Pep Do Seso Do PT À Extrema Direita

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PRAIAVERMELHA

Estudos de Política e Teoria Social


PERIÓDICO CIENTÍFICO
DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ

O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL


NO CONTEXTO DO AVANÇO DO ULTRACONSERVADORISMO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
REITOR Roberto Leher
PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA Leila Rodrigues da Silva

ESCOLA DE SERVIÇO SOCIAL


DIRETORA Miriam Krenzinger Azambuja
VICE-DIRETORA Elaine Martins Moreira
DIRETORA ADJUNTA DE PÓS-GRADUAÇÃO Mavi Pacheco Rodrigues

REVISTA PRAIA VERMELHA


EDITORA-CHEFE CONSELHO EDITORIAL
Andrea Moraes Alves ufrj Angela Santana do Amaral ufpe
EDITORES ASSOCIADOS Antônio Carlos Mazzeo usp
Cleusa dos Santos ufrj Arthur Trindade Maranhão Costa unb
Paula Ferreira Poncioni ufrj Christina Vital da Cunha uff
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EDITORES AD HOC V.29 N.2
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Carlos Montaño ufrj
Ivanete Boschetti ufrj
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EDITORES TÉCNICOS Marcos César Alvarez usp
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Jessica Cirrota Maria Helena Rauta Ramos ufrj
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PRAIAVERMELHA
Estudos de Política e Teoria Social
PERIÓDICO CIENTÍFICO
DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
EM SERVIÇO SOCIAL DA UFRJ

v. 29 n. 2
2019
Rio de Janeiro
ISSN 1414-9184

Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 29 n. 2 p. 473-808 2019


A Revista Praia Vermelha é uma publicação semestral do Programa de Pós-graduação em
Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro cujo objetivo é servir como espaço
de diálogo entre centros de pesquisa em serviço social e áreas afins, colocando em deba-
te, sobretudo, os temas relativos às políticas sociais, políticas públicas e serviço social.

As opiniões e os conceitos emitidos nos artigos, bem como a exatidão, adequação e pro-
cedência das citações e referências, são de exclusiva responsabilidade dos autores, não
refletindo necessariamente a posição do corpo editorial.

CC BY-NC-ND 4.0
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/deed.pt_BR

Publicação indexada em:


IBICT - Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia
ccn.ibict.br
Base Minerva UFRJ
minerva.ufrj.br
Portal de Periódicos da Universidade Federal do Rio de Janeiro
revistas.ufrj.br

Imagem de capa: laphotopro/Pixabay

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

Praia Vermelha: estudos de política e teoria social/Universidade Federal do Rio de Janeiro.


Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – Vol.1, n.1 (1997) – Rio de Janeiro:
UFRJ. Escola de Serviço Social. Coordenação de Pós-Graduação, 1997-

Semestral
ISSN 1414-9184

1.Serviço Social-Periódicos. 2.Teoria Social-Periódicos. 3. Política- Periódicos I. Universi-


dade Federal do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Serviço Social.

CDD 360.5
CDU 36 (05)
PRAIAVERMELHA

O projeto ético-político do
Serviço Social do ciclo petista
à escalada da extrema-direita
The ethical-political project of Social Work from the PT cycle
to the extreme right-wing escalation

Mossicléia Mendes da Silva

Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 29 n. 2 p. 559-587 2019


PRAIAVERMELHA

RESUMO
Este trabalho trata do projeto ético-político do Serviço Social, rea-
lizando uma reflexão sumária sobre os tensionamentos e desafios
enfrentados pela profissão no sentido da sua defesa. Nos limites de
um rápido ensaio, são retomados aspectos centrais do projeto éti-
co-político, abordados pontos básicos que caracterizaram o contexto
sociopolítico dos governos petistas e as contradições para o Serviço
Social. Por fim, delineiam-se problematizações ainda muito iniciais
do contexto de avanço do conservadorismo e sua consagração nas
eleições presidenciais, ao passo que se coloca em tela o acirramen-
to dos desafios ao projeto ético-político.

PALAVRAS-CHAVE
Projeto ético-político; conjuntura política; conservadorismo.

ABSTRACT
This paper deals with the ethical-political project of Social Work, making a brief
reflection on the tensions and challenges faced by the profession in the sense of
its defense. Within the limits of a quick essay, central aspects of the ethical-po-
litical project are taken up, basic points are identified which characterized the so-
cio-political context of the PT governments and the contradictions for Social Work.
Finally, some early context problematizations of the advance of conservatism and
its consecration in the presidential elections are outlined, while the challenges on
the ethical-political project are presented.

KEYWORDS
Ethical-political project; political conjuncture; conservatism.

Recebido em 16.01.2019
Aprovado em 24.04.2019

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

INTRODUÇÃO

Este breve ensaio tem por objetivo realizar uma reflexão sobre o
projeto ético-político do Serviço Social brasileiro, seus principais
fundamentos e especificidades, problematizando as tensões e pos-
sibilidades para seu fortalecimento a partir das forças sociais e po-
líticas em presença na dinâmica da luta de classes do capitalismo
dependente brasileiro, com um rápido recorte do ciclo petista e uma
iniciação à discussão do avanço da extrema-direita consolidada com
a eleição de Jair Bolsonaro.
O trabalho se organiza a partir de três eixos de discussão: no pri-
meiro, são retomados os elementos básicos que dão sentido e di-
reção ao projeto ético-político; em seguida, são problematizados os
determinantes político-conjunturais dos governos petistas e as ten-
dências do Serviço Social na direção do projeto profissional; por fim,
são feitos alguns apontamentos sobre a conjuntura que se consolida
no Brasil com a ofensiva ultraconservadora, consagrada nas urnas
com a eleição de um candidato de extrema-direita, ao tempo que se
problematiza o agravamento das condições histórico-concretas para
defesa do projeto ético-político.

PROJETO ÉTICO-POLÍTICO: REVISITANDO SEUS FUNDAMENTOS


Quando se trata de projetos profissionais, remete-se a determinada
construção coletiva realizada por uma categoria profissional, que
particulariza a direção social da inserção desta categoria numa dada
sociedade.
[...]apresentam a autoimagem de uma profissão, elegem os valores
que a legitimam socialmente, delimitam e priorizam seus objetivos e
funções, formulam os requisitos (teóricos, práticos e institucionais)
para o seu exercício, prescrevem normas para o comportamento dos
profissionais e estabelecem as bases das suas relações com os usuá-
rios de seus serviços, com as outras profissões e com as organizações
e instituições sociais privadas e públicas [...] (NETTO, 2006, p. 144).

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PRAIAVERMELHA

Os projetos profissionais são atravessados, influenciados e me-


diatizados pelos projetos societários e pelos distintos interesses
dos quais são portadores. O projeto ético-político assume valores
universais e humanistas, cujo horizonte é a emancipação humana.
Iamamoto (2009) afirma que, ao adotar esses valores – universais
–, a profissão transcende os meros interesses corporativistas. Ainda
que defenda as prerrogativas profissionais, “[...] o projeto os ultra-
passa, porque é dotado de caráter ético-político” (p.27).
Segundo Teixeira e Braz (2009), os elementos constitutivos desse
projeto ganham visibilidade social por meio de determinados compo-
nentes construídos pelos(as) próprios(as) assistentes sociais, quais
sejam: a produção do conhecimento no interior do Serviço Social; as
instâncias político-organizativas da profissão; a dimensão jurídico-
-política da profissão. Além dessas dimensões, é fundamental des-
tacar, ainda, o exercício profissional, uma vez que o Serviço Social é
uma profissão eminentemente interventiva, e, portanto, o cotidiano
profissional é uma esfera imprescindível para legitimidade e visibili-
dade social.
O projeto está sempre determinado por mediações, as mais com-
plexas, balizado por uma das questões fulcrais na sua efetivação: o
estatuto assalariado através do qual o (a) assistente social se insere
na divisão sociotécnica do trabalho. Deste modo, é vital compreender
que entre a ideação desse projeto e sua materialização, o estatuto
assalariado é uma mediação indispensável.
Ao assumir como valor ético central a liberdade, referenda cate-
gorias a ela inerentes, isto é, a autonomia e plena expansão dos
indivíduos sociais, a justiça social, a ampliação da cidadania e da
democracia, bem como a luta pela eliminação dos preconceitos, de-
fesa dos direitos humanos, entre outros. Tal posicionamento implica
assumir o compromisso profissional de vinculação à construção e
à efetivação de outra ordem societária (nas possibilidades e limites
profissionais), cujas bases estão fincadas nos interesses da classe
trabalhadora.

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

Fundado na consolidação de uma apropriação densa da crítica


marxista da sociabilidade burguesa, o Serviço Social que desponta
nos anos 1990 é claramente uma profissão que recusa o conserva-
dorismo, faz uma crítica contundente à sociedade capitalista, vincula-
se organicamente aos movimentos sociais, tem ação protagonista na
construção das políticas sociais, faz fundamentadas e duras críticas
aos governos neoliberais, luta pelos direitos de cidadania, mesmo
reconhecendo seus limites no âmbito das contradições que funda-
mentam o Estado capitalista. Em suma, articula-se na atuação da
garantia dos ganhos da emancipação política – que incluem os di-
reitos de cidadania ou direitos sociais, mas aponta como horizonte
a possibilidade da plena emancipação humana, o que supõe apoiar
a luta dos trabalhadores e a ela articular-se no sentido da própria
revolução social.
Como se observa não é exatamente uma posição típica das cha-
madas profissões liberais. Não é também um projeto profissional fa-
vorecido pelo contexto da década de 1990, com a ofensiva neoliberal,
o refluxo do movimento dos trabalhadores, a investida sem tréguas
do capital financeiro sobre o Estado no sentido de privatização das
políticas sociais, restrição de direitos e aprofundamento da lógica
dependente do capitalismo Brasileiro, cujos fundamentos estão fin-
cados na superexploração da classe trabalhadora.
Todo contexto de destruição social da ofensiva neoliberal, na déca-
da de 1990, sobretudo nos governos de Fernando Henrique Cardoso
– apesar das duras perdas impostas aos trabalhadores do setor pú-
blico e do privado, da ofensiva contra os movimentos sociais e da
inobservância de muitos dos dispositivos, constituições, e leis orgâ-
nicas recém-aprovadas, como a Lei Orgânica da Assistência Social
–, não pôde solapar as bases combativas da categoria profissional,
que assumiu papel de destaque na construção e defesa das políti-
cas sociais.

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O CICLO PETISTA E AS CONTRADIÇÕES


QUE TENSIONARAM O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO
Iniciados os anos 2000, o PT chega à esfera mais alta do executi-
vo brasileiro sobre grande comoção social. Frações majoritárias da
classe trabalhadora veem na eleição de Lula um evento histórico e
catalisador de um novo tempo para o país. Movimentos sociais, seg-
mentos mais progressistas da sociedade, intelectuais e artistas de-
monstravam grande euforia na vitória do ex-operário (GARCIA, 2012).
Paradoxalmente, as classes dominantes não apresentavam sinal
de desespero com a eleição de Lula, o que era elucidativo da cer-
teza de que dispunham quanto ao fato de que o PT não levaria a
cabo nenhum projeto radicalmente reformista para o Brasil. Isto já
se insinuava nas próprias alianças compostas pelo PT para garan-
tir a eleição de Lula nas eleições presidenciais de 2002 e pela pró-
pria conduta do candidato Lula no pleito eleitoral, sobretudo, com a
“Carta ao povo Brasileiro” (BRAZ, 2004).
No decorrer do primeiro mandato do governo Lula, conforme do-
cumentado por Mendonsa (2012), há uma ampla inserção de assis-
tentes sociais nas diversas políticas sociais, inclusive com grande
relevância no Ministério do Desenvolvimento Social e combate à
fome, com destacada importância das intervenções do Serviço Social
na constituição da política de assistência social.
Ao longo dos períodos de presidência de Lula se aprofundaram
as contradições de um governo de conciliação de classes e a per-
manência dos principais pilares macroeconômicos da política de es-
tabilidade fiscal com anuência e apoio à hegemonia do capitalismo
financeirizado. Nesse contexto, parece ter o Serviço Social ficado
numa encruzilhada de complexa resolução. Por um lado, nunca antes
a profissão teve tanto acento no âmbito da elaboração de políticas
sociais, mormente a política de assistência social – e não por acaso
por que esta foi central para a estratégia político-governamental dos
governos petistas – , bem como também jamais se verificou uma
ampliação tão significativa do número de assistentes sociais requi-
sitado para execução das políticas sociais.

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

Uma breve retomada dos investimentos nas políticas sociais,1 o


crescimento do emprego formal, a ampliação de número de vagas
nas Universidades Federais, bem como a criação de programas de
bolsas e cotas para garantia de acesso de jovens pobres e negros à
Universidade, o investimento em programas de transferência de ren-
da e um crescimento econômico mais dinâmico davam a tônica de
um governo promissor e para alguns, até mesmo progressista. Esse
movimento é acompanhado pela criação de novos cursos de Serviço
Social no setor público, mas principalmente, no setor privado.
Por outro lado, vê-se ampliar as requisições de aligeiramento e
tecnificação da formação em Serviço Social,2 expansão de cursos na
modalidade de Ensino a Distância, bem como explodem as formas
mais precarizadas de inserção profissional para fazer frente, mormen-
te, às demandas da implementação do Sistema Único de Assistência
Social (SUAS). Em outra linha, a saúde – objeto de adensamento da
terceirização via Organizações Sociais e concessão de gestão como
no caso da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) –,
política com maior número de assistentes sociais no Brasil, também
aprofunda os meios de contratação mais precarizados.
Na Previdência Social, não se pode negar a importância dos con-
cursos para o INSS depois de perdas de quadros funcionais do
Serviço Social, o que favoreceu uma pequena recomposição do qua-
dro técnico do Serviço Social no INSS. Movimento que se retraiu no
último concurso de 2015, o que se observa na não contratação de
assistentes sociais que excederam o número de vagas, mesmo ha-
vendo demanda explícita no órgão.

1 Em Tese de Doutorado, Silva (2018) traz análise comparativa dos


Orçamentos da Seguridade Social com a Dívida Pública, por exemplo, e constata
que essa pequena retomada de investimentos de recursos federais nas políticas
sociais foi frágil e inconsistente, haja vista os diversos mecanismos acionados
pelo governo visando à retirada de recursos da Seguridade Social para metas de
superávit primário.
2 Não exclusivamente para o Serviço Social, mas uma tendência geral das
requisições da profissionalização para as necessidades do capital.

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Em rápida síntese é possível identificar a encruzilhada para o


Serviço Social e seu projeto profissional: ao tempo que se amplia a
requisição da profissão, seguida de uma importante divulgação, re-
conhecimento e legitimação da categoria face à própria dinâmica de
expansão das políticas sociais, se coloca no campo denso das contra-
dições a forma incipiente, precarizada, focalizada e restrita como as
políticas são desenvolvidas, bem como a direção social de que são ob-
jeto e os impactos disso na própria limitação do Serviço Social aos tra-
ços mais tecnicistas, burocráticos e assistencialistas de sua atuação.
Teriam sido os governos petistas o momento mais propício ao pro-
jeto ético-político do Serviço Social ou teria o Serviço Social caído
nas artimanhas da cruzada político-ideológica que assentavam as
bases do governo de conciliação de classes, cuja estratégia central
para intervenção sobre as expressões da questão social foi o de-
senvolvimento de uma política social focalizada e seletiva, com forte
acento nas estratégias de alívio à pobreza? Não há resposta estan-
que, mas isso demanda algumas reflexões.
A profissão passou sim por um processo importante de expan-
são e as pautas dos governos petistas em torno das demandas da
classe trabalhadora, ainda que restritas e limitadas, deram bases
importantes para que o projeto profissional do Serviço Social manti-
vesse a direção ético-política de suas entidades profissionais, com
algum espraiamento na categoria profissional como um todo, o que
não significa sinalizar uma completa efetivação daquele projeto. Até
por que, como ideação coletiva este não é um projeto para efetiva-
ção prática, mas um processo social, político, cultural e intelectual
que norteia o ser profissional do Serviço Social. A luta em torno do
projeto ético-político é sempre uma luta por expansão das bases so-
ciais de possibilidades à plena emancipação humana, o que supõe
a construção de outra ordem societária e esta não é possibilidade
histórica ao Serviço Social, posto que uma atividade histórica do su-
jeito coletivo que é a classe trabalhadora.
Mas o que se quer evidenciar é justamente a contradição que
se coloca num contexto sociopolítico em que a própria classe tra-

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

balhadora é parcialmente absorvida em um governo que se alinha


ao apassivamento dos movimentos sociais e ao aparelhamento de
entidades representativas da classe trabalhadora. Por que, se por
um lado o Serviço Social tem na luta de classes um fator decisivo
para a direção do projeto ético-político, também tem na sua autono-
mia relativa importantes possibilidades para imprimir direção social
emancipatória à sua atuação profissional.
Como coletivo não homogêneo, mas permeado por disputas, o
Serviço Social brasileiro passou os governos petistas no cerne de
contradições que são próprias da sociedade capitalista, sob o ca-
pitalismo dependente brasileiro e a estratégia petista de gestão da
crise do capital, e contradições que, resultantes dessas outras, são
próprias da categoria profissional.
Nesse sentido, ao tempo que se processou uma intensa amplia-
ção de assistentes sociais atuando nas políticas sociais, o debate
e as críticas ao governo petista ganhavam fôlego no Serviço Social
à medida que se acentuava a agenda contrarreformista do PT.
Não foram pouco significativos os embates da categoria na avalia-
ção dos governos petistas, sobretudo no que se relacionava à dire-
ção dada à política de assistência social. Os ganhos em termos de
normatização, legitimidade e institucionalidade, bem como o fato não
menos importante do lugar que tal política passou a ocupar no orga-
nograma do Governo Federal e, principalmente, o modo como essa
construção contou com vanguarda de assistentes sociais, atuando
na formulação, implementação e gestão da política em nível nacio-
nal, endossavam os argumentos do grupo profissional à frente des-
se processo de que a política de assistência social havia chegado
a um patamar de grande importância no Brasil e que para o Serviço
Social isso teria sido decisivo. Não há como contestar os avanços
alcançados no campo da assistência social, mas uma espécie de
superdimensionamento desses ganhos minimizava as dificuldades
e os limites concretos da direção social dada à assistência social
nesse período. Ao tempo que importantes trabalhos apontavam para
o desmonte da seguridade social (MOTA, 2008; RODRIGUES, 2011;

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BEHRING, 2013; SALVADOR, 2017, entre outros), demonstrando sua


corrosão via desfinanciamento, focalização das políticas sociais e a
centralidade da política de assistência social.
Também estudos importantes como o de Boschetti, Teixeira
e Salvador (2013) apontavam uma dinâmica orçamentária que a
despeito de ampliar os recursos na política de assistência social,
canalizava fração majoritária desses recursos para os programas as-
sistenciais de transferência de renda, ao passo que o SUAS padecia
de infraestrutura precária e difíceis condições de trabalho para os
profissionais, com pífia qualidade dos serviços socioassistenciais.
Adensou-se o debate sobre a tese da “assistencialização da se-
guridade social”. Mota (2011) indicava que estavam em processo a
privatização da saúde e previdência social e a construção da lógica
do cidadão-consumidor, assim como a centralidade da Assistência
Social e nesta direção, “[...] As políticas de seguridade social brasi-
leira longe de formarem um amplo e articulado mecanismo de pro-
teção, adquiriram a perversa posição de conformarem uma unidade
contraditória [...]” (MOTA, 2008, p. 133).
Sposati (2011), em direção analítica contrária, defendia os ganhos
da política de assistência social e combatia enfaticamente a ideia de
assistencialização. Ao denominar a precarização da política de assis-
tência social como assistencialização, defendia Sposati, se termina
por atribuir um caráter negativo à área, dissemina-se a ideia de que
precarização é natural da assistência social e inerente a ela. “Sob
esse modo de ver, a presença da Política de Assistência Social seria
nefasta à sociedade brasileira e, até mesmo, às políticas sociais em
geral e, especificamente, à seguridade social” (p.35).
O que se colocava como mais grave nesse processo que estava
na base daquela encruzillhada a que se aludiu, é que o movimento
em torno da centralidade e expansão da assistência social e a im-
portância do Serviço Social nesse processo provocavam inflexões
importantes do ponto de vista da diferenciação entre a profissão e
a política social. Este talvez tenha sido um dos grandes enredos nos
quais o Serviço Social pelejou: diferenciar a expansão da assistência
social da possibilidade concreta de solidificar o projeto ético-político.

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

Essa contradição latente atravessa a primeira década dos anos


2000 e gira em torno dos riscos reais de transformação da assis-
tência social em um fetiche, um “mito” e de assimilar seus frágeis
avanços como um avanço do próprio Serviço Social.
Não se pode negligenciar, no entanto, que também a pauta das
minorias, a agenda em torno das demandas de grupos historica-
mente oprimidos como mulheres, negros, população LGBT ganharam
campo mais amplo para disputa e, mesmo com as limitações de
um governo de conciliação de classes de inclinação moderada à es-
querda, pleitearam e angariaram algumas de suas reivindicações. A
despeito do processo de criminalização da pobreza e do aumento do
encarceramento, pautas elementares às democracias liberais clássi-
cas ganharam alguma ressonância numa sociedade extremamente
conservadora como a brasileira, ou em outros termos, a “democra-
cia blindada” permitia uma série de direitos civis e democráticos e
uma gama de liberdades consensuais para manutenção do regime
(DEMIER, 2018).
Em suma, o período que comportou os mandatos de Lula até iní-
cio do segundo governo Dilma, mesmo face às contradições já si-
nalizadas e aos claros limites da agenda política assumida pelo PT,
acoplava uma série de determinações mais ou menos favoráveis a
uma disputa possível para hegemonia do projeto ético-político do
Serviço Social; na medida em que suportava uma movimentação
ativista em prol dos direitos e liberdades liberais clássicas, fazendo
anuência a pautas progressistas e até mesmo assimilando no apa-
rato estatal medidas para enfrentar alguns desafios das demandas
das chamadas minorias. Assim, o ciclo petista galvanizava possibi-
lidades democráticas de livre oposição das camadas políticas mais
à esquerda ao seu projeto burguês de gestão da crise do capital no
capitalismo dependente brasileiro, o que parece ter sido muito im-
portante para manter viva a disputa em torno do projeto ético-político
do Serviço Social.
O agravamento da crise capitalista implica sempre duras ofensi-
vas contra a força de trabalho em favor da recomposição do capital.
O projeto político-econômico encabeçado pelo PT permitia alguma

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acomodação com as demandas da classe trabalhadora, sobretudo


sua fração mais empobrecida – expondo seus limites tangentes. Tal
projeto começou a mostrar esgarçamento a partir das jornadas de
junho de 2013 e assumiu expressão radicalizada na disputa acirrada
das eleições presidenciais em 2014, resultando na vitória de Dilma
para seu segundo mandato.
A pauta central dos debates girava em torno de impetrar as con-
trarreformas para fazer frente à crise econômica mundial ou manter
os “avanços sociais recentes”, com prioridades para a política social.
Com a defesa desta última plataforma, Dilma chegou à presidência
com uma margem mínima de maioria, um oponente inconformado e
uma direita raivosa, sedenta por embargar o exercício do mandato
legítimo da presidenta. A intensa pressão política e econômica colo-
cava o governo Dilma na iminência do colapso, quando a presidenta
começou a fazer uma brusca rotação à “centro-direita”, passando
a aplicar justamente o conjunto de medidas de arrocho fiscal e a
consequentemente contrariar o compromisso firmado em campanha.
Desta feita, aqueles “pacotes de maldades” que já se colocavam
como ameaça real à classe trabalhadora brasileira para 2015, “inde-
pendentemente de quem vencesse as eleições”, acabaram sendo de
“interesse do próprio PT e dos setores econômicos que sustentavam
o poder [...]”, a fim de aproveitar a conjuntura de forte instabilidade
para aprovar “várias medidas de interesse do capital e do governo,
sem que a classe trabalhadora se rebelasse e conseguisse barrar
os ajustes” (QUEIROZ, 2016, p. 536).
Enfim, procedeu-se à cartilha neoliberal de primeira linha, impac-
tando sobre direitos da classe trabalhadora, programas e políticas
sociais e sob as condições de vida da classe média. Entre 2015 e
2016 tendências fortemente contrarreformistas foram empregadas
pelo governo Dilma e seu Staff técnico,3 de clara direção liberal con-
servadora ao mais afinado gosto do mercado financeiro em um con-
texto de iminente caos político.

3 Note-se, por exemplo, a nomeação de Joaquim Levy, exímio seguidor das


orientações neoliberais da Escola de Chicago, para Ministro da Fazenda.

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

DO IMPEACHMENT À VITÓRIA ELEITORAL DA EXTREMA-DIREITA:


ALGUNS ELEMENTOS INICIAIS PARA PENSAR SOBRE
OS DESAFIOS AO PROJETO ÉTICO-POLÍTICO
A irrupção de escândalos de corrupção e uma investida sem trégua
da direita e extrema direita contra o PT tornavam o contexto do se-
gundo governo Dilma insustentável. Neste ínterim, estavam postas
condições históricas favoráveis à expansão do mais aberrante veio
conservador da sociedade brasileira, que capitaneado pela ala polí-
tica mais interessada na queda de Dilma – inclusive sua base aliada,
o PMDB, sob batuta de Michel Temer –, tornou-se uma das molas
propulsoras do impeachment.
A despeito de divergências jurídicas quanto à condução e ao mérito
do processo – corretamente qualificado como golpe de estado ins-
titucional, dada a inexistência da qualificação definitiva do crime de
responsabilidade, constitucionalmente punível com o impeachment –
acionado em meio ao maior escândalo de corrupção generalizada já
registrado na história do país – envolvendo os mais altos escalões
dos principais partidos políticos, altos dirigentes de estatais e vários
executivos de empreiteiras e grandes empresas privadas – o efeito
social e político dele foi uma espécie de reprodução, à brasileira, da
ascensão do conservadorismo na conjuntura internacional (SOUZA,
2016, p. 273-274).

Assegurada pela mais alta cúpula do grande capital e pelos gru-


pos de mídia massificadora, essa investida conservadora consolidou
o impeachment de Dilma Rousseff da Presidência da República. A
chegada de Temer ao Planalto Central, conjugado com um Parlamento
expressivamente conservador e majoritariamente denunciado nos
processos de investigação sobre corrupção, marca a ascensão de
uma ofensiva ultraliberal de largas proporções. Sob a falácia do
combate à corrupção, da necessidade de ajuste das contas públi-
cas e do enfrentamento à crise econômica, o governo Temer passa
a implementar uma série de medidas, cujo impacto social tem se
mostrado desastroso.

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PRAIAVERMELHA

Esse contexto da ascensão do conservadorismo e da escalada da


extrema-direita4 ganha ampla envergadura. Mota (2017) assinala que
na segunda década do século XXI, o aprofundamento da crise do ca-
pital, a queda tendencial da taxa de lucros e a hipertrofia do capital
financeiro fornecem o lastro para emergir, ressignificada, “a cultura
da crise” – uma cultura política levada a efeito pela burguesia e seus
intelectuais, referenciada nas diretrizes neoliberais, robustecida pela
desqualificação genérica da esquerda, pelo fenômeno da corrupção
espetacularizado midiaticamente e pelo conservadorismo moral da di-
reita, ampliando as estratégias materiais e ideológicas necessárias à
formação do consenso das classes subalternas (MOTA, 2017, p. 41).

Desde as manifestações massificadas contra o governo Dilma já


em 2015, ficavam evidentes as bases conservadoras e reacionárias
que conseguiam capitalizar a insatisfação de camadas importantes
da sociedade brasileira, com destaque para as camadas médias, mas
também com impacto importante sobre frações da classe trabalha-
dora. O caráter violento dessa guinada conservadora apelava para:
pedidos de retorno e saudações ao regime cilvil-empresarial-militar
instaurado em 1964, agressões físicas e verbais e perseguições a
militantes petistas ou de esquerda, discurso anticomunista, ufanis-
ta, nacionalista e elitista, além das posições manifestas em caráter
religioso e contrário às reivindicações do movimento feminista, LGBT
- lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros, e de negros
(SOUZA, 2016, p. 276).

O governo de Michel Temer aglutinou uma série de medidas seve-


ras para classe trabalhadora ao tempo que as forças políticas mais

4 Na esteira de tendências internacionais que marcam a expansão da ex-


trema-direita nos países europeus desde 2010, desde os abertamente fascistas
até os mais “moderados”. Também a eleição de Donald Trump para presidente
dos Estados Unidos, joga água nesse moinho de ultraconservadorismo de direita
e em sua consolidação frente a importantes países capitalistas.

572 R. Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v.29, n. 2, p. 559-587, 2019


O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

reacionárias junto a determinados segmentos da elite jurídica do


país – com anuência do STF – consolidava o cerco político-jurídico
em torno de Lula para impedir sua candidatura ao pleito presiden-
cial, culminando na sua prisão.5 Por outro lado ganhava envergadura
a candidatura de Jair Bolsonaro, expoente exímio do projeto da ex-
trema-esquerda brasileira. A burguesia conservadora do capitalismo
dependente brasileiro, historicamente antidemocrática e pouco per-
meável aos interesses populares, na sanha de acelerar a recomposi-
ção do capital nessas latitudes, sem nem mais comportar as tímidas
melhorias que os governos petistas ofereciam aos trabalhadores em
troca do consenso social democrático, acabava por assimilar a pauta
ultraconservadora de Jair Bolsonaro e seus congêneres, posto que
seu representante original – o candidato Geraldo Alckmin do PSDB –
não deslanchava na campanha presidencial.
Assentado num discurso conservador de extrema-direita, sedimen-
tado sob a estratégia de disseminação de ideias e falas de efeitos
nas redes sociais e apoiado pelas forças mais conservadoras da
sociedade brasileira – com destaque para as igrejas evangélicas e
segmentos da igreja católica – Bolsonaro angariava cada vez mais
apoio do eleitorado, sobretudo em função do ódio ao PT sob a falácia
do combate à corrupção e à violência. Para completar, o candidato

5 A prisão de Lula é parte de um processo de recrudescimento antipopular


da democracia blindada brasileira, no qual seus traços bonapartistas, togados e
fardados, se intensificam gradativamente. Necessitando de agudas contrarrefor-
mas e de uma austeridade sem precedentes, o grande capital, uma vez assestado
o Golpe do impeachment, não se dispôs mais a tolerar o pacto, ou melhor, a con-
certação social que, com relativo êxito – para o capital – vigorara por quase toda
a duração dos governos petistas. Partido da concertação social por excelência, o
Partido dos Trabalhadores, e seu líder máximo, Lula, tiveram de ser retirados cele-
remente do jogo político, e todos os meios necessários para isso, legais ou ilegais,
foram devidamente usados. Depois do Golpe, as amarras constitucionais foram
rompidas, os pudores democráticos foram dispensados e para a burguesia tudo
parece então ser possível. O seu desejo anda solto, e seu flerte com o fascismo
já não é só virtual (DEMIER, 2018. Não paginado).

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PRAIAVERMELHA

do PSL foi vítima de um ataque violento – talvez um tanto mal expli-


cado – o qual parece ter acalorado e arrebatado ainda mais “mentes
e corações” em torno de sua candidatura.
O discurso tosco e violento do candidato saltava à vista, bem
como o viés ideológico conservador e reacionário da face mais acir-
rada da extrema-direita no Brasil, paradoxalmente assentado na fa-
lácia do candidato de que somente sua eleição ofereceria ao país a
possibilidade de se libertar da ideologia marxista e do “politicamente
correto”. O combate ao chamado “marxismo cultural”, a “ideologia
de gênero”, a liberação do porte de armas, a diminuição da maiorida-
de penal, a revisão da demarcação das terras indígenas, o combate
aos avanços da “ditadura LGBT”, bem como a constituição de outra
via de relações internacionais livre das amarras ideológicas endossa-
vam o discurso político do candidato, majoritariamente disseminado
por suas redes sociais, já que não compareceu a maioria dos deba-
tes, inclusive no segundo turno, ao tempo que conferia entrevistas
exclusivas a algumas emissoras de televisão.
A escalada absurda do ódio e da violência assentou as bases de
uma eleição que teve até mortes por brigas partidárias e sedimentou
os alicerces de uma extrema polarização política.
No rastro de radicalização do conservadorismo, evidenciam-se ações
concretas de expressão do ódio e da intolerância a tudo o que se
contrapõe aos pilares desse pensamento. São evocadas intransi-
gentemente a autoridade, a hierarquia, a ordem, a repressão e a
disciplina, em nome da família, da tradição e da igreja. Nesse clima,
intensificam-se os ataques a direitos conquistados, ameaçam-se os
pilares da democracia, ataca-se tudo o que é visto e entendido como
risco à ordem e harmonia social. Assim, gays, lésbicas, negros/as,
transgêneros, religiões de matriz africana, comunistas, socialistas,
presos/as, pobres, mulheres, entre outros/as, são vistos/as como
ameaças a serem exterminadas com repressão, violência e disciplina.
Instaura-se a defesa do justiçamento com as próprias mãos, evoca-se
a punição e o sofrimento (CARDOSO, 2016, p. 103).

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
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A guerra declarada à esquerda, aos movimentos sociais e a toda


pauta minimamente progressista se assenta num total irracionalis-
mo, que aliado ao improviso e ao despreparo do candidato vem dan-
do as rédeas de uma agenda que promete esmagar toda forma de
oposição. A esquerda saiu das eleições com uma duríssima derrota
e com profundas clivagens que se mostram difíceis de ser, senão
superadas, ao menos acomodadas6 para construção de uma oposi-
ção mais sólida e uma agenda antifascista.7 Bolsonaro e sua trupe
conservadora conseguiram capitular o ódio ao PT como mecanismo
de combate a toda esquerda ou quaisquer grupos sociais e políticos
que não sejam de direita.
Evidentemente, resgatam um velho ressentimento contra o intelectua-
lismo, identificado na classe artística, nos estudantes de universida-
de pública e, sobretudo, no ativismo LGBT, vistos como vencedores
da guerra pelos melhores postos do capitalismo contemporâneo e,
portanto, adversários a serem abatidos. Então, o significado político
não pode ser minimizado, pois não se trata apenas de uma derrota
eleitoral, mas a consagração eleitoral de uma vitória social. A esquer-
da, nos últimos anos, acreditou que a política se resumia à gestão
da precariedade, enquanto a economia permitia. A direita, por sua
vez, fez dela novamente guerra social, apelando aos afetos mais
recalcados da sociedade brasileira, que reagiu violentamente esco-
lhendo a autodefesa de seus valores conservadores (COSTA, 2018.
Não paginado).

6 Pode-se citar, por exemplo, a dificuldade de articulação encontrada pelo depu-


tado Federal Marcelo Freixo para articular sua candidatura para presidência da Câmara.
7 Não será aqui tratado do debate – ainda em construção – da compreen-
são do governo Bolsonaro como um governo fascista. De todo modo, o artigo de
ATILIO A. BORON (2019), intitulado: “Caracterizar o governo Bolsonaro como "fas-
cista" é um erro grave”, parece, neste momento trazer algumas elucidações im-
portantes. O artigo está disponível no link: https://dialogosdosul.operamundi.uol.
com.br/analise/54496/atilio-boron-caracterizar-o-governo-de-jair-bolsonaro-como-
-fascista-e-um-erro-grave

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PRAIAVERMELHA

Ao chegar à presidência da república, o governo Bolsonaro come-


ça a consolidar sua agenda nefasta para as demandas populares
e o caráter ultraconservador de sua plataforma de governo, robus-
tecido na sua explícita vinculação à Igreja,8 sobretudo à evangélica,
se manifestando a favor das opções mais bizarras e obscuras para
compor o alto escalão do governo federal. As bases deste escalão
vão desde as militares, passando por lideranças evangélicas, até as
ultra e neoliberais.
Em poucos dias de governo, já há um saldo perverso e preocupan-
te de assalto a direitos e extinção de pastas de trabalho importantes,
como o ataque à população indígena e quilombola com a transferên-
cia da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) para a pasta do Ministério
da Mulher, Família e Direitos Humanos; a mudança de responsabili-
dade pelo mapeamento, delimitação e demarcação das terras para o
Ministério da Agricultura; a retirada das ações destinadas à garantia
de direitos de gays, lésbicas, bissexuais, transexuais e demais gru-
pos LGBTs; a assunção de comando da política de Direitos Humanos
pela Ministra Damares; a exoneração de trabalhadores em função
da identificação de opções político-ideológicas desses contrárias ao
governo; a nomeação de seis participantes das tropas brasileiras na
invasão do Haiti, baseada na linha da militarização promovida pelo
bolsonarismo; a reestruturação do Ministério da Justiça, outorgan-
do novas atribuições ao ex-Juiz Federal Sergio Moro, como o extinto
Ministério do Trabalho que agora também passa a ser caso de justi-
ça; a divulgação do Decreto que facilita a posse de arma de fogo; o
avanço para viabilizar a reforma da previdência9 e a privatização de
empresas estatais; entre outras ações.
Uma das grandes frentes do “combate ideológico” do governo
Bolsonaro parece se localizar no Ministério da Educação, conside-

8 O Estado brasileiro, que nunca foi efetivamente laico e que sempre flertou
com o fundamentalismo cristão, ascende a um novo e perigoso patamar antide-
mocrático que mescla valores religiosos com militarismo.
9 Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/2019/01/12/ataques-aos-di-
reitos-recuos-e-confusoes-palacianas-marcam-primeiros-dez-dias-do-governo-bolsonaro/

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

rado reduto das ideias do tacanho ultradireitista Olavo de Carvalho,


expressas na alocação de pelo menos três de seus “discípulos”:
Ricardo Vélez, titular da Pasta, e os seguidores Carlos Nadalim e
Murilo Resende que ocupam, respectivamente, a Secretaria Especial
da Alfabetização e a Direção da Avaliação da Educação Básica do
INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira). De acordo com Jucá (2019), através dos três declarados
“olavistas ou olavetes”, as ideias e direção teórico-políticas do ultra-
direitista devem influenciar a política educacional da alfabetização à
Universidade, política esta que, grosso modo, faz jus à defesa da “esco-
la sem partido”, além de promover o combate à chamada “dogmatiza-
ção marxista” da Universidade pública, incentivar a sua privatização, o
cerceamento da liberdade e autonomia pedagógica, bem como expres-
samente intencionar a mudança dos meios de eleição dos reitores.10
As medidas são tomadas em meio à “cortina de fumaça” da “ba-
talha ideológica” que é a “ponta de lança da estratégia de Bolsonaro”
(ALESSI, 2019. Sem paginação). Enquanto a ministra Damares dis-
para a questão da demarcação de cores como padrão para definição
de gênero, na propalada frase “meninas vestem rosa e meninos ves-
tem azul”, Bolsonaro enceta providências e ações de cunho mais
profundo e danoso, talvez irreversíveis, que concorrem para a dizi-
mação de direitos e expropriações de toda espécie. Conforme ates-
ta o antropólogo Piero Leirner, em entrevista ao El País, a estratégia
simbólica de Bolsonaro também pode estar atrelada a outra, que é
mais complexa, significando mais um prolongamento das táticas de
campanha. Trata-se de mais “uma dessas cortinas de fumaça que
força uma polarização com setores ‘identitaristas’ e toda uma sorte
de agentes, sejam políticos, blogs, imprensa, e ‘famosos’”, o que
teria dois objetivos principais:
Em primeiro lugar oblitera todas as ações, que estão sendo realiza-
das a toque de caixa na colonização de setores estratégicos, como

10 O Ministro da Educação quer mapear ideologia de reitores das Universidades.


Disponível em: https://www.bahianoticias.com.br/noticia/231235-ministro-da-educa-
cao-quer-mapear-ideologia-de-reitores-de-universidades-diz-coluna.html

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energia, tecnologia, educação, geopolítica e relações exteriores, meio


ambiente e bem-estar da população, que definem pontos críticos de
soberania. Em segundo lugar continua dando combustível para a po-
pulação que se galvanizou em torno dessas pautas comportamentais
(LEIRNER, 2019. Não paginado).

Conforme atesta Barroco (2015), a hegemonia do projeto ético-


-político do Serviço Social brasileiro depende do fortalecimento e do
alargamento dos avanços e conquistas democráticas tanto da cate-
goria quanto da base social que orienta a direção política da inter-
venção dos(as) assistentes sociais, quais sejam: “as forças sociais
que lutam pela emancipação articuladas aos trabalhadores e às lu-
tas sociais” (BARROCO, 2015, p.630).
Não restam dúvidas de que essas condições não estão postas
no contexto atual e essa onda ultraconservadora pode insuflar ten-
dências históricas de base conservadora do Serviço Social que são
remanescentes e encontram-se latentes num ambiente favorável às
suas manifestações mais obscuras. Já durante a campanha elei-
toral não foram poucas as manifestações de assistentes sociais e
estudantes de graduação em Serviço Social demonstrando apoio e
declarando votos para o candidato do PSL, bem como surgiram gru-
pos nas redes sociais reclamando a retomada dos valores cristãos
para atuação profissional, assim como “a libertação dos cursos de
graduação” dos “dogmas do marxismo”.
Ora, o projeto ético-político, se não é resultado exclusivo do pro-
cesso de ruptura com o conservadorismo, sem dúvida tem suas
bases assentadas nele. Contestar a base conservadora significou
questionar substancialmente os fundamentos da profissão, proces-
so que não se realizou sem crises, dilemas, equívocos e tampouco
ocorreu de forma progressiva/linear e homogênea, passivamente. A
afirmação desse projeto crítico perpassa pela correlação de forças
que marca uma profissão em sua pluralidade. Sua hegemonia não
se consolida de forma imediata; pelo contrário, é mediatizada pelas
condições objetivas em que se realiza e pelas subjetivas que deter-
minam a autoimagem da profissão.

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

A ofensiva ultraconservadora do atual governo e as forças socio-


políticas que lhes dão sustentação concorrem para o espraiamento
de tendências conservadoras no âmbito da profissão, que colocarão
tensões mais densas e desafios ainda mais tangentes ao Serviço
Social. Além do que já foi aludido, basta retomar rapidamente al-
guns dos princípios que endossam o projeto ético-político do Serviço
Social brasileiro, expressos no Código de Ética Profissional de 1993
(BRASIL, 2012), deixando patente a lógica colidente e dramática dos
tempos que se consolidam.
O primeiro princípio, por exemplo, engloba o reconhecimento da
liberdade como valor ético central do projeto ético-político e das de-
mandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e plena
expansão dos indivíduos sociais. Este reconhecimento é a expressão
evidente de toda base teórica, filosófica e política da profissão do
Serviço Social: tem como horizonte a emancipação humana, o que
pressupõe a plena expansão dos indivíduos sociais.
Além de uma concepção mais ampla de indivíduo, esse princípio
reconhece a liberdade como categoria ontológica do ser social, a
qual permite o pleno desenvolvimento do gênero humano. Ela não
se restringe, mas pelo contrário, se diferencia radicalmente da liber-
dade formal inscrita nos limites da emancipação política, possibili-
tada pela perspectiva dos direitos na sociedade burguesa. De modo
radicalmente oposto àquela liberdade meramente individualista, a
liberdade “da propriedade privada”, aquela baseada na premissa de
que “o seu direito acaba quando começa o do outro”.
Se a liberdade – pensada sob os fundamentos da ontologia do
ser social – já é colidente com a lógica da sociabilidade capitalista,
é ainda mais cerceada e claramente atacada quando até mesmo a
oposição política, a existência da esquerda e dos movimentos so-
ciais passíveis de acomodação em regimes democráticos liberais
são colocadas como inimigos diretos do governo.
Neste sentido, o projeto ético-político é golpeado no seu núcleo cen-
tral – não que isto não fosse possível nos governos anteriores, mas
o atual contexto dramatiza e dá contornos de uma clara perseguição
político-ideológica e, inclusive, criminalizante. Quando o campo social

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PRAIAVERMELHA

das forças políticas tem um Estado cuja hegemonia e controle está


sob um grupo dominante reacionário e conservador, como é este de
extrema-direita, as liberdades fundamentais já estão solapadas e, por-
tanto, a liberdade concreta para plena expansão dos sujeitos sociais
fica com espaço limitadíssimo até mesmo para a disputa da direção
social da sociedade. O Serviço Social precisará cada vez mais agluti-
nar forças junto aos movimentos sociais e ganhar – pela pedagogia da
emancipação – cada um dos usuários com os quais atua diretamente.
Requerer-se-á um árduo e profundo trabalho de base – não no sentido
da militância exatamente, posto tratar-se de intervenção profissional,
mas justamente pelo significado político de tal intervenção. Mais do
que nunca será vital realizar esse trabalho pedagógico e mobilizador
com os indivíduos e grupos que demandam atendimento.
Também no princípio: “Defesa intransigente dos direitos huma-
nos e recusa do arbítrio e do autoritarismo” (BRASIL, 2012, p.23)
as questões são nodais. Tal princípio congrega duas séries de ques-
tões intimamente articuladas: 1) a recusa ao histórico autoritarismo
do Estado brasileiro e das classes dominantes, sobretudo àquelas
experiências desencadeadas pelo período ditatorial; observe-se que
esse princípio foi construído na recém-democratizada sociedade bra-
sileira, mas hoje ele recebe novos determinantes no cenário em que
pairam sobre o Estado brasileiro os mecanismos de um governo
que aponta não apenas para o aprofundamento da direção coerci-
tiva/punitiva da ação estatal, mas encaminha ações e estratégias
de cunho fascista; e 2) a defesa da efetivação dos direitos ineren-
tes ao ser humano na sua condição de dignidade a contrapelo da
intensa degradação das condições de vida da classe trabalhadora.
Este se constitui outro ponto em que os embates serão ferrenhos
para o Serviço Social, haja vista a implacável luta das atuais forças
dominantes em desqualificar os direitos humanos, banalizar suas
questões elementares, bem como aviltar aqueles que se colocam
na perspectiva de sua defesa.
O terceiro princípio traz: a “Ampliação e consolidação da cidada-
nia, considerada tarefa primordial de toda sociedade, com vistas à
garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes trabalhado-

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
Mossicléia Mendes da Silva

ras” (BRASIL, 2012, p.23). Este princípio reúne algumas polêmicas,


sobretudo no tocante ao limite da cidadania no marco da sociabilida-
de burguesa. No cerne do debate, está a questão posta desde a críti-
ca radical de Marx à cidadania democrática moderna: o limitado nível
da emancipação política e a necessidade pujante da emancipação
humana como única forma de plena expansão dos indivíduos sociais.
No famoso texto “Sobre a questão judaica”, Marx (2010) desen-
volve essa discussão sobre os fundamentos restritos que embasam
a Declaração Universal dos Direitos do Homem. No texto, suas in-
dicações sobre emancipação política e emancipação humana são
preciosas para compreendermos os limites da primeira e a necessi-
dade da segunda. Entretanto, assumir a emancipação humana como
horizonte do projeto profissional do Serviço Social não pode implicar
em abrir mão dos direitos civis, políticos e sociais conquistados por
intensas e históricas lutas da classe trabalhadora.
É, pois, no sentido de que é necessário manter e aprofundar os
direitos de cidadania, como patamar estratégico de atendimento a
demandas materiais imediatas dos trabalhadores e como mediação
da luta por outra sociabilidade que o referido princípio é ratificado
no Código de Ética de 1993 (BRASIL, 2012). A cidadania entendida
como campo de contradição, espaço de lutas e correlação de for-
ças, estratégia sempre mais necessária na medida em que a busca
descontrolada do capital por altas taxas de lucro tem implicado na
retração e destruição de direitos.
No atual contexto, a luta pelos valores da chamada emancipação
política se torna imperiosa, face ao ataque desferido às liberdades
civis e políticas fundamentais, bem como as ações que impactam
diretamente na retirada de direitos e na retração das políticas so-
ciais que garantem esses direitos, como a Emenda Constitucional
Nº 95 (BRASIL, 2016). Não se trata de perder de vista o horizonte
da emancipação humana, mas a compreensão de que, mais do que
nunca, os ganhos civilizatórios da tradição liberal burguesa clássica
e os ganhos em função das lutas dos trabalhadores pela ampliação
de direitos são mediações imprescindíveis para enfrentamento dessa
conjuntura. Nunca foi tão vital aprofundar as lutas nessas trincheiras.

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Os desafios também passam pela necessidade de qualificar os


conselheiros dos conselhos de direitos, adensar a participação da
categoria em espaços como Conselhos municipais, estaduais e fe-
derais, bem como nas conferências das diversas políticas sociais.
Aprofundar estudos sobre o Orçamento das políticas sociais, publi-
cando não somente junto à categoria, mas aos usuários, movimen-
tos sociais e outras categorias profissionais os seus resultados e a
necessidade de pressão para canalização de recursos para as de-
mandas das políticas sociais.
Outro princípio aponta para o “Empenho na eliminação de todas
as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à
participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das
diferenças” (BRASIL, 2012, p. 23). O enfrentamento ao preconceito
e o respeito à diversidade é uma questão totalmente inovadora em
uma profissão cuja origem conservadora, inclusive de base confes-
sional, teve como marca decisiva, em seus antigos Códigos de Ética
– com exceção do Código de 1986 –, o moralismo cristão e o conser-
vadorismo, afiançado pela formação social brasileira extremamente
moralista e assombrosamente intolerante com as formas sociais
diversas dos seus padrões societários, assim como o racismo es-
trutural que marca as relações sociais no país. Este princípio é fun-
damental, entre outros aspectos, pelo fato de o trabalho cotidiano
do (a) assistente social ser realizado em larga medida com grupos
sociais discriminados.
Barroco (2015) assinala que, ao explicitar essa temática em um
dos Princípios Fundamentais, o Código de Ética de 1993 (BRASIL,
2012), o Serviço Social faz um importante avanço em termos de su-
peração daquele moralismo referido, além de enfrentar o “dogmatis-
mo, ao defender a tolerância, concebida como respeito à diversidade”
(BARROCO, 2015, p.205).
Certamente aqui a empreitada do Serviço Social não será menos
ferrenha. A profissão tem grande acúmulo teórico-político nesta dire-
ção com importantes produções, pesquisas e campanhas do CEFESS
e dos CRESSs, que visam combater toda forma de preconceito e dis-
criminação, inclusive com publicação de material informativo e edu-

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O projeto ético-político do Serviço Social do ciclo petista à escalada da extrema-direita
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cação. Também a categoria tem se articulado aos grupos que lutam


em prol dessas agendas e engrossado os movimentos e ações des-
ses segmentos. Ainda neste campo pode-se elencar o impulso dado
ao debate sobre a questão étnico-racial no próprio Serviço Social e
na sociedade brasileira de um modo geral.
Parece que nesse contexto, o princípio que defende a “Garantia
do pluralismo, através do respeito às correntes profissionais demo-
cráticas existentes e suas expressões teóricas, e compromisso com
o constante aprimoramento intelectual” (BRASIL, 2012, p. 24) ganha
contornos ainda mais tensionados.
Um Código de Ética de base crítica e progressista não poderia
imputar ao corpo profissional a “obrigatoriedade”, o arbítrio no que
diz respeito à concepção, base teórico-filosófica e política do projeto
profissional. Por isso, a defesa do pluralismo vem plasmar os de-
mais valores emancipatórios defendidos. Aspecto relevante em rela-
ção a este princípio é o que tange à identificação de pluralismo com
ecletismo. A este respeito, Forti (2010, p. 151) faz uma importante
observação: “pluralismo – expressão destacada no presente princí-
pio – não significa ‘ecletismo’, ou seja, a aceitação da junção sem
critério de diferentes vertentes teórico-filosóficas, ou ‘neutralidade’:
a ideia da equivalência de expressões teórico-filosóficas diversas.”
Hoje, porém, não apenas o ecletismo é uma possível “degenera-
ção teórico-política”, visto que expressões abertamente conservado-
ras despontam sem pudores. É preciso referir aqui as manifestações
mais abertas de adesão ao conservadorismo e a direção social im-
pressa pela direita mais conservadora, que vem se processando
desde as últimas eleições presidenciais, com claras menções de
oposição ao projeto ético-político, citadas anteriormente. Como afir-
ma o princípio, o pluralismo comporta as manifestações democráti-
cas, mas quando estas se afinam a discursos e práticas moralistas,
psicologizantes e apelos aos fundamentos da fé cristã para pautar
a intervenção profissional e ações de cunho autoritarista, preconcei-
tuoso e que atentam contra o direito, a diversidade e a autonomia
dos sujeitos com que trabalham os(as) assistentes sociais, elas
devem e precisam ser combatidas. Isto exigirá a articulação ainda

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PRAIAVERMELHA

mais afinada dos CRESSs com os profissionais, no sentido de iden-


tificação de discursos e práticas que firam o Código de Ética e a Lei
de Regulamentação da profissão, de modo a bloquear tais ações.
Também as entidades da categoria precisarão desenvolver estraté-
gias para articulação com estudantes e profissionais formados em
cursos EaD, de modo a angariar mais forças em prol do projeto éti-
co-político, uma vez que é possível que a crítica – séria e necessária
– à expansão dessa modalidade de ensino venha gerando celeuma
com os sujeitos envolvidos nesses espaços e, por vezes, uma certa
estranheza ao próprio debate do referido projeto, ou recusa deste.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A discussão realizada neste trabalho não tem nenhuma pretensão
de saudosismo do ciclo petista e, menos ainda, de prospecção dos
movimentos que vêm pela frente. Tão somente foram feitas reflexões
de situações concretas, já analisadas pelo Serviço Social, no sentido
de encaminhar a análise das tendências que vêm se apresentando
e de circunstâncias que consolidam.
Assim, a compreensão dos limites deste breve ensaio é tangente,
posto que a complexa conjuntura que está posta é atravessada pelas
contradições intensificadas da luta de classes e concorre para inten-
sa dinamização dos acontecimentos. Muita água ainda será lançada
no moinho da ofensiva conservadora e da construção da resistência.
Diante de tudo que é tão incerto, é muito certo que afirmar o pro-
jeto ético-político e se manter firme na sua defesa será mais neces-
sário do que nunca. Se um dia esteve em questão sua hegemonia,
hoje está em pauta a necessidade de enfrentar os ataques frontais
de que será objeto.

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Mossicléia Mendes da Silva


Professora de Serviço Social na UFRJ e Doutora em Serviço Social
pela UERJ.
[email protected]

R. Praia Vermelha, Rio de Janeiro, v.29, n. 2, p. 559-587, 2019 587


Esta publicação foi impressa em 2019 pela gráfica Imos
em papel offset 75g/m², fonte ITC Franklin Gothic,
tiragem de 330 exemplares.

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