portaria que “autoriza” o uso dos meios digitais para substituir aulas a milhões de
estudantes em situação de isolamento, devido à pandemia de Covid-19?

Essa questão nos remete a recordar acerca da LBD (BRASIL, 1996), dos programas e
projetos que abordam sobre o uso das tecnologias digitais na educação brasileira, lócus e fito do
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

citado Ministro neste período de quarentena escolar. Comecemos pelo artigo 3º da LBD, o qual
corrobora com o artigo 206 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), incluindo: “X. valorização da
experiência extra-escolar; XI. vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais;
XII. consideração com a diversidade étnico-racial e; XIII. garantia do direito à educação e à
aprendizagem ao longo da vida”.

A partir destes princípios, o artigo 30 enfatiza que “a educação escolar deverá vincular-se ao
mundo do trabalho e à prática social” [...] “educação profissional, integrada às diferentes formas de
educação, ao trabalho, à ciência e à tecnologia, conduz ao permanente desenvolvimento de aptidões
para a vida produtiva”. No artigo 35, parágrafo 1o, inciso I, no que concerne ao Ensino Médiov,
destaca o “domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna”.
Ou seja, não se faz educação no Brasil sem autonomia, soberania ou investimentos na ciência e na
produção de conhecimentos, pois a educação é a riqueza do espaço de consciência
convenientemente explorado (LÉVY, 1999).

O artigo 80, da LBD (BRASIL, 1996), estabelece que “o poder público incentivará o
desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e
modalidades de ensino, e de educação continuada” e, o artigo 87 garante que “O Poder Público
incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os
níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada”. Significa dizer que desde a aprovação
da LBB, as políticas públicas deveriam garantir ao sistema educacional investimentos em
infraestrutura, logística, recursos e ferramentas tecnológicas, conectividade, acessos aos serviços
digitais e formação consciente para os usos e mediação didático-pedagógica nos processos de
ensino e aprendizagem, além da utilização dos meios e tecnologias de informação e comunicação,
com estudantes e professores, desenvolvendo atividades educativas em lugares ou tempos
diversosvi.

Paralelo às expectações e dinâmicas da EAD no Brasil, germinadas a partir das propostas


para formação de profissionais para as redes públicas da Educação Básica do país, germinavam
programas e projetos, a partir de interesses governamentais e, em seguida, pereciam ou eram
substituídos por outras “novas” propostas inócuas e pícaras à formação de professores e alunos para
uso dos meios digitais. Tais como o Programa Nacional de Informática na Educação (Proinfo)vii,
criado pela Portaria n. 522, de 09 de abril de 1997, com finalidade disseminar o uso pedagógico das
tecnologias de informática e telecomunicações nas escolas públicas de Ensino Fundamental e

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CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS DIGITAIS...

Médio das redes estadual e municipal. Teve sua importância, mas findou sua trajetória com
laboratórios sucateados, fechados e obsoletos em todo o território nacional.

O Governo Federal, através da Lei n. 12.249, de 14 de junho de 2010, e em parceria com o


Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento de Infraestrutura da Indústria Petrolífera
nas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (Repenec), criou o Programa “Um Computador por
Aluno (UCA)”viii, destinado às redes estaduais e municipais, com o objetivo promover a inclusão
digital pedagógica e o desenvolvimento dos processos de ensino e aprendizagem de alunos e
professores das escolas públicas brasileiras, mediante a utilização de computadores portáteis
denominados laptops educacionaisix.

Após quase duas décadas de fracassos nas proposições acerca dos potenciais das tecnologias
digitais na educação, em 2015, emerge a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como um
projeto, “coirmão” da Constituição Federal de 1988, com o objetivo de fixar aprendizagens
essenciais para a formação de alunos na Educação Básica brasileira. Publicado o novo documento,
em 2016, define em sua propositura 10 competências gerais que “devem” ser trabalhadas e
desenvolvidas ao longo da Educação Básica. Destacamos, dentre elas, Comunicação e Cultura
digitais, compreendidas como a 4ª e 5ª competências da BNCC:
4a. Utilizar diferentes linguagens, bem como conhecimentos das linguagens
artística, matemática e científica, a fim de se expressar e partilhar informações,
experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos.

5a. Compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e


comunicação, de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas
sociais (incluindo as escolares), para se comunicar, acessar e disseminar
informações, produzir conhecimentos, resolver problemas e exercer protagonismo
e autoria na vida pessoal e coletiva (grifos meus).

A composição da BNNC e a definição de competências por agentes mobilizadores do MEC


não garante a interconexão como potencial à comunicação universale à riqueza científica; à criação
de comunidades políticas e éticas e, à constituição da inteligência coletiva como protagonista de
laços sociais humanos. Desde a década de 1990, denunciamos que as políticas e programas, acerca
dos usos e potenciais das tecnologias digitais nas redes públicas de educação brasileira, estão
situadas no terreno do sofismo, do escoamento ético e da necessidade dos agentes, dessas bases,
conhecer a realidade das redes públicas de norte a sul do Brasil e questionar: como são/estão as
condições de infraestrutura, logística e formação de professores e alunos para explorar, nesse

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

cenário de Covid-19, as competências 4 e 5 anunciadas na BNCC em situações de sala de aula?


Somos um país com mais de 200 milhões de habitantes e as “quimeras” e alucinações do MEC e de
suas Secretarias se repetem sem respeitar as singularidades desses Brasis.

Diante da realidade decadente que se instalou nestes últimos anos no MEC, não podemos
deixar de mencionar o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras (Future-
se) do atual (des)governo, que “tem por finalidade o fortalecimento da autonomia administrativa,
financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes), por meio de parceria com
organizações sociais e do fomento à captação de recursos próprios”. A Lei n. 9.637/98x, incentiva
que “pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades sejam dirigidas ao
ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à proteção e preservação do meio
ambiente, à cultura e à saúde”. Para a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais
de Ensino Superior (Andifes)xi, “a intervenção das organizações sociais, na verdade, traz ameaças à
autonomia da gestão financeira das universidades, que é um preceito constitucional”.

A alienação do atual Ministro e da equipe que compõe o MEC conduziu a criação de


programasxii como “Novos Caminhos” como uma medida para aumentar em 80% o número de
matrículas na educação profissional e tecnológica; “Educação Conectada” com a proposição do
MEC repassar 224 milhões para conectar 100% das escolas aptas a receber internet e R$ 60 milhões
para levar acesso à web a 8 mil rurais (até agora nada feito); “Programa Nacional das Escolas
Cívico-Militares” visando à implantação de 216 escolas cívico-militares até 2023 (interrompido
com a pandemia da Covid-19) e; “Conta pra Mim” um programa de estímulo à literacia familiar, ou
seja, de leitura pela família para as crianças, mesmo desconsiderando o número de jovens, adultos e
idosos analfabetos no Brasil. Mas e a Portaria n. 343/2020?

PONDERAÇÕES SOBRE A PORTARIA N. 343 DE 17 DE MARÇO DE 2020/MEC

Vale ressaltar que as discussões acadêmicas, preocupações epistêmicas, ponderações


científicas e sugestões de educadores e pesquisadores acerca das tecnologias digitais na educação
brasileira, vêm desde o início da década de 1990, com o advento da internet e das novas formas de
se comunicar e potencializar os processos de ensinar e aprender entre professores e alunos, algo
ainda não superado politicamente e conscientemente no Brasil.

Testemunhamos estupefatos a publicação da Portaria n. 343 de 17 de março de 2020xiii, pelo


Ministro Abraham Weintraub, que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em
meios digitais enquanto durar a situação de pandemia do Novo Coronavírus – Covid-19”, que, no

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CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS DIGITAIS...

uso de suas atribuições, define no “Art. 1º. Autorizar, em caráter excepcional, a substituição das
disciplinas presenciais, em andamento, por aulas que utilizem meios e tecnologias de informação e
comunicação” e, no Art. 2º, permite que as IES “poderão suspender as atividades acadêmicas
presenciais pelo mesmo prazo”.

Essa portaria mobilizou o Sindicato Nacional dos Docentes do Ensino Superior (Andes) a
um pronunciamento em Nota de Repúdio à proposta do MEC, na sugestão de utilização da
modalidade EAD em substituição ao ensino presencial. Destaca que o MEC, ao defender aulas on-
line, “desconsidera a sobrecarga dos docentes e discentes no processo de reestruturação da vida
cotidiana que o isolamento exige e (que as) aulas on-line exigem internet e equipamentos de
qualidade e o caráter pedagógico das aulas presenciais e as especificidades de cada disciplina e
curso, entre outros”.

Para a Andes, esse governo “coloca o mercado em primeiro lugar e a saúde da população em
último, coerente com a postura de toda sua gestão: atacando a autonomia das Universidades,
Institutos e Cefet; estrangulando os recursos; incentivando o ódio ao conhecimento e à ciência; e
aprofundando o sucateamento do SUS, que cambaleia sem recursos, fruto da Emenda
Constitucional do Teto dos Gastos (EC n. 95/2016)” e pede “pela imediata revogação da Emenda
Constitucional n. 95/2016! Em defesa do SUS e da Saúde Pública! Em defesa do ensino, pesquisa e
extensão públicos e gratuitos!”

Essa Portaria denota a inabilidade do MEC em garantir os preceitos da Constituição


(BRASIL, 1988) e da LDB (BRASIL, 1996) no que se refere aos princípios de igualdade, liberdade,
pluralidade, profissionalidade, experiência extraescolar, trabalho e as práticas sociais, diversidade
étnico-racial e; direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida. Princípios que devem estar
atrelados ao uso e potencial dos meios digitais e dos ambientes virtuais nos processos de ensino e
aprendizagem, em quaisquer níveis de ensino, a despeito das políticas públicas educacionais, em
constante discussão, e das dimensões legitimadas pelo direito constitucional.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

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Proposta do MEC de EAD em Substituição ao Ensino Presencial. Brasília, DF, 18 de março de 2020.

AXT, Margarete et al. Tecnologias Digitais na Educação: tendências. Educar em Revista, [s.l.], p. 237-264, 2003.
ISSN 0104-4060.

BARRETO, Raquel Goulart. Tecnologias na formação de professores: o discurso do MEC. São Paulo: Revista
Educação e Pesquisa, [s.l.], v. 29, n. 2, jul./dez. 2003. ISSN 1517-9702.

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DF, n. 53, p.39, 18 mar. 2020.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do
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BONILLA, Maria Helena. Escola Aprendente: desafios e possibilidades postos no contexto da Sociedade do
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 559


CIBERCULTURA E TECNOLOGIAS: “SUBSTITUIÇÃO DAS AULAS PRESENCIAIS POR AULAS EM MEIOS DIGITAIS...

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VALENTE, José Armando. Diferentes Usos do Computador na Educação. In: Computadores e Conhecimento:
repensando a educação. Campinas: Gráfica da Unicamp, 1993.

Notas de fim

i
Fonte: Organização das Nações Unidas. Estudo da ONU revela que mundo tem abismo digital de gênero, publicado no
dia 06 de novembro de 2019. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2019/11/1693711.
Corroboramos com o autor Paulo Endo (2019), em seu artigo denominado “Os caminhos possíveis de um desgoverno
ii

diante da prática da tortura: apontamentos e perspectivas num contexto de apoio governamental a graves violações de
direitos humanos no Brasil”.
iii
Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/mec-contraria-discurso-e-tira-verba-da-educacao-basica-alem-de-
faculdades/
iv
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_ensinosuperior/2019/09/26/
interna-ensinosuperior-2019,791013/weintraub-diz-que-vai-atras-da-zebra-gorda-professores-com-salario.shtml.
v
O Ensino Médio também é oferecido pelos Institutos Federais.
vi
Decreto n. 2.494/98, substituído pelo Decreto n. 5.622/2005, que caracteriza a educação a distância como modalidade
educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização
de meios e tecnologias de informação e comunicação, com estudantes e professores desenvolvendo atividades
educativas em lugares ou tempos diversos.
vii
BRASIL/MEC/SEED. Programa Nacional e Informática na Educação. Brasília, SEED/MEC, nov. 96.
Disponível em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/proinfo/eixos-de-atuacao/projeto-um-computadro-por-
viii

aluno-uca.
ix
QUARTIERO, Elisa, BONILLA, Maria Helena; FANTIN, Mônica. Projeto UCA? Entusiasmos e desencantos de
uma política pública. Salvador: EDUFBA, 2015.
x Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9637.htm. Acesso em: 29 dez. 2019.
xi Disponível em: http://www.andifes.org.br/as-universidades-federais-frente-ao-future-se/. Acesso em: 02 jan. 2020.
xii
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/52641.
Mesmo considerando o Artigo 87, parágrafo único, incisos I e II, da Constituição Federal de 1988, o Artigo 9º,
xiii

incisos II e VII, da Lei de Diretrizes e Bases LDB n. 9.394/1996 e o Artigo 2º do Decreto n. 9.235, de 15 de dezembro
de 2017.

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE
PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS
INFANTIS

Ana Paula Venâncio


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

ENTREMEANDO-ME AO PENSAR DAS CRIANÇAS

Começo este texto assumindo a escrita narrativa do meu projeto de pesquisa, pontuando
alguns aspectos que, neste momento, alinhavam meu pensar. Ressalto que esta narrativa vai sendo
escrita na primeira pessoa do plural,em diálogo com as crianças que, em coautoria, integram a
produção investigativa deste trabalho junto com autoras, autores e interlocutores que estarão nos
entremeando. Assumo como lugar de tecer a pesquisa, a sala de aula, a investigação e a interlocução
com as crianças.

Sou professora alfabetizadora e trabalho na perspectiva de uma educação antirracista, atuo


como docente nos anos iniciais do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (Iserj), uma
escola pública da rede Faetec. A sala de aula é compreendida por nós como espaço vivo, lócus de
nossos atravessamentos, de nossas (in)temporalidades e de surpresas.
Em uma manhã de agosto de 2016, fui surpreendida por uma conversa entre Beatriz
Ferreira, Pérola Guimarães e Alicia Sophiai, a partir de uma despretensiosa pergunta:
Durante uma Roda de Conversas em sala de aula, perguntei para as crianças se elas
sabiam o que era o racismo? Um silêncio pairou por entre as crianças. Algumas
iniciaram outros assuntos, desviando da pergunta feita por mim. Outras preferiam não
responder. Por fim, quando parecia que a prosa iria tomar outros rumos, por um
momento fugidio, quase imperceptível, senti-me atravessada, meio ao burburinho da
roda, por um rápido diálogo, entrecruzado por Beatriz Ferreira, Pérola Guimarães e
Alicia Sophia. E, entre uma fala e outra Beatriz diz: – Tia o racismo a gente não vê, a
gente sente! Minha mãe sabe, minha avó sabe! Elas conversam comigo sobre isso. E
Beatriz continua... – Tia, quando a gente fala nossos pensamentos se movimentam, aí
vem mais pensamentos... A fala de Beatriz é emergente. Marca seu lugar de fala, o
modo como pensa, ou seja, sente o racismo. Sua fala ganhou a concordância da
maioria das crianças que estavam na roda e outros pensamentos foram tomando a
materialidade das palavras e vozes. Assim, Pérola Guimarães, sentindo-se empoderada
adentra a conversa afirmando – Minha mãe é negra, meu pai é negro e eu sou negra,
simples assim, tia! Eu gosto de mim, do meu cabelo... Em seguida, Beatriz enfatiza: –
Eu sou negra, mas só aqui a gente fala sobre isso! Todo dia a gente conversa sobre
racismo... Eu não tenho vergonha de falar sobre isso. Gosto de desenhar minhas
amigas, minhas bonecas e brincar, mas nem todo mundo brinca comigo... Alicia
Sophia, sentindo-se pertencente ao diálogo empreendido por Pérola e Beatriz,
rememora: – Lá na Educação Infantil todo mundo ficava pegando no meu cabelo, eu

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS

não gostava, mas a professora não fazia nada! Eu não queria mais vir para a escola.
Todo dia eles ficavam pegando no meu cabelo. Eu chorava... Eu também gosto de
conversar sobre racismo. Que bom que posso falar do meu cabelo, das minhas irmãs,
do meu jeito! Aqui ninguém vai ficar rindo do meu cabelo... (Registro de Caderno de
Campo, 07 ago. 2016).

Venho apostando cotidianamente na prática da conversa (diálogo) com as crianças, por


acreditar que essa ação tem potência e potencializa. Por meio das falas, questões são expostas,
saberes e ainda não saberes se entrecruzam, pontos de vistas se abrem. Falas que se atravessam e
são atravessadas possibilitando a ampliação da visão de si e do outro, criam (in)certezas,
exteriorizam preconceitos, estereótipos, classificações, negações. O que pensam as crianças sobre
racismo? O que sabem sobre isso? O que sentem?

Ouvir as falas das crianças é sempre um acontecimento. Falas que nos provocam assombros,
sustos, surpresas, nos colocam em encruzilhadas. Mas, o que as falas (podem) indicar? Indiciar?
Despistar? Esconder? Segredar? Camuflar? Caguetar? Denunciar? Essas são algumas pistas, sinais
para pensar, provocar movimentos de pensamentos, como disse Beatriz Ferreira, no processo de
alfabetização antirracista que venho vivendo e experienciando com as crianças, no enfrentamento
do racismo intraescolar. O que compreendemos sobre racismo intraescolar?

Outro aspecto a ser destacado é o corpo na Roda de Conversas, o corpo que dialoga, que se
corresponde e se inscreve na conversa, nos movimentos de pensamentos, nas refutações, nas
contradições, nas negações, nos esconderijos perversos promovidos pelo racismo dentro e fora da
escola. Somos sujeitos corpóreos e usamos o nosso corpo como linguagem, como forma de
comunicação. O que será que a aluna e o aluno negros nos comunicam por meio de seus corpos?
Como o corpo negro se localiza na escola? Como ele se apresenta esteticamente? Como é pensado
pelas crianças negras e não negras? Nossos corpos carregam histórias, memórias, ancestralidade.

A conversa tecida entre Beatriz, Pérola e Alicia, nos indicia para dimensões muito maiores
do que somente a presença na roda. Esses corpos falam! Estar em Roda é tecer pertencimento,
acolhida, conhecimento, compartilhamentos, comprometimento com a presença vital do outro. Isso
implica nos alfabetizarmos numa perspectiva antirracista.
Creio que esta dimensão de acolhida [da palavra], respeitosa e amorosa, do corpo do
outro, sobretudo quando este outro tem uma história-memória social de violência,
mutilação e insensibilidades com relação ao seu corpo e aos corpos dos seus iguais, é
uma chave para a permanência e o sucesso das nossas crianças, em especial as
crianças negras, na escola. Permanência e sucesso não de vítimas ou de carentes, mas

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

de cidadãos e cidadãs de direito, vitoriosos sobreviventes de racismo, exclusões e


injustiças sociais (TRINDADE, 2013, p. 149).

Vem sendo no cotidiano da sala de aula, com as crianças, que saberes, dizeres, fazeres,
ideias são compartilhadas. São esses mo(vi)mentos vividos com elas que me inquietam, afetam meu
fazer e meu pensar, me dão a ouvir, me comprometem cada vez mais com as questões raciais
explicitadas pelas crianças e por elas vividas dentro e fora da escola. Assumo, como princípio de
uma alfabetização antirracista, uma postura dialógica, aberta, curiosa, indagadora, que não só
movimenta, mas remexe nossos pensamentos, evidencia nossas (in)certezas. Azoilda Loretto da
Trindade (2013, p. 145) nos diz que:
É preciso colocar as crianças no centro da roda, vamos para o começo da conversa,
tirá-las do lugar de carência e olhá-las como força, como potência. Como crianças
cujo axé e cuja energia vital foram e são tão fortes que nos fazem pensar: como elas
resistiram e resistem à tanta perversidade social?

Deste modo, o que dá vida à alfabetização antirracista é a polifonia de vozes e falas.


Diálogos que se expõem, que verbalizam modos de pensar e sentir o mundo, inventar e reinventar-
se, narrar e ser narrado, criticar, aprender em exercício com os outros. E, nesse momento, nos
sentirmos pertencentes a uma memória que vai sendo construída, individual e coletivamente, com
os aspectos, informações, saberes, sentimentos que compõem a história de matriz africana, a
memória afrodescendente, sobre espiritualidade na ancestralidade africana e afro-brasileira, da
África antiga, dos heróis, das guerreiras e guerreiros, dos rebeldes, dos revolucionários e uma gama
de conhecimentos ancestrais, que a história dita oficial não contempla e promove o apagamento
desses conhecimentos.

O cotidiano compreendido como espaçotempo movediço, sinuoso, indefinido nos interroga a


todo o momento! “Tudo isso exige então ir muito além do olhar que vê, com o qual aprendemos a
trabalhar” (ALVES, 2008, p. 23). Um exercício a uma permanente reflexão, a ir além do que ouço.
Sendo assim, escutar as falas das crianças implica em perscrutar o não dito, escutar os silêncios,
adentrar as palavras, rastrear os ruídos, intuir a conversa. Sou eu e o outro, sou eu com o outro,
somos nós. Não nos negamos. Nos compartilhamos. Que movimentos de pensamentos as falas (os
gestos, os olhares, os corpos) das crianças podem revelar em relação ao racismo intraescolar?

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS

MISTURANDO OS FIOS, CRIANDO TEXTURAS...

No início de minha carreira, as questões relacionadas às relações étnico-raciais eram por


mim vividas em sala de aula de forma esporádica, pontual ou em ocasiões de datas comemorativas.
Minha prática expressava tímidas ações ou pontuais atuações sobre esse tema, que até esse
momento era vivido com fragilidade, sem saber como trabalhar ou abordar curricularmente com as
crianças. Pouco ouvia o que as crianças diziam ou sabiam sobre esse assunto. Pouco me abria à
minha própria história. Seria, então, a negação de mim mesma? Por perceber os meandros pelos
quais o racismo se estrutura, preferia invisibilizá-lo? Que prática me habitava? Foi vivendo esse
movimento reflexivo, que fui buscar caminhos outros de alfabetizar. No entanto, é preciso dizer que
esse modo de pensar a alfabetização antirracista foi chegando de mansinho, devagar... Nem sempre
me habitou. Sobre isso, Nilma Lino Gomes (2003, p. 171) diz que:
Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente,
ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo,
é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros. Será que, na escola, estamos atentos
a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável
quando discutimos, nos processos de formação de professores, sobre a importância da
diversidade cultural?

Por meio das palavras da autora supracitada, posso vislumbrar alguns momentos por mim
vividos tanto como aluna em processo de alfabetização e posteriormente, como professora
alfabetizadora na docência em sala de aula. Em ambas as situações o racismo permeou meu
pensarfazer, usando como um de seus dispositivos o cerceamento, a negação, o silenciamento e a
reprodução de um currículo hegemonicamente eurocentrado e distanciado de nossas histórias e
vivências. Esse é um dos mecanismos por meio do qual o racismo se manifesta, se apresenta, se
esgueira entre as brechas de nosso pensarfazer. Isso nos faz ficarmos cada vez mais atentos quanto
aos (nossos) processos de formação de professores.Quais são as representações que nós, docentes,
construímos desde a infância sobre o negro, seu corpo e sua estética?

No percurso do meu processo de formação, aprendi a indagar sobre a minha própria prática
criando um diálogo sobre o meu fazer pedagógico e os meandros do racismo que em minha ação
pedagógica se fazia sutil, se dissimulava. Olhar para o próprio fazer, indagando-o, interrogando-o,
duvidando das próprias certezas, não é fácil! Menos ainda quando, consciente do racismo pelo qual
fui/sou afetada, enfrento as dores das marcas deixadas na memória e no corpo. Essa situação
angustiante me colocou na encruzilhada dos meus próprios desejos de mulher negra professora
alfabetizadora, qual seja: buscar por uma educação como prática para a liberdade (HOOKS, 2017)

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 565


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

para mim e para as crianças e descobrir novamente o lugar, os sentimentos e os sentidos por uma
práxis antirracista, nos enxergue nas nossas complexidades e incompletudes, que nos torne visíveis
ao outro e a nós mesmos.

Vem sendo no desafio de tentar compreender o compreender da criança (SANCHES, 2008)


por intermédio de suas falas, dos seus sinais, de seus murmúrios e de seus silêncios que a
perspectiva de viver uma alfabetização antirracista foi delineando outros contornos nos campos
político-teórico-metodológicos de minha prática pedagógica. Sendo assim, nesta investigação que
se abre aos movimentos de pensamentos das crianças e aos meus, trazem a(s) fala(s) nas suas
diferentes variantes, vista(s) aqui como potência, como experiência, como condição inerente, viva,
emergencial, como energia vital (TRINDADE, 2013). O que dizem as crianças sobre seus
processos de alfabetização na perspectiva antirracista? Como vivem esse aprendizado? O que os
movimentos de escrita podem revelar?

TECER DIÁLOGOS REQUER ABERTURA. ERA PRECISO CONVERSAR...

Era preciso colocar na Roda o projeto de pesquisa cujas inspirações, ideias, palavras e
trabalhos foram desenvolvidos com as crianças. Era preciso tecer uma conversa sobre a pesquisa,
sobre nós. Esta autorização foi escrita em dezembro de 2019, com a turma que por dois anos
lecionei e acompanhei no primeiro e segundo ano, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental do
Iserj entre os anos de 2016 e 2017, respectivamente.

Fui invadida por um medo grande que há dias vinha me angustiando dada a proximidade do
encontro com a turma. E se as crianças não quisessem participar da pesquisa? Se me dissessem que
não queriam mais discutir sobre racismo? Se me dissessem que nosso tempo já havia passado...
eram muitas as indagações que apertavam meu coração.

No dia do encontro, ao nos reunirmos em uma sala da escola, esteiras foram puxadas e, sem
que eu pedisse, uma roda foi sendo formada. E ali estavam as crianças, a antiga 101, inclusive
Beatriz Ferreira, Pérola Guimarães e Alicia Sophia. Uma ambiência de saudade, memórias,
histórias, falas, conversas, corpos inquietos... até que Luíza Vitória me perguntou: “Por que estamos
aqui? Você vai dar aula pra gente no ano que vem?” Sobre dar aula para a turma no ano seguinte,
gerou um alvoroço e a esperança de que isso viesse a acontecer e de minha resposta ser positiva
gerou uma expectativa.

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS

Mas o assunto era sobre o momento que estava vivendo ao ter passado para o doutorado na
Universidade Federal Fluminense e como/quanto isso nos implicava. A Roda de Conversas
silenciou para ouvir quão implicados estávamos com uma proposta de pesquisa que elas e eles me
ajudariam a escrever. Para isso eu precisava da autorização delas e deles para juntos pensarmos a
pesquisa. Li o projeto. Meu coração acelerado e minha boca seca demostravam minha preocupação.

Nesse momento, as crianças conversavam e me perguntavam: “Ana Paula, como vamos


participar da pesquisa?”, me perguntou Luíza. E prosseguiu: “nós vamos escrever um livro?”
Beatriz me perguntou: “Como você lembra de tudo que falamos na nossa Roda Ubuntu de
Conversas?” Ryan desconfiado avisou: “Ih, eu era pequeno, eu estava aprendendo a escrever...
meus desenhos eram feios... você vai trazer aqueles cadernos que a gente escrevia nossos
pensamentos?” Alícia Sophia relembrou uma passagem quando ainda era da Educação Infantil do
Iserj: “Lembra que minha mãe e a minha irmã vieram na escola e trançaram o cabelo de todo
mundo? Depois eu vim pra cá ficar com você. Eu queria que você voltasse para a nossa turma.
Aquelas conversas eram muito boas!” Luíza mais uma vez me pergunta: “E o nosso pano Ubuntu?
Ele vai para a pesquisa? Ele é nosso!”

Depois de muitas falas e muitas conversas, não pude fugir da pergunta: Seria possível
estarmos juntos na produção da pesquisa que, se eles aceitassem, seria tecida/escrita em coautoria?
Levamos praticamente uma manhã entremeando conversas, pensamentos e falas, desejos e
curiosidades, lembranças e sentimentos...

No caso da autorização em questão, ressalto o desejo expresso pelas crianças em


acompanhar a pesquisa e continuar os encontros de discussão sobre racismo intraescolar com os
quais fomos nos formando e nos transformando. Muito aprendo com as crianças e seus multiversos,
como disse Nicolas Lessaii. Para ele, as nossas Rodas de Conversação como multiversos, “todo
mundo diz um monte de coisas na roda, às vezes eu nem sei o que vou pensar primeiro, porque tô
pensando numa coisa, depois tem outra coisa..”. O que são movimentos do pensamento? O que
esses movimentos de pensamentos têm provocado nas falas, nas escritas e na vida das crianças
em/na relação ao/com racismo?

Tenho vivido e experienciado com as crianças multiversosiii. Nesse caminhar, coloco-me em


abertura para as infâncias compreendendo-as como sujeitosinterrogantes (NOGUERA, 2019).
Corroboro com a ideia de que as crianças estariam mais frequentemente em estado de infância
(NOGUERA, 2019) e nós adultos estaríamos em disponibilidade de abertura para com elas
aprender, nos aproximando de seus multiversos, vislumbrando por meio de outras formas de pensar

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

outros caminhos, para isso, mantermo-nos em estado de infância seria uma possibilidade de
compreender como o racismo afeta o processo de aprendizagem de crianças negras?

Portanto, pensar em Alfabetização Antirracista é abrir-se para o multiverso de saberes e


conhecimentos, crenças e intuições a que estamos mergulhados, envoltos, aos equívocos
provocados pelo embrutecimento do racismo edo colonialismo que nos habita, para deles nos
libertarmos e combatermos. Assim sendo:
Uma educação antirracista e emancipadora deve preparar o sujeito negro para ser
lúcido e crítico diante desta realidade, permitindo a sua autodeterminação e
autoproteção enquanto ser humano, pois ele é alvo principal do monstro e não pode
ser alienado em relação a este fato. E, para as crianças não negras que acessarão essa
educação, compreenderão que o mundo não gira em torno de si, seus valores e
culturas, fazendo com que cresçam com mais empatia, menos racistas e conscientes de
seu papel no mundo (NJERI, 2019, p. 7).

Como sujeitos interrogantes que são, as crianças precisam acessar uma educação que as
liberte do racismo, crianças negras e não negras, como nos disse Njeri (2019). Para isso, nós,
professoras e professores, precisamos estar concisos do racismo que nos habita e dele nos
libertarmos sob a leitura crítica que fazemos de nós mesmos. A relação pedagógica não se
desenvolve só por meio da lógica da razão científica, mas, também, pelo toque, pela visão, pelos
odores, pelos sabores, pela escuta. Estar dentro de uma sala de aula significa colocar a postos, na
interação com o outro, todos os nossos sentidos.

Aposto no princípio freireano (2005) que versa sobre a leitura do mundo preceder a leitura
da palavra, nesse sentido, penso que, aprender a ler e escrever está para além de ler as letras ou de
escrevê-las, mas de ler o mundo numa leitura que nos inclua, possamos nos ler e nos percebermos
como sujeitos históricos, pensando, discutindo, indagando sobre relações étnico-raciais vividas no
dia a dia, dentro e fora da escola, sobre nossa história ancestral, pela compreensão de que não há
uma única forma de se narrar ou estar no mundo, mas múltiplas formas, entretecidas de
conhecimentos, de resistências, saberes e memórias. Que sentidos revelam as falas, os gestos, os
silêncios das crianças no processo de alfabetização na perspectiva antirracista?

Percebendo a necessidade de, no âmbito epistemológico, estar dialogando com perspectivas


que são suleares (SANTOS, 2009) à luta antirracista, atento-me a alguns princípios político-teórico-
metodológicos com os quais desejo conversar e ampliá-los durante o percurso da pesquisa: o
paradigma da afrocentricidade, desenvolvido por Molefe Kete Asante (2009); um outro pressuposto

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS

teórico-metodológico que vem entremeando meu pensarfazer com as crianças é a perspectiva


desenvolvida pelo filósofo Renato Noguera (2014) sobre o afroperspectivismo; Azoilda Loretto da
Trindade (2013) destaca em seus trabalhos os valores civilizatórios afro-brasileiro, são eles:
ludicidade, oralidade, circularidade, cooperatividade, corporeidade, musicalidade que, segundo a
autora, tem a intensão de destacar a África na sua diversidade em seus aspectos histórico social
cultural, valores estes que constituem a história de nosso país. “São princípios e normas que
corporificam um conjunto de aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e
materiais, objetivas e subjetivas” (p. 30) que estão enleados na nossa memória, no nosso modo de
ser, na nossa história ancestral, nas africanidades brasileiras (SILVA, 2003) da qual somos
constituídos; teorias que dialogam com o campo da psicologia com autores como: Frantz Fanon
(2008), Neusa Santos Souza (1983), Grada Kilomba (2019), Abdias do Nascimento (2011),
Kabenguele Munanga (2005) e no diálogo franco e aberto com a Pedagogia, Filosofia,
Antropologia, História e outros campos de estudos que relacionam suas pesquisas aos estudos
étnico-raciais na educação. Ao Movimento Negro que, numa luta constante e permanente, obteve
uma importante conquista no enfrentamento ao racismo, pois a Lei n. 10.639/03 simboliza um
marco histórico e importante na centralidade da discussão sobre a temática africana e afro-
brasileira, sobretudo para a educação.

Nesse entrelaçar de ideias, desejo relacionar essas perspectivas ao processo (inicial) de


alfabetização vivido pelas crianças. Fio que entremeará esta pesquisa no sentido de ajudar a
compreender o compreender da criança quanto ao(s) processo(s) de apropriação da leitura e da
escrita vivido(s) por cada uma, sobretudo numa sociedade racista e segregadora, da qual fazem
parte. Processo em que elas se inscrevem, podem dizer e escrever sobre suas vivências, sobre suas
histórias.

AS TESSITURAS ARTESANAIS DE UM PROCESSO INICIAL DE PESQUISA: ESCRITA EM


ALINHAVOS

Mas como articular referenciais tão distintos? São, de fato, distintos? Gosto de trazer para
meus textos as tessituras, pois sou uma admiradora de panos artesanais, produzidos em teares
rústicos onde cada processo, desde a fiação até a produção é compreendido como uma artesania
(CERTEAU, 2006). Como uma artesania, a linha tecida e entrelaçada formará sempre um pano
único, singular, com tramas que não se repetem, com diferentes nós, formando sinuosos desenhos...

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 569


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

As teorias aqui apresentadas divergem, criticam, historicizam, agudizam, problematizam as


questões que deverão ser investigadas. Elas estão aqui para compor um diálogo aberto, a ser tecido
artesanalmente com os fios que serão puxados. Porém, as perspectivas teóricas, convergem para a
compreensão da criança como sujeito histórico-social, produtora de conhecimentos, criativa,
reativa, legitima na sua forma de ver, sentir e falar o mundo, desde um outro lugar. Essa é a
centralidade deste projeto de pesquisa: a criança que fala, pensa, articula e narra por outras lentes, o
seu espaçotempo, sua(s) vivência(s) e experiência(s).

Nesse sentido, esta pesquisa pensa a criança nos seus multiversos, na sua singularidade,
procurando tecer fios de diálogo com os campos de estudos que estejam comprometidos com a
discussão étnico-racial, sobretudo no âmbito da educação como abertura para outros modos de
compreensão e de aproximação aos movimentos de pensamento e falas das crianças, não para
explicá-las, mas para aprender com, numa outra lógica, que, como diz Azoilda Loretto da Trindade
(2002), revira a lógica adultocêntrica.

Ao pensar nessas abordagens teóricas, torna-se pertinente levar em conta a reflexão da


própria prática. Movimento que venho perseguindo e me desafiando a praticar uma ação
pedagógica legitimadora da voz, desejos e curiosidades infantis. Aposto nas relações, nas
aproximações, nos afetos, nas ligações, nas mediações, nas ajudas, no cuidado com o outro. Nesse
pensamento, são as crianças e a professora, permanentemente aprendentesensinantes, possibilitando
que modos mais solidários e colaborativos de aprenderensinar ganhem visibilidade.

Sendo assim, pensando na sala de aula, espaçotempo em que esta pesquisa será tecida, a
singularidade de cada criança está ligada ao outro que com ela compartilha, conversa, pensa,
aprende, ensina, brinca, briga, diverge, questiona, entra em conflito, pois esses sentimentos
constituem a vida, estão em nós, constituem o nosso ser, nos tece na alteridade. Segundo
Wanderson Flor do Nascimento (2016), o ser/devir do humano se instala não somente nas relações
éticas, mas também nas relações interpessoais e de reconhecimento.

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

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Fotos

Foto da carta de autorização produzida pelas crianças para coautoria da pesquisa – Acervo de pesquisa– 2019.

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ALFABETIZAÇÃO ANTIRRACISTA: MOVIMENTOS DE PENSAMENTOS, EXPERIÊNCIAS E NARRATIVAS INFANTIS

Notas de fim

i
Beatriz Ferreira, Pérola Guimarães e Alicia Sophia integraram a turma da qual lecionei por dois anos (2016/2017)
primeiro e segundo ano dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Esta turma era composta por 18 crianças. No Iserj, o
primeiro e o segundo anos compõem um ciclo de escolaridade, não tendo retenção do primeiro para o segundo ano e as
crianças permanecem juntas nos anos posteriores. Continuei acompanhando esta turma com encontros quinzenais
durante o ano de 2019. pretendo continuar com os encontros e com as Rodas de Conversas sobre os processos de
alfabetização e racismo em 2020.
Nícolas Lessa, integrante da turma de alfabetização que, durante dois anos (2018 e 2019) estudou com a professora
ii

Ana Paula Venancio.


iii
Conceito a ser desenvolvido e ampliado no processo da pesquisa.

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO
DE ALFABETIZAÇÃO

Cecilia M. A. Goulart
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

No presente artigo, pontuamos aspectos da história da alfabetização com base em estudos de


autores brasileiros, inclusive em estudo realizado pelo grupo de pesquisa que coordeno (GOULART
et al., 2007). O viés organizador dos estudos é a questão do método, vista na perspectiva da prática
e da teoria, em relação a refletir sobre a prática pedagógica como prática política. Ao final, ainda
que brevemente, criticamos a Política Nacional de Alfabetização proposta pelo governo federal
(BRASIL, 2019).

Os estudos sobre a história da alfabetização apontam que a preocupação com o ensino da


leitura e da escrita se intensifica no final do século XIX. A proclamação da república, em 1889,
ainda que enfrentada obliquamente, fez com que novas ideias movimentassem o panorama político-
social do novo Brasil republicano, incluindo-se ideias educacionais.

Os materiais portugueses para ensinar a ler em fins do século XV, as cartinhas, que
originaram as cartilhas, reuniam o abecedário, o silabário e rudimentos do catecismo. Era o tempo
de expandir e fixar o território português, no espaço da península ibérica habitada por muitos povos
na época; tempos das primeiras gramáticas no início do século XIV, e a fixação da língua pela
escrita, em substituição ao Latim, também se mostrava fundamental. A religião católica fazia parte
desse pacote.

Na época, o analfabetismo em Portugal era grande, e atingia o povo, a burguesia e não


poucos membros da nobreza e mesmo da família real (NETO; ROSAMILHA; DIB, 1974, p. 156).
As escolas de primeiras letras eram poucas e atendiam somente alunos do sexo masculino. Os
autores referidos citam Hall (1966) para destacar que a alfabetização não começou a se disseminar,
mesmo na Europa Ocidental, até o século XIX. Destacam do texto de Hall que “À época de Carlos
Magno (cerca de 800 d.C), um por cento, talvez, da população total sabia ler e escrever. Por ocasião
da Revolução Francesa (1789), o total de alfabetizados era de 20 a 30 por cento da população, nas
nações europeias mais avançadas, e muito menos nas demais” (p. 27).

As primeiras cartilhas se guiavam pela soletração, com abecedário, silabário e textos de


leitura, como, por exemplo, o Método Castilho, de 1850, que também apresentava preocupações
fonéticas, segundo Neto, Rosamilha e Dib (1974, p. 157). A Cartilha Maternal (1986), de João de
Deus, inova ao tomar a palavra como unidade de trabalho e gera inúmeras reações de adeptos de
outros encaminhamentos metodológicos. No prefácio, João de Deus escreve que o aluno que
aprende pelas letras ou pelas sílabas, “conduzido através de elementos inertes e inexpressivos do
pensamento, reduz-se à posição de repetidor de uma cambulhada de miudezas trivialíssimas, que
não o divertem, nem instruem, atrofiam-lhe o espírito e deixam nele impresso o hábito da leitura

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

mecânica, se não, muitas vezes o selo do idiotismo” (KOPKE, 1945, p. 131 apud NETO,
ROSAMILHA; DIB, 1974, p. 157). Chegávamos aos métodos de marcha analítica.

Ao longo do século XX proliferaram no Brasil cartilhas com orientações e pontos de partida


diversos. As cartilhas sempre foram acompanhadas de instruções sobre os fundamentos da obra e
modos de utilização, com mais ou menos detalhes e considerações sobre o país, a importância do
estudo, crianças e posturas dos professores. Tais instruções foram cada vez mais se transformando
em manuais, com informações sequenciadas e pormenorizadas do “como fazer”, trazendo à tona a
concepção de professor que se tinha e a quem se destinava o livro. Um instrutor?

Em 1890, o percentual de analfabetos no Brasil era de 85% e, na passagem do século XIX


para o século XX, havia baixado para 75% (RAMOS, 2001, p. 49), números preocupantes que
foram se modificando muito lentamente ao longo do século XX.

É Ana Maria de Araújo Freire (1989) que contribui para aprofundarmos o aspecto político
do estudo sobre a alfabetização no Brasil. O denso trabalho da autora tem o objetivo de examinar
práticas educativas para entender o problema do analfabetismo no Brasil no período de 1534-1930.
A autora opta por focalizar a história do analfabetismo, em contraposição à história da
alfabetização. Segundo ela, o analfabetismo só pode ser entendido na relação dialética com as
ideologias, nascidas na infraestrutura social que determinam a política educacional globali.

Ana Freire considera o problema do analfabetismo no Brasil a partir do início da


colonização sistemática (período pós-Cabral) e parte da análise política e econômica do período
para depois analisar o ideológico, por considerar que os dois primeiros aspectos determinam esse
último. Mas o elemento ideológico é, para ela, responsável pela viabilização da exclusão da maior
parte da população dos bens produzidos.

Do extenso estudo de Freire destacamos somente algumas questões relevantes à nossa meta
de compreender aspectos da temática do artigo. Entre os anos de 1870 e 1914, a chamada Ilustração
Brasileira veiculou elementos ideológicos do Positivismo ao Liberalismo, combatendo as ideias do
conservadorismo católico do Império. Escreve a autora:
Enfim, Positivismo e Liberalismo serviram, cada um a seu modo, à industrialização
que, durante todo este período em estudo, procurou, intersticialmente, um espaço na
economia brasileira. Portanto, ideologicamente, fundamentaram o projeto da
burguesia quando da passagem da nossa sociedade de agrária e rural, a comercial e
exportadora dependente (FREIRE, 1989, p. 220).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A legislação escolar inicialmente esteve presa ao pensamento católico conservador, que


sustentava o regime de união entre a Igreja e o Estado e era coerente com o modo de produção
escravista. Posteriormente, os ilustrados, acreditando na educação como caminho para a liberdade,
estabeleceram uma legislação educacional baseada no novo ideário do século. É de 1891, a nova
constituição postulando um Estado laico.
Quando o modo de produção se encaminhou mais aceleradamente para o capitalismo
[...], era “natural”, dentro desta condição, escamotear o real através do discurso liberal
na educação, na linguagem do moderno, do novo, do dinâmico, enquanto o espírito
conservador do Positivismo permanecia menos explícito e mais latente, portanto mais
capaz de determinar uma educação autoritária (FREIRE, 1989, p. 220).

Na década de 1920, a burguesia industrial e a nova classe política interessaram-se pela


educação popular, sendo seu objetivo principal alfabetizar as classes subalternas para formar mão-
de-obra qualificada. O grupo “tradicional”, integrado pela aristocracia agrária, e os denominados
pela autora “velhos políticos”, tentavam manter os valores e os modos de vida que lhes permitissem
garantir seus privilégios. Opunham-se às mudanças e no terreno educacional foram férreos
opositores ao escolanovismo e à educação popular, incentivando cursos superiores para seus filhos.
Organiza-se o proletariado, mas sufocado enquanto “classe social em si” (p. 221), não conseguiu
respostas educacionais concretas.
A partir do ano de 1834, a educação primária fica a cargo dos estados, ainda que sem
condição de sustentá-la. A educação profissional apenas conseguiu perpetuar as diferenças e a
divisão entre as camadas sociais.

Em relação às escolas normais, aspecto importante para nossa discussão, afirma a autora:
As poucas escolas normais existentes no país e suas cíclicas existências, desde sua
origem, em 1835, em Niterói, atestam a precariedade de seu ensino e,
consequentemente, do ensino primário. É verdade que melhoraram, qualitativamente,
depois de 1920, nos estados onde houve remodelações de ensino, mas sem reais
repercussões posteriores na educação em seus respectivos territórios, muito menos em
termos nacionais (FREIRE, 1989, p. 222).

Ela conclui considerando que o que realmente houve no período foram sucessivas
mudanças, mas não verdadeiras transformações no campo educacional: reformas e reformulações
sem garantir mudanças profundas, valorizando-se excessivamente a educação primária como
instrumento de ordem, progresso, disciplina. A educação era vista como ferramenta para resolver os
problemas do país nos planos político, econômico e social. Mas as práticas continuavam sendo

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

elitistas, discriminatórias e autoritárias, visando à perpetuação de direitos e privilégios das classes


dominantes.
A política educacional, entendida como parte desta política lato sensu, não poderia
romper as forças que precisam dela para se perpetuar, a sociedade brasileira exigia
uma população dócil, obediente e analfabeta e que as ideologias estavam sendo
capazes de produzir (FREIRE, 1989, p. 223).

Segundo a autora, a despreocupação com a educação e, principalmente, com a educação


popular que se evidencia ao longo de todo o período estudado é consequência da construção da
história que se sustenta no desprezo pelas camadas populares, na negação do acesso de muitos ao
conhecimento, e os perpetua na “incompetência”, na “ignorância”, nas “trevas”, no “suicídio”, na
“praga negra”, no “cancro”, no “obscurantismo” e na “vergonha” da “chaga” do analfabetismo
(FREIRE, 1989, p. 224). O que estamos vivendo hoje não é novo, embora haja novos
condicionantes.

Observamos no estudo brevemente apresentado, além de outros trabalhos consultados, que


as tensões na sociedade brasileira sempre foram muitas, afetando as ações no âmbito da Educação,
pelo papel desempenhado de formação política de pessoas. Nessa perspectiva, e olhando para os
espaços escolares, o encaminhamento teórico-metodológico do ensino-aprendizagem, do modo
como o entendemos, tem uma função vital nessa formação, considerando que, para além dos
conhecimentos que circulam e são trabalhados nas escolas, é através de relações intersubjetivas que
o processo de ensino-aprendizagem acontece. Essas relações sociais podem se dar de muitas
maneiras, gerando variadas reações, compreensões e hierarquizações.

Diante do contexto entrevisto, mesmo sabendo que damos um salto histórico, é importante
destacar um documento produzido pelo Inepii em 1951 (GOULART et al., 2007), como sugestão de
proposta de bases gerais para o trabalho com leitura e linguagem no curso primário. É pertinente
ressaltar que o documento foi elaborado a partir da análise minuciosa de programas vigentes nos
estados, e questionários para sondagem de opiniões de especialistas das disciplinas, professores
primários e pessoas não especializadas em educação, em relação ao conteúdo que os programas
deveriam apresentar para que a escola se tornasse “um instrumento eficiente de integração ao meio
social”. No documento estão claros os objetivos da escola; a necessidade da escola formular um
plano de trabalho “em face dos interesses, tendências e possibilidades infantis e das exigências do
meio”; o julgamento do trabalho dos alunos, do professor e de toda a escola; e a necessidade de se

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

fixar o nível de desenvolvimento mínimo a ser exigido em cada grau de ensino, “abrindo largos
horizontes à ação do mestre e maiores oportunidades às atividades criadoras dos alunos”.

Há muitas questões relativas às ideias predominantes no pensamento educacional brasileiro


da época que poderiam ser discutidas aqui. A respeito do modo como o documento foi organizado,
parece-nos que houve um movimento coletivo de decisões, sendo a proposta fruto de muitas vozes
sociais, um modo incomum de se organizarem políticas de educação. Em relação ao foco de
interesse do nosso trabalho, destacamos algumas conceituações que fundamentam o documento, na
parte relativa à primeira série e a seus desdobramentos. A linguagem é concebida como “meio de
expressão por excelência e instrumento básico de intercomunicação social [...] constituindo
elemento valioso na aquisição de novas experiências e conhecimentos”. Essas observações nos
mostram que, na década de 1950, já era possível organizar ações coletivas e conceituar a linguagem
numa perspectiva social.

De acordo com o documento, o ensino da linguagem deve ser desenvolvido


[...] em função das outras atividades escolares, e, somente quando absolutamente
necessário, terá períodos e exercícios especiais de aprendizagem [...] em situação total
de vida, isto é, de acordo com os interesses infantis próprios de cada idade, de cada
grau de desenvolvimento dentro das possibilidades pessoais da criança e das
exigências do meio.

Por uma necessidade de ordem metodológica, como os autores enfatizam, a proposta está
dividida por série em linguagem oral, literatura infantil, leitura, escrita, composição, gramática,
ortografia (nesta ordem).

As indicações de atividades relativas aos temas acima enumerados apresentam uma


preocupação grande com não tolher a espontaneidade da criança, um relevo especial ao
desenvolvimento da linguagem a partir das histórias que a criança já conhece; o estímulo à
inventividade, à imaginação; a importância do trabalho com a literatura infantil, entre outros
destaques. No que diz respeito ao tema “Leitura”, convém dedicar especial atenção.

No documento, é chamado de período preparatório ao período que antecede “ao da


aprendizagem propriamente dita”. A meta das atividades propostas para a preparação é “estimular
na criança o desejo de aprender a ler e a escrever [...] criando na classe uma atmosfera de alegria, de
vivacidade...”, em que é enfatizada a questão da significação. As atividades constituem atos de
leitura e escrita pelo professor e para as crianças, em que aquele poderá perceber diferenças dos
alunos quanto a, entre outras coisas, experiências e conhecimentos anteriores de leitura e escrita.

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Embora o documento faça alusão ao uso posterior de diferentes métodos de alfabetização e


cartilhas, sublinha a importância da elaboração de coleções, álbuns variados de animais,
brinquedos, personagens das histórias, calendário, dicionário, cartazes e outros materiais.

Destacamos essas atividades pela característica de não apresentarem uma preocupação com
atividades motoras e com o desenvolvimento de determinadas habilidades, e também com critérios
de gradação de fonemas, destaques muito comuns ainda hoje no trabalho de alfabetização, apesar de
as teorias de conhecimento apontarem que as crianças são capazes de aprender complexamente, e
não linearmente e cumulativamente, como se pensava até as primeiras décadas do século XX.

O documento destaca também a importância da biblioteca de classe “[...] por mais pobre que
seja o meio”. São destacadas atividades com significado social, além de um compromisso com a
criança, com o que sabe, gosta e se interessa, destacando a sua capacidade inventiva e imaginativa.

Surpreende-nos muito encontrar, em 1951, um período preparatório concebido da maneira


como foi delineado, quando hoje ainda é forte o trabalho com uma concepção mecanicista de
aprender a ler e a escrever, privando-se crianças do trabalho com materiais escritos, em nome da
necessidade de se desenvolver a relação entre fonemas e letras para garantir a aprendizagem da
leitura e da escrita.

Pellanda (1987) já destaca em seu estudo as forças políticas que marcam a sociedade
brasileira no século XX e a repercussão direta no trabalho escolar. A autora pontua que, no período
de 1930-1964, ao lado de práticas orientadas por métodos de alfabetização, coexistem ações de
caráter mais libertário, sinalizando interesses sociais divergentes. Ficam claras contradições que, de
qualquer modo, sinalizam mudança de rumos no trabalho alfabetizador em relação a posturas
tradicionais. A preocupação com a realidade social das crianças e com aspectos psicológicos se
evidencia no ensino da escrita, o que se revela no documento do MEC, de 1951. Métodos analíticos
e sintéticos são utilizados e há uma tendência a estabelecer ligação dos analíticos ao pensamento
progressista, e dos sintéticos ao pensamento conservador. Pellanda não afirma tal relação chamando
a atenção de que há outras relações em jogo neste processo.

Sobressai no período do estudo a heterogeneidade de propostas de alfabetização,


especialmente nos anos que antecederam o golpe militar de 1964. A ação alfabetizadora adentrava o
interior do país, dando relevo político à leitura da realidade pelo homem. Paulo Freire tem um papel
fundamental neste quadro.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Pellanda salienta, entretanto, que é com o trunfo da rapidez que entra no Brasil pós-64 o
método fonético da Abelhinha, importado da Itália. No conjunto de rupturas e substituição de
discursos que se seguiram ao golpe e que forjaram a Lei n. 5.692, de 1971, este método – que
destrói significante e significado, olhando-o na perspectiva do signo linguístico, em nome de uma
“eficiente rapidez” – contribui para aprofundar a distância entre o conhecimento veiculado pela
escola e o conhecimento trazido à escola pelas crianças das classes populares.

O movimento de maior integração do trabalho pedagógico à realidade social, que vinha se


constituindo, e já está esboçado no documento de 1951, se transforma num movimento de redução
da linguagem a sons sem sentido, sem vida. A pesquisa de campo de Pellanda mostra, por meio da
análise de trabalhos de sala de aula de 60 professoras, em escolas que atendem a crianças de
diferentes níveis sociais, como a concepção mecanizada da alfabetização se espalha no interior das
relações pedagógicas, consolidando posturas e atitudes, aliadas a regras e dogmas. O trabalho
pedagógico se homogeniza, comprometendo inclusive as relações afetivas que também se revelam
artificiais e discriminatórias. Os responsáveis pelas crianças atendidas pelas professoras
pesquisadas, de um modo geral, incorporam o discurso oficial, na ilusão de que as ideias e os
valores da classe dominante sejam universais e de que todos devem assumir como suas aquelas
ideias.

A análise de cartilhas utilizadas nas escolas paulistas entre as décadas de 1930 e 1970
realizada por Dietzsch (1990) pode ser expandida para as cartilhas de um modo geral. A
constatação da impessoalidade do discurso das cartilhas, com a predominância de enunciados
assertivos, faz com que encolha o espaço para o diálogo e a interação entre os interlocutores (p.
36). O espaço de argumentação dos alunos e dos professores se estreita já que em geral as
instruções de manuais são seguidas acriticamente. Outro destaque da autora é à desvinculação dos
enunciados dos contextos de vida das crianças e à manipulação da linguagem, que é efetivada por
meio da apresentação de um mundo maniqueísta em termos do que se relaciona a meninos e
meninas, de atitudes caracterizadoras do universo dos “bons” e dos “maus” e de um amor à pátria e
a seus símbolos acima de qualquer crítica. A análise das condições de produção do discurso das
cartilhas leva Dietzsch a afirmar que na cartilha falta um texto, um leitor, um escritor.

Não há texto quando prevalece a justaposição de enunciados desconexos, entidades


anônimas e ordens a serem cumpridas. A relação leitor-escritor, por sua vez, se esvanece quando a
mensagem priorizada é a da decifração de letras, sílabas e frases à deriva da linguagem socialmente
constituída.

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

Como o índice de reprovação continuou na ordem de 50%, em meados do século XX,


pensou-se que o processo educativo estava comprometido em razão da falta de orientação aos
professores. Em virtude disso, as cartilhas ganharam manuais para professores, detalhando a
aplicação do método. Excetuando a Cartilha Sodré, todas as demais cartilhas passaram a ter um
manual do professor, de acordo com o autor mencionado.

Em estudo de 2001 sobre a formação de professores de Português, Soaresiii destaca que a


partir dos anos 1950 começa a ocorrer uma real modificação nas condições de ensino e de
aprendizagem na disciplina. Como fatores externos, a autora aponta uma progressiva transformação
das condições sociais e culturais e, sobretudo, das possibilidades de acesso à escola exigindo a
reformulação das funções e dos objetivos dessa instituição. E destaca a partir desse momento a
modificação do alunado:
[...] como consequência da crescente reivindicação, pelas camadas populares, do
direito à escolarização, democratiza-se a escola, e já não são apenas os filhos da
burguesia que povoam as salas de aula, são também os filhos dos trabalhadores – nos
anos 1960, o número de alunos no ensino médio quase triplicou, e duplicou no ensino
primário. Como consequência da multiplicação de alunos, ocorreu um recrutamento
mais amplo e, portanto, menos seletivo de professores [...].

Embora Soares esteja tratando dos professores de Português, a realidade da formação de


professores da escola de 1º Grau não era diferente. Formados, depois da Lei n. 5.692/1971, por um
grande número de escolas normais, de um modo geral, tiveram uma formação técnica, e muitas
vezes com ênfase em funções que possuíam maior status, como Orientação e Administração
Educacional e Supervisão Escolar. As disciplinas propriamente pedagógicas e as didáticas eram
estudadas como técnicas de ensino. Tudo isso acontece numa época em que as condições escolares
e pedagógicas, as necessidades e as exigências culturais passam a ser bem diferentes.

A produção de livros didáticos para alfabetização – as cartilhas – começa a apresentar


alguma mudança há muito pouco tempo, e o PNLD – Programa Nacional do Livro Didático –,
instituído pelo MEC em 1995, tem um papel importante nessa direção. De qualquer modo, a língua
escrita era tratada, e em muitos casos continua a ser tratada, equivocadamente como um código de
transcrição da língua oral. Não há alteração significativa no objeto e nos objetivos da alfabetização,
da mesma forma que Soares salienta que não houve na disciplina Português, a despeito de uma
ampliação dos estudos na área de linguagem, do ponto de vista linguístico, sociológico,
antropológico e histórico. A ciência linguística avançou, formaram-se novos campos de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

conhecimento, como a Sociolinguística, a Psicolinguística e outros, a sociedade se transformou, e


poucas mudanças aconteceram nas bases de reflexão sobre métodos de alfabetização.

O relevante estudo de Patto (1990) analisa a produção do fracasso escolar, a partir da


compreensão das raízes históricas das ideias que engendraram uma visão de mundo, que produziu a
forte exclusão na educação brasileira. Destrinchando as teorias das deficiências e o modo como
foram relacionadas ao fracasso das crianças de classes populares no Brasil, a autora afirma que a
crença na incompetência das pessoas pobres é generalizada em nossa sociedade. Com base nessas e
em outras relações, Patto estuda a forma como foram relacionados os distúrbios de
desenvolvimento das crianças de classes populares com o rendimento escolar. Soares (1985), no
livro Linguagem e escola, também discute diferentes teorias que tentam justificar o fracasso das
crianças de classes populares: a falta de dom para o estudo e as carências de todo tipo – cultural,
linguística, nutricional, entre outras. A autora destaca o papel da linguagem nas relações
pedagógicas, chamando atenção para o fato de que as experiências e as falas das crianças dentro da
escola têm servido para excluir.

A sociedade, com padrões de normalidade estabelecidos pela burguesia, sedimentou a ideia


de que as classes subalternas são ainda mais “desviantes” e “diferentes”, apresentando inclusive
deficits específicos ou generalizados. O preconceito arcaico, segundo o qual “pobre e preto não
aprendem ou têm mais dificuldades de aprender”, vigora inconscientemente, afirma Patto.

O problema do fracasso dificilmente é pensado segundo a ótica da estrutura da escola e da


estrutura social, da inadequação dessas mesmas em face da situação real de vida da criança:
“Questões relativas à classe social e relações entre classes nem são lembradas. Quando se avança
muito, coloca-se o problema na relação professor-aluno (não no sentido de analisar o fato de serem
classes sociais diferentes, quando isso acontece) e no método de ensino (como, por exemplo, os
métodos de alfabetização)” (COSTA, 1987, p. 41). As considerações de Costa encaminham a
buscar compreender as raízes históricas das ideias que engendraram a visão de mundo produtora de
forte exclusão na educação brasileira.

Analisando o passado da educação brasileira em relação ao presente, Costa afirma que “o


velho não parece tão caduco”. Podemos replicar a afirmação de Costa em 1987, hoje em 2020: o
velho não parece tão caduco. A culpabilização do indivíduo, a cultura desviante, a proliferação de
clínicas psicopedagógicas, a utilização de testes psicométricos e medicamentos para sossegar
crianças estão em pleno vapor. Criticando a ideia de reeducação pedagógica, Costa afirma que, ao
transferir o modelo clínico para a escola, parte-se do princípio de que os alunos estão “doentes” e

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

precisam de “tratamento”. “Isto equivale a colocar, em última instância, a culpa do fracasso na


criança, na sua doença, nos seus distúrbios de aprendizagem, suas dislexias, e a isentar dessa culpa,
de maneira geral, a escola e a estrutura social, política e econômica de que faz parte” (COSTA
1987, p. 155). A crença na incompetência das pessoas pobres é generalizada em nossa sociedade,
afirma também Patto, em 1990.

Ao desviar a responsabilidade para clínicas e profissionais especializados, e hoje para


fundações e grupos que produzem materiais apostilados e outros, esvazia-se a função do professor
em trabalhar politicamente o fracasso escolar. Essas instituições desapropriam o saber do professor,
desfiliam o professor de sua profissão,por se considerar que tanto o “tratamento clínico” quanto os
materiais apostilados funcionam como reeducação pedagógica.

Os processos e métodos de ensino da leitura e da escrita se constituem, portanto, no contexto


de embates de ideias de várias esferas sociais e políticas, e não de modo neutro e técnico, como
muitas vezes se faz supor. O analfabetismo em nosso país ainda em nossos dias se mostra de modo
vigoroso, o absoluto e o funcional. E o que diz Paulo Freire?
Para a concepção crítica, o analfabetismo nem é uma “chaga”, nem uma “erva
daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma enfermidade, mas uma das expressões
concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema estritamente linguístico
nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas político, como a alfabetização
por meio da qual se pretende superá-lo. Proclamar a sua neutralidade, ingênua ou
astutamente, não afeta em nada a sua politicidade intrínseca (FREIRE, 2001).

Historicamente as unidades mínimas da língua vêm orientando a organização dos métodos


de ensinar a leitura e a escrita, juntamente com concepções de sujeito, de linguagem e de ensino-
aprendizagem behavioristas. Tem sido difícil ultrapassar estas matrizes para concebermos práticas
pedagógicas de alfabetização que reflitam a sociedade que queremos ser (lembrando o saudoso
Marcelo Yuka). E isso não quer dizer, em hipótese alguma, abandonar as unidades mínimas da
língua – elas são incontestáveis. A questão é o lugar que damos a elas.

A disputa por concepções de alfabetização se dá pari passu com disputas políticas de visões
de sociedade e de escola. Paramos pouco ao longo de décadas para questionar as formas e
conteúdos trabalhados, negando que novas realidades demandem novos caminhos. A objetividade e
a clareza dos métodos e caminhos consolidados na prática histórica do ensino da leitura e da escrita
sempre obscureceram a diversidade cultural e a diferença que enriquecem os grupos. A vida
cotidiana, sua organização, saberes e valores, tem pouca repercussão nos processos de ensino-

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

aprendizagem, fazendo crer que a realidade seja homogênea. Ou pior: que uma hierarquização entre
os que merecem ocupar uma posição social de destaque, porque possuidores de bens rentáveis, e
aqueles que pouco ou nada têm, seja natural. Num mundo desse jeito pensado, não há singularidade.

Tradicionalmente, olhares oblíquos para novos caminhos que no fundo representavam e


representam novas formas de entender a realidade, alcançadas por meio de estudos, da atividade
científica para avançar na compreensão de quem somos nós, o que fazemos e o que podemos. No
caso da alfabetização, a disputa entre métodos sintéticos e analíticos, os questionamentos sobre as
propostas da Escola Nova e dos Centros Integrados de Educação Pública – os CIEPs –, que têm
como carros-chefe a alfabetização, a linguagem e a cultura; a metodologia Freinet e a influência dos
estudos de Piaget e Emilia Ferreiro; e, mais recentemente, as possibilidades abertas com estudos
culturais e estudos sobre o discurso, estudos que trazem para o centro da cena escolar os sujeitos e
suas ações e interações sociais, professores e alunos.

Temos assumido o leme dos barcos para singrar mares muitas vezes pouco navegados,
orientadas pela concepção dos processos de escolarização como processos de formação humana,
como nos indica Saviani (2003). Concebê-los desse modo envolve pensar em razão, afinal somos
animais racionais, e também em sensibilidade, essa forma de razão que nos marca pela
possibilidade de criação da/na vida. Não me refiro à criação artística, embora ela faça parte dessa
possibilidade. Refiro-me aos seres humanos como seres criadores, aos modos como criamos as
nossas próprias vidas, o que fazemos com ela, que soluções damos aos impasses, dificuldades, que
dificilmente podemos antecipar. Todas essas direções apontam a questão do método, que sempre foi
o centro da atenção dos estudos, das discussões. E continua a ser. E como temos lidado com a
questão do método?

Ginzburg tem sido uma fonte importante de orientação metodológica, tanto do ponto de
vista da pesquisa quanto da prática. No artigo Sinais: raízes de um paradigma indiciário, nossa
referência desde a década de 1990, apresenta o modo com realiza suas pesquisas, deixando claro
que não há propriamente uma metodologia, do jeito convencional (GINZBURG, 1989, p. 143-179).
A metodologia, nesta visão, seria um planejamento prévio indicando uma sequência de ações a
serem realizadas para estruturar uma pesquisa. O autor afirma que seu trabalho não é conduzido
dessa maneira – “suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas”, porque nesse tipo de
conhecimento, o indiciário, há elementos imponderáveis (intuição, entre outros). Na obra O fio e os
rastros, Ginzburg deixa clara a ideia de que a metodologia de um trabalho investigativo se torna
visível ao final. Cito um trecho do estudo, apesar de extenso.

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

O grande sinólogo francês Marcel Granet disse certa que vez o método é o caminho
depois que o percorremos. A palavra método deriva efetivamente do grego, mas a
etimologia proposta por Granet – meta-hodos, depois do caminho – talvez seja
imaginária. Em todo caso, a tirada brincalhona de Granet tinha um conteúdo sério, ou
melhor, polêmico: em qualquer âmbito científico, o discurso sobre o método só tem
valor quando é a reflexão a posteriori sobre uma pesquisa concreta, e não quando se
apresenta (o que é, de longe, o caso mais frequente) como uma série de prescrições a
priori. [...]

Contar o itinerário de uma pesquisa quando ela já chegou a uma conclusão (ainda que
se trate, por definição, de uma conclusão provisória) sempre comporta, é óbvio, um
risco: o da teleologia. Retrospectivamente, as incertezas e os erros desaparecem, ou se
transformam em degraus de uma escada que leva direto à meta: o historiador sabe
desde o início o que quer, procura, por fim encontra. Mas na pesquisa real as coisas
não são assim. A vida de um laboratório, descrita por um historiador com formação
antropológica, como Bruno Latour, é muito mais confusa e desordenada
(GINZBURG, 2007, p. 294-295).

Não somos historiadoras, mas aprendemos com Ginzburg (1989) que o conhecimento
indiciário tem raízes desde que o homem se tornou caçador quando, para garantir a sobrevivência,
se baseava em vestígios, sintomas, pistas, ou seja, na relevância dos pequenos detalhes. Um estudo
que somente considere algo que se repete pode esconder aspectos da realidade, escreve o autor.

Aqui destacamos de forma sucinta as principais características do paradigma indiciário, no


sentido da relação razão e sensibilidade, em contraposição ao paradigma positivista (oposição
racionalismo versus irracionalismo). O tema central da discussão está nos critérios de cientificidade
das ciências humanas, fora do âmbito da herança positivista e as contribuições do paradigma
indiciário. O núcleo deste paradigma está alicerçado no princípio de que a realidade não é
transparente, mas opaca, e existem certos pontos privilegiados – os indícios – que tornam possível
compreendê-la. A principal questão metodológica apontada é a possibilidade de caminhos abertos
pelo estudo de indícios para a pesquisa em que a cognição se faz como criação para chegar a
explicações, a conhecimentos.

Essa base teórica é entrelaçada por nós na perspectiva da teoria da enunciação de Bakhtin
(BAKHTIN, 1988; 1992). Desse modo, a lógica de investigação se torna dialógica. Um indício
precisa ser entendido no contexto da situação discursiva em que é produzido; por princípio, ele
pode ser explicado de muitos modos. Ao lermos, ao escrevermos, mobilizamos nosso universo de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

conhecimentos que é organizado ao longo de toda a vida. Quando analisamos o texto de uma
criança, por exemplo, sabemos que ele se faz marcado por saberes de muitas origens – casa, escola,
rua, igreja, tablet, etc. –, na dimensão global das formas composicionais e dos gêneros que o
estruturam até a dimensão da relação entre sons e letras, espaçamentos entre palavras etc. Aprender
a escrever envolve muitos fatores, linguísticos, técnicos (específicos à organização espacial do texto
no papel, por exemplo), motores e simbólicos.

“Eu tenho mesmo direito a aprender o que ensinam na escola?” – alguma criança pode se
perguntar, quando sente que a ele são negados tantos outros direitos. As crianças que estão nas ruas
da cidade e veem passar nas calçadas outras crianças de mãos dadas com responsáveis, marcadas
pela escola de muitas maneiras: uniforme, mochila, a lancheira: “Por que eu não sou assim?” A
escola precisa trabalhar no sentido de responder a perguntas como essa também.

Além dos raciocínios indutivo e dedutivo, a lógica dialógica tem como eixo o raciocínio
abdutivo. No inventário da riqueza de conhecimentos constituídos historicamente, propor atividades
que façam as crianças pensarem, adivinharem, criarem inventarem, priorizadas porque se
comprometem com o caráter criador dos seres humanos. No contexto dos discursos que organizam
as aulas – vivos, pulsantes, isso acontece. Para criar é preciso espaço – espaço físico, emocional,
cognitivo, afetivo, etc. A abertura para os possíveis erros que advirão desses espaços é fundamental,
lembrando como escreveram Abaurre et al. (1986): ninguém pode errar o que não sabe. E a
alfabetização assim se faz com as palavras de todos no processo de descobrir novas formas de ler o
mundo. A realidade de vida de cada criança e de todas é o ponto de partida para aprender a escrita
como nova forma de linguagem, a escrita abraçada com a cultura escrita, de dentro da cultura
escrita.

É muito simplista dizer que os estudos construtivistas, ou pior, “o método construtivista”, e


outras metodologias provocaram uma legião de analfabetos. Temos uma legião de analfabetos ao
longo do século XX e continuamos a tê-los no século XXI. A alfabetização também está ligada a ter
o que comer, a ter centros de saúde, a ter onde morar, a ter saneamento básico, os direitos mais
básicos ligados à vida. A alfabetização está ligada ao respeito a cada criança. A alfabetização está
ligada ao reconhecimento à profissão do professor e da professora e ao respeito por essa profissão.

Hoje, temos a Política Nacional de Alfabetização (PNA), documento do MEC de 2019


(BRASIL, 2019), organizada acientificamente. Por que omitir conhecimentos, sonegar informações
importantes sobre o avanço de conhecimentos em áreas que têm contribuições importantes para a
área de Educação e de Alfabetização? A concepção de escrita que se esboça no documento é

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POR UMA SOCIEDADE DEMOCRÁTICA: O PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO

estreita. As crianças são capazes de aprender conhecimentos complexos, desde que façam sentido
para elas, que mostrem sintonia com suas vidas, respondam a curiosidades e/ou despertem interesse
e novas perguntas. É inconcebível continuar a pensar que “a professora ensina e os alunos
aprendem”, como se o movimento de conhecer fosse automático e progressivo. Qualquer criança
aprende, salvo situações extremas de comprometimento cognitivo, respeitadas suas necessidades de
tempo e espaço, que não são somente físicas, mas condicionadas por sensações, emoções e
conhecimentos prévios. As crianças são sujeitos dos processos de ensino-aprendizagem,
impregnando-os de suas histórias, valores, conhecimentos e sentimentos, o que torna os processos
pouco predizíveis.

Os processos de ensino-aprendizagem são vividos em meio à heterogeneidade pessoas, das


culturas, dos sentidos, como nos aponta Bakhtin. Tal perspectiva se opõe a propostas de alfabetismo
pragmático, conforme denominou Britto (2008, p. 55), um tipo de alfabetização “que permite à
pessoa ler e escrever umas tantas coisas e operar com números, de modo a agir apropriadamente em
função dos protocolos e procedimentos de produção e consumo”. A ideia de que materiais iguais
para todos vão produzir resultados iguais, aprendizagens iguais revela um grande desconhecimento
de teorias do conhecimento.

Hoje, práticas elitistas, discriminatórias e autoritárias continuam na paisagem, visando à


perpetuação de direitos e privilégios das classes dominantes e repercutem nos resultados de testes e
provas que, atendendo a determinados fins, revelam sempre a realidade de exclusão da grande
maioria da sociedade brasileira.

Conforme matéria publicada no jornal o Estadão, em 20 de janeiro de 2020, dentre os quase


4 milhões de candidatos que fizeram o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2019, apenas
53 tiraram nota máxima na redação. Um em cada quatro alunos de classe média se sai bem nas
provas, enquanto entre os pobres a proporção é de um a cada 600.

Números que gritam, pedem intervenções, ações, reações. Concluímos, com Saviani (2003),
quando afirma que a orientação de práticas escolares se faz com base em valores humanos, sociais,
políticos. A tensão entre o processo e a prática político-social que leva à prática educativa se
relaciona à concepção de sujeito, a teorias de conhecimento e a projetos de sociedade. Aí deve se
mover a reflexão sobre os processos de alfabetização; aí se definem princípios de trabalho para o
ensino da leitura e da escrita, linguísticos, inclusive.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

É preciso dignidade para ensinar e aprender. A cidadania de cada brasileiro se afirma no


processo social democrático de legitimação da importância que cada um tem para a construção do
Brasil.

REFERÊNCIAS

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BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V. N. Marxismo e Filosofia da Linguagem. Tradução: Michel Lahud e Yara
Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1988.

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Tradução: Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.

BRASIL. Documento Política Nacional de Alfabetização. Brasília: MEC; SEALF, 2019.

BRITTO, L. P. L. Educação de adultos: formação x pragmatismo. REVEJ@ – Revista de Educação de Jovens


Adultos, [s.l.], v. 2, n. 2, p. 53-60, 2008.

CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e ortografia. Educar, Curitiba: Editora UFPR, n. 20, p. 43-58, 2002.

COSTA, D. A. F. C. Diferença não é deficiência: em questão a patologização do fracasso escolar. Dissertação


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DIETZSCH, Mary J. Cartilhas: a negação do leitor. In: MARTINS, M. H. (org.). Questões de linguagem. São Paulo:
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FREIRE, Ana Maria Araújo. Analfabetismo no Brasil: a ideologia da interdição do corpo à ideologia nacionalista, ou
de como deixar sem ler e escrever desde as Catarinas (Paraguaçu), Filipas, Madalenas, Anas, Genebras, Apolônias e
Grácias até os Severinos – 1534-1930. São Paulo: Cortez, 1989.

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GOULART, Cecilia M. A. et al. O ensino inicial da leitura e da escrita na rede escolar municipal de Niterói-RJ
(1959-2000). Uma visão histórica no contexto da educação fluminense e da cidade de Niterói no século XX. Relatório
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HALL, R. A. Jr. New ways to learn a foreign language. New York: Bantam, 1966.

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256p. Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2019-09/analfabetismo-resiste-no-brasil-e-no-
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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 589


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SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados,
2003.

Notas de fim

i
O trabalho de Ana Maria Freire e o estudo sobre aspectos da educação no Estado do Rio de Janeiro e, mais
especificamente, em Niterói, foram desenvolvidos na pesquisa realizada no período de 2004-2007, com o apoio da
Faperj (GOULART et al., 2007).
ii
Leitura e linguagem no curso primário. Publicação n. 42 do Inep/Ministério da Educação e Saúde, 1951. 77p.
SOARES, Magda. Que professores de português queremos formar? Revista MOVIMENTO – Revista da
iii

Faculdade de Educação da UFF, Rio de Janeiro: UFF; DP&A, n. 3, maio de 2001.

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XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA
SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E
RESISTÊNCIA NA CLASSE DE ALFABETIZAÇÃO DO
CIEP GREGÓRIO BEZERRA

Cyntia Kelly Menezes da Silva Burguinhão


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

A alfabetização de Jovens e Adultos é um ato que se insurge no universo do político e do


conhecimentoi. Esse processo de construção do conhecimento é um ato de criação, cujos valores
fundamentais promoverão aos discentes ferramentas para a luta por sua cidadania substantivaii.
As democracias hodiernamente, especialmente as do Hemisfério Sul, não conseguem
assegurar às massas populacionais em seus territórios acesso aos direitos ou à riqueza social
produzida. O processo de industrialização do pós-guerra e a crise do capital nos países centrais, que
transferiu parte de seu parque industrial para regiões periféricas do globo, promoveram certo
desenvolvimento econômico para essas áreas. No entanto, tais processos de produção de bens
capitais não promoveram a ampliação e a repartição de desenvolvimentos e direitos sociais
compatíveis. Há produção de riquezas, até geração de um capital simbólico de forma inequívoca,
mas não se consegue distribuir de forma equânime tais conquistas, para a maior parcela
populacional dessas áreas periféricas, pois o fundamento dessa transferência da produção e
consequentemente do acúmulo de riquezas, foi justamente a exploração de mão de obra barata e
sem qualificação (SILVA, 2017).

Na teoria da cidadania insurgente, James Holston aponta que os processos de globalização e


urbanização ganharam âmbito mundial, principalmente a partir dos anos de 1970. Esses processos
levaram a cabo efeitos de marginalidade das economias periféricas, sucateamento e esgarçamento
sociais nas mais diferentes partes do mundo. Agregados às particularidades locais, geraram
condições semelhantes em toda sociedade mundial. O resultado são periferias urbanas com uma
população pobre, explorada em condições de irregularidades de toda a ordem. Nesses espaços
surgem o que o autor denomina de cidadania insurgente, que implica em movimentos de
contraposição e resistência às desigualdades onde estão inseridos (HOLSTON, s/d). Ou seja, na
perspectiva de Freire, são cidadãos que passam a escavar seus próprios conhecimentos, do contexto
em que vivem, da realidade que os cerca e se apropriando de tais perspectivas, assumiram papel
social de defesa e luta por direitos à vida e à cidadania.

Os resultados desses processos de globalização e urbanização apresentam-se contraditórios.


Eles apontam para uma promessa especial para uma cidadania mais igualitária, de maior justiça
cidadã e dignidade, mas na prática, o que se efetiva na maioria das sociedades ditas democráticas,
são profundos confrontos entre os cidadãos, que em grande parte se veem excluídos e
marginalizados, legados às desigualdades advindas de tais processos e promessas. Essa tomada de
consciência gera resistência aos privilégios e assume formas alternativas de cidadania para além do
que está posto pela cidadania formal (HOLSTON, s/d).

592
XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas
A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...

A ideia de uma cidadania insurgente produz novos cidadãos e cidadania ativos que
contrastam com os prognósticos sociais de que estariam fadados à degradação humana, urbana e
ambiental. Essas concepções que ganharam formulação no século XIX, que constituiu importante
instrumental para o desenvolvimento da eugenia, forneceu aos reformadores urbanistas do
oitocentos a justificativa de um processo de haussmanização das cidades da Europa e das Américas.
Essas proposições transformaram as populações urbanas em classes perigosas e direcionou os
estudos da urbanização para a ciência psiquiátrica e para policiamento. Na atualidade, os
profissionais das ciências têm-se debruçado sobre favelas das cidades e seus milhares, milhões de
habitantes, num esforço de salientar a diferença e descaracterizar suas potencialidades. É inegável
que muitas pessoas vivem e trabalham em condições de extrema precariedade urbanas, sofrendo
brutalmente com segregação e poluição. Contudo, quer se chamar atenção que o gênero de
catástrofe homogeiniza e estigmatiza uma população urbana periférica. Investindo nessa perspectiva
de análise, sobra pouco espaço para a dignidade e vitalidade desses espaços. Esmagam-se pessoas
para totalizar caracterizações e, nesse sentido, redutivo, se produz um discurso e uma ênfase na
superdimensão da pobreza urbana, negando-lhe e não lhe reconhecendo seus espaços emergentes,
de invenção e agência (HOLSTON, s/d).

A maior força e originalidade desses processos encontram-se articulados na luta pela vida
doméstica e o cotidiano em torno dos direitos básicos de sobrevivência. Os líderes e soldados
desses movimentos são pessoas comuns que vivem uma vida precária e lutam por seus espaços
sociais e por outra forma de cidadania que não a oficial/formal. Essa outra cidadania tem relação
com os pobres do Hemisfério Sul e visa muito mais à resistência e aos recursos básicos cotidianos
do que às reivindicações da classe trabalhadora clássica. Ou seja, a luta se transfere do controle dos
meios de produção para a qualidade de vida (SILVA, 2017).

É nesse contexto de discussões acerca da cidadania substantiva que a educação pública


ganha ressignificação, se apropria da tarefa de transformação e promoção social, sendo uma das
principais ferramentas dos grupos que estão inseridos no processo de formação humana. Para tanto,
é preciso esclarecer que a proposta que se insere nessa discussão é justamente contrária à lógica de
uma educação pública voltada apenas para a certificação e para a suplementação do mercado de
trabalho.

Moacyr Gadotti, em “Educação Popular e Educação ao Longo da Vida”, problematiza o


rumo das questões envolvendo a Educação de Jovens e Adultos nos últimos anos da primeira
década do século XXI. Para o autor, nos anos de 2010, o Brasil adotou o processo educacional que

XX ENDIPE / Rio 2020 - FAZERES-SABERES PEDAGÓGICOS: Diálogos, insurgências e políticas 593


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

já estava bem consolidado nos países europeus, entendido como Educação Permanente ou Ao
Longo da Vida, cujas características versava numa educação continuada, progressiva, para todas as
idades, se transformando em fator integrador de todas as políticas educativas, que deviam assegurar
a sustentabilidade do mercado (GADOTTI, 2016).

Essa proposta de educação foi apropriada pelo Ministério da Educação no Brasil, em 2010,
desenvolvendo quatro pilares fundamentais: aprender a aprender, aprender a conviver, aprender a
fazer e aprender a ser. Diferentemente do que atestava o relatório original de Edgar Faure de 1976,
o relatório aprovado no Brasil deixava de levar em consideração que a Educação ao longo da vida
devia estar voltada para a participação e para a cidadania, como estava inserido no relatório de
1976. Aos poucos a referência deixou de ser a cidadania e passou a focar nas exigências do
mercado de trabalho. Nas teorias do capital humano, a educação perde a concepção de direito e se
torna um serviço, enquanto a aprendizagem passa pela responsabilidade de cada indivíduo. A visão
humanista foi substituída, nas políticas sociais e educativas, por uma visão instrumental,
mercantilista, apesar das afirmações em contrário (GADOTTI , 2016).

Quer-se nessas linhas reafirmar a vinculação com a proposição de uma educação


transformadora da vida social, cotidiana e coletiva, com o princípio formador da vida, entendendo
que a educação é um processo que ocorre ao longo de toda a vida, como a aprendizagem, e não é
um processo que se reduza apenas ao público jovem e adulto. O que é novo nessa perspectiva de
Educação ao Longo da Vida, segundo o autor, é que esse processo tem adquirido uma “ideia-força
em torno do qual se estruturam as políticas públicas de educação, condicionando currículos, a
avaliação e o próprio sentido de educação, reduzindo-a a este princípio estruturante” (GADOTTI ,
2016).

Compreende-se nesse sentido, que a educação e a aprendizagem ao longo de toda a vida


ocorrem em espaços formais e não formais, não podendo ser controlados pelos sistemas de ensino
formais. Dessa forma, não se pode compreender que a Educação ao longo de toda a vida seja
entendida como Educação Formal. Rosanna Barros em Da Educação Permanente à Aprendizagem
ao longo da vida salienta uma mudança de paradigma na proposição defendida pela Unesco e pelo
Banco Mundial, no que tange a educação em termos mundiais (BARROS, 2011). A proposta
assentada na Educação Permanente, que ainda valorizava uma ação na e para a cidadania, tem sido
esvaziada de forma contundente e constante, em prol da progressiva valorização de uma
Aprendizagem ao Longo da vida, em detrimento de uma Educação de Adultos. É expressiva a
referência ao mercado de trabalho em detrimento das práxis sociais e humanas:

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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...

Deixa-se de se pensar em uma sociedade democrática, voltada para a justiça social,


para uma cidadania substantiva, o agenciamento individual e coletivo, para pensar
numa sociedade do conhecimento, voltada para os interesses privados e para a
competitividade do mercado (GADOTTI, 2016).

O Estado neoliberal imprimiu um ethos mercantilista ao conceito de Educação ao Longo da


Vida, reconceituando a Educação Permanente e a Unesco não se posicionou em propor, salientar ou
valorizar outras formas de concepção para a Educação/Aprendizagem ao Longo da Vidaiii.

Diametralmente na contracorrente dessa proposição, quer-se aqui afirmar uma perspectiva


de Educação de Jovens e Adultos que leva em consideração a ação educativa como emancipatória,
humanista-crítica, com viés transformador da educação popular. Trata-se de garantir uma educação
de qualidade social a todos os cidadãos e cidadãs, perfazendo uma aprendizagem sociocultural e
socioambiental. Uma educação que alicerce o direito de se aprender de forma transformadora no
conteúdo e na forma. Para tanto, é de fundamental importância que a formação docente esteja
voltada para a desconstrução de uma prática tradicional, de valorização do paradigma eurocêntrico,
em detrimento de uma pedagogia colonialista.
É a insurgência que proporcionará a decolonização de si. A insurgência e resistência
no pensamento freiriano compõem propostas para uma pedagogia decolonial e uma
educação emancipatória uma vez que o despontar do pensamento dos colonizados, que
havia sido suprimido sob o julgo do eurocentrismo, se constitui como uma nova
categoria epistemológica e capaz de proporcionar a reescrita da diegese educacional
enquanto projeto político que almeja a ruptura com as muitas maneiras de opressão e
dominação das várias nuances do colonialismo, amplificando o debate em torno das
convicções e práticas educacionais que beneficiem a autonomia, a dignidade ea
liberdade. O menosprezo pelos saberes que, historicamente, foram subalternizados,
não significa, apenas, uma subalternização epistemológica, mas uma diminuição ou
aniquilamento ontológicodos seres humanos portadores desses saberes. Essa
subalternização, silenciamento e, em muitoscasos, destruição foi a primeira estratégia
colonial para imposição da cultura europeia-ocidental, dos seus valores, da sua
religião, do seu paradigma epistemológico (LEGRAMANDI; GOMES, 2019, p. 29-
30).

Acredita-se numa formação docente pautada na prática dialógica que instrumentaliza o


professor, em sala de aula, a desvendar a realidade tangível, buscando a suplantação ininterrupta da
sua alienação e a alienação de seus educandos, com trabalhos orientados e fundamentados em ser
dialógico e reflexivo, ser ativo e democrático, participativo e mobilizador, criativo e que

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

proporcione a transformação dos atores envolvidos. Mesmo que seja lenta a apropriação da nova
práxis, os sujeitos dessas ações-reflexões, professores e alunos, terão a oportunidade de
desconstruírem os dogmas coloniais para modificar sua realidade e subjetividade visando sua
humanização e emancipação, pressupostos incontornáveis da transformação social
(LEGRAMANDI; GOMES, 2019, p. 31).

O trabalho desempenhado na Educação de Jovens e Adultos da Rede Municipal de


Educação do Município do Rio de Janeiro, no Ciep Gregório Bezerra, localizado no bairro da
Penha, com classes de alfabetização, tem como princípio o estabelecimento da autoria e do
protagonismo do alfabetizando. Esse respeito ao educando revela que a proposta edificada pela
Equipe Pedagógica e pelo docente responsável pela classe, evidencia e enfatiza a criatividade e a
responsabilidade do aluno na construção de sua linguagem escrita e na leitura desta linguagem.
Busca-se mediar o conhecimento e fornecer-lhes ferramentas e instrumentais que os levem a ler e a
perceber o mundo, antes mesmo da leitura da palavra. A apropriação da leitura da palavra permite a
continuidade e a profundidade da leitura do mundo:
[...] este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente.
Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele
fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da
palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de
“escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa
prática consciente (FREIRE, 1989, p. 13).

O trabalho desenvolvido nessa unidade escolar preza, especialmente, por inserir os


educandos no processo da cidadania substantiva urbana, dar-lhes condições de lutar pela
qualificação de suas vidas e de sua existência. Valorizar suas vozes e seus projetos comunitários e a
partir deles, levá-los a se apropriarem do mundo letrado.

Como acima salientado, o Ciep Gregório Bezerra conta com o Programa de Educação de
Jovens e Adultos (Peja) oferecendo o Ensino Fundamental completo à comunidade. Essa
modalidade se divide em Peja I, que são dois blocos que se dedica ao processo de alfabetização e
letramento, correspondendo aos anos iniciais do Fundamental. No primeiro bloco é ofertado à
comunidade discente o processo de aquisição da leitura e da escrita da realidade do educando
(Cidadania) e do mundo letrado, incluindo conteúdos de vida, de linguagens, das ciências, de
tempo/espaço, das artes, das relações étnico-raciais, atividades corporais, que fundamentam a
prática do processo do primeiro letramento Peja. No segundo bloco, se desenvolve a consolidação
desse processo, ampliando conceitos que darão suporte para os próximos anos do Ensino
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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...

Fundamental. O Peja II é composto pelos anos finais do Ensino Fundamental, que também se
encontram organizados em dois blocos.

A atuação aqui abordada se refere ao primeiro bloco do Peja I, turma 172, composta por 26
alunos, dos quais três são incluídos, compreendendo a maioria de idosos e adultos que ajudam,
orientam e aprendem com o frescor de alguns adolescentes e jovens. A maioria desses alunos não
tiveram condições de estarem em sala de aula no período regular de educação, por diversas
motivações e, agora, retornam ao universo escolar. Por meio do desejo de participarem do mundo
letrado, da aquisição da leitura e da escrita, alcançam o reconhecimento e valorização de sua
história e trajetória de vidas e a luta pela cidadania e inserção social.

O desafio de assumir um grupo de Peja é enorme, pois se trata de um grupo heterogêneo, de


múltiplas experiências, vivências e leituras de mundo complexas, que não podem ser ignoradas.
Dessa forma, procurou-se construir um currículo que levasse em consideração as inegáveis
experiências dos educandos, articulando com os projetos e diretrizes indicativas da SME/RJ. A
partir de 2017 empreenderam-se as primeiras iniciativas de compor um método de trabalho, junto
aos educandos do Ciep, oriundos em grande parte do Complexo da Penha (Vila Cruzeiro), de
origens do norte e nordeste brasileiro, cuja trajetória de vida assinalava anos de dedicação ao
trabalho e sem nenhuma possibilidade de investir em educação formal.

Organizou-se em 2018 o projeto História de Vida: Resgate da Cidadania o qual propunha o


trabalho de alfabetização e letramento por meio da trajetória de vida dos educandos, realçando sua
atuação na sociedade e sua luta por dignidade e cidadania. Os primeiros envolvimentos com o
letramento veio do trabalho com o documento de identidade (RG), num processo de valorização de
seu próprio nome. Muitos alunos apresentavam certo desconforto com seus nomes, não sabiam
quem os tinha escolhido e nem o porquê. Um trabalho articulado com a Sala de Informática
permitiu que muitos deles se apropriassem do significado de seus nomes e valorizassem sua origem.
Muitos se sentiram tentados em escrever tal significado, para compartilhar com seus familiares,
revelando a ressignificação e a valorização que passaram a atribuir a si próprios.

A partir desta primeira iniciativa, procurou-se trabalhar a linguagem matemática, ressaltando


a sua importância no cotidiano, intensificando o conhecimento da aritmética, do raciocínio lógico,
da noção de ordem, das apropriações do sistema de numeração, do sistema monetário, da função
social do número. A data de nascimento permitiu, de igual forma, ampliar as noções matemáticas,
orientando-os na compreensão sobre as medidas de tempo, através do calendário. A noção dos dias
da semana, os meses e ano civil. Experimentaram a manipulação de textos instrucionais por meio da

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

culinária nordestina e as diversas adaptações feitas pelos descendentes no Rio de Janeiro. Dessa
produção, se investiu na noção de medidas de massa e no incentivo ao empreendedorismo de muitas
mulheres e jovens no Complexo.

A História de vida: Resgate da Cidadania ainda permitiu a abordagem do tempo e do


espaço, discutindo noções de pertencimento e de escala. Da proposta da construção do trajeto e do
mapeamento da localidade (Vila Cruzeiro) e o da cidade do Rio de Janeiro, estimulou-se a
valorização das trajetórias de vida, especialmente, por ser a maioria oriunda do norte/nordeste.
Estudou-se os retirantes, os estados do Brasil e sua história e cultura. Organizaram-se diversos
debates e problematizações em relação aos problemas das áreas norte/nordeste do Brasil, que muito
se assemelhavam aos problemas vividos na periferia das áreas urbanas do Rio de Janeiro e o quão
eles se irmanaram ao descobrir colegas que também traziam na alma a marca indelével do êxodo
para as áreas centrais. A partir da história viva de cada um dos alunos e dos professores, elaborou-se
um memorial da história da área.

A partir dessa partilha de histórias, culturas, dificuldades, potencialidades desenvolveu-se o


trabalho com sentimentos e valores, estimulando as relações interpessoais, por meio da filosofia do
profeta Gentileza, que iluminam as colunas do viaduto do Gasômetro no Centro da cidade do Rio de
Janeiro. Esse trabalho de envolvimento e de persuasão trouxe acolhimento para os que chegavam no
meio do ano e conforto para os que se deslocavam para o segundo bloco.

Desse processo realizaram-se textos coletivos, aos quais todos participaram na composição.
Por meio desse resgate de vida, de valorização e reconhecimento de sua história e cultura, de suas
ideias e concepções de pertencimento e cidadania, o processo de letramento foi desenvolvido e
muitos deles apreenderam o mundo das palavras por meio da realidade que lhes perpassava.

Ao final dessa primeira fase do Peja I apresentou-se, na Feira Cultural da unidade escolar, o
trabalho acerca da identidade, realizado ao longo de toda a problematização e estudo intensivo, na
forma de um autorretrato. As expressões pessoais, étnicas e raciais foram ali representadas, com
valorização e fundamentadas por meio das discussões empreendidas ao longo do primeiro bloco.

Em 2019, os desafios aumentaram quando da inserção do projeto da unidade escolar,


baseado na inserção do corpo discente no mundo virtual, com ênfase nas ações midiáticas.
Experimentar esse projeto junto a um grupo de alfabetização, em que as resistências em torno do
conhecimento do mundo das palavras já eram imensas, tratar de fontes midiáticas seria ainda mais
desafiador. No entanto, o grupo inteirou-se do mundo virtual, de forma que eles próprios criaram
um grupo num aplicativo para que pudessem se comunicar, ajudando uns aos outros. O auxílio do
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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...

docente foi no sentido de estimular o uso da escrita, em detrimento do uso frequente do áudio, sem
usar o aplicativo como sinal de correção. Esse desejo partiu de uma das alunas, a senhora
Lucerlenes, que após as intervenções feitas na turma, por meio de um alfabetário com os símbolos
midiáticos e de internet, o contato com as redes sociais, por meio das aulas de informática, comprou
um smartphone e solicitou, em sala, que se criasse um grupo num determinado aplicativo. A
senhora Maria Lúcia, que encara um problema de baixa visão, solicitou a permissão do grupo para
que inserir o contato de sua filha, já que ela própria não tinha. A partir da integração, a senhora
Maria passou a se comunicar com bastante frequência com todos do grupo. O aluno Filipe lembrou
da música Jenifer, de Gabriel Diniz, salientando que na música havia um aplicativo de
relacionamentos que também deveria ser explorada naquela vivência do mundo midiático virtual.
Muitos deles identificaram que estar fora desse mundo virtual é estar desligado da realidade atual,
pois o mundo todo se comunica, se dinamiza, se globaliza, se desenvolve contando com essa
linguagem. Portanto, eles mesmos deveriam acioná-la para que também pudessem dominar tal
tecnologia e investir em educação e cidadania.

Por meio da História de Vida: Resgate da Cidadania foi possível investir na construção do
conhecimento. Por meio de conceitos e concepções, muitas vezes ressignificadas pela atuação dos
educandos, através de suas vivências, foi possível dar sentido ao mundo letrado, seus usos e funções
sociais. Promover a ampliação da voz desses cidadãos em busca de sua afirmação social, em defesa
de seus direitos, tendo como efeito de realidade o domínio do mundo das palavras, os capacita a
insurgências substantivas na luta por cidadania e educação.

CONCLUSÕES FINAIS

O trabalho com os grupos de alfabetização e letramento, do primeiro bloco do Peja I do Ciep


Gregório Bezerra proporciona ao alfabetizando agenciamento de sua própria história,
compreendendo-se como sujeito histórico e condutor de seu próprio conhecimento. O processo de
aquisição de leitura e escrita se insere não na lógica e dimensão do professor, mas, e especialmente,
em temas significativos da vida dos alfabetizandos. Assim como salienta Freire em A importância
do ato de ler, se antes alfabetizar estava embebida da autoridade e sapiência do professor, centrada
na compreensão mágica da palavra, palavra dada pelo educador aos analfabetos; se os textos
escolhidos para o processo de ensino aprendizagem escondem a realidade e alienam o sujeito,
agora, ao contrário, o ato de alfabetizar e promover educação aos jovens e adultos é um ato de

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

conhecimento, um ato criador, é um ato político que se revela no esforço de ler o mundo e a palavra
(FREIRE, 1989, p. 19).

Nesse espaço escolar, procura-se evitar a propagação de uma educação apenas que
reproduza uma ideologia dominante. Pratica-se uma educação cujas brechas abrem espaço para a
atuação libertadora de homens e mulheres que participam eficazmente da construção de seu
conhecimento e adquirem vez e voz na sociedade em que vivem, experimentando insurgências
substantivas, quando se trata de cidadania.

Atenta-se, portanto, para importante percepção de que como educador se reconhece nos
outros o direito de professar sua palavra. Reconhece-se assim o direito deles de falar e de serem
ouvidos. Escutá-los com a convicção de que se cumpre um dever e não com a malícia de quem lhe
presta um favor. O processo de alfabetizar jovens e adultos é falar com eles, sem fazer com que sua
palavra, sua trajetória de vida, seu conhecimento os impeça de tomar a palavra e apresentá-la de
acordo com sua trajetória de vida e leitura de mundo.

Procurou-se, dessa forma, enfatizar a importância da atuação deles na condução da


construção do conhecimento. Procurou-se não reforçar o estereótipo de analfabetos incapazes de
lutarem pelos seus direitos, e que necessitavam de libertação, que viria de cima para baixo, de fora
para dentro. Ao contrário desse reforço de estruturas autoritárias, aos alfabetizandos foram
oportunizados instrumentos e ferramentas que lhes deram suporte para sua atuação autônoma,
democrática, libertadora e singular.

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A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E CIDADANIA SUBSTANTIVA: IDENTIDADE, PERTENCIMENTO E RESISTÊNCIA...

REFERÊNCIAS

BARROS, Rosanna. Da Educação Permanente à Aprendizagem ao longo da vida. Genealogia dos dois conceitos em
Educação de Adultos: um estudo sobre os fundamentos políticos-pedagógicos da prática educacional. Lisboa: Chiado
Editora, 2011.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam. São Paulo: Autores Associados;
Cortez, 1989. Disponível em: https://educacaointegral.org.br/wp-content/uploads/2014/10/importancia_ato_ler.pdf.
Acesso em: 20 jan. 2020.

GADOTTI, Moacir. Educação Popular e Educação ao Longo da Vida. [S.l.: s.n.], 2016. Disponível em:
http://almanaquefme.org/?p=4706. Acesso em: 20 jan. 2020. p. 1-10.

HOLSTON, James. Insurgent citizen ship in an Era of Global urban Peripheries. City & Society, [s.l.], v. 21, n. 2, p.
245-267, s/d.

LEGRAMANDI, A. B.; GOMES, M. T. Insurgência e resistência no pensamento freireano: propostas para uma
pedagogia decolonial e uma educação emancipatória. Revista @mbienteeducação, São Paulo: Universidade Cidade de
São Paulo, v. 12, n. 1, p. 24-32, jan./abr. 2019.

MATOS, Marilélia do Rocio Milléo. Educação de Jovens e Adultos: uma prática educativa na diversidade. [S.l.: s.n.,
s/d]. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1559-8.pdf/. Acesso em: 24 jan. 2020.

SILVA, Marcelo Martins da. Insurgência e Conservadorismo: considerações sobre o paradoxo da cidadania no Brasil.
Em Pauta, Rio de Janeiro, v. 15, n. 39, p. 70-84, 1. sem. 2017.

Notas de fim

i
Em A importância do ato de ler: em três artigos que se complementam, Paulo Freire analisa a arqueologia do
complexo movimento de alfabetização de adultos, referendando que tal proposição está inserida na ação política e na
ação do conhecimento, constituindo um ato criador e libertador (FREIRE, 1989).
ii
O conceito de cidadania substantiva tem sido discutido amplamente em setores da educação, do direito, das políticas
públicas, do serviço social. Diferente da cidadania formal, cujas perspectivas de construção estão referendadas pelo
processo de consolidação da democratização dos direitos sociais, civis e políticos, de diversos povos, a cidadania
substantiva ou insurgente, está na contramão desse processo, valorizando a relação com o efetivo vivido, determinando
que o cidadão é dotado de direitos, mas que age na objetivação dos mesmos. É uma construção histórica que visa
transformar em prática aquilo que é universal na teoria, por meio da participação popular articulada a grupos de
afinidade (classe, gênero, grupos étnico-raciais, entre outros) (SILVA, 2017).
iii
Livro do Neoliberalismo A Empresa de Si Mesmo.

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EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA:
DESCOLONIZAÇÃO DE SABERESCOMO FORMA DE
INSURGÊNCIA

Ivanilde Apoluceno de Oliveira


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

INTRODUÇÃO

No atual contexto político brasileiro, ano 2020, vemos a educação de pessoas jovens, adultas
e idosas sofrendo com o fechamento de turmas com vistas à implantação de projetos, como o
Mundiar, voltado para a profissionalização para o mercado de trabalho, por meio de tele-ensino e
professor-tutor polivalente. Educação individualista, meritocrática, neutra e despolitizada, que está
provocando impactos negativos na EJA, entre os quais, uma demanda significativa desta população
está fora da escola, aumentando o processo de exclusão escolar, e a aprendizagem ofertada mantém
a lógica tecnicista de mercado neoliberal e da domesticação.

Desta forma, neste momento, torna-se indispensável que se repensem projetos e políticas
“com vistas a uma educação ao longo da vida, comprometida com os sujeitos democráticos,
cidadãos livres e autônomos, capazes de uma leitura crítica de mundo e da tomada da palavra com
vistas a sua transformação” (LIMA, 2007, p. 33), visando superar a educação instrumental,
domesticadora e alienadora de consciências, que inviabilizam e silenciam os sujeitos da Educação
de Jovens, Adultos e Idosos.

Neste contexto de desmonte da EJA é fundamental retomar-se o pensamento educacional de


Paulo Freire, tendo como foco a decolonialidade, a fim de debater a educação ao longo da vida em
uma visão democrática e de formação para a cidadania, como objeto de políticas públicas.

A educação de Paulo Freire se apresenta com diversas matrizes teóricas que a possibilita ser
caracterizada como dialógica, humanizadora, problematizadora, bem como intercultural crítica e
decolonial.

Paulo Freire vem sendo apontado como teórico intercultural crítico por educadores que
debatem a educação intercultural no Brasil, entre os quais Candau (2002), Oliveira (2015) e Fleuri
(2003), mas, também, ele se inclui no contexto do movimento decolonial da América Latina, por
criticar no campo social e educacional a influência do colonialismo na formação cultural do povo
brasileiro.

Paulo Freire critica o processo de colonização vivido pela população brasileira, por existir
uma imposição da cultura dominante, que tanto invisibiliza a cultura quanto efetiva a exclusão
social de determinados segmentos populares, entre os quais os da Educação de Jovens, Adultos e
Idosos. Critica ainda os discursos tanto da modernidade centrado no eu penso cartesiano, que
destaca o individualismo nas relações interpessoais, quanto o neoliberal por estabelecer um
fatalismo histórico que imobiliza o processo de transformação social.

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EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA: DESCOLONIZAÇÃO DE SABERESCOMO FORMA DE INSURGÊNCIA

Em termos da colonização denuncia o caráter devastador na formação cultural do povo


brasileiro, sendo a educação a mediadora desta formação, e anuncia o descolonizar as mentes e dos
saberes dominantes, por meio de outra concepção de educação, cujos pressupostos são de uma
pedagogia crítica, dialógica, intercultural e decolonial, que se apresenta como uma forma de
insurgência em relação às diferentes opressões sociais.

Como se apresenta em Paulo Freire o pensamento decolonial? No campo da Educação de


Jovens, Adultos e Idosos como se processa a descolonização dos saberes?

Neste texto objetiva-se analisar, à luz dos princípios teórico-metodológicos de Paulo Freire,
as matrizes do pensamento decolonial e o processo de descolonização dos saberes na Educação de
Jovens, Adultos e Idosos.

Este estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica, com a utilização de fontes referentes ao
pensamento educacional de Paulo Freire e de autores que tratam sobre a pedagogia decolonial e a
educação de jovens e adultos na perspectiva freireana.

Inicialmente apresentam-se os princípios teóricos e metodológicos de Paulo Freire com o


olhar para o processo de denúncia da colonização e do anúncio da descolonização das mentes e de
saberes e, posteriormente, à luz da pedagogia freireana analisa-se a descolonização dos saberes na
Educação de Jovens e Adultos.

PRINCÍPIOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DE PAULO FREIRE: DA DENÚNCIA DA


COLONIZAÇÃO À DESCOLONIZAÇÃO DAS MENTES

A educação de Paulo Freire apresenta um entrelaçamento entre o pedagógico, o ético e o


político, ao denunciar o processo de opressão sociocultural e de desumanização presentes na
educação que vem sendo historicamente mantida no Brasil desde o período da colonização e
anunciar a libertação por meio de uma educação crítica, humanista e dialógica. A sua preocupação é
com os segmentos populares oprimidos e com o processo de desumanização e de exclusão social
que vêm sofrendo no Brasil desde o período da colonização. Ele destaca que neste momento
histórico, as raízes culturais construídas foram de negação do povo, que perpassa pela não
participação de grupos populares na vida pública como cidadãos, bem como pela invisibilidade de
seus saberes e práticas culturais, existindo um etnocentrismo europeu pautado na superioridade
ocidental e branca (FREIRE, 2004).

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Oliveira (2015) explica que em Paulo Freire a opressão social está vinculada à opressão
cultural, porque na colonização existe uma invasão cultural, que para Freire consiste na “penetração
que fazem os invasores no contexto cultural dos invadidos, impondo a estes sua visão do mundo”
(1983, p. 178), por meio da qual os invadidos são convencidos de sua inferioridade, bem como se
reconhecem como “inferiores” e os invasores como “superiores”, além de perceberem a realidade
social sob a ótica dos dominadores. Desta forma, há um processo de violência simbólica, que se
materializa em práticas de exclusão e os colonizados assumem a compreensão de mundo dos
invasores negando seus próprios saberes e não se vendo sujeitos de sua história e cultura. As
práticas de resistência são imobilizadas seja pelo convencimento ideológico ou pela força, como
diria Gramsci (1991).

Freire (2000, p. 73 e 74) crítica o processo de colonização por seu caráter predador, de
opressão e de negação da identidade cultural dos colonizados.
A presença predatória do colonizador, seu incontido gosto de sobrepor-se, não apenas
ao espaço físico mas ao histórico e cultural dos invadidos, seu mandonismo, seu poder
avassalador sobre as terras e as gentes, sua incontida ambição de destruir a identidade
cultural dos nacionais, considerados inferiores, quase bichos, nada disto pode ser
esquecido quando, distanciados no tempo, corremos o risco de “amaciar” a invasão e
vê-la como uma espécie de presente “civilizatório” do chamado Velho Mundo.

O autor critica a visão eurocêntrica dualista de “barbárie – civilização”, pela qual o saber
civilizatório do colonizador é legitimado e os saberes das demais culturas historicamente negadas
são invisibilizados e não legitimados no campo do conhecimento, denunciando o processo de
colonização das mentes, com vistas à manutenção das estruturas sociais de poder colonialistas e
eurocêntricas.

A colonização das mentes, mesmo após o fim do período histórico de colonização, se


mantém, por meio de estruturas de poder e pela forma de pensar o mundo do colonizador e seus
valores, reconhecendo os seus saberes e práticas cotidianas sociais como legitimas.

Explica Freire (1985, p. 111-112) que: “quando o colonizador é expulso, quando deixa o
contexto geográfico do colonizado, permanece no contexto cultural e ideológico, permanece como
‘sombra’ introjetada no colonizado”. Desta forma “o que é sombra do colonizador se transforma em
presença dele através do próprio físico do colonizado e de seu comportamento”.

O discurso do colonizador afirma a sua superioridade em diferentes campos: conhecimento,


cultural, linguístico, religioso, étnico, gênero, entre outros e que são internalizados pelos ex-

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EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA: DESCOLONIZAÇÃO DE SABERESCOMO FORMA DE INSURGÊNCIA

colonizados, mantendo a “consciência hospedeira da opressão”, ou seja, os oprimidos hospedam e


introjetam a sombra do opressor, mantendo a lógica da dominação, em uma perspectiva messiânica,
sendo considerados os dominadores salvadores daqueles que oprimem. Com isso se mantem o
status quo.

Assim, na educação, há para Freire (1980), a manutenção da colonização das mentes por
meio da invasão cultural e pela invisibilidade do saber cultural dos educandos, que provoca um
mutismo tanto educacional quanto sociocultural, que se configura como processo de
desumanização, pelo fato de homens e mulheres de segmentos populares deixarem de exercer sua
vocação ontológica de ser mais, enquanto pessoa humana, não exercendo a função de sujeitos de
sua própria história.

A cultura do silêncio, portanto, é gerada, segundo Freire (1983) na estrutura opressora,


vivenciando os oprimidos a situação de alienação, dominação e coisificação.

Freire (1982, p. 41) considera que “o Brasil foi “inventado” de cima para baixo,
autoritariamente. Precisamos reinventá-lo em outros termos”. Por isso destaca a necessidade de
“descolonizar as mentes”, por meio do reconhecimento e legitimação dos saberes das culturas
nativas (FREIRE, 1978, p. 20), tendo a educação um papel ético-político importante, porque teria
de ser: “uma tentativa constante de mudança de atitude. De criação de disposições democráticas
através da qual se substituíssem no brasileiro, antigos e culturológicos hábitos de passividade, por
novos hábitos de participação e ingerência”, superando também o problema do analfabetismo
(FREIRE, 1980, p.93).

Há, nesta perspectiva, a necessidade da insurgência, no sentido de rebelar-se em relação às


opressões sociais. Só que a rebeldia não pode ficar só na denúncia, implica em uma função
revolucionária anunciadora da mudança (FREIRE, 2000; 2007).

Educação dialógica, crítica e democrática, que possibilite superar a prática educacional


colonialista que dita ideias, discursa aulas, não debate temas, sendo imposta sobre o educando uma
ordem que o acomoda e não lhe permite elaborar um pensar autêntico (FREIRE, 1980).

Educação intercultural crítica que respeite a identidade cultural dos/as educandos/as, que
perpassa pelo “respeito pela linguagem do outro, pela cor do outro, o gênero do outro, a classe do
outro, a orientação sexual do outro, a capacidade intelectual do outro” (FREIRE, 2001a, p. 60).
Educação que viabilize tanto a formação democrática quanto o diálogo entre os saberes, sendo

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

valorizados os saberes e as experiências de vida dos/as educandos/as, criando-se também laços de


afetividade e de solidariedade.

Para Freire (1982a, p. 32) é “na intimidade das consciências, movidas pela bondade dos
corações, que o mundo se refaz. E, já que a educação modela as almas e recria os corações, ela é a
alavanca das mudanças sociais”. Educação que compreenda os sujeitos da educação na sua
integralidade do ser como seres racionais e afetivos.

Educação em uma visão decolonial que supere a colonialidade do poder, saber e ser das
classes populares.
A colonialidade do poder refere-se aos padrões de poder baseados em uma hierarquia
(racial, sexual) e na formação e distribuição de identidades (brancos, mestiços, índios,
negros). Quanto à colonialidade do saber, refere-se ao caráter eurocêntrico e ocidental
como única possibilidade de se construir um conhecimento considerado científico e
universal, negando-se outras lógicas de compreensão do mundo e produção de
conhecimento, consideradas ingênuas ou pouco consistentes. A colonialidade do ser
supõe a inferiorização e subalternização de determinados grupos sociais,
particularmente os indígenas e negros (CANDAU; RUSSO, 2010, p. 165).

Walsh (2009) ressalta que Paulo Freire compreende ser a pedagogia crítica uma estratégia
metodológica imprescindível para as lutas sociais, políticas, ontológicas e epistêmicas de libertação,
por estar enraizada na realidade, subjetividade e histórias de vida dos povos, contribuindo ao
processo de afirmação e desalienação e em consequência, de humanização dessa população.

A DESCOLONIZAÇÃO DE SABERES NA EDUCAÇÃO DE JOVENS, ADULTOS E IDOSOS

Paulo Freire chama atenção para a importância da alfabetização no processo de descolonizar


as mentes e dos saberes impostos no processo de invasão cultural no campo educacional.

A alfabetização em Freire (1993; 1982a) tem a função de não somente aprender a ler e a
escrever, mas, também, formar pessoas, por meio de um processo de humanização, bem como
formar para o exercício consciente da cidadania, o que perpassa pela escuta dos/as educandos/as por
parte dos/as educadores/as e reconhecer o direito que possuem de dizer a sua palavra.
Quem apenas fala e jamais ouve; quem “imobiliza” o conhecimento e o transfere a
estudantes, não importa se de escolas primárias ou universitárias; quem ouve o eco,
apenas, de suas próprias palavras, numa espécie de narcisismo oral; quem considera
petulância da classe trabalhadora reivindicar seus direitos; quem pensa, por outro lado,

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EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA: DESCOLONIZAÇÃO DE SABERESCOMO FORMA DE INSURGÊNCIA

que a classe trabalhadora é demasiado inculta e incapaz, necessitando, por isso, de ser
libertada de cima para baixo, não tem realmente nada que ver com libertação nem
democracia. Pelo contrário, quem assim atua e assim pensa, consciente ou
inconscientemente, ajuda a preservação das estruturas autoritárias (FREIRE, 1982a, p.
30-31).

Ajuda a preservar, também, a mentalidade e a situação de inexperiência democrática do


colonialismo. Para Freire (1982b, p. 49) “dizer a palavra, em um sentido verdadeiro, é o direito de
expressar-se e expressar o mundo, de criar e recriar, de decidir, de optar. Como tal, não é o
privilégio de uns poucos com que silenciam as maiorias”. Desta forma, a alfabetização precisa ser
um ato criador, sendo os(as) alfabetizandos(as) os sujeitos, que vivenciam a sua experiência
histórica de forma crítica e autonomia no pensar.

A alfabetização de jovens, adultos e idosos, na visão de Paulo Freire (1982a, p. 47), precisa
contribuir “para que o povo tomando mais e mais a sua História nas mãos, se refaça na feitura da
História. Fazer a História é estar presente nela e não simplesmente nela estar representado”.

Aprender a ler e a escrever, na perspectiva freireana, não se reduz ao ato de memorizar


palavras, frases e sílabas, e sim refletir sobre o próprio processo de escrita e o significado da
linguagem, envolvendo as relações dos seres humanos com seu mundo e com os outros e constante
problematização da prática social vivida (FREIRE, 1982b).

O ponto de partida do processo alfabetizador seria, então, a realidade sociocultural dos(as)


educandos(as). Freire (1982b, p. 64) defende que “os textos de leitura dos alfabetizandos venham
preponderantemente deles próprios e a eles voltem para a sua análise. Para isto, é preciso que
acreditemos neles e, em nossa prática com eles, nos tornemos seus educandos também”. Significa
que os saberes e experiências de vida dos(as) educandos(as) precisam ser valorizados e
reconhecidos, bem como o diálogo estabelecido em classe se configure em processo de
aprendizagem mútua, rompendo a atitude colonizadora de que só os saberes da escola repassados
pelos professores são reconhecidos do ponto de vista epistêmico.

Há necessidade de se compreender que os seres humanos são existentes no mundo e com o


mundo, com a capacidade de criar, recriar e transformá-lo, mas também de comunicar os seus
quefazeres. Por isso, a importância do diálogo e da ação coletiva na prática alfabetizadora, que se
configura para Paulo Freire uma situação gnosiológica. “Conhecer, que é sempre um processo,
supõe uma situação dialógica. Não há estritamente falando um “eu penso”, mas um “nós

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pensamos”. Não é o “eu penso” o que constitui o “nós pensamos”, mas pelo contrário, é o “nós
pensamos” que me faz possível pensar” (FREIRE, 1982b, p. 86).

Paulo Freire analisa a educação do ponto de vista epistemológico, estabelecendo uma crítica
ao pensamento cartesiano moderno, deslocando o olhar individualista para o coletivo, considerando
que os seres humanos em comunicação com o outro aprende e ensina. O deslocamento do eu para o
nós, implica em compreender que a aprendizagem é um processo de interação social, sendo,
portanto, coletivo e participativo.

Assim, além da aprendizagem ser significativa ao sujeito por estar vinculada à sua realidade
social e cultural, apresenta-se como um processo de interação humana, viabilizada pela
comunicação e pelo diálogo entre as pessoas, como seres de conhecimento e aprendentes. E nessa
comunicação o Outro é descoberto como uma cultura diversa, como diferente (FREIRE;
FAUNDEZ, 1985).

A metodologia na prática alfabetizadora precisa estar coerente com esta concepção de


educação. Se o ponto de partida é o contexto significativo do(a) educando(a), então, os temas e as
palavras geradores provenientes do universo cultural dos(as) educandos(as) são os eixos
fundamentais no processo alfabetizador. Temas do cotidiano social e cultural dos(as) educandos(as)
que possibilitam articular sua leitura de mundo com a leitura da palavra e de sua escrita. Temas que
viabilizem a compreensão dos conteúdos e tenha significado e sentido aos alfabetizandos.

Trazer o universo cultural dos(as) educandos(as) implica a escuta e o respeito aos saberes
dos mesmos, sendo necessário o círculo cultural dialógico a fim de realizar o debate e a
problematização de questões existenciais e sociais que vão fazer parte da aprendizagem
significativa dos sujeitos.

O círculo cultural dialógico freireano possibilita descolonizar os saberes na medida em que


reconhece, valoriza e legitima os saberes culturais dos alfabetizandos, interagindo com os saberes
escolares, buscando uma unidade na diversidade, bem como ao viabilizar sua participação
democrática e autonomia no processo alfabetizador ao dizer sua palavra e expressar sua concepção
de mundo.

Freire (2001) então insiste na necessidade que tem o nosso tempo de ter em nossas escolas
centros de alfabetização que formem para a solidariedade, participação, hábitos de investigação e
disposições mentais críticas.

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EDUCAÇÃO AO LONGO DA VIDA: DESCOLONIZAÇÃO DE SABERESCOMO FORMA DE INSURGÊNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação de Paulo Freire, em sua perspectiva decolonial, afirma o engajamento ético-


político com os diferentes segmentos populares oprimidos e aponta para que a educação seja
histórica, social e culturalmente contextualizada com o viver desta população. Com isso, rompe
com a visão eurocêntrica moderna que hegemoniza e universaliza o pensamento científico e
filosófico, bem como a concepção de mentalidade colonial direcionada à profissionalização para o
mercado de trabalho e apresenta uma educação que afirma a identidade cultural latinoamericana,
cujo ponto de partida é a realidade vivida e os saberes culturais dos segmentos sociais
historicamente negados por questões de classe, etnia, gênero, idade, etc.

Acrescentam-se, ainda, os princípios éticos humanistas de valorização da pessoa humana em


seu processo de construção existencial, que perpassa pelo respeito a sua capacidade ontológica de
ser mais, de aprimorar-se como ser humano na sua integralidade do ser, respeito a sua
individualidade corpórea e afetiva, bem como a sua identidade cultural.

Os princípios teórico-metodológicos da educação freireana colocam o ser humano


contextualizado historicamente no mundo no centro da educação, sendo reconhecido como sujeito
de direitos, bem como capaz de construir o seu caminhar social. Por isso, no campo da educação de
jovens, adultos e idosos é fundamental conhecer as bases da pedagogia decolonial de Paulo Freire,
considerando ser esta modalidade de educação constituída por segmentos populares que vem
sofrendo processos constantes de marginalização.

A educação freireana na perspectiva decolonial denuncia a opressão social e anuncia a


possibilidade de ser destes sujeitos historicamente negados em sua formação cultural, contribuindo
para o movimento decolonial na América Latina. Aponta, ainda, as possibilidades de mudanças no
atual contexto de negação e minimização da Educação de pessoas jovens, adultas e idosas, por meio
de pedagogias outras,pautadas em novas diretrizes educacionais: dialógica, crítica, intercultural e
decolonial, superando a pedagogia tradicional de mentalidade colonial.

Como afirma Paulo Freire (2007, p.78) é preciso que:


[...] tenhamos na resistência que nos preserva vivos, na compreensão do futuro como
problema e na vocação para ser mais como expressão da natureza humana em
processo de estar sendo, fundamentos para a nossa rebeldia e não para a nossa
resignação em face das ofensas que nos destroem o ser. Não é a resignação, mas na
rebeldia em face das injustiças que nos afirmamos (grifos do autor).

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REFERÊNCIAS

CANDAU, Vera Maria Ferrão. Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis: Vozes, 2002.

CANDAU, Vera Maria Ferrão; RUSSO, Kelly. Interculturalidade e Educação na América Latina: uma construção
plural, original e complexa. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 10, n. 29, p. 151-169, jan./abr. 2010.

FLEURI, Reinaldo. Intercultura e educação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro: Anped, n. 23,
maio/jun./jul./ago. 2003.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: três artigos que se complementam. São Paulo: Autores Associados;
Cortez, 1982a.

FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade e outros escritos. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982b.

FREIRE, Paulo. Cartas a Guiné-Bissau: registros de uma experiência em processo. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

FREIRE, Paulo. Pedagogia dos Sonhos Possíveis. São Paulo: Unesp, 2001a.

FREIRE, Paulo. Educação e atualidade brasileira. 2. ed. São Paulo: Cortez; Instituto Paulo Freire, 2001b.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 36. ed. São Paulo: Paz e Terra,
2007.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. 6. ed. São Paulo: Unesp, 2000.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. São Paulo: Unesp, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 12. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983a.

FREIRE, Paulo. Política e educação. São Paulo: Questões da nossa Época; Cortez, 1993b.

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

GRAMSCI, Antônio. Os intelectuais e a organização da cultura. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.

LIMA, Licínio C. Educação ao longo da vida: entre a mão direita e a mão esquerda de Miró. São Paulo: Cortez, 2007.

OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Paulo Freire: gênese da interculturalidade no Brasil. Curitiba: CRV, 2015.

WALSH, Catherine. Interculturalidade, Crítica e Pedagogia Decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU,
Vera Maria Ferrão (org.). Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de
Janeiro: 7 Letras, 2009.

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PRÁTICAS FORMATIVAS DE COLETIVOS JUVENIS
UNIVERSITÁRIOS E DE OCUPAS DE ESCOLAS DE
ENSINO MÉDIO

Luís Antonio Groppo


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

PRÁTICAS FORMATIVAS

O convite para o Simpósio “Didática e Prática do Ensino com as juventudes e suas


possibilidades de insurgências”, do XX Endipe, muito honra este pesquisador, que manifesta sua
gratidão também porque este trabalho me levou a sistematizar alguns resultados de pesquisas
conduzidas pelo Grupo de Estudos sobre a Juventude da Universidade Federal de Alfenas
(UNIFAL-MG).

O Grupo de Estudos sobre a Juventude da UNIFAL-MG é um projeto que alia pesquisa e


extensão e que, desde seu início em 2014, busca atuar de modo dialógico, democrático e plural,
composto por sujeitos de várias idades, desde docentes e membros da sociedade local de idade
adulta, a estudantes de pós-graduação, graduação e Ensino Médio. Em suas pesquisas recentes, o
Grupo de Estudos sobre a Juventude tem usado o termo “práticas formativas”, buscando flexibilizar
o modo como se concebe a educação, primeiro, sob a inspiração de concepções vindas da educação
não-formal, mas, principalmente, tocado pelo contato com práticas formativas autoconduzidas por
adolescentes e jovens, ou co-conduzidas ao lado de pessoas adultas. Sempre, trata-se de práticas
largamente autônomas, ou seja, com conteúdos e metodologias escolhidas pelos próprios sujeitos
aprendizes, em especial, durante ações coletivas.

A busca pela compreensão das práticas formativas autônomas de adolescentes e jovens


estudantes começoucom a pesquisa “A dimensão educativa das organizações juvenis: Estudo dos
processos educativos não formais e da formação política no interior de organizações juvenis de uma
universidade pública de Minas Gerais”, desenvolvida entre março de 2016 e fevereiro de 2019. A
pesquisa buscou conhecer práticas formativas de seis coletivos juvenis em uma universidade
pública do Sul de Minas Gerais mineira: três ligados a partidos e movimentos sociais de esquerda,
um cursinho popular, um coletivo cultural e um grupo evangélico.

Em março de 2019, demos início à pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e


2016: Formação e autoformação das e dos ocupas como sujeitos políticos”. Para tanto, foi criada
uma rede de pesquisa que tem envolvido 12 Instituições de Educação Superior do país, por meio da
qual tem sido feito entrevistas com jovens que, quando ainda eram adolescentes, em 2015 ou 2016,
participaram do movimento de ocupações de escolas públicas. Buscamos conhecer, em especial,
como viveram o processo das ocupações e quais os impactos que a vivência nesta ação coletiva
trouxe para suas trajetórias políticas, educacionais e pessoais.

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PRÁTICAS FORMATIVAS DE COLETIVOS JUVENIS UNIVERSITÁRIOS E DE OCUPAS DE ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO

Este trabalho é um breve relato e reflexão sobre estas práticas formativas insurgentes de
adolescentes e jovens, que têm cultivado coletivos juvenis e vêm participando de ações políticas de
grande importância na história recente de nosso país.

PRÁTICAS FORMATIVAS DOS COLETIVOS JUVENIS NA UNIVERSIDADE

A pesquisa “A dimensão educativa das organizações juvenis” chegou a alguns resultados


interessantes, no que se refere às práticas formativas dos seis coletivos juvenis atuantes na
universidade sul-mineira que foram pesquisadosi.

Quando a pesquisa foi concebida, os termos educação informal e educação não-formal


foram importantes para ativar nossa percepção a respeito de práticas formativas distintas das
relações acadêmicas típicas da universidade. (PARK; FERNANDES; CARNICEL, 2007). Não era
e não é objetivo fazer uso destes termos como categorias classificatórias e estanques. A intenção foi
de, com elas, ao lado da própria noção de práticas formativas, registrar um repertório de ações
educacionais fomentadas pelos coletivos juvenis na universidade.

Neste repertório, algumas práticas se aproximavam do que concebemos como educação não
formal, ou seja, práticas planejadas, mas sem a formalidade do ensino ou educação formal, como:
encontros de formação, eventos de extensão, atividades de estudo nas reuniões, oficinas de
formação, estudos bíblicos etc. Outras práticas se aproximam do que concebemos como educação
“informal”, ou seja, práticas que não foram planejadas para serem formativas, ou que tinham caráter
educacional incidental durante outras práticas sociais, como atividades de planejamento,
assembleias, debates durante as reuniões, manifestações, lutas, apresentações culturais e até mesmo
“rolês” (festas e outras práticas de lazer).

Não se tratavam de práticas formativas necessariamente isoladas da educação formal


ministrada por docentes da universidade, nem práticas que sempre se contrapõem à vida acadêmica.
Certamente, houve vários registros sobre o quanto a militância nos coletivos políticos ou o
mergulho no universo do Maracatu (coletivo cultural) demandou tempo de jovens, tempo que foi
subtraído do que precisaria ser dedicado às atividades acadêmicas. Mas também há inúmeros
registros da contribuição da formação ensejada pelos coletivos para a própria inserção na vida
acadêmica, o que, aliás, é um dos principais objetivos da Aliança Bíblica Universitária (ABU, o
grupo evangélico). Também há registros da própria ressignificação do sentido da formação
acadêmica graças à influência dos coletivos – formação que passa a ter maior significado político,

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

nos casos dos coletivos políticos, ou que passa a ser direcionada para a docência, no caso do
cursinho popular, ou ainda, que faz dialogar ciência e cultura popular, no caso do Maracatu.

Os coletivos políticos foram os que mais promoveram o que podemos chamar de formação
política “explícita”, como estudos de material enviado pelo coletivo, estudos em reuniões,
formações com lideranças regionais e estaduais e encontros nacionais. De modo semelhante,
também o Emancipa (o cursinho popular), que tinha relações estreitas com o Juntos!. Sobre esta
formação e os temas relativos a ela, como democracia, desigualdade social, movimento estudantil e
outros, os relatos revelam o aprendizado, principalmente, da política dita institucional ou formal.
Em consonância, depreendeu-se uma concepção mais propedêutica e preparatória do movimento
estudantil, como se a vida nestes coletivos fosse um “treinamento” ou ensaio para a ação política
mais consequente em partidos, sindicatos e movimentos sociais na idade adulta.

A formação política relacionada ao que Jacques Rancière (1996a, 1996b) considera como a
“política” propriamente dita, portanto, dissensual e criadora de sujeitos políticos, se deu por meio de
outras pautas e práticas. Trataram-se das pautas ditas “identitárias”, em especial os temas do
feminismo e o combate ao machismo. A pesquisa documental também revelou a importância das
pautas étnico-racial e LGBTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros), mas, nas
observações e entrevistas se destacaram muito mais as pautas relativas ao feminismo e às relações
de gênero. Entre as práticas mais fortes, destacou-se, primeiro, o autoaprendizado coletivo de
mulheres em reuniões auto-organizadas, que levou ao reconhecimento das opressões de gênero e
seu combate, via o compartilhamento de experiências pessoais (a “sensorialidade”). Segundo,
práticas de combate ao machismo interno, em especial por meio de conversas, orientações e
intervenções, evitando a expulsão ou escracho público, tentando assim reeducar o machista. Trata-
se de pautas e práticas muito importantes, a considerar a origem social e econômica da maioria das
militantes destes coletivos: o combate ao machismo e o aprendizado da valorização de si como
mulher são importantes recursos na luta pela permanência na universidade.

Neste rol, deve se incluir a importante formação política incidental propiciada pela
participação em ações coletivas, em especial durante a ocupação da universidade no segundo
semestre de 2016. As pautas identitárias e a imersão na ação coletiva foram os elementos que mais
inspiraram militantes e ativistas, em suas entrevistas, a relatarem sobre a reconstrução de suas
“identidades” e a transformação de si, em especial no campo da orientação sexual, mas também na
identidade étnico-racial e, enfim, na expressão de si como “militante” ou como alguém que, em
qualquer espaço de atuação, deseja se engajar na organização da luta coletiva.

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PRÁTICAS FORMATIVAS DE COLETIVOS JUVENIS UNIVERSITÁRIOS E DE OCUPAS DE ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO

Os demais coletivos, Emancipa, Maracatu e ABU, também registraram importantes práticas


formativas e impactos nas trajetórias dos sujeitos. Em todos eles, o coletivo foi considerado como
muito importante para atribuir sentidos novos e positivos à vida acadêmica e, principalmente no
Maracatu e ABU, para a permanência na universidade. No cursinho popular do Emancipa, também
se destacou a formação de docentes. No Maracatu, a reconstrução da identidade cultural. Na ABU,
a manutenção de uma identidade religiosa evangélica e sua conciliação com a cultura acadêmica.

PRÁTICAS FORMATIVAS NAS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS

Entre as práticas educacionais não formais, durante as ocupações, destacaram-se as oficinas


e seus congêneres – como rodas de conversa, debates, cine-debates, entre outrosii. As oficinas se
destacam por sua quantidade, observando as páginas das ocupações nas redes sociais, assim como
pelas entrevistas, mas também por sua representatividade: por um lado, aproximam mais
ministrantes e aprendizes, pois os dois sujeitos vão praticar imediatamente, juntas ou juntos, o que
ensinam e aprendem; por outro lado, aproximam mais o saber e o fazer, teoria e prática. Estas
práticas educacionais não formais,via de regra, acompanharam conteúdos igualmente alternativos,
ou que, mesmo quando previstos pelo currículo escolar, eram ignorados ou subestimados, como
relações de gênero, relações étnico-raciais, sexualidade e formação política.

Ao lado das oficinas, destacaram-se os “aulões”. A princípio, a prática remete à tradicional e


formal “aula”, inclusive porque os conteúdos tratados costumavam ser também os que apareciam no
currículo escolar, já que muitas ocupações, especialmente no final de 2015 e no final de 2016,
coincidiram com a preparação ao Exame Nacional de Ensino Médio (Enem). Por outro lado, o
aumentativo “aulão” remete a uma prática formativa que espera receber muitas pessoas, tanto
quanto é aberta para quem quiser assistir, aproximando-se, de um lado, da não formalidade das
oficinas, e, por outro, da horizontalidade das assembleias.

As assembleias, que tinham caráter diário em muitas ocupações, assim como as comissões
formadas para cuidar do cotidiano recriado da escola ocupada (de segurança, limpeza, alimentação,
comunicação), podem ser caracterizadas como práticas políticas e de gestão que tiveram importante
impacto formativo. Várias entrevistas, destacam a formação política e humana desta vivência
transformada do ambiente escolar, tanto ou até mais do que as oficinas e aulões.

Há, enfim, as orientações de advogadas e advogados de sindicatos e partidos, muito


importantes para que as e os ocupas evitassem ou reduzissem os conflitos com o poder judiciário e a
polícia, ao lado das orientações de militantes (tanto de entidades estudantis e juvenis, quanto
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

pessoas adultas), que contribuíram com orientações sobre como organizar e receber ajuda política e
material. Essas orientações tinham um caráter mais pragmático, foram mais comuns no início de
cada ocupação de escola, ao lado de uma maior formalidade. É sempre bom recordar que, como
forte tendência, as ocupações buscaram ter autonomia em relação a militantes e representantes de
sindicatos e partidos, não hesitando em expulsar da escola quem lhes parecia querer se apropriar da
ação coletiva ou manipular ela a seu favor ou da organização a qual representava.

A FILA, A PASSEATA E O CÍRCULO

Este item final tem o objetivo de fazer um exercício de reflexão sobre algumas das práticas
formativas que foram acima descritas, diante do limite de espaço deste trabalho. Este exercício pode
ajudar na compreensão da radicalidade e das possibilidades emancipatórias contidas nestas práticas
educacionais insurgentes.

Adolescentes e jovens estudantes que nossas pesquisas vêm abordando, recriaram diversas
formas de distribuir os sujeitos no espaço-tempo das práticas formativas. A forma que mais se
destacou foi a figura do “círculo”. Mas também apareceram, transformadas ou reapropriadas pelas e
pelos estudantes, a fileira e a passeata.

A fileira é um dos saberes-fazeres disciplinares que Michel Foucault (1987) analisou em


Vigiar e punir, marcante não apenas na escola, mas também no quartel, fábricas e até mesmo
hospitais. Contudo, entre as e os estudantes que pesquisamos, a configuração em fileira aparece de
forma muito diversa. Ela é bastante presente nas imagens que coletivos e ocupas produzem, quando
se retratam, especialmente na apoteose de atos públicos e ações coletivas: em fila ou filas, uma
pessoa ao lado da outra, para que todas as pessoas apareçam na fotografia. A fileira, instrumento de
vigilância e contagem nas instituições disciplinares, se transforma em recurso para que cada pessoa
que participa do coletivo ou da ação política – manifestação ou ocupação – possa ser retratada,
valorizando não apenas a coletividade, mas também o individual.

A passeata, que muitas vezes é uma fileira ou fileiras em movimento, também é um recurso
tradicionalmente usado, agora por organizações clássicas da política, como partidos, movimentos
operários e outros movimentos sociais. Estudantes apropriaram-se da forma, dando a ela novas
configurações. Primeiro, quando secundaristas caminharam com suas carteiras por ruas centrais,
uma pessoa atrás da outra, pararam em um cruzamento, agora uma pessoa ao lado da outra, sentadas
nas carteiras, e interromperam o trânsito por alguns minutos enquanto recitavam um jogral. Tal
exemplo, que foi comum já no movimento de ocupações em São Paulo, no final de 2015,

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PRÁTICAS FORMATIVAS DE COLETIVOS JUVENIS UNIVERSITÁRIOS E DE OCUPAS DE ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO

reapareceu em um pequeno município sul-mineiro em outubro de 2016, inspirando os estudantes da


universidade mineira que pesquisamos. Quando tais estudantes participaram de manifestação contra
as medidas regressivas do governo Temer, já em novembro de 2016, seguiram de modo mais ou
menos ordenado o carro de som. Uma tradicional passeata que teve o mérito de juntar jovens
estudantes e docentes de idade adulta, entre outros sujeitos. Na segunda passeata, porém, estudantes
ficaram adiante do carro de som, executando coreografias fortes e decidiram continuar a passeata
quando as pessoas adultas pararam na praça para um comício: foram até o principal trevo da cidade
e o fecharam durante duas horas.

O circulo é uma figura que recebe uma imensidão de significados, costumeiro símbolo
religioso e esotérico. Mas o círculo é também forma recorrente em várias tribos indígenas, que por
meio dele vem assinalar a igualdade entre todas as casas e os homens, equidistantes em relação à
“casa dos homens”, no centro da aldeia – como os Bororos. (NOVAES, 1983). Paulo Freire (1985)
vai eleger o círculo como forma geométrica necessária para organizar a educação libertadora, a qual
parte do princípio de que todas as pessoas são sujeitos que podem tanto ensinar quanto aprender,
que todas as experiências humanas produzem saberes relevantes: se tratam dos “círculos de
cultura”.

Nas imagens e registros dos diários de campo da pesquisa “A dimensão educativa das
organizações juvenis”, encontramos jovens estudantes dos coletivos da universidade rotineiramente
em círculo – em oposição às carteiras enfileiradas nas salas de aula. Mesmo quando usaram salas de
aula, as carteiras eram rearranjadas em círculo. Coletivos políticos, entretanto, costumavam se
reunir no hall do prédio principal, com as pessoas sentadas no chão, em círculo. Nas oficinas do
Maracatu, o coletivo cultural, havia um quase círculo em volta da mesa em que eram
confeccionados instrumentos, depois o círculo ideal quando ensaiavam. Nos Encontros Indutivos
Bíblicos da ABU, há de novo um quase círculo, com jovens de religião evangélica ocupando uma
pequena marquise, parte sentada em um banco, parte sentada no chão.

O mais marcante e consciente uso do círculo nesta pesquisa, entretanto, foi registrado no
cursinho popular da Rede Emancipa – Movimento Social de Educação Popular (GROPPO;
OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2019). Lá, é atividade obrigatória o “Círculo do Emancipa”, normalmente
usando cadeiras da escola que abriga o cursinho, ministrado por estudantes da universidade a
adolescentes que querem ingressar na educação superior. É o momento em que temas sociais e
políticos, que independem dos conteúdos do Enem, são debatidos e em que se buscam ouvir e
respeitar todas as vozes e opiniões. Quando uma pesquisadora do Grupo de Estudos sobre a

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

Juventude participou de um grande evento para o qual a Rede Emancipa foi convidada, o Encontro
Internacional de Juventudes em Luta, no Rio de Janeiro em 2016, a atividade que debateu educação,
sob a coordenação do Emancipa, se tornou um grande “Círculo do Emancipa”, com inúmeros
círculos concêntricos capazes de abrigar centenas de pessoas.

Dispor os sujeitos do processo educacional em círculo é prática heterodoxa que tem longa
histórica na própria escola e outras instituições educativas, e a inspiração de Paulo Freire e seus
“círculos de cultura” não é pequena – aliás, a Rede Emancipa cita Freire como seu principal
fundamento educacional. Em quase todas as atividades formativas durante as ocupações, o círculo
esteve presente, em especial nas práticas não-formais, como oficinas e debates. Ocupas levaram
esta prática também por inspiração de docentes da sua escola, como registra Carolina de Jesus em
entrevista para a pesquisa “Ocupações secundaristas no Brasil em 2015 e 2016”:
Amávamos as aulas de sociologia e artes, era diferente, eram oficinas, eram debates.
Esses professores sempre procuravam colocar a gente em círculo na sala, para todo
mundo conseguir olhar um para o outro, para conversar de frente e ele sempre dava
muita abertura para a gente falar de tudo. E ele sempre se dispunha a escutar a gente
(Carolina de Jesus, ocupa de escola de Poços de Caldas/MG, entrevista, 2019).

Há um relato muito bonito e impactante, em página de uma ocupação de escola de Juiz de


Fora nas redes sociais, quando ocupas encerraram o movimento. Acima do relato, a foto de uma
sala de aula que, como as demais, foi limpa e entregue com a configuração que foi usual durante o
movimento: em círculo. O relato: “esse é nossa herança para a escola”. Realmente, segundo
entrevista concedida por estudante que ocupou esta escola, ao menos durante o ano de 2017 as
carteiras continuaram dispostas em círculo:
Acho que o que a gente mais aprendeu na ocupação é que a gente vivia um modelo de
escola que não era o modelo que a gente se encaixava. [...] Então, tem escolas que
hoje, depois da ocupação, os estudantes não sentam mais em fileiras, os estudantes
sentam em círculos; tem escolas que aos sábados e aos domingos abrem para as
famílias, tudo isso por causa do período de ocupação. Na escola [...] isso aconteceu,
não sei se acontece ainda. Mas a galera senta em círculos, depois de tudo o que
aconteceu. Depois, fica toda uma herança para os outros alunos, que não viveram a
ocupação, sobre a importância da luta e que aquele lugar foi foco da resistência
naquele momento (Helena, ocupa de escola de Juiz de Fora/MG, entrevista, 2019).

Durante as ações coletivas que estudantes dos coletivos juvenis da universidade


participaram, assim como as e os ocupas secundaristas que nos têm concedido entrevistas, tais

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PRÁTICAS FORMATIVAS DE COLETIVOS JUVENIS UNIVERSITÁRIOS E DE OCUPAS DE ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO

pessoas parecem ter se transfigurado de estudantes jovens e adolescentes – com funções e lugares
sociais determinados e inferiores na estrutura social – em sujeitos políticos. Ou seja, ocupas e
jovens insurgentes se desidentificaram em relação ao papel socialmente esperado de adolescentes e
alunas e alunos. Sua voz e ação, tidas como pré-políticas e imaturas, portanto, desiguais e
desconsideradas como tendo valor intrínseco no cotidiano e na esfera pública, tiveram de ser
ouvidas e reconhecidas, ao menos durante o tempo em que a política como “dissenso” vigorou.
(RANCIÉRE, 1996a). É por isso que a manifestação de sujeitos políticos, que é também o momento
verdadeiramente político para J. Rancière, é também o momento em que as pessoas afirmam a
igualdade entre todas elas.

Nesse sentido, é possível dizer que a melhor performatização da igualdade, entre as práticas
político-formativas dos coletivos juvenis e do movimento das ocupações que temos estudado, foram
aquelas que fizeram uso da figura do círculo. Na verdade, não se tratou apenas de performatização,
mas também de pré-figuração (ORTELADO, 2016), ou seja, a vivência no tempo presente – por
meio das próprias formas de protesto – das relações sociais, políticas e educacionais que se espera
construir com o movimento. Trata-se de um círculo em que ninguém ocupa o centro, às vezes
apenas brasões de movimentos e partidos que apoiam a causa, mas nenhuma pessoa. As pessoas se
olham diretamente nos olhos, mesmo quando há coordenação ou exposição, e a figura do círculo
lembra que todas elas são iguais, por serem humanas, todas elas potencialmente sujeitos políticos.

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

COSTA, Adriana Alves Fernandes; GROPPO, Luís Antonio (orgs.). O movimento de ocupações estudantis no
Brasil. São Carlos: Pedro & João, 2018. Disponível em: https://ebookspedroejoaoeditores.files.wordpress.com/2019/03/
ebookadriana.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.

FREIRE, P. Educação com prática da liberdade. 16. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.

GROPPO, Luís A. Formative practices of student collectives in a public university. In: PEREIRA, Cláudia. Brazilian
Youth: Global Trends and Local Perspectives. London and New York: Routledge, 2020. p. 24-36.

GROPPO, Luís Antonio; OLIVEIRA, Ana Rosa; OLIVEIRA, Fabiana Mara de. Cursinho popular por estudantes da
universidade: práticas político-pedagógicas e formação docente. Revista Brasileira de Educação, [s.l.], v. 24, p. 1-24,
2019. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v24/1809-449X-rbedu-24-e240031.pdf/. Acesso em: 14 nov.
2019.

MEDEIROS. Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion (orgs.). Ocupar e resistir: movimento de ocupações de
escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019.

NOVAES, S. Caiuby. Habitações indígenas. São Paulo: Nobel; Editora da Universidade de São Paulo, 1983.

ORTELLADO, Pablo. A primeira flor de junho. In: CAMPOS, A, M; MEDEIROS, J; RIBEIRO, M. M. Escolas de
lutas. São Paulo: Editora Veneta, 2016. p. 12-18.

PARK, Margareth Brandini; FERNANDES, Renata Sieiro; CARNICEL, Amarildo (org.). Palavras-chave em
educação não-formal. Holambra: Setembro; Campinas: CMU, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo: Editora 34, 1996b.

RANCIÈRE, Jacques. O dissenso. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Cia das Letras; Brasília:
MEC; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996a. p. 367-382.

Notas de fim

i
Entre as produções da pesquisa a respeito deste tema, destaco Groppo (2020).
ii
Relatos mais detalhados destas práticas formativas nas ocupações se encontram em Costa; Groppo (2018) e Medeiros;
Januário; Melo (2019).

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A INFÂNCIA NOS TEMPOS DE CÓLERA

Maria Cristina Soares de Gouvêa


DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

O título deste texto inspira-se no do magistral livro de Garcia Marquez O amor nos tempos
do cólera. Usei-o, inicialmente, numa conferência proferida em novembro de 2018, exatamente no
dia seguinte à promulgação dos resultados da eleição presidencial brasileira. Naquela ocasião,
refleti sobre algo que continua a preocupar-me: como a criança vive e significa um país em disputa
e conflito?

Venho, posteriormente, buscando compreender melhor a questão, que irei tratar aqui, ainda
breve e preliminarmente. No contexto em que escrevo, o título reveste-se de outro significado. Os
tempos do cólera referem-se não mais apenas a uma imagem de um país cindido e atravessado pelo
ódio. Os tempos do cólera falam de um país que experimenta, num cenário caótico, a emergência de
uma pandemia cuja dimensão e consequências não são ainda possíveis de avaliar, no momento em
que escrevo: março de 2020 (e que espero venham a ser bem menores do que agora prevemos,
quando for publicizado, 4 meses depois).

A cólera hoje é literal e, certamente, grande parte das crianças brasileiras se indagam sobre o
que é corona vírus, os efeitos que terá em suas vidas, os riscos a que ela e as pessoas que ama, estão
expostas. No entanto, pelo menos no momento em que escrevo, mostra-se ainda ausente uma escuta
sobre como a criança vive este contexto de caos, não mais “apenas” político, econômico e social,
mas também sanitário.

Não irei aqui trazer dados empíricos sobre esta escuta e aproveito para convidá-los a fazê-lo.
Mas irei refletir sobre um tema ausente, quer nos estudos da infância, quer nos nossos referenciais e
práticas na educação infantil: Como a criança compreende e significa a dimensão política da vida
social? Como compreende e significa um mundo social num contexto disruptivo?

Quero, na verdade, pensar neste sujeito que é objeto de nossa celebração: a criança, para
buscar recuperar, no interior dos muitos nós atados, neste emaranhado de arame farpado que é o
país hoje, um lugar para produção e escuta de seus discursos.

A infância ocupa o debate político grande parte das vezes como objeto de nossa retórica
política eleitoral, a representar o futuro e a esperança, sendo ausente a escuta de como vive o
presente. Ou, quando se experimenta “dar-lhe voz”, é colocada diante de um microfone para, com
sua “espontaneidade, pureza e ingenuidade”, dizer como gostaria que o mundo fosse.

Grande parte das vezes o mundo social que apresentamos à criança é idealizado, sem
conflito, caracterizado pela harmonia coletiva, onde cada indivíduo ocupa um papel no
desenvolvimento da vida comum. Protegemos nossas crianças dos discursos e imagens sobre

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A INFÂNCIA NOS TEMPOS DE CÓLERA

conflitos e tragédias, retirando-a “da sala”, quando tais assunto se apresentam, embora não
protejamos outras crianças da vivência destes conflitos e tragédias.

A infância desprotegida é a outra, que habita um mundo “distante” (embora tantas vezes
geograficamente próximo), na África, Síria, nos acampamentos de refugiados na Europa, nas
fronteiras dos EUA e nas favelas diante de nossas janelas. Tal criança é objeto de nossa piedade,
mas não de seus direitos.

Vivemos tempos estranhos, se não sombrios. Sobre isto, nós adultos, estamos continuamente
a ler textos, trocar comentários, impressões, dúvidas e inquietações, buscando compreender e
significar o vivido. Ao mesmo tempo, frequentemente excluímos a criança do tema, por considerá-
la incapaz de compreender e produzir um discurso sobre o mundo social, destituindo-a de um lugar
de fala e alijando-a do debate político.

Não vou aqui discutir posições, analisar governos e desgovernos, falar dos efeitos da política
nas condições sociais das crianças. Proponho-me indagar, de maneira breve e muito pouco
sistemática, sobre como a criança compreende e significa o universo sociopolítico, tal como ele se
apresenta nos difíceis tempos que correm neste nosso país.

Gostaria de fazer esta reflexão, ainda bastante inconsistente, na ausência de uma empiria da
escuta aqui proposta, mas em torno dos princípios que regem o campo dos estudos da infância.
Pretendo problematizar os referenciais teórico-metodológicos que ancoram a compreensão de como
a criança vive e significa o mundo social, especialmente em sua dimensão política, indicando os
limites adultocêntricos de nossos conceitos de ator e agência política.

DIMENSÕES POLÍTICAS DOS CONCEITOS DE ATOR E AGÊNCIA INFANTIL

O entendimento da criança como ator social e as possibilidades de sua agência constituem


pressupostos consolidados no campo dos estudos da infância, presente tanto nos estudos históricos,
quanto contemporâneos. Tal visão possibilitou a construção de um olhar que, na história, buscava
nos riscos e rabiscos, a escrita da criança, nas sombras, sua presença, nos silêncios, o resgate de sua
fala, na transparência, seu corpo.

Na contemporaneidade, foi possível construir ferramentas metodológicas de sua escuta, no


recurso à singularidade de sua linguagem. Foi possível tomar como objeto de análise o cotidiano, na
relação com os pares, conferindo visibilidade à complexa trama de interações infantis, em seus

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

distintos momentos do fazer-se criança, no estudo da produção e reprodução de uma cultura


infantil.

Por outro lado, foi possível tornar visível a dinâmica das relações das crianças com adultos,
em seus diferentes espaços de inserção, relação esta mediada por afetos, poder, encantamento
dominação e dependência mútuas. Foi possível pensar, para além destes sujeitos em interação, o
quadro social que em que se situam e no qual se circunscrevem, no interior de uma ordem
geracional.

Para além das interações sociais cotidianas, a criança participa da vida social, buscando
apreendê-la e significá-la. Ela não habita um universo à parte, distante da dinâmica complexa do
mundo social, restrito às microinterações.

Assim é que pensar a participação da criança na vida social implica considerar como esta se
organiza, em que a dimensão política lhe é inerente. Pensar os espaços e condições de participação
da infância na vida social implica considerar como a criança vive e compreende a política. Porém,
será que os conceitos que trabalhamos como participação, ator social e agência dão conta da
dimensão política? É importante considerar que os termos não são equivalentes. Ator social e ator
político, participação social e participação política apresentam distinções.

Para contemplar esta dimensão, gostaria de contrapor duas perspectivas no campo dos
estudos da infância, ao analisar a participação da criança na vida social, para pensar a participação
política.

Uma primeira perspectiva, fundada numa matriz europeia hegemônica, relaciona-se a uma
vivência da infância caracteristicamente individualista e institucionalizada, centrada na família e na
escola. Especialmente a participação política é entendida como processo formativo a ser exercido
na vida adulta e não como dimensão presente na vida da criança, circunscrevendo-se a temáticas
relacionadas ao “mundo infantil”. A produção sobre participação foca as microinterações, quer com
outras crianças, quer com adultos, em espaços como escola, casa e, mais recentemente, parques e
play grounds.

A produção do campo pouco focaliza a visão do mundo social mais amplo e dimensão
política da ação da criança, restringindo-se ao seu contexto imediato e a temas correlatos a seu
cotidiano. Tal tradição opera com uma concepção de ação política infantil como manifestação
individual dos seus interesses, a ser ativada através de mecanismos de consulta e expressão

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A INFÂNCIA NOS TEMPOS DE CÓLERA

definidos pelo adulto. Tal é a perspectiva presente no documento da Declaração Universal dos
Direitos da Criança, fartamente criticada por seu eurocentrismo.

Uma segunda perspectiva faz-se presente em pesquisas voltadas para os estudos das crianças
marginalizadas do chamado Sul Global. A análise da ação política infantil volta-se para a
compreensão da participação das crianças no mundo social mais amplo, tendo em vista o lugar
social que ocupam. Trata-se de uma perspectiva coletivista, que contempla a participação das
crianças nas relações familiares, de trabalho e em movimentos sociais. Dentre estes,
destacadamente o estudo de movimentos organizados protagonizados por crianças, como dos
meninos de rua, crianças trabalhadoras, sem terrinha, na América Latina, África e Ásia. Em tais
estudos, frequentemente o termo utilizado não é participação, mas protagonismo, termo este ausente
nos estudos europeus. O termo busca ressaltar a dimensão política da participação, constituindo-se
não apenas como conceito teórico, mas como objetivo na ação político-educativa.

Ainda que tais movimentos busquem conferir um protagonismo à criança, reproduzem


muitas vezes modelos de participação adultocêntricos. Autores como Liebel (2012) e Taft (2015),
demonstram em suas análises dos movimentos de crianças trabalhadoras da Nicarágua e Peru, como
as crianças ressentiam-se das formas de participação e expressão nos encontros organizados dos
movimentos, excessivamente centrados na fala, demandando nos mesmos um maior tempo para o
brincar. Em trabalho anterior, junto com Carvalho, Accardio e Bizzoto (2019), analisamos como no
Encontro Nacional de crianças sem terrinha, realizado em Brasília em 2018, mesmo que os espaços
e tempos de debate dialogassem com tempos e espaços de oficina e brincadeira, as crianças
registraram em suas entrevistas preponderantementeas atividades lúdicas. Observou-se também
uma hierarquia nas formas de participação infantil, em que crianças que apresentavam um discurso
mais próximo da fala adulta, tinham maior protagonismo e reconhecimento.

Buscando avançar nesta reflexão, Oswell (2019) nos traz importantes questões e
provocações no seu texto: Whatspace for a childrenpolitics? (ou “Qual o espaço para uma política
da criança?”). O autor parte da seguinte questão, pouco presente no campo de estudos da infância:
como a criança cria, constrói, e atua politicamente? Mais exatamente, qual o espaço da política
infantil? A partir desta pergunta, questiona o conceito de atuação política presente nas reflexões
sobre a infância, fundada numa concepção tradicional que remonta a Aristóteles. Tal conceito
entende que a política se exerce na res publica, por cidadãos considerados providos de uma
racionalidade caracteristicamente adulta e masculina. Assim, a criança é entendida como incapaz de
ser um ator político, na medida em que a linguagem infantil não se centra na performance oral

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

(expressão de uma racionalidade adulta), mas no uso de outras linguagens de caráter coletivo, como
a corporal, atravessada por ruídos.

Para Oswell, não se trata de pensar a criança como ator político, nos termos que este é
significado pelo adulto, mas indagar sobre os limites da nossa concepção de ação política,
apontando outras expressões, como as infantis.

Nesse sentido, os canais de expressão política das crianças não podem ser calcados na
oralidade apenas, mas no recurso a outras linguagens e mídias. Deve-se partir não das formas de
expressão do adulto, mas das distintas sensibilidades infantis. Como destaca Taft (2015) em seu
trabalho sobre crianças trabalhadoras peruanas, estas comentam no decorrer dos encontros de
formação e ação política: “Os adultos falam demais”.

INFÂNCIA E POLÍTICA NOS TEMPOS DE CÓLERA

Pensando nesses pressupostos, algumas perguntas nos espreitam no momento presente:


como a criança entende e significa o mundo adulto, cindido entre disputas, afetos rompidos,
rompantes, gestos belicistas, definido pelas questões políticas? Como entende um mundo adulto em
cólera e ebulição?

Como significam as profundas mudanças no seu cotidiano, marcadas por um


encarceramento familiar e pauperização da experiência social, dados os riscos de contágio na
vivência do recolhimento provocado pelo coronavírus?

Estamos todos aqui e agora, independente de nossas escolhas ideológicas, a lidar com
emoções poderosas, convivendo e colidindo o tempo todo, dentro de nós mesmos: amor, ódio e
medo nos mobilizaram nestes últimos tempos e não sabemos o que fazer com estes sentimentos. E
a criança que a tudo assiste, não passivamente, mas com seus afetos e relações mobilizados?

O que sabemos sobre como a criança compreende, se situa e significa estes tempos do
cólera? Tentemos nos colocar na sua posição, para que possamos ouvir o que ela tem a nos dizer.

Muitos de nós aqui presentes, com certeza, vivemos situações de tensão, às vezes limítrofes.
E, provavelmente, o viveu na companhia de crianças que a tudo assistiam, sem muito compreender.
Nós adultos estamos, neste momento, mais preocupados em defender posições, deixando à sombra,
ou no silêncio, a experiência infantil de viver em tempos de cólera.

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A INFÂNCIA NOS TEMPOS DE CÓLERA

Pensemos nesta vivência no interior da família, apresentada para a criança como espaço de
afeto, comunhão e amizade. Mesmo que esta seja uma representação idealizada, ela se ancora em
alguns rituais de sociabilidade que lhe conferem sustentação, como os almoços de domingo. Aos
poucos, este ritual foi tomando outro sentido, não de partilha, mas de disputa por narrativas. Quem
está certo: o avô que conta histórias, a avó que faz biscoito, o tio que leva no parque, o irmão mais
velho que dá livros legais e diferentes, a prima grande que lê livros sem gravuras? Como neste
cipoal de afetos que se debatem, se situa uma criança? Como entender a dinâmica familiar que
irrompe em fúria, gritos e rupturas? Porque não vai mais encontrar o primo com que adora brincar,
com o tio carinhoso e calmo que, de repente, grita com os demais e se retira da cena prometendo
nunca mais voltar?

Mesmo dentro da casa, do núcleo familiar, tantas vezes a criança assiste a disputas por
narrativas, importante dizer, atravessadas por relações de gênero, sem que compreenda muito bem o
que está em disputa, ou de onde surgiu tanta raiva entre aqueles que proclamavam amor, mesmo
com eventuais conflitos.

A criança não apenas assiste a disputas, mas é convocada a acompanhar a manifestação e


posição dos pais, participando de passeatas, carreatas, que fazem parte da experiência social da
democracia. Ela ainda não escolhe com quem e porquê sai às ruas, acompanhada daqueles que
partilham uma visão de mundo com seus pais. A relação de afeto/poder com aqueles que dela
cuidam lhe dão referências e valores, grande parte das vezes absolutizados, para significar o mundo.

Ela também é ensinada, por exemplo, a fazer um gesto de empunhar uma arma, apertar o
gatilho para aqueles que seus pais ensinam serem inimigos. Ou aprende que o que ensina a
empunhar a arma é alguém do mal, que pode vir a dirigir a arma contra seus pais, ou ela mesma.
Medo e poder se misturam nestas dramáticas narrativas adultas.

Tais narrativas de violência são hoje acrescidas de narrativas outras, que falam da morte,
não como fenômeno individual, mas coletivo. Não como algo distante, mas que pode acontecer com
qualquer um, especialmente com seus avôs e bisavôs, por força de um agente microscópico.

Na vivência da pandemia, a realidade familiar cotidiana é rompida, não mais centrada na


escola da criança e trabalho dos pais, mas estes passam a ter seu tempo concentrado no espaço
doméstico, distante das atividades produtivas. A circulação pela cidade e seus espaços de lazer e
cultura restringe-se e vive-se um confinamento ao espaço da casa, num tempo que se alonga,
marcado pelo tédio. Não apenas a vida torna-se entediante e limitada, mas também é atravessada
pelo temor da morte, na figura abstrata e absurda de um vírus microscópico, presente nos corpos
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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

com os quais interage e cujo contato passa a ser restringido. A criança vive, sem muita preparação,
uma experiência limítrofe de brusca limitação afetiva e espaço/temporal.

Tais vivências são reproduzidas em suas narrativas no brincar. Através da brincadeira, ela
teatraliza a vida social, visando a dar sentido ao real. Busquei referência de estudos sobre como as
crianças significam o coronavírus. Em reportagens jornalísticas estrangeiras, indica-se que o tema
invade as brincadeiras infantis, nos diagnósticos de doença da brincadeira de médico, na criança
que põe o urso de brinquedo de quarentena na caixa de sapato, na brincadeira de pega-pega em que
deve tocar o colega, que passa a ser o portador do vírus. Ou mesmo nos processos de exclusão, tão
presentes nas brincadeiras coletivas, em que o excluído é posto em quarentena, nomeado como
portador do vírus. Ou em relatos de escolas em que as crianças orientais passam a ser segregadas e
excluídas. A brincadeira é também reprodução de estereótipos e preconceitos, no que chamamos de
bullying.

EDUCAÇÃO INFANTIL E POLÍTICA

Estas questões nos provocam a problematizar como trabalhamos a dimensão política da vida
social com as crianças, entendendo que esta é atravessada por disputas, as quais elas buscam
compreender. O conhecimento do mundo social que trabalhamos na educação infantil (quando
trabalhamos), tem recentemente tematizado a valorização dos sujeitos em sua diversidade, suas
ancestralidades, destacando-se a importância de respeitar as diferenças e os diferentes. Porém, tais
diferenças são atravessadas por relações de poder, exclusão e violência, que não são tematizadas
nas práticas curriculares da educação infantil, embora sejam vividas e observadas em seu cotidiano.

Nesse sentido, cabe chamar atenção para a escuta da criança. Tal escuta implica tanto
refinarmos nossas estratégias metodológicas, quanto as perguntas que lhe fazemos. “O que acha de
fulano”, “o que pensa de Beltrano” não me parece a melhor pergunta a ser feita neste contexto, para
entender como as crianças significam a política. Muito menos reproduzirmos rituais democráticos
adultos, mimetizando eleições, em que as crianças, grande parte das vezes, apenas reproduzem as
escolhas das pessoas pelas quais sentem afeto. Tais atividades, em seu simplismo, revelam o gozo
de vermos reproduzidas pela criança as nossas falas, o orgulho da colonização infantil do nosso
discurso. Não se tratam de atividades de escuta ou formação política de fato.

Um aprendizado da política deve considerar, no trabalho com as crianças, o seu


desenvolvimento, através de práticas cotidianas, de valores ligados à cidadania, como respeito,
solidariedade, democracia, igualdade. Nesse sentido, cabe pensar a escola como um espaço de

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A INFÂNCIA NOS TEMPOS DE CÓLERA

desenvolvimento da ação política, através do seu exercício cotidiano. Cabe-nos indagar: como a
democracia é exercida no cotidiano da educação infantil? Como se dá a consulta às crianças nas
decisões que definem seu cotidiano? Que práticas de solidariedade são desenvolvidas no dia a dia?
Que visibilidade damos aos diferentes sujeitos (porteiros, auxiliares, profissionais da faxina)
presentes na escola e como os tratamos? Como as crianças os tratam? Como as crianças participam
das atividades de cuidado e preservação da escola?

Novamente, não se trata de ensino destes valores, através de sua transmissão oral, mas do
seu exercício, sem desconsiderar conflitos e diferenças.

Por outro lado, é importante apresentar para as crianças as diferentes posições sobre um
determinado tema, provocando sua reflexão e ampliando suas referências para além daquelas
presentes nos núcleos familiares, compreendendo que existem diferentes visões de mundo.

Quero finalizar trazendo uma questão. No exercício da escuta, o que as crianças podem nos
ensinar sobre a ação política? Quero relatar uma situação cotidiana, narrada por um amigo, à época
da eleição, que nos indica questões para pensarmos a relação criança e política. Ele falava-me da
difícil convivência doméstica, em que sua posição política era distinta da esposa. Contava-me,
angustiado, como a filha, aos seus 10 anos, sofria com esta cisão, dividida entre dois sujeitos pelos
quais tinha especial afeto. Por outro, admirava-se com as lições de ética e coerência que dela
recebia, próprias da visão infantil, segundo a qual valores são valores, não existindo espaço para
incoerências.

Assim, narrou que, ao ver uma faixa de um candidato, este meu amigo fez um gesto com a
mão, levantando o dedo do meio. A filha prontamente criticou o que avaliou como uma agressão.
Noutra cena, passando por uma carreata adversária, os motoristas fizeram o mesmo gesto,
dirigindo-o a meu amigo, que tinha no carro o adesivo do candidato oposto. Ao criticá-los, ouviu da
filha: foi a mesma coisa que você fez outro dia.

Claro, sabemos que os valores éticos que devem balizar nossa ação política não podem ser
absolutizados, que em todos os seres humanos habita a contradição. Mas, na cobrança da criança
não mora um chamamento à ética como valor permanente? Uma necessária referência, da qual nos
distanciamos, na impossibilidade de escuta mútua? Ouvir as crianças, em suas ponderações éticas,
não nos ajuda a sermos melhores no exercício da cidadania e da política?

Finalizo com algumas questões: O que as crianças têm a dizer e, quem sabe, ensinar aos
adultos nos tempos de cólera? Como trabalhar valores éticos, quando deles os adultos abrem mão?

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DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

REFERÊNCIAS

GOUVEA, M. C; CARVALHO, L.; ACARDIO, F.; BIZZOTO, L. O protagonismo infantil no interior dos movimentos
sociais contemporâneos no Brasil. Sociedade e infâncias, [s.l.], v. 3, p. 21-63, 2019.

LIEBEL, M. Children’s Rights from Below. Cross-Cultural Perspectives. Londres e Nova Iorque: Palgrave
Macmillan, 2012.

OSWELL, D. What space for a children politics? Rethinking infancy in childhood studies. In: Spyrou & Rosen &
Cook. Reimagining childhood studies. London: Bloomsbury Academic, 2019. p. 199-211.

TAFT, J. Adults talk too much: intergenerational dialogue and power in the peruvian movement of working children.
Childhood, [s.l.], v. 22, n. 4, p. 460-473, 2015.

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DE CADA UM CONFORME SUAS POSSIBILIDADES,
A CADA UM CONFORME SUAS NECESSIDADES –
O ÚNICO MÉTODO POSSÍVEL PARA ALFABETIZAR

Rosaura Soligo
DIDÁTICA(S) ENTRE DIÁLOGOS, INSURGÊNCIAS E POLÍTICAS

DOIS SENTIDOS

Alfabetização é uma palavra que remete a dois significados diferentes, embora relacionados:
um deles é o processo pessoal do aprendiz da língua escrita e o outro é a prática de ensino cujo
propósito é favorecer esse processo. Entretanto, muitas vezes esses dois fenômenos são
considerados quase um só, como se, havendo uma prática de ensino, uma experiência de
aprendizagem necessariamente aconteceria, em consequência.

Ocorre que os professores alfabetizadores ensinam todos os dias, mas, como sabemos, nem
sempre suas propostas resultam em aprendizagem, prova incontestável de que o conhecimento não
nasce de uma relação direta entre estímulos (provocados pelas situações de ensino) e respostas
(produzidas pelos aprendizes).

Vejamos como esses fenômenos se dão.

A QUESTÃO DO MÉTODO

El camino se hace al caminhar.


Antonio Machado

Os sentidos principais evocados pela palavra método coincidem sempre com a ideia de passo
a passo, de procedimentos organizados para se obter um resultado – o método seria, assim, o meio
mais eficaz para se chegar a um fim desejado. Dessa perspectiva, quando a questão são os métodos
de ensino, então o resultado seria a aprendizagem daqueles para os quais se destinam.

Há uma lógica transversal a essas proposições, que se naturalizou com o tempo e que se
evidencia na conhecida expressão ensino-aprendizagem, uma expressão portadora da falsa ideia de
que ensino e aprendizagem constituem uma unidade, sugerida pelo traço de união. Os métodos
transmissivos se apoiam nessa proposiçãode que, para ensinar, basta transmitir conhecimento com
um bom método que apresente as informações de forma organizada, partindo do que é mais fácil
para ir avançando em direção ao que for mais difícil, e, para aprender, basta prestar bastante atenção
na informação assim apresentada para fixá-la na memória. Estudar, nesse caso, é retomar a
informação transmitida e ficar repetindo-a para si até memorizá-la.

Essa é a concepção que predomina na escola e na sociedade. Os diferentes tipos de formação


– escolar, acadêmica, profissional, religiosa – têm como referência essa mesma concepção
transmissiva, expositiva, e que é também autoritária, pois nela não há lugar para um aprendiz com

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conhecimento prévio, com uma história, com suas próprias experiências – é como se entre a
informação transmitida e a informação assimilada não houvesse um sujeito que constrói
conhecimento conforme suas reais possibilidades.

De acordo com essa concepção, que o mestre Paulo Freire chamava de bancária, o método é
um modo de transmitir informação para toda e qualquer pessoa, e será tanto mais eficaz quanto
mais funcionar igualmente para qualquer um, de preferência no mesmo tempo. O foco, portanto, é o
ensino do que se pretende ensinar, não é a aprendizagem de pessoas singulares.

Vamos agora considerar uma outra perspectiva: a de que o método é sim um caminho que
leva a um resultado, que quando se trata de um método de alfabetização esse caminho só será
pertinente se considerar verdadeiramente as possibilidades e necessidades dos aprendizes – sejam
crianças ou adultos – e que, tal como nos ensina Antonio Machado, o caminho só se faz ao
caminhar.

Assim entendido, só haveria um método – um caminho – pertinente de alfabetização: aquele


que vai se constituindo como resposta ao que os aprendizes podem e conseguem aprender – e não
pela apresentação organizada de informações iguais para todos.

Assim considerado, de forma oposta à convencional, um método nada tem a ver com
transmissão de informações de maneira organizada, que se apresentam da mais simples para a mais
complexa, com livros didáticos a serem seguidos linearmente, página a página, tampouco com
propostas prontas a serem realizadas igualmente por todos, no mesmo tempo, mediante as mesmas
intervenções, com expectativas idênticas de desempenho. Ainda mais no processo de alfabetização
inicial...

“De cada um conforme suas possibilidades, a cada um conforme suas necessidades”. Essa
afirmação de Karl Marx, embora a princípio não diga respeito à pedagogia, mesmo que não se tenha
consciência disso é o pressuposto que fundamenta propostas pedagógicas centradas no sujeito da
aprendizagem. Sim. O melhor método para a aprendizagem é aquele que se constitui a partir de
propostas e intervenções pedagógicas ajustadas àqueles para os quais se destina.

Depois de tudo o que pudemos compreender nas últimas décadas sobre como aprendem as
crianças e adultos quando se alfabetizam, esse é o único sentido aceitável ao se falar de um método
de alfabetização: um caminho que se faz ao caminhar, considerando os sujeitos singulares em
processo de aprendizagem, sempre conforme suas possibilidades, sempre conforme suas
necessidades.

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Não é casual que as propostas de alfabetização organizadas a partir das contribuições da


Psicogênese da Língua Escritai – que deslocaram substantivamente o foco do ensino de conteúdos
para a aprendizagemdos alunos – não foram chamadas de métodos. Tampouco hoje se chamam
métodos as propostas com abordagens ativas, que se disseminam cada vez mais, constituindo uma
tendência no discurso pedagógico. Fala-se, nesse caso, em metodologias ativas. Referir-se a
métodos, no sentido convencional, seria um contrassenso, pelas razões já comentadas: quando o
foco se desloca do conteúdo do ensino para o sujeito da aprendizagem – ou, se preferirmos, do
ensino do conteúdo para a aprendizagem do sujeito – não se aplica um passo a passo ordenado, um
plano preciso de procedimentos, um método organizado nos moldes convencionais. Fala-se então
em metodologia, não como sinônimo de método cartesiano, mas como um caminho mais flexível,
menos prescritivo, apoiado em pressupostos gerais.

O fato é que uma abordagem metodológica que privilegia os processos de aprendizagem dos
alunos é incompatível com um modelo prescritivo de passos para apresentar o conteúdo de forma
progressiva mediante uma lógica alheia a eles.

Sim. Porque nesse território o caminho só se faz ao caminhar, e não por uma linha já traçada
previamente conforme critérios externos à vida real que acontece com as pessoas concretas que
protagonizam a cena, instituintes dos processos que vivem, e não apenas por eles instituídas.

Em se tratando da alfabetização inicial, portanto, os velhos métodos são indefensáveis,


sejam eles analíticos, sintéticos ou mistos. Método Silábico, Método da Soletração, Método Global,
Método Fônico ou Método das Boquinhas (chamado também de “neuroalfabetização”) são todos
compostos de prescrições ordenadas com o intuito de ensinar conteúdos predeterminados. Não são
propostas metodológicas baseadas em evidências científicas sobre os processos de aquisição da
língua escrita, tampouco são possíveis de ajustar às necessidades e possibilidades daqueles que
aprendem a ler e escrever. Mesmo que se afirme o contrário...

PROPOSTAS PERTINENTES

Todo o conhecimento científico produzido nas últimas décadas sobre como as crianças se
alfabetizam, e confirmado pela experiência de muitos professores que assumiram o desafio de
desenvolver uma prática pedagógica focada na aprendizagem, tem nos ensinado que é preciso
trabalhar, cotidianamente, de forma intencional e planejada – sempre em contextos de uso
significativo da leitura e da escrita, em situações diversificadas de letramento – com alguns
procedimentos específicos de alfabetização inicial. São eles:

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• Refletir sobre a relação oral-escrito em situações reais de leitura e escrita de textos;

• Desenvolver atenção às características da escrita a partir da informação de onde está


escrito o que se lê;

• Analisar as características do próprio nome e dos nomes de pessoas conhecidas;

• Utilizar, nas atividades de “ler para aprender a ler”, não só a decifração, mas também
estratégias de antecipação, inferência, seleção e verificação;

• Ajustar o que sabe que está escrito com a própria escrita (em textos poéticos
conhecidos de cor ou outros que permitam esse tipo de ajuste);

• Utilizar todo o conhecimento e os recursos disponíveis para fazer suposições sobre o


que pode estar escrito e encontrar palavras em textos poéticos conhecidos e em listas
verdadeiras – de coisas familiares, de respostas a atividades lúdicas e outros tipos de
listas que fizerem sentido;

• Utilizar todo o conhecimento e os recursos disponíveis para escrever da forma que


conseguir, sempre da melhor forma possível;

• Desenvolver atenção para o valor sonoro convencional das letras em situações reais
de leitura e escrita de textos;

• Escolher quantas e quais letras utilizar para escrever;

• Interpretar a própria escrita, justificando as escolhas feitas: por que sobram ou faltam
letras, por que elas parecem estar fora de ordem, por que parece estar escrito errado
conforme seu próprio critério;

• Analisar coletivamente diferentes formas de escrita produzidas pelos colegas;

• Refletir sobre escolhas diferentes feitas pelos colegas em situações de trabalho em


parceria;

• Produzir escritas em parceria quando a tarefa é escrever junto e cada um deve


colocar uma letra por vez, aprendendo a argumentar sobre as próprias ideias, ouvir as
justificativas do colega e rever as escolhas, quando for o caso;

• Tomar decisões diante dos desafios colocados por essas situações, confiando na
própria capacidade de fazer escolhas e arriscar respostas.

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São procedimentos essenciais para quem se alfabetiza, que devem ser aprendidos em
situações contextualizadas de uso da escrita como, por exemplo, escrever como conseguir, revisar
escritos coletivamente, encontrar palavras em textos poéticos conhecidos e listas que façam sentido
(que são formas de ler). Ou seja, situações-problema de fato desafiadoras – difíceis e possíveis ao
mesmo tempo – potencializadas pela interação em agrupamentos bem formados considerando os
saberes das crianças (e também das pessoas adultas, quando for o caso da alfabetização de adultos)
e suas possibilidades de trabalhar juntas produtivamente. Garantidas essas condições didáticas,
ainda mais se enriquecidas com boas perguntas, que ajudem a pensar e a estabelecer relações entre
o que já sabem e o que precisam saber, os aprendizes – sejam crianças ou adultos– não tardarão a
compreender o princípio alfabético da nossa escrita. Terão, assim, conquistado a alfabetização
inicial – que, embora seja apenas o início de um longo processo de construção de conhecimento,
representa um marco fundamental, um rito de passagem para que possam ler e escrever de forma
independente, com autonomia.

Para compreender a importância de garantir esse tipo de proposta na rotina das turmas de
alfabetização, basta pensar que a participação diária, por no máximo meia hora, em uma única
atividade como essas terá garantido, em 200 dias letivos, 100 horas (cem horas!) de reflexão focada
no funcionamento e nas regras de geração da escrita alfabética.

Mas se, ao contrário, as propostas forem de fazer cópia, treinar sons descontextualizados,
repetir e separar sílabas, reproduzir palavras com sílabas trabalhadas, formar frases, exercitar a
coordenação motora e outros procedimentos previstos pelos métodos convencionais, na prática isso
significará, a um só tempo, desconsiderar o conhecimento hoje disponível sobre os processos de
alfabetização, tratar as crianças com desrespeito intelectual, artificializar o processo de iniciação no
mundo da escrita, roubar delas um tempo precioso e, assim, retardar a sua aprendizagem.

Nossas crianças, definitivamente, não merecem tudo isso.

O que hoje sabemos sobre a alfabetização inicial – no que diz respeito à correspondência
fonema-grafema – indica, entre muitas, duas evidências importantes. Uma é que o conteúdo central,
nesse caso, é o princípio alfabético da escrita em português, um tipo de conteúdo conceitual
bastante complexo. E outra é que os demais conteúdos, necessários para compreender esse princípio
abstrato (que pressupõe, por exemplo, que partes não ouvidas isoladamente sejam representadas na
escrita), são os procedimentos específicos descritos acima, todos de análise e reflexão sobre a
língua, e não de memorização de unidades isoladas para juntar depois.

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Não é mais possível seguir desprezando essas evidências já bem antigas e continuar tratando
os conteúdos da alfabetização (isto é, tudo o que a criança precisa aprender), que não são nada
simples, como se fossem meras informações a se fixar na memória.

POLÍTICAS PÚBLICAS PERTINENTES

Nenhuma política pública relacionada direta ou indiretamente com a alfabetização inicial


será adequada se desconsiderar essas evidências que resultam do conhecimento científico
disponível há mais de três décadas. E considerá-las significa priorizar a formação de professores
como ação estratégica, uma vez que somente por essa via se poderá subsidiar os professores para
que ampliem seus conhecimentos, transformem suas concepções e desenvolvam práticas
pedagógicas apoiadas em outras ideias sobre como se aprende e, por decorrência, sobre como se
deve ensinar.

A defesa dos métodos de alfabetização convencionais e a oferta de materiais didáticos


(livros ou sistemas apostilados), como muitas administrações públicas e escolas privadas têm feito,
acabam sendo uma forma equivocada de buscar soluções, pois se apoiam em uma avaliação
simplista do problema e, além disso, reforçam justamente o que deveriam combater. Sim. Os
professores alfabetizadores precisam ampliar cada vez mais a capacidade de ajustar as propostas de
alfabetização inicial aos alunos reais que compõem as suas turmas e isso não acontece obrigando-os
a trabalhar com os velhos métodos (que nos últimos tempos têm aparecido com trajes
aparentemente novos, coloridos, neurodidáticos), com materiais de uso linear e com planilhas de
avaliação contínua de desempenho.

O imprescindível é que os professores alfabetizadores possam se tornar sabidos, seguros e


talentosos para trilhar os caminhos que se fazem ao caminhar. E, para tanto, precisam desenvolver
saberes de diferentes tipos, relacionados tanto à cultura geral, à cultura profissional e às diferentes
dimensões da educação como também – e talvez principalmente – relacionados os processos de
aprendizagem, aos conteúdos a ensinar e às mediações didáticas, que são constitutivos do
conhecimento para a docência. Esse tipo de conhecimento, muitas vezes negligenciado nas ações de
formação, tem três dimensões necessariamente inter-relacionadas – teórica, prática e experiencial –
que dizem respeito a:

• como planejar o trabalho a longo, médio e curto prazo;

• como organizar racionalmente o tempo;

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• como articular objetivos de ensino e objetivos de realização dos alunos;

• como criar situações que aproximem, o máximo possível, “versão escolar” e “versão
social” das práticas e dos conhecimentos que se convertem em conteúdos
curriculares;

• como selecionar as formas mais adequadas de organizar os conteúdos – atividades


permanentes, atividades de sistematização, sequências de atividades, projetos;

• como selecionar materiais adequados;

• como ensinar conteúdos de diferentes áreas;

• como organizar o espaço em função das propostas de ensino e aprendizagem;

• como mobilizar a disponibilidade dos alunos para aprender;

• como realizar a gestão da sala de aula, principalmente quando é muito heterogênea;

• como favorecer a construção da autonomia intelectual dos alunos;

• como atender às diversidades na sala de aula;

• como agrupar os alunos de forma produtiva para que trabalhem cooperativamente e


aprendam uns com os outros;

• como avaliar o conhecimento prévio dos alunos e seus percursos de aprendizagem;

• como avaliar os resultados obtidos e redirecionar as propostas, quando não forem


satisfatórios, entre muitos outros.

Nesse sentido, pode-se dizer que o conhecimento para a docência, que é eminentemente
didático, é o conhecimento do como, relacionado às formas de ensinar mais e melhor, ou seja, a
uma intervenção pedagógica de qualidade.

Uma breve análise desse conjunto de saberes, nem sempre abordado suficientemente nas
ações de formação inicial e continuada, permite compreender por que a formação de professores
deve ser uma ação estratégica e prioritária para a qualidade do ensino e, portanto, ocupar um lugar
central nas políticas públicas para a educação.

Por melhores que sejam, nenhum sistema apostilado, nenhum livro didático, nenhum acervo
de materiais, nenhum currículo, nenhum sistema de avalição, nenhum mecanismo de
monitoramento e controle serão capazes, mesmo em conjunto, de substituir o conhecimento

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profissional dos professores, que só se pode conquistar com propostas adequadas de formação
inicial e continuada.

CONHECIMENTO PROFISSIONAL E HOMOLOGIA DE PROCESSOS

E o que são propostas adequadas de formação de professores?

São propostas que, do ponto de vista do conteúdo, garantem os saberes necessários para a
docência e, do ponto de vista da forma, se apoiam na mesma perspectiva metodológica
recomendada para as práticas docentes – isto é, propostas, também no caso dos profissionais,
ajustadas aos sujeitos para os quais se destinam. Afinal, em qualquer caso, de cada um conforme
suas possibilidades, a cada um conforme suas necessidades.

Esse tipo de abordagem pressupõe identificar quais são as lacunas de conhecimento que
apresentam os professores, o que se coloca como questões para eles, que desafios e dilemas
enfrentam no trabalho com os alunos. E pressupõe organizar os conteúdos da formação
considerando essas demandas reais, por meio de metodologias ativas que coloquem os professores,
de fato, no centro do processo formativo – e não situações transmissivas em que são meros
receptores de informação – em contextos favoráveis para a aprendizagem colaborativa, a parceria, o
fortalecimento do coletivo e o desenvolvimento do sentido de comunidade. Pressupõe, para tanto,
formadores capazes de colocar em prática essas propostas. Pressupõe, portanto, um amplo processo
de formação de formadores.

Como podemos ver, não há soluções simples para os complexos desafios que temos nesse
território.

REFERÊNCIAS

FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artmed, 1999.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.

MACHADO, Antonio. Poesías completas. [S.l.]: Ed. Madri – Espasa Calpe, 1973.

MARX, Karl. Crítica ao Programa de Gotha. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012.

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Notas de fim

i
Nesta obra paradigmática, Emilia Ferreiro e Ana Teberosky utilizam a psicolinguística contemporânea e a teoria de
Piaget para demonstrar como a criança constrói diferentes hipóteses sobre o sistema de escrita, antes de chegar a
compreender as hipóteses de base da escrita alfabética, oferecendo um subsídio único para professores, psicopedagogos,
linguistas e todos aqueles preocupados com a qualidade da aprendizagem (Conforme Google Books).

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