Poética e Prosa
Poética e Prosa
Poética e Prosa
/ Renata Beatriz Brandespin Rolon. Cuiab: a autora, 2006. 91 p. Orientadora: Profa. Dra. Clia Maria Domingues da Rocha Reis. Dissertao. Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Linguagens. Campus Cuiab. 1. Literatura. 2. Prosa. 3. Poesia. 4. Prosa potica. 5. Manoel de Barros. I. Ttulo. CDU 82-1
Cuiab 2006
Dissertao apresentada ao Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso UFMT, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Estudos de Linguagem. rea de concentrao: Estudos Literrios e Culturais. Linha de pesquisa: Estudos Literrios. Orientadora: Prof Dr Clia Maria Domingues da Rocha Reis
DEDICATRIA
Dedico este trabalho ao meu pai Juan Nicer Rolon (in memoria). A minha querida me Ordlia B. de Nicer Rolon, que sempre esteve ao meu lado ensinando-me os sentidos da vida. Ao meu querido filho Joo Paulo R. Silva, razo de minha luta contnua.
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Isaac Newton Almeida Ramos, meu eterno mestre, com quem aprendi muitas lies e agucei o gosto pela poesia. Prof Clia Maria Domingues da Rocha Reis, minha orientadora, que me acompanhou durante estes 24 meses demonstrando muita sabedoria, disposio e, sobretudo, dedicao minha pesquisa. Ao professor Mrio Cezar Silva Leite pela leitura atenta e sugestes valiosas. Aos meus irmos Carlos Nicer B. Rolon e Juan Carlos B. Rolon, pelo incentivo e companheirismo. A minha amiga Sulemi Fabiano, pelo companheirismo e ajuda intelectual.
O presente trabalho constitui um estudo sobre a prosa potica como uma modalidade literria na qual os elementos estruturais obedecem a outra ordem, que no a tradicional. Nela, o teor lrico abre caminho para a integrao entre palavra e imagem, que resultam em uma nova essncia do fazer potico. Nessa perspectiva, tento compreender a prosa potica de Manoel de Barros por meio da anlise de alguns textos que compem o Livro de pr-coisas (1997) e Memrias inventadas A infncia (2003), em sua forma e contedo. Em relao ao contedo, o intuito investigar a maneira mtica com que Barros fala da origem e do convvio social do homem por meio de um personagem que representa o pantaneiro, dotado de crendices e valores que se materializam em acontecimentos surreais, o personagem Bernardo da Mata. nesse contexto que em suas narrativas surge um Pantanal que possui duas esferas, a natural e a encantada. Alm disso, o poeta tambm busca estabelecer por intermdio de uma prosa memorialstica e criativa, relaes com um tempo que possibilita a reflexo do sujeito. Desse modo, as anlises contidas nesse trabalho indicam que a qualidade esttica da prosa potica de Manoel de Barros possibilita a criao de imagens de um pantanal de homens e mitos, provocando origens e (re) nascimentos. Palavras-chave: Livro de pr-coisas, Memrias inventadas A infncia, prosa potica.
ABSTRACT
ROLON, R. B. B. The poetical prose from Manoel de Barros: myths and memories
The current composition compounds a study on the occurrence of the poetical prose in Manoel de Barros. These texts present non-traditional narratives and they show that structural elements obey the other order, which is not the traditional one. In these narratives the lyric drift and the dense rhythm open way for the integration between text and image, what results in a new essence of poetic doing. In this perspective, I analyze some narratives, which compounds the Livro de pr- coisas (LPC) and Memrias Inventadas - A Infncia (MI). The goal is in revealing the fact that by the relates of its narrator, Barros tells, by a mythic way, the origin of man through Bernardo da Mata, a character who represents the pantaneiro doted by beliefs that are materialized at surreal happenings. It is into this context that at the manoelenses poetical narratives arises a Pantanal that has two spheres: The supernatural and the enchanted one. Besides, the poet also seeks to establish, through a memorial and creative prose, relations with the time that makes it possible the self-apprehension of the subject itself. Thereby, the narratives analyzed indicate that Manoel de Barros, through his poetical prose, seeks in the memory images of a pantanal of men and myths from the world that surrounds them, provoking origins and (re)births.
ESC- Exerccios de ser Criana GEC- Gramtica expositiva do cho GA O guardador de guas LSN- Livro sobre nada LPC- Livro de pr-coisas TGGI- Tratado geral das grandezas do nfimo MI- Memrias inventadas A infncia
SUMRIO
Dedicatria .........................................................................................................I Agradecimentos.................................................................................................II Resumo..............................................................................................................III Abstract.............................................................................................................IV Introduo........................................................................................................10 1 DA POESIA PROSA POTICA .................................................................13 2 OS (DES)CAMINHOS DE UM MUNDO RENOVADO...................................27 2.1 As Trilhas encantadas do Livro de pr-coisas..................................32 2.2 Revelaes de um universo mtico.....................................................42 2.3 Bernardo: o personagem-mito...........................................................48 3 OS FIOS DA MEMRIA DE UM PANTANEIRO...........................................66 3.1 Destroos de uma natureza potica .................................................75 Consideraes finais......................................................................................86 Referncias bibliogrficas..............................................................................89
Introduo
A prosa potica uma vertente ainda pouco abordada pela teoria literria. Os estudos mais recentes acerca da poesia moderna apontam para a ocorrncia de poemas que, mantendo o ritmo e a imagem potica, fogem do padro tradicional, apresentando seqncias narrativas. A prosa potica se apresenta nas mais diversas manifestaes do gnero narrativo, ou seja, do romance crnica que, num todo ou em partes, vem permeada por uma linguagem mais elaborada, de forma que os cenrios, personagens e enredo, amalgamados, formam um mosaico lrico. Ainda, nos textos que seguem essa vertente so encontrados diversos elementos prprios de um poema, como o predomnio de figuras como a metfora, o eu-lrico, atitude lrica. Uma das diferenas que nela no h a preocupao do emprego de elementos formais, por exemplo, o visual (a disposio das frases em estrofes, versos) e o sonoro (figuras de som, rimas, aliteraes, assonncias, paronomsias etc), geralmente buscados nos poemas, que em si possuem um sentido, e que do a eles efeitos peculiares. Ressalta-se que possvel que a prosa potica possa conter efeitos sonoros interessantes, mas ele no to expressivo quanto os desenvolvidos nos poemas, por exemplo, concretos, parnasianos, simbolistas. O que existe nessa nova estrutura uma dinamicidade, materializada seja pela incorporao do falar coloquial ou mesmo pela metaforizao do espao que no se compara com as narrativas puramente descritivas. Manoel de Barros cria uma poesia que emerge em prosa. Fazendo um levantamento quantitativo e leitura de todos os livros publicados por Manoel de Barros, constatei que, desde o primeiro, Poemas concebidos sem pecado (1937), ele utiliza este modo de composio. Devido a esse uso amplo e percebendo que, de modo geral, o estilo se mantm, elegi para as minhas anlises trs textos do
Livro de pr-coisas (2 ed, 1997) e um do Memrias inventadas A infncia (2003). Esclareo que, para aprofundar a compreenso do trabalho literrio do autor, em alguns momentos trabalhei tambm com versos, em fragmentos ou integrais, retirados de outras obras do poeta, como: O Guardador de guas (1989), Gramtica expositiva do cho (2 ed, 1992), Livro sobre nada (1996), Exerccios de ser criana (1999) e Tratado geral das grandezas do nfimo (2001). A partir dessas anlises foi constatado que nas narrativas potica de Barros o Pantanal mato-grossense torna-se um espao no reconhecido, pois neste, encanto e natureza mesclam-se. Dessa unio surge uma linguagem inventiva que modifica tambm a estrutura dos textos. Para relatar o que h no espao pantaneiro, o autor confere qualidade esttica ao texto, que resulta em imagens acrescidas de novos sentidos. Seus experimentos com a linguagem revelam os habitantes do lugar natureza, homens, animais -, cenrios, enredo, resultando em uma potica que admite novos sentidos agregados em seu corpo. Para melhor compreender o que seja a prosa potica, em sua manifestao literria e, mais especificamente, a prosa potica de Manoel de Barros, foi preciso pesquisar textos tericos que versassem sobre as definies de poesia, prosa e prosa potica, assim como suas caractersticas e funcionamento como linguagem literria, estudo que apresento no primeiro captulo, intitulado Da poesia prosa potica. Esse trabalho foi necessrio para melhor direcionar as anlises estilsticas dos textos selecionados. O segundo intitulado Os (des)caminhos de um mundo renovado, destinase anlise estilstica da prosa potica dos textos selecionados. Nele feita uma conjugao entre mito e poesia, mitos relacionados ao homem, ao espao que ele habita, s suas crendices. Tento, ento, compreender a fala do poeta sobre a fauna e a flora pantaneiras, sobre o homem, representado no personagem Bernardo da Mata, que habita a poesia de Manoel de Barros desde a primeira publicao do Livro de pr-coisas . Por meio de Bernardo, o poeta traa o perfil de um ser que vive integrado com a natureza mtica e com os seres do lugar. Pela importncia que esse personagem adquire, ainda no segundo captulo, detenho-me na busca de compreender seus feitos e por isso fiz trs divises: a
primeira, As trilhas encantadas do Livro de pr-coisas, para mostrar a inovao na construo de sua prosa potica e a constituio de um espao natural que tambm encantado; a segunda, Revelaes de um universo mtico, a partir da anlise do texto Mundo Renovado, compreender o espao que Bernardo habita; a terceira, Bernardo: o personagem-mito, com o estudo do texto No presente, verificar que a presena desse personagem na poesia manoelense possibilita uma interpretao que abre caminho para a expresso de smbolos, os quais remetem ao mito da origem do homem. Para analisar esses aspectos, recorri s teorias de Mircea Eliade nos livros Mito e realidade (1972), Mito do Eterno Retorno (1992) e Mielietinsk com o livro A potica do mito (1987). Por meio desses estudos, v-se que o mito se consagrou como um meio pelo qual contam-se histrias sobre a sabedoria da vida. No terceiro captulo, intitulado Os fios da memria de um pantaneiro, procurei mostrar que os caminhos traados pela memria de um narrador-menino elucidam fatos e acontecimentos de seu passado. Por intermdio da figura do av, o eu-narrante revela suas lembranas permeadas por smbolos que identificam o cotidiano do povo pantaneiro. Essas lembranas fazem com que o menino procure encontrar na figura do av valores essenciais ao ser. Ainda, neste terceiro captulo, h uma diviso: Destroos de uma natureza potica com a anlise do texto Carreta pantaneira. Neste percebi que, mesmo transformados, os objetos utilitrios mantm os homens junto s lembranas que foram repelidas, desarticuladas pelo progresso. Ademais, a presena da carreta, um dos smbolos da identidade do povo pantaneiro, revisitada pela memria do narrador, torna-se a representao de uma natureza que encontra o seu prprio caminho, que consegue se transformar e recriar a vida. A transmutao da carreta, sua aparente desfuncionalidade possibilita (re)nascimentos, renovaes e regeneraes dos seres que habitam esse universo imagtico.
Aristteles, em sua Arte Potica (1987), ressalta que o ato de imitar prprio do homem, o que o diferencia dos outros animais por ele ser capaz de adquirir conhecimento por meio da imitao. Ao falar sobre a mimese, observa que ela ativa e criadora por imitar caracteres, emoes e aes humanas, e sua essncia consiste no prazer que da deriva. Etimologicamente, a palavra poesia vem do grego poiesis e significa ao, fazer, criar alguma coisa. Ela est relacionada a um produto literrio feito com especial cuidado. Como observador das artes, Aristteles (Ibid., p. 234) afirma que a poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa ndole dos poetas que eram atrados para este ou aquele gnero de poesia. Uns escreveram comdias, outros epopias, outros tragdias. Para ele no ofcio do poeta narrar o que aconteceu, e sim o de representar o que poderia acontecer; ou seja, o que possvel segundo a verossimilhana e a necessidade. A poesia uma arte ligada palavra. O poeta tem um mundo particular que erguido imageticamente por meio das palavras. Com sua autonomia discursiva, ele tem o poder de construir e remodelar o mundo. Nasce a poesia, nas primeiras sociedades agrcolas, como forma de recitao em rituais oferecidos em favor da boa colheita. Em muitas civilizaes a poesia tinha um significado e uma tarefa doutrinria, mgica e disciplinar. Segundo Benedetto Croce (1967, p.14), para os antigos gregos, a poesia possua ao milagrosa, eles a consideravam como um sopro sagrado, um furor, um entusiasmo, uma divina mania. Croce ainda observa que no sculo XVIII, graas a Vico, a poesia passou a ser concebida na perspectiva da linguagem, perspectiva
essa que se mantm at os nossos dias. A idia de poesia permaneceu, sobretudo, como um dado da cultura humana, como forma de representao das manifestaes histricas e culturais dos povos. O poeta, enquanto criador, ao longo dos tempos, transforma a poesia em uma arte mpar, capaz de revelar a essncia do homem, do mundo, no caos da histria. Octavio Paz (2003, p. 42) enuncia no primeiro captulo do seu El arco y la lira que El poema no es una forma literaria, mas sino el lugar de encuentro entre la poesa y el hombre. nesse sentido que a poesia e o poeta, concomitantemente, ajudam o homem a ver e analisar o mundo com um olhar renovador, conseguindo torn-lo consciente dos sentimentos mais profundos e inefveis. Por isso, a poesia, a exemplo de outras artes, mantm-se por si mesma, sem a necessidade de demonstrar sua finalidade. Dentro dessa concepo at aceitvel que um poema possa ser utilizado para diversos fins, todavia no pode ser avaliado em funo dessa utilidade. Com o advento da lrica moderna o poeta torna-se detentor da idia de que o recorte que ele faz do mundo, seu oficio de poetar, est apoiado em seu trabalho com a linguagem e que sua fora est na linguagem, linguagem essa carregada de significado, como ensina Ezra Pound (1995). Nessa perspectiva, cito o poeta Mallarm. Ele foi um dos primeiros a refletir sobre seu trabalho com a linguagem, afirmando no ser mais possvel pensar apenas no contedo da linguagem potica. Disse ele, em um dilogo travado com o escultor Degas, que no com idias que se fazem versos, com palavras (apud FRIEDRICH1, 1991, p. 106-7). Assim, para Mallarm, as palavras tm um peso maior que as idias, o que acaba por se configurar como o ponto fulcral do objeto da potica moderna que, deixando de lado padres de expresso potica do belo, do grandioso, abre espao para o feio, para o grotesco, a desumanizao, a obscuridade e a anormalidade. A palavra, passvel de compreensibilidade, d vida imaginao potica e por esta o mundo e o homem so reconhecidos, percebidos e analisados. Com a
1
Em a Estrutura da lrica moderna, Friedrich cita a conversa entre o pintor Degas e Mallarm, o qual responde a Degas quando este se queixou de que lhe ocorriam idias em excesso.
criao, h um rompimento do limite entre o real e o imaginrio, de onde surge a imagem, componente fundamental da linguagem potica. Nesse prisma a imagem no aspira verdade. Para Octavio Paz (2003) as imagens do poeta tm sentido em diversos nveis. Para Valry (1991), ela s possvel porque o poeta se afasta de seu estado normal de disponibilidade geral e procura novos reflexos. Da fora da imagem potica surge a poesia. Ambas esto interligadas. O poeta pensa por imagens e traduz seus devaneios no importando o que ser revelado. Nesse mbito surge a imagem que seduz, choca e acentua o trabalho do poeta, fazendo emergir um discurso que parece vir de outro, que no daquele que se conhece. Todavia a imagem potica possui uma autenticidade, uma representao simblica e seu significado perpassa a mente tanto do leitor quanto do poeta.
Las imgenes del poeta tienen sentido em diversos niveles. Em primer trmino, poseen autenticidad: el poeta las h visto u odo, son la expresin genuna de su visin y experiencia del mundo. (Paz, 2003, p 122)
poesia,
suas
combinaes,
sua
linguagem,
juntam-se
para
compreenso de suas manifestaes ao longo da histria literria. Nesse sentido, afirma Paz (op. cit., p. 42) que a poesia el lugar de encuentro. Poetas e crticos costumam ser cticos quando solicitados para definir poesia. Muitos deles preferem responder por meio de um aparente esvaziamento de conceitos, como o caso do poeta Manoel de Barros, que utiliza nas suas respostas um forte componente metalingstico. Ele demonstra ser capaz de se colocar no plano do crtico literrio para falar de suas obras. Em uma de suas entrevistas, explica-se da seguinte forma: Confesso que no sei explicar poesia. Sei que um verso bom por sua oralidade harmnica e por suas significaes imagticas2. Ainda
Entrevista concedida professora Rosidelma Fraga Soares, que fez uma especializao em Lngua Portuguesa e Literatura na Unemat, campus de Alto Araguaia, em resposta a uma carta enviada pela professora contendo perguntas ao poeta, que consta como anexo na sua monografia final. A monografia intitulada O canto inslito em Murilo Mendes, Joo Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros, foi defendida em julho de 2005.
2
comentando o seu entendimento sobre poesia conclui: A poesia, para mim, sempre foi um jogo brinca. Nunca um jogo Vera. Acho que a gente precisa desaprender um pouco o que aprendeu3. Tal procedimento no ocorre apenas em entrevistas, isso tambm pode ser observado em vrios trechos de poemas da sua obra, como neste caso: Poesia no para compreender, mas para incorporar / Entender parede; procure ser uma rvore. (GEC, p. 212). A partir desses apontamentos, seguem estudos que versam sobre as particularidades da prosa potica. Estes comeam por mostrar as diferentes definies para o texto potico e o prosaico. Essas diferenas so baseadas, sobretudo, na negao e no contraste, as quais partem do pressuposto que tudo que existe na poesia diferente na prosa, ainda, a grande poesia a no-prosa. Octavio Paz (1990) e Paul Valry (1991) compartilham da idia de que uma das possveis diferenas est no fato que no texto potico h predominncia do ritmo e, ainda, esse ritmo potico se ope a um ritmo prosaico. Valry (Ibid., p. 172), dentre outros ensinamentos acerca dessa questo, destaca a musicalidade da poesia como mais um dos elementos que no se encontra nos textos em prosa. A poesia se distingue da prosa por no ter todas as mesmas obrigaes nem todas as mesmas permisses que essa ltima. A essncia da prosa parecer, ou seja, ser compreendida - ou seja, ser dissolvida, irremediavelmente destruda, inteiramente substituda pela imagem ou pelo impulso que ela significa de acordo com a conveno da linguagem. (...) Mas a poesia exige ou sugere um Universo bem diferente: universo de relaes recprocas, anlogo ao universo dos sons, no qual nasce e movimenta-se o pensamento musical. Nesse universo potico, a ressonncia prevalece sobre a causalidade, e a forma, longe de desvanecer-se em efeito, como que novamente exigida por ele. A idia reivindica a sua voz. (1991, p. 172-3)
Para Paz e Valry as diferenas entre poesia e prosa esto relacionadas a elementos tcnicos, procedimentos formais que se apresentam diante do material verbal dos textos. Mostrar poesia e prosa a partir do contraste entre ambas no novidade. Nos anos 20, fase urea dos formalistas russos, j se fazia com propriedade vrias afirmaes marcando essa diferenciao. Entretanto, Alexander Potebnia, citado no ensaio de Chklovski A arte como procedimento (1973, p. 39), afirma que poesia e prosa so antes de qualquer coisa fenmenos lingsticos. Nessa perspectiva, em uma das importantes obras de Tzvetan Todorov, o responsvel pela apresentao dos formalistas russos ao ocidente, As estruturas narrativas (1969), Jean Cohen afirma: a diferena entre prosa e poesia de natureza lingstica, isto , formal (Ibid., p. 68). A hiptese entre a diferena e semelhana dos textos em prosa e em verso um ponto de partida para analisar as poticas modernas, sua linguagem e forma. Para muitos estudiosos da potica, inclusive Todorov (1969, p 23.), a oposio entre poesia e prosa j est superada. O que permanece a tenso entre diferena e semelhana, a qual, segundo ele, poder garantir as diferenas. Uma das possveis explicaes para a garantia dessas diferenas est embasada na idia de que o princpio de liberdade, adquirido no romantismo, culmina num momento que modifica o esprito humano e conseqentemente a criao literria. A liberdade alcanada possibilitou ao escritor um desprendimento da composio. Ele pde criar uma atmosfera lrica em sua obra, seja em prosa ou em verso. No mbito da narrativa, essa atmosfera desencadeia ou/foi desencadeada por uma quebra nas frases ganhando ritmo. Aps obter todas as possibilidades de um texto hbrido instaurada uma escrita que se constitui e forma uma estrutura lrico-narrativa nas poticas contemporneas. Nesses textos, as frases e oraes so acrescidas de vocbulos que se coadunam imagem potica possibilitando uma narrativa cujo fluxo metaforizado. Para Tzvetan Todorov (Ibid., p. 71), poesia e prosa tm uma parte comum que a literatura. Tanto uma como a outra se materializam por terem como
componentes os mesmos mecanismos lingsticos, ou seja, ambas tm como estrutura a lngua. Em relao aos textos narrativos, o seu aspecto fundamental a narrao de uma histria. Nesse contexto, as narrativas estiveram presentes desde a origem do homem como parte de sua comunicao, de sua histria de vida. Paul Ricoeur afirma:
Uma coletividade ou um indivduo se definiria, portanto, atravs de histrias que ela narra a si mesma sobre si mesma e, destas narrativas, poder-se-ia extrair a prpria essncia da definio implcita na qual esta coletividade se encontra. (apud BERND, 2003, p. 19)
Dessa maneira a linguagem da prosa acompanha o homem desde quando ele tenta se identificar como tal. Ele optou por um discurso que procurou acompanhar as mudanas sociais e que, alm disso, possibilitou a abertura para a descrio, a qual tem, nos textos narrativos, a funo de represent-lo, representar os objetos, o espao, a Histria, a sociedade. Para contar suas vivncias externas e internas, criou narradores cada vez mais aprimorados, chegando, as narrativas, a adquirirem importncia pelo modo como so contadas e no pelo que contam. Walter Benjamin assim elucida a funo do narrador:
Sua inteno primeira no transmitir a substncia pura do contedo, como faz uma informao ou uma notcia. Pelo contrrio, imerge essa substncia na vida do narrador para, em seguida, retir-la dele prprio. Assim, a narrativa revelar sempre a marca do narrador (...). Trata-se da inclinao dos narradores de iniciarem sua estria com uma apresentao das circunstncias nas quais foram informados daquilo que em seguida passam a contar; isto quando no apresentam todo o relato como produto de experincias prprias. (1975, p. 69)
Para Todorov, que retoma uma classificao proposta por Jean Pouillon (1974) com algumas modificaes, h trs tipos principais de narrador: o narrador
que sabe mais que seu personagem (a viso por trs); o narrador que sabe tanto quanto os personagens (a viso com) e o narrador que sabe menos que qualquer um deles (a viso de fora). Quanto ao modo, ele observa que h dois tipos: a representao e a narrao. Apoiado nas contribuies de Propp, Chklovski, Eichenbaum, esse autor teorizou sobre as estruturas intrnsecas narrativa. Em seus estudos ele faz uma abordagem sobre o tempo da narrativa, aspectos, modos, personagens e suas relaes. Quanto ao personagem, ele lembra da importncia do papel deste, pelo menos para a literatura ocidental clssica, contrariando a afirmao de Tomachveski (1973), o qual acreditava na no necessidade do heri numa histria como tambm em certas tendncias da literatura moderna que lhe reserva um papel secundrio. Os estudos de Mikhail Bakhtin (1993), em particular o texto intitulado O discurso no romance, no item o discurso na poesia e o discurso no romance do uma grande contribuio para a compreenso do significado e funo do narrador e dos personagens. Este item um dos que mais tm recebido ataques por parte da crtica literria, segundo Cristovo Tezza (2003). Bakhtin considera a poesia monolgica ou monofnica e a prosa, dialgica ou polifnica, o que caracteriza uma desvantagem da poesia para a prosa.
O poeta definido pelas idias de uma linguagem nica e de uma nica expresso, monologicamente fechada. (...). O prosador-romancista (e em geral quase todo prosador) segue por um caminho completamente diferente. Ele acolhe em sua obra as diferentes linguagens da lngua literria e extraliterria, sem que esta venha a ser enfraquecida e contribuindo at mesmo para que ela se torne mais profunda (...). Nesta estratificao de vozes, ele tambm constri o seu estilo, mantendo a unidade de sua personalidade de criador (Bakhtin, op. cit., p. 103-4)
A monofonia se explica quando o poeta se afasta de outras vozes para no permitir a estas uma autonomia, fora e, com isso, ele consegue afirmar plenamente a prpria voz, a qual enftica, gestual e sonora, ou seja, to forte que requer o nosso silncio. Ao considerar o aspecto polifnico na prosa, Bakhtin (2005) d um destaque aos romances de Dostoivski, o qual, no seu entendimento, possui procedimentos formais que permitem a esse romancista levar cada uma de suas personagens a falar em voz prpria com mnimo de interferncia de parte dele como autor, cujo efeito o de criar um novo gnero. Bakhtin chama de romance polifnico, o qual apresenta pontos de vista, vozes, todos advindo do narrador. Ele destaca que Dostoievski cria no escravos destitudos de voz (...) porm gente livre, capaz de postar-se ao lado de seu criador, capaz de no concordar com ele e at de rebelar-se contra ele (Ibid, p. 4). Nesse prisma interessa mais o fato de como as cenas narrativas sero contadas. Isso muitas vezes requer uma transgresso da lgica estabelecida. Ainda, nas narrativas modernas, importa questionar os conceitos e regras que tentam aprisionar o discurso da prosa e, nesse sentido, um recurso bastante utilizado o da intertextualidade, um meio pelo qual um texto dialoga com outros textos. H na estrutura textual marcas que recuperam uma multiplicidade de vozes que no so controlveis pelo autor. A intertextualidade (Diana Barros, 1999) , ento, a possibilidade de encontrar num texto vrias vozes que estabelecem o dilogo de um texto com seus mltiplos intertextos. Pensar a diferena do texto potico para o texto prosaico requer ir muito alm de ter como ponto de partida a roupagem externa desses textos, o que pode funcionar apenas como marca de diviso. Comear a entender esses textos aceitar que poesia e prosa se atraem e que, por isso, as obras que apresentam essas mesclas trazem em si novas confluncias e novos traados para a literatura. Na concepo de Tezza (Ibid, p. 273) formas hbridas como Irene no cu, de Manuel Bandeira, o resultado da unio de recursos prosaicos que se unem para uma nova composio potica, a prova de que o ritmo e a sintaxe sonora revestem as diversas poticas contemporneas.
Surgem textos com forte teor lrico, os quais se apresentam como obras ousadas e trazem dentro de si algo mais do que o rompimento de marcas formais. Numerosas so as obras que trazem em seu mago a hibridez da forma e da linguagem. Nestas h que se observar uma certa despreocupao com o rigor formal e lingstico. A composio dessas obras d-se por meio de uma estrutura irregular ou completamente livre. Na lrica moderna a distino entre poesia e prosa no chega a ser ponto necessrio. Com isso, rompe-se a fronteira que delimitava esses textos. O texto literrio tem sido constitudo por narrativas de corteis geis que lana um olhar sobre o fazer literrio, fazer esse que questiona a si mesmo, expe e desnuda, segundo Chalhub (1998, p. 42), ou seja, tem conscincia da linguagem, da sua construo, e por poemas que renunciam a tradio formal. Em face dessa atitude, possibilitaram a prosificao do ritmo. A crtica tem optado por utilizar locues como prosa potica e poema em prosa, tudo por causa do crescente intercmbio entre prosa e poesia. Uma outra possibilidade que a
dessacralizao das formas e da linguagem abriu caminho para as obras que se ergueram sobre uma nova reorganizao sinttica de elementos que compem a linguagem literria. Essa falta de rigor formal possibilitou ao fazer artstico explorar todas as potencialidades da lngua, da forma, e dos termos tcnicos que compem as diversas estruturas literrias. Outros componentes foram acrescentados para distanciar cada vez mais o texto das exigncias primeiras que acompanhavam a potica clssica. Essa potica tinha a tendncia de alimentar a repetio, o poeta voltava sobre os mesmos fonemas, o mesmo nmero de slabas, a mesma ordem de disposio dos lexemas, etc. Uma das caractersticas fundamentais perceptveis na construo do poema o fato de este ser escrito em versus, ou seja, o que retorna sobre si, ao contrrio de prorsus , que se entende como o que avana, que continua at o final da linha, como observa Salvatore D`Onofrio (1978, p. 31). No poema em prosa ou na prosa potica desconsiderado esse primeiro aspecto como tambm outros que garantam a pureza dos gneros. Para Anatol Rosenfeld (1985, p. 16) a
pureza em matria de literatura no necessariamente um valor positivo. Ainda refletindo a partir da suposta pureza dos gneros, o poeta polons Gombrowicz, radicado na Argentina, diz: Por que razo no gosto eu da poesia pura? Pelas mesmssimas razes que me levam a no gostar do acar puro. O acar coisa deliciosa quando se o toma no caf, mas ningum se poria a comer uma pratada de acar - seria demais (apud TEZZA, 2003, p. 68). Na prosa potica as obras se apresentam em forma de conto, novela ou crnica, e, num todo ou em partes permeiam-se por uma linguagem potica, alm de possuir uma viso lrica de cenrios, personagens e enredo. Toda a narrativa desses textos composta pelo ponto de vista de um eu-lrico, do eu-lrico. No Dicionrio de Termos Literrios , de Massaud Moiss (1999, p. 420) consta que a prosa potica surgiu no sculo XVIII, todavia foi somente no Simbolismo que encontrou o seu clima ideal. Os poemas em prosa de Baudelaire como tambm a produo literria de outros simbolistas franceses j
apresentavam um discurso carregado de impresses, sugestes e imagens difusas e pictricas, o qual possua um ritmo potico diferenciado que demarcou grande parte da literatura moderna. nesse contexto, nesse caminho onde nada discernido conscientemente, que surge o surrealismo trazendo uma literatura em que o real e o irreal, o racional e o irracional se fundem provocando uma nova concepo de mundo atravs do inconsciente. O surrealismo est centrado na crena de uma realidade superior, na onipotncia do sonho. Esse movimento trouxe grande contribuio para a literatura dando lrica a possibilidade de afastar-se de uma preocupao esttica ou moral. Octavio Paz em Los hijos del limo (2003) analisando os poetas surrealistas esclarece:
Para ellos la poesa no era una construccin sino una experiencia, no algo que hacemos sino algo que alternativamente nos hace y nos deshace (...) Para los surrealistas, la poesa no era contemplacin sino un medio de transformacon del mundo y de los hombres: no un re-conocimiento sino una metamorfosi. (Ibid., p. 442-3)
Nessa conjuno acentua-se uma busca de captar e traduzir o indizvel em linguagem, que instaurando a poesia em prosa ou a prosa potica para romper com a ordem lgica do pensamento e da relao estabelecida entre homem e mundo. A falta de estrutura fixa desses textos permite uma variao que torna esta prosa mais leve, com uma cadncia potica que capta e oferece ao leitor uma literatura imagstica, dando idia de algo inusitado. Na literatura modernista, particularmente na literatura brasileira, h muitos autores que experimentaram as potencialidades dos textos em prosa e em verso e procuraram estimular novas formas, como em Memrias Sentimentais de Joo Miramar (1924), de Oswald de Andrade, Amar, Verbo Intransitivo (1927), de Mrio de Andrade, para ficar em alguns exemplos. Para Tezza (2003) o movimento modernista brasileiro constituiu-se com uma essncia fortemente prosadora. Era preciso reinventar a maneira tradicional de ler e escrever as coisas e subverter a linguagem, opor, contrapor. Dessa forma os autores modernistas inseriram em suas obras, alm do conceito potico, a integrao entre texto e imagem, o que resultou numa nova essncia do fazer potico. Paz (Ibid., p. 415-6) considera que
El modernismo llega a ser moderno cuando tiene conciencia de su mortalidad, es decir, cuando no se toma en serio, inyecta una dosis de prosa en el verso y hace poesa con la crtica de la poesa.
Toda essa conscientizao fez com que ocorresse a fuso de diversos gneros lingsticos, desde textos oriundos de documentos histricos,
jornalsticos, como tambm textos puramente lricos. A partir dos procedimentos anteriormente citados, os primeiros poetas modernistas e outros como Jorge de Lima, Joo Cabral de Melo Neto, constroem versos fragmentados por meio de cortes e montagens e reorganizam sintaticamente as frases. Nas obras destes poetas, desfilam metforas inslitas e imagens incomuns, o que prprio do poema e, por outro lado, perambulam personagens, cenrios que se entrelaam em narrativas, o que prprio da prosa.
Advinda desse novo paradigma ressoa a linguagem inicial da poesia que emerge em prosa. So poticas que se erguem tendo como material bsico as metforas do caos cotidiano do mundo que apavora e seduz. Contudo a prosa potica no se constitui um gnero literrio, e sim uma modalidade de como a poesia se externa. Os textos em prosa potica apresentam uma cadncia que pertence tanto poesia quanto prosa. As narrativas esto permeadas por solues poticas, tudo depende do ponto de vista do eu-lirco. A fora da prosa potica est no fato de que se respeita a descrio das cenas narrativas, as relaes de personagens, tempo, espao, mas, prevalece, sobretudo, um quadro lrico dos elementos focados. Com essas consideraes, chegamos prosa potica de Manoel de Barros, que no recente e no se limita aos livros utilizados neste estudo. Desde Poemas concebidos sem pecado4, lanado em 1937, a criatividade do poeta surpreende, como tambm a sua opo por no apresentar em sua potica nenhuma fronteira rgida entre o verso e a prosa. Em Poemas concebidos sem pecado, no poema intitulado Cabeludinho, o eu-potico conta a sua histria, do nascimento mocidade. Este se apresenta em onze partes identificadas por nmeros, onde so registrados momentos significativos de sua vida: 1. Nascimento, 2. Primeira paixo, 3. Jogos infantis, 4. A partida, 5. A escola, 6. Correspondncia familiar, 7. Iniciao poesia, 8. Iniciao sexual, 9. A academia, 10. O retorno do bugre e 11. Situao atual. Os poemas que compem Cabeludinho so compostos por um vocabulrio aparentemente usual, no entanto, com significaes diferenciadas. Toda a linguagem nessa potica sugere uma anormalidade, e isso colocado por meio de termos e expresses populares, alm dos criados pelo poeta. Hugo Friedrich (1991, p. 63-4) afirma que quem quer causar estranheza,
1.
Este livro est includo no Gramtica Expositiva do Cho (poesia quase toda), editado pela Civilizao Brasileira, que apresenta as dez primeiros publicaes do autor.
4
- Vai desremelar esse olho, menino! - Vai cortar esse cabelo, menino! Eram os gritos de Nhanh 2. - Em seus joelhos pousavam mansos cardeais... (GEC, p. 35-7)
Nesse texto, envolto nas memrias de sua infncia, o eu-narrante esclarece o modo como se deu o nascimento de Cabeludinho, revela o mundo e o comportamento desse ser que parece possuir um parentesco com o personagem Macunama: No fundo do mato-virgem nasceu Macunama (Andrade, 1997,p. 9) X Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho / bem diferente de Iracema / desandando pouqussima poesia. (Barros, p. 35). A exemplo de Macunama que sai de sua tribo e vai para a cidade de So Paulo, o personagem de Barros sai da distante Corumb para a cidade grande: entonces seja felizardo / l pelos rios de janeiros (GEC, p. 38). Cabeludinho, interno em um colgio, escreve uma carta a sua av:
6. Carta acrstica: Vov aqui tristo Ou fujo do colgio Viro poeta Ou mando os padres... Nota: Se resolver pela segunda, mande dinheiro para comprar um dicionrio de rimas e um tratado de versificao de Olavo Bilac e Guima, o do leno. (GEC, p. 39)
Tambm esta carta acrstica pode ser comparada carta que o personagem Macunama, assim que chegou a cidade grande escreve as Icamiabas. A ironia em Cabeludinho est no fato de que o menino pensa que para ser poeta e s criar rimas, como entendiam os parnasianos. com tom de
piada, to caro aos modernistas, que Barros trabalha fatos, evitando o pieguismo, entende Miguel Sanches Neto (1997, p. 71). Manoel de Barros traz nos textos que compem Cabeludinho o retrato da vida do povo pantaneiro, suas histrias e particularidades do linguajar desse povo:
Vou no mato pass um taligrama.... / quero minha funda / vou matando passarinhos pela janela do trem / de preferncia amassa barro / ver se Deus me castiga mesmo (...) Havia no casaro umas velhas consolando Nhanh que chorava feito uma desmanchada. (GEC, p. 37-8. Grifos meus).
A singularidade no modo de falar do poeta faz dele um contador das particularidades do povo da regio do pantanal. A diferencial de sua potica est no modo de como ele aborda os fatos, est em sua linguagem, que alcana uma atmosfera meldica, rtmica, o que rompe com qualquer separao que se possa fazer entre prosa e poesia. Nesse contexto que em Poemas concebidos sem pecado, emergem versos prosaicos e o ritmo marcante o mesmo das notcias que chamam a ateno dos habitantes das pequenas cidades. A trajetria de Cabeludinho contada como poema-notcia com o intuito de explorar ao mximo o clima de novidade que se instaura na trajetria dos relatos do menino e na arte do poeta que busca na liberdade formal, que foi posta em prtica pelos modernistas, a construo de um texto com trao renovador. Barros5 explica: quando peguei o Oswald de Andrade para ler, foi uma delcia. Porque ele praticava aquelas rebeldias que seu sonhava praticar. (...) ele me confirmou que o trabalho potico consiste em modificar a lngua (GEC, p. 324-5) A partir da tradio modernista Manoel de Barros ergue sua potica explorando uma realidade prpria que ganha foros de contemporaneidade. Ele
Em entrevista concedida a Revista Bric-a-Brac. Essa entrevista est publicada no Livro Gramtica expositiva do cho no captulo intitulado Conversas por Escrito (1970-1989).
coloca o local e o universal em outros termos. Busca em sua origem, em suas razes, a possibilidade de modificar a linguagem e a estrutura dos textos poticos. Faz uma arte que cria mundos verbais que impulsionam o homem, a natureza e at mesmo as estruturas textuais. Ele, como um alquimista, funde um pantanal de terra e gua, funde prosa e poesia.
De que modo uma linguagem potica pode compor uma estrutura narrativa? Uma possvel resposta para essa indagao seria a mistura dos gneros, conforme foi discutido no captulo anterior. Segundo Bakhtin (2005, p. 106), um gnero e no o mesmo, sempre novo e velho ao mesmo tempo. O gnero renasce e se renova em cada etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gnero. Os textos que compem o Livro de pr-coisas , de Manoel de Barros, rompem com a estrutura fixa da prosa e da poesia, por isso pertinente lembrar Octavio Paz (2003), para quem possvel encontrar obras que, apesar de serem escritas em prosa, possuem vrias caractersticas comuns aos textos poticos:
Libros como Los cantos de Maldoror, Alicia em el pas de las maravilhas o El Jardn de senderos que se bifurcam son poemas. En ellos la prosa se niega a s misma; las frases no se suceden obedeciendo al orden conceptual o al del relato, sino presididas por las leyes de la imagen y el ritmo (Ibid., p. 92).
a partir da aglutinao do texto narrativo e da poesia, que se chega a uma nova composio, no caso, a prosa potica. Ao analisar a obra de Manoel de Barros, percebe-se que tanto os seus poemas quanto a sua prosa potica possuem uma linguagem que resulta num jogo de significantes. A pujana, a (des)construo da forma nos textos que compem especificamente o Livro de pr-coisas e Memrias inventadas A infncia, demonstram a liberdade e a transcendncia da linguagem puramente descritiva, objetiva, esta ltima
caracterstica das narrativas que primam pela simples retratao dos espaos e personagens. Vale ressaltar que esse no um resultado alcanado apenas por Barros, o caminho de outros escritores a partir de 40, como Guimares Rosa, por exemplo. No Livro de pr-coisas , o oitavo do poeta6, o projeto esttico-potico que toma conta das narrativas apresenta, da estrutura ao contedo, uma marca da transgresso do autor. Aos olhos do leitor apresentada uma prosa potica que relata o movimento da vida no Pantanal, seu ecossistema, como tambm apresenta personagens tipicamente pantaneiros. O livro est dividido em quatro partes. Para acompanhar o leitor nessa viagem, Barros se utiliza de um narrador, um eu-lrico, que tem como ofcio revelar toda a transmutao da fauna e da flora nesse local. No mbito dessa apresentao, o narrador, na primeira parte intitulada Ponto de partida, mais especificamente no texto Anncio, deixa claro o seu propsito:
Este no um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma anunciao. Enunciados como que constativos. Manchas. Ndoas de imagens. Festejos de linguagem. Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz de arauto. Algumas runas enfrutam. Passam louros crepsculos por dentro dos caramujos. E h pregos primaveris...(...) (LPC, p. 09, grifo meu)
Ao dizer que no se trata de um livro sobre o Pantanal, o narrador procura mostrar ao leitor que o mesmo no deve esperar uma abordagem referencial desse ambiente. E, na seqncia, ao afirmar que seria antes uma anunciao ele parece preparar o leitor para o que h de vir. So anunciadas manchas, ndoas de imagens e festejos de linguagem para celebrar de maneira estranhada o estado potico. E a natureza transfeita pelo organismo do poeta. Ela se instaura como unidade imagtica, em perfeito estado de ebulio. Sinestesias surgem em um espao de surrealidade: sapo nu tem voz de arauto
Essa obra teve a primeira edio publicada em 1985 pela Philobiblion (RJ), com capa de Fernando Freitas sobre detalhes de quadro de Juan Miro.
6
(smbolo metonmico da proclamao), runas enfrutam (a metamorfose anunciada), louros crepsculos por dentro dos caramujos (a viso tctil personificada prepara o entardecer), finalizando o trecho com a pungente expresso surreal pregos primaveris. Com tais enumeraes, o eu-narrante mostra uma busca que levar s pr-coisas. Para compreender melhor o que significa essa expresso, importante compreender o significado da palavra coisa. Pode-se pensar que coisa7 o existente, o evidente, o que se coloca diante dos olhos, um objeto inanimado, a realidade. Nesse caso, pode-se ver as coisas e lhes dar nomes. Isso faz com que tanto a nomeao quanto as prprias coisas despertem muito interesse em fillogos, lingistas, filsofos e poetas. Isaac Epstein (1986, p. 37) faz uma discusso sobre os signos imotivados (arbitrrios) e motivados. Ele questiona se h, no caso da linguagem verbal, relao entre os nomes e as coisas. Segundo o autor essa uma questo antiga, posto que Plato em um de seus dilogos, o Crtilo, descreve como Hermgenes e Crtilo pedem opinio de Scrates sobre se os nomes so dados arbitrariamente as coisas ou se h alguma correspondncia entre a realidade que designa o mesmo objeto. Para Hermgenes no h nenhum princpio para nomear as coisas seno o acordo mtuo. Para Crtilo os nomes so naturais e no fruto de uma conveno. No entendimento de Scrates as coisas so nomeadas levando em conta certos fatores motivadores e no arbitrariamente enquanto que para Epstein (Ibid., 38) mudar nomes arbitrariamente atributo de quem tem a posse exclusiva dos objetos nomeados; o sentido das palavras pertence a quem manda. Nicola Abbagnano em seu Dicionrio de Filosofia (2000) informa que alguns filsofos entendem a palavra coisa como representao ou idia, ou um complexo de representaes ou de idias. Para Heidegger (apud CASTRO, 1991, p. 86), a coisa ganha ser e existncia pela palavra e pela linguagem, a palavra que traz as coisas ao mundo. Ele afirma que a coisa traz em si as dimenses do cu e da terra, dos mortais e dos divinos, tudo graas palavra. Tem-se assim
Foi desconsiderado aqui o amplo uso que essa palavra adquiriu em nossa lngua, assumindo a funo de categorias gramaticais diversas.
a compreenso e a revelao da coisa e por isso a interpretao fundamenta-se no a partir do sujeito, mas da realidade da prpria coisa. Manoel de Barros, alm de trazer muitas coisas para o seu poema, tambm faz uso freqente desse vocbulo. Observando seus versos, perceptvel uma relao de materialidade e imaterialidade na representao, uma tentativa de aproximar essas partes, palavra e coisa, o que afinal, a busca de toda poesia. Ele caminha, de certa forma, em sentido contrrio s teorias que afirmam: a palavra no a coisa, como observa Hayakawa (1972, p. 35). A palavra do poeta materializa literariamente as coisas e projeta imagens. No seu mundo verbal h semelhana entre a linguagem e o mundo exterior. Indo alm, na extrema singularidade do seu fazer potico, surgem palavras que aparentemente ainda no adquiriram o estatuto de smbolo, que ainda no se semantizaram a ponto de formar um contrato ou conveno na designao do existente, no contexto do universo pantaneiro, que , em grande parte, o seu universo potico. Ou seja, na potica de Barros h coisas se formam graas palavra que cria imagens do que ainda no est materializado na existncia. O resultado disso a constituio de palavras que aceitam vrias associaes, que se tornam brincadeiras feitas com letras, como os festejos de linguagem e as ndoas de imagens. O prprio poeta admite Gostava de desnomear: Para falar barranco dizia: lugar onde avestruz esbarra (Barros, 1993, p. 18). no ambiente familiar que o eu potico utiliza, como material para o seu trabalho, sapo, homem, pantanal em relaes inusuais. Em face disso observa-se a implantao de outros materiais lingsticos, de extratos culturais que origina um processo em que mesmo que o significante esteja ausente no se perde o significado. Esse modo de fazer potico em Barros remete s teorias de Severo Sarduy, quando ele trata dos conceitos de metfora e proliferao. Para Sarduy esse processo
o que consiste em obliterar o significante de um determinado significado, mas sem substitu-lo por outro, por
mais distante que este se encontre do primeiro, mas por uma cadeia de significantes que progride metonimicamente e que termina circunscrevendo o significante ausente, traando uma rbita ao redor dele, rbita de cuja leitura que chamaramos de uma leitura radical podemos inferi-lo.
Nesse contexto so percebidas certas associaes que podem se caracterizar com o que Sarduy denomina significante ausente: No garfo da rvore seca uma casa de amassabarro! (LPC, p. 64). O vocbulo garfo signo constitudo de um carter significativo a partir da relao entre o jogo das palavras garfo e galho. Aqui, o significado se constri mediante a motivao externa da lngua, pois ao contrastar garfo numa cadeia paradigmtica com galho percebese a substituio de /lho/ por /rfo/. Essa associao permite fazer uma analogia de sentido entre as duas palavras. Alm dessa analogia sonora, h o fato que tanto o garfo como o galho possuem hastes compridas, de pontas, o que os torna semelhantes quanto forma fsica; ou seja, garfo remete ao significado conceitual de galho. Os versos de Barros brincam com a sintaxe e a formao de palavras e atribuem, s vezes, uma significao inversa da conceitual. Nesses versos, os significantes no tm a obrigao de remeter a algum significado. Os versos manoelenses corrompem a sintaxe da significao. O que importa, para a linguagem desse eu, o que est na origem. Mas o poeta no pra a. Ele valoriza muito o que ainda ser criado. As coisas que no existem so mais bonitas. O que h de mais bonito o que est na origem de tudo. o den de novo, onde a palavra e a imagem se formam (Barros, 1993, p. 8). Por isso no cerne do Livro de pr-coisas est o anseio para ter no texto potico a palavra que d a idia de contigidade. Na proclamao desse mundo pr-coisal, Barros em sua prosa potica utiliza palavras que podem significar coisas diferentes, que so reorganizadas atravs dos sons, das letras, que podem representar coisas por similitude. Esses recursos criam outras palavras, outros modos sintticos, assim como tambm a palavra inaugural, a despalavra. Estas conduzem o conhecedor dessa potica a
um novo mundo. Para ler essa prosa potica preciso desligar-se dos sentidos restritos da palavra e aderir ao sentido metafrico da linguagem
Como o poeta, tambm o leitor de poesia precisa descer uma escada submarina, se despedir da familiaridade dos significados conhecidos para aprender a respirar sob a gua densa dos sentidos metafricos entrelaados, obscuros, mas genunos. A recompensa a descoberta de uma nova dimenso da linguagem: menos utilitria, menos corriqueira, hermtica, (...), mas preciosa em sua recusa da simplicidade bvia e desgastada. (ANDRADE, 1996, p. 139)
Manoel de Barros, mesmo quando usa palavras simples, apresenta algo novo que concede s palavras a condio de dizer e revelar o mundo e as relaes que nele existem. Na concepo de Bachelard (1989, p. 203) todas as palavras so chaves do universo, do duplo universo do cosmos e das profundezas da alma humana. Com base nisso que no Livro de pr-coisas, o narrador tudo v com o olhar de (re)descobrimento. Para Santo Agostinho (apud Bosi, 1999, p. 17), o olho o mais espiritual dos sentidos, e ainda (...) o olho capta o objeto sem toc-lo (...) constri a imagem no por assimilao, mas por similitudes e analogias.... Um exemplo desse ilusionismo do olhar a passagem bem humorada, no livro em anlise, na qual o narrador sugere aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem! (LPC, p. 13, grifo meu). possvel observar, por meio desse exemplo, a capacidade do poeta em humanizar a natureza no intuito de livrar-se de algum tipo de rigor que se poderia ter ao descrever um cenrio. O discurso aqui empregado possibilita a criao de imagens que se constituem graas capacidade de associao que o poeta possui para misturar o real, o que v ou o que est guardado em sua memria com a imaginao, que funciona como elemento gerador na composio de uma potica que procura desvincular-se do reconhecimento imediato para dar lugar fora da impresso.
Ao analisar os captulos do Livro de pr-coisas possvel perceber, a partir de cada ttulo, a voz do narrador que conta o seu prprio trajeto. Para isso ele se distancia do texto e, modificando o relato elucidativo de uma narrativa convencional, dispensa, em alguns casos, o uso de artigos definidos e/ou indefinidos que poderiam ajudar na composio dos ttulos explicativos. Dessa forma tem-se: Narrador apresenta sua terra natal, Retrato de irmo e Lides de campear. Dando seqncia apresentao, como se fosse uma gradao, esse narrador revela os mais diversos cenrios. Este mesmo vocbulo, Cenrio, d nome ao captulo seguinte, o qual abriga seis narrativas: Um rio desbocado (uma engraada metfora do rio que lembra a expresso popular o rio desemboca); Agroval (neologismo que se refere a um esconderijo de seres nfimos); Vespral de chuva (uma mistura de neologismo com derivao regressiva a partir da palavra vesperal a qual, no contexto, indica o prenncio da chuva); Mundo renovado (uma recriao mtica da natureza pantaneira); Carreta pantaneira (veculo tpico do meio rural que passa por um processo de reutilizao saindo do estado de veculo de transporte ou de carga, para um estado de aparente inutilidade, passa a ter outras utilidades, serve de abrigo para animais etc.); Lides de campear (narrativa em que ironizada a idia de que o homem pantaneiro trabalha pouco) e Nos primrdios (pardia do dia da criao). Dentre as narrativas citadas acima, ser analisada, neste segundo captulo, Mundo renovado. Aps o captulo denominado Cenrios, aparece O personagem. Este ltimo tambm possui seis narrativas. Destas, ser analisada o texto No presente. O ltimo captulo do livro denominado Pequena histria natural, igualmente composto por seis narrativas que descrevem as atividades e modos de vida das aves e animais mais comuns do pantanal como urubus, soc-boca-
dgua, tatu, quero-quero, quati e a gara. Na ltima parte do livro, os elementos constitutivos do pantanal so apresentados com caracterizao bem particular. O que se tem o afastamento da descrio especular do mundo animal e de seu exotismo. Esses seres se apresentam fundamentados numa composio potica que inventa e modifica seus comportamentos, alm de nivel-los condio humana: No alto da rvore mais prxima, antes mesmo do bicho encomendar, urubu j discute, em assemblia, com os primos. (LPC, p. 79). H ainda o caso das garas, que so chamadas de vivas de Xaras. A possibilidade dessa aproximao entre o humano e o animal leva o poeta a questionar se isso no far mal a esses seres: (Acho que estou querendo ver coisas demais nestas garas. Insinuando contrastes ou conciliaes? entre o puro e o impuro etc. etc. no estarei impregnando de peste humana esses passarinhos? Que Deus os livre! ). (LPC, p. 94). Esse modo de apresentar a vida natural pantaneira possibilita o desenvolvimento do conceito de que este espao encantado. Na concepo de Silva Leite (2000), pode-se considerar que um espao encantado quando ele apresenta dois aspectos: o natural e sobrenatural. No pantanal de Manoel de Barros a relao apresentada para ilustrar a essncia dos seres que l vivem possibilita, segundo Silva Leite (Ibid., p. 192) um forte substrato mtico que se compe dos espaos pantaneiros, ao mesmo tempo em que os compe. Ainda
Um dos princpios bsicos do encantamento do espao ou da natureza ou ainda dos elementos naturais, o processo de humanizar, a antropomorfia. Os elementos da natureza recebem sempre caractersticas, sentimentos ou sensaes humanas. Carregam-se de humanidades (Ibid., p. 194).
Todo esse processo tem como resultado a amostra de um mundo natural que se ergue mediante uma idia prpria, alcanando um novo significado, colocando-se tambm em outras esferas, a do encantamento e a do sobrenatural.
As paisagens e espaos pantaneiros so considerados, no entendimento de Schlter (apud Filho, 2002, p. 75), como paisagens naturais, por serem a soma de aes da natureza e da civilizao atravs do tempo. Essas aes que constroem as paisagens culturais. Para Corra Filho (op. cit., p. 77) no pantanal a paisagem altera-se de momento a momento. No mesmo stio, o aspecto surpreendido na poca das cheias no se ajustar ao verificado no decurso da seca. O narrador manoelense, a cada instante, modifica a fisionomia da vegetao e dos seres que l habitam. Ele recria a partir de situaes rotineiras e dos fenmenos naturais, aspectos que instauram o encantamento. De acordo com os estudos de Silva Leite (2003, p. 57), O Pantanal, (...) como espao e territrio, tem se prestado muito fortemente ao longo do tempo a uma vasta srie de construes simblicas que at certo ponto ultrapassam a sua geografia. Nesse contexto, o poeta, reunindo a sua percepo de natureza e conhecimento e vivncia e conhecimento da cultura na qual se insere, constri paisagens de um pantanal que se revela tambm pelas foras de entidades sobrenaturais, conforme o texto que segue:
Pantanal muito propcio a assombraes. Principalmente lobisomens, que so uma espcie de assombrao que bebe leite. (...) Pantanal tem muitos veios para esses indumentos. Quem termina de inteirar cem anos vira serepente. Foi o caso de uma velha Honria. Outubro ela sumiu de casa (...). Dezembro apareceu de escamas na beira do vazante. Estava pisada na cacunda e os joelhos criaram casco de tanto andar no tijuco. A lngua fininha, ofdia, assoprava agora como no tempo de pegar a arca de No. (LPC, p. 54)
No Livro de pr-coisas, segundo Maria Adlia Menegazzo (1991) o que mais fala sobre as coisas do Pantanal, o retrato da paisagem instaura a possibilidade de um cotidiano hbrido, que abarca encantamento, deuses e mitos religiosos. Nicola Abbagnano (2000) traz que Deus a natureza do mundo. Por
meio dessa unio no h distino entre divindade e Deus. Ento, a natureza pantaneira que compem esse livro no obra de um nico ser superior, que tudo faz e pode. Esse mundo natural encantado. A materializao do espao pantaneiro representa que houve a unio de Deus e de outras divindades, eles so os responsveis pelo princpio animador do mundo e das coisas, dos seres desse mundo. O que se apresenta nessas narrativas que elas possuem um carter sagrado. Tudo o que l est digno de louvor, pois exigiu, para ser criado, a unio de foras divinas e mticas. Assim, o que importa ser mostrado um pantanal que nasce a partir do xtase de relevar o que mido, insignificante, o cisco e o cho, a larva, elementos sublimados e ressignificados na lavra potica. Dentro do captulo O personagem est o Livro de pr-coisas, constitudo por sete pginas, com poemas denominados Gags (poemas piada com comentrios analticos). H, no captulo em questo, um livro dentro de outro, ou seja, poesia dentro de poesia. Esses poemas, em outras variantes, alguns prximos aos ditados populares, indicam que a poesia ainda est em estado latente, que ir se expressar graas s mos do poeta artfice. Esses textos podem ser considerados como metapoesia. A maneira como feita a diviso dessas breves narrativas poticas, versos compostos por perodos curtos e outros, mais longos, configura-se como novidade. como se o poeta privilegiasse as composies menores, ainda iniciadas, como as pr-coisas, com o intuito de retirar delas seu poder significativo. No por acaso o uso do prefixo pr parece remeter a um estado anterior coisa, a um estado puro da palavra. A desmaterializao da palavra ocorre quando perde a relevncia de coisa. O prprio autor esclarece: pr-coisas como o que vem antes das coisas se manifestarem na existncia da individualidade (apud Castro, 1991, p. 43.). Tambm as narrativas do Livro de pr-coisas, como um todo, tratam de uma pesquisa ao redor dos seres ainda em estado primrio e, por meio dessa pesquisa, o poeta apresenta um Pantanal mais ntimo, essencial, invisvel, annimo e secreto. As narrativas poticas de Barros oportunizam conhecer o cerne do Pantanal, e de embarcar em uma viagem de caminhos mltiplos e percursos sinuosos a que a linguagem e os cenrios so submetidos. Quem faz
essa viagem descobre que o Pantanal, na potica manoelense, no tem limites, como compreende Castro:
A pr-coisa do objeto, do potencial, registrada na e pela apresentao dos elementos constitutivos do pantanal como regio prpria onde transfazer a natureza fcil. Esses elementos indistinguem-se dentro do projeto de Manoel de Barros, so o conjunto fermentador da vida animal-vegetal, como o agroval e os tipos humanos substratos das potencialidades a serem vividas e experienciadas. Na potencialidade originria de cada um, apresentam-se advindos do mesmo horizonte pr-coisal, tanto a terra, a gua, o brejo, os nfimos, os pssaros e os homens. (Ibid., p. 43)
Para a construo potica, o poeta mostra tudo o que desimportante; ou seja, o que no valorizado socialmente, historicamente, pelas sociedades consumistas, partidrias do pragmatismo, doutrina de Charles Sanders Peirce (1976). Esta doutrina est embasada no argumento de que a idia que temos de um objeto qualquer soma-se a outras idias atribudas por ns a esse objeto, o que lhe atribui um efeito prtico. Partindo dessa premissa notei que, revelia dela, Barros absorve substncias para seus poemas, convidando seu leitor a conhecer um comrcio de anis de escorpio e sementes de peixe, assim como a alegria do capim, dos bagoaris e dos caramujos tortos, o agroval de vermes e tantas outras situaes que rompem e transcendem o convencionalismo potico, do que poderia ser reconhecido e decodificado. Na continuidade dessa narrativa desconcertante, permeada por situaes inovadoras, aparecem imagens de uma natureza transfeita, da vida pantaneira em constante transmutao, atividade essa que independe da ao humana: as coisas acontecem paradas (LPC, p. 31), conforme inicia seu Carreta pantaneira, texto analisado no terceiro captulo. Tanto o ser humano quanto os animais fazem parte desse cenrio, o qual apresenta-se reutilizado pelo poeta que parece evocar um passado distante repelido pelo progresso. O que se procura mostrar um tempo em que os elementos espcio-temporais evoluem naturalmente.
Neste poema de um nico verso h uma comparao que aproveita parte do conhecimento natural, no caso o aspecto funcional das minhocas. O que singulariza o verso em si o fato de elas serem apresentadas oxigenando a terra, um preparo que torna frtil a terra, realizando um trabalho paciente, como o do poeta. Da mesma forma que necessitamos da terra produtiva, necessitamos da produtividade da linguagem, de que ela seja arejada, reinventada o que faz a poesia como instrumento de anlise e compreenso do mundo. Um outro poema bastante interessante do Livro de pr-coisas o seguinte:
Se no tranco do vento a lesma treme, no que sou de parede a mesma prega; se no fundo da concha a lesma freme, aos refolhos da carne ela se agrega; se nas abas da noite a lesma treva, no que em mim jaz de escuro ela se trava; se no meio da nusea a lesma gosma, no que sofro de musgo a cuja lasma; se no vinco da folha a lesma escuma, nas caladas do poema a vaca empluma! (LPC, p. 59-60)
O que h de curioso nesse poema que ele est metrificado, sendo uma dcima com versos decasslabos. Nele h uma seqncia de gradaes verbais, treme / prega / freme. Os verbos do ao poema um movimento rtmico e reforam a presena do substantivo lesma, um ser frgil, colocado no tranco do vento, e que, a partir do primeiro verso, inicia sua ao, treme / prega / freme /
agrega / treva / trava / gosma / lasma / escuma, at chegar ao ltimo verso, totalmente abstrato: nas caladas do poema a vaca empluma!. H a presena do conjunto de aliteraes da consoante vibrante /r/, sonoridade que resulta numa seqncia de traquinagens com a lngua. O poeta brinca de trava lngua com o leitor e cria um jogo ldico com a poesia, enquanto a poesia apresenta idias que transcendem a causalidade, criando um mundo prprio. O inesperado e o inslito, como o ltimo verso: nas caladas do poema a vaca empluma!, amalgamam-se para criar um conjunto de imagens que, simbolicamente, resultam em um mundo de amplas dimenses, que se torna possvel atravs da e pela palavra. Diante desse processo tem-se uma autenticidade inquestionvel quando se pensa na imagem potica. Ela nos coloca diante de uma realidade concreta. Pensando nisso, Octavio Paz, ao conceituar imagem afirma:
designamos con la palabra imagen toda forma verbal, frase o conjunto de frases, que el poeta dice y que unidas componen un poema. Estas expresiones verbales han sido clasificadas por la retrica y se llama comparaciones, smiles, metforas, juegos de palabras (), smbolos, alegoras, mitos, fbulas, etc. () Cada imagen o cada poema hecho de imgenes contiene muchos significados contrarios o dispares, a los que abarca o reconcilia sin suprimidos. (2003, p. 114)
Aqueles versos de Barros lembram o poema Co sem plumas, de Joo Cabral de Melo Neto. Neste, Cabral associa a imagem de um co do rio Capibaribe e, atravs de uma linguagem potica, relata a passagem do rio:
Como o rio aqueles homens so como ces sem plumas (um co sem plumas mais que um co saqueado; mais
que um co assassinado. Um co sem plumas quando uma rvore sem voz. quando de um pssaro suas razes no ar. quando alguma coisa roem to fundo at que no tem). (1997, p. 79)
Em Barros, a imagem inslita apresentada no verso nas caladas do poema a vaca empluma, primeira vista, entremeia o belo, pois o vocbulo emplumar relaciona-se a ornar de plumas ou penas, enfeitar-se; todavia h uma certa desarmonia no verso citado. Ocorre ento a ruptura com um quadro imagtico que prima pela beleza clssica para dar lugar a uma composio transformadora. Essa aparente desarmonia refora a postura do poeta diante do que socialmente estabelecido. Nota-se assim a predileo de Barros para criar seu texto com o auxlio de elementos abusivos para o que se pode considerar como tradio potica. Simbolicamente, a vaca, para os povos indo-europeus, considerada como arqutipo da me frtil e desempenha um papel csmico e divino, como traz Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 926-27). No entanto, para a nossa cultura, ela um animal desengonado, cujo nome, por exemplo, se atribudo a uma mulher, considerado ofensivo. Seu grande sentido o utilitrio, sendo que at o estrume se aproveita dela. O emprego desse termo, ento, pode ser considerado como uma nova viso do fazer potico. Entretanto, na poesia contempornea, possvel ter a idia da beleza, da harmonia e da completude que designa este animal. H, portanto, uma escolha consciente ao relacionar esse animal com o poema, lugar sagrado onde o poeta se coloca. o quimrico que alimenta essa relao, que transforma e faz a poesia assumir seu novo aspecto, aquele que oferece material estimulante que deve ser apreendido poeticamente. Um dos itens que caracteriza a poesia de Manoel de Barros a transformao, uma transformao que afasta a lrica da monotonia, da opresso
do real, como almejava Baudelaire. Alm disso, importante citar Hugo Friedrich (1991) para lembrar que Baudelaire prenunciava uma lrica que estivesse a favor das foras sonoras, impostas por contedos provenientes dos impulsos da palavra. Nos versos de Barros h relevncia na sonoridade dos vocbulos escuma/empluma, os quais acentuam a expressividade dos sons voclicos /e/, /u/, /a/, e, ao mesmo tempo, valorizam semanticamente o grotesco. Escuma a saliva de alguns animais, afogueados ou em clera, resultado de uma emoo interna. Na comparao de escuma com empluma h uma certa contraposio. Emplumar d a idia de enfeitar e assim, atravs desses vocbulos, tem-se o sublime versus o ordinrio e que neste poema esto representados pela ornamentao da vaca e, ao mesmo tempo, pela sensao de nojo causada no momento em que se pensa no molusco. O universo potico dessa lrica procura afastar-se da monotonia de uma beleza pr-estabelecida para redirecionar e experimentar a linguagem e a imagem. Nessa perspectiva exercendo verdadeiramente o seu oficio de poetar, Barros revela: a gente aceita um vocbulo no texto no porque o procuramos, mas porque ele desgua das nossas ancestralidades. O trabalho do poeta dar ressonncia artstica a esse material8. Tanto em Barros quanto em Joo Cabral a novidade permanece, mas no poema cabralino, socialmente, h uma denncia, pois no Co sem plumas, a imagem do rio como metfora est relacionada a detritos e lama. O arsenal potico de Cabral formado por smbolos precisos, mesmo que estes no tenham a preocupao de informar, por isso o leitor se depara com um universo criado por cima de uma realidade. As poticas desses autores estabelecem que o poeta nunca deve falar de seus sentimentos, mas sim de uma maneira que faz com que o espao do poema seja concebido como um equivalente plstico da realidade que promove um afastamento entre o poeta e o poema9.
8 9
BARROS, Manoel de. Cult Revista de Literatura, So Paulo, n. 15, out. 1998. Entrevista . Trechos da introduo feita por Marly de Oliveira para o livro Museu de Tudo, 1988.
Em um outro momento de anlise, os poemas do Livro de pr-coisas, exemplificam a predileo de Barros em expressar-se numa linguagem infantil. Seguem os versos com esse experimento:
Os rios comeam a dormir pela orla. (LPC, p. 60) Eu briguei naquele menino com uma pedra... (LPC, p. 62)
Em linhas gerais o propsito do poeta d-se por um desligamento do convencionalismo das expresses que, por sua vez, tendem valorizao dos acontecimentos. A criao potica prxima da viso que as crianas possuem das coisas. Tal compreenso pode ser reforada a partir do momento em que se lembra que, para Barros, as crianas ensinam os poetas. H um adentramento nesse universo sublime e, atravs dele, o poeta recorre linguagem das crianas, alm de cenas de seu cotidiano infantil. Nessa perspectiva, o seu olhar infantil capta imagens como essa: Eu briguei naquele menino, promovendo uma alterao sinttica com as palavras. O ldico envolve a linguagem, sobretudo do artista moderno. Manoel de Barros, herdeiro dos precursores do modernismo brasileiro, apresenta, em sua potica, uma permanente liberdade na apropriao da imagem para contar um fato normal do comportamento infantil. A imagem muito mais simples e muito mais clara do que aquilo que ela explica, entende Potebnia, (apud Chklovski, 1973, p. 341). No segundo exemplo apontado a aparente simplicidade na cena (as brigas), materializa o profundo trabalho esttico que o menino/poeta Manoel faz com a linguagem. A fora do verbo briguei juntamente com o uso do advrbio de lugar naquele mostra a associao que o eu infantil faz para se colocar no plano do texto. Isso d a essa linguagem a possibilidade de instaurar um outro nvel semntico e lexical, um novo estatuto na linguagem.
Quanto ao primeiro exemplo pode-se dizer que simbolicamente, no verso Os rios comeam a dormir pela orla, o vocbulo rio d a idia de fluidez das formas, da morte e da renovao, por isso certo acreditar que o poeta d continuidade a infantilizao das palavras que provocam a renovao e o deslocamento da linguagem. Esse falar aparentemente infantil est embasado na impresso visual que a criana utiliza para se expressar e que segundo Maria Adlia Menegazzo (1991), a impresso visual primeira no leva em considerao aspectos lgico-racionais. Para a autora A linguagem infantil se aproxima em muito do automatismo psquico (...). Assim, o discurso recebe elementos compositivos de realidades diferentes, resultando em um amlgama que supera o mundo real. (Ibid., p. 183) Nessa tcnica h a associao dos elementos que se quer relacionar com os vocbulos conhecidos, o que demonstra a capacidade criadora das crianas. Para Jlio Cortazar (1954, p. 86) a linguagem interna metafrica, referendamos a tendncia humana para a concepo analgica do mundo e o ingresso (potico ou no) da analogia nas formas da linguagem. O primordial est na capacidade de re-criao das palavras, inaugurando novos sentidos. Isso tambm ocorre com outras publicaes do autor como no livro Exerccios de ser Criana (2001). Os versos a seguir refletem um dilogo potico entre adultos e crianas:
No aeroporto o menino perguntou: _ E se o avio tropicar num passarinho? O pai ficou torto e no respondeu. O menino perguntou de novo: _ E se o avio tropicar num passarinho triste? A me teve ternuras e pensou: Ser que os absurdos no so as maiores virtudes da poesia? Ser que os despropsitos no so mais carregados de poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianas. E ficou sendo. (ESC, p. 1999, 2. Grifos meus)
O texto acima evidencia de maneira singular, a utilizao do imaginrio infantil pelo poeta. Essa imaginao provoca, na concepo de David (2004, p. 98), a no seriedade lingstica e faz surgir uma nova realidade, na qual os objetos e os fatos so sugeridos e demonstrados com propriedades distintas das que habitualmente teriam. Essa uma afirmao pertinente, mas, para tanto, necessrio que haja uma ntima relao entre o que se v e o que est no inconsciente da memria, necessrio uma aproximao com o objeto enfocado para mostrar uma associao possvel e transformadora. Para Bosi (1999, p. 15), a imagem nunca um elemento: tem um passado que a constituiu; e um presente que a mantm viva e que permite a sua recorrncia. A poesia apresenta-se como o terreno propcio para a construo dessa linguagem inventiva, na medida em que desenvolve um sistema que remonta aspectos presentes na linguagem e abre espao para o exerccio de proximidade.
Para falar sobre revelaes de um universo mtico pertinente voltar s prosas poticas que compem o Livro de pr-coisas. Nessa obra possvel perceber as peculiaridades da potica manoelense no sentido da busca de uma linguagem que se revela telrica e inovadora. Os componentes desse reino potico, homem, fauna e flora pantaneira esto inseridos num regionalismo nada convencional, pelo contrrio, h sim um regionalismo que possui um carter artstico que cria e recria o espao conhecido. um regionalismo que transforma e une o discurso da poesia e o discurso da prosa. Os textos hbridos que compem a obra em questo pertencem a uma potica que se d mediante a soma do que constitui um poema, um conto e uma crnica. Essa reflexo aponta para uma seqncia narrativa que expressa, ao
mesmo
tempo,
um
discurso
verbal
onde
voz
do
narrador
ressoa
Mundo renovado
No pantanal ningum pode passar rgua. Sobremuito quando chove. A rgua existidura de limite. E o Pantanal no tem limites. Nos ptios amanhecidos de chuva, sobre excrementos meio derretidos, a surpresa dos cogumelos! Na beira dos ranchos, nos canteiros da horta, no meio das rvores do pomar, seus branqussimos corpos sem razes se multiplicam. O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garoto pelo piquete com olho de descobrir. Choveu tanto que h ruas de gua. Sem placas sem nome sem esquinas. Incrvel a alegria do capim. E a baguna dos periquitos! H um referver de insetos por baixo da casca mida das mangueiras. Alegria de manh ter chovido de noite! As chuvas encharcaram tudo. Os baguaris e os caramujos tortos. As chuvas encharcaram os cerrados at os pentelhos. Lagartos espaceiam com olhos de paina. Borboletas desovadas melam. Bigus engolem bagres perplexos. Espinheiros emaranhados guardam por baixo filhotes de pato. Os bulbos das lixeiras esto ensangentados. E os ventos se vo apodrecer! At as pessoas sem eira nem vaca se alegram. E as guas irrompem no cio os limites do ptio. Um cheiro de ariticum maduro penetra as crianas. Fugiram dos buracos cheios de gua os ofdios lisos. E entraram debaixo dos foges de lenha. Os meninos descobrem de mudana formigas-carregadeiras. Cupins constroem seus tneis. E h os bentevis-cartolas nos pirizeiros de asas abertas. Um pouco do pasto ficou dentro dgua. L longe, em cima da peva, o ninho do tuiui, ensopado. Aquele ninho fotognico cheio de filhotes com frio! A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est alegre na roa, porque sua planta est salva. Pequenos caracis pregam saliva nas roseiras. E
a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde. (LPC, p. 29-30)
O ttulo, Mundo Renovado, uma metfora do Pantanal, a qual representa a vida existente nesta natureza singular. Trata-se de uma natureza que no est nos cartes postais, mas sim na imaginao de cada leitor que celebra um acontecimento potico. J no primeiro pargrafo percebe-se a figura do narrador, o qual ganha voz para exercer a sua funo, que a de mostrar ao leitor o seu mundo. De incio aparece um silogismo que rompe com a norma gramatical e semntica: No pantanal ningum pode passar rgua. Sobremuito quando chove. A rgua existidura de limite. E o Pantanal no tem limites. A esto pantanal x rgua / rgua x limite; sobretudo x sobremuito (ruptura morfolgica) = pantanal sem limites, e uma das causadoras desta falta de limite a chuva, confirmada pela presena restritiva do termo sobremuito. No segundo pargrafo h duas prosopopias marcadas por adjetivaes inabituais: ptios amanhecidos de chuva e a surpresa dos cogumelos. importante ressaltar que cogumelos so corpos sem razes, que aqui esto metamorfoseados, pois a eles so dados sentimentos humanos (surpresos). Toda a vida desses fungos se multiplica, tudo movido chuva. As frases esto sustentadas por um nico verbo, multiplicam. Esse recurso, de no priorizar os verbos e sim os substantivos, como ptio, chuva, excrementos, ranchos, canteiros, corpos, entre outros, mostra a opo pelos nomes. Essa opo acaba por revelar que o importante, nesse texto potico, no a possibilidade de ao, mas sim a opo em reforar a significao desses vocbulos. Os substantivos sustentam as frases e, ao ganharem destaque, preservam o verso de cair numa torrente banal de fatos a serem simplesmente descritos ou narrados (Santos, 2000, p. 60). No que concerne ao aspecto morfolgico, a pouca utilizao do uso de verbos ocorre em funo da reorganizao que sofrem as palavras, a busca de
uma linguagem que, tendo se erguido a partir das coisas do cho, permitem novas disposies. O que caracteriza essa linguagem no o fato de ver nela uma possvel representao, mas sim o desejo do poeta em explorar novas maneiras de ser e de dizer. O terceiro pargrafo iniciado com uma hiprbole metafrica: o mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Na seqncia, apresentada uma derivao imprpria, de nome para verbo: garoto com olho de descobrir. Novamente verificada a importncia do olhar como percepo, descoberta do mundo a renovao no est somente no mundo, mas na maneira com que focada. Nesse sentido, o tempo da infncia revivido pela curiosidade peculiar do olhar do garoto. atravs do seu olhar de descobrir que se originam todas as possibilidades de um mundo que experimenta e inova, pelos sentidos, a linguagem e a imagem. Chevalier & Gheerbrant, (2005, p.654) ressaltam que o olho, importante rgo de percepo smbolo de conhecimento, de percepo sobrenatural. Para eles a abertura dos olhos um rito de abertura ao conhecimento. A seqncia da narrativa no trecho garoto com olho de descobrir, mostra a necessidade da imaginao potica para enxergar as mincias dessa vida pantaneira que manobrada pelas palavras. Quanto chuva, ela tanta que chega a hiperbolizar expresso e contedo,s frases, animais, a prpria natureza: Choveu tanto que h ruas de gua. Sem placas sem nomes sem esquinas, diz o eu potico. Na construo da metfora lagartos espaceiam com olhos de paina, salienta-se a sinestesia, uma associao da viso dos rpteis (lagartos) ordem sensorial do tato, sensao causada pelo toque na paina. Os lagartos, assim como outros animais rastejantes, habitam a obra de Barros e sempre esto contribuindo para o redirecionamento de sentidos nos versos. No caso dessa expresso potica o redirecionamento se d pelo fato dos animais serem enfocados atravs de uma evaso da realidade. Essa uma considerao possvel porque, mais uma vez, o olhar possui a funo de abrir as portas desse universo que nasce de momentos epifnicos. Esses momentos so aqueles em que algo muito significativo revelado, so instantes profundos
para os seres: A pelagem do gado est limpa. A alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est alegre na roa (...). Pequenos caracis pregam saliva nas roseiras. E a primavera imatura das raras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde. (LPC, p. 30) Ainda nesse mesmo pargrafo h uma frase que possui um interessante efeito sonoro: bigus engolem bagres perplexos. Verifica-se aqui a
expressividade da consoante oclusiva /b/, que, combinada com a consoante /g/ e /p/, provocam um som explosivo na frase dando ritmo mesma. Outra vez est instaurada a metfora a qual d vida aos animais e transforma sua representao. Alm do aspecto fontico-fonlogico, h a estranheza da ltima frase desse pargrafo: E os ventos se vo apodrecer. Essa nova associao para o elemento da natureza vento, traduz a motivao da humanidade que toma conta da vida criada por Barros. O poeta promove novas aproximaes de termos fazendo surgir um mundo fora de regras. Por meio desses experimentos h um poder emancipatrio de manifestar o que nossa imaginao alcana. A partir dessa nova ordem estabelece-se um elo entre linguagem e imagem natural. O sexto pargrafo inicia-se com uma variao de ditado popular: at as pessoas sem eira nem vaca se alegram. A metfora encadeada se d no uso do vocbulo vaca, que depois se transforma em guas, em ofdios at que os meninos descobrem de mudana formigas-carregadeiras. No pargrafo seguinte: o ninho de tuiui, ensopado. Aquele ninho fotognico cheio de filhotes com frio!, a presena sonora da consoante labiodental /f/, som que lembra o sopro do vento, causa o desconforto dos filhotes. O que tambm chama a ateno a opo pelo vocbulo fotognico, fato esse que simboliza a procura de um instante que s importa para os que procuram registrar as imagens memorveis. A fotografia desse ninho fixa um momento imperceptvel, filhotes com frio, uma situao que no captada pela lente do fotgrafo. Tem-se com esse fato a necessidade de aceitarmos o carter mgico da imagem fotogrfica, como entende Roland Barthes (1990, p. 36), ademais essa possibilidade mostra que
Manoel de Barros enfatiza a busca por situaes que criam espaos entre o ver e o sentir. A presena desse ninho remete a um cenrio tipicamente pantaneiro, pois trata-se de um ninho de tuiui, ave smbolo do Pantanal mato-grossense. Mas, o que se destaca nessa frase potica o fato de o eu-narrante no vislumbrar um registro documental dos episdios. Embora ele observe com olhos de encantamento os cenrios e situaes da vida nesse sistema ecolgico, a imagem dos pssaros tremendo de frio que revelada propositalmente pelo eu. Sua percepo aponta para essa imagem e faz questo de registr-la em seus versos. Sua lente capta movimentos imperceptveis que, aparentemente, nada representam. a necessidade de designar o inesperado e o intil que vivifica os registros ausentes e evita a superficialidade do ato fotogrfico. No ltimo pargrafo h como que uma preparao da natureza animal, humana e vegetal, que se encontram em um mesmo nvel de humanizao: A pelagem do gado est limpa. A Alma do fazendeiro est limpa. O roceiro est alegre na roa, porque sua planta est salva. O roceiro a tem vez, porque sua planta est salva. O fechamento vem com uma metfora habilmente construda: E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde. Na composio dessa imagem h um encontro sinestsico entre a voz das araras e sua cor. bom lembrar que as araras, em sua maioria, so verdes, mas o diferencial dessa composio est no fato de que a cor verde mais freqente nas penas desses pssaros, identificam sua voz. Nesse caso h uma adjetivao incomum para a voz que exprime uma representao da estao do ano nesse mundo renovado. Jean Cohen (1974) esclarece que a adjetivao potica atribui cor uma exterioridade, no com sentido em si mesma, mas sempre fora do significado. Da mesma forma compreende Reis (2001, p. 75) ao constatar que na potica da escritora cuiabana Marilza Ribeiro isso se d quando considerado um cdigo especfico da natureza, o que nela mais flagrante, idia que encontramos sintetizada em outros versos que mostram uma conscincia cientfica da substancialidade da cor.
Retomando a frase E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeas com sua voz rachada de verde, acontece a assonncia do /a/, presente no verso narrativo, que possui, alm de um impulso sonoro, a percepo simblica da cor. Jos Lemos Monteiro (1991, p. 122) observa que a vogal /a/ pode representar algo claro, como tambm sugestiona a associao imediata com palavras que remetem a paz, liberdade, felicidade. Nesse sentido, trata-se de um processo anlogo entre a simbologia da vogal /a/ com a cor verde presente na voz das araras, situao que refora a conotao benfica que reveste a cor do som produzido por esses pssaros. Ainda, na sinestesia rachada de verde surge a juno entre a percepo da cor e o olhar. O valor destinado cor verde possui um carter mtico. A representao dessa cor benfica, o que segundo Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 940), o mesmo dos parasos almejados, o das green pastures, tambm verde como a juventude do mundo. essa qualidade em especial que desperta para a percepo, a cada instante, da reafirmao do
mundo que renova e regenera a existncia do ser. O primor rtmico da ltima frase do texto em anlise, assim como a construo de imagens inslitas, ilustra bem a idia da lrica manoelense, a qual composta por procedimentos de subjetivao e desintegrao da realidade. Para penetrar nessa lrica necessrio estar desarmado de regras, julgamentos e verdades e devanear com o poeta. A imagem e o devaneio se formam aqum da verdade do juzo de verdade, entende Bosi (1999, p. 25), por isso o leitor deve estar aberto s emoes, para conseguir materializar a imagem construda num mundo pr-lgico que tem, segundo Barros10, medo da lucidez
A anlise da prosa potica de Manoel de Barros revela o dilogo entre o mundo real e o oriundo da criatividade do poeta. Nesse sentido, oportuno
10
analisar o captulo O personagem, que traz Bernardo, apresentado da seguinte forma pelo poeta:
Bernardo da Mata um bandarra11 velho, andejo, fazedor de amanhecer e benzedor de guas. Ele aduba os escuros do cho, conversa pelos olhos e escuta pelas pernas como grilos12.
Abro um parntese na anlise potica e entro no plano da realidade da pesquisa para dizer da minha tentativa de compreender esse ser fictcio que apareceu pela primeira vez, como foi dito, em 1985, em um dos livros em anlise Livro de pr-coisas e, depois dessa estria, figura em todos os demais livros de Manoel, inclusive aos destinados ao pblico infanto-juvenil. Movida pela contemplao esttica em que o personagem foi inserido e literariamente criado e ampliado, resolvi buscar informaes sobre ele. Relato aqui, brevemente, essa experincia, por entender que ela tambm faz parte de um processo de assimilao do literrio, o modo como o poeta concebeu esse personagem e o modelo que o inspirou. Aps ter um contato maior com estudos crticos sobre a potica do autor, descobri que Bernardo da Mata existia na vida real e era muito parecido com seu homnimo potico. Fiquei interessada em saber mais sobre aquele homem que, segundo muitos diziam, no falava, s emitia grunhidos que apenas Stella de Barros, esposa de Manoel, entendia. A imagem que tinha dele provinha dos versos - um ser especial, sem maldade no corao, puro, que no se deixou contaminar pelas concupiscncias do mundo. No final de 2003 fui a Campo Grande MS e, por intermdio do professor Isaac Newton Almeida Ramos, da UNEMAT (Universidade do Estado de Mato Grosso) que pesquisa a poesia de Manoel de Barros, descobri que Bernardo vivia em um asilo chamado Dom Bosco. Resolvi visit-lo e, assim, observar se, no
11
De acordo com o Novo Dicionrio Aurlio de Lngua Portuguesa (1986) bandarra significa: vadio, mandrio, vagabundo. No livro Tratado geral das grandezas do nfimo (2001), Manoel de Barros apresenta em um verso a seguinte definio para o vocbulo: Bandarra cavalo velho solto/ no pasto, s moscas. 12 Em entrevista a Antonio Gonalves Filho da Folha de S. Paulo , em 15 de abril de 1989.
pouco contato que teramos, ele tinha algo daquela imagem que eu havia criado. Pensando no seu jeito de ser, e at como uma forma de comear um possvel dilogo, levei algumas frutas para presente-lo. No caminho fui pensando no que ia perguntar a ele e a primeira curiosidade era saber porque ele havia sado do Pantanal, como ele estava vivendo sem a convivncia dos bichos. Mas, o que realmente eu queria saber era se o prprio Manoel o havia levado para viver ali. Por razes literrias, eu preferia no acreditar nessa hiptese. J nas dependncias do asilo fiquei imaginando como era possvel um homem como o Bernardo morar ali. Como poderia um ser que eu havia conhecido atravs da poesia estar vivendo ali? Ao ver a quantidade de pessoas idosas, enfermas, que l estavam arrependi-me de querer conhecer Bernardo. Era melhor ficar com a imagem da fico: Com as mos aplaina as guas / Deus abrange ele. Pedi informao para encontrar o ilustre morador e um funcionrio, sem hesitar, respondeu-me que o Bernardo Vieira de Souza havia morrido h dez dias. Pensei: no possvel! Deve ser um engano. Senti algo estranho, parecia que havia perdido uma pessoa muito prxima. O funcionrio, vendo a minha expresso, fez questo de se certificar se estvamos falando da mesma pessoa. Infelizmente, era. Bernardo morrera de cncer na primeira quinzena de Dezembro de 2003. Agora, eu o encontraria somente no meio da poesia da Mata, lugar de onde eu no o deveria ter tirado. Sem dvida foi uma experincia singular. Esse quase encontro com um personagem da literatura fortificou em mim a certeza de que o texto potico promove uma linguagem que se afirma somente no prprio texto. Barros, como todo poeta trabalha para que sua obra tenha correspondncia dentro de si. Mesmo sendo Bernardo uma pessoa prxima ao poeta e, mesmo sabendo que ele possua um comportamento diferente de outras pessoas, Barros, segue o princpio bsico de que na grande poesia o ato de revelar o homem e o mundo , sobretudo um trabalho esttico. Correndo o risco de ser simplista, acredito que o texto literrio, mesmo quando se sustenta em motivos reais, converte-se em metfora, em imagem. Esse passeio entre os limites do literrio e do real desvelou para mim
o sentido de que as revelaes feitas pelos artistas so aquelas que ningum ainda fez, linguagem do imaginrio, aquela que ningum fala, murmrio do incessante e do interminvel, como compreende Blanchot (1987, p. 42). Por isso, a partir dessas reflexes procuro no mais misturar realidade com fico. O homem, que conheci atravs das poesias de Manoel de Barros, possua uma natureza lrica, no humana. O que o glorificava era to somente a comunho do poeta com as palavras. Agora, ao analisar a trajetria do personagem Bernardo dentro das narrativas do Livro de pr-coisas, comeo a pensar nas manifestaes de elementos mticos na potica de Barros, posto que ao construir um ser com as potencialidades desse personagem o poeta emprega uma narrativa carregada de smbolos que remontam ao mito da origem do homem, no aparecimento dos seres humanos na terra, na convivncia pacfica que eles tinham com o lugar, com os animais, a falta de interesse em possuir. Na sua potica os mitos esto relacionados ao homem, ao espao que este habita, s suas crendices. Dessa maneira, esta parte da anlise trar algumas reflexes sobre conceitos recorrentes manifestao mtica na sua potica para depois adentrar no universo composto por imagens, acontecimentos e manifestaes sobrenaturais. Mircea Eliade (1972) afirma que o mito uma realidade cultural complexa, que permite ser abordada e interpretada mediante mltiplas e complementares perspectivas. Essas muitas possibilidades criam uma dificuldade na interpretao do mito. Neste estudo parto do pressuposto de que os mitos so tessituras textuais que se renovam e que encontram nas narrativas literrias lugares ideais para se desenvolverem. Mielietinski (1987) destaca que o mito se define como representaes do mundo, como sistema de imagens de deuses e espritos que regem o mundo, ou como narrao, como relato dos feitos dos deuses. O autor, citando Northrop Frye (Ibid., p. 123-4) diz que ele aproxima a literatura e o mito em funo da dissoluo da literatura no mito. Frye considera que a narrativa mtica e a lrica tm como modelos momentos profticos e epifnicos. Para ele os ritmos poticos (artsticos
em termos mais amplos) esto estritamente ligados ao ciclo natural atravs da sincronizao do organismo com os ritmos da natureza. Segundo Mielietinski (ibid., p. 200) todas as espcies animais e vegetais, o modo de vida, os grupos sociais e instituies religiosas, todos os objetos naturais e culturais so feitos dos eventos de um tempo h muito passado e das aes dos heris mticos, dos ancestrais ou deuses. Para o mitlogo Joseph Campbell (1990) os deuses representam um sistema motivador e de valor tanto para a vida humana como para a natureza. Na mitologia grega, eles so os comandantes do Universo e de todos os seres que nele habitam. Eles conduzem a vida dos homens e dominam os fenmenos naturais nesse contexto que est Bernardo da Mata, personagem sui generis , que habita um universo mitopotico. Devido sua importncia dentro do mundo pantaneiro ele pode ser considerado como uma das criaes dos deuses. Ele tambm poder ser considerado uma espcie de totem pantaneiro.13 . Nas tribos primitivas americanas o totem um deus primitivo de quem elas se sentem descendentes. Podem ser animais, plantas e objetos, seres considerados sagrados, escolhidos como protetor e guia e que essas tribos respeitam, evitando mat-los, com-los ou destru-los. Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 890) explicam que a palavra totem um termo algonquino. Sua verdadeira significao : guardio pessoal. Aps essas consideraes, passo ao estudo do captulo O personagem, apresentando o primeiro texto:
A idia de comparar Bernardo a um totem ocorreu-me durante uma viagem que fiz at a cidade de Tangar da Serra MT, em ocasio de um evento de Literatura Comparada promovido pelo Departamento de Letras da UNEMAT, Campus de Tangar. Visitei um ponto turstico denominado Salto das nuvens. Nesse lugar, logo na entrada, h vrias esculturas feitas por um ndio que mora e trabalha no local. Essas esculturas representam, segundo ele, os deuses que guardam a natureza.
13
I. No presente Quando de primeiro o homem era s, Bernardo era. Veio de longe com a sua pr-histria. Resduos de um Cuiab-garimpo, com vielas rampadas e crianas papudas, assistiram seu nascimento. Agora faz rastros neste terreiro. Repositrio de chuva e bosta de ave seu chapu. Sementes de capim, algumas, abrem-se de suas unhas, onde o bicho-de-porco entrou cresceu e j voou de asa e ferramentas. De dentro de seus cabelos, onde guarda seu fumo, seus cacos de vidro, seus espelhinhos nascem pregos primaveris! No sabe se as vestes apodrecem no corpo seno quando elas apodrecem. muito apoderado pelo cho esse Bernardo. Seu instinto seu faro animal vo na frente. No centro do escuro se espraiam. Foi resolvida em lngua de folha e de escama, sua voz quase inaudvel. que tem uma caverna de pssaros dentro de sua garganta escura e abortada. Com bichos de escama conversa. Ouve de longe a botao de um ovo de jacaroa. Sonda com olho gordo de hulha quando o surio amolece a oveira. Escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre. Os embries do ovo ele vislumbra prazenteiro. Ri como fumaa. Seu maior infinito! Quando o corpo do surio se espicha no areo, a fim de delivrar-se, Bernardo se ilumina. Pequena luzerna no pavio de seu olho brandeia. A jacaroa e ele se miram imaculados. A prpria ovura! Passarinhos do mato bentevi joo-ferreira sentam no ombro desse bandarra para catar imundcia orvalho insetos. S d de banda. Nos fundos da cozinha onde se jogam latas de vermes vidos, lesma e ele se comprazem. Teias o alcanam. Lagartas recortam seu dlm verdoso. Formigas fazem-lhe estradas ... Unge com olho as formigas. No ptio cachorro acua ele. (Pessoas com ar de quelnio cachorro descompreende.) Galinhas bicoram seu casco. Mal desenxerga. (Nem mosca nem pedrada desviam ele de ser obscuro.) Bernardo est pronto a poema. Passa um rio gorjeado por perto. Com as mos aplaina as guas. Deus abrange ele. (LPC, p. 41-3)
Octavio Paz (2003, p. 371) observa que Cada poeta inventa su propia mitologa y cada una de esas mitologas es una mezcla de creencias dispares, mitos desenterrados y obsesiones personales. Assim, diante dos ensinamentos de Paz, v-se que nas narrativas de Manoel de Barros marcante a presena do mito de um ser que, mesmo sendo humano, tem sua existncia revelada de um modo diferente. Este ser est associado a toda a vida presente no pantanal como tambm remete ao mito da origem do homem, do mito e do rito iniciatrio. A criao de uma mitologia prpria se estende ao plano da linguagem que remete funo metalingstica nessa potica. Segundo Eliade (1972, p.34), o retorno origem permite um novo nascimento, mstico, espiritual, o qual conduz possibilidade de renovar e regenerar a existncia. Barros procura instaurar o mito e o rito iniciatrio (regressus ad uterum) como forma de renovar sua arte potica. A partir dessa renovao so instauradas novas formas de manifestaes discursivas nos textos poticos e narrativos, o nascimento de outra linguagem. Na concepo de Mielietinski (1987) todo grande poeta tem a misso de transformar em algo integral a parte do mundo que se lhe abre e da matria deste criar sua prpria mitologia. Nesse prisma, em No presente, h efeitos estilsticos, metafricos, relacionados a elementos sonoros, morfolgicos, sintticos e semnticos que subvertem a simples relao causa-efeito entre as frases. Eles vo sendo arrolados e proporcionam uma narrativa mtica com ares da mais pura poesia. No primeiro pargrafo, primeira orao, Quando de primeiro o homem era s, Bernardo era, a presena do adjunto adverbial temporal quando remete ao comeo de uma histria, como tambm ao princpio dos tempos. Tal construo reporta ao livro do Gnesis, cuja passagem bblica conta o dia da criao da terra e do homem, sendo que este homem era Ado e encontrava-se s na terra. No Dicionrio de Smbolos de Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 13), Ado igualmente o smbolo do primeiro homem e das origens humanas. O personagem Bernardo representa, de forma mtica, o surgimento de uma criatura humana, mas
diferente das outras . Ele simboliza uma espcie peculiar desde o princpio, e que permaneceu dessa forma, nico, s. Nesse ritual de construo, o verbo intransitivo veio, na segunda orao, uma referncia de tempo-espao, e de longe com sua pr-histria remetem no somente ao lugar de onde ele saiu, mas tambm, de certa forma, retorna ao prefixo do prprio ttulo do livro (pr). Esse pargrafo contm marcas estruturais de um texto narrativo, como o caso da referncia ao espao geogrfico onde se identifica a ancestralidade do personagem: Resduos de um Cuiab-garimpo, com vielas rampadas. O pargrafo seguinte inicia-se com um perodo simples: Agora faz rastros neste terreiro. O sujeito da frase vem localizado temporalmente pelo advrbio agora, que lembra o ttulo do texto, No presente. Essa marca de tempo mostra o ps-nascimento do personagem Bernardo, como tambm seu comportamento inabitual diante de toda a vida que o cerca. H uma fora em Bernardo, que faz rastros neste terreiro. O fonema consonantal /r/, aliterante em rastros e terreiro, intensifica essa idia que, segundo Nilce Martins (1989, p. 37), se ajusta noo de vibrao, atrito, abalo. Esse fonema age de tal forma na frase a ponto de fazer um sulco na terra, e esse ritual simboliza miticamente a unio entre o personagem Bernardo e o cho, comunho que mostra o equilbrio com a natureza mtica que brota no transcorrer da narrativa. Pensando o texto como uma construo potica, no segundo pargrafo, segunda frase, o perodo aparece na ordem inversa. A inverso um recurso potico porque coloca em primeiro plano determinados elementos enfatizados pelo poeta, e tem como ncleo do sujeito o vocbulo chapu, que vem depois do predicativo do sujeito Repositrio de chuva e bosta de ave e do verbo de ligao , expresso do relacionamento amigvel entre homem e animal. Toda essa construo frasal continua na terceira orao, que tambm est na ordem inversa, recurso que se estender por quase toda a narrativa. Esse procedimento ocorre em todo o poema, e somado a outros processos de ruptura aproximam o movimento da prosa de Barros com o de sua poesia.
O pronome indefinido algumas, dessa orao, funciona como uma espcie de adjetivo restritivo o qual aparece entre vrgulas. O sujeito Sementes de capim introduz ao predicado um verbo transitivo, abrem-se, acompanhado de uma nova situao adverbial de lugar de suas unhas, que prepara uma orao subordinada precedida pela palavra onde. Na seqncia surge uma gradao verbal entrou / cresceu / voou, que provoca uma intensa movimentao, posto que as frases so curtas, rpidas, em sua maioria, coordenadas. No por acaso esta frase a que possui, at ento, o maior nmero de verbos. Nesse emaranhado de aes no o personagem principal o centro das atenes, elas voltam-se para os seres de menor significao, como o caso do bicho-deporco, colocado em uma situao surreal que d uma nova dimenso ao quadro apresentado, pois o bicho voou de asa e ferramentas. A novidade desta situao refora a originalidade do poeta e amplia a apresentao/representao do meio natural escolhido por ele. No terceiro pargrafo a orao intercalada traz uma gradao de objetos que o personagem guarda coisas em seu cabelo de onde nascem pregos primaveris. Barros ficou conhecido como o poeta da destruio, do desmanche dos sentidos tradicionais das palavras, da reutilizao dos fragmentos em novas imagens, da decomposio semntica. O que se tem aqui a opo por pregos primaveris em vez de grandes, novos, enferrujados, tortos, o que seria uma adjetivao considerada normal. Tal fato talvez possa ser explicado pela tranqilidade inquietante que o personagem Bernardo representa. Analisando novamente a primeira orao ratifica-se a referncia ao lugar De dentro de seus cabelos, que um depsito de inutilidades. Como o poeta Manoel, ele tambm gosta das coisas desimportantes. Do texto de onde sai esse homem de comportamento to surpreendente h o uso de verbos transitivos diretos. Nas composies textuais percebe-se que a presena desses verbos se d quando os personagens esto mais integrados com o lugar, com o grupo. No caso de Bernardo fica expresso que ele se mistura ao lugar, a todo ser vivo que l est. Para Nilce Martins (1989) as frases de verbo transitivo exprimem o dinamismo da vida, com seres em todos os tipos de
relacionamento fsico, emocional, social. Nessa perspectiva, quem habita esse lugar so os seres em formao, os pr-seres, que cruzam o caminho de Bernardo, por isso, sua volta no h, aparentemente, nada de interessante ou utilitrio. Os habitantes no tm nada a comunicar, o que eles deixam transparecer est no sentido inverso de quem tem uma histria real a contar ou algo a mostrar. Bernardo Escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre. Os embries do ovo ele vislumbra prazenteiro. Ri como fumaa. (LPC, p. 42), Porque j desde nada, o grande luxo de Bernardo ser ningum. Por fora um galalau14. Por dentro no arredou de criana. ser que no conhece ter. Tanto que inveja no se acopla nele. (LPC, p. 48). Para reforar esta apresentao, o poeta afirma, no quarto pargrafo, que Bernardo No sabe se as vestes apodrecem no corpo seno quando elas apodrecem. Isso fortalece a existncia de um ser mtico, uma metfora do homem simples da regio que, distanciado da civilizao, leva a refletir sobre a existncia humana e a existncia das coisas. Nessa passagem h um ser que no se importa com objetos materiais. Ele se comporta como um ser esttico que independe de todo consumismo. Todo o movimento de sua vida apresentado em relao ao do tempo, sem preocupaes. O verbo apodrecer, que aparece duas vezes na mesma frase, refora tais consideraes. No mundo de Bernardo s h lugar para o ser que no conhece o ter. Na primeira frase do quinto pargrafo, muito apoderado pelo cho esse Bernardo, o advrbio de intensidade muito liga-se dependncia da terra e tambm ao predicativo do sujeito apoderado que, junto com o complemento nominal pelo cho, ratificam a origem deste homem. Aqui h a representao do homem-terra, do homem-rvore, que est enraizado no cho pantaneiro. O cho simboliza a relao que o homem tem com o espao que habita, por isso todo o comportamento desse homem e suas funes sensitivas, esto metamorfoseados em elementos animais e vegetais. Nesse contexto Mielietinskii (1987) observa:
14
Segundo consta no Dicionrio Aurlio (1986) galalau se refere a homens de estatura elevada.
Merece ateno o fato de que uma divindade antropomorfa se combina freqentemente com a rvore universal. Por exemplo, os egpcios representavam a deusa Nut na forma de rvore, Zeus est intimamente ligado ao carvalho sagrado, na mitologia maia a rvore csmica o lugar da habitao do deus da chuva, (...), s vezes do deus do fogo (Ibid., p. 249)
No plano da literatura, na escola realista, ocorreu a zoomorfizao dos personagens com a inteno de destacar o instinto animal, em geral com conotao negativa. Na prosa potica de Barros a inteno outra, caminha no sentido de reforar a mitificao de Bernardo atravs de suas aes. como se o poeta, no exerccio de sua funo, de construtor de um mundo que se d pela palavra, atribusse a este homem o poder de representar os atributos mticos que do aos seres a aproximao necessria com a vida animal e vegetal: Seu instinto seu faro animal vo na frente (LPC, p. 41). Ou, como no pargrafo seguinte, em que esto postos os modos de sentidos de Bernardo: lngua de folha (a exemplo dos rpteis que tm na lngua seus sensores de direo, seus olhos) e de escama (tato); ou ainda, que tem uma caverna de pssaros dentro de sua garganta escura e abortada. Em virtude da maneira como feita a meno dos seus rgos dos sentidos, fica expresso que eles possuem outras utilidades. A sua garganta abortada no usada para falar, ela mais til como abrigo de pssaros, pois neste mundo mtico, natural a fala, que serve para a comunicao entre os homens civilizados no lhe muito til. Todas essas caractersticas, de um ser composto pela unio do homem+animal+vegetal, do um carter encantatrio a Bernardo da Mata. Maria Adlia Menegazzo (1991, p. 193) esclarece que em Manoel de Barros as imagens que resultam da fuso humano/vegetal, comeam a se delinear no livro Poemas concebidos sem pecado (1937) e chegam at O guardador de guas (1989). Para ela esta relao adquire configuraes infra-humanas como no poema intitulado A draga15:
15
Este poema est no livro Poemas Concebidos sem pecado, mas foi retirado do Gramtica expositiva do cho (poesia quase toda).
A gente no sabia se aquela draga tinha nascido ali, no Porto, como um p de rvore ou uma duna. (...) Meia dzias de loucos e bbados moravam dentro dela, enraizados em suas ferragens. Dos viventes da draga era um o meu amigo Mrio-pegasapo. Ele de noite se arrastava pela beira das casas como um caranguejo trpego. (GEC, p. 44)
No Livro de pr-coisas essa fuso se materializa em Bernardo. Ele um ser que intimamente est ligado natureza pantaneira. Em funo da maneira como apresentado possvel ver nele o guardio de uma natureza transfeita, sobrenatural, que se reorganiza sobre o prisma do poeta. Nesse territrio ele deixa transparecer que a criao desarticulada funciona melhor e, em virtude disso, Bernardo no se comporta com as caractersticas de um ser biologicamente construdo. Ele pode ser visto como um dos deuses que guarda a natureza do pantanal, no por acaso ele tambm O Guardador de guas, ttulo do nono livro de Barros, que lembra O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro, um dos heternimos de Fernando Pessoa. O universo mitopotico do texto No presente reafirma a idia de que, no mundo mtico, a conscincia se libera e cria personagens e comportamentos que se opem simples receptividade dos sentidos, posto que as histrias relatadas, mesmo possuindo elementos humanos e culturais, contam com a interferncia de foras e entes sobrenaturais. Campbell (1990) explica o fato que, muitas vezes, o mito busca explicar o mundo e tudo aquilo que, racionalmente, no se pode explicar, mas que passou a existir num dado momento dos primrdios temporais. Dessa forma, os mitos esto ligados aos fenmenos inaugurais de tudo: genealogia dos deuses, criao do mundo e do homem, explicao mgica das foras da natureza.
O mito nunca reproduz a situao real, entende Abbagnano (2000, p. 675), mas ope-se a ela, no sentido de que a sua representao embelezada, corrigida e aperfeioada. Assim, na medida em que apresentado, o mundo de Bernardo surge como um ente sobrenatural. Ele personifica seres puros e imaculados. como se tivesse no mundo para desempenhar a funo de habitar um espao ainda em criao, para ajudar na construo deste ou mesmo para dar conselhos do tipo: Bernardo me ensinou: para infantilizar formigas s pingar um pouquinho de gua no corao delas. (LSN, p. 29). Em sua existncia essa figura humana, est impregnada de filosofias, talvez por isso o poeta Manoel de Barros concedeu a Bernardo a oportunidade de fazer um livro de ensinamentos. Bernardo pode ser identificado como o autor dos textos que compem O livro de Bernardo, o qual faz parte do livro Tratado geral das grandezas do nfimo (2001). No Tratado, na introduo da primeira parte, Barros utiliza como epgrafe uma definio da personalidade de Bernardo da Mata: Para ele a pureza do cisco dava alarme. Na segunda parte do livro denominado de O livro de Bernardo, a epgrafe de Adlia Prado, de seus versos retirados do Manuscritos de Felipa: A anormalidade assombrosa. Sua puercia mesma carne de poesia. Barros d incio a esta parte com dois poemas, depois se afasta e concede licena potica a Bernardo da Mata, autoridade para ele registrar seus ensinamentos. Essa possibilidade lembra a construo das entidades heternimas de Fernando Pessoa posto que, como estes, Bernardo comea a explicar seu comportamento, sua existncia e, o mais importante, faz a sua poesia. Com poemas de uma nica estrofe, cinqenta e dois no total, percebe-se a semelhana destes com os versos que compem os livros denominados Minutos de sabedoria, no que tange estrutura e funo destes livros, pois os mesmos so lidos, geralmente, quando se necessita de algo para suavizar as peripcias da vida. O livro que Bernardo pde escrever tambm traz essa possibilidade. Mas, no trabalho potico desse personagem/autor, por meio dos conselhos que ele d, possvel melhor conhecer e compreender a existncia dos seres no mundo.
Em sua linguagem, como num intertexto com a poesia de Manoel de Barros, repousa a insensatez dos loucos e a inocncia das crianas, posto que ele se apodera de tudo o que est a sua volta para demonstrar que no h necessidade de angstia ao se procurar entender o estar-no-mundo. Para ele, o melhor caminho seria a perfeita comunho da natureza com as coisas. Bernardo assim se explica em seu livro: No tenho pressa./ Tenho s rvores ventos / passarinhos issos./, Dentro de mim/ eu me eremito/ como os padres do ermo. (TGGI, p. 51) A chuva/ azula a voz / das andorinhas., / Sou livre / para o silncio das formas / e das cores. (TGGI, p 55); / Ocupo funo de exlio/ quando anoitece/ nas guas./ Sou beato de guas / de pedras/ e de aves. (TGGI, p. 56, grifos meus). Assim, diante desses ensinamentos, reaparece a condio sobre-humana de Bernardo. Ele mostra o seu mundo, sua vivncia, e possibilita ao seu leitor uma reflexo autocrtica. Volto a abordar o texto No presente. O resultado do nascimento de toda a vida no Pantanal de Manoel de Barros e de Bernardo resultou na criao de imagens pouco vistas. O narrador manoelense regressa ao mundo natural e transcende as limitaes, ou seja, ele age como porta voz de um mundo mtico para traduzir o que o homem civilizado, que habita to somente o logos, desconhece. Por ter esse narrador um olhar que capta o mundo com lentes lricas, sua histria movimenta-se tambm de modo diferenciado, por isso, na continuao de seus relatos, o narrador/poeta ilustra com mincias o cotidiano do personagem Bernardo:
Com bichos de escama conversa. Ouve de longe a botao de um ovo de jacaroa. Sonda com olho gordo de hulha quando o surio amolece a oveira. Escuta o ente germinar ali ainda implume dentro do ventre. Os embries do ovo ele vislumbra prazenteiro. Ri como fumaa. Seu maior infinito! (LPC, p. 42)
Aqui, novamente, ocorre o enfoque aos sentidos do personagem. E tambm se nota a fora sonora que se acumula por todo o pargrafo. A assonncia dos fonemas /o/ e /e/, juntamente com a fricativa /v/, conversa / ouve / ovo / oveira / ventre / vislumbra, do um movimento rtmico, um efeito musicado s percepes do ser que habita essa narrativa. Ainda, a assonncia, principalmente do /o/, causa um som agudo a todo o conjunto de frases e somente nas duas ltimas: Ri como fumaa. Seu maior infinito!, o som da risada de Bernardo age como um filtro sonoro que dispersa e modifica a marcao rtmica do pargrafo. H gradao dos verbos conversa / ouve / sonda / escuta / ri, todos conjugados no presente do indicativo, tempo verbal cujo predomnio reafirma as aes costumeiras, habituais do personagem e mostra, atravs de seu comportamento, expresses peculiares regio do Pantanal: Sonda com olho gordo de ulha quando o surio amolece a oveira. Nesta expresso Barros traz para o texto narrativo elementos telricos e populares, que se juntam e reforam as marcas que identificam o nascedouro de Bernardo. Outro aspecto a ser considerado que a ao mostra a variao do estado de esprito do personagem, que parte da observao at chegar ao frenesi: Ri como fumaa. Todo esse procedimento do fazer literrio provoca um estado lrico na narrativa, que, na concepo de Ramos (2002, p. 56), o que gera a desordem, o imprevisto, o excesso, enfim, delrio. De todas as frases presentes, ao contrrio do que vinha ocorrendo no pargrafo em anlise, somente uma possui verbo intransitivo: Ri como fumaa. H nesta construo frasal o esclarecimento para o estado emocional do personagem. Somente ele capaz de externar esse sorriso mediante o que testemunhou. Para Nilce Martins (1989) os verbos intransitivos manifestam emoes, processos mentais. Por conta desse comportamento tem-se a perfeita harmonia entre homem e natureza, entre Bernardo e animais que rastejam, pois todos esto no mesmo universo, o do cho que se refaz, graas palavra. Na seqncia da narrativa h a conjugao da linguagem popular com a erudita, logo na primeira frase: o corpo do surio se espicha no areo, a fim de
delivrar-se. Surio uma espcie de rptil e, este, ao se espichar no cho, simboliza o ato do nascimento de todas as espcies animais que vivem no Pantanal. Ao testemunhar essa cena visvel o regozijo de Bernardo e o resultado estilstico desse procedimento uma catacrese potica: Pequena luzerna no pavio de seu olho brandeia. A importncia desse momento est no fato de mostrar a intimidade e a simplicidade desse personagem com o lugar onde vive e a vida rasteira que por l circunda, vida que normalmente desprezada pelos homens ditos civilizados. Aps esse olhar reconfortador, materializado por um verbo transitivo direto que aparece acompanhado de preposio, segue uma frase com um sujeito reflexivo: A jacaroa e ele se miram imaculados. Essa representao que abrange os costumes dos habitantes do lugar pode ser comparada alegria dos pais quando presenciam o nascimento de seus filhos, a prpria ovura! O narrador alude aos sentimentos do personagem, pois Bernardo se ilumina e mostra a sua infinitude atravs do recurso de uma frase exclamativa. A contemplao da imagem que se deu no plano do cho est agora ao espao areo: passarinhos do mato bentevi joo-ferreira sentam no ombro desse bandarra para catar imundcia orvalho insetos. Nesse fragmento h uma irreverncia formal, a ausncia de pontuao que agiliza os relatos e torna o discurso literrio cada vez mais prximo do discurso oral. Tudo isso uma representao pictrica do estado de esprito de Bernardo. O amalgamento dos elementos que compem esse cenrio mtico-narrativo anuncia uma atmosfera que muda a paisagem pantaneira a ponto de pssaros, que normalmente pousam nas costas dos animais para catar parasitas, trocarem os lombos desses pelos ombros seguros de Bernardo. Em Castro (1991) Bernardo assim analisado:
Com a apresentao do perfil de Bernardo, pode-se concluir que, para o pantanal, o verdadeiro habitante a pessoa que tem esses pressupostos manifestados em Bernardo. Poderse-ia dizer que Bernardo uma espcie de homem admicopantaneiro, pois vive em estado de graa, em comunho com a vida efervescente e transmutante, que pulsa em qualquer regio do pantanal, (Ibid., p 45)
De um modo geral, as narrativas mticas representam a condio humana e por isso contam histrias sobre o homem, possibilitando assim um possvel entendimento do que separa o mundo da razo (logos) do mundo do mito. Na seqncia do texto No presente o dcimo segundo pargrafo traduz o universo potico de Manoel de Barros atravs das aes de Bernardo, o que traz em um primeiro momento o retorno de alguns dos arquissemas16 do poeta, (vermes, lesma, lagartas e formigas). Esse universo, que se apresenta de forma surreal, alegoriza Bernardo e contribui para a construo de um personagem enigmtico. Ramos17 depreende, a partir do comportamento de Bernardo, que no poema instaura um instante supremo de sagrao do ordinrio, do recortador de horizontes, do encantador de formigas e de um ser poetizvel. Esse ente possui muitos sditos - Lagartas recortam seu dlm verdoso. O ato de recortar, ofcio feito pelas lagartas como se fossem alfaiates, celebra essa ao transformando estes pequenos animais em operrias responsveis pelas vestes desse guardio. Dlm, segundo definio do Dicionrio Aurlio, um tipo de veste ou casaco militar que, em geral, possui alamares (abotoaduras metlicas utilizadas na frente de um vesturio), o que faz compreender que o personagem desempenha um papel relevante para os seres que habitam esse mundo. Tudo que ele precisa est ao seu alcance. Bernardo est inserido nesse universo para servir e ser servido, ele marcado pelas coisas de seu mundo e suas vestimentas ajudam a confundi-lo ainda mais com a vida natural do lugar. O trabalho de sacramentar os seres nfimos reiterado na nica e curta frase do pargrafo seguinte. Este se inicia com um verbo transitivo indireto, que exige um complemento verbal seguido de preposio: Unge com olho as formigas. O verbo ungir tem o significado de dar posse, investir de autoridade,
Segundo Iuri Lotmam (1978) o termo arquissema formado por analogia com o arquifonema de Trubetzkoy, a fim de determinar, ao nvel das significaes, a unidade que inclui todos os elementos comuns da oposio lxico-semntica. 17 Retirei esses apontamentos do relatrio de pesquisa denominado As influncias de Fernando Pessoa na poesia de Manoel de Barros, projeto coordenado pelo Prof. Isaac Newton A. Ramos, desenvolvido na Universidade do Estado de Mato Grosso, campus de Alto Araguaia, entre os anos de 1999 e 2000.
16
sagrao e, no presente do indicativo, ele representa a autoridade conferida a Bernardo para purificar os seres rasteiros. Ele faz isso com o olhar, enquanto que um religioso, apto a exercer essa tarefa, utiliza as mos. Mais uma vez instaura-se a importncia do olhar na potica manoelense, pois a inteno do personagem, nessa passagem, de transmitir um olhar abenoador, que compreende, ama e sente a natureza, a beleza de todos os seres, a fim de fazer o que os outros no podem porque no conseguem ver. O olhar de Bernardo o olhar da natureza para ela mesma. Pertencente espcie humana, ele serve de anteparo para a natureza ignorada e transfeita. Quase ao final da narrativa, possvel v-lo como pessoa com ar de quelnio, da ordem dos rpteis, sendo um tipo de tartaruga. Anuncia-se a partir daqui uma ironia prosopopica, pois o texto deixa antever que quando ele est prximo de animais domsticos como cachorro e galinhas, estes o descompreendem, ao contrrio daqueles seres rasteiros e peonhentos com quem ele mantinha ntima relao. Para esclarecer o comportamento desses animais, o narrador/poeta utilizase de uma digresso18, recurso utilizado em vrios poemas de Barros e de outros contemporneos como a poeta mato-grossense Lucinda Persona: No ptio cachorro acua ele. (Pessoas com ar de quelnio cachorro descompreende.) Galinhas bicoram seu casco. Depois de utilizar apenas trs vezes o nome do personagem principal, ele reaparece em uma preciosa metfora, no penltimo pargrafo, que se inicia assim: Bernardo est pronto a poema. Parece um anncio, uma metfora, para explicar o que o poeta/narrador entende que, aps todo o percurso descrito, Bernardo a prpria poesia. Nos pargrafos anteriores vinha-se repetindo o pronome ele, em geral, na voz reflexiva ou ento como complemento verbal, no caso, fazendo o papel de um objeto direto. Do ponto de vista fono-estilstico e estrutural, como se o narrador
Figura de retrica, consiste em o orador afastar-se do seu tema, atravs da insero de matria estranha quela tratada no momento. Podendo conter a intercalao de um trecho descritivo, narrativo, potico, elogioso, etc., assume a forma de concesso, ou seja, confessar o fato de que o adversrio tem razo num ou noutro argumento (Moiss, 1999).
18
estivesse guardando para o desfecho a fora do nome do seu personagem principal. Ao ter seu nome novamente evocado, Bernardo efetivamente se encontra pronto a poema. Nesse estado metalingstico e potico, Bernardo possui o perfil ideal para habitar o mundo dos devaneios, da obscuridade, terreno prprio da poesia de Manoel de Barros. Poesia que surge com o intuito de livrar-se da referencialidade, da natureza paisagstica e da rima fcil. Esse ser mtico-pantaneiro representa o ilimitado de todas as coisas e de todas as formas. Aps a anunciao, colocado novamente um arquissema que mostra a representatividade imagtica e metafrica do rio na potica de Barros: passa um rio gorjeado por perto. Para Castro (1991, p. 124) A metfora do rio coloca-o no poema como elemento animador, cheio de vida e sentido. A fora natural das guas, e o rio, como anunciador da vida traz toda sua expresso emotiva e sonora. O verbo gorjear, que no verso narrativo aparece como adjetivo, acompanhado do som /p/ aliterante (passa, por, perto), permite que o rio emita sua voz melodiosa, no caso seria a celebrao das guas. gua e pantanal, na poesia de Barros so indissociveis, sobretudo pelo excesso. Apresentam-se, inclusive em imagens sacralizadas, como na hiprbole na seguinte frase, precedida pelo verbo transitivo direto aplainar: Com as mos aplaina as guas. Essa ao do personagem reporta passagem bblica que traz o episdio em que Jesus, para salvar seus apstolos, acalma a tempestade (Evangelho de S. Lucas, 8: versculo 24). importante lembrar que, conforme foi apresentado desde o incio deste captulo, Bernardo um ser especial dotado de caractersticas mticas e divinas que contribuem para que ele seja o guardio dessa natureza hbrida. o rio que canta e encanta, o pastor que apascenta o seu rebanho de seres feitos de palavras. Chega-se ao ltimo pargrafo com a expresso de um presente eternizado, envolto em uma atmosfera mtica e religiosa. Aqui o poeta mostra, como tantos outros da histria literria, que a Bblia Sagrada uma das suas mais importantes fontes. Isso pode ser comprovado numa frase anunciada, que funciona como o desfecho dessa narrativa mitopotica: Deus abrange ele. uma emblemtica expresso na qual se revela a importncia do homem Bernardo.
O fechamento dessa prosa potica alude a um ensinamento cristo. Dessa forma, possvel a comparao das expresses: Deixai os meninos, e no os estorveis de vir a mim; porque dos tais o reino dos cus (Evangelho de S. Mateus, 19: versculo 14) e Deus abrange ele. Na frase de Barros, o verbo abranger mostra que o Ser Superior est em Bernardo, que o alcana, porque v nele a inocncia e a pureza conjugados. O comportamento de Bernardo subverte a ordem lgica do mundo atual e sugere uma outra explicao para as coisas. A apresentao da vida mtica do pantanal revela a necessidade de outras formas de entendimento do homem, do mundo e de conhecimento da sua origem, mas exprimem, sobretudo, um redirecionamento da poesia contempornea, que tem espao para a
figurativizao da linguagem, e nisso consiste a reflexo de Paz (2003, p. 395) para quem El mundo pierde su realidad y se convierte en una figura de lenguaje. O personagem manoelense tem suas aes reveladas para tornar possvel os mais diversos experimentos da linguagem, alm das diferentes moldagens a que a imagem submetida, numa prosa potica que exorta homem e palavra. Como conclui Paz (2003, p. 122).
El poeta afirma que sus imgenes nos dicen algo sobre el mundo y sobre nosotros mismos y que ese algo, aunque parezca disparatado, nos revela de veras lo que somos,
Os relatos poticos de Manoel de Barros, presentes em seus poemas, em sua prosa potica, em perodos diferentes de suas composies, abrangem uma vasta fronteira que de certa forma, vai da formao do mundo vida em sociedade. A origem e desenvolvimento dos homens, dos animais e plantas reaparecem com a ajuda da memria do eu-narrante. Munido desse poder o narrador pode retornar s fontes para recordar momentos significativos. Nesse esprito de sabedoria e ancestralidade, competncia lingstica e oralidade que o texto O lavador de pedra, o sexto dos quinze que compem o livro Memrias inventadas A infncia (2003), quase todo em prosa potica, vai contar histrias do povo do pantanal, histrias estas que se misturam s prprias histrias de Manoel de Barros19. Em Memrias inventadas o seu vigor literrio continua em evidncia. Utilizando-se da prosa potica, que desde o Livro de Pr-Coisas no aparecia com tanto destaque, ele lana suas memrias, mesmo que admita que so inventadas, para dar ressonncia a fatos que constituem sua identidade. O relembrar renova a vida e a arte do poeta, d concretude ao presente. Ele prprio admite: Depois de velho, a minha infncia voltou20. No entendimento de Ecla Bosi (1994, p. 60), o velho, o homem que j viveu muitos anos, quando lembra o passado no est descansando, por um instante, das lides cotidianas,
Este livro foi publicado pela casa editorial espanhola Planeta, que teve autorizao da editora pela qual o poeta contratado, no caso a Record, para esta publicao. O Memrias inventadas possui um designer arrojado e o volume vem dentro de uma caixa de papel com as pginas no numeradas, h apenas uma numerao, em algarismo romano, nas pginas que constam o ttulo do poema. As pginas esto atadas por um lao de fita de cor azul cintilante. Essas quinze histrias recuperadas so memrias do poeta, que vm acompanhadas por ilustraes da artista Martha Barros, filha do autor que tambm ilustra Ensaios fotogrficos (2000), Tratado geral das grandezas do nfimo (2001), assim como a segunda edio do Livro de pr-coisas. Esses outros publicados pela Record.
20
19
no est se entregando fugitivamente s delcias do sonho: ele est se ocupando consciente e atentamente do prprio passado, da substncia mesma da sua vida. O retorno ocorre em fases distintas: a volta infncia do poeta marcada pela sua vivncia no pantanal mato-grossense e a mocidade, marcada pelo seu tempo de escola na cidade grande. Todo esse trabalho faz surgir, em vrias de suas poesias, a figura do narrador-autor-personagem. Essa mistura mostra o desejo do autor de evidenciar o seu mundo. Para Ecla Bosi (Ibid., p. 411), o individuo que recorda: Ele o memorizador e das camadas do passado a que tem acesso pode reter objetos que so, para ele, e s para ele, significativos.
(...). Cresci brincando no cho, entre formigas. De uma infncia livre e sem comparamentos. (...). Ento eu trago das minhas razes crianceiras a viso comungante e oblqua das coisas. (MI) Quando eu estudava no colgio, interno, Eu fazia pecado solitrio. Um padre me pegou fazendo. __ Corrumb, no parrrede! Meu castigo era ficar em p defronte a uma parede e Decorar 50 linhas de um livro. (MI, IV) Nas frias toda tarde eu via a lesma no quintal. Era a mesma lesma. Eu via toda tarde a mesma lesma se despregar de sua concha, no quintal e subir na pedra. (...) Para mim esses pequenos seres tinham o privilgio de ouvir as fontes da terra. (MI, V) No quintal a gente gostava de brincar com palavras mais do que de bicicleta. principalmente porque ningum possua bicicleta. (MI, X)
Em todos os trechos acima, por intermdio da memria, h a apresentao de uma vivncia no mundo, uma apreciao e revitalizao de valores culturais esquecidos no tempo. O ato de recordar simboliza o nascimento de novas vidas, de novas perspectivas que influenciaro no devir. Tambm para Castro (1991)
O retorno ao passado, no se detendo no que a memria histrica possa oferecer como lembrana de fatos reais, ou ainda, indo alm das situaes factuais, pode oferecer experincias e iluminaes sobre a vida, sobre o existir, (...). So momentos de devaneios que atingem o ser do homem em profundidade e oferecem-lhe um conhecimento do repouso do ser em si, do ato de existir. Esses repousos do devaneio profundo oferecem ao homem ou ao poeta uma contemplao especial da existncia que a transmite, atravs de seus poemas, a outras pessoas. (Ibid., p. 191)
Esse movimento cclico em que esto a infncia e a fase adulta do poeta, no deve ser interpretado como uma espcie de autobiografia. Mesmo revirando suas memrias fsseis, elas se apresentam de maneira no homognea. Seus versos narrativos continuam marcados, com propriedade, pela linguagem inventiva. Ao comentar sobre as lembranas contidas em suas narrativas revela: No conto nada na reta, escrevo sempre nas linhas tortas, como digo, alis, num poema. Na minha poesia parece que tem muita coisa de fora, mas tudo de dentro.21. a partir desse pensamento que o ato de narrar permite que ele vena tempo e distncias para expressar-se poeticamente sobre seu habitat, o pantanal, sobre a transformao de hbitos peculiares do povo e da natureza pantaneira. No plano da expresso, essas lembranas, na maioria das vezes, so apresentadas por desvio no somente sinttico, mas, sobretudo, semntico. So esses procedimentos criativos que diferenciam a sua narrativa de qualquer outra narrativa ou crnica sobre o pantanal. o que se pode observar no texto que segue.
21
O lavador de pedra
A gente morava no patrimnio de Pedra Lisa. Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio por detrs. Pelo arruado passavam comitivas de boiadeiro e muitos andarilhos. Meu av botou uma Venda no arruado. Vendia toucinho, freios arroz, rapadura e tais. Os mantimentos que os boiadeiros compravam de passagem. Atrs da Venda estava o rio. E uma pedra que aflorava no meio do rio. Meu av, de tardezinha, ia lavar a pedra onde as garas pousavam e cacaravam. Na pedra no crescia nem musgo. Porque o cuspe das garas tem um cido que mata no nascedouro qualquer espcie de planta. Meu av ganhou o desnome de Lavador de Pedra. Porque toda tarde ele ia lavar aquela pedra. A Venda ficou no tempo abandonada. Que nem uma cama ficasse abandonada. que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. A venda por isso ficou no abandono de morrer. Pelo arruado s passavam agora andarilhos. E os andarilhos paravam sempre para uma prosa com o meu av. E para dividir a vianda que a me mandava para ele. Agora o av morava na porta da Venda, debaixo de um p de jatob. Dali ele via os meninos rodando arcos de barril ao modo que bicicleta. Via os meninos em cavalo-depau correndo ao modo que montados em ema. Via os meninos que jogavam bola de meia ao modo que de couro. E corriam velozes pelo arruado ao modo que tivessem comido canela de cachorro. Tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos era a paisagem do meu av. Chegou que ele disse uma vez: Os andarilhos, as crianas e os passarinhos tm o dom de ser poesia. Dom de ser poesia muito bom! (MI, grifos do autor)
Esse texto, baseado na experincia do narrador menino, vislumbra um tempo de profundas recordaes que marcaram sua vivncia e alteraram suas percepes. Seus relatos constituem uma tela onde se projeta a aquisio do entendimento do ser e estar no mundo. A personagem Scheerazade, do famoso livro As mil e uma noites , a cada noite criava um episdio da histria que contava para manter-se viva. Da mesma forma pode-se dizer acerca do narrador manoelense que utiliza sua memria para poder retirar do passado, do seu cotidiano anterior lies que o revivifiquem a
cada novo experimento. desse exerccio incansvel, que traz como resultado novas fabulaes, fruto de uma intensa utilizao de sua memria, que ele retira sentido e identidade. O texto em anlise trata da busca do passado, e traz como personagem smbolo o av que, alis, uma figura que aparece em diversos livros do autor. Na primeira frase a expresso A gente morava identifica o sentido memorialista da narrativa. A marca de oralidade no texto busca promover um tom familiar e procura estabelecer com o leitor uma identificao, provocando um certo grau de intimidade fazendo com que parea que um tipo de causo esteja sendo contado. Destaca-se ainda a utilizao do vocbulo patrimnio, ainda na primeira frase. Tempos atrs essa expresso era utilizada para designar pequenos povoados no interior do pas. A opo por expresses antigas intensifica o desejo do eunarrante de manter-se na linha tnue que h entre passado e presente. interessante assinalar que todos os textos que compe o livro Memrias inventadas no esto justificados, o que faz com que haja umas frases mais curtas que outras. Esse recurso possibilita depreender que a falta de constncia causada entre perodos breves e os mais longos assemelham-se ao movimento da memria posto que o relembrar no segue uma constante, no segue uma linearidade. Pode-se dizer que, de certa forma, os pensamentos vo e voltam, se misturam entre fatos ocorridos no passado e no presente. Por analogia, a escrita do autor parece que procura perfazer o caminho semelhante ao da memria. No tocante a segunda frase: Pedra Lisa era um arruado de 13 casas e o rio por detrs ocorre uma reiterao da expresso que denomina o patrimnio, como que pretendendo deixar tudo explicado. Essa reiterao se estender ao longo de toda a narrativa. H tambm a presena do vocbulo rio, um dos arquissemas do poeta. Cabe registrar que geralmente os povoados comeavam prximos aos rios, como forma de garantir seu desenvolvimento e sustentabilidade. Ainda, a imagem do rio como que ajuda a reforar as lembranas do eu. Um exemplo clssico o rio que aparece na poesia de Alberto Caeiro: O Tejo mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo no mais belo que rio que corre pela minha aldeia,/ Porque o Tejo no o rio que corre pela minha aldeia (1998, p. 215-6)
O ato de recordar intensifica a presena desse eu-narrante. Ele fala das comitivas de boiadeiros que movimentavam a regio do pantanal de Mato Grosso com o intuito de vender o gado. Esse trabalho, por sinal, precede o perodo de desmonte da carreta pantaneira, que ser abordada na anlise seguinte. Tal atividade comercial foi o meio de vida do povo pantaneiro durante muitos anos e provavelmente esse foi o motivo do av do menino narrador ter colocado uma Venda para abastecer esses boiadeiros. Mesmo porque eles comprovam de passagem. Aqui h um duplo sentido: a brevidade da estada deles e essa aquisio alimentcia que era necessria para continuassem a viagem. Essa locuo de passagem, do ponto de vista sinttico, funciona como um adjunto adverbial de modo. Na fala do menino so colocados, em forma de gradao, os apetrechos que os boiadeiros compravam: toucinho, freios, arroz, rapadura e tais. Misturam-se alimentos no perecveis com utenslios para a montaria. O curioso que este comrcio no impediu de o av praticar coisas inteis. Para ele no importava ser o dono da Venda. Ele preferia ser conhecido como o Lavador de Pedra, pois deste ato desproposital que surgem as passagens marcantes na infncia do menino. Na seqncia h um estranhamento semntico, com conotao surreal: E uma pedra que aflorava no meio do rio. Aqui a caracterstica vegetal aflorar se junta ao elemento mineral pedra. Esse aflorar provoca um encantamento lrico e instaura a imagem potica que faz lembrar o poema A flor e a nusea22 de Drummond, neste nasce uma flor no meio do meio do asfalto: Uma flor nasceu na rua! / Passem de longe, bondes, nibus, do rio de ao do trfego. / Uma flor ainda desbotada / ilude a polcia, rompe o asfalto. na tessitura do texto potico que a imagem se materializa. Atravs de uma gil prosa potica, Barros resgata histrias inventadas que so tranadas pelo fio da memria. Estas histrias possuem uma liberdade rtmica, sinttica e frsica prximas das suas melhores poesias. A expresso no meio do rio, outro exemplo de mais um adjunto adverbial, desta vez de lugar. O curioso aqui que o rio agora apenas acessrio, as atenes
22
Este poema compe o livro Carlos Drummond de Andrade - Antologia potica, 24 ed. 1990.
antes voltadas para ele esto para a pedra, que sintaticamente forma um objeto direto. A partir do momento em que o narrador menino diz: Meu av, de tardezinha, ia lavar a pedra, ele retorna ao ttulo do poema. Todavia esse episdio faz lembrar um compromisso ldico de fim de expediente. Cada um, sua maneira, procura um tipo de lazer, o av de tardezinha, opta por lavar uma pedra que estava no meio do rio. Novamente a presena do adjunto adverbial de tempo, que remete excentricamente ao fato insano do av em uma explicao non sense. O motivo as garas que pousavam e cacaravam na pedra. O neologismo cacaravam formado pela palavra caca que significa algo sujo. Na seqncia, o narrador, j no incio da frase aparece se explicando. Engraada a aparente explicao de cunho cientfico: o cuspe das garas tem um cido que mata no nascedouro qualquer espcie de planta. Na orao Meu av ganhou o desnome de Lavador de Pedra, a palavra desnome formada por uma derivao prefixal contendo uma carga de negao - des- acrescida ao substantivo nome. O referido prefixo apesar de ser uso comum no portugus aqui est inserido como um neologismo dentro de uma tradio literria de origem popular. Como observa Nilce Martins (1989, p. 121) esse prefixo desde as cantigas de escrnio j revelava a sua vitalidade. No tocante a profisso do av sua importncia est realada pelo uso das iniciais maisculas Lavador de Pedra. Vindo dessa maneira parece sugerir, de forma irnica, que um servio pomposo, portanto seria mais importante que ser dono de uma Venda. J foi mencionado em uma passagem anterior que o rio foi substitudo em importncia pela pedra, que no crescia nem musgo. As tarefas cotidianas do av eram completadas com esse ato incomum e solitrio, que merece esclarecimentos com respostas parecidas as que se do s crianas quando fazem algumas perguntas absurdas. As atividades nessa Venda parecem no ter sido to infrutferas, pois ela ficou no tempo abandonada. Talvez fosse pelo fato dele no dar mais a importncia devida ou porque as comitivas de boiadeiros por l no mais passavam. Uma coisa certa ela ficou que nem uma cama ficasse abandonada. Essa
comparao pode ser analisada da seguinte forma: a cama um local de descanso para o corpo, um porto seguro para as duras lides do dia-a-dia e, por isso, ela deve ser arrumada todos os dias, na medida em que fica sem uso passa a no mais ter a utilidade primeira. Foi o que aparentemente aconteceu com a Vendo do av. Essa modalidade de comparao, que parece ser ingnua, na verdade guarda uma lio de vida a de que nas insignificncias que esto os valores. O narrador menino procura explicar porque acabou o movimento da Venda: que os boiadeiros agora faziam atalhos por outras estradas. Essa explicao remete a uma curiosa conseqncia de cunho existencial: A Venda por isso ficou no abandono de morrer. E continua sintaticamente os adjuntos adverbiais, no final dessa expresso, com mas uma belssima imagem. oportuno lembrar que dentre as funes do advrbio esto a de modificar o verbo (no exemplo acima), o adjetivo e o prprio advrbio. Quando pareciam encerrar as lembranas do menino reaparecem os andarilhos que ainda passavam pelo arruado. Talvez pelo fato destes no terem propsitos comerciais podiam parar e prosear com o av. nessa prosa, nessa observao do sujeito av que a memria do menino Manoel registrou vrios dos seus encantamentos. Como arqutipo do velho sbio o av ensina ao menino que o homem deve procurar no contato com as coisas que esto ao redor, nas coisas gratuitas, valores essenciais ao ser. A presena do av uma proposta, um caminho potico para o neto, como expresso de anseios por vastos horizontes de liberdade, compreende Castro (1991, p. 201). H ainda na presena dos andarilhos que paravam para prosear outro motivo: o de dividir a vianda, a marmita que o av recebia. Toda essa aproximao recupera o av do estado de abandono em que ele se encontrava. Parece que ele que era a prpria Venda abandonada. E a utilizao do adjunto adverbial de tempo agora, comeando a orao expressa a importncia e o estado de graa em que se encontrava o av. Ele morava na porta da Venda, debaixo de um p de jatob. Essa rvore, que abundante nos cerrados, possui razes profundas, seus galhos longos e encorpados produzem sombra, alm disso, ela conhecida pela sua longevidade. A escolha do av em ficar morando debaixo
da rvore produz um simbolismo de unio. A associao entre os smbolos representativos para o av como a gua (rio), a pedra e agora a rvore (terra) promovem um ritual de fecundao entre os seres e a coisas que esto no mundo. Chevalier & Gheerbrant (2005, p. 84) entendem que Pelo fato de suas razes mergulharem no solo e de seus galhos se elevarem para o cu, a rvore universalmente considerada como smbolo das relaes. Desse modo, o estar debaixo da rvore significativo, pois parte da o estado de graa que adquire o av. Agora ele podia observar os meninos rodando arcos de barril, em cavalode-pau, jogando bola de meia e corriam velozes pelo arruado ao modo que tivessem comido canela de cachorro. Utilizando-se de uma seqncia anafrica ao final de quatro frases, da expresso popular ao modo que, ele apresenta algumas comparaes que pe de um lado a realidade e de outro a fantasia do menino. Arcos de barril versus bicicleta; cavalo-de-pau versus ema; bola de meia versus bola de couro e a ltima de forma engraada, baseia-se nas expresses populares, corriam velozes versus comido canela de cachorro. Todas as frases anteriores utilizam o seu principal rgo de eleio: o olhar. O verbo ver aparece no passado imperfeito. O tempo verbal neste texto predomina ora no perfeito ora no imperfeito. Essa quantidade de oraes coordenadas vai culminar com tudo isso mais os passarinhos e os andarilhos era a paisagem do meu av. Para a lembrana do narrador menino essas imagens todas eram grandiosas. A expresso oral tudo isso mostra bem a dimenso dessa magia provocada pelas aes desencadeadas no patrimnio de Pedra Lisa. Ele encerra o texto com duas oraes subordinadas substantivas. As ltimas frases significativas desse texto so: Chegou que ele disse uma vez: Os andarilhos, as crianas e os passarinhos tm o dom de ser poesia. A primeira traz a marca forte da oralidade. A segunda traz uma espcie de gradao, que se acentua no termo intermedirio, no caso as crianas. Pois os andarilhos no tm razes, no tm um rumo certo. Os pssaros migram de um ponto para o outro. Somente as crianas possuem um lugar certo e precisam deste para imprimir
marcas de identidade. E todas essas figuras so sagradas pelo poeta em suas mais diversas obras. Talvez por isso tenham o dom de ser poesia. Em todo o texto significativa a mudana de ambiente, de situao. O Lavador de Pedra, que antes exercia seu ofcio solitrio, que preenchia seu tempo cuidando de uma pedra do meio do rio, no est mais s. Ele revisitado nas memrias do poeta que se dispe a descobrir as razes de sua poesia. Manoel de Barros, observa novamente Castro (Ibid., p. 195), descobre seu pendor inato para as coisas da terra como uma energia ancestral impregnada em seu ser: a solido das vastides e a fora da terra passam a compor um substrato, mediante o qual se modela sua viso de mundo. Mais uma vez Barros instaura a possibilidade de que a poesia d-se nos despropsitos. Ela deve estar impregnada de cheiro, gosto, sabor, de cho, trapos, andarilhos, loucos, solitrios. Para Octavio Paz (2003, p. 87) En labios de nios, locos, sabios, cretinos, enamorados o solitarios, brotan imagenes, juegos de palabras, expresiones surgidas de la nada. A poesia de Manoel de Barros tambm se manifesta no uso expressivo de contedos que evocam passado e presente. H momentos em que os ecos do passado, que se materializam no tecido potico, do um ar de nostalgia s lembranas do tempo da infncia vivida no Pantanal. Em o Lavador de Pedra, a exemplo de vrios textos do poeta as palavras iluminam o caminho de vastos horizontes e liberdade de linguagem. Por tudo isso ele at poderia ter dispensado a ltima frase. Parece rascunho. Um comentrio desnecessrio. Deve ter sido um descuido do autor ou fragmento solto da memria do poeta-menino.
Antes de passar apresentao e anlise do segundo texto deste captulo pertinente reforar alguns aspectos de sua prosa potica, mormente porque as revelaes feitas pelo eu-narrante esto baseadas em elementos constitutivos de sua memria. So acontecimentos vividos pessoalmente que se integram a acontecimentos vividos pela coletividade qual ele pertence. Michael Pollak (1992, p. 201) explica que a memria seletiva, nem tudo fica gravado, nem tudo fica registrado. Isso indica que muito da escrita do eu depende de sua imaginao, da fantasia e do seu experimento com a linguagem. A memria, nas narrativas poticas de Manoel de Barros promove um constante jogo entre o vivido e o imaginado. Nesse prisma o narrador se dedica a fazer um aprofundamento em suas viagens pelo pantanal mato-grossense. Para demonstrar que ele um viajante, no ttulo do Livro de pr-coisas ele explica que ir ser apresentado um roteiro para uma excurso potica no pantanal. Atravs de suas viagens ele ir garantir a transmisso de fatos gravados em sua memria. Mas no s isso, uma linguagem trabalhada com requintes metafricos e metonmicos. Junta-se ao fato da sua preferncia em sagrar o nfimo, o ordinrio e, sobretudo, as coisas sem importncia so bens de poesia23. (GEC p.181) O ato de rememorao acontece, principalmente, pelo aspecto visual. Graas ao seu olhar penetrador o eu-narrante alcana objetos, pessoas e lugares para retratar os outros encadeamentos que esto postos vida natural que habita a regio pantaneira. por intermdio do ver e ouvir que surge o reviver. Ademais, como se ele seguisse o fio de Ariadne das suas lembranas para trilhar caminhos que elucidam o estrato cultural do povo nativo. Para Edson Santos de Oliveira (1988, p. 115), em seu estudo sobre questo autobiogrfica em Graciliano Ramos, Lembrar tecer fios do passado que no foram tecidos, mas que podem ser retecidos no presente, reatualizando e resgatando a histria.
Este trecho faz parte do livro Matria de Poesia (1974), um dos dez livros includos no seu Gramtica Expositiva do Cho (Poesia quase toda).
23
O texto escolhido para mostrar esse cenrio resgatado do universo pantaneiro no qual se materializam as lembranas desse eu feito destroos de uma natureza potica intitula-se
Carreta pantaneira
As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque no foram movidas. Ou ento, melhor dizendo:desacontecem. Dez anos de seca tivemos. S trator navegando, de estado, pelos campos. Encostou-se a carreta de bois debaixo de um p de pau. Cordas, brochas, tiradeiras com as chuvas, melaram. Dos canzis, por preguia, alguns faziam cabos de reio. Outros usavam para desemendar cachorro. Os bois, desprezados, iam engordando nos pastos. At que os donos, no resistindo tanto gordura, os mandavam pro aougue. Fazendeiro houve, aquele um, que, havendo de passear pelo Europa, enviou bilhete ao gerente: Venda carreta, bois do carro, cangas de boi. sombra do p de pau a carreta se entupia de cupim. A mesa, coberta de folha e limos, se desmanchava, apodrecente. Chegaram a tirar mel na cambota de uma. Cozinheiros de comitiva, acampados debaixo da carreta, chegavam de usar o cabealho para tirar gravetos. Enchiase o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes. Debaixo da carreta, no cho fresco, os buracos na areia, para onde os cachorros e os perus velhos corriam fugindo do sol. E a carreta ia se enterrando no cho, se desmanchando, desaparecendo. Isso fez que o rapaz, vindo de fora pescar, relembrasse a teoria do Pantanal esttico. Falava que no Pantanal as coisas no acontecem atravs de movimentos, mas sim do no-movimento. A carreta pois para ele desaconteceu apenas. Como haver uma cobra troncha. (LPC, p. 31-2)
Nas memrias, tanto individual quanto coletiva, existem pontos ou marcos que segundo Pollak (Ibid., p. 202) so relativamente invariveis, imutveis. A carreta, smbolo que representa valores culturais do povo pantaneiro, serve como
referncia para o movimento dialtico que o narrador faz entre passado e presente. Ademais, para T. Todorov (2002) tanto os indivduos quanto os grupos tm necessidade de conhecer seu passado, pois disso depende sua identidade. Ele conclui: o indivduo sem memria perde sua identidade, deixa de ser ele mesmo (Ibid., p. 95). Neste sentido o narrador em Carreta Pantaneira evoca, nos liames da narrativa, a memria que mantm o fio de sua existncia. Trata-se ento, na concepo de Norval Baitello Junior (1999, p. 40), de um enorme corpus de informaes acumuladas, no na memria gentica da espcie, mas na memria de uma sociedade. Segundo Ecla Bosi (1994, p. 53) A lembrana a sobrevivncia do passado. O passado, conservando-se no esprito de cada ser humano, aflora conscincia na forma de imagens-lembrana, assim, ao mostrar a desapropriao das funes primeiras da carreta o eu-narrante revela um tempo perdido pelo homem do lugar. A partir das lembranas desse eu a carreta re-visitada atravs de suas novas funes, pois lembrar, salienta a autora (Ibid, p. 55) no somente reviver, mas, refazer, reconstruir, repensar. A carreta, no texto em anlise, tem como caracterstica aparente a desfuncionalidade operacional, e o que visto vem apresentado por uma carga de um humor non-sense acompanhada de algumas ironias: Dos canzis, por preguia alguns faziam cabos de reio. Outros usavam para desemendar cachorro. (...) sombra de p de pau a carreta se entupia de cupim. (LPC, p. 31). A carreta, tambm conhecida como carro de boi, foi o primeiro veculo de transporte utilizado no Brasil, trazido na poca do descobrimento. Com o auxlio dela, um elemento da cultura do interior do Pas, foram construdos os primeiros captulos do povoamento e da agricultura no Brasil. Um exemplo de como se apresentam as novas utilidades da carreta e o que representa para a comunidade pantaneira e o seu ecossistema pode ser observado na citao abaixo:
Chegaram a tirar mel na cambota de uma. (...) Enchia-se o rodado de pequenas larvas, que ali se reproduziam, quentes. Debaixo da carreta, no cho fresco, os buracos na areia, para onde os cachorros e os perus velhos corriam fugindo do sol. (LPC, p. 32).
Dentro do cenrio pantaneiro, o no-movimento origina e preserva vidas. Os novos acontecimentos vivificam os valores desse utilitrio, que estava perdido no tempo. Esse processo, que aparentemente no tem importncia alguma para as pessoas e, talvez por isso, seja matria de poesia, traz para o presente a possibilidade de re-visitar algo que, no imaginrio das pessoas, havia perdido o estatuto de smbolo. A exemplo do texto Mundo renovado, analisado no captulo anterior, no Carreta pantaneira esse no-movimento apresentado por um silogismo potico: As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque no foram movidas. Ou ento, melhor dizendo: desacontecem. H duas premissas nas frases iniciais e a terceira representa a concluso desse silogismo. As coisas, anunciadas na primeira frase, remetem a tudo que possa compor o cenrio narrado. Trata-se de coisas em estado primitivo, em estado de acontecimento, de no-acontecimento, como tambm so coisas casuais, pictricas, mticas e imagticas, oriundas da memria do eu-narrante.
Progressivamente o verbo acontecer aparece quatro vezes em apenas trs frases, no presente do indicativo. Na ltima ele se transforma em um neologismo: desacontecem. Conforme j foi mencionado em outro momento deste trabalho, tal recurso bastante utilizado pelo poeta, principalmente com o uso do prefixo des indicando uma negao. O acrscimo desse prefixo com esse sentido vem a ser uma licena potica que sinaliza para uma potica de desconstruo, de desmanche e de destruio com o intuito de ressemantizar o seu cdigo lrico. Tambm se destacam as palavras aqui, advrbio de lugar, junto ao primeiro verbo e a forma nominal paradas. Sintaticamente o resultado uma orao coordenada sindtica conclusiva: desacontecem. Essa concluso do
silogismo tem incio com uma locuo conjuntiva ou ento, seguida de uma marca de correo textual melhor dizendo, como querendo aferir uma autenticidade explicao para a maneira diferenciada que a vida toma forma no pantanal. Trata-se de uma premissa do absurdo dentro de uma potica do absurdo, materializada pela conjuno explicativa porque que, na verdade, nada explica s age de maneira pleonstica, pois as coisas acontecem paradas, no foram movidas. Em um segundo momento, o segundo pargrafo, iniciado por uma orao absoluta, o verbo transitivo direto tivemos elucida o fato de que o narrador est dentro da narrativa. Ele se apresenta como um narrador-protagonista, pois ele quem narra vivencia os fatos. De sua voz so suscitadas as lembranas do passado e sua expectativa para o futuro, pelo seu olhar microscpio, observador, mostrado o novo cotidiano do lugar em que ele est. Suas inquietaes e reflexes colocam-no como pea integrante da histria. Todo o desenrolar centrase nos momentos de sua vivncia interior. Por isto importa aqui revelar a voz do narrador, pois s as vozes, segundo Leite (2003, p. 79) convocam, articulam, integram, organizam, estabelecem (...) uma paisagem, um Pantanal encantado, em suas lembranas, em suas histrias. Notadamente do segundo pargrafo que se instaura o movimento do narrador, desse modo, nas oraes Dez anos de seca tivemos. S trator navegando, de estado, pelos campos marca a mudana climtica que sofreu a regio, o que ocasionou a mudana de hbitos das pessoas. Por conta disso, a carreta foi substituda pelo trator, um dos indcios do desenvolvimento agrcola dos Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Essa referncia temporal aparece sob a forma de uma catacrese, posto que em funo da longa estiagem no h espao para barcos e canoas e sim para tratores que navegam pelos campos. Ao mesmo tempo, a exemplo do sofrimento do nordestino, esses fenmenos naturais se repetem a cada determinado perodo. A ao destrutiva do homem muitas vezes s piora e amplifica os estragos na natureza pantaneira. Esse relato do narrador mostra que o tempo e o espao articulam-se de forma concatenada nas narrativas de tom memorialista. A descrio do ambiente
est embasada na sucesso cronolgica que movimenta a fauna e flora pantaneira. O ambiente alterado pelo tempo cronolgico exemplifica que a testemunha desses acontecimentos se identifica como pessoa do lugar. Mesmo sendo identificado tambm como um viajante, seus relatos denunciam seu reencontro com as impresses e sentimentos de um tempo anterior ao da narrativa. importante lembrar que grande parte do territrio pantaneiro fica embaixo dgua no perodo de cheia. Isso j foi mostrado atravs do texto Mundo Renovado: O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. (...). Choveu tanto que h ruas de gua. Sem placas sem nome sem esquinas. (LPC, p. 29). Essa imagem foi alterada, porm a carreta, anunciada em crnicas e versos que revelam a cultura do povo pantaneiro ser animalizada, passar por diversas metamorfoses. O pargrafo seguinte inicia com um verbo transitivo direto encostou. Na seqncia, h uma gradao nominal: cordas, brochas, tiradeiras. Essa gradao marca a utilizao de expresses regionais que identificam para o ouvinte/leitor desse testemunho, os nomes dos utenslios que originalmente compunham a carreta. Atento igualmente para a ordem em que esto dispostos esses utenslios, escolha essa que promove e exalta o ritmo sonoro da narrativa em nvel de poesia. Tal procedimento caracterstico de quem trabalha com prosa e poesia ou de quem trabalha com poema em prosa, a exemplo do poeta Manuel Bandeira em Tragdia brasileira quando ele apresenta a seqncia dos nomes dos bairros, no Rio de Janeiro, pelos quais Maria Elvira e o seu marido moraram e em que a mesma teve amantes. Na terceira frase, ainda analisando o segundo pargrafo, o verbo faziam, no passado imperfeito, remete as cenas descritivas. Ele est posto para realar as palavras e/ou expresses pantaneiras que aparecem efetivamente ao longo de todo o relato como: cabos de reio e desemendar cachorro. A estrutura frsica desta ltima vem composta por uma orao subordinada adverbial final. Essas outras utilidades achadas para os objetos da carreta mostram que as mudanas ocorridas na estrutura social do povo pantaneiro alteraram a paisagem e a
identidade pessoal, situao essa refletida na transformao do comportamento dos habitantes do lugar. Ainda nesta terceira frase o pronome indefinido alguns e outros substituem a identificao dos personagens dessa histria. Esse procedimento tem como resultado que toda a ateno passa a estar voltada para a carreta, em outras palavras, ela a personagem principal desse relato em prosa potica, apresentada como smbolo e expresso da fora da vida que ressuscita para uma contnua novidade. Nesse mesmo pargrafo o uso da ironia se amplia, por parte do narrador, com o intuito de contar de que modo os fazendeiros, que antes se serviam da carreta, comportam-se diante de algo que para eles parece no ter mais uma necessidade imediata: Os bois, desprezados, iam engordando nos pastos. At que os donos, no resistindo tanta gordura, os mandavam pro aougue. Sintaticamente, a locuo verbal iam engordando pode ser substituda por engordavam, o que remete ao adjunto adverbial de lugar nos pastos. O vocbulo gordura sugere o estado de inrcia em que se encontram esses animais, pois, sem a carreta para puxar, eles esto sem utilidade. Esses fatos intensificam o desmonte, a desfragmentao da carreta e de seus acessrios e parecem comprovar que tudo o que for insignificante (como caso da histria contada sobre o desuso da carreta), que est em estado de putrefao ou metamorfose so materiais essenciais para a potica singular de Barros. Trata-se de uma obra est fundamentada na desrealizao do objeto. Nesse sentido Dalate (1997) entende que esse projeto do poeta
incorpora o acaso (...), procura a destruio da ordem atravs da busca do absurdo, (...), do primitivo e do elementar, introduzindo o conceito de poesia pura, no sentido de uma disposio inaugural, afastadas propositalmente todas as possibilidades de a poesia veicular uma verdade, servir a algum tipo de prtica, ou conter intenes didticas . (Ibid., p.7)
Ainda, na quinta frase, seguindo o fio da narrativa, h uma referncia ao fazendeiro, que aparece seguido de um pleonasmo formado pelos verbos houve, havendo, o que faz lembrar a oralidade do texto. O que se tem por meio desse recurso a presena da aliterao da consoante labiodental /v/, que expressa a musicalidade prpria do rodar da carreta. Ou seja, a madeira do eixo, girando na madeira do encaixe, produz um som contnuo, como um gemido melodioso, o que era motivo de orgulho para seus condutores. Em um trecho adiante, provavelmente com o intuito de ressaltar o comportamento do fazendeiro, o eu-narrante, de forma irnica, conta que o referido personagem em uma viagem pela Europa, continente que representa ser um smbolo de desenvolvimento cultural e social do mundo, munido de uma atualizao cultural, d uma ordem ao seu gerente: Venda carreta, bois do carro, cangas de boi. Por intermdio dessa construo o poeta parece incorporar uma das principais conquistas do modernismo brasileiro, principalmente no que tange a enxugar as frases, construindo perodos breves de estilo telegrfico. A mensagem, transmitida fornece um quadro sinttico do desligamento do fazendeiro com a tradio e ao mesmo tempo revela que ele no pretende preservar um dos itens que lhe ajudam a ter uma noo de sua identidade. Seu modo de pensar indica que ele possui uma viso prtica das coisas. As quinquilharias, como a carreta encostada, sem uso, no tm funo, no tm valor. Seu comportamento, diferentemente do poeta Manoel que valoriza os objetos a partir do momento em que eles perdem sua funo prtica, exemplifica uma possvel incompatibilidade entre progresso e singularidades regionais. Certamente as preocupaes e ensinamentos do fazendeiro tambm no so os mesmos do personagem Bernardo, apresentado no captulo anterior. No quarto pargrafo h uma hiprbole personificada: a carreta se entupia de cupim. Alm de essa expresso pressupor sua falta de uso traz tambm uma outra ironia. A pressuposio dessa possibilidade intensificada no pargrafo a ponto de conduzir a carreta a um translado de funes. Tanto o neologismo apodrecente como tambm a frase enchia-se o rodado de pequenas larvas, reforam esse estado de inutilidade, de putrefao da carreta. Portanto, por
intermdio dessas mudanas que Manoel de Barros procura valer-se de seus conhecimentos acerca do pantanal mato-grossense para organizar uma potica que se constitui e se preocupa em dar forma a sentimentos corredios. Ele, como um cronista de um tempo perdido, analisa e demonstra a fora da natureza que consegue encontrar seu prprio movimento. Ento que o poeta, desde o segundo pargrafo, afasta esse eu-narrante com o objetivo de realar ainda mais as descries das ocorrncias quotidianas da natureza pantaneira. Nesse percurso, os recursos morfossintticos so expressivos: Debaixo da carreta, no cho fresco, os buracos na areia, para onde os cachorros e os perus velhos corriam fugindo do sol. Nesta frase h muitos advrbios ou locues adverbiais, sendo que a expresso fugindo do sol se apresenta como uma orao subordinada adverbial final. No cerne dessa nova valorizao e redescobrimento funcional da carreta a gradao verbal se anuncia celeremente: E a carreta ia se enterrando no cho, se desmanchando, desaparecendo. Esses verbos, no gerndio, indicam que o processo de desmaterializao da carreta ainda est acontecendo. Surge uma imagem plstica emblemtica. A inrcia neste espao dinmica, serve de impulso para a vida do lugar. Para Gaston Bachelard (apud Bosi, 1999, p. 18) preciso descer aos modos da Substncia a terra, o ar, a gua, o fogo -, para aferrar o eixo natural de um quadro ou de um smbolo potico. Portanto, o que se compreende por intermdio dos caminhos pantaneiros que a volta ao passado torna-se apenas um dos recursos para se vislumbrar o presente. no imaginrio do narrador que se estabelecem novas e vigorosas composies para esse mundo natural que se mostra como agente catalisador, propulsor e simblico. A partir dessas consideraes, v-se que Manoel de Barros em Carreta pantaneira mostra toda a ao da natureza com o fito de desmitificar a teoria do pantanal esttico. Enquanto isso, no percurso do quinto pargrafo, a orao (grifada) Falava que no Pantanal as coisas no acontecem atravs de movimentos, mas sim do no-movimento, apresenta-se como subordinada substantiva objetiva direta, a qual revela a possvel sabedoria do rapaz que vindo de fora, tenta explicar o que acontece no Pantanal. O valor expressivo do termo teoria reside em parte no fato
de que o rapaz adquiriu este conhecimento atravs de livros, j que o narrador deixa claro que ele estava ali para pescar, como fazem milhares de turistas que visitam o pantanal. Abbagnano (2005, p. 952) traz que o termo teoria pode ser explicado da seguinte forma: Uma condio hipottica ideal, na qual tenham pleno cumprimento normas e regras, que na realidade so observadas imperfeita ou parcialmente. O rapaz sabe que a vida no pantanal se d atravs do nomovimento porque ouviu falar ou talvez tenha lido. Uma coisa pode se assegurar: ele no consegue enxergar toda a movimentao que se d ao longo dessa narrativa dito esttica, que chega a ser nfima, insignificante, diria para os nonativos. O desfecho sinttico dessa narrativa se d por uma orao absoluta: A carreta, pois para ele desaconteceu apenas. O termo apenas funciona como um operador argumentativo de restrio, posto que est no sentido de anunciar uma explicao simplria para a desfuncionalidade da carreta. No ato de narrar fica evidenciado que as definies tericas delimitam o espao do homem moderno. Seu conhecimento parece advir do conhecimento de outros, o verbo falavam, no passado imperfeito, sugere isso. Quem falou no importa. O que fica a busca de uma resposta para o que acontece. O narrador encerra seu trajeto com uma comparao explicativa: Como haver uma cobra troncha. Uma comparao singular. Ele tenta esclarecer o nomovimento por intermdio de um dizer popular, prprio do povo da zona rural. Essas pessoas utilizam a expresso gua troncha, para se referir a um animal que nasce com alguma parte do corpo mutilado. O curioso que ao trocar o termo gua por cobra, o narrador refora ainda mais o estranhamento dessa analogia, pois assim como no existe uma cobra troncha, pois esses rpteis denominados cefalotrax so formados pela fuso entre cabea e corpo, ou seja, tem uma s parte, no existe tambm um pantanal esttico. As teorias esto equivocadas. Os olhares sobre o pantanal esto equivocados. A verdade que a percepo sobre a natureza no pode se restringir to somente sobre seu carter natural, no se pode v-la sem o intermdio de outras esferas. Para representar os espaos, a
natureza, o narrador manoelense conta que no mundo pantaneiro todas as coisas se relacionam, amalgama-se e adquirem existncia e substancialidade.
Concluso
Ao longo deste trabalho procurei apresentar a prosa potica de Manoel de Barros no apenas como um gnero diferenciado da categoria narrativa, mas sim como um trabalho que o autor realiza sem a necessidade de buscar ou repetir frmulas consagradas de crnicas pantaneiras. O imaginrio popular apenas um ponto de partida para suas memrias recuperadas. Nesse prisma ele caminha por uma estreita ponte entre o popular e o erudito, entre o sagrado e o profano potico, entre a forma e a expresso literria. Das obras selecionadas possvel afirmar que compem um mosaico lrico, erguido entre as fronteiras da prosa e da poesia. No por acaso tratou-se disso no primeiro captulo. Foi um captulo em que se observou os conceitos de Octavio Paz, Paul Valry, Hugo Friedrich, dentre outros autores de teoria da poesia, como tambm de Mikhail Bakhtin, Tzvetan Todorov e Walter Benjamim e seus estudos sobre os textos em prosa. Tudo o que foi dito talvez no tenha servido para elucidar suficientemente o que vem a ser a prosa potica. Muitos poetas modernistas adotaram o poema em prosa, porm poucos escreveram prosa potica. Nesse sentido procurei mostrar que Manoel de Barros adota-a desde as suas primeiras obras. Produzido o captulo com o auxlio de vrios tericos, procurei, no segundo captulo adentrar efetivamente na anlise de textos em prosa potica. Conforme discusses apresentadas, elas possuem qualidades e caractersticas prprias da poesia, mantendo elementos da prosa. No lhes faltam o ritmo, a entonao, a melodia e os traos imagticos do gnero lrico. Isso foi demonstrado em poemas e fragmentos de diversos ttulos, assim como uma anlise estilstica de dois textos do Livro de pr-coisas: Mundo renovado e No presente. No primeiro texto procurei mostrar os caminhos de um mundo que se refaz, que se multiplica apenas com a fora da natureza, no caso o Pantanal. Este espao surge permeado de revelaes mticas, de narrativas que concentram todo o
encantamento produzido pela celebrao da natureza pantaneira, como tambm a incorporao do homem pela natureza. No segundo, apresentei Bernardo, um personagem forte, que se sustenta como personagem mtico na medida em que celebrado como um guardio dessa natureza, desse espao. Ele est l. Do outro lado da folha contempla os nossos silncios. Isso o mitifica. Isso o eterniza. Foi o captulo que mais exigiu de mim um desprendimento e com o qual mais me realizei no exerccio de anlise literria, porque antes de iniciar a pesquisa busquei o Bernardo extra-literrio acreditando que poderia encontrar um homem incomum, com ares de um ser encantado, que conversasse com os animais. Cheguei bem perto e descobri que Bernardo s existe e existiu na voz potica de Manoel de Barros. Ele o ser que se torna poesia pois Ele faz um encurtamento de guas / Apanha um pouco de rio com as mos e espreme nos vidros / at que as guas se ajoelhem. (GA, p. 10) No terceiro captulo, lembrei-me do fio de Ariadne, a qual conhecida como Senhora dos labirintos. Segunda consta, ela quem tem a idia d a Teseu, seu amado, o fio que lhe permitiria sair do labirinto onde vivia o Minotauro. Da adveio o ttulo Os fios da memria de um pantaneiro. Dois textos de cada um dos livros foram escolhidos: O Lavador de Pedra do livro Memrias inventadas A infncia e Carreta pantaneira, do Livro de pr-coisas . Nestes, fica clara a opo do poeta pelo resgate da memria, pelo encantamento atravs da recuperao de fatos e cenas de um tempo marcado pela vivncia em torno da natureza pantaneira. Surge a figura do av, normalmente um ente querido das crianas, e cuja figura o menino Manoel canta e encanta. Do patrimnio de Pedra Lisa para o conhecimento do leitor, vm desfiados esse fios de memria. A partir de uma situao inslita, lavar uma pedra no meio do rio, conhece-se a trajetria do av sob os olhos do eu-narrante. No h como ficar alheia s situaes descritivas e poticas que ele vai apresentando. Aqui ele redescobre os prazeres da infncia sob a tica do outro. o novo que conta sobre o velho. a novidade que chega pela recuperao de imagens poticas da infncia. O segundo texto do terceiro e ltimo captulo, traz a carreta pantaneira. Smbolo da poca da colonizao primeiro veculo presente no interior do Brasil.
Na potica de Barros ela passa de uma situao de aparente desfuncionalidade para uma nova aplicao. com este texto que a teoria do pantanal esttico desmitificada. Volta a importncia e a discusso do mito no imaginrio popular. O narrador apresenta uma fotografia em movimento ou desmovimento (pensando em Barros). O espao contagiado pela reproduo de um certo movimento quando diz que as coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. A carreta vai desfragmentando-se, perdendo o estatuto de smbolo e, no lugar dela, surge um desacontecimento. a sua lenta agonia que move o eixo da recordao. As memrias fragmentam-se e depois se recompem no inconsciente formando a memria coletiva, as memrias inventadas, recuperadas da infncia. Aps todas essas consideraes, quero reiterar que a prosa potica de Manoel de Barros se sustenta como toda sua produo. O espao natural vai se apresentando como encantado e mtico a ponto de florescer em poema. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras uma solenidade de amor (MI, IX), ensina o poeta. por esse entendimento que a linguagem em Barros torna-se imagem. E por intermdio dessas imagens que Bernardo capaz de acolher o horizonte e de guardar em seus cabelos seu fumo, seus cacos de vidro, seus espelhinhos, alm de aplainar as guas (LPC, p. 41-3). Penso que por isso Octavio Paz (2003, p. 124) afirme: Ls imgenes poticas poseen su propia lgica y nadie se escandaliza e, ainda, El lenguaje traspasa el crculo de los significados relativos, el esto y el aquello, y dice lo indecible: las piedras son plumas, esto el aquello. (Ibid., p. 126). Manoel de Barros isso, seja na poesia ou na prosa potica, suas memrias e mitos se eternizam cada vez mais na Literatura Brasileira. Na arte de Barros, explicar a estrutura da natureza pantaneira, sua esfera encantada o mesmo que contar a histria da criao do mundo. Nesse contar a poesia monoelense explora novas maneiras de ser e dizer, de revelar e velar, por intermdio de uma linguagem de combinaes imprevisveis, os traos de um sujeito lrico que se refaz a cada novo experimento.
Referncias bibliogrficas
I.
_________. Exerccios de ser Criana. Rio de Janeiro: Salamandra, 1999. ______. Gramtica expositiva do cho. 2.ed. So Paulo: Civilizao Brasileira, 1992. _________. Livro de pr-coisas: roteiro para uma excurso potica no Pantanal. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 1997. __________. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1996. __________. Memrias inventadas A infncia. So Paulo: Planeta, 2003. __________. O Guardador de guas . So Paulo: Art Editora, 1989. __________. Tratado geral das grandezas do nfimo. Rio de Janeiro: Record, 2001.
II.
ANDRADE, Mario de. Macunama: o heri sem nenhum carter. Texto revisto por Tel Porto Ancora Lopez. Belo Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas, 1997. DRUMMOND DE ANDRADE, C. A flor e a nusea. In:---Antologia potica. 24 ed. Rio de Janeiro: Record, 1990. MELO NETO, J. C. de. O co sem plumas. In: ---Serial e Antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. PESSOA, Fernando. 16 reimpresso da 3.ed. Poemas completos de Alberto Caeiro. In: Obra potica. Org., intr. e notas de Maria Aliete Galhoz. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998.
III.
ARISTTELES. Potica. Sel. textos: Jos Amrico Motta Pessanha. Trad. Eudoro de Souza. So Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os pensadores). BACHELARD, Gaston. A potica do espao. Trad. Antonio de Pdua Danesi. So Paulo: Martins Fontes, 1989. BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relgios: ensaios sobre comunicao, cultura e mdia. 2 ed. So Paulo: Annablume, 1999. BARBOSA, Luiz Henrique. Palavras do cho: um olhar sobre a linguagem admica em Manoel de Barros . So Paulo: Annablume/ Belo Horizonte: Fumec, 2003. BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica a teoria do romance. 3.ed. So Paulo: EDUNESP, 1993. ______________. Problemas da potica de Dostoievski. Trad. Paulo Bezerra. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2005. BARTHES, Roland. O bvio e o obtuso: ensaios crticos III. Trad. La Novaes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. BARROS, Diana Luz Pessoa. Dialogismo, Polifonia e Enunciao. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, Jos Luiz (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin. So Paulo: Editora da Universidade de So Paulo, 1999, p. 1-10. BLANCHOT, Maurice. O espao literrio. Trad. lvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Os Pensadores. Trad. Erwin Theodor Rosental. So Paulo: Abril Cultural, 1975. Vol. XLVIII. pp. 63-81 BERND, Zil. Literatura e identidade nacional. 2. ed. Rio Grande do Sul: UFRGS, 2003. BBLIA SAGRADA. Edio Pastoral. So Paulo: Sociedade Bblica Catlica Internacional e Paulus, 1990.
BOSI, Alfredo. O Ser e o Tempo na Poesia. 11 ed. So Paulo: Cultrix, 1999. BOSI, Ecla. Memria e Sociedade: Lembranas de velhos. 3 ed. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. BRASIL, R., AZEVEDO, R. Bravo!. So Paulo, ano 1, n. 9, junho, 1998. Entrevista CAMARA, R., GODOY, H. Cult Revista de Literatura, So Paulo, n. 15, out. 1998. Entrevista. CAMPBELL, J. O poder do mito. Org. por Betty Sue Flowers; Trad. De Carlos Felipe Moiss. So Paulo: Associao Palas Athena, 1990. CAMPOS FILHO, Luiz Vicente da Silva. Tradio e Ruptura - Cultura e Ambientes Pantaneiros. Cuiab: Entrelinhas, 2002. CASTELO, Jos. Manoel de Barros busca o sentido da vida. O Estado de So Paulo, So Paulo, 03 ago. 1996. Caderno 2, p.12 CASTRO, Afonso de. A potica de Manoel de Barros . Campo Grande: FUCMTUCDB, 1991. CHALHUB, Samira. A metalinguagem. 4. ed. So Paulo: tica, 1998. CHKLOVSKI, Victor. et alli. A arte como procedimento. In: Teoria da Literatura: formalistas russos. Dionsio de Oliveira Toledo (org.). Porto Alegre: Globo, 1973. COHEN, Jean. Estrutura da Linguagem potica. Trad. lvaro Lorencini e Anne Arnichand. So Paulo: Cultrix/EDUSP, 1974. COUTO, Jos Geraldo. Manoel de Barros busca na ignorncia a fonte da poesia. Folha de So Paulo. So Paulo, 14 de nov. 1993, Mais, p. 8-9. CROCE, Benedetto. A poesia. Trad. Flvio Loureiro Cahves. Porto Alegre: Edies da Faculdade de Filosofia da Universidade do R. G. do Sul, 1967. DALATE, Sergio. Manoel de Barros: uma potica do estranhamento ou o encantador de palavras. In: Polifonia. N 3 Cuiab: EDUFMT, 1997, p. 1-13. DAVID, N. D. A (Meta) poesia de Manoel de Barros: do ldico manifestao do mito. So Paulo, 2004. Dissertao de Mestrado. Departamento de Letras. UNESP: Campus de Araraquara. DIAS, Otvio. Manoel de Barros mostra o NADA. Folha Ilustrada, So Paulo, 21 ago. 1996. 4. Caderno, p.l.
DONOFRIO. Salvatore. Poema e Narrativa: Estruturas: So Paulo, Duas Cidades, 1978. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Pla Civelli. So Paulo: Perspectiva, 1972. _____________. Mito do Eterno Retorno. Trad. Jos Antonio Ceschin. So Paulo: Mercrio, 1992. EPSTEIN, Isaac. O signo. So Paulo: tica, 1986. FILHO, Antonio Gonalves. Manoel de Barros sai do Pantanal por escrito. Folha de So Paulo. So Paulo, 15 de abril de 1989, Letras, p. 3. FRIEDRICH, H. Estrutura da Lrica Moderna. Trad. Marise M. Curione. 2 ed. So Paulo: Duas Cidades, 1991. FUCUTA, Brenda. O poeta expe sua obra em paredes. O Estado de So Paulo, So Paulo, s. d. Caderno 2, p.3 HAYAKAWA, S. I. A linguagem no pensamento e na ao. So Paulo: Biblioteca Pioneira de Arte e Comunicao, 1972. LANDEIRA, Jos Luis Marques Lopes. A construo do sentido na poesia de Manoel de Barros: estudo elementos expressivos fonticos e morfossintticos. So Paulo: USP, defesa realizada em 21/12/2000 (Dissertao de Mestrado). LEITE, Mrio Cezar Silva. guas encantadas de Chacoror: natureza, cultura, paisagens e mitos do pantanal. Cuiab: Cathedral Unicen Publicaes, 2003. ___________________.O grande livro encantado: aspectos e percepes de natureza. In: Territrios e Fronteiras Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Mato Grosso, vol. I n. 1, jul-dez., 2000, p. 191-218. ___________________. Mar de Xaras ou as reinaes do Pantanal. In: Sociedade e Cultura. V 5, n 1 (jan./jun. 2002) Goinia: Departamento de Cincias Sociais, FCHF/UFG, 2004, p.6-24. LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artstico. Trad. Maria do Carmo Vieira Raposo e Alberto Raposo. Lisboa: Editorial Estampa, 1976. MIELIETINSKI, E. M. A potica do mito. Traduo de Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1897.
TEZZA, Cristvo. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o Formalismo Russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. MENEGAZZO, M. A. Alquimia do verbo e das tintas nas poticas de vanguarda. Campo Grande: Cecitec/UFMS, 1991. MARTINS, Nilce Santanna. Introduo estilstica. So Paulo: T.A. Queiroz: Editora da Universidade de So Paulo, 1989. MONTEIRO, Jos Lemos. A estilstica. So Paulo: tica, 1991. OLIVEIRA, Edson de Santos. O tear da memria em Infncia. In: O eixo e a roda memorialismo e autobiografia Revista de Literatura Brasileira. Belo Horizonte: Departamento de Letras Vernculas da Faculdade de Letras de Minas Gerais, vol. 6 , 1988, p. 105-44. PAZ, Octavio. La casa de la presencia. Obras completas Edicin del autor. Mxico, D. F.: Fondo de Cultura Econmica, 2003. PEIRCE, Charles S. Semitica e filosofia. So Paulo: Cultrix, 1976. POLLAK, Michael. Memria e Identidade Social. In: Estudos Histricos. Rio de Janeiro: FAPERJ, 1989, p. 201-215. POUND, Ezra. ABC da Literatura. Trad. Augusto de Campos e Jos Paulo Paes. 7ed. So Paulo: Cultrix, 1995. RAMOS, I. N. A. Uma potica da modernidade: leitura comparativa entre Alberto Caeiro e Manoel de Barros. So Paulo: 2002. Dissertao de Mestrado. USP/ UNEMAT. ROSENFELD, Anatol. O teatro pico. So Paulo: Editora Perspectiva, 1985. SANCHES NETO, Miguel. Achados do cho. Ponta Grossa: Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa, 1997. SANTOS, Rosana Cristina Zanellato. As coisas mesmas de Manoel de Barros. In: Santos, Paulo Srgio Nolasco (org.). Ciclos de Literatura Comparada. Campo Grande: Ed. EFMS, 2000, p. 53-62. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. So Paulo: Perspectiva, 1969. ________________. As utilizaes da memria. Memria do Mal, Tentao do Bem. So Paulo: Arx, 2002.
IV.
Dicionrios e Gramtica
ABBAGNANO, Nicola. Dicionrio de Filosofia. 4 ed. Trad.Ivone Castilho Benedetti. So Paulo: Martins Fontes, 2000. BECHARA, E. Moderna gramtica portuguesa. 37 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. CHEVALIER J. & GHEERBRANT A. Dicionrio de Smbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, nmeros). 19 ed. Coord. Carlos Sussekind. Trad. Vera da Costa e Silva, Raul de S Barbosa, ngela Melim, Lucia Melim. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2005. FERREIRA, Aurlio B. H. Novo dicionrio de lngua portuguesa. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. MOISES Massaud. Dicionrio de Termos Literrios. 14 ed. So Paulo: Cultrix, 1999.