Vida de Professores de Matemática - (Im) Possibilidades de Leitura
Vida de Professores de Matemática - (Im) Possibilidades de Leitura
Vida de Professores de Matemática - (Im) Possibilidades de Leitura
Emerson Rolkouski
RIO CLARO
2006
Comissão Examinadora
__________________________________
Emerson Rolkouski
Resultado: Aprovado
À Renata e Pedro Henrique. Com seu
amor, alegria e companheirismo constituíram-
se parte fundamental do meu tornar-se
pesquisador.
AGRADECIMENTOS
INDICE ................................................................................................. i
RESUMO .............................................................................................. iii
ABSTRACT .......................................................................................... iv
RESUMEN .............................................................................................. v
1 INTRODUÇÃO ................................................................................ .... 1
2 CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA.................................. 3
3 SOBRE HISTÓRIA ORAL E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA:
METODOLOGIA EM TRAJETÓRIA....................................................... 170
4 ANÁLISE E VIDA COMO TEXTO...................................................... 189
5 UMA LENTE PARA LEITURA............................................................. 210
6 (IM)POSSIBILIDADES DE LEITURA................................................. 235
PARA NÃO CONCLUIR: DOIS ENSAIOS (IN)CONCLUSIVOS........... 264
REFERÊNCIAS............................................................................................... 275
POST SCRIPTUM…................................................…................................... 280
ANEXOS........................................................................................................... 284
ÍNDICE
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................... 1
2 CONSTRUINDO O OBJETO DE PESQUISA..................................... 3
2.1 PRIMEIRA ENTREVISTA............................................................. 8
2.1.1 Mary da Freiria Estevão Teizen............................................ 13
2.1.2 O Tratamento do Depoimento.............................................. 40
2.2 SEGUNDA ENTREVISTA............................................................ 43
2.2.1 Adailton Alves da Silva....................................................... 44
2.3 TERCEIRA ENTREVISTA........................................................... 67
2.3.1 Romulo Campos Lins.......................................................... 68
2.4 QUARTA ENTREVISTA.............................................................. 105
2.4.1 Adaildes Ferreira Da Invenção............................................ 107
2.5 QUINTA ENTREVISTA................................................................ 127
2.5.1 Clélia Maria Martins Isolani................................................. 127
2.6 UM ESTUDO POSSÍVEL............................................................... 169
3 SOBRE HISTÓRIA ORAL E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA:
METODOLOGIA EM TRAJETÓRIA......................................................... 170
4 ANÁLISE E VIDA COMO TEXTO....................................................... 189
4.1 PROCURANDO PARÂMETROS PARA ANÁLISE DE VIDAS. 189
4.2 A HERMENÊUTICA DA PROFUNDIDADE............................... 196
4.2.1 As Formas Simbólicas........................................................... 196
4.2.2 O Referencial Metodológico da Hermenêutica da
Profundidade..................................................................................... 199
4.3 A VIDA COMO TEXTO................................................................. 202
4.3.1 A Narrativa da Vida............................................................... 203
4.3.2 Constituindo-se Leitor........................................................... 208
5 UMA LENTE PARA LEITURA.............................................................. 210
5.1 CONFIGURAÇÕES – UMA GRADE PARA A COMPREENSÃO DA
VIDA SOCIAL............................................................................................ 211
5.2 O MITO DA LIBERDADE.............................................................. 213
5.3 O HOMEM E O CONTEXTO SOCIAL.......................................... 219
5.4 OS LUGARES DOS ATORES SOCIAIS........................................ 222
5.4.1 O Conceito de Habitus........................................................... 222
5.4.2 Espaços e Campos Sociais..................................................... 225
5.5 FOCANDO O OLHAR.................................................................... 232
6 (IM)POSSIBILIDADES DE LEITURA.................................................. 233
6.1 NASCIDO EM LUCIARA............................................................... 234
6.1.1 Comparar Vidas: primeiras (im)possibilidades..................... 236
6.2 PROFISSÃO: PROFESSOR........................................................... 239
6.2.1 Explicar Vidas: novas (im)possibilidades............................. 245
6.3 CIRCUNSTÂNCIAS E RUPTURAS............................................. 247
6.3.1 Vida e Mistério..................................................................... 249
6.4 PRIMEIRO A CULTURA.............................................................. 250
6.4.1 Mais (Im)possibilidades?.................................................... 254
6.5 MULHER E PROFESSORA: A INVENÇÃO DE ADAILDES.... 254
The objective of this work is to understand how a Mathematics teacher becomes the
teacher of Mathematics that he is. In other words, to understand how the individual
becomes, through his life, his experiences, his relationship with other individuals, and
his relationship with the macro-social context, this teacher of Mathematics, with these
ideas, practices, and resistances. Five Mathematics teachers, with different degree
levels, were interviewed according to the methodological parameters of the Oral
History. Their testimonies allowed the composition of a scenary wich made it possible
to extend the comprehension concerning becoming “the” Mathematics teacher. Their
life stories were read with differentiated lenses. Under a sociological focus, based on
Norbert Elias and Pierre Bourdieu’s works, under the perspective of psychology, based
on Jerome Bruner's works and finally a last reading denominated scientific-literary, in
which the testimony is read through the analogy of literary texts. These readings
presented, considerations were made on their possibilities and impossibilities facing the
understanding of "how a teacher of Mathematics becomes 'the' teacher of Mathematics
that he is”.
1
FERNANDES, D., VALE, I. (1994). Two young teachers conceptions and
practices about problem solving. In: PME XVIII (Vol. 2, pp. 328-335), Lisboa, Portugal.
4
2
HART, L. C., NAJEE-ULLAH, D. H. (1992). Pictures in an exhibition: Snapchots
of a teacher in the process of change. In: PME XVI (Vol. 1, pp. 257-264), Durham, USA.
3
OLIVIER, A., et al. (1995). Teachers mathematical experiences as links to
children’s needs. In: PME XIX (Vol. 3, pp. 312-319), Recife, Brasil.
5
trabalho de Garnica (2005), que trata, entre outros assuntos, dessas concepções.
Segundo este autor, os pesquisadores que se valem de cursos com a finalidade de
mudar as concepções dos cursistas:
*
aspas do autor.
6
Federal do Rio de Janeiro4 amplia o leque do que pode influenciar a prática dos
professores de Matemática, observando que as experiências de sucesso e/ou
fracasso como aprendiz em Matemática, tanto quanto as concepções sobre a
Matemática e a pedagogia matemática, interferem em nível consciente ou
inconsciente no exercício dos futuros professores.
Finalmente, Polettini (1999), preocupada com a relação entre História
de Vida e desenvolvimento profissional de professores, enfatiza que a literatura
especializada tem mostrado que as mudanças curriculares nem sempre produzem
os efeitos desejados, visto que a maneira como o professor implementa estas
mudanças em sala de aula depende de seu conhecimento e de suas crenças em
relação à Matemática e ao ensino e aprendizagem de Matemática. Além disto
esta literatura, de forma bastante cuidadosa
4
Tal projeto tem como objetivo a melhoria da qualidade da formação de professores
de Matemátic a via complementação curricular dos licenciandos, envolvimento dos licenciandos
em mini-investigações em sala de aula e a modernização do currículo de Licenciatura.
7
5
A constituição formal deste grupo de pesquisa, do qual sou um dos integrantes,
ocorreu, efetivamente, em meados do ano de 2002, com a realização de um primeiro seminário
de estudos na Universidade Estadual Paulista. Maiores informações sobre o grupo podem ser
obtidas em www.ghoem.com.
8
História de Vida
Uma entrevista não é um diálogo, ou uma conversa. Tudo o que interessa é fazer o
informante falar. Você deve manter-se o mais possível em segundo plano, apenas
fazendo algum gesto de apoio, mas não introduzindo seus próprios comentários ou
histórias. [...] E não se deixe preocupar com as pausas. Ficar em silêncio pode ser
um modo precioso de permitir que um informante pense um pouco mais e de obter
um comentário adicional. [...] Claro que você pode exagerar nesse sentido, e fazer
com que o informante fique gaguejando por falta de um retorno seu. Ficar remoendo
uma pausa em silêncio, depois de esgotado um assunto, é desanimador e antes que
isso aconteça deve ser feita uma pergunta firme. [...] Mantenha o informante
relaxado e confiante. Acima de tudo, nunca interrompa uma narrativa ** . (p.271)
*
Tradução minha.
**
Itálico no original
12
6
No Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da UNESP de Rio
Claro, além dos alunos regulares que estão elaborando teses de doutorado ou dissertações de
mestrado, são oferecidas vagas para alunos especiais. Caso estes alunos venham a ingressar no
programa, estas disciplinas podem ser aproveitadas se assim decidir o Conselho de Área do
Programa.
13
Bom, meu nome completo é Mary da Freiria Estevão e sou a terceira de cinco
filhos. Eu nasci em Paraguaçu Paulista que está a 450 quilômetros de São Paulo.
Eu tive uma infância muito boa, embora tenha pegado tuberculose quando tinha
um ano e meio. Eu já estava andando. Por causa do tratamento parei de andar e
meu cabelo caiu. Foi muito complicado, pois meu pai tinha um cargo muito bom
na FORD e tivemos que mudar para São Paulo, eu, meu pai, minha mãe e duas
irmãs mais velhas. Meu pai enfrentou muita dificuldade por minha causa, teve
que parar a faculdade de Direito e, além disso, minha mãe estava grávida do
quarto filho. Eles foram uns heróis.
Depois, voltamos para Paraguaçu e, passada esta fase, eu fui uma criança normal,
embora com muita anemia e tendo sempre que fazer tratamento. Mas, mesmo
assim, brinquei na rua, nasci e fui criada no mesmo bairro, na mesma cidade. Em
termos de cidade eu não tenho outra visão que esta, do interior, de Paraguaçu.
Cidade pequena, de 50 mil habitantes, onde todo mundo se conhece. Para se ter
uma idéia, o funcionário do Banespa, guardava os meus talões no carro e me
entregava na rua.
Morávamos eu, minha mãe, meu pai e os dois irmãos num bairro chamado Vila
Affini. O prefeito morava ali também. Um dia típico da minha infância era
quando nós ficávamos na praça do bairro, onde tinha uma Igreja, até as onze
horas da noite, fazíamos circo, eu, meus irmãos, meus primos que eram como
irmãos, e tinha também uma menina que minha avó pegou para criar que fazia
um pouco de contorcionismo. Uma época em que meu pai fazia faculdade de
Direito e minha mãe, colegial. Meus avós moravam do lado da casa de meus
pais, e a gente ficava ali ouvindo meu avô. Minha avó, hoje tem 90 anos e tem 33
netos e 53 bisnetos.
Eu era muito ligada nos meus irmãos, brincava mais de brincadeira de menino:
bolinha de gude, bafo. Nós éramos da pesada, tínhamos time, cantávamos na
rádio.
Lembro que nós não ficávamos na aula de religião, porque, como éramos
evangélicos havia uma certa discriminação. Hoje é diferente, mas naquela época
nós e os espíritas tínhamos que sair. Mas a gente se dava demais com os
católicos. Fugia do pai e da mãe para assistir aula de catecismo, cantar aquelas
músicas, bater o sino da Igreja. A vila Affini era como se fosse uma família.
Antes de meu pai comprar televisão toda a vizinhança ía assistir Meu Pé de
Laranja Lima na casa de uma vizinha. Aquela mulher era uma santa. Meu pai
levava a gente para nadar no rio. Foi uma infância maravilhosa. Tanto que, para
eu sair de lá, quase entrei em depressão. Parece que eu crio raízes.
A maioria das pessoas ficou ali mesmo. Alguns foram para São Paulo, pois em
Paraguaçu não tinha emprego.7
***
Eu nunca mudei, nunca, nunca, nunca. Quando chegou a hora que eu tive que
mudar... Emerson, o caminhão chegou, 19 de dezembro, e para você ter uma
idéia, para colocar a mudança dentro do caminhão, depois de tudo embalado, eles
começaram de manhãzinha e terminaram uma e meia da manhã.
Para sair de Paraguaçu foi num estalo. Eu estava em um dia tranqüilo na escola e
o reitor da UNESP, o doutor Trindade comentou dos cursos de Pós-Graduação
que tinham na UNESP com o diretor da faculdade que eu dava aula, e eu resolvi
vir para Rio Claro fazer Educação Matemática. Eu não queria vir aqui para
7
Fiz a separação usando três asteriscos sempre que considerei que o depoente
mudava de tema. Neste caso observa-se que a depoente deixa de falar da infância e começa a
falar de sua vida no começo de seu casamento.
15
morar, eu queria vir dois dias por semana, mas meu marido não aceitou esta
situação. Ele falava: você pode ir para qualquer lugar, desde que a família inteira
vá junto. Por coincidência, abriu vaga para remoção, o que não acontecia a 12
anos, meu marido conseguiu e deu tudo certo. Mas foi muito difícil sair.
***
Eu tinha uma casa maravilhosa. Lá eu nunca fiz nada em casa, sempre tive duas
ou três empregadas, aqui eu estou fazendo de tudo. Saí de um lugar que eu tinha
tudo Emerson. Muitos dizem: -Você é louca. Eu entrei num estado terrível.
Minhas crianças adoraram, elas dizem: - Não volto para aquele lugarejo, não
volto.
***
Quanto a minha família. Considero nossa família muito feliz. Meu pai sempre
deu muito valor para esta questão da família, nós somos assim, bem grudados uns
com os outros. No aniversário do Chico, meu marido, vieram quase noventa
pessoas da minha família. Eu tenho muito orgulho dela.
A minha mãe estudou o ginásio ou normal, não sei como se chamava na época
dela. Depois de casada resolveu fazer o colegial. Foi uma excelente aluna. Meus
colegas deram aula para ela.
Minha mãe gosta muito de escrever, de literatura. Ela é uma pessoa muito
simples, muito dependente do meu pai, nem supermercado ela fazia sozinha. Ela
é do lar. Muito introvertida, não serve para trabalhar fora. Ela carrega muitos
problemas. Você tem que ter cuidado para falar com ela. Minha mãe é muito
melancólica
Meu pai, não. Meu pai é positivo. Meu pai era uma sumidade, foi nosso
referencial. Ele faz uma falta tremenda. Não é porque ele faleceu. Ele nunca
reclamou da vida, a alimentação dele era tudo para a saúde. Além de inteligente
ele era muito sábio. Nós temos recordações excelentes.
***
16
Eu entrei na escola normal com sete anos, fui boa aluna e já gostava de
problemas de Matemática. Lembro-me que a professora da quarta série fazia
concurso e quem terminasse primeiro ía explicar para o colega, eu adorava, né?
Eu adorava terminar logo. Gosto de um desafio até hoje.
Como eu tinha problema de saúde minha mãe me poupou dos serviços de casa e
então meu pai me ensinou a fazer escrita fiscal de empresa, pois ele sabia muito
sobre auditoria. Com treze anos meu pai me registrou e aos trinta e nove eu pude
me aposentar.
Quando eu cheguei no terceiro ano, nós pegamos uma fase que você escolhia a
área que queria cursar. Eu escolhi Exatas, mas meu pai queria muito que eu
fizesse Direito, pois minha família é muito ligada nesta área. Meu pai é
advogado, um de meus irmãos é promotor. Ele até pediu para minha mãe me
influenciar, mas eu fui fazer Matemática.
***
Eu passei no concurso, e pelo fato de nunca ter dado aula no estado não tive
muitas opções para escolher a escola para trabalhar. Lembro que cheguei no
colégio Caetano de Campos e eu me vi boba, aquela lista de cidades e nenhuma
do interior. Como a locomoção para São Paulo é fácil eu escolhi a escola de
Guaianazes, sem nunca ter ouvido falar.
Foi uma época muito difícil, porque Guaianazes é o fim da linha do trem, e era
uma região muito violenta, uma das mais perigosas da cidade. Uma da regiões
17
mais populosas de São Paulo, a maior parte nordestino. Já naquela época tinha
tiroteio de dia. Mas eu era muito respeitada pelos marginais. E nunca tive
problemas, porque se você cria amizade com eles, ninguém mexe com você.
Minha mãe falava, olha você põe uma jóia que se vier um ladrão você dá a jóia.
E daí eu ía toda perfumadinha. E naquele horário de pico, os trens atrasavam e eu
entrava empurrada e eu chorava. Nunca tinha saído de casa. Fiquei doente. Uma
vez escarraram na gente, jogaram caqui. Foi uma época muito difícil da minha
vida.
Eu cheguei em São Paulo muito inexperiente mesmo, muito ingênua. Uma vez
deixei um rapaz carregar minha mala e depois vieram uns policiais e pediram os
documentos dele. Ele não tinha e acabou preso. Eu passei aquela vergonha na
rodoviária. Mas nunca me assaltaram. Só uma vez um menino tentou, eu estava
com a minha mãe no Mappin. Ele puxou uma medalhona de ouro que eu tenho e
tirou sangue.
Mas daí eu consegui uma remoção para Paraguaçu mesmo, para a maior escola
de Paraguaçu e, além disso, fui admitida na Fundação Gammon de Ensino, que
adotava o sistema Anglo de Ensino. Esta fundação também tinha muitos cursos
técnicos e uma faculdade de Agronomia muito bem reconhecida: a ESAP.
Alguns professores vinham de fora para dar aula em Paraguaçu. Como a região é
basicamente agrícola e a faculdade tinha muita procura nós abrimos um cursinho
só para entrar naquela faculdade, hoje a coisa caiu.
Lembro que na faculdade eu dava Álgebra Linear. Comecei muito nova, tive que
aprender tudo sozinha. E além disso, como eu não sabia nada de Agronomia, fiz
duas pós-graduações em Matemática, uma em Estatística e outra em Matemática
Financeira e ainda uma Pós-Graduação latu sensu na área agrícola. Eu acho que
comecei a abarcar muita coisa ao mesmo tempo e, como eu gosto de fazer tudo
certinho...
***
Nessa época, em 1985, eu resolvi fazer Direito, foi lá que eu conheci meu
marido. Foi a única coisa que serviu. Meu pai era um advogado muito renomado
18
E assim eu ia, fazia a faculdade de Direito, dava aulas de manhã e à tarde. Tinha
um dia, uma terça-feira que eu dava aula à noite, a matéria de terça à noite eu não
podia fazer. Fazia só as provas e pedia que os amigos assinassem a lista para
mim. Mas eu estudava em casa. Enfim, terminei a faculdade de Direito e
continuei só dando aula.
***
hoje como já tem muito a OAB cortou e está muito difícil de abrir. Atualmente
temos estes sete cursos, e eu dava aula para os sete.
***
Minha experiência com o colegial foi assim: eu fiz concurso para a fundação
Paula Souza, porque pagava mais que a Secretaria da Ciência e Tecnologia, hoje
já não está pagando tão bem, mas eu continuo trabalhando lá. E deixei o estado
em uma época que o nível já estava bem baixo, foi na época do plano de
demissão voluntária do Governo Covas. Mas eu lembro que no estado eu tinha
mais autonomia. No colégio particular não, aula um é aula um. E, além disso, em
uma cidade pequena se o aluno traz o exercício e você não sabe você se queimou
na cidade inteira, não precisa mais nem procurar outro emprego.
Eu dava aula neste colégio particular e também dava aula na Escola Agrícola
Centro Paula Souza que funciona como um internato. Na Escola Agrícola,
atualmente, tem cento e sessenta internos. Eles fazem as disciplinas básicas no
primeiro ano e a partir do segundo, pela manhã as matérias do Ensino Médio e à
tarde matérias técnicas específicas, com aulas práticas. Aliás, a faculdade de
Agronomia veio por causa do colégio.
Então eu tinha duas realidades diferentes. Uma no colégio particular que era a
elite da cidade e outra na Escola Agrícola em que havia grande heterogeneidade e
muita carência.
Eu tinha que dar um ponto de partida e trazer o pessoal, na maioria das vezes o
professor largava a turma. Nas áreas comuns, a fama da Escola Agrícola era
muito ruim. Para você ter uma idéia, neste concurso que eu fiz para entrar,
nenhum professor do núcleo comum passou, foram todos demitidos.
Mas eu vejo assim, que os alunos vão fazendo estes cursos técnicos.
Principalmente aqueles que tem aula à noite, eles acabam ficando de fora da
faculdade. Eles até querem fazer algo mais avançado, mas não conseguem.
No começo era sempre muito difícil, pois eles queriam só uma desculpa para
morar ali, para fugir da família, era uma fuga. Mas já no primeiro dia de aula eu
deixava claro algumas coisas. Fazia alguns cálculos com eles, por exemplo,
quanto de prejuízo daria no fim do curso se eu atrasasse a aula em cinco minutos.
Como eu mostrava seriedade eles me viam e já entravam. Foram se acostumando
com o meu "jeitão". Tanto é que fui madrinha em todas as turmas em que dei
aula.
lidando mais com a Álgebra. Na Escola Agrícola eu dava aula para todas as
turmas também, e ainda na faculdade. Para você ter uma idéia, em dezembro do
ano passado eu tinha seiscentos e vinte e três alunos. Pois, além do que eu já
tinha, a FATEC abriu um curso de Ciências da Computação em Assis e eles me
convidaram para dar aula à noite, na sexta feira. Eu dava quatro aulas na mesma
turma.
Lembro-me que tinha um feriado no dia vinte e oito de outubro que foi
postergado para uma sexta-feira, dia dois de novembro, pelo Governo do
Alckmin, os alunos chegaram a protestar para que eu desse aula. No último
debate para a presidência também, o diretor dispensou os alunos, e os meus
alunos faltaram quase matar o diretor. Além disso, havia dois alunos que já eram
formados e estavam dispensados da matéria, mas iam mesmo assim e ficavam
assistindo minha aula até às onze e quinze.
Para mim era muito sacrificado ir para Assis, pois sexta à noite era o dia que eu
reservava para a família. Mas foi muito gratificante, pois a turma era muito boa.
A gente ía desenvolvendo o raciocínio lógico e a FATEC exige bastante que se
traga o cotidiano.
Eu sempre me dava bem com os alunos. Se você chegar, assim, por exemplo, no
colégio particular e fazer uma entrevista, eles vão falar assim: - Ela é exigente, é
chata, mas a gente quer ela. Para você ter uma idéia, o diretor me pediu para não
falar que eu ía sair antes do fim do ano. Ninguém queria que eu largasse as aulas.
Eu sou um nome muito respeitado lá. Chegou a vir uma comissão de Ourinhos da
FATEC para eu não vir para Rio Claro, para eu não largar as aulas.
Esses alunos mais carentes, que estudavam nesta faculdade, davam muito valor,
eu era uma princesa para eles. Eu falava para eles: - Gente, a Matemática é linda.
E isso é que ficou para eles. Já na faculdade de Agronomia, em que o pai dá
dinheiro para eles estudarem, salvo algumas exceções, era só reclamação, festa e
churrasco. Eu sinto assim, que quanto menos obrigação a pessoa tinha, quanto
mais os pais investiam, menos valor eles davam.
É porque, na verdade, os alunos mais carentes não têm dinheiro e precisam pagar
uma faculdade particular, já os que podem, passam em uma instituição pública...
No terceiro grau a coisa inverte. Você paga uma escola particular para o seu filho
para ver se não vai precisar pagar depois. Não sei se algum dia isso vai acabar.
Lembro-me que para dar aula em Agronomia eu tive que estudar muito. Então eu
comprei muitos livros, eu adoro livros. Tive que estudar para conhecer as
aplicações. Mesmo assim, dar aula para o Anglo é mais difícil que para a
faculdade, pois os alunos eram muito bons, neste ano eu tive dois alunos que
passaram em cinco faculdades públicas de Medicina. Então eles vinham com
aqueles exercícios e você tinha que dar conta. Eu gostava de estudar aqueles
exercícios. Tinha dias que meu marido achava que eu estava ficando louca. Eu
22
Já na faculdade, eu tinha que ir atrás das aplicações. Mas eu sempre gostei disso.
Lembro-me de um livro sobre CEP - Controle Estatístico do Processo, que
trabalha com coisas como saber qual o tamanho da amostra que você tem que
pegar numa produção em larga escala. Eu demorei a aprender, mas gostei muito.
Tinha aquelas coisas de desvio padrão, eu me apaixonei. Então eu ía aprendendo
tudo sozinha, Estatística, ía para a curva de Gauss, Matemática Financeira, eu ía
fundo. Mas foi muito bom, pois eu me motivava. Na Agronomia eu tinha um
material excelente só com exercícios aplicados para o campo, mas era uma
minoria que valorizava.
Eu vibrava, pois, com eles eu podia aplicar a teoria. Já no Anglo era mais
quadradinho. Não que eu achasse ruim, acho que cada escola tem uma filosofia e
a deles é passar no vestibular.
É como diz aquele livro do Rubem Alves, que, aliás, eu tenho todos os livros
dele. O livro é o País dos Dedos Gordos. O menino chega e vê aquele palacete e
pergunta: - O que é isso? - Ah, isso aí é a universidade aqui do Brasil. E o
menino louco para entrar, mas nunca deixaram, então ele pergunta: - Mas não
tem jeito? - Tem sim, tem um buraquinho ali no muro, se o teu dedo couber
certinho ali você entra. Ou seja, tem que fazer a cabeça do aluno. A gente até
sabe e vai falando para os alunos: - Você pensa desse e desse jeito.
Para quem está começando no Anglo é muito difícil, porque eles cortam a
franquia. A nossa era muito boa, eu tive uma turma que pegou o quarto lugar do
Brasil entre duzentos e oitenta e cinco franquias.
Na Escola Agrícola eu ía fundo, por exemplo, comprei uma máquina por tanto e
a depreciação foi tanto, depois de quanto tempo ela valerá, sei lá. Primeiro
trabalhava a exponencial depois ía dar a operação inversa que era o log, eu
vibrava. Mas eu gostava da coisa formal também.
Lá no Anglo aparecia cada aluno, tão bom em Matemática, tão bom, mas para a
vida não. Eu tenho uma sobrinha que hoje estuda na faculdade de Direito do
Largo do São Francisco. Ela fazia o problema que fosse, mas se misturasse
alguma coisa do cotidiano não saía. E agora até o ENEM está puxando estas
coisas do cotidiano, fazendo interdisciplinaridade e eu acho muito bom. Eu
recebo o ENEM pelo Anglo e outras provas também, como o vestibulinho. Acho
as provas bem boladas.
23
***
Nesta usina eu ía toda quinta feira, primeiro para eletricista, depois para
encanador. Esta turma era só de homens, você precisa ver que maravilha,
pagavam super bem. Os alunos ficavam muito contentes com essas aulas, no fim
eu vim para cá e indiquei uma outra professora, mas foram experiências muito
boas.
***
Eu tive professores de dois tipos. Daqueles em que a prova era uma arma, que
falavam: - Eu te pego na prova. E eram professores de Matemática. Olha, se eu
dependesse de professor eu não seria professora de Matemática, não. Lembro até
que, quando eu passei no concurso, fui para São Paulo e quando eu voltei fui dar
aula para uma escola maior e lá encontrei três colegas que foram meus
professores e eu falava: - Se dependesse de vocês...
Por outro lado, também tive professores muito bons, lembro da professora Araci
Araújo que tinha uma capacidade muito grande, eu acredito até que ela tenha me
influenciado na escolha. Eu lembro que ela era muito organizada. Ela fazia
aquele casamento, aquela coisa, até que ela fechava o assunto. Por exemplo: -
Vou ensinar matrizes. Matriz é uma tabela de m linhas e n colunas. Sabe? Ela
tinha um vocabulário muito bom. A matéria era regra de três, problemas de 2º
grau. Ela tinha uma paciência muito grande. Ela falava: - O que você quer do
problema? Quais os dados que você têm? O que você vai usar? Eu adorava fazer.
Pegava os problemas e perguntava: - O que eu quero? Era a pergunta. -Que dados
eu tenho? O que eu uso? Ah! Daí era a Matemática.
24
***
***
Muitas viagens me marcaram, uma delas foi para Fortaleza. Tem aqui, Campos
do Jordão que eu gosto muito de ir. Tem aquele palácio do Governo, eu gosto de
ver aquelas camas de Luís XV, aquelas pérolas.
***
Eu peguei duas etapas de escola: aquela bem tradicional em que o professor era a
figura central e uma outra que, acho, era tecnicista, pluricurricular.
Não estou dizendo que a escola tradicional era do tipo de ter palmatória, aqueles
castigos, mas havia muito respeito. Por outro lado, nós não sabíamos dessas
coisas, dos direitos que tínhamos.
marcou muito. Estas coisas aconteciam e o pai nem ía na escola reclamar, não
tinha isso, né?
Nós sentávamos em dois. Se fosse japonês, naquela época, era excelente aluno.
Hoje, ou são excelentes ou são muito ruins, a coisa, eu acho que abrasileirou.
Mas não tinha esta questão de cooperar com o outro não, você queria era
competir, eu acho que incutiam isso na gente. Mas tinha uma formação familiar
muito boa por trás. Pode-se dizer que eu fiz uma escola de Primeiro Grau muito
bem feita, tive excelentes professoras, nunca tive substituta.
Saí deste Primário gostoso. Gostoso entre aspas, porque o professor dava aula e
você não sabia de seus direitos e deveres. Por outro lado você aprendia, você
tinha que aprender, a família exigia, tinha lição de casa, tinha tudo. Daí, entrei no
colegial e vieram aqueles professores carrascos.
Naquela época líamos livros que eu acho que eram muito pesados para nós:
Memórias Póstumas de Brás Cubas, Triste Fim de Policarpo Quaresma,
Memórias de um Sargento de Milícias. Alguns eu gostava, como A Moreninha,
que era mais do tipo romance.
Depois peguei a escola que acho que era tecnicista. Veio uma febre de
pluricurricular, você já viu isso? Acho que por meados de 74. Veio uma verba
enorme e construíram uma outra ala na escola que abrigava mais de mil alunos.
Tinha aulas de torneiro mecânico, essas coisas. Eu tinha aulas de economia
doméstica e me saía muito mal, pois não tenho habilidade manual, eu não
gostava. Aprendíamos bordado, encapávamos cabides, tenho alguns até hoje,
todas estas coisas para o lar.
No terceiro ano você tinha que optar, se você queria Humanas, Exatas ou
Biológicas. Eu fiquei muito na dúvida, pois não tinha um teste para você
escolher.
Por um lado eu gostava muito de Português, de Literatura. Mas, como meu pai
não queria que eu fosse estudar numa cidade grande e tinha uma facilidade na
área de Matemática, por causa da contabilidade, eu fui fazer Matemática. Aí eu
fui para Tupã.
Tenho até minhas apostilas aí. Hoje eu entendo, mas na época... Apesar disso eu
até dava aulas para os meus colegas de Álgebra, essas coisas que tinham um
raciocínio mais lógico, eu sempre gostei. O Cálculo era aquele, sem aplicação
nenhuma, era demonstração mesmo, teorema e demonstração e era isso. Eu não
considero que eu tenha feito um curso superior adequado.
Na disciplina de Didática a gente tinha que dar aula para os colegas de classe.
Tinha aluno que desistia ali mesmo, chorava. Minha aula nesta disciplina foi
sobre razões e proporções, uma delícia sabe?
***
Nós tínhamos que fazer estágio, e eu peguei um professor que havia sido meu
professor de colegial. Ele era um professor do tipo “eu sei tudo, eu te pego na
prova”. E lá fui eu fazer o meu primeiro estágio, aquilo me marcou muito. Ele
estava dando a forma trigonométrica do número complexo. Então ele começou
lá: falou da forma polar, da forma algébrica e tal. E de repente ele parou a aula e
disse: - Agora a estagiária vai dar aula para vocês da forma trigonométrica do
número complexo.
Olha, Emerson, foi por Deus. Eu estava dando aquela matéria no cursinho. É, eu
dava aula em cursinho, estudava e trabalhava. E daí eu dava, né? Eu fui na lousa,
eu ensinei, aquela mudança de quadrante, o teta igual a pi sobre seis... Não que
eu fosse uma expert, é que eu estava dando aquela matéria no cursinho, porque
nem na faculdade e nem mesmo com ele, quando era meu professor eu tinha
aprendido.
Eu achei que ele quis me colocar na frente da classe, me expor, tinha até umas
conhecidas minhas na sala. Para poder falar depois do nível dos professores e tal.
Eu nunca fiz isso com estagiário meu. Se ele pedir para dar aula, tudo bem, se
não ele fica ali. Eu já falo de ante mão: – Você tem algum assunto que queira dar,
para aprender a falar?
Depois, passei por toda aquela fase de dar aula em cursinho, dar aula particular.
Mas muito pouco tempo, pois eu me efetivei logo e aí eu fui, peguei mais
colegial.
27
Na Escola Agrícola também. Veio uma supervisora de Marília, dona Marli, e nós
fizemos uma reunião com todos os professores, da área técnica e da área comum.
Em um certo momento ela me falou: – Professora, o que a senhora está dando no
segundo colegial? Eu falei: – Olha, no segundo colegial eu estou dando
trigonometria. E ela: – Professora, larga de ser boba, dá tabuada para eles que os
nossos alunos só vão puxar enxada. Ah! Eu me revoltei muito: – A senhora
gostaria que eu desse tabuada para os seus filhos no Segundo Grau? De fato, tem
alunos que não sabem tabuada no segundo colegial, mas a senhora gostaria que
seu filho estudasse tabuada no segundo colegial? Ela me veio com aquele papo
de que o filho dela estudava no Cristo Rei em Marília. Ora, mas estes aqui
também são filhos de alguém.
No colégio agrícola era assim, os alunos entravam falando “eu ponhei” e saíam
falando “eu ponhei”. Mas eu cobrava, no colégio, na faculdade. Eu cobrava que
os alunos falassem corretamente.
***
8
Segundo a depoente, Balneário é um rio de Paraguaçu. Nas margens desse rio
moram pessoas de baixa renda.
28
Eu achava que todos os alunos tinham que ter oportunidade igual. Eu sempre fui
idealista, depois meus ideais foram até morrendo um pouco, por causa da
realidade do sistema, né?
Para mim, quando eu comecei a dar aula, foi um choque, eu vi uma outra
realidade. Mesmo na escola pública havia separação. Nós tínhamos o primeiro
colegial A, da manhã. Ali nós sabíamos quem eram os pais dos alunos. Já os da
tarde, esses eram bem fracos e os da noite, ih...
Os professores tiravam muita licença, era médico, licença, licença para nada.
Tinha professor que pegava um assunto do começo ao meio do ano. Lembro-me
de um ano que tinha o problema da Aids, então o professor de Química ficou
naquilo um tempão. Eu via aquele trabalho e pensava, nossa esses alunos não tem
condições de competir com ninguém. Eu acho que o profissional precisa ter esse
compromisso de querer que o aluno mude o estado dele, que ele deve ir numa
crescente.
Eu era nova e idealista e no começo eu senti muita pressão por causa dessas
coisas de nota. Não interessava se o aluno aprendia ou não, eles queriam era nota.
Mas depois que você mostrava para o aluno que quem o amava era aquele que
queria vê-lo bem na vida, eles te respeitavam. Então o que você falava virava lei
para ele. Eu gosto de coisa séria, tanto é que quando a minha filha chega em casa
e fala assim: – Mãe, hoje a aula foi uma delícia. Eu pergunto: – Bom, ou não
fizeram nada ou brincaram, porque aula mesmo...
Se é para fazer, então é para fazer bem feito. Por isso eu sempre fui contra essa
recuperação só no papel. Essa coisa de recuperar só o que ele não sabe, de
recuperação individual, no papel é muito bonito, mas na prática você vê que não
é.
Eu peguei uma época em que a responsabilidade foi passando toda para a escola.
Pai de aluno eu só via se fosse mal em Matemática. Eu nunca recebi um pai na
escola do estado, mas na escola particular o pai vivia lá, mandava bilhete para o
professor: – Olha você tá ensinando isso aqui errado.
***
Eu sou do estilo muito organizada, minha lousa era perfeita. Tinha professores
que não gostavam de apagar minha lousa, pois parecia que eu escrevia em cima
de linhas. Em outras coisas eu era relaxada, na papelada, mas a lousa era perfeita.
Então nesta aula sobre funções eu começava: – Quais são as conotações da
palavra função? Os alunos respondiam: – Ah, emprego. Eu dizia: – Parabéns,
você participou. Mas nunca chegava a resposta que eu queria. Então eu dava a
dica: – O homem vive em função do ar. O que significa o termo função nesta
frase? Eles: – Dependência. E eu: – Isso dependência. Então o homem depende
do ar para viver.
Então usava outros exemplos como o do táxi, em que a corrida depende dos
quilômetros rodados que é a parte variável e da parte fixa que é a bandeirada.
Dizia: – A demanda de um produto é função de diversas variáveis, vamos dizer
do preço do produto, quanto menor o preço maior a demanda. E assim ia. Você
paga a sua conta de energia em função do quê? – Isso, do consumo, e tal. E daí
íamos fazendo sentenças, mas nada ainda da questão formal.
Alguns alunos, mesmo no terceiro colegial, faziam gráficos e não sabiam que
eram funções. Todas aquelas coisas de y igual a x, encontrar o y. Eu precisava
falar: – Limpa a cabeça, esquece que é Matemática. Você não está numa aula de
Matemática, isto aqui é vida. Limpou a cabeça, chacoalhava a cabeça, então,
agora tá vazia? Então o aluno dizia: – Professora, para calcular o salário de uma
pessoa que ganha 500 reais fixos mais 2,80 por hora eu pus, 500 mais x vezes
2,80, tá certo? Eu dizia – Tá certíssimo, mas tem a questão da elegância
Matemática. Por exemplo, você pode ir num restaurante pedir uma coca-cola e
chacoalhar, não é crime, mas é deselegante. Você não vai passar a mão na
gengiva e limpar a boca. Então, em Matemática também, precisamos de
elegância. Se você coloca x dois e oitenta, eu bato o olho lá: – Mas que
deselegância. Então você põe sempre o número depois a variável. E falava da
variável dependente, da variável independente... Eu adorava esta aula.
dar nada de mão beijada. E crio minhas filhas assim, sempre procurando
desenvolver a criticidade.
***
No colégio agrícola que era só menino eu falava: – Por favor, vocês são homens,
aqui não tem menina, mas vocês têm que me respeitar. Daí veio o internato só
para meninas. Olha Emerson, quando mulher dá para não prestar é pior do que
qualquer homem. Então, essas meninas que vêm, que a mãe deixa sair de Foz do
Iguaçu para vir fazer colégio agrícola em Paraguaçu Paulista, nossa! Elas tinham
assim, uma boca tremenda, a maioria arrumava filhos na própria escola e não
sabia de quem era o pai. Mas eu sempre tratei todo mundo igual.
Tinha uma coisa que eu não admitia, era choradeira em sala de aula. Lá fora tudo
bem, as meninas tinham confiança em mim e me contavam, mas dentro da sala
de aula eu não quero saber de choradeira. Porque eu fiz uma faculdade de Direito
e trabalhava o dia inteirinho e não queria que o professor passasse a mão na
minha cabeça, não. Aqui eu não quero saber se teu cachorrinho morreu, se pegou
fogo na sua casa, lá fora se você quiser me procurar, tudo bem, mas aqui dentro,
nós vamos trabalhar.
***
Depois eu fui vendo que não, que tinha outras facetas também. A questão das
habilidades, do trabalhar em grupo. Mas no começo, qualidade era conteúdo.
Com o passar do tempo eu via que tinha alunos que eram excelentes em
Matemática, mas que não sabiam fazer uma ligação em um chuveiro. Sabe? Que
não estavam preparados para a vida. Então eu vi que as coisas que eu pensava
não eram tudo, enquanto qualidade de ensino. Agora eu vejo a questão da
qualidade como um todo. Mas no começo não, eu era bem rigorosa: – Aqui vocês
vieram aprender só Matemática.
***
Havia aquela época que não era para reprovar. O discurso era esse: se você pôs
xis tem que sair xis sabonetes, né? Isso lá por 85, 87. Então vinha palestrante até
da UNESP. Começava a palestra com um vasinho de flor, de margaridinha
branca, e falavam: – Esse é o nosso aluno. Nosso aluno é um consumidor e a
mercadoria tem que ser de primeira qualidade. Eu pensava: não é assim, quando
você lida com seres humanos a coisa é complexa.
Hoje eu vejo muita falta de garra do aluno, principalmente aqueles que ficam o
dia inteiro na escola sendo sustentados pelo pai. Eu preferia dar aula para os
alunos da noite, que trabalhavam o dia inteiro. Mas, a maioria gostava de dar aula
para os alunos da elite. Eu também gostava de dar aula no Anglo.
Daí tinha aquele monte de reunião e aquele discurso de que o aluno tinha que
passar pela escola. Em conselho de classe eu chegava doente em casa. Mas no
fim eu acabava entrando no esquema. Porque dava muito trabalho se você fosse
enfrentar a realidade sabe? Porque a realidade não é tão linda assim. Tem muita
gente que é doutor e não fez esforço nenhum. Tem, eu conheço. Meu marido
32
falava: – Deixa de ser boba, chega ali e fica conversando. Porque era muito mais
fácil ficar ali conversando, perguntando se já largou o marido e tal. Mas eu não,
eu ía naquela linha da Matemática, entrava falando Matemática e saía
Matemática. Então eu não me conformava de ouvir colegas dizendo que
confiavam no aluno e saíam da sala de aula para tomar café enquanto os alunos
faziam prova. Isso para mim não dá. Se é pra fazer um negócio vamos fazer
certo, nós vamos fazer certíssimo.
Teve pelo menos um curso que mexeu comigo. Na CENP mesmo. Foi aí que eu
comecei a ver que dava para mudar a prática pedagógica. Foi um curso muito
bom, a respeito de trabalhar Geometria com materiais concretos. Nós
construímos os objetos geométricos na madeira, pirâmides, os prismas e víamos
as arestas, os vértices, muito melhor que ver a coisa planificada. Mas não era
tudo que dava para usar, não.
Mas os melhores cursos que fiz foram na Paula Souza, no CETEPS. Pelo fato de
todos os cursos serem em São Paulo, a 450 quilômetros de Paraguaçu, eu acabei
fazendo poucos cursos.
Nestes cursos nós assistíamos fita do Marins, sobre trabalho em grupo, sobre
motivação. Então, daí você ía interiorizando essas coisas, e daí eu melhorei nessa
questão de aceitar.
As pessoas diziam para eu tentar certas coisas, mas eu pensava: isso é utopia.
Para você me convencer, para eu mudar, é muito difícil, pode ser que seja por
causa da educação familiar. Devagar algumas coisas você vai mudando, outras a
vida mesmo te faz mudar. Você não muda porque o outro te impôs, eu pelo
menos não. Eu acho até que eu deveria ser mais maleável, mas não é o meu jeito,
eu não sou assim. Eu escutava algumas coisas e pensava: tudo bem, ele pensa
assim, mas na prática não é assim, para mim não é.
Por exemplo, nesse curso9 que a gente fez aqui na UNESP eu aprendi demais,
mas não vou dizer que tudo aquilo dá para usar no cotidiano. Como nós vimos,
em pesquisa eles colocam aquilo que dá certo.
Mas eu sempre gostei mais do estilo dos cursos da Paula Souza, a respeito de
trabalhar as habilidades, competências, ver o aluno como um todo. Lá a avaliação
9
O curso a que a depoente se refere é a disciplina Tendências em Educação
Matemática, ofertada pelo curso de Pós-Graduação em Educação Matemática e, neste caso,
ministrada pelo professor Marcelo de Carvalho Borba.
33
tinha que ser com letras, B era bom, MB muito bom, mas eu sempre gostei de ter
um parâmetro numérico. Para mim foi muito difícil. Eu sempre gostei da coisa
certinha e para mim a vida é prova, é avaliação. Mesmo para a gente subir de
nível na Paula Souza, nós éramos avaliadas por uma aula expositiva. Na vida,
ninguém fala em habilidades. Mas na classe nós tínhamos que fazer assim. Ou
seja, eles diziam para fazer uma coisa com nossos alunos, mas com a gente era
avaliação de aula expositiva.
Eu achava aquilo muito bom, isso não tinha no estado. Então para subir de nível
o professor tinha que dar aula para uma banca. Você entrava por concurso e, para
subir de letra, para aumentar o salário, tinha que dar aula para uma equipe.
Mandavam você estudar três assuntos e sorteavam um na hora. Minha última
aula foi sobre pirâmides. Eu preparei tudo, fiz transparência, me preparei, dei
aula para o meu marido e tal. Eu fiquei muito tempo sem dar Geometria, então eu
não tinha segurança em dar aquele assunto.
Outro curso que eu gostei muito foi com o Gelson Iezzi, há uns cinco anos, foi o
curso que eu mais gostei. Era a respeito de como levar o aluno a resolver
problemas. Então ele colocou diversos problemas que a gente mesmo não
entendia. Alguns mais fáceis, outros mais difíceis. Tinha muitos professores ali
que não faziam. Esse curso para mim foi importante, pois me levou a refletir que
às vezes a gente demora umas três horas resolvendo um problema e daí você
entrega para o aluno e quer que ele resolva em dez minutos numa prova.
Esse curso para mim foi válido, mas a maioria... Eu não gostei, não. Por
exemplo, uma vez veio uma professora da UNESP de Bauru dar um curso para
os professores de faculdade sobre avaliação. Ela trabalhava com formação de
professores de Primário, por isso eu até entendo. Ela achava que para eu dar aula
de Matemática eu tinha que fazer música, fazer teatro, nunca dar uma aula
expositiva. Caso eu fosse dar uma fórmula eu tinha que primeiro dar uma música,
fazer um concurso. Para mim, tudo aquilo era uma utopia, era muito fora da
realidade. Foram três dias de curso que eu não aproveitei nada, perdi meu tempo.
Ela trouxe lá os materiais dela e ficou falando, mas nada que pudesse ser
aplicado na faculdade. Ela veio com uma florzinha e dizia: – Olha, essa florzinha
vai ser bonita dependendo do cuidado que nós tivermos com ela. Daí veio com a
didática, de como avaliar o aluno. Ficou uma coisa muito bonita, mas fugiu da
realidade. Antes da aula a gente deveria bolar alguma coisa. Não sei, se depois
viria alguma coisa. Será que isso se encaixaria na modelagem? Não sei.
Ela falava: – Olha. O nosso aluno de faculdade gosta do quê? Gosta de rock, de
baile e boate? Então você tem que descer ao nível dele, da faixa etária e fazer
com que ele goste da Matemática. Matemática pode ser explicada desta maneira
Ela trouxe alguns assuntos que realmente davam, mas era tudo coisa do Primário:
multiplicação, trabalho com casas decimais, adição, totalmente fora do nosso
contexto. Diz que pagaram uma nota para ela ir lá.
34
Então eu acho que sempre você tem que filtrar. E de uma maneira ou de outra
tem que ter carisma. Eu falava para eles, por exemplo, eu acho até que tá errado,
mas eu falava que Matemática era a disciplina mais importante para eles, tá?
***
Eu se fosse dar um curso para professores, vamos pegar aí, por exemplo, Análise
Combinatória. Eu começaria orientando a pessoa a começar analisando o que é
Análise Combinatória. Eu nunca gosto de dar um assunto sem que a pessoa saiba
o que é. Eu sou contra. Então vamos ver lá: Análise Combinatória é uma parte da
Matemática que vai envolver contagem, eu tenho determinado conjunto e você
vai ver quantos agrupamentos dá para fazer com os elementos daquele conjunto.
Aí eu falava que você tem basicamente dois tipos de agrupamento: um
agrupamento que você vai chamar de combinação em que a ordem dos elementos
não importa. E outro agrupamento em que a ordem dos elementos importa, que
eu vou chamar de arranjo. Eu pego, por exemplo, três algarismos, você vai pegar
um número formado pelos três, sem repetição. Eu falo assim: – Um, dois, três,
que número eu formo, 123, e você, 213, aí eu pergunto: – Mudou a ordem,
mudou alguma coisa? Mudou tudo, então isso é arranjo. Agora, quando eu falo
Emerson e Rodrigo, vão buscar um retroprojetor para mim por favor? E se eu
disser Rodrigo e Emerson, o conjunto mudou? Não. Então já é combinação.
***
Eu dava até sessenta aulas por semana, uma loucura. Mas eu nunca fui para sala
de aula sem saber um assunto. Desde a formação da palavra, do latim. Eu nunca
fui. Depois você se acostuma, modifica algumas coisas e assim vai indo.
Usava até uns artifícios, por exemplo, falava assim: – Gente, Português é horrível
– apesar de eu gostar né? – Veja só: o plural de mão é mãos, então o de mamão
é? Ué, mas por que não é mamãos? Ora não é porque não é. Então, se o plural de
mão é mãos e o de mamão é mamões o plural de capitão deve ser capitãos ou
capitões. Mas não é, o plural de capitão é capitães. Então se nós aprendemos
Português nós somos muito inteligentes. Por que chácara é com ch e xícara é com
x? Gente, alguém me explica? Então, se nós aprendemos Português nós somos
muito inteligentes. Matemática é diferente, nós vamos ver a coisa e eu vou falar o
porquê. Eu falava: – Gente, vocês vão vibrar, porque a Matemática é linda, vai
abrir a cabeça de vocês. Eu pegava coisas assim, da vida. E falava que hoje
podemos usar isso na arte e tal.
Algumas alunas falavam que tinha escolhido curso de secretária porque não tinha
Matemática. Mas era gostoso. É claro que você não traz cem porcento, por mais
que você queira. Por exemplo, tinha uma senhora de Assis que tinha uma
dificuldade. Ela tinha vindo daquele tempo em que Matemática era conta. Então
ela tinha um trauma, ela tremia. Eu falava lá, em moda, mediana, desvio padrão,
rol. Olha, ela tinha a idade da minha mãe e foi fazer Turismo. Eu pensava: por
que ela não fica em casa fazendo crochê? Coitada da dona. E você vai reprovar
uma pessoa dessas Emerson? O que que ela vai fazer?
Teve uma época em que o Banespa e o Banco do Brasil acharam que todos
tinham que ter curso superior. Então eu dava aula para pessoas que ficaram anos,
anos e anos longe da escola. Gerentes do Itaú, do Banespa, funcionários do
Banco do Brasil, pessoas do INSS. Mas depois eles valorizavam muito você.
Tinham aquele ânimo de aprender. Eu falava: – Olha, se entrou Português vai
entrar Matemática, vai ser uma delícia. É claro que a Matemática não é a
disciplina mais importante de um curso de Administração de Empresas, mas eu
fazia de conta que era. Eles gostavam muito de mim, tanto é que a primeira turma
que se formou, eu fui madrinha.
***
você: mais tempo de bunda na cadeira da escola, pelo menos por isso você me
respeite.
Teve uma professora que foi dar aula de Química para aquela escola de elite. Era
sua primeira vez, então ela bobeava um pouquinho. Os alunos acabaram com ela.
Traziam coisas da Internet que ela não sabia e tal, então eles acabaram com ela.
Ela foi despedida. E daí, seu nome, pode esquecer. O pessoal que se queimava ali
ía dar aula no estado mesmo. Eu falei para eles, que eles deviam ter mais
empatia, que um dia ía ser a primeira vez deles.
Então, Emerson, perdeu muito disso daí, desse respeito. Uma vez veio a diretora
falando que os alunos não podiam vir de sandália para a escola, umas coisas meio
assim, né? E eu vi uma aluna cochichando, aí eu falei: - Clara! O que você tá
falando? E ela: - Olha, a senhora está de sandália, a senhora não é que nem nós?
Eu falei: – Não, não sou, você tá pensando que eu sou igualzinha a você? Não
Clara, você está enganada. Eu tenho as minhas coisas para cumprir com a
direção, mas eu posso andar de tamanco, de sandália, porque eu saio daqui e vou
para outra escola, eu não tenho uniforme, mas você é aluna desta escola. Você
está pensando que nós somos iguais? Não, nós não somos.
Eu acho que esse respeito a gente tem que resgatar, senão começa a violência na
escola e tal. Não sei se é a formação do professor, o salário. Por exemplo, eu dei
aula para o Magistério, nada contra sabe? Mas eu não tinha um aluno que fizesse
Magistério que tivesse uma boa formação, uma boa leitura. Eram empregadas
domésticas que resolviam fazer Magistério, tinham dificuldade e não faziam nada
para crescer, entendeu? Eu falava: – Eu prefiro traumatizar você agora do que
você traumatizar 40 crianças depois.
Além disso, eu acho que hoje, a família jogou para o professor toda a obrigação,
então você ficou como psicólogo, babá. Então eles queriam que a gente fizesse
tudo. Eu tive mãe de alunos que falavam assim: – Olha professora – era uma
atrocidade – eu queria que a senhora pegasse meu filho e falasse assim para ele,
olha você é capaz, você pode, sabe, em particular, porque ele precisa ouvir. Eu
falava: – Ah não, isso tem que ser psicólogo, isso tem que ser a senhora.
Pediam para avisar se o filho ía ao banheiro fumar. Eu falava: – Isso eu não faço,
porque ele vai perder a confiança em mim. Eu não fazia essas coisas nem para
parente. Uma vez eu comecei a falar do meu sobrinho para minha irmã, que o
filho dela não estava se interessando e ela virou no bicho comigo.
Mas ao mesmo tempo em que eu acho ruim como está hoje a relação entre
professor aluno eu vejo nela aspectos positivos. Porque hoje o professor se
preocupa mais se o aluno está aprendendo ou não. Na minha época não, ninguém
se preocupava. Hoje nós mudamos a nossa postura, procuramos chegar mais
perto da realidade do aluno, ter um relacionamento melhor com ele. Procuramos
37
não ficar em cima de um pedestal mas também não perder o respeito. Então eu
acho que até é um paradoxo.
Antigamente eu tinha medo de falar com o professor, e hoje a gente tem diálogo,
recebe carta, recebe e-mail. Você tem mais interação, mais cumplicidade. Você
fez uma parceria. Então eu falo: – Olha vou dar o melhor de mim, é lógico que eu
não sou perfeita. Aqui tem uma hierarquia, mas não precisa ter medo. Mas tem
que ter respeito. Então eu falava que o aluno poderia sugerir, pois todo mundo
tem defeitos. Por isso eu achava muito importante a avaliação que a escola fazia
do professor, que os alunos faziam. Jamais isso era feito antigamente. Então, eu
vejo isso como positivo.
***
Sinceramente, eu não acho que seja para todo mundo não, Emerson. Eu acho que
hoje a gente valoriza muito a questão da faculdade, né? Você quer seu filho na
faculdade e eu quero a minha também, mas eu acho que vai chegar o momento
que se minha filha for chefe de cozinha, e tiver habilidade pra isso, eu vou me dar
por satisfeita.
Eu estava conversando com uma pessoa de uma rede de hotelaria da França que
resolveu vir para o Brasil. Abriram vagas para a parte jurídica e para chefe de
cozinha. Tiveram mais de mil pessoas para a parte jurídica e ninguém para chefe
de cozinha.
Então, a gente foi muito para esse lado do conhecimento. Eu acho que têm
pessoas que são para essa área científica, mas têm outras que não são. Por isso eu
sou contra essa idéia de que seja para todo mundo, então tem que ter tantos por
cento de vagas para mulheres, tanto para negros, tanto por cento para deficientes.
Não é preconceito, até pode ser que eu esteja errada, eu vejo que a pessoa tem
que estar no lugar certo. Porque se não a gente banaliza a coisa.
Essa história de contextualizar. Ah! Eu acho que na maioria das vezes você deve
procurar pelo menos contextualizar. Trazer aquilo que você está ensinando para a
realidade ou para a área que o profissional vai atuar, caso esteja na faculdade. Na
minha época não tinha contextualização e eu senti falta disso. Mas eu aprendi na
vida, tomando cabeçada aqui, errando ali, acertando aqui, acho que você também,
né?
38
***
Eu acho que eu tive grandes mudanças, mas foi mais com a idade e com a vida.
Eu acho que eu mudei muito, muito mesmo. Mas não vendo o que os outros
falavam, porque eu sou muito dura para aceitar. Mas errando mesmo, tentando na
prática. Depois lendo, mas nunca por imposição, jamais. E tem coisas que eu não
mudei porque eu não interiorizei aquilo lá. Por exemplo, eu não acho que a aula
tenha que ser toda no Cabri. Eu não acho que seja a luz. Eu até tenho o
Geometricks 10, escuto, acho bonito, mas, uma hora ou outra sim, mas não sempre.
Não acho também que toda aula tenha que ser dialógica. Por exemplo, na minha
aula eu acho que setenta porcento do sucesso está na minha mão e, trinta
porcento, está na mão do aluno. Então, primeiro eu coloco o assunto que nós
vamos estudar. Eu sou muito organizada. A minha parte é um pouco mais longa
que a do aluno. A primeira parte da aula é minha, eu vou fazer, você vai ver
primeiro o que você vai estudar. Eu vou passar da melhor maneira que eu puder,
às vezes eu não vou conseguir chegar em você e você vai ter que falar que não
entendeu, porque se você não falar eu não tenho bola de cristal para adivinhar.
Bom, em um segundo momento eu falo: – Todo mundo tá junto comigo? Então
eu vou ver se você está junto comigo. E nesse segundo momento eu não interfiro
em nada, não respondo nada. Os alunos ficam quase loucos: – Mas professora só
um negocinho. E eu: – Não. Você pode errar e tal e tal, agora eu só vou circular.
Ficam falando que eu não quero ensinar mas eu falo: – Quero ver tudo que sai da
tua cabeça. E aí num terceiro momento eu retorno e agora sim: – Como é que
você fez? Por quê? Vejo os caminhos que os alunos fizeram. Nossa eles me
ajudam muito. Essa forma de dar aula mudou pouco. O pessoal falava: – Com os
alunos do agrícola você tem que sair medindo canteiro, calcular área. Eu digo: –
Não. Depois a gente vê isso em fotografia.
Então eu mudei pouco assim, nessa organização. Eu não gosto de dar aula sem
ter ela planejada na minha cabeça pelo menos, não precisa ser no papel, mas eu
gosto de colocar no papel também. Essas coisas de objetivo e tal. Eu não gosto de
chegar em uma sala de aula e nem saber onde estou: – Me dá o caderno aí, hoje é
prova. Ixe, não. Eu sou super chata nessa questão de ordem. E também horário. A
minha aula é as sete e não as sete e cinco. Pode acontecer um dia de alguém se
atrasar, mas não pode virar rotina, porque o aluno sabe que tem professores que
começam a aula as sete e dez e daí eles chegam as sete e dez.
10
Assim como o Cabri-Géomètre, trata-se de um software de Geometria Dinâmica.
39
Mas algumas coisas eu mudei, por exemplo, hoje eu valorizo a equipe que
trabalha em grupo, mas eu não gosto de dar trabalho de Matemática em grupo, eu
gosto de trabalhar na classe, não gosto de dar lição de casa. Valorizar a pessoa
que tem facilidade de explicar para o colega. Porque tem excelentes alunos, mas
que não sabem explicar. Então, esse daí não poderia ser professor. Se bem que
quando você trabalha com a elite ninguém quer ser professor. Mas depois acaba
se formando em Engenharia e vai dar aula.
Eu admiro muito a Juliana. Eu falava: – Juliana você é minha cria, minha cria. Só
que ela é muito mais jovem, então o vocabulário dela é muito melhor que o meu.
Além disso, por causa da idade, ela se identifica muito mais com eles. Mas volta
e meia a gente estava trocando idéia, ela com as coisas de jovem dela e eu com a
mente antiga, sabe? Essa relação é muito gostosa. Muitos ex-alunos estão dando
aula hoje.
Tem também ex-professores meus que deram aula comigo também, naquele
velho método ainda, com aquele caderninho amarelo daquele tempo. E não
mudam, não vão em reunião, não querem. Não mudam porque para eles o
tradicional é o que vale. E daí ficam lá, porque se mandar embora um professor
desses tem que pagar uma nota. Por exemplo. Tem o professor de Biologia, ele
40
usa o mesmo caderninho do colegial e olha que a Biologia evoluiu muito. Então
ele tem aquelas fichinhas com desenhinho e tudo.
É claro que nessa parte eu mudei. Sempre que tem alguma coisa interessante eu
vou atrás. Eu levo revista, levei um filme do Pato Donald: No Mundo da
Matemágica. A gente utiliza computador, mas não vamos estudar só ali sabe?
***
Então, minha vida era assim. Eu sou fissurada em sala de aula, sou doente. Nós
acordamos dez para as seis, eu organizava tudo para as empregadas, tudo por
meio de bilhete, e meu marido que recebia, porque quando elas chegavam eu já
não estava mais em casa. Ia para a escola ou para faculdade e começava a dar
aula as sete horas. Pegava até a quinta aula que acabava as onze e quarenta. Saía
da escola, almoçava e uma hora já tinha aula, ía até as seis e pouco. Então tinha
dias que eu dava dezesseis aulas.
Eu acho que falhei, sabe? Meu marido me ajudou muito. Ele que cuidou de
criança à noite, ele que ligou para o médico, dentista, tudo. Tinha gente que
pensava que ele era vi úvo. Só agora que eu me vejo em casa. Agora eu sou dona
de casa.
11
O trabalho de Seara (2005) é um exemplo particularmente interessante da
utilização da transcriação dentre os trabalhos que se situam na interface Educação Matemática e
História Oral. Este trabalho será discutido com maior detalhamento no quarto capítulo.
41
Deixa eu ver aqui, primeiro eu falo isso daqui. Isso aqui eu acho que é
interessante falar. Isso aqui eu vou deixar para depois ...
Eu vou começar falando da minha infância. Eu sou Adailton, sou nativo do Mato
Grosso, nascido na cidade de Luciara. Minha família veio do Maranhão e
imigraram para o Mato Grosso.
O engraçado é que eu fui conhecer a cidade que eu nasci quando tinha dez anos.
E esse tempo todo, nove, dez anos, eu morei em fazenda com meu padastro,
minha mãe e meus dois irmãos. Eu e meu irmão mais velho não estudávamos.
Mas minha mãe, mesmo não tendo estudado, percebia a necessidade de colocar
os filhos na escola. E quando ela vem na cidade coloca os filhos na escola.
***
Eu entrei na escola com oito anos, atrasado um ano, e meu irmão tinha dez, onze
anos. E aí eu comecei. Eu me lembro que sempre estudei em escola pública,
nunca estudei em escola particular. Engraçado que na escola, a maior dificuldade
que eu tinha era em Matemática. Tinha um professor, o professor Zequinha que
era - engraçado, até ainda hoje eu faço referência nele nos meus textos - bem
rígido assim. Naquela época a educação tinha outra concepção. E eu fui estudar
particular com ele, na casa dele, minha mãe pagava para eu ir a casa dele estudar
Matemática. Porque eu tinha muita dificuldade, eu não dava conta da tabuada, as
contas de mais que levasse a um eu não dava conta. Então minha mãe achou que
eu tinha que resolver isso e aí eu fui estudar com o finado Zequinha. O finado
Zequinha era um professor assim, bem sisudo, sério, então ele dava aquela
impressão, aquele medo na gente. Eu lembro de um fato assim: um dia a gente
estava numa mesa, que eram poucos alunos, quatro, cinco pessoas, e aí tinha uma
moça bem maior que eu, conversando, e aí ele colocava, tipo assim, o óculos na
ponta do nariz, olhava por cima do óculos, e ali ele olhando para as meninas
assim, catou uma vara sem olhar para a vara e deu uma varada na cabeça e errou
a cabeça e pegou a orelha da menina. Chegou a arrancar o brinco. Isso era um
fato pedagogicamente aceito pelos pais, ninguém questionava. E ali lógico, eu
aprendi aquela Matemática que se esperava de mim na época, né? E dali para
frente eu fui levando.
***
45
Em Porto Alegre do Norte, cidade em que vivi treze anos da minha vida, eu
comecei a trabalhar. Meu primeiro emprego eu consegui através de uma
professora de Educação Física. Ela era uma mulher de uma liderança política e
achava que eu desenhava bem e como o marido dela ganhou a prefeitura, ela
precisava de um cara para desenhar cartaz de movimento, faixa de repúdio e
desenho meio assim. E aí ela me chamou para trabalhar por causa desta afinidade
que eu tinha com o desenho. Depois ela foi se apagando, por causa de outras
coisas. E foi meu primeiro emprego na prefeitura. E dali para frente eu comecei a
trabalhar com pessoas que tinham uma visão mais..., eu diria assim, na época,
oitenta e sete, tinham uma visão de educação mais aberta a inovações. Eu
comecei a conviver com estas pessoas que acham que a educação não deveria ser
um castigo. Já neste tempo a gente discutia a Matemática de forma diferente
daquela tradicional.
Fazer universidade era utópico para a gente na época. Mas esse grupo com quem
eu trabalhava na prefeitura, junto com outras cinco prefeituras do Araguaia, todas
administradas pelo PT, fizeram um projeto de formação de professores leigos da
zona rural, o Inajá I, depois teve o Inajá II. O critério para se entrar neste projeto
era ser professor na zona rural dos municípios associados. Então isso acontecia
nas férias: janeiro, metade de fevereiro e julho. E era uma proposta muito aberta,
muito interessante, neste tempo, neste grupo. Eu estou falando deste grupo
porque eu aprendi muito com eles, não por trabalhar diretamente com eles, mas
por estar vivenciando estas experiências educacionais do Inajá ao lado deles. Eu
fui abrindo um pouco a visão do que é ensino e tal. Esse grupo era assessorado
diretamente pelo pessoal da UNICAMP. Em janeiro, metade de fevereiro e julho
ía um professor da UNICAMP para o Araguaia, no Mato Grosso, em Santa
Terezinha. Se você olhar no mapa está lá na pontinha da ilha do Bananal. Foi o
finado Adão, a Dulce Pompeo de Camargo, que hoje é pró-reitora da PUCCamp,
muito amiga minha.
46
***
Foi neste contexto, muita gente, vai e vêm, que eu fui me identificando com a
educação. Tendo vivido um projeto que deu certo, que ficou como referência,
que era assim uma coisa espetacular, que fazia uma educação diferenciada no
interior do Mato Grosso. Mas e aí, como continuar isso? Paro por aí? Paro no
nível de Segundo Grau? E aí nascia a idéia de que eu tinha que ter nível superior.
Não podia parar.
E aí, em noventa e um, começou uma nova discussão: tem que ter universidade
aqui, nesta região. Mas como? Aí foi um movimento, as prefeituras já tinham
modificado, os prefeitos já eram outros, não eram todos do PT. E aí surge a idéia,
eu disse: – Vamos abrir a universidade. E quem teve coragem para trazer um
curso para cá, na época, foi a Universidade Estadual do Mato Grosso, que fica
em Cáceres, que é a duzentos quilômetros da capital. Aí o reitor, um cara que o
pessoal achava ele até meio maluco, aceitou a idéia e disse: – Vamos fazer. E aí
nasce o projeto Parceladas que é uma referência nacional em formação de
professores.
A filosofia era assim: a universidade vai onde o aluno está, e não o contrário. Os
professores viajavam para lá, ficavam toda a época, dando suas aulas. Um outro
fato interessante que eu acho positivo é que durante cinco anos de universidade,
meu curso foi de cinco anos, nós tínhamos os primeiros três anos de formação
47
Você percebia que os próprios professores ainda estavam com a questão de área.
Hoje a gente conversa com alguns deles e fica rindo, porque naquele tempo não
se dava conta de largar isso, de olhar o trabalho meio holisticamente, eles
olhavam em pedaço ainda.
Era um aprendizado para a gente, tanto quanto para os professores. Essa questão
do lixo ficou marcada para mim, em determinada época um professor passou lá e
disse: –Ah, mas eu não estou enxergando aqui a Estatística. E aí nós fomos
levantar os dados estatisticamente, porque tinha que dar uma resposta para o
professor também. E aí era um trabalho em grupo, interno ainda, podia errar, e
quando a gente terminava esta etapa fundamental tinha um seminário. E depois,
no final do curso, uma outra monografia, em que tínhamos que escrever e
apresentar. O curso é caracterizado em dois momentos, etapa fundamental e
etapa específica.
Na época criticavam, dizendo que os alunos não viam muita Matemática. Hoje
mudaram, os alunos fazem um ano e meio de básico e o resto de Matemática e
não tem diferença, quem tá saindo não tem essa diferença espetacular.
Entre as etapas intensivas, que ocorriam nos meses de janeiro, fevereiro e julho
aconteciam as etapas intermediárias. Nestas etapas intermediárias nós
desenvolvíamos pesquisas orientados pelos professores que viajavam o Mato
48
Este período entre etapas não ficava vago, porque você ficava trabalhando e
pesquisando. Então não tinha como você se desligar da universidade. Se
desligava fisicamente, mas cientificamente você estava trabalhando. Era uma
coisa intensiva.
No início o pessoal começava a falar: – Uma universidade, só tem aula nas férias
e não sei o quê. Hoje o pessoal já tem outra concepção. A Parceladas mostrou um
ensino a distância diferenciado. Uma referência nacional.
Hoje está se discutindo muito ensino a distância. Mas este ensino se distancia
também das questões sociais, políticas e regionais. Neste método, estas questões
estavam próximas.
A procura foi grande, pois a região nunca teve um curso ali perto. Daí teve o
vestibular, que aliás é uma coisa que eu critico, porque o vestibular na realidade
não mede nada. Veja: tem gente que passou em último lugar, terminou o curso,
fez mestrado na UNICAMP direto, entendeu? E hoje já é concursado nas federais
por aí. Essas coisas são difíceis de entender.
Então, a minha trajetória de formação, mais ou menos é assim. Acho que dentro
deste contexto eu comecei a pensar Matemática de outro ângulo. A Matemática
mais na forma humana, não nesta Matemática excludente.
E assim, quando eu vou fazer minha monografia, lógico, eu não podia fazer outra
coisa, e fiz a monografia sobre a construção de uma casa indígena da região onde
eu morei. Da comunidade dos Tapirapé. Aliás, o título é bem esse: “A Geometria
na Construção da Takarã”. A Takarã é uma casa indígena. E ali eu percebi outras
formas de Matemática, além daquela que eu tinha visto na academia, que aliás eu
questionava muito. E esta trajetória foi me levando para a Etnomatemática de que
o Ubiratan D’Ambrosio fala. Até então eu fazia, mas não sabia muito.
***
Neste meio tempo, devido ao trabalho que eu tinha feito com a monografia,
fiquei sabendo que precisavam de um assessor de Matemática para UNICEF num
projeto que era desenvolvido em Mato Grosso, para trabalhar com os Xavantes.
Também não tinha nada a perder. Eu fui lá e fiz, concorrendo com um bocado de
gente. Não sei porquê, mas me selecionaram. Aí eu fiquei assim, meio dividido.
Trabalhava a questão da nossa Matemática, mas sabia que isso não valia lá para
os indígenas. Eu percebi que faltava algo ainda, para eu discutir com eles. E ali
eu vi um avanço muito grande na minha formação, de ver como que o outro olha
para o mesmo objeto, né? A perspectiva que ele olha para o mesmo objeto não é
a mesma que a minha. E com isso eu vim questionando a minha própria prática, a
minha formação.
Um outro exemplo que eu vou pegar aqui é o professor Carlos Alfredo Arguello,
ele é um Físico da UNICAMP que pegou a bandeira da Formação de Professores
por gosto. É um professor com muita vivência, então ele tinha uma outra forma
de olhar o ensino. Era esse tipo de professor que convidavam para dar aula na
Parceladas. Não se olhava a formação acadêmica apenas, mas a vivência que a
pessoa tinha. Então não se tinha um professor que fosse despreocupado com o
ensino, que desse aula só no “cuspe e giz”.
Teve um professor lá, o Aníbal. Ele repetiu Cálculo de novo para gente porque
ele percebeu que o que ele falou no primeiro Cálculo, antes de saber como era o
método brasileiro, o que pediram a ele. Falaram assim: – Olha Aníbal vai lá e dá
o Cálculo, tem que dar isso aqui. Era Swokowski.
Ele foi e debulhou o Swokowski em quinze dias, noventa horas. Nós éramos em
trinta e sete pessoas só tinha duas que entendeu, e ainda assim até a metade. E aí
ele falou assim: – Desisto. Ele ficou envergonhado e repetiu o Cálculo para nós,
de graça. Ele disse assim: – Eu vou repetir a disciplina, fiquei envergonhado. E aí
criamos um vínculo de amizade, de respeito. Ele inclusive foi nosso paraninfo.
Logo na seqüência, depois que eu entrei no curso regular, eu fui indicado para ser
chefe do departamento. E aí eu propus que a gente fizesse um curso de
especialização. Eu escrevi o projeto e fizemos um curso de especialização em
História da Matemática. Eu conhecia o Sérgio Nobre e ele me perguntou: –
Vamos levar isso aí? Você coordena o curso politicamente e pedagogicamente eu
coordeno. Eu disse: – Vamos. E é engraçado que eu escrevi o projeto e eu fui
aluno. E eu determinava as regras porque eu era chefe do departamento. Então,
parece brincadeira, mas foi assim mesmo.
51
Mas isso é assim, eu falo da minha formação mais um aspecto que influencia
muito é o lugar onde eu nasci e me criei. O Araguaia é um lugar assim onde a
gente conseguia fazer um encontro com quinhentos professores cada um metendo
a mão no bolso e ficando uma semana discutindo educação. Isso a gente vê em
poucos lugares. Então eu acho que, lógico, a criação, a vivência, não podia
acontecer outra coisa.
***
A minha mãe, como eu falei no início, ela não teve formação, não estudou. Ela
veio de Tocantins, para Luciara. Ela tinha Quarta Admissão, não sei se você já
ouviu falar disso? Quarta Admissão, ela me fala, é como se fosse a quarta série.
Mas não era anual, me parece, a Quarta Admissão equivalia a uma sexta série.
Ela veio de Goiás da cidade de Gurupi, hoje Gurupi fica no Tocantins, para
Luciara. Ela tinha um irmão lá e precisavam de uma professora. Veio ela e meu
irmão mais velho, ela era mãe solteira. Veio dar aula. E aí, ela chega em Luciara
e começa a dar aula com essa formação. Passado muito tempo, já casada pela
segunda vez e ter morado em fazenda, ela sai da fazenda e vai para Porto Alegre
do Norte.
E a minha mãe foi assim, a família dela era ainda nos moldes antigos, muito
tradicional, uma criação muito segura. Minha mãe criou a gente com muito
esforço, lavando roupa, saía de manhã e chegava às duas da tarde e a gente tinha
52
que se virar com a comida. Eu pegava meu irmão mais novo, colocava no colo e
levava ele no córrego para ele mamar aí trazia ele de volta. Eram umas coisas
malucas assim. Eu a via como uma batalhadora e a gente se sentia na obrigação
de dar um retorno. Ela fazia tudo isso só para colocar a gente na escola. Ela ficou
muito tempo nessa vida, por isso que eu comecei a trabalhar cedo.
Com nove, dez anos eu pescava e vendia para comprar comida, mas emprego
formal, foi só com treze, ou catorze anos, como balconista de lanchonete.
Neste emprego eu fiquei só seis meses. Como era lanchonete eu varava a noite,
então eu fiquei com problemas de insônia, não dormia mais. Depois eu comecei a
trabalhar no cinema, eu cuidava do cinema, porque a cidade estava crescendo,
tinha uns sete mil habitantes. Trabalhei mais seis meses lá e daí eu entrei na
prefeitura.
A minha infância aconteceu meio paralela com essa luta, mas eu lembro que a
gente tinha essas coisas de ir para o rio tomar banho, armar arapuca, pescar, jogar
bola, jogar bolita, que hoje se chama bolinha de gude, rodar pião. Pião, a gente
mesmo confeccionava, não tinha para comprar. Tomar banho no rio era meio
proibido por causa do perigo, as mães não deixavam. Então, a minha infância se
dava nisso. E brincar de carrinho. Engraçado mas as brincadeiras sempre eu
fazia, tinha, eu percebo hoje isso, tinha um dom de fazer os meus brinquedos. Por
exemplo, carrinho eu nunca brinquei, só depois de bem mais velho, criança já
mais velha, com doze anos, que eu vim brincar com carrinho comprado. Era eu
que fazia meus carrinhos de lata. Engraçado que meus amigos não faziam, não
davam conta. Eu fazia e ainda vendia, trocava. Mas era uma infância muito
gostosa assim.
Mas, voltando a falar da minha mãe, eu vejo que mesmo com toda a estrutura da
época ela foi liberal. Do meu padastro eu me lembro pouco, pois minha mãe se
separou muito cedo dele, e pagou um preço alto por isso. Ela falava: – Olha, não
dei sorte. Porque meu pai morreu, depois ela casou com meu padastro, e aí teve
meu irmão mais novo, não deu certo. Até que deu certo por bastante tempo, mas
daí ela percebeu que não daria mais. Ela foi para a cidade casada, mas ali as
coisas foram ficando mais difíceis e ela se separou. Quando ela rompeu esse
53
casamento, ela falou: – Olha, de hoje em diante eu não fico em fazenda mais, vou
colocar meus filhos pra estudar. Então eu não tenho muitas lembranças do meu
padastro pois eles se separaram quando eu tinha sete anos. Minha mãe acabou
sendo mãe e pai.
***
Com relação às questões políticas uma das coisas que eu acredito ser importante
é o processo de abertura do Ensino Médio na minha cidade. No meio da oitava
série eu comecei a perguntar aos meus colegas quem teria coragem de sair para
fazer o Segundo Grau em outra cidade. Foi um momento de festa. Mas não tinha
professor suficiente e a lei falava que tinha que ter pelo menos um terço com
professor com Nível Superior, assim como ainda é hoje. E a prefeitura foi buscar
esses professores, três ou quatro, no Sul. Na época o estado pagava mal, e a
prefeitura, então, dava um complemento para atrair estes professores.
E estes professores chegavam, todos com hábitos bem diferentes, com sotaques
diferentes, tomando chimarrão. E o fato de a secretaria ter feito isso deve ter
causado ciúmes na Câmara de Vereadores. Porque eles é que queriam ter feito
isso. Então, eles não queriam aceitar estes professores. Diziam que era pelo fato
de serem gaúchos, essas coisas de discriminação. Mas eu não via assim, eu via
que eram por questões políticas, da secretaria com a Câmara de Vereadores. Mas
de uma maneira ou de outra, eles rejeitavam os gaúchos.
Eu lembro que quando ía começar o Segundo Grau, lá pelo ano de oitenta e oito,
não saía a aprovação do complemento que a secretaria ía dar, pois quem tinha
que aprovar era a Câmara de Vereadores. As aulas iam começar em fevereiro e
em janeiro, nada. Daí teve uma visita do Governador na cidade, eu juntei um
grupo de amigos e fizemos um abaixo-assinado, cento e cinqüenta assinaturas de
pessoas que estavam ali para fazer o Segundo Grau. Durante o discurso do
Governador nós invadimos o palco e entregamos o abaixo-assinado. O
Governador leu e aprovou. E aí começou o Segundo Grau. Só que os Vereadores
não se deram como vencidos, e no dia que seria a aprovação do pagamento nós
fomos para a sessão ordinária de Vereadores, e eles tiveram que aprovar, na
pressão. Eles engoliram aquilo, porque nós enchemos a Câmara de Vereadores de
aluno e se fosse preciso acho que a gente quebrava.
A gente pensou que tinha acabado por ali, mas foi uma perseguição de um ano.
Eu não tive aula de Português no primeiro ano do Segundo Grau porque o
professor era gaúcho e toda aula de Português a gente pegava para discutir
estratégias de enfrentar os Vereadores. Eu não tive aula porque o clima era muito
tenso, com os outros professores nem tanto, mas com esse professor de
Português, João Gregoski, um cara bem atuante politicamente, a situação era
realmente complicada. Então, nessas aulas de Português tinha gente badernando e
daí íamos para a sala dos professores discutir estratégias.
54
***
No Segundo Grau que eu fiz nós éramos dezessete alunos, dezesseis eram
petistas. E a maioria dos professores que vinha de fora era petista de outras lutas,
de outros movimentos. Por exemplo, o prefeito que eu trabalhava com ele, ele foi
formado aqui no ABC paulista, metalúrgico, era engenheiro metalúrgico. Então,
eu lembro do professor Samuel e da maneira diferente com que ele trabalhava
História. A gente começava a pensar História e a fazer relação com o que
acontecia na época.
Mas eu, quando comecei a dar aula, embora já me questionasse, eu não dava
conta de sair daquela coisa assim, mais quadradinha. Porque dar um enfoque
diferente para Matemática não é só ter conteúdo Matemático. Eu tinha a
concepção de que aquilo não estava legal e me massacrava muito, eu queria fazer
algo, mas de certa forma faltava alguma coisa, a leitura de outras áreas, e o que
acabava chegando no aluno era aquela Matemática pela Matemática.
55
***
Me parece que essa escola em que eu matriculei minha filha está numa linha de
ensino que prioriza a quantidade de informação. Então, o que a gente tenta fazer
em casa é proporcionar a ela o que a escola não faz, por exemplo, contar todo dia
uma história a noite, deixar ela contar história para gente, na hora de dormir,
fazer algumas brincadeiras que sejam um desafio para ela, tipo assim, pedir para
ela desenhar o que ela está enxergando. Eu vou encadernando aquilo para ela ver
depois. A gente tenta fazer com que o ensino não seja uma camisa de força, uma
coisa maçante para a criança, que passe a ser uma coisa prazerosa para ela. Na
Matemática também, pois tem muita gente que cria rejeição. Eu mesmo, eu tinha
muita dificuldade, tinha professor particular, mas depois eu voltei a olhar de
outra forma e consegui.
***
Engraçado, a gente vai falando e percebendo algumas coisas que não tínhamos
parado para pensar. Ontem eu estava te falando e eu percebi que minha formação
profissional sempre andou em paralelo com a minha formação pessoal. Um
influencia o outro constantemente.
Fiz outra seleção e não passei, aí eu me conscientizei: – Não vou mudar de área,
se não der para fazer mestrado, não faço. Eu sabia que eu não podia mudar, que
era minha experiência, minha vivência, tudo era nessa área. E aí o Sérgio falou
que em dois mil e um iria abrir essa área da Etnomatemática aqui no Programa de
Pós-Graduação da UNESP de Rio Claro e eu resolvi queimar o cartucho. Deu
certo.
***
Voltando a falar das minhas primeiras aulas, eu lembro que comecei na oitava
série. Minhas aulas eram bem tradicionais. Eu tinha muita insegurança, então me
agarrava ao livro didático. Na época eu queria enxergar de outra maneira. Eu
ficava tentando colocar algumas coisas, via as aulas de Biologia e ficava
pensando, então eu me lembro uma época que para mudar a aula eu peguei meus
alunos para discutir Matemática e falei assim: – Ah, vou inventar. Peguei e levei
meus alunos para estudar a Matemática das queimadas. Porque na minha região
tem a época do fogo, e é uma fumaça insuportável, o pessoal toca fogo nos
pastos, hoje não se faz mais isso. E todo mundo reclamava e falava sobre a
questão do meio ambiente e não sei o quê, mas ninguém levava isso para sala de
aula. Aí eu peguei uns alunos meus e fomos ver como que era isso na prática. Aí
eu fui, mesmo sem nada planejado, a gente pegava e ía no Cerrado. O Cerrado
era perto das escolas, e a gente cavava assim, mais ou menos vinte centímetros,
um metro quadrado de área e vinte centímetros de profundidade. Onde o fogo
passou, e um metro quadrado e vinte centímetros de profundidade onde o fogo
não passou, e víamos o que tinha vivo ali para fazermos uma comparação. Aí a
gente trabalhava área, volume e seres vivos. Aí eles viam a discrepância de vida
57
que você encontrava. Eu inventei isso porque eu estava preocupado com uma
fórmula que eu estava aprendendo em Biologia e resolvi fazer isso com meus
alunos. Eu esperava isso do meu professor, então, na verdade, eu fazia para os
meus alunos o que eu esperava do meu professor.
Então era assim, minhas aulas eram tradicionais, mas tinham esses insights,
porque naquela época ninguém falava como as aulas deveriam ser. Eu ficava
agoniado com as minhas aulas e inventava coisas diferentes.
Eu tinha uma amiga que fez o Inajá I, ela terminou em noventa e nove. E o Inajá
trabalhava isso, a Matemática e o comércio. Nós conversávamos e a gente
inventava aulas fazendo simulações em uma vendinha. Tinha moeda corrente
dentro da sala, confeccionada pelos alunos, tinha a questão da balança, os alunos
confeccionavam. Confeccionando a balança você aprendia o mecanismo da
balança. Nós fazíamos uma visita no comércio real para dar uma sacada nas
embalagens, como eram feitas. Aí simulávamos um comércio na sala de aula e
discutíamos várias coisas da Matemática, a moeda, a questão do preço, o volume
das embalagens.
Então, na verdade o insight não era meu, vinha de ver as outras pessoas fazendo,
principalmente no Inajá, e eu acabava me arriscando também. Um pouco vinha
da minha cabeça, mas o referencial de ver a Matemática de outra forma vinha de
fora.
Eu posso dizer que na minha prática tinha três enfoques: o que eu via, o que eu
recebia e o que eu queria dar. Eu recebia de uma forma tradicional, mas vendo o
pessoal do Inajá e a maneira diferenciada com que eles trabalhavam eu refletia
sobre o que estava recebendo e queria trabalhar dessa maneira com meus alunos.
***
Essa troca com o pessoal do Inajá se dava da seguinte forma. Eu era secretário da
secretaria, e a secretária, a Maria Osanete de Medeiros, via em mim, não sei o
quê, e abriu um concurso da prefeitura para supervisor de educação, e ela me
botou fogo: – Faz Adailton, faz esse concurso. Eu nem sabia que eu podia fazer,
tinha aquele medo e tal. Fiz, passei e fiquei como “pseudo-funcionário” um ano,
pois tinha dezessete anos e eles contratavam só com dezoito. Me contrataram por
tempo determinado até que eu completasse dezoito anos.
Eu posso dizer que essa foi a minha formação. Quando eu chegava na academia
era só para conferir.
***
Vou fazer uma comparação da educação hoje e antigamente. Eu acho que hoje se
tem mais liberdade na escola, mas essa liberdade não é explorada. Antigamente
não tinha essa liberdade, então, algumas manifestações eram meio proibidas, mas
acho que a gente aprendia mais com isso. E também tinha a questão da rigidez,
eu, por exemplo, tinha que aprender as dez casas da tabuada, senão ficava sem
recreio. Hoje não se fala mais nisso.
Esta liberdade está sendo usada de duas formas: tem gente que devido a essa
abertura não ensina nada, não discute nada, e outros que realmente fazem coisas
diferentes. Por exemplo, lá no Mato Grosso, o Terceiro Grau Indígena, é um
curso que não tem a ementa pré-definida. A ementa dele é pensada conforme as
decisões dos povos indígenas. Se eles falarem que não querem estudar
Matemática na Graduação, por exemplo, foi decisão deles. São algumas
discussões bem complexas para se discutir. Mas eu vejo que isso é possível. Mas
mesmo com essa abertura ainda é podado um monte de coisa.
Talvez pelo fato de eu ser novo eu não consiga enxergar ainda os resultados
dessa abertura, né? E eu acho uma pena não ter pessoas mais audaciosas. Eu acho
que apesar de ter essa abertura, e eu até me coloco nesse meio, nós ainda não
demos conta de pensar a educação voltada para os anseios sociais. A gente tem
esse, discurso mas de fato acontece pouca coisa. A gente não dá conta de sair
dessa estrutura, de disciplina, aula, sala de aula. Sabe? Essa estrutura de
quinhentos anos atrás, européia, copiada. Para que a Academia reconheça algo
como aula tem que ter o professor lá na frente, “cuspe e giz”. E a gente só se
caracteriza como aluno se estivermos sentados, ouvindo alguém. Falta quebrar
isso.
***
59
Eu já dou aula há uns dezesseis anos. Um dos meus grandes desafios foi entrar na
Graduação. Eu entrei no barco e tirei o pé da ribanceira. Porque ali, na
Graduação, eu tive que rever muitos conceitos. Outro desafio foi entrar no curso
de Matemática da UNEMAT para dar aula, onde eu trabalho até hoje. Tinha uma
vaga lá pra professor de Geometria Analítica, e eu precisei me matar de estudar
para passar neste teste, porque, na época, eu só tinha Graduação. Aí eu peguei a
primeira turma do curso. Então meus alunos eram pessoas bem maduras, que já
tinham assim, quinze anos de banco, eu era o mais novo. Aquilo foi um grande
desafio para mim. Eu tinha que dar conta da resposta. Eu sonhava com a
disciplina, deitava e sonhava com a aula que eu tinha dado seis horas atrás.
Eu me lembro de uma coisa assim que foi um choque. Esse choque já era em
conseqüência da minha experiência. Eu dei uma prova texto. A prova de
Geometria Analítica era um texto para ser analisado matematicamente. Não tinha
nenhum número, não tinha número. Eu dei essa prova nove e meia, a aula ía até
onze. Eu dei um texto, de nove e meia a onze, para ser analisado
matematicamente. Vinte para as onze os alunos estavam com uma cara de raiva
para mim que se me pegassem me macetavam. Eu disse: – Turma e aí, está
terminando o tempo, nós temos que ir embora. Daí teve um que não agüentou e
estourou comigo: – Onde já se viu, fazer prova que não tem número, onde já se
viu colocar texto. E falou que se ele tivesse que ler, ía fazer um curso de Letras e
não sei o quê. Eu me espantei, né? Porque aquilo já era natural para mim, por
causa da minha vivência, dos meus ideais. Acho que eu tinha que ter tomado um
cuidado maior. Eu acabei dando um tempo maior. Ficamos até meia noite na
universidade fazendo a prova. Eles entregaram e de trinta alunos, só uns quinze
arriscaram escrever alguma coisa, os outros não escreveram nada.
discutirmos fizeram a prova em trinta minutos. Até hoje, quando eles me acham
na faculdade, eles comentam dessa prova.
Claro, eles tinham razão em reclamar, porque a formação deles deveria ser igual
a nossa, a Matemática pela Matemática, calcular, calcular, sem nunca pensar
sobre. E de repente chega uma prova na Graduação, eles, almejando uma
Graduação, e de cara recebem uma prova que bloqueia!
Eu acabei construindo essa idéia de aula, como um desafio, fazer uma coisa que
tente desmanchar o que eles têm feito para que eles reconstruam. Por exemplo,
na Geometria Analítica, eu não gosto de chegar logo calculando a distância entre
dois pontos no plano cartesiano. A idéia é ir perguntando, desmontando o que
eles têm feito, o que está cristalizado. E na Graduação, quando eu trabalho
Matemática com os últimos semestres que é um curso que não tem Geometria
Não-Euclidiana, eu começo a quebrar a Euclidiana e eles começam a questionar:
– Professor, mas ninguém falou isso para gente até agora. Eu digo: – Mas isso a
gente tem que buscar fora, a Graduação não acontece só aqui.
***
Eu acho que nesses dezesseis anos eu mudei minha prática, mas não sei para
onde a mudança foi. As pessoas é que vão me dizer se estou mudando para
melhor ou pior. Mas acho que eu tenho conseguido trabalhar mais com o que eu
acredito. Eu estou conseguindo colocar mais o que eu acredito nas minhas aulas.
Antigamente eu tinha alguns insights, eu trabalhava com “cuspe e giz”. Acho que
isso era meio inconseqüente mesmo. No Ginásio por exemplo, era meio que
tradicional mesmo, cuspe, giz e quadro, algumas vezes eu fazia algo diferente.
Hoje eu acho que tenho mais isso. Tenho dificuldade na Graduação porque é um
sistema muito fechado. No curso que eu trabalho a aula é de quarenta e cinco
minutos, um absurdo. A gente não dá conta de quebrar essa estrutura e você
também termina se adequando à ela. Não acredito que seja possível fazer
mudanças sozinho. Mas eu acredito que houve mudanças sim. Mas a mudança
assim é de eu conseguir mostrar com mais clareza o que eu acredito. Colocar isso
na minha prática mais nitidamente. É a minha mudança.
***
61
Tem aulas que não me agradam, por exemplo, o professor define, exemplifica e
manda exercícios, depois fala que este conteúdo poderia ser aplicado em tal
coisa, e não fala mais nada, entende? Eu não gosto desse tipo de aula. Mas, se eu
for aluno desse tipo de professor, eu sei tirar proveito, porque acho que eu já
tenho maturidade para isso. Eu não acredito que a gente tenha que ir para aula e
ficar questionando a postura do professor, acho que é ele que tem que questionar
a dele. Se você se propôs a ir para aula você tem que ver o que aquilo lá te traz. É
você que tem que olhar de outro ângulo. Você não tem necessidade de olhar pelo
mesmo ângulo que ele está dando. Não é porque o professor está dando aula
nessa perspectiva, que eu tenho que olhar sob essa perspectiva. Mas é uma aula
que eu não gostaria de ter. Agora, devido a não dar conta de quebrar essa
estrutura eu já tenho essa maturidade de olhar uma aula como essa de outra
maneira.
***
Olha, já que estamos falando em tipos de aula, veja desde noventa e oito eu
trabalho com formação de professores e a maneira que eu gosto de trabalhar é
discutir a História de determinado conteúdo, como se pode trabalhá-lo em sala de
aula. Como eu acho que o tempo das aulas são muito pequenos eu solto algumas
temáticas para que eles fiquem pensando durante o semestre, para que a gente
possa discutir em seminários. Muitas vezes o aluno não saca, não pega o lance do
seminário, vê como tarefa e às vezes a gente não tem sucesso. Mas na minha
disciplina eu sempre procuro buscar algo fora, né?
Já no Terceiro Grau Indígena é outra estrutura. Você trabalha com o aluno oito
horas por dia, durante uma semana ou duas, conforme a carga horária da
disciplina. Aí eu mudo, porque me permite, a estrutura me permite.
Teve uma época em que eu trabalhei com uma colega da Federal de Ouro Preto.
Nos propomos a trabalhar com projetos. No Terceiro Grau Indígena os alunos,
que são professores indígenas, são levados para uma escola agrícola, onde eles
ficam morando durante a etapa. Nesta disciplina nós dividimos a turma de
cinqüenta em dez grupos, e cada grupo teria que encontrar, naquele contexto,
uma problemática para estudar. E como tinha um período grande para trabalhar,
das oito às seis horas da tarde, com intervalo para o almoço, dá tempo de
observar, problematizar, matematizar e depois socializar. Por exemplo, eu lembro
que tinha um grupo que resolveu medir a altura de uma caixa d’água que não
dava para subir. Para nós isso é muito simples, mas para eles que vêm da aldeia,
em outro contexto, aquilo era um problema. Outro projeto era discutir a
geometria da quadra de futebol, pois na aldeia não tinha quadra. Tinha um
projeto da plantação de pinha. Não sei se foram eles que perguntaram ou nós que
mandamos o desafio, isso era indiferente. Me parece que fomos nós que
questionamos. Será que caberia mais plantas na plantação? E aí eles foram
discutir a disposição das plantas, se estava muito espaçado, muito apertado.
62
Eu levava meus alunos da Graduação para trabalhar comigo neste curso, porque
eu também queria mostrar aos meus alunos este tipo de trabalho, e eles
precisavam fazer estágio, então eu proporcionava a eles a oportunidade de fazer
estágio em um ambiente diferente. Num desses trabalhos, eu tinha levado um
aluno meu, às vezes levava dois, até quatro. A escola tinha um minhocário. E
esse meu aluno vende minhoca para pescaria. O desafio que colocamos para os
indígenas era saber quantas minhocas tinha ali, se a população já estava muito
grande ou se dava espaço para elas se reproduzirem. Este aluno, por causa
daquele trabalho, acabou fazendo especialização com o Rodney Bassanezi em
Modelagem Matemática.
Agora, não dava para trabalhar dessa forma na Graduação regular, com a
estrutura do curso de Graduação, com quarenta e cinco minutos de aula.
***
***
Eu ainda não falei para você, mas eu morei sete anos em Goiânia. Por questões
políticas eu tive que sair.
Nessa época eu tinha que sair de Porto Alegre do Norte e ir a Luciara fazer
Graduação. A primeira coisa que esse prefeito quis fazer era cortar o nosso
salário enquanto estivéssemos em aula. Nós batalhamos e conseguimos manter
nosso salário. Mas, acho que ele pensou que era um absurdo manter nosso
pagamento enquanto estudávamos, e resolveu não depositar o nosso salário, o
meu e de mais cinco petistas, para todos os outros funcionários ele depositava.
Então, ele queria que a gente saísse de Luciara, perdesse aula e fosse até Porto
Alegre do Norte para receber da mão dele. Acho que para nos humilhar um
64
pouco. Daí eu pegava e pedia para uns amigos meus da prefeitura, do mandato
anterior, para pegar o cheque, mesmo sem a minha assinatura e dava para minha
mãe. Mas aquilo foi me irritando. Segurei um ano assim, nesse massacre. Eu ía
na prefeitura trabalhava minhas seis horas, não conversava com ninguém.
Reunião que eu encaminhava deixei de encaminhar. Cumpria horário, fazia
aquelas tarefas pontuais, tarefeiro mesmo, não fazia mais propostas, eu não
falava mais nada. Mas aí eu vi que isso era contra meus princípios e, mesmo
concursado, pedi a conta. E daí vem aquele peso: – Estou desempregado. E
agora?
***
Neste tempo, meu irmão já morava em Goiânia tinha dois anos e ficava me
chamando, sempre me chamando para ir. E aí com essa eu ganhei coragem. Fui
para Goiânia. Eu fiquei morando em Goiânia e voltando a Luciara em época de
aula. Fiz isso em noventa e quatro, noventa e cinco, noventa e seis e em meados
de noventa e sete.
Se você olhar meu currículo, esses cinco ou seis anos está em branco, porque eu
comecei a trabalhar em outra área. Meu irmão tinha um comércio de confecção, e
eu trabalhava com ele, só para agüentar terminar a Graduação porque não tinha
outra fonte. E nesse meio tempo eu fazia algumas coisas assim, dava aula de
graça para um colégio, só para matar um pouco a minha vontade, a saudade de
contato com aluno. Quando eu terminei a Graduação, aí eu faço o concurso para
o curso regular de Matemática e vou para Barra do Bugres, onde também acabo
trabalhando com a escola agrícola e com o projeto da UNICEF.
Este projeto não exigia a permanência minha no local, então, eu podia morar em
qualquer lugar do Brasil. Eu ficava dez dias em aldeia. E, quando eu fui para
Barra do Bugres, eu já estava casando e a minha esposa já tinha um serviço lá.
Nós estávamos praticamente casados e ela arrumou serviço lá na Parceladas. Ela
foi formada na Parceladas também e arrumou serviço para coordenar um curso da
Parceladas. Então faço o teste seletivo para o curso regular, e como era à noite eu
pego aulas no Ensino Fundamental também.
65
Nas Parceladas eu comecei em noventa e oito e dei aula até dois mil e dois e no
regular eu comecei em noventa e nove.
***
Bom, como você deve ter notado eu sempre trabalhei com formação de
professores. E é claro você acaba encontrando aqueles professores mais
resistentes. Então, por exemplo, na Parceladas, eu trabalhava com cinqüenta
professores, e quando eu vejo uma certa resistência eu tento me aproximar mais.
Porque não adianta eu ficar querendo convencer a pessoa a distância. Esta é uma
característica minha também, esses caras que são meio antagonistas das minhas
idéias, eu me aproximo mais.
***
66
Te dar a entrevista foi bom porque me fez pensar coisas que eu nunca tinha
pensado, como na minha formação, essas coisas. Quando falamos de nós mesmos
a coisa fica mais difícil. O que é ruim da História, das entrevistas, é você voltar
nas coisas que foram maçantes. A gente fica para baixo. Ontem você percebeu
que tinham umas coisas que eu não queria tocar, porque são coisas que foram
muito ruins.
Mas o que eu gostei foi lembrar de tudo o que eu já fiz e não tinha percebido. Eu
estou curioso na hora de você escrever. Vou mudar meu itinerário educacional.
Eu vou ter muita coisa para colocar que eu não dava conta de contar para mim,
entende? Que escrever é mais difícil, falar assim é mais fácil. Agora, colocar isso
no papel é que é difícil. Quando eu pegar isso escrito, sistematizado. Eu estava
pensando assim: – Vou ter que abusar da boa vontade do Emerson, para pegar
isso e escrever o itinerário.
Outra coisa que eu achei interessante é que eu te conheço um pouco e sei que
você é bem conversador e aqui você ficou o tempo todo calado, com poucas
interferências. A metodologia te prende. Então é isso.
67
Iniciei pelo que fosse mais simples de contatar: no meu caso, como
estava em um programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, um doutor
em Educação Matemática.
Dentre as possibilidades que me surgiram optei por entrevistar o
professor doutor Romulo Campos Lins. Com ele já havia cursado uma disciplina,
Filosofia da Educação Matemática, e a maneira com que suas aulas eram
conduzidas despertou-me interesse. Além disso, a leitura de Silva (2003),
pesquisa conduzida sob sua orientação, levou-me a conhecer melhor o Modelo
Teórico dos Campos Semânticos, ampliando ainda mais a curiosidade em
entrevistá-lo e poder abordar temas dessa cercania.
Entrevistei Romulo em junho de 2004. Acredito ser importante ressaltar
que, na segunda entrevista, percebi que as fichas não fariam sentido para ele e as
abandonei durante boa parte do tempo.
Bom, primeiro vou fazer uma biografiazinha breve, né? Eu nasci em cinqüenta e
cinco, na cidade do Rio de Janeiro, mas com menos de um ano minha família se
mudou para São Paulo e eu fui morar no bairro do Brooklyn. O Brooklyn, na
época, era um bairro afastado, hoje em dia é bem no meio da cidade. O próximo
bairro depois do Brooklyn era quase que zona rural, cheio de chácaras. Tinha o
Brooklyn Novo, que era mais perto do rio Pinheiros, e tinha o Brooklyn Velho
que era na parte alta, tinha casas mais antigas. Esse bairro era no caminho de
Santo Amaro. Santo Amaro chegou a se separar, virar um município e depois a
população pediu a integração. Isso era para você ter uma idéia de que, naquela
época, o Brooklyn era um lugar afastado, muito sossegado. Eu morei lá de
cinqüenta e seis até, acho que, setenta e três talvez.
Depois eu fui morar em Pinheiros, na Vila Madalena. Ou seja, saí da zona Sul e
fui para a zona Oeste. Pinheiros é o primeiro bairro a ser fundado fora do centro
de São Paulo. O primeiro núcleo que surgiu fora do centro foi Pinheiros. Então é
um bairro muito tradicional. Hoje, por ele ter ficado no meio da cidade, isto se
perdeu. Descobri isso numa publicação que falava sobre a história do bairro. E aí
eu fiquei lá até o comecinho de oitenta e oito.
Agora que eu lembrei, teve um tempo que eu morei em Recife. Quando eu tinha
acho que seis para sete anos, a gente foi morar em Recife, no Bairro da Boa
Viagem. Ficamos morando uns oito a dez meses, acho que foi de julho de
sessenta e dois até o começo de sessenta e três. É que a família de meu pai é de
Pernambuco, e da minha mãe é da Bahia e meu pai foi trabalhar com meu avô.
***
Aliás, a profissão dos pais, para gente já ir pegando estes itens aqui. Meu pai era
corretor de seguros, seguro de vida, viajava muito. Minha mãe, depois que se
casou, meu pai proibiu terminantemente de trabalhar. Essas coisas de machismo
nordestino. Ela inclusive tinha vontade de fazer faculdade, não sei se era Química
Industrial, Engenharia Química eu não lembro. Mas ele falou que mulher dele
não trabalhava. E aí a atividade profissional que ela exercia informalmente era
dar aula particular em casa, de Matemática inclusive.
Uma cena que me marcou foi a seguinte: um dia eu cheguei e ela estava dando
aula para um garoto e eu não sei porque eu parei lá e fiquei olhando, e me
impressionou que tinha um monte de letra lá e de repente ela saiu com número.
Eu perguntei depois: – Olha mãe, como que você pega um monte de letra e faz
virar número? Eu não lembro o que ela falou, acho que ela riu, achou engraçado,
e ficou por isso mesmo. Mas é incrível como eu lembro, e lembrava muito antes
de eu ser professor.
Minha mãe dava aula de outras coisas também, aula de Ciências. E também teve
uma época, porque a gente estava sem grana, que ela fazia bicho, tipo bicho de
pelúcia. E ela cuidava da gente também. Então essa era a atividade profissional
dela.
Mais tarde, ela tinha se separado do meu pai, entrou na PUC e foi fazer
Psicologia. Aí ela já tinha uns cinqüenta e um anos. Fez o curso e atuou como
terapeuta, psicologia clínica, até recentemente. Hoje ela está com oitenta e um
anos. E é uma outra coisa que foi interessante porque enquanto eu estava fazendo
a faculdade ela estava fazendo também e a gente acabava conversando sobre as
coisas que ela estava vendo e que eu não estava vendo, porque eu comecei com
Engenharia.
70
***
Meu pai ficou todo orgulhoso que até eu me animei e acabei ficando. Só que
mesmo no primeiro ano eu já sentia falta de alguma coisa. Eu não estava à
vontade em ficar estudando só uma coisa técnica. Um dia eu cheguei para minha
mãe, acho que no fim de setenta e cinco, e falei assim: – Escuta mãe, você não
tem algum trabalho assim, algum curso que você não tem problema de nota, que
você pode me deixar fazer um trabalho seu? E ela morreu de rir e falou: – Ah, faz
esse trabalho aqui. Era sobre a questão da socialização das crianças, um lance de
ver como as crianças estavam se socializando mais cedo por conta da televisão,
da novela e tal. Era porque eles viam relacionamentos adultos e queriam imitar. E
hoje em dia a gente vê, por exemplo, minhas filhas, estão no Primário e já falam
de namorar, e de ficar, se gosta ou não gosta. Não acontece nada, mas já estão
construindo estas idéias. Inclusive tinha uns estudos mostrando que as meninas
da área urbana menstruam mais cedo que as meninas da zona rural, por causa da
estimulação que recebem. Bom, fiz o trabalho e depois ela tirou uma com a
minha cara dizendo que o professor comentou que este trabalho estava mais fraco
que os anteriores. Isto foi muito legal, pois a minha mãe era como uma colega de
faculdade.
Minha mãe tinha este espírito acadêmico, meu pai tinha menos. Ele gostava de
ler. Depois que eu estava grande ele foi estudar Direito. Eu nunca soube muito
bem por quê. Ele dizia que, como corretor de seguros, seria bom entender melhor
as leis. Eu acho que ele foi fazer porque ele queria ser chamado de doutor. E aí
ele fez um curso desses de fim de semana, levou muita fé e tal, mas era um curso
de fim de semana porque ele não tinha como fazer diferente. Ele começou em
Varginha e terminou em São João da Boa Vista. Eu até fui na formatura dele, não
fui na formatura da minha mãe, não sei porquê. Então esse era o ambiente, né? O
71
meu pai era um cara mais do mundo, tinha muita informação do mundo, viajava
muito, conhecia o Brasil assim, de ponta a ponta.
Engraçado que, embora ele tenha nascido em Pernambuco, ele dizia que era
gaúcho. Então, todo mundo sabia que ele era gaúcho. Gaúcho de Cruz Alta,
inclusive. Eu brincava e dizia que era porque a cidade que ele nasceu se chama
Escada, então era Cruz Alta porque tinha pego a Escada e subido. Ele adorava.
Mas ele era gaúcho de coração mesmo. O curioso que o Brizola morreu ontem, e
ele era um brizolista de carteirinha.
No dia que os caras deram o golpe, lá em sessenta e quatro, houve uma cena
assim, marcante. Meu pai pegou o trinta e oito, meteu na cinta e foi para a porta
falando assim, falando alto: – Temos que resistir, temos que resistir. E aí minha
mãe foi para porta, abriu os braços e falou: – Só sobre o meu cadáver. Parece
uma coisa de novela cara. Ela falava assim: – Tá louco Cláudio. Meu pai,
Cláudio e minha mãe Alda. Ela falava: – Tá louco Cláudio, você tem que criar
teus filhos. E aí meu pai desistiu. Acho que ele gostou que a minha mãe entrou
no meio. Era uma loucura, em São Paulo, o Terceiro Exército todo na rua. Ia
levar uma bala logo “nas orelha” e ía acabar a história.
Ele sempre foi brizolista e eu também. Sempre botei a maior fé no Brizola até a
famosa entrevista que até reprisaram ontem. Eu já era grande, não me lembro
exatamente se foi oitenta e um, oitenta e dois, não tenho certeza. O Brizola falava
que estava voltando do exílio com o coração reconciliador para assumir a família
brasileira. Eu fiquei completamente decepcionado. Eu achava que ele ía falar
para retomarmos o caminho do socialismo e essas coisas, mas de lá para cá ele
deu uma maneirada legal. Mas meu pai era um brizolista.
Bom, mas eu estava falando que ele conhecia o Brasil inteiro. E, assim como eu,
ele sempre gostou de contar histórias. Contar histórias das viagens, das coisas
que ele viu, coisas da história de vida dele, assim como eu faço com meus filhos
hoje. Mas não era só contar. Meu pai era culto. Ele contava do Brasil, dos hábitos
e tal.
Ele era um boêmio declarado. Então, todo dia saía do trabalho e ía em bar assim,
tipo de um bar de samba, esses lugares em que os caras cantam. Mas bar tinha,
antigamente, um outro nome. E aí ele conhecia esses caras da noite: Carlos
Paraná, Benito de Paula, conhecia jogador de futebol. Toda hora ele chegava lá
com um cartão autografado do Garrincha, do Vavá, dos caras que iam para
balada. Então meu pai trazia este aporte.
Às vezes o pai do meu pai vinha para o Sul e eu ouvia muito sobre a história da
família. Que tinha uma tia, irmã da minha mãe e coisa e tal. Gostava disso. Eu
escutei muito da história da família.
72
Mas eu tinha mais contato com a família da minha mãe, porque eles moravam no
Rio. E minha mãe trazia um aporte diferente do meu pai. Ela não contava o que
estava acontecendo, mas gostava de falar sobre isso. Então, por exemplo, ela
tinha um tio que era historiador, daí ela fazia referência a esse tio e contava a
história dos sistemas subterrâneos que ligavam os conventos em Salvador. E aí
não era só essa história, era a história de que mulher não podia entrar, e depois
tinha a história de que encontraram um monte de ossada de feto, de criança
pequena, né? Porque os caras iam de convento para mosteiro assim, Freira com
Padre ali, a vontade. Um fato curioso é que a família do meu avô foi gerada de
um casamento de um Padre negro, o Padre Eloi, com uma viúva loira de
Salvador. E isso na época era a coisa mais comum, todo mundo sabia.
***
Aí eu fui contar pro meu pai. A maior pressão. Meu pai pensou e disse o
seguinte: – Meu filho, fazer faculdade de música para quê? Às vezes eu penso
que, num certo sentido talvez, ele tivesse razão, porque se eu queria ser músico e
eu estava estudando no melhor conservatório de São Paulo, por acaso a cinco
quadras da minha casa, o meu professor de violão era excelente, meus
professores de teoria eram excelentes, todos músicos conhecidos, gente topo de
linha, para quê fazer faculdade? Só que eram todos jovens na época, depois
73
estouraram. E eu fui para faculdade estudar com os caras lá que eram todos uns
malas. Tudo estrelinha, ou surtado. E aí, meu pai, não só disse isso, como ele
cortou totalmente o subsídio à minha existência, então eu não tinha um puto. Não
tinha dinheiro nenhum para ir a qualquer lugar que eu quisesse, comer na rua,
sair, tomar cerveja, nada. A solução que eu tive foi dar aula particular.
Felizmente, eu me relacionava bem com pessoas que tinham vários canais, e eles
começaram a me passar aula e aí eu tinha bastante aluno, né? Então dava para
viver legal. Eu só não dava aula de Português. Essas coisas de Gramática, de
regra disso, regra daquilo, eu não queria nem ver na frente. Bom, eu fui dando
aula, dando aula, dando aula, e eu descobri que eu gostava de dar aula.
***
Eu fui procurar aula, porque queria dar aula, e tinha que dar aula para ter
dinheiro. Então eu pedi transferência para o período da noite para poder dar aula
de dia. Eu fui fazer um teste no cursinho Objetivo. A aula era sobre Conjuntos,
não me lembro. Aí o cara chegou no fim e falou: – Ó, faz o seguinte, prepara
melhor a lousa e volta aqui para fazer o teste de novo. O cara provavelmente ía
me contratar, né? Mas eu não voltei, dei sorte, porque se eu entrasse no Objetivo,
ía virar professor de cursinho, ganhar dinheiro e acabou. Lembro que esse mesmo
cara reapareceu na minha vida uns quatro anos mais tarde em um curso de Teoria
dos Números na USP. Eu dei um seminário e ele falou: – Agora tua lousa está
boa. Vê que incrível.
ligado, se tinham dado notícia. É porque acho que eu não tinha telefone em casa.
E estou lá conversando com a mãe dessa amiga, e quando estou indo embora, o
pai da menina, que era engenheiro e me respeitava muito porque eu estudava na
Poli, passa por ali e eu falo que saí da Poli. O pai da menina botou o olho desse
tamanho: – Como você vai sair da Poli? Aí eu falei assim: – Sabe o que é que eu
descobri? É que eu gosto mesmo é de dar aula e eu vou ser professor de
Matemática. Já pedi transferência e estou procurando aula. O cara queria morrer.
Daí, a mãe da menina, que eu sabia que era professora de uma escola, professora
de Estudos Sociais, vira e fala assim: – Não acredito, nós estamos precisando de
um professor de Matemática, você não quer ir lá no Sarmento conversar com o
Marcelo. O Marcelo Lellis. Na época o Lellis não era autor de livro. Ele era mais
conhecido como jogador de xadrez, chegou a ser o oitavo do ranking brasileiro.
Bom, ela telefonou para ele e no outro dia eu estava lá na escola. Era uma escola
de classe média alta. Conversei com o Marcelo durante uma hora, uma conversa
muito agradável. Fui contratado. E essa foi a metade do que eu considero a minha
verdadeira formação. Ser professor com um orientador que era o Marcelo Lellis.
Ele tem uma formação humanística muito boa, conhece muito de Filosofia. Tinha
uma formação Matemática flexível, e falava de Matemática com muita
flexibilidade, como ele fala até hoje, né?
Ele tinha uma leitura de sala de aula interessante e me dava uma liberdade que
era absurda. Eu podia sair da sala com os alunos, podia fazer álgebra formal.
Teve uma turma de sétima série em que eu fiz álgebra formal, formal, formal,
tipo demonstrar que o oposto de um número vezes o oposto de um número dá o
produto dos dois, menos a vezes menos b dá ab. E era uma turma completamente
louca. E, por incrível que pareça, alguns dos alunos mais alucinados, foram os
que mais gostaram. Bom, enfim, ele me dava uma liberdade enorme. Mas ele me
orientava, era bem nesse esquema de mestre-aprendiz, né? Que a gente está
comentando bastante agora no grupo 12. Era como se eu estivesse fazendo uma
residência médica. Porque eu era responsável por aquilo, tinha liberdade de
tomar decisão, mas sempre com uma supervisão. Ele me introduziu muita coisa
de leitura. Trabalhei lá durante cinco anos.
12
O depoente se refere ao grupo de pesquisa Sigma-T vinculado ao Programa de Pós
Graduação em Educação Matemática da UNESP-RC, sob sua coordenação.
75
estava lá e a gente se aproximou, eu fui ficando amigo do pessoal que tinha mais
raiz no curso, do pessoal que saía junto.
E daí aconteceu um negócio muito louco. O Bigode tinha experiência de dar aula,
mas era para Educação de Jovens e Adultos, para Supletivo. E aí ele arrumou um
emprego numa escola chamada Novo Horizonte, que era lá na Vila Madalena.
Era uma escola como a Escola da Vila. Essa Escola da Vila é uma escola modelo,
construtivista, mas muito séria, com gente que faz pesquisa, publica muito,
forma, tem muito curso de formação de educador, e essas coisas. E a Novo
Horizonte era um começo. Acho que até a Madalena Freire estava metida nessa
escola. E aí o Bigode foi contratado para dar aula para criança e ele nunca deu
aula pra criança. Então ele veio me perguntar, porque eu já estava dando aula pra
quinta série, sexta série e tal: – Ah, não sei o que eu faço. Ele não tinha a menor
idéia, né? Ele nunca tinha dado aula para criança, que nem eu quando comecei,
eu também não tinha idéia. Então a gente foi contando tudo o que fazia, e logo o
Bigode um cara muito articulado, com todo aquele espaço criativo em volta dele,
voou e me ultrapassou completamente. Para mim é impossível achar um melhor
professor de Matemática.
Ele tem muita organização, coisa que eu não tenho. Eu, como professor de
criança, eu sofria, porque eu não tinha facilidade para organizar as rotinas. Que é
algo importante em sala de aula.
O Bigode me abriu outra vertente. Eu comecei a me reunir com ele e a gente fez
um grupo nosso junto com um outro cara, o Paulo Neves. A gente sentava para
discutir os nossos projetos, nossos materiais. Essas reuniões foram muito
produtivas, são coisas que hoje eu defendo, porque funcionou comigo. Eu me
formei dessa maneira, participando de grupos cooperativos.
***
Quando eu defendo o Mestrado Profissional é isto que está por trás. Porque o
Mestrado Profissional pode formar gente capaz de estimular o surgimento e
funcionamento desses grupos e, no Mestrado Acadêmico não vale a pena você
gastar esforço para isso, mesmo porque, muitos não têm interesse. As autoridades
educacionais gastam muita grana diretamente no professor, com curso de
reciclagem, aquelas coisas tipo Faxinal, tipo Serra Negra aqui em São Paulo, e
não investem em alguma coisa que é muito mais barata, que seria a formação, e a
manutenção desses grupos, o desenvolvimento desses grupos. O efeito
multiplicador é maior e é duradouro. Chega uma hora que se você tiver uma rede,
se a gente conseguisse criar uma rede dessas, mesmo que fosse em Rio Claro,
chega uma hora que você não tem mais que ficar estimulando e tal. Aquilo vai se
tornar de uma tal maneira parte do bom andamento da atividade profissional, que
ninguém vai querer que pare.
***
76
Desse grupo participavam também a Maria Amabile Mansutti, que foi uma das
autoras dos PCN’s, a Dulce Onaga, que tinha muita experiência, e o Paco, um
professor fantástico, lamentavelmente falecido. Esse grupo se chamava: Grupo
de Estudos sobre Resolução de Problemas - GERP, e foi o primeiro grupo aqui
no Brasil que se dedicou a isso. Curioso que a gente nunca publicou nada. Acho
que tem a ver com a natureza de todos os membros lá. Mas demos muito curso.
Inclusive, foi nesse grupo que eu pude discutir coisas do Piaget que me deram
certeza de que não seria em Piaget que eu iria encontrar as respostas ao que eu
queria. Porque teve uma fase aí que eu estudei muito Piaget. Eu dava curso de
Piaget na PUC e no Instituto Sedes Sapientiae. Tinha um grupo particular de
quatro psicopedagogas que eu orientava. E foi discutindo certas coisas no GERP
que me deu certeza de que não era Piaget que eu queria.
E foi por causa disso que eu saí do grupo. O pessoal achava que eu estava saindo
do grupo porque eu não estava bem pessoalmente. Curioso esse imaginário. A
Maria do Carmo falava: – Mas Piaget fala disso. E eu ficava atormentado: – Não,
não fala. Ele fala de outra coisa. Aí, acabou que eu saí, né? Isso foi em oitenta e
seis, começo de oitenta e sete. O GERP durou mais um tempo e acabou também.
E algum tempo depois disso eu não dei mais aula em escola. Depois do Sarmento
eu dei aula em Supletivo, de Educação Artística, é claro que não deu certo,
trabalhei em uma escola em Cotia, era uma chácara. Só uma sala de aula tinha
quatro paredes, as outras todas eram salas abertas. Abertas fisicamente. Tinha
uma muretinha assim, mas era aberta, né? Lá eu fui professor de Matemática, fui
orientador educacional, fui orientador de Matemática. Depois disso eu fiz um
concurso para a Escola de Aplicação da USP e comecei a dar aula lá no começo
de oitenta e sete.
Lá aconteceu um negócio louco. Chegou um dia que eu me dei conta que eu não
estava mais a fim de acordar todo dia e ir para a escola dar aula, todo dia, eu não
estava a fim. Eu adorava a escola, adorava os alunos, fazia um trabalho que eu
gostava. Foi assim: teve um dia que eu acordei sete horas da manhã, que era o
horário que eu acordava sempre, seis e meia, não sei. Fiquei olhando para o teto e
77
falei: – Não vou dar aula hoje, não quero dar aula. Avisei a diretora. Ela deve ter
achado que eu não estava bem de saúde e disse que tudo bem. No dia seguinte a
mesma coisa, só que desta vez eu falei: – Eu não quero mais dar aula. E isso era
um negócio muito louco porque esse era um concurso super cobiçado, porque era
permanente, eu era praticamente funcionário da USP, ganhava mais do que na
rede, tinha excelentes condições de trabalho. Isso foi em maio, começo de maio,
e, de lá para cá eu nunca mais dei aula regularmente em uma escola.
O garoto tentou um pouquinho, e falou: – Ah, não sei, fala aí como é que faz. Eu
disse: – Ah, pensa um pouco, né? Aí ele tentou mais um pouquinhozinho: – Ah,
não sei não, faça aí. Eu falei: – Ah não, não vou te dar a resposta, você tem que
pensar por você mesmo, é importante. Foi a coisa mais impressionante a reação
dele. Ele pegou o giz, jogou na lousa e começou a falar: – Vai pra puta que pariu,
vai se foder porra. Xingou tudo que dava, bateu a porta e saiu furioso. Aí eu me
dei conta de que esse cara não estava acostumado com essa frustração, não era
natural para ele. Essa frustração de ter que ficar tentando fazer uma coisa e não
conseguir. Na rua, se ele não conseguia ele ía embora, largava aquilo e ía
embora. Ainda mais um problema absurdo daquele, que sentido pode fazer? Ele
sabia que eu tinha a resposta. Ele tentou, não conseguiu: – Fala aí. Quem sabe eu
devia ter dado a resposta, e depois ter dado um outro problema parecido, sei lá.
Aí eu saí, fui atrás dele, consegui encontrar lá na escada. Aí eu falei: – Ó, eu vou
te explicar porque eu falei aquilo. Porque na rua você vai ter que resolver as
coisas, não vai ter alguém pra te dar a resposta. Foi a única coisa que eu consegui
dizer para ele. Aí eu fiquei quieto. Mas eu não fiz mais isso, evidentemente.
***
78
Voltando a falar do bairro da minha infância. O bairro era bem bairro mesmo.
Naquela região tinha muita chácara que produzia flor. Minha casa era quase na
esquina, em frente, bem em frente tinha uma padaria e na outra quina da esquina
tinha uma chácara. Na quadra de baixo também tinha chácara. Tinha campo de
futebol de várzea. Tinha um campo grande, com time de camisa e tudo, o Real
Parque. A gente ía ver jogo no fim de semana.
Virando a outra esquina, numa vilinha, morava minha professora de piano. Todo
mundo se conhecia. Era uma coisa muito local, muito segura, tanto que desde
molequinho, minha mãe me soltava na rua, né? Eu brincava com a minha irmã, a
gente deitava no meio da rua e ficava lá deitado. Deitado no meio da rua, e não
passava nada, quando via passava uma carroça. Tinha feira na porta de casa.
Então tinha um dia lá que meu pai tinha que acordar mais cedo para tirar o carro
porque senão, depois não saía.
Foi bem tranqüilo. Mesmo a zona Sul braba, Vila Prel, Jardim Ângela. Não era
essa violência que é hoje. Eu, com catorze anos, ía para Vila Prel que hoje em
dia, acho que nem polícia quer entrar. Eu ía para o clube do Banco do Brasil,
voltava à noite, quando o clube fechava, a minha mãe não tinha a menor
preocupação.
Em setenta, eu devia ter uns quinze anos, na época braba da ditadura, eu fui com
um grupo de amigos para Santos, porque lá tinha uma pista grande de autorama e
a gente quis ir. Só que a gente resolveu ir à noite, né? Meu pai falou: – Ó, você
não vai fazer isso. Você acredita que a gente foi para Estação da Luz à noite, só
molecada. Chegamos lá, estava fechado, obviamente não tinha mais trem,
passamos a noite na Estação da Luz do lado de fora, na rua, e não aconteceu
nada. Um cara veio com umas conversas, vocês vão dormir aí, vocês não querem
ir dormir no meu apartamento. Aí chegou um outro cara e falou para ele assim: –
Ó, sai, sai, sai, sai fora, deixa os meninos em paz. E a gente depois foi se tocar
que o cara era policial. Então você vê, isso hoje em dia é completamente
impensável.
***
Oxford, que era uma escola particular, meio perto de casa. No segundo ano eu
saí, não me lembro nem exatamente porquê, acho que minha mãe não estava
satisfeita, passei por uma escola que se chamava Pequeno Polegar, que era uma
escola progressista, sei lá. Daí eu fui para Recife, isso eu tinha sete anos, fiz oito
lá, foi em sessenta e dois, sessenta e três. Em Recife eu estudei numa escola que
chamava Instituto Boa Viagem, que era uma escola realmente progressista, eu me
lembro, tinha aquelas coisas de barrinha Cuisinaire, família de números. Era uma
escola realmente legal. E o lugar também era legal, a molecada brincava,
também, solta lá. Terreno baldio, guerra de mamona com estilingue, aquele
negócio. Aí eu voltei e fui para um grupo estadual, que atendia a classe média,
chamada Grupo Escolar Mário de Andrade, no Brooklin. Ali eu fiz a terceira
série.
Depois disso, minha mãe me mudou para um grupo municipal que era mais perto
da região do Rio Pinheiros, que na época não era poluído como hoje. E esse
grupo municipal atendia mais a classe popular, o pessoal do bairro Real Parque
que depois virou uma favela enorme, super problemática. Então eu vi uma
diferença enorme, por exemplo, no Mario de Andrade eu nunca vi uma briga e
neste grupo municipal, eu vi uma em que o moleque saiu, um cara do bem,
amigo meu, e foi buscar uma faca em casa. E do outro lado do rio, tinha a classe
nobre, no Morumbi.
Daí eu fiz vestibulinho para três escolas: a Alberto Comte, uma escola muito
tradicional em Santo Amaro, não passei, fiz para um colégio também muito
tradicional que se chama Alberto Levi, que era do lado do Ibirapuera, nessa eu
passei, e para essa Escola Vocacional que era no Brooklin, que eu também
passei. Fiquei nessa Escola Vocacional. Minha mãe, sempre metida com essas
coisas de Educação, descobriu que lá tinha um projeto diferenciado. Eu lembro
que um dia foram duas pessoas dessa escola em casa e conversaram com minha
mãe, aí eu entrei. Eu estudei lá, ginásio e colégio. Repeti a primeira série, que
seria a quinta série hoje. Eu entrei com dez anos na primeira série, e como eu era
alto e eles dividiam os alunos por altura eu acabei ficando com um pessoal mais
velho, então eu não tinha o menor interesse, praticamente não tinha amigo. E aí
eu simplesmente fui largando, largando e eles falaram que eu estava reprovado.
Para mim era o que tinha que acontecer mesmo. Não fiquei traumatizado, nada.
Depois eu caí com uma turma que tinha tudo a ver, fiz muitos amigos, ótimos
amigos. Alguns até hoje, depois de trinta anos, eu tenho contato. Fiz o ginásio e o
colegial lá.
A escola era muito bem equipada, tinha oficinas de madeira, oficina mesmo,
todos os tipos de serra, serra de fita, fresadeira. Tinha tudo, tudo para metal,
solda, tudo para tipografia, tudo para elétrica. A sala de Economia Doméstica era
uma casa, não era uma sala, era uma casa que era encaixada na escola, tinha sala,
cozinha, enfermaria, horta, sala de estar, tudo, né?
Era um projeto muito bom. Eles queriam formar um grupo assim, muito
instrumentalizado na vida. E como era um projeto político, foi atacado, a ditadura
caiu em cima, processaram a Maria Nilde Mascelani, a criadora do projeto. Ela
foi presa, torturada pelo Fleury, ficou na solitária. O mesmo Fleury que torturou
o João Carlos Gilli Martins. Largaram na solitária para tentar quebrar ela, para
desestabilizá-la. A mulher saiu de lá inteira, nunca conseguiram provar nada
contra ela, não teve um processo em que ela tenha sido condenada, mas ficou
com muitas seqüelas de sofrimento físico, ela tinha alguns problemas tipo
reumatismo, ficou muito mal, foi, foi e depois morreu. E o sistema acabou, mas
continuou a escola. Então, até o fim do meu ginásio era sistema vocacional,
depois já era colegial normal, né?
Depois que eu terminei eu fiz um ano de cursinho. Porque essa preocupação eles
realmente não tinham, essa preocupação de ficar dando o conteúdo. A gente tinha
muito conteúdo à disposição, mas não tinha aquela obrigação de ficar estudando
senão reprovava. Eu, por exemplo, passei todos os anos, em Português, com a
nota de conteúdo abaixo de cinco. Se eu tivesse em outra escola eu teria sido
reprovado quatro vezes. Eu gostava de ler, gostava de escrever, mas em
Gramática era péssimo. E eu ía juntando e ficava sempre com quatro, quatro e
meio. Ficava com o compromisso de melhorar no outro ano, mas melhorava no
anterior e ficava de novo.
81
Agora, no meu caso, eu não troquei aprender isso por aprender a pensar. Por isso
que eu tenho esta idéia, que talvez a gente pudesse pensar em uma escola
exatamente assim: você dá formação para o cara, você dá espaço para o cara
pensar, conhecer o mundo, se desenvolver, e depois você dá um ano de cursinho,
acrescenta mais um ano no colegial e aí você dá cursinho mesmo, para o cara
aprender coisas que são rotinas. Você já pensou se você não souber tabuada, se
você não souber de cor os números de telefone das pessoas que você liga mais?
Se você não souber o seu endereço de cor? Então não é mal, eu não vejo mal
nenhum em o cara saber, e gastar um tempo mesmo, gastar um tempo lá, fazendo
um monte de problemas para depois não ficar: – Ah, quanto que é mesmo a mais
b ao quadrado? E demora e faz a conta. É bom saber de cor.
Então a idéia é deixar a vida do aluno livre, e em um ano você fazer um cursinho.
E eu não estou falando que é por causa do vestibular, eu estou falando que é por
causa de operacionalizar outras coisas que você ainda não ganhou fluência. Pode
incluir aí, por exemplo, atividade intensiva de línguas. Você quer ler um texto em
inglês, você tem que ficar o tempo todo olhando pro dicionário, uma hora você
vai encher o saco, você vai parar. Então leia, leia, leia, leia, leia, aumente seu
vocabulário que aí você começa a acelerar.
Bom, daí eu fiz esse cursinho em setenta e quatro, comecei na Poli em setenta e
cinco e terminei a Matemática acho que em oitenta e seis. Eu nunca lembro
exatamente.
***
Bom, daí eu pedi uma bolsa para fazer mestrado na Inglaterra e ao mesmo tempo
fiz contatos com o pessoal do IME, na USP, para trabalhar com essa questão de
formas de pensar. Assim: como que os problemas mudam na tentativa de
resolução. Eu iria pegar o problema das quatro cores, que qualquer mapa plano
pode ser pintado com quatro cores, e estudar como este problema foi concebido e
como ele foi mudando junto com a maneira de pensar, ou seja, como que o
problema se transformava em outro problema. Falei que queria trabalhar com
Topologia, que era uma área que eu gostava. Na Graduação cheguei a fazer um
curso da Pós, de Topologia Geral.
82
Eu tenho bastante facilidade com línguas, embora não tanto quanto algumas
pessoas que eu conheço. Eu tenho um negócio de papagaio, se eu escuto você
falando uma frase numa língua e me dizem o significado eu não quero saber
quem é o sujeito, se tem declinação, eu odeio gramática, estrutura sintática, eu
pego e imito o melhor que eu puder. Eu acho que eu tenho um bom ouvido, e, de
tanto imitar, eu acabo falando a língua. Francês, por exemplo, eu estudei um ano
no colégio e sou capaz de pegar um texto, não muito puxado, e consigo ler.
inglês, eu também estudei no colégio, porque a lei mudou, primeiro era francês e
depois inglês.
Na Inglaterra, os primeiros seis meses não foram muito fáceis, por causa do
sotaque, depois foi embora. E Espanhol eu aprendi porque vivia lá com
mexicano, peruano. Os caras falavam, eu respondia e foi embora.
***
nada mais importante. Mas tinha professores que ficaram marcantes, por
exemplo, eu tinha um professor, o Hélio de Educação Física, que era um cara
assim, bem militar, mas sempre com um sorriso no rosto e carinho pelos alunos.
Do Hélio eu me lembro uma coisa interessante. Eu tinha asma, uma asma leve
mas tinha umas crises. O pessoal, na época, falava bronquite asmática, porque
falar asma era maus. Na verdade bronquite asmática não existe, o que existe é um
cara que tem asma e está com inflamação nos brônquios. Um dia, eu tive uma
crise, e minha mãe ligou para a escola para dizer que eu não iria. E o professor
disse que exatamente por causa da minha asma é que eu deveria ir, porque eu
precisava de atividade física para abrir os brônquios. Isso me marcou.
Tinha uma professora de Ciências que se chamava, acho que Tokiko, uma
japonesa. Ela me marcou por ser bem humorada e pela segurança que ela passava
para gente no laboratório. E eu lembro, essa foi a frase marcante, um dia ela
dando uma aula, e ela estava falando de reprodução. E ela estava contando como
que os bichos transavam. Falando do galo e da galinha ela diz: – Aí o galo trepa
em cima da galinha. Ele vai e trepa na galinha, e por isso que fala trepa. Nossa,
cara! A classe ficou louca. Aquilo foi uma maravilha, né? O pessoal cochichava:
– Ela falou, ela falou.
Essa escola para mim é um pacote, é um conjunto, não tem nada a destacar. As
orientadoras educacionais, a orientadora pedagógica, a Olga Bechara, a outra
Olga que eu não lembro o sobrenome, eu lembro do pessoal todo. A professora
de Português, uma baiana muito louca que dava aula no colegial. Acho que
tivemos até aula de Filosofia no colegial.
Então a minha lembrança é global, aquilo que eu te falava, aquilo era um lugar
assim que eu tinha liberdade para fazer um monte de coisas, para propor coisas,
né? Mas ao mesmo tempo tinha uma intervenção da escola na minha vida, na
minha formação. Quando o sistema estava funcionando direitinho, todo começo
de ano tinha uma assembléia que eles davam um tema geral para gente discutir e
decidir quais iam ser os temas, os eixos temáticos de cada série naquele ano.
Tinha uma idéia geral que era assim, na quinta série você trabalhava o bairro, na
sexta série você trabalhava o município, não, na quinta série você trabalhava o
bairro e o município. Então toda a atividade da gente era entender o bairro,
conhecer o bairro, depois conhecer o município, o funcionamento político, a
geografia, essas coisas. Depois era o estado, depois era o país e depois o mundo.
Tinha o que a gente chamava estudo do meio, que eram idas aos locais. Teve
uma turma de oitava série que chegou a fazer uma viagem para fora do Brasil,
acho que foram para o Chile. Na época em que estávamos estudando o estado eu
fui para um acantonamento numa fazenda em Laranjal Paulista, fomos para o
Vale do Paraíba. Quando chegou a época do “Brasil” a ditadura já estava em
cima e eles cortaram. Então tem esse monte de coisa, eu não separo nada, eu
lembro eu comendo no refeitório, eu trabalhando no refeitório, eu comendo na
84
***
Minha educação nunca foi rígida, nem por parte da minha mãe, nem por parte do
meu pai. Minha mãe sempre dizia: – Olha, você faça o que quiser fazer mas
pense no que está fazendo e faça direito. Meu pai, ele era um barato, porque
supostamente era um cara rígido, supostamente. Mas a única coisa que meu pai
realmente não tolerava era barulho quando ele estava dormindo, isso ele não
suportava. Tomei altas broncas. Esse negócio de cortar cabelo; ele sempre falava
quando a gente devia cortar. Chegou um dia que eu falei: – Não quero cortar o
cabelo agora, quero deixar crescer. Ele falou uma vez, depois não falou mais, me
liberou. Geralmente era assim, falava uma vez, depois estava liberado.
Eu atormentava muito minha mãe. Teve uma vez que eu queria que ela
comprasse uma calça: – Mãe, compra uma calça pra mim que eu tenho baile no
sábado e tal. Ela falava: – A gente não tem grana. A gente passou umas épocas
bem difíceis. Eu falava: – Ah, mas eu quero, porque todo mundo vai. Aquela
xaropera de adolescente. E chegava um ponto que minha mãe falava assim: – Ah,
meu Deus, eu vou ficar maluca, um dia você vai chorar lágrimas de sangue. Um
dramalhão. Aí eu parava porque eu ficava meio com pena, assustado. Aí minha
mãe foi estudar Psicologia. E um dia, já grande, você vê, eu já estava na
faculdade ou fazendo cursinho. Eu fui lá atormentar. E eu atormentando. Minha
mãe: – Hã, Hã. Só falava hã. Pegou, virou, e foi embora. Virou e me largou
falando sozinho. Eu tenho certeza que ela sacou isso lá no curso de Psicologia,
tenho certeza absoluta. Sabe o que eu fiz, eu comecei a rir. Aí que eu me dei
conta, acabou a palhaçada, acabou, e nunca mais fiz aquilo.
Mas minha mãe era assim, bem mais carinhosa. Meu pai, especialmente comigo,
era um cara fisicamente muito distante. Eu entendo que é bem a tradição lá do
Nordeste. Que homem tem que ser criado sem muito toque físico. Mas minha
mãe era muito mais próxima, tanto comigo como com a minha irmã.
Então, eu nunca passei a vida assim, sob pressão. Nunca fui cobrado em nota, por
exemplo. Perguntavam, conversavam, mas nunca ficavam cobrando. Até teve um
dia que eu contei para eles que eu fumava maconha, foi uma história muito louca.
Eu dormia embaixo da escada. Porque a casa era pequenininha, e minha irmã
estava mocinha, então me expulsaram do quarto e eu fui dormir embaixo da
escada. Eu estava deitado, vendo o Fantástico, meu pai na cadeira de balanço
dele e a minha mãe na outra poltrona. Aí passou lá na televisão, o Cid Moreira
falando: – Um cigarro de maconha custa.... Eu nem lembro qual que era o
dinheiro da época, vamos supor vinte reais. E eu nem sei de onde eu tirei, eu não
precisava falar nada. Eu virei, nem olhei para eles, e falei assim: – Que absurdo,
você compra um baseado por cinco reais - vamos supor - em qualquer esquina. A
minha mãe ficou parada olhando para frente, eu nunca vou esquecer, meu pai foi
85
virando, devagarzinho, e falou assim: – Como que você sabe isso? Eu falei: – Ah
pai, porque eu já fumei, né? Eu acho que eu fui de uma franqueza, de uma
honestidade, e eu acho que eles devem ter pensado, minha mãe acho que para ela
não fazia mal nenhum, meu pai deve ter olhado e pensado assim: – Esse cara
nunca deu nenhum problema para mim, ele não dá problema na escola, ele não dá
problema para os amigos, não dá problema aqui dentro de casa, deixe para lá.
Meu pai só ficava enrolando o bigode assim, no canto da boca. Isso é quando ele
estava em algum estado meio estressado. Parou e continuamos a assistir
televisão. E nunca mais a gente falou disso. Minha mãe, até quis convencer ela a
fumar uma certa época, quase que ela fumou, mas ela segurou a onda. Então para
você ter idéia que nunca passei aperto.
Meu pai me bateu apenas uma vez na vida e eu só posso dizer que mereci. Minha
mãe me mandou comprar pão na padaria e eu perguntei se podia comprar sorvete.
Como eu tinha esse problema de asma e estava meio frio, ela disse que não.
Assim como eu falo para os meus filhos e você vai falar para o Pedro Henrique.
Pode ser que não tenha nada a ver, mas pelo sim pelo não, é isso que a gente
escutou e vai ser: não. Atormentei minha mãe e meu pai falou: – Vai comprar o
pão e chega. O que eu fiz? Imediatamente fui comprar o pão. Só que muito burro,
a minha casa era a duas casas da esquina, e na esquina em frente era a padaria.
Eu entrei na padaria, peguei o pão, e peguei um sorvete, pus tudo na caderneta,
que era como a gente comprava naquela padaria. Quer dizer, mesmo se meu pai
não tivesse visto ele ía abrir a caderneta, e estava escrito lá, um sorvete. Meu pai
me viu sair da padaria com o sorvete, e eu fui dar uma volta no quarteirão,
quando cheguei ele estava na porta. Ele tinha voltado do Rio Grande do Sul e
tinha trazido uma chibata. Saiu correndo atrás de mim e me batia nas pernas e
depois me botou de castigo: – Fica sentado aí moleque. Depois ele começou a ver
que tinha ficado uns vergões. E aí, eu lembro que ele falou para minha mãe: – O
Alda bota uma salmoura aí. Acho que ele sentiu que tinha passado do limite.
Depois de uma hora ele veio me convidar para ir com ele num supermercado de
um amigo. Obviamente ele estava pedindo desculpas, mas ele jamais pediria
desculpas. Aí eu fui, não quis nem saber, não estava nem um pouco bravo com
ele, acabou, nunca mais me encostou a mão. Minha mãe, de vez em quando, dava
umas palmadas na gente, mas era aquela palmada com chinelo, que você mais dá
risada do que sente dor. Então, nesse sentido, acho que minha educação foi
bastante liberal, mas me cobravam responsabilidade com o que eu fazia.
***
A questão política sempre esteve muito presente na minha vida, por várias
razões. Primeiro porque tanto a família do meu pai como da minha mãe eram de
esquerda. Por isso, na hora do golpe foi bem pesado. No Rio de Janeiro eu tinha
um tio que virava e mexia ía preso, se bem que depois acabou virando amigo dos
“home”, um “traidor”, mas continuava o meu tio favorito.
86
Na escola a gente sentia muita pressão. Tinha um colega nosso, mais velho, o
Koji, que a gente ficou sabendo que estava sendo procurado por ser parte de uma
célula que tinha assaltado um banco. Daí teve um dia que o pessoal do DOPS
invadiu a escola sob pretexto de que tinha tido uma ameaça de bomba. Mas é
claro que foi o próprio DOPS que ligou para a escola, daí, o diretor não podia
fazer outra coisa senão chamar a polícia. Os policiais armados de escopeta
cercaram a escola, entraram e deram uma puta geral. Não sei o que eles queriam
achar.
Eu lembro que teve um debate na semana em que teve aquele tiroteio entre o
pessoal da USP e da Mackenzie, a guerra da rua Maria Antonia. Que foi em
sessenta e oito, se eu não me engano. Eles organizaram um debate: de um lado
ficavam os que achavam que a Filosofia estava certa, de outro os que achavam
que a Mackenzie estava certa. Ficou um cara sozinho do lado da Mackenzie. Esse
cara era de alguma religião dessas evangélicas, de uma família muito reacionária.
Depois ele foi fazer Poli e eu encontrava com ele. Muito reacionário, e o cara
ficou lá discutindo e todos os outros defendendo o lado da Filosofia da USP. A
escola não escondia essas coisas. A Maria Nilde presa. Sendo perseguida pelos
caras. Então, isso aí sempre foi muito vivo.
Agora, a coisa mais agressiva para mim, no plano pessoal foi a morte de um
grande amigo. Eu passava todas as férias, um mês no inverno e três no verão, no
Rio, por conta da família da minha mãe que morava lá. Lá no prédio onde eu
ficava tinha o Miguel, que era um cara da minha idade, o Ernani que era o mais
velho, mais caretinha e o Aldo, que para mim era a super imagem de um cara
mais velho. Porque ele não ficava tirando uma da cara da molecada, ele jogava
botão com a gente. Era uma pessoa realmente muito importante, uma referência.
Ele entrou para guerrilha urbana. Fugiu, acho que foi do grupo do Lamarca ou do
Marighela. Ele foi para o Vale do Ribeira, eu acho que era o Marighela, aí
morreu o Marighela, pegaram o Marighela, mataram, aí subiu um cara, acho que
eles chamavam de Velho, subiu o Velho, e aí mataram o Velho também em
combate, e aí prenderam o Aldo, o Aldo foi o terceiro, era o terceiro cara no
comando. Levaram o Aldo para Belo Horizonte, e mataram ele numa delegacia.
Isso aí foi ..., ..., ... brabo pra cacete. Fora que um monte de amigo nosso, teve
que fugir,..., uma bosta.
Bom, esse foi o grande impacto na minha juventude. Acho que eu tinha uns
quinze, dezesseis anos, por aí, eu nem entendia, só sei que eu cheguei no Rio e
olho o jornal, tá a cara do cara, disseram que ele pulou da janela da delegacia.
O pai dele foi lá, não deixaram o cara abrir o caixão, só deixaram ver o rosto.
Porque eles não costumavam machucar o rosto para depois poder exibir uma
87
parte bonitinha. E o cara não tinha marca de quem se jogou. Aí depois disso, uns
anos mais tarde eu entrei nessas coisas de movimento estudantil na USP. Mas aí
já estava ficando liberado, eu nunca peguei onda braba mesmo. Minha irmã ainda
pegou um pouquinho porque ela fazia Medicina na época em que foi aquele
primeiro Congresso da volta da UNE, que foi na faculdade de Medicina, e ela
desgraçadamante era da comissão de segurança, então a missão deles era ser
preso para que a liderança fugisse. Então ela encaminhou o cara da liderança que
era de sua responsabilidade para a saída. Ela foi presa, ficou uma noite na
delegacia. Mas não bateram, nem nada.
***
***
É claro, eu não acho que seja tipo linha direta: a pessoa teve uma educação
assim, vai ser assim. E o exemplo que eu acho mais interessante, que ajuda a
ficar alerta é o de Summerhill. Summerhill era uma escola onde valia tudo que
não violasse a lei, exceto a liberdade, que segundo um educador americano o
John Holt, era a maior de todas, a liberdade de não ir a escola. Então, foram fazer
um estudo sobre o que tinha acontecido com as crianças de Summerhill, e para a
surpresa dos pesquisadores eles descobriram que a maioria tinha virado gente
conservadora. Aparentemente porque os caras se sentiram inseguros num mundo
competitivo, de reações rápidas. Bom, então essa é uma questão complicada.
Mas, de uma forma ou de outra, eu tenho poucas dúvidas em afirmar que são
essas experiências que vão permitir que o professor seja de um jeito ou de outro,
seja lá qual for. Ele vai fazer escolhas, que tem a ver com ideologia, tem a ver
com as circunstâncias de vida. Por exemplo, se o cara está precisando de
dinheiro, ele vai dar aula numa escola tradicional e não vai querer revolucionar o
sistema, senão, vai ser mandado embora e acabou. E, pensando em formação,
como eu já falei, defendo a idéia de que o professor exerça a sua atividade
supervisionadamente, como uma residência médica. Em alguns países como o
Japão, por exemplo, tem uma tradição muito forte, institucionalizada, que no
início da carreira do professor ele tem um professor mais experiente ao seu lado,
como um mentor.
duas de regência. Enquanto que aqui, no Brasil nós temos oitocentas horas de
Prática de Ensino, mais duzentas horas de atividade sei lá, mais duzentas ou
quatrocentas de cada coisa, é uma quantidade gigantesca de horas, por quê?
Porque na escola do Brasil você não tem apoio para o professor. Depois que ele
entrou na escola, o auxílio é eventual, não existe um sistema de apoio.
Tem gente que tem acesso a cursos, mas tem professores que não tem. Por
exemplo, o GPA13 era um apoio perfeito. Para mim aquilo deveria ser a base do
sistema, mas tem gente que não vai passar nem perto disso. Tem gente como eu,
que tinha o Marcelo Lellis na escola, mas têm professores que nunca vão saber o
que é isso, que nunca vão ter alguém para ajudá-los.
O Japão tem uma tradição que eles chamam de estudo de aula. Os professores
apresentam, regularmente, idéias de aulas que eles tiveram para os seus colegas,
aí todos comentam. Isto até gerou um vídeo com professores americanos e
japoneses fazendo este tipo de estudo.
***
Bom, falando sobre meu início como professor. Eu lembro que quando fazia a
Poli, como eu já falei, fiquei cansado de estudar somente disciplinas técnicas.
Faltava pensar sobre gente, falar sobre gente.
Bom, para mim fazia falta isso aí. Mas eu lembro que na época eu já sabia isso,
que o que fazia falta era gente na parada. Só que eu não sabia por quê. E acabei
demorando muito para dizer: – Eu quero ser professor. Mas, depois que eu tomei
a decisão não restou a menor dúvida que queria ser professor, e tinha que ser de
Matemática. Porque Matemática sempre foi a disciplina que eu gostava mais.
Acabava estudando tudo, mas gostava mais de Matemática. Gosto, poderia ter
13
Grupo de Pesquisa Ação liderado pelos professores Antônio Carlos Carrera de
Souza e Roberto Ribeiro Baldino, lotado na Unesp - Rio Claro. Teve seu início em 1993 e foi
extinto em 2000.
90
estudado Matemática assim, fazer bacharelado, pós, e tal . Iria me sentir satisfeito
e certamente eu compensaria a falta de gente com outras coisas, né?
Mas a minha opção foi incríve l. Eu falei: – Eu gosto de dar aula. Possivelmente
naquela altura da vida, eu acho que o que eu estava querendo dizer: – Eu gosto de
falar e eu gosto de ensinar os outros. Contar, é assim, assim e assim. Eu não
tinha, é claro, essa percepção do outro, da interação, essas coisas sofisticadas. Eu
acho que eu gostava de ensinar mesmo. Tanto que todo o resto veio depois, eu
não tinha contato nenhum com coisas de psicologia e tal.
Mas, eu consegui dar aula particular de dois tipos: a princípio, em setenta e oito,
por exemplo, eu dava aula particular e ponto, pronto-socorro mesmo, e mais para
frente pude dar aula de acompanhamento, como uma psicopedagogia.
Nessa época eu tive um aluno que era chinês. Ele estudava no Bandeirantes, uma
escola muito tradicional de São Paulo. Ele não tinha a menor dificuldade, mas o
Bandeirantes era muito puxado e ele queria ser top. Então eu era como um tutor.
A família dele queria até que eu desse aula de Português, eu falei: – Não, isso eu
não vou fazer. Esse cara foi uma das minhas grandes fontes de renda naquele
ano. E esse aluno também era esse esquema: – O que você quer saber? – Ah,
quero saber resolver esses problemas. E aí eu ensinava aqueles problemas,
problemas mais difíceis e tal.
Uns anos mais tarde, em oitenta e três ou oitenta e quatro, eu fui dar aula para
uma menina que tinha uma espécie de bloqueio, que eles falavam. Nesse caso era
diferente, não adiantava eu querer só falar de conteúdo, era um lance de tentar
entender o que ela estava pensando. Por exemplo, toda vez que ela fazia quatro
mais três, ela contava no dedo, mas isso, ela já estava na oitava série. Ela falava
que não tinha confiança. Ela dizia: – E se mudar? Eu falava: – Você acabou de
91
fazer quatro mais três, deu sete, né? Você lembra disso, não lembra? – Lembro.
Aí ela falava assim: – E se mudar? Aí eu falei para ela: – Ó, tem dois carros que
vão apostar uma corrida. Esse aqui, anda o dobro da velocidade desse, mesma
distância, quem vai chegar na frente? Ela falou assim: – Não sei. Eu ficava
espantado e me perguntava o que essa menina podia estar pensando? Até fiquei
viajando se tinha a ver com essas coisas de relatividade.
Daí eu fui para o Sarmento, onde tinha um programa, tinha livro e tal. Mas
sempre com muita liberdade. Eu tinha liberdade, por exemplo: eu tinha que
trabalhar equação do Primeiro Grau, mas eu tinha liberdade sobre como iria fazer
isso. Eu inventei um negócio que eu achava o máximo, me sentia muito bacana e
até discutia com o Bigode e o Paulo Neves. Era assim: a equação era que nem se
fossem dois lados de uma montanha o sinal de igual era o topo da montanha e
morava uma bruxa, essa bruxa não gostava que ficassem jogando coisas de um
lado para o outro, então, toda vez que jogavam uma coisa por cima da cabeça
dela ela jogava um feitiço e a coisa virava ao contrário. Isso para explicar porque
se era menos virava mais, se era vezes virava dividido e tal. Eu nem lembro se
esse negócio funcionou na cabeça deles. E vai ver isso aí até é interessante, eu
estou falando de monstros, né? Vai ver eu achei um monstro que os alunos
gostaram.
Isso foi há um bom tempo, mas hoje em dia se eu achar que eu tenho que falar
uma coisa dessas, se eu achar que essa é a resposta, eu vou falar sem nenhum
pudor, não vou ficar achando que estou sendo careta. Se eu achar que eu tenho
que usar dinheiro, vou usar dinheiro, se achar que é a balança, vou usar a
balança. Se eu achar que é dar trezentos exercícios para o cara fazer eu vou dar.
Se eu tiver que mandar decorar a tabuada, eu vou mandar. Isso é flexibilidade.
Agora, isso é uma decisão que eu vou tomar conscientemente.
Outro caso, o da Regina Bathelt. Ela é uma educadora matemática. O filho dela
não conseguia fazer contas, e isto estava deixando ele muito mal. A Regina disse
que teve que tomar uma decisão que a deixou com o coração apertado: colocar o
filho no Kumon. O que para ela foi muito difícil. Mas, depois disso, o filho
aprendeu a fazer contas, porque o Kumon ensina a fazer contas, e o menino foi
para frente. É claro que o melhor seria se ele tivesse aprendido no tempo certo,
articulado com outras coisas.
Então, é aquilo que eu falo, eu vou ler o que está acontecendo e eu vou tomar a
minha decisão informado por como o cara está pensando. Não adianta achar que
tem uma resposta mágica, uma resposta única, melhor. Um método
intrinsecamente bom. Isso em qualquer área. Por isso que essa é uma área que é
triste. Você lembra o que se falava naquele livro Pedagogia dos Monstros? Um
dos capítulos começava afirmando que Freud lamentava que a Educação é uma
das áreas em que não se pode ter certeza de nada. Juntamente com a Política, e
ele desconfiava que a Psicanálise era a outra.
92
E disso você pode ter certeza. Há muitos anos, um psicanalista amigo meu, que
inclusive dizia que eu era piagetiano, e, naquela época eu ficava brabo apesar de
ser mesmo, falava que a Psicanálise não era teoria. E eu não entendia, porque a
Psicanálise está cheia de conceitos, ego, superego, id. Depois eu fui entender:
você exerce a Psicanálise, você faz uma Psicanálise, a Psicanálise, parada, não é
nada. A não ser quando você pensa nela como uma carreira. A Educação é que
nem uma Psicanálise, não tem duas iguais, não tem antecipação possível, isso eu
falo naquele artiguinho da Nova Escola. O professor nunca vai estar
completamente preparado, porque o tempo todo vão aparecer coisas novas. Então
você tem que prepará-lo para enfrentar o novo, enfrentar o que vai aparecer na
frente dele. Não é possível dizer: – Bom, agora eu sei como é que faz. É claro, a
experiência, a história dele é um lastro. E essa história ela se apresenta na forma
de historinhas que na maioria das vezes não são fiéis a história, quer dizer, não
são como se você fizesse vídeos da vida do cara, né? Elas são reconstruídas,
recontadas. Mas esses scripts, tem um autor, nós pensamos com scripts. Essa
idéia de scripts é do Marvin Minsky. Eu já acho que a gente pensa com objetos,
só que esses objetos é que têm uma história. Como toda existência tem uma
história. Bom, mas enfim, essa história se constitui nas experiências que você
tem.
É diferente, caso ele te procurasse para tirar algum medo, algum bloqueio, como
a menina da psicopedagogia que eu falei. Aliás, tinha um cara muito bom que
fazia isso, ele morreu uns tantos anos atrás, infelizmente, era um baiano,
trabalhava em São Paulo. Ele era um especialista em tirar medo da Matemática.
Era inacreditável, o pessoal dizia que ele era um mágico. Nunca vi ele
trabalhando, mas era bem clínica mesmo, psicopedagogia, um a um. Era um
psicoterapeuta mesmo. Não me lembro o nome dele agora. E então é outra
demanda. Eu não posso ficar achando que eu sou o libertador.
93
Então eu, em princípio, não tenha nada contra o trabalho do professor particular,
contra o trabalho do psicopedagogo, o que importa é observar a demanda.
Também não tenho nada contra a Matemática do matemático, não tenho nada
contra o matemático. Acho que tem matemáticos excelentes, altamente corretos
politicamente, do meu ponto de vista, militantes fantásticos. Agora tem uns
tantos deles que não enxergam um palmo na frente do nariz. Mas isso não é um
problema da Matemática, é um problema também da Educação Matemática, é um
problema também da Educação.
Eu não falo assim porque estou querendo causar um efeito, causar impacto. As
coisas que eu falo, realmente são coisas nas quais eu estou pensando. Aliás isso é
um respeito que eu sempre tive pelos meus alunos, pequenos e grandes. Se eu
estou com um negócio na cabeça, um problema, eu paro a aula e divido isso com
os alunos. Um problema que realmente eu não tenha a resposta. Mas é claro, vou
fazer isso em um curso de Matemática, não em Educação Física, por exemplo.
Mas, o pessoal fica com um frio na barriga, falam assim: – Mas se eu abrir mão
de falar em Matemática o que eu vou fazer? Estou orientando uma aluna de
iniciação científica, nós estamos escrevendo um artigo para imaginar como seria
os PCN’s se adotassem firmemente o referencial da Educação Matemática
Crítica. E aí estamos mapeando os PCN´s usando as grandes tendências que o
Ole aponta no livro Educação Matemática Crítica, estruturalista, pragmática, ou
voltada para os processos.
Fazendo isso, não se pode mais colocar o conteúdo na frente. E um dia eu falei
assim: – Olha, acho que você continua colocando a Matemática na frente. Daí ela
falou: – Escuta, se for para fazer isso, a gente faz o quê? Abre um partido político
na escola, é isso que você está falando?
Agora você vê, eu não quero mudar ninguém, mas eu quero pelo menos que a
pessoa tenha chance de escolher entre mais coisas. A melhor escolha para mim, é
poder escolher entre mais coisas. Eu não acho que eu tenho a menor capacidade
de chegar lá e falar: – Meus alunos vão sair daqui todos pensando de uma
determinada maneira. Só que as pessoas se assustam, elas não entendem que esse
é um viés de mundo. Você tem que pegar outros pressupostos, eles podem ser
incômodos a princípio, como são na Matemática do matemático, e você vai
pensar de um outro modo, pode ser que mais para frente você diga: – Não quero.
Pode ser que mais para frente você diga: – Nossa isso aqui é uma maravilha. Não
quero que as pessoas digam: – Isso aqui está certo e aquilo errado. O que eu
quero é que você faça a tua escolha com consciência do que você tá falando.
Como diz o Baldino, nada de você ficar se escondendo na ideologia.
Essa é minha ação no mundo com relação a esse tipo de situação. Já tive
situações em que os alunos ficaram assim, sem respirar, porque eu não respondia.
Os alunos falam fazendo afirmações com interrogação no fim. Ou seja, o aluno
espera que você diga sim ou não com a cabeça ou complete, e eu comecei a não
responder. Na terceira aula, um aluno falou que estava achando muito estranho.
Que eles queriam saber o que estava acontecendo, que eles não tinham a menor
idéia. Porque eu escutava, não balançava a cabeça, nada. Você já teve aula
comigo, eu quero escutar, fale inteiro o que você tem para falar, para você poder
ouvir o que você está falando.
***
***
Minha Graduação foi muito legal. Em primeiro lugar porque eu conheci pessoas
maravilhosas, grandes amigos. Tive professores muito bons, tive muito lixo
também, mas esses a gente esquece. Eu consegui evitar alguns, me inscrevia
numa matéria, e quando eu via quem era o professor, às vezes, não fazia. Mas
tive professores excelentes, um monte de gente boa. Tive uma vida social
maravilhosa. Eu dava aula, tinha minha própria grana, suficiente, ganhava bem,
tinha carro. Foi uma maravilha. Tinha toda essa vida com o Marcelo na escola, o
Bigode, o Paulo. Depois teve o Seiji, que era um cara muito importante. A gente
conseguiu fazer um encontro no IME, para dar sustentação para o Seiji, que
tendia para o lado dos alunos. Foi um período de muita realização, um negócio
impressionante.
Eu evitava certos professores porque eles eram ruins. Eles sabiam fazer as contas,
enunciar definição, teorema, demonstrar. Eles tinham segurança. Acontece que
eles não sabiam nada de Matemática, não conseguiam pensar matematicamente,
não tinham flexibilidade, não falavam nada novo pra mim. O que eles tinham
para falar estava no livro. Tanto é que um dia eu cheguei para uma professora e
falei: – Professora, não quer me dar a bibliografia, eu estudo em casa, eu gosto de
estudar sozinho. E para você ter idéia de como essa professora era péssima, ela
disse: – Não, vocês ainda estão muito verdinhos no começo do curso. Eu devia
ter já uns vinte e sete anos, já estudava Matemática no superior desde setenta e
cinco, e a mulher vem me falar que não iria me indicar bibliografia. O quê?
Obviamente, eu abandonei o curso.
96
Eu não me incomodo com aula expositiva, não é isso. Por exemplo, teve um
curso de Teoria dos Conjuntos que eu fiz com o Jacob Zimbarg Sobrinho, um dos
maiores matemáticos do Brasil, um dos maiores lógicos. Ele deu o curso
inteirinho copiando na lousa o que estava em umas fichas. De vez em quando ele
parava e fazia um comentário, mas nada assim grandioso. Ou seja, um curso
tipicamente expositivo. E eu me encantei, não sei porquê, talvez pela fluência,
pelo fato de eu ver que ele estava construindo coisas ricas ali, mesmo copiando
na lousa. No final ele falou que ele deu exatamente o curso que tinha feito no
doutorado com o Tarski em Berkeley. E isso era Graduação, cara! Esse professor
mostrou que tinha respeito pelos alunos.
Teve cursos que eu achava legal porque o professor chamava a gente na lousa.
Mas também eram aulas expositivas, só que uma aula expositiva que na hora dos
exercícios o aluno ía na lousa, discutia, conversava, perguntava. O professor
perguntava: – Por que você está fazendo isso? Alguém trouxe a solução da
questão? Teve um seminário que o Seiji deu, muito bom. Um seminário de
resolução de problemas bem no estilo do Polya, mas eram problemas abertos.
Alguns puros, alguns com contexto.
***
Como eu estava falando, teve uma época, principalmente por causa do Seiji, que
a resistência começou a dar resultado. O IME começou a se abrir para a
Educação Matemática. Mas era pouca gente. Tinha a dona Elza Gomide, o
Odilon. Da parte dos alunos tinha eu, o Bigode, o Paulo Neves. Nós tínhamos um
grupo que tinha essa idéia de professor, de discutir Educação Matemática. A
gente interagia com os colegas que estavam na Computação, na Estatística, na
Matemática Pura. Isso era em oitenta e seis, oitenta e sete.
Mas eu não tenho dúvida que foi nessa ação do Seiji, de criar o CAEM, que a
Educação Matemática teve seu espaço no IME. Não que eu ache que hoje, o
CAEM seja um centro inovador, acho até que eles continuam sendo
conservadores, mas é um centro dentro do IME. Algum tempo atrás eles criaram
dentro da Pós em Matemática, uma linha que se chama História, Didática e
Epistemologia da Matemática. Então tem gente com título de doutor em
Matemática fazendo uma tese inteirinha em História da Matemática. E para
minha gigantesca emoção, eu estava na banca de concurso, das duas primeiras
contratações especificamente em Educação Matemática. Isto foi um dos pontos
altos da minha vida, porque era o Ubirantan D’Ambrosio, a dona Elza Gomide, a
Iole de Freitas Druck, que era a presidente, o Sebastiani, e eu.
O Ubiratan foi odiado por muito tempo dentro do IME. Era inimigo dos
matemáticos de direita via Elon. Isso aí acho que ele deve ter contado na
entrevista que deu ao Carlos Vianna, deve estar na tese. Apesar do Elon e do
Ubiratan terem articulado juntos a fundação da SBM. Foi assim: eles
aproveitaram que o Maurício Matos Peixoto tinha viajado para um congresso. O
Maurício era contra, ele falava: – Não tem massa crítica. E daí eles aproveitaram
esse momento e alguém levantou numa reunião e falou assim: – Viva a
Sociedade Brasileira de Matemática. E os dois: – Eeee. Juntos.
***
Acho que na Educação Matemática se tem uma pessoa que está em todas é o
Bigode, é impressionante. Daria para fazer um filme, você está olhando e de
repente o Bigode aparece, daí você vira para o outro lado e o Bigode de novo.
Mas é claro, a figura emblemática é o Ubiratan. Porque ele abriu as portas na
Academia, então virou uma figura assim, uma grande figura mística.
Mas o Bigode não estava na mesa de abertura porque ele não queria causar
problema, já que naquela época ele não era nem graduado. Do mesmo jeito que o
Ubiratan seria o presidente natural, nem se fosse para ser de honra da primeira
diretoria e ele não quis. Por quê? Ele falava: – A minha presença não vai ajudar
em nada.Vocês querem fazer uma homenagem a mim, eu agradeço e já me sinto
honrado, mas a minha presença só vai criar obstáculos. Porque ele é grande. E
gente grande tem inimigos, e isso só pioraria as coisas. Mas o Bigode estava lá,
estava sempre. E a minha participação foi ter a honra de ter sido sempre o fiel
acompanhante do Bigode. Isso é o que eu fiz, né? Eu ajudava ele, mas o cara que
ía lá e mandava ver, na hora difícil mesmo, era o Bigode. A gente acabou
brigando um pouco no meio do caminho, mas isso aí é outra história. Então, o
Bigode foi o grande cara importante para a SBEM. Só que outros nomes é que
apareciam, porque tinham uma posição na Academia e a gente precisava disso,
não tinha jeito, precisava dessa sustentação. E o Ubiratan também, foi
extremamente importante.
***
99
A gente saía para tomar cerveja, almoçar e tal. E ele me mostrou um material que
eles tinham. Muito interessante, porque era totalmente aberto. Era uma coleção
de livretinhos com um tema, por exemplo, Seja um Consumidor Esperto. E esse
livro sugere investigações sobre o tema. Um outro era Seja um Engenheiro de
Papel, e nesse, você não encontrava moldes prontos, ele sugeria coisas. Um outro
era Organizando uma Viagem.
gente tinha tido e tal, que era ter mais investigação e aí que eu acho que ele falou
dessa coleção deles, que o trabalho deles era muito baseado em investigação. É aí
que começa a história do Modelo.
Pedi bolsa para fazer mestrado, nunca me passou pela cabeça ir para o doutorado
direto. E como eles gostaram muito do meu currículo porque, apesar de eu ser
recém graduado, tinha participado de organização de eventos, tinha muita
publicação e pilhas de curso. Como eu falei, meu entorno foi muito generoso
para mim. Então os caras gostaram do projeto, gostaram do orientador, o Alan
Bell era conhecido, consagrado, gostaram do meu currículo, eu recebi uma carta
dizendo que eles concediam a bolsa, mas sugeriam que eu fizesse doutorado
direto. Muitos anos depois eu fiquei sabendo que nessa época o CNPQ tinha
reunido um grupo de assessores estrangeiros, entre eles o canadense Claude
Gaulin, e que a recomendação desse grupo foi que eles estimulassem as pessoas
que tinham condições a fazer o doutorado direto, com a finalidade de avançar
determinadas áreas.
Daí eu fui para a Inglaterra. Durante o primeiro ano eu li muito, passava o dia na
biblioteca, lia, lia, lia, copiava artigo, lia, lia, lia, lia. Fiz algumas coisinhas com
meu orientador e percebi que a gente pensava de forma diferente com relação a
algumas coisas, mas sem crise. Só teve uma época em que eu quis ir embora
porque eu achava que o cara não estava me dando atenção. Cheguei a fazer
contato em Berkeley, tive uma aceitação informal. Foi através do Luciano Meira
que estava fazendo doutorado lá. Mas aí, como a Bibi, Abigail Lins, minha ex-
mulher, tinha entrado no mestrado em Nothingam, e estava adorando o
orientador dela, eu acabei levando. O orientador dela é um super top de Teoria do
Números. Depois de dois anos eu apresentei o que eles chamam de upgrade, uma
espécie de qualificação, só que era preciso apresentar uma monografia. Aí o
comitê aprovou e eu passei para o doutorado, fiquei mais dois anos e meio.
101
E daí eu falei para ele: – Mas você sabe o que fica na minha cabeça? Não foi um
curto circuito que deu na cabeça do cara para ele somar em cima e embaixo, e o
cara já tinha certamente trabalhado com frações antes, fração equivalente e não
sei o quê, então, eu fico pensando: como que o cara pensou? Como que o cara
pensou, para achar que era isso que ele tinha que fazer?
Esse é um exemplo que todo mundo pode dar um palpite sobre porque que ele
fez aquilo. Por exemplo, ele viu os números como coisas separadas, ele estava
acostumado a ver as contas deitadas, ele viu dois números com mais no meio,
somou, e pois a barrinha para separar, porque ele já estava separando antes. Tem
gente que vai e fala: – Ah, porque ele não entende o caráter relacional da fração,
que ele não entende fração e classe de equivalência. Vai e viaja lá, é incrível. É
tão mais simples você dizer isso, o cara bateu o olho, aquilo é totalmente
familiar, tem duas contas aqui, eu estou vendo duas contas, porque não haveria
de fazer? Na hora de multiplicar, ele não multiplica em cima e embaixo? E aí
ninguém reclama. Ninguém vai falar que: – Ah, mas se ele não souber o caráter
102
relacional de fração ele não vai multiplicar em cima e embaixo. Você diz que é
assim que faz e o aluno não erra a conta. Porque é aquilo mesmo, o visual
daquilo te diz para fazer isso.
E até hoje eu tenho essa preocupação de tentar entender o que o aluno está
pensando. Eu não quero saber onde ele está errado, e aí que eu encontrei o
gancho para o que Piaget falava. Se o Piaget estiver totalmente certo com
respeito aos estágios, ele nos permite dizer: – O cara está aqui ou eu não sei onde
ele está. Esse aluno resolveu com sucesso, então a minha teoria diz que ele tem
que ter desenvolvido tais e tais estruturas. Mas e se ele não fez eu não tenho a
menor idéia de onde ele está. Eu não sei se alguma coisa o distraiu, eu não sei se
é porque ele não desenvolveu a estrutura certa. Eu não sei se o contexto
atrapalhou. Eu não sei se ele estava com sono. E isto para a escola é crucial,
porque eu não estou em um laboratório clínico em que posso pegar os escritos, os
vídeos e analisar os detalhes. Eu tenho que resolver ali, na hora. Foi por isso que
na minha tese eu utilizei questões escritas, porque isso o professor pode usar. Se
eu conseguir mostrar que, usando questões escritas, você dá conta de entender
um pouco melhor como o aluno está pensando, é algo que o professor pode usar.
Agora, não adianta eu mostrar com entrevistas clínicas que você faz isso. Porque
isso o professor não pode usar. Vai ficar chorando, né? Na sala de aula: – Ah,
meu Deus, se eu tivesse com três assistentes de pesquisa.
Então a idéia era desenvolver ferramentas para poder ler o que está acontecendo,
de maneira positiva, e que pudesse ser utilizada pelo professor. Este ano acredito
que vou publicar dois artigos tirados da tese, um sobre educação algébrica e outro
sobre procedimentos de pesquisa.
Na tese eu criei grupos de questões que tinham a mesma estrutura algébrica. Num
deles, todas elas eram do tipo ax + x = b, com a e b positivos. Os problemas
variavam de contexto, tipos de números, com história, sem história. Por exemplo,
tinha um tipo de problema que era para encontrar o número secreto, aquele lance
de pensar em um número, multiplicar por dois e tal. O estudo foi feito em dois
dias com umas quatrocentas crianças, mas nem todas fizeram todos os grupos. Eu
comparava como a criança resolvia os problemas dentro do grupo, que,
formalmente, possuía a mesma estrutura algébrica.
Tinha um problema que dizia o seguinte: divida uma tábua de dois metros em
duas partes, de maneira que um pedaço tenha vinte centímetros a mais que o
outro. Teve uma menina que falou: – Eu tirei um pedaço da tábua, cortei ela na
metade e pus o pedaço de novo. Então o que ela faz? Ela corta um pedaço de
vinte centímetros, ela está pensando com a tábua. Ela corta um pedaço, só que no
pensamento, o que sobra ela divide na metade. Então ela vai fazer dois metros
menos vinte centímetros para saber o que sobra, divide e cola o pedaço de vinte
centímetros de novo. E isto não é porque ela montou a equação ou um sistema. E
há vários casos em que os alunos pensam com os objetos. Tinha lá, chocolate,
gangorra, balança. E ali eu fiquei muito feliz porque dava para ver realmente o
103
que estava acontecendo, o que a criança estava pensando. Eu não preciso ficar
viajando em estrutura e não sei o quê.
***
***
Acho o teu trabalho relevante. A única coisa que eu não entendo é essa diferença
entre a História Oral que faz análise e a História Oral que só gera documento. Já
tentaram me explicar, mas nessa eu vou devagar.
104
Matemática de Rio Claro, Andréia Maria Pereira de Oliveira, o contato com uma
professora da Bahia que tivesse mais de dez anos de atuação e que ainda não
fosse formada.
Por ocasião do VIII ENEM – Encontro Nacional de Educação
Matemática -, fui ao Nordeste e, em julho de 2004, entrevistei Adaildes nas
dependências das Faculdades Jorge Amado, local em que estudava, na cidade de
Salvador.
Esta foi a única vez em que as entrevistas foram feitas com intervalo de
mais de um dia. Uma das entrevistas ocorreu numa sexta-feira, a outra na
segunda-feira seguinte.
Talvez por conta de seu perfil ou por não me conhecer, Adaildes falou
menos que os outros depoentes, do que resultou serem mais freqüentes minhas
intervenções.
Bom, vou começar pela infância. Tenho trinta e cinco anos. Nasci em Salvador.
Tive uma infância boa, saudável para as crianças da minha idade na época. Perdi
meu pai muito cedo. Eu tinha só minha mãe, minha avó e minha tia por parte de
pai e fui criada neste ambiente. Era a caçula dos netos da época e fui criada com
muito carinho com muito dengo, que é como a gente diz aqui no Nordeste. Eu
tive uma infância ótima, não tenho do que me queixar. Não senti falta de coisas.
Não tive grandes problemas. Os problemas apareciam, mas não chegavam até
nós, crianças da época.
Meu pai faleceu quando eu tinha quatro anos de idade, mas não tive problemas
com isso. Minha mãe tinha que trabalhar porque tinha dois filhos, o mais velho e
eu. Então ela trabalhava o dia todo e eu ficava com minha vó ou com minha tia.
Tinha uma convivência boa com meus primos.
Então eu morava em duas casas, durante a semana era uma casa e final de
semana era em outra casa. Acho que por isso também, por essa troca, esse
cotidiano de a semana toda você estar num lugar e no final de semana você estar
em outro, então não teve tantos problemas, como é que eu posso dizer, traumas,
né? Houve assim um trauma que foi a perda de meu pai, mas foi contornado
rapidamente com essa fuga da rotina. Não existiu aquela rotina de ficar na mesma
casa o tempo todo, lembrando e vendo, sabe?
Os bairros eram grandes. No Avenida Vasco da Gama dava para ver a rua
principal, o movimento de carros e tal e o bairro de Castelo Branco é mais
acomodado, mais calmo. Hoje tem mais movimento devido ao crescimento do
bairro e porque ele acabou virando passagem para outros bairros. Então são
bairros grandes que estão se desenvolvendo nessas coisas, energia, saneamento
básico, água. Não mudaram muito desde que eu nasci, mas as mudanças foram
significativas.
Eu também não tenho mais minha mãe. Mas eu posso dizer que fui muito bem
educada, em relação a respeitar os mais velhos, sabe? Porque aqui no Nordeste
nós temos muito daquela coisa: mainha, painho, voinha, sabe? E pedir a benção,
benção meu pai, benção minha mãe, benção minha vó. Benção aos mais velhos.
Você não era obrigado, mas você era educado para que quando você conhecesse
uma pessoa mais velha você tinha que pedir a benção: a benção meu pai, a
benção dona Maria. Era assim. Então eu tive uma ótima educação, tanto de
minha mãe, quanto de minha avó, de minha tia, sabe? Então isso reflete hoje.
Minha mãe foi mãe e pai, então ela tinha que saber contornar todas as situações,
todos os problemas que vinham surgindo. Porque você sabe que quando a criança
passa para a adolescência, são muitos problemas. Hoje eu vejo adolescente com
muitos problemas, apesar de eles terem uma liberdade imensa. Nós não tínhamos
essa liberdade toda, nós sempre tivemos uma liberdade mais do que vigiada, né?
Mas eu tinha muito diálogo com minha mãe, por questões de ser a única mulher.
Tinha um irmão mais velho. Hoje, nós temos um irmão do segundo casamento de
minha mãe.
Então eu tive uma boa educação. Não tenho do que me queixar, muito pelo
contrário, tenho muito que agradecer e agradeço muito por isso. Minha mãe era
uma mulher muito responsável. E isso tudo eu herdei. Eu sou altamente
responsável, se eu não consigo cumprir com alguma coisa, com algum
compromisso meu, eu fico desesperada. Eu entro em pânico porque eu me
policio muito, eu acho que exijo muito também, sabe? Que eu fui muito exigida,
não sei, talvez por isso.
109
***
Eu estudei na escola particular até a terceira série do Primário, né? Que agora é o
Ensino Fundamental, mas antes era o Primário. Com sete anos de idade eu estava
na terceira série, cursando a terceira série. Aí houve uns problemas e minha mãe
precisou fazer uma transferência para uma escola pública, minha e de meu irmão,
porque não tinha condição de custear mais escola particular. Como eu tinha sete
anos, a escola não me aceitou na terceira série e me rebaixou para segunda. Este
foi meu primeiro trauma de infância. Eu fiquei muito chateada na época, porque
eu já estava acostumada, estudava muito e aí você quebra um pouco, por quê?
Você sai de uma escola particular e vai para escola pública é totalmente
diferente. O cotidiano é totalmente diferente. E ainda tem esse problema de voltar
uma série. Foi um pouco complicado, mas eu acho que me ajustei bem, não tive
problemas. Nessa escola eu estudei até a quarta série. Depois fui para uma outra
escola pública e cursei de quinta a oitava série.
***
Mas como eu estava dizendo, sair da escola particular foi um trauma. Foi porque
a rotina da escola particular é diferente. Até hoje é diferente. Eu trabalho na rede
particular de ensino, eu tenho exatamente dezessete anos de sala de aula. Faz
dezessete anos também que eu leciono Matemática, Desenho Geométrico e Artes,
Artes Visuais. E é diferente porque a escola particular exige muito. Nós temos
uma exigência do diretor, do coordenador. Os pais cobram muito. Eles acham
que têm que ter uma relação assim: eu pago a escola do meu filho, eu tenho que
exigir. E na escola pública não tem essa cobrança em cima do professor, por quê?
Porque o professor da escola pública tem problemas com relação a salário,
condições gerais de trabalho.
Então é diferente, porque você sai de uma escola sempre organizada, toda
arrumadinha, toda bonitinha, a sala toda decorada, aí você vai para uma escola
pública que muitas vezes não tem aquele atrativo para o aluno, entendeu? Então
110
eu acho que sofri um pouco com essa mudança, sabe? Porque tinha as festinhas
sempre, porque a escola particular sempre está resgatando. Na escola pública às
vezes não dá tempo, o professor está com o assunto atrasado, tem que fazer
reposição de aula devido a greve e essas coisas. Embora na minha época não
existisse greve, eu não me lembro de eu precisar ficar em casa porque os
professores não estavam indo trabalhar.
Na escola pública também tem essas reuniões. Mas são cinqüenta, sessenta
alunos numa sala. Não tem condições de conhecer cada aluno. Mesmo que o
professor tenha boa vontade para isso ele não tem essas condições de conhecer o
aluno. Na escola particular nós temos trinta e cinco, trinta e sete, trinta e um. Um
número bem menor, que permite a você fazer um trabalho melhor. Eu acredito
nisso.
***
Mas esse trabalho de Desenho Geométrico começou meio que por acaso. Quando
eu terminei de cursar meu Adicionais eu enviei uns currículos para algumas
escolas. E uma escola perto do meu bairro estava implantando de quinta a oitava
série. Então eu fui selecionada através do meu currículo e dei uma aula teste para
a coordenação.
preparando minhas aulas, como é que eu iria trabalhar e tal. E foi por acaso que
eu comecei a trabalhar com Desenho Geométrico.
***
Eu fiz muitos cursos pelas escolas particulares. Muitos desses cursos são
promovidos pelas editoras de livros. Eles enviam para escola os folhetos para
você fazer a inscrição, alguns são pagos, outros são gratuitos. Então sempre tinha
muitos cursos. As escolas inscrevem os professores, fazem questão que os
professores façam esses cursos, porque era até um certificado, era bom para
escola, era bom para o professor. Então nós fizemos vários cursos de habilitação
em Desenho Geométrico, em Artes Visuais.
Eu lembro de um curso que eu fiz com o Gelson Iezzi, ou com o Giovanni, não
tenho certeza. Só sei que nossa escola não usava nenhum livro que ele tinha
escrito, mas eu usava outros livros dele para preparar minhas aulas, minhas
avaliações. E este curso com ele foi muito bom. Inclusive eu uso o livro até hoje.
Eu ganhei um livro dele, autografado. Nós até utilizamos o livro para estudar
limites e derivadas. Me ajudou bastante, a mim e ao colega que estava estudando
junto, foi muito bom.
O curso foi muito interessante. Porque a criança que sai da quinta série para
estudar a sexta série em Matemática, tem uma grande dificuldade, por causa da
ampliação do conjunto dos números naturais, o conjunto Z. Então eles têm uma
resistência para aceitar os números negativos, situações que envolvem números
negativos. E no curso ele fez um joguinho lá. Tinham plaquinhas azuis e
vermelhas, as azuis eram os números positivos e as vermelhas os negativos. Daí
ele fez uma atividade lúdica com a gente, e isto faz com que a criança se
interesse mais pelas operações. Porque eles têm muita dificuldade na operação de
adição, na multiplicação. Problemas com a regra de sinais e essas coisas.
Então, primeiro ele se apresentou, fez uma breve apresentação dos livros e pediu
para que os professores expusessem suas experiências. Então ele dividiu a sala
em grupos e deu um jogo diferente a cada grupo. Aquilo me marcou, eu apliquei
com meus alunos, eles confeccionaram o material, deram as regras, foi muito
interessante. Nesse curso teve muita troca. Foi assim, uma tarde muito
interessante.
***
Uma lembrança da minha infância eram as festas. As festas de São João eram
muito interessantes porque todo mundo tinha que se vestir de caipira. Os
vestidinhos bonitinhos, minha mãe era costureira e costurava os vestidos. Fazia
Maria Chiquinha e tinha os fogos, nós tínhamos que soltar e tal. Então era assim,
era muito bom, sempre a família junta.
112
Quanto a educação eu não posso dizer que minha educação era rígida. Eu tinha
muita abertura com minha mãe, minha avó, minha tia. Agora minha mãe também
não era dessas de falar dez vezes a mesma coisa. Ela queria falar no máximo
duas, sabe? Então quando nós ficamos maiores não precisava mais do que uma
vez. Nós ficávamos uma semana na casa de minha avó e duas semanas em casa,
por causa da escola. Depois ficamos só em Castelo Branco, minha avó e minha
tia vieram morar conosco.
Quando crescemos mais, não precisou mais ficar alguém dentro de casa, então
minha mãe saía de manhã e chegava a noite. Assim: – Você vai para escola,
volta da escola, toma banho, almoça, lava os pratos, limpa o que tem que limpar
e fica em casa, não quero ninguém na rua. Então sempre tinha alguém vigiando,
algum vizinho mais velho que olhava. Vigiando que eu digo é assim: estar
olhando para não acontecer nada de errado, não fazer nada de errado e tal. Mas a
gente sempre dava uma escapulidazinha, ía para rua, brincava, jogava bola,
jogava gude, e sempre tinha um castigo, às vezes uma surrazinha. Porque ela
dizia: – Não vai, quando eu chegar em casa eu deixo sair. Mas criança nunca
quer esperar, né?
***
Eu nunca saí de Salvador. Saio assim, para viajar, passar o fim de semana na Ilha
de Itaparica, essas coisas. Mas nunca fui de ir muito para longe. Depois que eu
perdi minha mãe eu já fui mais longinho um pouquinho, fui para o Rio de
Janeiro, fiquei algum tempinho assim, uns quarenta e poucos dias, fui três vezes
em um ano. É que eu tenho parentes lá, um tio por parte de pai e algumas primas.
***
Uma das professoras que me marcaram foi a Maria das Neves. Até ía entrevistá-
la para um trabalho aqui da faculdade mas não consegui encontrá-la. Foi uma
professora muito boa, eu lembro bem das aulas de Matemática dela. Eu nunca
tive dificuldades em Matemática, sempre gostei da matéria, dos desafios. Uma
outra professora, a Neusa, professora de Ciências, também, foi uma professora
muito boa. Ela conhecia muito bem o aluno.
Em oitenta e dois, oitenta e três, nós não tínhamos muitos recursos. Então, eu
lembro que essa professora de Matemática dava suas aulas da seguinte maneira:
113
ela sempre procurava expor o conteúdo fazendo uma aplicação. Eu lembro que
ela trazia muito para o nosso cotidiano, dava exemplos. O que nós fazemos hoje,
né? Fazemos uma contextualização do assunto, dos conteúdos matemáticos para
a vida da pessoa, para a vida do aluno. Para poder quebrar essa expectativa de
que a disciplina é uma disciplina chata, é uma disciplina que é difícil, que eles
não vão aprender e tal.
Ela fazia isso e trabalhava muito bem. Eu lembro que quando aprendemos a
fórmula de Bhaskara não era aquela coisa de decorar. Todo mundo aprendeu
muito e foi muito bem. E trabalhava muito mesmo, as aulas dela eram sempre
muito boas. Eu nunca tive problemas nas aulas dela.
***
Mas nós não tínhamos toda a Matemática do Segundo Grau. Essa foi a grande
perda para nós que cursamos Magistério. No primeiro ano nós tínhamos
História, Geografia, Física, Biologia, mas tudo noção, uma introdução. Já no
segundo ano de Magistério você já tinha as matérias específicas que eram essas
que eu já falei. Então o conteúdo mesmo, o conteúdo das disciplinas que você
precisa para um vestibular não se tinha.
114
Eu senti algumas dificuldades, mas é porque ao longo desse tempo, eu não cursei
outra universidade. Não tive, como é que eu posso dizer, a sorte de ter cursado,
mas fiz alguns cursinhos, Prestei vestibular para a UFBA, que é a Universidade
Federal da Bahia, para a UNEB, que é do estado da Bahia, mas devido a
concorrência eu não passei. E não tem como competir com alunos que estudaram
toda a sua vida na escola particular, que dispõem de uma boa orientação de seus
professores, de um conteúdo bom para prestar o vestibular. Esse aluno vai passar
na Universidade Federal da Bahia. Mas o aluno que estudou na escola pública a
vida toda e que tem essas limitações, porque nossos cursos técnicos eram
limitados ao que você iria trabalhar, ao que você iria desenvolver naquela área,
sente uma enorme dificuldade. Mesmo fazendo um cursinho, intensivo ou
extensivo, você tem uma série de dificuldades. Então, eu não cursei outras
universidades, por isso.
Mas eu estou gostando muito do curso. E agora ele já está realmente caminhando
bem. Porque todo o início tem algumas complicações, toda mudança exige, como
115
é que eu posso dizer, toda mudança é complicada. É um curso novo, nós somos a
segunda turma de Matemática, então os problemas ainda estão chegando. Eles
ainda estão estabelecendo uma, vamos dizer assim, linha de montagem de
conhecimentos.
E agora nossa turma está nivelada, porque no começo, nós tínhamos colegas que
tinham grandes dificuldades em resolver algum problema, em reconhecer uma
figura geométrica, quadrado, triângulo. Mas hoje a turma está em um nível bom
de conhecimentos. Alguns alunos saíram, uns precisaram trancar matrícula,
alguns mudaram de curso porque não era o curso que desejavam.
Mas o problema são essas dez disciplinas. E além disso, é um curso noturno.
Então o pessoal trabalha. Este ano não, mas ano passado eu trabalhava quarenta
horas. Ficava louca. Esse ano eu estou trabalhando vinte horas. Eu saí de uma
escola porque tenho que resolver algumas coisas minhas também, não posso só
me dedicar ao trabalho e a Faculdade, tenho que viver também.
***
Mas, como eu estava falando, eu fiz vários cursos de períodos curtos. Esses que
as editoras promoviam. Porque só agora pude fazer faculdade. O professor da
rede pública também tem acesso a esses mini-cursos, mas o governo hoje está
dando oportunidade dos professores da rede estadual de Ensino e Rede Municipal
cursar a universidade ou uma faculdade. Então, aqui na Jorge Amado, nós temos
os professores da Educação Infantil e séries iniciais, que a prefeitura auxilia. Tira
o professor vinte horas da sala de aula e paga a faculdade para o professor
estudar.
Eu fiz alguns concursos, fui aprovada em alguns, mas nunca fui chamada para o
estado nem para a prefeitura. E por isso é que eu sempre trabalhei em escola
particular.
Naquela escola que implantou quinta a oitava série, eu fui a primeira professora
de Matemática, foi o meu primeiro trabalho com o ginásio. Eu trabalhei nessa
escola de mil novecentos e oitenta e nove até dois mil e um. Foram assim, doze
anos, isso é uma vida, e eu fui demitida. Eu aprendi muito, doei muito, também
recebi muito, sabe? Muitas coisas boas, ruins. Porque você está trabalhando na
escola particular é uma escola que está sempre te cobrando. Se o pai vem fazer
queixa, o pai é que está certo, o aluno está certo. O professor tem que se adequar
ao que a escola quer, ao que o pai quer. Então foi uma vida, mas não é uma
estabilidade.
116
Ganha menos, mas tem uma certa estabilidade, tem uma série de vantagens. O
salário base é um salário mínimo ou um pouquinho a mais, não sei muito. Mas
tem uma série de vantagens: se você trabalha na periferia, você tem um adicional
periférico, se você trabalha noturno, tem o adicional noturno, tem assistência
médica. Hoje eu pago assistência médica particular. Se eu estivesse na rede
pública eles estariam pagando a faculdade, porque eu tenho colegas que
trabalham quarenta horas na prefeitura, a prefeitura está pagando a faculdade e
ainda liberaram esses professores vinte horas. Tudo isso para os professores
terem uma melhor formação e as crianças e os adolescentes que estudam também
terem uma boa formação. É o que está precisando, acho que a pior doença que
existe no Brasil é a nossa educação. Está bastante precária. Principalmente aqui
no Nordeste. A região é muito pobre.
***
Eu era manicure. Com doze anos de idade já era manicure. Eu trabalhava em casa
assim, fazia a unha da vizinha, a unha da amiga de minha mãe, a unha de minha
mãe, essas coisas, né? E dava meu reforço escolar, então eu sempre fui
professora. Quando eu era pequena as pessoas perguntavam: – Vai ser o que
quando crescer? – Eu vou ser professora. Então eu já cresci assim.
Tinha uma época que eu fazia um curso de ballet. Naquela época eu pensei em
cursar Educação Física. E minha mãe: – Não. Educação Física não tem um
campo de trabalho bom, você vai ficar sem trabalho. Porque você não vai cursar
o Magistério, você já dá aula de reforço. E, por meio desses conselhos de minha
mãe, fui cursar Magistério. E o meu primeiro emprego quem conseguiu para
mim, foi ela.
formar. Ela disse: – Mande ela vir aqui. Eu fui, fiz a entrevista e comecei a
trabalhar.
***
Era uma turma muito boa, todo mundo da mesma faixa etária. Quando começou
a namorar, começou a namorar todo mundo na mesma época. Sabe? Hoje todo
mundo já é casado, pai de família. Eu não. Não casei nem tenho filhos, mas a
maioria são casados e pais de família. Alguns moram lá, outros já se mudaram.
Mas a grande maioria permanece. Eu também moro lá, pretendo mudar, mas
ainda moro lá.
***
Teve uma época em que eu prestei serviços para o estado. Eles estavam
precisando de professores que tinham feito Magistério para trabalhar de professor
substituto em escolas públicas, para substituir professoras que estavam com
licença maternidade, ou com problemas de saúde, e que precisaram se ausentar
de sala de aula. Então aquela vaga do professor ficava aberta e a escola precisava
de substitutos para que os alunos não ficassem sem aula. Então você fazia uma
inscrição na Secretaria de Educação e eles te encaminhavam para essas escolas
que estavam faltando professores. Ainda existe isso aqui, é o REDA. Mas hoje
estão dando prioridade para quem tem formação superior. Eu fiz a inscrição na
Secretaria de Educação e fui indicada para uma escola perto da minha casa que
estava precisando de um professor durante seis meses. O regente da sala tirou
licença prêmio e aí eu fiquei durante esse período. É um contrato temporário em
que você recebe de acordo com o seu nível de formação.
E à tarde eu assumi essa turma na escola pública, só foram seis meses, não sei se
no primeiro ou no segundo semestre. Mas era assim, era um contraste terrível.
118
Porque pela manhã eu tinha um trabalho mais do que dobrado. Enquanto uma
parte da turma, a terceira série, estava desenvolvendo atividades eu cobrava
atividades da outra parte, que estava na quarta série. A dona da escola não queria
ter despesa com mais uma professora, então ela juntou a turma. Mas quando é o
primeiro emprego a gente aceita qualquer desafio que aparece na frente. Eu
fiquei o ano todo com essa turma, aprendi bastante. Foi muito gratificante.
E na parte da tarde eu dava aula para primeira série, na escola pública, e ali a
dificuldade era que tinham alunos que não sabiam ler. Então era complicado você
estar numa sala de primeira série, na escola pública e os alunos não saberem ler.
Eu senti uma grande dificuldade porque você tem que desenvolver um outro
trabalho para que a turma tenha um aproveitamento. Para que os alunos
aprendam alguma coisa. Para que eles saiam dali sabendo algumas coisas. Eu
senti dificuldades por ter encontrado uma turma que não tinha condições de fazer
um trabalho melhor. Claro que o trabalho que foi feito foi gratificante porque
atingi algum objetivo, eu consegui atingir, mas com bastante dificuldade.
***
Bom, quando você trabalha com Ensino Fundamental até a quarta série, você tem
que dar aula de Português, Matemática, História, Geografia, Religião, Artes. Ou
seja, o professor tem que se desdobrar e dar aula de todas as disciplinas. Então,
nessa sala mista, eu costumava fazer assim: colocava uma turma para fazer a
leitura e interpretação de um texto, e, enquanto isso, eu corrigia as atividades de
casa da outra turma, dando visto em livro e cadernos, quando eu terminava,
colocava esta turma para ler e interpretar outro texto e voltava para outra turma
para corrigir a atividade de casa. Era a maior correria. Então eu estava sempre
assim: se uma turma estava fazendo atividade, eu estava explicando o assunto
para a outra. Era uma loucura, sempre foi uma loucura. Porque não dava tempo
para parar. Só no intervalo você descansava um pouco e assim mesmo corrigindo
os livros, dando visto nos cadernos para ver se eles corrigiram as atividades
certas e tal. Então, no começo, minha prática de sala de aula era bastante corrida.
Mas foi muito bom.
Hoje eu tenho mais calma. Estou trabalhando de quinta a oitava série. Hoje eu dei
aula na quinta série sobre frações. Foi interessante. Eu comecei com eles
trabalhando assim: fui na cantina da escola e peguei duas barras de chocolate -
foi uma briga por causa dessa barra de chocolate – então, eu pedi a um aluno que
119
Esse curso da Jorge Amado faz com que a gente trabalhe de uma forma mais
contextualizada. Para que os alunos tenham uma melhor aprendizagem. Então,
com essa história da barrinha de chocolate, eu tenho certeza que eles aprenderam
hoje o que são frações equivalentes. A gente sempre está buscando o cotidiano do
aluno.
***
Teve uma outra escola em que eu trabalhei até o ano passado, pedi demissão.
Nessa escola eu não tinha condições de fazer um bom trabalho. Porque trabalhar
em escola privada não quer dizer que você possa fazer tudo que você quer. Eu
pedi demissão porque eu já não estava conseguindo fazer um trabalho bom.
Porque se você ía pedir um material: – Ó pro, não tem esse material, você vai ter
que pedir aos alunos. Aí quando você pedia uma relação de material para fazer
120
um trabalho em sala de aula e tal, eles não levavam: – Meu pai disse que não tem
mais dinheiro para comprar o material. Então não tinha um compromisso. Eu não
ficaria lá mesmo que o salário compensasse. Não acho que só porque uma escola
tenha condições de dar um bom salário ela poderá desenvolver um bom trabalho.
O primeiro ano foi assim terrível. E daí nós tivemos que preparar apostilas para
falar da região Nordeste. Que só veio material de Curitiba. Depois eles adaptaram
para a região da gente. Eu acredito que essa escola trabalha até hoje com esse
material. Eu trabalhei uns seis anos com esse material. Eu me adaptei bem com
esse material, mas é lógico, eu sempre tinha que complementá-lo.
***
Lógico que a gente tem que respeitar o limite de cada um. Nessa escola que eu
estou trabalhando está começando um projeto da Feira de Conhecimentos sobre
as Olimpíadas. E eu comecei uma discussãozinha na sala sobre a camisa. E como
a sexta série vai trabalhar com os Deuses da Mitologia, eles estão querendo na
camiseta dos meninos, acho que Zeus, e na das meninas não me lembro a Deusa
que queriam colocar. E tem uma menina, a Étila, que é Testemunha de Jeová, e
ela reclamou que a religião dela não permite usar uma camiseta com a imagem de
um Deus da mitologia. E é claro, eu entrei no meio para respeitarem a religião
dela. Religião é uma coisa que a gente não discute, respeita.
***
Às vezes eu sou uma professora rígida. Exigente demais. Mas primeiro eu dou,
para depois exigir. Eu me acho rígida no momento em que estou explicando o
assunto e estou vendo os alunos conversando, dispersos. Um grupinho
conversando e eu estou lá explicando o assunto e eles lá como que não
estivessem em sala de aula. Então eu reclamo e chamo a atenção, entendeu? –
Vamos prestar a atenção, isso é assunto de prova e vamos virar para frente.
Separo por causa da conversa. Mas enfim, eu exijo, mas dou. Para que eu possa
exigir eu tenho que dar muita coisa, né? Então eu sou uma professora exigente.
121
***
Aula boa de Matemática é aquela aula em que você consegue chegar no final e
ver que alcançou, mesmo que não seja cem porcento, mas, pelo menos, setenta
porcento do seu objetivo. Então é uma aula boa quando você chega no final da
aula e você vê que a maioria da turma compreendeu e aprendeu aquele assunto
que você acabou de explicar.
Porque Matemática tem aquela velha história: os meninos acham que é o bicho
papão da escola. Eles têm muita resistência a aprender Matemática. Alguns têm
bastante facilidade para encontrar a solução de um enigma, para aprender, captar
o assunto, outros não. Muitos têm dificuldade de enxergar a operação e te
perguntam assim: – Pró, é de mais ou é de menos?
Essa aula que eu tinha dado foi assim: entrei, dei bom dia, eles corrigiram as
atividades anteriores, eu sorteei na caderneta e eles vieram ao quadro de giz.
Quando eu terminei no quadro a correção do assunto da aula anterior eu iniciei o
próximo assunto da unidade, que, nesse caso foi equação do Primeiro Grau.
Então, eu não dou a definição logo de cara. Primeiro eu deixo que eles me
expliquem, entendeu? Eles vão contextualizando o assunto, para daí eu
sistematizar: – Dois xis mais cinco igual a dez. – Pró, então eu tenho que saber
qual o valor de xis que multiplicado pelo dois e somado com o cinco dá dez?
Então eles vão contextualizando o assunto, até nós chegarmos que é uma
sentença matemática aberta, expressa por uma igualdade, que existe uma
variável, e que eles iam encontrar em outros livros tanto variáveis como
incógnitas.
Aí eu passei uma série de equações para eles resolverem em casa. E eles não
resolveram. Porque tinham umas equações simples, vamos dizer: xis sobre cinco
igual a quarenta e cinco, quem é xis? Essas simples eles conseguiram resolver.
Mas se tem três xis mais dez igual a vinte e cinco menos xis, eles ficaram um
pouco receosos, apesar de nós termos feito alguns exemplos em sala. Mas eu
passei bem poucos para justamente ver até onde eles poderiam ir.
Aí coloquei para aplicar a propriedade distributiva. Dois vezes xis mais quatro,
igual a um. Para que eles pudessem ver que tinham que multiplicar o dois, aplicar
a propriedade distributiva, foi explicado em sala, foi feita a atividade em sala.
Mas não atingiram meu objetivo. Então essa foi uma aula ruim.
***
Eu acho que antigamente os alunos tinham uma disciplina melhor. Não que eu
queira que os alunos me chamem de senhora, ou professora. Eles podem me
chamar de “pró” ou pelo meu nome, não tenho problemas quanto a isso. Mas
antigamente eles não falavam palavrão, quando escapava, eles morriam de
vergonha. Hoje não, eles falam como se fizesse parte do dicionário ou da Língua
Portuguesa. Eles brincam muito, brigam muito entre si. E se você reclamar corre
o risco de ouvir um desaforo daqueles. Até porque eles dizem em casa às mães.
Dizem em casa e dizem lá na escola. Quando a mãe vai a escola, eles falam com
a mãe e com o pai como se fosse da idade deles. Então, se eles têm essa certeza
de que podem desrespeitar a mãe, o pai, os mais velhos, os chegados da família,
o professor nem se fala. Então, eu acho que antigamente se tinha uma educação
melhor, uma postura melhor. Os pais também, eram mais interessados na
educação dos filhos, no comportamento, na aprendizagem.
Por outro lado antigamente não existia diálogo. Não existia muito diálogo entre
pai e filho, entre a professora e o aluno. Hoje a gente consegue ter esse diálogo.
Eu tenho um aluno que não liga para nada, deixa tudo à toa, só chega atrasado,
falta muito, já é repetente. Ele está repetindo a quinta série. Mas ele está
repetindo a quinta série porque ele faltou muito às aulas no ano passado, não
estudou, não fez as atividades, não tinha boas notas nas avaliações. Fez
recuperação paralela, recuperação final, mas não adiantou, sabe? E esse ano está
voltando tudo a mesma coisa. E nós sabemos que tem problemas em casa. Porque
na maioria das vezes eles fazem isso para atingir o pai e a mãe. Então, hoje eu
123
posso conversar com esse aluno, saber o que está acontecendo. Para ver se ele
melhora a postura, se melhora até a vontade de aprender. Mas a escola também
não pode estar se intrometendo tanto no relacionamento entre pais e filhos. A
gente está querendo fazer o possível para que melhore a situação do aluno, mas é
difícil.
***
Então, o professor está vendo um assunto e eu não entendi, não peguei, não
consegui enxergar. Eu estou querendo que o professor me dê possibilidades para
que eu enxergue, para que eu veja. Então você chega em sala de aula e você já
olha o seu aluno diferente. Porque você está explicando o assunto e o aluno:–
Professora eu não entendi, eu não entendi. Ele pode dizer dez vezes eu não
entendi, na décima primeira você não tem mais paciência para repetir a mesma
coisa. Só que aí você volta e diz: – Poxa, mas isso também aconteceu comigo e
meu professor teve paciência para me dizer: – Olha é assim, venha cá, vamos dar
outro exemplo. Eu estou enxergando o aluno de outra maneira.
Eu não estou vendo assim, muitas coisas novas, mas sempre tem, né? A
disciplina de Geometria, por exemplo, a gente está construindo um conhecimento
imenso, a professora é muito boa.
As aulas de Sônia são assim, maravilhosas, sabe? Ela passa alguns exemplos na
lousa e tal. Ela desenha alguma coisa e a partir do desenho ela constrói o
conhecimento, a definição, as propriedades. Eu já trabalhava com Geometria, ou
melhor, com Desenho Geométrico, e quando eu cheguei aqui, na primeira prova
de Sônia, eu tirei um vírgula sete, e a prova valia quatro pontos. Eu me
desesperei. Eu disse: – Meu Deus! Como é que pode? Eu trabalho com isso. Só
que as aulas de Geometria, aqui na faculdade, você só pode usar em sala, em
prova, em teste, o que foi demonstrado. Então ela fez uma demonstração de reta,
segmento de reta, semi-plano, triângulo e tal, mas nesse meu teste ela não usou
mediatriz, não usou suplemento de ângulo, ângulos adjacentes. E eu cheguei na
prova eu li a prova e disse: – Ah, isso e isso. Fui escrevendo mediatriz e tal e não
demonstrei. Quando eu peguei minha prova foi aquela surpresa. Aí ela foi me
explicar o porquê de eu ter tirado aquela nota. E a partir desse momento as aulas
dela se tornaram mais interessantes ainda.
Ela montou uma Oficina de Geometria. Foi tão bom que acabou entrando no
currículo do curso. Fizemos vários trabalhos, a parte de triângulo, de
quadriláteros, de teoremas, axiomas, foi tudo demonstrado. Teve uma
participação ativa da turma, entendeu? Se você tiver a oportunidade de participar,
vale a pena.
Nesse semestre ela fez um trabalho usando transparências. Ela sorteou alguns
tópicos e a gente tinha que dar a aula usando o retro-projetor. Então ela ensinou
uma técnica de sobrepor as transparências para ir mostrando o que você estava
explicando. Eu usei esta técnica para dar minha aula de Prática de Ensino. Foi
assim, muito bom. O trabalho aqui da faculdade está sendo muito bom.
***
***
Se eu tivesse que trabalhar em uma realidade diferente, acho que no começo seria
difícil. É porque você já vem acostumado a trabalhar com um material, com um
determinado tipo de sala de aula.
14
Material parecido com uma placa de borracha.
125
***
Eu acho que mudei muito desde que eu comecei. Não tem condições de ficar
fazendo sempre a mesma coisa. Hoje eu me acho bem mais flexível, menos
exigente, né? Procurando entender mais o aluno. Porque a gente que trabalha
com adolescente é muito complicado. Eles querem o tempo todo brincar, eles não
querem falar sério, não é? E chega um momento que você tem que falar sério.
Então eu acho que eu mudei muito. No diálogo, na cobrança, na maneira de dar
aula.
Tem professores que não mudam. Por exemplo, eu conheci uma professora que
sempre reclamava de tudo. Ela dava aula sentada, entendeu? Acho isso
complicado. Eu estou sempre andando pela sala, só sento para fazer a chamada,
para escrever na caderneta o assunto da aula ou corrigir alguma atividade. Mas
estou sempre andando, vou de cadeira em cadeira dando visto, colocando a data
do dia da atividade nos livros, nos cadernos. E sempre que eu passava na frente
da sala dela, ela estava sentada. Explicando o assunto sentada e isto me
incomodava, mas eu nunca cheguei para ela para dizer nada.
Eu acho que eu mudei muito devido a minha clientela. Você tem que começar a
se adaptar a algumas coisas, porque não dá pra você estar sempre buscando uma
coisa e não enxergar os outros. Você tem que abrir o horizonte para enxergar
tudo. Você tem que saber que o seu direito termina quando começa o do
próximo, o do seu aluno. E aí, como eu disse para você, acho que eu mudei
através disso, sabe? Minha mudança veio através disso, de estar sempre mudando
de local de trabalho. Estar sempre se adaptando ao espaço, ao que lhe é dado.
***
***
126
Eu criei bastante expectativa para essa entrevista. Achei ótimo. É bom lembrar
das coisas assim. Engraçado que eu passei o final de semana lembrando, assim,
sabe? Das coisas que eu te falei. É muito interessante, comentei com umas
amigas minhas e tal. Uma delas me ligou: – Você marcou alguma coisa agora de
tarde? Eu falei: – Não, não posso sair porque eu tenho que ir lá na faculdade
terminar a entrevista. Aí brincaram: – Ah, virou uma celebridade e tal. Foi muito
gratificante.
127
Entre outros motivos, pelo fato desta entrevista ter sido realizada pouco
tempo após a anterior, o enfoque continuou o mesmo, qual seja, o de abordar o
conceito de flexibilidade.
Conheci Clélia por intermédio da professora doutora Maria Tereza
Carneiro Soares. Naquela ocasião, no ano de 2000, trabalhamos juntos em um
projeto15 de Educação de Jovens e Adultos.
Clélia é autora de livros didáticos e, apesar do seu maior título ser o de
Graduação, possui uma prática de sala de aula reconhecida pela comunidade
acadêmica.
Outro fator que me levou a entrevistar Clélia foi o fato de uma das
integrantes do GHOEM, Helenice Fernandes Seara, estar desenvolvendo uma
dissertação de mestrado a respeito do NEDEM – Núcleo de Estudo e Difusão do
Ensino da Matemática (SEARA, 2005) e Clélia tê-la auxiliado, por ser filha de
uma das participantes daquele núcleo.
Entrevistei Clélia em sua casa, no mês de agosto de 2004.
15
Trata-se de um convênio realizado pela UFPR – Universidade Federal do Paraná –
e o FAT – Fundo de Amparo ao Trabalhador. As aulas ocorriam na UFPR e eu atuava como
monitor, assistindo às atividades da depoente. No desenvolvimento da proposta do curso,
dividimos as aulas em duas turmas. Finalmente, em decorrência das atividades desenvolvidas,
passamos a orientar bolsistas da Graduação para que ministrassem as aulas.
128
Quando meus pais se casaram minha irmã já tinha sete anos e eu nasci um ano
depois do casamento.
Eles se encontraram porque os dois eram professores. Aliás, toda minha família
(irmã, tias, muitas primas) é de professores, minha avó era professora em
Antonina, meu avô era diretor lá também. Por parte do meu pai, não. Meu avô
era maquinista e a minha avó era dona de casa.
Meu pai saiu de Ponta Grossa depois de ter estudado, de ter feito o Magistério.
Teve que trabalhar desde pequeno porque minha avó ficou viúva quando ele
tinha quinze anos. Então ele já saiu pra trabalhar e logo em seguida ele fez
Magistério, e aí foi para o interior ser diretor. Lá ele conheceu a ex-mulher, aos
vinte e poucos anos, acabou morando em Tibagi, teve minha irmã e perdeu a
esposa com tuberculose.
Daí ele muda para Curitiba e encontra minha mãe na Secretaria de Educação do
Paraná. Os dois vão crescendo na profissão. Minha mãe tinha especialização no
Rio de Janeiro em Psicologia. Ela trabalhou com o ensino do Paraná, era Técnica
de Ensino. Onde ela era responsável pelo currículo, pela elaboração de provas
para o estado inteiro. Tinha que nivelar da mesma forma, naquela época
acontecia tudo isso. E o meu pai lidava mais com a parte administrativa da
Educação. Foi editor da revista de Educação do estado do Paraná. Ele chegou a
trabalhar no palácio do governo. Ele tinha muita cultura, leu muito, quando ele
era pequeno, antes de sair de Ponta Grossa, trabalhava em uma livraria
entregando livros e quando não tinha entrega ele ficava lendo. E quando foi para
o interior as pessoas ficavam loucas de brabas porque ele gastava muita vela para
continuar com as leituras. E as pessoas ensinaram a ele outras coisas além de ler,
como fumar cigarro de palha, por exemplo.
Ele tinha uma boa formação, lia os clássicos. Minha mãe também. Eles eram
loucos por livro, fanáticos por cinema. Eram pessoas que davam muita
importância para a Educação, para a cultura e diziam que essa era a herança que
eles iam deixar pra gente.
E nessa quitinete nós fomos crescendo. Fizemos a primeira série em casa, todos
nós, porque meu pai dizia: – Criança vai para a escola só para pegar doença. Na
época tinha muita doença, sarampo, catapora, todas essas coisas, você ía para a
escola, sem muita defesa, e acabava pegando tudo isso. De fato, meu irmão,
como ele não se entendia com a minha mãe, eles acharam melhor colocá-lo na
escola mesmo, ela dizia: – Lá com a professora ele obedece. E, em um ano ele
pegou umas cinco doenças e ficou em casa um tempão.
Nós éramos todos mais ou menos da mesma idade. Eu e meu irmão tínhamos
diferença de um ano, os amigos da vizinhança também, a Sandra e o Jonas e
tinha o Agostinho e o Júlio em outros apartamentos. E nós seis nos reuníamos ali
na porta de casa. Tinha a mãe de uma das crianças que vivia na cozinha
inventando comidas e comidas. Minha mãe não era muito chegada nessas coisas,
fazia o básico, as onze e meia da manhã ela entrava na cozinha fazia um almoço
e saía correndo da cozinha, o negócio dela era outra coisa, né? Ler, estudar,
trabalhar e cuidar de filho, mas ela era muito prática. Fazia os doces, os bolos,
mas uma vez por semana para ninguém engordar.
Ela sempre quis a gente junto, para poder controlar, para cuidar, para ver quem
estava aprendendo, quem não estava.
Eu acho que eu sou assim do jeito que eu sou porque eu brinquei muito com
menino. Eu tinha essas coisas de brincar de carrinho, desmontar tudo, como eles,
né? E não tinha essa coisa de menina não pode, isso é brinquedo de menino.
Quando eu ía na casa dos meus primos, tinha isso. – As meninas vão brincar lá
no quarto com as bonecas e os meninos vão lá fora brincar com a bola. Mas a
gente acabava liderando o povo e mandava todo mundo lá para fora brincar de
bola. Inventava de brincar de fantoche, apresentava para o pai e para a mãe, subia
em árvore, menino e menina brincando junto. Minha mãe incentivava bastante.
130
Ela pegava a gente, levava até o ponto final do ônibus da Vicente Machado que
era mais ou menos ali embaixo, umas seis quadras daqui. Minha avó morava ali
embaixo. A gente andava mais um pouquinho e já estava em chácara, e daí
construía, empinava pipa, fazia piquenique, brincava de Cinco Marias e essas
coisas que os pais e os tios da gente ensinavam. A gente tinha o que fazer, o dia
inteiro a gente ficava brincando, brincando, brincando e brincando e era uma
delícia vir para casa e era uma delícia ir para a escola.
***
Não ir para a escola na primeira série, para mim, foi um problema muito sério.
Todo mundo foi para escola, menos eu, para mim aquilo era um castigo. Minha
vida escolar no início acabou sendo assim, ficava em casa estudando com a
minha mãe.
Fui alfabetizada por ela, com uma cartilha chamada O Presente. E ali contava a
história de uma criança que ganhou uma caixa com uns furinhos. E a idéia era
descobrir o que tinha na caixa, mas o meu irmão, que não estava sendo
alfabetizado na época, era mais novo um ano, não agüentou, escutando a
conversa daqui e de lá, ele viu onde é que minha mãe escondia as páginas, e um
dia, quando a história começou a ficar empolgante ele foi lá e disse: – Eu já sei o
que é que tem na caixa, é uma ovelhinha. Eu não me interessei de fazer isso,
porque eu sempre fui assim, mais calma e sossegada. Mas ele não agüentou. Que
ódio, eu queria matar o guri. Porque você está esperando que a mãe conte, está
querendo ler, você está aprendendo, é diferente, e o cara só queria saber o fim da
história.
Depois eu comecei a ir para a escola, para o grupo Escolar Professor Cleto. Eram
dez quadras, e a gente ía a pé, sozinhos. Estudei a segunda e terceira série nessa
escola, depois fui fazer a quarta série no Magistério no Instituto de Educação,
que se chamava Escola de Aplicação Guimarães Plaisant e segui aí, fazendo
ginásio e Magistério. Saí daí e entrei na Universidade Federal do Paraná para
fazer Licenciatura em Matemática.
E nesses dois anos que eu estudei no Professor Cleto, nós tínhamos aula de todo
o tipo, que todo mundo tinha em sessenta e dois, sessenta e quatro. Tinha
caligrafia, redação: “O que você fez nas férias?” Essa era uma redação que eu
mais gostava de fazer, porque eu fazia um monte de coisas nas férias. Mas a pior
redação e que ficou marcada para o resto da vida era “O meu quarto”. Porque eu
morava naquele apartamento que não tinha quarto, então, que desgosto, eu
inventei um quarto, eu criei um quarto. Nossa, foi uma redação linda de morrer,
toda inventada. O que faziam as pobres das professoras! E a redação era assim,
você se inspirava num quadrinho que eram todos com o mesmo tipo, desenhados,
coloridos, aquilo era meio apagado, acho que tinha uns duzentos anos. A
131
Tinham as aulas de Educação Física. Essas eram bem gostosas. Nós jogávamos
caçador, aquela coisarada toda. Tinha a aula de Arte, que naquele tempo o estado
dava dinheiro para essas escolas e a gente tinha absolutamente tudo: tinta para
pintar, cavalete. Era uma delícia, a aula mais gostosa do mundo, eu sempre gostei
de arte. Mas tinha uma coisa que eu não conseguia fazer: era o tal do Macramé.
Aquilo, na terceira série, me deixou louca, era para fazer um cinto e o único que
conseguia fazer era um tal de Miro. Depois ele veio a ser o secretário da
Educação. Ai meu Deus do céu, que ódio. Eu não conseguia fazer aquilo. Aquilo
ficou assim na minha memória. Porque eu era metida a saber tudo que os
meninos sabiam, mas aquilo eu não conseguia aprender.
Mas tinha um menino que era da “pá virada”. Esses dias eu encontrei com ele, é
vendedor de carro, bem trambiqueiro. As salas tinham umas janelas para que as
pessoas pudessem vigiar. Quando a professora saía da sala, ele gritava assim: – É
agora. E todo mundo sabia o que era para fazer: tirar o caderno de cima da
carteira que ele ía passar correndo por cima de todas as carteiras, voando.
Aí, fui para o Ginásio. Graças a Deus não precisei fazer a quinta série. Tinha um
teste para passar para o Ginásio, se não passasse tinha que fazer a quinta, que na
verdade era uma revisão da quarta série, uma desgraça, tinha que fazer tudo outra
vez. Aí eu fui para o primeiro ano do Ginásio. Eu com aquele tamanhico,
minúscula, pequenininha, magricela, não comia nada. Minha mãe enfeitava o
prato, fazia caretinha e mais nem sei o quê, e não tinha jeito. Esparramava o
arroz, até hoje não gosto de arroz, não vejo a menor graça naquele troço. Feijão
então, aquelas bolinhas, Deus que me perdoe. Couve, nem pensar. Mas ela tinha
que dar um jeito, pegava o pão, dizia que era jacaré e tudo o mais. Ela e meu pai
eram mais gordinhos e eu e meus irmãos magros, parecia o povo da Etiópia. Mas
132
a gente tinha muita energia, tomava licor de cacau Xavier, Sadol e não sei mais o
quê, aquelas coisas para fortalecer.
Aos três anos eu tive uma infecção, tive que tomar muita injeção e minha mãe me
prometeu uma boneca do meu tamanho se eu não chorasse. E eu ganhei, não sei
para quê, né? Porque eu não conseguia segurar a bicha. Quebrei ela quase toda e
a minha mãe mandava consertar e colar, o rosto era de porcelana e o corpo era
um gesso. Aquilo durou milhares de anos, tinha uns cabelos horrorosos e tal, né?
Mas, enfim, não chorei nada na injeção. E eu nunca chorei por causa de injeção
mesmo.
Eu era a filha boazinha e meu irmão era o triste, né? O que apanhou, o que pegou
todas as doenças, o que sempre incomodava. E eu era a boazinha e minha irmã
era a mais velha, que logo ficou adolescente e que logo começou a perturbar a
vida do meu pai. Comigo foi diferente, pois quando eu me tornei adolescente ele
já era um homem bem mais velho. E aí teve muito mais paciência comigo e com
o meu irmão do que teve com ela. Tá certo que meu irmão acabou ficando o mais
estragadinho de todos, né? Porque, por ser mais novo, tinha mais dinheiro, e
acabou se estrepando bastante na vida, agora tá quase se ajeitando, com quarenta
e nove anos. Não amadureceu quase nada.
Minha mãe me ajudava bastante, me explicava o que eu tinha que fazer e porquê
eu tinha que fazer. Meu irmão era mais revoltado, ele dizia: – Eu não vou fazer,
eu não quero fazer isso. Mas eu não, sempre tirava boas notas, só não tirava nota
alta em Português. Nós tínhamos que ler bastante por causa do meu pai. A gente
sempre teve uma biblioteca enorme, cabia mais livro naquela sala do que filho.
Ele queria que nós lêssemos bastante, e comprou muito livro pra gente.
***
133
A minha mãe nunca exigiu nada dele. Sempre muito apaixonada, topava tudo o
que ele queria. Eles eram muito apaixonados. A primeira coisa que eles
compraram para casa foi uma radiola, só depois eles compraram a cama. O fogão
era uma chapinha, assim, elétrica que ficou para vida toda, até a gente mudar
para esse tal apartamento.
***
Quando eu fiz dez anos meu pai foi fazer Direito. E, antes disso ele trabalhou
com jornalismo e com a Secretaria de Educação. Na Secretaria de Educação, ele
fez o primeiro jornal informativo da Secretaria de Educação. Ele colocava fotos
da minha mãe, contava as coisas que ela fazia, botava ela lá em cima. E, assim,
um valorizando o serviço do outro, ajudavam um ao outro a crescer.
***
Meus pais gostavam muito de cinema e outra coisa que eles gostavam era de
dançar. Então, quando eu digo para as pessoas que eu adoro dançar é porque
desde criança eu danço. Minha mãe me falava que, quando eu era nenezinho,
meu pai tinha medo de me pegar, então ele me punha num travesseiro e dançava
comigo o tempo todo. Depois que a gente cresceu eu ficava no pé dele, ele
segurava na minha mão e eu andava e dançava sobre os pés dele, dando e
trocando os passos. Mais tarde ele me ensinou a dançar.
Ele levava muito a gente ao cinema. Nós assistíamos Carlito, Mazaroppi, Disney.
No domingo de manhã, a gente ía para a rua XV, enquanto minha mãe fazia
almoço, ele ía bater papo na XV com os amigos dele, que eram sempre homens
bem mais velhos que ele. Homens voltados para a política, para o Direito. Porque
ele se dedicou um pouco ao Direito, mas logo em seguida ele se aposentou.
Quando eu fiz quinze anos ele já estava aposentado.
***
Outra coisa importante na nossa vida eram as viagens. Quando éramos pequenos,
nós ficávamos com a avó, ou na fazenda de uma tia em Ponta Grossa, e meus
134
pais viajavam. E lá não tinha muito que conhecer, que visitar, mas tinha o cinema
que era do meu tio e daí a gente não saía do cinema. Depois fiquei adolescente e
comecei a ir em baile, sociedade e tal, mas era só lá, porque as pessoas eram mais
simples, eu nunca gostei dessa coisa de ser sofisticada e tal. O máximo que eu
consegui dar conta de lidar aqui em Curitiba, foi ir ao Círculo Militar. Meu pai
quase teve um ataque quando soube que a gente pulava muro para entrar no
clube. Logo com os militares, ele tinha horror dos militares nos anos setenta.
Quando nós nos tornamos adolescentes, começamos a viajar com meus pais. Meu
pai nunca comprou uma casa na praia porque ele nunca quis ficar num único
lugar. Ele dizia: – Férias é pra gente aprender também. Então as nossas viagens
eram diferentes dos amigos da gente, que iam para praia para ficar casa praia,
casa praia, casa praia, casa praia, e dentro da água, coisa que eu amava também.
Mas o meu pai levava a gente assim para viagens turísticas culturais, certo?
Então, antes de ele sair ele fazia o roteiro, e assim, aos treze anos mais ou menos,
eu fui ao Rio de Janeiro. Nós fomos a Petrópolis, visitamos museus, fomos ao
Corcovado, Igreja, Biblioteca Nacional, todas essas coisas. A gente chegou a ir
umas três vezes ao Rio de Janeiro, e sempre assim, para conhecer o Teatro
Municipal e tal. Íamos a praia também, mas bem pouco, porque meu irmão teve a
brilhante idéia de se afogar lá. Tinha que ser ele.
Quando eu fiz dezoito anos minha irmã ganhou uma bolsa da Aliança Francesa
para morar no sul da França. Ela ficou dois anos lá e nós paramos um pouco de
viajar. Meu pai guardava todo dinheiro que ele podia e mandava para ela
conhecer a Europa. Em sessenta e seis ele tinha ido com minha mãe para lá e
também já tinha feito muitas viagens, para Bahia, Recife, Rio, São Paulo, Minas,
Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Uruguai, Argentina, marcos importantes da
135
***
Eu estudei Francês dos sete aos treze anos, daí eu briguei com a professora, que
me xingou, disse que eu não era igual a minha irmã. Eu cheguei em casa,
traumatizada, e meu pai acatou, disse que estava tudo bem e que eu não precisava
mais fazer Francês. Uma pena, né? Se tivesse dado duro, quem sabe? Mas a
mulher era muito chata e como era a dona da Aliança Francesa ía ser minha
professora o resto da vida, até morrer. E eu era muito chorona, toda sensível, a
garotinha do papai. Não deu. Meu pai me deixou parar com o Francês, mas uma
língua eu tinha que fazer, daí eu fui fazer um teste para conseguir uma bolsa de
inglês. Ganhei cinqüenta, setenta por cento, não me lembro. Todos estudaram
francês e eu fui estudar inglês.
***
No Ginásio, eu me lembro, foi a primeira vez que eu peguei numa caneta tinteiro,
e tinha que ser tinteiro. O professor de Português não deixava que fosse a
esferográfica, uma novidade naquele momento. Uma caneta Bic azul, uma
vermelha e uma preta, era tudo o que um adolescente queria naquela época.
Vinha com uma pontinha que rolava e escrevia tudo, bem bonitinho. Não era
aquela porcaria que manchava tudo. E olha que meu pai comprava boas canetas
tinteiro para mim, de marca, mas não adiantava, borrava tudo. E o professor fazia
a gente escrever com essas canetas.
textos eram enormes e tinha que copiar as perguntas. Mas sabe, eu acho que ele
até tinha um pouco de razão. Os meus alunos fazem a metade hoje em dia e não
sabem escrever. Tem erros de ortografia que na idade deles eu não tinha mais. Eu
escrevi muito, fiz calos no meu dedo a vida toda porque escrevia e copiava,
copiava e copiava. Tinha que copiar a prova, fazer resumo do livro de História:
Borges Hermida, nem pensar que fosse outro. O Azevedo lá de Geografia, e o
Ary Quintela de Matemática. Tá certo que o Ary Quintela, acho que foi o meu
irmão que usou. Ele fazia escola particular porque não dava conta da escola
pública, ninguém agüentava ele. Ele usou um livro mais tradicional. Mas eu,
como fui estudar no Instituto de Educação, usava o que tinha de mais avançado
na época: a Matemática Moderna com toda aquela conjuntera, conjuntevite
crônica total lá no quadro e a gente com pouco livro.
Nessa época a minha mãe fazia livro de Matemática com o pessoal do NEDEM –
Núcleo de Difusão do Ensino da Matemática, e nós usávamos o livro deles, assim
como o colégio Estadual do Paraná. E foi por ali que eu aprendi, com o livro e a
minha mãe junto. Eu lembro que ela sentia falta de algumas coisas naqueles
livros de Matemática Moderna.
Bom, e como minha mãe escreveu o livro e ainda me ajudava em casa, eu sempre
tirei notão. Ao contrário dos outros alunos, porque aquela era uma Matemática
que ninguém sabia, logo, os pais não sabiam ajudar.
***
Naquela época com cinqüenta e oito anos eles se achavam quase da terceira
idade, né? Mas meus pais sempre foram super dispostos, sempre se mostraram
muito mais jovens do que os nossos parentes que tinham a mesma idade, meus
tios e tal. Aliás, meus tios acabaram morrendo muito cedo, com doença, derrame.
Com dezoito anos eu já tinha poucos tios, boa parte deles já havia ido embora.
Mas nós não, minha família era cheia de dinamismo, de correria, e as pessoas
gostavam da gente, viviam lá em casa, todo mundo procurava. Os meus amigos,
dos meus irmãos, os parentes, todos vinham nos visitar. Primeiro naquele
apartamento pequenininho, depois no outro, que, mesmo que não fosse assim
uma coisa de louco foi um salto: tinha três quartos, eu e minha irmã ficávamos
num, meu irmão no outro e os meus pais no terceiro, tinha sala, quarto, banheiro,
cozinha e dependência de empregada. Quando mudamos de apartamento, as
pessoas eram outras, mas eu continuei bem moleca.
137
Até os treze anos eu ganhei boneca, uma tagarela, puxava aquele negócio e
falava, mas logo larguei dela. Meu irmão foi aprender violão, e tudo que ele
aprendia eu também queria, e lá íamos nós para as festas, fazíamos serenata e
essas coisas. Enfim, foi uma adolescência bastante tranqüila e, quando eu fiz
dezessete anos eu e o Celso começamos a namorar, antes disso era uma paquera
aqui outra ali, nem tinha experimentado beijar, nada dessas coisas. Bom, e, de lá
para cá, ainda estamos morando juntos.
***
A nossa educação familiar ela era interessante porque o meu pai dizia: –
Primeiro, a cultura. O pai do Celso também achava que era importante, porque
ele não estudou tudo que precisou, precisou trabalhar muito para ganhar dinheiro.
Por exemplo, em relação a religião, nós precisávamos conhecer as religiões, mas
não necessariamente escolher. Por isso eu nunca fiz aula de catequese. Eu era
bem diferente das outras crianças, sabe? As outras crianças vinham e
perguntavam porque a gente não fazia. Porque todos os primos faziam, tinha
aquela coisa da menina se vestir de branquinho e tal, era uma coisa incrível.
Debutar aos quinze anos também foi difícil do meu pai me convencer, mas ele
conseguiu. Já a minha irmã ele não convenceu, decerto ficou com alguns traumas
para o resto da vida. E o meu irmão, como só tinha que usar o terno e ir a
algumas festas, não teve a menor importância. Mas para mim isso ficou meio
esquisito na época.
Como meu pai tinha muita paciência para conversar comigo e eu abria diálogo e
tinha paciência para ouvir, essa questão da religião e dos costumes sociais elas
foram ficando sem importância. Que tem que ter uma religião, tem que cumprir
aqueles rituais. Ele dizia: – Não, não precisa nada disso. Você vai ter tempo, você
vai crescer, você vai escolher, o importante é que você leia de tudo para você ter
um caminho, se é que você quer ter uma religião. Eu não quero. Eu já li tudo que
precisava e entendo que nesses livros têm questões de convivência e valores que
são importantes a gente ter, e esses valores eu costumo passar para vocês
independente da religião. Agora, têm outras questões que são relativas ao medo
da morte, do que vai acontecer depois, que eu acho que a gente não precisa ter.
Porque se morrer, morreu, acabou, enterra e acabou. Você tem que viver agora,
tem que trabalhar, ser feliz.
Então a gente acabou entrando na conversa do meu pai, né? Mas era uma coisa
difícil. Os amigos da gente, vinham e diziam: – Você sabia que tem um anjo da
guarda que vive atrás de você. Um dia meu irmão disse assim: – É mesmo?
Quero ver. Pegou e deitou-se de costas bem rápido e disse: – Aonde é que está
ele agora. Ele tinha umas respostas inteligentes para as coisas, mas eu não, eu
ficava intimidada com aquilo. Eu pensava: como é que eles sabem dessas coisas e
eu não sei. Então eu ía conversar com o meu pai e ele ria, e tirava o maior sarro
daquilo. O meu irmão também nunca acreditou. Mas eu ficava sempre em cima
do muro, porque eu tinha minhas primas que estudavam em colégio religioso,
138
sabiam tudo aquilo e, ainda por cima, me levavam para missa. Todo final de
semana eu dormia na casa da minha tia, que tinha três primas. Eu acho que minha
mãe fazia de propósito, para eu ser um pouco menina. Ela me botava lá, na casa
da minha tia, de sábado para domingo, aí eles aproveitavam para sair, ir ao
cinema e tal, né? E eu ficava lá nessa tia, meu irmão ficava numa outra casa,
onde tinha um menino. E, no domingo tinha que ir a missa, e depois passear de
carro com o meu tio que também era outra coisa ótima, porque carro, só meia
dúzia de gente tinha, era um carro antigo, mas era um carro, tinha quatro rodas e
rodava na cidade.
É muito engraçado como que essas coisas rodam na cabeça da gente que vive
numa comunidade minúscula. E que isso é importante para as pessoas e para a
gente. E mais tarde eu percebi que essa coisa, assim, desse jeito, não era
importante. Era importante, como o meu pai dizia, uma parte, mas outra parte
também ficou meio furada pra mim, eu precisava de mais.
Mas teve um dia que me impressionou. O Celso e minha sogra tinham ido lá e
eles disseram: – Ó, tua mulher tá com tal coisa, traga ela. Eu fui, e tinha mesmo.
Fui ao médico e ele confirmou, depois, fiz um tratamento com eles e quando eu
139
voltei ao médico não tinha mais nada. Então, às vezes, você fica um pouco sem
rumo, porque você vai lá sem nenhuma fé, só com medo, e acontece isso. Você
fica pensando que o cara, ou algum outro, deve ter algum poder.
Então, eu passei por momentos complicados. Até hoje passo, né? Porque quando
meu pai estava para morrer ele disse assim: – Eu já sei como é que eu vou
morrer, já vi no sonho, e era um sonho que não era bem sonho, eu tava meio
dormindo, meio acordado, e eu vi que eu caía bem devagarinho e ía embora e
quem vinha me buscar era minha mãe. Eu disse: – É mesmo pai? Ele disse: – Eu
só estou achando que agora, tudo aquilo que eu te disse não vale muito, porque
eu acho que tem continuidade esse negócio, eu só não queria encontrar os
inimigos. Eu disse: – Mas será que estão todos no mesmo lugar, a gente vai
encontrar as mesmas pessoas? Quando será que a gente vai ter paz, né? Porque se
você foi uma pessoa tão boa porque que vai ter incômodos no futuro? Ele disse: –
É, mas judiei de muita gente, fiz isso, fiz aquilo. Então, o medo na hora da morte
é uma coisa complicada. E quando ele morreu, ele morreu bem assim mesmo,
como um passarinho, porque o coração dele parou de pouquinho. Ele estava
tomando banho, saiu do banho, se enxugou, se segurou na cortina que era aquelas
de alcinha e foi caindo devagarinho. Tanto é que ficou um pedaço assim,
pendurado, e outro no chão. Ele ficou com uma imagem muito serena no caixão.
Com a minha sogra também, teve umas coisas estranhas. Ela não ía, não ía, não
ía. Então eu disse um dia para ela assim: – Vá. Vá que aqui a gente se vira. Eu
cuido de quem ficar aqui. Ela não queria deixar o pai, ele rezou, rezou, rezou
para ir antes dela, e uma semana antes ele morreu. Quando eu disse para ela que
ele tinha morrido ela se entregou e entrou em coma. E ela tinha alguns
sobressaltos de morte mas não ía embora, daí eu conversei com ela, várias horas,
eu dizia: – Agora não tem mais o vô, só tem o seu filho, quer que eu cuide dele?
Eu cuido para senhora. E aquilo ficou uma marca, porque quando foi para eu me
separar do Celso, além de ter gostado dele, tinha essa promessa. Mas alguém me
livrou do peso dizendo que promessa só tem valor e peso quando a gente faz para
Deus, mas que para pessoas não era tão importante.
***
Ontem você deve ter percebido que eu falei mais do meu pai do que da minha
mãe. Não sei se a postura masculina marca mais para gente que é mulher. Mas
ele sempre foi mais rígido, mas muito mais rígido com a minha irmã, que é mais
velha, muito menos com meu irmão e mais ou menos comigo. É, essa é a
impressão que eu tenho hoje. Naquele tempo eu acho que ele era rígido com os
dois ao mesmo tempo, do mesmo jeito.
Meus pais, como você já sabe, eram de mais idade, e eles acreditavam que não
era com surra, com agressividade que deviam tratar os filhos. Então ele e a minha
mãe sempre conversavam muito, sempre quiseram saber do que acontecia com a
gente, mesmo depois que nos casamos.
140
Um dia eu achei que meu pai ía me bater. Ele se irritou porque a gente estava
fazendo muita bagunça e ele correu atrás de mim, deu um puxão nas minhas
tranças, que eram compridas, grossas, eu tinha cabelo pra chuchu, e crespo. E aí
ele conseguiu pegar, e me deu uma bronca, mas não passou disso. Agora, no meu
irmão, eu me lembro de ele tirar a cinta e bater nele. Ele era muito mais atrevido,
né? Acho que tirava mais ele do sério que eu.
Quanto a minha mãe, eu acho assim, que ela fez toda uma parte de orientação de
coisas de escola. Ela não se preocupava muito com aquela coisa de educação
feminina, como eu falei, mas isso é porque ela achava que na escola já estava
mais que suficiente. Nós tínhamos aulas bem diferenciadas: música, bordado,
macramé, essas coisas de casa.
Quando eu fiquei adolescente, aprendi com a minha mãe uma coisa que era mais
prática do que tricô, que era crochê. O crochê era mais rápido e como eu queria
roupas, mas a gente era filho de funcionário público e não tinha lá muita grana,
comecei a fazer minhas roupas de crochê.
O dinheiro que tinha acabava sendo gasto em livro e coisas de cultura. Quem
administrava o dinheiro era a minha mãe. Um dia meu pai entregou para ela
porque viu que não tinha condições de administrar a grana, e ela ficava louca de
ele não pagar as coisas em dia. E à medida que o tempo foi passando eles foram
ganhando cada vez melhor. Eu me lembro que teve um tempo que ela disse: –
Agora sim a gente vai ter dinheiro. Foi aí o tempo que eu também comecei a
poupar com ela. Então eu tinha uma conta corrente com a minha mãe e meu pai
tinha uma conta corrente com ela também, e aí nós fomos cuidando disso.
E a minha mãe sempre junto comigo. Lembro dela no Magistério, por exemplo,
me ensinando, montando aula comigo, para eu já poder fazer os estágios e tal.
Minha mãe era assim, ela queria que eu me preparasse para o lar, mas não
141
precisava me matar por isso. Mesmo porque eu já fazia bastante coisa, limpava
casa, fazia almoço, as compras, porque não tinha empregada, só diarista. Meu
irmão era livre desse pedaço. Antes de mim, quem fazia isso era a minha irmã,
quase que sozinha, daí ela passou o cetro para mim, disse: – Olha, agora é sua
vez.
***
mim. Então eu passei, mas eu sabia que lá dentro eu ía me lascar, né? E foi o que
aconteceu, no primeiro ano eu reprovei em quase todas as matérias porque eu não
entendia o que eles estavam falando.
Eu chorei feito doida de tirar notas tão baixas porque eu sempre fui aluna de tirar
notão. Bom, daí eu colei, essa história eu sempre conto. Foi com um professor
que se chamava Jaime Cardoso, e a gente o chamava de Jaime Louco, que depois
eu fui descobrir que ele não era tão louco assim, ele era é louco de esperto. Tinha
anos de experiência com aquela piazada e decerto já estava de saco cheio porque
o negócio dele era Matemática Pura, ele queria era se enlouquecer nos artigos
que ele escrevia, e tudo em inglês. Era um crânio mesmo. E eu fui fazer uma
reclamação para ele porque eu tinha tirado meio e meu colega oitenta. E ele disse
assim para mim: – Olha, eu dei meio pela sua assinatura, pela cópia que a
senhora fez do trabalho do rapaz. E a minha prova grampeada com a do outro.
Eu pensei: – Ah, meu Deus, esse cara já me entendeu. E ele: – Como a senhora
não é aluna minha há muito tempo, e tem os mesmos erros do fulano que já foi
meu aluno três vezes, então eu dei a nota para ele porque acho que foi ele que
fez. Se eu estiver errado, você poderia me explicar esses erros aqui que eu lhe
dou a nota. Daí eu disse: – Ah! Mas não é justo, né, professor? Ele disse: – É
justo sim. Eu quero que a senhora saiba o seguinte, eu fui olhar a sua ficha, você
fez Magistério, não sabe nada de Matemática, vejo que não participa tanto das
aulas, copia e vem para aula todo dia. Mas eu vou lhe dar um aviso, você quer
aprender Matemática? Então você vá, estude a Matemática do Científico, volte
aqui e continue o curso com a gente. Nós queremos que os alunos fiquem aqui,
mas queremos que eles saibam alguma coisa. Desse jeito não dá, você só copiou,
não mostrou conhecimento. E ali mesmo eu virei as costas e fui falar com a
minha mãe. Eu disse: – Mãe, eu preciso fazer um cursinho para acompanhar o
curso.
E, nessa época, nem meu pai, nem minha mãe podiam ajudar. A única coisa que
eu me lembro era que minha mãe ficava preocupada comigo sem comer. Então,
essa coisa de eu oferecer lanche para você eu aprendi com ela. A gente aprendia
143
que tinha que ter bastante para servir para as pessoas, não podia ser dois pratos,
tinha que ser bastante. Mas, no dia-a-dia é bem normal, como qualquer um. Essas
coisas que a gente aprende com a mãe. Ela era uma delicadeza, tinha uma
psicologia para perceber as encrencas dentro de casa e ir apaziguando. Nisso ela
era craque.
***
***
Quando eu fiz Matemática ela ficou bastante preocupada porque eu chorava o dia
inteiro. Eu não entendia nada, mas aí quando eu fui fazer cursinho eu me
dediquei muito a estudar Matemática e pensava que mesmo que se eu não
passasse no vestibular eu precisava saber daquilo. E eu, muito orgulhosa,
precisava mostrar para aquele professor que eu tinha aprendido Matemática.
Mas, enfim, tentei Arquitetura de novo, não passei, e continuei Matemática. Aí,
dentro da faculdade, eu tive um amigo que adorava Matemática e ele sentava
144
***
Fiz um caminho meio invertido, porque eu não tinha experiência de ter dado aula
em sala, né? Mas, quando você está lidando com jovens, adolescentes, é o
comecinho, a didática e tal. Eu não fui professora de sala de aula até terminar a
faculdade porque meu pai dizia que meu curso era muito difícil e eu não
precisava trabalhar. Só que eu não vivi a sem dinheiro. Naquela época as coisas já
estavam mais difíceis.
Eu queria me arrumar. Tinha descoberto que o crochê era uma saída, comprava
os fios, fazia minhas blusas e saía muito elegantemente trajada. E, naquela época,
eu já gostava muito de dançar, então eu ía a bailes, eu, meu irmão e o Celso. Eu
rachava a lenha durante a semana e o fim de semana era meu, eu dançava muito,
o fim de semana inteiro. Ia para as boates, para as discoteques. Era esse o tipo de
coisa que eu gostava, curti muito minha adolescência, minha juventude.
E meu pai achava que eu tinha que deixar o trabalho de lado, mas minha mãe
incentivava e levava para os cursos e me arrumava aluno particular. Chovia aluno
particular lá em casa. Mas era de quilo mesmo. Então, eu ensinando um atrás do
outro e a minha mãe às vezes podia assistir as minhas aulas e dava essa ou aquela
dica. Ela dizia que eu tinha muito jeito para ensinar, que eu devia aproveitar, e
que eu ía me dar bem. Falava que eu tinha um jeito especial de explicar para as
pessoas.
Quando eu fiz Magistério eu não tinha aluno particular, mas logo no primeiro
ano de faculdade minha mãe já me pôs para dar aula. Acabei que também não fiz
nenhum concurso naquela época. Podia ter feito, mas não fiz. A minha irmã fez
já no primeiro ano, começou a trabalhar aos dezoito anos, e, como tinha que
trabalhar vinte e cinco anos, imagina com quantos anos ela se aposentou?
Completou os vinte e cinco e deu tchau para o estado com aquele salarião.
E eu trabalhei muito com a minha mãe, dar cursos e logo que eu terminei a
faculdade comecei a escrever com ela também. É que eles queriam começar a
trabalhar com probabilidades, na verdade chances e possibilidades, com as
crianças, e eu disse: – Ah, eu sei fazer isso. Inventei, criei, e acho que até hoje
tenho guardado este material. Ele foi lançado, tinha meu nome e tudo. Depois fiz
um material para professores da zona rural, e eu não entendia nada de zona rural,
imagine! Mas, como era Matemática Moderna e eles tinham que engolir, então lá
ía minha parte escrita em relação a isso. Claro que os erros foram assim gritantes,
se for fazer uma análise hoje dá para pensar: que caminho mais tortuoso que eles
tiveram que percorrer. Mas, é engraçado, primeiro queríamos colocar os
conjuntos, depois queríamos tirar. Mas daí ninguém queria tirar. A conjuntevite
estava instalada. E, depois de um tempo a gente queria tirar isso da conversa, que
também não ajudou em nada, toda essa parte da linguagem. Mas eles insistiam,
desde a primeira série. Então deixaram de explicar decerto, do jeito lá do interior,
com as coisas que eles conviviam, para fazer desse jeito. Mas enfim, era moda,
146
os livros didáticos eram daquele jeito e alguém tinha que fazer. Então eu fiz junto
com a minha mãe. Eu a ajudei a produzir o material e ela supervisionava.
Depois comecei a dar aula de Didática nos cursos Adicionais, e aí é que o bicho
pegou, porque aquelas professoras tinham experiência, não eram como as
meninas do Magistério. Elas tinham a experiência e me questionavam, e eu não
tinha muito como responder. Eu procurava dar aula das coisas que elas não
sabiam: lidar com blocos lógicos, com conjuntos, fazer todas aquelas operações
com conjuntos e trabalhava bastante com Piaget, porque isso eu tinha estudado
muito na faculdade e eu entendia bem. Elas prestavam atenção e achavam que eu
era o máximo mesmo, apesar de ser uma criança, baixinha, com vinte e quatro
anos. E elas com vinte anos de Magistério, sentadas, prestando atenção na minha
aula. Eu lembro que eu dava aula à noite e tinha muitas alunas que ficavam lá
fazendo tricô, crochê, arrumando a bolsa. Mas tinha muitas alunas, inclusive
algumas que tinham feito o Magistério comigo, que ficavam muito atentas.
Conforme o curso, quem fazia, tinha cinqüenta por cento a mais no salário.
Esses cursos eram para dar aula para alunos com características especiais:
deficiente visual, deficiente auditivo e tal. Era como se fosse uma especialização
do Magistério. Hoje ainda tem, mas há dois anos eles cortaram essa vantagem
salarial.
Bom, daí, como choveu professor para fazer esses cursos, tinha turma no
Instituto de Educação, depois abriu no Lysimaco e logo mudou o governador e
viu que aquilo era uma anarquia. Que eles estavam pagando para mim, mas
também para uma outra que deveria estar ali e não estava e ninguém sabia onde
estava o pessoal. Eles disseram: – Ou volta todo mundo para o local de origem
ou não tem mais curso. Aí voltaram as professoras, mas não esquentaram o lugar,
logo arrumaram outra coisa, mas daí outra pessoa pegou o meu lugar. E eu decidi
que não iria continuar neste caminho.
O Segundo Grau foi o mais difícil, era a aula que eu mais bem preparava. Porque
os adolescentes eram tão questionadores quanto os de hoje, queriam saber para
147
que servia, se servia para computação e isso e aquilo. A pergunta “pra que
serve?” sempre existiu. E eu sabia algumas coisas porque as minhas aulas de
Cálculo Numérico foram feitas naqueles computadores com cartão perfurado,
certo? Para você ver como eu sou antiga cara.
Tinha que saber aquela linguagem, acho que era Fortran. Não fui para esse
campo, também não fui dar aula na universidade. Porque, para você dar aula na
universidade, você tinha que ter mostrado que gostava de ensinar aquele tipo de
coisa, tinha que ter sido auxiliar de algum professor, para ficar fazendo carreira
lá, e, na verdade, eu não gostava do aluno universitário. Tinha colegas e tal, mas
eu não gostava daquele tipo de universidade que a gente tinha. Nós não
formamos um grupo. Aliás, fizeram de tudo para que o grupo do primeiro ano se
desmanchasse. Você não tinha possibilidade de manter-se junto com os colegas,
eles misturavam todo mundo. Caso você passasse em tudo você tinha prioridade,
mas, como eu tinha um monte atrasada eu nunca estava com a minha turma.
Ninguém conseguiu se manter no grupo de Matemática por muito tempo. Uma
matéria que você reprovasse você quebrava com o teu horário inteiro e dançava,
né? E o pessoal fazia o curso assim, no mais ou menos, porque tinha que
trabalhar. Então dos setenta que passaram comigo, nós nos formamos em cinco.
Pode até ser que uns quinze tenham se formado, mas o resto desistiu mesmo.
Alguns acabaram na universidade, por exemplo, a Ettiène Cordeiro Guérios é do
meu tempo.
***
Falando um pouco dos meus professores, uma das que eu me lembro era a
professora Leonor. Ela me deu aula durante os quatro anos de Magistério. Ela
sabia bem todo o conteúdo e explicava com muita clareza. Acho até que tenho os
cadernos guardados.
feito, explicar o raciocínio, como é que tinha entendido e tal. Mas era uma
Matemática bem simples, assim, para se formar um professor de primeira a
quarta, não exigiam conteúdo de quinta a oitava. Geometria, por exemplo, você
só tinha que reconhecer as formas, conhecer os nomes, lidar com os blocos
lógicos.
Mais tarde, quando eu estava trabalhando com a Maria Tereza, eu questionei este
material. Acho que a quantidade de exemplos que tinha ali era importante, que a
gente deveria explorar todos aqueles tipos, não deveria deixar nenhum de fora,
mas não precisava ser naquela seqüência. Mas que todos aqueles casos deveriam
estar presentes, porque aquilo tinha sido bem estruturado, tinha sido bem
investigado, todos os casos em que as crianças erravam. Eles faziam pesquisas
aqui no estado também, em cima de provas. Minha mãe comandava o Núcleo de
Pesquisa e Ensino. Não sei se isso ainda existe no estado.
150
É claro que com esses cursos você não vai conseguir atingir todo mundo. Minha
mãe já dizia isso muito tempo atrás, ela falava: – Você não vai atingir todo
mundo. Você vai atingir alguns e esses você multiplique por trinta, por noventa,
porque eles vão ter os alunos deles que vão ser atingidos. Se você atingir vinte
por cento dessas pessoas, veja a quantidade de crianças que serão beneficiadas.
E, na medida que essas pessoas se destacam, elas irão contaminar outras pessoas,
mas isso é muito demorado.
151
Fico pensando nos cursos que eu fiz, como aluna. Alguns foram fantásticos e eu
fiz parte daqueles vinte por cento que minha mãe falava. Mas, de uma forma ou
de outra, acho que muito pouco daqueles cursos fizeram quase nada. Quase todos
foram muito bons. A prefeitura primava pela qualidade, chamava professores de
boas faculdades, do Rio de Janeiro, São Paulo, mesmo aqui da Universidade
Federal do Paraná.
Um deles foi sobre Desenho Geométrico. Sobre uso de material e tudo que
tínhamos direito. Tinha escolas da prefeitura que tinham prancheta, régua T da
melhor qualidade e os professores queriam manter, né? Nós preparávamos alunos
para entrar no CEFET, alunos da periferia que queriam um ensino de qualidade e
gratuito. E esses alunos se matavam de estudar para poder entrar no CEFET.
Nosso status como professor de Matemática que contribuía pra esse aluno entrar
era muito grande.
***
Antes disso eu fui tentar vaga em uma escola particular a Jean Piaget, que, na
época era uma das mais conceituadas. A dona era colega da minha mãe no
NEDEM. Eu disse assim: – Eu posso trabalhar para você na sua escola? Ela
disse: – Não, porque eu acho que você tem que ter mais experiência,
principalmente porque você quer trabalhar com aluno de primeira a quarta e você
tem que, não só saber Matemática, você precisa saber dar aula de Português e
tudo mais, então eu preciso de gente com muita experiência e você não tem. Eu
acho que você devia começar pelo melhor lugar que tem para aprender: a rede
pública. Lá nós damos muito curso e você vai se preparando e aqui não tem
curso. Aqui nós pegamos professores que já têm experiência. Então, você vá
trabalhar na rede, aprenda e daí venha para cá. Bom, e desse jeito, eu contei para
minha mãe e nunca mais olhei na cara da mulher. Por dois motivos. Primeiro
porque ela me subestimou, como que ela achava que eu não iria dar conta se,
inclusive, eu tinha minha mãe para me ajudar. Depois porque, que história é essa
de dizer que: – Vai lá na prefeitura, aprenda lá, acerte, erre. Bom, depois eu
passei na prefeitura e ela se aposentou. Me livrei dela em duas etapas.
Na prefeitura foi uma beleza. Logo que eu entrei tive uma diretora que me
perguntou: – Você trabalhou com quê? Eu disse: – Trabalhei com jovens, e só
tive turmas de quinta a oitava em diante. Aí ela disse: – Olha, então eu vou te dar
uma quarta série, porque primeira série vai ser difícil para você poder trabalhar.
E aí contratou, acho que o Erasmo Piloto para fazer um trabalho de pesquisa
dentro da escola. E eu aprendi a lidar com aquele método de alfabetização dele. E
fui me atualizando com os cursos que a própria prefeitura oferecia. A diretora
152
queria que se ensinasse por esse método, então eu nunca aprendi aquele método
sonoro, o da abelhinha.
Quando eu comecei a sexta série eu me inscrevi nesse curso que trabalhava com
números inteiros. Tenho arquivado o material desse curso lá no armário da
escola. Outro dia eu olhei como ele era. Ele lidava ao mesmo tempo com
metodologia e conceitos. Tinha umas fichinhas coloridas, valendo positivos e
negativos, e você fazia as somas e subtrações como uma espécie de ábaco
horizontal. E eu nunca trabalhei numa sexta série com as regras de sinais já
impostas, os alunos é que elaboravam as regras de sinais a partir das atividades
que nós estruturávamos. Isso eu não aprendi na faculdade, isso eu também não
aprendi no Magistério, fui aprender nesses cursos.
Dez anos depois disso, em noventa e cinco, a Maria Tereza entrou na prefeitura.
Ela trouxe um professor da Federal que trabalhou com Geometria, Desenho
Geométrico, que a gente precisava. Até então eu trabalhava com quintas e sextas
séries, e para essas séries o Desenho Geométrico era fácil, era só lidar com
esquadros, retas paralelas, transferidor, ângulos e somas de ângulos. Na sétima e
oitava eu via o pessoal ensinando construção de triângulos, polígonos inscritos,
circunscritos, com todas aquelas regras, e aquilo já me incomodava. E eles
anunciaram que viria um professor que iria mostrar para a gente uma maneira de
trabalhar Desenho Geométrico que não era pela receita de bolo. Eu me interessei
e fui fazer junto com os demais professores da rede. Era um grupo questionador,
briguento, que tinha uma certa dificuldade de mudar o seu caminhar, sabe? Mas
tinham alguns professores mais novos, assim como eu que queriam mudanças e
se eles desestimulavam a gente estimulava. Se eles questionavam alguma coisa a
gente ajudava a argumentar. Nesse curso ele nos ensinou a trabalhar com lugar
geométrico e eu nunca ensinei Geometria que não fosse por lugar geométrico.
Nunca ensinei pela receita de bolo. Se eu não me engano esse curso durou
cinqüenta horas. Nem todos os cursos que fizemos eram longos como esse, mas
os mais significativos eram de longa duração. Esses cursos realmente fizeram a
diferença.
Assistia o Telecurso com o Imenes porque achava que aquelas aulas tinham uma
diferença. Ali ele mostrava caminhos alternativos e materiais didáticos e eu
sempre fui louca por material didático, sempre. Cheguei até a dar curso para um
sujeito que montava esse tipo de material. A prefeitura sempre teve estoque de
materiais nas salas de supervisão e ninguém usava. Nem o geoplano, nem os
ábacos, nem os blocos lógicos.
154
Acho que em noventa eu fui convidada para participar de uma exposição para
mostrar o que a gente fazia em sala de aula, lá no Laboratório de Ciências do
Portão. Foi aí que eu conheci a Maria Tereza e outros professores. Eu fui mostrar
um trabalho de semelhança de figuras, proporção. Mostrei para os professores
que esse era um assunto importante, que a costureira lidava com isso para
interpretar um manequim e que tinham outras aplicações. Que seria interessante
que você soubesse das aplicações e que dessa forma a Geometria estaria mais
próxima do que se você trabalhasse só com números. Um ano depois disso, em
noventa e um, eu fui chamada para trabalhar na secretaria junto com elas.
Esses seis anos que eu fiquei trabalhando em sala, eu não queria fazer um
trabalho igual a todo mundo. Toda a rebeldia que eu não tive antes eu tive depois,
sabe? Aquela mesmice não me satisfazia, fazer igual aos outros e sempre do
mesmo jeito, vendo as crianças sempre não gostando de Matemática e eu amando
aquele negócio, né? Digo: – Alguém mais tem que gostar junto comigo. Aquela
coisa, os alunos sempre perguntando: – Para quê Matemática? Quando que a
gente vai usar? O que vamos fazer com isso? Principalmente no Ensino Médio,
criança de primeira a quarta não questiona desse jeito, porque os conteúdos são
mais próximos do cotidiano, né? De quinta e oitava as perguntas já começam.
Porque do jeito que era ensinado, realmente, tinha mais é que perguntar mesmo,
para que que servia daquele jeito.
Nessa época minha mãe já tinha encerrado o expediente. Mas, mesmo assim me
chamavam para trabalhar com professores no estado. Aí eu tive um tempo que eu
dei para mim, para estudar Matemática de quinta a oitava série. Porque foi o
lugar onde eu mais me de identifiquei e onde, no meu entender, tinha mais
problema com o aluno. Digo: – O problema começa aqui, e é aqui que eu quero
estudar como é que funciona isso.
Acho que em noventa e um, a Maria Tereza dava assessoria para a Escola
Palmares, e ela me chamava muitas vezes para eu trabalhar com os professores
de lá. Eu gostei da escola, meu filho estava no Jean Piaget, e, como ele tinha
dificuldades na alfabetização eu o coloquei na Palmares. Lá, eles usavam a
mesma proposta da prefeitura. A Maria Tereza acompanhava o trabalho com
Matemática e eles também tinham assessoria do pessoal de Língua Portuguesa.
Três anos depois eu fui dar aula lá, dava Matemática para sétima e oitava e
Desenho Geométrico na quinta, sexta e sétima. Três anos depois larguei as aulas
de Matemática na sétima e oitava e peguei a quarta série.
A Palmares se juntava com a Escola Anjo da Guarda e uniam esforços para fazer
cursos e trazer assessores para os seus professores. Não era possível uma escola
particular trabalhar só com professores que já estivessem prontos, formados.
Tinha muita rotatividade e para segurar esse professor tinha que ter mais coisa,
tinha que ter hora de estudo, tinha que ter salário decente, e tinha que ter
benefícios para os filhos desses professores. Isso foi muito atrativo na época.
Todos os meus filhos estudaram lá. A escola ficava a meia quadra da minha casa
155
Eu também trabalhei desta forma com alguns conteúdos. Mas eu acho que
quando eu faço dessa forma, faço mal feito. Isso eu sei porque eu trabalhei em
contra-turno com alunos que iam mal em sala de aula e também substituindo
professores que trabalhavam de uma maneira mais tradicional. Uns quatro anos
atrás eu substitui um professor que tinha todo o livro do Imenes registrado com
xis, onde é que era para eu fazer os exercícios e eram só os exercícios repetitivos.
Os problemas ele não marcava, só os exercícios repetitivos. Eu não consegui
fazer daquele jeito. Na oitava série eu quis mudar e os alunos não quiseram, os da
sexta me adoraram, e não queriam mais o professor deles. Eu fiquei revoltada
com os alunos da oitava, eles não queriam pensar, esse professor já tinha sido
professor deles na quinta, na sétima e na oitava. Ele se aposentou, estava faltando
professor na rede e ele foi fazer hora extra lá na escola que eu trabalho. Eu disse:
– Mas não é possível. Esse homem aqui de novo. Ele estava um pouquinho
melhor. Foi professor aqui do Colégio Mileninho. Ele e um amigo dele davam
aula de uma forma muito parecida, mas o amigo dele era pior. Semana passada
eu pedi para os alunos explicarem como é que era. Era assim: o sinal de igual é
como se fosse um muro, o número que tem que passar desse muro troca de sinal,
e o número que está daquele lado do muro é o dono da casa, então ele não troca
de sinal. Pensei: Bom, não vou começar por aí, porque se eu estou recuperando o
cara, não vou reforçar essa conversa, que essa a gente sabe de cor, né? Eu quero
ver se ele, começando de outro jeito, liga isso que eu estou fazendo, e que ele
sabe responder, com aquilo que o professor está explicando. Mas ele não junta
uma coisa com a outra. Primeiro porque os exercícios são muito primários: somar
um número com outro, um você não sabe quanto vale o outro você sabe e sabe o
resultado. O professor só quer que passe para o outro lado com o sinal de menos.
O cara faz isso, pensa, pensa, pensa e faz e faz e faz, depois, quando ele tiver
menos duas vezes o xis igual a oito, por exemplo, que é para esse cara pular o
muro para lá ele vai passar dividindo por mais dois16. Isso quando passa
16
Em conversa posterior, a depoente manifestou preocupação em deixar mais claro
que pretendia dizer fazendo a conta:
8
-2x = 8 .: x =
+2
156
dividindo, porque é só para trocar o sinal e o cara vai continuar somando. Não
tem noção de que operação ele está fazendo, do que é que se trata, se existe um
problema para você escrever daquele jeito. E aí eu comecei com: – Ah, adivinhe,
estou pensando num número, faz isso e faz aquilo. Vamos escrever isso, um
número que eu não sei, somado com não sei quanto dá tanto, tá? Fiz a balança.
Nossa a balança você joga para lá, joga para cá, está tirando de um lado, está
tirando. Os alunos não juntam nem a balança, nem os problemas de adivinhação.
Não juntam com aquilo que fizeram mas resolvem todos os problemas, lógico,
sem a álgebra, sem a linguagem algébrica, sem ser do jeito que o professor quer,
com a escrita algébrica.
Eu já não tinha uma boa memória, então, se eu tivesse que ter aprendido
antigamente, no meu tempo de escola, memorizando, seqüência e tudo mais, eu
ía me lascar. Eu só aprendi História e Geografia porque tinha que escrever muito.
Minha memória é visual, aprendi isso de tanto que eu tive que escrever na minha
vida, sabe? Não acho que eu nunca tenha sido nem um pingo tradicional. Fui, até
tem algumas coisas, bem repetitivas que eu até acho que fazia bem. Por exemplo,
quando eu ensinei equação na sexta série. Nós tínhamos um livro que vinha para
a escola toda, e nós até podíamos não usar o livro, mas teve muito pai que veio
reclamar porque é que eu pulava os exercícios e caminhava tudo contrário. E eu
mesma nem sempre tinha todos os argumentos, muita coisa eu fiz de forma
intuitiva, por não acreditar no jeito que os outros explicavam.
O livro que nós recebíamos era da Editora do Brasil, o autor era o Andrini. Esse
livro tinha passos para resolver as coisas: primeiro passo da equação, segundo
passo, terceiro passo, quarto passo, quinto passo, sexto passo. Nossa! Mas tinha
passo, meu filho, tinha passo! E aí, sabe? Cada etapa vencida o aluno ía passando
para frente, para frente, para frente. E eu, quando eu vi aquele tipo de coisa eu
não acreditei, né? Eu digo: – Ah, meu Deus!
Era a mesma coisa que se fazia lá com a divisão que a minha mãe tinha explicado
e que eu cheguei a usar na primeira vez que eu dei aula na quarta série. Os alunos
não sabiam dividir, então eu comecei daquele jeito, mas isso porque eu nunca
tinha estado numa sala de aula. Não tinha experiência para fazer um outro
caminho, era o caminho que eu conhecia, e ali eu usei o material. Hoje seria uma
aula tradicional, porque eu seguia aqueles passos e queria que as crianças dessem
conta do algoritmo. Naquela época não tínhamos calculadora a disposição. Eu fiz
faculdade com régua de cálculo. Na metade da faculdade que entrou a
calculadora e que malmente consegui pagar uma porque era caríssimo, então não
era algo popular nem se tinha uma idéia de que se iria usar do jeito que se usa
hoje. E aqueles alunos, lá em oitenta e um, já estariam trabalhando muito antes
da calculadora se popularizar. Muitos deles terminavam a quarta série e iam
trabalhar, com doze, treze anos.
Eu acho que em geral me adaptava bem com essas coisas, com esses materiais. E
como os professores não davam conta de aprofundar seus estudos nós recebíamos
muito material pronto, de primeira linha. Por exemplo, teve uma vez que nós
recebemos um material que se chamava Alfa. Era um material que trazia mil e
quinhentas perguntas para você fazer para o seu aluno. Eu peguei o Alfa um, o
Alfa dois, o Alfa três e o Alfa quatro. Muita coisa eu aprendi ali, muita mesmo.
Para quem nunca tinha entrado numa sala de aula de primeira série ali vinha todo
o equipamento, todo o material. O ábaco inclusive. A primeira vez que eu entrei
em uma sala de primeira série nós lidamos com um material. Eram barrinhas
como o material dourado, umas barrinhas amarelas de plástico e as pequeninhas,
158
Na segunda e terceira série a gente ía usar o ábaco. Era aquele ábaco fechado
com as continhas, para deixar a criança chacoalhar, bater, fazer barulho, se
acostumar bem, para depois usar ele como contador, fazer as operações e tudo.
Então eu posso dizer que aprendi a ser professora depois que já tinha terminado a
faculdade, com um material que era de ponta. Um material que não era comum.
Digamos assim, que se ele fosse entregue hoje, ainda seria moderno para muitas
professoras, vinte e três anos depois.
***
Então em alguns casos é por comodismo, em outros o professor não percebe que
vai ter vantagem. E têm outros que acham que aquilo é um esforço mesmo, que
aquilo vai precisar um desgaste, vai precisar estudar e ele não está a fim. Acha
que não compensa, que o salário dele é baixo, ele é funcionário público, tem
estabilidade. Eu lidei muito com funcionário público, e tem essa coisa com o
funcionário: – Já estou estabilizado, não vou mudar. Na escola particular, como
essas em que eu trabalhei, é diferente, a escola exige que o cara tenha mudança e
o professor corre atrás porque não quer perder o emprego. E se ele achar que é
mais fácil ele trabalhar numa outra escola que não exija essa mudança ele vai
para outra, ele corre as escolas. Tem um monte de vaga para professor de
Matemática, até hoje. Então têm todos estes fatores: a comodidade, a questão de
o cara ser funcionário público. Mas têm aqueles que se preocupam com o aluno,
têm aqueles que se incomodam com o tipo de pergunta que o aluno faz, têm
aqueles que enxergam o aluno desesperado e não gostam daquilo. E comigo foi
diferente porque eu tive assim, uma preocupação familiar, os pais queriam que a
gente entendesse as coisas, tudo que nós estudávamos. Mesmo quando a gente
viajava, era para que nós entendêssemos tudo o que tinha acontecido.
Meu pai não discutiu muita política conosco porque era um perigo quando eu
entrei na faculdade em setenta e três. Ele tinha sofrido várias pressões. Mas antes
desse período a gente conheceu História, conheceu gente, se envolveu com
159
pessoas. Meu pai se dava com todo mundo, do funcionário mais simples, que não
queria estudar e ele incentivava, até o Governador. Na rua XV ele conversava
com o juiz, o promotor, o advogado e conversava com a dona do café. E tinha
assunto com todo mundo, ele se preocupava com as pessoas. Minha mãe
também, a mesma coisa, se preocupando a vida toda com aquelas professoras que
não queriam explicar nada. Então isso pega na gente, sabe? É princípio mesmo, é
coisa que você trouxe de casa. Como é que você vai querer estar lá na frente,
ganhando o seu dinheiro, e não se preocupando com as pessoas que estão o dia
inteiro com você. Eles é que estão pagando o seu salário, né? Então eu acho que
para mim era muito ruim, eu me sentia muito mal se eu não explicasse a ponto de
todo mundo querer entender, e gostasse.
***
De uma forma ou de outra, o editor era bem interessado. Ele achava que o
professor de Matemática precisava de coisas diferentes e investiu, foi isso. Nunca
ganhei um tostão por isso, nada, nada, nenhum dinheiro. Foi muito bom para
aprender a escrever livro junto com a Maria Tereza, junto com a Tânia, com o
Carlos e tal, porque o que a gente estudou, brigou, mudou e reescreveu, não foi
brincadeira. Porque não era assim: – Ah, está pronto e é assim que nós vamos
fazer. Levamos um ano só brigando, trocando de parceiro, aquela coisa. Então a
gente aprendeu a dividir o trabalho. Porque, por exemplo, lidar com a Maria
Tereza você já sabe como é que é, né? A gente escreve de um jeito e ela inverte
tudo. E então, precisa ser humilde para entender que a mulher é o must. E que
você aprende também com ela. Ela vai usar o teu material? Vai. Mas ela vai fazer
diferente, e é ali no diferente que você aprende.
fora. Fomos escrever esse livrinho e nos mantivemos unidos por um tempo.
Depois disso abriu uma brecha: tinham mantido um pessoal, em um cantinho, lá
na Educação de Adultos, sem muita importância, e a Maria Tereza entrou lá.
Quem ficou era um rapaz que tinha anos de ensino, o Aparecido Quinaglia, e ele
conseguiu formar um grupo totalmente petista dentro da secretaria em que estava
todo aquele pessoal do Jaime Lerner. Como a gente trabalhava à noite eles não
prestavam atenção. Aos poucos ele foi pedindo coisas e fomos conseguindo
politicamente um espaço. Ele conhecia algumas pessoas que gostavam dele e que
foram dando essa abertura. Uma das coisas que ele conseguiu foi com que os
funcionários estivessem no local de trabalho, uma hora, em sala de aula. Isso já
era uma discussão em nível nacional, principalmente do PT. Uma hora tinha que
tirar do trabalho e uma hora o funcionário tinha que doar. Isso me encantou já de
cara, eu digo: – Nossa! O cara tem que se responsabilizar, eu acho que nada é de
graça, né? E eu sempre pensava na questão social, porque muita gente foi jogada
para fora de sala de aula por motivos de falta de dinheiro, oportunidade de
trabalho. É uma dívida social da prefeitura. E, por outro lado, uma dívida dos
funcionários de terem largado o estudo de qualquer forma. Alguns vieram, outros
não deram importância. E de todo aquele grupo eu é que fui fazer o trabalho com
a Maria Tereza. O Carlos estava no mestrado e a Tânia na Secretaria de
Educação do Estado.
E, nesse tempo, ela já tinha discutido o currículo e eu tive que estudar o caminho
que eles tinham percorrido. Achei muito interessante as mudanças, mas nunca
tinha dado aula pra adulto. E fui escrever um material de Matemática para
adultos sem nunca ter dado aula para adulto. Nós queríamos que o funcionário da
prefeitura tivesse aula e a Maria Tereza disse: – É fácil, vamos lá que você vai
dar aula já. Ela foi junto comigo e disse: – Eu vou dar aula para eles e você fica
assistindo. E aí aprendi algumas coisas, alguns macetes, ali. De ficar escutando o
aluno, escutar toda aquela Matemática que ele sabia. De respeitar o caminho que
ele já tinha feito. Ouvia e registrava. O material tinha o registro dos nossos
alunos. Por exemplo: como é que o seu João explicou a contagem de espigas que
eles faziam? Esse relato, com os desenhos do seu João, foram para o livro do
aluno. E uma porção de outras coisas interessantes que foram acontecendo. Esse
material ficou riquíssimo, muito interessante. E eu fui aprendendo. Rápido.
Mais tarde nós fomos fazer supervisão para professor nas escolas, à noite. E aí eu
aprendi muito mais porque aquelas professoras tinham anos de experiência. E à
medida que a gente ía entendendo o caminho que a Maria Tereza tinha
visualizado anteriormente nós podíamos ir interferindo. Nossa! Quanto eu
aprendi! Foi uma faculdade ali. Em pouco tempo eu tive tudo aquilo.
Dar aula para adulto foi a outra coisa que mexeu muito comigo e que eu adorei
trabalhar. Você sabe disso por conta do trabalho que eu e você fizemos juntos na
universidade, né? Eu aprendi um monte com a Maria Tereza e depois eu fui
ficando sozinha. Ela viu que eu estava caminhando e disse: – Então tchau que eu
vou fazer outra coisa. Ela sempre faz isso, né? Na Palmares ela também fez isso:
161
no começo eu ía junto com ela e tudo, aí ela se espirrou, e eu fui dar aula, aprendi
um monte. Eu sempre digo que eu tenho um santo muito forte. Se existe isso, o
meu é poderoso porque ele me deu muito na questão profissional. Eu só cruzei
com gente legal. E quando eu me senti assim meio por fora na escola e que o tipo
de comportamento do professor que não se envolvia estava me enfraquecendo,
sempre aparecia alguém para dizer venha para cá, vamos fazer isso, vamos fazer
aquele outro. E fui fazendo amizade só com esse tipo de gente, que queria subir,
queria estudar. Pessoas que reconheciam que não adiantava ter feito só a
faculdade e ficar ensinando daquele jeito.
Aprender foi uma caminhada bem legal. Foi todo um aprendizado, por exemplo,
na época em que discutimos o currículo, nós víamos a prática e à noite nos
reuníamos no departamento para fazer a reflexão teórica do currículo que estava
sendo construído. Naquela época havia uma discussão nacional sobre Educação
de Adultos. Eu ganhei muito com isso, foi a minha escola, uma outra escola.
Porque trabalhar com adulto é completamente diferente.
E, com aquela bagagem, fui escrever livro para a Editora Módulo. Como eu já
falei eu já tinha escrito outros materiais. Já tinha escrito material no currículo de
primeira a quarta, no de quinta a oitava. Fui escrever material de primeira a
quarta para a Módulo. E eu pude fazer isso com uma certa segurança, porque
tinha acabado de trabalhar com os alunos e estava tudo fresquinho na minha
cabeça. Sabia também como é que eram as mudanças que estavam ocorrendo.
Quem coordenava o trabalho na Editora era a antiga chefe de departamento da
prefeitura, a Carmem Gabardo. Ela confiava no meu trabalho e eu fui lá para
arrumar algumas coisas, terminar o trabalho de um professor que tinha começado
e não terminou. Eu olhei aquilo e disse: – Olha, não concordo com isso aqui.
Tinha arme e efetue de quilo, tinha uma cópia descarada de alguns livros. Eles
estavam muito acostumados a fazer recorte e colagem como se fossem montar
uma apostila usando partes de livro que já existe. Eu não acreditava naquilo e
disse: – Olha, eu posso até terminar, mas a cara vai ser outra, e vai ficar ridículo
o material começado de um jeito e terminado de outro. Eles me perguntaram o
que eu pretendia fazer. Eu fiz um esboço, apresentei minha proposta e eles
disseram: – Então você vai escrever tudo de novo. E aí com essa nova proposta
eu tive que explicar o material anterior para os professores para que pudesse
encerrar aquele ano, porque o material já estava na mão dos professores.
Esse material era dirigido para escolas, para prefeitura. Você viajava, dava o
curso com aquele material para elas poderem usar e deixava o pessoal lá, se
matando o resto do mês. Eu não acreditava no que estava fazendo, mas fui
explicar para o professor o que é que o autor anterior pretendia, o que eu percebia
daquele material. E junto a isso eu fui reescrevendo o material nos seis meses
finais daquele ano. Tive que escrever em seis meses e em fevereiro a escola já
estava com todo o material novo. E aí elas sentiram muita diferença, muita
modificação e começaram a questionar: – Olha, daquele jeito estava mais fácil,
né? Eu dizia: – Mas talvez seja mais fácil para você, mas para o aluno esse aqui
162
talvez seja mais fácil. Eu fui argumentando, fui explicando o que eu queria, o que
eu pretendia e elas foram aceitando aos poucos e foram tendo um retorno bom
com o aluno, sabe? E ali eu percebi que minha escrita tinha muito de Geografia,
muito de cálculo mental, muito do que eu tinha discutido no currículo da
prefeitura. E eu me apoiei muito no material da Maria Tereza que já tinha sido
escrito. Quer queira, quer não queira a gente tinha muita influência dela. Mas,
por exemplo, o que não tinha de Geometria no livrinho dela, eu pus nesse
material.
A Gládis não queria mais escrever, mas adorava dar curso para professor. E eu
não gostava de dar curso, eu gostava de escrever e de dar aula, aula para o aluno,
para o meu aluno, a minha turma. Com professor eu tinha mais resistência. As
supervisoras que participavam parecia que iam para desfilar. Interessavam-se em
leis, coisas de burocracia. Eu achava uma chatice dar curso para elas. Não se
envolviam com o conteúdo. Chamavam as supervisoras para elas aprenderem e
explicarem para as suas professoras e poderem ver se o pessoal estava fazendo de
acordo com o que a gente queria. Que as professoras delas estavam com a gente a
cada quinze dias. Algumas vinham muito interessadas, sentavam na frente, mas o
resto, oitenta por cento, sentava lá atrás e deixavam a gente louca. Isso me
incomodava bastante.
Era um grupo bem diversificado. Eram duas professoras da rede municipal e duas
da rede particular. Com exceção da Beth que tinha formação em Pedagogia, todas
163
Mais tarde o editor queria que escrevesse um apostilado para o professor das
prefeituras de quinta a oitava e aí a Walderez entrou. Ela trabalhava comigo na
Palmares e era ótima professora. Eu explicava as coisas para ela como a Maria
Tereza fazia comigo. Ela era professora de Física, então tinha um caminho
diferente do meu, fazia outras questões e aquilo me fascinava. Eu gostava dos
exemplos e das atividades que ela fazia para o aluno, tinha uma aplicabilidade
diferente. Como na Palmares a gente se dava muito bem eu a chamei. Daí a
Gládis se sentiu de fora de uma vez. Achou que eu não a queria para quinta a
oitava. Eu até tentei fazer com que ela continuasse, mas ela não se acertou muito
bem com a Walderez, e tirou o time mesmo. Ficou um período meio conturbado,
mas eu fiz questão de manter a amizade porque eu gostava muito dela. Mas a
escrita dela ficava meio destoante da nossa. Eu nem sei se era da nossa ou se era
da minha mesmo. Parece que eu herdei essa coisa de canetear e de mudar. Não
tem jeito, quando a gente vai dividir o texto com outra pessoa alguém vai ter que
dar a redação final. E você percebe os estilos diferentes. A Walderez tinha um
Português impecável, lidava muito bem com as palavras e me questionava
também. Então eu fui aprendendo a colocar no papel junto com a Wal. A
contribuição dela era ótima, mas o primeiro material que ela me deu eu disse: –
Olha, se vai escrever do jeito que está escrito em todos os livros então não vai,
você vai ter que escrever outra coisa. Você vai ter que escrever aquilo que você
faz na sala, e não aquilo que está escrito nos livros. Eu não quero desse jeito.
Depois ela correspondeu. Ela conta essa história e eu nem lembro direito se eu fiz
isso, sabe? Eu tenho uma vaga lembrança, eu já me lembro das nossas discussões
que valeram a pena para mim, entendeu? E aquilo deve ter tido importância para
ela.
***
Como eu estava falando, meu pai não discutia muita política conosco porque era
perigoso. Em sessenta e quatro eu tinha dez anos e eu me lembro de ver os
meninos, os universitários correndo. A gente morava no prédio, que era ao lado
do Cine Lido, o Cine Lido era um cinema todo envidraçado, e eu me lembro de
ver o pessoal correndo da polícia e jogando pedra. Eu não entendia direito,
porque era criança.
164
O meu pai era jornalista do jornal Estado do Paraná, que, na época, não era um
jornal totalmente de direita e tinha profissionais de esquerda. Esses profissionais
davam qualidade para o jornal, questionavam, criticavam. Pelo menos é isso que
eu soube mais tarde, porque na época eu não tinha muita clareza. Eu só sei que,
acho que quando eu tinha doze anos, a gente juntou as malas e saiu correndo um
dia de noite e foi lá para a fazenda da minha tia. Ficamos lá e eu achei assim, um
absurdo faltar aula para ir para fazenda, porque aquilo só acontecia nas férias,
então como é que é, que podia, né? Contaram mais ou menos. Quando voltamos,
tivemos visita de policial para olhar os livros, mas meu pai já tinha dado cabo. O
apartamento em que a gente morava era antigo e tinha fogão a lenha e ele e a
minha mãe queimaram vários livros uma noite, vários. Outros, que ele mais
gostava, empacotou bem, colocou em umas caixas, com aquele papel roxo de
embrulhar maçã e pediu para que o japonês da mercearia debaixo do nosso
prédio, que era amigo dele, guardasse por uns tempos. Quando meu pai pediu de
volta ele disse que tinha queimado todas, tinha dado cabo de todas aquelas coisas
que eram todas subversivas. E aí meu pai passou a comprar tudo de novo. Isso
ele me contou depois, porque na época eu não fiquei sabendo de nada.
Meu pai se desgostou com tudo por causa dessas coisas de política e se
aposentou. Aposentou-se muito antes que a minha mãe. Daí ele lidava com a
redação dos livros que a minha mãe escrevia, brigava bastante com ela, e eu
entendi porquê, muito mais tarde, quando eu fui escrever. Ele perguntava a ela: –
Mas o quê você quis dizer com isso? O que você queria ensinar aqui? Ela
explicava, ensinava Matemática para ele. Meu pai arrumava a redação e aí ela
brigava porque a linguagem dele era muito sofisticada e o material deveria ter
uma linguagem mais próxima do professor. Eles passavam tardes fazendo aquilo
porque naquela época ela trabalhava menos, mas ainda dava cursos, tinha se
aposentado mas continuava trabalhando.
Meu pai parou de trabalhar mesmo. Ele se desgostou com essa história de terem
tirado o trabalho dele nessas mudanças de governo. O Ney Braga era uma
desgraça para ele, então pronto, ele se aposentou e encerrou o expediente no
estado. Só ficou em casa ajudando minha mãe, tem até fotografia deles, ele
sentado na frente da máquina de escrever de um lado e ela sentadinha do outro
escrevendo a mão. Ele pegava na máquina escrevia e reescrevia, xingava,
brigava. Mas assim, uma briga saudável, para poder fazer um livro legal. Nesse
tempo eu estava na faculdade e tinha uma disciplina chamada EPB – Estudo de
Problemas Brasileiros. O professor lá na frente e o militar sentado lá atrás.
Eu me lembro do meu pai dizendo assim para mim: – Olha a questão é essa, já
aconteceu isso tudo comigo, já fui perseguido, já tive que sair do jornal por causa
disso, já saí do estado por causa disso e eu não quero que você se envolva. Nesse
momento, não é possível. A pessoa pode ser presa. Existem movimentos
escondidos, principalmente de universitários e tal. Eu, como era uma moça bem
boazinha, não me envolvia. Mas, a Walderez, por exemplo, fez parte. Eu fiquei
165
na minha, escutando aquelas aulas de EPB e indo discutir em casa com meu pai.
Ele dizia: – Não abra a boca na aula, que se eles descobrirem que você é minha
filha você é que vai ser perseguida. Ele me assustou bastante, sabe? E eu, claro,
uma menina de dezoito, dezenove anos, que não era rebelde, não iria me envolver
com isso. Acatei o que meu pai falou.
Meu pai conversava bastante comigo em casa. Falava dos problemas financeiros,
nós sabíamos como é que estava o país. E nós sem poder viajar tentando manter a
minha irmã na Europa e quietos. Depois eu soube que meu pai continuava com
os amigos conversando na rua XV, mas bem mais discretamente. Ele tinha medo
de ser afastado da gente de novo, tinha medo de que minha mãe ficasse sozinha
tendo que criar três filhos. Ele ficava meses sem receber. Faziam isso para
mostrar quem tinha o poder.
Quando vieram militares menos radicais ele ficou mais feliz. Ele dizia que estava
abrindo brecha e tal. Nessa época eu já tinha me formado, já era empregada. Mas
ele ainda me alertava para ver se não tinha ninguém diferente na sala de aula para
assistir e essas coisas. Mas daí, quando eu comecei a trabalhar já não era mais
quietinha, já fazia parte do sindicato e as reuniões eram de lascar, altas
empolgações. Mas eu não contava para o meu pai.
Quando eu fui trabalhar com a Maria Tereza, a gente estava ali porque queria
mudança, porque abriu essa possibilidade. Anteriormente não havia essa
preocupação. O currículo era o mesmo acho que há uns quinze anos e não havia
mudança. A lei não mudava, não tinha uma política educacional que tivesse
mudança e era isso que a gente queria. Nós tínhamos essa necessidade e ali, pela
via da educação, foi nossa atuação política.
Sempre fui representante de sindicato, fazia campanha pela greve nas escolas,
tinha argumentos, fazia parte das discussões. A Gládis e a Fátima que veio aqui,
também. A gente se conheceu por causa disso. Nós éramos das novas rebeldes,
das que queriam mudanças. Mas uma mudança maior que aquela da sala de aula,
então nós começamos a fazer parte do sindicato. E o sindicato também tinha uma
preocupação pedagógica.
166
***
***
Ainda faltou dizer para você que, como você deve ter percebido eu aprendi um
monte com uma porção de pessoas. E, como eu fui aluna da Federal e professora
da rede, eu procurei fazer cursos de qualificação na universidade. Eram cursos
extensos, três, quatro anos, mas não eram Especialização. Quando começou a
Especialização eu pensei em fazer, mas aí eu vi que a Matemática que estava na
universidade era aquela que eu tinha deixado de estudar a bastante tempo,
voltada ao Ensino Médio. Que era para ter muito conteúdo de Ensino Médio.
Mas eu não tinha tempo para estudar uma coisa que eu não estava usando.
Eu tive essas aulas na Federal, durante esses três anos, com a Florinda Katsume
Miyaòka. Ela tinha um projeto, e nós tínhamos aula com ela e com alunas do
quarto ano. Ela fazia a gente explicar como daríamos aula e fazia as alunas
explicarem como elas dariam aula de um determinado conteúdo. O jeito que
essas moças ensinavam era tudo o que eu não queria. Era assim: esse é o
conceito, esse é o exemplo e esse é o exercício. Eu disse: – Nossa! Aqui é tudo
igual ainda. E a Florinda gostava das aulas delas.
Quando a gente ía explicar do nosso jeito, como é que aquele conteúdo era
trabalhado de quinta a oitava série eu dizia que tinha que ter tal caminho e que
esse caminho não era tão formal. Que a maneira como elas trabalhavam não era a
maneira que se trabalhava de quinta a oitava. Que para chegar a esse formal nós
167
estudamos um tempão, são anos de escola. São onze anos de escola, se contar a
Pré-Escola, doze.
Elas lidavam muito com Geometria. E eu dizia que não precisava ser daquela
maneira formal. E que mais tarde, quando os alunos precisassem dos teoremas,
eles seriam muito mais fáceis de entender. Era a hora em que eu, a Gládis
Bernadete Biehl e outras professoras que freqüentavam esse curso dávamos um
show. Até o quarto ano de faculdade ninguém tinha falado para aquelas moças
que uma aula de quinta a oitava não era daquela forma.
Bom, eu não quis ter aula assim de novo, nesse curso de Especialização, não
quero, não vou entrar. Não quero repensar o Ensino Médio, está bom de quinta a
oitava, eu gosto disso, tem muita coisa que eu não sei e o que eu quero para mim
é entender porque é que o sujeito não aprende isso, não aprende aquilo, por que
não se ensina isso de quinta a oitava. Eu não quero Ensino Médio. Talvez hoje
em dia esteja fazendo falta, porque como eu não lido com adultos, ou melhor, o
jovem adulto, eu acabo tratando meus filhos como umas criancinhas. Eu fico
pensando que deve ter faltado isso para mim. Falta esse pedaço na minha vida e
que agora estou aprendendo aqui com os meus filhos.
Eu fui lá, assisti umas aulas, nem tinha me inscrito, mas tinha certeza de que eu
não ía fazer aquilo. Teve um monte de gente que foi, ficou com o título. E eu
sempre sem o título. E é isso que a Maria Tereza me cobra: – Clélia, você tem
um caminho, mas sem a titulação as pessoas não vão te chamar, você não pode
assumir os cursos que a gente dá hoje em dia para ganhar um monte, sem a
titulação. Você tem que fazer.
Bom, mas e aí, como eu tinha que manter a minha casa, tinha que trabalhar vinte
e quatro horas por dia, até ter um estresse e dirigir sem saber qual é o rumo,
como me aconteceu esses dias, resolvi viver um pouco, esperar os filhos se
arrumarem.
168
Agora já estão engatilhados. Uma entrou na Federal, a outra está na Federal. Não
tenho gastos enormes com ensino. Tem ônibus, livro e tal, mas não é uma
despesa como se você estivesse fazendo uma Universidade Católica, pagando
seiscentos pila de mensalidade. Quando meu filho estudou lá era quase mais que
a metade do meu salário, eu tinha que fazer hora extra para poder ter uma folga,
para poder manter empregada. Que aliás, não vai para frente, não escolhe outro
emprego, não faz concurso, não faz nada. E eu querendo que ela vá, que ela
cresça. Eu fui diminuindo a quantidade de dias em que ela trabalha aqui, porque
os filhos vão saindo de casa, e falei para ela se mexer, porque ficou fácil, ela já
está catorze anos comigo.
Só tenho artista dentro de casa. Quero ver como é que vai ser a vida financeira.
Espero que seja brilhante, espero que se dêem muito bem. Mas a realidade não
tem mostrado que eles vão poder se sustentar logo. Eu vou ter que trabalhar
muito mais tempo ainda.
Mas agora folgou. Não precisa levar para cá e para lá. Claro que está sobrando
tempo para mim. Só que eu preciso melhorar a minha respiração, já estou com
cinqüenta anos, a memória que já não era boa ficou pior. A disposição foi
diminuindo, eu canso demais. Eu tenho que recuperar com exercício, com
vitamina, com trabalho geriátrico mesmo. Tive um risco de câncer de mama e
acho que vou ter que fazer uma cirurgia semana que vem para tirar o nódulo.
Estou com problemas de pressão. Então estou fazendo um relax mesmo.
E pressão, sobe, desce, me estresso e tal. Então eu tenho feito um relax mesmo.
Estou saindo com as amigas que já estão se aposentando, danço, brinco. Um
outro ritmo porque o povo já está cansado. Eu ainda tenho energia para um
monte de coisa, mas sei que se eu entrar no mestrado vou ter uma carga pesada,
porque eu sei quanto eu vou ter que ler, e o quanto eu vou ter que fazer bem feito
diante dos meus amigos que estão lá na universidade. Eu não vou querer fazer
mal feito, entendeu? Eles estão esperando mais do que talvez eu possa dar. É
complicado.
***
A experiência da entrevista foi assim: é como se você tirasse uma fotografia com
uma pessoa que você fica à vontade para fazer a pose, entendeu? Então é assim
quando a gente se dá bem a gente é sincero, a gente conta o que sabe. Espero que
isso traga alguma contribuição. Estou esperando que isso ajude um pouco você.
169
17
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da
Universidade Estadual Paulista de Rio Claro – PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do
professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
171
todas as entrevistas.(p.53) *
[...] buscamos educar o olhar para uma melhor compreensão das práticas sociais que
habitam o cotidiano escolar. Ao focarmos as textualizações disponíveis, centraremos
nossas atenções na concepção de História apontada por Ariès (1990) quando afirma
que, embora haja uma variação dos sentidos, esses ocorrem de forma sucessiva,
havendo uma continuidade no movimento, ou seja, nosso intuito é o de assinalar o
que muda e o que permanece nas práticas sociais ligadas à educação, como uma
questão de método de investigação histórica.(p.239) *
*
Itálico do autor
*
Grifo no original
173
18
Este texto, embora tenha sido publicado posteriormente ao texto de Vianna (2000),
alinhava compreensões anteriores, motivo pelo qual o inseri neste momento.
19
Apresentada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, sob
orientação do professor doutor Antônio Miguel.
174
cada depoente.
São realizadas duas entrevistas com cada um dos quinze professores-
depoentes, a maior parte deles pesquisadores em Educação Matemática
vinculados a departamentos de Matemática. No primeiro encontro o entrevistador
os deixa falar livremente sobre suas vidas, retomando, na segunda entrevista,
pontos que julgou necessários, ao fim do que algumas perguntas diretas são
formuladas: “Qual a sua utopia?” “O que seria uma definição de Educação
Matemática?” “Enfrentou resistências?”.
Embora em seu resumo Vianna tenha deixado clara sua opção em
utilizar-se da metodologia da História Oral, na apresentação da pesquisa aos
depoentes, há menção em ser, a História Oral, uma disciplina: “Seguindo uma
orientação metodológica dentro do que se intitula História de Vida e História
Oral Temática, dentro da disciplina de História Oral [...]” (p.83). No decorrer do
capítulo, o leitor poderá perceber que a classificação da História Oral como uma
disciplina, uma metodologia ou procedimento de pesquisa é um ponto de
divergência nos trabalhos dos membros do GHOEM20, ainda que estas
divergências, devido às freqüentes negociações, tenham sido minimizadas.
Na tese de Vianna, encontram-se diferentes estágios de tratamento dos
depoimentos: em alguns, as perguntas do entrevistador são mantidas; em outros,
as perguntas são incorporadas ao texto e há ainda outros exercícios. Essa opção
do autor está em sincronia com suas pretensões e fundamentos, cuja
concretização resulta num texto criativo também do ponto de vista do estilo de
suas composições.
20
Estas divergências são reflexos claros das discussões que ainda hoje ocupam os
historiadores orais. Em Ferreira e Amado (1996) o leitor encontrará um debate aprofundado
sobre esta discussão. Ainda que os membros do GHOEM não sejam historiadores, é interessante
notar que mesmo em outras interfaces tais questões adquirem contornos similares.
175
cinco vidas, intercaladas com textos que visam a tratar, ainda que implicitamente,
de questões metodológicas, provocando a análise do leitor sobre a vida anterior,
ou, ainda, permitir a manifestação do preconceito deste leitor. Cada jornada-texto
apresentada é discutida por quatro leitores fictícios: Adrastéia, Crono, Orestes e
Esaiona.
No que diz respeito às análises dos dados, o autor deixa explícita sua
opção em não fazê-las, no entanto recorta as respostas ao que poderíamos chamar
de suas perguntas de corte: “Qual a sua utopia?” “O que seria uma definição de
Educação Matemática?” “Enfrentou resistências?”, apresentando-as separadas de
seu contexto para permitir ao leitor relacionar cada resposta ao seu autor. No
quarto capítulo deste trabalho, aprofundarei a discussão sobre os argumentos de
Vianna para não analisar os depoimentos que coleta.
No ano de 2002, Garnica21 divulga um inventário das pesquisas em
Educação Matemática que se utilizam da História Oral, desenvolvidas até aquele
momento. Neste texto o autor apresenta e discute uma monografia de
especialização, (LANDO, 2002), três dissertações de mestrado (OLIVEIRA,
1997; SOUZA, 1999 e TEIXEIRA, 2000), e duas teses de doutorado (VIANNA,
2000 e GUÉRIOS, 2002). Destes autores, somente Vianna e Souza participam
atualmente do GHOEM. Pretendendo considerar a pertença deste meu trabalho
no universo da produção desse grupo específico, não considerarei trabalhos
externos ao GHOEM.
Já no ano de 2003 é publicado, pelo mesmo autor, o artigo História
Oral e Educação Matemática: de um inventário a uma regulação. Neste
trabalho, tendo como base dois trabalhos anteriores, datados de 1998 e 2002,
Garnica elabora uma “regulação” metodológica, isto é, explicita
21
Este texto foi escrito em data anterior, razão pela qual está aqui inserido. Foi
publicado em 2006, na Revista de Pesquisa Qualitativa, ano 2, número 1. Para referência
completa, consultar Garnica (2006).
176
[...] parece-nos, à primeira vista, que a História Oral utilizada como metodologia
para o esboço de cenários, para a compreensão mais aprofundada do contexto,
executa, sem vantagens nítidas, o mesmo papel que as pesquisas chamadas
qualitativas, em suas várias vertentes, sempre desempenhou nas pesquisas em
Educação Matemática. Esse não é, obviamente, o caso da História Oral como
método para levantamentos históricos estrito senso. Não que as pesquisas
qualitativas até então em vigência não pudessem realizá-lo mas, historicamente,
essas abordagens qualitativas em Educação Matemática nunca foram plena e
explicitamente utilizadas com esse fim e, sem dúvida, um movimento tão criativo e
propriamente enraizado nos estudos sociais como é a História Oral, suprirá lacunas
sensíveis e servirá, ainda, para estabelecer um lugar (e as concepções fundantes)
para o assentamento de uma História da Educação Matemática que se fará
desvinculada dos parâmetros vistos como rigorosos e válidos (fundamentalmente a
arqueologia documental) que vêm com os estudos em História da Matemática,
tomada em sua acepção ‘clássica’. (2002, p.21)
177
[...] buscou investigar como ocorria a formação dos professores e alunos de núcleos
de ensino rural na região oeste do estado de São Paulo, visando a constituir,
especificamente, uma das faces da Educação Matemática no sistema educacional
brasileiro. Para tanto, usando a História Oral como parâmetro, buscamos constituir
parte do cenário da escola rural a partir do relato de alunos, professores e inspetor de
ensino que efetivamente vivenciaram esta realidade, nesta região, no período de
1950 a 1970.(MARTINS, 2003, s/p) *
22
Apresentado ao Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências da
Universidade Estadual Paulista de Bauru e à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo –FAPESP, sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
*
Grifo meu
178
Para atingirmos o nosso objetivo, trabalhamos com a História Oral (temática) como
metodologia principal de pesquisa. Neste trabalho utilizamos tanto as fontes orais,
na forma de depoimentos de professores de Matemática da Região de Bauru, como
documentos escritos (revisão bibliográfica). (p. 10) **
23
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da
Universidade Estadual Paulista de Rio Claro – PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do
professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
**
negrito no original
179
24
Apresentada à Faculdade de Ciências da Universidade Estadual Paulista de Bauru,
sob orientação do professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
180
25
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da
Universidade Estadual Paulista de Rio Claro – PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do
professor doutor Antonio Carlos Carrera de Souza.
26
Os conceitos de “fragmentação do sujeito” e “identidade” são fundamentados em
Hall (2002).
181
[...] muitos dos aspectos que, antes, eram relacionados com a identidade do professor
de Matemática se fragmentaram: as exigências para ser professor, salário, a
autoridade, conteúdo, questões sociais, a inversão do público para o privado. Então,
tendo em vista que alguns acontecimentos variaram a forma de apresentação e
apresentaram alguma mudança, fragmentação do sujeito professor é uma tendência
de mudança. (SILVA, 2004, p. 236)
27
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da
Universidade Estadual Paulista de Rio Claro – PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do
professor doutor Antonio Carlos Carrera de Souza.
182
[...] tendo como objetivo compreender uma relação do presente, que faz parte de um
problema histórico, optamos pela História Oral como método de investigação deste
estudo, visto que aqui aponto um problema histórico a estudar e busco suas
considerações em fontes orais. (p. 11)
[...] a partir dos depoimentos dos participantes (trechos contidos nas textualizações)
e de considerações teóricas, tecem-se algumas considerações sobre a escola, a
família e a Matemática, as quais, pautada nas idéias de Philippe Ariès e dos sujeitos
da pesquisa, são classificadas como Tendências de Conservação, denotadas pelas
práticas e discursos que se conservam ao longo dos anos, Tendências de Mudança,
indicadas pelos depoimentos que se modificam e Tendência em Movimento, a que
ainda pode regredir, tornando-se uma tendência de conservação, como pode avançar,
manifestando-se como uma tendência de mudança. (p. 13) *
*
Negrito da autora
183
28
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da
Universidade Estadual Paulista de Rio Claro – PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do
professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
184
29
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação Matemática da
Universidade Estadual Paulista de Rio Claro – PPGEM/UNESP-RC, sob orientação do
professor doutor Antonio Vicente Marafioti Garnica.
185
Pensamos que, ainda que de forma bastante tímida, nossa proposta foi, também, a de
‘reencantar’ o professor de matemática, ‘desfocá-lo’ de um texto – a sala de aula – e
enfocá-lo, como agente, num contexto – o processo de colonização da Nova Alta
Paulista. Suas vozes nos levaram à compreensão de que eles não foram coadjuvantes
nesse processo, mas atores principais que, ‘ombro a ombro’ com os que se
apropriaram do novo chão e dele passaram a tirar o seu sustento, colonizaram
cultural e educacionalmente esse mesmo chão; de que seu embate teve sempre o
objetivo de fazer com que as novas gerações do novo chão – onde foram acolhidos –
se apropriassem de um acervo cultural do qual não dispunham. (p. 195)
30
Apresentada ao Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade
Federal do Paraná, sob orientação do professor doutor Carlos Roberto Vianna.
186
A análise das entrevistas, dos depoimentos, pode acontecer e ser concebida de várias
maneiras, conforme contempla o uso da História Oral. Podem ser levantadas
categorias, tendências, uniformidade de discurso, que serão desenvolvidas e
aprofundadas conforme os objetivos de cada trabalho.
E dentro desse processo, a transcriação, segundo defende Meihy (2000), é uma outra
maneira de trabalhar com os depoimentos, onde o autor do trabalho assume a voz
187
dos entrevistados e cria o seu discurso em cima daquilo que foi dito, fazendo
recortes das falas, mudando a seqüência dos assuntos para deixar o texto mais coeso.
Para cada entrevistado, é realizado um trabalho de reestruturação do seu discurso, a
constituição de uma narrativa. (p.104)
[...] quero deixar claro que eu não vou tocar no material das entrevistas. Eu poderia
me remeter aos entrevistados. Teria condições de recuperar as falas dos que disseram
não haver enfrentado resistências e mostrar como isso se encaixava em suas histórias
de vida.[...] Não é esse o discurso que pretendo fazer, pois para mim esse é o
discurso do poder. O que nenhuma instância de poder tolera é a retirada, é a
desautorização do poder, o seu não-reconhecimento.[...] Por outro lado, tendo feito a
pesquisa, que fazer? Análise teórica... Sim! Mas em outro momento, talvez por mim
mesmo, talvez por outra pessoa... Mas não agora! E a simples decisão de não o fazer
é mais relevante do que a de fazê-la ou expô-la! O instrumento teórico está
construído e já resultou em uma ação conseqüente com ele. A reação colocará este
instrumento em reconstrução... ou construção permanente. (p. 443)
[...] permite que detectemos tendências que vão se manifestando nos depoimentos.
Surgem como dados particulares, são reforçados por uma expressão, um caso, uma
lembrança, e vão se mostrando em grande parte – se não em todos – dos
depoimentos, de forma significativa. Vêm como ausência, convergência ou até
mesmo discordância entre pontos de vista. [...] Não se trata de estabelecer verdades e
preencher – de modo definitivo – as lacunas da memória e da história. Muito menos
julgar depoimentos e depoentes. Trata-se de inventariar possibilidades que outras
pesquisas poderão levar adiante (p. 38 - 39)
A análise requer que o investigador desenvolva uma trama ou argumento que lhe
permita unir temporal ou tematicamente os elementos, dando uma resposta
compreensiva do porquê se sucedeu algo. Os dados podem proceder de muitas
fontes, mas o importante é que estejam integrados e interpretados em uma trama
narrativa. (BOLÍVAR, 2002, p. 52) *
*
itálico no original.
196
o caráter simbólico da vida humana tem sido um tema constante de reflexão entre os
filósofos interessados, e entre outros usuários envolvidos no desenvolvimento das
ciências sociais e humanas. No contexto da antropologia, esta reflexão tomou a
forma de uma elaboração daquilo que pode ser descrito como uma ‘concepção
simbólica’ da cultura. Uma concepção desse tipo foi esboçada na década de 1940
por L. A. White em A Ciência da Cultura. Começando pela premissa de que o uso
de símbolos – ou ‘simbolização’, como denominou – é o traço distintivo do ser
humano, White argumenta que ‘cultura’ é o nome de uma ordem ou classe distinta
de fenômenos, a saber, aqueles eventos ou coisas que dependem do exercício de uma
habilidade mental, peculiar à espécies humanas, que denominamos ‘simbolização’.
(p. 175, 2002) *
*
Itálico e aspas no original.
197
[...] as formas simbólicas que são o objeto de interpretação são parte de um campo
pré-interpretado, elas já são interpretadas pelos sujeitos que constituem o mundo
sócio-histórico. Ao desenvolver uma interpretação que é mediada pelos métodos do
enfoque da HP, estamos reinterpretando um campo pré-interpretado; estamos
projetando um significado possível que pode divergir do significado construído
pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-histórico. [...] Como uma
reinterpretação de um campo objetivo pré-interpretado, o processo de interpretação é
necessariamente arriscado, cheio de conflito e aberto à discussão. A possibilidade de
um conflito de interpretação é intrínseco ao próprio processo de interpretação. E
esse é um conflito que pode surgir, não simplesmente entre as interpretações
200
divergentes de analistas que empregam técnicas diferentes, mas também entre uma
interpretação mediada pelo enfoque da HP de um lado, e as maneiras em que as
formas simbólicas são interpretadas pelos sujeitos que constituem o mundo sócio-
histórico de outro. (p. 376, 2002) *
*
Itálico do autor.
201
Tomar algo que não seja o escrito como um texto é algo cada vez mais
comum desde a virada hermenêutica das ciências sociais na década de 1970. Na
área da antropologia, Geertz nos remete à leitura das culturas; em Educação
Matemática temos trabalhos como o de Silva (2003) que considera aulas de
Álgebra Linear como texto.
Também o escritor cubano radicado na Itália, Ítalo Calvino, serve aqui
como inspirador, ao tomar um corpo como texto:
Leitora, eis que agora você está sendo lida. Seu corpo está sendo submetido a uma
leitura sistemática, mediante canais de informação táteis, visuais, olfativos, e não
sem intervenções das papilas gustativas. Também o ouvido teve participação, atento
a seus arquejos e trinados. Em você, o corpo não é apenas um objeto de leitura: faz
parte de um conjunto complicado de elementos, que não são todos visíveis nem
estão todos presentes, mas que se manifestam em acontecimentos visíveis e
imediatos: o anuviar-se de seus olhos, seu sorriso, as palavras que diz, seu jeito de
juntar e separar os cabelos, de tomar a iniciativa e retrair-se, e todos os signos que
estão nos confins dos usos e costumes, da memória, da pré-história, da moda, todos
os códigos, todos os pobres alfabetos por meio dos quais um ser humano acredita em
certos momentos estar lendo outro ser humano.
Também você, ó Leitor, é entrementes um objeto de leitura: a Leitora ora lhe passa o
corpo em revista como se percorresse o sumário, ora o consulta como se tomada por
uma curiosidade rápida e precisa, ora se demora interrogando-o e deixando que uma
resposta muda chegue a ela, como se toda inspeção parcial só a interessasse à luz de
um reconhecimento espacial mais amplo. Às vezes, ela se fixa em detalhes
desprezíveis [...] algumas vezes, ao contrário, um detalhe descoberto por acaso é
valorizado em demasia, por exemplo a forma de seu queixo ou um jeito especial de
morder o ombro da Leitora, e ela toma impulso nesse seu gesto, percorre (vocês
percorrem juntos) páginas e páginas de cima a baixo, sem saltar nem uma vírgula.
Todavia, em meio à satisfação que você encontra no modo que ela o lê, em todas
essas citações textuais de sua objetividade física, uma dúvida se insinua: que ela não
o leia inteiro como é, mas que o use, que utilize fragmentos de você destacados do
contexto para construir um parceiro imaginário, conhecido apenas por ela, na
penumbra da semiconsciência, e que o que ela esteja decifrando não seja você, mas
sim o visitante apócrifo dos sonhos dela. (1999, p.159)
Estas frases não só servem de inspiração para tomar a vida como texto,
como sugerem alguns cuidados que devemos ter ao lê-las. Um deles, o cuidado
com o recorte puro e simples, como meio de exemplificar situações e fragmentar
a vida a ponto de descontextualizá-la.
203
Lembrando que faço uma tentativa de “ler vidas”, ressalto que essa
leitura não é desinteressada. A lente proposta nas próximas páginas pretende
focar o olhar. Mais que isso: a lente que me permitiu, até aqui, algumas leituras,
talvez não me permita descartar as leituras que me possibilitou. Talvez Ítalo
Calvino estivesse a brincar com esta impossibilidade de não mais ler, depois de
se reconhecer e ser reconhecido como leitor:
- Nada. Acostumei-me tão bem a não ler que não leio sequer o que me aparece
diante dos olhos por acaso. Não é fácil: ensinam-nos a ler desde criança, e pela
vida afora a gente permanece escravo de toda escrita que nos jogam diante dos
olhos. Talvez tenha feito certo esforço nos primeiros tempos para aprender a não
ler, mas agora isso é natural para mim. O segredo é não evitar olhar as palavras
escritas. Pelo contrário: é preciso observá-las intensamente, até que
desapareçam. (1999, p. 55)
formas de prosa – contos de fada, lendas e novelas – por não ter surgido na
tradição oral e nem alimentá-la.
Leskov freqüentou a escola dos Antigos. O primeiro narrador grego foi Heródoto.
No capítulo XIV do terceiro livro de suas Histórias encontramos um relato muito
instrutivo. Seu tema é Psammenit. Quando o rei egípcio Psammenit foi derrotado e
reduzido ao cativeiro pelo rei persa Cambises, este resolveu humilhar seu cativo.
Deu ordens para que Psammenit fosse posto na rua em que passaria o cortejo triunfal
dos persas. Organizou esse cortejo de modo que o prisioneiro pudesse ver sua filha
degradada à condição de criada, indo ao poço com um jarro, para buscar água.
Enquanto todos os egípcios se lamentavam com esse espetáculo, Psammenit ficou
silencioso e imóvel, com os olhos no chão; e, quando logo em seguida viu seu filho,
caminhando no cortejo para ser executado, continuou imóvel. Mas, quando viu um
dos seus servidores, um velho miserável, na fila dos cativos, golpeou a cabeça com
os punhos e mostrou os sinais do mais profundo desespero.
205
Essa história nos ensina o que é a verdadeira narrativa. A informação só tem valor
no momento em que é nova. Ela só vive nesse momento, precisa entregar-se
inteiramente a ele e sem perda de tempo tem que se explicar nele. Muito diferente é
a narrativa. Ela não se entrega. Ela conserva suas forças e depois de muito tempo
ainda é capaz de se desenvolver. Assim, Montaigne alude à história do rei egípcio e
pergunta: porque ele só se lamenta quando reconhece o seu servidor? Sua resposta é
que ele ‘já estava cheio de tristeza, que uma gota a mais bastaria para derrubar as
comportas’. É a explicação de Montaigne. Mas poderíamos também dizer: ‘O
destino da família real não afeta o rei, porque é o seu próprio destino’. Ou: ‘muitas
coisas que não nos afetam na vida nos afetam no palco, e para o rei o criado era
apenas um ator’. Ou: ‘as grandes dores são contidas, e só irrompem quando ocorre
uma distenção’. Heródoto não explica nada. Seu relato é dos mais secos. Por isso,
essa história do antigo Egito ainda é capaz, depois de milênios, de suscitar espanto e
reflexão. Ela se assemelha a essas sementes de trigo que durante milhares de anos
ficaram fechadas hermeticamente nas câmaras das pirâmides e que conservam até
hoje suas forças germinativas. (p. 204, 1987)
O ato de captar uma narrativa é, então, duplo: o intérprete tem que captar o enredo
configurador da narrativa a fim de extrair significado de seus constituintes, os quais
ele deve relacionar ao enredo. Mas a configuração do enredo deve, em si, ser
extraída da sucessão de eventos. (BRUNER, p. 46, 1997)
Eu quis mostrar como os seres humanos, em suas interações, formam uma noção do
canônico e do comum como um pano de fundo contra o qual interpretam e dão
significado narrativo às violações e afastamentos de estados ‘normais’ da condição
humana. Tais explicações narrativas têm o efeito de estruturar o idiossincrático de
uma forma verossímil que pode promover uma negociação e evitar ruptura
contenciosa e conflitos. Apresentei os argumentos, enfim, para uma visão da
produção de significados culturais como um sistema interessado não somente em
significado e em referência, mas em ‘condições de felicidade’, condições pelas quais
as diferenças de significações podem ser resolvidas invocando circunstâncias
atenuantes que explicam interpretações divergentes da ‘realidade’.(p. 65, 1997) *
*
aspas no original.
207
É essa nossa capacidade que nos permite ir além do que ouvi mos ou
lemos, ir além do prontamente acessível.
Finalmente, o que acredito ser interessante ler nas vidas dos professores
é o poder destas configurações sobre as decisões individuais. Tocar no assunto
“decisões individuais” me parece um ponto chave para se discutir o tema
“liberdade”, razão pela qual seguirei por este caminho.
213
A ordem invisível dessa forma de vida comum, que não pode ser diretamente
percebida, oferece ao indivíduo uma gama mais ou menos restrita de funções ou
modos de comportamento possíveis. Por nascimento ele está inserido num complexo
214
31
da obra Admirável Mundo Novo.
215
[...] nem todas as concepções que vêem a vida social como uma série de jogos são
tão deprimentes como as de Goffman, e algumas chegam a ser bastante divertidas. O
que as une é uma visão de que os seres humanos são mais induzidos por forças que
submissos a regras; que as regras são do tipo que permitem estratégias; que as
estratégias são do tipo que inspiram ações; e que as ações são do tipo que
compensam por si mesmas – pour le sport.[...] Ver a sociedade como um conjunto
de jogos significa vê-la como uma extensa pluralidade de convenções e
procedimentos vários – mundos fechados e sem ar, de jogadas e contrajogadas, a
vida em règle. (p. 43)
Dessa água regulada em princípio pelas redes institucionais que de fato ela vai aos
poucos erodindo e deslocando, as estatísticas não conhecem quase nada. Não se
trata, com efeito, de um líquido, circulando nos dispositivos do sólido, mas de
movimentos diferentes, utilizando os elementos do terreno. (1994, p. 98) *
*
itálico no original
216
*
itálico do autor
217
A opinião interna de qualquer grupo com alto grau de coesão tem uma profunda
influência em seus membros, como força reguladora de seus sentimentos e sua
conduta. [...] A aprovação da opinião grupal [...] requer a obediência às normas
grupais. A punição pelo desvio do grupo ou, às vezes, até pela suspeita de desvio, é
perda de poder, acompanhada de rebaixamento de status. (p. 40)
A autonomia relativa de cada pessoa, o grau em que sua conduta e seus sentimentos,
seu auto-respeito e sua consciência relacionam-se funcionalmente com a opinião
interna dos grupos a que ela se refere como ‘nós’ [we], certamente está sujeita a
grandes variações. A visão, hoje muito difundida, de que um indivíduo mentalmente
sadio pode tornar-se independente da opinião do ‘nós’ [we-group] e, nesse sentido,
ser absolutamente autônomo, é tão enganosa quanto a visão inversa, que reza que
sua autonomia pode desaparecer por completo numa coletividade de robôs. (2000,
p.40) *
*
itálico e colchetes no original
218
[...] vendo implicitamente nosso padrão de sensibilidade como universal, válido para
toda a humanidade, e não como algo que se desenvolveu. [...] Na sociedade de
32
Em Sobre o Tempo de 1998, e Introdução à Sociologia de 2005, por exemplo.
220
Mozart, na fase do processo social civilizador 33 em que viveu, o tabu quanto ao uso
das palavras chocantes que encontramos não era nem de perto tão estrito e rígido
quanto em nossos dias. Alusões claras aos excrementos eram parte das diversões
normais na convivência entre os jovens – e provavelmente também entre os mais
velhos – com quem ele se relacionava. Não eram de maneira alguma proibidas, ou,
no máximo, recebiam uma proibição tão leve que as zombarias coletivas quanto ao
tabu provocavam muita algazarra entre os jovens da época. (ELIAS, 1995, p. 102)
33
O autor refere-se a sua obra O Processo Civilizador (ELIAS, 1994), em que
procura analisar as ações de forças, o poder civilizador, que se manifestam no decorrer dos
séculos. (nota minha)
221
Segundo Bourdieu:
*
tradução minha, aspas do autor.
223
[...] é aquilo que confere às práticas a sua relativa autonomia no que diz respeito às
determinações externas do presente imediato. Esta autonomia é a do passado,
ordenado e atuante, que, funcionando como capital acumulado, produz história na
base da história e assim assegura que a permanência no interior da mudança faça do
agente individual um mundo no interior do mundo (BOURDIEU apud
WACQUANT, 2004, p.4)
224
O agente social é agido (do interior) tanto quanto age (para o exterior). A partir
desse postulado, é possível encarar uma verdadeira economia das práticas, em que o
termo ‘economia’ é tomado num sentido amplo, de ordem, de estrutura de lógica.
Dizer que há uma economia das práticas é dizer que há uma razão imanente às
práticas, que não tem a sua origem num cálculo explícito nem em determinações
exteriores aos agentes, mas no habitus destes. (BONNEWITZ, 2003, p. 82)
34
QUADRO I: ESPAÇO DAS POSIÇÕES SOCIAIS E ESPAÇO DOS ESTILOS DE VIDA
CAPITAL GLOBAL +
(todas as espécies juntas)
piano bridge
golfe
PROFISSÕES LIBERAIS
equitação
champagne
PROFESSORES xadrez whisky tênis ski aquático
(SUPERIOR)
EXECUTIVOS (empresas privadas)
Patrões (comércio)
Patrões (indústria)
caça
ENGENHEIROS
scrabble
barcos à vela
EXECUTIVOS
ARTISTAS
(entidades públicas)
PROFESSORES montanha
(SECUNDÁRIOS)
marcha natação
cicloturismo água mineral
SERVIÇOS VOTO NA DIREITA
MÉDICO-SOCIAIS
INTERMEDIÁRIOS guitarra
CULTURAIS expressão corporal
EXPLORADORES AGRÍCOLAS
EXECUTIVOS MÉDIOS
ADMINISTRATIVOS pétanque
Pequenos comerciantes
Pernord
FUNCIONÁRIOS FUNCIONÁRIOS vinho espumante
(escritórios) (COMÉRCIO)
artesãos
cerveja
CONTRAMESTRES PESCA
VOTO NA ESQUERDA
OPERÁRIOS QUALIFICADOS
belote futebol acordeon
OPERÁRIOS ESPECIALIZADOS
vinho tinto comum
OPERÁRIOS BRAÇAIS
ASSALARIADOS AGRÍCOLAS
CAPITAL GLOBAL –
34
Diagrama das páginas 140 e 141 de La disctinction, simplificado e reduzido a
alguns indicadores significativos em termos de bebidas, esportes, instrumentos musicais ou
jogos sociais. A linha cinza indica o limite entre a orientação provável para a direita ou para a
esquerda.
229
Em termos analíticos, um campo pode ser definido como uma rede, ou uma
configuração de relações objetivas entre posições. Essas posições são definidas
objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem aos seus
ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na
estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse
comanda o acesso aos lucros específicos que estão em jogo no campo e, ao mesmo
tempo, por suas relações objetivas com as outras posições (dominação,
subordinação, homologia, etc.). Nas sociedades altamente diferenciadas, o cosmos
social é constituído do conjunto destes microcosmos sociais relativamente
autônomos, espaços de relações objetivas que são o lugar de uma lógica e de uma
necessidade específicas e irredutíveis às que regem outros campos. Por exemplo, o
campo artístico, o campo religioso ou o campo econômico obedecem a lógicas
diferentes [...]* . (1992, p. 72)
*
Tradução minha.
**
Tradução minha, itálico do autor.
231
A realidade social existe, por assim dizer, duas vezes, nas coisas e nos cérebros, nos
campos e nos habitus, no exterior e no interior dos agentes. E, quando o habitus
entra em relação com um mundo social do qual ele é o produto, sente-se como um
peixe dentro d’água e o mundo lhe parece natural [...]; é porque ele me produziu,
porque ele produziu as categorias que eu lhe aplico, que ele me parece natural,
evidente * . (BOURDIEU, 1992, p. 102)
*
Tradução minha, itálico do autor.
232
6 (IM)POSSIBILIDADES DE LEITURA
Data Ação
Julho de 2003 Entrevista com Mary
Agosto de 2003 Transcrição da entrevista de Mary
Fevereiro de 2004 Textualização da entrevista de Mary
Abril de 2004 Primeira revisão da textualização da entrevista de Mary
Maio de 2004 Coleta e transcrição da entrevista com Adailton
Junho de 2004 Entrevista com o Romulo
Julho de 2004 Entrevista com a Adaildes
Agosto de 2004 Entrevista com a Clélia e transcrição da entrevista de Romulo
Outubro de 2004 Transcrição da entrevista de Adaildes e de Clélia
Dezembro de 2004 Textualização da entrevista do Adailton
Janeiro de 2005 Textualização das entrevistas de Romulo e Adaildes
Fevereiro de 2005 Textualização da entrevista de Clélia
Março de 2005 Revisão e envio das textualizações e transcrições aos depoentes
Abril de 2005 Retorno da carta de cessão de Mary e Adailton
Junho de 2005 Retorno da carta de cessão de Adaildes
Julho de 2005 Leitura e releitura das textualizações de Mary, Adailton e Adaildes
Setembro de 2005 Retorno da carta de cessão de Romulo
Outubro de 2005 Retorno da carta de cessão de Clélia
Novembro de 2005 Leitura e releitura das textualizações de Romulo e Clélia
35
“Licenciaturas Plenas Parceladas” é um projeto da Universidade Estadual do Mato
Grosso. Uma continuidade em nível superior do “Projeto Inajá”, de nível médio. No projeto
Licenciaturas Plenas Parceladas os alunos têm aulas presenciais durante os meses de dezembro,
janeiro, fevereiro e julho, denominada de etapa intensiva. Nos outros meses ocorre a etapa
intermediária em que os alunos desenvolvem projetos em educação sempre acompanhados pelo
coordenador do curso que viaja às localidades onde os alunos estão atuando como professores.
235
36
Em sociologia é comum se fazer distinções entre depoimento, história de vida e
relato de vida (LANG, 2001).
239
fosse estudar em uma cidade grande, devido aos seus problemas de saúde, e
então Mary foi para a área de Exatas por identificar-se com a área de
contabilidade.
Iniciou seu curso superior de Matemática na FAFIT – Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Tupã, a 50 quilômetros de Paraguaçu. Com certa
dificuldade, por conta dos tratamentos que precisava fazer, formou-se em 1978.
Enquanto fazia o curso, trabalhava com contabilidade.
Nesta época já atuava em dois colégios em nível médio, em cursos de
contabilidade, agronomia e magistério.
Em 1979, Mary foi aprovada em concurso e iniciou sua vida
profissional como funcionária pública, permanecendo no cargo por 16 anos. Por
não ter até então trabalhado como funcionária do estado, Mary não teve opção de
escolha iniciando uma traumática experiência na cidade de São Paulo, na escola
de Guaianazes, situada em um bairro de extrema pobreza da região Leste da
cidade.
Logo depois conseguiu remoção e desenvolveu uma ativa vida
profissional em diferentes níveis de ensino: ministrou aulas no ensino
fundamental e médio, no magistério, em cursos pré vestibular, em cursos
técnicos de nível médio e em cursos superiores, chegando à carga horária de 60
horas semanais.
Em 1985, iniciou o curso de Direito e formou-se em 1989. Embora não
tenha exercido a profissão, formada em Direito pôde ministrar aulas de Ética e
Cidadania
Fez duas pós-graduações: Estatística e Matemática Financeira.
Em 2002, o reitor da UNESP à época faz uma visita à sua cidade e a
convidou para conhecer os cursos de Pós-Graduação stricto sensu. Mary recebeu
o convite com entusiasmo e logo seu marido conseguiu uma difícil remoção.
Por possuir conhecidos em Rio Claro e por sua afinidade com a área de
Educação, Mary mudou-se para esta cidade e iniciou seus estudos como aluna
241
Educação Escolar
Por trabalhar com contabilidade, influência do seu pai, e também por
precisar de tratamentos médicos, Mary inicia a faculdade de Matemática em uma
faculdade próxima de sua cidade.
Mary faz referência a três áreas de interesse, a Matemática, a Literatura
e o Direito. Isso concorda com os interesses de seus pais, pois sua mãe, embora
tenha terminado apenas o nível médio gostava bastante de escrever e seu pai,
advogado de formação, também trabalhava com escrita fiscal.
Mais tarde Mary também decide fazer o mesmo curso de seu pai,
Direito, com predileção pelo júri. Conforme a depoente, seu irmão também fez
Direito, optando pelo júri, assim como seu pai. Estes dados nos levam a refletir
sobre a influência do habitus primário na vida de uma pessoa, ou, plasmado nos
estudos de Elias, nos permitem refletir sobre a influência do grupo familiar nas
decisões individuais, tão mais fortes quanto mais familiares forem as
comunidades em que os indivíduos são criados.
Mary entrou na escola com sete anos e, em suas lembranças, era muito
boa em Matemática. Sua professora fazia uma espécie de concurso de que Mary
gostava, em que, quem terminasse primeiro, ensinava aos colegas.
Remetendo-se aos problemas de saúde que tinha, afirma que sua mãe a
poupava dos serviços domésticos o que levou seu pai a ensinar-lhe escrita fiscal
de empresa, registrando-a com treze anos de idade, o que permitiu a ela uma
aposentadoria aos trinta e nove anos.
Embora suas irmãs tivessem estudado em escola particular, Mary
sempre estudou em escola pública, a qual classificou como muito boa.
Falando dos professores que teve, particularmente os de Matemática,
afirma que houve bons e ruins. Aqueles que classifica como ruins usavam a
prova como uma arma.
Como exemplo de uma boa professora cita a de Matemática da oitava
série. Entre suas qualidades, estava o bom vocabulário matemático, a
organização e a forma de conduzir a resolução de problemas.
243
Formação em Serviço
A formação de Mary é completada pelos diversos cursos e semanas
pedagógicas de que participou, já como professora de Matemática. Havia cursos
de cunho pedagógico (em geral criticados pela depoente), cursos motivacionais
(dos quais gostava) e, ainda, de metodologia e conteúdo, como por exemplo um,
do qual gostou muito, sobre resolução de problemas, que fez com o professor
Gelson Iezzi.
244
Cabe ressaltar que Mary apresenta uma forte resistência quanto a esses
cursos pedagógicos, pois não acredita na maneira de pensar o aluno e a escola,
esta como uma empresa que fabrica um produto, concepção tida como
predominante no sistema de ensino brasileiro em determinada época.
Atuação Profissional
Trabalhando desde os treze anos, Mary torna-se uma professora de
grande reconhecimento em sua cidade. Os diretores das escolas em que trabalha a
respeitam, seus alunos a chamam para ser madrinha nas formaturas. Todo este
reconhecimento é resultado de (e implica) muito trabalho. Havia épocas em que
Mary tinha uma carga horária superior a cinqüenta horas semanais.
As três grandes mudanças na sua vida foram dolorosas. A primeira,
quando se mudou para a capital paulista por motivos de doença; a segunda,
quando do início do Magistério em subúrbio da capital (o que lembra com
ressentimento); e a terceira e atual quando sai de Paraguaçu para ir a Rio Claro
com a intenção de ingressar no Programa de Pós-Graduação em Educação
Matemática da Unesp.
Mary possui uma prática pedagógica bastante metódica, exigente,
reflexo de sua educação, principalmente paterna.
Atualmente Mary almeja ingressar no mestrado em Educação
Matemática. É relevante para os objetivos deste trabalho notar que este interesse
surgiu quando da visita do Reitor da UNESP a sua cidade.
As relações de interdependência que existiam em Paraguaçu, fossem
elas familiares ou profissionais, a impediram de sair da cidade durante grande
parte de sua vida. Isto só foi possível num determinado momento, por impulsos
vindos deste encontro com o Reitor e devido à transferência de seu marido.
245
37
De acordo com o léxico, no sentido dado pelo autor, preempção pode ser
entendido como uma interpretação definitiva e apriorística.
246
construir a queda de Roma de maneira narrativa não impede que haja outras
interpretações. A interpretação de qualquer narrativa em particular também não
descarta outras interpretações, pois as narrativas e suas interpretações negociam
significado,e os significados são intransigentemente múltiplos: a regra é a
polissemia. Os significados narrativos, além disso, dependem de forma apenas trivial
da verdade no sentido estrito da verificabilidade. A exigência, ao contrário, é a
verossimilhança ou ‘semelhança à verdade’, e este é um componente de coerência e
utilidade pragmática, sendo que nenhuma delas pode ser rigidamente especificada.
(p. 92, 2001) 38
38
Essa concepção de Bruner está enraizada nos hermeneutas, principalmente em
Dilthey. A grande contribuição de Dilthey, na filosofia, foi tentar estabelecer “a especificidade
das Ciências Humanas (ou as Ciências do Espírito, as chamadas Geisteswissenschaften). Em
Dilthey três elementos configuram – ou ajudam a configurar – a postura hermenêutica que será
fundante das ciências humanas: a vivência/experiência – o próprio ato ou coisa, unidade
essencial que não comporta a interferência do pensamento ou da reflexão; a expressão – modo
de manifestação das vivências, visceralmente atrelado à linguagem e suas potencialidades; e a
compreensão – ainda em Dilthey tida como causal-analítica, vinculada, portanto, à razão.” Mais
tarde Heidegger efetiva uma ampliação de horizontes “estendendo à Hermenêutica a
possibilidade de abarcar inclusive a região das ciências naturais, a hermenêutica como uma
postura filosófica plena ou a própria filosofia como hermenêutica; e a compreensão, por sua vez,
como modo próprio da existência, abertura ao mundo que, junto à afetividade e à comunicação
forma as “existenciálias” do Ser. Compreensão é, para Heidegger, compreensão-interpretação,
movimento que se dá no círculo hermenêutico no qual somos jogados ao mesmo tempo em que
nos percebemos como seres jogados no mundo, afetados pela mundaneidade, comunicando as
compreensões. Não há, pois, a dicotomia compreensão e interpretação, mas um movimento
contínuo, existencial, permanente.” (GARNICA, p. 56, 2005)
247
Circunstâncias
Romulo descreve várias circunstâncias que o auxiliaram a seguir seu
caminho. Certamente há outras, assim como em qualquer vida. Mas é notável que
tenham sido essas as circunstâncias selecionadas, guardadas na memória do
depoente e registradas em seu depoimento, o que dá a elas uma carga de
significatividade.
A primeira circunstância foi o dia em que observou sua mãe ministrando
uma aula particular sobre álgebra e seu estranhamento quando, como que por
encanto, sua mãe de um “monte de letra sai com números”. O depoente ressalta a
significatividade dessa lembrança.
Também é circunstancial a maneira como Romulo ingressou em
Engenharia, de acordo com suas palavras; “um motivo bastante prosaico”, pois
embora até o segundo colegial quisesse fazer Arquitetura, “na hora H” mudou
sua escolha e resolveu inscrever-se na USP, seu grande sonho, em Engenharia,
mas já com a idéia de que poderia mudar de curso para Matemática mais tarde, o
que acabou ocorrendo.
Poderíamos dizer, de uma maneira um tanto quanto enigmática e
engraçada, que o que levou Romulo a iniciar sua profissão como professor de
Matemática foi sua vontade de ser músico: ao optar pela ECA – Escola de
Comunicações e Artes da USP, seu pai retira todo o seu sustento e ele se vê
obrigado a trabalhar como professor particular para ganhar algum dinheiro.
Dois aspectos importantes de sua formação se dão pelo contato com
duas pessoas importantes da Educação Matemática: Marcelo Lellis e Antonio
José Lopes Bigode.
249
Logo que muda de curso começa, por indicação da mãe de uma amiga,
a trabalhar em uma escola cujo coordenador era o Marcelo Lellis. Conhecer
Bigode foi outro aspecto por ele tributado ao acaso: Bigode era vizinho de seu
colega de turma.
Esses dois contatos impulsionam a inserção do depoente no que ele
chama de “comunidade de Educação Matemática aumentada”.
A própria maneira como Romulo acredita-se capaz de criar um
“Modelo Teórico” é circunstancial, em seu upgrade de doutorado. Naquele
momento de argüição um dos membros avaliadores pergunta: - Você está me
dizendo que quer fazer uma nova teoria? Segundo o depoente é isso que lhe dá
confiança acadêmica para seguir adiante e desenvolver o Modelo Teórico dos
Campos Semânticos.
Rupturas
Há pelo menos três rupturas significativas na vida de Romulo.
A primeira quando decide deixar a Poli e ingressar na Matemática.
A segunda quando acorda e resolve não mais lecionar regularmente em
escolas. Como o próprio Romulo afirma, isso é notável, pois estava em um
emprego bom, muito cobiçado.
A terceira quando rompe com o GERP, por discordar das idéias de
Piaget.
(Im)possibilidades de di álogo
Leitor 2: – Concordo em essência com o que diz. A cultura em que a Clélia está
inserida constitui seu modo de pensar. Já que o autor não tocou nesse assunto,
preciso contextualizar o que estou falando. Bruner refere-se a isso como
“Psicologia Popular”. Lembro-me de um trecho de seu livro Atos de
Significação, minha edição é de 1997. Na página 40 ele diz que a cultura molda a
vida e a mente humanas.
Leitor 1: – Bom, vamos continuar com nossa leitura, caso contrário poderíamos
seguir indefinidamente nessa discussão, que, embora profícua, em si poderia se
constituir em uma tese, o que não seria justo com o autor. Não consigo deixar de
perceber as relações entre os autores que o Emerson utiliza e a vida de Clélia: é
um deleite. Observe por exemplo o conflito causado quanto ao quesito religião.
Certamente deve ter sido bastante difícil à Clélia conviver com um grupo
religioso, sendo filha de pais ateus.
Leitor 2: – Vamos procurar não esquecer que essa tese trata de formação de
professores de Matemática e...
Leitor 1: – Já ía voltar ao tema, já que vejo que o entorno da Clélia foi bastante
generoso. Ela mesma refere-se aos profissionais com quem teve contato e foram
o impulso para sua carreira.
253
Leitor 2: – Ora, mas isso é uma circunstância. Um acaso. Queria mesmo saber se
você encontra uma possível explicação para que ela tenha seguido o caminho que
Maria Tereza vislumbrou para ela.
Leitor 2: – Do meu ponto de vista, penso que as histórias de vida falam por si só.
E, quanto à teoria, ora: as vidas estão grávidas de teoria ... ou você pensa que as
teorias é que estão grávidas de vidas?
254
Nosso nome nos distingue, nos identifica, nos diferencia dos demais.
No caso de Adaildes, além de seu nome a identificar, também me trouxe o
paralelo que tentarei traçar nas próximas linhas.
Adaildes Ferreira da Invenção, ferreira, inventiva, assim como quer o
Ferrageiro de Carmona do poeta João de Cabral de Melo Neto, o mesmo de
Morte e Vida Severina que fala de Severino, nordestino assim como Adaildes,
mas que se retira, enquanto Adaildes permanece.
256
Mas, para que me conheçam/ melhor Vossas Senhorias/ e melhor possam seguir/ a
história de minha vida,/ passo a ser o Severino/ que em vossa presença emigra.
Antes de sair de casa/ aprendi a ladainha/ das vilas que vou passar/ na minha longa
descida.[...]
Pensei que seguindo o rio/ eu jamais me perderia:/ ele é o caminho mais certo,/ de
todos o melhor guia./ Mas como segui-lo agora/ que interrompeu a descida?/ Vejo
que o Capibaribe,/ como os rios lá de cima,/ é tão pobre que nem sempre/ pode
257
cumprir sua sina/ e no verão também corta,/ com pernas que não caminham.
Tenho que saber agora/ qual a verdadeira via/ entre essas que escancaradas/ frente a
mim se multiplicam.
Severino, aquele que emigra, conta sua saga do sertão ao mar. Sonhava
encontrar vida e trabalho. Só encontra morte e trabalho na morte:
Muito bom dia, senhora,/ que nessa janela está;/ sabe dizer se é possível/ algum
trabalho encontrar?
– Trabalho aqui nunca falta/ a quem sabe trabalhar;/ o que fazia o compadre/ na sua
terra de lá?
Severino, lavrador:
– Pois fui sempre lavrador,/ lavrador de terra má;/ não há espécie de terra/ que eu
não possa cultivar.
Mas não foi um lavrador qualquer, sempre foi dos melhores, o que leva
a constatar o caminho errado:
– Sei também tratar de gado,/ entre urtigas pastorear;/ gado de comer do chão/ ou de
comer ramas no ar. [...]
– Em qualquer das cinco tachas/ de um bangüê sei cozinhar;/ sei cuidar de uma
moenda,/ de uma casa de purgar.
... mas diga-me retirante,/ sabe benditos rezar?/ sabe cantar excelências,/ defuntos
encomendar?/ sabe tirar ladainhas,/ sabe mortos enterrar?
– Já velei muitos defuntos,/ na serra é coisa vulgar;/ mas nunca aprendi as rezas,/ sei
somente acompanhar.
– Pois se o compadre soubesse/ rezar ou mesmo cantar,/ trabalhávamos a meias,/ que
a freguesia bem dá.
39
O Ferrageiro de Carmona, de João Cabral de Melo Neto.
259
A fixação de raízes
Severino continua sua jornada, chega à zona da Mata e ali resolve ficar:
Bem me diziam que a terra/ se faz mais branda e macia/ quando mais do litoral/ a
viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei/ nesta terra que diziam./ Como ela é uma terra doce/ para os
pés e para a vista.
Os rios que correm aqui/ têm água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;/ cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade/ o que pensei ser mentira
– Seu José, mestre carpina,/ que habita este lamaçal,/ sabes me dizer se o rio a esta
altura dá vau?/ sabes me dizer se é funda/ esta água grossa e carnal?
– Severino, retirante,/ jamais o cruzei a nado;/ quando a maré está cheia/ vejo passar
260
– Compadre José, compadre,/ que na relva estais deitado:/ conversais e não sabeis/
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando/ em vossa prosa entretida:/ não sabeis que vosso filho/ saltou
para dentro da vida?
Saltou para dento da vida/ ao dar o primeiro grito;/ e estais aí conversando;/ pois
sabeis que ele é nascido.
Vida predestinada?
– Atenção peço, senhores,/ para esta breve leitura:/ somos ciganas do Egito, lemos a
sorte futura.
Vou dizer todas as coisas/ que desde já posso ver/ na vida desse menino/ acabado de
nascer:/ aprenderá a engatinhar/ por aí, com aratus,/ aprenderá a caminhar/ na lama,
como goiamuns,/ e a correr o ensinarão/ os anfíbios caranguejos,/ pelo que será
anfíbio/ como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:/ primeiro, com as galinhas,/ que é catando pelo chão/ tudo o
que cheira a comida;/ depois, aprenderá com/ outras espécies de bichos:/ com os
porcos nos monturos,/ com os cachorros no lixo. [...]
Minha amiga se esqueceu/ de dizer todas as linhas;/ não pensem que a vida dele/ há
de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura/ que é a vida do homem de ofício,/ bem mais sadia que os
mangues,/ tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos mangues,/ vejo-o dentro de uma fábrica:/ se está negro não é
lama,/ é graxa de sua máquina,/ coisa mais limpa que a lama/ do pescador de maré/
que vemos aqui vestido/ de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem/ que em sua vida tudo é triste,/ vejo coisa que o
trabalho/ talvez até lhe conquiste:/ que é mudar-se ...
Destino melhor? Mudar-se? Forjar-se...
...é difícil defender,/ só com palavras, a vida,/ ainda mais quando ela é/ esta que vê,
severina/ mas se responder não pude/ à pergunta que fazia,/ ela, a vida, a respondeu/
com sua presença viva.
E não há melhor resposta/ que o espetáculo da vida:/ vê-la desfiar seu fio,/ que
também se chama vida,/ ver a fábrica que ela mesma,/ teimosamente, se fabrica,/ vê-
la brotar como há pouco/ em nova vida explodida;/ mesmo quando é assim pequena/
261
A PESQUISA E OS MONSTROS40
Vampiros, enterro, morte: enterre o cadáver onde a estrada se bifurca, de modo que
quando ele se erguer do túmulo não saberá que caminho tomar. Crave uma estaca em
seu coração: ele ficará pregado ao chão no ponto da bifurcação, ele assombrará
aquele lugar que leva a muitos lugares, aquele ponto de indecisão. [...]
Vemos o estrago que o monstro causa, os restos materiais (as pegadas do yeti através
da neve tibetana, os ossos do gigante extraviados em um rochoso precipício), mas o
monstro em si torna-se imaterial e desaparece, para reaparecer em outro lugar (pois
quem é o yeti se não o homem selvagem medieval? Quem é o homem selvagem se
não o clássico e bíblico gigante?). Não importa quantas vezes o Rei Arthur tenha
matadao o ogro do Monte Saint Michel, o monstro reaparecerá em outra crônica
heróica, legando à Idade Média uma abundância de morte d’Arthurs. [...]E, assim, o
corpo do monstro é, ao mesmo tempo, corpóreo e incorpóreo; sua ameaça é sua
propensão a mudar. (COHEN, 2000, p. 28)
40
As teses aqui apresentadas estão desenvolvidas no artigo A cultura dos monstros:
sete teses de Jeffrey Jerome Cohen do livro Pedagogia dos Monstros: os prazeres e os perigos
da confusão de fronteiras organizado por Tomaz Tadeu da Silva.
264
O horizonte no qual os monstros moram pode muito bem ser imaginado como a
margem visível do próprio círculo hermenêutico: o monstruoso oferece uma fuga de
seu hermético caminho, um convite a explorar novos espirais, novos e
interconectados métodos de perceber o mundo. Diante do monstro, a análise
científica, e sua ordenada racionalidade se desintegram. O monstruoso é uma espécie
demasiadamente grande para ser encapsulada em qualquer sistema conceitual; a
própria existência do monstro constitui uma desaprovação da fronteira e do
fechamento; como os gigantes de Mandeville’s Travels, ele ameaça devorar, ‘cru e
sem tempero’, qualquer pensador que insista em outra coisa. [...]
O monstro é a diferença feita carne; ele mora no nosso meio. Em função como Outro
dialético ou suplemento que funciona como terceiro termo, o monstro é uma
incorporação do Fora, do Além – de todos aqueles loci que são retoricamente
colocados como distantes e distintos, mas que se originam no Dentro. (COHEN,
2000, p. 32)
O monstro resiste à sua captura nas redes epistemológicas do erudito, mas ele é algo
mais do que um aliado bakhtiniano do popular. A partir de sua posição nos limites
do conhecer, o monstro situa-se como uma advertência contra a exploração de seu
incerto território.[...] O monstro impede a mobilidade (intelectual, geográfica ou
sexual) delimitando os espaços sociais através dos quais os corpos privados podem
se movimentar. Dar um passo fora dessa geografia oficial significa arriscar sermos
atacados por alguma monstruosa patrulha de fronteira ou – o que é pior – tornar-mo-
nos, nós próprios, monstruosos. (COHEN , 2000, p. 41)
266
Para que possa normalizar e impor o monstro está continuamente ligado a práticas
proibidas. O monstro também atrai. As mesmas criaturas que aterrorizam e
interditam podem evocar fortes fantasias escapistas; a ligação da monstruosidade
com o proibido torna o monstro ainda mais atraente como uma fuga temporária da
imposição. Esse movimento simultâneo de repulsão e atração, situado no centro da
composição do monstro, explica, em grande parte, sua constante popularidade
cultural, explica o fato de que o monstro raramente pode ser contido em uma
dialética simples, binária (tese, antítese ... nenhuma síntese). (COHEN, 2000, p. 48)
Os monstros são nossos filhos. Eles podem ser expulsos para as mais distantes
margens da geografia e do discurso, escondidos nas margens do mundo e dos
proibidos recantos de nossa mente, mas eles sempre retornam. (COHEN, 2000, p.55)
Assim como todo monstro, toda pesquisa é uma criação humana. Essa
pesquisa não se encerra, sempre retornará. O ponto final pode ser escrito, mas
nunca mais lerei o “tornar-se ‘o’ professor” da mesma maneira com que o fazia
antes do início.
267
SOBRE FORMAÇÃO
A palavra formação é uma dessas
palavras caídas. Caídas e esquecidas.
A velha idéia de formação nos
parece agora irremediavelmente
anacrônica. Ademais, não podemos
agora nem sequer tomá-la em seu
antigo esplendor e em sua antiga
solidez. Primeiro, porque pensadores
como Nietzsche fizeram-na explodir
definitivamente. Mas, também
porque o próprio desenvolvimento
do bildungsroman foi cavando
implacavelmente tudo o que a
sustentava. Às misérias de nosso
presente só podemos lhe opor, agora,
uma idéia caída. Mas talvez,
enquanto caída, cheia de
possibilidades.
(LARROSA, 2004, p. 79)
A frase (‘como se chega a ser o que se é’ ou, ‘como se vem a ser o que se é’) aparece
pela primeira vez na obra de Nietzsche, em grego, no imperativo e em epígrafe, em
um trabalho juvenil sobre Teognis; é um dos lemas da terceira intempestiva; volta a
aparecer, com diferentes modulações, no parágrafo 263 de Humano, demasiado
humano, e nos parágrafos 270 e 335, de A Gaia Ciência; escreve outra vez,
novamente em O convalescente e em A oferenda de mel de Assim falou Zaratustra;
aparece, também, em algumas das cartas de Nietzsche a seus amigos; e,
naturalmente, como dobrando, ampliando e fazendo delirar o subtítulo de Ecce
Homo, escreve novamente no famoso parágrafo 9 de Por que sou tão inteligente. Se,
além disso, considerássemos o uso, o comentário, o deslocamento ou a paródia que
Nietzsche faz freqüentemente do que poderiam ser frases similares, como, por
exemplo, ‘encontra-se a si próprio’, ‘descobrir-se a si próprio’, ‘buscar-se a si
próprio’, ‘formar-se a si próprio’, ‘descobrir-se a si próprio’, ‘cultivar-se a si
próprio’, ‘fazer-se a si próprio’ ou, inclusive, ‘conhecer-se a si próprio’, a lista de
ocorrências seria logo interminável. (LARROSA, 2004, p.48)
No fundo, todo homem sabe muito bem que só está uma vez, enquanto exemplar
único sobre a terra, e que nenhuma casualidade, por singular que seja, reunirá
novamente, em uma única unidade, essa que ele mesmo é, um materia l tão
assombrosamente diverso. Sabe-o, porém, esconde, como se tratasse de um remorso
da consciência. (NIETZSCHE, 2000, apud LARROSA, 2004, p. 56)
... esse impulso vem geralmente de um viajante, de um Wanderer, cuja única função
é despertar no jovem a nostalgia do longínquo, a nítida sensação de que a vida está
em outra parte. O viajante vem de longe para interromper a comodidade do habitual
e do acostumado, para produzir a diferença entre o que se é (e agora está deixando
de ser, porque começou a ser estranho e insuportável, radicalmente alheio), e o que
se vem a ser. O viajante desfaz o que se é, separa o jovem protagonista de seu
mundo e de si mesmo, e o lança a um vir a ser, aberto e indefinido. [...] O viajante é
o mestre do negativo: não ensina nada, não convida a ser seguido, simplesmente dá a
distância e o horizonte, o ‘não’ e o impulso para se caminhar. (LARROSA, 2004,
p.60)
É possível que esta última insinuação não seja por enquanto compreendida. Porém, o
que agora me importa é algo muito compreensível, a saber, explicar como podemos
nos formar, todos nós, contra nossa época ... (NIETZSCHE, 2000 apud LARROSA,
2004, p. 62)
Se Zaratustra, como educador, atrai os peixes, não é para atar os homens a si mesmo,
para convidá-los a seguir-lhe, para convertê-los em discípulos, e tampouco para atá-
los a si mesmos, a qualquer identidade pessoal ‘mesmificante’, mas para elevá-los ao
máximo deles mesmos, ao que há em cada um deles, que é maior que eles e,
portanto, outra coisa que não eles. [...] O mestre puxa e eleva, até que cada um se
volte até si e vá além de si mesmo, até que cada um chegue a ser o que é.
(LARROSA, 2004, p. 74)
273
“Chegar a ser o que se é” pressupõe ser mais do que se é: eis uma das
lições de Nietzsche aos que se dedicam à formação.
O chegar a ser o que se é pressupõe o não suspeitar nem de longe o que se é. A partir
deste ponto de vista, têm seu sentido e valor próprio, inclusive, os desacertos da
vida, os caminhos momentâneos secundários e errados, os atrasos, as ‘modéstias’, a
seriedade dilapidada em tarefas situadas além da tarefa (NIETZSCHE, 1971 apud
LARROSA, 2004, p. 75)
exatamente por conta desse jogo que tem muitas faces que se chega à conclusão
de que não há uma análise, mas várias análises: há (im)possibilidades.
A (in)conclusão desse trabalho espelha também um quadro geral da
Educação: a possibilidade de educar-se, de formar-se, é um processo que não se
deixa apreender por um único registro.
Por outro lado, é certo que há núcleos de estabilidade (de modo a
“retermos” alguns conhecimentos para – em termos – “possuirmos” algo para
outras e futuras interlocuções). Mas isso – essa estabilidade – não importa (ou, se
importa, não é o foco, não é o mais importante): importa é o momento da
interlocução, o momento em que as idéias vêm à cena, o momento em que –
neste trabalho – os depoentes narram-se ao narrar suas vidas e analisam os
processos segundo os quais eles se tornaram (e vão se tornando) o que são.
Esse trabalho é visceralmente inconclusivo pois eu, seu autor, sou
também um ser inconcluso: nesse processo de buscar como os depoentes se
transformam no que são, exponho-me como eu me transformo no pesquisador
que sou.
Mas o que fica de tudo isso? Os rastros. Rastros de memória,
registrados nos depoimentos que procurei prender numa trama “teórica” que
sempre se manifesta impotente, inconclusiva, interminável ...
275
REFERÊNCIAS
ALBERTI, V. Ouvir Contar: textos em história oral. 1. ed. Rio de Janeiro: 2004.
ARIÈS, P. Uma Nova Educação do Olhar. Trad. Carlos da Veiga Ferreira. In: História
e Nova História. 3. ed. Ed. Brasiliense, 1980.
_______. Uma Nova Educação do Olhar. Trad. Carlos da Veiga Ferreira. In: ARIÈS, P.;
DUBY, G.; LE GOFF, J. Lisboa: Editorial Teorema, 1990. pp. 24-35.
_______. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. Campinas, SP.
Papirus, 1996.
_______. O Poder Simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro. Bertrand
Brasil, 2003.
_______. Atos de Significação. Trad. Sandra Costa. Porto Alegre, Artes Médicas,
1997b.
ELIAS, N. O Processo Civilizador: uma História dos costumes. Trad. Ruy Jungmann.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994a.
_______. A Sociedade dos Indivíduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1994b.
_______. Mozart: a sociologia de um gênio. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
_______. Sobre o Tempo. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
FERREIRA, M. M., AMADO, J. (coord.). Usos e abusos da história oral. 1. ed. Rio
de Janeiro. Editora da Fundação Getulio Vargas. 1996.
_______. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. 9ª ed. Trad. Maria Thereza da
Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
_______. Vigiar e Punir. 26. ed. Trad. Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes: 1987.
277
GEERTZ, C. O Saber Local. 6. ed. Trad. Vera Mello. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
JOUTARD, P. Esas voces que nos llegan del pasado. Trad. Pasternac, N. 2. ed. Fondo
de Cultura Económica, 1999.
LANDO, J. O ensino de Matemática em Sinop nos anos de 1973 a 1979: uma história
oral temática. Universidade Estadual de Mato Grosso, Faculdade de Ciências Exatas,
Sinop. 2002. Monografia de Especialização.
LARROSA, J. Nietzsche & a Educação. Trad. Semíramis Gorini da Veiga. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2004.
_______. Manual de história oral. 3. ed. São Paulo, Edições Loyola, 2000.
_______. Manual de história oral. 4. ed. São Paulo. Edições Loyola. 2002.
SILVA, T.T. Monstros, ciborgues e clones: os fantasmas da Pedagogia Crítica. In: Silva
(org.). Pedagogia dos monstros – os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras.
Belo Horizonte/MG: Autêntica Editora, 2000.
TEIXEIRA, A.M.R. A sinfonia dos números: Maria Fialho Crusius – uma vida
dedicada à Educação Matemática na UPF. Faculdade de Educação. Universidade de
Passo Fundo, 2000. Dissertação de Mestrado.
THOMPSON, P. A voz do passado – História Oral. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra,
1998.
POST SCRIPTUM
281
Esse distanciamento não seria possível não fosse a boa vontade de seu
ex-orientando, meu ex-orientador e atual colega, Carlos Roberto Vianna, que me
apresentou Jerome Bruner, autor com quem me identifiquei e ancorou novas
perspectivas.
Finalmente, agradeço ao meu orientador, prof. Antonio Vicente
Marafioti Garnica, por ter desestabilizado minhas primeiras certezas, pela rapidez
com que sempre me auxiliou e, sobretudo, pela liberdade responsável com que
orientou esse trabalho, permitindo um “fazer pesquisa” próprio, tão caro a quem
almeja a carreira acadêmica.
284
ANEXOS
285
APRESENTAÇÃO
História Oral.
entrevistado.
Emerson, Carlos
Quando propus um "arremate" era mesmo um arremate à tese como um todo, pois
não acho possível arrematar as análises, já que cada uma se configura numa forma distinta
das demais. "Fechamento" ou "arremate", como propus, seria um texto que retomasse, de
forma sintética, todo o percurso do trabalho (inclusive as análises): algo bem próximo do que
ainda está pouco configurada, pois a Adaildes aparece pouco em meio aos poemas. Acho que,
nesse ponto, as interconexões (entre literatura e depoimento) devem ficar mais explícitas.
Há um tempo atrás sugeri que o Emerson lesse o Ecce Homo, cujo subtítulo é
"como alguém se transforma no que é" (ou algo assim... estou sem o texto aqui e cito de
lembrança). Não digo que o final deva ser nietzscheano... nada disso. Mas acho que há,
naquele texto, uma possibilidade muito boa de alinhavo. Recentemente, lendo o "Nietzsche e a
Educação" (do Larrosa, publicado pela Autêntica) essa minha percepção ficou mais clara para
mim.
Veja só: falar de "transformar-se no que é", ou "tornar-se algo", obviamente tem a
ver com formação. Um dos textos do livrinho do Larrosa deixa isso bem claro quando aproxima
a frase "tornar-se o que se é" (que é do Píndaro, mas aparece várias vezes na obra do
Nietzsche) ao termo alemão BILDUNG (formação) que é próximo ao PAIDEIA grego. Ora,
"tornar-se o que se é" é, ao fim e ao cabo, formar-se. No caso, formar-se como professor de
são mas que é impossível encontrar um instrumental "teórico" que dê conta desse processo de
formação (é por isso que várias tentativas são feitas, e a cada uma, uma nova (im)possibilidade
se manifesta).
287
educação ocorre e pode ser fotografado sob vários ângulos, mas nunca registrado em sua
totalidade, pois é dinâmico, é fluido, é um terreno movediço... Procurar pelo "como algo se
transforma no que é" (um esforço que Nietzsche faz com si próprio em Ecce Homo) exige
estranhamento (que é o que você faz em todo o trabalho, testando limites - os seus e os das
teorias que são chamadas à cena como possibilidade de fundamentar sua(s) análise(s) ). A
"fórmula sociológica", por exemplo, não dá conta do recado pois "tornar-se o que se é" exige
não se transforma apenas nesse processo subjetivo, e portanto, deve-se procurar (agora com o
auxílio da Sociologia, por exemplo) como ele se configura como "o que é", em meio aos outros
com os quais convive. É exatamente por conta desse jogo que tem muitas faces que se chega
à conclusão de que não há UMA análise, mas várias análises. É a necessidade do que o
ficar mais claro no arremate (se é que essas minhas idéias fazem sentido para vocês). Mas
também a arte, como propõe o Miguel (sugerindo o Ludwig), é uma dentre essas
possibilidades, e sozinha não dá conta do seu problema (você tenta essa abordagem, mais
Mas você chega a algo mais: você chega, a partir das tentativas de análise a esses
E note que isso está em perfeita sincronia com o Modelo Teórico dos Campos
Semânticos que você usa em algumas partes do trabalho. O conhecimento, no MTCS, não tem
termos - "possuirmos" algo para outras e futuras interlocuções). Mas isso - essa estabilidade -
não importa (ou, se importam, não são o foco, não são o mais importante): importa é o
seu caso - os depoentes se narram ao narrar suas vidas e analisam os processos segundo os
É isso que eu acho essencial: ressaltar e explicitar esse meio fluido do seu trabalho,
que não é uma mera inconclusão, é uma inconclusão visceral, pois esse processo nunca será
concluído. E mais, é nesse processo de buscar como os depoentes se transformam no que são
(ou no que estão se tornando a todo momento) que você, Emerson, como pesquisador,
também vai se formando e se transformando no que é. E o que fica disso tudo? Os rastros.
Rastros de memória registrados nos depoimentos que o pesquisador tenta prender numa trama
Acho que para "fechar" o seu trabalho você deveria reservar um momentinho para
ler o livro do Nietzsche e o do Larrosa (os que eu cito acima) e incorporar essas idéias, se as
achar pertinentes. Vou mandar para você o xerox da introdução do "Verdade e Método" do
Gadamer (e se você decidir citá-lo, cite apenas essa introdução, que serve para "dar liga" a
fechamento, nossa opção em manter o relatório do trabalho (a tese propriamente dita, o texto
da tese) seguindo os momentos do modo mais próximo possível ao como e quando eles
aconteceram. Acho que esse é um outro mérito do seu trabalho, mas um mérito que ainda está
Fico aguardando os comentários de vocês para saber o que acham disso tudo. E,
mais um favor: confirmem o recebimento dessa mensagem pois meu servidor tem me dado
problemas (e também não reconheço esse endereço do Carlos... só dei reply na mensagem do
Vicente