Aspectos Terapêutico e Composição Da Canabis Sativa 2006

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Quim. Nova, Vol. 29, No.

2, 318-325, 2006

Divulgao

ASPECTOS TERAPUTICOS DE COMPOSTOS DA PLANTA Cannabis sativa


Kthia Maria Honrio
Instituto de Fsica de So Carlos, Universidade de So Paulo, CP 369, 13560-570 So Carlos - SP
Agnaldo Arroio e Albrico Borges Ferreira da Silva*
Departamento de Qumica e Fsica Molecular, Instituto de Qumica de So Carlos, Universidade de So Paulo, CP 780,
13560-590 So Carlos - SP
Recebido em 26/10/04; aceito em 6/6/05; publicado na web em 8/12/05

THERAPEUTICAL ASPECTS OF COMPOUNDS OF THE PLANT Cannabis sativa. Several cannabinoid compounds present
therapeutic properties, but also have psychotropic effects, limiting their use as medicine. Nowadays, many important discoveries
on the compounds extracted from the plant Cannabis sativa (cannabinoids) have contributed to understand the therapeutic properties
of these compounds. The main discoveries in the last years on the cannabinoid compounds were: the cannabinoid receptors CB1
and CB2, the endogenous cannabinoids and the possible mechanisms of action involved in the interaction between cannabinoid
compounds and the biological receptors. So, from the therapeutical aspects presented in this work, we intended to show the evolution
of the Cannabis sativa research and the possible medicinal use of cannabinoid compounds.
Keywords: Cannabis sativa; cannabinoids; therapeutic properties.

INTRODUO
Uma planta que apresenta grande potencial teraputico, apesar
de suas propriedades psicotrpicas, a Cannabis sativa L. (Figura
1). Esta planta vem sendo utilizada, h sculos, pela humanidade
para diversos fins, tais como, alimentao, rituais religiosos e prticas medicinais1. O primeiro relato medicinal da planta Cannabis
foi atribudo aos chineses, que descreveram os potenciais teraputicos desta planta no Pen-Tsao Ching (considerada a primeira
farmacopia conhecida do mundo) h 2000 anos atrs. Os assrios,
cerca de 300 anos atrs, consideravam a Cannabis como o principal medicamento de sua farmacopia e a chamavam de acordo com
seu uso: qunnabu, quando a planta era utilizada em rituais religiosos; azallu, um termo medicinal assim como hemp; gan-zi-gunnu, o qual significava a droga que extrai a mente2.
Planta

Principal substncia bioativa

Cannabis sativa

9-THC

Figura 1. A planta Cannabis sativa e a principal substncia bioativa extrada


(9-THC)

A Cannabis sativa um arbusto da famlia Moraceae, conhecido pelo nome de cnhamo da ndia, que cresce livremente em
vrias partes do mundo, principalmente nas regies tropicais e temperadas. uma planta diica, pois tem espcimes masculinas e
femininas. A planta masculina geralmente morre aps polinizar a
planta feminina. Alm de Cannabis sativa, outros nomes atribudos aos produtos da Cannabis so marijuana, hashish, charas,
*e-mail: [email protected]

bhang, ganja e sinsemila. Hashish (haxixe) e charas so os nomes


dados resina seca extrada das flores de plantas fmeas, que apresenta a maior porcentagem de compostos psicoativos (de 10 a 20%).
Os termos ganja e sinsemila so utilizados para definir o material
seco encontrado no topo das plantas fmeas, contendo cerca de 5 a
8% de compostos psicoativos. Bhang e marijuana so preparaes
com menor contedo (2 a 5%) de substncias psicoativas extradas
do restante da planta3. O termo maconha utilizado no Brasil para
os preparados da Cannabis sativa.
A concentrao de compostos psicoativos (canabinides) na
Cannabis uma funo de fatores genticos e ambientais, mas
outros fatores que causam variaes no contedo psicoativo da planta devem ser considerados, tais como, o tempo de cultivo (maturao
da planta) e tratamento da amostra (secagem, estocagem, extrao
e condies de anlise)4. Nas ltimas dcadas, muitas descobertas
importantes sobre a Cannabis foram realizadas, mas muitos mitos
e incertezas ainda persistem. Uma parte bem arraigada do folclore
sobre a Cannabis que somente a planta fmea fornece a resina
ativa, mas as plantas (macho e fmea) produzem, aproximadamente, as mesmas quantidades de canabinides e possuem o mesmo
grau de atividade4. A convico de que somente plantas fmeas
contm a resina ativa foi atribuda, provavelmente, devido prtica agrcola de eliminar plantas-macho das plantaes de Cannabis,
a fim de prevenir a fertilizao.
O uso medicinal da Cannabis hoje permitido em alguns estados americanos e em pases como Holanda e Blgica, para aliviar
sintomas relacionados ao tratamento de cncer, AIDS, esclerose
mltipla e sndrome de Tourette (que causa movimentos involuntrios)5-7. Muitos oncologistas e pacientes defendem o uso da
Cannabis, ou do 9-THC (seu principal componente psicoativo),
como agente antiemtico mas, quando comparada com outros agentes teraputicos, a Cannabis tem um efeito menor do que os
frmacos j existentes5-7. Contudo, seus efeitos podem ser aumentados quando associados com outros antiemticos. Desta maneira,
o uso da Cannabis na quimioterapia pode ser eficiente em pacientes apresentando nuseas e vmitos, sintomas que no so controlados com outros medicamentos8.

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Aspectos Teraputicos de Compostos da Planta Cannabis sativa

A alta presso intra-ocular um dos fatores de risco para desenvolvimento de glaucoma e a planta Cannabis pode agir diminuindo esta presso, mas este efeito de curta durao e s conseguido com altas doses da planta9. Apesar do glaucoma ser uma das
indicaes mais citadas para o uso da Cannabis, a droga s utilizada em casos mais graves10,11.
Os efeitos adversos da Cannabis podem ser divididos em duas
categorias: os efeitos do hbito de fumar a planta e os causados
pelas principais substncias isoladas (canabinides). O fumo crnico da maconha provoca alteraes das clulas do trato respiratrio e aumenta a incidncia de cncer de pulmo entre os usurios10.
Um dos efeitos associados ao longo tempo de exposio aos
canabinides a dependncia dos efeitos psicoativos com a cessao do uso. Os sintomas da dependncia dos efeitos psicotrpicos
da planta incluem agitao, insnia, irritabilidade, nusea e
cimbras5. Pesquisas tambm mostram que a Cannabis no causa
dependncia fsica (como cocana, herona, cafena e nicotina) e
que a suspenso do uso no causa sndrome de abstinncia (como o
lcool e a herona). Seu uso prolongado em certas circunstncias
causa dependncia psicolgica, e pode levar ao consumo de outras
drogas. Por ser uma poderosa droga psicotrpica e alucinognica,
seu uso indiscriminado perigoso12.
A potencialidade medicinal da Cannabis est ligada ao grande
nmero de substncias qumicas que j foi encontrado em amostras desta planta, como ilustra a Tabela 1, sendo a principal classe
a dos canabinides. O termo canabinides foi atribudo ao grupo
de compostos com 21 tomos de carbono presentes na Cannabis
sativa, alm dos respectivos cidos carboxlicos, anlogos e possveis produtos de transformao. Os compostos canabinides podem ser classificados como terpenofenis e no foram isolados de
qualquer outra espcie vegetal ou animal1. A estrutura tpica de um
canabinide est representada na Figura 2, indicando os principais
sistemas de numerao encontrados na literatura.

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simplesmente 9-THC, foi reportado, em 1964, por Gaoni e


Mechoulam1. Devido ao grande interesse nos efeitos causados pelos compostos extrados da Cannabis, vrios estudos tm sido realizados com o objetivo de identificar possveis relaes entre estrutura qumica e atividade biolgica apresentada por estes com(a)

(b)

(c)

CANABINIDES
O primeiro caso comprovado de isolamento, em forma pura,
de um princpio ativo da Cannabis, o 9-tetraidrocanabinol ou

Figura 2. (a) Estrutura 3D de um canabinide, (b) e (c) dois sistemas de


numerao utilizados para os compostos canabinides

Tabela 1. Classes de compostos encontrados na planta Cannabis sativa


Classe
Canabinides
Canabigerol (CBG)
Canabicromeno (CBC)
Canabidiol (CBD)
1(9)-THC
2(8)-THC
Canabiciclol (CBL)
Canabielsoin (CBE)
Canabinol (CBN)
Canabinodiol (CBND)
Canabitriol (CBT)
Outros canabinides
Compostos Nitrogenados
Bases quartenrias
Amidas
Aminas
Alcalides espermidinas
Aminocidos
Protenas, glicoprotenas e enzimas
Hidrocarbonetos
lcoois simples
Aldedos simples

Nmero de compostos
encontrados na planta
61
6
4
7
9
2
3
3
6
2
6
13
20
5
1
12
2
18
9
50
7
12

Classe
Cetonas simples
cidos simples
cidos graxos
steres e lactonas simples
Esterides
Acares e anlogos
Monossacardeos
Dissacardeos
Polissacardeos
Ciclitis
Amino-acares
Terpenos
Monoterpenos
Sesquiterpenos
Diterpenos
Triterpenos
Mistura de terpenide
Fenis no-canabinides
Glicosdeos Flavonide
Vitaminas
Pigmentos
Total

Nmero de compostos
encontrados na planta
13
20
12
13
11
34
13
2
5
12
2
103
58
38
1
2
4
16
19
1
2
421

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Honrio et al.

postos. Na dcada de 70, muitos compostos canabinides foram


isolados e sintetizados e as principais rotas de sntese e biossntese
foram elucidadas1.
A obteno sinttica de compostos canabinides uma rea de
grande interesse. Algumas indstrias e laboratrios acadmicos
desenvolveram frmacos baseados nas estruturas de compostos
canabinides, mas uma das dificuldades encontradas foi o isolamento dos efeitos psicotrpicos, o que impossibilitou o uso medicinal destes compostos6. Uma exceo foi o Nabilone (Figura 3),
uma potente substncia do tipo canabinide, que apresentou sucesso em sua utilizao como agente antiemtico no Reino Unido e
em outros pases13.

Quim. Nova

Marinol (9-THC)

Cesamet (Nabilone)
Figura 4. Compostos canabinides presentes nos frmacos Marinol e
Cesamet

Figura 3. Estrutura qumica do Nabilone

Os compostos canabinides que apresentam atividade biolgica reconhecida so: o 9-THC, utilizado como antiemtico e como
estimulante do apetite; o 8-THC, considerado menos caro que o
9-THC para obteno e, segundo estudos de propriedades
antiemticas, to ativo quanto o 9-THC, mas no comercializado
por razes puramente comerciais13. Apesar das aplicaes citadas
acima, os canabinides apresentam um largo espectro de aplicao
medicinal5.
Em relao ao metabolismo, os canabinides e seus metablitos
so distribudos por todo o organismo e j foram encontrados em
fezes, plasma, urina e alguns rgos. Atualmente, foram alcanados grandes progressos na compreenso do mecanismo de distribuio, armazenagem e eliminao dos canabinides e seus metablitos1. Estas informaes contribuem para melhor compreenso
dos efeitos causados pela utilizao da maconha, uma das preparaes da Cannabis sativa mais utilizada no mundo ocidental.
Potenciais teraputicos dos canabinides
A aplicao teraputica dos canabinides um tema muito
controverso pois, apesar das propriedades teraputicas, estes compostos apresentam tambm efeitos psicotrpicos, considerados os
principais viles no uso medicinal desta classe de compostos. Dois
exemplos de frmacos desenvolvidos com base em compostos
canabinides so o Marinol (Dronabinol, (-)-9-THC), desenvolvido pelo laboratrio Roxane (Columbus - EUA) e o Cesamet
(Nabilone), desenvolvido pelo laboratrio Eli Lilly (Indianpolis EUA) e agora liberado para uso teraputico no Reino Unido14,15. As
estruturas dos compostos canabinides presentes nestes frmacos
podem ser visualizadas na Figura 4. Estes medicamentos so
comercializados para controle de nuseas produzidas durante tratamentos de quimioterapia e como estimulantes do apetite, durante processos de anorexia desenvolvidos em pacientes com sndrome
da imunodeficincia adquirida (AIDS)16.
Embora os canabinides exeram efeitos diretos sobre um determinado nmero de rgos, incluindo os sistemas imunolgico e
reprodutivo, os principais efeitos farmacolgicos observados esto
relacionados ao sistema nervoso central7. Alguns exemplos das
aplicaes teraputicas dos canabinides so efeito analgsico17-19,
controle de espasmos em pacientes portadores de esclerose mlti-

pla20, tratamento de glaucoma21, efeito broncodilatador22, efeito


anticonvulsivo23,24, etc.. Alguns efeitos colaterais podem acompanhar os efeitos teraputicos citados acima, tais como, alteraes
na cognio e memria, euforia, depresso, efeito sedativo e outros25.
Informaes sobre o uso clnico dos canabinides podem ser
obtidas a partir do mecanismo de ao destes compostos no crebro, especialmente quando no existem dados experimentais que
avaliem, adequadamente, o valor medicinal dos canabinides26. A
seguir, so discutidos alguns fatores relacionados ao mecanismo
de ao dos canabinides.
Atividade analgsica dos canabinides
Uma atividade biolgica apresentada pelos compostos canabinides e muito estudada a analgsica. Os analgsicos pertencem a uma das classes de frmacos mais vendidas no mundo, responsvel por cifras da ordem de centenas de bilhes de dlares27.
Na histria, diversos compostos alucingenos, como o pio, foram
relacionados atividade analgsica. Em relatos cientficos, a morfina aparece em 1803 e tem sua estrutura definida em 192528. Este
foi o ponto de partida para modificaes estruturais nas molculas
de canabinides, visando aumentar a atividade analgsica e diminuir a dependncia causada pela droga 29. Alguns compostos
canabinides modificados chegaram a apresentar um potencial analgsico cerca de 6000 vezes superior ao da morfina30.
Na Antiguidade, e at recentemente, a Cannabis foi empregada para tratar uma variedade de doenas humanas. Uma importante rea de pesquisa o estudo do efeito analgsico dos compostos
canabinides. Alguns estudos laboratoriais relatam que alguns compostos canabinides possuem eficcia e potncia similares morfina, inclusive alguns com potncia 200 vezes maior que a morfina, supostamente mediadas pela inibio da neurotransmiso nas
vias nociceptivas31. Porm, a utilizao destes canabinides como
analgsicos no proliferada devido ao efeito psicotrpico apresentado por eles e, tambm, s questes ainda no compreendidas
sobre o mecanismo de ao destes compostos32.
Mecanismo de ao dos canabinides
Como citado anteriormente, o estudo sistemtico da Cannabis
sativa e de seus principais componentes (canabinides) iniciou-se
na dcada de 60, principalmente como resultado das srias impli-

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Aspectos Teraputicos de Compostos da Planta Cannabis sativa

caes sociais relacionadas esta planta. O isolamento, a elucidao


das estruturas, a estereoqumica, a sntese, o metabolismo, a farmacologia e os efeitos fisiolgicos dos canabinides estenderamse durante os anos 80 e 90, realizando-se a identificao e clonagem
dos receptores canabinides especficos (CBRs), localizados no sistema nervoso central (CB1) e no sistema perifrico (CB2), alm da
identificao dos ligantes canabinides endgenos3. Assim, a partir destas descobertas, foi possvel entender alguns aspectos importantes relacionados ao mecanismo de ao dos canabinides.
Receptores canabinides
Durante a dcada de 80 formulou-se a hiptese de que os compostos canabinides atuariam via um conjunto farmacologicamente
distinto de receptores33. At o momento, dois subtipos de receptores
canabinides foram identificados: CB1 e CB233. Em 1986, Howlett e
colaboradores 34 demonstraram que o 9-THC inibia a enzima
intracelular adenilato ciclase e que tal inibio s ocorria na presena de um complexo de protenas-G, ou seja, na presena de um receptor canabinide, o qual um membro tpico da maior famlia
conhecida de receptores: receptores acoplados s protenas-G. Acredita-se que os dois receptores canabinides, CB1 e CB2, so os responsveis por muitos efeitos bioqumicos e farmacolgicos produzidos pela maioria dos compostos canabinides33. Porm, ainda no
so conhecidas as diferenas funcionais entre os dois tipos de receptores, mas as diferenas estruturais aumentam esta possibilidade26.
Os receptores canabinides CB1 e CB2 so, particularmente, abundantes em algumas reas do crebro26, como ilustra a Figura 5.

Figura 5. Algumas regies do crebro onde os canabinides atuam. Adaptado


da ref. 26

A biologia e o comportamento associados s reas do crebro


ilustradas na Figura 5 so consistentes com os efeitos comportamentais produzidos pelos canabinides (Tabela 2). A maior densidade de receptores encontrada em clulas dos gnglios basais,
envolvidas nos movimentos de coordenao do corpo26. Os receptores CB1 tambm so abundantes no cerebelo, regio responsvel
pela coordenao dos movimentos do corpo; no hipocampo, responsvel pela aprendizagem, memria e resposta ao stress e, no
crtex cerebral, responsvel pelas funes cognitivas26.
As clulas do organismo respondem de diversas formas quando um ligante interage com o receptor canabinide. Na Figura 6
esto representados alguns processos desencadeados quando um
ligante interage com um receptor canabinide. O primeiro passo
a ativao das protenas-G, as primeiras componentes no processo
de transduo de sinais, e isto leva a mudanas em vrias componentes intercelulares, por ex.: abertura ou bloqueio dos canais de
clcio e potssio, o que ocasiona mudanas nas funes celulares26. Os receptores canabinides esto inseridos na membrana celular, onde esto acoplados s protenas-G e enzima adenilato

321

Tabela 2. Regies do crebro onde os receptores canabinides so


abundantes ou moderadamente concentrados e as funes associadas
a estas reas
Regies do crebro nas quais os receptores canabinides so
abundantes
Regio do crebro

Funes associadas regio

Gnglios basais
Cerebelo
Hipocampo
Crtex cerebral

Controle de movimentos
Coordenao dos movimentos do corpo
Aprendizagem, memria, stress
Funes cognitivas

Regies do crebro nas quais os receptores canabinides esto


moderadamente concentrados
Regio do crebro

Funes associadas regio

Hipotlamo

Funes de manuteno do corpo (regulao


da temperatura, balano de sal e gua, funo reprodutiva)
Resposta emocional, medo
Sensao perifrica, incluindo dor
Sono, regulao da temperatura, controle
motor

Amgdala
Espinha dorsal
Tronco cerebral

Figura 6. Reaes intracelulares que ocorrem quando agonistas interagem


com os receptores canabinides CB1 e CB2. Adaptado da ref. 26

ciclase (AC). Os receptores so ativados quando interagem com


ligantes, tais como anandamida ou 9-THC, e a partir desta
interao, uma sria de reaes ocorre, incluindo inibio da AC, o
que diminui a produo de cAMP (as atividades celulares dependem da enzima adenosina monofosfato cclica - cAMP); abertura
dos canais de potssio (K+), diminuindo a transmisso de sinais e
fechamento dos canais de clcio (Ca+2), levando a um decrscimo
na liberao de neurotransmissores. Estes canais podem influenciar na comunicao celular26.
O resultado final da interao com o receptor canabinide depende do tipo de clula, ligante e de outras molculas que podem
competir pelos stios de ligao deste receptor. Existem vrios tipos de agonistas para os receptores canabinides, e estes podem
ser classificados de acordo com dois fatores: a potncia de interao
com o receptor canabinide (esta potncia determina a dose efetiva do frmaco) e, a eficcia, que determina a extenso mxima do
sinal que estes frmacos transmitem s clulas. A potncia e a eficcia do 9-THC so relativamente menores quando comparadas

322

Honrio et al.

s de alguns canabinides sintticos. Na verdade, compostos sintticos so, geralmente, mais potentes e eficazes que os agonistas
endgenos26.
Como citado anteriormente, os receptores canabinides CB1 e
CB2 so bastante similares, mas no to similares quanto outros
membros de muitas famlias de receptores. As diferenas entre CB1
e CB2 indicam que deveriam existir substncias teraputicas que
atuariam somente sobre um ou outro receptor e, assim, ativariam ou
bloqueariam o receptor canabinide apropriado35. Apesar das diferenas entre os receptores canabinides CB1 e CB2, a maioria dos
compostos canabinides interage de forma similar na presena de
ambos receptores36. A busca por compostos que se liguem a apenas
um ou outro receptor canabinide uma forma utilizada h vrios
anos para obter compostos com efeitos medicinais especficos36.
Canabinides endgenos
Para cada receptor biolgico (neste caso, um receptor cerebral), provavelmente existe um agonista endgeno, isto , um composto produzido naturalmente pelo organismo e que interage com
o receptor. Duas questes importantes sobre estes ligantes
endgenos esto relacionadas ao local no organismo onde eles so
produzidos e qual seria a funo natural deles. Alguns compostos
endgenos que se ligam seletivamente aos receptores canabinides
tm sido estudados e os que chamam mais ateno, apesar de suas
propriedades fisiolgicas no serem bem entendidas 8, so a
anandamida e o glicerol araquidonil (2-AG), cujas estruturas qumicas esto representadas na Figura 7.

Figura 7. Estrutura qumica da anandamida e do 2-glicerol araquidonil


(2-AG)

Inicialmente, a busca por um canabinide endgeno foi baseada no fato de que sua estrutura qumica seria similar estrutura do
9-THC37. Isto era razovel, pois o alvo desta busca seria uma outra chave que se encaixaria ao receptor canabinide (conhecida
como interao chave-fechadura)38, ativando o sistema de mensagem celular. Assim sendo, muitos estudos foram realizados e
uma das importantes descobertas na biologia dos canabinides est
relacionada diferena estrutural entre o 9-THC e a anandamida39.
Uma busca similar por opiides endgenos (endorfinas) tambm
revelou que suas estruturas qumicas eram muito diferentes dos
opiides derivados de plantas, ou seja, pio e morfina26.
Vrios compostos com estruturas qumicas bastante diferentes

Quim. Nova

e que ativam os receptores canabinides vm sendo estudados22,


mas os mecanismos de interao entre estes compostos e os receptores canabinides ainda no so completamente conhecidos. Uma
rea de pesquisa considerada promissora, segundo a literatura, seria o planejamento de ligantes que ativariam os receptores canabinides (CB1 e CB2)40. A seguir, sero discutidos alguns aspectos de
um dos canabinides endgenos mais estudados (anandamida).
Anandamida
O primeiro canabinide endgeno descoberto foi o araquidoniletanolamina, conhecido como anandamida, palavra derivada
do snscrito ananda, que significa felicidade. Comparada com o
9-THC, a anandamida apresenta afinidade moderada pelo receptor CB1 e rapidamente metabolizada pelas amidases (enzimas
que removem grupos amida)40. Apesar de seu curto perodo de ao,
a anandamida apresenta a maioria dos efeitos farmacolgicos do
9-THC41.
A anandamida formada a partir do cido araquidnico e
etanolamina. O cido araquidnico um precursor comum de um
grupo de molculas biologicamente ativas incluindo as prostaglandinas. Embora a anandamida possa ser sintetizada de vrias
formas, a obteno fisiologicamente relevante parece ser a clivagem
enzimtica do N-araquidonil-fosfatidil-etanolamina (NAPE), que
produz a anandamida e o cido fosfatdico42. A anandamida foi
encontrada em vrias regies do crebro humano (hipocampo,
estriado e cerebelo) onde os receptores CB1 so abundantes. Isto
implica em um papel fisiolgico dos canabinides endgenos nas
funes cerebrais controladas por estas reas, mas concentraes
substanciais de anandamida tambm so encontradas no tlamo
(uma rea do crebro que apresenta poucos receptores CB1)43. Um
fato interessante que a anandamida tambm foi encontrada em
outras regies do corpo, tais como bao, que apresenta altas concentraes de receptores CB2 e corao, onde pequenas quantidades de anandamida foram detectadas44-47.
Em geral, a afinidade da anandamida por receptores canabinides
somente a da afinidade apresentada pelo 9-THC48. Estas diferenas dependem das clulas ou tecidos que so utilizados para
testes e das condies experimentais48. Alm da anandamida, outros
agonistas e antagonistas dos receptores canabinides so bastante
estudados16 e alguns exemplos so apresentados na Tabela 3.
A molcula de anandamida possui efeitos centrais (no crebro)
e perifricos (no restante do corpo)49. A regio cerebral onde a
anandamida produzida e as enzimas que a sintetizam ainda no
so conhecidas26. Conhecendo-se esta informao, seria possvel
fornecer indcios importantes para o papel natural da anandamida
e para o entendimento dos circuitos cerebrais nos quais ela atua
como um neurotransmissor. A importncia do conhecimento dos
circuitos cerebrais que envolvem a anandamida (e outros ligantes
canabinides endgenos) est no fato de que estes circuitos so os
elementos essenciais que regulam funes especficas do crebro,
tais como humor, memria e cognio50.
Estudos da relao estrutura-atividade (SAR) de compostos
canabinides
Devido ao grande interesse pelos efeitos causados pelos compostos presentes na Cannabis, vrios trabalhos vm sendo desenvolvidos com intuito de compreender melhor as relaes entre estrutura qumica dos canabinides e atividade biolgica apresentada por esses compostos1,2,31,51-77. Algumas relaes importantes entre propriedades estruturais/eletrnicas e atividade biolgica de
compostos canabinides foram observadas em trabalhos anterio-

Vol. 29, No. 2

Aspectos Teraputicos de Compostos da Planta Cannabis sativa

323

Tabela 3. Agonistas e antagonistas dos receptores canabinides


Composto

Propriedade

Composto

Agonistas (ativam os receptores)

Agonistas (ativam os receptores)

Anlogos ao THC

Compostos derivados da planta

9-THC

Propriedade

Principal canabinide
psicoativo encontrado na
Cannabis sativa

Canabinide sinttico

CP 55940

8-THC

Menos potente que o 9-THC


e muito menos abundante na
planta
Levonantradol
Composto bioativo, formado
aps degradao do 9-THC

100-800 mais potente que o


THC

11-OH-
9-THC
HU-210
Canabinides encontrados em animais

anandamida

2-glicerol araquidonil (2-AG)

Estrutura qumica diferente do THC ou anandamida

Encontrada em animais (desde


moluscos at mamferos). Estrutura diferente dos canabinides, est relacionada s
prostaglandinas

Estrutura qumica diferente


dos canabinides conhecidos,
mas liga-se em ambos
receptores canabinides

Agonista endgeno, estruturalmente semelhante anandamida. Mais abundante, mas menos


potente que a anandamida

WIN-55212
Antagonistas (bloqueiam os receptores)

Anlogos ao THC
Antagonista sinttico do CB1,
desenvolvido em 1994

THC sinttico. Comercializado nos EUA com o nome


Marinol, para nuseas
associadas quimioterapia e
para pacientes com AIDS

SR 141716A

Dronabinol (
9-THC sinttico)

Antagonista sinttico do CB2,


desenvolvido em 1997

Comercializado no Reino
Unido com o nome Cesamet,
para as mesmas indicaes
que o dronabinol.
SR 144528

Nabilone

res e devem ser consideradas em estudos sobre compostos canabinides1,2,31:


a presena do sistema benzopirano (ver estrutura na Figura 8)
uma condio importante, mas somente a presena deste sistema no confere atividade ao composto. O oxignio presente no
sistema benzopirano pode ser substitudo por nitrognio sem

perda de atividade;
a adio de um anel no-planar (anel A, Figura 8) ao sistema
benzopirano nas posies 3 e 4 importante para a atividade.
Entretanto, a adio de um anel planar reduz a atividade;
a adio de um substituinte volumoso na posio 4 do sistema
benzopirano (Figura 8) tambm confere atividade molcula;

324

Honrio et al.

uma variedade de substituintes pode ser introduzida ao anel A


(Figura 8) sem perda de atividade. Sendo assim, o grupo metila
na posio 9 no composto 9-THC no essencial e pode ser
substitudo por uma hidroxila, uma hidroximetila ou uma
cetona, sem perda de atividade. Mesmo a presena de dois
substituintes diferentes no anel A (Figura 8), tais como um grupo
metila na posio 9 e uma dupla ligao no anel A, ou uma
hidroxila na posio 8, mantm a atividade. Nos ismeros que
contm a dupla ligao no anel A, a posio desta dupla ligao no tomo C9 favorece a presena de atividade (9> 8>
6-THCs);
a adio de um outro anel ao sistema benzopirano (Figura 8)
pode ser substituda por um anel heterocclico (por ex., tetraidropiridina) sem perda de atividade;
esterificao de grupos fenlicos no anel C (Figura 8) mantm
a atividade e,
o comprimento da cadeia lateral ligada ao anel C pode ser
modificado sem perda de atividade, mas uma cadeia de trs
carbonos parece condio mnima para a atividade; ramificaes nesta cadeia aumentam a potncia. A adio de cadeias
laterais ao anel C tambm pode ser realizada via um tomo de
oxignio (formando um ter) sem perda de atividade.

Sistema benzopirano

Sistema THC
Figura 8. Comparao das estruturas contendo os sistemas benzopirano e
THC

CONSIDERAES FINAIS
Sabe-se que diversos compostos do tipo canabinodes produzem algum tipo de propriedade teraputica, mas tambm apresentam como efeito colateral propriedades psicotrpicas, limitando
seu uso como medicamento. No entanto, estudos da relao entre
estrutura qumica e atividade biolgica tm sido realizados no sentido de modificar a estrutura qumica destes compostos a fim de
suprimir sua psicoatividade. O estudo das relaes estrutura-atividade (SAR) visa estabelecer relaes entre descritores moleculares
e atividade biolgica em questo, colaborando na elucidao do
mecanismo de ao dos compostos canabinides.
Apesar de apresentar atividades teraputicas comprovadas por
pesquisas, o efeito colateral, isto , a psicoatividade, ainda funciona
como um obstculo quanto utilizao da planta Cannabis com finalidade teraputica. Como foi apresentado neste trabalho, grande o

Quim. Nova

interesse da comunidade cientfica sobre os compostos canabinides,


em virtude de apresentarem um grande espectro de atividades biolgicas. Em parte, este interesse se deve ao fato da qumica da Cannabis
ser extremamente complexa e ainda no estar perfeitamente compreendida, alm das controvrsias relacionadas ao efeito colateral. Com
o intuito de colaborar nesta discusso, este trabalho busca contribuir
para o conhecimento dos possveis processos envolvidos no uso
teraputico da Cannabis, visando o suporte para reas de pesquisa
sobre planejamento de novos compostos canabinides que apresentem atividade teraputica e ausncia de atividade psicotrpica.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq e FAPESP pelo auxlio financeiro.
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