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Contos e Lendas
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E-book170 páginas2 horas

Contos e Lendas

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IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de nov. de 2013
Contos e Lendas

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    Contos e Lendas - Luiz Augusto Rebello da Silva

    Project Gutenberg's Contos e Lendas, by Luís Augusto Rebelo da Silva

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    almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or

    re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included

    with this eBook or online at www.gutenberg.net

    Title: Contos e Lendas

    Author: Luís Augusto Rebelo da Silva

    Release Date: October 29, 2009 [EBook #30359]

    Language: Portuguese

    *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK CONTOS E LENDAS ***

    Produced by Pedro Saborano and the Online Distributed

    Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This book was

    produced from scanned images of public domain material

    from the Google Print project.)

    CONTOS E LENDAS

    REBELLO DA SILVA


    CONTOS

    E

    LENDAS


    Introducção—A torre de Cain—O castello de Almourol

    A camisa do noivado

    A ultima corrida de touros em Salvaterra


    LISBOA

    LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª

    67—Praça de D. Pedro—67

    1873{4}

    DECLARAÇÃO

    A propriedade d'esta edição pertence a Henrique de Araujo Tavares, subdito brasileiro.

    LISBOA

    LIVRARIA EDITORA DE MATTOS MOREIRA E COMP.ª

    67—Praça de D. Pedro—67

    1873{5}

    INTRODUCÇÃO

    Dicebam que: in nidulo meo moriar, et sicut palma multiplicabo dies.

    Job cap. XXIX v. 18

    As pequenas composições, que hoje principiâmos a publicar, são de um homem, que nunca do mundo quiz mais do que a tranquilla obscuridade, que faz de ordinario o supplicio de tantas vaidades. Ministro sincero de um Deus de paz, assentou-se aos pés da cruz e d'ali viu aproximar o inverno da velhice, com a mesma serenidade com que tinha visto passar as illusões da juventude, e com que havia atravessado os perigos da edade viril. Satisfeito com a sua pobreza, não invejava (se é que invejou alguma cousa!) senão a uncção apostolica e a eloquencia persuasiva dos primeiros confessores da fé{6} nas grandes epochas da regeneração moral do mundo. Chegado quasi ao termo do seu desterro, quando a hora da liberdade estava a soar, reclinou a cabeça para acordar sem dôr na manção do jubilo, patria suspirada de suas mais doces esperanças, unica impaciencia de uma alma, que longe da morada celeste se entristecia captiva.

    A virtude n'elle era risonha e desassombrada. Nascia de dentro, não aspirava a grangear applausos, nem se desvanecia com os respeitos mundanos. Se alguma vez peccou foi por excesso de bondade. Nunca ouviu queixas que a sua bocca se não abrisse para as suavisar, nem viu lagrimas, que a sua mão as não enxugasse logo. Por isso em muitas occasiões, elle, o ancião experimentado, revellava a simplicidade da pomba, enganado pelos artificios dos hypocritas. Por mais que o advertissem, a sua caridade não se cansava, e embora faltasse a si, nunca faltou aos pobres. Se o convenciam de erro, se lhe mostravam a illusão, sorria-se, e respondia: «Louvado seja Deus! Ainda bem que até me deu para esses!» Dito isto cheirava com pausa a sua pitada de esturro, e ia catar, ou alporcar os craveiros, até o relogio do estomago, unico relogio que havia em casa, o avisar de que eram horas da refeição. Vinha então recolhendo-se de vagar, alargava o passeio pela cosinha, rondando o almoço ou o jantar, não sem se arriscar a alguma jaculatoria da tia Brizida, matrona sexuagenaria,{7} que tinha a seu cargo a economia domestica e o baixo e mixto imperio da dispensa e da capoeira.

    A ultima doença do padre Vigario, occasionou-a o zelo pelo serviço d'Aquelle, que nunca fez tambem esperar os desvalidos. Por baixo de immensa cerração, caindo a chuva em torrentes, e soprando o vento, frio e agudo, metteu-se á meia noute ao caminho da serra, para levar as consolações da Egreja a uma de suas ovelhas, que agonisava em desabrigada choupana. Á volta o corpo tremia sacudido por uma sesão de febre, e o rosto vinha mais pallido, do que a face de um moribundo. Deitou-se para não se tornar a levantar.

    Ferido no seu posto, como soldado intrepido, elevou o espirito, abençoou a enfermidade, e bem com Deus e com os homens, ao terceiro dia adormeceu para sempre. O Vigario levou todos os bens comsigo. Para se sepultar foi preciso que os visinhos fizessem uma derrama. Mas em compensação nunca houve funeral tão rico de prantos e louvores. Despovoaram-se os logares da freguezia e dos arredores para o acompanhar, e quando o corpo saiu do presbyterio, o chôro de toda a aldeia honrou aquellas cinzas tão amadas. Com razão! Não era o velho parocho o pae, o amigo, o bemfeitor de todos? Em vida constituira os pobres seus herdeiros, por isso não deixava de seu mais do que a sobrepeliz e a batina remendada, em que o amortalharam, e o{8} crucifixo de marfim, que unira ao coração na derradeira despedida.

    O premio não foi só a corôa de gloria!... Por mais desvairada, ou corrompida, que uma geração corra ao precipicio, os exemplos salutares sempre se lhe gravam na lembrança, e a rudeza dos camponezes, apezar dos vicios esquecidos nos idilios, não é usualmente a que resiste mais á proveitosa lição das boas obras. Pelo menos assim aconteceu na parochia. A ama, á qual o Vigario legára sómente a memoria de suas virtudes, encontrou logo a hospitalidade, affectuosa, não de um, mas de muitos habitantes, que se lhe offereceram para acolherem sua velhice. O cão do Pastor, companheiro constante de tantos dias de fadiga, tambem achou quem se condoesse, e o fosse levantar da sepultura sobre que gemia saudoso. As pobres alfaias da casa, o breviario usado, os poucos livros da estante, e um, ou outro movel de seu uso quotidiano, disputados como reliquias, repartiram-se á sorte por evitar contendas, e hoje mesmo, depois de largos annos, o tempo, que tudo gasta, não amorteceu ainda a recordação do sacerdote exemplar, cujos ossos repousam á sombra dos cyprestes plantados pelas suas mãos no cemiterio da aldeia.

    Este foi o homem e o ecclesiastico venerando.

    Do poeta, que era, que sempre tinha sido, quasi sem o cuidar, raras, rarissimas pessoas dariam noticia.{9} Fugia da fama que dão as lettras, com um cuidado egual pelo menos áquelle, com que se furtava envergonhado ao pregão da sua caridade. Pejava-se tanto de si, e por tal receava ser visto, que se a direita se escondia da esquerda nas esmolas, a penna não se occultava menos discreta quando escrevia. O padre prior tinha pouco vagar para livros volumosos. Nos curtos ocios que as obrigações lhe concediam, distrahia-se deixando vaguear a phantasia pelas recordações do passado, enganando assim as tristesas do presente, ou ligando em algumas scenas soltas as remeniscencias, ainda vivas, dos dias da mocidade. E em quanto o vento lhe sacudia os caixilhos das janellas, e a chuva, chapinhando, lhe fustigava os telhados, enchia elle uma ou duas paginas á luz do ponderoso candieiro de latão amarello de tres bicos, talvez o traste mais luxuoso de toda a sua mobilia. Assim nasceram em um recanto obscuro da aldeia estes Contos e Lendas, escriptos sem emendas e com admiravel rapidez, em lettra grada, direita, e garrafal, para regosijo dos compositores, que cegam a miudo os negalhos de missanga de certos auctores, muito nossos conhecidos, aos quaes Deus não castigue em desaggravo de suas victimas.

    Se o padre Vigario vivesse, ainda não soltava seguramente da gaveta os papeis fechados a tres voltas e meia de chave. Foram precisas repetidas instancias{10} para m'os confiar. Poucos mezes antes da sua morte é que alcancei licença para fazer d'elles o uso que julgasse mais opportuno, com tanto que o nome do verdadeiro auctor nunca figurasse «porque dizia elle, não são cousas estas para um sacerdote da minha edade matar o tempo, quando podia rezar, meditar as suas praticas do domingo, ou examinar a sua consciencia. Mas não sei como isto é; assim que me sento diante da mesa e pego da penna, não posso valer-lhe, e apesar de todos os protestos, entram commigo as malditas historias, e não ha resistir-lhe. Se fosse crendeiro jurava que me faziam bruxarias.»

    A bruxaria era o que hoje se chama a vocação! A sós commigo perdia de vista as realidades da vida, e quasi sem o saber, deixava-se arrebatar pelas visões do mundo phantastico, aonde antes d'elle já se entranharam muitas outras que a admiração saúda como principes da intelligencia. Vingava-se porem d'este máu sestro (era a sua phrase) pondo de lado as escriptas frivolas apenas as acabava e nunca mais fallando d'ellas. Rabiscava umas tantas folhas de papel (com este desprezo tratava a inspiração!) e sem as tornar a ler, juntava o novo caderno ao antigo maço. Uma fita de nastro vermelho atava tudo. Esquecia-se depois d'este e dos outros até ao inverno seguinte, em que voltava ás suas historias com extremo pavor da tia Brizida, confidente dos{11} seus segredos, a qual representava nos serões litterarios do presbyterio o papel, que a tradição attribue á famosa ama de Molière. Em lisa fé temia ella devéras, que o demonio perdesse um dia a paciencia á força de esbofeteado, e de escarnecido pelo Vigario n'aquelles papeis, e que se desforrasse torcendo o pescoço ás gallinhas e frangos, ou chupando o sangue aos coelhos, transformado em raposa ou em ginete. Nunca acordava, que não esperasse encontrar a capoeira vasia! Se é bom estar bem com Deus, dizia, não é máu estar em paz com o demonio. A casa do presbyterio não era grande, nem espaçosa, mas sorria de longe á vista caiada por fóra e rodeada de canteiros de flôres. Vestia-se de um tal ar de festa, que namorava pela bellesa rustica e logo a distancia promettia a hospitalidade que nos dias do Prior estava convidando de longe com os braços abertos a quantos lhe batiam á porta. Situada na corôa de um outeirinho, alvejava por entre a folhagem prateada das faias, cujos troncos lisos e direitos o vento meneava graciosamente. O pateo ajardinado, cercado de alegretes, era todo viço e frescura, e tres cepas enroscadas e collossaes, cobriam com a sombra de seus pampanos as parreiras, aonde amadureciam na estação os mais formosos cachos de moscatel e de ferral-tamara. Em volta da risonha morada, penduravam-se as vinhas pelas encostas das collinas até ás margens de um ribeiro, toldado{12} de salgueiros e chorões que se torciam para beijarem a agua. Por entre as vinhas apparecia em malhas o verde mais fechado das hortas mettidas entre vallados de piteiras, em quanto ao lado sussurrava a levada correndo pelas regueiras. Os pomares, copando-se, encantavam de espaço em espaço os olhos offerecendo-lhes bosques fechados, e embalsamando tudo em roda com sua fragrancia. Subindo pelos outeiros, que ondeavam desde a planicie até ás montanhas torreadas no extremo horisonte, os troncos nodosos e robustos das oliveiras trepavam de socalco em socalco até á cortina de pinheiros, cujas cabeças, de um verde triste, a viração balouçava lá em cima meneando-as entre mormurios ao cair da tarde.

    A ribeira vinha de cima, e ora rebentando entalada, ora espraiando quasi adormecida, na areia alva e fina do leito, despenhava-se mais abaixo com estrepito, entrando no logar opulenta com as aguas recebidas. Aquelles pampanos cingidos de arvoredos, aquelles valles viçosos

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