Mbarros

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 9

MANOEL DE BARROS: LÍRICA, INVENÇÃO E CONSCIÊNCIA CRIADORA

Célia Sebastiana Silva


Doutora - UFG

RESUMO:
O presente estudo pretende mostrar como o poeta Manoel de Barros exerce o poder de criar,
por meio do discurso poético, um universo próprio e, ao mesmo tempo, como ele, como
poeta contemporâneo, estabelece uma convergência com a tradição moderna e modernista
brasileira. Assim, Barros desenvolve, em sua obra, temas caros à lírica moderna, a exemplo
do caráter autorreflexivo da poesia; dos desdobramentos do sujeito lírico em diferentes eus;
da estética do fragmentário; da negatividade e da identificação com os seres mais ínfimos.
Esse diálogo com a tradição proporciona ao escritor, conforme quer Eliot, uma noção mais
perspicaz de seu lugar no tempo e isso não apenas como herança, mas como algo que
envolve essencialmente o senso histórico. Será tomado como corpus de análise a obra
Retrato do artista quando coisa, além de outros textos do conjunto das obras mais recentes
do poeta pantaneiro.
PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea. Lírica moderna. Manoel de Barros.
Tradição literária.

ABSTRACT
The present study aims to show how the poet Manoel de Barros can create his poetic
discourse, and at the same time, a particular universe. He, as a contemporary poet, sets a
convergence up with a modern tradition and Brazilian modernism. In this way, Barros holds
dear themes to modern lyric like: self-reflexive aspect of poetry, the unfolding of lyric
subject in different selves, the esthetics of the fragment, the negation and identification with
the meanest human beings. This dialogue with the tradition provides the writer, according to
Eliot, with an acute knowledge of his place in time. This is not only a legacy but also
something that involves, mainly, the historic sense. The corpus of this study is based on the
book Retrato do artista quando coisa, as well as other texts from Manoel de Barros - the
‘pantaneiro’ poet.
KEY WORDS: contemporary poetry, Modern Lyric, Manoel de Barros, Literary Tradition.
Para Paz (1993), o contemporâneo configura-se como uma qualidade que se desvanece tão
logo é enunciada, em razão mesmo da dificuldade universal que há entre os homens para definir o
“nome do tempo em que vivem”. Ao se referir, de forma específica, à poesia contemporânea,
coloca-a do lado oposto ao da “tradição da ruptura”, em vista de que, diferentemente da poesia
moderna, há nela um esvaziamento da perspectiva de futuro. E, por não olhar para o futuro e propor
um paradigma novo, ela dialoga com a tradição, provocando o que Paz chama “arte da
convergência” (1993, p.56). No contexto da poesia brasileira contemporânea, isso se confirma pela
diversidade e multiplicidade de poetas cujo projeto estético dialoga com a tradição moderna. É o
caso de Manoel de Barros. O poeta pantaneiro desenvolve, além de um estilo bastante singular,
temas caros à lírica moderna. Em sua poesia, percebem-se o ludismo da linguagem; a consciência
criadora no interior da poesia; o desdobramento do sujeito poético em vários outros eus; a estética
do fragmentário; a linguagem do des- (da negatividade) e, fundamentalmente, a celebração
insistente das nadezas, do insignificante, do ínfimo, conforme a proposta baudelairiana de o poeta
catar na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazer sua crítica heróica, de modo a integrar “no seu
ilustre tipo um tipo semelhante, penetrado pelos traços do trapeiro que tanto preocupava
Baudelaire” (BENJAMIN, 1975, p.15). Barros faz dessas insignificâncias o seu projeto poético,
ético e político. Uma mirada para alguns títulos de obra do poeta já comprova essa opção:
Gramática expositiva do chão, Livro sobre nada, O livro das ignorãças, Tratado geral das
grandezas do ínfimo. A figura de Pote Cru, equivalente do “Senhor” bíblico, em Retrato do
artista quando coisa, é também exemplar disso:

Pote Cru é meu pastor. Ele me guiará.


Ele está comprometido de monge.
De tarde deambula no azedal entre torsos de
Cachorro, trampas, trapos, panos de regra, couros
De rato ao podre, vísceras de piranhas, baratas
Albinas, dálias secas, vergalhos de lagartos,
linguetas de sapatos, aranhas dependuradas em
gotas de orvalho etc,etc.
Pote Cru, ele dormia nas ruínas de um convento.
Foi encontrado em osso.
Ele tinha uma voz de oratórios perdidos.
(BARROS, 2002, p. 25).

O criançamento das palavras

Um primeiro ponto da poesia barreana que vale ser ressaltado diz respeito ao poder de
criançamento dado à palavra, ao modo como confere ludicidade à linguagem. É o que explica
Manoel de Barros, ao expor suas ‘ignorãças’ poéticas, na obra O livro das ignorãças (1994):
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
O verbo tem que pegar delírio.
(BARROS, 1994, p. 17)

A teoria expositiva do delírio verbal, nesse poema, é apenas um modo de se evidenciar a


consciência da arte de infantilizar a palavra, pois, ao longo de toda a sua obra, essa é uma prática
constante. No empreendimento de mudar a função do verbo, criança e poeta se equivalem. Veja-se
como a voz do poeta é a voz da criança em várias passagens de Retrato do artista quando coisa:
“Uma rã me pedra”; “Um passarinho me árvore”; “Os jardins se borboletam”. Por trás dessa
aparente falta de lógica, comum na linguagem infantil, esconde-se uma profunda consciência da
criação poética. O poeta inicia o poema em que se encontram as mencionadas passagens, dizendo
que "Bom é corromper o silêncio das palavras" (BARROS, 2002, p. 13). Ao serem verbalizados, os
substantivos ganham dinamismo e o silêncio da palavra é corrompido. Dispondo da mesma
liberdade que tem a criança no manuseio da linguagem, o poeta faz com que a pedra deixe de ser o
mineral estático e ganhe movimento na poesia. E ainda: os sujeitos desses substantivos-verbo
exercem o papel que deveria ser do sujeito lírico. Isso faz com que este se torne objeto (no plano
sintático e semântico), "coisa" (conforme propõe o título da obra) e, consequentemente, também
objeto de poesia. Veja-se: “1.Uma rã me pedra. ( A rã me corrompeu para pedra. Retirou meus limites de
ser humano e me ampliou para coisa. A rã se tornou o sujeito pessoal da frase e me largou no chão a criar
musgos para tapete de insetos e de frades.)” (BARROS, 2002, p. 13).
Essa consciência criadora é que faz a grande diferença. Ao alterar a lógica sintática e
semântica das estruturas linguísticas, Manoel de Barros cria uma lógica própria, uma pré-lógica e
afirma o desejo de volta a um estado inicial e, principalmente, confirma a ideia de que a poesia “tem
a função de pregar a prática da infância entre os homens”. (BARROS, 1996, p. 311). Assim, o
motivo lúdico faz ultrapassar os limites da lógica; abolir a intenção de pura comunicação linguística
e transcender a goma arábica da língua cotidiana, fazendo o verbo "pegar delírio", como o próprio
poeta afirma.
O poeta do chão usa as falas de crianças como porta-vozes para se chegar ao mundo mágico
da poesia, lá onde é inteiramente permitido fazer brinquedo com a palavra e utilizá-la “como se ela
tivesse acabado de nascer, para limpá-la das impurezas da linguagem cotidiana e devolvê-la ao seu
sentido original" e para “restituir a virgindade a certas palavras ou expressões” conforme declara
Manoel de Barros a José Otávio Guizzo”. (BARROS, 1996, p. 310).
Essa opção por uma linguagem lúdica, pura, livre não retira o traço de complexidade que
impulsiona o artista moderno. Muito ao contrário, Manoel de Barros usa certas imagens que beiram
o incompreensível: "Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer. / Apareço de costas. /
Preciso de atingir a escuridão com clareza./ Tenho de laspear verbo por verbo até alcançar o meu
aspro." (BARROS, 2002, p. 21). A maior carga de significação da linguagem parece residir no
espaço mais obscuro. João Alexandre Barbosa, comungando com esse ponto de vista, assim opina:
“O poeta, ao ler a realidade através do poema, constrói um espaço em que a linguagem não oferece
transparência imediata: a sua univocidade está limitada pelo jogo possível das imagens utilizadas.”
(BARBOSA, 1986, p. 26).

A reinvenção da linguagem e o signo do não

Outro aspecto singular na poesia de Manoel de Barros é o objetivo, em se tratando da


linguagem poética, de renovar as mesmices e de fugir à esclerose dos lugares-comuns. Para tal, ele
recorre a um processo permanente de reinvenção da linguagem, de desautomatização do discurso.
Manoel de Barros se posiciona como um autêntico contraventor do vernáculo, ao promover o
resgate das palavras ou expressões que “estão morrendo cariadas, corroídas pelo uso em clichês”,
como ele próprio diz, e, nesse ponto, ele não poupa nem a bíblia. Em várias passagens de Retrato
do artista quando coisa (2002), o poeta estabelece um diálogo com a bíblia, especialmente com as
passagens bíblicas que, de tanto uso, já caíram num discurso automático. Logo no poema de
abertura da obra, o poeta diz, no 4º verso: "Já posso amar as moscas como a mim mesmo".
(BARROS, 2002, p. 11). Ao substituir o termo "próximo", conforme originalmente se encontra em
um dos Dez mandamentos bíblicos, por "moscas", o poeta, além de afirmar sua função coisa, a sua
identificação com os seres mais ínfimos e o "cio vegetal na voz do artista", também parodia a bíblia,
desconstrói o sagrado, num intencional gesto de profanação e abala o lugar-comum. Na passagem
"Pote Cru é meu pastor. Ele me guiará", Barros subverte o salmo 23 da Bíblia Sagrada, pois em
lugar do Senhor (Deus) coloca um mendigo que "deambula" entre "trapos, panos de regra, couros
de rato ao podre, vísceras de piranha, baratas,..., etc, etc." (BARROS, 2002, p.25). A mesma
subversão ocorre em "Só não desejo cair em sensatez" (BARROS, 2002, p. 61). O poeta, ao
substituir "sensatez" por "tentação", coloca um termo diametralmente oposto ao de uma das orações
mais comuns da tradição católica - o Pai Nosso -, na passagem "Não me deixeis cair em tentação".
Ora, mais uma vez, Manoel de Barros transgride, lucidamente, não só o discurso em si, mas o
discurso automatizado.
Nesse mesmo sentido, o poeta declara em Livro sobre nada (1996) que não gosta da "palavra
acostumada". Com o propósito de desacostumá-la de seu sentido comum, recorre, então, em uso e
abuso aos neologismos. O poeta pantaneiro quase que se limita a criar suas palavras novas por dois
processos: o deslocamento da classe gramatical da palavra – verbalizar um adjetivo ou substantivo,
por exemplo, como em "imensam", "analfabetam", "monumentar", "embostando" – e o acréscimo
de prefixos, especialmente do prefixo des – como em "despalavra", "desherói", "deslimites",
"desutilidades", "desbrincar", "desobjeto", "desacontecido", "descomeço", "dessaber". Este último
processo, que é bastante recorrente no poeta, coloca-o em afinamento com uma característica
comum na lírica moderna: a negatividade. A poética do des– faz prevalecer o signo do não. Há uma
variedade de signos que conotam negatividade, pequenez, coisa ínfima, insignificante nos poemas
de Barros. É o que se observa em "inutensílio", "nada", "ocaso", "escuro", "cisco", "chão", "couros
de rato ao podre", "ruínas", "escurecer", "formiga", "fado", "menos" e em outras tantas.
João Alexandre Barbosa, ao tratar dessa negatividade na poesia contemporânea, em artigo
sobre Carlos Drummond de Andrade, atribui-a a um redimensionamento dos valores herdados da
tradição:
A poesia já não é, portanto, arte da linguagem: o seu módulo passa a ser anti por
excelência. Negando-se, para afirmar o espaço que ficou por preencher. O espaço tolhido
pelos escolhos de uma tradição que se tenta recusar, mas que se infiltram traiçoeiramente
pelas frestas da própria linguagem. (BARBOSA, 1974, p. 108-9).

O poeta pantaneiro leva ao máximo a função de, na sua poesia, promover “o arejamento das
palavras para que elas não morram a morte por fórmulas ou por lugares – comuns” (BARROS,
1996, p. 310). Para tal, ele faz referência, em Retrato do artista quando coisa, a uma Ilha
Lingüística, "onde poderia germinar um idioleto" (BARROS, 2002, p. 29). Esse "lugar isolado",
como o poeta afirma, é o espaço da poesia, é o universo próprio e muito singular que ele cria para
"entrar em estado de palavra" e "enxergar as coisas sem feitio" (BARROS, 2002, p. 35), as coisas
do chão.
E Manoel de Barros insere Guimarães Rosa em sua Ilha: "Levei o Rosa na beira dos pássaros
que fica no meio da Ilha Lingüística" (BARROS, 2002, p. 33). E por meio de um diálogo
imaginário, o poeta mostra que ele e o escritor mineiro falam o mesmo idioleto: "Rosa gostava
muito de frases em que entrassem pássaros. / E fez uma na hora: A tarde está no olho das garças.
(...) A tarde verde no olho das garças não existia, mas era fonte do ser./ Era poesia." (BARROS,
2002, p.33).
Nesse empreendimento de reinvenção da linguagem, Rosa é, sem dúvida, o escritor de quem
mais Manoel de Barros se aproxima. E o pantaneiro chama a atenção, ainda, para o fato de Rosa
provocar erosões morfológicas e semânticas nas palavras, de aparar-lhes as margens, de ficar, como
ele, em "estado de palavra", de gostar do "corpo fônico" delas. Mais que isso: ao rememorar, em
entrevista, uma conversa com o escritor mineiro, convida-o sorrateiramente: “Temos que
enlouquecer o verbo, adoecê-lo de nós, a ponto que esse verbo possa transfigurar a natureza.
Humanizá-la” (BARROS, 1996, p. 34). E é isso o que se vê: um verbo enlouquecido, transfigurando
a natureza a ponto de humanizá-la e alimentando uma semente genética que deságua sempre “nessa
esquisita coisa de ter orgasmo com as palavras” (BARROS, 1996, p. 331).

O gozo de re-criar o universo

Um aspecto da poesia barreana que demonstra uma evidente evolução das outras obras para
Retrato do artista quando coisa (2002) é um aguçamento da consciência criadora e do poder
inventivo que a palavra dá ao poeta. Não por acaso é o título da obra, por exemplo. Manoel de
Barros afirma todo o tempo, na referida obra, o "instinto lingüístico" e nega os "fazimentos
cerebrais" ("Não é por fazimentos cerebrais que se chega ao milagre estético senão que por instinto
lingüístico", 2002, p.81), nega o conhecimento de livros ("Sabedoria pode ser que seja ser mais
estudado em gente que em livros", p. 81), mas, é por meio do fazimento cerebral e do conhecimento
de livros que busca no título de uma obra de James Joyce - Retrato do artista quando jovem - a
inspiração, subvertida é claro, para o título da sua. Em outra passagem de Retrato do artista
quando coisa, o poeta afirma que

Na língua dos pássaros uma expressão tinge a seguinte.


Se é vermelha tinge a outra de vermelho.
Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã.
É língua muito transitiva a dos pássaros
Não carece de conjunções nem de abotoaduras
E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros só produz gorgeios.
(BARROS, 2002, p. 67)

Há, nessa passagem, uma evidente consciência, contraditoriamente sutil e mordaz, de que a
língua convencional, (na qual, inclusive, o poeta escreve), ao contrário da língua dos pássaros, não é
transitiva; carece de conjunções e de "abotoaduras"; é contaminada de contradições e não se
comunica por encantamentos. Ainda nessa perspectiva da consciência crítica, Manoel de Barros,
lúcido do poder ilimitado que a construção poética lhe dá e, aproveitando-se das coisas que o
universo pantaneiro lhe oferece como matéria de poesia - preferencialmente as mais rasteiras -,
experimenta o poder divino da criação. É o que afirma nesse poema:

Uso um deformante para a voz


Sou capaz de inventar uma tarde a partir de uma garça.
Sou capaz de inventar um lagarto a partir de uma pedra.
(...)
Experimento o gozo de criar.
Experimento o gozo de Deus.
Faço vaginação com palavras até meu retrato aparecer.
(BARROS, 2002, p. 21)

Ao equiparar-se ao papel do Criador original, o poeta parece demolir, por meio da linguagem,
esse mundo moderno, fragmentado e artificial, e re-criar um outro em que todos os seres - humanos,
vegetais, animais - irmanam-se, integram-se e convivem, harmonicamente, poeticamente. Nesse
ponto, a poesia de Manoel de Barros nega aparentemente a ideia de que a poesia contemporânea
não têm sentido se não estiver posta em relação com o mundo das imagens da mídia ou com a
linguagem desse mesmo mundo. O poeta, na verdade, dá sentido à sua poesia, ao colocá-la em
relação diametralmente oposta com o mundo da mídia e, vai mais além, cria um mundo outro,
totalmente diverso do convencional. Para tal, torna-se o próprio objeto da poesia. É por isso que se
faz presente nela sempre como figura central, pois, afinal, ele é o legislador desse novo universo. A
ele é dado, como na ideia platônica, o poder de nomear as coisas:

Retrato do artista quando coisa: borboletas


Já trocam árvores por mim.
(...)Sou livre para o desfrute das aves
Dou meiguice aos urubus
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas
Já enxergo o cheiro de sol.
(BARROS, 2002, p.11)

Ao delinear o retrato do artista quando, ou como, coisa e legislar também sobre si nesse
mundo reinventado, Manoel de Barros não o faz tomando o sentido clássico de reificação do
homem, mas no sentido de que o artista amplia-se de ser humano para coisa ("A rã me corrompeu
para pedra. Retirou meus limites de ser humano e me ampliou para coisa", p. 13); equipara-se aos
outros seres e passa a ser parte integrante da poesia, qual os pássaros, as pedras, os lírios, o cisco, as
rãs, as latas, as lesmas, os caracóis.
E esse mundo, re-criado por meio do discurso poético, aproxima-se do mundo edênico, em
que o homem adâmico é resgatado, por meio de sua integração com a natureza, de seu primitivismo
e de sua insignificância.

Havia no lugar um escorrer azul de água sobre as pedras do córrego.


(Um escorrimento lírico.)
Andava por lá um homem que fora desde criança comprometido para lata.
Andava entre rãs e borboletas.
Me impressionou a preferência das andorinhas por ele.
Era um sujeito esmolambado à feição de ser apenas uma coisa.
Era um sujeito esmolambado à feição de ser apenas um trapo.
(BARROS, 2002, p. 37).
Em Manoel de Barros, a poesia é o canal para se chegar à época primitiva da criação. E
somente os seres mais desprovidos de uma ótica filistina são capazes desse retorno. É o caso da
criança (já foi mencionado aqui o aspecto da poesia barreana que se volta para o "criançamento" das
palavras), do andarilho, de personagens como Bernardo (figura recorrente nas obras de Barros),
Pote Cru, Passo-Triste, o sujeito esmolambado à feição de trapo - estes três últimos, figuras que
aparecem em Retrato do artista quando coisa. A ideia de retorno pela linguagem é expressa ainda
no fato de o poeta querer o "antesmente verbal: a despalavra mesmo", isto é, um lugar que seja
início, começo, ainda que esse lugar seja o espaço da poesia: "Agora só espero a despalavra: a
palavra nascida para o canto — desde os pássaros./ A palavra sem pronúncia, ágrafa." (BARROS,
2002, p. 53). E é a partir da despalavra, das "ignorãças", do insignificante, do rasteiro, das "coisas
pertencidas de abandono", dos seres ínfimos que o poeta experimenta o gozo de Deus, o gozo de
criar e, mais que isso, de recriar e de "transfazer o mundo".
Há que se considerar, fundamentalmente, que o estilo singular e inconfundível do poeta do
Pantanal revela uma poesia que se pauta por uma quase autossuficiência. Ela traz em si um caráter
autoexplicativo. Afinal, ler Manoel de Barros por Manoel de Barros talvez seja a forma mais
sensata de não corromper o silêncio gritante dessa poesia sem margens com as palavras. Não se
pode desconsiderar, no entanto, o senso histórico desse poeta que cria uma poesia que “busca a
intersecção dos tempos, o ponto de convergência” (PAZ, 1993, p.57) com o projeto poético da
tradição moderna e modernista.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDRADE, Carlos Drummond. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,1992.

BARBOSA, João Alexandre. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1986.

_________. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.

BARROS, Manoel de. Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1991.

_________. Gramática expositiva do chão. Poesia quase toda. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.
_________. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

_________. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997.

_________. Entrevista. CULT – Revista Brasileira de Literatura, outubro/98.

_________. Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 2002.

BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1975.

ELIOT, T. S. A tradição e o talento individual. In: NOSTRAND, Albert d. Van. Antologia de


crítica literária (org,). (tradução de Márcio Cotrim). Rio de Janeiro: Lidador, 1968.

HOUGH. Graham. A lírica modernista. In: BRADBURY, Malcolm e McFARLANE, James.


Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

MARINHO, Marcelo e colaboradores. Manoel de Barros: o brejo e o solfejo. Brasília: Ministério


da integração nacional: Universidade Dom Bosco, 2002.

PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993.

SHEPPARD, Richard. A crise da linguagem. In: BRADBURY, Malcolm e McFARLANE, James.


Modernismo: guia geral. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

Você também pode gostar