Ficção e Realidadephilip K. Dick
Ficção e Realidadephilip K. Dick
Ficção e Realidadephilip K. Dick
DICK
Gabriel Seabra de Freitas Medeiros Graduando em Filosofia/UFRN e Graduando em Direito/FARN Orientador: Dr. Eduardo Anbal Pellejero/UFRN
Aprendemos que a exclusividade do espao apenas uma funo do crebro enquanto se dirige percepo. Regula as informaes em termos de unidades de espao reciprocamente limitativas. Milhes delas. Na realidade, trilhes teoricamente. Mas o espao em si mesmo no exclusivo. De facto, o espao em si mesmo no existe. (Philip K. Dick, Vazio infinito, pg. 176).
1 INTRODUO
Philip K. Dick (1928 1982) foi um filsofo americano que dedicou a vida literatura, desenvolvendo diversos trabalhos em variados gneros literrios, especialmente no campo da fico cientfica (gnero este que lhe permitiu maior liberdade para escrever sobre suas complexas realidades1 e suas ideias filosficas). Philip recebeu bastante influncia de autores como Stendhal, Flaubert, Maupassant, James T. Farrell (do qual herdou grande influncia estilstica), Kafka, Proust, citando-os em seus mais diversos trabalhos.
Em 1968, Philip K. Dick fez um auto-retrato sobre o que considerou ser o momento em que descobriu o seu gnero literrio, que posteriormente o libertaria para escrever livremente sobre as complexas realidades de sua existncia: Aos doze [em 1940], quando eu li minha primeira revista de fico cientfica... foi a Stirring Science Stories, tive, eu acho, quatro edies... Eu cheguei revista quase que por acidente; estava na verdade procurando por Popular Science. Eu fiquei bastante impressionado. Estrias sobre cincia? E finalmente, eu reconheci que havia encontrado a magia, no comeo, no passado, nos livros de OZ essa magia agora no mais composta por mos mgicas, mas por cincia... Em qualquer caso, minha viso foi a magia se igualando cincia... e a cincia (do futuro) se igualando magia. (No original: "I was twelve [in 1940] when I read my first sf magazineit was called Stirring Science Stories and ran, I think, four issues.I came across the magazine quite by accident; I was actually looking for Popular Science. I was most amazed. Stories about science? At once I recognized the magic which I had found, in earlier times, in the Oz books - this magic now coupled not with magic wands but with scienceIn any case my view became magic equals scienceand science (of the future) equals magic.").
Mas Philip nunca desistiu de tentar ser aceito por suas literaturas crticas. Em 1980, dois anos antes de sua morte, escreveu:
Eu quero escrever sobre pessoas que eu amo e coloc-las dentro de um mundo fictcio que idealizo em minha mente, no no mundo em que de fato vivemos, porque o mundo em que de fato vivemos ainda no conheceu os meus padres. Tudo bem, ento talvez eu deva rever meus padres; estou um passo fora. Eu deveria retornar realidade. Eu nunca retornei realidade. isso que a fico cientfica representa. Se voc quiser retornar realidade, v ler Philip Roth2; leia a literatura padro de Nova York, os escritores bestsellers... por isso que eu amo a fico cientfica. Eu amo ler; eu amo escrev-la. O escritor de fico cientfica no v apenas possibilidades, tambm v selvagens possibilidades. No apenas E se? Meu Deus; e se? em frenesi e histeria. Os Marcianos esto sempre vindo 3.
Um ano depois, em 1981, em um extenso jornal que manteve, chamado Exegesis, Dick escreveu, focando-se na auto-avaliao de suas metas e talentos enquanto escritor, que no se considerava um novelista, mas sim um filsofo ficcionador4:
Eu sou um filsofo ficcionador, no um novelista; meu romance e minha habilidade enquanto escritor empregada para formular a minha percepo. O ncleo da minha escrita no a arte, mas a verdade. Isso que eu conto a verdade, ainda que eu no possa fazer nada para alivi-la, seja pela escrita ou pela explicao. Mas, de alguma forma, isso parece ajudar a certo tipo de pessoas sensivelmente perturbadas para quem eu falo. Eu acho que entendi qual o ingrediente comum daqueles que minha escrita ajuda: eles no podem ou no querem limitar suas prprias intimaes sobre o
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Muito conhecido por produzir obras que retratam a realidade de um momento histrico determinado vivido por personagens fictcios, como Indignao, por exemplo. 3 Em original: "I want to write about people I love, and put them into a fictional world spun out of my own mind, not the world we actually have, because the world we actually have does not meet my standards. Okay, so I should revise my standards; I'm out of step. I should yield to reality. I have never yielded to reality. That's what SF is all about. If you wish to yield to reality, go read Philip Roth; read the New York literary establishment mainstream bestselling writers.This is why I love SF. I love to read it; I love to write it. The SF writer sees not just possibilities but wild possibilities. It's not just 'What if' - it's 'My God; what if' - in frenzy and hysteria. The Martians are always coming". Disponvel em: http://www.philipkdick.com/aa_biography.html biografia escrita por Lawrence Sutin, 2003. 4 Em original: "I am a fictionalizing philosopher, not a novelist; my novel & story-writing ability is employed as a means to formulate my perception. The core of my writing is not art but truth. Thus what I tell is the truth, yet I can do nothing to alleviate it, either by deed or explanation. Yet this seems somehow to help a certain kind of sensitive troubled person, for whom I speak. I think I understand the common ingredient in those whom my writing helps: they cannot or will not blunt their own intimations about the irrational, mysterious nature of reality, &, for them, my corpus is one long ratiocination regarding this inexplicable reality, an integration & presentation, analysis & response & personal history". Disponvel em: http://www.philipkdick.com/aa_biography.html - biografia escrita por Lawrence Sutin, 2003.
irracional, a misteriosa natureza da realidade, e, para eles, meu corpus um raciocnio denso a respeito de uma inexplicvel realidade, uma integrao e apresentao, anlise e resposta e histria pessoal.
Certa vez, Georges Bataille, escrevendo sobre a literatura de Emily Bront, afirmou:
H uma vontade de ruptura com o mundo, para melhor enlaar a vida em sua plenitude e descobrir na criao artstica o que a realidade recusa. o despertar, a utilizao propriamente dita, de virtualidades ainda insuspeitadas. Que esta liberao seja necessria a todo artista incontestvel; ela pode ser sentida mais intensamente naqueles em que os valores ticos esto mais fortemente arraigados5.
exatamente em busca dessa ruptura com o mundo para melhor descobrir na criao artstica o que a realidade recusa que Philip K. Dick se empenhou em desenvolver suas obras, algumas sobre as quais nos debruaremos para melhor entender como a iluso e a realidade se conectam por uma ponte que une a fico verdade para este autor, gerando uma forte influncia tanto no gnero em especfico da fico cientfica quanto na literatura contempornea em geral.
2 O RETORNO DO TEMPO, A PASSAGEIRA FASE PR-MORTE E OS BENS DE CONSUMO EM UBIK COMO INDICADORES DE UMA POSSVEL REALIDADE
Em Ubik6, Philip K. Dick constri uma sociedade futurstica, sofisticada e funcional na qual os mortos no morrem totalmente, permanecem em estado de meia-vida, mantidos nesta forma por seus entes queridos7. Runciter, um empresrio de sucesso, junto de sua equipe, em uma misso em Luna,
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BATAILLE, Georges. A literatura e o mal. ed. L&PM, 1989 Porto Alegre, pg. 19 e 20. Diferentemente das outras obras que sero aqui analisadas, Ubik uma fico que trabalha mais intensamente com conceitos notadamente ilusrios do autor (assim como Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch). Um fato interessante, por exemplo, que em vrios dos seus romances, Philip faz referncia a um sistema solar, o Sistema Prxima, que simboliza uma conexo entre as iluses em suas obras. Neste conto, a primeira referncia ao sistema Prxima se d na pgina 21, quando o personagem Jory Miller interfere na conversa de Runciter com sua ex-mulher, que vive seus ltimos momentos pr-morte em um tanque na Sua. Jory Miller questiona Runciter sobre o ano em que eles esto vivendo (ele, uma criana que faleceu no passado e que domina o mundo do pr-morte com sua capacidade criativa, e Runciter, no mundo dos vivos, conversando por meio de um equipamento situado em Zurique). Neste ato, Jory Miller tambm o questiona sobre uma nave que supostamente vir do Sistema Prxima Centauro para a Terra, perguntando se isto j aconteceu e de que forma aconteceu (em direta referncia ao conto Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, tambm de sua autoria, que veremos mais adiante). 7 No conto, isso tem se tornado possvel na medida em que, na Sua, um visionrio empreendedor Hebert Schoenheit von Vogelsang, desenvolve um sistema no qual um amplificador porttil de protofson encaixa na cobertura de plstico
sofre um atentado. Sua equipe, liderada por Joe Chip, esforando-se para resolver o crime e conservar o corpo do seu chefe, morto neste atentado, percebe que medida que as investigaes avanam, o mundo recua ao passado. O tempo retrocede. A existncia se deteriora at que atinja um estado de total inexistncia. Enquanto isto, Runciter lhes envia mensagens que vo aparecendo em lugares inusitados, em especial em rtulos de diversos produtos de consumo8. Tentando compreender o esfalecimento da realidade que os cerca e as foras contraditrias que agem sobre ela, os personagens deste conto permanecem em constante conflito com seu mundo e sua humanidade. exatamente a que Philip concentra a maior parte da obra. Em determinado momento, antes mesmo do acidente acontecer, Joe Chip, analisa a potencialidade de uma personagem, Pat Conlay9, dotada de uma habilidade antiprecog, capaz de fazer uma variedade de futuros parecerem igualmente reais10. Compreender essa habilidade como a capacidade de ficcionar o real fundamental para acompanhar o desfecho da obra; porm, neste conto, Pat, de fato, recria a realidade de tal forma que a fico torna-se real (ocorre uma alterao de perspectivas a iluso assume, de fato, o papel da verdade). Ocorre que, com o desenrolar do conto, toda a realidade da equipe de Runciter passa a ser questionada. Isso porque as constantes mensagens11 deixadas a Joe e seus companheiros passam a indicar que eles quem morreram no acidente, e no Runciter12.
transparente do caixo, sintonizando na frequncia adequada em busca de uma determinada atividade ceflica do corpo conservado de algum recm falecido. 8 Isto acontece no incio de todos os captulos. 9 O nome Pat, assim como Sistema Prxima, tambm se repete em outros contos de Philip, como vermos adiante. 10 Deixa eu explicar disse Joe como os antiprecogs geralmente funcionam. Como funcionam, na verdade, em todos os casos de que temos conhecimento. O precog v uma variedade de futuros, dispostos lado a lado, como os favos de uma colmeia. Para ele, um desses futuros possui uma luminosidade maior, e o escolhido. Uma vez que o tenha escolhido, o antiprecog faz que todos os futuros paream igualmente reais para o precog. Ele aborta o talento do outro de escolher. Um precog percebe de forma instantnea quando h um antiprecog por perto, porque toda a sua relao com o futuro alterada. No caso dos telepatas, uma diminuio da capacidade semelhante... (UBIK, pg. 34 e 35). 11 Dentre vrias mensagens, uma delas se destaca: Cansado de papilas gustativas preguiosas? Runciter disse com a voz spera de costume. O repolho cozido est dominando o seu universo alimentar? Aquele mesmo odor passado, velho e sem graa das manhs de segunda-feira, no importa quantas moedas voc coloque no fogo? Ubik vai mudar tudo isso. Ubik desperta o sabor da comida, pe o gosto genuno de volta no lugar e restaura o agradvel cheiro da comida. Na tela, uma lata de spray de cores vivas entrou no lugar de Runciter. Uma leve borrifada do econmico Ubik expele os temores obsessivo-compulsivos de que o mundo inteiro est virando leite coalhado, gravadores estragados e elevadores de grades de ferro obsoletos, alm de outras manifestaes, e at agora despercebidas, de deteriorao. Vejam, a deteriorao mundial de tipo regressivo, como esta, uma experincia normal de muitos meia-vidas, especialmente nos primeiros estgios, quando os laos com a realidade real ainda esto muito fortes. Uma espcie de universo remanescente retida como uma carga residual, sentida como um pseudoambiente, mas altamente instvel e desacompanhada de qualquer subestrutura ergoica. Isso especialmente verdadeiro quando vrios sistemas de memria esto fundidos, como no caso de vocs. Mas hoje, com o novo Ubik mais poderoso que nunca, tudo isso mudou! (UBIK, pg. 143). 12 Neste momento, Joe pensa: isso uma projeo da minha parte. No o universo que est sendo sepultado por camadas de vento, frio, escurido e gelo. Tudo isso est acontecendo dentro de mim e, no entanto, eu pareo estar vendo do lado de fora. Estranho, pensou. O mundo inteiro est dentro de mim? Tragado pelo meu corpo? Quando isso aconteceu? Deve ser uma manifestao da morte, disse a si mesmo. A incerteza que sinto, a desacelerao at a entropia, este o processo, e o gelo que vejo o resultado do xito desse processo. Quando eu apagar, pensou, o universo todo desaparecer. Mas e quanto s luzes que deveria ver, as entradas para novos teros? Onde, exatamente, est a luz vermelha e enfumaada de casais copulando? E a luz opaca e tnue que representa a voracidade animal? Tudo o que
Tentando entender o que se passava, Joe buscou ordenar o caos que tomava conta de toda uma suposta realidade e, em um momento decisivo da trama, uma televiso retrocede para um rdio, e no para metais e plsticos sem forma. Lembrou-se das ideias de Plato e os universais que, em cada classe, eram reais (como filosofia antiga descartada). Philip escreve:
A forma televisor havia sido um modelo imposto como sucessor de outros modelos, como a progresso de quadros numa sequncia de filme. As formas anteriores, refletiu, tm de manter sua vida invisvel, residual, em cada objeto. O passado est latente, submerso, mais ainda est l, capaz de se elevar superfcie uma vez que a impresso posterior, infelizmente e contra a experincia comum , desaparea. O homem contm, no o menino, mas os homens anteriores, pensou. A histria comeou muito tempo atrs. (...) A progresso de formas que ocorre normalmente essa progresso parou. E a ltima forma se desgastou, sem nada na sequncia: nenhuma forma mais nova, nenhum estgio seguinte do que entendemos como crescimento, para tomar o seu lugar. Isso deve ser o que vivenciamos como idade avanada. Dessa ausncia vm a deteriorao e a senilidade. S que, neste caso, aconteceu de forma abrupta, em questo de horas (UBIK, pg. 149).
Caminhando ao fim do conto, reaparece a infncia, vista como a fase em que a liberdade criativa possui maior fora protofsica, capaz de manipular a realidade dos que habitam o universo pr-morte, como o autor resolve intitular. Jory Miller, o garoto que viveu na Terra e morreu antes de atingir a fase adulta, quem questiona a Runciter sobre uma nave que supostamente viria do Sistema Prxima Centauro. Esta nave aparece em Os Tres Estigmas de Palmer Eldritch, publicado em 1964, enquanto Ubik apenas veio a ser publicado em 1969. Esta dvida sobre o que une as obras de Dick o smbolo maior de sua fico, que na verdade, era sua prpria iluso. Algo que atrai nossa ateno que Jory Miller domina o mundo de Ella, ex-mulher de Runciter, e dos outros que vivem na meia-vida, de forma semelhante a como Pat domina o mundo dos demais personagens de Ubik com seu talento. Assim encerra-se uma espcie de crculo que, pelo que se pode extrair de uma anlise geral da obra, retorna capacidade criativa de se manipular a realidade13.
consigo distinguir, pensou, escurido invasiva e perda de calor absoluta, uma plancie que esfria, abandonada por seu sol. (UBIK, pg. 135). 13 Para esquentar a polmica, o nome Pat Insolente usado por Philip em Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch para identificar uma empresa que trabalha realizando anlises de pr-moda sobre objetos que faro sucesso nas colnias da ONU em Marte, habitadas por pessoas compulsoriamente alistadas para simular a realidade da Terra fora dela. Para dar fim ao tdio, essas pessoas usam uma droga que a traduz, de forma coletiva, realidade. A chamada Can-D vendida pela mesma pessoa que vende os objetos que miniaturizam a vida nas colnias espaciais, Leo Bulero, outro grande
Joe Chip, aps usar Ubik em seu corpo, evitando a morte (vivendo em meia-vida), ouve de Jory os motivos que o induzem a fazer o que faz:
Eu fiz o que fao disse Jory. difcil explicar, mas tenho feito isso h muito tempo, com muita gente em meia-vida. Eu como a vida delas, o que sobra dela. Tem muito pouco em cada pessoa, ento preciso de muitas. Costumava esperar at que elas ficassem em meia-vida por um tempo, mas agora tenho que tom-las imediatamente. Se quiser ser capaz de viver. Se voc chegar perto de mim e ouvir eu fico de boca aberta vai conseguir escutar as vozes. No todas, mas pelo menos as ltimas que comi. As que voc conhece. Com a unha, cutucou um incisivo superior, inclinando a cabea para o lado enquanto observava Joe, claramente esperando para ouvir sua reao. No tem nada a dizer? (...) Ele girou a lata de Ubik, que ainda segurava. No consigo entender isto. O que tem aqui, e onde Runciter consegue? Franziu a testa. Mas Runciter no pode estar fazendo isso, voc est certo. Ele est do lado de fora. Isso tem origem dentro do nosso ambiente. Tem que ter, porque nada pode entrar, a no ser palavras14.
Enquanto esperava o efeito de Ubik de Joe passar para poder engol-lo, Jory fez questo de mostrar a Joe que o mundo que ele momentaneamente habitava era uma mera criao de sua mente, como qualquer outro acessrio deste pseudomundo15. Sobre isto, Philip escreve:
Esse um dos dois agentes em ao. Jory o que est nos destruindo que nos destruiu, exceto a mim. Por trs de Jory no h nada, ele o fim. Ser que vou encontrar o outro? Provavelmente, no a tempo de fazer alguma diferena, concluiu. Olhou mais uma vez para a mo. Completamente curada16.
Em seguida, complementa:
empreendedor que aparece nos contos de Philip K. Dick. Em Ubik, a personagem Pat tem uma tatuagem no brao com Caveat Emptor, escrito em latim (em portugus, seria algo como o risco do comprador ou o comprador assume o risco do negcio). 14 UBIK, pg. 218. 15 Quando Joe pergunta a Jory por que ele criou essa perspectiva de realidade na poca de 1939, e no em seu prprio mundo contemporneo, em seu prprio tempo, em 1992, Jory responde: O esforo. No consigo evitar que os objetos regridam. Fazer tudo isso sozinho era demais para mim. Criei em 1992 primeiro, mas depois as coisas comearam a falhar. As moedas, o creme, os cigarros... todos os fenmenos que vocs notaram. E depois Runciter comeou a abrir caminho de fora, isso dificultou ainda mais as coisas para mim. Na verdade, teria sido melhor se ele no tivesse interferido. Jory deu um sorriso largo e furtivo. Mas no me preocupei com a regresso. Sabia que vocs iam achar que era Pat Conley. Ia parecer coisa do talento dela, porque meio parecido com o que o talento dela faz. Achei que, talvez, vocs fossem matla. Eu teria gostado disso. O sorriso cresceu (UBIK, pg. 220). 16 UBIK, pg. 221.
Ento, subitamente, percebeu o por qu. Jory tinha dito a verdade. Ele construra no este mundo mas o mundo ou, antes, a duplicata fantasmagrica, do prprio tempo deles. As formas em decomposio no eram causadas por ele, ocorriam a despeito de seus esforos. So ativismos naturais, Joe deu-se conta, que acontecem de forma mecnica medida que a fora de Jory diminui. Como diz o garoto, um esforo enorme. Talvez esta seja a primeira vez que ele cria um mundo to diverso assim, para tantas pessoas ao mesmo tempo. No comum que tantos meia-vidas estejam conectados17.
Eu sou Ubik. Antes que o universo fosse, eu sou. Eu fiz os sis. Eu fiz os mundos. Eu criei as vidas e os lugares que elas habitam. Eu as transfiro para c, eu as ponho ali. Elas seguem minhas ordens, fazem o que mando. Eu sou o verbo e meu nome nunca dito, o nome que ningum conhece. Eu sou chamado de Ubik, mas este no o meu nome. Eu sou. Eu Sempre serei.
Na concluso do conto, Runciter percebe que suas moedas adquirem a imagem de Joe, assim como as de Joe tinham adquirido as imagens de Runciter.
Num futuro no to distante, a vida na Terra se tornou insuportvel devido ao seu superaquecimento. As pessoas, em exlio compulsrio, so enviadas s colnias marcianas, vivendo desligados de tudos e todos, sem perspectiva de retorno sociedade. Neste contexto, a nica coisa que faz a vida dos alistados suportvel so as drogas, capazes de traduzir a realidade, fazendo-os assumir outra identidade e esquecer momentaneamente a sua condio de exilados18. Na Terra, Leo Bulero, presidente de uma conceituada empresa 19 cujos negcios sos extremamente
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UBIK, pgs. 223 e 224. Em determinado momento da trama, Philip demonstra o peso de se voltar realidade aps vivenciar uma experimentao na qual a iluso substitui a perspectiva usual de verdade: Sam Regan j podia sentir o poder da droga perder o efeito. Sentiu-se fraco, receoso e amargamente inconsolvel diante da constatao. Droga, rpido demais, disse a si mesmo. Tudo acabado, de volta cabana, ao poo em que nos retorcemos e encolhemos feito minhocas num saco de papel, amontoados longe da luz do dia. Plidos, esbranquiados e horrorosos. Estremeceu. 19 A empresa Ambientes Pat Insolente SA responsvel, dentre outras coisas, pela miniaturizao de objetos utilizados na Terra para serem enviados s colnias espaciais com a finalidade de compor pequenas maquetes da vida terreste para os exilados as utilizarem como objeto referencial de traduo, enquanto esto sob os efeitos da droga Can-D, fazendo-os se
lucrativos, tambm, extraoficialmente, o maior traficante do Sistema Sol, distribuindo Can-D20 por todas as colnias de Marte. Mas ele no o nico empresrio bem sucedido deste conto. Palmer Eldritch, aps dez anos de ausncia, retorna de uma obscura viagem do Sistema Prxima, trazendo consigo uma nova droga, a Chew-Z, que anuncia cumprir a maior de todas as promessas: a vida eterna. A disputa travada entre os dois grandes empresrios pode representar muito mais que uma simples concorrncia comercial de objetos de consumo21, mas uma total aniquilao de uma ideologia. Isto porque, o constante uso nas colnias da Can-D implicou no surgimento de ceitas que acreditavam que os efeitos da droga no eram apenas a traduo de uma realidade, mas ela prpria22. Por outro lado, as pessoas que residem na Terra realizam uma srie de terapias experimentais23 para agilizar o processo evolutrio da espcie humana, que necessita rapidamente evoluir para tornar possvel sua existncia no planeta que est superaquecido. O problema que apenas os mais ricos tem acesso a estas terapias, o que representa uma possvel segregao de raas pela acumulao de capital (e, como consequncia da terapia, o acmulo de conhecimento). No transcorrer do conto, Barney Mayerson, brao direito de Leo Bulero, em uma nave a caminho das colnias marcianas, tem um dilogo interessante com Anne Hawthorne, uma missionria neocrista. Neste momento se discute o poder de influncia da Can-D para o atual perfil religioso em Marte e a natureza da iluso24. Enquanto o real para a neocrist so apenas os acontecimentos
sentirem novamente na Terra. 20 A Can-D faz referncia ao LSD, conhecido popularmente como Candy (em portugus: doce). notrio, por sua vez, o envolvimento do autor com esta substncia. 21 Afinal, o fim da Can-D tambm implicaria o fim do mercado de miniaturas Ambientes Pat Insolente. 22 Em certo momento da trama, dois personagens de uma colnia, antes de fazerem uso da Can-D, tem o seguinte dilogo: Ento, voc admite que vamos mesmo para a Terra. Haviam discutido essa questo, que era fundamental, muitas vezes. Fran tendia a aceitar a verso de que a traduo era apenas da aparncia, do que os colonizadores chamavam de acidentes, as meras manifestaes externas dos lugares e objetos envolvidos, no as essncias. Mais adiante, o outro personagem responde: Deveria ser uma experincia purificadora. Perdemos nosso corpo carnal, nossa corporeidade, como dizem. E vestimos um corpo imperecvel, pelo menos por algum tempo. Ou para sempre, se voc acredita, como alguns, que est fora do tempo e do espao, que eterno. No concorda, Sam? Suspirou. Sei que no concorda. Agora, em resposta, Sam lhe diz: Espiritualidade ele disse com averso enquanto pescava o pacote de Can-D da cavidade do compartimento. Uma negao da realidade, e o que se consegue em troca? Nada (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pgs. 49 e 50). 23 Em certo momento do conto, o responsvel pela prtica da Terapia E, dr. Denkmal revela um pouco do seu funcionamento: A nossa terapia? O dr. Denkmal deu um riso contido, divertindo-se. Nem um pouco, embora possa causar choque, no sentido figurado, no incio. Uma vez que voc passa por um crescimento da regio cortical. Muitos conceitos novos e excitantes ocorrero em sua mente, em especial de natureza religiosa. Ah, se Lutero e Erasmo estivessem vivos hoje... Suas controvrsias poderiam ser resolvidas com tanta facilidade agora, por meio da Terapia E. Ambos usariam a verdade, uma vez que zum Beiszspiel diz respeito transubstanciao, assim, o Blunt und... interrompeu-se com uma tosse. Quero dizer, sangue e hstia. Assim, na Missa. muito parecido com os consumidores de Can-D, notaram a afinidade? Mas venham, vamos comear. Deu um tapa nas costas de Richard Hnatt e levou os dois at o consultrio, examindando Emily com o que pareceu a Richard um olhar muito pouco espiritual, cobioso (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pg. 77). 24 Anne o indaga: Vai experimentar a Can-D?, e ele a responde: Claro. Tem f nisso. Mas sabe que a Terra para a qual ela o leva no real, afirma a neocrist. No quero defender a idia ele disse. sentida como se fosse real, tudo o que sei. Por sua vez, Anne compara os efeitos da Can-D com os sonhos: Os sonhos tambm so, o que o faz responder: Mas neste caso algo mais forte ele observou. Mais claro. E realizado em... ele havia comeado a dizer comunho na companhia de outros que realmente participam. Portanto, no pode ser inteiramente uma iluso. Sonhos so individuais, esta a razo pela qual os identificamos como iluses. Mas Pat Insolente.... Em seguida, disse Anne, reflexiva:
fsicos que existem para nossa percepo usual, para Mayerson, a iluso, quando sentida como se real fosse, no merece maiores distines da realidade. A sensao, por sua vez, produzida pela droga, quando compartilhada, confirma a iluso, traduzindo a realidade em experimentaes que no so inteiramente ilusrias, como acontece, por sua vez, nos sonhos (exclusivamente individuais, sendo, por este motivo, identificados como iluses). Barney chega colnia que habitar at o fim de sua vida no exato momento em que ocorre uma votao interna para saber se o grupo adotar a Chew-Z ou permanecer fazendo uso da Can-D como droga oficial do abrigo. Um dos habitantes, Tod Morris, disse a Mayerson:
A Can-D j era. muito difcil de conseguir, custa peles demais e eu, pessoalmente, estou cansado de Pat Insolente... artificial demais, superficial demais e materialstico desculpe, essa uma palavra aqui para... tentou uma explicao difcil. Bem, apartamento, carros, bronzeado na praia, roupas chiques... gostamos por algum tempo, mas no suficiente de um modo inmaterialstico. D para entender, Mayerson? (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch , pg. 143).
Neste momento, Mary Regan (outra componente do abrigo) justifica a Mayerson que a sada est em uma ou outra droga de traduo. Caso contrrio, segundo ela, seria impossvel. Simplesmente acabaramos matando uns aos outros em nosso sofrimento25. A luta pela vida, neste contexto, estrutura-se pela traduo constante da realidade, pois sem as iluses, ela se tornaria bastante difcil e basicamente sem sentido26. Mas, conforme questiona Anne a Mayerson, uma realidade de sofrimento no o melhor que a mais interessante das iluses? Mas ser que iluso, Barney?27. Sem esperar para ouvir uma possvel resposta, Anne toma a sua deciso e ingere a Can-D. Talvez este ato simbolize mais que uma resposta a esta pergunta... Assistindo deciso inesperada de Anne, Mayerson rapidamente corre dispensa e apanha um gim inferior, de teor alcolico oitenta, gratuitamente distrubudo pela ONU nas colnias, bebendo-o, enquanto esperava Anne retornar realidade na qual se encontrava antes de ingerir a substncia. Ao retornar de sua primeira experimentao de Can-D, Mayerson pergunta a Anne como foi sua
Seria interessante saber o que as pessoas que criam os ambientes Pat Insolente pensam sobre tudo isso, sendo imediatamente respondida por Barney: Eu posso lhe dizer. Para eles, apenas um negcio. Como provavelmente a fabricao de vinhos e hstias sacramentais para aqueles que... (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pg. 139). 25 Sim. diz Barney Entendo. Mas no havia aprendido isso ao ir para Marte. Havia, como qualquer outro terrano, percebido isso ainda na infncia, quando ouviu falar da vida nas colnias, da luta contra a vontade irresistvel de acabar com tudo num breve momento de rendio. (...) Era uma luta pela vida (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pg. 144 e 145). 26 Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pg. 142. 27 Idem, pg 157.
iluso, e ela lhe responde: Ser traduzida a nica aluso que podemos ter disso 28 sem estarmos mortos. Portanto uma tentao. Se no fosse por aquela boneca horrvel, aquela Pat Insolente...29. O conto encerra-se com Leo Bulero e o seu segurana particular, Felix Blau, voltando de uma misso mal-sucedidade em Marte, que era de destruir os negcios bem-sucedidos de Palmer Eldritch. Na nave, Leo diz a Felix:
Voc uma fico. Entende? Este um mundo particular meu. No posso provar, claro, mas... (...) Ento, num certo sentido, no sou eu de fato. algo em mim que nem mesmo aquela coisa chamada Palmer Eldritch vai poder alcanar e consumir, porque uma vez que no sou eu, no algo que eu tenha a perder. Sinto-o crescer. Opondo-se s alteraes externas, no essenciais, o brao, os olhos, os dentes. No tocado por nenhum desses trs30, por essa trindade cruel e negativa: a alienao, a realidade indistinta e o desespero que Eldritch trouxe com ele de Proxima. Ou melhor, do espao intermedirio (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pgs. 244 e 245).
E Felix lhe responde: Ok. O que voc disser est bom, Leo31.
Vazio Infinito representa, neste ensaio, o outro lado da literatura dickeana32, como os contos O Homem do Castelo Alto e A Penltima Verdade. Nesta obra, Philip K. Dick fala de um homem que procura a identidade perdida na cidade que o esqueceu. Jason Taverner, o personagem central da trama, representa o homem do espetculo que estrutura sua existncia sobre sua prpria imagem33. Ocorre que, ao se encontrar com uma de suas amantes,
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Antes de lhe fazer esta declarao, Anne afirma: Paulo diz que nosso inimigo a morte. o ltimo inimigo que superamos, ento, acho que o maior. Estamos todos arruinados, no apenas nosso corpo, mas nossa alma tambm. Ambos tem que morrer para ento renascermos, com novos corpos, no de carne, mas incorruptveis. Percebe? Sabe, quando eu era Pat Insolente, agora a pouco... tive uma sensao estranha de que estava... errado dizer ou acreditar nisso, mas... (Os Trs Estigmas de Palmer Eldritch, pg. 162). 29 Idem, pg. 163. 30 Estes so os trs estigmas de Palmer Eldritch. 31 No conto Vazio Infinito, tambm h um personagem chamado Felix, que reage de forma similar quando o delegado-chefe Westerburg lhe conta os efeitos da droga KR-3. 32 Apesar de que, nesta obra, Philip tambm fazer referncia ao Sistema Prxima. H um bom a ser projetado no Cinema Doze. Passa-se num planeta do Sistema Betelgeuse, muito parecido com o planeta de Tarberg... voc sabe, no Sistema Prxima. S que no capito Kirk habitado por escravos de um invisvel... (Vazio Infinito, pg. 52). 33 Jason Taverner, logo no incio da trama, ao trmino de um episdio dirio de seu programa televiso, assistido por mais de trinta milhes de telespectadores, questiona a sua amante (Heather Hart), tambm integrante do mundo do espetculo,
Marilyn Mason, ele sofre um atentado. Marilyn aplica-lhe uma injeo de uma droga desconhecida, at que Heather Hart (outra amante) intervm34. De repente, Jason acorda sozinho em um quarto de hotel barato, nada condizente com os que costumava se hospedar no seu tempo de vedete da mdia. Mas tudo est mudado. Taverner no mais admirado como antes... na verdade, ele foi esquecido35. Buscando sobreviver a estas mudanas, Jason procura uma especialista em falsificao de documentos, Kathy, que se responsabiliza pela confeco de sua nova identidade36. Tendo conseguido o que buscava, Jason procura assumir sua nova identidade, mas na constante tentativa de voltar a pertencer classe social qual pertencera no passado. Nestas tentativas, vai a antigas boates e reencontra uma antiga amante, Ruth (que no o reconhece). Sabendo dos seus gostos e se aproveitando da sua bela aparncia, Jason a seduz na inteno de, com ela, restabelecer-se em seu antigo modo de vida37. E assim, Jason segue sua nova vida at que o chefe de polcia, Felix Buckman, responsvel pela investigao do homem que apareceu sem registros legais em seu distrito, o intima a depor na delegacia, curioso por saber a histria verdica de todo o caso. Com o tempo, Jason volta, aos poucos, a existir. A primeira vez ocorre quando ele se encontra com a irm do chefe de polcia, Alys Buckman, que lhe mostra dois de seus discos gravados na sua poca de fama e o reconhece pela sua antiga
por qual razo ela despreza tanto os admiradores. Segundo o texto, ele nunca compreendera por que razo ela detestava os admiradores; para ele eram o sangue vital da sua existncia pblica, o seu papel como homem do espetculo mundial, era a sua prpria vida, e ponto final (Vazio Infinito, pg. 8). 34 Fui bom na crise declarou Jason com a voz rouca; fechou os olhos e suportou a dor. Mas no o bastante. No totalmente. Ao abrir os olhos, viu que Heather estava a chorar. grave? perguntou-lhe ele; erguendo-se, pegou-lhe na mo. Ele sentiu a fora do seu amor quando ela lhe apertou os dedos, e depois o vazio. Apenas a dor. Mas mais nada, nem Heather, nem o hospital, nem o pessoal, nem luz. E nenhum som. Era um momento eterno e absorvia-o completamente (Vazio Infinito, pg. 17) 35 Sem identificao, ele praticamente no existia para o resto da sociedade. No posso viver duas horas sem o meu ID, disse para si mesmo. Nem me atrevo a sair do vestbulo deste hotel arruinado para o passeio pblico. Iro supor que sou um estudante ou professor fugido de um dos terrenos da universidade. Passarei o resto da vida como um escravo a fazer trabalhos manuais pesados. Sou o que eles chamam de uma no pessoa. Portanto, o meu primeiro trabalho, pensou, continuar vivo. Para o diabo Jason Taverner como homem pblico de espetculos; posso preocupar-me com isso mais tarde (Vazio Infinito, pg. 21). 36 Em determinado momento da trama, Philip narra uma conversa entre Kathy e Jason: Sabe o que voc ? disse Kathy. Uma pessoa muito boa. Compreende isso? Jason encolheu os ombros. Como a maior parte das verdades era uma questo de opinio. Talvez ele fosse, em todo caso, nesta situao. Mas no noutras. Mas Kathy no sabia disso (Vazio Infinito, pg. 43). 37 Com ela, Jason tem uma conversa bastante interessante. Narrando uma de suas experincias, Ruth lhe diz: A conscincia do inconsciente, se compreende o que quero dizer. Quando se morre mesmo no se sente porque morrer isso mesmo, a perda de tudo aquilo. Assim, por exemplo, afinal j no me mete medo morrer, depois daquela viagem terrvel da marijuana. Mas sentir pesar, simultaneamente morrer e estar vivo. Contudo a experincia mais absoluta, mais esmagadora que se pode sentir. s vezes afirmo que no somos construdos para suportar semelhante coisa; de mais... o corpo quase se autodestri de tanto se agitar. Mas eu quero sentir pesar. Chorar. (...) O pesar reconcilia-o com o que perdeu. uma fuso, vai com a coisa ou pessoa amada que se est a ir embora. De certa maneira desintegra-se e acompanha-a, vai parte do percurso com ela na sua viagem. Segue-a at onde pode ir (Vazio Infinito, pg. 100).
identidade. Aps conduzi-lo a sua casa, oferece-lhe uma droga capaz de fazer tudo melhorar. Jason aceita e ingere a droga. A partir da, o tempo deixa de existir. Alys, que nesta hora vai ao banheiro, desaparece para Jason espacialmente, como uma figura plana que diminuia constantemente de tamanho, at sumir completamente do seu campo de viso. De alguma forma, ele consegue segu-la, e a encontra morta no cho do banheiro (mas v apenas o esqueleto do seu antigo corpo). O motivo de sua morte? KR-3. Talvez a mesma droga que Marilyn tenha lhe aplicado no passado seja agora a droga que o far voltar vida do espetculo38. Com o passar do tempo, outras pessoas comeam a reconhec-lo. Jason volta a ser famoso 39. Mas Philip no deixa barato, fazendo os leitores questionarem, novamente, a realidade. O laudo mdico da morte de Alys confirma: realmente, foi a KR-3. Mas o que a KR-3? Phil Westerburg, o delegado-chefe do Departamente da Polcia de Los Angeles, disse ao general Buckman:
Posso explicar melhor a droga desta maneira. Ainda no ouviu falar dela porque ainda no est a ser utilizada; ela deve-a ter tirado do laboratrio de atividades especiais da academia. Fez esboos num bocado de papel. A ligao ao tempo uma funo do crebro. uma estruturao da percepo e orientao. (...) Por enquanto no podemos determinar o que constituiria uma dose excessiva com KR-3. Presentemente tem sido testada em detidos que se oferecem voluntariamente no campo de trabalhos forados de So Bernardino, mas at aqui Westerburg continuava a fazer esboos , em todo caso, como eu estava a explicar. A ligao com o tempo uma funo do crebro que mantm-se enquanto o crebro est a receber energia. Presentemente, sabemos que o crebro no pode funcionar, se no pode restringir o espao assim como... mas para qu, ainda no sabemos. Possivelmente est relacionado com o instinto para estabilizar a realidade de tal forma que as sequncias podem ser ordenadas em termos de antes e depois, que seria a ocupao do tempo, e, mais
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A minha realidade est a voltar. Exultava incontrolavelmente, descontroladamente. Aquilo era o que ele conhecia; aquele era o seu modo de vida. Perdera-o durante pouco tempo, mas agora finalmente, pensou: Estou a comear a readquir-lo! (...) Talvez s exista enquanto tomar a droga. Aquela droga, ou seja l o que for, que Alys me deu. Ento minha carreira, todos estes vinte anos, no passam de uma alucinao retroativa, criada pela droga. O que aconteceu, pensou Jason Taverner, que a droga desapareceu. Ela... algum... deixou de me dar e eu acordei para a realidade, l naquele quarto miservel do hotel em decadncia, com o espelho partido e o colcho infestado de percevejos. E permaneci assim at agora, at Alys me dar outra dose. No admira que ela me conhecesse, soubesse do meu espetculo de TV das terasfeiras noite. Por intermdio da droga dela, ela criou-o. E aqueles dois lbuns de disco que ela guardava para reforar a alucinao. (...) Talvez eu seja apenas um dos muitos que levam uma vida sinttica de popularidade, dinheiro, poder, por meio de uma cpsula. Enquanto vivem a realidade em velhos quartos de hotel infestados de percevejos e ratos. Ou em bairros de lata. Abandonados, zs-ningum, nulidades, mas que, entretanto, vo sonhando (Vazio Infinito, pg. 151). 39 Sou o homem mais feliz em todo este mundo desgraado. Est o dia mais importante da minha vida. Ele pensou. Nunca se aprecia at o dia em que se perde, quando, de repente, se deixa de ter. Bem, perdi-o por dois dias e agora voltou e aprecio-o (Vazio Infinito, pg. 168)
importante, a ocupao do espao, tanto com um objeto tridimensional como comparado, digamos, a um desenho do objeto. (...) Agora, um dos aspectos do espao que qualquer unidade do espao dada exclui todas as outras; se uma coisa est alm no pode estar aqui. Tal como no tempo, se um fato presente, no pode tambm vir depois. (...) Aprendemos que a exclusividade do espao apenas uma funo do crebro enquanto se dirige percepo. Regula as informaes em termos de unidades de espao reciprocamente limitativas. Milhes delas. Na realidade, trilhes teoricamente. Mas o espao em si mesmo no exclusivo. De fato, o espao em si mesmo no existe. (...) Uma droga como a KR-3 suprime a capacidade do crebro de extrair uma unidade de espao de outra. Portanto, quando o crebro tenta lidar com a percepo no pode distinguir a distncia. Quando isto sucede o crebro j no pode excluir vectores espaciais alternativos, torna possvel uma srie completa de variaes espaciais. O crebro deixa de poder dizer que objetos existem e aqueles que so apenas possibilidades latentes, no espaciais. Da resulta uma abertura dos corredores espaciais concorrentes, nos quais entra o sistema de objectos de percepo deturpados, e um universo completamente novo parece ao crebro como estando no processo de criao. (...) Qualquer pessoa afectada por ela forada a viver universos irreais, quer queiram quer no. Como disse, trilhes de possibilidades so de repente teoricamente reais; a possibilidade entra e o sistema de percepo de uma pessoa escolhe uma de todas as que lhe so apresentadas. Tem de escolher, porque se no o fizer, universos concorrentes coincidiro, e o conceito de espao desapareceria. Compreende-me? (...) Mas, durante o intervalo em que a droga est a actuar o sujeito existe, ou pensa que existe. (...) Mas para o sujeito num meio real envolve-o, um que hostil ao anterior que ele sempre conheceu, e ele age como se tivesse entrado num mundo novo. Um mundo com aspectos alterados... sendo a importncia da alterao determinada pela grandeza da distncia entre o mundo espao-tempo que ele viu anteriormente e o novo em que ele obrigado a actuar (Vazio Infinito, pgs.175 a 177).
Passou-se para um universo em que no existia. E no reparamos nele porque somos objectos do seu sistema de percepo. E depois, quando a droga deixou de fazer efeito voltou outra vez. Na realidade o que o reteve novamente aqui no foi nada que ele tomasse, mas a morte dela. Assim, evidentemente que a ficha dele chegou at ns da Central de Informaes (Vazio Infinito, pg. 177).
Ocorre que eles no sabiam que Marilyn tambm o havia matado no passado, com, possivelmente, a mesma droga40.
A Penltima Verdade uma obra bastante polmica por vrios fatores: primeiro, porque nesta potica no so feitas referncias ao Sistema Proxima. Isto seria quase irrelevante se, ao mesmo tempo, tambm no houvesse referncias a viagens intergalticas ou seres com poderes extrahumanos. Aqui, o nico poder sobrenatural o poder poltico de induzir as massas a falsas realidades, deixando-as fora das relaes de domnio41 que se desenvolvem na superfcie da terra. Segundo, pela forma como as massas encaram suas metas organizacionais e pela maneira que estruturam sua vida, sempre em busca de cumprir objetivos que lhe foram impostos. O discurso, neste caso, tem um papel fundamental para a sustentao desta forma de vida subterrnea, como sendo a forma mais eficiente de se postular uma ideologia dominante. Neste contexto Philip prope uma situao interessante: Terceira Guerra Mundial; as pessoas esto a quinze anos a viver como formigas, escondidas em abrigos abaixo da terra, vivendo com medo das conseqncias de uma Guerra sem fim. Isolados, conectam-se ao mundo externo atravs de uma grande tela de televiso, que projeta a imagem do Protetor, Talbot Yancy (quem lhes d as ltimas informaes sobre o que se passa no mundo acima de suas cabeas em uma terra supostamente infectada por radiao e pragas42); sendo a transmisso assistida em conjunto por todos os integrantes do abrigo (que no so poucos, espalhados por todo o mundo), sob a superviso constante de um comissrio poltico, que coordena as dvidas sobre a notcia da realidade
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No eplogo, Philip d um destino final a Jason Taverner: Em 2047, Jason Taverner, h muito afastado do mundo do espetculo, morria numa casa de sade, que limitava ao mximo o direito de admisso, para doentes com alcolic fibrosis, uma doena contrada por terrestres em diferentes colnias marcianas, sustentadas a ttulo particular para ricos deprimidos. Os seus bens consistiam numa casa com quatro quartos em Des Moines, cheia na sua maioria com coisas memorveis, e quotas numa companhia que tinha tentado e falhara financiar um comercial sobre um servio de transportes para Proxima Centaurus. A sua morte, duma maneira geral passou despercebida, embora aparecessem pequenos epigramas sobre o seu falecimento na maior parte dos jornais metropolitanos, ignorada pelos locutores dos noticirios da TV, mas no por Mary Anne Dominic, que, mesmo nos seus oitenta anos, ainda considerava Jason Taverner uma celebridade, e o seu encontro com ele um acontecimento importante na sua longa vida, coroada com xito (Vazio Infinito, pg. 193). Perceba que, no fim do conto, reaparece a referncia ao Sistema Prxima e as colnias marcianas, mas com qual relao? 41 O domnio surge nesta obra em mltiplos sentidos, representando tanto os grandes latifndios dos Yance-man quanto o poder que estes tem de criar verdades que sero entregues s massas como forma de manipulao ideolgica, fazendoos permanecer com medo, vivendo no subsolo, sob o domnio dos que esto acima, no poder. 42 Cinco minutos mais tarde, Nicholas St. James estava j sentado, erecto e formal, na sua cadeira de presidente, ligeiramente mais alta, na primeira fila da Sala Redonda; atrs de si estavam todos reunidos tambm, impacientes e murmurantes, em rebolio surdo, olhando sem excepo, ele includo, para o cran que cobria todo o espao do cho ao tecto. Era a sua janela a sua nica janela para o mundo l em cima, e era verdade que levavam bastante a srio tudo o que se passava na sua superfcie gigantesca. (A Penltima Verdade, pg. 14).
superficial, logo aps o trmino da transmisso. Sem nunca mais terem visto a luz do Sol, nenhum deles sabe que a guerra acabou... nenhum sabe a verdade da superfcie, a no ser o comissrio poltico. Na superfcie, permaneceram os Yance-man criadores das realidades que formaro as ideologias subterrneas, mais alguns soldados veteranos, junto a robs que fazem todo o trabalho braal de forma obediente, sem contestar os seus dominus. Ademais, no se pode olvidar ainda da importncia de dois personagens-chave que tambm habitam a superfcie: Runcible (grande empresrio que constri prises com piscinas e parques de diverses para os refugiados que sobem superfcie) e Webster Foote, chefe da polcia planetria. Joseph Adams, da classe dos Yance-man, um dos responsveis pela criao dos discursos narrados por Talbot Yancy nas grandes telas dos abrigos subterrneos. Vivendo em solido43, comeou a enfrentar problemas ticos devido a sua funo na manuteno do sistema poltico atual: criar fices que sero tidas como verdades por milhes de seres humanos que vivem uma vida degradante e sem sentido, abaixo de todos os demais, que lhes impem iluses de uma vida a se temer, na frgil tentativa de lhes justificar a vida que vivem. Abaixo da terra, os habitantes dos abrigos se submetiam a quotas de produo que, quando no cumpridas, resultavam no corte de uma srie de produtos essenciais que eram distribudos a estas pessoas, que no tinham acesso, por outra forma, a estes bens. As quotas giram em torno da quantidade de robs produzidos por ms em cada abrigo44, que serviriam de mo-de-obra para aqueles que possuiam os domnios na superfcie45. Neste ponto, a trama se desenvolve concomitantemente sob as duas perspectivas: da superfcie e do subsolo. Philip, desta forma, articula duas possibilidades de verdade, uma assumidamente ficta e outra misteriosa, considerada como conspiratria, que se forma na superfcie, entre os prprios detentores do poder. Da assumidamente ficta (assumida para os que habitam a superfcie, obscura
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Joseph Adams meditava, olhando o nevoeiro vindo do Pacfico. E porque era o entardecer e escurecia, aquele nevoeiro assustava-o tanto quanto aqueloutro, ali dentro, que no invadia a casa mas antes se disseminava, espalhando-se paulatinamente por todos os cantos do seu corpo. Geralmente, este ltimo tipo de nevoeiro recebe o nome de solido. (...) Ele, o dominus, sentia na sola dos ps o fervilhar da vida que da se desprendia, apesar de mais no serem do que aquilo que os Checos chamavam de robots, a estranha designao que tinham para trabalhadores.(...) S queria que fosse segunda-feira, e estar na Agncia, no seu escritrio de Nova Iorque, com os outros yance-man sua volta. E ento, a sim, a vida que sentiria em torno de si no seria unicamente aquele movimento de coisas mortas... ou, para ser mais justo, no viventes. Seria a prpria realidade. (A Penltima Verdade, pgs. 5 e 7). 44 Podemos sobreviver a uma inspeco disse Nicholas No se esqueam. A primeira penalizao apenas um corte de cinqenta por cento nos fornecimentos de comida. S depois disso que qualquer um de ns pode receber as ordens de recrutamento, e mesmo ento elas pararo nas dzimas... um entre cada dez homens. S se no cumprirmos trs meses seguidos que podemos ficar sujeitos a um possvel... e digo bem, possvel... encerramento. Mas temos sempre recursos legais; podemos mandar o nosso advogado perante o Supremo Tribunal de Estes Park; e asseguro-vos que o que faremos antes de aceitarmos qualquer encerramento. (A Penltima Verdade, pg. 18). 45 Nicholas, em certo momento da trama, diz: Gente, ns produzimos o instrumento fundamental com o qual conduzida a guerra; porque os robots conseguem viver na superfcie radioactiva, no meio daquela multiforme argamassa de bactrias e fumos destruidores... (A Penltima Verdade, pg 19).
para os que se escondem da luz do Sol), a realidade do subsolo marca uma passagem nossa estruturao poltica atual46. O fluxo constante que representa a oscilao entre cima e baixo retorna ao problema do capital envolvido nas relaes de poder, usurpando para as mos de um grande empresrio o domnio no apenas da terra, mas dos habitantes que se tornam prisioneiros do sistema econmico47. Adams, em certa parte da trama, no furor de sua crise tica, pensa:
Talvez um dia destes eu ainda programe o computador, no com um discurso, nem mesmo com um excelente discurso como o que levo aqui a meu lado e finalmente terminei na noite passada, mas com uma declarao muito simples e calma sobre o que se passa. Envio-o atravs do vac directamente para o simulador, depois para o vdeo e gravao de som, pois uma vez que um sistema autnomo, no h montagem, a menos, claro, que aparea por ali o Eisenbludt... mas nem mesmo ele, tecnicamente, pode tocar na parte da leitura dedicada ao discurso. Ento o cu que cai a abaixo. Seria de facto interessante observar, pensou Adams. Se se conseguisse um distanciamento suficiente para poder contemplar. Escutem, programaria ele no Megavac 6-V. E todas aquelas engraadas teclazinhas existentes no computador comeariam a tremularam e da boca do simulador comeariam a sair as frases, mas transformadas; a cada simples palavra seria conferido aquele minsculo mas decisivo detalhe que daria verossimilhana ao que seria tenhamos conscincia disso, pensou causticamente para si uma narrativa incrivelmente descabelada e inverossmil. O que entraria no Megavac 6-V como uma simples ideia sairia para os microfones e cmaras da TV como uma declarao, e uma declarao que ningum no seu juzo perfeito especialmente se estivesse h quinze anos enclausurado no subsolo poria em dvida. Mas seria um paradoxo, pois seria o prprio Yance a pronunci-la, como o velho adgio: Tudo o que eu digo mentira; isto confundir-se-ia, apertar-se-ia com o seu ego resvaladio e fino num bom e seguro n de marinheiro. E o que se conseguiria assim? Pois, em qualquer dos casos, Genebra ficaria ao corrente... e no achamos graa nenhuma, articulou Joseph Adams em pensamento com a voz que ele, como todos os
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Nicholas gemeu para dentro de si. Mas ningum, nem mesmo o prprio Nicholas, tinha qualquer poder legal para deter aquele a quem a voz hostil que se erguera chamara de comissrio-poltico. E no entanto, face da lei, isso no era de todo mau. Pois atravs de Nunes existia uma ligao humana directa entre aquele abrigo e o Governo de Estes Park; teoricamente, por intermdio de Nunes podiam responder e o dilogo, mesmo naquele momento, em plena guerra mundial, podia estabelecer-se entre os abrigos e o Governo. (A Penltima Verdade, pg. 20). 47 Enquanto sobrevoava do seu domnio agencia de Nova Iorque, Adams, em devaneio, observa as grandes construes do Mississipi: E ento, para l do Mississpi descortinou um grupo de edifcios feitos pelo homem, e tambm isso lhe produziu uma sensao esquisita. Pois eram os enormes edifcios Ozymandias, criados por esse grande construtor que era Louis Runcible. Esse homem de mil valores que, com o seu exrcito de trmitas, no escavava o solo mas erguia com as suas enormes mandbulas de ao uma enorme estrutura dormitrio, que inclua jardins para as crianas, piscinas, mesas de pingue-pongue e jogos de dardo. Conhecers a verdade, pensou para si Adams, e ao faz-lo ficars para sempre um escravo. (...) sentia aquela vergonha estranha e desconfortvel. Todo ele era culpa, no porque tudo aquilo fosse mau, mas porque... era mau, e porque ele sabia quem e o qu se fizera. (A Penltima Verdade, pg. 30).
outros yance-man, h muito interiorizara. O superego, como lhe chamavam os intelectuais de antes da guerra, ou, antes deles, a voz da conscincia, ou qualquer outro nome rstico e medieval desse gnero. Conscincia. (...) Um autntico caso de simulao... que era o termo que utilizava para aquilo que considerava como sendo a mais elevada e mais nova entidade aparecida no panorama da Natureza, com as suas j to multiformes decorrncias: o universo dos autnticos embustes. E esse universo, pensava ele ainda, em que se pensava poder entrar pela porta de ENTRADA, atravessar e depois sair pela porta de SADA, em, digamos grosseiramente, dois minutos... esse universo, tal como os cenrios nos estdios moscovitas de Eisenbludt, era interminvel, sala atrs de sala; a porta de SADA de uma era apenas a porta de ENTRADA da seguinte48.
Como se pode observar, a possvel polmica que relaciona a superfcie ao subsolo se condiciona nas formas de dominao das informaes corroboradas, o que d um carter especial a uma afirmao compartilhada. Devaneio ou conspirao? Verdades ou mentiras? De que forma as estruturas de significao se tornariam independentes das revelaes informativas alheias de Talbot Yancy? Adams, conversando com Lindblom responsvel pela criao das imagens de destruio e de guerra que apareciam nas telas dos abrigos , indagado sobre quem lucraria com o fim dos abrigos49. Runcible? Os abrigados? A populao em geral? A partir destas questes, Adams pensa para si:
H milhes l em baixo. Que aconteceria se algum cortasse o cabo principal, o primeiro, o tronco central que liga o Governo de Estes Park a todos os abrigos? O que aconteceria se a terra se abrisse e se milhes de seres humanos, aprisionados no subsolo desde h quinze anos, acreditando na existncia de um inferno radioactivo superfcie, com msseis e bactrias e destroos e exrcitos em luta sassem c para fora? O sistema dos domnios ruiria pela base e o enorme parque que sobrevoava duas vezes por dia tornar-se-ia novamente numa civilizao densamente povoada, no como antes da guerra, mas suficientemente parecida como ela. Apareceriam novamente as
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A Penltima Verdade, pgs. 30 e 31. E Adams lhe responde: Com todo o gosto retorquiu Adams, e reparou no olhar admirado de Lindblom. Qualquer um de entre os milhares de refugiados enterrados l em baixo. Bastaria um que tivesse subido e no tivesse sido apanhado pelos agentes de Brose ou pelos homens de Foot, e depois tivesse regressado ao seu abrigo. E, da, tivesse contactado com os abrigos vizinhos, e assim sucessivamente.... Estoicamente, Lindblom concorda e diz: Claro. Porque no? S que no sei se os companheiros o deixariam voltar ao abrigo. No iriam logo pensar que ele estava com radioactividade ou tinha apanhado... qual foi o nome que arranjamos para lhe chamar... a Praga do Saco. Mat-lo-iam mal o vissem. Pois acreditariam em tudo o que lhes transmitem pela TV todos os malditos dias da semana e duas vezes nas noites de sbado, julg-lo-iam um mssil ambulante. E, de qualquer das maneiras, h mais do que tu julgas. Devias dar uns cobres de vez em quando organizao Foote; devias saber algumas das coisas que vo por l. Aqueles refugiados que foram informados sub-repticiamente das condies aqui em cima... no foram informados por ningum que conhecessem; no foi nenhum dos companheiros regressados. (A Penltima Verdade, pg.42).
O que dizer ento da atividade realizada pelos yance-men50? Quando dois yance-men se encontram, paira sempre no ar aquela atmosfera de eu-sou-melhor-do-que-tu, quer ali na Agncia, quer nos domnios ou at mesmo em pleno trabalho51. Michel de Foucault, analisando a atividade literria, chegou a comentar em uma de suas conferncias52 que o escritor, na atividade literria, nega toda a literatura do passado, mesmo que a obra sempre este realize, ao mesmo tempo em que transgride as obras passadas, faa auto-referncia a estas. A incessante competio travada entre os yance-men para ser o autor dos discursos de Yancy era, de fato, uma competio para ser o prprio Yancy. 53 Em outro momento, quando Joseph se depara com David Lantano, fica impressionado com o discurso54 que ele produziu, e lhe diz: O teu discurso no apenas inteligente. Tem verdadeira sabedoria. Como uma das oratrias de Ccero. Orgulhosamente comparava o seu prprio trabalho com o de Ccero ou Sneca, com os discursos nas peas de Shakespeare e com Tom Paine55. Se ele era Lantano era to bom como Adams o considerava, podia tornar-se numa das raras declaraes eternas, incorporadas em toda a poltica corrente56. A poltica corrente, responsvel pela postulao das ideologias de baixo57, manipulava no apenas o conhecimento da superfcie, mas as prprias fontes literrias58. A dominao por uma classe social do
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Em determinado momento do texto, Philip analisa o discurso de Adams: Aquele discurso; no dizia a verdade, mas no era um mero pastiche dos clichs, mentiras, frases feitas, eufemismos... E outros ingredientes mais sinistros que Adams notara nos discursos concebidos pelos seus companheiros yance-men; na realidade, ele era apenas um construtor de discursos entre muitos outros (A Penltima Verdade, pg 44). 51 Idem, pg. 45. 52 CONFERNCIA X anotar a pgina correta em que faz referncia negao da literatura anterior, alheia. 53 A Penltima Verdade, pg 49. 54 Adams pensava: Escrever uma frase e, depois de a examinar, saber aproximadamente isto , com segurana suficiente como ficar naquela fase final. Por outras palavras, como aparecer nos crans de TV perante milhes de refugiados no subsolo; que viam e acreditavam, e eram assim levados, dia aps dia, pelo que era pomposamente designado por matria de leitura. Um termo delicado. Mas isso no era absolutamente verdade, como por exemplo com o discurso do jovem David Lantano. Mantinha a iluso essencial de facto, Adams tinha de o admitir a contragosto , a iluso da realidade de Yancy saa at bastante ampliada. Mas... (A Penltima Verdade, pg 49). 55 Idem, pg. 49. 56 Idem, pg, 50. 57 As vossas vidas so incompletas, no sentido referido por Rousseau quando dissera que o homem nascera numa certa condio, nascera livre e que depois fora por todo lado acorrentado. Para eles, no preciso momento em que o discurso era proferido, isso significava que, todos tinham nascido para desfrutar da superfcie de um mundo e que essa superfcie, com o seu ar e luz do Sol e montanhas, oceanos, rios, cores e texturas, odores, lhes fora roubada ao serem enviados para aqueles submarinos de lata, metaforicamente falando, claro, para aqueles abrigos diminutos, onde se acotovelavam, sob uma luz artificial, respirando ar artificial, ouvindo uma msica obrigatoriamente uniforme e fabricando dia e noite robots destinados a... mas nem mesmo Lantano podia ir to longe. No podia dizer pura e simplesmente: Destinado a um fim que desconheceis. Para que cada um de ns c em cima aumente o seu sqito e o nmero daqueles que o servem, que cavem para ns, que construam e nos sirvam... fizeram de ns bares em castelos senhoriais, e vocs so os nibelungos, os anes, trabalhando nas minas; trabalhando para ns. E em troca ns damos... matria de leitura. No, o discurso no fora to longe... como o poderia fazer? Mas admitira a verdade, que os refugiados tinham o direito a algo de que no dispunham. Eram vtimas de ladres. Roubo cometido contra milhes, e durante todos aqueles anos no houvera qualquer reparao moral ou legal (A Penltima Verdade, pg 51). 58 Na mnada que armazenava todas as produes literrias de domnio da Agncia, aps seu encontro com Lantano, Joseph Adams vai a busca de algo alguma referncia literria do passado que o possibilite aprimorar sua atividade
conhecimento escraviza a capacidade de se contestar no apenas a situao presente, mas tambm a possibilidade de se propor formas de organizacionais transitrias, para uma possvel reestruturao do sistema em geral, possibilitando assim uma condio de segurana para a busca da verdade que se desenvolva a par das postulaes impostas, formuladas por cada sujeito, a seu modo particular. Com o desenrolar da trama, Nicholas vai superfcie em busca de um rgo artificial para um integrante do seu abrigo o mecnico-chefe com a finalidade de tentar salv-lo e, desta forma, cumprir a meta do seu abrigo, atendendo por completo a quota a eles imposta pelos que habitam a superfcie. Ocorre que, ao chegar superfcie, Nicholas se depara com um mundo habitvel, diferente do que se ouvia falar pela tela da televiso: o domnio de Lantano. Encontrando-se com outros refugiados que lhe esclarecem a verdade da superfcie (apesar de ainda temerem a contaminao), Nicholas toma conhecimento de que tudo o que se articulou at o presente momento tinha sido uma grande mentira59. Por sua vez, Lantano revela seu plano de remover o poder da Agncia dos yance-men, retirando-o das mos de Stanton Brose. Nesta conspirao, esto envolvidos Adams e o prprio Webster Foote. Referindo-se ao jogo do poder, Foote, em seus pensamentos, diz a si mesmo:
Necessrio. Uma palavra favorita entre aqueles que so levados por uma incontrolvel sede de poder. A nica verdadeira necessidade era interior, a de realizarem os seus intentos. Brose era assim; Lantano tambm; o mesmo acontecia com inmeros outros yance-men ou pretendentes a yance-men; o mesmo se passava com centenas se no mesmo milhares de comissrios polticos l em baixo nos abrigos, governando como verdadeiros tiranos por meio da ligao especial que tinham com a superfcie, por meio da gnosis que possuam, pelo conhecimento secreto que possuam sobre a verdadeira situao que reinava ali em cima. (...) Como que um homem no seu perfeito juzo pode escolher entre estas duas opes e manter-se so de esprito como antes? Somos uma raa verdadeiramente amaldioada, isso indesmentvel, concluiu para si; O Genesis tem razo. Se esta a opo que se nos coloca; se s temos esta escolha, se todos temos de nos transformar em instrumentos de uma ou de outra, meros pees
literria. Introduziu a chave na ranhura; fez-se o registro e a mnada dirigente, depois de consultar o seu banco de dados, detectou e recordou todas as fontes que ele j consultara, e a respectiva seqncia; compreendia o esquema completo do seu conhecimento formal. Do ponto de vista dos arquivos, ele era conhecido sem limites, pelo que podia declarar pelo menos era o que esperava qual seria o ponto seguinte no grfico de crescimento da sua vida mental. Qual seria o seu desenvolvimento enquanto entidade de conhecimento (A Penltima Verdade, pg 53). 59 Nicholas, ao interrogar Lantano sobre a inexistncia real de Talbot Yancy, ouve a seguinte resposta: Como componente da sua aparncia, qualquer lder mundial assumiu sempre um certo aspecto fictcio. Especialmente neste ltimo sculo. E claro que no tempo dos Romanos, por exemplo, qual era verdadeiramente o aspecto de Neto? No sabemos. Eles no sabiam. E o mesmo se passa com Cludio. Era um idiota ou um gnio? E os profetas, as religies... (A Penltima Verdade, pg 125).
que quer Lantano quer Stanton Brose podem mover sua vontade, segundo os caprichos dos seus grandes desgnios60
Por fim, Nicholas regressa ao seu abrigo61 levando consigo o rgo que fora procurar, acompanhado por Joseph Adams, que se recusou a participar do compl para retirar Brose do poder, fugindo com medo de possveis represlias. Tudo dependia das emisses de TV e do que Talbot Yancy, o real ou imaginrio, tinha para lhes dizer62. Mas Lantano e Foote so bem sucedidos. Talbot Yancy anuncia o fim da guerra, mas diz que o retorno superfcie ser gradual pois ainda h resqucios de radioatividade na superfcie, e Adams, tomando conhecimento desta notcia, imagina o resultado final do plano conspiratrio que se negou a efetivar. Agora, o que ele mais deseja explicar ao mundo a situao da superfcie, produzindo o seu melhor discurso. Por que? Pelo simples prazer de ser quem ir se eternizar com mais uma mentira.
6 CONCLUSO
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A Penltima Verdade, pg 140. E depois, Nicholas disse para si, soaro as trombetas e desta vez erguer-se-o os enganados, no os mortos. E no sero incorruptveis, triste reconhec-lo, mas altamente mortais, eliminveis e... loucos. Um enorme ninho de vespas atiadas para o ataque. Primeiro este abrigo; mas antes teremos de estabelecer contacto com os abrigos vizinhos, teremos de lhes dizer tudo tambm. Diremos: passem a palavra at que toda a gente saiba. E, finalmente, uma rede universal de vespas enfurecidas; e se erguerem todas ao mesmo tempo, no haver exrcito algum de robots que as possa deter. Apenas algumas. Talvez um tero. Mas pouco mais. (A Penltima Verdade, pg 154).
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Ibidem.