Monografia - Capítulo 2

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CAPÍTULO 2

NOVAS PRÁTICAS E INSTRUMENTOS DE CONTROLE: ORDEM VERSUS


ESTRATÉGIA NA COMISSÃO DE SOCORROS (1878)

No capítulo anterior, analisando a Comissão de Socorros Públicos do Aracati,


percebemos que suas funções primordiais não foram de todo atendidas pelos seus membros,
sendo que, ao lado das práticas de contenção e controle da massa retirante por meio da medida
assistencialista de distribuição de socorros, outros interesses tomaram corpo e influenciaram a
condução das práticas da comissão.

Neste capítulo, analisaremos um momento de reiteração por parte do governo


provincial, coincidentemente ao ano de 1878, em dotar novamente a Comissão de Socorros do
Aracati de seu caráter puramente reprodutor da ordem estabelecida. Tal ano iria caracterizar-
se por uma relação conflituosa entre os comissários “de fora”1 encarregados da Comissão de
Socorros e os indivíduos do grupo mais abastado do Aracati, em especial os comerciantes,
além é claro do contato turbulento com a grande massa de famintos alojada no espaço urbano.

2.1. O duplo controle: racionalizar a comissão e racionalizar a cidade

Uma circular expedida no mesmo dia revogou a anterior, e ficou absolutamente


proibido despender dinheiro público sem prévia autorização da presidência. Os
comissários, vendo no ato do presidente clara manifestação de desconfiança,
trataram alguns de demitirem-se e outros de reagir, levando a comissão do Aracati a
sua ousadia a ponto de fazer despesas negadas pelo presidente, o que lhe valeu
imediata demissão.2

1
Termo utilizado pelo autor para designar os comissários de Fortaleza que foram enviados ao Aracati, naquele
ano de 1878: o Sr. Quintino Augusto Pamplona e o Sr. Luiz Carlos da Silva Peixoto. O termo assemelha-se à
forma como os membros da elite aracatiense se referiam aos comissários, como por exemplo, o comerciante
Antonio Francisco Pinheiro, que referindo-se à esta medida do Governo Provincial, que segundo ele, desdenhava
dos cidadãos aracatienses, colocando em mãos de pessoas estranhas à cidade a responsabilidade de gerir a
comissão de socorros, dava a denominação a eles de “comissário de nomeação do ex-presidente Aguiar”. In:
Ofício do comerciante do Aracati, Antonio Francisco Pinheiro, ao presidente da província, Dr. José Júlio de
Albuquerque Barros, em 25 de junho de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
2
Gazeta de Notícias, 23.07.1878. Apud. CÂMARA, José Aurélio Saraiva. Fatos e documentos do Ceará
Provincial. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1970. p. 149.
73

A serviço do jornal Gazeta de Notícias3 do Rio de Janeiro, na cobertura dos


efeitos da seca do Ceará e o que esta poderia influir sobre os interesses da corte imperial, José
do Patrocínio noticiou de forma breve a “ousadia” dos membros da Comissão de Socorros do
Aracati. Dos que haviam pedido demissão antes de o serem pelo presidente e conselheiro João
José Ferreira d’Aguiar, estava o capitão Coriolano Francisco Ramos, companheiro do suíço
Brummischveiler, e o promotor público Francisco Fernandes Vieira. O suíço seria demitido
com os demais quando da chegada do comissário “de fora”, Quintino Augusto Pamplona.

Com que lhe era possível agir, o conselheiro Aguiar empreendeu novas formas de
controlar o que parecia estar fugindo do domínio do governo provincial. A “ousadia” dos
membros da Comissão do Aracati era um dentre vários outros itens sobre os quais o
presidente da província necessitava intervir, para não ver interesses outros determinarem os
destinos da distribuição de socorros, e o que seria pior, ver a grande massa retirante
desassistida por um modelo de contenção que não se efetivasse, o que possivelmente lhe
alteraria os ânimos. Segundo o próprio conselheiro Aguiar, não lhe era possível empreender
uma reformulação no modelo de distribuição de socorros, como afirmou em seu relatório de
fevereiro daquele ano de 1878:

N’estas circunstancias, não sendo-me possível, no meio do trabalho activo o


incessante que a situação de mim reclamava, organisar de prompto um novo systema
para melhor prover a distribuição de soccorros e satisfazer a todas as exigências da
crise, aceitei o existente, na intenção de ir prudentemente adoptando as alterações e
melhoramentos que me fossem suggeridos pela experiência. 4

O presidente Aguiar, possivelmente por culpa da inédita afluência de retirantes no


final de 1877, não conseguiu repensar a forma como os socorros seriam distribuídos, e como
lembra Cândido (2005, p. 51), “não reivindicou ao governo imperial meios de trabalho para os
retirantes, restringindo suas medidas de socorro público basicamente a providências que
garantissem a segurança alimentar dos flagelados e a manutenção da ordem”. O uso do
trabalho não foi uma medida intensamente promovida, unindo ordem com a educação da
mão-de-obra retirante, no curto período da gestão do Presidente Aguiar. O racionamento e a
economia foram os meios vistos por ele como necessários naquele momento para não permitir

3
Periódico publicado no Rio de Janeiro, que circulou a partir de agosto de 1875, tendo sido fundado por Manuel
Carneiro, Ferreira de Araújo e Elísio Mendes. Sendo um jornal anti-monarquista e abolicionista, teve como
colaborador o também abolicionista José do Patrocínio (sob o pseudônimo “Prudhome”).
4
Relatório com que o Ex.mo Sr. Conselheiro João José Ferreira D’Aguiar passou a administração da Província do
Ceará ao Ex.mo Sr. Dr. Paulino Nogueira Borges da Fonseca, 3º vice-presidente da mesma província em o dia
22.02.1877. Fortaleza: Typografia Brasileira, 1878. p. 10.
74

a bancarrota do Tesouro Provincial. O mesmo Presidente, em seu relatório, assume que tais
medidas restringiram o envio de gêneros para o interior: “As comarcas do alto sertão e todas
quantas, por mais centrais, não teem podido ser auxiliadas com generos, enviados por mar,
hão de ter naturalmente soffrido maiores privações do que as outras”5. Os retirantes abrigados
nas localidades interioranas não suportaram a espera, que por muitas vezes não era agraciada
com a chegada de gêneros, e muitos que já haviam se deslocado de regiões mais longínquas,
novamente peregrinavam na direção dos centros litorâneos. Ao contrário do seu antecessor,
que tinha visto sucesso na forma como os socorros eram distribuídos, o Presidente Aguiar
externou de forma oficial seu desacordo com o modelo de assistência à multidão retirante:

Estou persuadido de que a distribuição de soccorros em toda a província por um tão


grande numero de commissões, a centenas de milhares de necessitados não tem sido
feita com a justiça e regularidade que seriam para desejar; pois, mesmo n’esta
Capital, onde existem mais amplos recursos e pessoal mais habilitado,
constantemente se elevam queixas e reclamações, embora nem sempre fundadas
[...]6

O Presidente Aguiar deu-se por conta que no estado atual em que se encontrava a
Província, a manutenção das comissões de socorros ainda era a forma possível de contenção
da massa retirante. Contudo, novas medidas foram adotadas por ele para reforçar o controle
sobre os flagelados, e no caso aracatiense, tais medidas incluíam também evitar que os
membros aracatienses da Comissão de Socorros dela fizessem uso para seus fins particulares,
ameaçando o objetivo primordial pelo qual a Comissão fora formada.

Demitindo todos os membros da Comissão de Socorros do Aracati, o presidente


Aguiar enviou o ex-comissário de compras e transporte por terra da Capital, Quintino
Augusto Pamplona. Antes responsável por negociar com a praça comercial da capital,
promovendo leilões de compras de gêneros e roupas7, o comissário Pamplona chegou ao

5
Relatório com que o Ex.mo Sr. Conselheiro João José Ferreira D’Aguiar passou a administração da Província do
Ceará ao Ex.mo Sr. Dr. Paulino Nogueira Borges da Fonseca, 3º vice-presidente da mesma província em o dia
22.02.1877. Fortaleza: Typografia Brasileira, 1878. p. 10.
6
Idem.
7
O jornal O Cearense, durante todo o ano de 1877, traz diversos Editais de reuniões da Junta de Compras da
Capital, presididas pelo comissário Pamplona, convocando os fornecedores a oferecerem seus produtos. Como
este, do dia 28 de outubro de 1877: “Edital. Comissão de compras e transportes por terra.
Fornecimento de roupa para emigrantes indigentes.
De ordem do Ilmo. Sr. Dezembargador Presidente da província, annuncio que no dia 31 do corrente mez, a 1
hora da tarde perante esta commissão, terá logar a arrematação de fornecimento de peças de roupa feita de
algodãozinho, camiza e calsa, para ser destribuida aos emigranes indigentes.
Os pretendentes deverão apresentar suas propostas em cartas fechadas, acompanhada das amostras de ditas
fazenda, e preço de cada peça. Quintino Augusto Pamplona. Comissário de Compras”. In: O Cearense. Anno
XXXI. N. 91. Edital. 28.10.1877. p. 4.
75

Aracati no dia 23 de janeiro de 1878, incumbido de promover a racionalização da distribuição


de socorros na cidade. Percebe-se pela atitude do presidente Aguiar em enviar um comissário
da Capital, que ele não visualizava nos membros locais da Comissão a possibilidade de
empreender de forma racionalizada a distribuição de gêneros na cidade do Aracati, ou seja, os
interesses do governo provincial não seriam reproduzidos por tais membros. O comissário
Pamplona seria, portanto, o homem de confiança do presidente Aguiar, aquele que poderia
executar de forma insuspeita o que o governo provincial desejava.

Chegado ao Aracati, o comissário Pamplona informou ao presidente Aguiar que


encontrara tudo “na maior desordem possivel”8. Nos armazéns não havia gêneros suficientes,
havendo apenas 600 sacas de farinha para serem distribuídas a quase 50 mil retirantes. O
obituário da cidade alcançava o número de 100 pessoas mortas a cada dia, havendo apenas um
médico e “um curioso homeopatha”9 para atender a todos os doentes, e apenas um hospital
improvisado. Oito dias depois, o número de retirantes estimado pelo comissário Pamplona
chegava a 70 mil10. A situação de caos era como ele pôde definir o Aracati naquele início de
1878:

Confesso a V. Excia. que nunca esperei encontrar tanto trabalho, cercado sempre de
tanto foro, que me rouba totalmente o tempo. Um outro, a não ser eu, obediente
como sou as ordens do meo superior, teria abandonado esta missão, qualquer que
fosse o resultado.11

As correspondências enviadas pelo comissário Pamplona sugerem que algo mais


devia ser empreendido pelo governo provincial, e que a sua simples contribuição não lograria
êxito, se outras formas de controle, tanto da massa retirante quanto da distribuição de
socorros, assim como do estado de higiene da cidade, não fossem realizadas. Os retirantes,
que já no final de 1877 vinham sendo representados pela elite aracatiense como um perigo à
ordem, agora representavam também uma ameaça à saúde pública.

8
Ofício no 1 do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao Presidente João
José Ferreira d’Aguiar, em 31 de janeiro de 1878 In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
9
Idem.
10
Ofício no 3 do Comissário de Socorros Públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao Presidente João
José Ferreira d’Aguiar, em 7 de fevereiro de 1878 In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
11
Idem.
76

Foi, portanto, que a partir de então, uma série de novas atitudes foram propostas e
colocadas em prática no sentido de controlar a Comissão de Socorros e a cidade do Aracati.
Estas práticas não seriam levadas adiante somente pelo comissário Pamplona, sob a direção
do presidente Aguiar, mas se estenderia por todo o ano de 1878, principalmente nos primeiros
seis meses daquele ano, quando a comissão do Aracati foi presidida por comissários de
Fortaleza.

Tanto o governo do presidente Aguiar como a estadia do comissário Pamplona


não se estenderam por muito tempo. O presidente Aguiar passaria o cargo para as mãos do 3o
vice-presidente Dr. Paulino Nogueira Borges da Fonseca, em 22 de fevereiro, e este
permaneceria como chefe do Executivo até o dia 4 de março, quando assumiu o 1 o vice-
presidente, Dr. Antonio Pinto Nogueira Accioly, apenas de forma interina, para que assumisse
o liberal Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, que nomeado desde o dia 9 de fevereiro
daquele ano, assumiu a presidência da Província no dia 8 de março. Já o comissário
Pamplona, assumindo o presidente José Júlio, foi substituído por outro comissário da Capital:
desta vez o funcionário da Tesouraria da Fazenda Luiz Carlos da Silva Peixoto.

Ainda que mudando o Presidente Provincial e o comissário “de fora” da Comissão


de Socorros do Aracati, vemos de forma crescente o emprego de diversas soluções pensadas
pelas autoridades públicas no sentido de limpar o Aracati, promover a ordem e economizar na
distribuição de gêneros, desonerando os cofres da Tesouraria da Fazenda.

Das várias medidas de controle e limpeza urbana, assim como de organização do


espaço urbano, afastando a presença retirante, destacaremos as que consideramos principais
no expediente da Comissão de Socorros do Aracati, no período que vai do mês de janeiro a
julho de 1878, quando percebemos uma reformulação do órgão distribuidor de gêneros.

A primeira delas foi a “reemigração”12. Mesmo antes de demitir a Comissão, o


presidente Aguiar, atendendo ao reclame coletivo da elite aracatiense – citado no capítulo
anterior – de promover a saída dos retirantes por meio do envio destes para outras províncias,
solicita à Comissão, no final de dezembro de 1877, providenciar um levantamento dos nomes

12
Termo encontrado por diversas vezes na documentação oficial trocada entre a comissão de socorros e o
governo provincial, e que foi por demais utilizado naquele ano de 1878. Consistia em fazer “emigrar novamente”
os retirantes, embarcando-os em navios e “hiates” com destino a outras províncias. No caso de órfãos, a
comissão de socorros foi orientada a enviá-los para a capital, Fortaleza.
77

de pessoas interessadas em sair da Província13. No dia 06 de janeiro de 1877, a Comissão de


Socorros promoveu o primeiro embarque de retirantes, sendo em número de 753, no vapor de
nome “Ipojucá” que se dirigia ao Pernambuco14. Quanto a esse primeiro procedimento de
“reemigração”, os membros da Comissão comunicaram que o embarque se deu sem grandes
transtornos, com a exceção de um incidente envolvendo 35 retirantes que estavam em uma
balsa que encalhou no trajeto entre a praia e a embarcação, sendo que os mesmos rejeitaram
continuar a viagem, voltando para a cidade. Mesmo tendo buscado convencê-los de esperar o
vapor seguinte, que sairia na noite do mesmo dia, os membros da Comissão não puderam
evitar que tais retirantes fugissem para não embarcarem. Ainda no mesmo dia 6 de janeiro, a
Comissão informava em outra correspondência o arrolamento de mais 5 mil nomes de
retirantes que desejavam “emigrar para o Norte e Sul do Império, sendo a maior afluencia
para o Sul”15.

Apesar da “reemigração” ser uma prática anterior a março de 1878, a chegada do


comissário Luiz Carlos da Silva Peixoto ao Aracati deu a este procedimento uma escala até
então impensável. Para este comissário, “reemigrar” o retirante era a única forma de chegar ao
objetivo proposto pelo governo provincial, no sentido de economizar na distribuição de
socorros, promover a higiene pública e diminuir a mortandade:

E já que nos falta os meios providenciais de salvação, o que fazer? Lançar-se mao da
medida suprema, a única que pode nos salvar, - a re-emigração voluntária ou
forçada, já e já, sem delonga nem procastinação, - sob pena de assistirmos a
hecatombe de um povo inteiro.
A re-emigração é ao meo ver o remedio poderoso e efficasmente útil para tão grande
mal, e ainda mesmo que haja dinheiro, que nos subministre o alimento, acho-a
conveniente por motivos bem ponderosos
........
A nossa situação é um dilemma bem acentuado: ou a re-emigração ou a morte.16

O governo atenderia aos reclamos do comissário Peixoto, enviando navios e


embarcações que rotineiramente arrancavam do Aracati centenas e centenas de famintos e

13
Ofício no 6600, de 27 de dezembro de 1877, do presidente da Província, Conselheiro João José Ferreira
d’Aguiar, à comissão de socorros do Aracati. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de
Socorros. Data: 1877. Cx. 22. Livro: 202
14
Ofício da Comissão de Socorros Públicos do Aracati ao presidente da Província, conselheiro João José
Ferreira d’Aguiar, em 6 de janeiro de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
15
Ofício da Comissão de Socorros Públicos do Aracati ao presidente da Província, conselheiro João José
Ferreira d’Aguiar, em 6 de janeiro de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
16
Idem.
78

ainda esperançosos retirantes. Alguns, de tão esperançosos, sequer aceitavam sair da terra
natal, e quando algumas chuvas esparsas caíram nas Proximidades do Aracati, de imediato
tomavam o caminho de volta para suas terras17. Contudo, persistindo a seca, a enorme maioria
tomaria de forma voluntária o caminho para fora da Província cearense. Entretanto, nem todos
o faziam de vontade própria, e dos 8.114 (THEÓPHILO, 1922, p. 255) retirantes que o
comissário Peixoto “reemigrou” nos meses de março a junho de 1878, boa parte tenha saído
forçadamente. Um dos engenheiros enviados ao Aracati para organizar a construção de obras
públicas, Ernesto Antônio Lassance Cunha, pôde relatar sobre a “reemigração” forçada, no
trecho a seguir:

Embarca quem não quizer morrer de fome, porque os socorros vão se acabar. Era o
grito que se ouvira em Fortaleza e em Aracati. O povo aterrado com tal presagio
afluía para os portos de embarque e aí tomava as jangadas que o conduziam para os
navios do Lloid. A mais completa desordem presidia ao serviço de embarque. Em
primeiro lugar o retirante ignorava qual era seu destino, se para o norte ou para o sul,
o que pouco o preocupava por não ter moral em estado de deliberar. Na afazama do
embarque ocorriam as cenas mais contristadoras. Mulheres separadas dos maridos.
Mães, de filhas impúberes. Secções de famílias embarcadas para o norte, outras para
o sul. Os gritos e reclamações dos que se viam em tal contingência não eram
ouvidos; era preciso a todo transe encher o paquete com lotação superior a que podia
comportar. Isso não prejudicava.18

No dia 21 de janeiro de 1878, o Presidente da Província enviou ao Aracati os


engenheiros Ernesto Lassance Cunha, já citado aqui, e Henrique Flogari, para liderarem a
organização das obras públicas, principalmente a de contenção da cheias do Jaguaribe e a
construção de uma ponte sobre o mesmo rio, utilizando-se da mão-de-obra retirante19. Quanto
ao serviço médico, até então, o Aracati só dispunha dos serviços de um único esculápio, o Dr.
Domingo José Pereira Pacheco. Médico funcionário da Câmara Municipal, o Dr. Pacheco
recebia o auxilio de um enfermeiro, e de outros funcionários da Comissão de Socorros, que
recebiam gratificações por prestarem serviços à Comissão. Quando do clamor feito pelo então
comissário Pamplona, em fevereiro de 1878, o presidente Aguiar enviou ao Aracati uma

17
Ofício da Comissão de Socorros Públicos do Aracati ao presidente da Província, conselheiro João José
Ferreira d’Aguiar, em 14 de janeiro de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
18
Correio do Povo (Porto Alegre). 1900. Apud. ALVES, Joaquim. História das secas (séculos XVII a XIX). 2.
ed. Coleção Mossoroense. Vol. CCXXV. Mossoró: Fundação Guimarães Duque, 1982. p. 233.
19
Ofício no 462, de 21 de janeiro de 1878 ,do presidente da Província, conselheiro João José Ferreira d’Aguiar, à
comissão de socorros do Aracati. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data:
1877. Cx. 33. Livro: 228.
79

comissão médica chefiada pelo Dr. Meton de Alencar20, tendo recebido instrução para
colaborar com a Comissão de Socorros no sentido de promover o ordenamento das barracas já
construídas pelos retirantes, que chegavam ao número de três mil.

Para a comissão médica enviada, a salubridade urbana e as obras públicas


estruturais foram medidas que, pensadas em conjunto, satisfariam a necessidade de
diminuição do risco de epidemias, ordenando o aglomerado de flagelados e empregando os
retirantes, disciplinando-os ao ponto de não mais serem considerados um perigo para a ordem
pública. A medicina social, ramo da ciência médica que naquele século XIX preocupava-se
com as aglomerações de pessoas e sua relação com surgimento de doenças e que servia de
apoio científico para medidas controladoras empreendidas pelos poderes públicos, orientando
sobre a modificação de elementos materiais que seriam suscetíveis de favorecer ou prejudicar
a saúde (FOUCAULT, 1979, p. 93), foi neste momento, uma força de apoio à reação do
governo provincial no sentido determinar novamente os procedimentos da Comissão de
Socorros.

A comissão do Dr. Meton de Alencar promoveu a transferência dos retirantes, dos


quais muitos haviam erigido barracas nas ruas da cidade, levando-os para além do rio
Jaguaribe, transferência esta que seria concluída em abril21. O médico da Capital também
orientou a construção de um novo cemitério, alegando que o cemitério a cargo do reverendo
João Francisco de Sá já não tinha condições higiênicas de receber cadáveres. Os engenheiros
Lassance Cunha e Henrique Flogare coordenaram a construção de uma ponte sobre o
Jaguaribe, a qual permitiria o acesso às barracas dos retirantes, e também aterros no entorno
da cidade, tendo em vista a contenção das cheias do rio. O Dr. Meton permaneceu no Aracati
até início de março. Saindo o Dr. Meton, assumiu o Dr. Antonio Manoel da Costa Barros
como médico encarregado de tratar dos indigentes22.

20
Ofício no 601, de 29 de janeiro de 1878 ,do presidente da Província, conselheiro João José Ferreira d’Aguiar, à
comissão de socorros do Aracati. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data:
1877. Cx. 33. Livro: 228.
21
Ofício da Comissão de Socorros Públicos do Aracati ao presidente da Província, Dr. José Júlio de
Albuquerque Barros, em 21 de abril de 1878. In.: APEC - Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
22
Ofícios do médico encarregado do tratamento dos indigentes do Aracati, Dr. Antonio Manoel da Costa Barros,
ao presidente da Província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 13 e 19 de março 1878. In: APEC. Fundo:
Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
80

Nota-se portanto, que a presença retirante, como já observado também em


Fortaleza e em outros locais do Norte afetado pela grande seca, fez surgir representações e
práticas que propunham o afastamento da multidão faminta para o mais distante possível dos
centros urbanos23. A influência da medicina, segundo Costa (2004), seria determinante para a
concretização destas medidas e para a legitimação de práticas que incluíam o desconforto e o
horror em relação à multidão faminta, buscando-se evitá-la, dispersá-la, transportá-la para
outro lugar.

Como complemento a estas medidas, o presidente Aguiar ainda destacou e


enviou, em fevereiro, dez praças para que pudessem reforçar a segurança pública do Aracati24.
Reforçadas as bases de sustentação das medidas de controle centrais que a Comissão de
Socorros deveria empreender, os comissários “de fora”, primeiro Quintino Augusto Pamplona
(de janeiro a março) e depois Luiz Carlos da Silva Peixoto (de março a junho), puderam
promover a política de racionalização e economia dos recursos destinados aos socorros
públicos.

O comissário Pamplona, havendo detectado “grande esbanjamento”25 nos


procedimentos de distribuição de gêneros da comissão demitida, tratou de reduzir as
quantidades de rações que eram distribuídas aos retirantes nas pagadorias existentes na cidade
do Aracati, assim como nas localidades adjacentes. Para isto, baniu a distribuição por meio de
duplicatas, quando estas eram portadas por pessoas que não trabalhavam em obras públicas.
As duplicatas consistiam de recibos que os retirantes empregados em obras públicas recebiam
de seus encarregados como uma garantia para retirar determinada quantidade de ração
semanalmente. Em muitos momentos, outras pessoas, que em muitas vezes eram as esposas
ou os filhos de trabalhadores das obras públicas, tomavam o lugar do homem para retirar a
ração. As distribuições para não-trabalhadores, que aconteciam em locais específicos, se
davam semanalmente, e eram acompanhadas por praças que garantiam a ordem da
distribuição. Desta forma entendia o comissário Pamplona ser possível conter um movimento

23
Sobre as representações construídas sobre os retirantes, Cf. FERREIRA, A.; DANTAS, G.F. Os “indesejáveis”
na cidade: as representações do retirante da seca (Natal, 1890-1930), Scripta Nova: Revista Electrónica de
Geografia y Ciencias Sociales. No 94 (96), Ago/2001. Disponível em: http://www.ub.es/geocrit/sn-94-96.htm.
24
Ofício no 946, de 5 de fevereiro de 1878 ,do presidente da província, conselheiro João José Ferreira d’Aguiar,
à comissão de socorros do Aracati. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros.
Data: 1877. Cx. 33. Livro: 228.
25
Ofício de no 3 da Comissão de Socorros Públicos do Aracati ao presidente da província, Conselheiro João José
Ferreira d’Aguiar, em 7 de fevereiro 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
81

de concessão abusiva de duplicatas, sendo que ele recebera informações de que determinadas
pessoas recebiam duas ou mais vezes a ração semanal.

Junto com uma equipe de pessoas, formada para promover o transporte dos
gêneros, armazenagem e a distribuição, o comissário Pamplona também organizou uma Junta
de Compras, pela qual cotava os preços dos comerciantes locais, objetivando reduzir o custo
nas compras feitas à praça aracatiense. A compra realizada a comerciantes locais ainda se
configurava como uma medida necessária, visto que o envio de gêneros da capital ainda era
inconstante e, às vezes, incerto. Portanto, como se verá não apenas neste ano de 1878, mas
também no de 1879, a compra feita aos comerciantes locais continuou a compor o expediente
da Comissão de Socorros.

No período em que os comissários “de fora” fizeram parte da Comissão do


Aracati, até metade do ano de 1878, notamos a insistente tentativa por parte deles em fazer
com que a Comissão de Socorros do Aracati não só promovesse o que lhe era primordial,
ocupar a massa retirante e distribuir-lhes os socorros, mas também desempenhasse a função
de promover as medidas de ordenamento e limpeza urbana, manutenção da salubridade e
higiene, além de economizar o dinheiro público, por meio da contenção da distribuição de
socorros. Para tanto, o uso da “reemigração”, compras somente por meio de cotação de
valores na praça aracatiense, suspensão de determinadas modalidades de socorros públicos
(pagamento por duplicatas a terceiros) e remoção dos retirantes remanescentes para fora do
espaço urbano, foram medidas de reiteração do controle governamental sobre os rumos da
estrutura social aracatiense, que interesses diversos tinham ameaçado perverter.

Entretanto, conforme já abordado no capítulo primeiro, a imposição dos interesses


do governo provincial não se deram sem negociação, sem conflito com aqueles que
interessava determinar seu domínio.

Por um lado, percebemos, em meio à documentação oficial da Comissão de


Socorros, que a presença retirante era ameaçadora não somente no que diz respeito ao seu
elevado número, mas também do ponto de vista da negociação. Já destacamos como a elite
aracatiense incomodava-se com a presença retirante, mas vale ainda pontuar que em alguns
momentos os próprios retirantes expressavam sua insatisfação de estar na cidade. Já nos
referimos à primeira leva de retirantes “reemigrados”, em janeiro de 1878, dos quais um
82

grupo recusou-se a partir para o Pernambuco. Na verdade, percebe-se da parte do retirante,


quando representado na documentação, de que o que ele desejava realmente era retornar para
seu lugar de origem. Em uma correspondência do presidente da Câmara Municipal,
Guilherme Pereira de Azevedo, ele solicitou ao presidente provincial uma quantidade de
sementes, a fim de serem distribuídas entre os retirantes, “que o exigem para poderem voltar
aos seos lares”26. Vemos aqui uma condição que os retirantes negociavam com a Câmara, que
sendo atendida o fariam retornar aos seus lugares de origem,visto que no início do ano de
1878, tendo caído algumas chuvas, a esperança de quadra invernosa voltara. Ao menor indício
de chuva, os retirantes expressavam seu desejo em também não estar no espaço urbano
aracatiense.

No início de janeiro, a Comissão informou que havia arrolado 5 mil nomes para a
“reemigração”. No dia 14 de janeiro, seriam embarcadas 172 pessoas da relação levantada.
No momento do embarque, 12 dos 172 retirantes desistiram de embarcar. A Comissão
informou como possível razão para esta desistência o fato de que um bom número de pessoas
não teria se apresentado, esperançosas de boas chuvas. Segundo a Comissão “a esperança de
voltarem a seos lares alimentadas com as chuvas que aqui cahirão dos dias 3 a 8 do corrente
mez foi bastante para fazel-as mudar de resolução”27. Ou seja, os retirantes, apesar dos
esforços da Comissão em determinar onde e aonde eles deveriam estar e ir, tinham suas
próprias definições e interesses em relação a sua estada ou não na cidade do Aracati, fato este
que a documentação produzida pelos elementos “distintos” da cidade, assim como das outras
localidades, teimavam em silenciar, e nem sempre com sucesso.

A resistência em relação à “reemigração” se tornou mais complicada com a


perpetuação da seca. O reforço ao contingente policial também dificultou o acesso retirante
aos centros de distribuição, na forma como se dera em dezembro de 1877, na invasão ao
mercado público. Entretanto, se na cidade se tornava difícil ter acesso aos gêneros, seja pelo
aparato policial que protegia os armazéns e o mercado, seja também pelo fato que a cada dia
os gêneros eram cada vez mais racionados, um grupo dos retirantes percebeu que seria

26
Ofício do Presidente da Câmara Municipal do Aracati, Guilherme Pereira de Azevedo, Comissão de Socorros
Públicos do Aracati ao presidente da província, Conselheiro João José Ferreira d’Aguiar, em 7 de fevereiro 1878.
In: APEC - Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. (1877-
1889). Cx. 2.
27
Ofício da Comissão de Socorros Públicos do Aracati ao presidente da província, Conselheiro João José
Ferreira d’Aguiar, em 14 de janeiro de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
83

possível interceptar os gêneros no transporte do porto para a cidade. No dia 6 de maio, o


comissário Peixoto informou que “a quadrilha dos assaltantes”, composta de 80 homens,
interceptou um carregamento de carne que ia do Fortim ao centro urbano do Aracati. Mesmo
tendo chegado um grupo de praças, que confrontara com os assaltantes, uma parte deles já
fazia a descarga da canoa que trazia os gêneros. Segundo o comissário, não era a primeira vez
que tal fato acontecia.

Por outro lado, os comissários “de fora” tiveram que enfrentar o


descontentamento dos comerciantes aracatienses. Descobrindo a impossibilidade de elucidar o
grande esbanjamento de gêneros que havia se dado, em dezembro de 1877 a janeiro de 1878,
pela falta de cooperação dos comerciantes na prestação de contas de suas vendas feitas à
Comissão de Socorros, onde apresentaram apenas os valores a serem cobrados à Mesa de
Rendas do Aracati, mas não os balancetes de itens vendidos, os comissários da Capital
sofreram não apenas com tal falta de cooperação, mas com o descontentamento declarado dos
negociantes e outros membros da elite aracatiense, que promoveram um conflito aberto com
os comissários “de fora”.

Nesta relação conflituosa entre os comerciantes locais e os comissários da


Capital, primeiro o sr. Pamplona e depois o Sr. Peixoto, um caso curioso foi relatado em um
dos ofícios enviados pelo primeiro, no mês de fevereiro de 1878.

No dia 10, o comissário Pamplona procedeu a uma distribuição de gêneros,


segundo a proposta racionalizadora que tentava impor, negando a distribuição por duplicatas.
O comissário organizou, com o auxílio de um grupo de praças, a distribuição em uma travessa
que ligava as duas principais ruas do Aracati, colocando um grupo de policiais no início da
travessa e outro grupo no final. O grupo de retirantes atendidos era composto absolutamente
por mulheres, que sem duplicatas, teriam que entrar na travessa, dez pessoas de cada vez,
receberem a ração, e sair do outro lado, supervisionadas pelos praças. Segundo o comissário,
aconteceu que:

Manuel Joaquim de Lima, domiciliado na mencionada travessa, abrira o portão e


porta do armasem de sua casa para que as emigrantes se evadissem, e d’est’arte
procurassem receber novas rações contra as minhas ordens em detrimento dos
interesses da Fazenda, auxiliado por seo caixeiro João Agíbio Ribeiro.
84

[...] Levei este facto ao conhecimento do juiz municipal, aqui de que fosse tomada a
devida providencia, punido os desordeiros28.

Este caso é curioso, por percebermos que, para prejudicar a distribuição, o dito
morador da travessa presta uma espécie de auxílio às retirantes, para que as mesmas pudessem
receber uma quantidade maior de gêneros posteriormente. Não fossem outros problemas
enfrentados pelos comissários da Capital, esta situação teria sido apenas pontual e uma
exceção. Contudo, outros transtornos às atividades da Comissão de Socorros seriam
empreendidos por moradores do Aracati. Outro caso, semelhante a esse, envolvendo
moradores e comerciantes do Aracati, agindo conjuntamente com retirantes, aconteceu no ano
de 1879, tomando maiores proporções, mas nos deteremos nele no próximo capítulo.

Este caso também traz à tona as diversas possibilidades de negociação entre os


envolvidos na seca de 1877-1880. A constituição de uma postura contra o governo provincial,
representado pelos comissários da Capital, fez surgir momentos de cooperação entre os
retirantes e os comerciantes. Mesmo percebendo que no ano anterior, mediante a invasão do
mercado público, que a relação entre estes dois grupos se apresentava repleta de tensão,
membros de ambas as partes unem-se em oposição a adversário comum. Vemos, portanto,
que definições estanques deste ou daquele grupo ou conceituar os grupos como antagônicos
em todo e qualquer momento, é fechar os olhos para as variações das estratégias de
negociação entre eles e com as estâncias oficiais.

Anterior a este acontecido, no dia 7 de fevereiro o comissário Pamplona já


reclamava do procedimento de determinados indivíduos que, podendo cooperar com ele,
procediam contrariamente. Supomos serem estes alguns membros distintos da sociedade
aracatiense, e vemos na forma como se expressava o comissário Pamplona que ele já se
tornara o inimigo do Aracati: “Continuo a empregar os meios necessarios para a completa
regularidade dos soccorros, e por isso tenho e continuo a soffrer uma guerra viva, mesmo
d’aquelles que devião ajudar-me em tão árduo emprego”29. Pelos jornais, alguns aracatienses
expressaram sua repulsa em relação à política de economia empreendida pelo comissário

28
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao presidente da
província, Conselheiro João José Ferreira d’Aguiar em 13 de fevereiro de 1878. In.: APEC - Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
29
Ofício de no 3 do Comissário de socorros públicos do Aracati, Quintino Augusto Pamplona, ao presidente da
província, Conselheiro João José Ferreira d’Aguiar em 13 de fevereiro de 1878. In.: APEC - Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
85

Pamplona. Em O Retirante, publicado em Fortaleza, uma correspondência do Aracati viria dar


voz aos desafetos do comissário “de fora”:

O Sr. Commissario veio para o Aracaty (como diz elle) como unico fim de
economizar os generos do governo que estavam sendo esbanjados pela ex-
commissão, porém assim não parece; se aquella commissão esbanjava, esta também
o pratica, e com o seguinte facto mostro o que se deu no dia 30 de janeiro findo,
n’um ds armazéns do Sr. Commissario: - André Gomes d’Oliveira, Ignacio Vicente
de Souza, Alexandre Pereira Lima e Theotonio Vicente de Souza, todos residentes
n’esta cidade, juram como viram na tarde d’este mesmo dia, em um dos armazéns
estar sahindo por uma das janellas porção de carne que um dos empregados
entregava a uma outra pessoa que achava-se do lado de fora. Já não quero que isto
seja esbanjamento ou...são apenas pequenas iniciativas – cotegipanas: - não é assim
Sr. Commissario?
Os seus empregados passam bem, em quanto os retirantes morrem de inanição pelas
calçadas, como tem acontecido depois que o Sr. Quintino começou o seu officio de
commissario.30

A insatisfação não se resumiu ao comissário Pamplona. Um conjunto maior de


evidências sobre tais transtornos e sobre tal guerra foi produzido pelo sucessor do comissário
Pamplona, o sr. Luiz Carlos da Silva Peixoto. Em 12 de abril, ele já expressava seu desanimo,
não esperando que forças, além das que ele esperava enfrentar no Aracati, fossem em sua
direção tentando derrubá-lo. Comissário de socorros do Aracati há pouco menos de um mês, o
Sr. Peixoto já demonstrava cansaço na sua difícil posição:

Continuo a luctar, em pleno isolamento com mil estorvos e difficuldades, e todos os


dias circundado de reclamações, vou tractando e resolvel-as, infiando-me nos graves
deveres do meo ímprobo mandato.
As queixas são incessantes, e em face d’ellas sinto-me abatido, porque, além de
serem acerbas, são concebidas e alimentadas pelas paixões, que perturbão e
nenhuma utilidade produzem.
Desejara, para o desempenho de minha tarefa, que todos se colligassem n’uma
aspiração, e, como um corpo homogêneo, me indicassem os meios de salvar o povo,
propondo as medidas que suscitassem os seos sentimentos humanitários; mas,
segregando-se absolutamente de mim, não obstante ter invocado o seo latrocínio por
meio de Circulares, vosiam juras e exclusivamente pelas calçadas, procurando
mystificar ou aniquilar a verdade dos factos com diatribes e satyras mordazes.
Desejara, sim, ver em derredor de mim este accordo de vontade, que constitui uma
grande força; mas infelizmente é dolorosa a minha posição, e necessitando até do
apoio das authoridades do logar, que devião coadjurar-me nos intuitos de minha
missão, vejo-me no entretanto só, e como que abandonado.31

30
Algumas correspondências de pessoas do Aracati foram publicas em O Retirante, periódico de Fortaleza,
publicado entre junho de 1877 e início de 1878. Afirmava ser o órgão das vítimas da seca e opositor à
administração do presidente Aguiar. In: CEARÁ, Biblioteca Pública Gov. Menezes Pimentel. Jornais Cearenses
em Microformas. Op. cit. p. 07. Esta correspondência se encontra no: O Retirante. Anno I. n. 35. A pedido. O
commissario do Aracaty, ou a ultima caduquice do immortal Aguiar. 02.03.1878. p. 3.
31
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 12 de abril de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
86

Uma das dificuldades encontradas pelo comissário Peixoto foi dispor de pessoas
confiáveis para ocupar os cargos de distribuidores nos armazéns da comissão, como se vê em
outra correspondência ao presidente José Júlio:

Prevaleço-me do ensejo para declarar a V.Excia, que já demitti onze empregados, e


tracto com todo afan d organisar as mais solidas bases, tudo de harmonia com o
plano que tenho estabelecido, e que já marcha em via de execução, aguardando o
termo satisfactorio, se encontrar collaboradores dedicados e solícitos no empenho de
debellar o abusivo estado d cousas.
O pessoal destinado para administrar os armazéns d distribuição, que deve ser
escolhido com selecção rigorosa, não preenche os meos intuitos, e não posso
reformal-o radicalmente, attenta a gratificação d quarenta mil reis que percebem, o
que só podem fazer augmentando-a para sessenta, e para o que peço authorização d
V.Excia. A razão é intuitiva.
É mister confessar com toda franqueza, para evitar duvidas futuras, que acho difficil
e bem difficil achar auxiliares, que me coadjurem na nova organização do trabalho,
pois vejo-me por assim dizer em pleno isolamento, soffrendo uma guerra atroz e
sem tregoa, só porque tenho empregado os meios de exterminar aos abusos.
Na primeira occasião será enviada a relação pedida.32

Os meios de “exterminar os abusos” estavam valendo ao comissário Peixoto a


perpetuação da “guerra viva” sofrida anteriormente pelo comissário Pamplona. Suas queixas
recaíam sobre pessoas que visavam dificultar-lhe a missão, até mesmo autoridades
aracatienses, que o isolaram. Se tomarmos o discurso do comissário Peixoto, verificamos que
tal “guerra atroz” significava uma atividade definida, que objetivava derrotá-lo. Portanto, o
abandono que sentia era acrescido de ataques e posicionamentos ativos de contrariedade à sua
posição de comissário. Uma questão se levanta: quais aracatienses estariam no front desta
guerra contra os comissários “de fora”?

A compra de gêneros aos comerciantes aracatienses continuou sendo uma prática


constante, mesmo depois da demissão de membros ligados ao comércio em janeiro de 1878.
O fornecedor que vemos de forma mais recorrente é o Sr. Antonio Francisco Pinheiro33. O Sr.
Francisco Pinheiro era um comerciante que negociava tanto com a praça do Recife como com
as Casas Comerciais estrangeiras estabelecidas na Capital, e era um ativo negociante

32
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 12 de abril de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
33
Nasceu no Aracati em 1840. Era irmão do cônego João Francisco Pinheiro. Fora empregado da firma Gurgel
& Irmão e depois sócio da firma Lemos Braga & Companhia, quando tornou-se grande exportador de gêneros,
em especial de algodão, sendo reconhecido no Império por relevantes serviços durante a guerra do Paraguai.
Chefiou o Partido Liberal no Aracati. Em 1884, foi nomeado comandante superior da Guarda Nacional na
comarca do Aracati e reformado nesse posto por Decreto Estadual de 8 de outubro de 1890. In: STUDART,
Guilherme Barão de; STUDART, Newton Jacques. Dicionário Bio-Bibliográfico Cearense. 2. ed. Fortaleza:
Tipogrnafia Progresso, 1980. p. 210.
87

atravessador que intermediava a relação dos compradores do vale jaguaribano com as praças
fornecedoras34. Em abril, com relação aos gêneros fornecidos no mês de fevereiro ao
comissário Quintino Augusto Pamplona, o presidente José Júlio autorizava o pagamento ao sr.
Pinheiro do valor de $30:438,000 (Trinta contos quatrocentos e trinta e oito mil réis),
referente ao fornecimento de 3.204 (Três mil duzentas e quatro) sacas de farinha, vendidas a
$9.500 (Nove mil e quinhentos réis)35. Este número já mostra como o Sr. Pinheiro tornara-se
um importante fornecedor de gêneros à Comissão de Socorros, mesmo naquele período de
racionalização dos recursos e da distribuição de gêneros.

Entretanto, a chegada do comissário Peixoto viria a compor um foco de tensão


entre o rico comerciante aracatiense e a Comissão de Socorros. “As rações tem sido reduzidas
o mais possível”36, afirmava o comissário Pamplona, no mês de abril, no mesmo ofício
enviado ao presidente José Júlio, em que contestava os preços dos gêneros oferecidos pelos
comerciantes aracatienses. Naquele mês, a praça aracatiense oferecia a saca de farinha de 60
litros a 28 mil réis, mais que o triplo do valor pelo qual o comerciante Pinheiro vendia em
fevereiro. Segundo o comissário Peixoto, os comerciantes alegavam que a demora nos
pagamentos por parte da Tesouraria da Fazenda, via Mesa de Rendas do Aracati, era a razão
pelo grande aumento. Entretanto, o mesmo afirmava que “os generos acima mencionados são
vendidos mais baratos aos particulares, diferença de quatro a cinco mil reis com a farinha”37.

O racionamento promovido levado a extremo pelo comissário Peixoto foi o


principal motivador dos ataques que os aracatienses promoveram. Relatando uma sublevação
de retirantes em frente ao armazém de distribuição, uma correspondência publicada em O
Retirante denunciava a política de economia do comissário Peixoto, considerando-a como
razão do número elevado de famintos a morrer de inanição:

[...] As ordens expedidas pelo Sr. Peixoto com relação a paga de homens de serviço,
alem de energica tem sido mais que mesquinha, e é por isso que o povo subleva-se e
com razão, porque o salário d’um home que tem grande família, não deve ser

34
Cf.: Correspondências do comerciante Antonio Francisco Pinheiro In: APEC. Arquivo da Casa Bóris &
Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Caixas. 5 e 6.
35
Ofício do procurador do comerciante Antonio Francisco Pinheiro, José da Silva Villar, respondido pelo
presidente da província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, e enviado ao comissário da Mesa de Rendas do
Aracati, em 13 de abril de 1878. In.: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
36
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 21 de abril de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
37
Idem.
88

equivalente ao d’aquelle que tem somente duas ou tres pessoas, e um litro de farinha
nunca que pode chegar para a sua alimentação [...].38

Diversos outros meios de economizar eram empreendidos pelo comissário


Peixoto, até mesmo o de mandar costurar sacos de farinha para vestir os retirantes, em vez de
comprar peças de algodãozinho para confeccionar vestimentas, até que o Governo enviasse as
peças39.

Tratando novamente do comerciante Antonio Francisco Pinheiro, suas vendas


continuaram a suprir a Comissão de Socorros, mas percebe-se que a economia promovida
pelo comissário Peixoto não permitia ao negociante promover as volumosas vendas de
antes40. Além disso, o comissário cada vez mais reclamava dos valores oferecidos pelo
comerciante, tornando a relação cada vez mais tensa. A insistência do comissário Peixoto em
fazer com que o negociante Francisco Pinheiro abatesse os valores dos gêneros, motivou este
a comunicar-lhe de forma contundente, como se vê em ofício de 18 de maio de 1878:

Recebi o officio de. V.Sa. dactado de hoje e respondo.


Não tenho d fazer abatimento algum na conta que V.Sa. me remetteo juntamente
com dito officio. Contractei a venda da carne na quela dacta com V.Sa. a preço
razoável neste mercado, nada tenho a por tanto esta feita a compra e venda como da
mesma conta, auferinada por V.Sa. Acho mesmo que não há direito algum para
reclamar-se da conta junta, pois ambas as partes que contractarão estavão (segundo
creio) [sic] caso de o fazer. Se o resultado de qualquer abatimento fosse para
alliviar os infelizes, de boa vontade o faria, porem eu mesmo sou testemunha ocular
da maneira por q se distribuem aqui os soccorros públicos e por isso não faço
abatimento algum, e o que V.Sa. acha que devo abater, servirá para matar a fome de
tantos miseráveis que vivem cahidos nas calçadas desta cidade. Fica assim
respondido o officio de V.Sa.

Deus Guarde V. Exa.

Ilmo. Exmo. Com. Luiz Carlos da Silva Peixoto


Commissãrio dos Soccorros Publicos
Antonio Francisco Pinheiro 41

38
O Retirante. Anno I. n. 37. Correspondência. Aracaty, 15 de março de 1878. 21.03.1878, p. 2.
39
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
Província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 15 de abril de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
40
Nos meses de abril a junho, as vendas feitas pelo comerciante Antonio Francisco Pinheiro reduziram em
número de vezes e em volume de cada venda realizada. Cf. Recibo referente à venda de 40 fardos de carne seca
feita pelo comerciante Antonio Francisco Pinheiro à comissão de socorros do Aracati, em 23 de abril de 1878.
In: In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data:
1877-1889. Cx. 2.
41
Ofício do sr. Antonio Francisco Pinheiro, ao Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva
Peixoto, em 18 de maio de 1878. In: APEC Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
89

Não somente ao Sr. Francisco Pinheiro o comissário Peixoto negava o direito de


usufruir um pouco da distribuição de gêneros, mas também ao já conhecido por nós, o suíço
G.J. Brummschveiller, o comissário vedara o uso do trapiche do ex-membro da Comissão,
situado próximo ao atracadouro do Fortim. De meados de maio a junho, vemos que a relação
do comissário Peixoto e os comerciantes aracatienses, liderados por Francisco Pinheiro, já não
permitia ocultar o clima de guerra declarada.

A pressão sobre o comissário Peixoto agora se dava de forma generalizada, e a


prática de cotar valores na praça do Aracati já não surgia efeito algum, pois os preços
igualados e altíssimos, eram oferecidos por todos que forneciam à Comissão. Segundo o
próprio comissário, quando havendo solicitado os sentimentos humanitários dos comerciantes
locais, segundo recomendação do Presidente da Província42, recebeu como retribuição, ao
final de maio, a distribuição de pasquins difamando sua pessoa e a forma como os socorros
estavam sendo distribuídos. Escrevendo ao Sr. Francisco Pinheiro, o mesmo solicita “uma
explicação peremptória em ordem a por em practica as medidas providenciais devidas, uma
vez que V. Sa. formula d um modo interiamente dúbio, acerca das accusações contra a
distribuição de soccorros publicos”43. Começando o mês de junho, na necessidade de efetuar a
compra de gêneros aos comerciantes, mesmo em face dos valores altíssimos oferecidos, o
comissário teve que ceder. Entretanto, ao solicitar o pagamento à Tesouraria da Fazenda, o
órgão negou-lhe o valor pedido, alegando por demais superiores os valores declarados pelo
comissário, comparados aos valores na Capital, Fortaleza. A recusa da Tesouraria da Fazenda
constrangeu o comissário, que justificou-se, colocando em questão sua probidade:

É mister declarar a V.Exca que com repugnância effectuei as compras de que tracta
ditas contas, mas as circunstancias imperiosas em que me achara obrigarão-me a
assim fazer. A situação era critica, e definia-se por um dilemma – ou morrem o povo
d fome ou comprar generos – accrescentando achar-se interrompido o fio
telegraphico, por onde podia pedir a V.Exa os devidos conselhos a providenciar.
Cumpre-me também declarar que a impugnação levantada pela Thesouraria da
Fazenda, ao meu ver, não tem fundada razão de existência.
Os preços dos generos varião por diversas causas, conforme o mercado, producção
ou consumo, qualidade, abundancia ou escassez, contracto, e certas e determinadas
condições peculiares às transacções mercantis.

42
Ofício de no 3062, do presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque Barros, à comissão de socorros do
Aracati, em 11 de maio de 1878. Fundo: Governo da Província. Série: Comissões de Socorros. Data: 1878. Cx.
33. Livro: 228.
43
Cópia de uma correspondência do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto,
ao comerciante do Aracati, Sr. Antonio Francisco Pinheiro, em 31 de maio de 1878. In: APEC. Fundo: Governo
da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
90

Por conseguinte, os preços da tarifa do mercado da Capital não podem servir de


bitola para os preços d’esta. A unidade não é na matéria dominante, attesta a
multiplicidade e variedade dos seos vastíssimos interesses e relações.
Sou severamente escrupuloso, e mesmo empenho-me com todo o afan possível nos
meios d obter a preço mais módico, e não poderia por forma alguma proceder ao
contrario, uma vez que tomo todo cuidado pelos interesses da Fazenda Publica.
À vista do exposto, espero que V.Exa ordenará sem demora o pagamento integral
das contas alludidas, afim de ser o meo procedimento solemnemente ractificado, não
dando margem ás accusações d falta de confiança e lealdade, ou outros qualquer que
possão engendrar o delírio das paixões inconfessáveis.44

A impugnação da Tesouraria da Fazenda possivelmente tenha desmotivado ainda


mais o comissário Peixoto. Diante das lutas que enfrentava, a desconfiança dos interesses os
quais representava lhe parecia um golpe duro. No dia seguinte, expondo sua visão de toda
aquela situação, o comissário solicita sua exoneração. A relação dos nomes dos seus
desafetos, a qual ele inclui no seu pedido de demissão, chama atenção pela variedade de
pessoas que haviam tido ou ainda teriam alguma inferência nos rumos da Comissão de
Socorros: o comerciante Francisco Pinheiro, o delegado José Alexandre Pereira, o padre João
Francisco Pinheiro, que havia sido membro da Comissão no ano anterior, um certo professor
Sabóia e um outro professor Barata, o coletor da Mesa de Rendas Adelário de Paula Martins e
seu irmão, o tabelião Aureliano de Paula Martins e um outro capitão João Francisco 45. Todos
estes haviam assinado uma representação perante o Presidente da Província solicitando a
exoneração do comissário Peixoto. O comissário fez questão de não incluir na lista os nomes
de Melchiades de Costa Barros e do Coronel José Teixeira Castro, ambos comerciantes
fornecedores de gêneros à Comissão, e que não teriam participado do movimento opositor. A
forma como o comissário Peixoto termina este ofício é emblemática no que diz respeito a este
confronto de interesses:

Dou de tudo isto conhecimento a V.Exa somente no intuito de justificar o meo


pedido d exoneração, e a impossibilidade de continuar no meo exercício.
Levão a questão para o lado político, deixão o dos princípios e do bem publico. Não
admittem partido de cima sem disporem a bel-praser dos soccorros e dinheiros do
Estado.
Para cabal justificação de meio procedimento, quando V.Exa já estivesse a par
d’elle, bastara a referida representação, signal de que hei sabido cumprir com o meo
dever, não cabendo caprichos e manejos da gente que quer governar a terra. A minha

44
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 3 de junho de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
45
Ofício de no 36 do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 4 de junho de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
91

divisa é outra: defender e zelar os dinheiros e haveres do Estado confiados a minha


guarda.46

É interessante notar a afirmativa do comissário Peixoto com respeito aos


comerciantes não admitirem “partido de cima” e de serem “gente que quer governar a terra”.
Perecebe-se que para além de ter um determinado tipo de interesse em relação à distribuição
de socorros, os comerciantes aracatienses também não admitiam um “de fora” governar no
seu torrão. Como aconteceu anteriormente no caso do Dr. Sabóia – já analisado no primeiro
capítulo -, a influência de representantes dos interesses provinciais não eram bem vindos no
Aracati. Como que se tendo uma “esfera particular de controle”, a elite aracatiense não
recebia de forma concordante quaisquer interferências em negócios que consideravam como
seus. Quando Theophilo (1922, p. 252) relatou a passagem do comissário Pamplona no
Aracati naqueles meses do primeiro semestre do ano de 1878, lembrou que “O Aracaty,
celebre pela índole especial de seus habitantes, por suas intrigas políticas, difficilmente se
deixaria governar por quem não fosse nascido em seu torrão”. O farmacêutico e romancista
pretendeu fazer ecoar a insatisfação do comissário Peixoto, afirmando ainda:

Appareciam os advogados do povo, fingidos patriotas, que, longe de se tornarem


auxiliares da nobre causa da pátria, viviam das intrigas pequeninas da terrinha
gritando pelas calçadas, até que lhes fechassem a bocca com alguns víveres do
Estado.
Esses perturbadores da ordem publica não perdiam occasião de sublevar os
retirantes; tudo faziam para desgostar o commissario do governo, publicando
pasquins, em que ameaçavam assassinal-o. (THEÓPHILO, 1922, p. 252)

Alegando ainda estar acometido do beri-beri, o comissário Peixoto deixou o


Aracati na segunda metade do mês de junho, em data que não nos foi possível precisar.
Passou a administração da Comissão de Socorros para as mãos do 1º escriturário da Comissão
de Transporte de Gêneros do Aracati, o Sr. José Joaquim de Miranda. Mesmo tendo solicitado
sua saída no início do mês, a transferência dos negócios da Comissão para outras mãos
demandou bastante tempo, sendo que o comissário Peixoto forneceu todas as prestações de
contas ao Presidente da Província, o que lhe demandou todo o mês de junho.

Findava neste momento, a tentativa do governo provincial de impor seus


interesses por meio do envio de comissários “de fora”. A Comissão de Socorros do Aracati,

46
Ofício do Comissário de socorros públicos do Aracati, Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da
província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 3 de junho de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da
Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
92

até sua dissolução em 1880, permaneceria sendo administrada por membros aracatienses.
Sobre isto, é interessante notarmos como a percepção do presidente José Júlio d’Albuquerque
Barros a respeito dos interesses aracatienses fez com que ele mudasse a estratégia no
relacionamento com a elite aracatiense, em especial com seus comerciantes.

Surpreendentemente, o presidente José Júlio enviou um ofício ao capitão Antonio


Francisco Pinheiro, convocando-o a fazer parte da Comissão de Socorros. O grande desafeto e
principal motivador da renúncia do comissário Peixoto, achou mercê da parte do presidente
José Júlio. Qual seria a intenção do presidente em buscar primeiramente o desafeto do
comissário de socorros públicos? Respondendo ao Presidente, a posição do comerciante seria
tão surpreendente quanto:

Desde que o Snr Commissario Luiz Carlos da Silva Peixoto (de execrável memória
para o infeliz povo cearense) procurou por meio de informações secretas dirigidas a
V. Excia. denegrir o caracter de Aracatyenses, que em todos os tempos gosaram de
consideração e honradez, somente por que clamaram contra o seu procedimento
deshumano e bárbaro para com o infeliz emigrado; de então impossibilitou a todo o
homem que se presa, e que tem dignidade de ser membro da commissão de
soccorros d’esta cidade, inquestionavelmente digna de ser mais considerada.
Foi necessário, Exmo. Snr. que houvesse esta horrível seca, foi necessário, que
viessem paaqui commissário de nomeação do ex-presidente Aguiar, para aviltar
tanto esta terra, e lançar sobre seus filhos infamantes pechas. Orgulho-me porém de
poder affirmar a V. Exmo. que aqui ainda não se levantaram fortunas com soccorros
publicos, como em outros logares; e se furtos tem havido, correm lá pelos armasens
de distribuição, que estão sob a guarda do honrado Snr. commissario. O meu
humilde nome, Exmo. Snr. e de outros cidadãos distinctos d’esta cidade, já
figuraram em uma, e talvez em muitas queixas dadas a V. Excia. pelo commissário
d’esta cidade, distribuidor zeloso dos dinheiros públicos; e portanto tendo, como
presa-me de ter amor próprio, e dignidade, não posso nem devo acceitar semelhante
logar.47

O destino dos socorros públicos do Aracati estava sendo definido naquele


momento, na negociação entre o governo provincial e os comerciantes. Negado o lugar na
comissão pelo comerciante Antonio Francisco Pinheiro, o presidente José Júlio convidou
então os absolvidos pelo ex-comissário Peixoto: os comerciantes Melchiades da Costa Barros
e José Teixeira Castro. Ambos, o primeiro alegando problemas de saúde e o segundo
limitações da idade avançada, também recusaram a oferta48. Além destes, o delegado José

47
Ofício do comerciante do Aracati, capitão Antonio Francisco Pinheiro, ao presidente da província, Dr. José
Júlio de Albuquerque Barros, em 25 de junho de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
48
Ofícios dos comerciantes do Aracati, capitão Melchiades da Costa Barros e Coronel José Teixeira Castro, ao
presidente da província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, respectivamente em 28 e 29 de junho de 1878. In:
APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas Localidades. Data: 1877-
1889. Cx. 2.
93

Alexandre Pereira também foi convocado, mas também recusou. Mais tarde, outro foi
solicitado a assumir a comissão, o comerciante Vicente Ferreira dos Santos Camara, em 5 de
julho, e também recusou, alegando muitas ocupações e mau estado de saúde. Daquele mês de
junho até o mês de agosto, a comissão permaneceria administrada pelo comissário da Mesa de
Rendas, o Sr. José Joaquim de Miranda.

Por um lado, vemos da parte do presidente Jose Júlio a aproximação dos


comerciantes, vendo que sem a colaboração deles seria cada vez mais difícil prosseguir com a
distribuição de socorros no Aracati. Por outro lado, houve uma surpreendente recusa coletiva
por parte dos comerciantes em assumir a Comissão de Socorros, os quais antes lutaram por
afastar os comissários Pamplona e Peixoto por dificultarem a imposição de seus interesses
sobre a compra e distribuição de gêneros. Para efetivar o ordenamento social desejado, o
representante da elite provincial precisaria reproduzir a estrutura social imaginada tendo o
apoio dos agentes locais. Os agentes locais não cederam de imediato à tentação de ter
novamente o controle sobre a Comissão de Socorros. Este impasse findaria, quando em ofício
datado de 27 de agosto de 1878, o mesmo delegado José Alexandre Pereira, que antes havia
negado à nomeação de comissário de socorros do Aracati, agora agradecido da confiança
depositada pelo presidente provincial, aceitava a nomeação:

[...] me derijo a V Excia. agradecendo a confiança que me prestou na referida


nomeação, e declarando que não me recuso a prestar aos meus concidadãos estes e
quaesquer outros serviços que as circunstâncias exigirem, e de que V. Excia. julgar
conveniente encarregar-me e que de accôrdo com os outros membros nomeados,
entrarei amanhã no exercício das respectivas funcções. 49

José Alexandre Pereira seria acompanhado pelo farmacêutico João Adolpho


Gurgel do Amaral na administração da Comissão de Socorros Públicos do Aracati.

Neste jogo de conflitos entre interesses de um centro de poder disciplinar e sua


periferia, temos questões a levantar. Os comerciantes teriam vencido a disputa? A demora na
decisão de quem iria compor a comissão teria sido uma negociação estratégica entre os
comerciantes locais, tendo em vista eleger um intermediador entre eles e o governo
provincial? Ou ainda: que proposta teria o presidente José Júlio em ceder aos comerciantes
aracatienses?
49
Ofício de José Alexandre Pereira, ao presidente da província, Dr. José Júlio de Albuquerque Barros, em 27 de
agosto de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas. Diversas
Localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
94

A recusa coletiva dos comerciantes aracatienses, e o período de espera, assim


como o movimento coletivo de pressão sobre o comissário Peixoto nos levam a perceber que
os comerciantes aracatienses não agiam isoladamente. A estrutura social cearense, que
ganhava novos contornos naquela grande seca do século XIX, “fazia-se performativamente”
nas negociações e conflitos entre a estrutura política, social e econômica que uma facção da
elite cearense, ligada ao capital internacional, procurava reproduzir, e os interesses de agentes
sociais da periferia, às vezes pouco ligada às demandas do centro de poder. Esses interesses
locais, divergentes e destoantes, assumiam características próprias da localidade, da sua
população, cultura, forma de ver e sentir a realidade contextual na qual a própria localidade
estava inserida, mas que a visualizava sob outro prisma, construído a partir de experiências
distintas do centro de poder. A identidade destes interesses possivelmente levou os
comerciantes aracatienses a empreender um conjunto de procedimentos coletivos, de uma
finalidade comum, constante de uma ação transformadora sobre a realidade que um centro de
poder oficial propunha impor sobre eles. Coordenados e identificados com os interesses aos
quais se ligavam, os comerciantes aracatienses forçaram o presidente José Júlio a repensar seu
posicionamento frente a este grupo aracatiense. Entendendo-se desta forma os acontecimentos
descritos até aqui, tanto os do ano de 1877 como os de 1878, propomos que o posicionamento
dos comerciantes do Aracati durante a grande seca do século XIX, pautaram-se em uma
estratégia, tanto de resistência quanto de ação transformadora da realidade, segundo a qual
negociariam a imposição de seus interesses frente aos interesses do governo provincial.

2.2. Os comerciantes aracatienses e sua estratégia: influências possíveis.

Anos após os movimentos que analisamos no presente trabalho, mais


precisamente em 1892, escreveu o nosso Barão de Studart, a respeito da classe comercial
aracatiense:

Compare-se o Aracati daqueles tempos com o Aracati de hoje e impossível será


deixar de reconhecer e lamentar o imenso regresso, o quase aniquilamento dessa
importante cidade.
Não mais existem aqueles ricos mercadores, que ainda há 40 e 30 anos faziam inveja
até dos filhos de Fortaleza; a vida comercial com a da sociedade, fugiu daqueles
lugares, cuja população, longe de progredir ou mesmo ficar estacionária, decresce a
olhos vistos porque os habitantes desertam e preferem levar as outras paragens o
contingente de seu patriotismo, os estímulos de sua inteligência e amor ao trabalho;
95

as propriedades se vão desmoronando e edifícios, que a pouco eram contados em


contos de réis, são dados hoje gratuitamente por morada àqueles que querem
incumbir-se de os proteger contra a destruição das estações e a invasão dos animais
daninhos. (STUDART, 2004, p. 349)

O Aracati hegemônico do qual fala o Barão, é o do contexto do período da grande


expansão da pecuária e de sua influência no povoamento dos sertões nordestinos, em especial
o cearense50, especialmente no século XVIII. Segundo estudo realizado por Girão (1984), a
crescente demanda no comércio de carne seca - ou carne do sol, ou mesmo carne do Ceará –,
a qual se disseminaria principalmente sob o nome de “charque”, aliada ao comércio do couro,
proporcionou ao sertão cearense uma inédita circulação de mercadorias e pessoas, e um
consequente surgimento de aglomerações populacionais que viriam formar algumas das
primeiras vilas cearenses: “Este movimento revolucionou a feição econômica, social e política
da Capitania” (GIRÃO V., 1984, p. 107). A então chamada “Villa de Santa Cruz do Aracaty”,
povoado elevado à condição de vila, por ordem régia, em 10 de fevereiro de 1748, tornou-se o
principal entreposto comercial da capitania no período das charqueadas. “Escoadouro natural”
(LIMA, 1979, p. 17) das mercadorias transitadas principalmente pela “estrada geral do
Jaguaribe” que cortava a Capitania de norte a sul, e “na banda ocidental colocava em
comunicação as áreas de produção ao longo do rio Jaguaribe com o médio São Francisco”
(LEMENHE, 1991, p. 28), o Aracaty “tornou-se, mesmo antes de ser elevada a vila, o pulmão
da economia colonial da Capitania, cuja riqueza era, em maior parte, por ela transitada”
(GIRÃO V., 1984, P. 108). Favorecida por sua proximidade aos mercados do Recife e
Salvador, bem como de criatórios produtores de carne bovina espalhados por toda a extensão
do rio Jaguaribe, e ainda pela proibição da exportação de carnes pelos portos Mossoró e Açu
(GIRÃO R., 1962, p. 122), a vila presenciou não apenas o trânsito das riquezas provenientes
do pungente mercado de carnes e couros, mas também sua fixação na forma de comércio e
população. Ao final do século XVIII, tornar-se-ia “o único aglomerado ao qual se poderia
associar o termo urbano, e neste sentido não diferia das outras cidades portuárias da colônia”
(LEMENHE, 1991, p. 41).

Entretanto, chegado o século seguinte, a situação mudaria quando Fortaleza passa


a ser incluída na pauta do capital internacional. Segundo Lemenhe (1991), a demanda de
algodão fez mudar o quadro da produção cearense de matéria-prima, quando do aumento do

50
Sobre a importância da pecuária no povoamento dos sertões brasileiros, Cf: ABREU, J. Capistrano de.
Caminhos antigos e povoamento do Brasil, 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
96

fornecimento deste produto ao mercado inglês. Neste contexto, a autora ressalta o surgimento
de Fortaleza como um segundo ponto de escoamento da produção, tornando-se na metade do
século o principal centro comercial, seguido de perto pelo Aracati. Até o início dos anos 50,
quando o Aracati ainda mantinha um posto da alfândega, sua arrecadação seguia de perto a
arrecadação de Fortaleza, chegando até mesmo, no ano de 1851, a ser superior a da Capital51.

Durante aquele século XIX, a autora aponta que a elevação de Fortaleza à


condição de Capital Provincial não apenas inseriu este núcleo urbano na pauta do capitalismo
internacional, mas também o dotou de privilégios que nenhum dos demais centros urbanos da
Província puderam auferir. Tais privilégios diziam respeito à possibilidade que as capitais
provinciais tinham de gerir um volume maior de recursos advindos da arrecadação fiscal,
necessários para a manutenção do aparelho burocrático que continham. Esta possibilidade
fazia parte do projeto político de centralização das atribuições e do poder decisório
empreendido pelo Império, a partir do período regencial. Fortaleza teve, segundo a autora, na
segunda metade do século XIX, a oportunidade de aplicar um maior volume de recursos em
obras infra-estruturais, como remodelação urbana, construção de linha férrea e melhoramento
do porto, face a sua condição de mais importante unidade administrativa no âmbito provincial.
Portanto, durante todo o século XIX, mas principalmente na segunda metade do século, a
cidade de Fortaleza sobrepujaria o Aracati, tornando-se o principal centro econômico da
Província.

Acrescido a isso devemos levar em conta a análise empreendida por Mello (1999),
quando discute a respeito das disputas realizadas no Parlamento e Senado Imperial, onde os
políticos do Norte agrário lutaram de forma ferrenha, principalmente a partir dos anos 50 do
XIX, por um maior contingente de recursos e obras de infra-estrutura, tendo em vista arrancar
uma parcela substancial do volume de arrecadação da parcela total de exportações que o
Império auferia. Neste sentido, os senadores do Ceará entraram nesta disputa angariando
recursos para a realização de tais obras, principalmente a construção da via férrea que ligava
Fortaleza à localidade interiorana de Baturité, trecho que abrangia uma grande faixa produtora
dos itens de exportação. O interesse por esta obra dizia respeito, principalmente, a nuclear em

51
Em 1851, a alfândega do Aracati arrecadou 10:124$592 (dez contos cento e vinte e quatro mil quinhentos e
noventa e dois réis), sendo que 8:699$148 (oito contos seiscentos e noventa e nove mil cento e quarenta e oito
réis) foram arrecadados de impostos sobre comercialização com o exterior. Já Fortaleza, no mesmo ano,
arrecadou 9:642$442 (nove contos seiscentos e quarenta e dois mil quatrocentos e quarenta e dois réis). In:
LEMENHE, Maria Auxiliadora. As razões de uma cidade: conflitos de hegemonias: Stylus Comunicações,
1991. p. 117.
97

Fortaleza os excedentes da produção agrícola que, por proximidade ou por conveniência, as


regiões produtoras faziam seguir ou para o Piauí ou para o Recife. A indefinição das praças
comerciais, que segundo os representantes das elites comerciais colocavam as capitais em
condições semelhantes a das pequenas praças, “dispersando a intermediação das capitais
provinciais e reduzindo-as à posição de clientes no mesmo pé que aqueles [pequenos núcleos
urbanos]” (MELLO, 1999, p. 224), era uma das questões que a elite fortalezense queria
resolver ao construir sua via férrea.

Entretanto, em relação ao projeto de construção de vias férreas na Província do


Ceará, a estrada de ferro Fortaleza-Baturité não era a única que era negociada com o governo
imperial, tendo-se ainda o projeto de construção da estrada Sobral-Camocim e de outra para o
vale jaguaribano, que ligaria o Aracati ao Icó. A favor do projeto de construção de uma
estrada de ferro para o Aracati, havia uma representação considerável na Assembléia
Legislativa Provincial. Como bem mostra Paiva (1979), em estudo sobre a elite política do
Ceará provincial, nas 10 legislaturas provinciais compreendidas entre os anos de 1850 a 1881,
ou seja, da 8ª até a 17ª legislatura, a representação aracatiense na legislatura provincial foi
maioria em 8 das 10 legislaturas daquele período. Entretanto, a elite fortalezense, mais
fortemente representada na Corte, empreendeu diversas frentes que impediram a
concretização do projeto da estrada de ferro Aracati-Icó. Tendo em vista arrebanhar os
principais centros produtores dos itens de exportação, a elite comercial de Fortaleza “teve que
liquidar as pretensões ferroviárias do Aracati. A rivalidade era, aliás, antiga. Há muito a praça
de Fortaleza movia uma guerra de morte ao comércio do Aracati” (MELLO, 1999, p. 224).
Esta disputa transcorreu todo o século XIX, e no interior dos centros de decisão política, era
ainda mais forte. Sobre esta disputa, Mello (1999, p. 225) ressalta:

No intuito de arrebatar ao Aracati o comércio do Jaguaribe e do Cariri, ela [a praça


de Fortaleza] sabotou quanto pôde o projeto da estrada Aracati-Icó. Em 1873, a
Assembléia provincial mesmo a engavetar projeto de lei que autorizava a construção
da linha; no ano seguinte, o agente consular da Grã-Bretanha no Aracati informava
que o privilégio fora finalmente concedido, mas a “três cavalheiros do Ceará [isto é,
de Fortaleza], os quais, sendo os maiores acionistas da linha Ceará-Baturité, têm
todo interesse em manter o assunto longe da atenção pública”. É que estes senhores
explicava o inglês, sabiam perfeitamente que a “a linha Aracati-Icó-Crato é muito
mais importante e de maior interesse, com um futuro maior e mais seguro devido ao
já considerável comércio com o interior, do que a estrada Ceará-Baturité”. Quando,
por ocasião da grande seca de 1877, o Governo imperial promoveu a construção de
duas ferrovias no Ceará, o projeto da Aracati viu-se preterido em favor do
prolongamento da Baturité e da implantação da Camocim-Sobral, a qual contava
com a influência da facção Pompeu do partido liberal, cujas bases eleitorais
situavam-se no norte da província e que apoiavam fielmente o gabinete Sinimbu.
98

Segundo Ribeiro (1920, p. 331-335), este projeto de construção da estrada de


ferro do sul da província, levado a debate durante a seca de 1877-1880, era o Plano Viriato de
Medeiros, apresentado pelo Dr. João Ernesto Viriato de Medeiros, que sofreu forte oposição
dos partidários do recém falecido senador Pompeu. Engavetado naquele no ano de 1878, seria
novamente proposto na Câmara dos Deputados, pelo deputado Dr. Álvaro Caminha, da ilustre
família Caminha, no ano de 1882, sofrendo novamente forte oposição. A família Caminha,
talvez em um último esforço em receber das benesses imperiais, já vinha, por meio da Câmara
do Aracati, como mostra um ofício de 1881, do então vereador e presidente da Câmara,
Raymundo Ferreira dos Santos Caminha, solicitando a efetivação de empreendimentos,
especialmente a construção da via-férrera:

O município foi largamente assolado pela grande sêcca de tres annos, durante a qual
ficarão paralisados quase todos os seos ramos de industria, e perderão-se quase
inteiramente os gados vaccum e cavallos.
........
Pouco a pouco vão-se restabelecendo as condições industriaes do município
anteriores a sêcca, não obstante a escassês de recursos a que ficam a população
redusida.
.........
O que principalmente embaraça ou entorpece o desenvolvimento das fôrças
productivas do município, é a grande falta de meios pecuniários com que de
continuo vive lutando a população, que por isso mesmo não pode dar a máxima
extensão aos seos trabalhos, e depois os pesados impostos de que se vê sobre
carregada por um modo inteiramente desanimador.
........
A medida mais efficaz, que o Governo poderia adoptar para o fim de reconstruir as
forças productivas do município, seria incontestavelmente a construcção de uma
estrada de ferro, tantas veses projectada, que d’aqui partisse para o centro da
província. É esta certamente a principal necessidade do município, que faz os mais
ardentes votos no sentido de ser promptamente attendido e satisfeito, visto que, só
da sua realisação, nas actuais circunstancias, depende a prosperidade e o
engrandecimento do mesmo município52.

Tais solicitações não seriam atendidas. Possivelmente, estas impugnações às


solicitações da elite aracatiense, assim como à família Caminha, tenham contribuído ainda
mais para o apreço cáustico que o filho do vereador Raymundo Caminha, o famoso escritor
Adolfo Caminha, autor do romance A normalista, nutria pela sociedade e a elite
fortalezense53.

52
Ofício de no 3127, do Paço da Câmara Municipal do Aracaty, ao presidente a província do Ceará, Pedro Leão
Veloso, em 27 de junho de 1881. In: APEC. Fundo: Câmaras Municipais. Série: Correspondências Expedidas.
Local: Aracati. Data: 1853-1912. Cx. 14.
53
Cf. CAMINHA, Adolfo. A normalista. 13. ed. São Paulo: Ática, 1998.
99

Além dos impostos de que reclamava o vereador Caminha, outras investidas


hostis dos representantes da elite fortalezense em relação aos comerciantes aracatiense podem
ser pontuadas. Já em 1851, por forte pressão da elite da capital, “o Governo imperial
extinguiu a alfândega da cidade rival [Aracati], a pretexto de combate ao contrabando e
malgrado o fato de a sua arrecadação ser superior a de várias capitais de província, como
Natal, Paraíba, Maceió e Vitória [...]” (MELLO, 1999, p. 224). A extinção da alfândega do
Aracati, substituída por uma simples Mesa de Rendas, significava a impossibilidade dos
comerciantes locais aracatienses de comercializar diretamente com as praças estrangeiras, em
especial com os comerciantes ingleses, assim como importar manufaturas e artigos para a
melhoria arquitetônica da cidade, porque a partir de então os navios estrangeiros só poderiam
aportar na Capital, que teriam o posto alfandegário. Esta situação só seria revertida em 1872,
com prejuízos enormes para a praça do Aracati, por ter perdido o boom das exportações de
algodão dos anos 60 do século XIX. A extinção da Alfândega do Aracati fazia parte também
do processo de centralização das rendas fiscais que o Império promovia (LEMENHE, 1991, p.
117). Sobre isto, Studart (2004, p. 349) ainda acrescentaria:

Não quero aprofundar o grau de veracidade dessa insinuação: ela revela, todavia, a
nunca esquecida rivalidade das duas cidades, a qual se manifesta a todo o instante e
por diferentes maneiras.
Para explicar a decadência de uma cidade, como a de um povo, é impossível
destacar esta ou aquela causa; a decadência é sempre a resultante de fatores
múltiplos e diversos, alguns dos quais de ação lenta e já antiga.
Em relação ao Aracati creio que ela se filia às dificuldades naturais de seu porto, à
substituição de sua alfândega por uma simples mesa de rendas, à centralização
desastrosa e depauperante, e principalmente ao sistema infeliz, que sempre tiveram
nossas assembléias provinciais e Câmaras Municipais de entregar a confecção de
seus orçamentos a indivíduos incompetentes de partidarismo político.
A morte o Aracati nasceu dos pesados impostos de que a exportação, e a importação
foram sobrecarregadas sem piedade e que afugentaram pouco a pouco de lá o
comércio honesto e inteligente transferindo-o para outros portos [...]

Em vista disso, o centro urbano do Aracati não foi privilegiado com melhorias
significativas. Estudando o traçado urbano das vilas que atendia ao projeto colonizador
português em sua política de constituição de núcleos urbanos para a reprodução de seu
capitalismo mercantil, Jucá Neto (2007) trata das vilas de Aracati e Icó, e destaca que a do
Aracati, pelo menos até o final do século XIX, não apresentaria mudanças substanciais em
seu traçado urbano. A partir das informações fornecidas por Antonio Bezerra de Menezes em
1901, o autor mostra que algumas construções no entorno das ruas principais, traçadas desde a
elaboração da vila no século XVIII, foram as poucas alterações no mapa da urbe aracatiense
durante o século XIX.
100

FIGURA 1 – PLANTA DO CENTRO URBANO DA CIDADE DO ARACATI NO


FINAL DO SÉCULO XIX

Fonte: JUCÁ NETO, Clóvis Ramiro. A urbanização do Ceará Setecentista: as vilas de Nossa Senhora da
Expectação do Icó e de Santa Cruz do Aracati. 2007. Tese (Doutorado Arquitetura e Urbanismo) - UFBA,
Salvador, 2007. p. 356.

Tal quadro é reforçado por Beatriz Oliveira (2009), quando, analisando os códigos
de posturas e os documentos de aforamentos da cidade aracatiense, percebe que a legislação
apresentada pela Câmara do Aracati previa controlar, na década de 1860, principalmente as
construções nas intermediações da cidade, assim como promover a limpeza urbana,
estabelecendo leis municipais sobre as atividades comerciais, sobre a criação e abate de
animais para o comércio de carne e couros, assim como legislar sobre a aparência das
residências, com vistas a promover a uniformização de um projeto de salubridade pública e
higiene domiciliar. Não há qualquer menção de uma reformulação urbana, melhoria do porto
ou construção de estradas, exceto, já na década de 1870, quando a Câmara solicitou
autorização para a instalação de trilhos nas ruas da cidade, para o funcionamento de um
bonde54, e também a autorização para a instalação da iluminação pública nas ruas55.

54
Collecção dos actos legislativos da Província do Ceará promulgados pela respectiva assembléia no anno de
1872. Fortaleza. Typ. Constitucional, 1872. Resolução no 1.488 de 16 de dezembro de 1872, que approva o
101

Portanto, pode-se entender a surpresa de um dos membros da comissão científica


que visitou a província do Ceará no ano de 1859. Francisco Freire Alemão (2006, p. 68-69)
assim relatava sobre a vida social no Aracati:

Há pouca sociedade: as famílias vivem retiradas e encerradas, pouca gente se vê às


janelas; só nos domingos e dias santos aparecem de tarde; mas isso mesmo pouco. É
gente industriosa, as mulheres de todas as classes trabalham muito em crivos que os
fazem delicados e de muito bom desenho, e chamam labirintos, assim como em
rendas que chamam bicos; mas parece que estas são principalmente feitas em chuças
e os melhores labirintos nas praias; trabalho em palha de carnaúba fazendo-se
chapéus, esteiras etc. etc. É notável que por toda a parte por onde tenho andado se
vejam sempre aracatienses empregados em vários serviços e em negócio [...]
Aracati é um ponto comercial em razão de ser mais perto do Jaguaribe, e o comércio
do Crato, do Icó, Quixeramobim etc. etc. se faz por aqui; todavia, não vejo esse
movimento que se viu dizer. Vejo a rua quase sempre quieta e deserta – portas e
janelas ou sem gente ou fechadas, de vez em quando passam pela rua grandes carros
com fardos de algodão puxados por seis e oito juntas de bois [...]
Não há passeios, o único é o afamado Cumbe: no domingo de tarde saímos nós
todos a fazer um passeio a cavalo e corremos toda a cidade em meia hora, por leste e
pelo lado da vargem, onde estão as igrejas.

Possivelmente, as notícias que davam conta de que o Aracati era ainda um grande
núcleo comercial despertaram no viajante a expectativa de encontrar um centro social
pulsante como era o da Capital, que projetava o centro urbano nos moldes europeus (PONTE,
1993). Contudo, o que viu foi pouca movimentação e nenhum passeio, ou praça para o
ajuntamento da sociedade aracatiense. Os ajuntamentos, característicos de localidades
interioranas, só se davam em momentos religiosos, aos domingos ou dias santos. Outra
questão interessante é o fato de ele atestar o caráter industrioso dos habitantes do Aracati, sem
contudo perceber um movimento intenso de pessoas no comércio local. Talvez o viajante não
tenha atentado para o fato de que, como cidade entreposto, o movimento do Aracati se dava
principalmente nos ancoradouros, fosse o da barra do Jaguaribe, para pequenas embarcações,
ou os de Canoa Quebrada, a 2 léguas da cidade, ou os de Cajuaes, Retiro Grande e Pedrinhas
(BRASIL, 1997, p. 49-50). Já no início da década de 1869, sobre o Aracati já reiterava o
Senador Pompeu em seu ensaio estatístico:

[...] Os habitantes do município são agricultores e creadores; o da cidade


commerciantes e industriaes; os aracatyenses passam pelos mais hábeis artistas da

contrato para a colocação de trilhos urbanos na cidade do Aracaty. Cf. também: GIRÃO, Raimundo. História
Econômica do Ceará. 2. ed. Fortaleza: UFC. Casa José de Alencar – Programa Editorial, 2000. p. 368.
55
Collecção dos actos legislativos da Província do Ceará promulgados pela respectiva assembléia no anno de
1876. Fortaleza. Typ. Constitucional, 1876. Resolução no 1.706 de 12 de julho de 1876, que manda publicar
diversos artigos de posturas da câmara municipal da cidade de Aracaty.
102

província. Em 1854 havia 162 fazendas de crear em que foram collectados :500
garrotes, e 435 poltros
.........
As casas importadoras despacham suas fazendas no Rio Grande ou na Fortaleza.
Exporta em algodão para cima de 50:000 arrobas, mais de 30:000 calçados, muita
cêra de carnahuba, obras de palha, etc. Sua importação directa, e por cabotagem,
excede a tres mil contos. Em 1857 entraram em seu porto 67 embarcações, afora 24
vezes os vapores da Companhia Pernambucana
Tem a cidade cinco capellas alem da matriz, 600 casas de telha, e 415 de
palha.(BRASIL, 1997, P. 50, 54)

É interessante notar que, à revelia das pressões e das investidas hostis do centro
do poder oficial da província, em concordância com a elite de Fortaleza, a vida econômica
aracatiense buscava meios de perpetuar suas características. O algodão, o comércio de couros,
solas e calçados, ainda permitia ao Aracati ter um poder de barganha em relação aos seus
compradores. Tal posição, que a classe comercial aracatiense lutava por manter, era
empreendida por meio da perspicácia dos seus membros. Voltando ao início da década de
1850, quando da extinção da alfândega, Lemenhe (1991, p. 117) mostra que na Mesa de
Rendas do Aracati, nos primeiros anos após 1851, a queda da arrecadação de negócios com o
exterior caiu drasticamente, sendo que em 1852, a Mesa de Rendas ainda arrecadou
4:705$758 (quatro contos setecentos e cinco mil setecentos e cinqüenta e oito réis), mas em
1853, esta renda caiu para 50$061 (cinqüenta mil e sessenta e um réis). Entretanto, com
relação às rendas nacionais, ou seja, no comércio com outras províncias, a arrecadação passou
de 1:441$133 (um conto quatrocentos e quarenta e um mil cento e trinta e três réis) em 1852,
para 2:382$432 (dois contos trezentos e oitenta e dois mil quatrocentos e trinta e dois réis) em
1853, tendo um novo aumento no ano seguinte. Estes números mostram que, na
impossibilidade de negociarem diretamente com o exterior, os comerciantes aracatienses
passaram a investir no comércio interprovincial, em especial com a praça de Pernambuco,
com quem já mantinham laços antigos.

Até o início da década de 1870, quando da vinda de diversas casas comerciais


estrangeiras e de seus representantes para a praça do Aracati (TAKEYA, 1994), os
comerciantes aracatienses reforçaram ainda mais o comércio com o Recife. Referindo-se aos
comerciantes aracatienses em meados do século XIX, Girão (1902, p. 337-338) afirma: “O
comércio com a praça de Pernambuco era ativíssimo, e por vezes no ano os negociantes do
Aracati faziam seus passeios àquela praça principalmente por divertimento”. Sobre a opção
dos comerciantes aracatienses em manter relações comerciais com o Recife, em detrimento
103

dos interesses dos comerciantes de Fortaleza, à revelia das investidas e tentativas de praça da
Capital em forçar a subserviência da praça aracatiense, Mello (1999, p. 224) reitera:

[...] Fortaleza não conseguiu atrair então o comércio do Aracati. O tiro saiu pela
culatra pois uma parte do movimento do vale jaguaribano reorientou-se para o Rio
Grande do Norte, quando anteriormente era quase toda a região do vale do Apodi
que negociava através da cidade cearense; o Recife também saiu ganhando, ao
reforçar sua posição no sul do Ceará. Ainda em 1859 um viajante pernambucano
asseverava que “o comércio do Aracati é talvez o mais importante da província,
sendo essa cidade que abastece grande parte do sertão”, sendo, por sua vez
“abastecida pela [praça] do Recife, com que mantém importante e freqüentes
relações”.

Em 1872, em relatório, o Presidente da Província chamava a atenção para a


preferência do comércio aracatiense em relação à Pernambuco:

O Aracati, por exemplo, exporta para o estrangeiro e Pernambuco, mais da metade


de seus produtos e faz compras avultadíssimas de mercadorias estrangeiras naquela
praça, de forma que pode-se avaliar sua exportação superior a réis 2.000:000$000 e
importação nunca inferior a este algarismo [...].56

Também na década de 1870, vemos nas correspondências dos comerciantes à


Casa Boris e Fréres, que a possibilidade de comercializar com a praça de Pernambuco lhes
dava a oportunidade de negociar abatimentos nos preços com as casas comerciais de
Fortaleza, quando assim percebiam a elevação dos valores das mercadorias, como se você na
seguinte correspondência do comerciante Melchiades da Costa Barros, que representava a
Casa Boris e Freres no Aracati:

Como devem saber comprei aqui aos Snrs. Levy Freres 400 barricas a 26:000, sito q
fasendo-lhes favor, e quase que forçado, como posso ficar com os 150 de V. Mcês e
27.000 do preço mais despesas?
.......
Há presentemente no mercado quantidade de artigo vindo d Pernambuco, e todos
57
querem dispor mesmo sabendo o custo, temendo que o artigo aumente o preço.

Nota-se, portanto, que a classe aracatiense já previa determinados tipos de


arranjos, tendo em vista reverter sua situação frente às investidas hostis da elite de Fortaleza,

56
In: FERREIRA NETO, Cicinato. Estudos de história jaguaribana: documentos, notas e ensaios diversos
para história do baixo e médio Jaguaribe. Fortaleza: Premuis, 2003. p. 383.
57
Correspondência do Comerciante Melchiades da Costa Barros à Casa Bóris & Fréres, em 5 de maio de 1879.
In: APEC. Arquivo da Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data:1874-1880. Cx.
6.
104

prejudicando seus interesses, negando ou opondo-se a investimentos estruturais no Aracati,


além de empreender medidas que forçaram a perca de lucros comerciais, como na extinção da
alfândega, intervenções estas que atendiam ao projeto centralizador imperial, que favorecia a
Capital. Quanto ao sentimento aracatiense com relação a isso, Studart (2004, p. 349-350)
ainda coloca:

Por toda parte o desânimo, a cada tanto a inércia.


E o Aracati já mereceu que quisessem fazer dela nossa capital!
Que causa ou causas têm concorrido para tal abatimento?
Tome-se de um aracatiense, pergunte-se-lhe por que sua terra está tão decadente, e
ele responderá sem detença que ao ódio e à inveja da capital deve-se o estado
presente daquela rica porção do nosso território
........
A morte do Aracati nasceu dos pesados impostos de que a exportação, e a
importação foram sobrecarregadas sem piedade e que afugentaram pouco a pouco de
lá o comércio honesto e inteligente transferindo-o para outros portos e máxime para
o de Mossoró, seu vizinho
........
Supunha-se agora esses óbices, que em Fortaleza eram dirigidos contra o comércio
de couros, fazendo-se sentir pessoalmente, fora de qualquer cálculo sobre todos os
ramos da indústria e comércio aracatienses, e ter-se-á a razão do grave erro
econômico dos nossos deputados, erro que acarretou tão desastroso desenlace.

Para o autor, os aracatienses afirmavam que a razão para as atitudes da elite


fortalezense em relação ao Aracati eram de “ódio” e “inveja”. Não entrando no mérito de tal
postura, nota-se que a aversão aos projetos e determinações do centro de poder situado na
Capital era uma realidade entre os comerciantes aracatienses, e em parte entre a classe
política. Movimentos simpáticos às idéias republicanas e liberais, assim como às idéias de
autonomia, sempre tiveram espaço entre a elite aracatiense durante o século XIX. Abreu
(2009), analisando o advento das lojas maçônicas na Província do Ceará no século XIX, como
espaços de discussão dos projetos políticos de pensamento iluminista, republicano e liberal,
lembra que a primeira loja maçônica de que se tem conhecimento no Ceará foi criada no
Aracati, tendo-se notícia que já funcionava em 1833, apresentando como Venerável o coronel
João Tibúrcio Pamplona (ABREU, 2009, p. 58). Em 1870, surgiu também no Aracati o Clube
Republicano, uma aglomeração que objetivava a “propaganda da republica”. Na ata de sua
criação, anunciava o presidente do clube, o sr. Júlio Cesar da Fonseca Filho:

[...] o assumpto da reunião disse preambulamento– que já era tempo de desapparecer


de uma vez o único throno d’America, que só tem servido até hoje de tumulo para o
povo; e que a realeza é a morte nacional e só com a republica este paiz teria a sua
vida soberana e livre
........
D’ahi concluiu, só haveria uma salvação – a republica, onde todos seriam irmãos à
sombra do mesmo direito; e a republica far-se-hia se fossem postas em acção todas
105

as forças da intelligencia e todas as energias de coração d’aquelles qe viam na


democracia o ideal que se elabora nas escolas e nas oficinas, na imprensa e nos
comícios.58

Dos que participaram do Clube Republicano, alguns nomes nos são familiares,
como de Julio Cesar da Fonseca Filho, presidente do clube e comandante da Guarda Nacional,
aparecendo algumas vezes na documentação da Comissão de Socorros, assim como o padre
João Francisco Ramos, dos farmacêuticos fornecedores de medicamentos à Comissão,
Francisco do Carmo Ferreira Chaves e João Adolpho Gurgel do Amaral, dos comerciantes
Luiz de Lavor Paes Barreto e Manoel Lourenço Cintra Collares e do tabelião Aureliano de
Paula Martins (envolvido no movimento que provocou a saída do comissário Peixoto).

Quanto à “morte” do Aracati, há de se relativizar tal afirmação, sendo que a


relevância da atividade comercial no Aracati ainda perpetuou. Contudo, o advento da seca
viria dar um golpe severo na classe comercial aracatiense e na sua “indústria”, como já
ressaltado aqui em ofício da Câmara, de 1881. Entretanto, no recorte temporal aqui analisado,
os comerciantes aracatienses mantinham-se em atividade, mesmo em meio a adversidades. O
que a historiografia nos propõe sobre a aversão do grupo mais abastado do Aracati, em
especial, a classe comerciante, em relação à política empreendida pelos da Capital, no sentido
de marginalizar o comércio aracatiense, ainda também em relação à política de centralização
do Império, vista por alguns como razão do atraso e da “falta de liberdade” que alguns
sofriam, nos leva a entender a esfera de influência local na qual os comerciantes, dispostos a
empreender ações segundo perspectivas distintas da proposta primordial das Comissões de
Socorros, agiram de forma a negociar o predomínio do poder oficial nos destinos da cidade do
Aracati no período de seca.

Ainda, se levarmos em consideração que em 1877, como analisado no capítulo


anterior, os comerciantes, tendo como representante a figura do suíço G.J. Brummschveiler
para fazer a função de intermediador entre os interesses da classe comercial aracatiense e o
projeto do governo provincial, atendendo, parcialmente, a ambos; e ainda, considerando a
ação conjunta da classe comercial, liderada pelo comerciante Antonio Francisco Pinheiro,
tendo como aliados diversas pessoas do Aracati, com o objetivo de reaver a estadia na
Comissão de Socorros de membros do próprio Aracati; e mais ainda, considerando que

58
REVISTA DO INSTITUTO DO CEARÁ. ACTA - da 1ª reunião preliminar para a creação de um Club
Republicano na cidade do Aracaty. Anno XIV. Tomo XIV. Typ. Minerva, 1900. p. 281-284.
106

práticas, como a de privilegiar o comércio com a praça de Pernambuco, no sentido de haver


um caminho de ganhos, paralelo à praça de Fortaleza, e ainda disso usufruir para barganhar
determinadas facilidades frente à negociação com as casas comerciais da Capital, nos leva a
propor que a classe comercial aracatiense, em parceria com outras pessoas, mesmo não sendo
comerciantes, mas também descontentes com a política que o centro de poder oficial da
Província impunha sobre o Aracati, agiam sob estratégias historicamente construídas e
definidas no grupo, como forma não apenas de resistir ao controle e investidas hostis de uma
elite nucleada na Capital, mas também de intervir, transformando o quadro, tendo
instrumentos de negociação e barganha à mão.

Se levarmos em conta o fato do presidente José Júlio ter buscado “renegociar” a


estadia dos comerciantes na Comissão de Socorros, mostra que a ação destes indivíduos
influía na forma como o governo provincial se posicionou neste jogo de negociação de
posições estratégicas, reformulando as práticas nas relações de força que constituíam tal
diálogo.

No capítulo anterior, consideramos a Comissão de Socorros como um instrumento


de reiteração e reprodução de um modelo de estrutura social e de poder que um determinado
grupo na teia social pretende impor aos demais partícipes de tal rede. Ao deparar com a
resistência e o posicionamento estratégico de cada agente ou grupos de agentes sociais, a
própria estrutura ganha novos contornos e conteúdos. Neste sentido, recorremos à Sahlins
para termos um quadro onde a estrutura é “perfomativa” e não simplesmente “prescritiva”,
pois são nos diversos sentidos, que são definidos pelos interesses dos agentes sociais, que a
estrutura social imaginada passa ser um algo para além e distinto do imaginado. A estrutura, e
os instrumentos de sua reprodução, são de certa forma “signos”, pelos quais os significados
devem ser impostos, e o sucesso da estrutura em sua reprodução é a possibilidade de
apropriação dos agentes sociais desses significados. A comissão de socorros, enquanto um
signo da reprodução do poder oficial, precisava, no interesse do agentes da elite política e
econômica provincial, ser entendida enquanto “significado” que eles tentavam impor.
Contudo, “ ‘interesse’ e ‘sentido’ são dois lados da mesma coisa, ou seja, do signo, enquanto
este é respectivamente relacionado a pessoas e a outros signos” (SAHLINS, 2003, p. 187).
Outras pessoas, outros signos, outros significados: “do modo como for implementado pelo
sujeito ativo, o valor conceitual adquire um valor intencional – que pode muito bem ser
diferente do seu valor convencional” (SAHLINS, 2003, p. 187-188).
107

Entretanto, na forma como esta intenção é realizada e colocada em prática na


apropriação do signo, impondo-lhe outro significado, é que pretendemos nos ater, avaliando
como os comerciantes aracatienses se apropriaram da comissão distribuidora de gêneros,
pervertendo seu significado e sua função. As comissões de socorros da seca de 1877-1880
ficaram marcadas na historiografia cearense pela imagem da corrupção e do desvio de seu
propósito primordial. O que propomos, é que no caso específico da Comissão do Aracati, tal
desvio do significado e propósito imposto pelo centro de poder oficial se deu a partir de uma
estratégia de indivíduos aracatienses, em especial da sua classe comerciante, no sentido de
fazer da Comissão de Socorros do Aracati um instrumento que atenderia aos seus interesses, e
não apenas aos do governo provincial.

Não desconsideramos que os problemas de corrupção tenham sido uma constante


não só no Aracati, mas em toda a Província naquele período. Contudo, o que tencionamos
analisar, são os mecanismos de desvio para a prática daquilo que se chamou de corrupção e
“falta de patriotismo”, no caso aracatiense. Acreditamos que a ação estratégica dos envolvidos
na conjuntura da Comissão do Aracati esteja para além da corrupção pura e simples,
revelando tensões e conflitos, e não uma simples fuga da regra.

Este contexto nos mostra o nítido quadro de uma realidade onde o poder político
oficial, atendendo aos intentos da ordem que se avolumava, segundo uma nova relação de
produção específica do sistema capitalista - que tinha a Inglaterra como centro irradiador no
aspecto global, o Rio de Janeiro como reprodutor na esfera imperial e Fortaleza a nível de
Província - impunha sua agressiva consolidação, generalizando novas relações sociais e
divisão do trabalho. Semelhantemente, um modelo proposto por Levi (2000), em obra que
analisa um momento de expansão de determinado modelo centralizador, o regime monárquico
absoluto na Itália do século XVII, traz à tona esta relação entre centro irradiador de
determinada ordem, a corte absolutista, e sua periferia, as comunidades rurais ainda não
inseridas em determinada lógica prevista pelo centro de poder. Ainda que situados em
momentos distintos, propomos aproximar nossa análise desta do autor italiano, no sentido de
que ambos os casos abrangem momentos de crise de um determinado modelo de estrutura
social, em momento de transição. Em ambos os casos, notamos que constam em “fase de
conflito do qual saíram transformados tanto a sociedade local quanto o poder central” (LEVI,
2000, p. 44). Esta ação transformadora não foi monopólio do poder central, mas o elemento
108

resistente e estratégico da região periférica fez-se sentir no processo de transformação da


estrutura. Ainda não nos detendo no que surgiria após a grande seca do século XIX, vale
antecipar aqui que o modelo assistencialista empreendido nas secas seguintes, apresentaria
ainda o eco das tensões e alianças feitas na grande seca de 1877-1880, e ainda, este período
determinaria de forma substancial a relação entre a Capital e o Aracati.

Contudo, como bem lembra o historiador italiano,

a participação de cada um na história geral e na formação e modificação das


estruturas essenciais da realidade social não pode ser avaliada somente com base nos
resultados perceptíveis: durante a vida de cada um aparecem, ciclicamente,
problemas, incertezas, escolhas, enfim, uma política da vida cotidiana cujo centro é
a utilização estratégica das normas sociais. (LEVI, 2000, p. 45)

Nota-se que os comerciantes aracatienses tinham a consciência de que sua ação


deveria ser medida, avaliada constantemente, e que o embate direto com o centro de poder, no
sentido de negá-lo de todo, não atenderia seus interesses. Por isso vemos que, ainda que
negociando com o Recife, negociavam também com as casas comerciais de Fortaleza.
Pervertendo a proposta primordial da Comissão de Socorros, necessitavam ainda de um
mediador que a compusesse, atendendo tanto ao governo provincial quanto aos seus
interesses59. Da mesma forma, segundo obra clássica da micro-história italiana, os
camponeses da vila de Santena, na sua sempre conflituosa relação com a nobreza e os
senhores feudais da região do Piemont, e esta, também em constante negociação com a corte
de Vittorio Amedeo II, compuseram todos eles um grande quadro de negociação entre centro
de poder e periferia, sendo que a ação estratégica destes grupos fez surgir a figura de Giulio
Cesare Chiesa como astuto mediador destes conflitos, fazendo por meio de sua estratégia
pessoal, assentar sobre a região do Piemont um período de quarenta anos de paz entre os
grupos sociais. Contudo, quando da explosão de nova crise, na guerra de Vittorio Amedeo
contra a França, morrendo o pároco Giulio Chiesa, seu filho, o também padre Giovan Battista
Chiesa, tentou seguir a estratégia e os passos de seu pai morto. O contexto no qual se inserira
desfavoreceu a posição do mediador nos conflitos generalizados que se deram a partir de
então. A estratégia de então exorcista Giovan Chiesa mudou, mas o sucesso de sua estratégia
não repetiu a de seu pai.

59
As figuras do suíço G.J. Brummischveiler e do capitão José Alexandre Pereira, atendiam a essa definição, por
terem feito essa dupla função: atender as comerciantes e a política provincial de distribuição de socorros, o
primeiro em 1877, o segundo, no restante do ano de 1878, como veremos ainda neste capítulo.
109

Da mesma forma, os sucessos e insucessos de determinada estratégia fazem parte


das possibilidades múltiplas que as relações de forças entre os agentes sociais proporcionam.
Quando da detecção da estratégia da comissão de 1877, em lucrar com a Comissão de
Socorros, tendo como mediador o suíço Brummschveiler, o poder oficial tratou de impor sua
prevalência, apercebido também da sublevação de um terceiro agente: a massa retirante.
Entretanto, quando do envio dos comissários “de fora”, o poder de barganha auferido pela
classe comerciante, no sentido de definir como e quando o fornecimento de gêneros
complementares podia ser feito, face ao estado de crise instalado, e ainda a possibilidade de
impedir o bom desempenho dos comissários de socorros, deu nova força aos aracatienses no
palco de disputas. A postura do presidente José Júlio faz-nos considerar a momentânea vitória
dos comerciantes naquele contexto. Contudo, a seca ainda se demoraria por quase dois anos
mais, e as negociações das relações de forças apresentaria ainda outros episódios. Como
destaca Levi (2000, p. 45), “os conflitos e contradições vêm acompanhados da contínua
formação de novos níveis de equilíbrio, instavelmente sujeitos a novas rupturas”.

Portanto, entendemos como estratégia o conceito proposto por Levi, quando


aplicado à forma da racionalidade de determinado grupo no jogo de disputas entre um centro
de poder e sua periferia:

Esta racionalidade pode ser mais bem descrita se admitirmos que ela se expressava
não só através de uma resistência à nova sociedade que se expandia, mas fosse
também empregada na obra de transformação e utilização do mundo social e natural.
É neste sentido que usei a palavra estratégia. (LEVI, 2000, p. 45)

Retomada as rédeas da Comissão, os comerciantes aracatienses novamente


empreenderiam uma política de ganhos. Contudo, a realidade começava a mudar, e isto
refletiria em novas frentes de confrontos e em novas formas de negociação e imposição por
parte do governo provincial.

2.3. A volta das “boas quadras”: os comerciantes retornam à Comissão

A estruturação e racionalização das práticas da Comissão de Socorros, de certa


forma, alcançaram êxito na administração do comissário Luiz Carlos da Silva Peixoto. Quanto
à multidão de retirantes, as notícias de que o comissário do presidente Aguiar estava a matar
110

os retirantes de fome, parece ter afugentado os emigrantes, e a notícia que o Aracati não
atendia às suas necessidades fez com fossem buscar outras paragens, especialmente a
Capital60. A “reemigração”, seja voluntária ou forçada, levada a cabo ainda antes da chegada
do comissário Peixoto, fez sair naquele ano de 1878, segundo informação de Theóphilo
(1922, p. 256), “cerca de 16.000 almas”. Estas medidas, pelo menos não fizeram subir o
número de retirantes alojados no centro urbano, que permaneceu na faixa dos 40 mil na
metade daquele ano.

A retirada de emigrantes para a Capital foi lembrada ainda por Theophilo (2000,
p. 220), como sendo a razão da chegada da varíola no Aracati. Como não podia cortar as
comunicações com a cidade, Fortaleza receberia boa parte dos retirantes que estavam no
Aracati ou que mudaram sua rota, deixando de seguir pelo Jaguaribe e desviando para a
Capital.

O volume de gêneros distribuídos no mês de agosto de 1878, faz-nos constatar


esta manutenção do número de retirantes na cidade: “(...) farinha 5.710 saccas, milho – 10;
carne – 3.195 fardos de 4 arrobas; bacalhao – 7 barricas. Estas parcellas reunidas sommão
8.862 volumes, regulando o dispêndio diário 285”61. Tomando por referência o item de maior
quantidade, a farinha, comparando com o mês de dezembro de 1877, quando foram
consumidos 3.356 sacas de farinha compradas ao comércio local, e mais cerca de 1.100 sacas
enviadas pelo governo, totalizando um número (impreciso) de 4.456 sacas de farinha,
percebemos que a diferença de pouco mais de 1.300 sacas a mais na metade de 1878. É
interessante notar que, mesmo em meio a uma política de racionamento de gêneros, há uma
diferença para mais na distribuição para um número equânime de retirantes. Isso pode ser
explicado pela forma como comissário Peixoto organizou a distribuição, tornando-a mais
eficiente. Numa tabela fornecida por ele, vemos como se organizava o pessoal empregado
para distribuir os socorros:

60
O ano de 1878 representaria para a capital o momento de maior crise durante aquele período de seca. o número
de pessoas emigradas ultrapassou os 100 mil, e a epidemia de varíola fez abater sobre a capital um dos seus
episódios mais horrendos, quando em um só dia, em dezembro de 1878, mais mil cadáveres desciam à sepultura
no Cemitério São João Batista, por culpa da epidemia.
61
Ofício de no 13 do comissário João José de Miranda, ao presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque
Barros, em 25 de agosto de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas localidades. Data:1877-1889. Cx. 2.
111

TABELA 3 – PESSOAL EXISTENTE NA COMISSÃO DE SOCORROS PÚBLICOS


DA CIDADE DO ARACATI EM JUNHO DE 1878, SEUS RESPECTIVOS CARGOS E
VENCIMENTOS

Número Nomes Cargo Vencimento


-----------------Secretaria-----------------
1 Júlio Cesar da Fonseca Filho Secretario enc. das compras 70:000
2 ---------Vago---------- Escrevente archivista 65:000

--------------Depósito Central--------------
3 Jozé Joaquim d’Aguiar Administrador 70:000
4 Francisco Gurgel do Amaral Valente Ajudante 60:000

-----------------Pagadorias----------------
5 Theodomiro Emilio Ayres Admor Pagador 50:000
6 Lafayete Franco Pereira Idem 50:000
7 José Cypriano Carmo Monteiro Idem 50:000
8 José Leandro Bizerra Idem 50:000
9 João Paulo dos Santos Brigido Ajudante na distribuição de 20:000
dietas
10 --------Obras e imigração ------------ Director do trabalho e
João Pinto Chaves encarregado do embarque
dos emigrantes 70:00

11 -----------------Capatazia---------------------
Horacio Franco Ramos Enc. do embarque dos
12 generos de bordo à terra 70:000
Francisco Xavier de Carvalho Recebedor dos generos do
13 porto 50:000
Dorgival Ayres do Nascimento Conductor dos generos do
porto para o deposito
central e d’este para a 20:000
pagadoria

14 ----Fiscalização das Companhias ou turmas ---- 45:000


João Roiz Pará Fiscal

15 ---------------Serviço mortuário----------------
Pedro Borges Director 40:000

Total de Vencimentos 780:000

Fonte: Anexo ao ofício de no 48 do comissário Luiz Carlos da Silva Peixoto, ao presidente da província, Dr. José
Júlio d’Albuquerque Barros, em 29 de junho de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série:
Correspondências recebidas. Data: 1877-1889. Cx. 2.

Esta estrutura tinha em vista prevenir quaisquer desvios e o dispêndio na


distribuição dos gêneros. A menor quantidade de gêneros apresentada pela comissão de 1877
estava ligada à forma como se promovia a distribuição, ainda segundo uma estrutura
provisória e indefinida, e que entrava em crise sempre que o número de retirantes parecia
112

duplicar. Some-se a isso a falta de prestação de contas da comissão anterior, o que deve ter
subestimando em muito o número de gêneros distribuídos nas fontes oficiais.

No que tange a ordem e a salubridade, o deslocamento dos retirantes para a


margem oposta do rio Jaguaribe favoreceu ao plano do comissário Peixoto. Após a volta do
Dr. Meton de Alencar, em março, na companhia de três médicos: o da Câmara Municipal, Dr.
Domingo José Pereira Pacheco, do Dr. Antonio Manoel da Costa Barros, e do Dr. Francisco
de Paula Cavalcante de Alburquerque, o comissário Peixoto instituiu uma enfermaria em meio
aos abarracamentos após o rio, e mais dois hospitais na cidade. O tratamento dos doentes por
meio destes hospitais e o controle do número de retirantes, assim como o de epidemias, que
até o meio daquele ano haviam aumentado o número de óbitos no Aracati, fez surgir, no
segundo semestre de 1878, um clima de contentamento por parte do comissário que assumira
em agosto, o capitão José Alexandre Pereira:

[...] o estado sanitário desta cidade continua a melhorar consideravelmente, em


virtude do progressivo desapparecimento das moléstias que tantos estragos fiserão
na população; porquanto nota-se actualmente que o obituário apenas attinge a
número de vinte e poucas pessoas por dia [...]”62.

Entretanto, a varíola ainda grassava endemicamente em alguns pontos do Aracati,


sendo que a Comissão tratou de equipar um asilo para os variolosos, e ao final de setembro,
já comportava 100 bexigosos63. Segundo as correspondências da Comissão de Socorros, o
bom andamento do estado sanitário da cidade e dos hospitais, só foi quebrado pela “incúria”
do Dr. Francisco de Paula Pessoa, “porquanto alem de ser o mais desabusado para fornecer
gordas dietas e receitar medicamentos de alto preço, tem manifestado um procedimento assas
irregular pela immoralidade em que vive [...]”64. Após reiteradas petições para a dispensa do
dito médico, o presidente José Júlio o demitiu no dia 9 de outubro daquele mesmo ano. O

62
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque Barros,
em 15 de outubro de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas localidades Data:1877-1889. Cx. 2.
63
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque Barros,
em 27 de setembro de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
64
Idem.
113

outro médico, o Dr. Antonio Manoel da Costa Barros, tendo este solicitado sua dispensa, foi
também dispensado pelo presidente da Província.65

É interessante notar como as correspondências da Comissão mudaram suas


abordagens, se compararmos o primeiro semestre com o segundo. Afora os problemas com o
Dr. Francisco de Paula, nada mais que fugisse do padrão de uma Comissão de Socorros, no
sentido de cumprir sua função de distribuidora de gêneros, foi relatado. A normalidade pairou
novamente sobre a documentação do órgão distribuidor de gêneros. Empreendimentos como a
conclusão da Casa de Caridade e o cercamento de algumas áreas próximas ao rio Jaguaribe
para um possível plantio foram assuntos de relevância 66.

No que tange aos interesses dos comerciantes, os meses de agosto a outubro não
ofereceram boas oportunidades de negócios. Raras vendas foram feitas à Comissão, e estas
compreendiam apenas itens suplementares como bacalhau e carne salgada, e peças de chita e
madapolão, mas em pequenas quantidades67. Provavelmente, a manutenção do número de
retirantes tenha “enfraquecido” o mercado aracatiense, e os comerciantes poucas vezes
puderam intervir sobre o fornecimento à Comissão de Socorros.

Entretanto, o mês de novembro traria novas oportunidades para os comerciantes


aracatienses. Interessante notar que, do ponto de vista da ordem e da segurança, a presença
dos retirantes representava para a elite aracatiense uma ameaça. Entretanto, quando no
penúltimo mês de 1878, a Comissão de Socorros informou o aumento do número de
adventícios, de levas e mais levas de emigrados chegados à cidade, alguns interessados nas
“boas quadras” começavam a se manifestar e a possibilidade de negociação com a Comissão
se efetivou.

As “boas quadras” foi uma menção feita pelo suíço G.J. Brummschveiler, ao qual
já nos referimos no capítulo anterior, em correspondência enviada por ele à Casa Bóris e

65
Ofício de no 9.971 do presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque Barros, à Comissão de Socorros
do Aracati, em 9 de outubro de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
expedidas. Data: 1878. Cx. 33. Livro: 228.
66
Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque Barros,
em 25 de outubro de 1878. In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas.
Diversas localidades. Data:1877-1889. Cx. 2.
67
Cf. Ofício da Comissão de Socorros do Aracati ao presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque
Barros, em 16 de novembro de 1878. In: APEC - Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências
recebidas. Diversas localidades. Data: 1877-1889. Cx. 2.
114

Fréres. No inicio de novembro, ele já mencionava a situação do mercado aracatiense,


afirmando estar “animado”68. Em dezembro, o mesmo comerciante mantinha o entusiasmo
com a possibilidade de fornecer à Comissão, em vista da oportunidade oferecida pela entrada
de retirantes: “Firme e animado continua o nosso mercado, principalmente para alimentícios.
A imigração dos infelizes flagellados pela sêcca continua sem cessar, e, em brevi teremos um
numero considerável d’esses infelizes.69

A suposta entrada diária de retirantes reacendeu a rapina dos comerciantes no


Aracati. Pelas correspondências, tanto de G.J. Brummschveiller como do comerciante
Melchiades da Costa Barros, pudemos perceber a intensificação das negociações entre o
comissário José Alexandre Pereira e os comerciantes locais. No final do ano, tendo em vista
não perder a oportunidade de também lucrar com as vendas para a Comissão, o suíço
apressava os responsáveis da Casa Bóris e Fréres para o manter abastecido de gêneros:

N’esses últimos dias tem se vendido farinha, arroz e charque em grande escalla ao
commissário de soccorros, e muito decerto que V. Sas. se utilisassem dos meos
serviços, afim de approveitar taes quadras.
Tenho 200 barricas de bollaxas para vender, por isso peço-lhes para que contractem
70
com o governo a venda, para fazer remessa immediata”.

Ainda que, segundo a recomendação do presidente José Júlio, as compras feitas ao


comércio local precisassem da autorização do governo, por vezes a solicitação que chegava à
Mesa de Rendas era de pagar por gêneros já comprados. Isso nos leva a compreender, de certa
forma, a ausência da prestação de contas destas compras na documentação da Comissão de
Socorros, naquele final de 1878. As contas da Comissão novamente estavam chegando a
cifras altíssimas. Pela correspondência do comissário da Mesa de Rendas e responsável pelos
pagamentos das compras feitas aos comerciantes locais, Adolpho Pagels, vemos a referência à
ascensão dos valores das contas da compra de gêneros naquela segunda metade do ano de
1878:

Em admiravel progressão seguem as despesas da Commissão distribuidora dos


soccorros, como verá V. Exa. do confronto estabellecido entre os balancetes do mez

68
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 12 de novembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
69
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 3 de dezembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data: 1874-1880. Cx. 6.
70
Ofício do Sr. G.J. Brummschveiler à Casa Bóris & Fréres, em 28 de dezembro de 1878. In: APEC. Arquivo da
Casa Bóris & Fréres. Correspondências de Comerciantes do Aracati. Data:1874-1880. Cx. 6.
115

de setembro ultimo com o do mez findo, data aquella em que a referida commissão
deo principio a seos trabalhos.
Despendeo a commissão n’aquelle período de 8.946 volumes e n’este de 13.869,
notando-se portanto uma differença de 4.923 volumes ou 35,5% de augmento, sem
que eu enxergue uma causa que justifique tamanha despesa porque o numero de
indigentes de então ainda permanece e talvez em numero menor.
A commissão que se compõe de dois membros, os snrs. Jozé Alexandre Pereira e
Jozé Augusto Gurgel do Amaral, naturalmente occupados pelos seos afaseres
particulares, talves não prestem a devida attenção em acautellar a Fazenda Publica,
deixão que a distribuição dos soccorros seja feita sob a vigilância de uma malta de
zangões que se achão empregados n’aquelle serviço e d’esta arte, deixa de ser o
povo efficasmente soccorrido, em proveito desta gente que só tem por fim
locupletar-se com o que pertence ao Governo.
Se officialmente estivesse investido de poderes para fiscalisar os actos d’esta
commissão, certamente já teria tolhido o passo a tanto esbanjamento e a despesa se
71
redosiria na mesma proporção em que está augmentada.

Definitivamente, as “boas praças” haviam voltado, e os comerciantes não


perderam a oportunidade de lucrar com elas. Desta vez, tendo como mediador o capitão José
Alexandre Pereira, auxiliado pelo farmacêutico José “Augusto” Gurgel do Amaral (na
verdade seu nome era José Adolpho Gurgel do Amaral), a classe comerciante do Aracati fazia
valer sua estratégia de apropriação da Comissão de Socorros, como meio de auferir lucros que
em outras oportunidades não lhes seriam possíveis. Provavelmente, os “afaseres particulares”
dos comissários seriam o cumprimento da função de mediadores da relação entre
comerciantes e governo provincial. A “malta de zangões”, organizada anteriormente pelo
comissário Peixoto para racionar a distribuição, naquele momento servia à “gente que só tem
por fim locupletar-se com o que pertence ao Governo”.

Aparentemente, o limite do acordo entre o governo provincial e os comerciantes


locais foi infringido por estes, e aquele devia, segundo o empregado responsável pelas
compras no Aracati, “investir” alguém de poder – talvez ele próprio - para fazer valer
novamente a posição hegemônica e prevalecente do governo sobre os rapinadores.

Coincidentemente, ao fim do ano de 1877 e início do ano de 1878, o governo


provincial havia agido de forma agressiva sobre os membros aracatienses, demitindo-os da
Comissão e estabelecendo novos rumos na distribuição dos socorros no Aracati. Retomada a
posição perdida, os comerciantes haviam avançado, mas, aparentemente, avançaram
demasiado ao final do ano de 1878. Então, novamente numa passagem de ano, de 1878 para

71
Ofício de no 68, da Comissão de compras do Aracati ao presidente da província, Dr. José Júlio d’Albuquerque
Barros, em 2 de fevereiro de 1879 In: APEC. Fundo: Governo da Província. Série: Correspondências recebidas..
Localidades diversas. Data:1877-1889. Cx. 18.
116

1879, ao governo provincial importava intervir novamente, para “tolher” o esbanjamento.


Contudo, a idéia proposta pelo comissário Pagels não o presentearia com tal investidura do
poder oficial. Desta vez, estrategicamente, o Governo Imperial reproduziria sua hegemonia
sobre os aracatienses de forma diferente, tomando como suporte instrumentos mais poderosos
e convincentes: a medicina social e as prerrogativas do poder, incorporados na Comissão
Médico-Higiênica, enviada ao Aracati em fevereiro de 1879, chefiada pelo médico do
Império, Dr. José Maria Teixeira.

Vimos neste capítulo que o antagonismo entre determinados grupos de


aracatienses, ou pessoas ali instaladas, e o governo provincial se tornou mais evidente, por
meio do envio dos comissários “de fora” e do jogo de negociação que se construiu durante o
ano de 1878. Nas idas e vindas que constituíram estas negociações nas relações de força,
breves configurações da distribuição de gêneros foram se configurando, atendendo aos
interesses de diversas pessoas. Contudo, como vimos até aqui e continuaremos a perceber no
próximo capítulo, as posições neste jogo não foram estanques, e no Aracati, mudaram
consideravelmente até o final da grande seca do século XIX.

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