2005 RogerioEduardoAlves
2005 RogerioEduardoAlves
2005 RogerioEduardoAlves
São Paulo
Julho de 2005
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPTO. DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURA COMPARADA
São Paulo
Julho de 2005
2
AGRADECIMENTOS
a Donizete Galvão, Douglas Diegues, Fábio de Souza Andrade, Fabrício Carpinejar, Heitor
Ferraz, Joaquim Alves de Aguiar, Manuel da Costa Pinto, Tulio Kawata, Vagner Camilo,
Vanderlei Lopes, Vinicius Dantas, Viviana Bosi e Wilson Bueno, pelas conversas
apaixonadas e pelas indicações e fornecimento de material bibliográfico precioso
3
RESUMO
PALAVRAS-CHAVE
ABSTRACT
Except for those texts written for children and teenagers the historical-critical analysis
considers all Manoel de Barros’ poetry books published from 1937 to 2004 in order to
establish the poetics beneath the images and other language structures for which the poet is
known. The oeuvre is presented as a poetic architecture of a mythology that makes use of the
Pantanal’s unities together with the author’s biography and in which center the poet is based.
The construction results in a particular regionalistic space where Manoel de Barros
reproduces himself as a myth and justifies his position as a farmer.
KEY WORDS
4
SUMÁRIO
. Apresentação p. 6
1. A justificação literária p. 59
2. Bernardo da Mata p. 64
1. Retomo à infância p. 68
2. As engrenagens do mito p. 79
3. Brecha histórica no maravilhamento p. 85
4. A constelação dos subordinados p. 88
1. A palavra-fotografia p. 97
2. O reino a partir das imagens p. 106
3. O verbo travestido p. 111
. Bibliografia p. 121
1. Do Autor p. 121
2. Sobre o Autor p. 122
3. Geral p. 124
5
APRESENTAÇÃO
Ler a obra de Manoel de Barros é perder-se em cada linha na confusão entre a lenda e
o fato, o mito e a vida do poeta. Pois é nesses limites que os versos do autor sul-mato-
grossense vão compondo imagens e figuras de linguagem que costumam encher os olhos e as
bocas de leitores menos atentos à arquitetura literária de seus dezesseis livros do que ao
encantamento das acrobacias linguísticas e imagéticas que resplandecem nos poemas. Dos
textos, fixam-se principalmente frases e palavras estranhas colocadas ao lado ou na voz de
personagens inusitados criados por um escritor do oeste nacional que vive em meio a uma
natureza exuberante. Devido a essas impressões, muitas vezes se credita à poesia de Manoel
de Barros, de um lado, um regionalismo engajado na defesa do Pantanal e das pequenas coisas
insignificantes, de outro, funções ritualísticas associadas ao “primitivismo” engendrado pelos
versos que se referem às origens dos tempos e dos seres. Ao poeta, por sua vez, são atribuídas
alcunhas disparatadas, como a de “ecológico”, “encantador de vocábulos”, “arejador de
palavras” e “entortador de versos”.
O que se pretende aqui é verificar como os volumes publicados se encadeiam numa
poética desenvolvida consistentemente desde os primeiros livros até a definição de um espaço
regional sustentado por uma estrutura mitológica a partir da qual Manoel de Barros se
reproduz não apenas como mito de si próprio, mas como fazendeiro. Por isso, o estudo que se
segue não se concentra em apenas alguns livros do autor, mas passa em revista todos eles,
resultando numa análise histórico-crítica de uma obra cuja configuração estética, como fica
sugerido no final, pode desvendar tendências recentes da literatura nacional.
Partindo dos primeiros volumes, a análise segue por quatro etapas, correspondentes
aos capítulos de um a quatro. De início, delineia-se o contexto histórico-literário em que se
inscreve o autor. Sob a influência das diversas perspectivas do nacional refletidas na literatura
brasileira entre 1930 e 1960, o começo da obra está caracterizado pelo conflito fundamental
entre o campo (Pantanal, origem do poeta) e a cidade (Rio de Janeiro, onde ele vive e estuda)
apresentado em textos de teor eminentemente modernista. A partir da solução do conflito, no
entanto, define-se um espaço regional inédito, para onde confluem não apenas elementos que
constituem a flora e a fauna do Pantanal, mas aqueles da biografia do autor. Representando as
6
bases de toda sua poética, o período abrange os quatro volumes iniciais, desde Poemas
Concebidos sem Pecado (1937) até Compêndio para Uso dos Pássaros (1961).
O segundo capítulo, intitulado “Entremeio Justificativo”, representa um intervalo nas
inúmeras operações definidoras, como as realizadas nos poemas iniciais, em favor da
comprovação literária do espaço regional constituído como uma variante do espaço “super-
regional” (Antonio Cândido) de Guimarães Rosa. Comportando os primeiros livros
metalingiiísticos do autor, o período que se estende de Gramática Expositiva do Chão (1966)
até a antologia Gramática Expositiva do Chão - Poesia Quase Toda (1990) faz da
metalinguagem, associada a variáveis tomadas à fábula (“metalinguagem fabulosa”), o
instrumento principal para o desenvolvimento de uma poética que alterna o racional e o
mítico transformando-os em elementos interdependentes.
A terceira parte corresponde à ordenação de um sistema mitológico a partir de três
características que definem a poesia de Manoel de Barros: o retomo à infância, a auto-
referência a situações e procedimentos já trabalhados em livros anteriores, e, por fim, uma
constelação de subordinados, representados pelos alter egos do autor. Assim, de Concerto a
Céu Aberto para Solos de Ave (1991) até Retrato do Artista Quando Coisa (1998), a poesia é
examinada como uma estrutura complexa cujo centro mitológico é construído ao redor do
escritor-fazendeiro Manoel de Barros.
No quarto capítulo, que compreende as obras mais recentes do autor, de Ensaios
Fotográficos (2000) até Poemas Rupestres (2004), a justificação literária retorna em nova
roupagem metalingúística. Utilizando o artifício da fotografia, e sua característica indiciai,
Manoel de Barros atrela o espaço construído e estruturado mitologicamente à realidade. Se
assim consegue justificar-se como mito presente, traveste o “primitivismo” de realidade
fotográfica, concluindo a construção de um espaço regional em que coexistem a realidade, a
fábula e o primitivo mitogênico.
A possibilidade de organização da obra em períodos ou fases é um reflexo da
racionalidade que governa a escritura dos textos, representantes, em última análise, de uma
poética in progress que não se deixa revelar. O desafio a que se propõe este estudo talvez
demasiado abrangente é, através da leitura e da análise dos poemas, conseguir desvendar o
projeto poético pretendendo assim colaborar para que a obra e seu autor possam ser
compreendidos à luz intermitente de um país desnorteado.
7
CAPÍTULO 1
8
talvez por um certo complexo de culpa, pois os pais tinham amplas fazendas no
pantanal mato-grossense (...) Manoel de Barros, o Nequinho -que quando amadureceu
tomou-se fisicamente a imagem escarrada de Trotski, o líder do Exército Vermelho-
refugiava-se na poesia, entediado com o estudo do direito, enquanto Tocary
mergulhava na ideologia.”2
9
Nascido em Cuiabá em 1916 e depois radicado na fazenda de gado do pai em
‘ Corumbá, da qual ficaria encarregado na idade adulta, o poeta faz do Pantanal urbano e rural
um cenário para seus poemas, ou ainda, uma fonte dos elementos que os compõem. Distante
da exaltação do pitoresco que caracterizou a descrição regionalista desde o romantismo
nacional no século 19, a região construída por Manoel de Barros apenas sugere o Pantanal
real ao aproveitar seus personagens e sua flora e fauna para compor um outro universo,
diferente daquele encravado entre os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. O
resultado é uma literatura que “transcende” a região, podendo por isso ser classificada como
“super-regionalista” no mesmo sentido em que a obra de João Guimarães Rosa o foi por
Antonio Cândido3. Ao escrever sobre Sagarana em 1946, o crítico afirmava:
“Mas Sagarana não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor
regional, mas na medida em que constrói um certo sabor regional, isto é, em que
transcende a região (...) Transcendendo o critério regional por meio de uma
condensação do material observado (condensação mais forte do que qualquer outra em
nossa literatura da ‘terra’), o sr. Guimarães Rosa como que iluminou, de repente, todo
o caminho feito pelos seus antecessores.”4
3 O estranhamento que causa o regionalismo singular de Manoel de Barros provoca reações como a do crítico
Manuel da Costa Pinto, que escreveu: “De fato, as memórias da infância passada em fazendas do Mato Grosso
impregnam sua literatura, mas da mesma maneira que Recife e Itabira impregnam a poesia de Bandeira e
Drummond” (Manuel da Costa PINTO, 2004; p. 17)
4 Antonio CÂNDIDO, 2002; p. 185-186
10
década anterior, que Antonio Cândido chama de “fase de consciência de país novo”, um
período cujo atraso económico e social é compensado pelo “pitoresco decorativo [que]
funciona como descoberta, reconhecimento da realidade do país e sua incorporação ao
ternário da literatura”5. Como se verá adiante, não se pode afirmar que o poeta seja partidário
da valorização do pitoresco visando à construção de uma identidade nacional e engajado no
registro do exotismo de seu ambiente rural por estar influenciado por essa primeira forma de
regionalismo. Muito do que parece ser derivado da exaltação das cores nacionais, menos que
consciência ou engajamento, pode antes representar apenas o aproveitamento da técnica
modernista de composição dos poemas.
O tratamento dos dados locais por Manoel de Barros difere da concepção daqueles
enxergados por Oswald de Andrade desde Paris, onde esteve em 1923, e que influenciou a
escritura da poesia pau-brasil. Como se verá mais à frente, a apropriação do ingrediente
particular através da forma vanguardista que falava diretamente à nova sensibilidade
possibilitava abranger a estrutura social complexa que se consolidava.
Se não se deixou paubrasilizar, no sentido estrito do termo, Manoel de Barros
tampouco cedeu demais aos elementos político-sociais que dominaram os versos na década de
30, denominada por Antonio Cândido de fase de “pré-consciência do subdesenvolvimento”,
incorporando apenas timidamente alguns índices sociais. Por outro lado, enveredou pelo
lirismo no momento em que a racionalidade construtiva difundida pelos textos programáticos
do Concretismo ditava as linhas na década de 1950, tempos de “consciência do
subdesenvolvimento”.
De uma margem a outra, o acompanhamento e os desvios em face das tendências
literárias mostram mais que uma simples concepção diferente de país, esboçam o
estreitamento da obra ao redor da própria figura do autor, cujo ápice se dá na conclusão de seu
espaço super-regional. Para acompanhar os passos desse movimento, tomem-se os quatro
primeiros volumes de Manoel de Barros: Poemas Concebidos sem Pecado (1937), Face
Imóvel (1942), Poesias (1956) e Compêndio para Uso dos Pássaros (1960).
***
11
O primeiro livro, Poemas Concebidos sem Pecado (1937), está assentado sobre uma
tentativa de embricamento entre campo e cidade (rural e urbano) semelhante ao realizado
pelos modernistas. Sem desvencilhar-se da apropriação do pitoresco pelo pitoresco que é
marca da literatura regional até a década de 20, porém, Manoel de Barros parece ter
aproveitado apenas a superficialidade técnica proposta pelos escritores modernistas dos quais
procurou se aproximar.
A superação do registro do pitoresco puro foi possível com a mediação da vanguarda
como realizada pela poesia pau-brasil, composta por Oswald de Andrade a partir de sua
experiência ao lado de Tarsila do Amaral, em Paris. Nas palavras do crítico Vinícius Dantas
em “Entre A Negra e a Mata Virgem”:
12
‘estética de Paris’, estavam afinal franqueados à criação modernista. A referência
direta e factual da realidade brasileira passa assim a gozar de autonomia, isto é, a ser
valorizada pelo critério exterior e proeminente da vanguarda internacional -eis nesse
desafogo o princípio de sua inversão positivadora.”8
Essa mudança de perspectiva, ou ainda, essa positivação está registrada nas palavras
de Antonio Cândido em “Literatura e Cultura de 1900 a 1945”:
13
No entanto, a combinação efetiva entre o pitoresco e a vanguarda exigia mais que a
identificação teórica de sua possibilidade, pedia uma forma que comportasse harmonicamente
as partes distintas. A organicidade da composição somente pôde ser vislumbrada através da
sua realização plástica nos quadros que Tarsila do Amaral pintava no ateliê parisiense. Como
defende Vinícius Dantas, foram as artes plásticas que deram os instrumentos para o
desenvolvimento da poesia pau-brasil, ou ainda, permitiram a redação de seu manifesto, uma
vez que os versos só seriam publicados anos depois. Segundo o crítico, foi sobre o ombro de
Tarsila que Oswald enxergou pela primeira vez a materialização plástica e, por sua vez,
efetiva da conjunção dos elementos que frequentavam seu imaginário:
14
Como depois o autor declararia à imprensa sobre os personagens, Cabeludinho é um
seu alter ego. “Deixo aos meus alter egos a tarefa de realizar os sonhos meus frustrados.
Coisas que não fui capaz de fazer realizo através deles.”12 Neste caso, não se tratando de um
simples “outro” criado de maneira a poder realizar o que o escritor não pode ou não pôde, mas
da primeira criação do próprio Manoel de Barros como personagem literário e a consequente
transformação de sua obra poética em obra poética autobiográfica.
Apesar de nem sempre ser vista como o melhor método de crítica, a leitura
concomitante da vida do escritor e de sua obra se faz aqui necessária e, acima de tudo,
esclarecedora. A começar por sua juventude nos bancos da faculdade de direito do Rio de
Janeiro. Se a história da migração do rapaz pantaneiro para a cidade grande está contada em
Poemas Concebidos sem Pecado e é tema de sua parte inicial, é a essa experiência que se
pode atribuir seu primeiro contato com os ditames vanguardistas. A convivência de Manoel
de Barros com os importantes autores da época, embora não tenha sido pessoal, influenciou-o
conscientemente. Sobre o período, o poeta falou ao jornal O Globo em 1996:
15
de abertura de Poemas Concebidos sem Pecado. O primeiro composto por 16 sílabas poéticas,
o segundo, por oitq£
No mesmo ritmo e métrica semelhante (14 e sete sílabas poéticas) em que está
relatado o parto do herói na abertura de Macunaíma\
15 Em 1961, Manoel de Barros demonstrava tomar partido incondicional do primeiro modernismo. Em texto de
sua coluna “Viola de Côcho”, publicada durante quatro semanas no jornal Correio do Estado, de Campo Grande
(MS), escreveu; “Nos poemas de Oswald de Andrade, da fase pau-brasil, encontram-se a fala do povo, a fala de
preto Tucum com a voz do poeta. Volta de 1923. Aurora do modernismo”. Esse e outros textos que exaltam a
“língua torta do povo” foram reunidos pelo poeta Douglas Diegues no número um da revista Teyu 'í, de
abril/maio de 1995.
16 BARROS, 1999; p.19
16
A estrutura, que termina numa surpresa escrachada e de efeito cómico, conjugada à
presença recorrente dos diálogos e à maneira como os personagens são abruptamente
apresentados, aumenta o parentesco do livro com o Macunaíma. A obra de Mário de Andrade
reúne os cortes violentos, acentuados pelas metamorfoses dos personagens em coisas ou
outros seres com os diálogos cortantes e, na maioria das vezes, em tom de piada. Mais do que
isso, o próprio Cabeludinho, com seu comportamento teimoso, de menino mal-educado,
lembra a personalidade do herói sem nenhum caráter de Mário.
17 Ibid., p.17
17
imperícia dos primeiros versos supervaloriza o dado regional no mesmo passo em que procura
acompanhar tardiamente o ritmo colhido pelo primeiro Modernismo às vanguardas européias.
Exemplo descarado da superficialidade com que a aproximação é realizada está no
título da segunda parte de Poemas Concebidos sem Pecado1.“Postais da Cidade”. Depois dos
ensinamentos de Mário, Manoel de Barros parece tomar a poesia de Oswald de Andrade como
sua principal influência, particularmente os primeiros poemas, reunidos em Pau Brasil em
1925. São textos dedicados a personagens e lugares da cidade desenhados com cores fortes
pelos jovens versos modernistas. Por exemplo em “jardim da luz”:
18
justapor o colonial e o moderno, alcançando com essa engenhosa simplicidade um resultado
que consegue traduzir uma estrutura social nacional que começava a ser percebida.
19
aprendemos a admirar em Oswald. (...) Ainda que não seja nada fácil discernir na
agenda dos compromissos sociais a camaradagem franca de artistas e escritores das
relações mundanas de um milionário sul-americano, foi sob o efeito desse convívio
que o modernista rastaquera se desprovincianizaria de fato. É a lógica de tal processo
que nos interessa, visto ter sido ele motivado menos por idéias estéticas e técnicas
artísticas (já conhecidas e até dominadas anteriormente) do que pela experiência
prática de um contexto que nem a menor correspondência encerrava com o do Brasil.
Isso porque na França Oswald depararia com uma tradição moderna estabelecida, a
caminho de ser plenamente oficializada e contando com infra-estrutura de mercado
(-)”21
20
“O modernismo oswaldiano se nutre do desencontro da forma nova com a
matéria antiga, que lhe resiste, e seu rendimento artístico depende do modo como o
Autor se posiciona simultaneamente em relação a essas duas referências.”23
Essas variáveis, ao contrário da fusão criadora, embora positivadora, por que passam
em Pau Brasil, mantêm-se imiscíveis nos versos de Manoel de Barros ao longo de toda sua
produção inicial e somente alcançarão uma síntese décadas depois por meio de uma estratégia
de construção mitológica de si mesmo cultivada a partir de Concerto a Céu Aberto para Solos
de Ave (1991).
Por outro lado, a ambiguidade e a imperícia na utilização das variáveis modernistas
podem estar relacionadas com o momento de produção de seu primeiro livro, particularmente
à turvação da percepção do país, que começava, no início da década de 1930, a ser percebido
como efetivamente subdesenvolvido e afastava a ilusão de um futuro promissor instantâneo
(“pré-consciência do subdesenvolvimento”). À deriva nesse redemoinho de forças, a obra de
Manoel de Barros não reflete o momento de equilíbrio entre o cosmopolita e o particular
nacional, como escreve Antonio Cândido. Os acontecimentos de 1930, particularmente a
revolução de outubro, funcionavam como catalisadores dos “elementos dispersos para dispô-
los numa configuração nova”, nas palavras do crítico em “A Revolução de 1930 e a Cultura”,
“em grande parte porque gerou um movimento de unificação cultural, projetando na escala da
Nação fatos que antes ocorriam no âmbito das regiões”24. Deixava-se, portanto, a idéia de um
país retalhado, para a concepção de um território único acompanhado de um “alargamento das
‘literaturas regionais’”25.
Até 1930, a abordagem dos aspectos regionalistas esteve concentrada em mostrar as
diferenças, as excentricidades. A busca do “tipicamente brasileiro” estava associada à
consciência otimista de um “país novo”, como definiu Antonio Cândido em “Literatura e
Subdesenvolvimento ”:
23
Vinícius DANTAS, 1991; p.200
24
Antonio CÂNDIDO, 1987; A Revolução de 1930 e a Cultura, p. 181-182
25
Ibid., p. 185
21
“A idéia de pátria se vincula estreitamente à de natureza e em parte extraía
dela a sua justificativa. Ambos conduziam a uma literatura que compensava o atraso
material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos
regionais, fazendo do exotismo razão de otimismo social.”26
26 Ibid., p. 142
27 Ibid., p. 142
28 Embora o poeta afirme em entrevistas que a preocupação social sempre esteve presente em seus textos,
dedicados que são àqueles que vivem “debaixo do chapéu” e andarilhos de forma geral, a referência explícita ao
problema social é rara. Sobre o assunto disse à Folha de S.Paulo em 2001: “Sei que a minha poesia é
atravessada, desde o primeiro livro, por seres humanos. Mais especialmente por aqueles que moram debaixo do
chapéu porque não têm casa. Mais especialmente por andarilhos e por loucos de água e estandarte. E ainda mais
por pessoas que moram no abandono da sociedade” (entrevista concedida a Rogério Eduardo ALVES, 2001).
22
Ela sozinha!
(...)
Não é sectarismo, titio.
Também se é comido pelas traças, como os vestidos.
A fome não é invenção de comunistas, titio.
Experimente receber três e até quatro comitivas de
boiadeiros por dia!”29
Ou em “Maria-pelego-preto”:
31 Ibid., p.31
23
Não servindo como base organizadora dos textos, as variáveis sócio-políticas parecem
apenas sugestões ou, em melhores palavras, características peculiares em composição com os
tantos traços fortes dos personagens e de seus hábitos, contribuindo dessa maneira para a
paulatina concentração da poesia sobre a excentricidade da região construída. Insistindo no
pitoresco, no entanto, mantém-se a permanente divisão entre o atrasado e o novo, duplo
paralelo ao composto pela cidade e pelo campo. A dificuldade em transpor essas variáveis,
verdadeiros pilares de sustentação da poesia, fica patente no texto mais esclarecedor de
Poemas Concebidos sem Pecado’.
Embora aceito como elemento oficial da cultura da cidade grande, uma vez que parte
integrante da Academia, Cabeludinho continua “fora de lugar”, sendo traído por sua natureza
24
•20
irredutível de “bugre” , uma condição que aflora ao simples escorrer da água pela torneira.
Armado sobre a tensão entre o elemento natural e o urbano, o texto usa o utensílio de metal
tão comum à organização da cidade como símbolo dos limites a que o ser urbano está sujeito,
controlado não apenas pela máquina forjada na indústria, mas pela racionalidade de que é
representativa. Aos olhos do “bugre”, domesticar a água que jorra é tentar o impossível, ou
seja, fixar as margens flutuantes das terras alagáveis do Pantanal. Mais água que terra, a
região natal do personagem-autor, sua fonte de inspiração poética, é líquida, fluindo como o
sangue que não pode ser controlado de maneira nenhuma (“se eu não sei parar o sangue, que
que adianta / não ser imbecil ou borboleta?”). Por mais que a cidade se imponha nas formas
artificiais do metal e do “anúncio luminoso”, o campo não se deixa esmorecer, correndo como
seiva vital e alimentando o poeta que escreve na fronteira.
Os versos tentam abrir espaço para a reflexão através dos termos “me ensina” e “me
explica” pontuados invariavelmente pelo “sou bugre mesmo”, que remete ao ser natural em
contraponto ao civilizado, aquele que tem “modos de gente” e não se derrama (talvez por não
possuir) em lembranças (“... penso naqueles moleques / como nos peixes”) ou convive com a
frialdade da luz do anúncio em detrimento do sentimento humano (“...por que um olhar de
piedade (...) não brilha mais que anúncio luminoso?”). Estruturado sobre a recorrência desses
versos, como se fossem refrões (“Sou bugre mesmo ... me explica ... me ensina ...), a poesia se
esgarça tentando, em vão, realizar a reflexão que com mais frequência é alocada na prosa.
Nesse meio de caminho, armado em medidas livres ao estilo modernista, o texto mostra-se
estruturalmente inteirado do fazer literário da vanguarda que representa o urbano. Mais bem
construído que os demais poemas do livro, esse adianta o caminho que será desenvolvido em
Face Imóvel, o volume seguinte, no qual apesar do peso do concreto da cidade, ou das regras
acadêmicas, a força do natural estará presente a partir dos elementos do Pantanal, que sempre
conseguirá aparecer por uma brecha, gritando sua necessidade de existir.
33 Em nota ao estudo comparativo de Velimir Khlébnikov e Manoel de Barros, Aurora BERNARDINI aponta a
origem da palavra “bugre”: “Etimologicamente, essa palavra teria entrado em nosso léxico através do termo
francês -bougre- que, por sua vez, deriva da palavra “búlgaro”, que era sinónimo de não-cristão, de infiel, de
pessoa sexualmente pervertida, enfim. Significa alguém excluído e também temido pelo seu potencial
transgressor. Para Manoel de Barros, o bugre é também um ser transgressor, na medida em que não participa
ativamente da vida socioeconômica do Pantanal, mas perambula livre pelos campos, convivendo
‘promiscuamente’ com as plantas, bichos, rochas e etc. O bugre pode ser definido como um louco, um
25
De qualquer maneira, a coexistência entre o urbano e o natural parece insustentável até
este ponto. A quantidade de perguntas, a necessidade de explicação e de adaptação, o
sentimento que brota incontrolável com as lembranças levam à solução mais fácil, de aspecto
conformista, e não menos dolorosa: fechar a torneira (“Qual, antes melhor fechar esta
torneira, bugre velho...”). Optando por usar a máquina, o poeta confirma sua decisão (e
necessidade temporária) de entregar-se à cidade. Construído sobre esse impasse, este poema
realiza, da melhor maneira até aqui, a tensão da combinação conservadora e desigual entre as
técnicas modernistas de composição e os elementos da região, que acabam por acentuar o
caráter pitoresco do regional, tão excêntricos que parecem em meio à cidade, sem apresentar
uma síntese possível entre a “torneira” (novo e urbano) e a “água” (atrasado e regional), para
usar os termos do autor.
2. A FORMAÇÃO DO ESCRITOR-FAZENDEIRO
26
Estão esperando um grande acontecimento.
E estão silenciosos diante do mundo, silenciosos.
Paz!
O telefone que descansa
As cortinas azuis que nem balançam
Ou ainda:
27
“As casas dormiam na hora surda do meio dia.
O corpo do homem penetrou sob árvores
Na longa quietude estendida na rua.
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ninguém soube se o coração vibrou.
Que o sonho o acalenta ninguém adivinhou.
Ninguém sabe nada.
Não traz um lamento,
Nem marca dos pés no chão vai ficar.
Tão triste é a vida sem marca dos pés!
Tudo permaneceu sem um grito,
Um pedido de socorro sequer.
Ele passou sem calúnias
E é possível que sem corpos que o chamassem.
Ninguém soube se o coração vibrou
Porque tudo permaneceu sem fundo suspiro
No estranho momento das coisas paradas.”
O contraste da dor interna, e intensa em seu silêncio, que vai sendo cultivada em meio
à calmaria de um ambiente urbano que, apesar de tudo, segue existindo, estrutura a matéria de
Face Imóvel. O sentimento que toma conta das páginas advém tanto da guerra real quanto da
necessidade da volta ao Pantanal.
Ao tentar traduzir em seus textos a atmosfera de guerra que dominava o mundo
desenvolvido, Manoel de Barros força seu parentesco com Sentimento do Mundo, de Carlos
Drummond de Andrade, publicado dois anos antes, resultado do contato do escritor da
pequena Itabira com o ambiente urbano do Rio de Janeiro. A influência dessa obra se faz
notar principalmente na extensão dos versos prosaicos que querem acomodar a sensação de
desconforto com o conflito. É dessa época o “Poema do Menino Inglês de 1940”:
28
Ah! nós brincávamos nas linhas dos lagos azuis.
Katy dançava de cabelos soltos no jardim
E eu compunha músicas singelas para seu corpo.
Sobre meus ombros ela chorava.
A artificialidade com que é criado esse “eu lírico” inglês em meio a um cenário ainda
mais artificial dominado pelas ruínas de uma guerra distante e pela menina de nome “Katy”
são uma amostra de como o poeta seguia experimentando na tentativa de traduzir, assim como
Drummond, o choque frente à vida urbana e à guerra mundial. Um choque que, tomando-se
os termos acima como referência, parece mais construído literariamente a partir dos livros
estrangeiros e notícias do que efetivamente vivido. O caráter meramente retratista desses
estranhos poemas, de temática deslocada de toda a produção passada e futura do autor,
diferencia-se definitivamente da reflexão que se desenvolve nos versos de Sentimento do
Mundo desde seu título.
Nas palavras de Vagner Camilo, “sentimento figura talvez menos para indicar uma
disposição afetiva do que algo intuído ou pressentido, mas não apreendido em profundidade.
Algo, em suma, sobre o qual não se tem uma consciência totalmente clara”. Em sua
interpretação, que aproxima o “sentimento do mundo” do “sentimento de culpa”, no sentido
social, o crítico usa um conceito explorado por John Gledson:
37 Ibid; p.62
29
sensação insistente que tem o poeta de estar separado de coisas às quais está, na
verdade, ou deveria estar ligado’. Reconhece, ainda, que a alienação ‘sempre esteve
presente em Drummond, mas é em Sentimento do Mundo que ela comparece de forma
clara, consciente e diversificada, seja como indiferença política (...); seja como divisão
•3 0
Pois é na distância anunciada que o poeta encontra seu meio de engajamento, segundo
Vagner Camilo:
Por outro lado, Face Imóvel, de Manoel de Barros, apenas dramatiza o contexto
mundial. Ao optar pela tradução de atmosferas em imagens, como no texto do “Poema do
Menino Inglês de 1940”, deixa-se de lado o caráter reflexivo, fundamental na obra de
Drummond. A exploração das sensações através das imagens é clara na referência que é feita
a Van Gogh, especificamente ao seu trabalho mais sensorial, no poema “Os Girassóis de Van
Gogh”:
“Hoje eu vi
Soldados cantando por estradas de sangue
Frescura de manhãs em olhos de crianças
Mulheres mastigando as esperanças mortas
39 Ibid., p.66
30
E como a dor abaixasse a cabeça,
Eu vi os girassóis ardentes de Van Gogh.”40
Os elementos pictóricos são usados como uma maneira de traduzir as sensações que se
entrelaçam com o cenário (“estradas de sangue”, “manhãs”) sem aprofundar, no entanto, a
relação das imagens estáticas (“homens ao crepúsculo”, “homens recebendo a guerra” etc.)
com os sentimentos. Assim como as imagens, as cores das figuras de Van Gogh servem como
mera ilustração da dor, expondo a fratura entre a vivência dessa dor e o conhecimento
intelectual dela, uma vez que a exploração dos girassóis do artista holandês não traz novidade.
O poeta não se arrisca e associa a forte sensorialidade das telas à sensação de dor gerada pela
guerra, mantendo a relação que normalmente se estabelece entre a série de girassóis e o
momento de desespero do artista, que os teria feito para o amigo Paul Gauguin, com quem
morava e travava brigas intermináveis. Com um grau reflexivo mínimo, a plasticidade resulta
em artificialismo dramatizante, no sentido em que as imagens querem apenas estabelecer uma
atmosfera impressionante para o leitor. Uma artificialidade enfim que, ao mesmo tempo em
que condiz com a percepção plástica dos modernistas explorada no livro anterior, encontra
correspondência no processo de fabulação no qual se baseia a mitologização que se realizará
anos mais tarde e será vista adiante.
Mais interessante que a dor proveniente da guerra que mal se acomoda nos versos,
porém, é aquela que nasce da saudade do Pantanal, registrada com todas as letras em
expressões como “Ai que saudades do Pantanal!” do poema “Balada do Palácio do Ingá”:
31
Ai que saudades do Pantanal!
Senhor, nem é tanto deste emprego que eu preciso tanto
“(...)
41 Ibid., p.70-71
42 Informação veiculada no site www . nitideal.com.br em texto de Ana Maria Lima: “Até a década de 70, o
poder político do antigo Estado do Rio de Janeiro tinha como principal endereço a rua Presidente Pedreira, no
Ingá. Em torno e nas proximidades do Palácio foram erguidas residências que abrigavam não só figuras
importantes da cidade, como também do Estado. Apesar da decadência económica do antigo estado do Rio afetar
a sua capital, a proximidade com o poder manteve no Ingá um ar aristocrático, sobrevivente da época
imperial”(Ana Maria LIMA)
32
poema “Paz” transcrito antes. Na “Balada do Palácio do Ingá”, no entanto, a situação urbana
que não deixa aflorar os sentimentos do autor (saudades do Pantanal) está caracterizada pela
procura do emprego na repartição pública, sua burocracia (“ficha”) e seus cargos (“chefe do
Gabinete do Interventor”), e não mais pela presença do conflito mundial.
Guardadas as diferenças que se farão notar adiante, tanto Drummond quanto Manoel
de Barros inserem-se na tradição que acompanha a formação da intectualidade nacional, qual
seja a de filhos de fazendeiros que procuram a cidade grande em busca de posições nas
instituições públicas44. Como mostra a pesquisa de Sérgio Miceli em Intelectuais e Classe
Dirigente no Brasil (1920-1945), a migração está normalmente relacionada à falência da
família proprietária rural e é muitas vezes a única possibilidade de sobrevivência dos rebentos
das classes oligárquicas do país, que perdiam sua posição e poder a partir de 1930.
44
A indicação desse caminho devo a Vagner Camilo que o sugeriu em sua arguição de qualificação
45
Sérgio MICELI, 2001; p. 78
46
Ibid; p.200
33
regionais junto ao poder central, esteve ancorado na constituição de um aparato
burocrático que prestou uma contribuição própria ao sistema de poder então vigente.
(...) O circuito de aparelhos sobre que se alicerçou tal processo veio propiciar as
condições necessárias à cristalização de uma nova categoria social, o pessoal
burocrático e militar.”47
47 Ibid, p. 199
48 Ver a respeito desses primeiros intelectuais profissionais o texto Poder, Sexo e Letras na República Velha
(Sérgio MICELI, 2001; p. 13)
49 Sérgio MICELI, 2001; p. 199
50 Ibid, p. 232
34
Paralelamente a eles, que “tiveram que se curvar às diretrizes políticas do regime, os
escritores-funcionários puderam se abrigar sob a postura de uma ‘neutralidade’ benevolente
em relação ao Estado, o que lhes permitiu salvar muitas de suas obras do aceso das lutas
políticas”.51
Seja de um ou de outro lado, o que marca as origens dos novos intelectuais
funcionários é o conflito entre o campo e a cidade, especificamente a vida urbana depois da
decadência rural. A influência desse contexto na produção literária dos autores foi identificada
por John Gledson no ensaio “O Funcionário Público como Narrador: O Amanuense Belmiro e
Angústia". Tratando dos romances de Cyro dos Anjos (1937) e de Graciliano Ramos (1936), o
crítico afirma:
“Eles são o produto consciente de uma decadência rural, tema muito comum na
literatura e em tratados histórico-sociais seus contemporâneos, como Casa-grande &
Senzala, Sobrados e Mocambos e Raízes do Brasil."52
Ao espírito dos personagens funcionários dos romances, Gledson chama “brejo das
almas”, tomando como referência o livro homónimo (1934) de Drummond anterior ao
Sentimento do Mundo. “Denominei o impasse que é comum aos heróis e, até certo ponto, aos
autores dos dois romances [Cyro e Graciliano], de ‘brejo das almas’”. Um “impasse” que está
diretamente relacionado a “uma clara referência a mudanças sociais e económicas do mesmo
tipo que os romances descrevem, de comunidades rurais relativamente isoladas para uma
economia moderna e integrada”.53 Enfileirando Drummond, Graciliano Ramos e Cyro do
Anjos, escreve o crítico:
51 Ibid, p.237
52 John GLEDSON, 2003; p.204
53 Ibid, p.218-219
54 Ibid, p.224
35
Um dos mais importantes esboços dessa passagem foi construído por Drummond no
caminho que percorre dos versos de Brejo das Almas até os de Fazendeiro do Ar (1954). Um
dos únicos livros em que o autor não cita explicitamente Itabira, Brejo das Almas é o
momento da dúvida ideológica, como destaca o crítico Vagner Camilo no ensaio “Uma
Poética da Indecisão: Brejo das Almas”, no qual associa a relutância de Drummond frente à
“consciência do precário” nacional, ainda sob os efeitos dos acontecimentos da Revolução de
1930, ao individualismo que domina os poemas.
Muito do conflito entre o campo e a cidade está marcado, como destaca John
Gledson, no título Brejo das Almas, tomado a uma cidade interiorana a respeito da qual se
discutia publicamente uma mudança de nome que pudesse inseri-la no crescente fluxo urbano.
Desde esse ponto, o poeta, pressionado pelas “exigências prementes de posicionamento e
participação social”56, passa a enfrentar a cidade, seu cargo público e a dor de um passado que
insiste em estar presente, seja no retrato na parede, seja nas constantes lembranças da família
e da casa que abrigava a todos na fazenda. Como afirma Vagner Camilo, a culpa social que o
sentimento do mundo de Drummond contém está também carregada de culpa em relação ao
passado rural, agora perdido na vida urbana do Rio de Janeiro.
36
A percepção lúcida da nova situação pessoal, e nacional, é apresentada em Fazendeiro
do Ar, cujo título resume a nova categoria de cuja origem trata Sérgio Miceli. No segundo
poema do volume, “No Exemplar de um Velho Livro”, o poeta estabelece a comparação:
e um grave sentimento
que hoje, varão maduro,
não punge, e me atormento. „58
Ao fazendeiro que abandona a terra pelo cargo público, só lhe resta o ar como espaço
de cultivo, referência certa ao trabalho imaterial do intelectual, mas também à perda de raízes,
definitivamente abandonadas. Vagner Camilo define o novo tipo “antagónico” da seguinte
forma:
“[Fazendeiro do ar] ... nome consagrado por Drummond para um tipo social
bastante recorrente na literatura da época, justamente porque encontra sua razão de ser
em um contexto de modernização conservadora e contraditória como o dos anos 30.
Contradição essa, inclusive, plenamente encarnada pelo estatuto social dessa
personagem histórica, na medida em que se inscreve na convergência de tempos e
espaços distintos ou, mesmo, antagónicos: o passado rural e o presente urbano.”59
Apesar de refletir esse mesmo conflito histórico entre campo e cidade (rural e urbano),
Manoel de Barros não se enquadra na condição de “fazendeiro do ar” como definida e vivida
37
por Drummond. A diferença fundamental, e ficará mais claro adiante, é que enquanto
Drummond manteve-se colocado até o fim da vida nas instituições públicas como “escritor-
funcionário”, ex-fazendeiro, Manoel de Barros abandona a vida na cidade para cuidar da
fazenda herdada de seu pai. Solução rara no contexto apresentado, o caminho inverso, a volta
à fazenda, fará de Manoel de Barros uma figura estranha à tradição e definirá o tom
ideológico de sua poesia. Entretanto, até que o conflito seja assim resolvido mantém-se a
dicotomia entre cidade e campo.
A solidez e a intransponibilidade do limite que se estabeleceu desde o livro inicial
entre a cidade e o campo e sobre o qual o poeta vem desfiando seus versos por décadas tem
em Face Imóvel (1942) sua tradução mais direta através da presença do “muro”.
Especificamente, através da relação do personagem-“eu lírico” com o muro que é encontrado
no ambiente urbano que domina a paisagem do volume.
Mas eu, eu sempre acreditei que o terreno que ficava atrás do muro era
um terreno abandonado!”60
38
ancião, sem as cores “de outros tempos” passados, e intransponível, pronto a reagir e se
adaptar à força que se exercer contra ele, como numa briga.
Nesse sentido, a dor que vem dominando os versos do livro traduz-se no muro pela sua
“mudez sombria”. Se do lado em que está o escritor impera o mistério, próprio do urbano
criado pelo poeta, o natural (representado pelas flores) tenta aproximar-se e enraizar-se. Do
outro lado, o simples boato da existência da natureza, impiedosamente abafada pelas cores da
cidade. A consciência das fronteiras, no entanto, produz no escritor como que uma desolação.
Se acreditar nos seus amigos da infância, que devem possuir, supõe-se, experiência
semelhante ao do autor no Pantanal, do outro lado está o pomar. A degenerescência da crença
na existência do natural vigoroso, porém, perdeu-se na visão consciente do poeta, que para o
outro lado só consegue imaginar um “terreno abandonado”. Abandonado porque não é mais
seu habitat desde que foi para a cidade grande, e abandonado porque não consegue trazê-lo
para dentro dos versos, que querem seguir em sintonia com o momento de guerra e
sofrimento.
A incapacidade de harmonizar os lados imiscíveis (campo/cidade), entretanto, começa
a ser minada pelo Filho do Fazendeiro, nomeado pela primeira vez no poema “Noturno do
Filho do Fazendeiro”, que em Face Imóvel está colocado na sequência de “O Muro”.
Enquanto filho que migrou do campo para a cidade, o “eu lírico” assume as características do
Cabeludinho macunaímico, isto é, representante de uma poesia que empresta artifícios
superficiais à técnica dos modernistas para lembrar a infância na fazenda, mas também
registrar a vida no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a especificação do fazendeiro-pai,
prende o “eu lírico” às suas raízes na região do Pantanal. Assim composto, o Filho do
Fazendeiro amolece o muro que marca os limites, representando simultaneamente as bases
rural e urbana. Intransponível antes, aqui o muro parece tornar-se um pouco mais penetrável e
maleável, uma vez construído pelos parênteses. Nos versos, a lembrança dos tempos da
infância beira o trágico, e o confronto entre o presente e o passado (cidade e campo / novidade
e atraso) é inevitável: “Gostaria mais se pudesse ficar/ Tem a impressão que aproveitaria
melhor/ Tem quase certeza”.
“O corpo na cama,
O quarto nas trevas
E o rádio que não deixava
t. 39
Que não deixava pensar
Que alguém estivesse morrendo
Se a tradução do sinal gráfico não deixa de ser mais uma tentativa frustrada de síntese
entre a novidade e a tradição regional, a nomeação do Filho do Fazendeiro nesse estado
transitório entre campo e cidade é fundamental por registrar pela primeira vez a posição social
do “eu lírico”, que assim deixava de ser Cabeludinho. A decisão por um dos lados que o Filho
do Fazendeiro sustenta -como filho e como fazendeiro-, no entanto, acaba por ser
determinada pela morte do pai de Manoel de Barros. Então, impôs-se uma necessidade: cuidar
da fazenda herdada. Decidia-se, enfim, não sem questionamentos, pelo campo. E o Filho do
Fazendeiro deixava de ser transição para consolidar-se como Fazendeiro ele mesmo. Sobre o
assunto, o poeta falou à Folha de S.Paulo em 1989:
61 Ibid., p.65-67
40
Rio. Mas minha mulher, que é filha de fazendeiros de Minas, me convenceu do
contrário, e propôs vir comigo, enfrentar o Pantanal, e fundar nossa fazenda.
Deixamos o grande centro e por aqui ficamos. Não foi difícil para a raiz pregar-se de
novo na terra de origem. Ela, a raiz, no Rio estava plantada em vaso raso.”
***
A escolha do campo, porém, se faz sensível nos textos de Manoel de Barros apenas no
livro Poesias de 1956, publicado, portanto, 14 anos depois de Face Imóvel e dois anos após
Fazendeiro do Ar, de Drummond. A partir de Poesias, o autor passa a escrever não mais
como o Filho do Fazendeiro, saudoso das terras paternas e da família, como vinha se
apresentando, mas como Fazendeiro, reenraizado nos terrenos alagadiços e entre o rebanho
pantaneiro. No que se refere à tradição, esse caminho para trás quebra o movimento mais
comum do filho de proprietário rural que passa a trabalhar como funcionário público
(“fazendeiro do ar”). Poeticamente, entretanto, a mudança é expressa através de uma
intensificação do lirismo, que, por sua vez, permite a Manoel de Barros colocar-se como
objeto lírico principal de sua poesia.
A solução literária pelo lirismo, no entanto, influi diretamente na superação do conflito
entre o campo e a cidade uma vez que permite a fusão das partes até aqui imiscíveis através
da confusão das fronteiras do humano e do natural, realizando uma espécie de animismo que
caracteriza boa parte da obra do escritor. Em meio à profusão lírica que brota da terra, em
Poesias observa-se a extrapolação dos limites entre homem e pássaro, homem e terra, homem
e coisa, coisa e terra, coisa e água. Num dos fragmentos iniciais, escreve o poeta: “Os limites
me transpõem!”63. Até que o ensaio de fusão é reconhecido: “Sei bem/ Que todas essas coisas
têm raízes na casa/ No menino selvagem que deixava crescer os cabelos”64.
Livro com maior diversidade de formas poéticas do autor, espécie de baú em que estão
reunidos desde fragmentos até longos e bens construídos poemas, Poesias, embora escrito no
Pantanal, possui textos que expõem o ponto de vista da cidade, mas que se diferenciam
41
daqueles de Face Imóvel pela maneira como tentam demolir a fronteira até aqui erigida
solidamente, além de estarem desprovidos do sentimento sombrio que a cidade alimentou no
volume anterior.
“Vadio e evadido
Vagabundeio só.
Amo a rua torta
E do mar o odor.
65 Ibid., p.77-78
66 A opção pelo lirismo parece fortalecer-se se examinada em contraste com a racionalidade construtiva
empregada pelo Concretismo, que começava oficialmente no mesmo ano de publicação de Poesias (1956).
(Devo esse destaque à arguição de lumna Maria Simon durante o exame de qualificação.)
42
delimitação das fronteiras de uma dimensão particular construída a partir de variáveis
regionais específicas, trabalhadas pelo lirismo que confunde os limites. Se o poema anterior
apresenta um “eu lírico” indeterminado, veja-se como em “Pedido Quase uma Prece”, cujos
trechos são transcritos abaixo, é o próprio autor que está no centro do texto:
O espaço assim delimitado reúne, através de uma aproximação mediada pelo lirismo,
os dados locais, sejam da cidade ou do campo (rua, flores, quintal, árvores) -índices da fusão
ainda incompleta anunciada anteriormente-, com a biografia do autor (pensão), colocado no
centro dos versos como o “eu lírico” que faz a prece, sugerida não apenas no título mas nas
referências ao “Senhor”. O principal elemento lírico tradicional, no entanto, é a “amada”,
considerada acima de todo o universo que se quer constituir com os versos (“Que sem ela a
casa também eu não queria”). Se a sujeição ao lirismo amoroso é inédita, ela também não se
sustenta nos textos seguintes. Parece ser utilizada aqui mais como uma confirmação da opção
lírica do que como seu fundamento. Nesse sentido, o lirismo pode ser entendido como um
artifício de sustentação de um universo que começa a defínir-se efetivamente em Poesias e
servirá de arcabouço para a complexa mitologia poética que será desenvolvida nos livros
43
posteriores. Perceba-se ainda que o poema transcrito acima será glosado em “O mundo meu é
pequeno, Senhor”, publicado em O Livro das Ignorãças, de 1993, e que nesta análise ocupará
o centro mitogênico da obra do poeta, como se verá adiante.
Até que se alcance o refinamento da construção mitológica, no entanto, restam as
tentativas de combinação das variáveis de maneira a permitir a confecção da dimensão
regional uniforme. Estruturalmente, a face do novo homem que carrega as características da
cidade e do espaço regional natal desenvolve-se melhor no personagem Pedro, criado no
último poema de Poesias, um alter ego que reproduz as fusões sugeridas, no ambiente urbano
e no regional ao mesmo tempo. A apresentação de Pedro está no longo “Encontro de Pedro
com o Nojo”. Enquanto realização da fusão, o texto pode ser lido como uma espécie de
manifesto, mesmo se for considerada a forma dos versos, mais próximos da prosa que da
armação lírica tradicional, embora não deixe de ter um núcleo lírico bem definido. É como se
finalmente a reflexão que deseja encontrar, em vão, seu espaço entre as linhas prosaicas dos
textos do poeta ocupasse definitivamente seu lugar e desabrochasse com o personagem. A
necessidade de uma forma nascida do urbano como a do poema em prosa para se conseguir a
fusão com o regional talvez demonstre como o autor-“eu lírico” andava entranhado da
novidade da cidade, desde o advento do Modernismo. Ao mesmo tempo, como se verá
adiante, a predileção pela prosa garante ao conjunto da obra o teor de uma longa e única
narrativa, forma privilegiada da estrutura mitológica na qual o escritor se resguardará mais
tarde.
No poema, Pedro é um rapaz que vive num quarto de pensão no Rio de Janeiro.
Estudante, possui uma relação com a negra que toma conta dos hóspedes e entediado sai para
andar pelas ruas da cidade.
44
a contiguidade dos universos de Pedro-Manoel de Barros vai mesmo se confundir com o
desenrolar das andanças pelos pedregulhos urbanos.
68 Ibid.,p. 117-120
45
3. A SUPERAÇÃO DO CONFLITO
A reconstrução que sugere o poema-manifesto acima citado pode ser entendida como a
confirmação da superação do conflito histórico entre o campo e a cidade. Usando o corpo do
alter ego Pedro como espaço para onde convergem as variáveis imiscíveis, o poeta sugere a
transcendência do particular em favor de uma “dimensão” sintética, ou ainda, de um espaço
super-regional, como será especificado adiante, no qual se concretiza a fusão e onde se
permite o pleno desenvolvimento da lírica ao redor do Fazendeiro Manoel de Barros. No
momento em que se decide pelo campo, porém, o escritor parece voltar no tempo e faz da
infância o principal elemento de construção literária. Numa variação do movimento sugerido
pelo verso antes destacado “Ia até a infância e voltava”, a retomada da infância agora já não é
sinal de uma inconstância entre o campo e a cidade. Enfim supera-se a mera utilização
ilustrativa e lúdica de lembranças e de personagens como os que habitavam os versos do
primeiro livro, Poemas Concebidos sem Pecado, em favor de uma estrutura poética que se
alimenta da forma como as crianças pensam e articulam as palavras. O inédito tratamento
linguístico apresentado em Compêndio para Uso dos Pássaros (1961) tomou-se tão
característico do autor que passou a ser considerado sua assinatura69. Os primeiros passos
apóiam-se no artesanato de Guimarães Rosa, de quem Manoel de Barros toma um texto para a
epígrafe de Compêndio para Uso dos Pássaros:
69 A questão da poesia feita de palavras é a via normalmente utilizada quando se trata de estudar ou comentar a
obra de Manoel de Barros, um caminho incentivado por ele que não hesita em dizer que para fazer poesia deve-
se buscar a “infância da palavra”, por exemplo. A importância desse viés, que se enriquece com o
metalinguístico, serviu de base para as análises de José Luiz Marques López Landeira, que escreveu: “A
metapoesia de Manoel de Barros revela um poeta detentor de um profundo conhecimento de elaboração poética,
assim como de uma ampla tradição centrada no uso e valor da palavra. Sua obra deslinda constantemente as
possibilidades entre poeta e poesia, com plena dimensão lúdica da palavra, o que exige do poeta a capacidade de
revelar a sua imagem, mas, em certos momentos, de velar a sua essência.” (José LANDEIRA, 2000; p.46).
46
O vaqueiro Tadeu: queria era que se achasse para ele o quem das
coisas!
O vaqueiro Calixto: essas coisas que o Grivo falou:
-Sabiá na muda: ele escurece o gorjeio... Pássaro no mato em toda parte
voa torto - por causa de acostumado com as grades das árvores...”70
“Manhã?
Era eu estar sumida de mim e todo-mundo
me procurando na Praça
estar viajando pelo chão
até ficar árvores
com a boca pendurada para os passarinhos...” 71
71 Ibid.,p.l6
Entrevista concedida a Rogério Eduardo ALVES em 2001
47
observado por Fabrício Carpinejar em sua dissertação de mestrado Teologia do Traste: A
Poesia do Excesso de Manoel de Barros -trabalho no qual discorre sobre a proliferação de
imagens nos versos do escritor usando como contraponto a economia estilística da obra
poética de João Cabral de Melo Neto. Estaria, portanto, na acumulação a característica
principal do recurso lingiiístico que começa a ser definido. Tomado de um outro ângulo, o
efeito do acúmulo imagético, representado principalmente por metáforas inusitadas e
sinestesias elaboradas, pode ser traduzido como uma forma de composição barroca, seguindo
o raciocínio de Fabrício Carpinejar:
48
Dentro de sua paisagem
-entre ele e a pedra-
crescia um caramujo.
Os primeiros resultados apresentados neste Compêndio para Uso dos Pássaros, pouco
refinados na utilização de figuras de linguagem se comparados com livros mais tardios, são
marcados pelo exagero de sinestesias e pela construção de imagens inéditas a partir do
cruzamento de categorias gramaticais, como entre adjetivos e substantivos ou advérbios e
adjetivos -com a predominância da adjetivação- sempre colocados fora de suas relações
usuais, como nos versos “Barulhinho vermelho de cajus” e “Eu vinha aquela tarde pela terra/
fria de sapos.../ O azul das pedras tinha cauda e canto”, para ficar com dois exemplos.
O tipo de estranhamento que o autor provoca com essas construções tornou-se a
característica mais notada pelo público leitor e, conseqúentemente, a principal de sua
literatura. Por isso, sempre que se comenta ou critica a obra de Manoel de Barros, lêem-se ou
ouvem-se classificações que já se tornaram clichés, como a de que sua poesia é composta por
“versos entortados” e “frases fora do lugar”, ou ainda, que é representativa de uma verdadeira
“lírica pantaneira” na qual se desvenda um “Pantanal particular” próprio do poeta “arejador de
velhas palavras”, “encantador de vocábulos” ou “ecológico”, dono de um vocabulário
composto por “palavras do manoelês” ou ainda próprias de um “manoelês archaico” e assim
por diante76.
Cliché desse mesmo gênero é a constatação recorrente de que os versos de Manoel de
Barros querem remeter às origens, ao tempo antes do tempo. Se muito dessa análise deve-se
ao retorno do poeta ao rural da fazenda, a fixação nas coisas pequenas garantem o ar
49
“arqueológico” dos versos. Sobre o assunto discorreu o crítico Jorge Larrosa, que publicou a
antologia Todo lo que no invento es falso com poemas de Manoel de Barros vertidos para o
espanhol. Comparando o poeta, ao qual chama de “Rimbaud visionário”, a Guimarães Rosa,
escreve Larrosa no ensaio introdutório:
“... ambos buscan construir un mundo tan nuevo, tan sorprendente y tan
misterioso como el que existia en el momento siguiente a la creación, un mundo aún
no ordenado, sin historia, en estado de nacimiento, aún no fíjado, sin limites, en estado
de metamorfosis, captado como por primera vez. Y eso con la ayuda de un lenguaje
que lo produzca y le haga justicia sin restarle nada de ese carácter epifánico, dejándolo
tan misterioso como antes de su puesta en palabras.”77
“Acho que cedo descobri o que mais tarde haveria de ler em Mallarmé. Que
poesia não se faz com idéias, mas com palavras. Ainda novo, pelos 12 anos, eu jogava
pelada com bola de bexiga na beira do rio, em Corumbá. Um menino gritou:
50
‘disilimine esse, Cabeludinho’. Eu não disilimei. Mas achei uma graça no jeito do
verso. Deu um som de poesia para mim.”79
51
recolhê-las aleatoriamente para então enfileirá-las sobre o papel em branco . Desse ponto de
vista, o universo construído em Compêndio para Uso dos Pássaros sugere manter a inocência
tipicamente infantil na relação com as coisas, uma característica, consequentemente, que deve
fazer parte do universo regional do poeta83. Sobre o assunto disse Manoel de Barros a Marcos
Augusto Gonçalves da Folha de S.Paulo em 1989:
Devido aos versos mais curtos e donos de uma agilidade imagética muito bem
desenvolvida, Compêndio para Uso dos Pássaros contrasta com o ritmo arrastado dos versos
longos de um poema como “Encontro de Pedro com o Nojo”, de Poesias, ou com as linhas
sombrias e cheias de um lirismo sofrido de Face Imóvel. A impressão que se tem em
Compêndio para Uso dos Pássaros é que o escritor conseguiu enfim domar as cores fortes
que aprendera com os modernistas e que havia despejado sem perícia em suas primeiras
obras. A técnica de composição agora alia o tratamento verbal desenvolvido a partir do
conceito de “moedalização”, e a perspectiva que ele sugere, aos moldes da poesia de Mário e
de Oswald de Andrade diferenciando-se, afinal, numa “dimensão” repleta de elementos do
Pantanal e até então inédita.
82 A aproximação com Mallarmé é obrigatória: “O papel da livre fantasia na poesia de Manoel de Barros é o de
construir as imagens que não se limitam a imposições da lógica racional. Já o poder da palavra conduz o poeta a
adquirir autonomia discursiva e imagética. É preciso que se dê autonomia à palavra para se chegar à atividade
lúdica do discurso, a qual Mallarmé compreende como um jogo, que monta e desmonta o texto poético para se
chegar à peça principal ou a nada.” (Vânia Maria de VASCONCELOS, 2002; p.10).
83 Isaac Newton Almeida Ramos em seu estudo comparativo de Manoel de Barros com Alberto Caeiro observou
sobre o assunto: “O olhar infantil enquanto instrumento da construção poética do mundo e da linguagem se faz
como liberdade, como ato que se desvia da normalidade das relações, podendo instituir um outro universo -
aquele que se sustenta com suas próprias leis.” (Isaac RAMOS, 2002; p.56).
84 BARROS, 1992; p.319
52
Primeiro índice dessa direção está no título da série de textos que abre o volume:
“Poeminhas Pescados numa Fala de João”85. Tanto o diminutivo em “poeminhas”, quanto a
relação pouco usual estabelecida entre o ato de pescar e poemas corroboram para um olhar
diferente, infantil. A referência a João, que ao mesmo tempo remete ao Rosa e ao filho caçula
do autor, João Wenceslau, reitera a epígrafe e a nova forma de composição.
O texto leve e ágil aproxima-se ainda mais do universo infantil quando o poeta dedica
os versos da segunda série da primeira parte do livro a sua filha Martha Barros, hoje artista
plástica e ilustradora dos livros mais recentes do autor. Com o título de “A Menina Avoada”,
o tom se mantém.
85 Essa diferenciação temporal já está sugerida no estudo de Luiz Henrique Barbosa a partir da posição da
criança na obra de Manoel de Barros: “Em seus primeiros livros, a inserção de sua poesia no universo infantil se
dá através da escolha de um personagem criança. O olhar da criança construirá o mundo e o universo poético. A
criança entra na sua poesia como um elemento do enunciado. Percebemos aí que seu texto é menos fragmentário,
mais episódico. Já em seus livros posteriores notamos que ora Manoel de Barros irá fazer uma alusão ao pré-
simbólico (...) ora mimetizará o pré-simbólico, reproduzindo uma voz infantil que se encontra na enunciação. A
partir de Compêndio para Uso dos Pássaros, seu texto parece ir caminhando para a desconstrução da língua,
para os arrombos na gramática, para a fragmentação” (Luiz BARBOSA, 2003; p.70).
6 BARROS, Compêndio para Uso dos Pássaros, 1999; p.l 1
87 Ibid., p. 18-19
88 Percebe-se como esse caráter programático aqui referido, relacionado à posição de Fazendeiro do autor, é mais
complexo que a simples interpretação da Poética de Manoel de Barros realizada por Vânia Maria de
Vasconcelos: “(...) o poeta alia seus estudos sobre literatura e arte, em geral, a experiências vividas e sentidas
para ele montar a sua temática e linguagem próprias, que formam a Poética de Manoel de Barros.” (Vânia
VASCONCELOS, 2002; p.2).
53
Eu andava com meus dedos
a colher outros frutos raros...
Por que você já não vinha
malhar sob os meus galhos?
Ou ainda:
“(...)
54
mais completo e meticuloso, e assim conseguindo anulá-lo como particularidade, para
transformá-lo em valor de todos”91.
Ao abandonar o pitoresco em favor da síntese, ou ainda, transcendência super-
regional, a literatura pode ser contextuaiizada num novo momento sócio-econômico: o
acirramento da consciência do subdesenvolvimento nacional. Traduzido nas palavras de
Antonio Cândido: “Ela [a fase ‘super-regionalista’] corresponde à consciência dilacerada do
subdesenvolvimento e opera uma explosão do tipo de naturalismo que se baseia na referência
a uma visão empírica do mundo; naturalismo que foi a estética peculiar a uma época onde
triunfava a mentalidade burguesa e correspondia à consolidação de nossas literaturas”92.
Embora a referência seja a um autor contemporâneo de Manoel de Barros -Grande
Sertão: Veredas é de 1956, como Poesias-, o conceito de super-regionalismo não pode ser
apenas transferido de uma obra a outra. Mesmo que o caminho para a inédita “dimensão”
pantaneira tenha semelhanças com a construção do “sertão pluridimensional” de Rosa,
formado a partir da “negociação entre a modernidade urbana e a cultura tradicional oral das
comunidades rurais, ou de articulação entre o espírito de vanguarda e o interesse no regional
(...)” ', o resultado, ou ainda, o interesse, é diverso. Enquanto Rosa “quis e conseguiu elaborar
um universo autónomo, composto de realidades expressionais e humanas que se articulam em
relações originais e harmoniosas, superando por milagre o poderoso lastro de realidade
tenazmente observado, que é a sua plataforma”94, no Pantanal nascente dos versos de Manoel
de Barros quem reina é o próprio autor. Tanto o retorno à Fazenda, através da síntese
apresentada, quanto a perspectiva infantil assumida são índices que, quando conjugados aos
versos repletos de elementos autobiográficos -família e lugares- cada vez mais utilizados nas
obras posteriores (como se verá à frente), colocam o poeta no centro de sua poesia e do novo
espaço encontrado.
Por isso, pode-se entender o super-regionalismo que caracteriza a estruturação poética
de Manoel de Barros enquanto negativo da construção do autor de Sagarana. Se, de um lado,
o romancista mineiro arquiteta a universalização de seu espaço ficcional, Manoel de Barros
55
concentra-se no particular de si mesmo, encontrando aí o sustentáculo de sua poesia e a única
síntese possível entre o campo e a cidade95. Em outras palavras, o espaço super-regional assim
concebido poeticamente toma-se o espaço de realização literária do mito Manoel de Barros, o
Fazendeiro.
Entretanto, se a dimensão super-regional for examinada em suas linhas estruturais
principais, ou seja, a combinação de elementos da vanguarda literária urbana com as unidades
rurais do Pantanal submetidas ambas a uma voz lírica, ela pode ser compreendida
paralelamente ao arcabouço econômico-social sob o ideal desenvolvimentista propagado na
década de 1950, a saber, caracterizado por um embricamento particular entre o arcaico e o
novo. O espelhamento assim teoricamente estabelecido permite aprofundar a compreensão
dessa poesia no contexto em que compõe suas bases, reproduzidas ainda nos livros mais
recentes do escritor.
Em linhas gerais, a ideologia desenvolvimentista se espalhava pelos países
subdesenvolvidos da América Latina durante a década de 1950, mas, principalmente,
dominava o pensamento nacional desde a propagação da política económica do presidente
Juscelino Kubitschek (na presidência entre 1956 e 1960). Esse contexto foi especificado no
estudo Ideologia do Desenvolvimento -Brasil: JK- JQ, de Miriam Limoeiro Cardoso, da
seguinte forma:
95 Ao contrário do que os leitores de Manoel de Barros normalmente imaginam e pode ser resumido na
observação de Vânia Maria de Vasconcelos: “ (...) podemos observar a preocupação do poeta em conscientizar o
leitor para uma visão de mundo, do próprio cosmos, desmistificando a ideia de poesia regionalista, atributo
que Manoel de Barros rejeita” (Vânia VASCONCELOS, 2002; p.76-77).
56
Caracterizada pela necessidade de uma industrialização maciça da área urbana do país
no sentido de “aumentar a produção, diversificá-la, incentivar a produtividade, adequar a
produção às necessidades de consumo, ampliá-las para o fortalecimento da capacidade
produtiva etc.” , a política de JK afetava diretamente a forma de produção rural, uma vez que
as grandes fazendas precisariam intensificar a exploração de seus trabalhadores para
acompanhar o aumento produtivo dos centros urbanos, tendo-se em vista a necessidade de
barateamento da produção que alimentaria a concorrência cada vez maior da cidade, numa
simplificação dos termos. Sobre esse quadro, escreveu Francisco de Oliveira em 1972 no
ensaio “Crítica à Razão Dualista”:
97 Ibid., p.l 12
57
acumulação global, em que a introdução das relações novas no arcaico libera força de
trabalho que suporta a acumulação industrial-urbana e em que a reprodução de
relações arcaicas no novo preserva o potencial de acumulação liberado exclusivamente
para os fins de expansão do próprio novo.”100
Dessa forma, explicita-se o particular embricamento entre o arcaico e o novo que pode
sugerir o estabelecimento teórico em paralelo da composição literária do espaço regional de
Manoel de Barros, como vem sendo apresentado. Não por acaso, a mesma conjuntura serve
para a produção literária de Guimarães Rosa, já definida antes como uma conjunção entre o
arcaico e o moderno. Portanto, o movimento da chamada (por Antonio Cândido) terceira fase
regionalista na literatura brasileira está relacionado a um momento particular em que o
exótico, embora relegado a um plano inferior, continua servindo de base para a novidade.
Nas palavras de Antonio Cândido, o super-regionalismo aproveita ainda “a própria substância
do nativismo, do exotismo e do documentário social [como] ingredientes [que] constituem a
atuação estilizada das condições dramáticas peculiares a ele, interferindo na seleção dos temas
e dos assuntos, bem como na própria elaboração da linguagem”101. Talvez seja à consciência
dessa conciliação que o crítico Antonio Cândido chamou de “consciência dilacerada” do
subdesenvolvimento, que encontraria na construção sintética do super-regionalismo sua
solução literária correspondente.
Daí que a aproximação entre as concepções regionais de Manoel de Barros e
Guimarães Rosa pode ser traçada, apesar de objetivarem pontos contrários. À semelhança do
que fez com a obra de Mário de Andrade em seu primeiro livro, Manoel de Barros toma os
elementos (e a forma) da construção literária inovadora de Guimarães Rosa para, através de
uma realização eminentemente lírica, fixar as bases de sua poesia, a partir da qual pode então
estabelecer uma verdadeira mitologia poética, como se verá adiante.
58
CAPÍTULO 2
ENTREMEIO JUSTIFICATIVO
1. A JUSTIFICAÇÃO LITERÁRIA
59
construção dele. O início fabuloso do livro -no sentido em que utiliza elementos próprios da
fábula- apresenta um pequeno caderno de poemas que foi encontrado com um personagem
curioso: “Prenderam na rua um homem que entrara na prática do limo”. Já o título desta parte
inicial, “Protocolo Vegetal”, demonstra a que ela se propõe, a saber, a burocratizar a
construção poética lírica, dando-lhe um respaldo técnico de que o lirismo é possível através da
palavra “protocolo”, ou seja, através de um registro oficial. Os itens que acompanham o
obscuro personagem fazem parte das bases desse chão inédito. São objetos retirados da
normalidade cotidiana dos itens úteis: bobinas enferrujadas, armações de guarda-chuva, rosto
de boneca queimado, correntes de latão, caixa com pregos, zíperes e ruelas, pneus, muleta,
relógio e muitos outros.
Curiosamente, a fabulação recai sobre si mesma resultando numa espécie de
metalinguagem fabulosa, ou ainda, de confirmação fabulosa do lirismo nascente. Entre os
objetos encontrados estão:
60
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
(...)
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
(...)
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
(...)
O que é bom para o lixo é bom para poesia
(...)
As coisas jogadas fora
Têm grande importância
-como um homem jogado fora
(...)
As coisas sem importância são bens de poesia
Composto em frases soltas e imperativas na ordem direta, o texto acima tem o efeito
de estabelecer as regras da poesia que está sendo feita. Os versos funcionam como uma
espécie de poética ou mesmo de manifesto que lança as bases de um novo movimento
literário. A racionalidade sustentadora das estrofes que quase não se relacionam entre si, salvo
pelo tema da composição da poesia, é como que abstraída entre os vieses das figuras de
linguagem que se acumulam verso a verso, naturalizando sinestesias e oxímoros.
61
Mais expostas, as variáveis racionais podem surgir adaptadas poeticamente no
processo de composição dos versos. O “explicar” que o bugre-poeta pedia no texto citado
antes de Poemas Concebidos sem Pecado (“Entrar na Academia já entrei/ mas ninguém me
explica por que essa torneira/ aberta...”), no qual a bipolaridade ganha os nomes de torneira e
água, invade o ritmo distendido das frases nas formas mais características da intervenção
racional, ou ainda, científica. De um lado, estão as notas de rodapé, de outro, o glossário.
Elementos de uso recorrente nos livros a partir de Gramática Expositiva do Chão 104.
O formato de notas de rodapé quando inseridas no poema de Manoel de Barros passam
a integrar seu corpo, deixando mesmo o rodapé da página e interrompendo a leitura direta dos
versos. A explicação, então, conjuga-se com o poético, os limites como que inexistem, mesmo
porque faz-se do espaço para o racional um lugar de cultivo do lírico, acompanhando a
superação do conflito cidade-campo visto antes105. Assim é, por exemplo, na nota (2) das
“Páginas 13, 15 e 16 dos ‘Vinte e Nove Escritos para Conhecimento do Chão através de
S.Francisco de Assis”.
“Colear induz
Para rã
E caracol (2)
l<M Elementos que vão além do mero questionamento da ruptura do verso como normalmente se afirma: “Diria
que se trata de uma ruptura sintático-semântica. Ela envolve vários aspectos, dentre ele destaco o próprio
questionamento do conceito tradicional de verso. Dessa forma, estabelecem-se situações nas quais o poema em si
pode ser iniciado por um enunciado e os versos podem ser apresentados sob a forma de itens (...)” (Isaac Newton
Almeida RAMOS, 2002; p.22).
105 A edição de 1999 de Gramática Expositiva do Chão (editora Record), porém, coloca no rodapé a nota que na
edição da antologia (1992) está no corpo do texto. De um jeito ou de outro, no entanto, permanece o inusitado de
uma nota explicativa lírica (composta em versos) a um texto poético.
‘“BARROS, 1992; p. 167
62
Com a mesma finalidade, é usado o formato do glossário. No livro Arranjos para
Assobio (1980), há um texto que se intitula: “Glossário das Transnominações em que Não se
Explicam Algumas Delas (Nenhumas) - ou Menos”:
“Cisco, s.m.
Pessoa esbarrada em raiz de parede
Qualquer indivíduo adequado a lata
Quem ouve zoadas de brenha. Chamou-se de
O CISCO DE DEUS a São Francisco de Assis
Diz-se também de homem numa sarjeta”107
Ou
“Poeta, s.m. ef
Indivíduo que enxerga semente germinar e engole céu
Espécie de um vazadouro para contradições
Sabiá com trevas
Sujeito inviável: aberto aos desentendimentos como
um rosto”108
107
Id„ 1998; p.43
108
Ibid., p.45
109 Sobre os “poemetos definitórios”, pe. Afonso de Castro já havia chamado a atenção. Em sua leitura muito
crédula afirma que os textos “são a chave para melhor compreender a abrangência dos termos empregados pelo
poeta. Talvez seja um dicionário estético-poético de seu mundo-chão-pantanal.” (Afonso de CASTRO, 1992;
p.40)
63
“Este não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma anunciação. Enunciados
como que constativos. Manchas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem.
Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza (...) Isso é fazer natureza.
Transfazer.
Essas pré-coisas de poesia.” 110
2. BERNARDO DA MATA
“(...) Como pouco, por baixo de suas abas, lateja um agroval de vermes,
cascudos, girinos e tantas espécies de insetos e parasitas, que procuram o sítio
como um ventre.
64
Ali, por debaixo da arraia, se instaura uma química de brejo. Um útero vegetal,
insetal, natural. A troca de linfas, de reima, de rúmen que ali se instaura é como
um grande tumor que lateja. (...)”’12
No entanto, o mergulho no natural, que muito deve ao olhar infantil e ao científico que
chama à razão, só se completará com o surgimento de Bernardo, o Personagem.
“(...) Quando de primeiro o homem era só, Bernardo era. Veio de longe com
sua pré-história. Resíduos de um Cuiabá-garimpo, com vielas rampadas e
crianças papudas, assistiram seu nascimento.
Agora faz rastros neste terreiro. Repositório de chuva e bosta de ave é seu
chapéu. Sementes de capim, algumas, abrem-se de suas unhas, onde o bicho-
de-porco entrou cresceu e já voou de asa e ferramentas. (...)”113
Apesar de bastante diferente do importante alter ego Pedro, que apareceu no livro
Poesias, Bernardo possui uma função estruturadora semelhante. Como se viu antes, Pedro
materializou em seu próprio corpo a fusão que a poesia de Manoel de Barros vinha
desenvolvendo desde seu primeiro volume. Em Bernardo, uma vez estabelecida a dimensão
super-regional, ele passa a representar a contraparte do poeta Fazendeiro. Na polarização
entre o racional e o irracional, Bernardo encarna o lirismo das coisas que só o Pantanal do
autor é capaz de fornecer. Assim se estrutura como parte negativa do poeta que um dia quis
ser andarilho, mas acabou enraizado nas terras herdadas da fazenda.
Não surpreende, pois, que o Livro de Pré-Coisas seja criado em função de Bernardo.
Primeiro, a apresentação do natural que o personagem encarna, seu passado, seus
pensamentos, até o clímax: o registro de seu retrato em versos. No centro do livro, um
caderno fabuloso se abre com versos esparsos apresentados pelo irmão de Bernardo. O nome
do caderno: “Livro de Pré-Coisas”. Como contrapartida do racionalismo fazendeiro, Bernardo
nasce subordinado:
“O que eu faço é servicinho à-toa. Sem nome nem dente. Como passarinho à
toa. O mesmo que ir puxando uma lata vazia o dia inteiro até de noite por cima
da terra. (...) O que eu ajo é tarefa desnobre (...) Tudo coisinhas sem veia na
laia. Sem substantivo próprio. (...)”*14
65
A posição central que o personagem ocupa no Livro de Pré-Coisas será traduzida no
papel fulcral do alter ego na cosmogonia do universo mítico do Fazendeiro Manoel de Barros
construído plenamente a partir da fase seguinte de sua poesia115.
115 O verdadeiro Bernardo da Mata foi revelado num texto de Manoel de Barros para a revista Caros Amigos de
junho de 1997. O texto “Bernardo Revelado” vinha acompanhado de uma foto de Manoel de Barros com
Bernardo, atrás da qual está escrito “MB e B. Esse é o Bernardo Bernardão. Ele é quase árvore”. O texto do
poeta apresentando o alter ego dizia: “Bernardo (em carne e osso -o sujeito, o próprio). Seu nome por inteiro:
Bernardo da Mata. Nasceu em Cuiabá, em 1916. Com 18 anos apareceu na casa de meu avô, por parte de pai, no
Beco Quente, pedindo um emprego. Meu avô tinha a filha mais velha doente. Era louca de pedra. Vivia
trancafiada num quarto com grades. Meu avô precisava de encontrar uma pessoa para cuidar da louca: tirar
pinico, limpar o quarto, levar comida, água. Bernardo foi contratado para esse serviço. Para resumir: Bernardo
ficou cuidando da tia, minha tia, até ela morrer. (...) Morta a tia Mercedes, meu pai carregou Bernardo para nossa
fazenda de onde nunca mais saiu. Nota-se que com o tempo Bernardo foi se enfastiando do mundo e deixou de
falar. E só ouve quando quer. Porque tem o dom da inocência, passarinho senta no seu ombro etc.(...)” (João
MARIANO, 1997; p.21)
66
CAPÍTULO 3
FASE MITOLÓGICA
67
1. RETORNO À INFÂNCIA
68
o silêncio das coisas anónimas.
Porém, vendo o Homem
que as moscas não davam conta de iluminar o
silêncio das coisas anônimas-
,,118
passaram essa tarefa para os poetas.
1 A infância que se quer universal nos versos acima não consegue se esconder sob os
~l lugares-comuns da poesia de Manoel de Barros. As unidades retomadas como primordiais só
existem no espaço regional do autor, composto por “moscas”, “harpa”, “fêmea”, “caranguejo”
etc.. O primordial está estabelecido literariamente. O que não impede a sobrevivência do mito
a partir da fabulação. Uma vez fixada a mitologia a partir de uma experiência antiga (mesmo
que fabulosa), o retomo à primeira é a forma de viver a realidade da segunda posteriormente,
depois que o tempo primordial é passado119. Nas palavras de Mircea Eliade:
Pois é a localização do “conteúdo arcaico”, ou seja, do tempo das coisas “sem nome”
que Manoel de Barros determina definitivamente em Concerto a Céu Aberto para Solos de
Ave através da definição do Centro produtor de sua mitologia no interior do espaço super-
regional, entendendo-se como Centro o “âmbito do sagrado, a zona da realidade absoluta”.
69
Esse Centro do mundo, onde o “céu e a terra se encontram” numa alquimia
reprodutora eterna, está definido logo na abertura da primeira parte do volume com o título de
“Introdução a um Caderno de Apontamentos”, cujos versos remontam a uma época em que as
raízes familiares do Fazendeiro estavam representadas pelo Avô do menino-poeta, anterior
ainda ao Cabeludinho macunaímico desenhado em Poemas Concebidos sem Pecado:
70
realizadas valoriza a forma narrativa, que é a utilizada tradicionalmente para se contar ou
compor um mito. Em segundo lugar, o trecho permite identificar a inserção de alguns índices
da realidade (ou de elementos que se querem reais) própria da natureza do Centro. O retomo a
essa fonte geradora está, ainda segundo Mircea Eliade, ligado ao desejo de se reencontrar a
“realidade absoluta”:
No que se refere aos versos de Manoel de Barros, o movimento pela busca, ou ainda,
pela construção de uma realidade definida em sua “força, eficiência e duração” que garanta a
consolidação do Centro e a partir da qual a mitologia do autor consiga ser estruturada segue
um caminho diferenciado por ser empreendida dentro de um texto literário. Nesse universo
eminentemente ficcional, o estabelecimento do tempo passado no qual está o Avô, resultado
de um imbricamento entre variáveis reais (Guerra do Paraguai, referências geográficas, ano
1913) e outras fabulares ou dúbias (Avô, Tenente), assume a função da experiência primeira
da vivência originária de uma mitologia, ela também muitas vezes ambígua entre a lenda e o
acontecimento. Assim, a construção mitológica operada aproxima-se da concepção
contemporânea do mito, fruto da criação de um autor, que, para usar a expressão de Jean-
Claude Carrière em “Juventude dos Mitos”, no livro O Olhar de Orfeu, organizado por
Bemadette Bricout, gera mitos que não sabem que são mitos (como Fausto ou Don Juan, por
exemplo). Papel fundamental está a cargo da utilização do artifício formal como identificado
acima. Através de uma construção essencialmente híbrida entre a prosa e a poesia, no que elas
possuem de antitético, alcança-se o substrato de realidade essencial para a configuração do
núcleo mitológico.
71
Tomando-se as partes específicas dos elementos criados literariamente por Manoel de
Barros, e que são suas verdadeiras unidades de mitologia, chama a atenção o fato de que o
poeta, em praticamente nenhum momento , menciona caracteres mitológicos tradicionais,
ou seja, retirados de mitologias gregas ou latinas, ou mitos regionais, que são abundantes na
região do Pantanal. A preferência recai sempre sobre seres que podem ser observados em um
substrato real. O que significa que nenhum de seus alter egos (ou mesmo outros personagens,
sejam animais ou humanos) pode ser aproximado, por exemplo, de uma figura lendária da
região do Pantanal como o Mãozão, “entidade protetora dos animais e das plantas, também
semelhante ao pai do mato. Pelo poder de extraviar as pessoas, é confundido com o saci” ,
no sentido de ter sido influenciado por uma ou mais características próprias daquele ser. O
mesmo acontece com referência ao Cavalinho d’Água, que “é objeto de admiração por dois
motivos: não apresenta forma monstruosa e simboliza um estado selvagem e natural. Por
conta disso, ataca os animais presos em currais próximos aos rios”127, ou ainda ao
Lobisomem, que “persegue as pessoas, assustando-as, ou rouba as carnes dependuradas no
varal para secar”128.
Organizados, respectivamente, em mitos do Mato, da Água e Gerais, os três exemplos
representam apenas uma pequena amostra da complexidade mítica que ocupa o imaginário
dos habitantes da região do Pantanal, como se pode apreender da pesquisa de campo cujo
resultado está apresentado no livro Entre Histórias e Tererés: O Ouvir da Literatura
Pantaneira, que se baseou no levantamento de lendas e mitos a partir dos contadores de
história da região mato-grossense. Sobre a importância desse imaginário, escreve Frederico
Fem andes:
“Esses mitos, de certa forma, são resultado da tendência que os pantaneiros têm
em representar a terra como se ela possuísse arbítrio e animação, empregando para
isso entes zoomorfizados ou antropomorfizados. Não deixam também de revelar
125
Como se verá adiante, a única referência clássica identificável, embora apenas sugerida, é a Pã.
126
Frederico Augusto Garcia FERNANDES, 2001; p.187
127
Ibid., p. 149-150
128
Ibid., p.126
72
respeito e veneração por ela, chegando, em alguns casos, a tratá-la como se fosse o
umbigo do mundo.”129
Embora Manoel de Barros não cite seres imaginários, percebe-se que a noção da terra
como “umbigo do mundo” e detentora de uma vida própria está presente. A citação explícita
da Guerra do Paraguai (“Quando arrancaram das mãos do Tenente / Cunha e Cruz a bandeira
do Brasil, com a / retomada de Corumbá, na Guerra do Paraguai, / meu avô escorregou pelo
couro com a sua / pouca força, pegou do Gramofone, que estava / na sala, e o escondeu no
porão da casa.”), travada entre a Tríplice Aliança (Brasil, Argentina e Uruguai) contra o
Paraguai que, sob um regime ditatorial, tentava dominar as terras brasileiras, deixa claro que o
espaço determinado é o da região oeste do país, cujas fronteiras durante os anos de guerra,
uma das mais sérias entre as poucas nas quais o Brasil se envolveu, eram defendidas pela
população local. Bastou que a bandeira nacional fosse roubada para que o nativo reagisse em
defesa, no caso, de seu Gramofone, identificado não apenas como uma preciosidade material,
mas como um símbolo da classe social dominante, a dos poucos e poderosos proprietários
daquela região; além de representar um índice de conhecimento e vivência próxima ao
“progresso” da cidade, privilégio dos poucos afortunados que podiam usufruir o asfalto
urbano naquelas imensidões territoriais pobres.
Ao mesmo tempo em que a justaposição de elementos tão díspares, como o
Gramofone e a invasão militar da região, lembra o desequilíbrio cômico-irônico das
composições modernistas de primeira época, acirrada pelo inusitado do gesto do personagem,
percebe-se claramente uma alteração no teor da construção quando comparada com aquelas
de Poemas Concebidos sem Pecado. O humorismo aqui desenvolvido remete diretamente à
construção oswaldiana autêntica, como apresentada nos textos de Pau Brasil e lida por
Roberto Schwarz. Se a piada homogeneizava a aproximação crítica entre o colonial e o
moderno na literatura de Oswald de Andrade, aqui são os limites entre a ficção e o fato que a
leveza cómica tenta despistar. Através desse movimento, Manoel de Barros consegue definir
literariamente um Centro, ligado ao universo infantil, que é a fonte de sua mitologia pessoal
enraizando-o numa realidade parcialmente ficcional ou fabulosa. Fica então estabelecido um
73
ponto ao qual o autor pode se remeter e que deve sustentar a estrutura mitologizante de seu
espaço super-regional.
***
74
país. O fim da luta, em vez de acarretar uma delimitação permanente, um divórcio
entre os grupamentos de origem brasileira e de origem paraguaio-guarani, contribuiria
1 'Vl
para entrelaçá-los, confundi-los cada vez mais.”
75
original assume sua face espiritual e hegemónica, uma espécie de espírito (ou mito)
“religioso” renascido de entre os escombros da civilização, mas repleto de uma nova
realidade132.
O Centro que vai sendo estabelecido e preenchido de “realidade” abriga a ficção que a
mesma metalinguagem que cria o Avô estabelece. Dessa vez, a referência é a um Caderno de
Apontamentos, que empresta o nome ao longo poema narrativo “Introdução a um Caderno de
Apontamentos”. Um artifício muito próprio de Manoel de Barros e que remete às formas de
fabulação borgeanas, construídas a partir de pseudo-justificativas ficcionais.
132 A referência bíblica na obra de Manoel de Barros é recorrente. Além de normalmente lembrar sua vida no
colégio de padres ou o aprendizado da poesia a partir de Padre Antonio Vieira, alguns versos de Manoel de
Barros são eminentemente bíblicos, como, por exemplo, “No descomeço era o verso”, citado por José Luiz
LANDEIRA: “... percebe-se que o poeta apropria-se do discurso mítico/religioso já validado pela coletividade
falante receptora, utilizando-o para a construção do seu discurso poético, unindo num mesmo fio discursivo, o
lírico e o sagrado.” (José LANDEIRA, 2000; p.47-48). Essa relação está no eixo da dissertação de Fabrício
Carpinejar, que enxerga na obra de Manoel de Barros uma espécie de Teologia do Traste (Cf. Fabrício
CARPINEJAR, 2001).
133 BARROS, 1991; p. 10-11
76
Ele morreu nu.
Falam que meu avô, nos últimos anos, estava
sofrendo do moral.
Por tudo que leio nesses apontamentos, pela
ruptura de certas frases, fico em dúvida se esses
escritos são meros delírios ônticos ou mera
sedição de palavras.
Metade das frases não pude copiar por ilegíveis.”134
77
habitam. Um movimento que, em outras palavras, pode ser lido paralelamente à conceituação
de Alfredo Bosi para ideologia:
Parafraseando o crítico, a literatura que é construída tendo por base a dimensão super-
regional engendra um ponto de vista social particular a partir do qual é apresentada não
apenas a região natal do autor Fazendeiro, mas seus subordinados alter egos (como se
desenvolverá adiante). Enquanto artifício estético, o contato com os versos automaticamente
determina o olhar parcial do leitor, obtendo assim um efeito próximo ao da ideologia.
Trabalhando-se metaliguisticamente com o processamento de imagens e informações, a
ideologia perpetua-se e incrementa-se a cada rodada, a cada retorno ao longo do tempo.
Portanto, a auto-alimentação tem um sentido particular na poesia de Manoel de Barros
e, este sim, distante da concepção metalingúística definida por Alfredo Bosi: a metalinguagem
de Manoel de Barros é um instrumento para a construção de sua própria mitologia.
78
passo o alicerce sobre o qual o Fazendeiro pode enfim justificar-se no universo de uma
extensa obra. Nas palavras citadas acima, a retomada da “grandeza heroica e sagrada dos
tempos originários” servem a Manoel de Barros como fundamentação à ordem capitalista e
burguesa rural que alimenta sua mitologia particular. Seus “mythos” e “epos” são processados
pela engrenagem metalinguística que gira ao redor da figura do Fazendeiro.
A unidade poética assume, como principal característica, a produção de uma
mitologia num imbricamento ideológico, literário e histórico. A obra acaba por se caracterizar
como uma espécie de engrenagem produtora e reprodutora.
2. AS ENGRENAGENS DO MITO
“(...) É mais provável que o desejo sentido pelo homem das sociedades
tradicionais, no sentido de recusar a história, e de confinar-se a uma infinita repetição
dos arquétipos, esteja nos dando o testemunho de sua sede pelo real, e seu tenor pela
‘perda’ de si mesmo, deixando-se dominar pela falta de significado da existência
profana.”138
Depois da definição de seu Centro arquetípico em Concerto a Céu Aberto para Solos
de Ave, Manoel de Barros passa a reapropriar-se dos elementos de seu universo, muitos deles
79
já definidos nos primeiros livros. A possibilidade de retomada explica-se pela concretude do
substrato estabelecido pelo Centro onde impera o Avô. Tendo um núcleo de realidade, as
variações sobre o mesmo tema conseguem definir um ponto inicial ao qual é possível retomar,
tomando-se o movimento em seu sentido mitológico, e, logo, sustentar toda uma mitologia.
Não por acaso, o título do primeiro livro depois de Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave
é O Livro das Ignorãças, publicado em 1993. A ironia está em que, desde a grafia de
“ignorãças”, que se quer arcaica (no sentido de fundadora), até o conteúdo da obra, a estrutura
mitológica é reproduzida por meio de um movimento metalingiiístico consciente. No primeiro
texto da terceira parte do volume, intitulada “Mundo Pequeno”, assiste-se ao pleno
funcionamento das engrenagens do mito. A referência é à tenra infância do autor, agora um
pouco mais crescido que o “guri” que regava a árvore no porão do Avô. Cabeludinho brinca
com os limites das coisas.
Mesmo se não se fizer menção às citações anteriores dos elementos que compõem o
texto acima, como a casa, o rio, as árvores, o quintal, a avó e o menino imaginoso -ou a
“Pedido Quase uma Prece”, poema citado no primeiro capítulo desta análise e do qual são
glosados os elementos neste “O mundo meu é pequeno, Senhor”-, é impossível deixar de
80
encontrá-los nos volumes seguintes. É o caso, por exemplo, de Livro sobre Nada (1996):
“Retiro semelhanças de pessoas com árvores/ de pessoas com rãs/ de pessoas com pedras”140
ou Ensaios Fotográficos (2000): “A lata morava no quintal da minha casa entregue/ às suas
ferrugens./ E o peixe no rio./ Veio um dia entrou uma enchente no quintal da/ minha casa.”141,
para citar apenas dois.
Os elementos conformam uma dimensão super-regional, transposta aqui como um
espaço particular, mágico e fantástico, no qual as forças que mantêm as unidades próximas
extrapolam as relações tradicionais cotidianas entre elas, de onde decorre a definição de que
as coisas desse lugar estão “comprometidas/ com aves”. O inusitado da expressão
particulariza as relações no quintal como se construindo um mundo à parte, o chamado
“mundo pequeno”, que, embora pareça destituído de uma referência real, remete ao Centro
gerador através da personagem da Avó (Avô), importante incentivadora, consciente ou não,
da transformação de Cabeludinho em escritor, quando ainda estudante de Direito no Rio de
Janeiro. Numa “carta acróstica”, escreveu o poeta em Poemas Concebidos sem Pecado,
seguindo a linha modernista que caracterizou seus primeiros textos:
“Carta acróstica:
‘Vovó aqui é tristão
Ou fujo do colégio
Viro poeta
Ou mando os padres...’
81
regências verbais. Ela falava de sério. (...) Aprendi nessas férias a brincar de palavras
mais do que trabalhar com elas. (...)”143
82
aqui se caracteriza pela metamorfose das classes gramaticais das palavras, como na série
seguinte, na qual os substantivos assumem a função de verbos:
“(•••)
147 Veja-se como a questão das metamorfoses, fora desse caráter mitogênico, perde a força. Escreve Vânia Maria
de Vasconcelos: “Manoel de Barros, de outra forma, traz a Natureza para sua poesia a partir de sua própria
experiência que transcende a realidade, pelo menos como a conhecemos. Transcendência esta que se insere numa
interação entre o ser vegetal e seres pequenos como os insetos e o poeta, que sugere uma poesia de transmutação,
quer a partir de temas, quer a partir da própria materialização da linguagem poética. Desta forma, o fenômeno é
o tema dessa poesia e a linguagem é mesmo uma metáfora desta manifestação do ser em comunhão com o
universo que o circunda, seja a partir de influência religiosa ou não.” (Vânia VASCONCELOS, 2002; p. 15).
83
“Cobriram então suas cabeças, desvencilharam-se de
suas vestes, jogaram
As pedras atrás de si, como a deusa ordenara.
As pedras - quem acreditaria, não haviam sido elas
Testemunhas mudas da Tradição? -
Começaram a perder a sua rigidez, foram ficando aos poucos
bem mais macias,
A tomar forma, cresceram um pouco,
Ficaram menos grosseiras, assumiram formas humanas,
Ou coisa parecida,
Como estátuas, quando o escultor está apenas começando seu trabalho,
Imagens apenas esboçadas. A parte de terra,
Umedecida por alguma substância, transformou-se em carne, a sólida,
Em ossos, as veias apareceram nos lugares de sempre.
As pedras que o homem atirara transformaram-se em homens,
As pedras que a mulher atirou transformaram-se em mulheres,
Sendo essa a vontade de Deus. Daí deriva
A dureza que temos, e nossa resistência
E a prova de nossa origem.
Outras formas
De vida apareceram, geradas
Pela terra: o sol secou a umidade,
O calor fez os pântanos incharem; as sementes
Mergulharam no ventre materno para ganharem forma e conteúdo
E então novas espécies vieram à vida. (,..)”148
84
do texto pode sugerir, seus últimos versos (“De tarde um velho tocará sua flauta para inverter
os / ocasos”) revertem o sentido e abrem uma brecha por onde penetra a ideologia.
Como uma das raras sugestões de uma figura mítica clássica, isto é, presente nos
relatos mitológicos tradicionais, a presença do velho que empunha uma flauta remete ao deus
Pã. No entanto, sua apropriação passa por um crivo temporal completamente estranho à
natureza mitológica. Enquanto procedimento de presentificação de um passado, o movimento
85
mitológico não conhece o estatuto de irreversibilidade que é estabelecido pelo sentido
histórico. Nas palavras de Mircea Eliade em Mito do Eterno Retomo:
“O que tem importância capital para nós, nesses sistemas arcaicos, é a abolição
do tempo concreto, e daí sua intenção anti-histórica. Essa recusa em preservar a
memória do passado, mesmo do passado imediato, parece-nos indicar uma
antropologia particular. Referimo-nos à recusa do homem arcaico no sentido de
aceitar-se como ser histórico, sua recusa em dar valor à memória e, portanto, aos
acontecimentos fora do comum (isto é, eventos que não contam com um modelo
arquetípico), que, de fato, constituem a duração concreta.”150
“Diz a mitologia
(arejadas salas, de
nítidos enigmas
povoadas, mariscos
ou simples nozes
cuja noite guardada
à luz e ao ar livre
persiste, sem se dissolver)
diz, do aéreo
86
parto daquele milagre:
“(...) Pela primeira vez, encontramos afirmada e cada vez mais aceita a idéia de
que os acontecimentos históricos têm um valor em si mesmos, enquanto são
determinados pela vontade de Deus. Esse Deus do povo judeu já deixara de ser uma
divindade oriental, criadora de gestos arquetípicos, e passara a ser uma personalidade
que intervinha incessantemente na história, que revelava sua vontade por intermédio
dos acontecimentos (invasões, cercos, batalhas, e assim por diante). Desse modo, os
fatos históricos se transformaram em ‘situações’ do homem em relação a Deus, e,
como tal, eles adquiriram um valor religioso que nada, antes, tinha conseguido lhes
conferir. Assim, pode-se dizer, com um fundo de verdade, que os hebreus foram os
primeiros a descobrir o significado da história como epifania de Deus, e essa
concepção, como seria de esperar, acabou sendo assimilada e ampliada pelo
cristianismo.”154
87
Transpassada do início ao fim (do primeiro ao último verso) pelo fluxo histórico, a
função geradora e reprodutora da engrenagem de Manoel de Barros, resumida no poema-
síntese que está sendo analisado, alcança uma dimensão inédita ao inserir seu autor, que está
no centro das metamorfoses, como personagem historicamente definido no espaço super-
regional que surgia aparentemente alienado, uma vez que apenas literariamente constituído.
A fenda histórica assim reproduzida permite a consolidação da posição social do Fazendeiro,
uma vez que a possibilidade histórica é acompanhada da ideológica. A confirmação dessa
posição no interior de uma estrutura mitológica hierarquizada, no entanto, depende da fixação
dos alter egos do poeta como subordinados do proprietário.
88
Só as crianças e as putas do jardim entendiam a sua fala
de furnas brenhentas. (,..)”155
E que retoma no texto intitulado “Mário Revisitado” do Livro sobre Nada (1996):
Embora se perceba que a abordagem é mais narrativa na segunda citação, cujas frases
longas e articuladas sugerem um texto em prosa mais que em versos, a essência de Mário-
pega-sapo permanece inalterada. Trata-se de um ser afastado da sociedade cujos hábitos fora
da normalidade aceita e ditada pelas regras sociais causam estranhamento ao observador. O
olhar analítico procura retirar dele algo de útil, ou algo do obscuro que o poeta, considerando-
se sua racionalidade observadora, quase científica, parece não possuir. O distanciamento é a
forma de tratamento comum a toda a constelação de alter egos. Se a superioridade analítica
pode explicar parte do prosaísmo do texto, é na especificidade mitológica da construção que
se deve buscar o fundamento para a estrutura do poema, tendo-se em vista que o mito se
estabelece tradicionalmente a partir de uma narração. Como função primeira, os textos
constituem uma constelação de seres mitológicos que sustentam, por contraste, a posição
social central de Manoel de Barros, apartado “civilizadamente” do natural circundante. Nesse
sentido foi criado Sabastião no primeiro livro do autor:
89
“Todos eram iguais perante a lua
Menos só Sabastião, mas era diz-que louco daí pra fora
-Jacaré no seco anda? - preguntava.
Como bugre natural das terras pantaneiras, o personagem apresenta uma incapacidade
para a vivência em sociedade como a cultivada pelos patrões. Essa espécie de deficiência aos
olhos do Fazendeiro é então construída por Manoel de Barros como um dom, uma
característica especial que permite a ele, subordinado, um maior contato e compreensão da
90
natureza circundante159. Os exemplos de seres assim caracterizados ao longo da obra são
inúmeros, como o Bola-Sete, Andaleço, Apuleio, Nhanhá, Maria-pelego-preto ou o recente
Joaquim Sapé, apresentado em Tratado Geral das Grandezas do ínfimo:
“Acho que depois de grande andei a querer salvar o mundo. Viajei fugido da
polícia várias vezes para o Pantanal. Depois desejei conhecer a vida primitiva dos
índios da Bolívia, do Equador, do Peru. Da viagem para os países dos Andes fui parar
em Nova York. Lá vivi um ano. Levei um choque cultural. Dos primitivos puríssimos
159 A referência aos seres afastados da sociedade normalmente é feita pela crítica sem levar em conta o contraste
social e a consequente valorização “senhorial”. Exemplo está no texto introdutório a Gramática Expositiva do
Chão - Poesia quase Toda, de Berta Waldman: “A eleição da pobreza, dos objetos que não têm valor de troca,
dos homens desligados da produção (loucos, andarilhos, vagabundos, idiotas de estrada) formam um conjunto
residual que é a sobra da sociedade capitalista: o que ela põe de lado, o poeta incorpora, trocando os sinais.”
(BARROS, 1992; p.26)
160 Id., 2001; p.37
91
a Picasso, Braque, ChagaL Me completei e voltei ao Rio para casar, ter filhos e voltar
às minhas origens de brejo e dicionários.”161
162 Ibid.
163 Região de história pouco explorada ou conhecida, o Oeste sofre as consequências do desenvolvimento da
atividade pastoril: “O regime pastoril passou a marcar-se como fora do ritmo nacional, estático, atrasado e
perdido. Entregue ao seu domínio exclusivo, que não transformara, para acompanhar o diapasão evolutivo das
outras regiões brasileiras, mormente aquelas em que a lavoura se infiltrava e dominava, o Oeste teria de sofrer as
consequências de suas peculiaridades, do seu primitivismo, de condicionais que o vinculavam tão
prejudicialmente a um ritmo muito mais lento (...) Dessa forma, o regime pastoril, que foi o grande fator de
92
exista efetivamente na região como se está acostumado a ver devido à propagação incansável
das imagens pela mídia e pela indústria cultural, a relação entre patrões e empregados
continua da mesma natureza, apesar das nuances.
“Certamente, a servidão pastoril não pesa, ela não se reveste de formas brutais
de requintes bárbaros. Está no caráter de dependência, entre trabalhador e patrão.
Ambos se colocam, entretanto, nos outros planos, quase em pé de igualdade. A
hierarquia pastoril é mínima. A liberdade de movimento, larguíssima.”164
“22.1
O nome de um passarinho que vive no cisco é joão-ninguém. Ele parece com
Bernardo.”167
civilização, de desbravamento passou a ponderar como elemento de retardo.” (Nelson Werneck SODRÉ,
1990; p.68)
164 Ibid., p. 131
93
Ou
“1.10
Bernardo fala com pedra, fala com nada, fala com árvore. As plantas querem o
corpo dele para crescer por sobre. Passarinho já faz poleiro na sua cabeça.” 168
94
escutamentos de Bernardo.
Ele via e ouvia inexistências.
Eu penso agora que esse Bernardo tem cacoete para
poeta.”170
A forma em que essas anotações anunciadas pelo poeta surgem nas páginas que se
seguem à apresentação transcrita acima pretendem se aproximar do lirismo dos haicais
orientais, verdadeiras peças de sublimidade poética, onde importa não apenas a métrica, mas a
delicadeza e a perspicácia da percepção do poético, normalmente relacionado ao natural e
sugerido para além das palavras registradas. Pois é com 52 haicais que “O Livro de Bernardo”
se completa. Sobre a maneira distinta do “falar” de Bernardo, Manoel de Barros comentou em
2001 na Folha de S. Paulo:
“Bernardo fala que aves sonham ser ele! Tenho que respeitar. Quem recebe das
aves esse presente, essa homenagem de ser cantado por elas, tem que cantar
desdobrado igual a elas. A cisão dos versos vem de Bernardo ser tartamudo. Fui
recolhendo devagar suas solenidades de linguagem, mais ou menos nessa forma
entrecortada com que falava. Bernardo só usa as palavras para compor seus silêncios.
Se Bernardo fosse estudado, acho que ele escolheria essa forma de haicai para compor
seus silêncios.”171
Ou
95
“Tenho candor
por bobagens.
Quando eu crescer eu vou ficar criança” 173
Ou ainda
“Passarinho
faz árvore de tarde
nos andarilhos.”174
96
CAPÍTULO 4
A REALIZAÇÃO DO MITO
1. A PALAVRA-FOTOGRAFIA
Ainda em andamento, a produção mais recente de Manoel de Barros não pode ser
claramente definida. Vislumbram-se apenas traços sugestivos de mudanças a partir de Ensaios
Fotográficos (2000). A referência à mediação tecnológica da máquina, ao mesmo tempo em
que introduz o estranho materializa o produto das engrenagens mitológicas. Obra curiosa e
desviante, nela a imagem deixa o artificialismo preparando a concreção da fábula. A síntese
das partes contrastantes que compõem o volume é a composição definitiva do espaço poético
mitológico. Comparem-se dois textos do livro Ensaios Fotográficos: “O Poeta”, da parte
“Álbum de Família”, e “O Fotógrafo”, da parte “Ensaios Fotográficos”. Começando pelo
primeiro:
“Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longos da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.”175
97
Ao contrário do que o título drummondiano “Álbum de Família” pode sugerir, a
segunda parte de Ensaios Fotográficos não repensa ou revisita as relações humanas perdidas
para sempre no tempo e no espaço, como em “Viagem na Família”. Sem contar o teor de
negatividade, de crítica, que há no poema de Drummond.
Longamente caminhamos.
Aqui havia uma casa.
A montanha era maior.
Tantos mortos amontoados,
o tempo roendo os mortos.
E nas casas em ruína,
desprezo frio, umidade.
Porém nada dizia.
(...)
No deserto de Itabira
as coisas voltam a existir,
irrespiráveis e súbitas.
O mercado de desejos
expõe seus tristes tesouros;
meu anseio de fugir;
mulheres nuas; remorso.
Porém nada dizia.
(...)
Vi mágoa, incompreensão
e mais de uma velha revolta
a dividir-nos no escuro.
A mão que eu não quis beijar,
o prato que me negaram,
recusa em pedir perdão.
Orgulho. Terror noturno.
Porém nada dizia.
98
(...)
A pequena área da vida
me aperta contra o seu vulto,
e nesse abraço diáfano
é como se eu me queimasse
todo, de pungente amor.
Só hoje nos conhecermos!
99
TbD/FFLCH/USP
Já os alter egos estão registrados por um viés, pode-se inferir, social, em “A Borra”,
um texto no qual se enumeram os personagens como em uma justificação da posição
definitiva e necessária de subordinados que eles devem assumir conformando assim uma
“constelação” mantenedora da figura central do poeta-fazendeiro, corroborando, portanto, o
processo anteriormente identificado:
100
Um dia alguém me sugeriu que adotasse um
alter-ego respeitável -tipo um príncipe, um
almirante, um senador.
Eu perguntei:
Mas quem ficará com os meus abismos se os
pobres-diabos não ficarem?”179
179 Ibid.,p.61
101
como única maneira legítima de construir uma realidade. Essa perspectiva remete à epígrafe
de “Álbum de Família” tomada de Clarice Lispector: “Eu te invento, ó realidade!”, e ao fecho
“Eu assumi: entrei no mundo das imagens”.
A relação entre o real e o imagético, porém, só se efetiva se a leitura de “O Poeta”,
transcrito atrás, for realizada em paralelo à do poema “O Fotógrafo”:
102
Repare-se nos versos acima como o registro dos intangíveis “silêncio”, “existência”,
“perdão”, “perfume” e “sobre” só é possível através da interferência de um ser ou objeto
concreto. Seja o “bêbado”, a “lesma” ou o “olho”, sem o suporte fotografável não é possível o
registro pelo poema. A transmutação do imaterial em palpável através dos versos pretende
materializar as próprias palavras, como se revelasse uma nova função do poema em paralelo à
da fotografia. Nesse sentido metalinguístico, a menção à “nuvem de calça” do russo
Maiakovski não apenas resume a finalidade da construção ao unir abstrato e concreto, mas
remete a uma poética afim. Sobre o assunto escreveu Boris Schnaiderman no texto
“Maiakovski: evolução e unidade”:
103
a melhor tradução do movimento de concreção, no sentido de materialização, que o poema
pretende estruturar. Sobre o caráter de índice da foto, escreveu Philippe Dubois:
Tanto ato quanto contigiiidade com o real são os eixos de fundamentação do poema
“O Fotógrafo”. Ao estabelecer os elementos materiais como suportes para a visualização dos
104
impalpáveis, o texto aproxima a ação da palavra poética à do ato fotográfico. A mediação pela
imaterialidade da palavra possibilita o desmembramento dos pares formados pela máquina
isolando suas partes abstratas, dessa maneira alterando o processo fotográfico natural e
fazendo da poesia um meio para a concretização do abstrato, como que se se conseguisse o
registro do “inexistente”. Ou, em melhores palavras, a confirmação material, pois fotográfica
e, portanto, testemunhal, da existência do abstrato ou “inexistente”. Assim, dos pares
carregador-silêncio, jasmim-perfume, lesma-existência, pedra-existência, olho-perdão e casa-
sobre, a palavra-fotografia fixa invariavelmente o segundo termo. A mesma construção
fundamenta, embora de maneira menos explícita, o poema “Ruína”, também de “Ensaios
Fotográficos”:
Se a ruína remete à leitura feita por Susan Sontag da fotografia como um “rastro”,
uma “máscara mortuária”, o caráter construtivo da “desconstrução” acima referida só é
compreendido pela aproximação entre palavra e fotografia, uma vez que a aproximação da
ruína do significante “AMOR” (ou seja, o resto (rastro) do real em paralelo ao registro
“vazio”, “abandonado”) estabelece a única solução positiva, isto é, a materialização do
impalpável representado metaforicamente pelo “lírio renascido”.
Aprofundando a comparação entre os poemas “Ruína” e “O Fotógrafo”, perceba-se
como suas estruturas não apenas estão assentadas na utilização da palavra-fotografia, mas
105
aproximam-se pela narrativa fabular que engendram. De um lado, o encontro do “eu lírico”
com um monge, de outro, a forma, mais interessante, como o poeta-fotógrafo se insere
(“fisicamente”) no momento do flash através de uma série narrativa iniciada por “Eu conto” e
intercalada por variações de “Preparei minha máquina”, “vi” e “fotografei”. Tanto num texto
como no outro, as molduras fabulares direcionam a leitura para o real, particularmente a
segunda, em que o ato fotográfico está presente no produto artístico da operação. Por isso, se
as fabulações emolduram (e estruturam) os instantes, também se concretizam como realidades
no espaço em que a palavra registra o imponderável. O resultado está além do texto, além das
palavras, está no que o autor denominou “reino das imagens”.
106
de pássaros.
Daqui vem que todas as pedras podem ter qualidades
de sapo.
Daqui vem que todos os poetas podem ter qualidades
de árvore.
Daqui vem que os poetas podem arborizar os pássaros.
Daqui vem que todos os poetas podem humanizar
as águas.
Daqui vem que os poetas devem aumentar o mundo
com as suas metáforas.
Que os poetas podem ser pré-coisas, pré-vermes,
podem ser pré-musgos.
Daqui vem que os poetas podem compreender
o mundo sem conceitos.
Que os poetas podem refazer o mundo por imagens,
por eflúvios, por afeto.”187
No “reino das imagens”, parece ser uma regra a interpenetração de qualidades entre
seres vegetais, animais, minerais e humanos. Neste universo, o texto faz da palavra, que
assume o status de “despalavra”, um meio de busca da imagem, ou seja, daquela capaz de
conjugar contrários e assim comportar e, ao mesmo tempo, transcender a lógica da realidade.
Nas palavras do crítico Octavio Paz:
189 Sobre a diferença entre “estado poético” e composição do poema ver “Poesia e Pensamento Abstrato”, de
Paul Valéry, poeta citado por Manoel de Barros em entrevista à Folha de S.Paulo'. “Segundo Valéry, a poesia é
107
palavra-fotografia (“Hoje eu atingi o reino das imagens, o reino da / despalavra”),
paradoxalmente -uma vez que a “despalavra” também é uma palavra- intermediando a
passagem para além do poema. Remetendo obrigatoriamente ao artifício da fotografia, no
entanto, a “despalavra” acaba por ter uma natureza material que empresta da característica
indiciai da imagem fotográfica, além de sua natureza fortemente conceituai. Por isso, a
transcendência para o “reino da imagem” é construtiva, enquanto realizadora do nomeado.
Para explicitar esse processo, Manoel de Barros recorre a um alter ego, como sempre faz nos
momentos-chave de sua obra (vide o poema “Encontro de Pedro com o Nojo”, por exemplo).
Imóvel, Bola Sete é a própria imagem realizada em sua característica indiciai. Todo o
ao redor real é comandado pelo personagem que funciona como que um gerador de paisagens
fabulares, assim como a máquina fotográfica devolve os retratos do mundo próximo (“O
mundo era perto”). Seu instrumento, ou ainda, matéria-prima, são as “letras”, uma
desconfiguração mais radical da palavra e seus conceitos inerentes que aquela pretendida com
a utilização do termo “despalavra”. A relação entre a imagem e a palavra também está na
referência explícita a Yosa (Taniguchi) Buson, autor de haicais que é lembrado pela sua
pensar por imagens (...) A mim nunca me impressionou a filosofia.” (entrevista concedida a Marcelo PEN em
2004).
i90BARROS, Ensaios Fotográficos, 2000; p.33
108
pintura de um “caranguejo”. O haicai aqui é tomado na sua essência e não na sua forma, como
algumas vezes acontece no chamado “Livro de Bernardo”, apresentado no volume posterior
Tratado Geral das Grandezas do ínfimo (2001), ou seja, é tomado como índice da superação
do poema e de sua racionalidade em prol de uma realidade a ser descoberta a partir das
sugestões do texto, uma realidade que neste caso, no entanto, está representada pela imagem
(“caranguejo”)191.
Mas a substância da composição está na nomeação, referida no poema pela
“desverbalização”, que remete, por sua vez, à “desverbação” do último verso. Ao mesmo
tempo referência à própria oração e, logo, ao texto, o termo “desverbado” indica a falta de
ação e por isso a substancialização do registrado, substância que também inclui o sentido de
concreção / realização, enfim, do ser poético. Através das palavras-fotografia, portanto, Bola
Sete ganha vida no interior desses versos que criam o reino delimitado (“Bastava estender as
mãos que chegava no fim do/ mundo”). Um reino cujas características (riacho, nuvem, rã)
lembram o espaço dominado pelo rio, pelo quintal e pelo menino, apresentado em poemas
como “O mundo meu é pequeno, Senhor” (de O Livro das Ignorãças), analisado antes como
( síntese das engrenagens mitológicas que movem a literatura do autor. Se a característica
mitológica e fabular do lugar-gerador já vinha definida, entretanto, está em “O Casamento”,
último poema da parte “Ensaios Fotográficos” do livro homónimo, a sua confecção
efetivamente fotográfica.
191 Nas palavras de Octavio Paz: “Arte não intelectual, sempre concreta e antiliterária, o haiku é uma palavra
cápsula carregada de poesia, capaz de fazer saltar a realidade aparente.” (Octavio PAZ, 2005; p.163)
109
E a lata estava pegando craca no corpo.
Deu-se que o peixe se enferrujou da lata.
E penetrou em dentro nela.
O peixe estava enferrujado (apaixonado) na lata.
Penso que se deu um quiasmo: uma contaminação
retórica do peixe com a lata.
Houve o casamento.
Moral da fábula: o peixe que não gozava de ser
sucata quis gozar.” 92
Ao empreender uma “aventura linguística” em seu “Mundo Pequeno” (“O mundo meu
é pequeno, Senhor./ Tem um rio e um pouco de árvores./ Nossa casa foi feita de costas para o
rio./ Formigas recortam roseiras da avó./ Nos fundos do quintal há um menino e suas latas/
maravilhosas”), Manoel de Barros focaliza o centro de seu espaço regional através de
palavras-fotografia, tornando real a fonte do mitológico e, por conseguinte, seus elementos. A
tradução desse lugar-gerador em “despalavra” começa no verso à Gertrude Stein “Uma lata é
uma lata é uma lata é uma lata”. Desconceitualizada, “lata” é reduzida a seu significante e, por
isso, no espaço de fabulação do quintal da casa/rio pode encontrar um “peixe” e com ele
realizar um “quiasmo”, entendido como “contaminação/retórica”. Se a imagem é rica em
plasticidade, muito pouco diz se tomada metaforicamente. O encontro da lata com o peixe é
visto, em primeiro lugar, como uma anomalia gramatical (quiasma), em que acontece uma
contaminação sintática. Em segundo lugar, a operação assumidamente lingiiística remete à
natureza das palavras-fotografia, uma vez que a leitura do texto sobrepõe-se às unidades
fabulares apresentadas em “O mundo meu é pequeno, Senhor”.
Dessa composição entre imagético, representado aqui pela concepção linguística em
“despalavras”, e o fabular (de “O mundo meu é pequeno, Senhor”), combinam-se o imaterial
(fábula) com o real (imagem), repetindo-se o mesmo e original procedimento apresentado no
poema “O Fotógrafo”, raiz da constituição da palavra-fotografia. Se não bastasse a leitura
cruzada dos dois poemas, o termo “fábula” aparece pela primeira vez na expressão “moral da
fábula”, trazendo a estrutura tradicional do gênero para o texto que é seu avesso e sua
justificativa. Explicitando o elemento linguístico formador da fábula, portanto, Manoel de
Barros realiza esta última e, conseqúentemente, todo o espaço regional em que existe como
110
autor-fazendeiro. Ou, em outros termos, a concreção do centro gerador do sistema mitológico
do poeta suporta a formação de um reino a partir das imagens.
3. O VERBO TRAVESTIDO
111
O pronome “ele” referido nesse sexto poema da primeira parte remete ao texto
anterior, que termina com “Mas ele mesmo, o menino / Se ignorava como as pedras se
ignoram”194, personagem que também abriu o volume em “Por viver muitos anos dentro do
mato / moda ave / O menino pegou um olhar de pássaro- / Contraiu visão fontana”195. Com
esse artifício, fica consolidada uma inédita armação narrativa dos versos da seção. Não que
seja novidade a auto-referência na obra do autor, mas a utilização às claras de artifícios de
articulação mais comuns à prosa -usados também, por exemplo, entre os poemas de número
dois (“A gente se acostumou de enxergar antigamentes”196, último verso) e três (“Por forma
que o dia era parado de poste”197, primeiro verso).
Entretanto, os versos confluem para “a canção do ver”, expressão em destaque (pelo
tamanho, posição no poema e sinal gráfico) que, arranjada em “E o que dava santidade às
nossas palavras era / a canção do ver!”, realiza a mesma função da palavra-fotografia.
Acompanhando-se a série de afirmações sobre o poder gerador que antecede a expressão,
“Ninguém de nós, na verdade, tinha força de fonte / Ninguém era início de nada. / A gente
pintava nas pedras a voz”, nota-se que a “canção do ver” se resume à efetivação da pintura da
voz nas pedras ou, em outros termos, à efetivação do registro rupestre do abstrato (voz). Se a
palavra-fotografia registrava um elemento abstrato mirando no concreto, a ação da “canção”
toma à pedra o significante (visual) registrado a partir da voz (pintura rupestre)
materializando-o. No jogo de travestimentos, essa concreção própria da palavra-fotografia
aqui se desenvolve sob a aparência de pintura rupestre e sob o rótulo de “santificação”,
através do qual o poeta se refere ao poder gerador do Verbo (palavra), isto é, a sua “força de
fonte”, no mesmo sentido da nomeação (fazer existir) citada anteriormente.
O desenvolvimento dessa “visão fontana” anunciada no primeiro texto do livro está
na “teologia” apresentada em Poemas Rupestres. Reunidos sob o título de “Teologia do
Traste”, os versos remetem ao que há de mais recorrente na obra de Manoel de Barros,
organizando os elementos através de argumentos racionais e justificando com eles a
concreção operada pelas “palavras santificadas” e, dessa maneira, a existência de seus
objetos:
197 Ibid., p. 15
112
“As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo da minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são a luz do espírito -a gente sabe.
Há idéias luminosas -a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atómica, a bomba
atómica, a bomba atôm
............................................................ Agora
eu queria que os vermes iluminassem.
Que os trastes iluminassem.”198
113
dos versos o simples registro do “estado de poesia” experimentado. Como mais um
instrumento de despistamento nessa poesia travestida, a forçada naturalidade pode ser lida
tanto na “despalavra” quanto na metalinguagem particular do autor, que nunca reflete
efetivamente sobre o fazer poético, mas sobre as palavras e a forma como elas conseguem
concretizar seu espaço regional. Da comparação do texto “O Lápis” de Poemas Rupestres
com “O mundo meu é pequeno, Senhor” de O Livro das Ignorãças, de 1993 (ambos
transcritos em sequência abaixo), verifica-se como, ao glosar a si mesmo, o autor coloca o seu
centro mitológico sob a ação da “canção do ver”.
Primeiro, “O Lápis”:
114
Seu olho exagera o azul.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas
com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco, os
besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os
ocasos.” 200
115
Fazendo das palavras representantes de seu próprio rosto (“Hoje amarrarei no rosto
das palavras minha máscara”), Manoel de Barros consolida a materialização através delas
como indicava o poema “O Lápis” e todo o processo que subjaz aos textos de Poemas
Rupestres. Por esse desenvolvimento coordenado, o livro mostra-se mais interessante que o
imediatamente anterior a ele, intitulado Memórias Inventadas-A Infância (2003).
Apresentado num formato diferente, Memórias Inventadas desvia o desenvolvimento
da construção poética como está sendo examinada. Embalados numa caixinha de papelão e
impressos em folhas soltas amarradas por uma fita de cetim, os poemas em prosa reescrevem
situações, temas e personagens e retomam procedimentos das obras anteriores, principalmente
dos textos que se referem à infância do poeta como Cabeludinho. Curiosamente, cada
conjunto de versos é acompanhado de uma iluminura, com características que remetem a
pinturas rupestres, feitas pela filha do autor, Martha Barros. Entretanto, não se poderia
entender a aproximação das imagens que se querem primitivas ao universo inicial do autor-
Cabeludinho como uma maneira de atualização poética? Ou, em melhores palavras, como
uma maneira de aplicar a poética agora consolidada aos primeiros poemas? Ou, mais além,
não estaria a aplicação da poética corroborada pela materialidade do formato livro-presente,
que pode ser considerado, em última instância, como um instrumento de realização do
universo do autor, como que efetivando o efeito de concreção da palavra-fotografia ao
oferecer os versos como objetos palpáveis nas folhas soltas e ilustradas?
Por via das dúvidas, enquanto esse novo e, ao mesmo tempo, antigo caminho não se
consolida, retome-se a análise puramente literária de Poemas Rupestres que, ao contrário,
segue a linha de composição que vinha se desenhando aos poucos para aplicá-la no que se
supõe seja a base da criação do autor: o desejo de fazer de sua poesia a fonte original de seu
próprio universo. O resultado é a confirmação da existência material (concreta) do espaço
regional mitologizante, desde seu centro gerador (mitológico) até seus elementos constituintes
(personagens e unidades do Pantanal) e, conseqúentemente, do poeta ele mesmo.
116
CAPÍTULO 5
117
assumem o dado como cenário desolador, naturalisticamente apresentado como
intransponível. Pensando no desenvolvimento de uma obra que sirva de meio de
autopromoção, os poetas vivem uma dimensão apartada e medrosa, que pode, em linhas
gerais, ser comparada à dimensão super-regional que Manoel de Barros preparou
poeticamente para si mesmo.
Entretanto, com o intuito de superar o literário em favor do mercado, Manoel de
Barros encontra na palavra-fotografia o artifício através do qual procura fazer com que a
realidade contamine a dimensão puramente poética. Acionada em sua característica indiciai, a
palavra-fotografia como que ultrapassa a nomeação exercida pela palavra poética (aquela que
“faz existir”, como escreve Octavio Paz), sendo utilizada como instrumento capaz de
estabelecer a contiguidade entre o literário e o real. Essa aproximação corresponde à
necessidade de uma poesia cujo objetivo é constituir-se definitivamente como produto real e
participante efetivo do mercado, uma poesia, portanto, que tenta se posicionar além da
existência poética, ou ainda, de sua função nomeadora. Com isso, a mitologia ganha um outro
caráter, ou seja, os personagens, o dado local e até mesmo o poeta Fazendeiro são como que
travestidos, para remeter ao capítulo anterior desta análise, de uma existência palpável, real e
possível, já que assegurada pela palavra-fotografia, naquela realidade literária.
Uma vez submetido a esse processo de concreção poética, o conservadorismo do poeta
Fazendeiro (e, por conseguinte, ele mesmo) pode funcionar na condição de mercadoria
passível de ser comercializada na cidade como um produto concreto qualquer que atende e
movimenta o mercado onipresente (condição que o próprio autor parece concordar ao publicar
um livro como Memórias Inventadas - A Infância, comentado no capítulo anterior).
Justificando-se e oferecendo-se como um objeto literário real, portanto, Manoel de Barros e
toda sua mitologia poética parecem suprir a demanda de conformismo e de ordem dos
habitantes da cidade, que fazem dos versos do autor frases para estampar camisetas e
declamar como expressões de um mundo ideal ainda a ser conquistado, um verdadeiro paraíso
artificial viável no meio da barbárie.
No entanto, a materialidade processada pela poesia de Manoel de Barros não faz dele
um “Rimbaud visionário”, como o quer Larrosa no ensaio introdutório atrás citado (do livro
Todo lo que no invento es falso}, apesar das indubitáveis referências ao autor francês. O
escritor apropria-se tardiamente da poética de Rimbaud como o fez com as de Mário e Oswald
118
de Andrade, ou seja, usa as formas originariamente inovadoras de composição em favor da
criação de um espaço regional seguro e confortável. Muitos ecos das construções de Rimbaud
são ouvidos ao longo da obra de Manoel de Barros. Mesmo a importância atribuída à
composição a partir das imagens parece derivar, de certa forma, dos versos do poeta francês.
Enquanto nas obras anteriores a Poemas Rupestres encontram-se apenas sugestões de
expressões tomadas a Rimbaud, como, por exemplo, “encantamento das palavras” que remete
a “alucinação das palavras”, no mais recente livro o nome do autor de “Le Bateau Ivre”
aparece com todas as letras:
202 Ibid., p. 19
203 A confirmação e o desdobramento da concreção das vogais foi apresentado em “Une Saison em Enfer”:
“Inventei a cor das vogais! -A preto, E branco, I vermelho, O azul, U verde. -Regulei a forma e o movimento de
119
Ensimesmado, o poeta Fazendeiro não comporta o caráter do poeta-Prometeu e
“multiplicador de progresso” projetado por Rimbaud204. Apesar da semelhança formal,
verificada na linguagem que opera o “desregramento dos sentidos”, os objetivos são
contraditórios. A expansão em favor da humanidade e a universalidade que a poesia do autor
francês quer alcançar espraiando-se em uma língua que sirva de “alma para a alma” é
reduzida, na obra de Manoel de Barros, a uma ação local e individualista visando a um
estabelecimento literário de si mesmo. O autor, enfim, não consegue lançar-se além do
poema, uma vez que está nas palavras, e somente nelas, a construção (e a salvação) dele
mesmo como poeta e fazendeiro.
Se é verdade que mais uma vez a leitura de uma poética parece desvirtuada nos versos
do autor do Pantanal, deve-se considerar que os tempos são outros e talvez não se possa
esperar uma atitude tão “romântica” de um poeta contemporâneo. Por outro lado, talvez esteja
na consolidação do desencanto, que está de certa maneira indicado através da volta para si
mesmo, a riqueza dessa poesia que, de uma forma ou de outra, traduz a realidade de um país
que continua partido e perdido entre o novo e o velho, com o agravante de se pensar urbano e
desenvolvido e atropelar-se por isso. Um tempo tão estranho, enfim, que o desencanto ganha a
roupagem da fábula e do mito para assim poder ser comercializado juntamente com seu autor
que se instala no centro de tudo e se alimenta do que oferece para os olhos leitores: ele mesmo
como mercadoria principal.
cada consoante, e, com ritmos instintivos, me lisonjeava de inventar um verbo poético acessível, cedo ou tarde a
todos os sentidos.” (Arthur RIMBAUD, 2003; p.33)
204 A função transcendente e fundadora da poesia está na “Carta do Vidente”, de Rimbaud: “Portanto, o poeta é
mesmo ladrão de fogo. / Ele é encarregado da humanidade, dos animais até; ele deverá fazer sentir, apalpar,
escutar suas invenções; se o que ele traz de lá tem forma, ele dá forma; se é informe, ele dá informe. Encontrar
uma língua; (...) Esta língua será alma para a alma, resumindo tudo, perfumes, sons, cores, pensamento
agarrando pensamento e puxando. O poeta definiria a quantidade de desconhecido nascendo em seu tempo na
alma universal: ele daria mais -que a fórmula de seu pensamento, que a partitura de sua marcha ao Progresso'.
Enormidade que se torna norma, absorvida por todos ele seria mesmo um multiplicador de progresso'.” (Ibid, p.
82)
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