Mbarros
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RESUMO:
O presente estudo pretende mostrar como o poeta Manoel de Barros exerce o poder de criar,
por meio do discurso poético, um universo próprio e, ao mesmo tempo, como ele, como
poeta contemporâneo, estabelece uma convergência com a tradição moderna e modernista
brasileira. Assim, Barros desenvolve, em sua obra, temas caros à lírica moderna, a exemplo
do caráter autorreflexivo da poesia; dos desdobramentos do sujeito lírico em diferentes eus;
da estética do fragmentário; da negatividade e da identificação com os seres mais ínfimos.
Esse diálogo com a tradição proporciona ao escritor, conforme quer Eliot, uma noção mais
perspicaz de seu lugar no tempo e isso não apenas como herança, mas como algo que
envolve essencialmente o senso histórico. Será tomado como corpus de análise a obra
Retrato do artista quando coisa, além de outros textos do conjunto das obras mais recentes
do poeta pantaneiro.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea. Lírica moderna. Manoel de Barros.
Tradição literária.
ABSTRACT
The present study aims to show how the poet Manoel de Barros can create his poetic
discourse, and at the same time, a particular universe. He, as a contemporary poet, sets a
convergence up with a modern tradition and Brazilian modernism. In this way, Barros holds
dear themes to modern lyric like: self-reflexive aspect of poetry, the unfolding of lyric
subject in different selves, the esthetics of the fragment, the negation and identification with
the meanest human beings. This dialogue with the tradition provides the writer, according to
Eliot, with an acute knowledge of his place in time. This is not only a legacy but also
something that involves, mainly, the historic sense. The corpus of this study is based on the
book Retrato do artista quando coisa, as well as other texts from Manoel de Barros - the
‘pantaneiro’ poet.
KEY WORDS: contemporary poetry, Modern Lyric, Manoel de Barros, Literary Tradition.
Para Paz (1993), o contemporâneo configura-se como uma qualidade que se desvanece tão
logo é enunciada, em razão mesmo da dificuldade universal que há entre os homens para definir o
“nome do tempo em que vivem”. Ao se referir, de forma específica, à poesia contemporânea,
coloca-a do lado oposto ao da “tradição da ruptura”, em vista de que, diferentemente da poesia
moderna, há nela um esvaziamento da perspectiva de futuro. E, por não olhar para o futuro e propor
um paradigma novo, ela dialoga com a tradição, provocando o que Paz chama “arte da
convergência” (1993, p.56). No contexto da poesia brasileira contemporânea, isso se confirma pela
diversidade e multiplicidade de poetas cujo projeto estético dialoga com a tradição moderna. É o
caso de Manoel de Barros. O poeta pantaneiro desenvolve, além de um estilo bastante singular,
temas caros à lírica moderna. Em sua poesia, percebem-se o ludismo da linguagem; a consciência
criadora no interior da poesia; o desdobramento do sujeito poético em vários outros eus; a estética
do fragmentário; a linguagem do des- (da negatividade) e, fundamentalmente, a celebração
insistente das nadezas, do insignificante, do ínfimo, conforme a proposta baudelairiana de o poeta
catar na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazer sua crítica heróica, de modo a integrar “no seu
ilustre tipo um tipo semelhante, penetrado pelos traços do trapeiro que tanto preocupava
Baudelaire” (BENJAMIN, 1975, p.15). Barros faz dessas insignificâncias o seu projeto poético,
ético e político. Uma mirada para alguns títulos de obra do poeta já comprova essa opção:
Gramática expositiva do chão, Livro sobre nada, O livro das ignorãças, Tratado geral das
grandezas do ínfimo. A figura de Pote Cru, equivalente do “Senhor” bíblico, em Retrato do
artista quando coisa, é também exemplar disso:
Um primeiro ponto da poesia barreana que vale ser ressaltado diz respeito ao poder de
criançamento dado à palavra, ao modo como confere ludicidade à linguagem. É o que explica
Manoel de Barros, ao expor suas ‘ignorãças’ poéticas, na obra O livro das ignorãças (1994):
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
(BARROS, 1994, p. 17)
O poeta pantaneiro leva ao máximo a função de, na sua poesia, promover “o arejamento das
palavras para que elas não morram a morte por fórmulas ou por lugares – comuns” (BARROS,
1996, p. 310). Para tal, ele faz referência, em Retrato do artista quando coisa, a uma Ilha
Lingüística, "onde poderia germinar um idioleto" (BARROS, 2002, p. 29). Esse "lugar isolado",
como o poeta afirma, é o espaço da poesia, é o universo próprio e muito singular que ele cria para
"entrar em estado de palavra" e "enxergar as coisas sem feitio" (BARROS, 2002, p. 35), as coisas
do chão.
E Manoel de Barros insere Guimarães Rosa em sua Ilha: "Levei o Rosa na beira dos pássaros
que fica no meio da Ilha Lingüística" (BARROS, 2002, p. 33). E por meio de um diálogo
imaginário, o poeta mostra que ele e o escritor mineiro falam o mesmo idioleto: "Rosa gostava
muito de frases em que entrassem pássaros. / E fez uma na hora: A tarde está no olho das garças.
(...) A tarde verde no olho das garças não existia, mas era fonte do ser./ Era poesia." (BARROS,
2002, p.33).
Nesse empreendimento de reinvenção da linguagem, Rosa é, sem dúvida, o escritor de quem
mais Manoel de Barros se aproxima. E o pantaneiro chama a atenção, ainda, para o fato de Rosa
provocar erosões morfológicas e semânticas nas palavras, de aparar-lhes as margens, de ficar, como
ele, em "estado de palavra", de gostar do "corpo fônico" delas. Mais que isso: ao rememorar, em
entrevista, uma conversa com o escritor mineiro, convida-o sorrateiramente: “Temos que
enlouquecer o verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a natureza.
Humanizá-la” (BARROS, 1996, p. 34). E é isso o que se vê: um verbo enlouquecido, transfigurando
a natureza a ponto de humanizá-la e alimentando uma semente genética que deságua sempre “nessa
esquisita coisa de ter orgasmo com as palavras” (BARROS, 1996, p. 331).
Um aspecto da poesia barreana que demonstra uma evidente evolução das outras obras para
Retrato do artista quando coisa (2002) é um aguçamento da consciência criadora e do poder
inventivo que a palavra dá ao poeta. Não por acaso é o título da obra, por exemplo. Manoel de
Barros afirma todo o tempo, na referida obra, o "instinto lingüístico" e nega os "fazimentos
cerebrais" ("Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto
lingüístico", 2002, p.81), nega o conhecimento de livros ("Sabedoria pode ser que seja ser mais
estudado em gente que em livros", p. 81), mas, é por meio do fazimento cerebral e do conhecimento
de livros que busca no título de uma obra de James Joyce - Retrato do artista quando jovem - a
inspiração, subvertida é claro, para o título da sua. Em outra passagem de Retrato do artista
quando coisa, o poeta afirma que
Há, nessa passagem, uma evidente consciência, contraditoriamente sutil e mordaz, de que a
língua convencional, (na qual, inclusive, o poeta escreve), ao contrário da língua dos pássaros, não é
transitiva; carece de conjunções e de "abotoaduras"; é contaminada de contradições e não se
comunica por encantamentos. Ainda nessa perspectiva da consciência crítica, Manoel de Barros,
lúcido do poder ilimitado que a construção poética lhe dá e, aproveitando-se das coisas que o
universo pantaneiro lhe oferece como matéria de poesia - preferencialmente as mais rasteiras -,
experimenta o poder divino da criação. É o que afirma nesse poema:
Ao equiparar-se ao papel do Criador original, o poeta parece demolir, por meio da linguagem,
esse mundo moderno, fragmentado e artificial, e re-criar um outro em que todos os seres - humanos,
vegetais, animais - irmanam-se, integram-se e convivem, harmonicamente, poeticamente. Nesse
ponto, a poesia de Manoel de Barros nega aparentemente a ideia de que a poesia contemporânea
não têm sentido se não estiver posta em relação com o mundo das imagens da mídia ou com a
linguagem desse mesmo mundo. O poeta, na verdade, dá sentido à sua poesia, ao colocá-la em
relação diametralmente oposta com o mundo da mídia e, vai mais além, cria um mundo outro,
totalmente diverso do convencional. Para tal, torna-se o próprio objeto da poesia. É por isso que se
faz presente nela sempre como figura central, pois, afinal, ele é o legislador desse novo universo. A
ele é dado, como na ideia platônica, o poder de nomear as coisas:
Ao delinear o retrato do artista quando, ou como, coisa e legislar também sobre si nesse
mundo reinventado, Manoel de Barros não o faz tomando o sentido clássico de reificação do
homem, mas no sentido de que o artista amplia-se de ser humano para coisa ("A rã me corrompeu
para pedra. Retirou meus limites de ser humano e me ampliou para coisa", p. 13); equipara-se aos
outros seres e passa a ser parte integrante da poesia, qual os pássaros, as pedras, os lírios, o cisco, as
rãs, as latas, as lesmas, os caracóis.
E esse mundo, re-criado por meio do discurso poético, aproxima-se do mundo edênico, em
que o homem adâmico é resgatado, por meio de sua integração com a natureza, de seu primitivismo
e de sua insignificância.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.
_________. Gramática expositiva do chão. Poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.
_________. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.