SERMO DE SANTA IRIA EM SANTARM

Quinque autem ex eis erant, fatuae, et quinque prudentes [1].

I
Santa Iria e a parbola das virgens. Assunto do sermo: porque Santa Iria na
opinio do mundo foi uma das virgens loucas, por isso excedeu singular e unicamente
a todas as virgens prudentes.
Assim como segurar a vida da eternidade maior prudncia, assim perd-la ou
arrisc-la a mais rematada loucura. S aquele que se soube salvar, posto que em
tudo o mais obrasse como nscio, foi prudente, e s aquele que no sabe segurar estes
ponto, ainda que em tudo parea prudente, louco. Isto o que nos ensinou o divino
Mestre, e isto o que hoje nos repete o Evangelho na to sabida parbola das dez
virgens. Cinco delas, diz Cristo, eram loucas, e cinco prudentes: Quinque autem ex eis
erant fatuae, et quinque prudentes (Mt. 25,2). E em que consistiu a prudncia das
prudentes e a loucura das loucas? Consistiu em que depois da preveno de umas, e
no de outras, as prudentes, com as suas almpadas acesas, entraram em companhia
do Esposo s bodas do cu, e as loucas, com as almpadas apagadas, acharam a porta
cerrada, e ficaram de fora. Iria, virgem entre todas e em tudo singularssima!
Singular na vida, singular na morte, singular na sepultura, e com singularidade nem
antes nem depois de vs comunicada a outrem, verdadeiramente nica! A cada uma
das outras virgens cuja santidade e glria celebra a Igreja, o louvor que
particularmente lhe canta haver sido uma do nmero das prudentes: Haec est virgo
sapiens, et una de numero prudentum.Eu, porm, o que singularmente admiro na
nossa santa, que no s foi virgem do nmero das prudentes, seno tambm do
nmero das loucas. As prudentes achou-as a morte com as almpadas acesas, as
loucas com as almpadas apagadas, e Santa Iria como a achou? No h dvida que
com a almpada apagada, como logo veremos. Mas nisto mesmo consistiu aquela
excelncia, que a fez singular e nica entre todas e sobre todas. As outras virgens
entraram no cu com as almpadas acesas, Iria com a almpada apagada; as outras
com aplausos de virgens prudentes, Iria com suposies de virgem louca; e porque na
opinio do mundo foi uma do nmero das loucas, por isso excedeu singular e

unicamente a todas as prudentes. Esta ser a matria do meu discurso, tanto para
glria de Santa Iria, como para exemplo de Santarm. E porque vejo que a novidade
do assunto vos parece dificultosa, seja essa tambm nova razo de me ajudardes a
pedir mais que a ordinria graa. Ave Maria.

II
A falsidade enganosa e v da formosura. A formosura na opinio dos poetas,
filsofos e santos padres.
Sentena divina, to infalvel na verdade como provada na experincia, que
aquela graa da natureza, a que os olhos chamam formosura, no mais que uma
aparncia da mesma vista enganosa e v. Comecemos por aqui, pois estes foi o
princpio fatal daquela horrenda tragdia, que depois de convertida em glria, tirou e
deu nome a esta antiqussima e nobilssima repblica. a graa e formosura enganosa
e v: Fallax gratia, et vana est pulchritudo [2] diz o Esprito Santo por boca de
Salomo, o mais experimentado neste engano, e o mais desenganado desta vaidade.
Nem era necessrio o testemunho de to soberanas autoridades divina e humana, para
persuadir esta f vista. At os poetas, que tanto se empregam em disfarar e encobrir
a falsidade desta aparncia, e com nomes de diamantes, rubis e safiras procuram fazer
slida a sua vaidade, no puderam deixar de confessar quo frgil e de pouca dura:
Forma bonum fragile est disse Ovdio e Sneca: Res est forma fugax. Os
filsofos, que mais professam o verdadeiro, concedendo-lhe os poderes, no lhe
puderam negar a fraqueza e falsidade. Scrates chamou formosura tirania, mas de
breve tempo: Brevis temporis tyrannis Teofrasto chamou-lhe engano mudo:
Deceptio tacita porque sem falar engana. E que direi dos santos padres? S.
Jernimo diz que a formosura um esquecimento do uso da razo: Oblivio rationis
e onde falta o lume da razo, quais sero as cegueiras dos sentidos? S. Baslio, S.
Bernardo, S. Efrm, Santo Isidoro Pelusiota, e outros santos, para descobrir o mesmo
engano, sem chegar aos horrores da sepultura, consideram as fealdades interiores que
este especioso vu oculta ainda em vida, e, correndo a cortina ao dolo to adorado da
formosura, no s a demonstram feia, mas asquerosa e medonha. Porm, no so estes
ainda os assombros da nossa tragdia.
S. Joo Crisstomo e S. Gregrio Nazianzeno, parando mais benignamente s
na superfcie, em que consiste a formosura, supem, sem mais aparato, que uma
pintura de duas cores, branco e vermelho. Assim a descreveu no seu amado aquela

pastora to bem entendida como Salomo: Dilectus meus candidus et rubicundus [3] .
A formosura, pois, em toda a sua esfera, ou natural, ou artificial, ou moral. O
branco e vermelho da artificial o que se vai comprar s boticas, onde esto venais
toda a semana as caras com que se h de aparecer ao domingo. O da formosura moral
celebra Nazianzeno na santa virgem Gorgnia, da qual diz que o branco de que usava
no rosto era o que causa o jejum, e o vermelho, com que tingia as faces, o que tira a
elas o pjo: Unus illi rubor placebat, quem pudor affert, unus candor; quem parit
abstinentia. Finalmente, S. Crisstomo, definindo a formosura natural fisicamente,
diz que no outra coisa que uma mistura de fleuma e sangue [4] : Pulchritudo est
phlegma cum sanguine mixtum. a fleuma faz o branco, o sangue o vermelho. Mas o
que eu noto digno de particular advertncia nestes dois humores, que a composio
deles causa formosura, e a descomposio as enfermidades. Sendo, porm, as
enfermidades as armas naturais da morte, muito mais mortes tem causado a fleuma e
o sangue, enquanto origem da formosura que enquanto instrumento da mesma morte.
Em Dina matou a formosura a Siqum, em Dalila matou a Sanso, em Judite matou a
Holofernes, em Helena a toda a Tria, em Lucrcia a toda a Roma, em Florinda a toda
a Espanha, e na nossa santa, que mais, no a outrem, seno a ela mesma. Outros
adoeceram da sua formosura, mas a quem matou a mesma formosura foi mesma Ida.

III
Santa Iria e Bersab. A herica virtude da santa provada pelas calnias do
monge Remgio. As razes do silncio de Susana nas Escrituras, e as angstias a que
se viu reduzida Iria. Por que razo os grandes trabalhos e aflies se chamam clix
nas Escrituras? A tempestade em que se viu correr fortuna a nau Santa Iria. A
calnia e o corao dos dentes, de que fala a verso siraca do Eclesiastes.
Entre as faanhas trgicas que executou o amor cego guiado por este engano da
vista, nenhum caso foi to semelhante, em seus efeitos ao de Iria como ode Bersab,
posto que de nenhum modo igual. Era Davi rei e santo, quando viu que no devera
a Bersab; e ambas estas colunas derrubou de um tiro aquela vista, triunfando do
profano no rei e do sagrado no profeta a sua formosura. Tal a formosura de Iria, que,
segundo a descrevem as histrias e a encarecem as tradies, ainda por seu mal, ou
seu bem, era maior que a que cegou Davi. Viu-a uma vez Britaldo, filho do senhor de
Nabncia, e no mesmo ponto adoeceu com to perigoso acidente, que sem dvida
morrera da ferida, se a mesma causa dela, com nimo varonil, o no visitara. Sarou-o
milagrosamente com o sinal da cruz, acompanhado de razes santas, debaixo da

promessa, porm, que no caso de aceitar esposo humano, no seria outro seno a ele.
At aqui o que facilmente se podia crer. O que agora se segue nem imaginar-se podia.
Composto e emendado o primeiro amor juvenil e profano, dois anos gastou o demnio
em conquistar outros anos mais maduros, e render tambm e profanar a sagrado. Era
Remgio monge, e por suas cs e virtudes mestre de Iria, em cujo peito a continuao
da mesma vida acendeu tal fogo, que, trocado o afeto paternal em amor libidinoso, em
vez de a animar e louvar depois da primeira batalha, como to gloriosamente
vencedora, determinou de a render a seu furioso apetite, e triunfar nela da mesma
vitria. Declarou-se sem reverncia de Deus nem pejo de si mesmo, e como a santa
discpula, com os mesmos documentos santssimos que dele tinha recebido, lhe
estranhasse a fealdade de to sacrlego e abominvel intento, que faria a hipocrisia
daquelas to verdes cs, vendo-as assim confundidas e afrontadas? No h vcio que
uma vez precipitado se no despenhe em outros maiores. Resolve-se a vingar uma
afronta com outra, e o velho mau e infame a infamar a constante honestidade da
castssima donzela. No das ervas de que se sustentava como ermito, mas de outras
esquisitas e venenosas, temperou por arte mgica uma bebida, a qual, sem saber a
inocente o que tomava, lhe causou uma tal inchao no ventre que, no podendo
encobrir as roupas o que cobriam, davam manifestos sinais de ter concebido, e no
estar longe do parto. O primeiro que chorou com pblicas lgrimas a desgraa e cada
da sua filha espiritual foi o mesmo maquinador daquele engano, e no s Britaldo
do qual diremos depois mas todo o povo que dantes venerava a Iria como santa,
carregando-a agora de nomes feios e vis, a publicava por mulher leviana, ficta,
escandalosa e torpe, infiel aos homens, traidora sua profisso, e adltera ao mesmo
Deus. Neste abismo de confuso e misria passou Iria os dias que lhe restavam de
vida, desprezada e infamada nos olhos e bocas do mundo; em si mesma, porm, e para
com seu divino Esposo, to fiel, to constante e to pura como os puros esp ritos. E
porque temos chegado ao nosso ponto e porque Iria, sendo na realidade virgem
prudente e prudentssima, na opinio do mundo era louca, e, quando as outras, saram
a receber o esposo com as almpadas acesas, ela saiu com a sua escurecida e apagada,
esta notvel diferena foi a excelncia singular que a fez mais ilustre e gloriosa que
todas. Isto o que prometi e o que digo: vede agora se tenho razo.
Acabou Santa Iria a vida com opinio de louca, e esta foi a maior excelncia e a
maior prova de sua herica virtude: conservar-se virgem prudente na realidade, sendo
louca na opinio. Se no fora heroicamente prudente, quando se viu infamada e
reputada por louca havia de perder totalmente o juzo, e enlouquecer verdadeiramente.
No se atrevera a dizer tanto, se no fora sentena expressa do mesmo Deus no texto
original: Cal Calumnia insanire facit sapientem (Eel. 7, 8): A calnia e o falso
testemunho faz endoidecer o sbio. E os Setenta intrpretes, declarando esta

doidice, ou o modo deste endoidecer, dizem que circunferendo: dando-lhe volta ao

juzo. Mas o nosso parece que est duvidoso em crer um tamanho excesso, porque o
contradiz a experincia. certo que h muitas calnias e muitos falsos testemunhos,
e, contudo, no vemos endoidecer os caluniados. Se assim fora, todo o mundo estivera
na casa dos loucos. Pois, se h tantos caluniados por que h to poucos doidos?
Porque h poucos sisudos. A Escritura no diz que a calnia faz endoidecer a todos,
seno aos sbios: Calumnia insanire facit sapientem. Caluniado e infamado, s
perde o juzo quem o tem. Nesta circunstncia consistiu o herico da virtude da nossa
santa. Sendo Virgem pen-dente, ver-se reputada por louca, e no enlouquecer. As
virgens nscias bem me rio eu que endoidecessem, porque no tinham juzo para
tanto. E para que vejais se tinha bastante razo Iria para lhe dar o juzo uma volta,
vede quantas voltas deu o seu caso a todos os juzos da terra onde vivia. Todos dantes
a reputavam por Virgem purssima, e tanto que foi caluniada, todos a reputaram por
m mulher, trocando o conceito e juzo que da sua virtude faziam. E se aquele caso foi
bastante para voltar os juzos de todos, quanto mais poderoso seria para dar uma volta
ao juzo da mesma a quem tocava, e na parte mais viva e mais delicada da honra, qual
a honestidade de uma donzela nobre? Sem dvida endoideceria, sendo to sbia e
to prudente, se a sua sabedoria e prudncia no fora excelentemente herica.
Por excelentemente herica louvam todos os santos a constncia de Susana,
caluniada e infamada: mas as circunstncias do seu caso nenhuma comparao tm
com ode Santa Iria. Diz Santo Ambrsio que acusada Susana calava, porque tinha
contra si o nmero e a idade dos seus acusadores: Numerus sacerdo-turn at que
senectus voem auferebat puellae [5] . Todos se compadeciam de Susana, e todos
defendiam sua inocncia, e ela, contudo, no se defendia, mas calava, porque os
acusadores eram dois e ela uma, os acusadores velhos e ela moa. Vede agora quanto
vai de caso a caso. Susana tinha dois contra si, e Iria no s dois contra si, nem s
duzentos, seno universalmente todos, e a uma voz, no havendo quem ao menos
pusesse em dvida a sua culpa, mas reconhecendo-a todos por verdadeira, supondo-a
todos por certa, e condenando-a todos como provada. Susana tinha contra si uma s
idade e uma s condio de homens; e Iria tinha contra si todas as idades, e todas as
condies, e todos os estados: os velhos e os moos, os grandes e os pequenos, os
eclesisticos e os leigos, os nobres e os plebeus, os homens e as mulheres, sem haver
algum ou alguma que no acrescentasse sua infmia algum novo nome e novo
gnero de afronta. Finalmente, com circunstncia de desamparo e contrariedade
inaudita e no imaginvel, nem a si mesma se tinha Iria por si, seno contra si,
porque, ainda que no peito tinha a conscincia e a virtude, pouco abaixo do mesmo
peito tinha o corpo do delito e a evidncia da prova. A razo, a inocncia, a verdade, a
conscincia, tudo ali estava oprimido da sem-razo, da calnia, da mentira, da

injustia, do dio, da vingana; e, posto que a conscincia diante de Deus vale mil
testemunhas, diante dos homens tinha Iria contra si uma s, que valia para com eles
mais que muitas mil, qual a dos olhos. Que importa que a defendesse a conscincia,
que se no v, quando testemunhava contra ela a vista de todos? E que comparao
tm com esta aflio as angstias a que se viu reduzida Susana: Angustias sunt mihi
undique [6] ?
A bebida que deu a Iria Remgio pde-lhe causar a falsa inchao, mas da
mesma inchao a vista e crida parece que no podia deixar de subir cabea da santa
uma tal perturbao que lhe no tirasse o juzo. Os grandes trabalhos, aflies e
angstias, chamam-se na Sagrada Escritura clix. Bastem por todos os exemplos os do
texto de Jeremias: Sume calicem vivi furoris hujus de manu mea, et propinabis de illo
cunctis gentibus, ad quas ego mictam te. Et bibent, et turba-banal); et insanient [7] .
E noutra parte: Calix aureus Babylon in manu Domini, inebrians universam terram
[8] . E por que razo os grandes trabalhos e aflies se chamam clix? Os mesmos
textos o dizem. Porque assim como o vinho demasiadamente bebido tira o juzo:
Calix in manu Domini inebrians assim os trabalhos, angstias e aflies, se so
grandes, tm os mesmos efeitos em quem os padece, e os fazem endoidecer: Et
bibent, et turbabuntur, et insanient. Tal foi o efeito daquela terrvel tempestade, em
que diz Davi que as ondas subiam at o cu e desciam at os abismos: Ascendant
usque ad caelos, et descendant usque ad abyssos (SI. 106, 26). Como se a
tempestade no fora de gua, e os pilotos a tiveram bebido toda, assim o descreve o
profeta areados, com o juzo perdido, e no se podendo ter em p: Anima eorum in
maus tabescebat. Turbati sunt et moti sunt quasi ebrius [9] . Os homens no tinham
naufragado, mas o juzo e o entendimento, e toda a cincia nutica j estava
soobrada, afogada e perdida: Omnis sapientia eorum devorata est [10] . Nada foi
menor que esta a tempestade em que se viu correr fortuna deixai-me chamar-lhe
assim a nau Santa Iria. Verdadeiramente subiram as ondas ao cu: Ascendunt
usque ad caelos porque chegaram a bater o celeste e quebrar no estrelado de suas
virtudes; e desceram at os abismos: Et descendunt usque ad abvssos porque at o
mais profundo da desonra e da infmia chegou o abatimento das suas afrontas, Todos
os ventos e elementos se conjuraram para o seu naufrgio, ajudando o horror dele o
escuro da noite, o inchado das velas e o apagado do farol. O escuro da noite, porque
nenhuma claridade aparecia que pudesse descobrir o engano; o inchado das velas,
porque todo o artifcio mgico consistiu na inchao, que no diminua ou amainava,
antes crescia; e o apagado do farol porque, sendo Iria virgem prudente o mesmo vento
lhe apagou a almpada, ficando to escurecida como as das loucas. Que se seguia,
pois, neste estado, seno arcar, enlouquecer e perder o juzo? Mas como o lastro era a
conscincia, o bojo a largueza de nimo, o leme a prudncia, e o piloto o juzo de Iria,

to fora esteve de arear, ou se perder, que sempre esteve firme, constante e superior a
todos os mares. S se pareceu com Susana no admirvel silncio, tanto em si quando
devera estar fora de si, que tudo sofria, calava e comia consigo. E comia consigo,
torno a dizer.
Sobre a sentena que alegamos do Esprito Santo, em que diz que a calnia faz
endoidecer os sbios, acrescenta logo o mesmo texto que, para maior perdio do
juzo, faz tambm a calnia perder a fortaleza do corao: Et perdet robur cordis illius
(Eel. 7, 8). Mas o que neste aditamento merece no vulgar reparo, a verso siraca, a
qual em lugar da fortaleza do corao traslada o corao dos dentes: Et perdet cor
dentium illius. Quem viu nunca nem ouviu tal anatomia do corao? Porventura o
corao tem dentes? Direi, O corao dos que a calnia endoidece, no; mas o dos
que no perdem nela o juzo, sim, A calnia,
o falso testemunho, e a afronta e infmia que dela resulta, tm muitas durezas
que quebrar, que mastigar, que moer e remoer, e isto s o faz um corao to
generoso, to grande e to forte como o de Santa Iria. Outro corao que em tal estado
se achasse com dentes, morder-se-ia de raiva, comer-se-ia de desesperao, ou se
enviaria como um leo furioso a despedaar vivo o enganoso autor de to estranha
maldade; porm, o corao herico de Iria, nunca mais em si que quando tantas razes
tinha para sair fora de si, tudo sofria, tudo calava, tudo comia consigo. O mulher mais
que mulher, em que s a prudncia pode digerir o que tragou a inocncia! A inocncia
tragou a bebida, a prudncia digeriu a infmia. Na opinio como louca, e no virgem,
na realidade como virgem prudentssima, e no das cinco, mas superior a todas:
Quinque autem ex eis erant prudentes [11] .

IV
A singularssima glria de Santa Iria, que, infamada e perdida totalmente a
honra, no se conformou com a mesma opinio e infmia. A conexo que tem a
infmia com a culpa. A infmia na parbola do mau administrador Por que pede
Davi a Deus que o livre das calnias dos homens, para que guarde os seus
mandamentos? O anjo da guarda da honra, e a nuvem que precedia os filhos de
Israel no deserto. A honra, a virtude e a conscincia. Quo poderoso mais que tudo
na natureza humana, ainda depravada, o amor da opinio e da honra. A honra, muro
e antemural das almas. A famosssima Judite e a singularssima Iria.
Muito foi no enlouquecer Santa Iria na opinio de louca, mas muito mais foi

ainda no se conformar com a mesma opinio, e, vendo-se infamada, no cooperar

com a mesma infmia. tal a fora e poder da infmia notem muito isto os que to
facilmente infamam as honras alheias tal a fora e poder da infmia que, sendo a
calnia testemunho falso, a mesma infmia far que a inocncia infamada o faa
verdadeiro. Houve um homem rico diz Cristo o qual encomendou o governo de
suas herdades a um criado, com nome de administrador delas. E, sendo este infamado
como dissipador das rendas que cobrava: Qui diffamatus est apud ilium, quasi
dissipasses bona ipsius (Lc. 16,1) chamou-o o amo, e mandou-lhe que desse
contas, porque no havia de exercitar mais o ofcio:Redde rationem villicationis tuae;
jam enim non poteris villicare [12] . O que ou o que deve ter toda a parbola ser
verossmil; e esta ltima resoluo parece que o no foi, por duas razes: primeira,
porque a culpa do delatado mais mostra ser fundada em suspeita que em verdadeira
prova: isso quer dizer aquele quasi; quasi dissipasset bone ipsius. Segunda, por que
foi privado do ofcio antes de se lhe tomar conta, nem se ver se a dava boa ou m:
Redde rationem, non enim jam poteris villicare. Pois, se a parbola foi composta
por Cristo, e o amo procedeu racional e justificadamente, como tira o ofcio ao criado
antes de lhe tomar conta, e por prova ao parecer duvidosa? Porque o homem estava j
infamado: Diffamatus Best apud ilium e em homem infamado, ainda que no
houvesse culpa para se lhe tirar o ofcio, havia causa para se lho no fiar. De sorte que
o amo no privou ao criado do ofcio pela prova das culpas passadas, seno pela
probabilidade das futuras, porque tal a fora e poder da infmia que, se a calnia
infamou o inocente, a mesma infmia o far culpado. Tanta a conexo que tem a
infmia com a culpa. Ainda no mais inocente, ou a supe, ou a causa, porque a
calnia, antes de infamar, testemunho do que no foi, mas depois de ter infamado
profecia do que h de ser. No mesmo caso o temos. Que fez o criado quando se viu
infamado com o amo? Porventura tratou de se purgar da infmia, e tirar a limpo a sua
honra? Antes, tudo pelo contrrio. O que fez foi falsificar escrituras, mudar nmeros,
tempos e firmas, e com roubos manifestos e certos ratificar a infmia dos duvidosos.
Est ele infamado? Pois ele perder a inocncia, se a no tem perdido, e far as
mesmas e piores infmias, se as no tem feito.E para que apertemos bem esta
conseqncia, ainda em comparao da nossa santa, ponhamo-la tambm em sujeito
santo. Uma das notveis peties que fez Davi a Deus foi esta: Redime me a cal
umniis hominum ut custodiam mandara tua (SI. 118, 134): Peo-vos, Senhor, que me
livreis das calnias e falsos testemunhos dos homens para que eu guarde vossos
mandamentos. Quem haver que se no admire destes para qu? A guardados
mandamentos de Deus s depende do alvedrio prprio, e no h poder algum criado,
ou humano, ou anglico, ou diablico que possa impedir ao mais fraco homem a
observncia da lei divina. Como pede logo Davi a Deus que o livre das calnias dos
homens, para que guarde os seus mandamentos? Porque, ainda que as calnias e

falsos testemunhos no tiram ao homem o alvedrio, tiram-lhe a fama, e um homem

infamado est no maior risco e na maior tentao de no fazer caso da lei de Deus, e
de se precipitar s mesmas baixezas e cometer os mesmos delitos de que se v
infamado. Santo Agostinho diz que a todo o homem necessria a conscincia e mais
a fama: a conscincia para si, a fama para os outros: Conscientiam propter nos, fama
propter alios. Disse bem o grande doutor, mas no disse tudo: a conscincia
necessria para ns, e a fama para os outros, mas no s para os outros, seno tambm
para ns, porque, se perdermos a fama, tambm perderemos a conscincia. Este o
verdadeiro sentido e a fortssima conseqncia das palavras de Davi, nas quais se
deve notar que no s diz a Deus que o livre das calnias, seno propriamente que o
resgate delas: Redime me a calumniis hominum. Se um homem se visse cativo nas
masmorras de Argel, no teria muita razo de dizer a Deus: Senhor, resgatai-me destes
cativeiro, para que no chegue a risco de renegar? Pois do mesmo modo diz Davi a
Deus que o resgate das calnias dos homens para que guarde seus mandamentos,
porque, sendo to santo Davi, no fiava da sua virtude nem da sua constncia, que,
caluniado e infamado, em vez de perseverar firme na observncia da lei divina, a
mesma infmia o no precipitaria aos vcios de que se via caluniado.Agora
entendereis a verdadeira razo e astcia por que Remgio, vendo-se resistido de Santa,
Iria, se resolveu a buscar um meio de a infamar publicamente. Bem podia ser dio e
vingana, como dizia-mos, mas no foi seno um novo e ltimo artifcio de a render,
entendendo que se enquanto conservava a honra e boa opinio resistiu com tanta
fortaleza, depois de afrontada com uma infmia to pblica, no tendo j que perder,
se renderia facilmente. A razo natural, certa e experimentada desta moral filosfica
a grande dependncia que tem a virtude da honra. A honra o segundo anjo da guarda
da virtude, e mais poderoso para conosco que todos os anjos, porque anjo que se v.
Quando os filhos de Israel saram do Egito e caminharam para a Terra de Promisso,
cada um tinha o seu anjo da guarda, o qual os guardava, como a ns o nosso
invisivelmente; mas, alm destes anjos invisveis, diante de todos ia outro visvel e
manifesto aos olhos, e este era o que os guiava, e ao qual seguiam. Mostrava-se este
anjo em duas colunas, uma de nuvem, com que de dia os defendia do sol, e outra de
fogo, com que de noite os alumiava: Per diem in columna nubis, per noctem in
columna ignis (x. 13, 21). Tal o anjo da guarda da virtude, a que chamei
segundo, e lhe pudera dar o nome de primeiro. Toda a virtude, e mais a da
honestidade, de que falamos, tem suas sustentaes de dia e de noite, e em ambas nos
guia e nos defende o anjo da guarda da honra. De dia contra o calor do apetite, como
nuvem que refrigera: Per diem in columna nubis e de noite contra as confianas da
escuridade, como fogo que alumia: Per noctem in columna ignis.
So a honra e a virtude entre si como os bons pais em respeito dos filhos, e os

bons filhos em respeito dos pais que lhes deram o ser. A virtude gera a boa fama, e a
boa fama defende a virtude. Sanso e seus pais todos caminhavam pela mesma
estrada; mas quem os defendeu do leo que saiu do bosque? No os pais ao filho,
seno o filho aos pais. A virtude a que d o ser honra e fama, mas a honra e a
fama so as que defendem a virtude. Daqui se entender uma notvel providncia,
com que Deus permitiu que se introduzisse no mundo uma grande injustia. E que
injustia esta? que, sendo os pecados contra a honestidade igualmente graves para
com Deus nas mulheres e nos homens, nas mulheres, ainda que sejam veniais, tiram a
honra, e nos homens, ainda que sejam mortais, no. E por que permitiu a Providncia
divina no mundo uma to grande injustia? Por que, defendendo a honra ao menos de
uma das partes a castidade, tivesse resistncia o vcio da torpeza, e no abrasasse
totalmente o mesmo mundo, diz S. Efrm. Tanto mais poderosa na natureza humana,
ainda depois de corrupta, a estimao da honra que a tentao do apetite! Por que
viviam castamente os atletas, e todos os que haviam de correr nos jogos olmpicos,
sendo gentios? Assim o afirma S. Paulo: Hi qui in stadio currunt, ab omnibus se
abstinent [13] . E o motivo, posto que vo, desta sua abstinncia, era, diz o mesmo
apstolo, porque com a estimao da honra e fama venciam e mortificavam o apetite.
No se pode negar que a conservao da virtude tem o seu trabalho, mas no
necessrio ser bom para sofrer o trabalhoso dela por conseguir o honroso. No hei de
provar este ponto com autoridades de santos, mas com o exemplo dos homens mais
maus, mais vis e mais mofinos do mundo. A gente pior e mais mofina do mundo so
os hipcritas, e tambm as hipcritas: por qu? Porque padecem o trabalhoso da
virtude, e perdem o meritrio. Mas nisso mesmo nos provam e nos ensinam quo
poderoso , mais que tudo na natureza humana, ainda depravada, o amor da opinio e
da honra. Nos seus jejuns, nas suas penitncias e nas suas largas oraes ou
supersties, so mrtires do diabo, e, contudo, se do por bem pagos de suportar todo
o trabalhoso da virtude s por conseguir o hon roso dela.E como a honracuja
ambio natural nasceu com o homem no s o incitamento e prmio da virtude,
seno a nica guarda e defensora dela, esta foi a singularssima glria de Santa Iria,
que, infamada e perdida totalmente a honra, desarmada e sem defesa. Que digo:
desarmada e sem defensa? S, desamparada e combatida de todas as partes, no por
um inimigo, nem por muitos, seno por todos os que a conheciam; no com um s
gnero de afrontas, seno com todas as mquinas que o dio, a astcia e a maldade
podem inventar; nem por um dia ou muitos dias, seno por toda a vida; se conservasse
contudo a virtude to constante, firme, inteira, e sem a menor leso nem abalo, como
se estivera cercada de muros de bronze e torres de diamante! A fortificao das
cidades mais inexpugnveis, segundo a arquitetura militar antiga, consistia em um
muro e antemural: o muro que cingia e defendia a cidade, o antemural que cingia e
defendia o muro. Assim o canta o profeta Isaias da cidade de Jerusalm, a que chama

fortssima: Urbs fortitudinis nostrae Sion, murus ponetur in ea, et antemurale [14] .
Sitiada, porm, e batida uma destas cidades, que sucedia? O que Jeremias chora da
mesma Jerusalm: Luxit antenuuale, et murus pariter dissipatus est (Lam. 2, 8): Caiu
o antemural, e juntamente caiu logo muro e o antemural, e o muro, e a cidade, tudo
ficou por terra. A mstica e espiritual Jerusalm a alma ornada de todas as
perfeies: Formosa sicut Jerusalem o muro a virtude, o antemural que o defende
a honra; e, tanto que caiu e se perdeu a honra, lego caiu e se perdeu tambm a
virtude. o que acontece tambm hoje, falando em frase militar moderna. Tanto que
se perderam as fortificaes exteriores, logo as muralhas so O sentido original do
versculo, adaptado por Vieira, o seguinte: Sido, cidade da nossa fortaleza, o
salvador: ele ser posto nela por mural e antemural (Is. 26, 1) picadas, minadas e
voadas, e a praa se entregou aos inimigos. O mesmo sucede virtude. Perdida a
honra e a fama, entra no seu lugar a afronta e a infmia, e por estas no s brechas,
mas portas abertas, se franqueia o passo livre a todas as maldades. Assim como
dissemos que a honra era o anjo da guarda para a virtude, assim diz S. Paulo que a
afronta o lao do demnio para os vcios: Oportet autem ilium et bonum
testimonium habere, ut non in opprobrium incidat, et in laqueum diaboli [15] . De
maneira que to necessria a honra e boa fama para conservar a virtude, e to
poderosa a desonra e a m fama para a destruir, que o mesmo cair em infmia que
cair no lao do demnio: Ne incidat in opprobrium et in laqueum diaboli.Estas so as
regras e perigos gerais da virtude afrontada e infamada, nas quais tambm havia de
ser compreendida a nossa santa, se com virtude singularissimamente herica no fora
a exceo de todas elas. S Santa Iria soube desafrontar as afrontas e afamar as
infmias. De Judite diz a Sagrada Escritura que era famosssima entre todas as
mulheres: Et erat haec in omnibus famosssima (Jdt. 8, 8). E, dando a razo destes
superlativo de famosa, acrescenta o texto: Quoniam timebat Dominum valde, nec erat
qui malum loqueretur de Ilia: Porque era muito temente a Deus, e no havia pessoa
alguma que dela dissesse mal. Vede agora quanto vai de fama a fama, e de Judite a
Iria. Judite era temente a Deus, e Iria era temente a Deus; de Judite no havia quem
dissesse mal, de Ida no havia quem no dissesse os maiores males; e se a virtude de
Judite era famosssima com boa fama, julgai se a virtude de Iria, no meio de tantas
infmias, era mais que famosssima? S. Paulo deu por empresa virtude herica
aquela famosa disjuntiva: Per infamiam, et bonam famam (I Cor. 6, 8): ou por boa
fama, ou por infmia. Judite e Iria partiram entre si esta sentena: a Judite tocou o
per bonam famam, e a Iria o per infamiam. Mas a esta parte deu o apstolo o primeiro
lugar, porque o mais herico da virtude no consiste em ser famosssima com boa
fama, seno em ser famosssima na infmia. Maior virtude a infamada que a famosa,
porque a famosa pode ter por fim a glria prpria, e a infamada no tem outra glria
nem outro fim seno a Deus. Tal foi o mais que herico resplendor da nossa glorioss

sima virgem. Para com Deus com a almpada acesa e resplandecente, como virgem
prudente, e para com os homens com a mesma almpada apagada e escurecida, como
virgem louca: Quinque autem ex eis erant fatuae, et quinque prudentes.

V
Britaldo, segunda e funestssima parte da tragdia de Santa Iria. Qual dos dois
foi mais cruel, Britaldo ou Remgio, ambos vingadores do constante e santo desamor
de Iria? A crueldade da calnia e a crueldade da morte no captulo vinte e seis do
Eclesistico. A desonra e as armas de carvo de que fala Davi. Os bens da vida e os
bens da fama. A imortalidade, principal atributo da virtude da castidade. A gerao
casta do Livro de Sabedoria. Iria, virgem clara para com Deus na virtude, e escura
para com os homens na infmia.
At agora no falamos em Britaldo, segunda e funestssima parte desta cruel
tragdia. Esquecido Britaldo do milagre com que Iria lhe dera a sade, mas muito
lembrado da promessa condicional que te tinha feito, seguindo a falsa mas aparente
opinio de todos, e julgando a inocente e castssima virgem por to infiel a Deus
como a si mesmo, com aquele dio, em que o amor desprezado e a dignidade da
pessoa lesa se converte em furor, irado, vingativo e poderoso, que fada? Soube o lugar
em que Iria, nas ribeiras do rio Nabo, passava o silncio das noites em familiarssima
conversaro com Deus, no queixando se das suas infmias, mas dando-lhe infinitas
graas por elas, e ali mandou a seus soldados que lhe tirassem a vida. Executaram a
detestvel sentena os mpios ministros, e to enganados e cegos como quem os
mandava, fazendo a morte mais cruel, com esquisitas tiranias, aberto o sagrado corpo
em feridas, e envolto em seu sangue, o lanaram na corrente do rio, que assim o
dispunha tambm a fera sentena. J agora estar satisfeito o cego amor de Remgio,
j estar satisfeito o dio tambm cedo de Britaldo, mas muito mais satisfeita est a
alma de Iria, a quem estas duas cegueiras abriram os olhos da mortalidade para que
eternamente comeassem a ver a Deus, e gozar, como esto gozando, os aplausos do
cu, onde no chegam as infmias da terra.
Mas porque na mesma terra no bastou o sangue de Iria nem as guas do Nabo
para lavar a sua infmia, ainda contumaz nos juzos e lnguas dos ho mens, justo ser
que ns ponhamos em questo, e resolvamos sria e sinceramente qual dos dois foi
mais cruel com Iria nesta lastimosa tragdia, se Remgio ou Britaldo, ambos cativos

de sua formosura, e ambos vingadores do seu constante e santo desamor? Que fez
Britaldo, e que fez Remgio? Remgio tirou-lhe a fama, Britaldo tirou-lhe a vida, e
no h dvida que mais a ofendeu e martirizou Remgio que Britaldo. Parece que se
apostou o Esprito Santo a advogar por esta causa, provando com textos expressos a
verdade da minha resoluo. No captulo 26 do Eclesistico diz assim o texto sagrado:
Delaturam civitatis, et collectionem populi calumniam mendacem, super mortem
omnia gravia (Ecl. 26, 6 s): A acusao de uma cidade, e o ajuntamento de um povo, e
uma calnia falsa e mentirosa, todas estas coisas so mais graves e mais dificultosas
de sofrer que a morte. Vede se tive eu razo para dizer que este texto foi ditado
pelo Esprito Santo, e escrito nos Cnones do Eclesistico em prova expressa do nosso
caso por todas suas circunstncias. Santa Iria foi acusada por toda a cidade de
Nabncia: accusationem civitatis foi aprovado o seu delito por todo o ajuntamento
do povo, porque ningum houve em todo ele que defendesse, nem acudisse por sua
inocncia, nem ainda o imaginasse: collectionem populi e tudo isto fundado em
uma calnia falsa e mentirosa, e tanto mais enganosa quanto com maiores aparncias:
et calumniam mendacem; e se cada uma destas coisas, por deciso cannica do
mesmo tribunal divino, mais grave e intolervel de sofrer que a mesma morte:
omnia super mortem gravia quanto mais todas juntas? Logo, no h dvida que a
calnia e engano de Remgio, que ocasionou a acusao de toda a cidade, e
conspirao de todo o povo unido no mesmo conceito e na mesma voz, com que todos
criam e abominavam a Iria, foi mais grave e mais cruel que a morte que lhe deu
Britaldo.
Britaldo valeu-se do seu poder, mas poder humano; Remgio no lhe bastando o
humano, socorreu-se do mgico e diablico, e tanto mais poderoso foi este, quanto
mais penetrantes as suas armas. Britaldo ofendeu a Iria com armas de ferro, Remgio
com setas de carvo, e de carves tirados do fogo do inferno. Mas quem nos provar
esta diferena no esperada? Davi, que entendia muito bem de armas, diz que as mais
poderosas de todas so as setas que levam na ponta carves: Sagittae potentis acutae
cum carbonibus desolatoriis [16] . E por que so mais poderosas as setas com
carves que as armas de ferro? Porque as armas de ferro ferem, as armas de carvo
tisnam; e as armas de ferro, que ferem, podem tirar a vida, as de carvo, que tisnam,
tiram e infamam a honra. Tais foram as setas de Remgio, tiradas de longe e falsa f,
comparadas com as de Britaldo, executadas de perto. As de Britaldo tiraram-lhe a
vida, mas vestiram-nade prpura com o sangue; as de Remgio, deixaram-na viva,
mas tisnaram-lhe a honra com o carvo da infmia, Seja juiz nesta causa o mesmo
Cristo. Os inimigos de Cristo, no s lhe quiseram tirar a vida, seno a honra: para lhe
tirarem a vida, pregaram-no em uma cruz; para lhe tirarem a honrar puseram-no entre
dois ladres. E qual destas duas circunstncias sentiu mais o Senhor: a companhia dos

ladres ou os cravos da cruz? certo que a companhia dos ladres, como ele mesmo
declarou quando o prenderam para o crucificarem: Tanquam ad latronem venistis
comprehendere me [17] . E a razo manifesta porque o ferro dos cravos tirou-lhe a
vida, a companhia dos ladres infamava-lhe a honra. Por isso profetizou Jeremias que
morreria farto de afrontas: Saturabitur opprobriis (Lam. 3, 30) sendo que na
mesma cruz teve sede de mais tormentos, como declarou, quando disse: Sitio (Jo. 19,
28). E tudo foi. Morreu sequioso de tormentos, porque ainda desejava mais o seu
amor; de afrontas, porm, farto, porque no teve mais que desejar a sua pacincia.
Isto mesmo se deve julgar sobre a morte da nossa santa, comparada com as suas
infmias. E se me perguntardes por que foi mais cruel o martrio de quem lhe infamou
a honra que de quem lhe tirou a vida, o mesmo Esprito Santo, que defende esta causa,
deu a razo: Bonae vitae numerus dierum, bonum autem nomen permanebit in aevum
(Eclo. 41, 16): A vida um bem que morre: a honra e a fama bem imortal; a vida,
por larga que seja, tem os dias contados: a fama, por mais que conte anos e sculos,
nunca lhe h de achar conto nem fim, porque os seus so eternos; a vida conservasse
em um s corpo, que o prprio, o qual, por mais forte e robusto que seja, por fim se
h de resolver em poucas cinzas: a fama vive nas almas, nos olhos e na boca de todos,
lembrada nas memrias, falada nas lnguas, escrita nos anais, esculpida nos
mrmores, e repetida sonoramente sempre nos ecos e trombetas da mesma fama. Em
suma, a morte mata ou apressa o fim do que necessariamente h de morrer: a infmia
afronta, afeia, escurece e faz abominvel um ser imortal, menos cruel e mais piedosa
seria se o pudera matar. E como a morte ofende a mortalidade da vida, e a infmia a
imortalidade da honra, muito mais cruel e desumano foi Remgio com Iria infamandoa que Britaldo mandando-lhe tirar a vida.
E se considerarmos o brbaro e injustssimo motivo da caluniosa infmia, que
foi a honradssima resistncia e constantssima castidade da purssima virgem, ainda
foi mais clara e manifesta a cega e sacrlega ousadia de querer matar Remgio, no s
na pessoa mortal, mas na mesma virtude imortal a sua natural imortalidade. Um
principal atributo da virtude da castidade, como virtude verdadeiramente anglica,
ser imortal. Outra vez o mesmo Esprito Santo no captulo quarto da Sabedoria,
exclamando assim: O quam pulcbra est casta generatio cum claritate! Immortalis est
enim memoria illius, quoniam nota est apud Deum, et apud homines (Sab. 4,1):
quo formosa a gerao casta, porque a sua memria imortal para com Deus e para
com os homens. Com razo reparam os intrpretes aqui na palavra generatio, porque
a castidade das virgens, da qual a entende a Igreja, to fora est de ter gerao, que
antes em a renunciar para sempre consiste a sua essncia e excelncia. Pois, se este
supremo grau da castidade consiste em renunciar para sempre a gerao, que gerao

 esta, que nela tanto louva e engrandece o Esprito Santo? Direi. O fruto da gerao
a perpetuidade dos homens, os quais, como morrem e ho de morrer em si,
perpetuam-se nos filhos. Mas esta perpetuidade mortal, porque os filhos, assim
como seus pais, tambm so mortais; porm a gerao casta e virginal, em vez de
filhos mortais, gera outra sucesso mais nobre e imortal, porque dela nascem duas
imortalidades, uma para com Deus e outra para com os homens: para com os homens
a da memria imortal, e para com Deus a da glria tambm imortal: Immortalis est
enim memoria illius, quoniam nota est apud Deum et apud homines.
Agora quero eu falar com Remgio. Vem c, monge sacrlego e infame, tu no
lias estes mesmo texto em todas as solenidades das virgens? Pois, como te atreveste, e
muito mais depois que experimentaste a ponstncia virginal de Iria, a quer-la
despojar da imortalidade da sua virtude? No creio que foi erro do mau monge contra
f destas palavras, mas que foi a agudeza do seu entendimento furioso, com que as
quis interpretar ao seu infernal intento. Todos estes louvores da castidade virginal no
os d a Escritura s gerao casta, seno gerao casta com claridade: O quam
pulchra est casta generatio cum claritate. Pois, j que eu, diz Remgio, lhe no
pude render a castidade, quero-lhe escurecer a claridade; e como a claridade ficar
escurecida com a infmia, seja embora imortal na memria dos homens: Immortalis
est enfim memoria illius porque ser imortal a memria da sua desonra, e no a da
sua virtude. Assim foi, vivendo e morrendo Iria infamada na opinio dos presentes, e
com a mesma afronta havia de continuar depois da morte infamada na memria dos
vindouros, de sorte que esta mesma virgem, que hoje celebramos como nica entre as
virgens prudentes, a havamos de desprezar e aborrecer como uma das loucas. Mas
nesta mesma oposio e contrariedade consistiu a sua maior glria, clara e escura
juntamente: apud Deum, et homines na terra escura para com os homens, e no cu
clara para com Deus. Diga-se pois das outras virgens: O quam pulchra est casta
generatio cum claritate! elas formosas com a claridade, porm Iria mais formosa
que todas, porque formosa com claridade e sem claridade: com claridade, porque clara
para com Deus na virtude; e sem claridade, porque escura para com os homens na
infmia. E se duvidais e quereis saber como deste claro e escuro se podia compor uma
perfeita formosura, digo que como a da lua: Pulcbra ut luna (Cnt. 6. 9). A lua no
ltimo ponto ou paroxismo do seu minguante, para a parte de dentro e do cu est
clara, e para a parte de fora e da terra, toda escura. Assim tambm a nossa santa: para
a parte de fora, onde ficaram as virgens loucas com a almpada apagada, escureciam
com elas nos olhos dos homens: Quinque autem ex eis eram fatuae [18] mas para
a parte de dentro, onde entraram as prudentes com a almpada acesa e resplandecente,
como virgem prudentssima aos olhos de Deus: Et quinque prudentes [19]

 VI
Como a divina Providncia, para acudir pela honra de Iria, antecipou o dia do
Juzo? A posteridade dos filhos de Cristo e a posteridade dos filhos de Iria na
Repblica de Santarm. Concluso.
Mas esperai um pouco, que assim como a luz totalmente escurecida se restitui
outra vez sua natural luz e formosura, e no s resplandece em si, mas alumia o
mundo, assim, triunfando a virtude contra a malcia, a verdade contra a mentira, e a
justia divina contra a astcia e temeridade humana, as afrontas de Iria se converteram
em honras, as infmias em louvores, os desprezos em aplausos, e as injrias em
glrias. E que fez Deus para isso? Caso maravilhoso! Trocou a ordem universal de sua
providncia, e, para acudir pela honra de Iria, antecipou o dia do Juzo. Morreu a
inocentssima virgem, mais ferida das calnias que das feridas que lhe deram a morte,
e como se o fim de sua vida fosse o fim do mundo, no mesmo dia sentenciou Deus a
sua causa, e lhe deu a gloriosa vitria de seus caluniadores. Davi, como dissemos,
pedia a Deus que o remisse das calnias dos homens: Redime me a calumniis
hominum [20] e Deus promete que assim o far a todos os caluniados: mas quando,
ou para quando? Para o dia do Juzo? Isto significam expressa e literalmente aquelas
palavras, que o mesmo Senhor ento dir: Respicite, et levate capita vestra: quoniam
appropinquat redemptio vestra [21] . Ento se publicar naquele imenso teatro, em
que nos havemos de achar todos, a inocncia dos justos e o engano e malcia dos que
falsamente os caluniaram. At S. Paulo, das calnias que contra ele levantaram seus
mulos, se consolava com a certeza desta esperana, e com a mesma nos exorta a que
no queiramos julgar antes de tempo: Nolite ante tempus judicare, quoadusque veniat
Dominus: qui et illuminabit abscondita tenebrarum, et tunc erit laus unicuique a Deo
[22] . Pois, se Deus tem assinalado aquele ltimo dia para julgar as causas dos
inocentes, e se ento se h de alumiar tudo o que agora est escuro e manifestar-se
tudo o que agora est encoberto, e se ento, com testemunho e autoridade irrefragvel,
sero louvados de Deus os que agora so caluniados dos homens: Et tunc laus erit
unicuique a Deo sendo j passados antes do dia do Juzo e depois do caso de Santa
Iria mais de mil anos, por que no esperou Deus por aquele tunc, e o antecipou tanto
tempo antes ante tempus? Porque teve Santa Iria pacincia para sofre no Deus
para esperar. Que fez Iria no meio de tantas calnias, afrontada, infamada e condenada
de todos? No se queixou, no se defendeu, no acusou a traio de falso amigo, e
antes quis que o seu crdito fosse o ru do que no tinha cometido, que descobrir o
autor de to horrenda maldade. E agradou-se Deus tanto daquele silncio daquela

modstia e daquela pacincia, que a no teve o mesmo Deus para esperar as tardanas
do tempo, e dispensando ou quebrando todas as leis ordinrias de sua providncia, a
que o mundo reputava por mulher louca, declarou por Virgem prudentssima, e a que
todos infamavam de pecadora canonizou por santa, sendo os selos pendentes das
bulas da sua canonizao, como lhe chamam os sagrados cnones, os muitos e
prodigiosos milagres com que ento publicou e provou o cu a inocncia e santidade
de Iria.
Dois elementos concorreram para os tormentos que na vida e na morte padeceu
a santa, que foram a terra e a gua. A tema, na vila de Nabncia, a gua no rio Nabo:
a terra por Remgio, o autor que maquinou o engano a que se seguiu a infmia em
todo o povo; a gua por Britaldo, o tirano que a sentenciou ao martrio, a que se
seguiu a crueldade de seus soldados, que, mortalmente ferida, a lanaram por seu
mandado na corrente do rio. E para que os mesmos elementos em maiores e melhores
teatros concorressem para a honra da mesma santa infamada e morta, a Nabo
sucedeu o Tejo e a Nabncia Santarm: o Tejo, prncipe de todos os rios de Espanha, e
Santarm, antiqussima corte dos reis de Portugal. O Tejo, levantando no fundo de
suas areias de ouro, e lavrando de finssimos mrmores o mausolu do seu sepulcro, e
Santarm com o epitfio, gravando nas pedras de suas torres, e magnficos e sagrados
edifcios o nome de Iria, com sobrenome ou antenome de santa. E porque para a
infmia no elemento da terra tinha concorrido o inferno, assim foi tambm gloriosa e
justa correspondncia que para o sepulcro no elemento da gua concorresse o cu: o
inferno, com as feies da arte mgica, temperadas por astcia dos demnios; e o cu,
com os primores da arquitetura fabricados por mos de anjos. Assim vingou Deus e
honrou a Moiss em um e outro elemento as injrias do rio Nilo e as da terra do Egito,
com os triunfos do Mar Vermelho e Terra da Promisso. E se o sepulcro de Moiss o
escondeu Deus aos olhos dos homens, para que eles o no idolatrassem em injria do
mesmo Deus, tambm depois de uma vez visto o sepulcro de Iria, o escondeu Deus
aos olhos dos homens, em castigo e restituio da ofensa que tinham feito ao mesmo
Deus nas injrias da sua santa. Onde est hoje o sepulcro de Santa Iria? Nem no fundo
do Tejo o penetram os olhos nem o acham as ncoras: todos o crem, e ningum o v.
Por qu? Porque assim como Deus no cu premia a virtude da f com a vista, assim na
terra quis satisfazer com a f dos presentes o delito da vista dos passados, para que
glorifique tanto mesma santa f dos presentes com a verdade do que no v, como a
ofenderam os olhos dos passados com a mentira do que viram.
ditosa e bem-aventurada Iria, no menos nas suas mesmas ofensas que nas
suas glrias! Se a ofensa de Deus em Ado, pelos grandes bens que dela
ocasionalmente se seguiram, se chama, com razo, feliz, sem encarecimento se pode

dizer o mesmo do afrontoso testemunho levantado contra a virginal pureza de Santa

Iria. A aparncia do ventre foi fantstica e suposta, mas o parto do mesmo ventre foi
verdadeiro e admirvel. Se assim no houvera sucedido, esta ilustrssima repblica,
to fecunda de milagres, no seria Santarm, nem os filhos de Santarm filhos de
Santa Iria. Todos os filhos de Santarm so o parto daquele ventre. Cristo, Senhor
nosso, no teve pecado prprio; mas, porque morreu por pecado que no cometera,
diz o profeta Isaas que duraria sem fim a posteridade de seus filhos: Si posuerit
animam suam pro peccato, videbit semen longaevum [23] . Mais de mil e
seiscentos anos h que dura a posteridade dos filhos de Cristo, e mais de mil que dura
e continua a dos filhos de Santa Iria. A virgindade virtude estril, mas em Santa Iria
foi fecundssima: Donee sterilis peperit plurimos [24] . Tantos filhos, como vemos,
e todos para maior maravilha filhos de me virgem. Vistes j ou imaginastes um
grande monte de trigo murado de lrios? Pois tal o ventre da minha santa Esposa, diz
o divino Salomo, Cristo: Venter tuus acervus tritici vallatus liliis [25] . Ventre
murado de lrios, pela pureza virginal de Iria, com que naquela falsa e mgica
inchao se defendeu constantissimamente de todos os golpes da calnia, da infmia,
e da mesma morte; e monte de trigo inumervel, pela multido dos filhos sem nmero
que por tantas idades e sculos lhe nasceram, e em tantos morgados de religiosssimas
famlias se continuam e multiplicam. Filhos de me e virgem, digo outra vez, e com
privilgio que nem na mesma Me de Deus teve tal singularidade de maravilhoso.
Que diz o profeta, falando do parto da Me de Deus?Ecce Virgo concipiet, et pariet
filium (Is. 7,14): Conceber uma Virgem, e parir um filho. Foi parto de virgem, mas
parto a que precedeu conceio. O dos filhos de Santa Iria tambm so partos de
virgem, mas parto sem conceio, porque o tumor do ventre foi falso, e os filhos da
mesma Virgem so verdadeiros.
Agora se seguia exortar eu aos mesmos filhos a que imitem a me; mas s lhes
digo, por cautela muito importante, que se lembrem do que a mesma me padeceu
pelo engano dos olhos duas vezes enganados: uma vez enganados em Remgio e
Britaldo por amarem o que viram, e outra vez enganados em todos os mais, por
crerem o que viam. Se amarem o que virem sero loucos, se no crerem nem ao que
virem sero prudentes; e com estas duas advertncias sero verdadeiros filhos de uma
Virgem que com opinio de louca soube ser prudentssima: Quinque autem ex eis
erant fatuae, et quinque prudentes.

[1]
[2]
[3]
[4]
[5]
[6]
[7]

Mas cinco dentre elas eram loucas, e cinco prudentes (Mt. 25, 2).
Graa enganadora, e a formosura v (Prov. 31,30).
O meu amado cndido e rubicundo (Cnt. 5, 10).
Fleima no original.
Ambr lib de Susan.
De todas as partes me vejo cercada de angstias (Dan. 13, 22).
Torna da minha mo o clice do vinho deste furor, e dars a beber dele a todas as gentes s
quais eu te enviarei.E eles bebero. e ficaro turbados, e sairo fora de si (Jer. 25, 15).
[8] Na mo do Senhor Babilnia um copo de ouro que embriaga toda a terra (Jer. 51, 7).
[9] A sua alma com os males se consumia. Foram turbados, e titubearam como um temulento (SI.
106, 26 s).
[10] Todo o seu saber foi apurado (Sl. 106, 27).
[11] Mas cinco dentre elas eram prudentes (Mt. 25, 2).
[12] D conta da tua administrao, porque j no poders ser meu feitor (Lc. 16, 2).
[13] No sabeis que os que correm no estdio (l Cor. 9, 20) de tudo se abstm (ibid. 25).
[14] Em Sio, cidade da nossa fortaleza, ser posto um muro e um antemural (Is. 26, I ).
[15] Importa outrossim que tambm ele tenha bom testemunho, para que no caia no oprbrio e
no lao do diabo (I Tim. 3, 7).
[16] Selas de valoroso agudas, com carves desoladores (SI. 119, 4).
[17] Vs viestes para me prender como se eu fora um ladro (Mt. 26, 55).
[18] Mas cinco dentre elas eram loucas (Mt. 25, 2).
[19] E cinco prudentes (ibid.).
[20] Redime-me das injrias dos homens (SI. 118, 134).
[21] Olhai, e levantai as vossas cabeas, porque est perto a vossa redeno (Lc. 21, 28).
[22] No julgueis antes do tempo, at que venha o Senhor, o qual por s claras o que se acha
escondido nas mais profundas trevas, e ento cada um receber de Deus o louvor (1 Cor. 4,
5).
[23] Se ele tiver dado a sua alma pelo pecado, ver a sua descendncia perdurvel (Is. 53, 10).
[24] At que a estril teve muitos filhos (1 Rs. 2, 5).
[25] 0 teu ventre como um monte de trigo cercado de lrios (Cnt. 7, 2).